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REPRESENTAÇÃO E DOCÊNCIA NO FILME A ONDA

Ana Paula Buzetto Bonneau

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Resumo: Este texto pretende investigar e verificar os elementos que constituem o


discurso fílmico que representa a imagem de um ideal de professor, criando uma
identidade única através de uma forma correta de ser, pensar e agir. O filme A
Onda relata a experiência homônima organizada e conduzida pelo professor Rainer
Wenger, que foge ao seu controle extrapolando os limites da sala de aula e
propaga-se em toda comunidade escolar, procurando em última instância a
violência como meio de sua existência. As questões metodológicas apontadas nesta
análise fílmica intentam refletir acerca do tensionamento e da limitação teórica que
se dá em torno da idéia de representação docente e as ideologias por ela suscitadas.

Palavras-chave: representação; docência; violência; cinema; educação.

Resumé: La représentation est de l'enseigner dans le film la vague. Ce


document vise à rechercher et à vérifier les éléments qui constituent le discours
filmique représentant l'image d'un enseignant idéal, la création d'une identité
unique à travers une bonne façon d'être, de penser et d'agir. Le film La Vague
rapport organisé et mené par le professeur Rainer Wenger expérience éponyme
hors de leur contrôle extrapolant les limites de la salle de classe et se propagent
dans toute la communauté de l'école, à la recherche finalement de la violence
comme moyen d'existence. Les questions méthodologiques soulevées dans cette
analyse du film ont pour intention de réfléchir sur la tension et la limitation
théorique qui se produit autour de l'idée de la représentation et des idéologies
soulevées par son professeur.

Mots-clés: représentation ; l'enseignement ; la violence ; cinéma ; l'éducation.

Introdução discurso fílmico sobre a escola aponta o


professor como umencarregado de uma tarefa
Tendo em vista a problemática da messiânica e salvadora, bem como um
violência na escola e percebendo-se uma transgressor, capaz de inculcar a liberdade em
crescente filmografia acerca do tema, este outrem, mesmo que ela signifique a morte do
texto investiga no filme A Onda (2008), os próprio docente. Ou ainda, procura esconder
elementos que constituem o discurso fílmico e ou suavizar uma relação que parece em sua
representam a imagem de um ideal de natureza ser conflituosa, entre o professor e o
professor. Levando em conta os Estudos aluno.
Culturais, esse discurso produzido pelo Para Metz, o propósito do cinema é
cinema, constitui uma força geradora de uma apresentar-se como história e não como
única forma correta de ser, pensar e agir. O discurso. No entanto, é justamente essa

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intenção de mostrar-se como história, Gay (1997) considera as mídias um artefato


utilizando-se de recursos como a câmera, a cultural capaz de produzir o gênero como
iluminação e o desejo do diretor em representação ou autorrepresentação, um
convencer o público de que se está contando campo discursivo formado por conjuntos
uma história (e se está, porém, a história do heterogêneos de enunciados, que possuem
ponto de vista do diretor, e não a história do formas próprias de regularidade e empregam
imaginário social a que esta história está técnicas de subjetivação que integram as
relacionada a algo realizado), a principal tecnologias sociais.Ao tomar o cinema como
característica do cinema enquanto discurso é artefato cultural, associa-se a este,
fortalecida, ou seja: “apagar as marcas da significados que vão além de arte ou meio de
enunciação e disfarçar-se em história” (1980, comunicação: O cinema como um artefato da
p. 95). cultura corresponde a um produto de práticas
Criar filmes baseados em fatos reais, sociais permeado por significados diversos. O
reforça no imaginário social o sentimento de cinema produz filmes que estão carregados de
retratação da pura e crua realidade, de significados sociais, construindo verdades,
reprodução fiel de fatos ocorridos. A maior fabricando identidades e promovendo
parte do público que assiste a esses filmes, significados de escola, professor e violência
seja em qualquer mídia, acredita estar vendo ao espectador.
na tela a reprodução de uma história tal como Ou seja, quando o diretor define o roteiro
ela aconteceu. Tendendoassim, a aceitar ou de um filme sobre escola e professores, ele
rejeitar a postura de determinado personagem está narrando a sua versão da história. Ao
através do olho da objetiva, ou seja, nesse utilizar-se dos recursos cinematográficos
caso, o olho do diretor, através de seu roteiro, como cenário, luz, música, montagem e
aliado à edição e montagem, que induz o edição, ele lança mão de discursos
espectador a concordar com seu ponto de pedagógicos acerca da escola e seus agentes,
vista.Daí surge a importância de investigar e, ele exerce o seu poder de narrar o
esses filmes como textos culturais, como um outro.Segundo Hall (1997), hoje se vive sob a
conjunto de imagens que produzem centralidade da cultura, e também sob uma
significados culturais; ou seja, “textos extrema regulação cultural.
culturais que ensinam, que nos ajudam a olhar
e a conhecer a sociedade em que vivemos e A cultura está presente nas vozes e
contribuem na produção de significados imagens incorpóreas que nos interpelam
sociais” (FABRIS, 2008, p. 120), procurando das telas, nos postos de gasolina. Ela é um
entender, nas narrativas contadas por eles, os elemento chave no modo como o meio
ambiente doméstico é atrelado, pelo
efeitos dessas histórias nas diferentes culturas
consumo, às tendências e modas
aonde circulam. mundiais. É trazida para dentro de nossos
 
lares através dos esportes e das revistas
esportivas, que freqüentemente vendem
O cinema como um artefato cultural uma imagem de íntima associação ao
‘lugar’ e ao local através da cultura do
A partir da reflexão de Foucault (2006) de futebol contemporâneo. Elas mostram
que não existe uma verdade absoluta, mas uma curiosa nostalgia em relação a uma
sim, uma vontade do sujeito em expressar e ‘comunidade imaginada’, na verdade, uma
confirmar a verdade, é interessante refletir nostalgia das culturas vividas de
sobre qual é a vontade de verdade da importantes ‘locais’ que foram
filmografia que está sendo analisada. profundamente transformadas, senão
Sobretudo, quando os produtores utilizam-se totalmente destruídas pela mudança
econômica e pelo declínio industrial (p.
do artifício dos filmes serem baseados em
5).
histórias reais. Ou seja, ter como fio condutor
uma ‘história real’ não significa dizer que
Como parte desses artefatos de regulação
todos os personagens contadosna história
cultural, o cinema, por meio de suas
agiram da forma como aparecem na tela. Du

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narrativas, apresenta diferentes perfis de no contexto social. Assim sendo, as histórias


personagens, todos carregados de contadas pelo cinema circulam como produto
significados. Tratando-se especificamente dos da cultura e para a cultura, produzindo então,
filmes de escola, há, por um lado docentes e significados sobre e para cada um. O fato das
alunos que representam “uma teleologia da representações serem práticas de significação
ação” – a forma correta de agir, de se não quer dizer que esses significados sejam
comportar. Destarte, estão aqueles que fixos, nem que suas transformações refiram-
simbolizam como um determinado agente não se ao que supostamente possa ser verdade, ou
deve ser: irresponsável, indiferente e anormal. o correto, ou melhor. A partir do momento
Diante dos modelos apresentados na tela, as que o cinema produz significados, ele cria
pessoas tendem a se identificar mais com um identidades e representações acerca dos
do que com outro “[...] vendo-se agentes envolvidos nas suas narrativas, e
representadas ou refletidas (ou como se diz, esses personagens não estão inertes nas cenas,
‘sentindo-se no seu lugar’) em algum deles” eles agem de acordo com a vontade de quem
(HALL, 1997, p. 8). Quando essa escreveu a história.
identificação acontece, ou, quando se admite  
que uma representação é mais apropriada que
a outra, acaba-se desejando ser como esse O docente no cinema
personagem, imitando-o, e assim, os  
espectadores vão sendo regulados também Na maior parte da cinematografia cujo
pelo discurso cinematográfico. Tratando-se da tema é a escola, nota-se que os filmes
relação do docente com a gestão de conflitos possuem um enredo que considera, prioritária
na escola, essas verdades produzidas pelo ou circunstancialmente a violência naquelas
cinema nem sempre condizem com as instituições de ensino. Há um discurso
perspectivas teóricas acerca do tema; comum, em toda essa filmografia, a respeito
tampouco, consideram a importância de todos do professor, pois esse agente tem sua
os agentes envolvidos com a educação. conduta sempre posta em xeque nas situações
A idéia de representação é fundamental de conflito.Argumenta-se, diante de tal
para pensarmos na complexidade dos objeto, que o docente, na cinematografia
elementos que fazem parte de qualquer sobre a violência na escola, é apresentado
processo de produção de sentido. Existem como o principal responsável pelo desfecho
forças diversas - extrínsecas e intrínsecas; de daquelas violências. As subjetividades que o
motivação individual ou social - que se cinema constrói deste agente variam entre o
colocam no cenário e promovem inúmeras impotente (eu sei do problema e nada posso
tensões, percurso pelo qual passam as fazer), o ignorante (eu não sei), o negligente
mudanças de perspectiva, de preconceitos e (sei e nada quero fazer, por isso não faço), e o
visões de mundo. Por essas razões é que comprometido (sei e quero fazer/faço algo).
devemos mensurar cada um destes pontos que Há uma variedade de alternativas, que
se somam ao processo de representação, corresponde, de um lado, aos fatos, mas, de
considerando que o discurso fílmico não está outro, a um discurso ideológico sobre a
fora deste processo. Costa escreve que docência. Há a construção de uma imagem do
“representar é produzir significados segundo docente ideal, reforçada pela escolha de
um jogo de correlação de forças no qual roteiros baseados em situações vividas,
grupos mais poderosos(...), e no tabuleiro narradas em livros e finalmente, fantasiadas
onde as forças aparecem, os mais fortes (...) pelas narrativas fílmicas, que evidenciam o
atribuem significado aos mais fracos e, além professor como o sujeito determinante no
disso, impõem a estes seus significados sobre desfecho dessas violências e o colocam de
outros grupos (COSTA, 1998, p. 42-43). uma forma ou outra no centro deste problema.
Entende-se que, assumindo esta O filme A Onda, gravado em 2008 na
perspectiva cultural, que o detentor do poder Alemanha, dirigido por Dennis Gansel, é
dominante é o mesmo sujeito que define as baseado na experiência do professor norte-
posições que serão ocupadas por cada agente americano Ron Jones, chamada “Terceira

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Onda”, ocorrida no ano de 1967, em Palo líder é formada “A Onda”.No filme, o


Alto, Califórnia. Ambientado na Alemanha professor Rainer Wenger é o protagonista e
atual, o filme relata a história do professor de seu comportamento foge dos padrões
Educação Física ReinerWenger, que durante o considerados ideais para um professor. Na sua
curso de Filosofia Política, é responsável por tentativa de quebrar barreiras, ele conquista
tratar e aprofundar o tema da Autocracia. seus alunos comportando-se como eles – um
Durante aquela semana a escola iria dedicar- adolescente – e esse comportamento custa seu
se a trabalhar as mais diversas formas de emprego e a vida de um aluno, pois, quando
governo (Totalitarismo, Democracia, sua autoridade foi requerida para encerrar a
Anarquia, etc...), tendo cada professor experiência da “A Onda” e finalmente, acabar
responsável por conduzir sua prática com os conflitos, os alunos não o enxergavam
pedagógica em torno de uma destas noções de como tal, mas sim, como um adolescente
política. igual a qualquer outro, e outra narrativa
Ao lançar a pergunta sobre o que os alunos trágica se encerra.
entendem por autocracia e solicitar exemplos  
de regimes autoritários, o professor percebe
que a maior parte dos discentes sente um A construção do anti-heroi
desconforto enorme ao relembrar o III Reich.  
Muitos expressam seu ponto de vista em torno Um homem dirigindo seu automóvel com
da crença de que o povo alemão “aprendeu a teto solar, ouvindo e cantando fervorosamente
lição” e que seria impossível uma nova “[...] não gosto das aulas de história... não é
ditadura na Alemanha. Diante de inúmeras lá que eu quero estar... odeio os professores e
declarações e manifestações da grande o diretor[...]”, vestindo jeans, boné, camiseta
maioria dos alunos que se posicionam em preta da banda de punk Os Ramones,
relação à autocracia como uma experiência adornado por anéis... Assim inicia o filme A
superada,Rainer propõe aos estudantes de seu Onda, e, dessa forma o professor de educação
curso de autocracia que durante aquela física Rainer Wenger é apresentado ao
semana seja feita uma experiência prática na espectador.
sala de aula. Propôs que aquela turma de Segundo Giroux, o cinema criou uma
estudantes instaurasse o que seria a ditadura, e nova política representacional dos jovens, em
sua primeira ação seria eleger uma figura de que, além de serem vistos como um mercado
liderança, no caso, o professor, que durante as lucrativo, são presos a um discurso de
aulas daquela semana só poderia ser chamado rebeldia, e colocados num local de transição –
de Sr. Wenger. Naquele momento, o docente nem crianças, nem adultos – posição que
que sempre fora tratado de maneira informal, legitima o controle e a autoridade dos adultos
como se fosse um estudante ou um amigo, se e do mercado. Além disso, esse jovens “são
distinguia do restante do grupo pela obrigação vistos como uma ameaça crescente à ordem
de ser tratado formalmente. Em seguida pública” (GIROUX, 1996, p. 125), e precisam
institui-se outra regra: quem quisesse falar ser contidos. No tocante à escola, o sujeito
deveria levantar-se. A ruptura de tratamento capaz de fazer essa contenção é o/a
para com o professor, que agora era professor/a, e para tanto, ele/a não pode ser
reverenciado como autoridade máxima e tinha jovem como seus alunos, ele/a precisa ser o/a
poderes absolutos causou um estranhamento salvador/a.
geral, e um catalizador das motivações dos Ouvindo músicas de jovens, vestindo-se
alunos diante daquele novo cenário. como jovem, tendo um carro típico de jovens,
Disciplina e unidade são os outros dois morando em uma casa-barco no lago, tatuado,
ensinamentos do mestre. Segundo ele, união é o filme representa o professor Wenger, como
poder, e a turma toda unida torna-se mais um homem que, mesmo aparentando ter saído
poderosa que dividida em vários grupos. há anos da adolescência, continua com seu
Então, sugere o uso de um uniforme. E assim, comportamento adolescente. Comportamento
instituindo um uniforme, dando um nome ao esse que se evidencia quando, mesmo com
grupo, criando uma saudação, e elegendo um intenção de oferecer o curso sobre Anarquia

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na escola, o professor não preparou o plano de espectadores, na afirmação ou negação de


aula para apresentar à diretora, e quando uma conduta ou escolha moral socialmente
questionado sobre tal plano, responde que aceitável. O cinema nos conduz em seus
pretendia prepará-lo no fim de semana (o códigos discursivos por uma narrativa que por
curso iniciar-se-ia na segunda-feira), mais sua vez afirma “uma pedagogia moral
uma atitude considerada socialmente como protagonizada por vilões e heróis, vencedores
irresponsável. Em seguida, ao procurar o e derrotados, e pautada sobre justiça infalível,
professor DieterWieland(que, além de tensões resolvidas, vitória do bem contra o
aparentar mais idade, veste terno e gravata), mal, e assim por diante (COSTA, 2007, p.
propõem ao seu colega uma troca com relação 16).” As fronteiras entre as ações que podem
ao curso a ser oferecido. O professor Wieland, ser justificadas por alguma moralidade
encarnando o docente em sua forma clássica, preexistente (religião, ciência, moda, política)
não aceita a proposta, insinuando que “nesta e aquelas das quais não podemos aceitar de
semana pretendo ensinar aos alunos as forma alguma, nos levam à uma infinidade de
virtudes da democracia [...] ensinar a fazer dicotomias (realidade e mito; verdade e
Coquetel Molotov é assunto para as aulas de mentira; bem e mal; entre outras), e em
Química”, e encerra o diálogo com a frase grande parte já são elementos para representar
alea jacta est (a sorte está lançada). Há no a figura do professor Wenger.
decorrer da história uma clara disputa entre Neste sentido, outra estratégia do filme é
esses dois docentes por espaço e atenção dos explorar as relações entre a infância, a
alunos. adolescência e a questão da responsabilidade.
Quanto ao enunciado do professor Ser responsável em nossa sociedade tem o
Wieland, anteriormente citado, estabelece-se sentido de assumir uma postura ordenada, de
imediatamente dois tipos de comportamento e controle, obediente e previsível. Estes são
postura adotados pelos docentes. O professor atributos muito valorizados e nenhum deles
Wenger é caracterizado como um anarquista, pertence ao professor Wenger. Segundo Ariès
um jovem que desrespeita ou se mostra (1975) por muito tempo a infância foi vivida
avesso às regras sociais estabelecidas, e que pela sociedade como um longo processo, e a
reproduzirá essa concepção aos seus alunos; adolescência não passava de um período de
por outro lado, Wieland, representa o “ideal preparação para a fase adulta, almejada por
de professor”: um senhor aparentemente jovens e crianças. Desejava-se tanto chegar a
distinto, que tem mais condições de educar, fase adulta, que os meninos usavam fraques e
neste caso, as noções de democracia.Wieland as meninas enchimentos e corpetes para
parece ser o representante da moralidade parecerem mais velhos/as.
tradicional, cristã, defensor da decência e dos Além da associação com a música e o
bons costumes. Se a democracia é anarquismo, outros sinais apresentados pelo
considerada um regime político superior (vê- filme que justificam tal classificação são a
se as campanhas de norte-americanos e da vestimenta e o gestual utilizados pelos
união europeia contra países em todo o globo personagens. Wenger usa calças jeans, tênis,
que não são considerados democráticos), o boné, jaqueta de couro, camisetas pretas com
modelo de homem representado pela figura slogans de bandas de rock e punk como The
do professor Wenger torna-se uma afronta e Ramones e The Clash. A forma de Wenger
ofensa profunda contra esta ordem. vestir-se contrasta com os colegas de
O discurso do filme ‘A onda’ reproduz profissão, mas não com seus alunos
aqui as crenças e o imaginário social que adolescentes. Em sua proposta de conduzir os
separa e distingue de maneira polarizada o alunos a experimentarem a autocracia, o
bem e o mal. Esta tênue fronteira, por vezes professor Wengersugere o uso de um
clara, por vezes de impossível discernimento, uniforme para a turma durante a semana do
torna-se um sentimento fecundo a ser curso. Ele argumenta que uma vestimenta
explorado. O cinema, como a literatura ou a padrão demonstra a união de um grupo, pois
pintura, tematiza, reproduz, aprofunda e os grupos também são identificados pela
conduz as percepções e os juízos morais dos forma que se vestem, além disso, também

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pode servir para eliminar as diferenças ser esquecidos, tampouco reproduzidos.


sociais. Conclui que as roupas usadas pelos Provavelmente ficariam fora de controle,
alunos são um tipo de uniforme, indicando a ademais, reproduzir sistemas de regimes
qual grupo social ele pertence. Nessa cena, o totalitários, significa reproduzir todo o horror
próprio professor justifica sua forma de se ocorrido nas guerras. O professor Wenger não
vestir, anunciando que tipo de associação ele deveria ter reproduzido em sala de aula o
faz parte (ou a que deseja pertencer): o grupo sistema do governo nazista; por outro lado,
dos adolescentes (jovens e alunos) e não o não se percebe nas aulas, ele fazendo
grupo dos adultos (pais e professores), referência ao III Reich quando reproduz com
instituindo uma nova moda. seus alunos esse sistema de governo.
Através da caracterização de Wenger, o Onde estavam as famílias desses
filme nos apresenta um professor incapaz de adolescentes que não perceberam as
lidar com conflitos na escola, pois se trata de mudanças de comportamento de seus filhos?
um homem que supostamente não tem um Quatro personagens (alunos) nos revelam
perfil adulto, considerado de ‘um homem destinos bem distintos. O que, por exemplo,
feito’ para conduzir os jovens. Esse professor difere Mona e Karo de Marco e Tim? Ora,
é apresentado como um adolescente entre os Mona foi opositora ao professor desde os
adolescentes, e se comportando como tal, primeiros instantes; Karo entusiasmou-se no
permite que o lugar do professor permaneça inicio com a proposta de seu professor, mas
vago na sala de aula, o que acarreta em falta em casa, sua mãe despertou sua consciência,
de autoridade no momento de gerir os fazendo-a refletir sobre as imposições do
conflitos. mestre; Marco, num primeiro momento cede
  ao movimento, mas depois de bater na
namorada, percebe que aquela semana o
Violência e endereçamento no cinema deixou diferente, e procura o professor
Wenger para lhe contar o ocorrido e pedir que
O decorrer da história mostra o apogeu e ele pare com “A Onda”. Tim, no entanto, não
declíneo de uma sociedade. “A Onda” nasce, tem nenhum adulto para aconselhá-lo, para
cresce e sofre a decadência que parece impor-lhe limites, dado que é um jovem
acompanhar a vida de todos os sistemas procurando desesperadamente por carinho,
sociais. Mas afinal, será o professor Wenger o afeto, atenção, amizade e reconhecimento. Ele
único responsável por “A Onda” ter saído de não tem nada disso com sua família, e só
controle e pelos alunos terem-na levado tão a passou a ter amigos depois d’ “A Onda”.
sério? Sobre a questão da violência, Arendt É evidente que “A Onda” suscitou e
escreve que, organizou boa parte da violência na narrativa
do filme, principalmente o suicídio de Tim,
Ademais, ao passo que os resultados das tornando o professor Wenger o maior
ações humanas escapam ao controle dos responsável. Foi ele que incitou o
seus atores, a violência abriga em seu seio comportamento dos alunos. Levando em
um elemento adicional de arbitrariedade;
consideração outros aspectos, como o descaso
em lugar algum desempenha a fortuna,
boa ou má sorte, papel mais decisivo nas
familiar e o envolvimento de Tim com as
atividades humanas do que no campo de drogas, sugere-se a partir da narrativa que a
batalha, e essa intromissão do inesperado violência cometida por ele era uma questão de
não desaparece quando é chamado de tempo. Dessa forma, Wenger não pode ser
“acontecimento fortuito” e é considerado crucificado como o único responsável pela
cientificamente suspeito, e nem poderia ser tragédia, pois enquanto ele, em seu modus
eliminado através de simulações, cenários, operandi, mostrava as “vantagens” de um
teorias, e outros artifícios (ARENDT, 2010, regime autoritário, não havia nenhum outro
p. 5). adulto na escola, ou outra referência que
pudesse se fazer à sua altura, e questionar
É claro que os acontecimentos na seus atos diante dos alunos. Pelo contrário, a
Alemanha no século passado jamais devem diretora do ginásio demonstrou apoio ao seu

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trabalho. Dessa forma, o filme nos mostra o para qual classe social, faixa etária, raça,
perigo de delegar a responsabilidade da etnia, cor, nível de escolaridade,
educação dos jovens à uma única pessoa, e nacionalidade, etc., esses filmes foram
que, pelo menos no quesito educação, a destinados, “e, considerando-se os interesses
individualidade não proporcionaria vitórias. comerciais dos produtores de filme, tem a ver
Tomado como um dispositivo que constrói com o desejo de controlar, tanto quanto
identidades culturais, o discurso possível, como e a partir de onde o espectador
cinematográfico fortalece práticas de ou a espectadora lê o filme” (ELLSWORTH,
representação, mostrando mundos e verdades 2001, p. 24).
que visam emocionar e convencer o  
espectador, na produção de histórias que
comovem, tranquilizam e acalentam. Por Conclusão
meio de suas narrativas, o cinema apresenta
diferentes perfis de personagens, todos Esse comportamentodo docente nos
carregados de significados. Tratando-se filmes evidencia a pedagogia do herói da
especificamente dos filmes de escola, há, por gramática hollywoodiana, que ovaciona o
um lado docentes e alunos que representam “o trabalho isolado. Isso significa dizer que toda
correto” – a forma correta de agir, de se a responsabilidade da gestão de conflito recai
comportar, e de outro lado, há aqueles que sobre o/a professor/a, deixando a este a
encarnam como determinado agente não deve mensagem que ele deve assumir o problema
ser (irresponsável, indiferente, anormal). sozinho, e, ao resto da comunidade, o
Diante dos modelos apresentados na tela, as discurso de que estão isentos de qualquer
pessoas tendem a se identificar mais com um responsabilidade, uma vez que, um bom
do que com outro “[...] vendo-se professor, é capaz de fazer tudo por sua
representadas ou refletidas (ou como se diz, própria conta.
‘sentindo-se no seu lugar’) em algum deles” O discurso sobre a centralidade do
(HALL, 1997, p. 8). professor evidenciado na narrativa vai de
Ao produzir significados, o cinema cria encontro aos dados científicos acerca da
identidades e representações acerca dos violência na escola. Estes apontam que para
agentes envolvidos nas suas narrativas, e uma efetiva prevenção (à) e superação da
esses personagens não estão inertes nas cenas, violência na escola são necessários,
eles agem de acordo com a vontade de quem sobretudo, a valorização do profissional da
escreveu a história. Além do mais, deve-se educação e o trabalho em equipe, fatores que
sempre considerar que “os filmes, assim como levam a instituição, a família, os especialistas
as cartas, os livros, os comerciais de televisão, e toda comunidade a se envolverem no
são feitos para alguém” (ELLSWORTH, enfrentamento dessas violências
2001, p. 13). Os estúdios de cinema gastam (ABRAMOVAY et alii, 2003).
milhões para produzir um filme, e seu É preciso lembrar também que os filmes
objetivo principal é lucrar com ele, e para que falam sobre a escola, não são assistidos
isso, precisam primeiramente recuperar os somente fora delas, muitos fazem parte dos
milhões que investiram em roteiro, cenário, currículos das instituições. Eis aí mais um
contratação de atores, publicidade, etc. Então, motivo para incentivar o exercício da análise
não basta apenas criar uma boa história, é desses filmes, pois, ensinando formas de ser e
preciso investigar quem é o público que vai agir, o cinema está regulando as condutas de
assistir aquele filme. docentes, discentes, e comunidade. Instituindo
O endereçamento não é algo claro, valores e crenças, muitas vezes inatingíveis
explícito, e não pode ser analisado da mesma por quem é delegado por este artefato a
forma com que se analisa o roteiro e as resolver o problema.
imagens. Ele está mais ligado à estrutura Enfim, os artefatos “é que estão
narrativa, e embora possa demonstrar rastros fabricando nossa identidade, regulando nossa
implícitos e explícitos de suposições e desejos forma de ser e de agir, determinando o certo e
de seus produtores, jamais dirão literalmente o errado, enfim, definindo quem somos e nos

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‘representando’ na política cultural”(COSTA, ______. (Org). Caminhos Investigativos I:


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constituição de docência que o cinema e todos p. 109-114.
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estabelecer em seus discursos, para não cair DU GAY, Paul (Ed.) Production of Culture /
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______. O magistério e a política cultural de


representação e identidade. In: COSTA, M.
V. (Org.). O magistério na política cultural.
Canoas: Ed. ULBRA, 2006, p. 69-92.

REDISCO Vitória da Conquista, v. 7, n. 1, p. 16-23, 2015

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