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diversidade sexual/cultural:
estudos contemporâneos1
Wilton Garcia2
Resumo
O presente texto aborda o cinema brasileiro na esteira entre corpo e diversidade sexual/cultu
ral, tomando estrategicamente aspectos socioculturais e políticos que envolvem um debate inter
disciplinar. Com isso, propõe-se uma política do afeto. Aqui elencam-se três categorias diluídas ao
longo deste trabalho: imagem, experiência e subjetividade. A primeira relaciona-se à forma, e as
demais se relacionam ao conteúdo. Assim, os estudos contemporâneos efetivam uma abordagem
teórico-metodológica, tentando observar como ocorrem os processos de atualização e inovação da
linguagem, estratificada entre cultura e representação.
Palavras-chave: Cinema brasileiro. Corpo. Diversidade sexual/cultural. Imagem. Estudos contempo
râneos.
Abstract
This text addresses the Brazilian cinema in the wake between body and sexual/cultural diversity,
taking strategically social and political aspects that involve the interdisciplinary debate. Therefore,
it proposes a politic of affection. Here, it lists three categories diluted throughout this essay:
image, experience and subjectivity. The first relates to the form, as the others are related to the
content. Thus, contemporary studies effective a theoretical-methodological approach, trying to
see how the processes of updating and innovation of language, stratified between culture and
representation.
Keywords: Brazilian cinema. Body. Sexual/cultural diversity. Image. Contemporary studies.
1 Agradeço ao Grupo de Pesquisas Multidisciplinares em Tecnologias (GPMT) da UBC pelo apoio no desenvol-
vimento deste texto, que faz parte da pesquisa atual: “Estudos Contemporâneos: Subjetividade, Corpo e Cultura
Digital”.
2 Artista visual e pesquisador de cinema, fotografia, vídeo e imagem digital, investigando estudos sobre o corpo.
Doutor em Comunicação e Estética do Audiovisual pela ECA/USP. Pós-Doutor em Multimeios pelo IA/Unicamp. Atual-
mente, é pesquisador e professor no Programa de Mestrado em Semiótica, Tecnologias da Informação e Educação
na Universidade Braz Cubas (UBC). Autor do livro: Corpo, mídia e representação: estudos contemporâneos (ed.
Thompson Learning, 2005), entre outros.
Preâmbulos
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D
e que modo corpo e diversidade sexual/cultural surgem em um filme brasi-
Garcia, Wilton. Cinema brasileiro, corpo e diversidade sexual/cultural: estudos contemporâneos
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uma diversidade; um corpo; e uma proposição. Como metáfora de vasos comuni-
cantes em um esteio anatômico, esses tópicos são ideias que se complementam e,
Um cinema brasileiro
A partir dos estudos contemporâneos, investigo algumas condições adaptativas de ex-
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periências e impressões (inter)subjetivas de um cinema queer no Brasil. O termo queer
é utilizado, nos Estados Unidos, no Canadá e na Europa, para definir manifestações es-
tratégicas das comunidades gays e lésbicas. Há uma distinção na noção queer num te-
cimento árido sobre esse defeituoso – torto [bent], distanciando-se do que se legitima
como (cor)reto – normal [straight], mas, ao redimensionar o conceito, esvazia-se da
condição pejorativa para não dispensar a dissonante irreverência – uma sabotagem.
Para Stam
A teoria do cinema de inflexão psicanalítica, nesse sentido, fora partícipe [...]. A teoria
queer migrou da análise corretiva dos estereótipos e distorções para modelos teóricos mais
sofisticados. [...] Também resgatou e “retirou do armário” autores gays e autoras lésbicas
atuantes no mainstream. (2003, p. 292, grifos do autor).
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Há a figuratização mista e memorável de Carmem Miranda – ícone camp conheci-
do internacionalmente. A noção de camp subentende, na produção artística de ar-
tes, cinema e literatura, os aspectos de extravagância, exagero e extroversão.
Sontag escreve “notas sobre o camp” no seu livro Contra a interpretação (1987).
Ela indica que a sensibilidade camp deve estar atenta ao duplo sentido pelo qual
certas coisas podem ser vistas/lidas. E isso não equivale, de modo algum, à mera
superposição de um sentido literal por um sentido simbólico, mas antes à diferença
entre a coisa-significando-qualquer-coisa, e a coisa como puro artifício.
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“Ópera curta” (Marcelo Lafitte, 2004), além dos vídeos “Cela de ossos” (Alexandre
Pires, 1999) e “BlackBerry & Maberry” (Felipe Martins-Páros, 2000).
Diante disso, remeto à pesquisa de Moreno (2001) que, ao escrever sobre A perso-
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nagem homossexual no cinema brasileiro, afirma o quão são poucas as referên-
cias homoeróticas no cinema nacional.
A não ser pela estética de alguns filmes, ou momentos indiciais de sua presença [...], por
exemplo, em Carnaval no fogo, 1952, a famosa cena do balcão de Romeu e Julieta, sendo
esta interpretada por Grande Otelo, com imensa peruca, e Oscarito, o Romeu Louro, a
recitar poemas de amor. Na verdade, eles estavam travestidos, “montados”, interpretando
uma cena cômica esteticamente gay. (MORENO, 2001, p. 26, grifo nosso).
Essa passagem, apontada por Moreno, questiona a transição entre o gesto e a ex-
pressão corporal de uma personagem homossexual para compreensão e acolhi-
mento da chamada estética gay. Nessa vertente, o autor propõe sua tese mediante
a gestualidade, conforme aborda o panorama cinematográfico do País.
Contudo, a estética gay deve ser apresentada, explorada e ampliada para além de
uma dramatização gestual, configurada apenas na imagem do sujeito. Isto é, uma
articulação de traços homoeróticos que se coordenam para além de uma mera afe-
tação afeminada de estereótipos encenados no cinema brasileiro.
6 Segundo Vieira (2001), a pesquisa de Moreno “enriquece a historiografia do cinema brasileiro, ainda lenta no
desenvolvimento de abordagens e perspectivas contemporâneas, como aquelas que, mais recentemente, aliam a
abertura proporcionada pelos chamados estudos culturais a problemas de representação de expressão não norma-
tiva da sexualidade. Como pioneiro, o trabalho justifica o esforço empreendido pelo pesquisador em [tentar] mapear
a paisagem por onde circulavam personagens homossexuais em nosso cinema entre 1923 e 1996. [...] Através
deste mapeamento verdadeiramente inédito, podemos afirmar que os assim chamados Queer Studies podem estar
chegando, enfim, ao cinema brasileiro”. (Texto da Capa, grifo nosso.)
Desse modo, seria uma irresponsabilidade atentar apenas aos aparatos técnicos e
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ferramentais que envolvem as interfaces dos suportes da película, pois os elemen-
tos temáticos dos conteúdos, na esfera comunicacional (mensagem, enunciados,
Garcia, Wilton. Cinema brasileiro, corpo e diversidade sexual/cultural: estudos contemporâneos
Para Trevisan “o cinema brasileiro não tentou – exceto em raras situações – verter
a erótica homossexual em imagens poéticas” (2000, p. 299) e reforça:
Constitui sem dúvida um fato curioso que os intensos debates envolvendo a vida
homossexual brasileira, nas últimas décadas do século XX, não tenham se refletido senão
excepcionalmente na produção cinematográfica nacional, mesmo que depois a indústria
de filmes teve um incremento quantitativo, em meados da década de 1990. Ainda assim,
vale destacar alguns títulos, que se aproximam entre si por um olhar pouco usual sobre a
realidade brasileira, às vezes vertido também num estilo peculiar, que vai do agressivo ao
barroco. (2000, p. 301).
Waugh, no livro The fruit machine (2000), tenta refletir sobre o cinema latino-ameri-
cano, ao investigar basicamente as produções brasileira e argentina. Em sua escri-
ta, toma dois eixos opositores (e complementares): da integração e da marginaliza-
ção para um escopo acerca da identidade sexual nesse âmbito.
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a liberação e a repressão evocam a diversidade sexual/cultural no Brasil. É um
olhar estrangeiro que mapeia de fora um recorte específico.
Essa ideia indica um ato deslizante, lúdico, do filme. Entre ficção e realidade, a su-
jeição do sujeito (re)cria uma expectativa de aproximar espectador, personagem e
ator, na ordem da condição humana.
tos Humanos.
“O amor que ousa dizer seu nome” é uma frase famosa de Oscar Wide. Uma assi-
natura! É uma máxima dos afetos sensíveis entre iguais. Uma posição de mundo!
Eis também uma questão emblemática: a orientação sexual não pode ser confundi-
da com opção sexual, porque o desejo é proeminente aos processos biopsicosso-
ciais, para além de uma mera escolha particular e, por isso, urge a dignidade da di-
versidade sexual/cultural.
7 Como professor e pesquisador na área da arte, comunicação e design, estudo a diversidade sexual/cultural – o
(homo)erotismo – na mídia brasileira, em especial na composição dos meios audiovisuais (imagem e som). Esse
viés temático torna-se uma proposição efervescente à (des)construção de abordagens conceituais e críticas que
circundam as minorias sexuais. Tenho me empenhado no desenvolvimento científico de investigações acerca de
objetos (hiper)midiáticos, que contemplam o discurso (homo)erótico, cujos procedimentos técnicos e estilísticos
incorporam ações afirmativas.
No cinema contemporâneo, surge um mundo de possibilidades, longe de uma ação
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reguladora, normativa do sistema hegemônico (mainstream – como tendência pre-
dominante), que proporia barrar, castrar, diminuir, eliminar, excluir. Assim, pretende-
Um corpo
O corpo, neste instante, deve ser avaliado pela sua exposição – ao limite. Um aceno. O
que é exibido está público, portanto, faz parte da espetacularização mercadológica e
midiática. Ao amparar as recorrências que acentuam uma narrativa cinematográfica,
existe a expectativa do corpo como princípio da dita boa forma, distante de um ideal de
beleza – a serviço dos produtos – e (re)conduzi-lo à afetividade das relações humanas.
Esse corpo que enuncio deve ser visto/lido somente como elo temático para agrupar
leituras e pesquisas, que trabalham o audiovisual. Isso ocorre a partir da investigação
que correlaciona o corpo às matizes dos conteúdos no écran, ao sabor da vida.
A filmagem rigorosa do corpo visceral absorve a atração de um pelo outro, como re-
ferentes, na composição da escritura (homo/hetero/pan)erótica, a qual trato con-
ceitualmente como diversidade sexual/cultural. Não que isso seja uma tentativa de
esgotamento ou parcialidade de pressupostos, ao contrário, é um posicionamento
conceitual e crítico.
São as marcas (inter)subjetivas que compreendem o corpo, seu contexto e sua re-
presentação. Da imagem do corpo ao próprio corpo surge a produção de sentidos,
em efeitos dessa diversidade. Feixes de efeitos equacionam artimanhas para ins-
taurar o corpo no cinema brasileiro contemporâneo.
Uma proposição
Creio que, aqui, a singularidade da diversidade sexual/cultural deve ser reconhecida
como variante da relação entre cinema e dinâmica libidinal, porque, ao refletir sobre
esses deslocamentos de fronteiras, proponho que política, estética e desejo sejam ar-
gumentações que, fundamentalmente, caminhem juntas, correlacionando-se de modo
(in)dependente. Ao elaborar o quadro 1, para abordar uma concomitância entre ideolo-
gia, sentir e poder, tento ampliar o estado de negociação desses seis termos. Conse-
quentemente, exponho um universo esquemático de representações em estruturas:
Quadro 1
Fonte: Elaborado pelo autor.
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compreendidos como complementos mencionados para o uso de estratégias, que
se agenciam dos termos às categorias discursivas (ambiguidade, corpo, diferença,
Quadro 2
Fonte: Elaborado pelo autor.
Eixos teóricos
Arte Estética
Poética
Homoerotismo Cultura
cinema
Quadro 3
Fonte: Elaborado pelo autor.
Considerações finais
Em filmes que tocam a diversidade, como tema, são comuns dois tipos de cena
como leitmotivs que se repetem como reiteração discursiva: 1) em algum momen-
to, surge a cena de um homem deitado sobre os braços de outro (como uma mado-
na que cuida do filho); e 2) um fim trágico com roteiros, que expressam cenas vio-
lentas (de assassinatos, por exemplo), cujo desfecho impossibilita a completude do
amor homo/bi/transerótico.
Se a primeira cena insinua um ser frágil à procura de um amor em sua vida (Eros),
a segunda retrata uma impossibilidade de união entre dois iguais com a morte (Tá-
natos). Por parte de quem julga, seria o desconhecimento desse amor como (pré)
conceito? Ou a ideia discriminatória de não conduzir uma ação afirmativa em prol
da diversidade? Ou, ainda, o medo (homofóbico) de lidar com a imagem da felicida-
de entre dois iguais?
Aqui nada é ou está invertido. As inquietações não são poucas, e é preciso ser ma-
leável para indagar as propriedades de tais agudezas. Nesse fluxo, sugiro uma pos-
tura provocativa e desafiadora para uma paisagem da afetividade no cinema brasi-
leiro contemporâneo – falo de uma política do afeto.
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pulsa a acuidade magistral e fascinante, encantada pelo deleite de assinar um ci-
nema com sua qualidade inventiva. Seria uma projeção identificatória que aproxi-
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