Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
marcelo pedroso
por Victor Guimarães
68 entrevistas
Pode também ser violento. Eu acho que os meus trabalhos, quando
se propõem a se relacionar com o espaço urbano, vão incorporar essa
relação de tensionar uma experiência corporal no espaço. Num bairro
como Brasília Teimosa, que está dentro de um contexto midiático,
da eleição do Lula, que foi lá com uma caravana de ministros, eu
busco perceber as mudanças, a complexidade. É o paradoxo do
desenvolvimento que me interessa nesse contexto de pesquisa. É um
estado de suspensão do mundo. Por Recife estar se transformando
tão rápido, isso cria um cenário de perceber esse corpo suspenso,
e esses personagens me interessam nesse contexto de suspensão.
Marcelo Pedroso Eu não tenho muita coisa com a cidade, não.
Cinética Câmara Escura tem algo disso…
Marcelo Câmara Escura nasceu de outras coisas. Ele acaba acon-
tecendo na cidade, mas nascia muito mais de uma coisa ligada
à enunciação, à fabulação, à relação com o outro. Mas como ele
tinha um gesto que implicava necessariamente um contato mais
epidérmico com essa superfície urbana, resultou naquilo ali. Eu
vivo numa cidade ríspida, árida, excludente, conservadora. Por mais
encantos que ela tenha, por mais que se configure ali um espaço de
reconhecimento afetivo interpessoal, a cidade, em si, é um espaço
muito hostil, muito injusto e desagregador. A vida comum se dá em
ambientes nos quais eu não sinto identificação. A vida comum em
Recife acontece no shopping. Em Recife só, não, né? Nas grandes
metrópoles. Mas lá tem alguma dimensão em que isso se acentua,
em que o convívio público se esvazia, em que os espaços públicos
são atravessados por um esvaziamento. Em Câmara Escura, na hora
de escolher as casas onde a gente iria deixar o artefato da câmera,
escolhemos casas mais fortalecidas, muro alto, cerca elétrica. Toda
essa violência simbólica que está na cidade e que é reflexo de
outras violências que se sedimentam ali historicamente, cuja fonte
é meio imperceptível.
Cinética Um traço que me instiga nos filmes é uma vontade permanente
de problematizar as relações sociais, associada a um desejo de desco-
brir outras formas de fazer cinema. Queria saber como vocês enxergam
isso, e que relações vocês encontram entre o cinema e a política.
Marcelo Essa aproximação entre as instâncias estética e política é
muito comum. E é muito fácil falar disso a partir do senso comum.
Tudo é política, nada é política. Mas eu acho que essa coincidência
acontece, sim. É uma busca de uma articulação entre essas duas
dimensões que o filme pode conter. E ela acontece, pra mim, quando
70 entrevistas
filmes, que se permite um olhar mais reflexivo sobre eles e se deixa
atravessar por eles? Como é que a gente vai ampliar esse alcance de
uma mensagem que não é verbal, cognoscível, centrada, mas que
é uma mensagem sensível, estética, como a gente vai ampliar isso,
fazer chegar em outros cantos? Essa talvez seja a maior inquietação
política que os filmes enfrentam hoje.
Cinética Vocês percebem isso como um nó, um desafio, ou já pensaram
formas para que essa bolha seja furada?
Gabriel A gente tem pensado em várias estratégias. Cada projeto vem
contaminado de uma vontade meio inusitada de sair dessa bolha.
Eu acho que algumas são bem sucedidas, só que elas não são for-
malizadas como válidas pelas instituições que avaliam e mensuram
as distribuições de cinema. O Marcelo distribuiu Pacific por meio de
uma cartilha com textos sobre o filme. No Um Lugar ao Sol, eu tive
a experiência de fazer um guia didático para professores de ensino
médio, que poderiam trabalhar o cinema documentário em sala de
aula. Foi distribuído por uma rede que atinge dois mil professores.
Rolou esse tipo de distribuição, mas isso a gente não consegue
mensurar, isso não é válido pela agência que regula o cinema.
Marcelo É um alcance de formiguinha, mas a gente tá fazendo. É
muito louco, mas a gente é impelido a uma atuação que não consiste
só em fazer os filmes. A gente não pode se furtar a essa experiência
de pensar em como fazê‑los reverberar socialmente e politicamente.
Cinética Continuando sobre essa relação entre cinema e política, que-
ria saber se essa ideia de problematizar relações sociais e de poder
era um projeto, desde o início, ou se foi aparecendo com os filmes.
Gabriel A gente se conheceu na política.
Marcelo A gente se conheceu no da, na universidade. Ele era oposição
à minha chapa, mas aí ele me cooptou, eu entrei na chapa dele… É
muito louco isso, porque esse engajamento político nos filmes alcança
uma dimensão completamente diferente. Não são filmes panfletários,
não são filmes engajados numa reprodução… A política é justamente,
às vezes, a desconstrução dessas matrizes discursivas monolíticas
que categorizam o que é o possível dentro de uma normatividade.
Então, a política hoje é um pouco o reverso daquilo que a gente
fazia na faculdade. Do da, de panfletar, de defender uma ideia. Às
vezes, o que a gente está querendo fazer agora é desarticular, é virar
pelo avesso as estruturas do poder, das relações sociais silenciadas.
Qual é a ferramenta que a gente tem para uma tessitura às avessas?
Para destecer o tecido?
72 entrevistas
que foi justamente esse comedimento que conseguiu tornar o filme
um lugar onde eu me reconheço, algo que eu possa defender. Mas
esse processo realmente causou um deslocamento de como eu sou
no meu dia a dia, de quem eu sou, de como eu lido com as pessoas,
dos meus pudores, dos meus medos.
Gabriel Quando você escreveu sobre Um Lugar ao Sol (nota do entre-
vistador: Gabriel se refere a um texto que escrevi sobre Um Lugar ao
Sol à época da exibição do filme na Mostra de Cinema de Tiradentes,
em um blog já finado), você tensionava a dimensão ética da escritura.
Qual é o limite, né? Você citou o Comolli: como filmar o inimigo?
Mas qual ética você vai buscar para filmar o inimigo? É a ética do
amigo? Que ética é essa? É uma coisa que eu não sei. Está além de
mim, é uma ética que não tem limite. Na relação do jogo de poder,
na relação do mercado de capital, há uma ética perversa; a própria
perversidade é parte do jogo, é parte da minha pesquisa. Teu texto
buscava uma equalização possível numa ética possível pra abordar
isso. Para mim, não existe ética possível dentro do contexto do
mercado, do capital, para justificar ou balizar o limite.
Marcelo E a eleição do que é esse inimigo não é a pessoa, o persona-
gem, de forma alguma…
Gabriel O inimigo é você mesmo. O inimigo é você.
Marcelo É uma estrutura que está armada ali. É uma dimensão sis-
têmica. Não é fulano, beltrano. É a gente mesmo. Nós que fazemos
parte disso e as pessoas fazem parte disso, à revelia de si mesmas.
Cinética Já que você falou de Um Lugar ao Sol, acho muito interes-
sante essa pergunta: qual ética a gente vai buscar pra trabalhar
num mundo em que a ética dominante é a do capital? Será que
é a ética do amigo? Por outro lado, o que me incomoda em Um
Lugar ao Sol é que o resultado estético da abordagem daqueles
personagens talvez não problematize algo que a gente já sabe so-
bre eles, e que resulta em certa planificação. Algo que eu vejo em
Pacific e Doméstica – que é o gesto de tornar as coisas ainda mais
complexas do que elas parecem à primeira vista – eu não percebo
em Um Lugar ao Sol. O gesto terrorista me interessa muito, tanto
em Câmara Escura quanto em Um Lugar ao Sol, mas nesse último
eu acho que a montagem ou o próprio método só conseguiram
confirmar uma expectativa que o espectador já tinha sobre aqueles
personagens. Ou seja: como ir além do ridículo, como ir além do riso
que, de certa maneira, faz parte do consenso? Como operar de uma
forma realmente dissensual?
74 entrevistas
Se há um ponto em comum entre esses filmes que a gente está citando,
talvez seja a possibilidade de um risco da não aprovação pelo perso-
nagem. É um jogo que se constitui como risco que leva em conta a
câmera, o cinema, a arte como um tensionador de uma experiência
de mundo.
Marcelo Eu acho que a duração compartilhada, aquele instante
em que documentarista e personagem dividem a cena, é capaz de
implodir perspectivas de mundo que estão enraizadas nos dois. Se
o filme não conseguir abrir essa dimensão que a gente consiga olhar,
se identificar, se projetar, ver a nós mesmos ali dentro, a gente está
fodido. Na primeira sessão do Pacific lá em Recife, no Janela, eu saí
da sala. Porque as pessoas riram tanto durante o filme que eu fiquei
numa crise. Fui pro debate mortificado. As pessoas diziam: “Quem
era você? Você era um espectro ali?” No outro dia, eu reuni a equipe
e disse: “Ó, esse filme não vai existir não. A gente vai sepultar hoje
mesmo, acabou. Obrigado, foi massa o trabalho de vocês, mas esse
filme saiu pela tangente. Como é que pode a gente fazer um filme em
que se exercita um olhar e uma sensibilidade sobre o mundo, sobre
as pessoas e a reação é escárnio, é riso descontrolado?”. Aí passei por
um processo de conversa com a equipe e passei a entender o quanto
esse riso de escárnio do público durante as sessões também denota
a própria dificuldade do público de olhar para aquilo.
Gabriel Acho também que tem um pacto que se estabelece entre mim,
espectador, e aquele personagem que está sendo ridicularizado pelo
grupo, que me faz negar que aquela experiência é válida. Por outro
lado, pra mim, rir é muito mais complexo do que o ridículo. Eu me
divirto muito com Pacific, mas na diversão existe a complexidade.
No Doméstica tem várias cenas com riso, engraçadas. De repente, a
mulher fala do filho morto: silêncio. Cena propositalmente montada
pra ser uma virada narrativa clássica. Eu não tenho problema nenhum
com o riso. O riso é parte desse jogo de risco: é uma experiência, em
si, tensa. Acho que dentro do riso tem muita tensão, muita potência.
Cinética Falando agora dos filmes mais recentes: de onde vem esse
interesse de olhar para as imagens dos outros?
Marcelo Tinha uma coisa de começar a se debruçar sobre a coisa do
espetáculo. Um primeiro movimento: por que a gente precisa filmar
se está todo mundo filmando? Eu nem conhecia muito os filmes que
se valiam desse procedimento. Fui conhecendo durante a montagem,
Videogramas de uma Revolução (Videogramme einer Revolution,
1991/1992), de Harun Farocki e Andrei Ujica, umas coisas assim.
76 entrevistas
de observação que consumava o ideal do cinema direto, da mosca
na parede. Eu não estava no navio, era um olho realmente invisível
que estava lá, ninguém sabia que aquilo ia virar filme, e eu ficava
muito deslumbrado com esse esvaziamento.
Cinética Tanto em Pacific quanto em Doméstica, há um trabalho de
dramaturgia muito forte. Como é que vocês pensam isso na monta-
gem? Essa organização dramatúrgica de um projeto não dramatúrgico,
no sentido tradicional?
Marcelo Esses filmes dão margem a perceber o quanto a forma de filmar
é roteirizada a partir de experiências de imagem que o personagem
reproduz no ato de filmar. A imagem vem contaminada por outras
imagens, ela reverbera um catatau de imagens que o personagem
absorveu ao longo da vida e que estão ali, voltando à tona. E pelo
fato de essas imagens já serem elaboradas a partir de uma certa
matriz de mise en scène, a forma como as pessoas se organizam no
espaço já encontra filiações que permitem que a gente estabeleça uma
dramaturgia a partir de algo que já está presente ali. A apropriação
que os personagens têm da linguagem cinematográfica, jornalística
ou documental nos permite criar essas pontes. Não são imagens
puras e brutas que correspondam a um estado virgem de um olhar,
mas imagens que já vêm contaminadas por esses princípios.
Gabriel Quando essas imagens chegam pra gente, a gente também
não se imagina trabalhando com uma pureza, ou uma ingenuidade
nesse processo de articulação. Eu gosto de imaginar e desconfiar
dessas imagens. No Pacific, pode ser que tenham coisas que não
foram filmadas por eles. Pode ser que tenha voz off que não seja real.
No Doméstica, pode ser que eu tenha filmado também. Provocar esse
desconforto eu acho que é bacana. Imaginar um corpo de filme que
está num limiar de uma tensão de mundo que se dá a partir dessa
reapropriação, ressignificação do olhar do outro, mas que também
se dá a partir de uma montagem que flerta com uma experiência
narrativa que organiza essas imagens.
Marcelo Esse gesto acaba gerando uma escrita que não é sem autor,
mas cuja noção de posse ou de autoria é truncada. Esses deslocamen-
tos que se operam geram um tipo de coisa que nem te pertence, nem
pertence a quem filmou. É um tecido polifônico, o que você quiser
chamar, mas que é alheio. É como se fosse uma escrita estrangeira.
Porque, por exemplo, no exercício mais convencional do documen-
tário, a gente está aqui, eu estou filmando vocês, isso aconteceu, aí
você fala uma coisa que eu achei massa, aí eu vou explorar mais isso.
78 entrevistas