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AVANCA | CINEMA 2018

O arco do medo - reconstrução da masculinidade negra e homossexual


Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita1
Secretaria de Educação do Distrito Federal - Brasil
Edileuza Penha de Souza2
Universidade de Brasília - Brasil
O fato de o cinema reproduzir a
complexidade da vida cotidiana e dos
dilemas vivenciados pelas pessoas em
Abstract
diferentes esferas da vida em sociedade
lhe confere a possibilidade de
“O arco do medo” - reconstruction of black and contribuir para a construção,
homossexual masculinity. This article presents an reconstrução e sedimentação de
analysis on the portrayals of masculinity and Negritude conhecimentos, atitudes e valores.
shown on the 2017 experimental short film “O Arco (OLIVEIRA, 2007, 33).
do Medo” by the director Juan Rodrigues. The film
Em outras palavras, valores e atitudes podem ser
proposes to question gender patterns and the ways
redimensionados pela linguagem cinematográfica,
these reflect on black gay men. The used theoretical
visto que o cinema é uma produção simbólica e,
contribution is in reference to social representations,
por meio de representações, age diretamente nas
discourse analysis and to black cinema. The discursive
subjetividades dos(as) espectadores(as). A relação
formations found in the interdiscourse and in the
entre realizadores(as) e espectadores(as), portanto,
film’s enunciative scene are inferred. Thereafter, a
é um fator importante para compreendermos os
discussion on the oppression which black gay men
impactos do cinema. As produções cinematográficas
suffer is formed in a society in which behaviors are
auxiliam na reflexão acerca dos arranjos sociais e,
dictated by racist and heteronormative values. The
concomitantemente, contribuem para que novas
film’s main character’s transformations are examined,
representações sejam incorporadas ao imaginário
a character whose narratives enable to question and
social.
reconstruct the concepts of masculinity and Negritude.
O cinema, assim como os outros meios de
In this regard, there is the pursuit to problematize
comunicação, é capaz de dotar de significados os
how art is able to be a source of transformation of
diversos grupos que compõem a sociedade. Tanto
hegemonic patterns to shape black corporeity.
o cinema de ficção quanto o documentário têm forte
Keywords: black cinema, corporeity, homosexuality, ligação com os fatos sociais e podem ressignificá-
black masculinity, o arco do medo. los. Para a jornalista Ceiça Ferreira, o cinema e os
conteúdos midiáticos:
1 - Introdução
Atuam como elementos representativos da ordem
Eu sou um corpo do mundo e constitutivos da subjetividade e das
Um ser representações sociais, e assim contribuem ainda
Um corpo só para a formação do imaginário, pois incidem na
Tem cor, tem corte forma como o indivíduo pensa e lida com o mundo e
E a história do meu lugar com as pessoas (FERREIA, 2012, 2).
Eu sou a minha própria embarcação
Nas perspectivas de Oliveira, 2007 e Ferreira, 2012
Sou minha própria sorte
Um Corpo no Mundo - Luedji Luna
faz-se necessário compreender como o imaginário
cinematográfico impacta os diferentes grupos sociais.
O gênero é uma construção social que se E desse mesmo modo, entendemos a urgência
desenvolveu ao longo da história da humanidade e de considerar que gênero, raça e sexualidade
impôs determinados comportamentos a homens e são construções sociais e estão relacionadas
mulheres. Esses comportamentos foram disseminados às experiências vividas por indivíduos ou grupo.
com maior intensidade com o desenvolvimento dos E de como essas experiências, também, estão
meios de comunicação de massa, como o cinema, associadas aos meios de comunicação. A forma
a televisão e o rádio, devido a capacidade que eles como determinadas linguagens, corpos e rituais são
têm de atingir milhares de pessoas ao mesmo tempo. representados ajudam a construir o imaginário social.
O desenvolvimento desses meios foi responsável A discussão de gênero, raça e sexualidade
pela disseminação de valores que contribuíram para são as categorias que elegemos para analisar as
a forma como grande parte da população enxerga representações de masculinidade, negritude e
determinados grupos e comportamentos. homossexualidade, presentes no curta- metragem
O cinema, um dos objetos deste artigo, tem a experimental/vídeo-arte, “O Arco do Medo”, do
capacidade de auxiliar na construção de valores de diretor Juan Rodrigues, realizado na Universidade
uma dada sociedade, pois consegue ressignificar os Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), em 2017.
dilemas vivenciados pelas pessoas no seu cotidiano. As representações sociais, a análise do discurso
Desse modo, de acordo com a professora Dione francesa3 e o cinema negro são os aportes teóricos
Moura Oliveira: que referendam as reflexões sobre o corpo negro,

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especificamente sobre o corpo negro e gay. Nosso
objetivo é acompanhar as transformações e as Capítulo II – Cinema – Cinema
narrativas do protagonista e problematizar a arte
cinematográfica como mecanismo de alteração
corresponde ao cinema experimental/vídeo-arte.
dos padrões hegemônicos. O curta-metragem
Isso é importante pois, nos ajuda a compreender a
apresenta o corpo como simbologia de resistência às
utilização de determinados recursos de linguagem.
representações de gênero e raça; decodifica algumas
Como afirma Ivana Bentes:
das experiências do homem negro e suas constantes
buscas pela libertação das amarras impostas pelos A vídeo-arte também recriaria e canibalizaria
padrões da sociedade heteronormativa. procedimentos de linguagem que remontam às
As representações de masculino e feminino vanguardas históricas e ao cinema experimental dos
disseminadas pelos meios de comunicação, anos 60 e 70 em todo o mundo — a flicagem, as
contribuem para formular a maneira como as cine-colagens, as superposições e fotomontagens,
pessoas vivem o seu cotidiano. Desse modo, como já grafismos, imagens simultâneas no quadro, tripticos,
afirmamos acima, esta análise é guiada a partir dos telas duplas — iriam reaparecer com o vídeo. Certos
questionamentos produzidos no filme, que questiona os efeitos das primeiras ilhas de edição, tornados
padrões de gênero e raça, que propõe a necessidade programas e de experimentação fácil, invadiram o
vídeo nos seus primórdios (2003, 125).
de se conceber o cinema como representação e que,
possibilite o surgimento de múltiplos discursos, e, por
Esses recursos são utilizados ao longo do filme e
conseguinte, dê espaço a grupos que estão política,
serão os mediadores entre o emissor e o receptor das
social e economicamente à margem. O curta mobiliza
formações discursivas existentes. Isto é importante
uma série de aparatos para demonstrar a resistência
para que não ocorra falhas de comunicação. Estar
do corpo negro gay.
atento a forma como esses recursos são trabalhados
A Análise do Discurso Francesa (AD) é a
é um ponto crucial para o analista, visto que há, como
perspectiva teórica que usamos como referencial.
salienta Fabris; “uma materialidade fílmica (visível,
Essa escolha se justifica pela proposta da AD em
dizível e de silêncios) criada pela linguagem própria
estabelecer a relação que os enunciados possuem
desse artefato, utilizados na operação de transformar
com o período histórico no qual foram produzidos.
as imagens em histórias que nos capturam e seduzem”
Dessa forma, concebemos a materialidade histórica
(2008, p.126).
como um fator fundamental na formulação dos
O conceito de Cinema Negro é importante para
discursos; portanto, para compreendê-los,
a análise do curta, pois permite compreendê-lo,
necessitamos de estar atentos aos fatores sociais
não apenas, como uma produção de cinema com a
que estão imbrincados em suas formações.
temática negra, mas o insere dentro de um conjunto
Para chegar as matrizes discursivas
de trabalhos de cineastas que forjam o conceito de
construídas pelo filme, realizamos uma análise de
Cinema Negro como um cinema produzido por negros,
como o discurso se constrói a partir de
com temáticas sobre a população negra e reiteram
elementos da linguagem cinematográfica, como a
uma epistemologia possível para criação do cinema
decupagem das cenas, a montagem, a fotografia, o
negro brasileiro.
som, os enquadramentos, as falas, os textos, a
O trabalho dos cineastas negros, conforme afirma
cenografia, o figurino, as inserções e a linguagem
a historiadora Edileuza Penha de Souza (2013), tem
corporal.
possibilitado uma nova visão de mundo, uma nova
forma de mostrar a vivência de negros e negras no
2 - Metodologia - as expressões de Brasil. Desde que assumiram o controle das câmeras,
masculinidade em “O arco do medo” eles têm criado um cinema de produção, autoria e
cosmovisão negra; seus filmes são veículos de combate
Para compreender a construção do discurso no curta-
ao racismo e aos preconceitos; suas produções
metragem O Arco do Medo, adotamos como
promovem e ampliam a história e a cultura negra,
perspectiva metodológica a análise dos elementos
criam espaços formativos de políticas cinematográficas
que compõem a linguagem cinematográfica: os
para cineastas, produtores e realizadores negros, e
detalhes de cenário e figurino, o enquadramento, a
fortalecem as produções negras.
iluminação, os sons, a interpretação, as falas, a
Para análise do curta-metragem o dividimos
movimentação da câmera. Todo esse aparato
em três partes: a primeira mostra os padrões de
cinematográfico é analisado para compreender as
masculinidade e sexualidade que circulam pela
matrizes discursivas desenvolvidas pelo filme.
sociedade e, dessa forma, influenciam o modo
Considerar esses detalhes, ao analisar uma produção
como os indivíduos devem agir; a segunda revela-se
cinematográfica, torna-se imprescindível, porque de
momento de transição entre a opressão e a liberdade
acordo com Elí Henn Fabris: “Analisar uma produção
de expressar o seu ser; a terceira corresponde ao
como o cinema, que rompe com as formas mais
momento de ressignificar sua vida, reconstruir-se a
comuns de representação, em que a materialidade é a
partir de novos referenciais. É importante salientar, no
imagem em movimento, é ingressar em uma outra
filme, a constante experiência corporal demonstrada
dimensão do conhecimento” (2008, p.125).
pela personagem. Corroboramos, com Neusa Santos
A cena englobante do curta- metragem
Souza, a concepção de que a construção da identidade
corresponde ao tipo de discurso que podemos situá-
está ligada a nossas experiências corporais e aos
lo, ou seja, o cinematográfico. A cena genérica,
significados que atribuímos a elas. Segundo afirma
está conceituada como o gênero do discurso,
Jurandir Freire Costa, na introdução a obra da autora:
que neste caso,

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A identidade do sujeito depende, em grande medida, No imaginário ocidental, um homem negro não é
da relação que ele cria com o corpo. A imagem ou um homem, antes ele é um negro e como tal não
enunciado identificatório que o sujeito tem de si tem sexualidade, tem sexo, um sexo que desde
estão baseados na experiência de dor, prazer ou muito cedo foi descrito no Brasil com atributo
desprazer que o corpo obriga-lhe a sentir e pensar. que o emasculava ao mesmo tempo em que o
(...) Para que o sujeito construa enunciados sobre assemelhava a um animal em contraste com o
a sua identidade de modo a criar uma estrutura homem branco (2014, p.100).
psíquica harmoniosa, é necessário que o corpo seja
predominantemente vivido e pensado como local e Para Alex Ratts (2007), é importante reconhecer
fonte de vida e prazer. (1983, 06). a questão racial como estrutural e combiná-la a
outras dimensões — como gênero e classe — para,
Isso tende a ser uma experiência mais complexa assim, compreender a pluralidade de experiências
quando se relaciona ao corpo negro, pois este vive homossexuais negros. A sexualização do homem
imerso numa sociedade construída sob referenciais negro foi algo mitifica, tornando-se um fator que o
brancos. Ressignificar a experiência corporal de um dota de poder. Nesse caso, o homossexual negro
jovem negro e gay, significa reconstruir, praticamente, apresenta-se como uma ameaça a hierarquia social,
todo o seu referencial de sociedade. visto que sua performance de gênero questiona a
A cenografia do filme traz um jovem negro e gay, estrutura hegemônica dentro da comunidade negra.
morador da periferia de um centro urbano, envolto às Ao tratar de homossexuais negros, o assistente
pressões sociais sobre a forma como deve portar-se social Joilson Santana Marques Júnior, afirma que
diante da vida. O filme remete à experiência de vida de essa concepção é desconfigurada, pois “observa-se,
muitos jovens negros e gays das cidades brasileiras, assim, que para além da traição da masculinidade
que passam pela experiência da repressão à sua heterossexual, é uma traição à qualidade mais bem
sexualidade e estão suscetíveis a outras formas de positivada do homem negro: a sua possante virilidade”
preconceito. (MARQUES JÚNIOR, 2012, p. 186).
O discurso apresentado no curta-metragem
2.1 - Masculinidade Compulsória - “Tempo, está pautado na narrativa da masculinidade negra
medo e liberdade o assombravam” heteronormativa construída ao longo da história
brasileira. A agressividade existente nas falas denota
O filme inicia com uma personagem imersa nos a tentativa de esconder essas outras masculinidades e
dilemas de um jovem em relação a sua sexualidade, oprimir distintas formas de expressão, a fim de manter
rodeado de coisas que impõem comportamentos o status quo.
ditos masculinos. A personagem usa um figurino que Uma fala que corrobora a mesma ideia aparece
remetem à esse universo: boné, camiseta e short. um pouco mais a diante no filme: “Eu sou macho, eu
A câmera o acompanha num processo de despir-se sou negão, dar o cú é errado”. Essa fala expressa,
desses padrões, enquanto uma voz off apresenta a assim como as outras, a concepção de que o negro
personagem e remete às determinações de como um está ligado ao falo; portanto não pode estar na posição
homem deve se portar, em especial, um homem negro: passiva em um relacionamento homossexual, visto
que o homem negro não assume essa posição na
“Havia um garoto negrinho em uma caixa. Em casa, hierarquia social. Assim insere-se um letreiro em letras
no morro, janela fechada. Tempo, medo e liberdade garrafais para que não haja dúvidas.
o assombravam.”
“Filho gay é falta de porrada.”
“Braço quebrado, mainha gritava:
— Homem não desmunheca!”

Percebe-se, por meio das falas, um jovem que


necessita de liberdade, mas que ainda tem medo
de expressar-se devido aos impedimentos impostos
pelos modelos de masculinidade, principalmente aos
que se referem a masculinidade negra, que vigoram
na sociedade. Nesse contexto, o interdiscurso do filme
apresenta-se ao tratar o referencial de homem negro
construído na sociedade brasileira. Essa construção
é definida num contexto de teorias eugenistas, nas Figura 1: Frame do filme
quais predominavam, conforme Osmundo Pinho
destaca, “discursividades racializantes ou puramente
racistas” (2004, p. 67). O diretor constrói a cena enunciativa em relação
Essas discursividades racializantes restringem a violência simbólica vivida pelo homem negro ao
a imagem do homem negro a questões sexuais. associá-la a outras formas de repressão, inclusive
A hiperssexualização do homem negro ocorre, na simbólicas vividas por essa parcela da sociedade.
intenção de diminuí-lo como ser humano. Rolf Ribeiro Ao situar-se numa comunidade da periferia, o diretor
de Souza problematiza o que significa a sexualização associa seu discurso com outras formas de violência
do homem negro: sofridas pelos moradores dessas comunidades:

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Capítulo II – Cinema – Cinema

“Rua deserta, toque de recolher. De dentro de sua


caixa o negrinho espera amanhecer”.
“A sirene e a rasga mortalha acompanham. O
maestro fardado dispara sua batuta. Sons de tiro.
Cai um corpo, gritos”.
“Prefiro ter filho ladrão que ter filho viado”.
“bandido bom é bandido morto”.

O interdiscurso nesse instante ultrapassa a noção


de masculinidade e leva- nos a discorrer sobre os
índices de violência sofrida, principalmente pelos
jovens negros moradores das periferias brasileiras.
Nesse ponto, o discurso do filme encontra-se Figura 2: Frame do Filme
interligado aos dados fornecidos por centros de
pesquisas que demonstram que os jovens negros
são os principais atingidos pela violência. Maria
Aparecida Silva Bento afirma, em relatório do Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que:

Principais vítimas da violência urbana, alvos


prediletos dos homicidas e dos excessos policiais,
os jovens negros lideram o ranking dos que vivem
em famílias consideradas pobres e dos que
recebem os salários mais baixos do mercado. Eles
encabeçam, também, a lista dos desempregados,
dos analfabetos, dos que abandonam a escola antes
de tempo e dos que têm maior defasagem escolar” Figura 3: Frame do filme
(2005, 194).

A formação discursiva dessa parte do filme retrata


tanto a violência relacionada à homofobia, que faz
os jovens negros se sentirem presos a padrões
de comportamentos pautados pelas concepções
tradicionais de gênero, quanto a violência referente
às ações da polícia e de outros grupos nas periferias.
Bento complementa ao dizer que:
2.2 - O silêncio da transformação - “uma
Numa equação bem conhecida, a conjugação passagem só de ida”
perversa de diversos fatores, tais como racismo,
pobreza, discriminação institucional e impunidade,
Este momento intermediário do filme tem grande
contribui para a falência do sistema de segurança e
relevância na construção da narrativa. Realizado a
justiça em relação à população negra. Essa relação
não é fruto do acaso: distorções como a “presunção partir de uma fotografia em preto e branco — o que
de culpabilidade” em relação aos negros resultam a diferencia das outras partes do curta — representa
em ações que promovem a eliminação pura e a luta da personagem contra os padrões que lhe
simples dos suspeitos, violando os direitos humanos são impostos. Em planos detalhes acompanhamos
e constitucionais desses. (BENTO, 2005, p. 195) a retirada de fitas que estão grudadas ao redor do
corpo da personagem. Esse processo aparece como
Nesse sentido, conjuga-se contra os negros uma se fosse um nascimento, em que após todo esforço,
série de fatores que são constitutivos da formação surge uma nova pessoa.
discursiva do curta-metragem construída a partir da
cena enunciativa desse primeiro momento. Ao final, o
que se percebe, a partir da confluência das imagens,
que a morte espreita os jovens negros da periferia,
mas também pode-se relacionar a morte dos padrões
de masculinidade impostas aos homossexuais negros,
por isso a superposição de uma lápide, com as roupas
da personagem que se apresenta no início do filme,
como exibido nos fotogramas abaixo:

Figura 4: Frame do filme

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Figura 5: Frame do filme


Figura 9: Frame do filme
Os planos mostram a força empreendida para se
libertar das amarras relativas à sua sexualidade, A cena enunciativa aqui é construída sem falas,
ao gênero e à raça. A cena é montada de forma a somente o som da fita que se arrebenta e tenta
percebermos o corpo marcado, closes que denotam manter-se presa ao corpo da personagem, como uma
dor e, ao mesmo tempo, determinação para que masculinidade que não aceita ser contestada. Nesse
ocorra a mudança. Isso fica evidente ao observarmos processo, não há o que ser dito, por isso a falta de
os fragmentos. diálogos. É necessário senti-lo, vivê-lo. Livrar-se dos
padrões de gênero e sexualidade é algo silencioso,
lento e, muitas vezes, doloroso, que precisa ser vivido
intensamente a cada instante.
Ao final, mostram-se os pés que avançam,
libertando-se dos últimos momentos de resistência das
amarras representadas pela fita, como uma libertação
de um corpo que não lhe pertencia, mas que o prendia
a padrões que não representavam o seu ser. Esse
momento representa a possibilidade de construção de
uma nova masculinidade que será expressa a partir de
outros referenciais.

2.3 - Renascimento – “Esse corpo divergente,


supervivendo no quilombo urbano”
Figura 6: Frame do Filme
Na última parte do filme, a personagem ressurge,
novamente numa fotografia colorida, reconstruindo o
seu ser a partir de outros referenciais. Nesse momento
o protagonista se reconstrói por meio das referências
trazidas pelas mulheres de sua família. Bisavó, avó,
mãe, tia e irmã, formam um conjunto de experiências
de vida que o ajudarão a se recompor como sujeito.
Analisar esse corpo que ressurge é algo importante
para a narrativa do curta, visto que as mulheres são
relegadas a papéis de subalternidade, assim como
os homossexuais. Nesse sentido, como afirma
Júlio Tavares problematizar o corpo por meio de
Figura 7: Frame do filme outros referenciais significa reconstruir sua história
(TAVARES, 1997). “O cinema é uma arma, nós negros
temos uma AR15 e com certeza sabemos atirar”,
afirmava Zózimo Bulbul4, no filme de Juan Rodrigues o
corpo fala e guarda a memória do grupo, por meio do
gestual e passa a estabelecer uma conexão com a sua
comunidade, perfazendo-se dessa maneira como um
arquivo e como arma.
Partindo da premissa de Muniz Sodré de “que o
corpo seleciona e assimila, de modo análogo ao código
linguístico, os estímulos da ordem social e cultural
em que está imerso o indivíduo. O corpo encarna
mediações simbólicas e age instantaneamente em
função das orientações assimiladas” (1997, p.30),
Figura 8: Frame do filme reconstruímos as mediações simbólicas expressas

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Capítulo II – Cinema – Cinema

na cena enunciativa desse momento do filme, no qual


a personagem recorre à suas referências femininas
para reconstituir-se. As falas abaixo expressam
alguns desses referenciais e os entraves para que
eles se manifestassem de maneira mais efetiva ao
longo de sua vida.

“Estas são as roupas que minha mãe nunca pode


usufruir, porque com três filhos para criar é difícil ter
tempo para dar close.”
“Estes são os sapatos que minha avó nunca pode
usar porque era complicado andar no chão de barro
equilibrando a trouxa de roupa na cabeça”
“Está é a maquiagem que minha tia usaria se
Figura 12: Frame do filme
quisesse uma passagem só de ida para o caps”

As referências exemplificadas nas falas acima O som instrumental ao fundo, associado ao


demonstram as dificuldades vividas pelas mulheres movimento circular da câmera e ao movimento do
para expressar o seu modo de ser, assim como corpo da personagem, as sobreposições de imagens
ocorre com os homossexuais. No momento em que a nos fazem pensar que esta vive um sonho, um transe,
personagem apresenta essas mulheres, ela discorre no qual surgem cores, expressões e movimentos
sobre a estrutura social que as impediu de ser como de um corpo divergente, mas também uma obra de
gostariam. A batalha de cada dia para sobreviver, arte que transgride os preconceitos de gênero, de
a necessidade de trabalhar por horas para ajudar raça, de classe, de orientação sexual.
no sustento da família — muitas como lavadeiras, Nesse momento, não é a força revestida da
como a avó, por exemplo — impediram-nas de viver brutalidade da violência física e simbólica que
plenamente sua feminilidade (WERNECK, 2003). predomina, mas uma força revestida da capacidade de
A cena enunciativa desse refazer-se volta ao cenário sobrevivência e superação das adversidades dessas
do primeiro instante do filme, um cômodo de paredes mulheres, que se tornaram símbolos importantes para
no tijolo, remetendo as casas ainda em construção da a personagem.
periferia. Agora a personagem veste as roupas com A cena enunciativa remete-nos a valorização da
referência às mulheres que reconstroem seu novo ser, experiência feminina na formação do sujeito. Esse
os planos detalhes e sobreposições demonstram a sujeito se insurge contra o primado do masculino
nova constituição corpórea da personagem. como detentor de poder, o que permite a manifestação
de novas formas de masculinidade e reformula,
igualmente, o(s) modelo(s) de masculinidade(s) de
negros homossexuais, tornando visível a complexidade
da experiência de cada indivíduo.

Considerações finais – “Quem quer morrer


pela arte?”

Desse modo, constata-se que os conceitos da análise


do discurso francesa permitem analisar detalhadamente
as formulações discursivas existentes em narrativas
cinematográficas e desvelar aqueles sentidos que não
seriam apreendidos em uma apreciação superficial. Isso
tem grande relevância, devido ao número de produções
Figura 10: Frame do filme
realizadas atualmente e a forma como elas circulam na
sociedade. Nesse sentido, a atividade analítica leva à
necessidade de problematizar o papel do fazer artístico
no mundo contemporâneo.
A personagem em seu processo de transformação,
passa pela opressão de ter que expressar-se a partir
de um padrão de masculinidade e a necessidade de
rompê- lo. Ocorre uma busca pelo seu próprio eu, essa
mudança que nos remete a uma lagarta que teceu o
seu casulo, e sai modificada pronta para voar e viver
livremente, como uma bela borboleta. Dessa maneira
viver e expressar-se de forma plena, a partir de seus
próprios referenciais, que irão transpor as barreiras do
binarismo masculino/feminino.
Figura 11: Frame do filme A leitura do filme O arco do medo, aponta que o

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racismo associado à homofobia atinge sobremaneira graduação em História. Universidade de Brasília.


a população negra e gay no país e ainda, de como MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em
o cinema contribui para quebrar os padrões de Análise do Discurso. 3ª. Edição, Campinas, Pontes, 1997.
gênero, raça e sexualidade. O filme, colabora para a OLIVEIRA, Dione Moura. O cinema entre o silêncio
reconstrução do imaginário social que incide sobre dos sentidos e a polissemia discursiva. In: GUILHEM,
Dirce; DINIZ, Débora; ZICKER, Fábio (Ed.). Pelas Lentes
o corpo negro e possibilita que a sociedade
do Cinema: ética em pesquisa e bioética. Brasília:
reconheça outras performances sociais no sentido LetrasLivres; EdUnB, 2007, v. 1, p. 33-48.
de reduzir também os casos de violência sofridos por PINHO, Osmundo. Qual a identidade do homem
determinados grupos. Por fim, resta-nos responder à negro?. Revista Democracia viva nº 22, Ibase jun/jul 2004.
indagação formulada no decorrer do filme: poderia ser Disponível em https://issuu.com/ibase/docs/democracia-
a arte um mecanismo para transformar as formulações viva-22
de gênero existentes na sociedade? Conforme se RAMOS, Eduardo. A linguagem cinematográfica. SÃO
comprova em O Arco do Medo, a arte pode — sim — PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Fundação para
ser um meio de construir-se uma cultura realmente o Desenvolvimento da Educação. Caderno de cinema do
comprometida com a demonstração da singularidade professor: dois. São Paulo: FDE, p. 72-93, 2009.
do indivíduo ou de seu grupo no mundo. RATTS, Alex. Entre personas e grupos homossexuais
negros e afro-lgttb. BARROS JÚNIOR, Francisco de Oliveira
e LIMA, Solimar Oliveira (Orgs.). Homossexualidade
Notas Finais sem fronteiras. Rio de Janeiro: Booklinks/Tresina: Grupo
Matizes, 2007.
1
Formado em Comunicação Social – habilitação Audiovisual,
pela Universidade de Brasília. Professor da Secretaria de Souza, Rolf Ribeiro de. As representações do homem
negro e suas consequências. Revista Forúm Identidades
Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF).
(2014).
2
Doutora em Educação pela Universidade de Brasília
SODRÉ, Muniz. Corporalidade e Liturgia Negra. In:
(UnB). Santos, Joel Rufino dos (org.), Revista do Patrimômio
3
Proposta da filosofia materialista, se constituem em Histórico e Artístico Nacional, N º 25 – Negro Brasileiro
uma prática da linguística e da comunicação, busca analisar Negro, 1997.
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4
Zózimo Bulbul foi um dos principais realizadores negro, Pós- Graduação em Educação, Brasília, 2013.
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