Você está na página 1de 13

Cinema brasileiro, corpo e

diversidade sexual/cultural:
estudos contemporâneos1
Wilton Garcia2

Resumo
O presente texto aborda o cinema brasileiro na esteira entre corpo e diversidade sexual/cultu­
ral, tomando estrategicamente aspectos socioculturais e políticos que envolvem um debate inter­
disciplinar. Com isso, propõe-se uma política do afeto. Aqui elencam-se três categorias diluídas ao
longo deste trabalho: imagem, experiência e subjetividade. A primeira relaciona-se à forma, e as
demais se relacionam ao conteúdo. Assim, os estudos contemporâneos efetivam uma abordagem
teórico-metodológica, tentando observar como ocorrem os processos de atualização e inovação da
linguagem, estratificada entre cultura e representação.
Palavras-chave: Cinema brasileiro. Corpo. Diversidade sexual/cultural. Imagem. Estudos contempo­
râneos.

Abstract
This text addresses the Brazilian cinema in the wake between body and sexual/cultural diversity,
taking strategically social and political aspects that involve the interdisciplinary debate. Therefore,
it proposes a politic of affection. Here, it lists three categories diluted throughout this essay:
image, experience and subjectivity. The first relates to the form, as the others are related to the
content. Thus, contemporary studies effective a theoretical-methodological approach, trying to
see how the processes of updating and innovation of language, stratified between culture and
representation.
Keywords: Brazilian cinema. Body. Sexual/cultural diversity. Image. Contemporary studies.

1 Agradeço ao Grupo de Pesquisas Multidisciplinares em Tecnologias (GPMT) da UBC pelo apoio no desenvol-
vimento deste texto, que faz parte da pesquisa atual: “Estudos Contemporâneos: Subjetividade, Corpo e Cultura
Digital”.
2 Artista visual e pesquisador de cinema, fotografia, vídeo e imagem digital, investigando estudos sobre o corpo.
Doutor em Comunicação e Estética do Audiovisual pela ECA/USP. Pós-Doutor em Multimeios pelo IA/Unicamp. Atual-
mente, é pesquisador e professor no Programa de Mestrado em Semiótica, Tecnologias da Informação e Educação
na Universidade Braz Cubas (UBC). Autor do livro: Corpo, mídia e representação: estudos contemporâneos (ed.
Thompson Learning, 2005), entre outros.
Preâmbulos
80

D
e que modo corpo e diversidade sexual/cultural surgem em um filme brasi-
Garcia, Wilton. Cinema brasileiro, corpo e diversidade sexual/cultural: estudos contemporâneos

leiro contemporâneo? E acrescento: como se (re)configuram as múltiplas e


contraditórias representações identitárias de gênero e sexualidade re-
lativas, tanto ao feminino quanto ao masculino, no amplo espaço da diversidade
atualmente?

Como resposta, vasculho as (inter)subjetividades perante os recursos técnicos e esti-


lísticos do cinema, sobretudo no Brasil. Da forma ao conteúdo, a produção do cinema
nacional está em alta, e a poética das alteridades enfatiza diferença e diversidade.
Isso se faz presente no rebento tenaz em que se pauta a delimitação do problema
deste texto, em subversões e transgressões, como ato inventivo da cinematografia
contemporânea. Na lógica dessa diversidade, uma escritura refina e sugere poetica-
mente afeto, encontro, despedida, desejo, erótica, sensualidade, sexo, etc.

Parto dessa premissa para (re)pensar a diversidade sexual/cultural no cinema bra-


sileiro, em que o corpo se destaca, de modo (inter)subjetivo, como dado contempo-
râneo. Então, passo a privilegiar situações emergentes acerca da imagem do corpo
em cena, cujo desafio é expor e exemplificar tal diversidade. Logo, impressões au-
diovisuais se acumulam em um somatório com o desdobramento flexível da pelícu-
la, e o espectador assiste à ênfase da extensão cultural dessa brasilidade, sendo
que o critério teórico-metodológico constitui-se de estudos contemporâneos (BHA-
BHA, 1998; EAGLETON, 2005) – do corpo, da cultura, da linguagem – com as res-
pectivas esferas entrecruzadas com os estudos de cinema. (FOSTER, 2003; STAM,
2003; XAVIER, 2003). Nesse viés, opto por um percurso sensível e favorável à expe-
rimentação a pensar o cinema brasileiro contemporâneo.

Na cadência rítmica de imagem/som, considero os enlaces estéticos e poéticos


que despertam efeitos emblemáticos do corpo, e que apostam na diversidade se-
xual/cultural. Pretendo realizar um breve passeio (in)orgânico absorvido pelo ci-
nema.

Essa abordagem serve para evidenciar noções de atualização e inovação. É uma


(re)paginação que tento tecer entre os estudos do cinema e os estudos gays e lés-
bicos no Brasil. (GARCIA, 2004; LOPES, 2007; MORENO, 2001). Acredito que a
agenda do cinema atual deve permitir os (inter/trans)textos de uma atitude expan-
dida, quando exprime a condição adaptativa de atualizar e inovar, simultaneamen-
te, formas e conteúdos como expressão da diversidade.
Diante desses preâmbulos, passo a abordar quatro tópicos: um cinema brasileiro;

81
uma diversidade; um corpo; e uma proposição. Como metáfora de vasos comuni-
cantes em um esteio anatômico, esses tópicos são ideias que se complementam e,

Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 8, n. 15, jan./jun. 2009


por ora, auxiliam na explanação.

Um cinema brasileiro
A partir dos estudos contemporâneos, investigo algumas condições adaptativas de ex-
3
periências e impressões (inter)subjetivas de um cinema queer no Brasil. O termo queer
é utilizado, nos Estados Unidos, no Canadá e na Europa, para definir manifestações es-
tratégicas das comunidades gays e lésbicas. Há uma distinção na noção queer num te-
cimento árido sobre esse defeituoso – torto [bent], distanciando-se do que se legitima
como (cor)reto – normal [straight], mas, ao redimensionar o conceito, esvazia-se da
condição pejorativa para não dispensar a dissonante irreverência – uma sabotagem.

Para Stam

A teoria do cinema de inflexão psicanalítica, nesse sentido, fora partícipe [...]. A teoria
queer migrou da análise corretiva dos estereótipos e distorções para modelos teóricos mais
sofisticados. [...] Também resgatou e “retirou do armário” autores gays e autoras lésbicas
atuantes no mainstream. (2003, p. 292, grifos do autor).

A discussão acima insere o campo do cinema em uma extensão discursiva e amplia


a representação da diversidade sexual em produto cultural, cujo empenho estraté-
gico se implementa a partir do corpo. O chamado cinema da retomada proclama
uma leitura em que emergem desafios conceituais e críticos a respeito da diversi-
dade no País e no mundo.

Nesse caldeirão multifacetado, o cinema da retomada se faz valer como alicerce,


quase sólido, e almeja o cinema brasileiro “sair do armário” (um coming out, como
se diz na cultura gay), tendo em vista as inúmeras variantes. Isso permeia a filmo-
grafia contemporânea e as malhas (inter/trans)textuais entre identidade, gênero,
sexualidade, erótica, desejo, Aids, imagem e corpo. (GARCIA, 2004). Também o en-
redo do cinema contemporâneo deve apostar na diversidade sexual/cultural e de-
monstrar uma preocupação atenta à atualização de temas e conteúdos, como pro-
duto cultural mercadológico e midiático.
3 O enunciado deve prever as predicações queerness num leque linguístico-cultural, ao se (re)apropriar do sis-
tema hegemônico. Uma vaga tradução transmuta a palavra queer como estranho, esquisito, diferente. Porém, essa
adaptação instaura-se como “política do desejo”, fundamentada pelo próprio princípio conceitual. (GARCIA, 2004).
Explicito esse preocupar de aspectos socioculturais e políticos que retratam o valor
82
humano, cuja constatação confirma que a desigualdade social no País, lamentavel-
mente, ainda é significativa. O esforço seria garantir, no mínimo, um debate que in-
4
Garcia, Wilton. Cinema brasileiro, corpo e diversidade sexual/cultural: estudos contemporâneos

cluísse mais o tema da diversidade sexual/cultural na agenda do cinema.

Esse tipo de investimento confirma uma proposta eloquente, capaz de implementar


uma ponderação econômica, tendo em vista a segmentação do mercado e da mí-
dia. Efetivamente, interessa um movimento híbrido e constante de uma (re)apro-
priação antropofágica e sincrética da cultura brasileira. O favorecimento criterioso
de corpo e diversidade sexual/cultural, no cinema, aproxima determinadas tendên-
cias que instauram os estudos contemporâneos.

5
Há a figuratização mista e memorável de Carmem Miranda – ícone camp conheci-
do internacionalmente. A noção de camp subentende, na produção artística de ar-
tes, cinema e literatura, os aspectos de extravagância, exagero e extroversão.

Sontag escreve “notas sobre o camp” no seu livro Contra a interpretação (1987).
Ela indica que a sensibilidade camp deve estar atenta ao duplo sentido pelo qual
certas coisas podem ser vistas/lidas. E isso não equivale, de modo algum, à mera
superposição de um sentido literal por um sentido simbólico, mas antes à diferença
entre a coisa-significando-qualquer-coisa, e a coisa como puro artifício.

E do desassossego maroto de “Macunaíma” (1968) de Joaquim Pedro de Andrade,


ao perpassar a fama marginal da “Rainha Diaba” (1974), de Antonio Carlos da Fon-
toura, ou a “Madame Satã” (2002) do jovem cineasta Karim Anouz, associado à
ousadia do escritor e ativista militante João Silvério Trevisan (2000) com “Orgia, o
homem que deu cria” (1971). Assim, também, segue por esse vasto panorama poé-
tico de retratos díspares, na polêmica do “Romance” (1986), de Sérgio Bianchi, ou
na acuidade versátil dos “Anjos da noite” (1986), de Wilson Barros.

Entre outros, há também os curta-metragens, mais recentes: “Dama da noite” (Ma-


rio Diamante, 1999), “Sargento Garcia” (Tutti Gregiannin, 2000), “No coração de
4 Se o cinema internacional destaca trabalhos de peso significativo que apontam à diversidade sexual/cultural,
ainda é preciso promover uma política cultural, na sonhada indústria cinematográfica brasileira, que absorva mais
e melhor essa diversidade como tema recorrente de um assumir (profissional) radical.
5 O camp amplia a situação fronteiriça de distintos modos (homo)eróticos, bem como o desfrute da experiência
no artifício e/ou na máscara. A multiplicidade de arranjos discursivos atenta à dissolução do sistema hegemônico,
com articulações estratégicas. Isso absorve a exaustão do objeto como predileção de esteticismo vazio e desestabi-
liza o regime normativo para se apropriar de sentidos ao revigorar uma retórica. Ambiguamente, sutileza e escracho
co-habitam para trazer um ato satisfatório de deslocamento. No Brasil, um ideal camp seria Roberta Close: transe-
xual que vivencia o imaginário coletivo como modelo sex appeal.
Shirley” (Edyala Yglesias, 2002), “Studio Butterfly” (Virgínia de Medeiros, 2003) e

83
“Ópera curta” (Marcelo Lafitte, 2004), além dos vídeos “Cela de ossos” (Alexandre
Pires, 1999) e “BlackBerry & Maberry” (Felipe Martins-Páros, 2000).

Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 8, n. 15, jan./jun. 2009


É um conjunto de trabalhos que evidencia nuanças e dinâmicas agenciáveis/nego-
ciáveis de produções cinematográficas alternativas, sobrepostas ao desejo de per-
passar a diversidade no cinema brasileiro. Esse leque enigmático de sugestões
agudas estimula uma rápida introdução ao cinema contemporâneo no Brasil.

Diante disso, remeto à pesquisa de Moreno (2001) que, ao escrever sobre A perso-
6
nagem homossexual no cinema brasileiro, afirma o quão são poucas as referên-
cias homoeróticas no cinema nacional.

A não ser pela estética de alguns filmes, ou momentos indiciais de sua presença [...], por
exemplo, em Carnaval no fogo, 1952, a famosa cena do balcão de Romeu e Julieta, sendo
esta interpretada por Grande Otelo, com imensa peruca, e Oscarito, o Romeu Louro, a
recitar poemas de amor. Na verdade, eles estavam travestidos, “montados”, interpretando
uma cena cômica esteticamente gay. (MORENO, 2001, p. 26, grifo nosso).

Essa passagem, apontada por Moreno, questiona a transição entre o gesto e a ex-
pressão corporal de uma personagem homossexual para compreensão e acolhi-
mento da chamada estética gay. Nessa vertente, o autor propõe sua tese mediante
a gestualidade, conforme aborda o panorama cinematográfico do País.

Contudo, a estética gay deve ser apresentada, explorada e ampliada para além de
uma dramatização gestual, configurada apenas na imagem do sujeito. Isto é, uma
articulação de traços homoeróticos que se coordenam para além de uma mera afe-
tação afeminada de estereótipos encenados no cinema brasileiro.

Nesse caso, aproximo minha posição de uma contingência de derivações discursivas


da comunicação, entre intenções e extensões, ao trabalhar situações emergentes,
que as circunscreve a contemporaneidade. É viabilizar, de alguma maneira, a aplica-
bilidade efêmera dessa atitude estética. Trata-se de pontuar traços que (des)envol-
vem esses postulados sobre o cinema brasileiro e a diversidade sexual/cultural.

6 Segundo Vieira (2001), a pesquisa de Moreno “enriquece a historiografia do cinema brasileiro, ainda lenta no
desenvolvimento de abordagens e perspectivas contemporâneas, como aquelas que, mais recentemente, aliam a
abertura proporcionada pelos chamados estudos culturais a problemas de representação de expressão não norma-
tiva da sexualidade. Como pioneiro, o trabalho justifica o esforço empreendido pelo pesquisador em [tentar] mapear
a paisagem por onde circulavam personagens homossexuais em nosso cinema entre 1923 e 1996. [...] Através
deste mapeamento verdadeiramente inédito, podemos afirmar que os assim chamados Queer Studies podem estar
chegando, enfim, ao cinema brasileiro”. (Texto da Capa, grifo nosso.)
Desse modo, seria uma irresponsabilidade atentar apenas aos aparatos técnicos e
84
ferramentais que envolvem as interfaces dos suportes da película, pois os elemen-
tos temáticos dos conteúdos, na esfera comunicacional (mensagem, enunciados,
Garcia, Wilton. Cinema brasileiro, corpo e diversidade sexual/cultural: estudos contemporâneos

informação), são implicações relevantes que proporcionam a adequação do tráfego


do cinema. Na imanência do filme, não se pode negligenciar as suturas entre pla-
nos técnicos e estilísticos, formas e conteúdo.

Para Trevisan “o cinema brasileiro não tentou – exceto em raras situações – verter
a erótica homossexual em imagens poéticas” (2000, p. 299) e reforça:

Constitui sem dúvida um fato curioso que os intensos debates envolvendo a vida
homossexual brasileira, nas últimas décadas do século XX, não tenham se refletido senão
excepcionalmente na produção cinematográfica nacional, mesmo que depois a indústria
de filmes teve um incremento quantitativo, em meados da década de 1990. Ainda assim,
vale destacar alguns títulos, que se aproximam entre si por um olhar pouco usual sobre a
realidade brasileira, às vezes vertido também num estilo peculiar, que vai do agressivo ao
barroco. (2000, p. 301).

O cinema, nesse sentido, permuta os estratos de intenções ficcionais e reais,


em que seu ambiente absorve aceleradas informações, baseado no cotidiano.
A expectativa de estudar os parâmetros que absorvem forma e conteúdo em
um filme, nesse tom, implica descrever elementos pontuais de (res)significa-
ções e da diegese.

Ao acompanhar o desenrolar de uma narrativa audiovisual, o espectador (voyeur)


comporta o efeito de digerir, em seu estado emocional, contemplativo e prazeroso,
uma intenção reflexivo-explicativa (objetiva), ainda que constituída de uma ação es-
tético-poética (subjetiva), ou seja, uma resultante simbólica e/ou emblemática.

Waugh, no livro The fruit machine (2000), tenta refletir sobre o cinema latino-ameri-
cano, ao investigar basicamente as produções brasileira e argentina. Em sua escri-
ta, toma dois eixos opositores (e complementares): da integração e da marginaliza-
ção para um escopo acerca da identidade sexual nesse âmbito.

Assim, seleciona e (d)escreve passagens de filmes como “Terra em transe” (1967),


de Glauber Rocha); “Pixote” (1980) e “O beijo da mulher aranha” (1985) ambos de
Hector Babenco; “República dos assassinos” (1979), de Miguel Farias Júnior; “Beijo
no asfalto” (1981) e “Além da paixão” (1985), ambos de Bruno Barreto; “A ópera do
malandro” (1986), de Rui Guerra; “Memórias do cárcere” (1984), de Nelson Pereira
dos Santos; e “Eu sei que vou te amar” (1986), de Arnaldo Jabor.
Nota-se que o autor aponta experiências eleitas nos roteiros desses filmes em que

85
a liberação e a repressão evocam a diversidade sexual/cultural no Brasil. É um
olhar estrangeiro que mapeia de fora um recorte específico.

Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 8, n. 15, jan./jun. 2009


Uma diversidade
Ao subjugar a narrativa na tela de cinema, cada vez mais, o espectador parece ela-
borar uma projeção íntima com determinados personagens, como processo de per-
cepção e identificação. Ocorre um estado de acoplagem contingencial entre perso-
nagem e espectador. Durante a exibição do filme, o espectador testemunha e ex-
plora os caminhos secretos dos protagonistas.

O outro, supostamente, parece se tornar “semelhante”, quando passa a convergir


pontos distintos, que podem ser complementares ou opositores. O estado de diver-
sidade legitima a existência/essência do outro. Trata-se da referência que se deve
ter do outro, e isso serve de parâmetro, para que ele também se tenha de mim –
como o reflexo do espelho. O protagonismo se aproxima do desejo – longe de qual-
quer vertigem.

Para Rivera “o jogo do olhar se dá nessa oscilação um tanto vertiginosa e no júbilo


ligado não apenas ao reconhecimento de si na imagem, mas também ao fato de fa-
zer-se desaparecer no espelho”. (2008, p. 57). Num processo de leitura e (inter)
mediação que (re)alinha e (retro)alimenta, é saber lidar com a alteridade, ou seja,
com as variáveis do outro.

Essa ideia indica um ato deslizante, lúdico, do filme. Entre ficção e realidade, a su-
jeição do sujeito (re)cria uma expectativa de aproximar espectador, personagem e
ator, na ordem da condição humana.

Difícil é digerir os argumentos, traçados por vestígios requintados de astúcia da di-


versidade sexual/cultural. Isto é, o panorama fílmico de uma carnavalização que
aqui se inscreve de enlaces (inter)subjetivos do cinema brasileiro, à luz de uma an-
tropofagia – um tanto quanto contemporânea – da diversidade sexual/cultural, em
que o próprio Festival da Diversidade Sexual Mix Brasil tenta fomentar e atualizar,
enquanto é espaço de proposição. (GARCIA, 2004).

Nessa trajetória, um acréscimo gradual de projetos audiovisuais veicula a diversi-


dade sexual/cultural, que pode ser constatada como tendência recente (e emer-
gente) no cenário das produções cinemáticas brasileira e internacional. Arrisco di-
86
zer que seria uma tendência mercadológica e midiática (de)marcada pela abertura
do Estado Democrático, cujo valor da diversidade desdobra-se com o aval dos Direi-
7
Garcia, Wilton. Cinema brasileiro, corpo e diversidade sexual/cultural: estudos contemporâneos

tos Humanos.

A produção do conhecimento e os estudos contemporâneos devem evidenciar uma


escritura forte, que planeje agenciamento/negociação, apreendidos para além do
âmbito da diversidade e da diferença. Agora, assiste-se ao interesse das pessoas e,
consequentemente, à passagem da ideologia para a tecnologia. São ações circuns-
tanciais, que utilizam interstícios de uma singularidade inerente a imagens, contex-
tos e representações. No cinema não seria diferente!

No agenciamento de questões transideológicas atreladas à expectativa de identida-


de cultural, a diversidade torna-se uma recorrência híbrida e (re)instaura funda-
mentos para a elaboração de estratégias discursivas, o que se inscreve como dado
relevante nesse trajeto de intervenções propositivas. Uma diversidade que se nutre
de acúmulo de vivências e experiências na multiplicidade de territórios insólitos.

“O amor que ousa dizer seu nome” é uma frase famosa de Oscar Wide. Uma assi-
natura! É uma máxima dos afetos sensíveis entre iguais. Uma posição de mundo!

Eis também uma questão emblemática: a orientação sexual não pode ser confundi-
da com opção sexual, porque o desejo é proeminente aos processos biopsicosso-
ciais, para além de uma mera escolha particular e, por isso, urge a dignidade da di-
versidade sexual/cultural.

Hoje a idiossincrasia da diversidade diz respeito à variedade e à convivência de


ideias e ideais: são características ou elementos diferentes entre si, em determina-
do assunto ou tema. Isso requer eixos cada vez mais amplos de variantes, porque é
do confronto de posicionamentos diferentes que surgem novos/outros resultados.
Um adeus à inércia com essa dinâmica é potencial de múltiplas combinatórias em
sua pluralidade: o que consegue elencar e abarcar uma máxima expressão de edifi-
car um pensamento não assentado à deriva.

7 Como professor e pesquisador na área da arte, comunicação e design, estudo a diversidade sexual/cultural – o
(homo)erotismo – na mídia brasileira, em especial na composição dos meios audiovisuais (imagem e som). Esse
viés temático torna-se uma proposição efervescente à (des)construção de abordagens conceituais e críticas que
circundam as minorias sexuais. Tenho me empenhado no desenvolvimento científico de investigações acerca de
objetos (hiper)midiáticos, que contemplam o discurso (homo)erótico, cujos procedimentos técnicos e estilísticos
incorporam ações afirmativas.
No cinema contemporâneo, surge um mundo de possibilidades, longe de uma ação

87
reguladora, normativa do sistema hegemônico (mainstream – como tendência pre-
dominante), que proporia barrar, castrar, diminuir, eliminar, excluir. Assim, pretende-

Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 8, n. 15, jan./jun. 2009


se instigar uma reflexão ácida que questione o que é ser parte de qualquer padrão
dominante, a fim de tentar melhorar a performance cinematográfica.

Um corpo
O corpo, neste instante, deve ser avaliado pela sua exposição – ao limite. Um aceno. O
que é exibido está público, portanto, faz parte da espetacularização mercadológica e
midiática. Ao amparar as recorrências que acentuam uma narrativa cinematográfica,
existe a expectativa do corpo como princípio da dita boa forma, distante de um ideal de
beleza – a serviço dos produtos – e (re)conduzi-lo à afetividade das relações humanas.

Esse corpo que enuncio deve ser visto/lido somente como elo temático para agrupar
leituras e pesquisas, que trabalham o audiovisual. Isso ocorre a partir da investigação
que correlaciona o corpo às matizes dos conteúdos no écran, ao sabor da vida.

Assim, estão dadas as transcorporalidades (GARCIA, 2005) refinadas com a dinâ-


mica fílmica. A noção de transcorporalidade destaca-se ao agregar diferentes mani-
festações do corpo contemporâneo. Seja no cinema, na publicidade, seja na arte
ou no cotidiano, as transcorporalidades surgem como performance, em que o cor-
po ressalta suas nuanças poéticas, estéticas, plásticas, que evidenciam uma dis-
cursividade visual estratégica.

A filmagem rigorosa do corpo visceral absorve a atração de um pelo outro, como re-
ferentes, na composição da escritura (homo/hetero/pan)erótica, a qual trato con-
ceitualmente como diversidade sexual/cultural. Não que isso seja uma tentativa de
esgotamento ou parcialidade de pressupostos, ao contrário, é um posicionamento
conceitual e crítico.

São as marcas (inter)subjetivas que compreendem o corpo, seu contexto e sua re-
presentação. Da imagem do corpo ao próprio corpo surge a produção de sentidos,
em efeitos dessa diversidade. Feixes de efeitos equacionam artimanhas para ins-
taurar o corpo no cinema brasileiro contemporâneo.

Indubitavelmente, o cinema brasileiro contemporâneo procura mostrar versatilida-


des de um corpo viscoso e polimorfo de desejos, cada vez mais aberto e em cons-
tante transformação. Metamorfose! Sob a égide desse entorno da imagem corporal
88
no cinema brasileiro, atrelado à diversidade, destacam-se as predicações corporais
atuais nos interstícios da ação cinematográfica.
Garcia, Wilton. Cinema brasileiro, corpo e diversidade sexual/cultural: estudos contemporâneos

A vertente que evidencia o corpo, nessas circunstâncias cinematográficas, explora a


atmosfera dos segredos paradoxalmente (re)velados diante da câmera. O que não
está explícito, mas está implícito. Entre um acontecimento e outro, o panorama narra-
tivo aprofunda a abertura de possíveis deslocamentos do corpo e da diversidade.

Uma proposição
Creio que, aqui, a singularidade da diversidade sexual/cultural deve ser reconhecida
como variante da relação entre cinema e dinâmica libidinal, porque, ao refletir sobre
esses deslocamentos de fronteiras, proponho que política, estética e desejo sejam ar-
gumentações que, fundamentalmente, caminhem juntas, correlacionando-se de modo
(in)dependente. Ao elaborar o quadro 1, para abordar uma concomitância entre ideolo-
gia, sentir e poder, tento ampliar o estado de negociação desses seis termos. Conse-
quentemente, exponho um universo esquemático de representações em estruturas:

política estética desejo

ideologia sentir poder

Quadro 1
Fonte: Elaborado pelo autor.

Esse quadro, então, revigora e enuncia um corpus que (de)marca a argumentação


sincrética de termos como premissa que tange o debate. Na relação: cinema, corpo
e diversidade sexual/cultural, por exemplo, requer dinamizar um ambiente trans-
versalizado de política, estética, desejo, ideologia, sentido e poder.

Conceitualmente, um movimento recorrente apresenta o agenciamento/negocia-


ção subscrito pelas setas pontilhadas no campo do quadro, como recorrência visu-
al de seus desdobramentos espaciais. Embora esse esboço figurativo não consiga
relacionar, diretamente, os seis termos do quadro acima, ressalto que as (inter)me-
diações podem e devem ser operacionalizadas, bem como o entrecruzamento do
objeto, do observador e do contexto extraído de cada cena.
Com isso, introduzo o quadro 2 de estratégias discursivas. Os operadores, aqui, são

89
compreendidos como complementos mencionados para o uso de estratégias, que
se agenciam dos termos às categorias discursivas (ambiguidade, corpo, diferença,

Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 8, n. 15, jan./jun. 2009


ironia e resistência), conforme as condições adaptativas, inerentes aos aspectos
socioculturais e políticos. (GARCIA, 2004):

Categorias Agenciamento do discurso Estratégias


Ambiguidade — diversidade
Corpo — meio
Diferença — exceção
Ironia — texto
Resistência — política

Quadro 2
Fonte: Elaborado pelo autor.

Ao elaborar esse quadro, penso em reforçar as categorias discursivas, implementa-


das para a ordem das estratégias. Dessa forma, deparo-me com um quadro que
apresenta algumas noções articuladoras – diversidade, exceção, texto e política –
de tais categorias. A validade do quadro é concebida em sua operacionalização pa-
radoxal, antagônica e contraditória, contida em seu uso subversivo. O deslizamento
constante correlaciona as categorias com as estratégias.

Portanto, o quadro 3 contém uma sistematização de movimentos que deslocam os obje-


tos em etapas contingenciais e enfocam condições adaptativas, inclusive para o cinema.
A constituição de tais categorias, embora seja flutuante em uma transitoriedade, remete
à leitura de um entrelugar. Assim, lembro que a manifestação de deslocamentos inces-
santes possibilita a pertinência de desdobramentos inevitávéis. Marcadas essas anota-
ções propositivas, passo a demonstrar tais categorias subdivididas no plano proposto:

Eixos teóricos

Arte Estética
Poética

Homoerotismo Cultura
cinema
Quadro 3
Fonte: Elaborado pelo autor.

Ao estabelecer a mensuração desse quadro sistêmico, esses eixos teóricos (re)dire-


cionam-se, independentemente, às estratégias discursivas e às categorias discursi-
vas (ambiguidade, corpo, diferença, ironia e resistência). Isso posto, as categorias
90
podem ser (re)avaliadas por meio de redes de conversações de arte e cultura para
o cinema contemporâneo.
Garcia, Wilton. Cinema brasileiro, corpo e diversidade sexual/cultural: estudos contemporâneos

Na medida do possível, os três quadros sintetizam o objetivo prospectivo de siste-


matizar este estudo. Assim, penso que possam ser trabalhados mais profundamen-
te em separado, em outras circunstâncias da produção do saber científico proposi-
tivo para cinema, corpo e diversidade sexual/cultural.

Considerações finais
Em filmes que tocam a diversidade, como tema, são comuns dois tipos de cena
como leitmotivs que se repetem como reiteração discursiva: 1) em algum momen-
to, surge a cena de um homem deitado sobre os braços de outro (como uma mado-
na que cuida do filho); e 2) um fim trágico com roteiros, que expressam cenas vio-
lentas (de assassinatos, por exemplo), cujo desfecho impossibilita a completude do
amor homo/bi/transerótico.

Se a primeira cena insinua um ser frágil à procura de um amor em sua vida (Eros),
a segunda retrata uma impossibilidade de união entre dois iguais com a morte (Tá-
natos). Por parte de quem julga, seria o desconhecimento desse amor como (pré)
conceito? Ou a ideia discriminatória de não conduzir uma ação afirmativa em prol
da diversidade? Ou, ainda, o medo (homofóbico) de lidar com a imagem da felicida-
de entre dois iguais?

Aqui nada é ou está invertido. As inquietações não são poucas, e é preciso ser ma-
leável para indagar as propriedades de tais agudezas. Nesse fluxo, sugiro uma pos-
tura provocativa e desafiadora para uma paisagem da afetividade no cinema brasi-
leiro contemporâneo – falo de uma política do afeto.

É reconhecer no outro a capacidade de relacionar – como dado comunicacional re-


corrente de uma natureza transideológica e sublime, em uma suspensão filosófica
sem gerar desconfortos. Segundo Lopes, “o sublime é um posicionamento ético e
estético diante do mundo frente ao populismo midiático sem ignorar os meios de
comunicação, mas pensando-os em sua diversidade”. (2007, p. 46).

Em contraponto às reivindicações, uma política do afeto pode associar cinema e di-


versidade sexual/cultural, sem cair numa exposição frenética do corpo. Busco, in-
condicionalmente, a delicadeza dessa política do afeto: uma voz sofisticada que

91
pulsa a acuidade magistral e fascinante, encantada pelo deleite de assinar um ci-
nema com sua qualidade inventiva. Seria uma projeção identificatória que aproxi-

Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 8, n. 15, jan./jun. 2009


maria e alicerçaria uma (re)dimensão mais afetiva do espaço (inter)subjetivo me-
diante as relações humanas.

Referências
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. de Myriam Ávila, Eliana L. L. Reis e Gláucia R.
Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1998.
EAGLETON, Terry. Depois da teoria: um olhar sobre os estudos culturais e o pós-modernis-
mo. Trad. de Maria Lúcia Oliveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
FOSTER, David William. Queer issues in contemporary latin american cinema. Austin: Uni-
versity of Texas Press, 2003.
GARCIA, Wilton. Corpo, mídia e representação: estudos contemporâneos. São Paulo: Thom-
son Learning, 2005.
______. Imagem e homoerotismo no Brasil. São Paulo: Nojosa; Fapesp, 2004.
LOPES, Denílson. A delicadeza: estética, experiência e paisagens. Brasília: Ed. da UnB; Fina-
tec, 2007.
MORENO, Antônio. A personagem homossexual no cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Funar-
te; Niterói: Eduff, 2001.
RIVERA, Tânia. Cinema, imagem e psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
SONTAG, Suzan. Contra a interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Trad. de Fernando Mascarello. Campinas: Pa-
pirus, 2003.
TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil: da colônia à
atualidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.
VIEIRA, João Luiz. Texto da capa s/título. In: MORENO, Antônio. A personagem homossexual
no cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Funarte; Niterói: Eduff, 2001.
XAVIER, Ismail. O olhar e a cena: melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues.
São Paulo: Cosac&Naify, 2003.
WAUGH, Thomas. The fruit machine: twenty years of writings on queer cinema. New York;
London: Duke University, 2000.

Você também pode gostar