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DUARTE, Rosália.

Belo Horizonte: Autêntica, 2002. (capítulos I, III e IV)


A PEDAGOGIA DO CINEMA

Pierre Bourdieu – A experiência das pessoas com o cinema contribui para


desenvolver o que se pode chamar de “competência de ver”, isto é, uma certa
disposição, valorizada socialmente, para analisar, compreender e apreciar histórias
contadas em linguagem cinematográfica.
A atmosfera cultural em que as pessoas estão inseridas – que inclui além da
experiência escolar, o grau de afinidade que elas mantêm com as artes e a mídia – é o
que lhes permite desenvolver determinadas maneiras de lidar com produtos culturais,
incluindo o cinema.
Ir ai cinema, gostar de determinadas cinematografias, longe de ser apenas uma
escolha exclusivamente pessoal, constitui uma prática social importante que atua na
formação geral das pessoas.

Conforme a autora o conceito de socialização é uma ferramenta importante na análise


dos fenômenos sociais.
Durkheim – Socialização como mecanismo segundo o qual o indivíduo interioriza as
regras sociais, assimila, de modo mais ou menos pacífico, as normas que a sociedade
impõe aos que dela desejam participar.
Georg Simmel – Socialização como um processo no qual o indivíduo socializado tem
participação ativa, interfere nas condições em que ela acontece e modifica o mundo
social. Desse ponto de vista, a socialização é algo em permanente construção, em que
os protagonistas são, ao mesmo tempo, agentes e produtos da interação social – “os
indivíduos se socializam produzindo o social”.
A autora reforça a ideia de que ver filmes é uma prática social tão importante, do ponto de vista
da formação cultural e educacional das pessoas, quanto a leitura de obras literárias, filosóficas,
sociológicas e tantas mais.

O cinema tem importância na formação das mentalidades das sociedades nas quais se produz
e consome esse tipo de artefato. O homem do século XX jamais seria o que é se não
tivesse entrado em contato com a imagem em movimento, independentemente da
avaliação estética, política e ideológica.

Eric Hobsbawm – reafirma a centralidade do cinema no século XX e assinala que “a era da


reprodutibilidade técnica” (em que obras de arte podem ser reproduzidas e passam a ser
acessíveis a uma imensa gama de pessoas), não apenas transformou como se dá a criação,
mas também, a maneira como os seres humanos percebem a realidade.

Neste sentido, alerta que, muito da percepção que temos da história da humanidade talvez
esteja irremediavelmente marcada pelo contato que temos/tivemos com as imagens
cinematográficas.

Além disso, parece ser desse modo que determinadas experiências culturais, associadas a
uma certa maneira de ver filmes acabam interagindo na produção de saberes,
identidades, crenças e visões de mundo de um grande contingente de atores sociais. Esse
é o maior interesse que o cinema tem para o campo educacional – sua natureza
eminentemente pedagógica.

Contudo, enquanto os livros são assumidos por autoridades e educadores como bens
fundamentais para a educação das pessoas, os filmes ainda aparecem como coadjuvantes na
maioria das propostas de política educacional.

Depois de mais de um século da criação do cinema, como podemos acreditar quer existam
fronteiras intransponíveis entre linguagem escrita e linguagem audiovisual?
Rosália Duarte reforça a ideia de que, se admitimos que a relação com filmes participa de
modo significativo da formação geral das pessoas, precisamos entender como é que isso se
dá, precisamos compreender a pedagogia do cinema, suas estratégias e os recursos de
que ela utiliza para “seduzir”, de forma tão intensa, um considerável contingente de pessoas.
NOTAS SOBRE UMA LINGUAGEM

Diferente da escrita, cuja compreensão pressupõe domínio pleno de códigos e


estruturas gramaticais convencionados, a autora diz que a linguagem do cinema está
ao alcance de todos e não precisa ser ensinada, sobretudo em sociedades
audiovisuais, em que a habilidade para interpretar os códigos e signos próprios desta
formas de narrar é desenvolvida desde muito cedo.
Conhecer os sistemas significadores de que o cinema se utiliza para dar sentido às
suas narrativas aprimora nossa competência de ver e nos permite usufruir melhor e
mais prazerosamente a experiência com filmes.
Os sistemas de significação de que o cinema se utiliza para estruturar a linguagem
são, basicamente: Câmera, iluminação, som e a montagem, ou edição.

Contudo, nenhum desses sistemas significadores produz sentido isoladamente ou


alcança seus objetivos fora de sua inserção num conjunto.
Turner – O cinema é um complexo de sistemas significadores e os seus significados
são o produto da combinação que pode ser realizada por sistemas complementares ou
conflitantes entre si, mas nenhum por si só é responsável pelo efeito total do filme.
A forma de articular os sistemas significadores depende do tipo de cinema que se faz
(mais ou menos industrial, por exemplo), do tipo de narrativa que se quer construir, dos
recursos que se dispõe, e acima de tudo, do contexto social e cultural em que os filmes
são realizados e vistos.
Carrière - As convenções usadas pelo cinema precisam ser “aceitas”, pelo público para
que façam sentido. Esse aceite depende, intrinsecamente, dos padrões culturais,
valores, costumes e normas sociais em que estão imersos os filmes e seus
espectadores.
Cinema com prática cultural

Conforme Rosália Duarte, o significado cultural de um filme (ou de um conjunto deles) é sempre constituído no
contexto em que ele é visto e/ou produzido. Filmes não são eventos culturais autônomos, é sempre a partir de
mitos, crenças, valores e práticas sociais das diferentes culturas que narrativas orais, escritas ou audiovisuais
ganham sentido.

O cinema-indústria procurou criar uma forma de narrar que cruzasse diferentes condições culturais, de modo a
tornar filmes acessíveis ao maior número de pessoas, de distintas nacionalidades. Para isso, faz uso de certos
modelos de representação de temáticas que atravessam a maioria das culturas, tais como as definições de
masculinidade, feminilidade, infância, dever, honra, patriotismo e assim por diante. Contudo, adverte a autora:

[...] ao que tudo indica, apesar de alguns esforços isolados feitos em contrário, o olhar masculino,
branco, ocidental e, sobretudo, heterossexual ainda é o que predomina nas convenções de
representações de temáticas distintas no chamado cinema dominante.

Convenções cinematográficas expressam, de um modo mais ou menos circular, a influência mútua que o
cinema e a sociedade exercem entre si. Se por um lado elas refletem valores e modos de ver e pensar das
sociedades e culturas nas quais os filmes estão inseridos, funcionando, assim, como instrumento de reflexão,
por outro, repetidas insistentemente, essas convenções constituem um padrão amplamente aceito e dificultam
ou retardam o surgimento de outras formas de representação, mais plurais e democráticas. Isso é,
basicamente, o que faz delas objeto de interesse e de preocupação para os estudiosos da cultura.

O autor no cinema

A autora diz que, apesar de todas as críticas e senões que possa suscitar, o fato é que, tendo adquirido
características distintas ao longo dos anos, a noção de autoria interferiu no fazer cinematográfico dando origem
a movimentos estéticos importantes em vários países.

Segundo ela, a ideia do significado de um filme passar mais pelas marcas impressas nele por quem o concebe
e/ou dirige do que pelos objetivos de quem os financia fez frente à pasteurização imposta pelo cinema
comercial.

Filmes mais baratos, criativos e heterogêneos conquistaram legitimidade no cenário mundial, favorecendo o
surgimento de novas formas narrativas e o crescimento das cinematografias de países pobres e/ou com
tradições culturais diferentes.
O ESPECTADOR COMO SUJEITO

Em sociedades audiovisuais como a nossa, em que milhões de pessoas têm acesso aos meios
de comunicação veiculados em imagem-som, é comum atribuir-se certas atitudes, crenças e
valores de grupos ou pessoas à influência desses meios. A ideia de que filmes (ou produções de
tevê) podem incutir opiniões e produzir comportamentos, especialmente nos espectadores mais
jovens ou menos escolarizados, é relativamente corrente. Mas estudos sérios vêm mostrando o
quanto é difícil constatar isso.

Pesquisadores vêm tentando entender o modo como as relações entre mídia audiovisual e
sociedade interferem na composição do imaginário social, na produção de identidades e na
transmissão de valores éticos e morais.

Por trás do chamado “receptor”, diz Rosália Duarte, existe um sujeito social, dotado de valores,
crenças, saberes e informações próprios de sua (s) cultura (s), que interage de forma ativa, na
produção de significados e mensagens. As suas experiências, visão de mundo e as suas
referências culturais interferem no modo como ele vê e interpreta os conteúdos da mídia.

A significação de narrativas em imagem-som

A impressão de realidade proporcionada pela imagem em movimento e o pacto de


suspensão temporária das fronteiras que separam a realidade da ficção formam uma
combinação que parece tornar indistinta, por algum tempo, vida e filme, fantasia e realidade.
A identificação é a assimilação de processos, propriedades ou atributos de outro,
transformando os indivíduos total ou parcialmente. Para que a história faça sentido, é
necessário que haja elementos nos quais o espectador possa reconhecer ou projetar os seus
sentimentos, medos, desejos, expectativas, valores, etc.

A interpretação dos filmes é o modo como atribuímos significados a narrativa em imagem-


som, sendo produto de um esquema complexo que articula informações e saberes constituídos
em nossa experiência de vida e as informações e saberes adquiridos na experiência com os
artefatos audiovisuais (outros filmes).
Para a autora, quando nos disponibilizamos a ver um filme, somos seduzidos, por ele,
independentemente do nosso grau de escolaridade. Tudo indica que os conhecimentos
adquiridos pela escolarização atuam de modo mais significativo em etapas posteriores
do processo de significação, ou seja, quando deixamos a sala de cinema e
construímos nossos discursos sobre o que vimos.
Conceito de Imago – espécie de referencial inconsciente que orienta, seletivamente, a
forma como apreendemos o mundo. Trata-se de um tipo de esquema imaginário
adquirido, um cliché, por meio do qual o sujeito visa o outro, podendo ser composto
tanto de sentimentos e comportamentos como de imagens, não sendo acessível à
consciência de forma imediata.
O contato com filmes produz, num primeiro momento, apenas imagos, entendidos aqui
como marcas traços, impressões, sentimentos – significantes que serão lentamente
significados depois, de acordo com os conhecimentos que o indivíduo possui de si
próprio, da vida e, sobretudo, da linguagem audiovisual.

Na sua concepção, o domínio progressivo que se adquire dessa linguagem, pela


experiência com ela, associado a informações e saberes diversos significa e
ressignifica indefinidamente as marcas deixadas em nós pelo contato com narrativas
fílmicas.
Quando falamos dos filmes que vimos, das impressões que eles nos causaram e do
que aprendemos com eles, estamos falando dos significados que atribuímos a eles, no
diferentes momentos de nossas vidas, a partir de experiências que vimos e dos
saberes que fomos acumulando.
A significação de narrativas fílmicas não se dá de forma imediata. Esse entendimento
vai ser reorganizado e ressignificado muitas vezes daquele momento em diante, a
partir das reflexões que fazemos, das conversas com outros espectadores, do contato
com diferentes discursos produzidos em torno daquele filme e da experiência com
outros filmes, permitindo que novas interpretações sejam feitas.
A significação de filmes também não se dá de modo exclusivamente individual. Diz a
autora que esse é um processo eminentemente coletivo, no qual o discurso do outro é
tão constitutivo de nossas ideias e opiniões quanto o nosso próprio discurso.
Diferentes categorias de espectadores (críticos de cinema, cinéfilos, etc.), constroem,
coletivamente, modos de interpretação, formas de ver e analisar filmes, baseadas em
critérios compartilhados. De um modo geral, a opinião dessa comunidade
interpretativa prevalece no processo de produção de significados.
A apropriação/produção de significados que emerge da experiência com os filmes
também está profundamente vinculada ao conjunto de discurso produzidos por eles,
nos diferentes contextos sociais em que são vistos.

Na sua concepção, grupos de pessoas que têm em comum certas práticas de uso da
mídia percebem, usufruem e a interpretam em relação direta com outros, ou seja,
influenciados por suas comunidades interpretativas. Essas pessoas compartilham
códigos, formas de ver e interpretar que se traduzem em um ambiente de significação
coletiva, aonde cada espectador, então, individualmente, irá construir a sua própria
interpretação.
Em resumo: nada nos autoriza a afirmar que os filmes impõem significados ou
interpretações aos seus espectadores, sempre haverá um sujeito pensante do lado de
cá da tela, dialogando com ela.
A autora acredita que a suscetibilidade dos espectadores não está ligada à sua idade
ou ao seu grau de escolaridade, mas, acima de tudo, ao maior ou menor domínio dos
códigos que compõem a linguagem cinematográfica.
Cinéfilos ou espectadores privilegiados

Conforme Rosália Duarte, a ideia que se faz a respeito da cinefilia nos dias de hoje
(fazer leituras, ter conhecimentos técnicos, saber sobre diretores e cinematografia, bem
como demonstrar interesses e posicionamentos diante dos diferentes tipos de produção),
está diretamente relacionada ao que foi construído originalmente entre as décadas de
1950 e 1970, apesar das diferenças sociais, políticas e culturais que separam aquelas
gerações das atuais.

Vivia-se o momento áureo das cinematecas e cineclubes, influenciados


especialmente pela revista francesa Cahiers du Cinéma. Um público
privilegiado, formado por jovens estudantes e universitários, entre outros,
usufruía destes espaços ao mesmo tempo em que viam no cinema um
instrumento de transformação da realidade e mesmo de luta política. As
cinematecas e cineclubes foram espaços democráticos de debates políticos e
formação cultural.

Ainda hoje, grupos de cinéfilos formam uns aos outros através da troca de
saberes, produção/reprodução de valores e crenças compartilhadas na
comunidade interpretativa da qual participam. Para eles o cinema funciona como
elemento aglutinador e fonte inequívoca de conhecimento, formação e
informação, configurando-se, assim, como uma prática eminentemente
pedagógica.
E a escola com isso?

A autora encerra o texto nos propondo pensar o cinema como uma importante
instância pedagógica, e que devemos buscar entender melhor o papel desempenhado
junto àqueles com os quais nós também lidamos, só que em ambientes escolares e
acadêmicos.

Se a significação dos filmes é gradual e articulada aos modos de ver do grupo de pares
e aos diferentes tipos de discursos produzidos em torno dos filmes, faz sentido pensar
que é possível “ensinar a ver”. Isso implica valorizar o consumo de filmes, incentivar
discussões a respeito do que é visto, favorecer o confronto de diferentes
interpretações, trazendo a experiência do cinema para dentro da sala de aula.

Se o domínio dos códigos que compõem a linguagem audiovisual constitui poder em


sociedades que produzem e consomem esse tipo de artefato, é tarefa dos meios
educacionais oferecer os recursos adequados para aquisição desse domínio e para
ampliação da competência para ver, do mesmo modo como fazemos com a
competência para ler e escrever.

Para ela, precisamos saber de que maneira linguagem escrita e linguagem audiovisual
combinam-se na produção de saberes e competências, para podermos fazer uso de
ambas de forma mais eficiente e produtiva.

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