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ed.
29
PLANO NACIONAL
DE CULTURA
ANÁLISES E PERSPECTIVAS
Percursos, imprecisões e
emergências para o novo PNC
Modelos internacionais:
América Latina, Estados Unidos,
Europa e Brics
Semestral
expediente
REVISTA
Ensaio artístico Produção
OBSERVATÓRIO
Marília Marz Andréia Briene
Ediana Borges
Conselho editorial Ilustração
Adélia Zimbrão André Toma NÚCLEO DE
Andréia Briene COMUNICAÇÃO E
Claudinéli Moreira Supervisão de revisão RELACIONAMENTO
Ramos Polyana Lima
Lia Calabre Gerência
Luciana Modé Revisão Ana de Fátima Sousa
Rachel Reis
Edição (terceirizada) Coordenação editorial
Claudinéli Moreira Ramos Carlos Costa
EQUIPE ITAÚ
Preparação de texto CULTURAL Curadoria de imagens
Tatiana Diniz André Seiti
(terceirizada) Presidente
Alfredo Setubal Produção editorial
Projeto gráfico Luciana Araripe
Marina Chevrand/ Diretor
Serifaria Eduardo Saron
O Itaú Cultural (IC), em
Tradução 2019, passou a integrar
Carmen Carballal NÚCLEO a Fundação Itaú para
(terceirizada) OBSERVATÓRIO Educação e Cultura, com
o objetivo de garantir
Design Gerência ainda mais perenidade às
Iara Pierro de Camargo Jader Rosa suas ações e o seu legado
no mundo da cultura,
Produção gráfica Coordenação ampliando e fortalecendo
Lilia Góes Luciana Modé o seu propósito de inspirar
o poder criativo para a
transformação das pessoas.
aos leitores
Quando a ditadura acabou no Brasil, as polí- não deixou. No entanto, meses depois, a po-
ticas públicas passaram a ser discutidas por pulação alçou ao Palácio da Alvorada um
inúmeros interlocutores. Propostas de mo- presidente, legitimamente eleito pelo voto
dernização e desburocratização, demandas direto, que tornou a extinção do MinC um
por garantia de direitos e contra desigualda- dos seus primeiros atos oficiais, sem maiores
des históricas somavam-se em uma arena repercussões além de críticas vindas quase
política marcada pela mobilização crescente que somente do setor cultural.
de agentes e propostas. Num resumo muito breve, o primeiro
Essa articulação envolveu agentes po- PNC brasileiro contou com cinco anos de
líticos e a sociedade civil, rendeu alterações priorização governamental e outros cinco de
constitucionais e teve, entre seus inúmeros perda crescente de relevância. Às vésperas
frutos, a construção do Plano Nacional de de seu encerramento, depois de praticamen-
Cultura (PNC), instituído por lei em de- te ter desaparecido das pautas do governo
zembro de 2010. Em dezembro de 2020, o federal desde 2018, o terrível surgimento da
primeiro PNC desenvolvido na história de- pandemia de covid-19, que abalou o Brasil e
mocrática da nação brasileira chegou ao seu o mundo, teve como desdobramento inespe-
décimo aniversário – momento que deveria rado um despacho do presidente da Repúbli-
combinar a apresentação e avaliação de re- ca, em outubro de 2020, encaminhando ao
sultados com a finalização do processo de Congresso Nacional um projeto de lei para
construção do plano para a década seguinte. ampliar a vigência do PNC.
Sem dúvida, o cenário mudou muito. A É viável e necessário avaliar o que essa
situação econômica do país, favorável e pro- década que deveria ser dedicada à execução
missora no início dessa tramitação, enfren- do plano alcançou em termos concretos. O
tou algumas crises no período e sobreviveu caput do artigo 215 da Constituição Federal,
bem, até começar a se deteriorar. O governo no qual o PNC foi incluído por meio do pa-
sob o qual a construção do PNC foi estimu- rágrafo 3o, afirma que “o Estado garantirá a
lada se reelegeu e fez sucessora. Embora todos o pleno exercício dos direitos cultu-
também reeleita, seu segundo governo não rais e acesso às fontes da cultura nacional,
chegou ao fim regulamentar, devido a um im- e apoiará e incentivará a valorização e a
peachment. Seu vice, assumindo a Presidên- difusão das manifestações culturais”. Em
cia, tentou extinguir o Ministério da Cultura que medida o PNC 2010-2020 contribuiu
(MinC). O setor cultural, com apoio popular, nessa direção? Mais: será que realmente é
10 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
necessário um plano nacional para que esses de especialistas do setor cultural promovi-
objetivos sejam alcançados? Como um plano do pelo Observatório Itaú Cultural em 4 de
nacional poderia ser elaborado de maneira a março de 2020.
não ficar tão suscetível às oscilações políti- Em outro contexto governamental, essa
cas (sobretudo de gestão) e econômicas do discussão sem nenhuma pretensão estatís-
país, rumando de fato à garantia dos direitos tica ou de representatividade seria apenas
culturais para todas as pessoas no Brasil? uma entre inúmeras, espalhadas Brasil afora,
Este número da Revista Observatório es- voltadas para angariar subsídios para a polí-
pera contribuir para tais reflexões, reunindo tica cultural da próxima década. No cenário
subsídios para a análise do processo e do saldo atual, foi um esforço isolado com ganas de
até aqui, e somando referências de diversos provocação a você, leitora ou leitor destas
outros países, no intuito de conhecer seus pla- páginas, visando perguntar: se você fosse
nos nacionais ou suas formas alternativas de chamada/chamado a essa discussão, quais
organizar suas políticas de cultura. seriam as suas respostas? Note, porém, que
Nessa perspectiva, Lia Calabre e Adé- a provocação não cessa nesse chamado, mas
lia Zimbrão abrem os trabalhos, oferecendo acaba retornando aos próprios participantes
uma revisão crítica em torno do processo do encontro, na medida em que a leitura que
vivenciado no Brasil. Em “PNC 2010-2020 apresento das contribuições de cada um não
– um olhar sobre os percursos”, as autoras é o elenco das sugestões individuais, mas a
discorrem sobre o processo de construção do síntese que esta relatora fez daquele pequeno
plano, seus aspectos inovadores, o modelo de e ativo conjunto de vozes que dedicou uma
gestão dos indicadores, os aprendizados úteis manhã a examinar o saldo e as tendências
à elaboração do próximo PNC e os desafios do PNC.
do atual contexto político-cultural. Nessa perspectiva, cabe salientar que a
Frederico Barbosa da Silva, ao abordar intenção de lançar esta revista em novembro
as “Imprecisões sobre o Plano Nacional de de 2020 também foi prejudicada pelos refle-
Cultura”, situa o plano como um conjunto xos da crise sanitária, que ocasionou adia-
híbrido de apostas políticas e instrumentos mento e demandou a retomada de contato
de política pública, e aponta limites meto- com cada convidado do encontro de março
dológicos dessa construção, marcada por para verificar em que medida a proposta pre-
antagonismos e criatividade. cisava ser revista em razão da pandemia e de
Ainda focando a experiência brasileira, seus tantos efeitos deletérios.
apresento a “História e resultados do Plano Tais reflexões trazem a riqueza peculiar
Nacional de Cultura 2010-2020 e o anseio da multiplicidade de referências reunidas.
por um novo e aprimorado plano”, sob uma No entanto, até aqui, falávamos apenas da
perspectiva diferente de avaliação e levanta- realidade nacional. Será que fazer plane-
mento de subsídios, traduzida em um peque- jamentos nacionais dessa forma é uma
no exercício coletivo de balanço e proposição. especificidade brasileira? Ou uma prática
Trata-se da relatoria crítica de um encontro internacional? Como veremos, a experiência
PLANO NACIONAL DE CULTURA – ANÁLISES E PERSPECTIVAS 11
internacional nos mostra que a cultura está Bayardo nos mostra como a Argentina per-
na centralidade política de diferentes países, correu, a partir dos anos 1980, caminho di-
com graus de organização variados, que in- ferente dos países vizinhos, indo da redação
cluem, mas não somente, a implementação de planos nacionais e de uma política mais
de planos, estratégias e políticas nacionais totalizadora e federalista à conformação de
de médio e longo prazo. institutos setoriais de cinema, teatro e mú-
Constanza Symmes Coll, no artigo “Fa- sica com fundos próprios e mais autonomia,
bricar política cultural no Chile: entre a par- ligados ao mercado e ao setor privado, sem
ticipação setorial, os saberes do Estado e a preocupação abrangente com planejamento,
cidadania cultural”, apresenta uma revisão avaliação e memória institucional.
analítica do processo chileno de elaboração Eduardo Nivón Bolán aborda “O pla-
da Política Nacional de Cultura 2017-2022, nejamento cultural no México durante o
a partir das estratégias de construção utili- governo de Andrés Manuel López Obrador”,
zadas, em face do contexto histórico-político recuperando o histórico de inserção do tema
e da recente criação do Ministério das Cul- cultural nos Planos Nacionais de Desenvolvi-
turas, Artes e Patrimônio, em 2017. mento a cada seis anos, a partir da criação do
“Plano Nacional de Cultura no Uruguai, Conselho Nacional para a Cultura e as Artes,
um assunto inacabado”, por Hernán Cabrera, em 1988. O autor examina políticas de cultu-
traz a análise descritiva do processo uruguaio ra dos últimos 30 anos para situar as diferen-
de elaboração do PNC e da Lei de Cultura e ças do atual período, em que se verifica uma
Direitos Culturais entre 2016 e 2019. Ante a crise na política cultural caracterizada como
riqueza e as dificuldades do processo, o autor política pública.
nos leva a refletir sobre a necessidade real de “Política cultural nos Estados Unidos”
consolidar um PNC: para resolver quais de- é o tema de José Carlos Durand, que busca
mandas e organizar que instituições? recuperar as particularidades históricas do
Paula Félix dos Reis apresenta uma das país e os antecedentes do modelo adotado, a
primeiras experiências latino-americanas de partir de complexa rede de órgãos públicos e
construção de um PNC em “Políticas de cul- privados de apoio econômico e institucional
tura no longo prazo: o caso do Plano Nacional às artes, sem plano nacional e sem ministé-
de Cultura da Colômbia”. O texto analisa esse rio de Cultura. O autor mapeia instituições
processo e os principais conteúdos do PNC e mecanismos que compõem o sistema de
colombiano. Entre limites, avanços e desa- financiamento e gestão, em que a iniciativa
fios, como a falta de indicadores claros para privada contribui quatro vezes mais que as
avaliar os resultados do PNC que vigorou até fontes públicas e o poder local é o maior pro-
2010, a autora ressalta a inexistência de si- vedor de recursos.
nalização governamental para a construção O artigo de Maria Vlachou, “Plano Na-
de um novo plano. cional das Artes: para todos e com cada um”,
Em “Dos planos nacionais aos institutos analisa o Plano Nacional das Artes de Portu-
setoriais de cultura na Argentina”, Rubens gal e seus três eixos de intervenção: Política
12 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
9. Aos leitores
Claudinéli Moreira Ramos 3. Planos de cultura: análise
1.
comparada de contextos internacionais
2. Emergências e desafios
para um novo PNC
132. Políticas de cultura no longo
prazo: o caso do Plano Nacional de
Cultura da Colômbia
Paula Félix dos Reis
sumário
1. PNC 2010-2020:
REVISÕES
NECESSÁRIAS
Este artigo se propõe a revisitar a trajetória das políticas públicas de cultura nos últimos
dois decênios, tendo por objeto a análise do caminho percorrido para a construção do Pla-
no Nacional de Cultura 2010-2020 (PNC). Busca fazer apontamentos críticos sobre esse
processo, a fim de trazer ao debate reflexões que contribuam para a elaboração do próximo
PNC. Ressalta-se como significativo ganho político a grande mobilização e participação
social, bem como o exercício de democracia vivenciado por diversos segmentos e setores da
sociedade, mas também são sinalizadas as implicações que poderão advir dessa iniciativa.
A
chegada do ano de 2020 para os pandêmica, o 1o Plano Nacional de Cultura,
estudiosos, gestores e ativistas cuja finalização do decênio de sua execução
do campo das políticas culturais estar prevista justamente para 2020, teve
trouxe inúmeros desafios e a inserção, na sua vigência revista. A Medida Provisória
pauta das atividades, da tarefa de refletir (MP) no 1.012, de 1o de dezembro de 2020,
sobre novas formas de produzir cultura e alterou a Lei no 12.343, de 2 de dezembro
usufruir dela, sob o contexto inesperado da de 2010, que instituiu o PNC, para ampliar
pandemia de covid-19. Foi um ano extre- seu prazo para o final de 2022. Tal MP foi
mamente difícil em todas as dimensões: convertida em lei em maio de 2021, após
da vida, para o país e para o mundo e, não tramitar na Câmara e no Senado Federal.
menos, para as questões relacionadas ao Revisitar a trajetória percorrida pelas po-
planejamento e à gestão de políticas pú- líticas públicas de cultura nessas últimas
blicas, em especial na área da cultura. O duas décadas, tendo por objeto o PNC, é o
segmento cultural foi um dos primeiros desafio central deste artigo.
a paralisar seus trabalhos em virtude da O PNC, previsto inicialmente para o
exigência/determinação do cancelamento decênio 2010-2020, resultou de processos
das atividades com aglomeração de público, que envolveram e ainda envolvem diversas
uma vez que o isolamento social foi tomado disputas, entre as quais destacamos duas
como uma das principais formas profiláti- aqui. A primeira considera que planejar
cas para combater a disseminação do ví- cultura seria um contrassenso, em razão
rus. Nesse sentido, em razão da conjuntura de sua especificidade em relação a uma
22 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
potencialidade imaginativa. A outra está expressam lutas entre agentes sociais que
relacionada ao embate quanto ao próprio buscam preservar a hegemonia de um mo-
conceito de planejamento governamental. delo de “dominação cultural”, que legitima
O primeiro PNC forjou-se em um contexto determinada visão de mundo, e os que estão
no qual prevaleceram perspectivas teóri- voltados para questionar as categorias de
cas de que o planejamento, apesar de ter percepção da ordem social vigente (BOUR-
conteúdo técnico, é um processo político, DIEU, 2008, 2012). Portanto, como processo
sobretudo nas sociedades que ambicionam político, a produção de um plano de cultura,
a transformação das estruturas econômicas ou seja, o planejamento de políticas públicas
e sociais (BERCOVICI, 2006), assim como de cultura, opera principalmente como um
o predomínio do entendimento de que o Es- discurso aglutinador, como construção de
tado tem papel ativo no desenvolvimento do narrativa que dá sentido. E o sentido dado,
país. Nesse sentido, não se trata só de com- ancorado na Constituição vigente de 1988,
petição por recursos mate- foi o de que as políticas
riais, mas de disputas por “Como os mitos, as políticas, públicas são para asse-
ideias e valores referentes por sua vez, fornecem um gurar direitos culturais, a
à responsabilidade do Es- meio de unificar o passado cidadania cultural. Para
tado diante dos desafios e o presente, de modo a Shore (2010), as políticas
econômicos e sociais. dar coerência, ordem e públicas funcionariam de
Assim, o primeiro certeza às ações do governo, maneira similar ao “mito”
PNC precisa ser analisa- muitas vezes incoerentes, em sociedades não letra-
do considerando-se esse desorganizadas e incertas” das. Assim, para esse au-
movimento de resgate e (SHORE, 2010, p. 32) tor, da mesma forma que
ressignificação do planeja- os mitos, as políticas pú-
mento governamental no Brasil que buscou blicas proveriam uma zona de aliança e um
qualificar o plano como instrumento efe- modo de reunir as pessoas em torno de um
tivo de planejamento e gestão de políticas objetivo comum. Além disso,
públicas. Tal perspectiva visou superar a
narrativa construída nos anos 1990 – for- como os mitos, as políticas, por sua vez,
temente marcada pelo discurso “gerencia- fornecem um meio de unificar o passado e
lista”1 e pelo domínio da ideologia neoliberal o presente, de modo a dar coerência, ordem
– de concepção restrita de planejamento e e certeza às ações do governo, muitas vezes
gestão como mecanismo de cunho eminen- incoerentes, desorganizadas e incertas 2
temente técnico e normativo, a cargo de (SHORE, 2010, p. 32).
especialistas, e em que o Estado tem papel
mínimo, prevalecendo o mercado como ins- Voltando no tempo, observamos que o ano de
tância determinante da vida social. 2003 foi de grande mobilização, por parte dos
Seguindo essa linha, os embates por novos integrantes do Ministério da Cultura
sentido e as apropriações conceituais (MinC), na busca da abertura de diversos
PNC 2010-2020: REVISÕES NECESSÁRIAS Lia Calabre e Adélia Zimbrão 23
que representariam as regiões na primeira estratégias e ações previstas no PNC, que es-
CNC. Foram ainda realizadas as Conferên- tavam em áreas fora da governança do MinC.
cias Intermunicipais – no caso dos estados De maneira sintética, é necessário res-
que não aderiram ao sistema. Tal desenho saltar aqui que todo esse processo partici-
tanto produziu excelentes resultados em pativo muito alargado teve consequências
termos participativos quanto deixou como favoráveis e desfavoráveis no momento da
legado para o PNC um volume gigantesco de construção do PNC; havia uma demanda
demandas dos mais variados grupos, que as- por políticas e ações do Estado reprimida,
sinalavam a ausência de políticas públicas que aflorou, ou melhor, que “explodiu”. Isso
da cultura no país. Trabalhar com esse lega- foi bom? Sim, por um lado, pois despertou o
do, transformando-o em políticas factíveis olhar da sociedade sobre o direito à cultura e
sem criar altos níveis de descontentamento os deveres do Estado. Porém, não perdendo
e frustração, foi uma das tarefas impostas à de vista que o processo era de elaboração de
equipe ministerial. um plano que guiaria políticas públicas ideal-
Para além dos resultados na primeira mente exequíveis, dificultou muito o processo
CNC, outros fóruns e con- de delimitação do que efeti-
sultas públicas foram rea- Todo esse processo vamente poderia ser reali-
lizados. Um dos primeiros participativo muito alargado zado, ser transformado em
e grandes desafios da ela- teve consequências favoráveis meta para a execução em
boração de planos na área e desfavoráveis no momento um prazo de dez anos, em
das políticas públicas está da construção do PNC; havia um país sem tradição de
no que chamamos de trans- uma demanda por políticas execução de políticas em
versalidade da cultura. Ao e ações do Estado reprimida, cultura e, mais ainda, de
buscar trabalhar com um que aflorou, ou melhor, continuidade das ações das
conceito mais amplo de que “explodiu” gestões anteriores.
cultura, que ultrapassa o
campo das artes, que a define como conjunto Processo de construção das metas
de saberes e fazeres, o Ministério da Cultura do PNC: potências e fragilidades
extrapola o que seriam suas “barreiras” mi- O processo de construção do PNC foi mar-
nisteriais e adentra no campo de outras polí- cado pelas dificuldades que afetaram o con-
ticas setoriais. Um volume considerável das junto de projetos do Ministério da Cultura
propostas de diretrizes que obtiveram maior como um todo – as alterações e inovações
adesão dos delegados extrapola a área de go- eram muitas. A área nunca havia vivenciado
vernança do Ministério da Cultura – as duas um processo efetivo de construção de polí-
maiores áreas de políticas, fora a da cultura, ticas com qualquer grau de participação so-
para as quais as demandas foram direciona- cial. As poucas experiências de gestões que
das foram educação e comunicação. Mais à buscaram construir políticas efetivas para
frente, verificaremos um conjunto de pro- a área estiveram marcadas pelos regimes de
blemas acarretados pela incorporação das exceção democrática. Ao longo da ditadura
26 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
– através do qual artistas, mestres ou detento- Por outro lado, os desdobramentos territoriais
res de saberes e fazeres da tradição oral teriam esperáveis do processo foram ocorrendo.
seus conhecimentos certificados pelo MEC. Podemos exemplificar um pouco da
Ao MinC caberia definir os saberes e mapear problemática acima com o caso do Siste-
esses profissionais que seriam reconhecidos ma Nacional de Informações e Indicado-
pelo MEC. Esse programa do MEC foi rapi- res Culturais (SNIIC), cuja implantação
damente descontinuado. Tendo em vista que foi muito retardada, em especial pela
toda a meta estava calcada no reconhecimen- dificuldade de elaborar uma base de in-
to do saber, que só teria validade no mercado formações de caráter nacional que desse
de trabalho se reconhecido pelo MEC, o fim conta da complexidade do campo cultu-
do programa invalidou por completo a meta. ral, dificuldade essa tanto técnica quanto
Temos um exemplo claro operacional. O SNIIC
tanto de pleno reconhe- Questão relevante advinda seria replicado pelos
cimento da demanda da do processo participativo estados. A implantação
sociedade pelo Ministério de construção do primeiro do sistema em 100% das
da Cultura, ao construir a PNC é o reconhecimento e a unidades da federação e
meta 17 do PNC, quanto apropriação, por parte de agentes em 60% dos municípios
da fragilidade a que fica e comunidades culturais, de que era a meta, que não será
exposta uma meta cuja políticas públicas de cultura são cumprida. Porém o não
governança se encontra meios – obrigação do Estado cumprimento dessa
totalmente fora da alçada – para garantir a cultura como meta impacta na medi-
do Ministério da Cultura. direito de cidadania ção de várias outras, tais
O ato do MinC de acatar a como a meta 6 – “50%
demanda da sociedade foi perfeito, porém o dos povos e comunidades tradicionais que
mecanismo utilizado na busca de efetividade estiveram cadastrados no SNIIC atendi-
pode resultar em descrédito das ações minis- dos por ações de promoção da diversidade
teriais e do próprio PNC. cultural” – ou ainda a meta 3, que trata da
É importante ressaltar que, quando as cartografia da diversidade das expressões
metas foram elaboradas, em 2011, havia uma culturais em todo o território brasileiro.
perspectiva de fortalecimento contínuo e Assim, tal como observado no docu-
crescente das políticas públicas de cultura, mento Análise e Avaliação Qualitativa das
nos diversos níveis de governo. Fato que ocor- Metas e o Monitoramento do Plano Nacio-
reu, em parte, não no mesmo ritmo do decênio nal de Cultura (PNC),4 da Secretaria da Di-
anterior. O cumprimento das metas do PNC versidade Cultural, são muitas as questões
estava também vinculado à efetivação de ou- que precisam ser consideradas e pondera-
tros mecanismos de políticas, em especial o das nessa experiência peculiar de produção,
Sistema Nacional de Cultura, e à reestrutu- planejamento e gestão de um plano nacional
ração dos mecanismos de financiamento das para a área da cultura. Nesse sentido, há que
políticas – essa última não ocorreu até 2020. se destacar como significativo ganho político
PNC 2010-2020: REVISÕES NECESSÁRIAS Lia Calabre e Adélia Zimbrão 29
instrumentos mais claros para uma articu- documento Análise e Avaliação Qualitativa das
lação mais eficaz entre as metas do PNC e os Metas e o Monitoramento do Plano Nacional
eixos do PPA, conforme recomendação do de Cultura (PNC), aponta-se que a desativa-
documento Análise e Avaliação Qualitativa ção de instâncias de governança do PNC, assim
das Metas e o Monitoramento do Plano Na- como a não implantação de seu comitê executi-
cional de Cultura (PNC). Esse fator favorece vo, provocou a descontinuidade de ações vitais
a otimização de recursos. para sua consolidação. Pontua-se também em
Outro fator relevante é que o processo tal documento que há pouca governabilidade
participativo – tanto de construção do PNC das metas pelo então Sistema MinC (26 das 53
quanto de suas metas – permitiu a formação metas inscritas no PNC têm os entes federa-
de quadros político-culturais nas três esferas dos estaduais e municipais como responsáveis
do poder público e também na sociedade civil. por sua execução), o que demanda articulação
Ainda no que se refere aos ganhos ad- e cooperação federativa para sua consecução.
vindos do processo do primeiro PNC, com Portanto, trata-se de questões que requerem
a incorporação da cultura de planejamento, atenção especial para o futuro PNC.
aponta-se maior reconhe- Por se tratar de uma
cimento – por parte de ins- A desativação de instâncias política pública que envol-
tituições públicas e outros de governança do PNC, assim ve necessariamente corre-
agentes – da importância como a não implantação lação de forças, o processo
de cursos de formação e de seu comitê executivo, de construção do primeiro
capacitação para a área provocou a descontinuidade PNC ocorreu em meio aos
cultural, assim como o de ações vitais para sua diversos embates políti-
desenvolvimento de pes- consolidação cos em que as disputas de
quisas e estudos para a narrativas foram sendo
produção de conhecimento sobre o setor. E, travadas em direção à negociação de maior
para tanto, o reconhecimento da necessida- participação social. Tal processo participativo
de de produzir dados e informações sobre a foi conquistando espaço gradativamente. E,
área. Nesse sentido, percebeu-se também dadas a abrangência e a complexidade de pro-
como relevantes a elaboração de sistemas dução do PNC, a própria experiência partici-
de informações e indicadores voltados para pativa ganha caráter ensaístico e incremental.
o campo da cultura e o desenvolvimento de Se por um lado essa aprendizagem de prática
práticas avaliativas. democrática na gestão pública federal nes-
Apesar desses reconhecimentos como ca- sa área resulta em ampliação do espectro da
pazes de aprimorar a gestão cultural, os esfor- cidadania, há que se considerar implicações
ços de produção, sistematização e divulgação que vieram e poderão advir dessa iniciativa.
de informações sobre a cultura esbarraram em Nesse sentido, sinaliza-se como fragi-
limitações de financiamento, descontinuida- lidade técnica o número excessivo de ações
des de ações administrativas, de gestores, de sem articulação entre elas e a dificuldade de
técnicos e até mesmo de projeto do SNIIC.5 No priorizar metas, sendo estas por vezes até
PNC 2010-2020: REVISÕES NECESSÁRIAS Lia Calabre e Adélia Zimbrão 31
Referências bibliográficas
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<http://pnc.culturadigital.br/consultapublica/historico-do-pnc>. Acesso em:
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ZIMBRÃO, Adélia. Mudança do modelo de planejamento governamental e o
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ZIMBRÃO, Adélia; BEZERRA, Laura; SILVA, Lessandra. Cultura e arranjos institucionais
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Sites de referência
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9 abr. 2020.
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cultura.gov.br/>. Acesso em: 9 abr. 2020.
Notas
2 Tradução nossa de: “Como los mitos, las políticas a su vez proveen de medios
para unificar el pasado y el presente, de tal manera que otorguen coherencia,
orden y certeza a las acciones a menudo incoherentes, desorganizadas e inciertas
del gobierno” (SHORE, 2010, p. 32). Para esse autor, a antropologia pode fornecer
uma perspectiva crítica para o entendimento do modo como as políticas públicas
funcionam, pois a visão analítica de uma disciplina sobre as práticas e premissas
de outra pode gerar novas perspectivas sobre problemas antigos.
34 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
3 Na publicação feita pelo MinC, em 2012, Sérgio Mamberti afirma que são
275 ações.
O texto discute o Plano Nacional de Cultura (PNC) como um conjunto híbrido de apostas
políticas e instrumentos de política pública. O PNC movimentou metodologias, mecanismos
de ação e informações no contexto de diversas gramáticas atuacionais e, para quem o viven-
ciou, com muitos antagonismos, mas com uma ebulição criativa rara. Claras, as direções nele
enunciadas para as políticas culturais tentam evitar a lógica de descontinuidades, fragmen-
tação e descoordenação da articulação institucional. Entretanto, algumas imprecisões e im-
provisações ali presentes apenas serão solucionadas no contexto de intensas mobilizações
coletivas e discussão democrática e participativa, de forma a alcançar os ideais de uma cul-
tura política comum e solidária.
1. Contexto analítico
A
sociologia da ação pública, ape- Distrito Federal e nos municípios implica a
sar de suas inumeráveis questões produção de significados e justificativas cer-
e modelos analíticos, se interessa tamente controversos e singulares para cada
fundamentalmente pelos instrumentos da ator do campo das artes e da cultura. O valor
ação pública como parte dos processos so- das crenças, justificativas e argumentações
ciais de negociação, conflito, participação mobilizadas é o próprio fazer coletivo, que
e decisão coletiva no contexto dos antago- envolve enunciadores, destinatários, aliados
nismos políticos. Qualquer recurso à instru- e adversários e tem caráter aberto, histórico
mentação de políticas públicas tem signifi- e socialmente indexado.
cação como escolha política, como parte de O Plano Nacional de Cultura (PNC),
contextos de inteligibilidade, aceitabilidade ao lado do Sistema Nacional de Cultura
e justificabilidade. (SNC), constitucionalizou e estabeleceu
Nada nas relações e produções sociais como dever do Estado, com participação
é neutro. Escolher um plano conectando-o da sociedade, a garantia dos direitos cultu-
ao sistema, ao conselho e ao fundo nacional rais a partir de políticas públicas. O próprio
e a estruturas homólogas nos Estados, no PNC é um instrumento de política pública
PNC 2010-2020: REVISÕES NECESSÁRIAS Frederico Barbosa da Silva 37
e valores autênticos etc. opõem atores e cam- diferença é que o terreno deve ser explorado
pos políticos no quadro da elaboração e da de forma mais concreta e estratégica, geran-
instauração de planos. do informações que permitam a discussão
Nesse caso, o que é importante é a con- das opções, dos seus limites e necessidades
formação de consensos provisórios em torno de ajustamentos.
de algumas poucas ideias comuns. Embora As ideias são importantes, mas as ma-
exista a possibilidade de estabelecimento de terialidades, a qualidade das opções e os ins-
diretrizes, objetivos, metas e prazos, a razão trumentos técnicos, os esquemas de ação e
mais importante não se relaciona com a im- a filosofia de articulação das ações também.
plementação de ações específicas, mas com Analisar a ação pública por seus instrumen-
a mobilização da opinião em torno daquelas tos não é algo usual. Lascoumes e Le Galès
ideias e dos valores que elas expressam. Os definem os instrumentos de políticas públi-
efeitos de consenso criam grupos, alianças cas da seguinte forma:
e oposições relativamente inerciais. Atores
muito díspares se encontram em formula- [...] o conjunto de problemas colocados na
ções estabilizadas de política, em princípios, agenda das políticas públicas e que impli-
diretrizes, objetivos, metas etc. cam o uso de ferramentas (orçamentação,
Por outro lado, os planos podem ser técnicas, meios, operações, dispositivos,
vistos como um conjunto de instrumentos projetos) que permitem materializar e ope-
de políticas públicas. Nesse caso, ideias ge- racionalizar a ação governamental.1
rais sobre o poder e a legitimidade podem
ser deixadas de lado em benefício da reso- Em geral, leis e normas, recursos econômicos
lução de problemas singulares, de ideias e fiscais, informações e comunicações são
ajustadas a campos particulares, de inte- instrumentos, e é raro que um programa de
resses articulados em torno de questões ações públicas use apenas um instrumento
específicas e de instituições concretas. operacional. Em geral, eles são múltiplos e
Nesse sentido, mais importantes do que interdependentes.2
a adesão a ideias configuradoras de posi- Diferentes trabalhos fizeram apresen-
ções político-ideológicas gerais seriam os tações do PNC e estabeleceram reflexões
instrumentos de política acionados para com distintos objetivos e métodos. Guilher-
cada conjunto de áreas e problemas. Os me Varella (2014)3 descreve-o do ponto de
consensos e dissensos são organizados em vista jurídico; Inty Queiroz (2019)4 estabe-
torno da instrumentação de ações públicas lece os enunciados do plano na arquitetôni-
delimitadas. Diretrizes, objetivos, metas e ca da esfera político-cultural; Albino Rubim
prazos são articulados com possibilidades (2008)5 tece considerações a respeito de
concretas de ação. inconsistências teórico-conceituais; Paula
Evidentemente, também a ação pública Félix (2008)6 contextualiza-o como parte de
implica apostas, mobilização de recursos, es- estilos de governo; e não podemos deixar de
tratégias, criação de ações de viabilidade. A remeter à avaliação qualitativa das metas e
PNC 2010-2020: REVISÕES NECESSÁRIAS Frederico Barbosa da Silva 39
no campo das políticas culturais. Mais im- evidentemente, indica o papel da sociedade
portante, entretanto, é a possibilidade de com complementaridade do Estado e de suas
dotar essas políticas de uma linha estável ações para o desenvolvimento cultural, res-
de atuação na garantia de direitos culturais. peitados os valores fundamentais.
O PNC foi inscrito no artigo 215 da Consti- Na primeira década do século XXI,
tuição Federal pela Emenda Constitucional especialmente depois de 2003, apontou-se
no 48 e regulamentado pela Lei no 12.343, de repetidamente para as três dimensões da
2 de dezembro de 2010, como mecanismo de cultura que deveriam ser objeto de cuida-
articulação da União, dos estados, dos muni- dos por parte do poder público: a dimensão
cípios e da sociedade civil.12 Está previsto no simbólica, a cidadã e a econômica.
artigo 215 que: As possibilidades de planejamento con-
junto entre os níveis de governo já estavam
§ 3o A lei estabelecerá o Plano Nacional de expressas no texto constitucional, bem como
Cultura, de duração plurianual, visando ao de- os planos plurianuais já estavam informados
senvolvimento cultural do País e à integração por diretrizes organizacionais dos órgãos de
das ações do poder público planejamento, abertos às
que conduzem à: A constitucionalização possibilidades de integra-
I – defesa e valorização do PNC em dispositivo ção de ações entre as esferas
do patrimônio cultural específico fortaleceu a governamentais. Também já
brasileiro; intenção de que o pacto estavam previstos os meca-
II – produção, promoção e federativo se estendesse de nismos de participação so-
difusão de bens culturais; forma explícita ao campo cial, direito fundamental, e a
III – formação de pessoal cultural, além do fato de ter integração das ações, aspec-
qualificado para a gestão resultado de um processo to que decorre do fato de o
da cultura em suas múl- gradual, mais intenso, de Brasil se organizar na forma
tiplas dimensões; mobilização coletiva de um federalismo coopera-
IV – democratização do tivo. De qualquer maneira, a
acesso aos bens de cultura; constitucionalização do PNC em dispositivo
V – valorização da diversidade étnica e específico fortaleceu a intenção de que o pacto
regional. federativo se estendesse de forma explícita ao
campo cultural, além do fato de ter resultado
O PNC foi elaborado com ampla e ativa par- de um processo gradual, mais intenso, de mo-
ticipação da sociedade civil e assim se serviu bilização coletiva, talvez o aspecto crucial da
da escuta das demandas no campo das polí- construção do PNC, já que este envolve não
ticas culturais. Essa ampla participação se apenas instrumentos técnicos, mas a mobi-
reflete no escopo das demandas que abran- lização ampla de atores.16
gem a cultura como “sistema das artes”,13 Na verdade, a proposta do PNC confor-
“memória coletiva” e “modos de vida, sa- ma um vasto conjunto de conceitos, valores,
14
3. Universalizar o acesso • Fluxos de produção e de formação Criar condições para a formação artística
dos brasileiros à fruição de público (30 ações) e de público, bem como facilitar a
e à produção cultural • Equipamentos culturais e circulação disponibilização de meios de produção
da produção (22 ações) e difusão
Fonte: Diretrizes Gerais para o Plano Nacional de Cultura (BRASIL, 2007; 2013). Elaboração do autor.
No entanto, deve-se reconhecer que, do tem por finalidade a defesa de posições glo-
ponto de vista processual, isto é, do reconhe- bais, mas a demarcação de “complexidades
cimento do campo das políticas culturais, de no quadro de complexidades”, de tal forma a
seus objetos de ação e dos atores que ali estão poder avaliá-las de maneira empírica, a par-
se movimentando, há ganhos sensíveis, so- tir das evidências.
bretudo, em relação ao amplo arco de apoio Todos esses elementos sinalizam
e de alianças que vai se configurando para a questões simples. O sentido pragmático
mudança do padrão de comportamento do e os procedimentos político-técnicos dos
Estado em relação à cultura. Destacam-se, instrumentos situam-se no espaço da polí-
aqui, as cinco estratégias e suas respectivas tica, não podem ser naturalizados nem con-
diretrizes, pois estas permitem a visualiza- siderados neutros, pois têm consequências
ção das intenções e a apresentação do senti- nos resultados e na produção de grupos e
do geral que nutre o PNC. representações sociais (imagens, crenças e
As estratégias se desdobram em diretri- argumentações). Entretanto, mantêm exi-
zes, cada uma com um número específico de gências específicas relacionadas ao acom-
ações, enquanto os objetivos detalham um panhamento e à avaliação crítica e criteriosa
pouco a linha de ação das estratégias. De modo da qualidade e do alcance das ações e opções.
geral, estratégias, diretrizes e ações, embora Em um plano mais concreto, a análise
se repitam e sejam aparentemente fragmen- dos instrumentos permite dar outro passo.
tárias, apresentam uma visão de conjunto dos Reconhecer os limites dos instrumentos
problemas e dos desafios da área cultural. permite conceber novas configurações e
A par desse conjunto de considerações e arranjos entre eles, coordenando-os e arti-
descrições, pode-se afirmar que o PNC carrega culando-os de formas diferenciadas. O pla-
elementos constituintes: princípios, objetivos, nejamento permite a produção de esquemas
valores, metas e instrumentos de políticas. O de organização e a aplicação sequenciada de
plano pretende articular de forma sistemática instrumentos variados.
um conjunto de ações para a garantia de direi- A primeira coisa que devemos inter-
tos culturais e a realização de objetivos. Narra pretar são os sentidos dos indicadores das
um conjunto de hipóteses práticas e reúne 53 metas que compõem o PNC e o que deve-
meios para o atingimento de fins determinados riam ser. Lembremo-nos que o indicador é
politicamente, sendo sua duração de dez anos. um instrumento ou dispositivo que articula
Na verdade, a instrumentação das po- elementos representacionais, conceituais,
líticas é a concretização de teorias em ação, técnicos e, simultaneamente, explicações e
envolvendo dimensões cognitivas, hipóteses normas de ação; portanto, metas, indicadores
de ação, métodos e instrumentos. Trata-se de e argumentos estão conectados. Optamos por
uma questão política porque envolve a esco- analisar algumas poucas metas e seus indica-
lha de um regime de ação e não oblitera de dores, tanto na sua medida numérica quanto
forma alguma a política. Entretanto, também conceitualmente, ou seja, como dispositivo
não é uma racionalização a posteriori. Não técnico justificado argumentativamente.
PNC 2010-2020: REVISÕES NECESSÁRIAS Frederico Barbosa da Silva 43
público são importantes, mas não são capa- COB. É necessário, entretanto, registrar al-
zes de mudar a dinâmica dos direitos sociais guns dados e dificuldades.
do trabalho, da sua proteção e, menos ain- O primeiro é que as classificações não
da, da sua gramática própria. Também não alcançam as atividades de terreno, tanto as
atingem de forma determinante a lógica do geradas por inovações tecnológicas quanto
trabalho artístico. Dessa forma, fazemos al- as que demandam mediadores, ou seja, ações
gumas colocações rápidas sobre essas carac- de planejamento e gestão das atividades.
terísticas e nos voltamos para os indicadores Em segundo lugar, não se captam fluxos de
de mercado de trabalho. Acreditamos que a entrada e saída de trabalhadores do merca-
melhor base de cálculo para as metas é a Pes- do de trabalho medido, nas transições por
quisa de Amostra Domiciliar (Pnad-C). diferentes trabalhos e atividades, ou seja,
As fronteiras entre campos profissio- o comportamento dos agregados não tem
nais da cultura são conceitual e empirica- correspondência – e esta sempre fora nossa
mente imprecisas. Autonomia, flexibilidade suspeita – com as atividades culturais como
e criatividade foram, no contexto da regu- um todo, caracterizadas por fluxos de en-
lação das relações entre capital e trabalho trada e saída, múltiplas funções e múltiplas
e da proteção legal dos direitos sociais, ou atividades cruzadas ou mesmo simultâneas
do capitalismo organizado, negativamente dos indivíduos. Ou seja, os dados não permi-
identificadas aos negócios, às habilidades tem dimensionar fluxos de indivíduos para
práticas gerenciais, aos valores e interesses o desemprego ou para outros trabalhos nem
do capitalista. No atual contexto são, inclu- no sentido inverso. Nenhuma fonte estatís-
sive, valorizadas ideologicamente.19 tica atual permite quantificar com clareza
As artes são caracterizadas pela multi- a insubordinada dinâmica das atividades e
funcionalidade, pela flexibilidade e pela inter- carreiras culturais, suas distribuições e a
mitência. Não há dúvidas sobre ser o trabalho intermitência.20
artístico, em geral, criativo. A questão ganha Não resolveremos o problema do di-
relevância quando flexibilização e criativida- mensionamento preciso das atividades e
de se aproximam da precarização e desprote- recursos mobilizados para a dinamização
ção. Já trabalhamos em inúmeras análises a dos mercados simbólicos, considerados
respeito das dinâmicas do trabalho cultural. de maneira restrita ou ampla, ou mesmo
Em todas elas, o fato mais marcante, entre ou- abrangendo a cultura com modos de vida,
tros, é verdade, como efeitos de composição e saberes e fazeres e criatividade como um
distribuição territorial, é o grande número e todo [esta abrangendo não apenas as tecno-
participação do número de trabalhadores na logias da informação e comunicação (TICs),
cultura. Essas análises são possíveis pela posi- mas alcançando a criatividade tecnológica,
tivação estatística, sendo construídas a partir organizacional e as várias habilidades de
de sistemas de classificação padronizados; os ação no espaço social]. Difícil imaginar a
quantitativos são tomados em base fixa, isto cultura como número fechado, e a reflexão
é, nas classificações da CNAE e CBO e, agora, a seguir não tem a intenção de insinuá-lo.
PNC 2010-2020: REVISÕES NECESSÁRIAS Frederico Barbosa da Silva 45
8,0%
7,0%
6,1%
6,0%
5,0% 4,9%
4,1%
4,0% 3,6%
3,0% 2,5%
2,0%
2,0% 1,2% 1,0%
1,0%
0,0%
-0,1% -0,1% -0,1%
-0,6%-0,5% -0,6%
-0,2% -1,2% -1,6%
-0,3% -2,2%
-0,4% -3,1%
-0,5% -4,6%
-0,6%
-0,7% -6,2% Informal -6,3% Formal
-0,8%
Trimestre 1 – 2016 Trimestre 2 – 2016 Trimestre 3 – 2016 Trimestre 4 – 2016 Trimestre 1 – 2017
Trimestre 2 – 2017 Trimestre 3 – 2017 Trimestre 4 – 2017 Trimestre 1 – 2018 Trimestre 2 – 2018
elaboração de metas, mesmo que elas se 2015 e, apenas de maneira muito tímida,
apresentem em forma de um grande oti- vislumbram-se mudanças nas expectativas.
mismo e numa aposta de valorização das Pela Pnad-C,22 o número de ocupados na
políticas culturais. Com esses valores com- cultura era de 7 milhões em 2015 e caiu para 6,7
partimos: a cultura vale em si e tem efeitos milhões em 2018. A informalidade23 aumentou
de transbordamento evidentes. em 4% e o emprego formal caiu 7%. A queda
Vamos ao comportamento do mercado nos empregos formais girava em torno de 314
de trabalho pela Rais. Nossos resultados são mil. A informalidade representava 31% do mer-
muito próximos dos usados para a constru- cado de trabalho no primeiro trimestre de 2016
ção da meta do PNC. Em 2006, o número de e 35% no primeiro trimestre de 2018. O gráfico
trabalhadores formais era de 1,381 bilhão, 4% 1 mostra as variações positivas e negativas en-
do total. Em 2015, dez anos depois, o número tre os trimestres. A parte informal da cultura,
total atingia 1,761 bilhão, 28% maior do que cerca de 30% do total, é mais dinâmica, e a for-
em 2006, mas com participação de 3,8% no malização envolve não apenas investimento,
total. Nesse período, foram criados 383.600 mas uma complexa reorganização na estru-
postos de trabalho formal, sendo que entre tura das relações de trabalho, configuração de
2012 e 2015 a queda no número de empregos marcos legais no âmbito do direito do trabalho
foi significativa (179 mil empregos formais). e previdenciário, bem como nos arranjos ins-
As expectativas não eram promissoras em titucionais e nos modelos de negócio da área.
PNC 2010-2020: REVISÕES NECESSÁRIAS Frederico Barbosa da Silva 47
Decerto, o aumento dos recursos finan- percentual significaria 2,2 bilhões de reais
ceiros para uma área tão importante é não em 2018.
apenas desejável, mas condição fundamental Podemos constatar que as expectativas
para seu desenvolvimento e amadurecimen- dos formuladores das metas 51 e 52 eram
to institucional, e inclusive deve ser acompa- corretas para o orçamento até 2013; no en-
nhado com preocupações com a qualidade tanto, há dúvidas de que o aumento esperado
dos dispêndios. Assim, a simplicidade e o tenha sido baseado na configuração real da
desenho mais direto e objetivo das metas economia ou do próprio orçamento, mesmo
são uma boa técnica para conformá-las como que as tendências não tivessem sido con-
“bons” instrumentos de políticas públicas. traditadas pelas crises política, econômica
O gráfico 2 apresenta os recursos do sis- e fiscal. As metas foram uma aposta política
tema de financiamento federal desde 1995. energicamente otimista.
Todavia, a construção da meta 52 é
completamente equivocada. O percentual 4. Considerações finais
de 0,033% do PIB corresponderia a 1,6 bilhão Não podemos finalizar a reflexão a respei-
de reais, como indicado no texto, mas signi- to do PNC restringindo-nos aos aspectos
ficaria usar no denominador da meta prati- da racionalidade tecnopolítica, apesar de a
camente a base do PIB de 2012. O mesmo considerarmos crucial. Do ponto de vista da
0,0450
0,0400
0,0350
0,0300
0,0250
0,0200
0,0150
0,0100
0,0050
1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004200520062007 20082009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018
análise dos instrumentos de políticas, o PNC formação nos leva a construir disposições,
porta fragilidades que, esperamos, tenham se internalizar recursos e habilidades diferen-
tornado evidentes. Entretanto, esses não são ciadas (teorias, conceitos, métodos de pen-
os únicos usos atribuíveis aos instrumentos samento e planejamento, procedimentos de
de políticas públicas. Eles servem para fazer levantamento de informações, capacidades
outras coisas, relacionar atores, representar de testar hipóteses e dar redação a relató-
posições institucionais, mobilizar atores ex- rios); essas experiências também se rela-
ternos, criticar etc. cionam com sistemas de disposições mais
Há uma pluralidade de gramáticas e ou menos estruturados para analisar objeti-
processos de justificação das políticas, dos vamente situações, dados, informações, in-
seus objetivos e metas. Embora o repu- formantes, documentos, fontes, técnicas etc.
blicanismo, a democracia, a justiça como Assim, pode-se dizer que o PNC se con-
equidade, a crítica ao ca- figura em conjunto híbri-
pitalismo e ao mercado Do ponto de vista da análise do de apostas políticas,
sejam representações e dos instrumentos de políticas, não sendo o resultado de
valores recorrentemen- o PNC porta fragilidades que, vontades particulares
te mobilizados, talvez esperamos, tenham se tornado colocadas em contextos
outros interlocutores evidentes. Entretanto, esses não discursivos abstratos. O
ocultos fujam ao discur- são os únicos usos atribuíveis PNC movimentou meto-
so explícito e se configu- aos instrumentos de políticas dologias, instrumentos
rem em orientadores das públicas. Eles servem para de ação e informações
práticas e das decisões, fazer outras coisas, relacionar no contexto de muitas
como a consideração de atores, representar posições gramáticas atuacionais
posições de aliados pró- institucionais, mobilizar atores e, para quem o vivenciou,
ximos, de falas públicas externos, criticar etc. com muitos antagonis-
de lideranças, de adver- mos, mas com uma ebu-
sários reais e imaginários. Fazer política é lição criativa rara. De qualquer forma, como
também mobilizar, fazer alianças e oposi- toda peça política pode e deve ser objetivada,
ções. Além disso, quando se fala de arenas criticada, monitorada e discutida de forma
públicas, de espaço acessível a todos, esta- racional em seus pressupostos, mas também
mos falando de fóruns híbridos, em que a em seus objetivos e métodos. As direções para
racionalidade tecnopolítica, organizada em as políticas culturais são claras, tentam evitar
nome do bem público, é sensivelmente com- a lógica das descontinuidades, fragmentação,
plicada de ser encontrada em estado puro. descoordenação da articulação institucional.
Nem todos os atores envolvidos em po- Algumas imprecisões e improvisações ainda
líticas públicas têm os mesmos meios, isto é, marcam o PNC, mas nada como o rico processo
competências específicas, rigor intelectual de mobilização coletiva e discussão democrá-
(no sentido técnico e escolar), dado que a tica e participativa para alcançar os ideais de
estrutura de suas experiências, interesses e uma cultura política comum e solidária.
50 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Referências bibliográficas
Notas
18 SUREL, Y.; PALIER, B. Les “trois I” et l’analyse de l’État en action. Revue Française
de Science Politique, v. 55, n. 1, février 2005, p. 7-32.
2. EMERGÊNCIAS
E DESAFIOS PARA
UM NOVO PNC
HISTÓRIA E RESULTADOS DO
PLANO NACIONAL DE CULTURA
2010-2020 E O ANSEIO POR UM NOVO
E APRIMORADO PLANO
Claudinéli Moreira Ramos
E
screver sobre cultura, políticas de de política cultural enquanto tanta gente
cultura, planos de cultura e temas perdeu o emprego e muitos passam fome, e
afins na sequência de uma pande- a grave recessão instaurada compromete a
mia que instaurou estado de emergência em todos hoje e no futuro próximo e quem sabe
quase todos os países do mundo? Depois que até quando? Pois esta é exatamente a hora
um isolamento social se tornou mandatório de falar em políticas para a arte e a cultura.
em quase todas as cidades, como a princi- Tal afirmação não tem a ver com as lei-
pal medida de prevenção, portanto de segu- turas mais totalizadoras e generalizantes do
rança e sobrevivência, gerando efeitos sem conceito de cultura – que, numa frase, envolve
precedentes nos relacionamentos interpes- toda a produção e interação humana –, no sen-
soais e na economia das nações e alterando tido de pensar em ações culturais em todas as
a paisagem do mundo contemporâneo? Sim, áreas ou de analisar a característica cultural
isso pode parecer sem sentido num primei- de cada ação. Não que isso não tenha sua im-
ro momento. Falar de cultura quando tan- portância, mas o momento pede mais do que
tos milhares de pessoas morreram? Falar elucubrações sobre como as coisas poderiam
56 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
ser se tudo fosse diferente. Pensando numa raramente nos debruçamos em esmiuçá-la,
mirada mais pragmática e, simultaneamente, voltando esforços para transformar suas li-
mais estratégica, a perspectiva aqui proposta é ções em aprendizado e mudança planejada
a de reconhecer nas políticas públicas de cul- e posta em prática colaborativamente. Este
tura, a começar das já existentes, o potencial texto é uma tentativa nessa direção.
de contribuição para lidar com a penosa situa-
ção atual e, sobretudo, para nos organizarmos Histórico do PNC 2010-2020
melhor para o porvir de cada era, com suas e o desafio de cumprir o planejado
previsões e imprevistos, suas oportunidades e avaliar os resultados
e alegrias, dramas e dificuldades. Ainda em 2019, quando ninguém sonhava
Nestes tempos de coronavírus, é impor- que esse ano dataria a doença causada pelo
tante observar que essa hipótese incomum vírus em forma de coroa que seria conhe-
para a grande maioria dos brasileiros ganha cido pela sigla em inglês covid-2019 (de
cada vez mais adeptos entre médicos e pro- coronavirus disease 2019), o qual mudaria
fissionais das mais diversas especialidades o rumo do mundo em 2020, começamos a
do corpo e da mente, bem como das áreas idealizar um número da Revista Observa-
de segurança pública e tório que pudesse proble-
educação, e dialoga com a Falar de cultura quando tantos matizar a finalização do
necessidade de haver um milhares de pessoas morreram? ciclo decenal de um plano
repensar da formação Falar de política cultural nacional de cultura brasi-
do ser humano, do nosso enquanto tanta gente perdeu o leiro, o PNC 2010-2020.
impacto no planeta e das emprego e muitos passam fome, Tal como aconteceu
formas como as pessoas e a grave recessão instaurada em diversos outros paí-
se relacionam na condi- compromete a todos hoje e no ses, também no Brasil a
ção de indivíduos, grupos, futuro próximo e quem sabe até discussão sobre cultura
corporações e nações. quando? Pois esta é exatamente como política pública teve
A provocação aqui a hora de falar em políticas para impulso no século XX,
proposta, pois, envolve a arte e a cultura especialmente a partir da
perguntar: de que ma- Segunda Guerra Mundial.
neira a política cultural pode se tornar uma Mas as especificidades da nossa história não
ferramenta de enfrentamento da crise e uma contribuíram para que a pauta cultural fosse
alternativa de planejamento do futuro? Gi- elevada ao patamar das políticas estratégicas
rando a roda da história, a resposta buscada nem mesmo fosse considerada das pautas
passa por um questionamento sobre como mais relevantes para o desenvolvimento do
estava o mundo até aqui, pela reflexão acerca país, em termos de investimento e prioriza-
do momento em que estamos e pelo compar- ção. Antes o contrário. Mesmo quando os
tilhamento de visões a respeito de para onde discursos oficiais passaram a incluir temas
queremos ir. Essa é a velha fórmula, conhe- ligados às artes e à cultura, o que se forta-
cida por todos. Clichê, até. O problema é que leceu pelo menos desde a vinda da corte
EMERGÊNCIAS E DESAFIOS PARA UM NOVO PNC Claudinéli Moreira Ramos 57
portuguesa em 1808, com várias ações sig- apropriação da cultura popular como repre-
nificativas em termos de políticas oficiais sentação de uma nação unificada.1
realizadas desde então, essa pauta foi aces- Práticas de censura a produções cul-
sória e ornamental. turais consideradas de oposição ao governo
Isso começaria a mudar um pouco nos ou prejudiciais à “cultura nacional” e ao sa-
anos 1930, sob influência da Revolução de neamento moral e ético da sociedade, asso-
1930, com a criação de órgãos nacionais da ciadas ao investimento em infraestrutura
radiodifusão educativa, do cinema educati- de telecomunicações e ao favorecimento
vo, do patrimônio histórico, do teatro e do da consolidação da indústria cultural no
livro, além da incorporação de instituições país, foram marcas da política cultural da
remanescentes do império, como a Bibliote- ditadura militar, no bojo das políticas de
ca Nacional, o Museu Histórico Nacional e integração e segurança nacional alinhadas
o Museu Nacional de Belas Artes, e também a estratégias de modernização. Esse alinha-
da criação do Conselho Nacional de Cultura. mento também levou à criação de órgãos go-
E mudaria mais na ditadura militar, iniciada vernamentais voltados para o planejamento
em 1964, com a criação do Conselho Federal e a implementação da política cultural ofi-
de Cultura (1966), e especialmente a partir cial, o que fortaleceu o controle estatal sobre
de 1975, com a Política Nacional de Cultura, a produção e a circulação de bens culturais,
implantada no bojo do segundo Plano Na- reforçando uma centralização caracterís-
cional de Desenvolvimento, com o objetivo tica dos governos autoritários.2 Ao mesmo
geral de “apoiar e incentivar as iniciativas tempo que reconhecia e dava visibilidade
culturais de indivíduos e grupos e zelar pelo ao campo cultural, a ditadura militar criava
patrimônio cultural da Nação, sem interven- mecanismos para controlá-lo ou, no míni-
ção do Estado, para dirigir a cultura” (BRA- mo, circunscrevê-lo.
SIL, 1975, p. 5). A Política Nacional definia As ações fragmentadas e as experimen-
cultura brasileira como sendo “aquela cria- tações locais e regionais que marcaram os
da, ou resultante da aculturação, partilha- períodos anteriores na área de artes e cultura
da e difundida pela comunidade nacional” eram, assim, substituídas pelo novo direciona-
(BRASIL, 1975, p. 16) e indicava o que seria a mento dado pelo governo autoritário, consoli-
política de cultura, os fundamentos legais da dando uma política cultural nacional. Por sua
atuação do governo nesse campo, especial- vez, zeloso de melhorar sua imagem enquanto
mente do Ministério de Educação e Cultu- dava início aos preparativos para conduzir a
ra, especificando os objetivos, componentes, abertura democrática, o governo ditatorial
ideias, programas e as formas de ação dessa criou e reorganizou órgãos (como a Funarte, a
política. Sob a defesa do engrandecimento Embrafilme e o Serviço Nacional de Teatro) e
do homem brasileiro, esse documento atua- conselhos (como o Conselho Nacional de Cine-
va na suavização ou mesmo no ocultamento ma e o Conselho Nacional de Direito Autoral),
das desigualdades sociais, e numa constru- que estabeleceram as bases do que viria a ser, a
ção da personalidade nacional a partir da partir de 1985, o Ministério da Cultura (MinC).
58 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
nas fases de tramitação, o texto entrou e saiu Ainda em 2005, foram oficialmente
de discussão diversas vezes, com adiamen- estabelecidas instâncias consultivas do
tos por motivações variadas, sem que fosse CNPC, as chamadas Câmaras Setoriais, dos
apresentada nenhuma alteração da redação segmentos de artes visuais, circo, dança, li-
original, que acabou sendo aprovada como vro e literatura, música e teatro, no intuito
Emenda Constitucional no 48. de ampliar os canais de diálogo entre o poder
A eleição do presidente Luiz Inácio público e representantes dos campos artís-
Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, ticos na elaboração de políticas setoriais e
em 2002 trouxe especial estímulo à pauta transversais de cultura. A atuação sistemáti-
cultural nesse cenário, com um amplo con- ca dessas câmaras trouxe o segundo conjunto
junto de medidas e discussões públicas. En- de subsídios para a elaboração do PNC.
tre elas, paralelamente ao trânsito da PEC No mesmo ano, entre setembro e de-
no Congresso, o MinC realizou em 2003 o zembro, mais de 400 encontros municipais,
Seminário Cultura para intermunicipais, estaduais e
Todos, com 20 encontros Por sua vez, apesar setoriais somados a uma ple-
por todo o país, que reuni- de a discussão de um nária nacional conformaram
ram produtores, artistas, plano nacional estar em a I Conferência Nacional de
empresários, gestores e andamento, uma nova Cultura [CNC (http://cnpc.
interessados em debater proposta de emenda cultura.gov.br/wp-content/
as políticas e o modelo de constitucional foi lançada uploads/sites/3/2017/03/
financiamento da cultura. para instituir o Sistema ANAIS-I-CNC_1%C2%AA
Os registros desses eventos Nacional de Cultura -PARTE.pdf )], outro com-
compuseram os primeiros ponente previsto na PEC do
subsídios para o PNC. SNC, mobilizando nesse período mais de 60 mil
Por sua vez, apesar de a discussão de pessoas, incluindo gestores de cerca de 1.200
um plano nacional estar em andamento, uma municípios, de 19 estados e do Distrito Federal,
nova proposta de emenda constitucional foi segundo dados do Ministério da Cultura.
lançada para instituir o Sistema Nacional de A transcrição dos resultados dessa con-
Cultura, do qual o PNC seria um dos pilares. ferência deu origem à primeira proposta de
Assim, a PEC no 416 foi apresentada pelo de- PNC, apresentada pelos deputados federais
putado Paulo Pimenta (PT/RS) em junho de Gilmar Machado (PT/MG), Paulo Rubem
2005. Logo depois, em 24 de agosto do mes- Santiago (na época PT, atualmente PDT/PE) e
mo ano, o Decreto Federal no 5.520/2005 vi- Iara Bernardi (PT/SP), sob a forma do Projeto
ria a instituir o Sistema Federal de Cultura de Lei no 6.835, em março de 2006. Na sequên-
(SFC) e determinar a composição e o fun- cia, o Ministério da Cultura iniciou a elabora-
cionamento do Conselho Nacional de Polí- ção das diretrizes gerais do PNC, com base em
tica Cultural (CNPC), outro pilar previsto diversos materiais (propostas das Câmaras
na proposta de implementação do Sistema Setoriais, relatórios da primeira CNC, relató-
Nacional de Cultura. rios de seminários, documentos do ministério,
60 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
articulação com os demais sistemas nacio- não prosperaram. O último tramitou por três
nais ou políticas setoriais de governo. anos apenas na Câmara dos Deputados, sen-
A III Conferência Nacional de Cultu- do arquivado em 31 de janeiro de 2019, com
ra foi realizada entre 26 e 29 de novembro base no dispositivo que permite o arquiva-
de 2013 (http://cnpc.cultura.gov.br/iii- mento de proposições da legislatura anterior
conferencia-nacional-de-cultura/), após que estejam em tramitação nos termos do
1.794 conferências municipais, intermunici- artigo 105 do Regimento Interno da Câmara
pais, territoriais, regionais, estaduais e livres, dos Deputados.
que envolveram 2.991 municípios e mais de Ainda assim, pelo menos 15 estados,
450 mil pessoas, segundo o Ministério da além do Distrito Federal, e mais de 600 mu-
Cultura. Com o tema “Uma política de Esta- nicípios criaram seus respectivos sistemas
do para a cultura: desafios do Sistema Nacio- de cultura por meio de leis próprias,3 avan-
nal de Cultura”, a III CNC reuniu em Brasília çando também na criação de seus planos
1.745 pessoas, entre delegados, convidados, estaduais, distrital e municipais de cultura.
observadores e profissionais (imprensa, ex- Certamente, além da militância de
positores e pessoal de organização e apoio), contingentes de base dos setores culturais,
com o objetivo de promover a participação o sucesso do arcabouço legal criado pelo ex-
social na reflexão, no diálogo e na construção tinto Ministério da Cultura para estados e
de prioridades públicas acerca das diretrizes e municípios teve bastante relação com a de-
estratégias para a implementação do sistema fesa institucional feita pelo MinC, associada
e do alcance e revisão das metas do PNC, va- à promessa de recursos, prevista nos meca-
lendo observar que a Lei do Plano previa essa nismos constitucionais de financiamento do
revisão periodicamente, sendo que a primeira SNC. Entretanto, a falta de regulamentação
deveria ocorrer em quatro anos, para atuali- da lei federal fez com que a articulação entre
zação e aperfeiçoamento de suas diretrizes e os vários sistemas federativos acabasse não
metas. Sessenta e quatro proposições resulta- ocorrendo, o que enfraqueceu a defesa desses
ram da III Conferência Nacional, entre elas 20 sistemas locais.
priorizações indicadas para a revisão do PNC. Em que pese o cenário de retrocesso, o
Apesar do texto constitucional e das assunto nunca foi completamente esquecido,
mobilizações subsequentes, a implantação como demonstram a tentativa de retomada
do SNC acabou não sendo efetivada na prá- do PL de 2016 como Projeto de Lei no 1.801,
tica, porque a lei regulamentadora nunca foi de 27 de março de 2019, feita pelo deputado
sancionada. Com efeito, tanto o Projeto de federal Luiz Lima (PSL/RJ), e a tentativa
Lei Complementar no 338, de 3 de outubro de de retomada do PL de 2013 como Projeto
2013, de autoria do deputado Paulo Rubem de Lei no 1.971, de 2 de abril de 2019, feita
Santiago (PDT/PE), como o Projeto de Lei no pelo deputado Chico D’Angelo (PDT/RJ).
4.271, apresentado em 2 de fevereiro de 2016, Ainda assim, a perspectiva de estruturação
pelo deputado João Derly (Rede/RS), para da Política Nacional de Cultura por meio do
regulamentar o Sistema Nacional de Cultura, SNC parecia cada vez mais distante, dada a
EMERGÊNCIAS E DESAFIOS PARA UM NOVO PNC Claudinéli Moreira Ramos 63
estímulo à construção de políticas locais Os dados foram revisados pela última vez em
de cultura, passo decisivo para um plano outubro de 2020, momento em que ainda não
nacional construído como compromisso de tinham sido disponibilizados nas platafor-
todos os agentes e de todos os entes fede- mas oficiais dados consolidados de 2019
rados. Sob esse prisma, as falhas e a falta correspondentes às metas do PNC, à exceção
de coordenação federal não impediram que daqueles referentes às áreas de audiovisual
esforços fossem canalizados para que al- e leitura.
gumas importantes realizações previstas De acordo com este levantamento, o
prosperassem. PNC 2010-2020 teve execução parcial ou to-
tal de 45% de suas metas. Foram consideradas
Avaliação das 53 metas do Plano cumpridas as 8 metas (15% do total) que até
Nacional de Cultura 2010-2020 2018 alcançaram 90% ou mais dos resulta-
Entre dificuldades, avanços e retrocessos, o dos previstos para 2020 (metas: 3, 10, 18, 21,
primeiro Plano Nacional de Cultura brasilei- 22, 31, 32 e 48); 16 metas foram consideradas
ro completou dez anos. O quadro a seguir é parcialmente cumpridas (30% do total), por-
uma tentativa de contribuir para uma visão que até 2018 alcançaram entre 50% e 89% dos
mais global do que foi essa experiência, a par- resultados previstos para 2020 (metas: 2, 7, 9,
tir da consolidação dos dados disponíveis, 12, 16, 19, 20, 27, 28, 36, 37, 38, 43, 44, 49 e 53);
numa sistematização que procura mostrar, 29 metas foram consideradas não cumpridas
de maneira objetiva e de fácil compreensão, (55% do total), porque até 2018 não alcança-
um panorama quantitativo da situação das ram nem 50% dos resultados previstos para
53 metas do Plano Nacional de Cultura, se- 2020, sendo 16 metas com execução entre 11%
gundo fontes oficiais, no ano de seu encer- e 49% (metas: 1, 13, 23, 24, 25, 26, 30, 33, 34, 35,
ramento. Essa elaboração foi feita a partir 40, 41, 45, 47, 51 e 52) e 13 metas com execução
dos relatórios anuais de acompanhamento e entre zero e 10% (metas: 4, 5, 6, 8, 11, 14, 15, 17,
demais informações obtidas em portais fede- 29, 39, 42, 46 e 50).
rais e outras fontes indicadas na bibliografia.
META 3: Cartografia da diversidade das expressões culturais realizada em todo o território brasileiro
Previsto: Produzir um mapa das expressões culturais Realizado: Em 2017, 5.434 municípios possuíam infor-
e linguagens artísticas de todo o Brasil, com dados de, mações no SNIIC (97,5% do total e 139% da meta). O
pelo menos, 70% dos municípios (3.899 municípios). portal PNC relata falta de informações que pudessem ser
validadas sobre 2018. É necessário salientar que o SNIIC/
Mapas apresenta incorreções e duplicidades, carecendo
ser revisto e aperfeiçoado.
68 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
META 10: Aumento em 15% do impacto dos aspectos culturais na média nacional de competitividade
dos destinos turísticos brasileiros
Previsto: Aumentar o peso dos aspectos culturais no Realizado: Em maio de 2019, o Ministério do Turismo
desenvolvimento do turismo, medidos no Índice de informou que o índice “foi descontinuado em 2015, pela
Competitividade do Turismo Nacional, do Ministério do gestão da época”. A nota em 2015 foi 64 (14% de au-
Turismo, em relação à nota de 2010 (que foi de 55,9). mento, ou 93% da meta de 64,3). A meta foi considerada
cumprida em 2015 e o MinC repetiu o percentual de 14%
de 2016 a 2018, mas não é possível saber se o cenário
efetivamente se manteve.
META 18: Aumento em 100% no total de pessoas qualificadas anualmente em cursos, oficinas, fóruns e seminários
com conteúdo de gestão cultural, linguagens artísticas, patrimônio cultural e demais áreas da cultura
Previsto: Dobrar o número de pessoas qualificadas em Realizado: Em 2018, foram capacitadas 47.233
cursos, oficinas, fóruns e seminários na área cultural, con- pessoas (159% da meta prevista para 2020, de 36.408
siderando o total de 18.204 pessoas capacitadas em 2010. pessoas capacitadas).
META 21: 150 filmes brasileiros de longa metragem lançados ao ano em salas de cinema
Previsto: Aumentar o número de filmes de longa metra- Realizado: Foram lançados 160 filmes brasileiros de lon-
gem brasileiros no circuito comercial de cinema. ga metragem no circuito comercial de cinema em 2017
(107%), 183 em 2018 (122%) e 167 em 2019 (111%).
META 22: Aumento em 30% no número de municípios brasileiros com grupos em atividade nas áreas de teatro,
dança, circo, música, artes visuais, literatura e artesanato
Previsto: Ter 30% mais cidades com grupos e coletivos Realizado: Com base na pesquisa 2014-2015, a meta foi
artísticos locais nas áreas citadas em relação ao número superada em 100% ou mais nas áreas de circo, orquestras
total de municípios, com base na pesquisa Munic/IBGE. e associações literárias e atingiu pelo menos 91% nas
áreas de dança, conjuntos musicais e artesanato. Nas
áreas de teatro e artes visuais, até 2015 foram cumpridos
45% e 38%, respectivamente. A média dos indicadores
informada pelo MinC foi de 96% de percentual de alcan-
ce da meta em 2015 em relação ao previsto para 2020.
Não há dados posteriores.
META 31: Municípios brasileiros com algum tipo de instituição ou equipamento cultural, entre museu,
teatro ou sala de espetáculo, arquivo público ou centro de documentação, cinema e centro cultural
Previsto: Aumentar o número de cidades com espaços Realizado: Em 2018, o percentual de municípios com os
culturais, considerando o número de equipamentos equipamentos previstos (1.741 em 2020) foi atingido em
culturais mínimos, conforme a faixa populacional 100% ou mais, em todas as faixas populacionais, segundo
(entre pelo menos um e pelo menos quatro tipos de a pesquisa Munic/IBGE 2018, que levantou 2.956 municí-
espaços culturais). pios adequados à meta.
META 32: 100% dos municípios brasileiros com ao menos uma biblioteca pública em funcionamento
Previsto: Ter pelo menos uma biblioteca pública ativa em Realizado: Em 2018, o desempenho da meta foi de 99%
cada uma das 5.570 cidades brasileiras. do planejado para o ano. Na média dos indicadores, hou-
ve um alcance de 98% da meta de municípios prevista
para 2020, considerando 5.458 municípios com 6.057
bibliotecas públicas em funcionamento em 2018.
EMERGÊNCIAS E DESAFIOS PARA UM NOVO PNC Claudinéli Moreira Ramos 69
META 48: Plataforma de governança colaborativa implementada como instrumento de participação social
com 100 mil usuários cadastrados, observada a distribuição da população nas macrorregiões do país
Previsto: Ter uma plataforma na internet que permita o Realizado: O percentual de alcance da meta prevista
acompanhamento das políticas culturais por parte de, no para 2020 foi de 95% até 2017, considerando 95.051
mínimo, 100 mil usuários de diferentes regiões do país. usuários cadastrados em quatro “plataformas de
governanças colaborativas”**, observada a distribuição
populacional pelas cinco macrorregiões do país até 2017.
Não há dados posteriores.
*Foram consideradas cumpridas as metas que atingiram 90% ou mais dos resultados previstos para 2020.
**São elas: http://pnc.culturadigital.br/; http://culturadigital.br/; http://sniic.cultura.gov.br/ e http://cultura.gov.br/votacultura.
META 2: 100% das unidades da federação (UFs) e 60% dos municípios com dados atualizados no SNIIC
Previsto: Obter e divulgar informações atualizadas sobre Parcialmente realizado: 24 estados e o Distrito Federal
a área cultural de 26 estados e do Distrito Federal e so- (93%) e 493 municípios (9% do total e 15% da meta)
bre a área cultural de 3.342 municípios (60% de 5.570). atualizaram informações no SNIIC até 2017. Na média
dos indicadores, o alcance da meta prevista para 2020
foi de 54%. O portal PNC relata falta de informações que
pudessem ser validadas sobre 2018.
META 7: 100% dos segmentos culturais com cadeias produtivas da economia criativa mapeadas
Previsto: Mapear as cadeias produtivas dos seis seg- Parcialmente realizado: O portal PNC relata mapeamen-
mentos da economia criativa definidos pela Unesco: tos de cinco cadeias produtivas (83%): música (2005);
patrimônio natural e cultural; espetáculos e celebrações; economia do Carnaval (2009); jogos digitais (2014);
artes visuais e artesanato; livros e periódicos; audiovisual inserção do design nos eventos Copa do Mundo 2014
e mídias interativas; e design e serviços criativos. e Olimpíadas 2016 (2012); e museus (2014). A meta foi
considerada cumprida em 50%, porque as cadeias de mú-
sica e Carnaval citadas foram mapeadas antes do início da
vigência do PNC (2005 e 2009).
Previsto: Desenvolver ao menos 300 projetos de apoio à Parcialmente realizado: Considerando que a meta é glo-
sustentabilidade econômica da produção cultural local. bal, até 2018 foram beneficiados 257 projetos de apoio à
sustentabilidade econômica (86%), embora nenhum em
2017 e apenas 3 em 2018.
META 12: 100% das escolas públicas de educação básica com a disciplina de arte no currículo escolar
regular com ênfase em cultura brasileira, linguagens artísticas e patrimônio cultural
Previsto: Ter a disciplina de arte em todas as escolas Parcialmente realizado: Em 2018, das 141.298 escolas pú-
públicas de ensino básico do país (100%). blicas de educação básica do país, 109.689 ministravam a
disciplina de arte (78%), segundo os dados do Ministério
da Educação (MEC).
70 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
META 16: Aumento em 200% de vagas de graduação e pós-graduação nas áreas do conhecimento relacionadas
às linguagens artísticas, ao patrimônio cultural e às demais áreas da cultura, com aumento proporcional
do número de bolsas
Previsto: Triplicar as vagas de graduação e pós-gradua- Parcialmente realizado: Em relação a 2010, houve
ção nas áreas de arte e cultura em relação à quantidade aumento de 173% no número de vagas de graduação
existente em 2010. (86,5% da meta) e de 46% de matrículas na pós-gradua-
ção (23% da meta). Na média dos indicadores, segundo
o Relatório Anual 2018, a meta foi 53% cumprida.
META 19: Aumento em 100% no total de pessoas beneficiadas anualmente por ações de fomento a pesquisa,
formação, produção e difusão do conhecimento
Previsto: Dobrar o número de pessoas que recebem Parcialmente realizado: O número de beneficiados
apoio para pesquisa, acadêmica ou de linguagem, aumentou até 2015, tendo superado a meta prevista em
nas áreas da cultura, de 481 pessoas (em 2010) para 2012 e 2015. Houve um decréscimo a partir de 2016. Em
962 (em 2020). relação a 2010, os dados de 2017 sofreram uma queda de
19%; e os dados de 2018, uma queda de 36% (apenas 307
pessoas beneficiadas). Porém, no período de 2011 a 2018,
a média anual foi de 757 pessoas beneficiadas (78,7% da
meta), dado relevante no decênio.
META 20: Média de quatro livros lidos fora do aprendizado formal por ano, por cada brasileiro
Previsto: Aumentar o número de livros lidos fora da Parcialmente realizado: Citando a 4a Pesquisa Retratos
escola por ano, por cada brasileiro com 5 anos ou mais, da Leitura no Brasil (2015), o portal PNC informa que o
de 1,3 livro (2010) para 4 (2020). número de livros lidos fora da escola, nos últimos 12 me-
ses, por brasileiro acima de 5 anos foi de 2,88 livros (72%
da meta). A 5a Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil,
publicada em 2020, mostrou que esse índice baixou para
2,73 em 2019 (68% da meta).
META 27: 27% de participação dos filmes brasileiros na quantidade de bilhetes vendidos nas salas de cinema
Previsto: Aumentar a venda de ingressos de filmes com Parcialmente realizado: O portal PNC indica que, dos
produção ou coprodução brasileira em salas comerciais 181,2 milhões de ingressos vendidos nos cinemas do
de cinema para 27% do total de ingressos vendidos. país em 2017, 9,6% foram para filmes brasileiros (35% da
meta). Segundo a Agência Nacional do Cinema (Ancine),
dos 163,4 milhões de ingressos vendidos em 2018, 14,8%
foram para filmes brasileiros (55% da meta) e, dos 176,4
milhões de ingressos vendidos em 2019, 13,7% foram
para filmes brasileiros (51% da meta).
META 28: Aumento em 60% do número de pessoas que frequentam museu, centro cultural, cinema, espetáculos
de teatro, circo, dança e música
Previsto: Aumentar o número de pessoas que vão a mu- Parcialmente realizado: A média dos resultados
seus, centros culturais, cinemas e espetáculos artísticos para cada prática cultural indicou 84% de alcance
em relação à situação de 2010. da meta prevista para 2020 em 2013 (última pesquisa
Ipea indicada).
EMERGÊNCIAS E DESAFIOS PARA UM NOVO PNC Claudinéli Moreira Ramos 71
META 36: Gestores de cultura e conselheiros capacitados em cursos promovidos ou certificados pelo Ministério
da Cultura em 100% das unidades da federação e 30% dos municípios, entre os quais 100% dos que possuem
mais de 100 mil habitantes
Previsto: Formar gestores e conselheiros em 26 estados Parcialmente realizado: Segundo o portal PNC, em
e no Distrito Federal (100%), em 100% dos municípios média, houve alcance de 85% da meta prevista para
com mais de 100 mil habitantes e em 30% dos municí- 2020, considerando que foram capacitados gestores e
pios com menos de 100 mil habitantes. conselheiros em 26 estados e no Distrito Federal (100%),
209 municípios com mais de 100 mil habitantes (70%) e
1.419 municípios com menos de 100 mil habitantes (85%).
META 37: 100% das unidades da federação e 20% dos municípios, sendo 100% das capitais e
100% dos municípios com mais de 500 mil habitantes, com secretarias de Cultura exclusivas instaladas
Previsto: Ter secretaria de Cultura exclusiva em todas as Parcialmente realizado: Em 2018 houve alcance de 64%
UFs e em 1.113 municípios. da meta prevista para 2020 na média dos indicadores,
considerando existência de secretaria de Cultura exclu-
siva em 20 estados/Distrito Federal (74%), 11 capitais
(42%), 13 municípios com mais de 500 mil habitantes
(33%) e 787 dos demais municípios (75% da meta). Com
base nas pesquisas Munic e Estadic/IBGE, em 2018 houve
diminuição do total de estados e municípios com secreta-
ria de Cultura exclusiva.
META 38: Instituição pública federal de promoção e regulação de direitos autorais implantada
Previsto: Criar uma instituição pública federal para regu- Parcialmente realizado: 50% da meta: o instituto previs-
lar, mediar, promover e registrar os direitos autorais. to não foi criado, porém foi criada no MinC a Secretaria
de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual – atual-
mente vinculada ao Ministério do Turismo –, responsável
pela elaboração de políticas públicas e regulatórias em
matéria de direitos autorais, porém sem a autonomia e a
independência necessárias, segundo o portal PNC.
META 43: 100% das unidades da federação com um núcleo de produção digital audiovisual e um núcleo de arte,
tecnologia e inovação
META 44: Participação da produção audiovisual independente brasileira na programação dos canais de televisão
Previsto: Aumentar a exibição de produções audiovisuais Parcialmente realizado: Na média dos indicadores de
independentes nacionais nos canais de TV aberta e por 2017, último ano com dados reais disponíveis, houve um
assinatura, chegando a 25% nos canais de TV aberta e a alcance de 75,5% da meta para 2020 (com 20,46% de
20% nos canais de TV por assinatura. participação da produção nacional independente nos
canais de TV aberta e 13,84% nos de TV paga).
72 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
META 49: Conferências Nacionais de Cultura realizadas em 2013 e 2017, com ampla participação social
e envolvimento de 100% das unidades da federação e 100% dos municípios que aderiram ao
Sistema Nacional de Cultura
Previsto: Garantir a participação da sociedade na Parcialmente realizado: A III CNC ocorreu em 2013, com
elaboração e avaliação das políticas públicas de cultura, a realização de conferências estaduais por 100% das
com amplo envolvimento dos estados e das cidades nas UFs e municipais por 77% (1.432) dos 1.866 municípios
Conferências Nacionais de Cultura de 2013 e 2017. integrantes do SNC. A IV CNC, prevista para 2017, não
foi realizada, porém 3 estados e 22 municípios fizeram
conferências estaduais e municipais. O alcance da meta
foi de 50%.
META 53: 4,5% de participação do setor cultural brasileiro no Produto Interno Bruto (PIB)
Previsto: Aumentar de 2,46% para 4,5% a participação Parcialmente realizado: Crescendo apenas 6% em rela-
do setor cultural no PIB brasileiro (aumento de 83%). ção a 2010, a participação do PIB Criativo produzido no
Brasil em 2017 foi de 2,61% do PIB (58% da meta).
*Foram consideradas parcialmente cumpridas as metas que atingiram entre 50% e 89% dos resultados previstos para 2020.
META 1: Sistema Nacional de Cultura institucionalizado e implementado, com 100% das unidades da federação
e 60% dos municípios com sistemas de cultura institucionalizados e implementados
Previsto: Regulamentar o SNC por lei e ter sistemas de Não realizado: O Relatório Anual 2018 indica média de
cultura com conselho, plano e fundo em todos os 26 63% de cumprimento da meta, porém o SNC não foi
estados e no Distrito Federal (100%) e em 3.342 cidades regulamentado por lei. De acordo com o portal SNC, 26
do Brasil (60%). estados e o Distrito Federal (100%) e 2.709 municípios
(48,6% do total e 81% da meta) firmaram acordos de
cooperação relativos ao SNC até outubro de 2020. O
portal PNC mostra que, até 2018, apenas 17 estados/Dis-
trito Federal instituíram seus sistemas por leis próprias
(63% da meta), e só 11 criaram por lei conselho, plano e
fundo (41% da meta). Entre os municípios, apenas 512
(15% da meta) criaram seus sistemas por lei, e 128 (4% da
meta) instituíram por lei conselho, plano e fundo.
META 4: Política nacional de proteção e valorização dos conhecimentos e expressões das culturas populares
e tradicionais implantada
Previsto: Ter leis que valorizem e protejam as culturas Não realizado: As duas principais leis identificadas para
populares e tradicionais. essa meta não foram aprovadas ainda (PL no 1.786/2011,
que institui a Política Nacional Griô, apensado em 2013
ao PL no 1.176/2011, que institui o Programa de Proteção e
Promoção dos Mestres e Mestras dos Saberes e Fazeres
das Culturas Populares). Após arquivamentos e desarqui-
vamentos, a matéria permanece em trâmite na Comissão
de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC),
da Câmara dos Deputados (última ação realizada
em 4 de junho de 2019).
EMERGÊNCIAS E DESAFIOS PARA UM NOVO PNC Claudinéli Moreira Ramos 73
META 5: Sistema Nacional de Patrimônio Cultural (SNPC) implantado, com 100% das unidades da federação
e 60% dos municípios com legislação e política de patrimônio aprovadas
Previsto: Implantar o SNPC; ter leis e políticas de Não realizado: Embora 25 estados/Distrito Federal
patrimônio cultural aprovadas nos 26 estados, no (96%) e 1.768 municípios (32% do total e 53% da meta)
Distrito Federal (100%) e em 3.342 municípios (60%), tenham legislação de patrimônio aprovada, o SNPC
com coordenação das ações pelo SNPC e sistema de não foi implantado, e não há informações das políticas
financiamento. de patrimônio de estados e municípios nem coorde-
nação entre elas, tampouco sistema de financiamento
correspondente.
META 6: 50% dos povos e comunidades tradicionais e grupos de culturas populares que estiverem cadastrados
no Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC) atendidos por ações de promoção
da diversidade cultural
Previsto: Garantir que um número maior de povos Não realizado: Em 2018, não foi possível aferir o desem-
e comunidades tradicionais e de grupos de culturas penho da meta de atendimento a cadastrados no SNIIC.
populares seja atendido por ações públicas de promoção Em 2017, dos 1.268 povos, comunidades e grupos cadas-
da diversidade cultural, considerando a existência de 26 trados no SNIIC, 76 foram atendidos (2%). O percentual
povos e comunidades tradicionais com 4,5 milhões de de alcance da meta prevista para 2020 considerando
famílias e a existência de grupos populares em todo o a média de todos os anos foi 4%. O portal PNC informa
país, sem quantificação ou mapeamento-base. que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan) não consegue mensurar a quantidade
de povos e grupos atendidos pela política de salvaguarda
do patrimônio imaterial e, por isso, tais dados não
foram considerados.
Previsto: Reconhecer 110 territórios com requisitos Não realizado: Nenhum território criativo foi reconheci-
que os qualifiquem como criativos, por meio de uma do, o selo previsto não foi criado e não foram realizadas
chancela (selo). atividades que contribuíssem para a meta.
Previsto: Criar 1.453.060 empregos formais a mais no Não realizado: Em 2018, foi registrada a existência de
setor cultural, de acordo com dados da Relação Anual de 1.520.418 empregos formais no setor cultural (apenas
Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho e 5% da meta prevista e 1% a menos do que em 2010).
Emprego (de 1.529.535 empregos formais em 2010 para Em lugar de crescer em mais 1,4 milhão de empregados
2.982.595 em 2020). formais, o setor cultural perdeu 9.117 empregos formais
em 2018 em relação a 2010.
META 13: 20 mil professores de arte de escolas públicas com formação continuada
Previsto: Proporcionar aperfeiçoamento profissional Não realizado: Foram atendidos 3.700 professores
a 20 mil professores que possuam licenciatura em artes em 2015 e 98 em 2016 (totalizando 19% da meta).
e que atuem no ensino médio em escolas públicas. Não houve registro de atendimento nos demais anos.
74 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
META 14: 100 mil escolas públicas de educação básica desenvolvendo permanentemente atividades
de arte e cultura
Previsto: Oferecer atividades de arte e cultura em 100 Não realizado: Em 2014 foram beneficiadas 5.069 esco-
mil escolas públicas de ensino básico em horário com- las pelo edital Mais Cultura nas Escolas de 2013 (5% da
plementar ao turno escolar, por meio do programa Mais meta). Sem dados posteriores.
Cultura nas Escolas.
META 15: Aumento em 150% de cursos técnicos, habilitados pelo Ministério da Educação,
no campo da arte e cultura, com proporcional aumento de vagas
Previsto: Ter 1.047 novos cursos técnicos em arte e cul- Não realizado: O indicador da meta foi alterado no
tura, passando de 698 (2010) para 1.745 cursos (2020) portal PNC (de cursos para matrículas) e retomado no
técnicos de arte e cultura oferecidos pelo MEC. Relatório Anual 2018, que informa o cumprimento de 5%
do planejado para o ano e de 2% da meta, na média dos
anos, em relação ao previsto para 2020.
META 17: 20 mil trabalhadores da cultura com saberes reconhecidos e certificados pelo Ministério da Educação
Previsto: Reconhecer os saberes de 20 mil trabalhadores Não realizado: Até 2018 o reconhecimento de saberes e
de todas as áreas da cultura e dar a eles certificação a certificação dos trabalhadores da cultura não foram ini-
profissional, por meio da Rede Nacional de Certificação ciados, e ações para viabilizar essa meta foram realizadas
Profissional e Formação Continuada (Rede Certific), a somente até 2016.
partir de 2011.
META 23: 15 mil Pontos de Cultura em funcionamento, compartilhados entre o governo federal,
as unidades da federação e os municípios integrantes do Sistema Nacional de Cultura
Previsto: Ter 15 mil Pontos de Cultura em funcionamento, Não realizado: Em 2018, 3.956 Pontos de Cultura recebe-
entre pontos e pontões estaduais, distritais, municipais ram apoio do Ministério da Cultura, o que corresponde a
e intermunicipais, pontos e pontões por convênio direto, 31% do planejado para o ano e a 26% da meta.
pontos indígenas e pontões de bens registrados, que re-
cebam apoio do Ministério da Cultura no país, até 2020.
META 24: 60% dos municípios de cada macrorregião do país com produção e circulação de espetáculos
e atividades artísticas e culturais fomentados com recursos públicos federais
Previsto: Ter, em cada região do Brasil, mais cidades que Não realizado: Em 2018, 474 municípios foram beneficia-
produzem ou recebem espetáculos e atividades artísticas dos por projetos de produção e circulação de espetá-
financiados com recursos públicos federais, oriundos do culos e atividades artísticas e culturais fomentados com
Fundo Nacional de Cultura e do orçamento direto do recursos públicos federais (8,5% do total de municípios
ministério e de suas instituições vinculadas, chegando a e 19% da meta anual). Considerando os resultados dos
3.342 municípios em 2020. demais anos, a média dos indicadores foi de 13% do
previsto para 2020.
META 25: Aumento em 70% nas atividades de difusão cultural em intercâmbio nacional e internacional
Previsto: Aumentar o intercâmbio nacional e internacional Não realizado: No lugar do aumento previsto, em 2018
de atividades que divulguem as manifestações culturais foram realizadas 391 atividades, havendo, assim, uma
brasileiras, considerando a quantidade anual de atividades redução de 38,6% em relação a 2010, num alcance de
apoiadas pelo governo federal para intercâmbio nacional apenas 36% da meta prevista.
ou internacional com finalidade de difundir as expressões
culturais, em comparação com 2010 (637 atividades),
chegando a 1.083 atividades realizadas em 2020.
EMERGÊNCIAS E DESAFIOS PARA UM NOVO PNC Claudinéli Moreira Ramos 75
META 26: 12 milhões de trabalhadores beneficiados pelo Programa de Cultura do Trabalhador (vale-cultura)
Previsto: Distribuir vale-cultura a 12 milhões Não realizado: Em 2018 foram beneficiados 551.760 tra-
de trabalhadores. balhadores (5%). Somando todos os beneficiados entre
2011 e 2018, houve um alcance de apenas 20% da meta
prevista para 2020.
META 29: 100% de bibliotecas públicas, museus, cinemas, teatros, arquivos públicos e centros culturais atenden-
do aos requisitos legais de acessibilidade e desenvolvendo ações de promoção da fruição cultural por parte das
pessoas com deficiência
Previsto: Garantir que as pessoas com deficiência Não realizado: Em 2018, foram registrados apenas
possam ter acesso aos espaços culturais, 40% dos museus, 9% das bibliotecas públicas e 8% dos
seus acervos e atividades. centros culturais atendendo aos requisitos legais de
acessibilidade. Sem informações de cinemas, arquivos
públicos e teatros. Na média dos indicadores, segundo o
Relatório Anual 2018, o desempenho previsto para o ano
foi de 12% e o percentual de alcance da meta foi de 10%.
Previsto: Aumentar o número de cidades com cineclube Não realizado: O número cresceu apenas até 2014,
de 682 (2010) para 2.060 (2020), por meio de editais chegando a 701 municípios com cineclube (12,6% do
e parcerias da ação Cine Mais Cultura ou programa total de municípios e 34% da meta). Segundo o Relatório
equivalente. Anual 2018, não houve instalações de novos cineclubes
desde então.
Previsto: Criar mil espaços com atividades mensais a Não realizado: Em 2018, o desempenho da meta foi de
partir de 2011, como as Praças dos Esportes e da Cultura, 24% do planejado para o ano (40 espaços culturais). Na
posteriormente denominadas Centros de Artes e Espor- média dos indicadores, houve alcance de 19% da meta,
tes Unificados (CEUs). com um total de 189 espaços culturais do governo fede-
ral em funcionamento até 2018.
Previsto: Melhorar instalações, equipamentos e acervos Não realizado: Até 2018 foram modernizadas 1.932
de bibliotecas e museus. de 6.057 bibliotecas públicas (32%) e 255 de 3.769
museus (7%). Na média dos indicadores, houve alcance
de 39% da meta.
META 35: Gestores capacitados em 100% das instituições e equipamentos culturais apoiados pelo
Ministério da Cultura
Previsto: Formar pelo menos um servidor ou gestor de Não realizado: Em 2018, 2.657 das 6.275 instituições
cada equipamento ou instituição cultural apoiada pelo apoiadas pelo MinC tiveram gestores ou servidores capa-
órgão federal gestor da cultura. citados (42% da meta). No total, 14.602 pessoas recebe-
ram capacitação. Em 2018, houve redução do número de
instituições e equipamentos com gestores capacitados.
76 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
META 39: Sistema unificado de registro público de obras intelectuais protegidas pelo direito de autor implantado
Previsto: Criar um sistema unificado para registro de Não realizado: O sistema unificado para registro
obras musicais, literárias, dramatúrgicas, visuais de obras musicais, literárias, dramatúrgicas, visuais
e audiovisuais. e audiovisuais não foi criado.
META 40: Disponibilização na internet dos conteúdos que estejam em domínio público ou licenciados
Previsto: Disponibilizar na internet o acervo das insti- Não realizado: Em 2018, o desempenho da meta foi
tuições vinculadas ao MinC: 100% das obras do Centro de 13% do planejado para o ano. Na média dos anos, o
Técnico Audiovisual (CTAv) e da Cinemateca Brasileira; percentual de alcance da meta prevista para 2020 foi de
100% do acervo da Fundação Casa
de Rui Barbosa 25%. Foram disponibilizados na internet: 0% do acervo
(FCRB); 100% dos inventários do Iphan; 100% das obras do CTAv; 1,7% do acervo da Cinemateca; 16% do acervo
do acervo da Fundação Biblioteca Nacional (FBN); 100% da FCRB; 30% do acervo do Iphan; 100% do acervo do
do acervo iconográfico, sonoro e audiovisual do Centro Cedoc/Funarte.
de Documentação da Fundação Nacional das Artes Obs.: Os dados da FBN não permitiram identificar
(Cedoc/Funarte). o percentual de obras disponibilizadas.
META 41: 100% de bibliotecas públicas e 70% de museus e arquivos disponibilizando informações
sobre seu acervo no SNIIC
Previsto: Disponibilizar informações na internet sobre Não realizado: Em 2018, o desempenho da meta foi
o acervo de 100% das bibliotecas públicas e 70% dos de 28% do planejado para o ano. Na média dos anos, o
museus e arquivos. percentual de alcance da meta prevista para 2020 foi de
23%, sendo que a disponibilização de informações sobre
acervos no SNIIC foi feita por: zero das 6.057 bibliotecas
públicas cadastradas; 1.712 dos 3.550 museus cadastra-
dos (48%); e zero dos 33 arquivos cadastrados no SNIIC.
META 42: Política para acesso a equipamentos tecnológicos sem similares nacionais formulada
Previsto: Criar política para facilitar a importação Não realizado: A política não foi formulada, e a última
de tecnologias usadas em atividades culturais. ação referente a essa meta foi realizada em 2016
(elaboração de projeto de isenção fiscal temporária
para importação de bens sem similares no país).
META 45: 450 grupos, comunidades ou coletivos beneficiados com ações de comunicação para a cultura
Previsto: Atender 450 grupos com ações Não realizado: Somando os atendimentos em 2012 e de
de comunicação para a cultura. 2014 a 2017, foram beneficiados 211 grupos, comunidades
ou coletivos, e 47% da meta foi alcançada. Não houve
atendimento em 2011, 2013 e 2018.
META 46: 100% dos setores representados no Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC) com colegiados
instalados e planos setoriais elaborados e implementados
Previsto: Instalar colegiados e elaborar planos de Não realizado: Segundo o Relatório Anual 2018, o per-
cultura para todos os setores representados no CNPC centual de alcance da meta em relação ao previsto até
com sistemas de acompanhamento, avaliação e controle 2020 foi de apenas 7%. O portal PNC indica alcance da
social em funcionamento. meta de 42% em 2017 em relação ao previsto
para 2020. A ausência de memória dos cálculos
dificulta a verificação.
EMERGÊNCIAS E DESAFIOS PARA UM NOVO PNC Claudinéli Moreira Ramos 77
META 47: 100% dos planos setoriais com representação no CNPC com diretrizes, ações e metas voltadas
para infância e juventude
Previsto: Incluir políticas culturais para jovens e crianças Não realizado: Até 2018, foram elaborados 14 planos
em todas as áreas da cultura, considerando o número de setoriais, 2 deles com diretrizes, ações e metas para
planos setoriais de cultura elaborados no âmbito do MinC infância e juventude (os planos setoriais de museus e de
com diretrizes, ações e metas para infância e juventude cultura afro-brasileira). O percentual de alcance da meta
em relação ao total de planos. em relação a 2020 foi de 13%.
Previsto: Definir 10% dos recursos do Fundo Social do Não realizado: Segundo o Relatório Anual 2018, não
Pré-Sal para a área da cultura. existem dados disponíveis para aferir o indicador da
meta. Não há informação sobre destinação de recursos
do pré-sal para a cultura.
META 51: Aumento de 37%, acima do PIB, dos recursos públicos federais para a cultura
Previsto: Aumentar os recursos públicos federais Não realizado: De 2011 a 2018, o percentual de recursos
para a cultura de 0,032% do PIB em 2010 para federais para a cultura em relação ao PIB foi sempre in-
0,043% em 2020. ferior ao alcançado em 2010, chegando a 0,008% do PIB
em 2018, num alcance de apenas 18,6% da meta prevista
e 25% do percentual atingido em 2010.
META 52: Aumento de 18,5%, acima do PIB, da renúncia fiscal do governo federal para incentivo à cultura
Previsto: Aumentar a renúncia fiscal do governo Não realizado: Embora tenha alcançado 60% do previsto
federal para incentivo à cultura de 0,0246% do PIB para 2020, a meta foi considerada não cumprida porque,
para 0,0291%. de 2012 a 2018, o percentual da renúncia fiscal para a
cultura em relação ao PIB foi sempre inferior ao alcança-
do em 2010 e 2011, chegando a 0,0175% do PIB em 2018
– número acima apenas do percentual de 2017 e 29%
menor que o atingido em 2010.
*Foram consideradas não cumpridas as metas que atingiram menos de 50% dos resultados previstos para 2020.
Fonte: elaboração da autora a partir dos dados divulgados pela Secretaria Especial da Cultura, do Ministério do Turismo, nas páginas sobre
metas disponíveis em: http://pnc.cultura.gov.br/; dos relatórios anuais do PNC localizados em: http://pnc.cultura.gov.br/biblioteca-de-
documentos/; dos dados referentes ao Sistema Nacional de Cultura divulgados em: http://portalsnc.cultura.gov.br/estatisticas/; da quinta
edição da Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, em: https://prolivro.org.br/5a-edicao-de-retratos-da-leitura-no-brasil-2/a-pesquisa-5a-
edicao; e dos dados referentes ao mercado audiovisual disponibilizados em: https://oca.ancine.gov.br. Consultas realizadas entre 20 e 24
de outubro de 2020.
envergadura sobre um plano construído par- • Antônio Grassi, ator e gestor cul-
ticipativamente e que envolve a todos não tural, atualmente diretor do Instituto
pode prescindir de diálogo. Inhotim;
Por isso, como parte do processo de • Bel Santos Mayer, educadora so-
construção da análise do PNC, além da im- cial e mestranda em bibliotecono-
portância de examinar histórico e dados mia, atuante na área de bibliotecas
oficiais disponíveis e de ampliar o conhe- comunitárias e participante do pro-
cimento acerca de experiências de outros cesso de construção do Plano Nacio-
países – trazidas nos demais artigos desta nal do Livro e da Leitura (PNLL);
publicação –, ficou logo clara a necessidade • José Castilho Marques Neto, ex-
de compartilhar a reflexão. Sem nenhuma -secretário-executivo do PNLL e pro-
pretensão representativa, mas apenas como fessor universitário da Universidade
ilustração de uma demanda premente de Estadual Paulista (Unesp), tendo
abertura ao diálogo, surgiu a ideia de pro- dirigido a Editora Unesp por 27 anos;
mover um encontro para debater os desafios • Jurema Machado, arquiteta e con-
postos para as artes e a cultura no Brasil na sultora independente, foi presiden-
próxima década, a ser contemplados no even- te do Iphan e atuou no escritório de
tual próximo PNC. representação da Unesco no setor
Assim, com atenção aos eixos estrutu- de cultura;
rantes e partindo dos 16 objetivos do Plano • Leandro Valiati, economista, pro-
Nacional de Cultura com olhos voltados fessor de economia da cultura na
para a próxima década, o Observatório Itaú Universidade Federal do Rio Grande
Cultural reuniu um grupo pequeno porém do Sul (UFRGS) e da Universidade
diversificado de ativistas da pauta artísti- Queen Mary de Londres;
co-cultural para debater quais objetivos de- • Pablo Ortellado, filósofo e profes-
vem ser prioritários para a área e ponderar sor do curso de políticas públicas da
acerca de algumas questões: faz sentido a Escola de Artes, Ciências e Humani-
feitura de um novo PNC no cenário atual? dades da Universidade de São Paulo
Como ele deveria ser feito? Quais pessoas (EACH/USP);
deveriam estar envolvidas? Como seria rea- • Paula Gomes, produtora de cinema
lizado o engajamento de diferentes atores da Bahia e integrante da comissão do
no processo? Rumos em 2019 e 2020;
Sob o tema “O Plano Nacional de Cul- • Paulo Roberto Ferraz von Zuben,
tura: análises e perspectivas”, a discussão foi músico e compositor, presidente da
promovida em 4 de março de 2020, antes ain- Associação Brasileira das Organiza-
da que a pandemia de coronavírus assumis- ções Sociais de Cultura (Abraosc) e
se a dimensão que adquiriu e sem que fosse diretor artístico-pedagógico e musi-
possível, naquele momento, imaginar como cal da organização social Santa Mar-
isso se daria. O encontro reuniu: celina Cultura;
EMERGÊNCIAS E DESAFIOS PARA UM NOVO PNC Claudinéli Moreira Ramos 79
ter a participação social como eixo matricial fruição que contempla muito mais do que
e o uso de ferramentas digitais para a demo- entretenimento e passatempo.
cratização do acesso, da produção cultural Por sua vez, é necessário conseguir avan-
e da participação decisória como uma das çar na construção de sistemas baseados em
estratégias centrais. evidências, que promovam a mensuração de
Nessa direção, é essencial estimular o impactos e evidenciem os valores envolvidos
diálogo entre interlocutores variados, como nos processos e os ganhos sociais e econô-
universidades, coletivos e organizações da micos, ainda que seja necessário construir
sociedade civil, e intensificar a construção de métricas diferentes das convencionais. Da
pontes, intercâmbios e trocas interculturais, mesma maneira, mais do que nunca o finan-
no sentido da valorização da diversidade e na ciamento privado para a arte e a cultura pre-
contramão das polarizações, bem como fo- cisa ser considerado em novas perspectivas, a
mentar a aproximação das demandas locais começar da potencialização das iniciativas de
com pautas transversais agregadoras, como a financiamento coletivo. E as transformações
questão ambiental, a saúde mental e as metas tecnológicas que a economia contemporânea
do milênio. Há que se levar em conta também o tem sofrido e que têm levado ao surgimento de
questionamento aos conceitos do imediatismo novas concentrações e monopólios precisam
e do isolamento que pontua as sociedades con- ser objeto de atenção regulatória também no
temporâneas – características que o avanço da campo cultural, com atuação estatal em defe-
pandemia de coronavírus alçou a um patamar sa da qualificação e atualização tecnológica de
dramático de necessária ressignificação. profissionais para o novo contexto produtivo.
Da mesma forma como a arte e a cultura Esse movimento é determinante do sucesso
desempenham papéis estratégicos, por vezes econômico do campo cultural e da expansão
antagônicos, em momentos de mudança de dos impactos sociais positivos, internos e in-
paradigma como parece ser o atual, as políti- ternacionais, pela alavancagem do softpower
cas artísticas e culturais precisam acompa- brasileiro, entretanto não haverá avanço se o
nhar e participar proativamente da busca de setor cultural não se organizar e promover as
novos caminhos. A proteção da história, da devidas medidas de advocacy.
memória e do patrimônio cultural não deve Por fim, é justamente quando a cultu-
aparecer apenas como preservação do pas- ra e a arte se tornam indesejadas por tantos
sado, mas como uma necessidade absoluta que fica mais evidente a falta que fazem para
da civilização e do convívio presente, sus- cada um e mais fundamental cada esforço de
tentável, tanto quanto o acesso a diferentes formação e de ampliação de repertório. A re-
repertórios e a meios de criação. As políticas dução do vasto patrimônio cultural da huma-
de arte e cultura podem protagonizar o es- nidade ao estreito conjunto de valores de um
forço pela construção de uma nova tempo- grupo, seja ele qual for, é sempre negadora da
ralidade das relações, que não se paute pelo história, limitadora de potenciais e desuma-
consumismo, imediatismo, superficialida- nizadora. O crescimento do número de esco-
de e descartabilidade, numa concepção de las em tempo integral, o surgimento de novas
86 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
“Este momento de perdas em tantos âmbitos diversos níveis – municipal, estadual e fede-
evidenciou ainda mais a importância da po- ral – precisam de uma atuação mais intensa e
lítica pública cultural. Afinal, foi assistindo coordenada nacionalmente, para que os esfor-
a filmes, lendo livros ou escutando o vizinho ços não se fragmentem e gerem mais perdas. A
tocar uma música da janela que muita gente atuação forte e inteligente do Estado é decisiva
amenizou suas dores ou encontrou a forma nesses momentos. Por isso, a União Europeia
de manter-se saudável, física e mentalmen- aprovou um enorme pacote de auxílios públi-
te, durante os dias tão difíceis de confina- cos para o setor cultural.” Leandro Valiati
mento”, afirma Paula Gomes.
O novo golpe acabou reavivando a mobili-
Paradoxalmente, a pandemia que fez a produ- zação do setor cultural brasileiro. Os canais
ção cultural ser tão valorizada acentuou a crise digitais testemunharam a movimentação da
de desvalorização do setor de arte e cultura. A área em busca de socorro, numa rearticulação
crise imposta pela impossibilidade do exercí- que ultrapassou as barreiras do isolamento e
cio presencial das atividades culturais ao vivo, conseguiu acionar o Poder Legislativo, culmi-
que afastou as pessoas dos espaços de convívio nando na Lei no 14.017, de 29 de junho de 2020,
e fruição coletiva, lançou uma enorme quanti- conhecida como Lei de Emergência Cultu-
dade de artistas e produtores numa situação de ral Aldir Blanc, em homenagem ao brilhante
calamidade e quase penúria. As mesmas pes- letrista, compositor e cronista brasileiro que
soas que consumiram avidamente arte e cul- relatou dificuldades financeiras agravadas
tura pelos canais digitais demonstraram muito pela pandemia e padeceu vítima de covid-19.
pouca sensibilidade ao drama do setor cultural, A pandemia afetou a todos, mas apenas
exacerbado quando o governo federal excluiu o setor cultural teve de correr atrás de uma lei
artistas e trabalhadores da cultura do auxílio de auxílio emergencial específica. O aumento
emergencial para os trabalhadores brasileiros. do consumo cultural por meio dos canais di-
Diferentemente do que aconteceu nos gitais foi imenso, e nem assim o desprestígio
países mais desenvolvidos do mundo, o go- da classe artística foi revertido ante o gover-
verno brasileiro tentou se eximir de qualquer no federal. Mesmo consumindo mais arte e
apoio ao setor cultural. Enquanto a União cultura durante o isolamento, de modo geral,
Europeia aprovava um enorme pacote de au- a grande maioria da sociedade permaneceu
xílios públicos para o setor cultural, o Estado alheia aos destinos do setor de cultura e arte.
brasileiro rumava na contramão da defesa da Os acontecimentos de 2020 evidenciaram
importância cultural para o país, numa visão que, mais do que nunca, o Brasil precisa de
que prejudica tanto o desenvolvimento social um projeto nacional para o setor cultural, na
quanto a economia. forma de uma política cultural consistente e
democraticamente construída.
“Na história da economia mundial, momentos
de grandes crises só foram superados com pla- “O desafio acima de todos os outros envolve
nejamento e atuação consistente do Estado. Os não apenas a cultura, mas toda a sociedade,
92 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
que cada vez mais terá que decidir se segue do setor como cadeia produtiva. É preciso
pela via democrática ou se criará um Esta- inserir a pauta das políticas culturais no
do vassalo e subordinado, necessariamente mesmo rol de defesa e fortalecimento dos
autoritário, que exercerá um poder apenas demais polos geradores de emprego e renda,
aparentemente democrático. A essa encruzi- o que requer o conhecimento e reconheci-
lhada política, que depende de muitos fatores, mento da importância da arte e da cultura
devemos ficar atentos e, sempre que possível, como vetores estratégicos de desenvolvi-
vigilantes, para não pensarmos que o setor mento social e econômico.
cultural flutua acima do Brasil autoritário e
excludente que está em marcha e que a so- “Minha maior lição na área cultural foi a de
ciedade civil precisa recusar.” José Castilho que não se pode disputar com a área de se-
gurança, educação, saúde. Será sempre mais
Primeiro, porque as antigas necessidades se importante construir um hospital do que um
mantiveram e agravaram. Ficou mais eviden- teatro. Nesse grau de disputa, perdemos. Por
te a urgência de uma atuação consistente e isso, mais importante do que ter uma secre-
ampla, capaz de ir além das divisas do próprio taria de Cultura dedicada é ter uma área de
setor cultural, sensibilizando a sociedade para o cultura em cada secretaria, para que a im-
entendimento de que a política cultural do país portância da cultura seja observada em cada
se refere a todos em nosso território. Ela tem a campo e possa ser pensada de maneira mais
ver com educação, saúde, segurança. Envolve transversal.” Antônio Grassi
o aprendizado e o exercício da cidadania, em
direitos e deveres que passam pela expressão de A conjuntura adversa demonstrou ainda que
diferenças, pela prática do respeito e pela cons- essa construção precisa ser não só coletiva,
trução de convívio democrático. Afeta campos mas plural, mais plural do que antes, na pers-
simbólicos, sentimentos, emoções, tanto no pla- pectiva de ir além da mobilização corporativa
no individual quanto no coletivo, e certamente do próprio setor cultural e do setor político. A
tem muito de entretenimento. Para que tudo participação coletiva na construção do PNC
isso seja possível, uma complexa rede de pro- foi decisiva para dar voz a muitos agentes
fissionais e instituições precisa ser mobilizada. culturais excluídos da formulação das polí-
É preciso que todos entendam que o que para ticas públicas para a cultura no país, e essa
muitos é pura diversão, experiência informal, conquista histórica não pode ser perdida.
ocupação do tempo livre e até aquela agradável Entretanto, é essencial que a construção do
companhia enquanto se faz outra coisa, para plano de cultura do Brasil se volte para a so-
outros muitos, é vocação e trabalho árduo. ciedade brasileira, mais do que para a área
Não se trata de pretender favoreci- cultural nacional.
mento em relação aos demais setores pro-
dutivos, mas de ser considerado como um. “É essencial compreender que o objetivo
Sobretudo, trata-se de não ser prejudicado principal de uma política cultural mais
por preconceito e pela ausência de aceitação abrangente não deve ser os fazedores de
EMERGÊNCIAS E DESAFIOS PARA UM NOVO PNC Claudinéli Moreira Ramos 93
cultura, os artistas, mas sim a sociedade. E impacto social que a cultura tem na vida das
também é quase impossível se a sociedade pessoas.” Paulo Zuben
não abraçar esse entendimento, se não reco-
nhecer a necessidade do setor cultural. Mui- A pandemia deixou mais exposto o abismo
tas vezes ficamos fechados na nossa própria de desigualdade social no Brasil, manifesto
‘bolha’, até na própria linguagem com que a também na diferença gigantesca em termos
gente trabalha. Nosso grande desafio conti- de acesso e capacitação para o uso adequado
nua sendo descobrir como trazer a causa da das ferramentas tecnológicas de informa-
cultura para o interesse das pessoas. Entre ção e cultura, tanto no cenário macrossocial
outras coisas, precisamos de uma linguagem quanto no campo especificamente cultural.
mais direta, acessível sem desmerecer a in- O isolamento foi imposto a todos, mas alguns
teligência de ninguém, voltada para quem não puderam ficar em casa ou tiveram de re-
está fora da nossa ‘bolha’. Lembrando Gil- tornar mais cedo ao trabalho, quando ainda
berto Gil: o povo sabe o que quer, mas também não era seguro. Na ausência de espaços de
quer o que não sabe.” Antônio Grassi convívio social, as tecnologias de informa-
ção e comunicação eram a alternativa que
Além disso, a multiplicidade de vozes envol- permitiu a continuidade do trabalho, do es-
vidas não pode acarretar a construção de um tudo, do lazer e da fruição cultural para mi-
documento complicado demais. Esse plano lhões de pessoas. Não para todos. Não para
precisa ser simples, efetivamente estratégi- a maioria. Ao mesmo tempo que cresceram
co e popular, nos sentidos mais amplos do vertiginosamente a venda e o uso de ferra-
termo, tanto de pertencimento geral quanto mentas e plataformas digitais, muita gente
de conhecimento generalizado. É preciso in- ficou de fora da única interação social pos-
dicadores objetivos para metas viáveis, uma sível no momento, a virtual, justamente pela
análise de risco e um cronograma bem cons- ausência de equipamentos, conhecimentos
truídos, além de clara definição de papéis e e acesso à internet.
responsabilidades, para que a realização des-
ses objetivos possa ser alcançada. “Apesar do desastre humanitário provocado
pelo vírus, o Brasil que temos ainda é o mes-
“É fundamental que se leve em conta que mo de antes. As carências estruturais que
a discussão do PNC precisa ser conduzida temos ainda são as mesmas, as consciências
com os entes federativos, com a participação das elites mandantes são as mesmas, o des-
do Legislativo e da sociedade, para que a cul- prezo generalizado dos governos à cultura
tura possa ser um eixo central na elaboração e à educação é o mesmo. Há uma situação
das políticas públicas. Para isso acontecer, geral do setor cultural neste ‘mundo real’,
é necessário um mapeamento extensivo do que é a situação da absoluta maioria dos
nosso ecossistema, uma análise confiável do brasileiros, que vive em condições de pe-
impacto financeiro do nosso setor na econo- núria econômica, impossibilitada da maior
mia e, principalmente, o cálculo estimado do parte dos direitos de cidadania. O cenário
94 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
pandêmico aprofundou e desnudou, ainda capacitação para o uso das novas tecnologias
mais, o que já era dado.” José Castilho despontou como uma das principais tarefas
do setor cultural pós-pandemia. É um desafio
A questão digital foi simultaneamente um ga- duplo, que envolve a democratização dos bens
nho inesperado e a confirmação de uma in- digitais no âmbito do próprio setor cultural
feliz tradição. De um lado, demonstrou que o e da sociedade em geral, para garantir tanto
trabalho remoto, a educação a distância, a co- aos fazedores quanto aos públicos culturais
municação para os mais diversos fins e mes- o ingresso e a participação nesse universo
mo a fruição cultural podem ter muito mais novo. A área cultural agora precisa lidar mais
possibilidades, vantagens e adeptos do que atentamente com as questões de acesso à in-
se imaginava. De outro, exibiu a duplicação ternet, qualificação para o uso dos recursos
da desigualdade que historicamente assola o tecnológicos, suporte técnico para criação e
país do mundo real para os meios virtuais. A compartilhamento de conteúdo, apropriação
covid-19 não causou a exclusão digital, apenas de novas linguagens e formatos para produ-
revelou o tamanho do problema e os prejuízos ção e distribuição de conteúdo, construção de
enormes que ele causa, como um ano letivo meios de monetização de seus produtos, com-
praticamente perdido para a rede pública de preensão das demandas e hábitos desse novo
ensino do país. No âmbito cultural, apontou público, que poderá ter contato com aquela
a dificuldade de um sem-número de artistas, criação tanto no momento de sua exibição
coletivos e instituições que, de um dia para como, a depender dos formatos desenvolvi-
o outro, praticamente ficaram sem público dos, no dia seguinte ou muito tempo depois.
e sem condições de sobrevivência e que não Tudo isso sem deixar de buscar responder a
faziam ideia de como utilizar as novas janelas, todas as demais necessidades que já faziam
ou não tinham a mínima condição de fazê-lo. parte do universo presencial, físico, no qual se
pretende continuar a atuar e a crescer.
“Ensaiamos uma nova era, em que o mundo
virtual ocupará um espaço cada vez maior na “A primeira lição da pandemia para o setor
informação e comunicação, reconfigurando cultural é que não estávamos preparados
a educação e a produção e difusão da cultura. para a mudança na maneira como as pes-
Assim como a pandemia revelou a necessi- soas passaram a consumir cultura com o
dade de uma renda mínima para a população isolamento social. Não antecipamos a pos-
sem renda, a marginalização dos milhões sibilidade de que a fruição presencial de arte
de jovens estudantes das populações mais e cultura poderia não ser possível e, por isso,
fragilizadas que não têm internet em casa poucas foram as instituições que estavam
clama pela universalização desse acesso.” realmente preparadas para migrar para
Vincent Carelli o mundo virtual de maneira consistente.
Por outro lado, isso trouxe para todos uma
A superação das desigualdades virtuais pela perspectiva positiva de que podemos alcan-
garantia de acesso qualificado à internet e pela çar um público muito maior, mas, para isso
EMERGÊNCIAS E DESAFIOS PARA UM NOVO PNC Claudinéli Moreira Ramos 95
acontecer de maneira efetiva, vai ser ne- marcados por dinâmicas partidarizadas. Sem
cessário repensar o formato, o conteúdo e o ignorar o legado dessas práticas, internacio-
tempo que as pessoas terão para consumir nalmente reconhecidas, é fácil perceber que
cultura no futuro.” Paulo Zuben elas tendem a ter mais sucesso quando existe
alinhamento entre os entes governamentais
A tentativa de realização de conferências po- e os representantes da sociedade civil. Em
pulares de cultura ainda no cenário pandê- tempos de desacordo, é comum ver as ins-
mico de 2020, entre diversos outros eventos tâncias participativas ser esvaziadas ou so-
relacionados às políticas culturais, demons- frer intervenções controversas. O desgaste
tra que o setor começa a se apropriar dessa desses períodos tende a ser maior do que os
possibilidade como uma alternativa concreta avanços. Essa reflexão é necessária para que
para encurtar fronteiras, evitar grandes des- se avaliem as reais possibilidades de conso-
locamentos (e os respectivos gastos) e pro- lidação das políticas públicas a partir de me-
mover novas ações conjuntas. A elaboração canismos de participação social, seja para
do PNC 2021-2030 poderá se beneficiar mui- fortalecê-los de maneira a evitar partidari-
to desse aprendizado, desde que se observe a zações e desaparelhamentos, seja para rever
necessidade de novas estratégias de aproxi- a estratégia de ação, utilizando, por exemplo,
mação e diálogo, que permitam a escuta da conselhos compostos por meio de sorteio.
diversidade de vozes, o estabelecimento de
pontes entre realidades bem diferentes, o “Será que podemos começar a experimen-
intercâmbio de experiências e a construção tar no Brasil formas de participação como
coletiva de propostas e de um consenso. os modelos de democracia deliberativa ba-
seados em conselhos compostos por meio
“A gente tem um desafio grande nesse con- de sorteio? Experiências internacionais
texto pós-pandemia, que é, por um lado, nes- têm mostrado que formas de participação
te país onde o abismo social só aumentou, na qual representantes são sorteados entre
assegurar que as diferentes vozes estejam os membros da comunidade favorecem a
contempladas nesse pensamento por uma indicação de pessoas comuns, em vez de li-
política cultural. E, por outro lado, entender deranças políticas, levando a processos de-
como democratizar o acesso a essa produção liberativos menos conflitivos. Isso poderia
cultural tão diversa para que ela de fato cir- favorecer a aceitação das políticas públicas
cule, chegando aos públicos dos seus terri- que venham a ser deliberadas por forças
tórios, mas também cruzando as fronteiras político-partidárias mais amplas, colabo-
para além deles.” Paula Gomes rando para que se consolidem como ações
de Estado, e não de governo.” Pablo Ortellado
Nessa direção, também cabe propor outras
formas de fomento à participação, para além De fato, é urgente pensar novos formatos
dos mecanismos legais previstos, como as de relacionamento, participação, produção
conferências e os conselhos, por vezes e fruição de arte e cultura, considerando o
96 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
legado do PNC e o aprendizado deste doloro- britânico do Arts Council, que conta com
so 2020, para que suas lições não persistam recursos da loteria, e as leis da França e da
como ameaça de novas tragédias. As oportu- Inglaterra, que permitem que as instituições
nidades e desafios mais evidentes envolvem possam receber recursos ininterruptos por
as novas janelas digitais e uma aproximação alguns anos, entre outras referências interna-
maior com a educação e a saúde. A histórica cionais, poderiam servir de inspiração para o
questão do financiamento igualmente se re- modelo brasileiro.” Leandro Valiati
coloca com ênfase, reforçando a importância
de aprovação de leis estaduais e municipais Mesmo a Lei Aldir Blanc (LAB), talvez a
de fomento regular, que beneficiem editais maior mobilização do setor cultural na his-
das diversas linguagens artísticas e cultu- tória do país, tão importante para assegurar
ras populares, além de um trabalho perma- direitos e evitar uma catástrofe ainda maior
nente de pesquisa e divulgação relacionado do setor cultural brasileiro em 2020, não é
à economia da cultura. A inovação também política indutora, simplesmente compensa
precisa ser experimentada, para gerar mais grandes perdas do setor. Ela nos permitiu
equidade em termos de financiamento e lidar com um dos grandes desafios da pan-
acesso ao mercado, de maneira que mais demia e fator de constante risco do setor:
agentes tenham capacidade de ser susten- a necessidade de proteção do trabalhador
táveis economicamente, mesmo que seja por informal, num contexto em que a transfe-
meio de auxílios públicos, o que é legítimo rência de renda simultaneamente comba-
para as artes e é o que acontece em vários teu a pobreza e apoiou os rendimentos do
lugares do mundo. Não podemos depender trabalho informal. Para ir além de medidas
apenas de leis de incentivo, sobretudo con- sempre mitigadoras ou compensatórias e
siderando a assustadora crise econômica que iniciar um ciclo de desenvolvimento conti-
se avizinha na sombra da pandemia. nuado, no entanto, é necessário transformar
essa experiência pontual imprescindível,
“Precisamos gerar mais equidade nos mer- advinda de um contexto dramático, numa
cados culturais brasileiros. Só sobreviveu na conquista estruturante, de implementação
pandemia quem tinha algum poder de merca- de um mecanismo de proteção permanente.
do, quem teve capacidade de ser sustentável Mas algo tão impactante não será consegui-
economicamente. O setor cultural brasileiro do sem que uma extraordinária mobilização
é muito frágil estruturalmente, em termos de seja mantida.
financiamento e de acesso ao mercado. Nosso Por isso, e porque não há como iniciar
modelo de financiamento público com base uma nova e massiva luta a cada pauta, é de-
na oferta final, de ‘produtos na vitrine’, como cisivo que a mobilização que deu origem à
no caso da Lei Rouanet, simplesmente é um Lei Aldir Blanc avance para uma construção
modelo que faliu. O PNC precisa dedicar mais estruturante. A convergência dos me-
grande atenção a novos mecanismos de fi- canismos de transferência de recursos dessa
nanciamento, que criem induções. O modelo lei com os componentes do Sistema Nacional
EMERGÊNCIAS E DESAFIOS PARA UM NOVO PNC Claudinéli Moreira Ramos 97
de Cultura já serviu para impulsionar a reto- por acaso, Vincent Carelli chama a atenção
mada da discussão de sistemas de cultura em para a responsabilidade que temos nessa
diversos entes federados. A regulamentação nova era que ensaiamos viver, em que cabe
do SNC voltou à pauta do Congresso Nacio- a todos nós, como sociedade civil, propor e
nal, e a Presidência da República se mani- difundir o mundo que queremos.
festou em outubro de 2020 num despacho Mas como aproximar as pessoas que
ao Congresso solicitando a prorrogação da não atuam diretamente no setor cultural?
vigência da lei do PNC. Certamente a recente Precisamos demonstrar que cultura é edu-
movimentação da área cultural teve influên- cação, observa Paulo Zuben. E apontar a
cia nessas medidas. cultura como direito e cidadania, para que
Por sua vez, todo o processo de cons- possamos ter um novo PNC civicamente
trução da LAB, usando as redes sociais, os são e generosamente humano, ressalta José
encontros virtuais e acionando fortemente o Castilho. Por sua vez, Leandro Valiati des-
Poder Legislativo, foi uma injeção de ânimo taca que cultura gera bem-estar em distin-
e um vetor de unidade do setor e sinaliza um tos níveis, e o que a pandemia nos mostrou
caminho promissor para a rearticulação em é que precisamos sofisticar o que nos gera
prol de um movimento forte de implantação bem-estar. Afinal, como bem lembra Antô-
do SNC, de construção do novo PNC e de no- nio Grassi, a cultura é um bem de todos, não
vas reivindicações coletivas. é só de quem a faz, e, por isso, sempre fará
sentido pensar num PNC, mesmo sabendo
“A Lei Aldir Blanc é a retomada de uma ar- que muitas vezes ainda estaremos longe de
ticulação do setor cultural com um socorro conseguir executá-lo plenamente.
emergencial aos trabalhadores da cultura, e Todos concordamos com isso. Esta-
nos mostra também que a via do Legislativo mos dispostos a esse empenho de diálogo,
é importante para impor ao governo compro- elaboração e realização coletiva. Conside-
missos, num momento em que instituições rando que a leitora ou o leitor que chegou
culturais são desarticuladas.” Vincent Carelli até aqui também esteja, vale a pena terminar
esta reflexão com uma provocação de Pablo
Tal como no caso da LAB, o setor cultural Ortellado ao próprio setor cultural: o que
precisa se articular na direção de um novo podemos fazer para ampliar a legitimidade
PNC e, mais que nunca, fazer isso em diá- das atividades culturais que estão sendo tão
logo estreito com a sociedade, para que atacadas por algumas forças políticas? Que
nossas muitas vozes possam se encontrar possamos juntos responder a essa questão
no compartilhamento de uma construção nos próximos encontros de construção do
conjunta, na qual, como diria Paula Gomes, Plano Nacional de Cultura.
a partir da sabedoria ubuntu, “eu sou porque
nós somos”; ou haverá uma política cultural Finalizando: por um novo PNC
ampla e capaz de abraçar toda a nossa diver- Os resultados aqui sintetizados não têm a
sidade ou não haverá política cultural. Não pretensão de relatar cada atividade feita e
98 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
conclusão apontada ou de externar com exa- graus, de todas essas possibilidades e outras
tidão as vozes presentes, seja no encontro mais. O desafio está em promover uma cons-
promovido ou na consulta em face da pande- trução que aproveite a contribuição da diver-
mia, mas, sim, de apresentar, a partir do diá- sidade, que mobilize e permita a expressão de
logo estabelecido, o consenso que foi possível todos os interessados de maneira estruturada
construir nesse experimento de dedicação e produtiva, que não se pretenda exaustiva,
de alguns profissionais do campo cultural. resolvedora das complexidades do setor e da
Foi um pequeno exercício de uma tarefa sociedade, mas viável, consensual, significa-
bastante ambiciosa e complexa, dessas que tiva, e dotada de afinidade com os diversos
em geral constituem somas em que há per- públicos. Que posicione a cultura nas pautas
das e transformações; acordos formados em estratégicas com centralidade, com institu-
cima de divergências e, não raro, conflitos. cionalidades adequadas e sustentáveis, com
Numa escala infinitamente menor, essa for- envolvimento público na gestão e na viabili-
mulação compreende – tanto para seus par- zação, avaliações que façam sentido e mais
ticipantes como, e principalmente, para seus fruição e repertório.
leitores – o mesmo desafio de um PNC: é pre- Foi essa a conclusão possível antes que
ciso muita abertura, diálogo, compreensão um novo personagem entrasse na história.
de limites, interação e disposição para criar Então nos perguntamos: será que o resultado
pertencimento e compromisso de realizar. apresentado aqui seria igual se tivesse sido
Eis uma lição a mais a ser considerada produzido após a pandemia de coronavírus?
para a elaboração do próximo Plano Na- A pergunta agora é: de que tipo de Plano Nacio-
cional de Cultura, que nos leva a observar nal de Cultura o Brasil necessita para esse novo
nossos próprios limites – não só de tempo cenário que ainda não descobrimos qual é?
e quantidade de pessoas, mas mesmo de di- Este registro conclui um trabalho que
versidade. Apesar das inúmeras diferenças talvez seja muito transformado, em direções
de lugares de origem e atuação, o grupo que que ainda não há como precisar de dentro do
deu origem às formulações aqui expostas era furacão de onde escrevo. Um novo encontro
todo oriundo do campo cultural. Essa dis- e novos diálogos serão necessários até que
cussão precisa chegar àqueles que ignoram possamos apresentar uma conclusão mais
sua existência e importância. adequada ao novo (desconhecido?) compas-
Atividades assim mostram a riqueza e a so em que gira a roda da história. Todavia, a
complexidade do trabalho coletivo. Os artigos velha convicção que se mantém foi testada
internacionais que completam esta publica- muitas vezes durante esse complexo cená-
ção indicam várias maneiras de compor o rio: teremos mais chance de superar bem
planejamento pretendido: com participação a crise se alinharmos planejamento cons-
popular em reuniões e conferências, com truído junto, engajamento dos agentes do
participação popular virtual, com comitês de setor, ampla participação social e a atuação
gestores públicos, com comitês de acadêmicos consistente de um poder público ciente de
e especialistas, com a mistura, em diferentes suas responsabilidades.
EMERGÊNCIAS E DESAFIOS PARA UM NOVO PNC Claudinéli Moreira Ramos 99
Referências bibliográficas
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providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2010/lei/l12343.htm.
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100 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Portais consultados
http://pnc.cultura.gov.br/
http://portalsnc.cultura.gov.br/
http://oca.ancine.gov.br/
http://prolivro.org.br/5a-edicao-de-retratos-da-leitura-no-brasil-2/a-pesquisa-5a-edicao/
Notas
1 AZEVEDO, Sônia Cristina Santos de. Ditadura militar brasileira e Política Nacional
de Cultura (PNC): algumas reflexões acerca das políticas culturais. Revista
Brasileira de Sociologia, v. 4, n. 7, p. 317-339, jan.-jun. 2016.
3 Mais informações sobre leis de sistemas de cultura podem ser obtidas em: http://
portalsnc.cultura.gov.br/legislacoes/.
102 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
8 O Ceará criou seu Sistema Estadual de Cultura (Siec) por lei em 2006. A
política cultural do estado conta com conselho, plano, fundo e a plataforma
Mapa Cultural, de mapeamento do cenário cultural cearense – todos em
funcionamento. Vale dizer que a versão cearense da plataforma dos Mapas
Culturais, software-base do Sistema Nacional de Informações e Indicadores
desde 2015, é a mais desenvolvida e atualizada do país, tendo se tornado uma
instalação de referência. Legislação disponível em: https://www.secult.ce.gov.
br/legislacao-cultural/. A Bahia instituiu sua Lei Orgânica da Cultura em 2011,
EMERGÊNCIAS E DESAFIOS PARA UM NOVO PNC Claudinéli Moreira Ramos 103
9 Sob gestão petista, Jacareí estabeleceu em 2012 a sua legislação cultural, com
sistema, fundo, conselho e plano, esse último aprovado por lei em 2016. A atual
gestão (PSDB) regulamentou em 2019 a lei do fundo, atualizou a lei do conselho
e realizou uma série de pré-conferências, fóruns e conferências setoriais pautadas
na revisão do Plano Municipal de Cultura. Na prática, a gestão peessedebista
revisou e aprimorou iniciativas estruturantes idealizadas ou iniciadas pelas
gestões petistas anteriores, dando continuidade à política pública de cultura
como política de Estado, e não apenas de governo. Legislação disponível em:
http://www.fundacaocultural.com.br/leis-culturais.
3.
PLANOS DE CULTURA:
ANÁLISE COMPARADA
DE CONTEXTOS
INTERNACIONAIS
154. O PLANEJAMENTO
Constanza Symmes Coll
174.
132. POLÍTICAS DE CULTURA
POLÍTICA CULTURAL
NOS ESTADOS UNIDOS
NO LONGO PRAZO: O CASO DO José Carlos Durand
PLANO NACIONAL DE CULTURA
DA COLÔMBIA
Paula Félix dos Reis
PLANOS DE CULTURA 105
EUROPA E ÁSIA
O presente artigo oferece uma revisão analítica do processo de elaboração da Política Nacional
de Cultura 2017-2022 no Chile, a partir da perspectiva dos modos de construção utilizados.
Aborda a questão de uma especificidade nas formas e nos mecanismos participativos do setor
cultural. Também considera a influência do contexto político-histórico e, em particular, sua
correspondência com a recente criação do Ministério da Cultura, Artes e Patrimônio (2017).
Introdução
S
em dúvida, nenhuma política pública examinar a estrutura organizacional da vida
começa do zero. Cada uma traz em cultural existente, fazer um inventário das
si um longo horizonte de processos instituições participantes e reorganizar seus
anteriores que vão consolidando aprendiza- aspectos normativos.2
gens, tanto institucionais quanto do mundo
social e associativo. Nesse sentido, exami- E a Comissão Ivelic (1997), com a tarefa de
nar uma política cultural implica entrar
em um processo que engloba uma rede de atualizar os diagnósticos e estudos dos seto-
atores, discursos, trocas complexas, produ- res artístico e cultural, estudar as políticas
ção de acordos e propostas que se encaixam de fomento às atividades artísticas e cultu-
nessa espécie de resultado final. rais, revisar as instituições culturais e pro-
por uma estrutura organizacional de acordo
Quadro político-institucional com o desenvolvimento atual do país.3
(1990-2017)
Desde o retorno à democracia chilena, em 1990, Culmina com a apresentação do relatório Chi-
vale mencionar a organização de duas comis- le Está en Deuda con la Cultura [O Chile Está
sões consultivas presidenciais em cultura. A em Dívida com a Cultura], propondo a criação
Comissão Garretón1 (1991), cuja missão foi: de uma instituição orgânica para o setor.
PLANOS DE CULTURA Constanza Symmes Coll 107
Nesse mesmo ano, o artista visual e governo, e institucional, por coincidir com o
dramaturgo Claudio Di Girólamo foi no- processo de criação de uma nova morfologia
meado chefe da Divisão de Cultura, depen- institucional, sendo elaborada durante esse
dência do Ministério da Educação. É uma trânsito de CNCA a ministério.
entidade cujos resultados chamam atenção Correspondendo a um terceiro exercí-
pelo desequilíbrio entre o tamanho de sua cio de política pública, esta tem como antece-
equipe e a abrangência do trabalho desen- dentes dois ciclos anteriores de formulação e
volvido: a Cartografia Cultural, um diretó- implementação, os documentos Chile Quiere
rio completo dos criadores nacionais, que Más Cultura. Definiciones de Política Cultu-
constituirá um banco de dados em primeira ral 2005-2010 [O Chile Quer Mais Cultura.
mão para gerar políticas futuras. Ou a inau- Definições de Política Cultural 2005-2010],
guração, em 1999, dos Cabildos Culturales4 o primeiro do período democrático, e Política
[Conselhos Culturais], sob Cultural 2011-2016.9
o lema “Do Chile vivido ao Em 2003 foi criado o A atual carta de nave-
Chile sonhado”, com o ob- Conselho Nacional de Cultura gação, apresentada publica-
jetivo de receber propos- e Artes, por meio da Lei no mente em janeiro de 2018,
tas das bases de cidadania. 19.891, órgão que dirigiu, por foi aprovada por unanimi-
Finalmente, após essa 14 anos, a atividade cultural dade pelo novo Conselho
trajetória, em 2003 foi nacional, até a fundação do Nacional.10 Com esse ato, é
criado o Conselho Nacio- Ministério da Cultura, Artes dada a ela continuidade de
nal de Cultura e Artes,5 por e Patrimônio, em 2017 Estado, reconhecendo-a
meio da Lei no 19.891, órgão como a política oficial do
que dirigiu, por 14 anos, a atividade cultural ministério, o que não é pouca coisa.11
nacional, até a fundação do Ministério da O Mincap, criado por meio da Lei no
Cultura, Artes e Patrimônio, em 2017.
6
21.045,12 reúne duas culturas institucionais
diferentes: a Direção de Bibliotecas, Arqui-
Política Nacional de Cultura 2017- vos e Museus (Dibam), criada em 1929 e que
-2022. Cultura e Desenvolvimento tem uma longa história de marcos culturais,
Humano. Direitos e Território7 como a fundação da Biblioteca Nacional,
Para analisar os modos de construção des- em 1813; e o CNCA, uma instituição jovem
sa política, focaremos em três aspectos: criada em 2003. Esse processo de cocriação
os níveis de participação dos cidadãos em de um novo órgão para a cultura nacional,
sua elaboração, o tratamento técnico-ins- juntamente com a modificação de funções
titucional e o mapa de conteúdos e orien- e competências e a incorporação de novas
tações estratégicas que a constituem. Suas áreas, aumenta a complexidade de seu tra-
peculiaridades a tornam particularmente balho, (re)definindo os contornos da ação
complexa e interessante como objeto de pública em cultura no Chile. Isso, encarna-
estudo.8 Isso do ponto de vista político, ao do em seu próprio nome, de modo plural,
estar atravessada por uma mudança de como um legado do processo de Consulta
108 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
maturidade. Não existe “um” setor cultu- abertos, entre múltiplos atores, visando ao
ral constituído como um todo uniforme. levantamento de insumos. Tanto a metodo-
De nossas pesquisas extraímos que o nível logia da convenção quanto a das políticas
de maturidade dos agentes que compõem culturais e sua estrutura foram elaboradas
o ecossistema da escrita não tem nenhuma pelo Departamento de Estudos25 do CNCA e
relação, por exemplo, com as dinâmicas co- validadas pelo Comitê de Políticas do Dire-
letivas do setor das artes visuais, que é mui- tório Nacional. Esse trabalho técnico consi-
to mais desagregado e tem baixos níveis de derou a geração de uma matriz de processos,
trabalho conjunto. documentos de apoio para os moderadores
Outro fator que acreditamos que pode de mesas, metodologias para o levantamento
influenciar em sua disposição de participar e a sistematização de informações, constru-
e mobilizar-se através de múltiplos canais ção de diagnósticos, trabalho sobre pontos
é a fragilidade política23 do setor cultural. críticos e para a consolidação e redação de
Isso em termos de seu peso constitutivo di- propostas em um documento final. Con-
ferencial em relação a outras pastas, como a centrou-se em um modelo combinado, res-
da Fazenda, a da Defesa ou pondendo à organização
a da Economia. Como veremos, a ênfase institucional em transfor-
participativa foi colocada mação e, ao mesmo tempo,
Um desenho no desenvolvimento de uma procurando incorporar a
metodológico metodologia de participação relativa tradição partici-
institucional centrada nas competências pativa e a aprendizagem
com pertinência técnicas da equipe de projeto, institucional, embora esta
de campo? para garantir a promoção tivesse sofrido mutações
Fernández e Ordoñez, 24 adequada de debates abertos, e ajustes, e a progressiva
em seu estudo de 2007, entre múltiplos atores, visando institucionalização vinha
definem três modalida- ao levantamento de insumos contendo e enquadrando
des de participação: ins- esses modos participativos
trumental, informativa e empoderadora. em direção a formas mais convencionais e
No caso do antigo CNCA, observamos que instaladas. Como aponta Delamaza:
há uma combinação das três, embora a úl-
tima fosse praticamente inexistente para os espaços e mecanismos de participação
além do “acompanhamento acordado” con- estão enraizados (embedded) em uma trama
templado na Política Nacional de Leitura institucional mais ampla. Suas possibilida-
e Escrita 2015. des de avanço, sustentabilidade, apropriação
Como veremos, a ênfase participativa cidadã, aumento de impacto (scaling up) e
foi colocada no desenvolvimento de uma me- capacidade transformadora estão direta-
todologia de participação centrada nas com- mente relacionadas à coerência e articula-
petências técnicas da equipe de projeto, para ção interna dos desenhos institucionais da
garantir a promoção adequada de debates gestão pública.26
PLANOS DE CULTURA Constanza Symmes Coll 111
Dessa perspectiva, consideramos que não um setor pequeno como este, na realidade não
houve acompanhamento de uma decisão dizem muito sobre a abrangência e a qualidade
política que fosse além no fortalecimento dessa participação nem sobre a idade, o gênero
de uma participação mais deliberativa, vin- ou a presença de pessoas de outros países pro-
culante e habilitadora dos atores sociais, no venientes de povos nativos ou outras comuni-
âmbito federativo, mas também no individual. dades cultoras.30 Em vez disso, eles falam sobre
As convenções se propuseram revigorar a par- a eficácia do desenho institucional, o acompa-
ticipação dos cidadãos e a transparência do nhamento de um cronograma e um plano de
Estado, mas é necessário abri-las e diversifi- trabalho que foram efetivamente cumpridos
car sua composição para além dos sindicatos. e conseguiram reunir um amplo repertório de
agentes da sociedade civil organizada. Não há
Canais institucionais de participação participação de pessoas individuais interessa-
Em relação às instâncias institucionais que das e m temáticas culturais, é uma participação
estruturaram e alimentaram a PNC, exis- que privilegia a presença de corpos federados.
tem as convenções (nacional, regionais e No que diz respeito à estruturação in-
macrorregionais), 27 as contas públicas e terna, é pertinente destacar que, embora
diálogos participativos e os encontros se- em exercícios anteriores de renovação das
toriais (e aqueles com foco em patrimônio). políticas as regiões e os setores artísticos
Em 2014 foi iniciado um processo participa- tiveram como base uma Política Nacional
tivo que atingiu seu auge em 2017 e contem- previamente aprovada, na versão atual se
plou a intervenção de mais de 5 mil pessoas trabalhou a partir de uma lógica inversa: “de
em 90 encontros.28 cima para baixo”. Primeiro, foram formuladas
A Convenção Nacional é uma instância as Políticas Setoriais a partir dos territórios e
de debate, de caráter anual (desde 2004), de setores artísticos e, em seguida, as Políticas
todos os órgãos colegiados do CNCA: o Di- Regionais, para depois, com esses insumos,
retório Nacional, os representantes do setor alimentar a PNC. Esse ponto é relevante, em
artístico e cultural, o Comitê Consultivo Na- termos estratégicos e de sustentabilidade da
cional, os Conselhos Regionais, os presiden- política, uma vez que se optou por operar com
tes dos Conselhos Consultivos Regionais e a lógica consagrada no novo quadro jurídico
dos Conselhos Setoriais (Escrita e Leitura, ministerial que entraria em vigor.
Música e Audiovisual), autoridades e expo-
sitores convidados, corpo diretivo e funcio- Abordagens constitutivas presentes
nários do CNCA. A partir desse conjunto O conteúdo da PNC está associado a duas
de instâncias, levantaram-se os conteúdos abordagens: a abordagem de direitos, basea-
temáticos, que foram constituindo o substra- da nos direitos culturais,31 e a abordagem
to conceitual e os diagnósticos trabalhados dos territórios, que considera o território
tecnicamente a seguir pelo CNCA.29 como uma relação social, identitária e cul-
Os números de participação apresenta- tural, além do desenvolvimento humano,
dos acima, embora sejam consideráveis para da perspectiva do Programa das Nações
112 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
intelectual. Tudo isso exige um trabalho impacto públicos. Da mesma forma, contri-
conjunto com instituições do Estado cuja buiria para adaptar desenhos e instrumen-
missão diz respeito a esses outros aspectos tos institucionais, torná-los menos rígidos
específicos. Isso com responsabilidades cla- e dar-lhes maior robustez setorial.
ras associadas a metas e indicadores. Talvez seja “propriamente cultural”
Da mesma forma, a profissionalização pensar nesse campo como uma estrutura
dos agentes culturais e seu ecossistema, o em permanente diálogo com outros seto-
fortalecimento de capacidades, o estabele- res, em que a cultura – representando toda
cimento de tarifas equilibradas e a circulação a atividade humana criativa e transforma-
internacional de obras, entre dora – toca múltiplos espaços.
outros aspectos, exigem ir A organização e Pensemos, por exemplo, na
além de uma abordagem cen- a coordenação temática ambiental, na vio-
trada somente no potencial de de instâncias de lência de gênero, na cultura
mercado. O objeto e a prática participação requerem científica, na saúde mental,
cultural são inseparáveis, e a um esforço e entre outras esferas, em que
proteção da obra depende di- capacidade institucional as questões culturais são de-
retamente da salvaguarda de significativos, tornando safiadas, podendo contribuir
seu criador. a experiência da PNC para a construção de políticas
Em terceiro lugar, acre- particularmente valiosa públicas com maior entrela-
ditamos que é necessária çamento e coerência estatal.
uma melhor articulação interna dos três Para concluir, diremos que a organiza-
níveis de desenvolvimento governamen- ção e a coordenação de instâncias de parti-
tal existentes: as políticas, os planos e os cipação requerem um esforço e capacidade
programas. Essa orquestração pode ajudar institucional significativos, tornando a ex-
a conciliar os planos de gestão institucio- periência da PNC particularmente valiosa.
nal com os programas, ampliando e forta- Apesar da riqueza desse processo, resta
lecendo as possibilidades de participação como tarefa ter maior diversidade de atores
das comunidades artísticas, cultoras e dos locais e territoriais, fortalecendo as possi-
cidadãos em geral na gestão de seus patri- bilidades de desenvolver cidadãos ativos e
mônios, das ofertas programáticas e na de- empoderados em assuntos comuns. Nesse
finição de fundos concursáveis, dotando-os sentido, o ministério tem um grande desafio
de maior pertinência territorial, eficiência e e uma possibilidade histórica.
114 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Referências bibliográficas
Notas
3 Relatório Ivelic, p. 6.
8 Por razões de ética profissional, a autora deste texto deve salientar que teve um
campo de observação privilegiado. Isso por trabalhar na época de 2016 a 2018
como chefe do Departamento de Estudos do CNCA.
116 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
11 Isso deveria ser, mas não é totalmente evidente nos contextos chileno e latino-
-americano, em que, a cada mudança de administração, ocorrem movimentos de
entrada e saída de funcionários públicos. Isso dificulta a continuidade da função
pública, as diretrizes e a ênfase dos programas em andamento e a solidez da
gestão estatal. Embora nos últimos anos tenham sido feitos avanços nos níveis
de institucionalização e profissionalização acima dos critérios político-partidários,
ainda há um longo caminho a percorrer.
16 De 6 de agosto de 2014.
20 Termo usado no Chile para descrever a situação vivida pela cultura como
resultado da ditadura militar.
28 Fonte: CNCA.
Este artigo procura esclarecer o processo que ocorreu no Uruguai no que diz respeito à elabo-
ração de um Plano Nacional de Cultura e de uma Lei de Cultura e Direitos Culturais entre os
anos de 2016 e 2019. Centra-se em sua análise descritiva, com ênfase nos eixos orientadores
propostos pela Direção Nacional de Cultura do Ministério de Educação e Cultura para a
discussão cidadã e dos setores artístico-culturais organizados.
E
m toda a América Latina, muitos • dando preferência aos aspectos
países têm ou tiveram vários pro- territoriais;
cessos de discussão, mais ou menos • priorizando as vozes dos setores
centralizados nos poderes do Estado, sobre artísticos e criativos;
o futuro de sua diversidade cultural, elabo- • considerando mais os cidadãos or-
rando diferentes rotas ou visões de longo ganizados ou grupos ou coletivos
prazo por meio de Planos Nacionais de Cul- agrupados por critérios identitários;
tura (PNCs). México, El Salvador, Colôm- • consultando grupos de especialistas
bia, Equador, Chile e Brasil são alguns dos para traçar as principais diretrizes a
países que realizaram seu PNC. Cada um ser seguidas;
utilizou suas próprias formas de participa- • gerando espaços para a participação
ção de acordo com os contextos nacionais, de cidadãos não organizados através
regionais ou locais. de plataformas digitais construídas
Na maioria dos casos, é o Estado, atra- para cada caso.
vés do Poder Executivo, que lidera o proces-
so de discussão, possibilitando espaços de Além disso, alguns desses processos con-
participação cidadã com múltiplos critérios: taram com a parceria do Poder Legislativo
PLANOS DE CULTURA Hernán Cabrera 121
sobre Cultura e Direitos Culturais propõe da diversidade cultural, com particular ên-
a criação de um Ministério da Cultura e Di- fase no papel do Estado em termos de con-
reitos Culturais (separado da Educação), a servação, difusão, restauração e pesquisa.7
criação de um Conselho Nacional de Cul-
tura e Direitos Culturais (órgão assessor, 5. Formação
consultivo e honorário) e a criação de vários São reconhecidos os avanços realizados nos
institutos que se somariam aos já existen- últimos anos na formação de profissionais
tes (alguns discutidos anteriormente foram: ligados às artes, à criatividade e à gestão cul-
um de música, um de artes visuais, um de tural. No entanto, a demanda por oficinas de
indústrias criativas e um de cidadania), bem formação artística persiste em todo o terri-
como a criação e consolidação de um Siste- tório, e as várias iniciativas de descentrali-
ma Nacional de Cultura.6 zação não conseguiram cobri-la. Além disso,
vê-se a necessidade de padronizar o conhe-
4. Patrimônio e cimento e fortalecer os laços entre a cultura
Desenvolvimento Econômico e a educação formal, assim como reconhecer
As discussões em torno desse eixo se cen- os saberes da educação não formal.
traram na salvaguarda e proteção do patri- O projeto de lei acima mencionado fala
mônio cultural natural, material e imaterial, da formação de recursos humanos e da for-
por meio do fortalecimento da gestão, assim mação de público. Além disso, no artigo 14,
como de melhores instâncias de coordena- propõe-se a incorporação nos currículos es-
ção entre as instituições públicas, privadas colares da apreciação das artes e da diversi-
e da sociedade civil. Além disso, foi aborda- dade cultural.
da a geração de mais empregos ligados ao
turismo cultural e ao desenvolvimento res- 6. Território
ponsável, bem como a formação e profissio- O territorial, como construção social, implica
nalização dos recursos humanos. Também que a cultura tem um papel fundamental em
foi manifestada a necessidade de reconhecer sua construção simbólica. “Ao ser um projeto,
o papel dos artistas e criadores e das mani- o território está semantizado. É suscetível de
festações e dos costumes ligados aos modos discurso. Tem um nome. Projeções de todos
de fazer e de estar no mundo próprios de de- os tipos estão ligadas a ele e o transformam
terminados territórios. em um sujeito” (CORBOZ, 2001, p. 28).
O processo de discussão abordou ainda Nesse sentido, os agentes territoriais
a criação de “rotas do patrimônio” ligando os destacam que o PNC deve contemplar três
bens e manifestações patrimoniais ao turis- níveis para a promoção cultural: i) desenvol-
mo cultural, à melhor distribuição territorial vimento local sustentável; ii) desigualdades
dos recursos e à conservação e valorização da locais e políticas de descentralização; iii)
diversidade patrimonial existente. práticas e manifestações locais e globais.
O Projeto de Lei sobre Cultura e Direi- Além disso, fala-se da criação de circuitos e
tos Culturais dedica seu artigo 9o à proteção rotas que incluam as festas e festivais, assim
126 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
produtos. Junto com essas demandas, surge cultura, com especial ênfase no desenvolvi-
também, especialmente nos setores das in- mento local, essa leitura parece não ter sido
dústrias culturais e criativas, o aprofunda- suficientemente profunda a ponto de ser
mento de novos papéis, como os agentes de apropriada por esses outros setores, dei-
vendas (literários, musicais xando a transversalidade
e audiovisuais), capazes de A institucionalidade é da cultura como um valor
colocar os produtos cultu- outra grande questão, nominal e declarativo.
rais nacionais nos merca- pois está intimamente Sem dúvida, graças
dos internacionais. ligada à coordenação, à à forma de trabalhar e à
Os processos consul- descentralização, a mercados quantidade de jornadas rea-
tivos e participativos tam- nacionais e internacionais, lizadas ao longo do processo
bém são uma necessidade alocação de recursos, de discussão, o eixo territo-
que preocupa os integran- legislação e infraestrutura rial é o mais desenvolvido
tes desses setores, que en- (que aparece recorrentemente e trabalhado. A riqueza de
fatizam especialmente a como uma demanda detalhes nos diagnósticos
atualização da informação específica de cada setor) e informações relativas aos
cultural e dos orçamentos territórios, assim como o
alocados às instituições do setor que atuam levantamento dos agentes culturais e a atua-
na esfera pública. lização do levantamento da infraestrutura,
Finalmente, e com menos frequência, está entre os pontos mais fortes dos docu-
surgem outras questões: o relegado papel mentos finais produzidos pelo acordo entre
das mulheres, a formação de público e a a DNC e a FCS.
acessibilidade. A abordagem por setores também mos-
tra o seu vigor e força, não se esquivando dos
Para terminar detalhes e facilitando espaços de diálogo e
Não há dúvidas sobre a riqueza do proces- discussão entre atores muito diversos. Nes-
so de discussão e diálogo em torno do PNC sas jornadas, ficou evidente que alguns seto-
descrito anteriormente. Tem sido dos mais res têm mais claros seus pontos fortes, suas
frutíferos e participativos na breve história necessidades e seus pontos fracos, leituras
dos debates sobre essa questão no Uruguai. que dependem do nível de institucionaliza-
No entanto, não foi capaz de produzir um do- ção e de associação.
cumento único que estabelecesse claramen- Falta saber como será desenvolvido o
te as bases para os caminhos que a cultura Projeto de Lei sobre Cultura e Direitos Cul-
socialmente organizada deve seguir no país turais, que ainda está sob análise do Poder Le-
nem foi capaz de manifestar claramente o gislativo. O que está claro é que a preocupação
vínculo com outros setores estratégicos que existe há cerca de 25 anos e que, tanto em nível
têm uma visão de longo prazo. Embora os do- territorial quanto nos setores artístico-cultu-
cumentos que tratam do processo reconhe- rais, a demanda tomou forma e atingiu pro-
çam recorrentemente o valor transversal da porções até o momento inusitadas.
128 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Hernán Cabrera
Tem formação em sociologia pela Faculdade de Ciências Sociais e pós-graduação em
gestão cultural, ambas pela Universidade da República (UdelaR), no Uruguai. Mestran-
do em cultura pública pela Universidade Nacional das Artes da República Argentina e
em política cultural pelo Centro Universitário Regional Leste da UdelaR. É gestor cultu-
ral, pesquisador e professor da licenciatura em gestão cultural da Universidade Centro
Latino-Americano de Economia Humana (UCLAEH). Além disso, ocupou vários cargos
de coordenação ligados às políticas públicas em cultura, tanto na Direção Nacional de
Cultura do Ministério de Educação e Cultura quanto na Direção de Planejamento do
Gabinete de Planejamento e Orçamento da Presidência da República.
Referências bibliográficas
Notas
6 Op. cit.
7 Op. cit.
PLANOS DE CULTURA Hernán Cabrera 131
POLÍTICAS DE CULTURA
NO LONGO PRAZO: O CASO
DO PLANO NACIONAL DE
CULTURA DA COLÔMBIA
Paula Félix dos Reis
N
a segunda metade do século XX, o e centros culturais e outras atividades no
governo da Colômbia realizou re- campo da cultura (DECRETO No 994, 1969,
formas políticas e administrativas artigo 4o, tradução nossa).
importantes que se destacam na história do
país. No setor cultural, através do Decreto A criação do Colcultura e a do Con-
no 3.154, de 26 de dezembro de 1968, o Ins- selho de Cultura foram momentos impor-
tituto Colombiano de Cultura (Colcultura) tantes no processo de institucionalidade
e o Conselho Nacional de Cultura foram da cultura colombiana no interior do Es-
criados, ambos ligados ao Ministério de tado, o que culminaria na criação de um
Educação. O Colcultura, organizado pelo ministério próprio em 1997. O Colcultura
Decreto no 994, de 10 de junho de 1969, era reuniu diversas instituições culturais exis-
o órgão responsável pelas políticas culturais tentes, como o Teatro e o Museu Nacional,
do governo. Ao instituto cabia e as agregou em torno das três subdireções
que compunham o instituto: Patrimônio;
a elaboração, o desenvolvimento e a execu- Comunicações Culturais; e Belas-Artes.
ção dos planos de estímulo e fomento às ar- Outro antecedente importante foi a for-
tes e às letras, o cultivo ao folclore nacional, mulação de uma nova Constituição Federal
o estabelecimento de bibliotecas, museus para o país. Em 1991, é promulgada uma nova
PLANOS DE CULTURA Paula Félix dos Reis 133
carta magna na Colômbia, gerando uma nova cultural, entre outros aspectos-chave [...]. É,
concepção do Estado e trazendo novos desa- pois, a Constituição de 1991 o fato político
fios diante da cultura. A constituição anterior cultural de maior transcendência.
datava de 1886. Segundo o ex-ministro Juan
Luis Mejía, esse é um dos marcos da política Como resultado das novas exigências e
cultural colombiana: responsabilidade do Estado em relação à
cultura, é aprovada a Lei Geral da Cultura
A política cultural é uma antes e outra de- da Colômbia. A referida lei, de número 397,
pois da Constituição de 1991. O que tínha- de 7 de agosto de 1997, dita as normas sobre
mos antes? De forma geral, tínhamos uma patrimônio cultural, fomentos e estímulos
política cultural sob uma institucionalidade à cultura. Outro ponto importante é a cria-
pensada para um país culturalmente homo- ção do Ministério da Cultura e a extinção do
gêneo, um país que havia se estruturado ao Colcultura:
redor de um mito falso de ser um país bran-
co, cristão, que só falava espanhol (MEJÍA, Cria-se o Ministério da Cultura como or-
16 abr. 2012, tradução nossa). ganismo reitor da cultura, encarregado de
formular, coordenar, executar e
Um dos grandes marcos da A criação de um vigiar a política do Estado na ma-
Constituição de 1991 é justa- ministério específico téria, em concordância com os
mente o reconhecimento da para a cultura não foi planos e programas de desenvol-
diversidade cultural do país e algo desejado por vimento, segundo os princípios de
da obrigação do Estado dian- todos ou isento de participação contemplados nesta
te da cultura. Isso se evidencia tensões lei (LEI No 397, 1997, artigo 66, tra-
nos princípios fundamentais dução nossa).
da Constituição, em que se afirma que “o
Estado reconhece e protege a diversidade Apesar de a Lei Geral da Cultura ter sido dis-
étnica e cultural da nação colombiana” e cutida amplamente antes da sua aprovação,
que “é obrigação do Estado e das pessoas registram-se discordâncias e oposições im-
proteger as riquezas culturais e naturais portantes. A criação de um ministério espe-
da nação” (COLOMBIA, 1991, artigos 7o e cífico para a cultura não foi algo desejado por
8o, tradução nossa). todos ou isento de tensões. Primeiro, havia
Segundo Bravo (2008, p. 215, tradução um paradoxo pertinente ao período, década
nossa), a Constituição de 1991 ressalta con- de 1990, em que se observava uma Consti-
ceitos culturais básicos, tuição que dava mais responsabilidades ao
Estado, ao mesmo tempo que a conjuntura
como plurietnicidade e pluriculturalidade, política externa pregava políticas neolibe-
liberdade de criação, relações entre cultura rais, exigindo estruturas mais enxutas e uma
e desenvolvimento [...], relevância do pa- atuação mínima do governo. Havia, também,
pel do Estado na relação com o patrimônio a desconfiança em relação ao dirigismo do
134 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
governo no âmbito cultural, pois alguns gru- pelo governo chileno entre 1999 e 2002, con-
pos acreditavam que esta não deveria ser sistindo em encontros realizados em âmbitos
uma área de atuação do Estado. local, regional e nacional para pensar e discutir
Cabe ainda destacar a oposição de um o desenvolvimento cultural do país.
grupo importante de intelectuais liderados O processo de elaboração do Plano Na-
por Gabriel García Marquez, cional de Cultura da Colômbia levou cerca
de um ano, período em que se destacam as
máximo expoente das letras colombianas, seguintes convocatórias:
figura mundial da literatura [...], não con-
siderava conveniente sua criação pelo te- I) c onvocatórias cidadãs;
mor da burocratização e da intervenção do II) convocatória do Ministério
governo na cultura (BRAVO, 2008, p. 297, da Cultura;
tradução nossa). III) convocatória do Conselho
Nacional de Cultura.
Diante dos antecedentes destacados, perce-
be-se a importância da década de 1990 para As convocatórias cidadãs ocorreram entre
as políticas culturais da Colômbia. Há uma julho e novembro de 2000, envolvendo reu-
maior institucionalidade da cultura no âmbi- niões setoriais e consultas à sociedade civil.
to governamental e a construção de políticas Nas reuniões setoriais, houve encontros com
participativas, envolvendo processos de es- grupos ligados às artes, a comunicações, pa-
cuta. Todo esse cenário é fundamental para trimônio, bibliotecas e museus. As consultas
a formulação do Plano Nacional de Cultura à sociedade civil mobilizaram encontros nos
(PNC), que esteve em vigência entre os anos âmbitos municipal (540 encontros); depar-
de 2001 e 2010, e pode ser citado como um dos tamental e distrital (realizados em todos os
exemplos de políticas participativas do país. 32 departamentos e nos 4 distritos colombia-
nos); regional (7 encontros); e nacional. Ao
II – Processo de elaboração todo, cerca de 23 mil pessoas participaram
O período de formulação do Plano Nacio- do processo de convocatória (MINISTERIO
nal de Cultura colombiano ocorreu espe- DE CULTURA, PNC, 2001).
cialmente entre os anos de 2000 e 2001. É A convocatória do Ministério da Cultu-
importante relembrar que, nesse período, ra esteve relacionada com todos os esforços e
o Ministério da Cultura era recente, com mobilizações necessários interna e externa-
apenas dois anos de criação, e já estava com mente ao órgão. O ministério precisava estar
um terceiro ministro.1 Somente no intervalo consciente da importância do processo de
entre a formulação e a finalização do plano, formulação e do próprio Plano Nacional de
foram três gestores. Cultura. Além disso, havia um trabalho de
Segundo o então ministro da Cultura, Luis articulação com os grupos culturais e os ou-
Mejía,2 o PNC teve como inspiração os Cabil- tros âmbitos da administração pública (mu-
dos Culturais do Chile, programa desenvolvido nicípios, departamentos, distritos e regiões).
PLANOS DE CULTURA Paula Félix dos Reis 135
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Medellín no dia 16 de abril de 2012.
Notas
Este artigo trata de uma mudança significativa nas políticas culturais da Argentina, que
passaram da redação de planos nacionais de cultura para a formação de institutos setoriais
de cinema, teatro e música. Refere-se à passagem de uma administração relativamente cen-
tralizada e planejada de ação pública nos domínios da área para outra de institutos por setor,
com fundos próprios que concedem subsídios, créditos e outros apoios a atores privados e
independentes. Isso está em sintonia com as regulamentações de mercado para promover
a cultura como economia e negócio, propiciadas pela abstenção do Estado.
E
ste artigo trata de uma mudança sig- mais recentemente, o Instituto Nacional
nificativa nas políticas culturais da da Música (Inamu, Lei n o 26.801/2013).
Argentina, que passaram da redação Esses institutos têm uma matriz comum
de planos nacionais de cultura, nas décadas em sua organização como instrumentos
de 1980 e 1990, para a formação de institutos de promoção e desenvolvimento voltados
setoriais, de meados da década de 1990 até a para os praticantes de cada um desses
atualidade. Os planos foram elaborados pela domínios. Embora estejam no âmbito da
Secretaria de Cultura da Nação (SCN),1 com SCN, são caracterizados pelo poder de de-
princípios, objetivos, programas e linhas de cisão conferido às suas autoridades e por
ação prioritárias, fazendo referência a de- ter estatutos jurídicos que consagram sua
bates em encontros de autoridades federais, autonomia administrativa e financeira. O
regionais e provinciais. Incaa e o Inamu têm status de “entidade
Durante a transição democrática, a pública não estatal”, razão pela qual são
Argentina teve quatro planos de cultura, regidos pelo direito privado, facilitando
que depois deixaram de ser feitos. Por ou- fugir das regulamentações públicas e acei-
tro lado, foram criados o Instituto Nacio- tar vínculos com os mercados. Assistimos,
nal de Cinema e Artes Audiovisuais (Incaa, assim, à passagem de uma administração
Lei no 24.377/1994), o Instituto Nacional relativamente centralizada2 e planejada de
de Teatro (INT, Lei n o 24.800/1997) e, ação pública nos domínios da área para o
PLANOS DE CULTURA Rubens Bayardo 145
modelo de institutos por setor com fundos e dança, artes visuais, Instituto Nacional de
próprios que concedem subsídios, créditos Cinema (INC), entre outras].
e outros apoios a atores privados e inde- O Plano Federal de Cultura de 1990 se
pendentes. Isso está em sintonia com as re- destacou pelo caráter protagonista que as
gulamentações de mercado para promover províncias e as regiões4 do país deveriam
a cultura como economia e negócio, propi- adquirir em detrimento do “centralismo por-
ciadas pela abstenção do Estado. tenho”. Daí sua denominação como “federal”
e sua proposta de novos olhares: “a região a
Os planos nacionais de cultura partir da região”, “a metrópole a partir da re-
Na transição democrática, a Argentina teve gião” e “o mundo a partir da região”. O plano
quatro planos de cultura, sendo um durante se baseava em três eixos centrais: a unidade
o governo de Raúl Alfonsín (União Cívica nacional, a revolução produtiva e a integra-
Radical), o Plano Nacional de Cultura de ção latino-americana. Apelava para slogans
1984-1989; e três durante o primeiro gover- historicamente associados ao partido no
no de Carlos Menem (Partido Justicialista), poder e destacava o papel das ações cultu-
o Plano Federal de Cultura de 1990, o Plano rais na construção de um novo pacto social
Nacional de Cultura de 1992 e o Plano Nacio- para consolidar a unidade nacional. O eixo da
nal de Cultura de 1994.3 Estavam claramente “revolução produtiva” se referia aos bens cul-
relacionados aos momentos políticos em que turais como objetos de mercado, enfatizando
foram elaborados e estabeleciam princípios seu caráter industrial e midiático, estabele-
gerais de política cultural, objetivos, inicia- cendo uma visão econômica da cultura que
tivas jurídicas, organizacionais e de ação se tornaria predominante. Ao mesmo tempo,
cultural que visavam atingir todo o territó- sustentava a necessidade de uma nova cul-
rio nacional. tura do trabalho para aprofundar reformas
O Plano Nacional de Cultura de 1984- neoliberais. As áreas programáticas nas
-1989, encabeçado pelo slogan “A cultura é quais o plano era organizado e as ações pla-
de todos”, dava especial atenção ao retorno nejadas seguiam as diretrizes anteriormente
à vida democrática e ao papel da cultura na mencionadas com uma estrutura similar à
recuperação do espaço público após as dita- do plano anterior.
duras. Baseava-se nos princípios de liberda- No Plano Nacional de Cultura de 1992
de de criação, estímulo à produção cultural, havia poucas definições da questão cultural,
participação na distribuição de bens e ser- e a fundamentação das propostas de ação era
viços culturais e preservação do patrimônio mínima. O plano destacava o protagonismo
cultural. Era um plano conceitualmente dos destinatários da ação cultural, entendi-
fundamentado, com uma elaboração cuida- dos como uma comunidade que deveria for-
dosa dos objetivos, programas e ações a ser talecer a identidade, o sentimento nacional e
seguidos, organizados em torno da estrutura a unidade nacional. Havia menos referências
de administrações e organizações descentra- político-partidárias do que no plano anterior,
lizadas da SCN [museus, livro, música, teatro e as áreas em torno das quais o planejamento
146 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Apoio ao Teatro (Mate), liderado por figuras Independentes (ATI), a Associação Argen-
emblemáticas do MTI. Segundo Mario “Pa- tina de Empresários Teatrais (Aadet), a
cho” O’Donnell, então secretário de Cultura, Sociedade Geral de Autores da Argentina
foi por proposta dele que foram iniciadas (Argentores) e a AAA.
conversas em torno de uma lei que, embo-
ra fosse uma antiga reivindicação do setor, Música
entrou em vigor e se concretizou durante A música ao vivo, gravada e/ou transmitida
sua gestão (MENDES CALADO, 2004 b). por meios audiovisuais ou outros, também
A Lei Nacional do Teatro (no 24.800 / é um domínio importante no país, regido
1997) criou o Instituto Nacional do Teatro por repartições da área cultural. Em 1958,
(INT) como um órgão descentralizado com foi aprovado o Regime Legal de Trabalho
autarquia administrativa sob jurisdição da dos Executantes Musicais (Lei no 14.597),
SCN. O INT administra um fundo para a pro- que não entrou em vigor por falta de regu-
moção da atividade integrado pelo orçamen- lamentação, até que o presidente Néstor
to nacional, porcentagens Kirchner o regulamentou
fiscais e renda própria. No- A Lei Nacional do Teatro por decreto (no 520/2005). A
venta por cento dos recur- (n 24.800/1997) criou
o
lei foi impulsionada pelo Sin-
sos devem ser destinados o Instituto Nacional do dicato Argentino de Músicos
às despesas operacionais Teatro (INT) como um (Sadem), a fim de regulamen-
de apoio a criadores, pro- órgão descentralizado com tar as condições de trabalho
jetos, elencos e teatros in- autarquia administrativa em relação à dependência de
dependentes, às salas com sob jurisdição da SCN executantes musicais, que ti-
menos de 300 lugares, nham que se filiar à entidade
obras de autor nacional ou residente e pro- para ser reconhecidos como tais (VREIS,
postas que envolvam programações anuais. 2018, p. 138 e seguintes).
Os recursos são distribuídos para Quase meio século depois, porém, as
produção, equipamentos, melhoria da in- práticas musicais mudaram. O salário e as
fraestrutura, estudos, aperfeiçoamento e contratações diminuíram, e predominou o
intercâmbios, assistência técnica, edição de trabalho autogerido e independente com
materiais etc., através de concursos, bolsas pouca ou nenhuma formalização. Muitos
de estudo, prêmios, festivais e mostras, por músicos não se sentem representados pelo
exemplo. O INT é presidido por um diretor- Sadem, uma entidade que consideram não
-executivo, acompanhado por um conselho ter legitimidade para julgar se são ou não
de administração composto de um represen- músicos, e questionam a forma como ela ge-
tante da SCN, seis representantes regionais rencia a arrecadação das contribuições dos
(um para cada região, eleitos por e entre os filiados e previdenciárias. Inúmeros artistas,
24 representantes provinciais concursados) empresários e organizações de músicos in-
e quatro representantes do setor aprovados dependentes protestaram contra o decreto,
por entidades como a Associação de Teatros que finalmente foi revogado por Kirchner,
PLANOS DE CULTURA Rubens Bayardo 149
Referências bibliográficas
Notas
O PLANEJAMENTO CULTURAL NO
MÉXICO DURANTE O GOVERNO DE
ANDRÉS MANUEL LÓPEZ OBRADOR
Eduardo Nivón Bolán
A
política cultural no México é, sem e intelectuais afins articularam um projeto
dúvida, um dos fatores que contri- que valorizou a cultura popular, o patrimô-
buíram para a notável estabilidade nio e a educação nacionalista. Foi um pro-
do regime que surgiu da Revolução Mexi- cesso cultural que conseguiu direcionar a
cana. Esta foi, na realidade, um conjunto adesão dos setores populares para uma or-
de movimentos sociais pela democracia, ganização política corporativa, conhecida
pela restituição das terras de onde haviam desde 1946 como Partido Revolucionário
sido retirados camponeses e povos indí- Institucional (PRI), e para o regime de na-
genas durante o século XIX, pelos direitos cionalismo revolucionário.
sociais dos trabalhadores e moradores das Essa política cultural impetuosa, cujo
cidades e pela defesa da soberania da nação. impulso chegou à década de 1970, começou
Atualmente entendida como a construção a declinar no último terço do século XX,
do ajuste simbólico do campo político, a ao mesmo tempo que a capacidade do Es-
política cultural conseguiu dar sentido ao tado de atender às demandas sociais foi se
novo Estado como um dispositivo legítimo esgotando e o obrigou a reestruturar suas
de transformação da realidade social, que políticas econômicas e o próprio modelo de
merecia o apoio e a adesão da maioria dos gestão pública. Embora o planejamento pú-
cidadãos, especialmente dos trabalhadores blico remonte às próprias origens do Estado
do campo e da cidade. Professores, artistas pós-revolucionário,1 foi na década de 1980
PLANOS DE CULTURA Eduardo Nivón Bolán 155
que ocorreu uma profunda transformação desse departamento.2 Desta forma, abriu-se
normativa. Miguel de la Madrid Hurtado, a possibilidade administrativa de planejar
que foi presidente de 1982 a 1988, veio da a cultura de forma específica, além das di-
Secretaria de Programação e Orçamento e retrizes da SEP. De fato, até antes de 1988,
testemunhou os excessos autocráticos de o planejamento cultural, inclusive a políti-
presidentes anteriores e o colapso econô- ca cultural, estava centrado no que os dois
mico de 1982. Agora, encarregado de um grandes institutos nacionais de cultura, o
Estado com graves limitações econômicas, de antropologia e história e o de belas-artes
em um ambiente internacional que promo- e literatura, definiam para seus respectivos
via uma virada para o neoliberalismo e com campos de competência. Agora, era possível
a pressão de movimentos sociais cada vez fincar uma bandeira no planejamento do go-
mais amplos em prol da democracia, dos di- verno federal e definir um orçamento preciso
reitos humanos e da defesa das condições de para a cultura.
vida de seus simpatizantes, assumiu o poder Isso faz pensar em um certo parale-
com dois objetivos básicos: um chamado à lismo com o desenvolvimento da política
Renovação Moral da Socie- cultural francesa, uma vez
dade e a promoção de uma A capacidade do Estado de que a primeira tarefa que o
gestão organizada da ativi- atender às demandas sociais ministro de Assuntos Cul-
dade pública a partir do pla- foi se esgotando e o obrigou turais, A. Malraux, assumiu
nejamento estatal. Também a reestruturar suas políticas foi a de incorporar o setor
foi ele quem deu uma virada econômicas e o próprio cultural ao planejamento
radical no modelo econômi- modelo de gestão pública cultural (e a necessidade
co predominante, acabando de atribuir-lhe recursos).
com o protecionismo estatal e abrindo a eco- Quando, em 1970, a Unesco publicou o re-
nomia para a competitividade internacional. latório Some Aspects of French Cultural
Em termos de cultura, quase no final Policy, elaborado pelo Departamento de Es-
de seu período de governo e quando a nova tudos e Pesquisa do Ministério da Cultura
administração de Carlos Salinas de Gortari francês,3 os autores iniciaram o documento
estava prestes a iniciar, as duas câmaras le- apontando precisamente a virada causada
gislativas constituíram duas comissões de pelo planejamento, um dos elementos que
cultura que permitiram, pela primeira vez, mais tarde foram considerados dentro dos
uma atenção focada especificamente nesse padrões mínimos de ação de qualquer ins-
setor à margem da educação. Poucos dias tância cultural.4
depois de assumir o poder, Carlos Salinas
criou o Conselho Nacional para a Cultura A regulamentação federal
e as Artes (Conaculta), desligando o setor sobre planejamento
cultural da tutela imediata da Secretaria de É conveniente levar em conta pelo menos
Educação Pública (SEP), embora isso, na três elementos normativos do planejamento
realidade, dependesse da vontade do titular governamental no México:
156 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
que é o fruto de seu compromisso com os po- chegasse ao governo. Em 2018, esses 35%
vos indígenas e com os setores populares de de eleitores que o apoiaram 12 anos antes
seu estado natal, além de sua luta obstinada cresceram para 53%.
pela Presidência da República e pela denún- A chegada de López Obrador à Presi-
cia da corrupção. dência da República tem, como ele se esfor-
Como caracterizar López Obrador como çou para mostrar, um sentido fundacional.
político? Poucos dias antes das eleições de Sua liderança carismática se expressa, no
2006, Enrique Krauze publicou um ensaio governo e na forma como ele se comporta
intitulado “O messias tropical”. É um dos inú- diante dos outros poderes do Estado, na su-
meros observadores que tentaram elucidar o pressão de qualquer tipo de mediador insti-
caráter e as ideias do atual presidente em ter- tucional, incluindo seu próprio partido, para
mos de seu próprio desenvolvimento pessoal, o acesso aos recursos públicos. Ele convoca,
sua sensibilidade e seu pensamento íntimo, fala, decide e faz isso diariamente com vigor.
sem beirar o psicologismo. López Obrador se Não há, nem houve, orgulha-se López Obra-
convenceu muito cedo de seu papel na histó- dor, um governante no mundo que dê uma
ria. Ele se sentiu chamado a renovar o poder coletiva de imprensa diária.
político a partir de uma prática incorruptível Uma das chaves das políticas públicas
e a tornar o relacionamento povo-governo em que López Obrador quer desenvolver é sua in-
povo que governa. Às vezes, expressa um pen- tenção de fazê-las com um tom participativo,
samento religioso, com o qual teve cuidado embora as formas deixem muito a desejar. É
para que não se tornasse um elemento que o o povo, e não os técnicos, que realmente co-
afastasse de alguns setores da população, mas nhece os problemas e, portanto, as decisões
que está presente em muitas de suas defini- que devem ser tomadas. Por exemplo, a grande
ções políticas e ideológicas. Assim, frequente- obra de infraestrutura do governo anterior,
mente expõe um pensamento político baseado o novo aeroporto da Cidade do México, que
no amor e na fraternidade, que guia, segundo já tinha uma grande porcentagem de reali-
ele, sua política social e cultural, as decisões zação, foi submetida a uma consulta pública
orçamentárias, suas iniciativas legais e até seu em outubro de 2018 para decidir sobre seu
programa de segurança. cancelamento ou sua continuidade. Com
Deve-se insistir no caráter messiânico uma participação de quase 713 mil pessoas
de sua ação política. O cientista político e e sem controles para verificar a qualidade da
jornalista David Rieff, que acompanhou sua consulta, mostrou-se que a obra deveria ser
campanha no sul do México em 2006, es- cancelada, o que foi feito.
creveu que, apesar de sua derrota, com seu Após algumas semanas, foi realizada
entusiasmo pessoal, López Obrador cons- outra convocatória para votar sobre dez pro-
truiu uma aliança praticamente incondicio- gramas que o novo governo considerava de
nal com os desencantados com o sistema, primordial importância, como a construção
apesar de muitas de suas propostas serem de uma enorme obra de infraestrutura fer-
vistas como impossíveis de realizar se ele roviária chamada Trem Maya, o plantio de
PLANOS DE CULTURA Eduardo Nivón Bolán 161
destaca a diversidade cultural, coleta alguns No entanto, o PND elaborado por Carlos
dados sobre infraestrutura e patrimônio Urzúa não agradou ao presidente López Obra-
material e imaterial, o planejamento artís- dor, que o viu como “continuísmo”. Era uma
tico e se concentra na questão do acesso e concepção ainda na inércia neoliberal e era
inclusão. Define sete estratégias: necessário fazer a diferença.15 Ou seja, não se
diferenciava dos planos da “época neoliberal”,
• fomentar o acesso à cultura para toda a ponto de usar inclusive a mesma linguagem
a população, promovendo a redistri- técnica. Por esse motivo, ele rapidamente de-
buição da riqueza cultural e desenvol- cidiu elaborar outro documento, mostrando a
vendo esquemas de planejamento in- ruptura que seu governo representava. Esse
tercultural, inclusivo e participativo; outro documento, disse ele, “tem como con-
• impulsionar a formação e profissio- texto o plano liberal de 1906 e o plano sexenal
nalização artística e cultural dos in- do general Lázaro Cárdenas [1934], sem ter-
divíduos, comunidades, coletivos e mos próprios da política neoliberal”.16 Então,
trabalhadores da cultura, e fornecer resultou em um texto basicamente declarati-
opções de iniciação, capacitação e vo, uma soma de suas promessas de campanha
atualização para toda a população; com um escopo pouco preciso. Ao submeter
• promover e ampliar a oferta cultu- dois planos ao Congresso, gerou confusão,
ral em todo o território nacional e pois alguns deputados acharam que o Exe-
desenvolver o intercâmbio cultural cutivo não tinha metas precisas e que não
do México com o exterior; era possível entender a relação entre os dois
• salvaguardar e difundir a riqueza pa- documentos. Isso foi “resolvido” indicando
trimonial do México, material e ima- que o verdadeiro Plano Nacional era o elabo-
terial, bem como promover a apro- rado pelo presidente e que o elaborado pelo
priação social das ciências humanas, secretário da Fazenda e Crédito Público era
das ciências e das tecnologias; apenas um anexo. Por fim, apenas o primeiro
• fortalecer as indústrias culturais e documento foi aprovado e publicado no Diário
empresas criativas para gerar e di- Oficial da Federação, em 12 de julho de 2019.
fundir seus conteúdos; Trata-se de um documento feito com
• desenvolver e otimizar o uso da in- muita pressa e pouca supervisão a partir dos
fraestrutura cultural pública, levan- discursos do próprio presidente. Há questões
do em consideração as particularida- muito relevantes, como a ambiental, que não
des e necessidades regionais do país; são tratadas no documento, e outras são tra-
• reconhecer, preservar, proteger e esti- tadas de forma incompleta. Nos quatro pará-
mular a diversidade cultural e linguís- grafos dedicados à cultura, menciona-se, por
tica do México, com atenção especial exemplo, o Instituto Nacional de Belas Artes
às contribuições dos povos indígenas e Literatura, mas não o Instituto Nacional
e afro-mexicanos e de outros grupos de Antropologia e História. Há quatro linhas
historicamente discriminados. centrais sobre a cultura:
PLANOS DE CULTURA Eduardo Nivón Bolán 165
cultura 2020-2024, o que suscita diversas importantes. Por que planejar esses obje-
reflexões sobre a situação do setor cultural tivos se a sociedade em geral os entende e
no país. No entanto, com o que foi aponta- os apoia?
do até aqui, pode-se desenhar o que seria o É possível sustentar que o atual go-
planejamento cultural no país. Esse quadro verno acompanha essa consideração com
mostra a preeminência política de atenção uma segunda, a qual considera que a entro-
aos setores marginalizados a partir do pro- nização do planejamento do Estado ocorreu
grama chamado cultura comunitária. Isso junto com a instauração do neoliberalismo,
representa efetivamente uma virada com que colocou a tônica na gestão para envolver
relação aos programas anteriores centrados suas finalidades perversas com uma aura
no patrimônio ou na difusão. A virada tam- de racionalidade que agora precisa ser des-
bém se expressou em nível orçamentário, montada. Em outras palavras, os critérios
porque, embora o orçamento da Secretaria para planejamento e avaliação das políticas
de Cultura não tenha aumentado, a atenção públicas não são adequados para promover
aos grupos comunitários sim. um verdadeiro desenvolvimento, justo e
sem desvios.
O Plano Setorial de Cultura ou a crise Com muita frequência, o presidente
nas políticas públicas de cultura tem rejeitado conceitos usados no plane-
O presidente López Obrador tinha até 12 jamento e na avaliação das políticas públi-
de janeiro de 2020, ou seja, seis meses, para cas por serem insuficientes e encobridores:
publicar os planos setoriais e institucionais crescimento não é desenvolvimento; em-
das diversas dependências de seu governo. prego não é a mesma coisa que ocupação;
Embora em outras administrações tenha descentralização não é um fator de eficiên-
havido atrasos na comunicação de planos cia; subsidiariedade não é desenvolvimen-
específicos, agora era notável a ausência de to local; autonomia não é liberdade para se
uma ampla discussão sobre o planejamento governar, mas para se corromper; a divisão
setorial em todas as áreas. de poderes não é garantia de controle do
As razões pelas quais ele não o fez são Estado... Em sua perspectiva, é necessário
desconhecidas, e só resta supor algumas. A produzir uma revolução no sentido da ação
primeira é que o presidente da República e pública, e isso não é possível se for assumida
seus colaboradores imediatos consideram a linguagem do planejamento.
que o planejamento é desnecessário. As li- Finalmente, pode-se pensar que o pla-
nhas de governo já estão definidas: redis- nejamento é simplesmente uma perda de
tribuição de renda, combate à corrupção, tempo, porque os planos não são cumpridos
relançamento de empresas estatais, univer- e, pelo contrário, dificultam a tomada de de-
salização dos serviços, moralização da vida cisões, o que é evidente na rapidez com a qual
pública e privada, priorização do ataque aos o presidente emite uma diretriz e nas difi-
fatores causais dos problemas sociais e não culdades para que esta se traduza em ações
aos seus sintomas, entre os objetivos mais percebidas pela sociedade.
PLANOS DE CULTURA Eduardo Nivón Bolán 167
crescimento, mas ainda não definiu em que e normativa, como foi feito em termos de
isso consiste. Se se trata da implantação cultura comunitária, é abrir uma frente de
de políticas redistributivas que reduzam fragilidade e ineficiência.
a desigualdade, como elas se expressam Com base nos critérios que apresen-
no campo da cultura? Na “redistribuição tei, considero que existe uma profunda cri-
da riqueza cultural”, como foi expresso no se de política cultural no México, agravada
confuso Projeto Nação divulgado antes das pelo silêncio e pela falta de uma atitude
eleições? Não seria melhor considerar que proativa da Secretaria de Cultura Federal
consiste em ampliar as capacidades ele- para construir uma visão global da política
tivas de todos os setores da sociedade em cultural no país.
termos culturais?
Uma política cultural é inseparável de Palavras finais
uma ideia adequada de como ela é geren- Neste texto, segui o curso do planejamento
ciada. A política define o “que”; e a gestão, cultural nos últimos 30 anos, a fim de enqua-
o “como”. Para isso, foram drar mais facilmente as dife-
desenvolvidas diversas re- Focar a política cultural em renças que implica a política
flexões que caminharam equipamentos com fraca cultural de López Obrador.
em três âmbitos: o que as definição institucional Na minha perspectiva, o que
instituições devem produzir e normativa, como foi está acontecendo atualmen-
de acordo com os objetivos feito em termos de cultura te no México sugere que há
públicos definidos pelas ins- comunitária, é abrir uma crise na política cultu-
tâncias de participação da uma frente de fragilidade ral entendida como política
sociedade; a definição des- e ineficiência pública. A institucionalidade
ses objetivos públicos atra- cultural em si não corre risco,
vés de políticas de participação cidadã; e as mas sim a integralidade da política cultural e
medidas de coerção e estímulo para que os seu vínculo com o que foi chamado de setor
objetivos sejam cumpridos. Isso é ainda mais cultural, constituído por todos os atores e em-
necessário do que a política cultural federal. presas culturais que geram uma parte signi-
Por não possuir os instrumentos para atin- ficativa do PIB nacional (3,2%) e empregam
gir toda a sociedade, requer a participação e cerca de 1 milhão de pessoas. O motivo dessa
o acordo com as instituições culturais dos desvinculação não está na abordagem da cul-
estados e municípios do país. tura comunitária, mas em sua segregação da
Finalmente, uma política cultural pre- política cultural como um todo e na falta de
cisa de instrumentos institucionais que vínculos que deem sentido a toda a orienta-
possuam normas precisas de operação. No ção cultural do Estado. Uma reflexão pública
México, os institutos, centros e fundos cul- sobre o planejamento cultural, com o envol-
turais estão mais bem estabelecidos nesse vimento de todos os setores que intervêm no
sentido. Focar a política cultural em equi- campo cultural, provavelmente possibilitaria
pamentos com fraca definição institucional a superação dessa crise.
PLANOS DE CULTURA Eduardo Nivón Bolán 171
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Notas
POLÍTICA CULTURAL
NOS ESTADOS UNIDOS
José Carlos Durand
O artigo recupera traços da história cultural dos Estados Unidos e se atém ao período mais
recente, a partir dos anos 1960, quando começa a se formar uma complexa rede de órgãos
públicos e privados de apoio econômico e institucional às artes. A referência principal é o
National Endowment for the Arts (NEA), fundado em 1965, que oferece bolsas e prêmios,
encomenda obras de arte, incentiva doações via imposto de renda, cria e gerencia instala-
ções culturais, tomba e conserva o patrimônio e protege os direitos de autor. Faz tudo isso
com verba diminuta e cuidados especiais para não contrariar o conservantismo moralista
dentro e fora do Congresso. Ao fim, caracteriza-se o lado big-business do cinema, da edição
de livros e dos megashows da Broadway.
S
em Washington. A razão dessa última é a
ólidas razões enraizadas na história desconfiança visceral do cidadão comum
dificultam que se localize, na expe- em relação a um poder central sempre
riência política e administrativa dos suspeito de querer virar tirania, o que res-
Estados Unidos, algo que lembre um plano ponde pela força dos governos estaduais,
nacional de cultura. Em contraste com an- marcando a história política federativa dos
tigas nações europeias (França, em parti- Estados Unidos.
cular), podem-se aventar algumas razões: Por outro lado, presença de um dinâmi-
a) ausência de uma cidade capital que haja co amálgama de culturas minoritárias: ne-
concentrado, ao longo do tempo, a repre- gros, indígenas, imigrantes de procedência
sentação do poder político, econômico, cul- diversa, com línguas e costumes próprios,
tural e religioso; b) ausência de uma elite que se mesclaram no vigoroso processo de
única, visível e coesa, capaz de irradiar seu expansão geográfica e de mobilidade social
poder país afora; c) correlatamente, ausên- que os Estados Unidos viveram entre o fim da
cia de um sistema público e integrado de Guerra Civil (1861-1865) e o fim da Primei-
ensino capaz de impor sua pedagogia em ra Grande Guerra, em 1918, e prosseguindo
PLANOS DE CULTURA José Carlos Durand 175
depois, ainda que em ritmo menor. Como Tendo o país um sistema de valores que
efeito de conjunto, restou um fraco poder celebra o indivíduo, a propriedade privada e
simbólico da cultura erudita, incapaz de a comunidade local, o governo federal ficou
exercer hegemonia ampla e de se sobrepor como que dispensado de articular ações mais
às indústrias culturais, que, estas sim, se for- decisivas e ter papel proeminente no apoio às
maram rapidamente e prosperaram na esfera artes. Isso só aconteceu pontualmente: por
privada, sob a égide do mercado. exemplo, em 1935, quando, diante da pobreza
O que se chama hoje de cultura popular, desesperadora que se seguiu à crise de 1929, o
no singular, para os Estados Unidos, é basica- presidente Roosevelt criou o Work for Progress
mente o resultado desse processo, e por isso Administration e chegou a empregar 3.700 ar-
é sinônimo de cultura de massa. Inclua-se tistas, encomendando, entre outras iniciativas,
aí o remanescente de culturas locais antigas telas e esculturas para prédios públicos.
e ainda relativamente ínte- Na fronteira internacio-
gras, a folk and traditional Sólidas razões enraizadas nal, houve momentos em que a
culture, tal como aparece na história dificultam que estratégia político-militar im-
hoje no discurso de preser- se localize, na experiência pôs reforçar a imagem do país
vação do patrimônio. política e administrativa no estrangeiro. Por exemplo,
O dinamismo econô- dos Estados Unidos, algo em 1941, quando se implantou
mico ocorrido entre 1870 e que lembre um plano em Nova York, por iniciativa e
1920 elevou a renda de gran- nacional de cultura patrocínio de outro magnata,
de parte da população e fez Nelson Rockefeller, um progra-
emergir a figura do magnata, dono de grande ma de aproximação cultural com a América
fortuna. Para se proteger do estigma de violar Latina. Artistas latino-americanos eram le-
a livre concorrência ao operar como trustes e vados a visitar o país, a fazer apresentações
cartéis, alguns bilionários se voltaram para a fi- e exibições, a conhecer suas grandezas e,
lantropia, criando fundações poderosas. Entre assim, a reforçar em si os princípios liberais
outras causas, alguns deles apoiaram significa- contra a crescente influência nazifascista
tivamente as artes e a cultura (A&C). É o caso sobre a América do Sul.
de Andrew Carnegie, que, em 1919, financiou a O segundo pós-guerra foi um momento
construção de 2.800 bibliotecas públicas pelo importante de recuperação da vida cultural
país, além de um importante centro cultural não só nos Estados Unidos, como também
(Carnegie Hall, Nova York) e de duas universi- na Europa, onde a ação de Estado foi forta-
dades (Nova York e Pittsburgh). E de Jean-Paul lecida pela criação ou pelo fortalecimento de
Getty, filho de um empresário de petróleo que, ministérios ou secretarias. Na França, por
além de ampliar a fortuna paterna no mesmo exemplo, foi fundado, em 1959, o Ministère
negócio, colecionou obras de arte, criou um des Affaires Culturelles, que, durante seu
museu de arte na Califórnia (Getty Museum) primeiro decênio, foi dirigido por um inte-
e nele instalou importantes coleções de grande lectual de respeito, André Malraux, e serviu
valor compradas no estrangeiro. de exemplo para outros países do continente.
176 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
públicas é o dinheiro que passa a fluir da fi- ditaduras. Nesse sentido, é-lhe indispen-
lantropia privada. Esta cria endowments, ou sável operar com discrição e ser visto pela
fundos multimilionários aplicados no mer- população como “diminuto, ágil e flexível”.
cado financeiro, cujos rendimentos anuais Convém, nessa linha sempre, alardear que
são usados, no caso, para sustentar organiza- seus recursos são ínfimos, não passando de
ções sem fins lucrativos, assim como grupos 1% do orçamento total com artes e cultura.
informais e até outras instituições. Mas o NEA não financia apenas proje-
Para uma ideia aproximada da parte tos. Vai muito além, ao propor e criar even-
correspondente a cada fonte de financiamen- tos e premiações, ao engajar críticos de arte,
to, pode-se citar, na ausência de dados mais jornalistas, patronos e noticiaristas em co-
recentes, um documento do NEA que mostra mitês variados de que participam notáveis
a divisão entre elas, calculada na média de e leigos. Ao construir, anunciar e, finalmen-
vários exercícios fiscais dos anos 1990. As te, fazer avançar uma agenda de pesquisas
principais conclusões são: a) a respeito do lugar da arte e
a parte que vem da iniciativa Mais importante em cultura nas práticas de la-
privada é quatro vezes maior valor do que a soma de zer, no orçamento domésti-
do que a das fontes públicas; todos os recursos vindos co, no mercado de trabalho,
b) o poder local é o maior pro- de fontes públicas é o nos currículos escolares e na
vedor, respondendo por 60% dinheiro que passa a fluir destinação de doações indivi-
de toda a receita governa- da filantropia privada duais e corporativas.
mental destinada a A&C; c) É possível tomar o con-
os recursos privados chegam na mesma pro- junto das orientações, metas e objetivos pre-
porção, ou seja, dos indivíduos, via incentivo sentes nos principais documentos analíticos
fiscal (20%), e das organizações (20%). e prospectivos do NEA até certo ponto como
Somando tudo, cobre-se com con- sucedâneo de um plano nacional de cultura.
tributed income a metade das receitas das Afinal, não é preciso existir um ministério da
nonprofits do setor. O mais notável é que a cultura estabelecido, com muitos funcioná-
outra metade é gerada pelas próprias orga- rios e dinheiro, para que linhas de ação sejam
nizações não lucrativas com suas atividades. definidas e resultados produzidos. É interes-
É o earned income, reunião de receitas de sante aqui ampliar o foco da análise e incluir
bilheteria, de bares, restaurantes e lojas de também o que se faz ou se deixa de fazer em
souvenir, e de venda de espaço publicitário outros países.
em folhetos e cartazes, além de subscrições.
O NEA não almeja muita visibilidade, III. Singularidades de A&C
pois sabe que ela, em geral, é acompanha- como esfera de gestão pública
da de desconfianças e críticas ao que possa Arte e cultura é uma área que não pressupõe
parecer, na fantasia de muitos, um meio de responsabilidades precisas, necessárias e ex-
tentar impor determinado tipo de arte em cludentes entre níveis de governo. Ou seja, em
detrimento de outros, coisa que só cabe em nações federativas, como os Estados Unidos,
178 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
localidades, estados e União têm liberdade com formas, volumes, espaços, traços, cores,
muito elevada, senão total, para decidir o que sons e vocábulos: não são particularmente
financiar, por quanto tempo e em que montan- chegados a números.
tes. O poder público pode escolher o que fazer,
ou simplesmente não fazer nada. Suas orga- IV. As ações de governo
nizações podem pertencer à administração em A&C nos Estados Unidos
direta ou assumir a forma de fundações ou de Vamos aqui enumerar as frentes de ação de
outras figuras jurídicas, e ligar-se através de governo em arte e cultura, que convergem
parcerias ao setor privado. Para aumentar as para seis finalidades distintas:
diferenças no cenário estadunidense, cada um
dos 50 estados tem alguma particularidade em 1. sustento total ou parcial de artistas
matéria de política cultural. com bolsas e prêmios ou, em casos
A&C é uma área não dominada ou con- mais raros, com salário e até mesmo
trolada por membros de uma corporação pro- previdência social;
fissional específica, como a dos médicos na 2. encomendas ou aquisições públicas
saúde e a dos engenheiros em de obras, tiragens e direitos;
obras públicas. Não tem, assim, Afinal, artistas lidam 3. incentivo fiscal a pessoas,
um ethos e um saber profissio- com formas, volumes, empresas e/ou outras organi-
nal demasiado definidos, que espaços, traços, cores, zações para financiar projetos;
possam virar camisa de força sons e vocábulos: não 4. criação e administração
na prática ou garantir mono- são particularmente de instalações e equipamentos
pólio duradouro de posições chegados a números culturais;
de mando. Também não é uma 5. tombamento e conservação
área em que se almeje atender equitativa- do patrimônio histórico e artístico;
mente a todos os segmentos sociais. A razão 6. proteção à propriedade intelectual:
é que a audiência, isto é, o público, se divide direitos autorais e copyright.
entre repertórios de gosto muito diferentes,
e cada indivíduo ou família usa o tempo livre Apontam-se a seguir alguns traços dessas
a seu modo. ações nos Estados Unidos.
Os segmentos sociais mais cultos e ricos (1) O apoio sazonal de artistas com
são mais assíduos em museus, concertos e bolsas e prêmios é prática corrente des-
teatros. Quanto mais se desce na escala so- de, ao menos, a criação do NEA, em 1965.
cial, mais o público passa as horas de lazer Financiar com base em projetos – como
em casa, pouco desfrutando das mostras e hoje praticamente todas as agências fazem
dos espetáculos financiados com dinheiro de – é garantia dessa prática. Não se localizou
governo, contribuintes e fundações. estatística a respeito de qual parcela da
Como a área envolve vários gêneros ar- população de artistas (hoje um total de 2 mi-
tísticos, seus gestores não precisam ser ne- lhões) recebe ou alguma vez recebeu grants
cessariamente artistas. Afinal, artistas lidam ou awards de fontes privadas ou de governo.
PLANOS DE CULTURA José Carlos Durand 179
Cite-se ainda a arregimentação de votos no escolhas por “excelência artística” vão ce-
Congresso em moções contra censura e res- dendo lugar aos juízos “de mérito”, em que
trições orçamentárias. Sem exagero, é possí- os benefícios sociais do atendimento aos
vel dizer que existe uma “bancada das artes” carentes são valorizados.
tanto na Câmara como no Senado: a luta é
dura e exige vigilância. O cinema de Hollywood, as editoras de
best-sellers e os shows da Broadway
Orientações do plano nacional Num esboço rápido do polo big-business da
de cultura ou seu equivalente mídia e do entretenimento nos Estados Uni-
Dado que os Estados Unidos não têm um mi- dos, é obrigatório antes de tudo definir alguns
nistério que pudesse definir propriamente conceitos. Por exemplo, o de concentração
um plano nacional de cultura, a solução aqui econômica (expansão do volume de bens e
adotada foi tomar o NEA como a autoridade serviços produzidos por uma única empre-
pública mais responsável por implementar sa); o de centralização econômica (controle
princípios, diretrizes e praxes administrati- financeiro de várias empresas feito por um
vas. O NEA tem longa história no confronto único conglomerado de negócios); e o de ver-
com forças conservadoras e desenvolveu ticalização (expansão da capacidade produ-
uma rede de colaboradores em várias ins- tiva de uma empresa via criação ou compra
tâncias públicas e privadas. A manifestação de firmas que fabricam ou distribuem bens
anual de seu presidente reitera seus princí- ou serviços complementares entre si e aos
pios, relata suas atividades e suas expecta- dela própria, até chegar ao consumidor final).
tivas de futuro. Poderia até passar por um Desde o início do século XX, mídia e
plano nacional não fosse o NEA uma agência entretenimento vêm tendo uma sucessão
autônoma, facilmente extinguível e que apor- intensa desses processos. É um mundo de
ta somente uma parcela ínfima (em torno de cifras impressionantes, geradas por es-
1%) do dinheiro que sustenta o setor cultural. túdios de cinema e editoras focadas em
best-sellers. Os shows da Broadway (embora
Nível de diálogo com a realidade em salas que, na maioria, ultrapassam mil
e as demandas do setor cultural assentos) não alcançam tamanha grandeza
A sintonia do NEA com o público e os in- financeira, pois seus espetáculos são únicos
terlocutores do campo cultural é grande, o e ao vivo, e não fabricados em série, como
que pode ser medido por suas tomadas de cópias de filmes, discos e livros. Apenas três
posição que provocam não raro duradouras corporações controlam a maioria das salas
polêmicas. Na medida em que as escolhas de espetáculos: Shubert Organization (17
em política cultural, assim como em outras salas), Nederland Organization (9 salas) e
políticas públicas, reforçam de uns tempos Jujamcyn (5 salas). Em 2019, o público da
para cá a ênfase nos segmentos mais pobres Broadway somou 14,8 milhões de pessoas,
e desassistidos, aguçam elas prioridades que das quais dois terços eram turistas. O fatu-
também geram discussões. Aos poucos as ramento total atingiu 1,8 bilhão de dólares.
PLANOS DE CULTURA José Carlos Durand 183
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https://en.wikipedia.org/wiki/United_States_Government_Publishing_Office
Nota
1 Arts industry é apenas um conceito que lembra que arte e cultura são cada
vez mais praticadas e conservadas em ambientes nos quais prevalecem a divisão
do trabalho e a racionalidade.
PLANOS DE CULTURA José Carlos Durand 187
188 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Qual é o lugar da cultura em uma sociedade? De que forma políticos, profissionais e cida-
dãos interpretam esse conceito e como o veem aplicado no seu dia a dia? De que forma se
planejam as ações que contribuirão para a construção de uma cultura social? Olhando pri-
meiro para o exemplo britânico – que tem traçado um caminho sobre o qual, ao longo de
muitas décadas, se vai sempre construindo –, iremos analisar o Plano Nacional das Artes
português. Sendo ainda cedo para qualquer avaliação, iremos refletir sobre os pontos fortes
e fracos do plano anunciado.
O lugar da cultura
E
m uma conversa recente com repre- da cidade, a criação e formação artística, a
sentantes do poder político munici- memória, a tradição e o turismo. Vários apre-
pal e agentes culturais portugueses, sentam uma mera listagem de equipamentos
foi dito pelos políticos que o investimento culturais, eventos e outras iniciativas; e tra-
na cultura é a única área que reúne consen- zem como objetivo a criação de uma agenda
so. Em outras áreas, pode haver diferenças cultural. Raramente (ou, talvez, nunca) indi-
partidárias, mas todos concordam em re- cam o que entendem por “cultura” e qual é o
lação à cultura. No que será que pensam lugar que esta ocupa na forma como pensam
exatamente quando pensam em “cultura”? e imaginam as suas cidades, a vida em co-
Uma consulta rápida aos Planos Muni- mum dos cidadãos. Também entre os profis-
cipais de Cultura das Câmaras Municipais sionais que trabalham no setor, não é raro o
revela que as referências mais comuns es- pensamento de o lugar da cultura limitar-se
tão relacionadas com a animação cultural à criação artística e à realização de eventos
PLANOS DE CULTURA Maria Vlachou 189
cultura social requer esforço, requer tempo, propósitos enunciados pelos governos são
requer conhecimento e carinho. Requer tam- trabalhados e complementados por entida-
bém planejamento, no curto e no longo prazo. des públicas e privadas da área da educação
e da cultura.
Planejar a cultura Em 2016, o governo britânico assumia
A publicação do The Culture White Paper, que o seu papel é “permitir o florescimento
em 2016, pelo governo britânico deu-nos uma de grande cultura e criatividade – e garantir
ideia mais clara do que é planejar a cultura de que todos possam ter acesso a elas”. Aliás,
forma sustentada e estruturada. David Came- duas das suas quatro grandes prioridades
ron, na época primeiro-ministro, apesar de eram que “todos devem aproveitar as opor-
responsável por graves cortes no setor cultu- tunidades oferecidas pela cultura, indepen-
ral, afirmava: “Se acreditam no financiamento dentemente de onde eles começam na vida”
público das artes e da cultura, como eu apai- e “as riquezas da nossa cultura devem be-
xonadamente acredito, neficiar as comunidades
então devem também Muitos sonhamos com uma em todo o país”. O docu-
acreditar na igualdade sociedade na qual os exemplos mento cita responsáveis
de acesso, atraindo to- sejam a maioria. Com uma cultura de outras áreas – Edu-
dos e acolhendo todos”. social que possa ser defensora cação, Comunidades e
Cinquenta anos antes, dos direitos humanos e da Governo Local, Turismo
o primeiro White Paper democracia; que celebre a riqueza e Patrimônio, Finanças
para as artes, publicado da diversidade; que reforce a –, tornando claro que
em 1965, afirmava que empatia e que afaste a barbárie. este deve ser um esforço
“o melhor deve ser mais Essa cultura social requer coletivo e coordenado.
amplamente disponí- esforço, requer tempo, requer Assim, Nicky Morgan,
vel” (THE CULTURE conhecimento e carinho. Requer na época secretária de
WHITE PAPER, 2016, também planejamento Estado da Educação, diz
p. 4-5). que “o acesso à educação
A ideia do acesso e da inclusão tem para a cultura é uma questão de justiça so-
vindo a ser pensada e trabalhada no Reino cial”; e o secretário de Estado das Comu-
Unido de forma concreta ao longo de mui- nidades e do Governo Local, Greg Clark,
tas décadas, acompanhada também por um afirma que
questionamento insistente e necessário so-
bre “acesso a que”, “inclusão de quem e por estamos no meio de uma revolução de de-
quem”. Há, sem dúvida, aspectos que estão volução. Queremos que as nossas institui-
longe de ser resolvidos ainda hoje. Assim ções culturais nacionais e locais trabalhem
como há conceitos em constante desenvol- em conjunto e apoiem as localidades, para
vimento, fruto de um olhar atento sobre a estas poderem usufruir do poder da cultura
sociedade, seus desafios e necessidades. O e impulsionar o crescimento econômico, a
que é interessante é ver a forma como os educação e o bem-estar.1
PLANOS DE CULTURA Maria Vlachou 191
um conselho consultivo, que incluirá profes- grandes cidades (ALMEIDA, 2020: entre-
sores e alunos, mas também elementos da vista Antena 1; e QUEIRÓS, 2020).
comunidade cultural que rodeia a escola. As O PNA foi recebido com um misto de
temáticas trabalhadas são diversas. Em um entusiasmo e desconfiança pelos profissio-
agrupamento escolar próximo a Faro, qui- nais da cultura. Apesar de não ter sido am-
seram tratar do desperdício alimentar; em plamente consultado,2 o “setor” reconheceu
Abrantes, estão desenvolvendo uma flash as qualidades e a experiência profissional dos
mob com a interpretação de uma dança ba- membros da equipe e mostrou a sua apre-
seada no problema do bullying. Em Odemira, ciação por um plano que reconheça o papel
foi identificada a questão dos imigrantes que da cultura na sociedade, que revele ter uma
vêm trabalhar para as estufas e dos seus fi- clara consciência dos desafios que enfren-
lhos, que não sabem falar português e entram tamos no século XXI e que se apresente de
na escola no meio do ano letivo. Em Castro forma bem estruturada. Foram expressas
d’Aire, a preocupação é com o abandono preocupações, no entanto, em relação ao seu
daquela região pelos jovens em direção às financiamento e à capacidade de envolver os
Medidas Índice de Impacto Escola de Porto Projeto Cultural de Projeto Deslocar: Portal e Newsletter
Cultural das Santo Escola Campo Criativo PNA
Organizações Coleções PNA Projeto Artista Projeto Criar+ Estar Presente
Plano Estratégico Patrimônio e Artes Residente Festival_ Bienal PNA
Municipal Cultura- nos Cursos de Cidadania: Recursos
-Educação Prêmios PNA
Educação Pedagógicos
Contrato de Academia PNA Desvio: Sair para
Impacto Social Entrar
das Organizações Bolsa PNA
Culturais Conferências Em Aberto
Maria Vlachou
Consultora em gestão e comunicação cultural. Membro fundador e diretora-execu-
tiva da Acesso Cultura. Autora do blog Musing on Culture. Foi diretora de comunicação
do São Luiz Teatro Municipal (Lisboa) e responsável de comunicação do Pavilhão do
Conhecimento. Fellow do International Society for the Performing Arts [Ispa (2018, 2020)];
fellow do DeVos Institute of Arts Management at the Kennedy Center in Washington (2011,
2013); e mestre em museologia pela University College London (1994).
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PLANOS DE CULTURA Maria Vlachou 197
Notas
A BELEZA QUE HÁ NA
DIVERSIDADE: O QUE PODEMOS
APREENDER DO CASO ALEMÃO?
Suelen Silva
Destruição e criação
“[O] sonho nazista de criar, através da como uma engrenagem de destruição cujo
pureza, um mundo mais harmonioso”1 fim, paradoxalmente, era a criação: a cria-
O
ção de uma Alemanha supostamente bela e
regime nazista (de 1933 a 1945) es- pura, porque livre de diversidade ou contra-
tabeleceu a “pureza ariana” como dições, capaz de liderar o mundo para uma
um ideal (racista) a ser protegido erudita, elevada e nova era. E, como criti-
pela sociedade alemã. Pessoas judias e car é, em essência, contradizer, tudo o que
também ciganas, imigrantes, miscigena- fosse considerado potencialmente crítico
das, negras, homossexuais, com deficiên- a essa ideologia nazista era reprimido, cri-
cias e quaisquer outras fora do espectro minalizado ou eliminado. Assim, a negação
inventado de pureza e perfeição nazistas de liberdades individuais, de reunião e de
foram no período definidas como infe- expressão foi progressivamente colocada
riores, como o motivo dos problemas da em prática, a ponto de estas serem abolidas
Alemanha e, por fim, como coisas sem hu- quando não servissem ao regime do Tercei-
manidade – equiparadas a micróbios – que ro Reich.
deveriam ser exterminadas. Na engrenagem nazista alemã de ex-
É preciso enxergar o nazismo não ape- termínio e criação, a arte teve papel em-
nas em seus termos políticos, mas também blemático. Primeiro, se considerarmos
PLANOS DE CULTURA Suelen Silva 199
federalista no país. O que houve no nazismo é autônomo para definir sua própria política
foi uma centralização forçada, sendo a cultura cultural, considerando os atores, recursos e
usada direta e indiretamente para atender ao prioridades do seu contexto. Os estados têm
propósito do regime nazista (BLUMENRICH, os seus próprios ministérios e/ou secreta-
2016). Não por acaso, desde que a república se rias oficiais responsáveis pelos assuntos da
estabeleceu, em 1949, a Alemanha não tem área cultural (frequentemente combinados
mais um ministério nacional com outros temas, como
que cuide de assuntos cultu- Existe uma preocupação educação ou ciência).
rais internos. compartilhada em manter As cidades têm também
o setor artístico e cultural autonomia para decidir
O reflexo do federalismo protegido da interferência sobre as questões lo-
no setor cultural alemão estatal, mas também em que cais de ordem cultural,
Nacionalmente, no lugar de o funcionamento do setor não sendo responsáveis por
um ministério da cultura, o fique sujeito aos interesses de criar as suas estrutu-
que existe é o Comissariado ordem tão somente neoliberal ras administrativas,
de Cultura e Mídia, órgão estabelecer programas
encarregado de assuntos definidos como de e espaços públicos, como teatros, bibliote-
“relevância nacional”. Suas principais fun- cas e museus. Dessa forma, do “menor” ao
ções são: 1) representar culturalmente o país “maior”, diferentes níveis de governo atuam
na sua capital (Berlim) e em relações cultu- em uma perspectiva de cooperação. Com fre-
rais internacionais; 2) propor debates e leis quência, por exemplo, instituições culturais
favoráveis à cultura e à mídia; 3) apoiar ins- locais recebem subsídios tanto do orçamento
tituições10 e patrimônios específicos como: municipal quanto do estadual.
bens declarados patrimônios mundiais pela Adicionalmente, há hoje uma tendên-
Unesco, bens do antigo estado da Prússia, cia por parte dos estados e das cidades em
centros de documentação e memoriais às ví- abdicar da gestão direta de equipamentos
timas do nazismo (BUNDESREGIERUNG culturais. Essa tendência é, em geral, apoiada
FÜR KULTUR UND MEDIEN, 2016). Além pelo setor público, privado e pela sociedade
disso, há um Comitê Parlamentar de Cultu- civil, desde que se garanta a manutenção da
ra e Mídia, responsável por supervisionar o responsabilidade do investimento público
trabalho do comissariado, avaliar mudanças na área.11 Tal fenômeno converge com a exis-
na legislação com potencial de afetar o cam- tência de uma preocupação compartilhada
po cultural e iniciar debates de relevância em manter o setor artístico e cultural prote-
para o setor. gido da interferência estatal, mas também
Fora isso, o protagonismo da política em que o funcionamento do setor não fique
cultural interna alemã situa-se na arena sujeito aos interesses de ordem tão somente
das cidades e dos estados, seja através de neoliberal. Compreender o sistema cultural
organizações da sociedade civil, fundações, alemão contemporâneo requer considerar
estruturas públicas ou privadas. Cada estado que o país essencialmente busca:
202 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
encontrar um equilíbrio entre a respon- do setor à sua maneira. Significa dizer que
sabilidade do setor público de assegurar aaté mesmo a definição do que conta como
investimento em cultura pode variar entre
existência e o financiamento de instituições
os níveis municipal, estadual e federal. Por
e programas culturais, sem interferência do
exemplo, museus científicos e bibliotecas são
governo nas atividades culturais. A Consti-
incluídos como “cultura” em nível municipal,
tuição [...] não só fornece a base para a auto-
enquanto em nível federal são alocados em
nomia artística e os direitos autônomos das
instituições e organizações culturais, mas“educação”. Há ainda casos em que os inves-
também estipula uma forma de proteção timentos são considerados em seus valores
contra diretivas estatais e regulamentaçãobrutos em um nível, enquanto para outros
de conteúdos (BLUMENRICH, 2016, p. 54). órgãos o que conta é o valor líquido (BLU-
MENRICH, 2016).12
De tal modo, e considerando o fato histórico Segue-se a isso um debate crescente por
do nazismo, tentativas que soem similares profissionais da área sobre a capacidade (e
a “direcionar” nacionalmente o campo ar- a necessidade) de renovação de instituições
tístico e cultural são vistas que historicamente rece-
como problemáticas no O entendimento geral de bem incentivos públicos,
país. O entendimento ge- que o Estado e o governo ou o quanto o investimen-
ral de que o Estado e o go- (nacional) não têm e não to federal na capital Berlim
verno (nacional) não têm e podem ter competência para não gera um desequilíbrio
não podem ter competên- se encarregar dos assuntos na paisagem cultural ale-
cia para se encarregar dos culturais internos torna mã, fazendo com que se
assuntos culturais inter- controverso, até então, intensifique a pergunta se
nos torna controverso, até um plano nacional de cultura não é chegada a hora de ter
então, um plano nacional na Alemanha um ministério federal para
de cultura na Alemanha. a área.
Em vez de um plano nacional, o que existem Todavia, os benefícios desse modelo
são projetos, planos e/ou políticas culturais federalista descentralizado, que valoriza
das cidades e/ou dos estados federados, tão e protege a autonomia das cidades e dos
diversos entre si quanto são as suas priori- estados nos assuntos culturais internos,
dades e realidades. são também salutares. Referências na área
Certamente, a ausência de um nível (BLUMENRICH, 2016; MANDEL, 2017)
nacional de atuação em cultura traz alguns sugerem que é justo por causa desse modelo
desafios para o setor, os quais aprofundam que a paisagem cultural e artística alemã é
ainda mais os desafios para elaborar um tão densa e diversa em atores e instituições,
(hipotético) plano nacional. Um deles diz pois tal descentralização acaba gerando
respeito a informações e indicadores so- também uma “concorrência” salutar entre
bre cultura, já que cada município e estado os estados e municípios. Outro reflexo do
pode priorizar, coletar e organizar os dados modelo pode ser visto no investimento em
PLANOS DE CULTURA Suelen Silva 203
cultura. A Alemanha é um dos países que Fora isso, no nível federal, a Alemanha
mais investem recursos públicos na área – busca estimular o setor através de ações
que teve um crescimento de mais de 30% indiretas, respeitando a soberania das cida-
entre 2005 e 2015. A maioria desses recur- des e dos estados federados na matéria. Em
sos provém dos municípios/cidades (45%), 2003, por exemplo, o Comitê Parlamentar de
seguidos dos estados (40%) e, por último, Cultura e Mídia iniciou uma ampla pesqui-
do governo federal (15%), segundo o Rela- sa sobre política cultural e fomento para o
tório Financeiro Relativo à Cultura lançado setor. O estudo contou com a participação
em 2018 pelo Departamento de Estatística de especialistas independentes e gerou um
da Alemanha. relatório com mais de 400 recomendações
práticas para políticos, legisladores e ges-
Que outras possibilidades? tores culturais atuando em diversos níveis
Da experiência alemã e de outras experiên- (DEUTSCHER BUNDESTAG, 2007). Outro
cias mundo afora, uma das coisas que po- exemplo de iniciativa federal foi a pesquisa
demos apreender é que Mulheres na Cultura e
não há um modelo por si Há experiências que Mídia, lançada em 2016.
só certo ou errado quan- funcionaram ou não dentro Realizado pelo Conselho
do tratamos de política e de determinados contextos, Cultural Alemão13 e fi-
gestão cultural. Há expe- os quais carregam históricos, nanciado pelo Comissa-
riências que funcionaram recursos e/ou condições sempre riado de Cultura e Mídia,
ou não dentro de determi- específicos. De tal modo, torna- o estudo resultou em um
nados contextos, os quais -se relevante perguntar, em relatório de mais de 400
carregam históricos, primeiro lugar, se e quando é páginas apontando ten-
recursos e/ou condições necessária a existência de um dências, desafios e pro-
sempre específicos. De tal plano nacional de cultura posições para alcançar a
modo, torna-se relevante igualdade de gênero no
perguntar, em primeiro lugar, se e quando é setor cultural (SCHULZ; RIES; ZIMMER-
necessária a existência de um plano nacional MANN, 2016). A partir dessa publicação,
de cultura. o referido conselho criou um programa de
Na inexistência desse plano, vejamos mentoria para mulheres em cargos de gestão
então quais outras ferramentas e estratégias cultural, além de um ponto de contato dentro
têm sido adotadas pela Alemanha para orien- da organização para transformar os debates
tar a ação pública na área. Como já citado, há em ações e projetos concretos, também com
a Lei Fundamental e os planos e políticas de financiamento do governo federal.
cultura específicos dos estados federados, Pode-se apreender também que a cons-
além da adoção de tratados e diretrizes in- tante defesa do distanciamento entre Estado
ternacionais, como a Convenção de 2005 da e cultura, no caso alemão, não é sinônimo de
Unesco e a Agenda para a Cultura da União deixar o setor à revelia do livre mercado, se-
Europeia (2019-2022). guindo uma lógica neoliberal. Pelo contrário,
204 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
a regulação governamental (em seus diver- Por fim, o que é adotado na Alemanha em
sos níveis) é necessária e se dá através de termos de política e gestão cultural não neces-
leis específicas e, sobretudo, do respeito à sariamente terá os mesmos resultados se apli-
Lei Fundamental, que garante a autonomia cado em outros lugares. Como profissionais da
das artes e cultura. Tal regulação depende cultura, é necessário termos sempre em men-
e se coaduna, por sua vez, com o constante te que as sociedades, artes e culturas – grosso
monitoramento e atuação da sociedade ci- modo, “matérias” com as quais trabalhamos
vil organizada. Em um país cuja história foi – são, essencialmente, diversas em seus poten-
marcada pela sua súbita privação, a liberdade ciais e desafios. Que, ao invés de recear, conti-
e a autonomia do setor artístico e cultural são nuemos a enxergar, prezar e aprender com a
agora entendidas não como algo dado, mas beleza que existe na diversidade e em suas con-
como frutos de um trabalho em constante tradições, inclusive dentro da própria gestão e
construção e de interesse público. política cultural como disciplina e prática.
PLANOS DE CULTURA Suelen Silva 205
Suelen Silva
Gestora cultural com interesse em teorias pós-coloniais e práticas decoloniais na
área artístico-cultural. Possui bacharelado em ciências sociais (Universidade da Amazônia/
Brasil), mestrado em antropologia (Universidade do Pará/Brasil) e especializações em
gestão e políticas culturais (Universitat de Girona/Espanha e Itaú Cultural/Brasil) e em
políticas culturais de base comunitária (Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales/
Argentina). Contemplada com a Bolsa Chanceler Alemã para Futuros Líderes, pela Fun-
dação Alexander von Humboldt (2018/2019).
Referências bibliográficas
Notas
2 O ditador antissemita foi rejeitado mais de uma vez pela Academia de Belas-
-Artes de Viena.
5 Consultar Pereira (2003) e Ferro (1992) sobre as relações entre cinema, história,
política e poder.
9 A Lei Fundamental alemã tem três artigos de especial relevância para entender o
sistema cultural da Alemanha: o artigo 5o, que garante a liberdade de expressão,
da arte e da ciência; o artigo 28, que estabelece a autonomia administrativa dos
municípios nas questões locais; e o artigo 30, que define o poder soberano dos
estados federados.
E
m 2020, o Conselho de Artes da é preciso, antes, retornar a 1946 e à famosa
Inglaterra (ACE, na sigla em in- figura de John Maynard Keynes. É nesse
glês) lançou sua estratégia para o ponto da história que começam a se dese-
decênio 2020-2030, chamada Let’s Create nhar as atuais estruturas institucionais que
[Vamos Criar]. Nesse texto, ressaltou o pa- organizam a política para as artes e a cultura
pel da cultura e da criatividade na orienta- na nação, mais bem definidas nos anos 1990.
ção das políticas culturais, aprofundando Neste artigo, apresentaremos uma breve
o paradigma das indústrias criativas, bem contextualização histórico-institucional
como lançou as bases para mudanças no se- sobre essas políticas no Reino Unido, para
tor cultural em termos de responsabilidade então analisarmos criticamente a estratégia
ambiental e qualidade e acesso às experiên- proposta para elas.
cias culturais e aos processos criativos. Em-
bora não possa ser considerado equivalente De volta a Keynes: as bases para
ao que entendemos por plano nacional de a política cultural britânica
cultura, é esse documento que orientará a Em 1939, o governo britânico criou o Con-
operacionalização das políticas culturais na selho para o Incentivo à Música e às Artes
Inglaterra na próxima década. (Cema, no acrônimo em inglês), responsável
Para entender o que a estratégia signi- por organizar os esforços estatais do campo
fica para a política cultural do Reino Unido, cultural durante a Segunda Guerra Mundial,
PLANOS DE CULTURA Paul Heritage e Mariana Steffen 211
no Brasil. De herança desses tempos, per- (430 milhões de reais) por ano para o Fundo
maneceu subjacente às estruturas insti- de Desenvolvimento, que foca o desenvolvi-
tucionais a visão instrumentalista sobre a mento de modelos de negócios e liderança
cultura, do Cema até os tempos atuais de e a ampliação da gama de pessoas que tra-
Conselhos de Artes. balham no setor cultural.
Deve-se considerar, ainda, que o Reino Consultas públicas são, em geral, bas-
Unido é uma união de países e que, dentro tante comuns no Reino Unido – o DCMS,
destes, há um grau significativo de descen- por exemplo, realizou mais de 15 processos
tralização política, com autonomia das au- de consulta ao público em diferentes tópi-
toridades locais em algumas decisões para cos durante 2019 (DCMS, 2020). O Conse-
a política cultural. A ideia de estruturas nor- lho de Artes da Inglaterra tem a obrigação
mativas em um país com tal nível de descen- legal de levar em consideração a igualdade
tralização e sem constituição é diferente da em seu processo de formulação de políticas
que se tem no Brasil e nos públicas, bem como deve ser
demais países da Améri- A estratégia para capaz de demonstrar como visa
ca Latina. A estratégia do o decênio 2020- evitar a discriminação e promo-
ACE deve ser compreendi- -2030, chamada ver igualdade e diversidade para
da nesse contexto e, graças Let’s Create [Vamos pessoas que pertencem ao cha-
aos esforços keynesianos de Criar], busca orientar mado grupo de características
mais de 70 anos, ela pode o desenvolvimento, protegidas, conforme definido
ser entendida como uma a atuação e os pela Lei de Igualdade do Reino
orientação para a política financiamentos Unido (2010), o que inclui ida-
cultural do Estado inglês concedidos pelo ACE de, deficiências, redesignação
para a próxima década, em de gênero, casamento e parceria
larga medida independente das ocasionais civil, gravidez e maternidade, raça, religião
trocas de governo que possam ocorrer. ou credo, sexo e orientação sexual. O ACE, no
A estratégia para o decênio 2020-2030, entanto, deseja declaradamente ir além desse
chamada Let’s Create [Vamos Criar], busca dever legal e garantir que seu investimento
orientar o desenvolvimento, a atuação e os seja direcionado para trabalhos que reflitam
financiamentos concedidos pelo ACE. Para a diversidade da Inglaterra contemporânea.
o período 2018-2022, o plano do ACE inclui Dada a importância da estratégia na
o investimento de 407 milhões de libras por definição de subsídio público das artes para
ano (2,5 bilhões de reais, aproximadamente) toda a próxima década, o ACE encomendou
em 828 organizações culturais, museus e uma auditoria externa do processo de con-
bibliotecas que constam em seu Portfólio sulta, entregue seis meses antes da conclusão
Nacional, além de 97,3 milhões de libras para assegurar que todos os ajustes necessá-
(580 milhões de reais) anuais da Loteria rios fossem realizados. A chamada Auditoria
Nacional para o programa de financiamen- de Igualdade analisou as evidências secundá-
to de acesso aberto e 72,2 milhões de libras rias usadas para construir a estratégia, bem
214 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
como até que ponto os grupos de caracterís- podem ser considerados para financiamento.
ticas protegidas (conforme descrito acima) No documento, a cultura é entendida como o
foram efetivamente incluídos na consulta resultado do processo de criatividade, e faz
(ARTS COUNCIL ENGLAND – ACE, 2019). referência às “formas de arte e organizações
Em um relatório detalhado de 60 páginas, os nas quais o ACE investe: coleções, artes com-
auditores forneceram evidências quantitati- binadas, dança, bibliotecas, literatura, mu-
vas da natureza representativa do processo seus, música, teatro e artes visuais” (ACE,
de consulta, concluindo que a estratégia foi 2020, p. 12, tradução própria).
construída por uma ampla gama de vozes, Nicholas Serota (presidente do ACE)
incluindo indivíduos e organizações, que apresenta a estratégia citando a obra de Je-
garantiriam sua relevância para pessoas de remy Deller (artista vencedor do Turner4) e
todos os contextos econômicos e sociais. Rufus Norris (diretor do National Theatre)
Além disso, a auditoria fez várias recomen- criada para marcar o centenário da Primei-
dações importantes de ajustes para a fase fi- ra Guerra Mundial. Ocorrendo em todo o
nal da consulta, como o desenvolvimento de território britânico, We Are Here Because
um plano de ação para tratar de questões de We Are Here (2018) envolveu centenas de
igualdade durante o período de vigor da es- voluntários de todas as idades e profissões,
tratégia, e solicitou que o ACE desse atenção treinados em segredo para sair às ruas usan-
a como abordaria casos de discriminação, se do os uniformes dos soldados que morreram
ocorressem, bem como pensasse em como a cem anos antes, no primeiro dia da Batalha
igualdade de oportunidades poderia ser dis- do Somme. Serota a considera uma “obra de
seminada no setor cultural. arte pública monumental” que, em sua escala
O processo consultivo de construção da e ambição, indica o que a cultura pode fazer
estratégia ouviu mais de 6 mil pessoas en- na vida das pessoas:
tre 2017 e 2019, em conversas, workshops
e consultas on-line (ACE, 2020a). O ACE A ousadia de sua visão e a trajetória dos es-
empenhou-se em garantir que a consulta paços públicos para as mídias sociais; a cria-
incluísse não apenas aqueles que produzem tividade coletiva de todos os participantes;
arte, como profissionais e organizações cul- as parcerias, locais e nacionais, que deram
turais, mas também aqueles cujos impostos vida à peça; e, talvez o mais importante de
serão gastos no subsídio à cultura na próxima tudo, a dissolução de barreiras entre artistas
década, instituindo um processo de oficinas e o público com quem eles interagem: esses
públicas com membros do público em geral, são os elementos que nossa nova estratégia
incluindo crianças e jovens. Já no início do apoia (ACE, 2020, p. 2, tradução própria).
processo, o ACE alterou a linguagem que
utilizava, substituindo “artes” e “artistas” Embora Keynes tenha sido cauteloso sobre
por “cultura”, “criatividade” e “profissionais como o Estado deveria patrocinar as artes,
criativos”, aproximando-se das indústrias insistindo que se mantivesse comedido e a
criativas e diversificando os projetos que distância, ele certamente compartilhava a
PLANOS DE CULTURA Paul Heritage e Mariana Steffen 215
visão de Serota em relação à aspiração e am- a maneira como o ACE defende o valor do
bição por uma infraestrutura cultural finan- investimento do dinheiro público na cultura
ciada pelo Estado para garantir o surgimento como sendo enraizado na relação entre o so-
de novos trabalhos em formatos e lugares cial e o econômico, marcando uma mudança
inesperados, a partir do acesso universal a sísmica dos argumentos sobre o quanto as in-
artes tradicionais e contemporâneas de qua- dústrias artística e cultural contribuem para
lidade. A nova estratégia do ACE reflete, sem a economia do Reino Unido. Há, ainda, uma
dúvida, a visão de Keynes de que o objetivo preocupação com o posicionamento interna-
de um governo não deve se limitar a prover cional da Inglaterra como referência no setor
“abrigo e conforto para nos cobrir quando criativo e cultural, considerando os novos
estamos dormindo” se não puder também termos da relação com a Europa pós-Brexit
oferecer um “local conveniente de congre- e o papel crescente que terá o ACE na inter-
gação e prazer quando estamos acordados” nacionalização dos profissionais criativos.
(KEYNES, 2015, p. 132, tradução própria). Quanto à operacionalização da estra-
Com o documento, o ACE reforça seu tégia, o conselho indica algumas diretrizes
papel de agência de desen- que orientarão sua atua-
volvimento para a cultura A estratégia propõe que ção, embora não apresente
e a criatividade, reconhe- o ACE torne possível aos planos e metas detalha-
cendo sua importância na indivíduos explorar sua dos. Promover pesquisa e
interligação entre público, própria criatividade e desenvolvimento, apoiar
organizações financiadas aproveitar experiências a adoção de novas tecno-
e indústrias criativas em culturais de alta qualidade logias e incentivar novas
torno da cultura e da criati- maneiras de promover
vidade. Destacam-se, no decorrer da estra- responsabilidade ambiental são algumas
tégia, a valorização do papel das parcerias, das principais ações propostas. No campo
sobretudo com autoridades políticas locais e econômico, pretende atuar sobre a falta de
instituições de ensino superior, e a intenção diversidade da força de trabalho nas indús-
de expandi-las e diversificá-las; o forte foco trias criativas, no que toca a características
em crianças e adolescentes, materializado como gênero, deficiências físicas, surdez e
através da parceria com o Departamento de perfil étnico-social, bem como ao contexto
Educação; e o investimento no reconheci- socioeconômico de origem dos trabalhado-
mento do valor socioeconômico do investi- res. Ainda, propõe-se a investir em novos
mento público em cultura. Essa não é uma prédios culturais para promover regeneração
estratégia projetada para obter retornos econômica local.
financeiros predeterminados para o inves- O núcleo da estratégia apresenta resul-
timento público. Não se trata de objetivos, tados esperados e princípios de investimen-
mas de melhorar as táticas de como o jogo to que deverão ser seguidos para atingi-los.
pode ser jogado ou talvez até de mudar o Com os primeiros, o conselho busca agir
campo de jogo. A estratégia visa melhorar sobre padrões desiguais de financiamento
216 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
históricos no campo cultural, com aqueles anualmente durante o próximo ciclo de fi-
que tradicionalmente obtêm menos acesso nanciamento de quatro anos (com início em
aos recursos disponibilizados, como mino- 2022, mas atrasado para 2023 por causa do
rias e camadas econômica e socialmente des- coronavírus). Como em cada ciclo anterior,
favorecidas da sociedade (ACE, 2020b, p. 26). a seleção das organizações do Portfólio Na-
Os três resultados propostos se referem a: i) cional será realizada pelo próprio Conselho
desenvolvimento e expressão da atividade de Artes, que atualmente consiste em mais
criativa voluntária e amadora; ii) abordagem de 500 pessoas trabalhando em 9 escritórios
colaborativa da cultura, aproximando prati- em toda a Inglaterra. Muitas delas trabalha-
cantes culturais amadores e profissionais; e ram nas artes ou na cultura, outras têm expe-
iii) fortalecimento do setor cultural profis- riência em finanças, tecnologias digitais ou
sional, tornando-o mais inovador e consoli- outras áreas. O objetivo é que o Conselho de
dando-o como referência internacional. Em Artes represente as comunidades, organiza-
resumo, a estratégia propõe que o ACE torne ções e indivíduos com os quais trabalha e fi-
possível aos indivíduos explorar sua própria nancia. Os funcionários são nomeados pelos
criatividade e aproveitar experiências cultu- processos abertos usuais para organizações
rais de alta qualidade. públicas, o que significa prestar atenção es-
Já os princípios de investimento bus- pecial no grupo de características protegidas
cam orientar as mudanças necessárias nas (veja acima).
organizações e indivíduos para atingir os re- O princípio que Keynes estabeleceu
sultados propostos, com intenção de alterar em 1946 permanece fiel ao Conselho de
o perfil dos indivíduos e organizações finan- Artes hoje: existe um conflito entre os polí-
ciados pelo ACE até 2030. Os quatro princí- ticos que decidem sobre o nível de investi-
pios determinados traduzem a consciência mento público nas artes e os responsáveis
de que os recursos distribuídos são públicos pela distribuição do financiamento. A es-
e, portanto, devem ser aplicados de forma a tratégia estabelece quais serão as medidas
gerar experiências culturais de qualidade e pelas quais a qualidade será avaliada, tan-
sincronizadas aos ideais democráticos da so- to para quem busca financiamento quanto
ciedade inglesa. São eles: i) ambição e quali- para quem presta contas sobre os recursos
dade, comprometendo-se com a entrega de que recebeu. Solicita-se às organizações
experiências culturais cada vez melhores; ii) artísticas que indiquem as medidas pelas
dinamismo, para responder aos desafios da quais essa qualidade deve ser julgada, e a
próxima década; iii) responsabilidade am- equipe do Conselho de Artes avaliará a re-
biental; e iv) inclusão e relevância, refletindo levância dessas medidas e o sucesso de cada
a diversidade da Inglaterra. organização em alcançar os resultados em
Esses serão os princípios por meio dos relação ao que propõe a estratégia. Esta é,
quais as organizações financiadas regular- talvez, mais bem entendida como parte de
mente pelo ACE, que compõem o Portfólio um debate contínuo e em constante mudan-
Nacional, serão selecionadas e avaliadas ça sobre o que a Inglaterra entende como
PLANOS DE CULTURA Paul Heritage e Mariana Steffen 217
qualidade artística. Como John Keats disse um manual de instruções. O que estabelece-
ao tentar avaliar os feitos de Shakespeare, mos não é um plano de ação, mas uma visão”
a qualidade nas artes pode ser mais bem (ACE, 2020b, p. 60). Há pouca ou nenhuma
expressa como “uncertainties, mysteries, ação concreta proposta na estratégia e, às
doubts, without any irritable reaching after vezes, o que parecem ambições contradi-
fact and reason” (KEATS, 1889, p. 277) – ou, tórias são mantidas juntas em uma harmo-
na tradução possível: “incertezas, mistérios, nia impossível. Promessas são igualmente
dúvidas, sem a necessidade frustrada de al- feitas para nutrir novos talentos e apoiar
cançar os fatos e a razão”. aqueles “que já estão no topo de seu jogo”,
sem oferecer orientação sobre o que precisa
Considerações finais: estratégias, começar ou terminar.
promessas e aprendizados Outro ponto ignorado pelo documento
Formular planos estratégicos não é uma no- é a queda brusca no financiamento das au-
vidade para Serota. Quando nomeado diretor toridades locais. Ao apresentar uma visão
da Tate Gallery, em 1988, destacou-se por seu das instituições culturais centradas no nível
plano intitulado Agarrando a local em todo o país, a estra-
Urtiga, que defendia mudan- Para que a estratégia tégia não oferece nenhuma
ças fundamentais na relação de dez anos do ACE pista sobre como os modelos
da galeria com o público se seja bem-sucedida, “ela de financiamento público
essa desejava se tornar ama- precisa ser flexível […] responderão a uma década
da, e não apenas respeitada. uma luz orientadora, de devastação causada pela
Doze anos depois, Serota em vez de um manual política de austeridade bri-
abriu o Tate Modern na anti- de instruções” tânica. Os comentários do
ga usina de Bankside, tornan- setor cultural, de modo geral,
do-a um componente definitivo do horizonte elogiaram as ideias que estão na vanguarda
de Londres da noite para o dia. Quando Se- da estratégia (maior colaboração com os
rota assumiu a presidência do Conselho de setores amador e comercial; uma força de
Artes da Inglaterra, o Tate Modern havia se trabalho mais diversa; arranjos de finan-
tornado o museu/galeria mais popular do ciamento mais flexíveis; foco em iniciativas
Reino Unido, com mais de 5 milhões de visi- culturais locais), mas lamentaram a falta de
tantes por ano. Serota conhece o poder de um detalhes sobre como isso será alcançado Essa
plano estratégico, e a importância de enten- não é uma estratégia militar que estabelece
der, e não evitar, os problemas espinhosos. um plano de ação para vencer a guerra, mas
Uma estratégia é geralmente enten- serviu ao que talvez fosse seu objetivo: reu-
dida como um plano de ação, mas Darren nir as tropas para violar as barricadas que
Henly, diretor-executivo do ACE, esclare- atualmente impedem as artes de cumprir seu
ce que, para que a estratégia de dez anos do verdadeiro potencial.
ACE seja bem-sucedida, “ela precisa ser Keynes nos pediu para não pensarmos
flexível […] uma luz orientadora, em vez de no Conselho de Artes como um professor:
218 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
“à medida em que instruímos, é um novo jogo nossas sociedades mais fortes e nossos cida-
que estamos ensinando a jogar – e a assistir” dãos mais saudáveis? Nosso foco agora deve
(MOGGRIDGE, 1974, p. 46). Essa tradição é ser garantir que as artes sejam adequadas ao
mantida na estratégia 2020-2030 do ACE, objetivo, enquanto buscamos nos recuperar
na qual a comunidade cultural britânica tem de tudo o que esse vírus revelou sobre a fra-
que inventar as regras para si mesma, pois gilidade do nosso mundo.
colaborou na criação de um plano de jogo
que envolve os corações e as cabeças de uma
nação para resolver os desafios que enfrenta
como sociedade hoje.
Post-scriptum: no momento em que en-
viamos este artigo aos editores, surge uma
nova forma de guerra global para combater a
força de um vírus. De Wahun a Washington,
da Itália ao Irã, a pandemia de coronavírus
atinge governos, devasta indústrias e destrói
o tecido familiar da sociedade. Até agora, o
setor de arte e cultura foi apenas mais uma
vítima do ataque, como ocorreu na Grã-Bre-
tanha nos primeiros anos da Segunda Guerra
Mundial. Naquela época – como agora –, tea-
tros, cinemas e museus foram fechados por
causa dos perigos das aglomerações públicas.
Embora não fossem pensadas como um setor
industrial na época, as indústrias criativas Paul Heritage
estavam sendo gradualmente reduzidas a es- Professor de teatro da Queen Mary Univer-
combros por bombardeios, assim como agora sity of London e diretor artístico da People’s Palace
estão sendo levadas à beira da aniquilação Projects. Atua em projetos de pesquisa aplicada
pelo impacto da covid-19. De uma paisagem em artes e cultura entre o Brasil e o Reino Unido
devastada um plano surgiu na Grã-Bretanha há mais de 20 anos, trabalhando com artistas e
em 1942 para repensar o próprio propósito a profissionais criativos de periferias e comunidades
que a arte pode servir em tempos de guerra. indígenas, entre outros.
Tornou-se um plano nacional quando as ar-
mas silenciaram e lançaram as bases para
a estrutura cultural da Grã-Bretanha nos Mariana Steffen
próximos 75 anos. Desafios urgentes nos Graduada em relações internacionais e mestre
encaram novamente. Podemos sair desta em políticas públicas pela Universidade Federal do
guerra contra um vírus com um plano para Rio Grande do Sul (UFRGS). Atua como pesquisa-
os setores das artes e da cultura que tornará dora-assistente na People’s Palace Projects.
PLANOS DE CULTURA Paul Heritage e Mariana Steffen 219
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Acesso em: 19 abr. 2020.
220 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Notas
4 Prêmio anualmente conferido a artistas britânicos das artes visuais com menos
de 50 anos de idade.
PLANOS DE CULTURA Paul Heritage e Mariana Steffen 221
222 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Publicações sobre políticas culturais dos países do Brics, de modo comparado, são raras e es-
tão em seus primórdios. A fim de contribuir para esse processo embrionário de investigações
acadêmicas sobre o campo cultural intra-Brics, este trabalho intentou analisar documentos
similares relativos a planos nacionais de cultura ou de artes do Brasil, da Rússia, da Índia,
da China e da África do Sul no intervalo temporal de 2010 a 2020. Objetivou-se, assim, iden-
tificar e compreender similitudes e particularidades desses instrumentos de planejamento
estratégico de gestão e políticas culturais dos países do agrupamento em tela.
Palavras iniciais
E
m 2019, publiquei um artigo na para a construção de políticas culturais en-
Políticas Culturais em Revista1 in- tre os países do Brics. Além disso, há campo
titulado: “Políticas culturais dos cultural em desenvolvimento em cada país
países do Brics no período de 2003 a 2018: do agrupamento, com similitudes, como a
uma análise comparativa”. Esse trabalho é arquitetura de dados, informações, esta-
inaugural no que se refere a estudos espe- tísticas e indicadores culturais; legislações
cíficos sobre políticas culturais compara- de políticas culturais nacionais; e financia-
das entre os países que formam o Brics. O mento público da cultura, o que oportuniza
objetivo foi oferecer primórdios de indica- possibilidade de intercâmbio cultural entre
dores culturais intra-Brics e conhecer se- os membros do Brics.
melhanças e especificidades de cada país Ao receber o convite para escrever sobre
no que tange ao desenvolvimento de suas o processo de construção de planos nacionais
políticas culturais. Nesse texto, compreendi de cultura ou de artes dos países que formam
que a cultura não ocupa lugar prioritário no o acrônimo Brics para esta edição da Revista
rol de atuação do bloco. Mas a existência do Observatório Itaú Cultural, dar-se-á continui-
Plano de Ação para a Cultura do Brics para dade ao que foi iniciado na publicação previa-
o Período de 2017 a 2021 é trabalho inicial mente mencionada. É, portanto, para mim, um
PLANOS DE CULTURA Bruno do Vale Novais 223
desafio fazer uma análise comparativa em re- século XXI, a fim de compreender melhor o
lação a fatores que incidem sobre o processo espaço que a cultura ocupa na agenda do gru-
de construção e aplicação de planos nacionais po e como esse lugar dialoga com as políticas
de cultura ou artes em países geograficamente, culturais de cada país do acrônimo.
economicamente, culturalmente e politica-
mente distintos, como são Brasil, Rússia, Ín- O Brics na contemporaneidade:
dia, China e África do Sul, pela diferença na brevíssimo panorama
qual a gestão da política cultural de cada país Em 2019, o Brasil foi anfitrião da XI Cúpula
é desenvolvida, bem como pela baixa dispo- do Brics. Desde 2008, os Brics se encontram
nibilidade de publicações em língua inglesa anualmente, com exceção da África do Sul,
relativas ao trabalho das políticas culturais que adentrou no agrupamento em 2011. São
desses países. Ao mesmo tempo, o fato de os mais de 30 áreas de cooperação entre os paí-
cinco estarem situados no que os especialis- ses que formam o Brics, com destaque para:
tas das relações internacionais advogam por econômico-financeira; saúde; ciência, tecno-
“Sul Global” ajuda a mantê-los em um geoes- logia e inovação; segurança e empresarial. Em
paço cultural compartilhado – o que favorece 2014, na cúpula realizada em Fortaleza, foram
a relevância pela produção de novos estudos lançados dois projetos que destacaram o Brics
e pesquisas. nas relações internacionais: o Novo Banco de
O artigo foi então escrito a partir de al- Desenvolvimento (NDB) e o Arranjo Contin-
gumas perguntas referentes ao processo de gente de Reservas (ACR). O objetivo do banco
construção dos planos nacionais de cultura é ser instância de articulação de recursos para
ou artes dos países que formam o Brics. São investimentos nos setores de infraestrutura
elas: (a) houve participação da sociedade e desenvolvimento sustentável, tanto para os
civil no processo de elaboração? Em caso países do Brics quanto para outras economias
positivo, de que forma ocorreu esse envolvi- emergentes. O arranjo, por sua vez, é um me-
mento social? (b) Quais foram as diretrizes, canismo macroeconômico de cooperação fi-
os eixos estratégicos, os objetivos principais nanceira para os países do Brics em possíveis
e as metas? (c) O plano em análise dialoga crises de balanço de pagamentos.
com a realidade e as demandas do setor cul- Nessa última cúpula, o Brics teve por
tural do país? (d) Quais são as interfaces do foco a interface entre crescimento econô-
plano com as políticas públicas dos demais mico e inovação. Ademais, priorizou-se: (a)
setores estratégicos do país? (e) Há institu- fortalecer a cooperação em ciência, tecno-
cionalização do plano? Como ele foi criado? logia e inovação; (b) reforçar a cooperação
(f ) Qual é a periodicidade/duração prevista? em economia digital; (c) adensar a coopera-
Antes, contudo, de apresentar possíveis ção no combate aos ilícitos transnacionais,
respostas para essas indagações, falarei de notadamente ao crime organizado, à lava-
modo breve sobre o que é, afinal, o Brics gem de dinheiro e ao tráfico de entorpecen-
e quais são suas prioridades, finalidades tes; e (d) incentivar a aproximação entre o
e perspectivas para a segunda década do banco do Brics e o conselho empresarial do
224 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
ajuda a compreender como cada país inte- em 2005, após as conferências municipais
grante do agrupamento tem pensado e inse- e estaduais (SECRETARIA ESPECIAL DA
rido políticas culturais de modo planejado e CULTURA, 2020, p. 1).
escrito em documentos de planejamento e
avaliação dessas políticas públicas, e como O Brasil possui, portanto, grau avançado de ins-
isso contribui para o processo de desenvol- titucionalização do Plano Nacional de Cultura
vimento do campo cultural em cada um dos (PNC) em relação aos demais países do Brics.
países do acrônimo. Em artigo publicado em 2008, Albino Rubim
identificou a criação do plano como instrumen-
Análise dos dados to para a implementação de políticas culturais
No que se refere ao modo de sólidas no Brasil. Em suas pa-
institucionalização, isto é, à O Brasil possui, portanto, lavras,
forma pela qual o plano na- grau avançado de
cional de cultura ou de artes institucionalização do Além deste caráter inaugural, o
(ou similar) se encontra na Plano Nacional de Cultura PNC pode dotar o país de polí-
atualidade, identificou-se (PNC) em relação aos ticas culturais de médio e longo
que apenas o Brasil afirma ter demais países do Brics prazo, enfrentando simultanea-
transformado o plano em lei. mente nossas três tristes tra-
Segundo o site específico do plano, dições no campo das políticas culturais:
ausência, autoritarismo e instabilidade. O
O Plano Nacional de Cultura (PNC) é um PNC, inscrito na carta constitucional e com
conjunto de princípios, objetivos, diretri- prazo de duração previsto para dez anos, con-
zes, estratégias, ações e metas que orientam figura, pela primeira vez, a possibilidade de
o poder público na formulação de políticas uma política de Estado na cultura, que ne-
culturais. Previsto no artigo 215 da Consti- cessariamente transcende a temporalidade
tuição Federal, o Plano foi criado pela Lei de governos. Simultaneamente, o PNC pode,
no 12.343, de 2 de dezembro de 2010. Seu deve e está sendo construído como política
objetivo é orientar o desenvolvimento de pública, porque está submetido ao crivo de
programas, projetos e ações culturais que uma discussão e deliberação públicas, que in-
garantam a valorização, o reconhecimento, corpora a participação ativa da comunidade
a promoção e a preservação da diversidade cultural e da sociedade brasileira. Portanto,
cultural existente no Brasil. O Plano Nacio- com esta conjunção o Brasil pode passar a
nal de Cultura (PNC) foi elaborado após a dispor, ao final do processo, de uma política
realização de fóruns, seminários e consul- pública de Estado, vital para o desenvolvi-
tas públicas com a sociedade civil e, a par- mento sustentável da cultura no país (RU-
tir de 2005, sob a supervisão do Conselho BIM, 2008, p. 60).
Nacional de Política Cultural (CNPC). Um
marco importante nesse processo foi a 1a Na Rússia, o instrumento político que se
Conferência Nacional de Cultura, realizada assemelha ao PNC brasileiro foi anunciado
226 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
pelo presidente Vladimir Putin à Assem- do plano, não há informações para o caso da
bleia Federal no dia 12 de dezembro de 2012 Índia, da China e da África do Sul. Em rela-
e dialoga com a estratégia nacional de defesa ção à Rússia, não houve envolvimento. Já no
e inteligência russas. É um documento vol- caso do Brasil, ocorreram fóruns, seminários
tado para o exterior, com foco na imagem e consultas públicas. O Conselho Nacional de
internacional da Rússia. Esse instrumento Política Cultural (CNPC) é o órgão colegiado
tem por objetivo geral: promover a cultura e do Sistema Nacional de Cultura (SNC) res-
língua russas em suas relações internacionais. ponsável pela supervisão da implementação
De modo específico, busca: (1) construir uma do PNC (SECRETARIA ESPECIAL DA CUL-
imagem da Rússia como um país grande e TURA, 2020).
famoso; (2) aproximar-se da diáspora russa; Sobre esses dois instrumentos de políti-
(3) disseminar o idioma russo; (4) promover cas culturais nacionais do Brasil, Paula Reis
intercâmbios acadêmico e estudantil russos; defendeu, na Universidade Federal da Bahia
(5) preservar o patrimônio cultural russo; e (UFBA), sua dissertação de mestrado. Nesse
(6) promover projetos de anos bilaterais com trabalho, a pesquisadora sinalizou que:
outros países, como o Ano do Brasil na França,
promovido pelo Brasil e pela França em 2005. Os desafios históricos, caracterizados por
No caso dos demais países do Brics – Ín- um Estado instável na formulação de políti-
dia, China e África do Sul –, os documentos cas culturais, e o reconhecimento da cultura
foram elaborados pelos órgãos nacionais res- enquanto fator de desenvolvimento humano,
ponsáveis pela aplicação das políticas culturais econômico e social, demonstram a importân-
em seus territórios pátrios – Ministério de Cul- cia de se viabilizar e concluir as propostas do
tura (Índia e China) e Departamento de Artes Sistema Nacional de Cultura e do Plano Nacio-
e Cultura (África do Sul). No caso da Índia, o nal de Cultura. Através delas, espera-se, dentre
foco do documento analisado é o patrimônio outras coisas, uma melhor aplicação de recur-
cultural, tanto o tangível quanto o intangível. sos, descentralização política e administrativa,
Os programas, os equipamentos culturais e o estabelecimento de parcerias entre esferas
a estrutura organizacional do Ministério da de governo e setores sociais, o planejamento de
Cultura justificam esse argumento, conforme ações culturais em todos os níveis federativos
está expresso na publicação em análise (MI- e a diminuição das desigualdades observadas
NISTÉRIO DA CULTURA DA ÍNDIA, 2019). no país (REIS, 2008, p. 107).
O plano do Brasil é o que prevê maior pe-
riodicidade/duração: dez anos. A Rússia tem Com a nova gestão da União a partir de 2019
um plano para seis anos; a China, para quatro; e posterior extinção do Ministério da Cultura
e a Índia e a África do Sul, para cinco anos, e sua transformação em uma secretaria es-
embora este trabalho tenha analisado apenas pecial integrante do Ministério da Cidadania
o planejamento do último biênio no tocante à e, em novembro de 2019, nova transferência
África do Sul. No que se refere à forma de en- para o Ministério do Turismo, pesquisadores
volvimento da sociedade civil com a elaboração das políticas culturais temem que o processo
PLANOS DE CULTURA Bruno do Vale Novais 227
de construção do SNC e do PNC seja, paula- estratégicas: (a) cultura como expressão sim-
tinamente, reduzido, o que pode enfraquecer bólica; (b) cultura como direito de cidadania;
o campo das políticas culturais no Brasil, as e (c) cultura como potencial para o desenvol-
quais já são acometidas por três tristes tra- vimento econômico. A Índia também definiu
dições, sinalizadas pelo professor da UFBA três eixos: (a) patrimônio cultural tangível;
Albino Rubim: ausência, autoritarismo e ins- (b) patrimônio cultural imaterial; e (c) patri-
tabilidade (RUBIM, 2007, p. 101). mônio cognitivo. A Rússia direcionou seus ei-
O fator direcionadores/público-alvo xos de atuação para seis áreas temáticas: (a)
apresentou o seguinte quadro: o Brasil desti- construção de imagem; (b) divulgação para a
nou o plano para o poder público, já que com- comunidade da diáspora russa; (c) divulgação
preende o PNC como uma política pública do idioma russo; (d) intercâmbio internacio-
fruto da construção coparticipativa entre nal acadêmico e estudantil; (e) esquema de
governo e sociedade. O plano da Rússia obje- anos bilaterais ou estações de cultura com
tivou comunicar-se com cidadãos russos no países estrangeiros; e (f ) preservação do pa-
exterior. A Índia e a África trimônio cultural. A África
do Sul buscaram atingir O plano da Rússia objetivou do Sul definiu a promoção
públicos mais diversifi- comunicar-se com cidadãos e desenvolvimento das ar-
cados. A Índia direcionou russos no exterior. A Índia e a tes e cultura e a promoção
seu plano para artistas África do Sul buscaram atingir e preservação do patrimô-
individuais, grupos de ar- públicos mais diversificados. nio como finalidades. Em
tistas, organizações e ins- A Índia direcionou seu plano termos de similitudes, per-
titutos; a África do Sul, por para artistas individuais, grupos cebe-se que Índia, Rússia e
sua parte, para artistas, de artistas, organizações e África do Sul escolheram a
comunidades marginali- institutos; a África do Sul, área temática do patrimô-
zadas, áreas rurais, jovens, por sua parte, para artistas, nio no rol de seus eixos de
mulheres e pessoas com comunidades marginalizadas, atuação. Em termos par-
deficiência. É positiva, áreas rurais, jovens, mulheres ticulares, há ênfase nas
portanto, a diversidade e pessoas com deficiência indústrias culturais por
de públicos objetivados parte da China. No caso
por esses documentos, o que está em conso- do Brasil, os eixos são mais complexos e têm
nância com a Convenção sobre a Proteção perspectiva macro ao abarcar três dimensões
e Promoção da Diversidade das Expressões previamente mencionadas com vistas à con-
Culturais, articulada pela Organização das templação das demandas do campo cultural
Nações Unidas para a Educação, a Ciência nacional brasileiro em todas as regiões.
e a Cultura (Unesco) e em vigor desde 2005. Os objetivos estão em consonância com
Os eixos estratégicos diferiram entre os os eixos apresentados no parágrafo anterior.
países que formam o Brics. A China definiu as No caso do Brasil, orientar o poder público
indústrias culturais como prioridade. O Brasil na formulação de políticas culturais. Além
categorizou três dimensões da cultura como disso, guiar o desenvolvimento de programas,
228 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
projetos e ações culturais que garantam a va- conjuntas, participativas e duradouras. Ele
lorização, o reconhecimento, a promoção e a contará com recursos do Fundo Nacional de
preservação da diversidade cultural existen- Cultura que serão repassados a fundos mu-
te no país. Já a Rússia objetivou promover nicipais e estaduais. Também serão desen-
a cultura e a língua russas em suas relações volvidas políticas para fortalecer a relação
internacionais; a Índia, preservar e conservar entre a cultura e áreas como a educação, a
o patrimônio cultural tradicional indiano e comunicação social, o meio ambiente, o tu-
promover a arte e cultura tangível e intangível rismo, a ciência e tecnologia e o esporte. As
indiana; a África do Sul, por fim, promover e metas refletem uma concepção de cultura
desenvolver as artes e cultura sul-africanas, que tem norteado as políticas, os progra-
bem como preservar o seu patrimônio cultural. mas, as ações e os projetos desenvolvidos
Em relação às metas, Rússia e Índia não pelo Ministério da Cultura (MinC). Essa
as especificaram. A China apresentou dez e concepção compreende uma perspectiva
a África do Sul três. O Brasil tem 53 metas ampliada da cultura, na qual se articulam
definidas no PNC.3 Em 2013, o Instituto de três dimensões: a simbólica, a cidadã e a
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vin- econômica (IPEA, 2013, p. 15).
culado ao Ministério da Economia, publicou
um texto sobre as metas do Plano Nacional Todos os documentos analisados dos cinco
de Cultura do Brasil. Esse material é bastante países que formam o Brics dialogaram com a
didático e traz, além da apresentação deta- realidade e demandas do setor cultural de seus
lhada de cada meta, os passos necessários territórios nacionais, bem como com políticas
para a eficiente e eficaz implementação do públicas dos demais setores estratégicos. No en-
PNC no país. Esse documento apresenta tanto, só existem políticas culturais realmente
perspectivas que deveriam ser alcançadas públicas em regimes verdadeiramente demo-
até o último ano de vigência do PNC: cráticos. É complexo analisar de modo compa-
rado políticas culturais entre os países do Brics,
Imaginar o cenário da Cultura em 2020 cujos contextos políticos internos diferem. A
é pensar que até lá o povo brasileiro terá própria noção e a forma de desenvolvimento
maior acesso à cultura e que o país respon- e concretização do que compreendemos – no
derá criativamente aos desafios da cultura Ocidente – por democracia diferem entre os
de nosso tempo. A expressão dessas mudan- países que formam o Brics. Não nos cabe, ade-
ças será visível na realização das 53 metas mais, realizar julgamento de valor a respeito do
do Plano Nacional de Cultura. Até 2020, as modo pelo qual cada país do acrônimo organiza
políticas culturais terão passado por diver- seu sistema político doméstico. Interferiria na
sas transformações, a começar pelo pleno forma de análise comparativa dos documentos,
funcionamento de um novo modelo de ges- já que o objetivo de utilizar esse instrumento
tão, o Sistema Nacional de Cultura. Esse sis- como fortalecimento da cidadania cultural é
tema possibilitará a estados, Distrito Federal frágil. Isso se justifica pelas limitações apre-
e cidades, a promoção de políticas públicas sentadas neste texto.
PLANOS DE CULTURA Bruno do Vale Novais 229
Referências bibliográficas
Notas
2 Talvez no caso da África do Sul exista um documento cuja leitura possa ser
feita como um plano nacional de cultura. Esse instrumento é resultado da
estruturação das políticas públicas sul-africanas a partir de 1994, com o
advento do regime democrático. Assim, foram construídos documentos oficiais,
nomeados por White Papers. No campo da cultura, o primeiro documento é
de 1996, e sua terceira revisão ocorreu em 2017, alinhada às ações do National
Development Plan, disponível em: https://www.gov.za/sites/default/files/gcis_
document/201706/revised-3rd-draft-rwp-ach-february-2017.pdf. Acesso em:
19 abr. 2020.
Anexo
QUADRO 1 – ELEMENTOS DE ANÁLISE COMPARATIVA
DOS DOCUMENTOS DE PLANEJAMENTO DE CULTURA
DOS PAÍSES DO BRICS NO INTERREGNO 2010-2020
Modo de institucionalização Instituído pela Lei nº 12.343/2010 Anunciado pelo presidente Vladimir
Putin para a Assembleia Federal
no dia 12 de dezembro de 2012
Objetivos principais do plano 1. Orientar o poder público na Promover a cultura e a língua russas
formulação de políticas culturais; em suas relações internacionais
e 2. orientar o desenvolvimento
de programas, projetos e ações
culturais que garantam a valorização,
o reconhecimento, a promoção e a
preservação da diversidade cultural
existente no Brasil
4. A ESCUTA DO
PODER PÚBLICO
PLANO NACIONAL
DE CULTURA: ANÁLISES
E PERSPECTIVAS
Entrevistas: deputada federal Jandira Feghali (Câmara dos Deputados do Brasil),
senador Eduardo Gomes (Senado Federal) e secretário especial da Cultura
Mario Frias (Ministério do Turismo)
A
s entrevistas a seguir apresentam mais um elemento decisivo para
a construção do Plano Nacional de Cultura (PNC): a escuta do po-
der público institucionalizado. Inicialmente, a deputada federal
Jandira Feghali (PCdoB/RJ) e o senador Eduardo Gomes (MDB/TO), na
condição de representantes governamentais em exercício no Poder Legisla-
tivo, apresentam suas visões e análises do PNC 2010-2020 e as expectativas
para um novo plano nacional. Em seguida, investido da autoridade para o
tratamento desse tema pelo Poder Executivo, o secretário especial da Cultura
do Ministério do Turismo, Mario Frias, traz seu entendimento do assunto e
indica os próximos passos previstos pelo governo federal. Eduardo Gomes e
Mario Frias apresentaram suas respostas às nossas questões por escrito, em
5 de outubro e 5 de novembro de 2020, respectivamente, e Jandira Feghali
abordou a pauta em uma entrevista a distância, por videochamada, em 8 de
outubro de 2020.
238 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
determinados pontos podem ser melhorados. EG: Entendo que o Congresso Nacional
A prorrogação deveria incluir um cronograma deva assumir seu papel de defender essas
de análise diante dos resultados analisados e duas importantes conquistas, que correspon-
da pandemia, mas isso não existe. É apenas dem a mandamentos constitucionais. Se o
uma prorrogação para não dizer que não fez Poder Executivo se mostrar omisso em rela-
nada. Por isso, a mobilização do setor cultural, ção a ambas as previsões constitucionais – o
da sociedade e do Parlamento é muito impor- que acredito que não vá ocorrer devido à res-
tante, acompanhando o que conseguimos em ponsabilidade do governo com esse tema –, o
2020 no processo da Lei Aldir Blanc [LAB]. Parlamento conta com algumas opções para
Acredito que 2021 será um ano de interpelá-lo sobre tal omissão. Ademais, ele
construir a perenização de um novo critério pode assumir a iniciativa de propor e aprovar
para a cultura que nos permita trabalhar e um novo Plano Nacional de Cultura, para vi-
não ficar conjunturalmente buscando saí- ger nos próximos dez anos, assim como a de
das a cada situação adversa. Será o ano para regulamentar, por meio de lei, o Sistema Na-
construir uma perenização do sistema, com cional de Cultura. Ocorre que as proposições,
descentralização e orçamento para a cultu- com esses ou quaisquer outros objetivos, se
ra, e para trabalhar os critérios para as novas submetem a diversas contingências, sendo
metas do PNC. Um dos legados da Lei Aldir fundamental garantir a prioridade e a celeri-
Blanc foi justamente a Conferência Nacional dade em sua tramitação para que venhamos
Popular de Cultura, que já está acontecendo e a ter sucesso em sua apreciação.
trará muitos dados que podem compor uma
proposta para o Plano Nacional de Cultura,
a partir das cidades.
A ESCUTA DO PODER PÚBLICO 243
Brasil. Na Lei Maria da Penha, presencial- e uma boa negociação dentro do Parlamen-
mente, e agora pelas estradas digitais. Assu- to, com todos os partidos. Eu falava com 20
mi a relatoria no dia 7 de maio, e no dia 26 de líderes por dia. Absorvi emendas e contribui-
maio nós votamos na Câmara. Em 19 dias, ções, até que acabamos trazendo o governo
nós falamos com o Brasil inteiro, com o Bra- para o acordo e a lei foi sancionada com um
sil profundo, em todos os estados, com todas único veto, que foi o de prazo de 15 dias para
as linguagens, com todas as regiões e com os aplicar. Não houve veto de conteúdo na lei.
gestores também, de municípios e estados. A No Senado, ela foi votada uma semana de-
lei foi construída a partir desse debate, tanto pois, também sem alterações. Houve só uma
que o texto votado não foi nenhuma das leis emenda de redação. Foi sancionada no últi-
proponentes originais. Foram 6 projetos de mo dia do prazo, como é praxe neste governo,
lei, com 34 autores, de 11 partidos diferen- e dez dias depois saiu a medida provisória
tes. Depois de todas as contribuições, acabei do crédito de 3 bilhões de reais, que, para a
apresentando um texto de concepção dife- cultura, é pouco, mas historicamente foi o
rente de todos os seis projetos, porque, no maior valor aportado em uma única vez em
meio do caminho, vimos a necessidade de um prazo tão curto.
basear a lei em alguns parâmetros: o primei- A regulamentação demorou um pou-
ro deles, da descentralização, fortalecendo o co mais. Foram quatro reuniões; participei
SNC; o segundo, da universalidade, reconhe- de todas. A regulamentação burocratizou o
cendo nela a diversidade cultural brasileira, que a lei não burocratizou, e estamos tendo
razão pela qual a descentralização é funda- dificuldade agora em alguns estados e mu-
mental; e o terceiro, da desburocratização. nicípios, pelos critérios que cada um acabou
A aplicação da lei deveria ser algo sim- utilizando. Tenho participado de reunião em
ples, identificado com a realidade de cada tudo que é lugar para discutir a aplicação da
cidade e de cada estado. Ela foi construída lei, que está em plena fase de aplicação. Até
assim, e consegui dar um valor, ou seja, um este momento [outubro de 2020], 2.730 mu-
impacto financeiro conhecido e fontes co- nicípios já aderiram. É a maior descentrali-
nhecidas também, possíveis. Com isso, nós zação de recursos que já existiu na cultura. A
construímos uma pressão de fora para dentro Lei Cultura Viva chegou a 1.100 municípios.
246 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Ainda temos tempo para mais adesões e, nos em razão da pandemia. Então existe muita
municípios que não aderirem, o dinheiro se- reclamação, mas é a crise da existência do
guirá para o estado. Então o recurso todo será dinheiro e da existência da lei. A não exis-
descentralizado. tência seria muito pior.
Qual é o legado disso? Um processo de Temos tentado ajudar nessas crises. O
mobilização muito inovador, que movimen- fórum dos secretários estaduais está atuando
tou o Brasil inteiro. Um grau de organização e, em muitos lugares, tem conseguido simpli-
superior, de muita gente se organizando em ficar processos, fazer busca ativa em cidades
conselhos e comitês, de exclusão digital e até
com muitos municí- Qual é o legado disso? Um processo colocar gente de barco
pios aderindo ao SNC de mobilização muito inovador, para buscar povos in-
e criando suas formas que movimentou o Brasil inteiro. dígenas e quilombolas
de organização. Muito Um grau de organização superior, para entrarem nos edi-
diálogo que não existia de muita gente se organizando em tais e nos auxílios. É um
entre gestores, conse- conselhos e comitês, com muitos processo muito bonito,
lhos e a sociedade civil municípios aderindo ao SNC e um legado muito inte-
passou a acontecer. criando suas formas de organização. ressante que a Lei Aldir
Mas a gente ainda Muito diálogo que não existia entre Blanc deixa.
encontra situações de gestores, conselhos e a sociedade Penso que esse le-
pouco diálogo, como civil passou a acontecer gado da lei nos permite
no estado de São Pau- buscar uma pereniza-
lo, que recebeu o maior volume de recursos ção do critério de descentralização, reunindo
e teve dificuldade de diálogo entre o secre- os projetos que já existem de constituciona-
tário estadual e os secretários municipais, lizar o orçamento. Estamos agora tentando
e também com a sociedade civil. São Paulo aprovar a ampliação da aplicação dos re-
adotou um edital elitista, excludente de vá- cursos e a prestação de contas para 2021.
rias linguagens, com uma burocratização Muitas coisas acontecerão em 2021 ainda
excessiva, pedindo certidões negativas, sem a partir da lei, como os projetos que entra-
nenhuma flexibilização das procuradorias ram nos editais e que acontecerão em 2021,
A ESCUTA DO PODER PÚBLICO 247
as contrapartidas... Além disso, a LAB teve EG: Não há dúvida de que a área cultural foi
como legado a criação de escola de políticas uma das mais duramente atingidas pela pan-
culturais, de página da lei emergencial, de demia, ao lado de outras como as de turismo
fóruns diversos em escala nacional, de Ins- e esportes. Compreendo que a chamada Lei
tagram e uma série de formas de contato e Aldir Blanc demonstrou a preocupação dos
interatividade que a lei possibilitou. E agora parlamentares de ambas as casas do Congres-
a Conferência Nacional Popular de Cultura. so Nacional com as dificuldades vividas pelo
Tudo isso foi incrível, e manter essa mobi- setor cultural, assim como sua capacidade
lização pode nos possibilitar a mudança do de se sobrepor às divergências partidárias
plano, a regulamentação do sistema e a pe- e ideológicas para aprovar um conjunto de
renização dos critérios de descentralização medidas de efeitos práticos e emergenciais,
do orçamento. que ajudam a superar parcialmente as refe-
ridas dificuldades.
Entendo que os ensinamentos oriun-
dos desse processo vão tornar o Congres-
so Nacional, assim como toda a sociedade
brasileira, mais preparado para o enfrenta-
mento de uma eventual e indesejável nova
pandemia, com consequências, por certo,
para a área cultural.
Cabe aqui ressaltar que o setor cultu-
ral se mostrou uma ferramenta essencial
para a população atravessar os períodos de
isolamento físico, e muitas vezes social, exi-
gidos pela pandemia. Afinal, o que seria das
pessoas sem os filmes, as séries, as apresen-
tações musicais de seus artistas nacionais
e locais favoritos transmitidas pelos servi-
ços de streaming, além de iniciativas como
248 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
música na varanda dos prédios ou em trios COMO O/A SENHOR/A VÊ O TEMA DA CENSURA
elétricos? A criatividade, a paixão e a solida- ATUALMENTE NO BRASIL? QUAL É O PAPEL
riedade dos agentes culturais foram decisi- DO CONGRESSO EM RELAÇÃO A ESSA PAUTA?
vas nesses momentos, levando inclusive os JF: Hoje estamos vivendo sob um governo
canais de TV pagos a liberar filmes e canais que, na minha opinião, é a face mais obscura
de entretenimento. do capitalismo contemporâneo. Um governo
Ainda mais importante, a meu ver, é a que concentra recursos e poder no capital
percepção de que um sistema cultural con- financeiro, que sequestra direitos, destrói
sistente e integrado, contando com um su- o papel do Estado e tem características de
porte de mecanismos legais, como o PNC e restrições democráticas profundas e fascis-
o SNC, que o estimulem e que abranjam as tizantes. O governo Bolsonaro, como espelho
instâncias públicas e privadas de diversos de algumas outras forças pelo mundo, traba-
âmbitos (ou seja, instituições, empresas, lha com a pulsão pelo ódio, pela violência, e
criadores e produtores da cultura em geral, vê a cultura e a educação como a contradita
nas diversas áreas geográficas do país), per- da sua suposta verdade. Então, cultura e edu-
mite enfrentar as crises de modo bem mais cação passam a ser inimigos, numa visão de
eficaz. Cada uma dessas novas possíveis negação da ciência, da liberdade crítica, da
situações futuras de crise vai demandar, liberdade de pensamento, da liberdade de
contudo, uma avaliação e soluções próprias, ensinar e de aprender, da liberdade de amar.
adequadas às suas especificidades e não de Negam as identidades, a liberdade religiosa,
todo previsíveis. a liberdade de fé. É um processo extrema-
mente crítico e, na cultura, essa censura já
se expressou – na negação de recursos para
filmes de conteúdo LGBTQIA+, na restrição
de publicidade. Eles atuam com a censura e
com a inexistência da contradita.
E o que podemos fazer? Primeiro, a de-
núncia. Segundo, onde cabem instrumentos
legislativos, estamos atuando. Já fizemos
A ESCUTA DO PODER PÚBLICO 249
EG: A liberdade de expressão é um dos fun- Mario Frias fala sobre o Plano
damentos da democracia e de uma cultura Nacional de Cultura
autêntica e criadora. Deve o Congresso Na-
cional, a meu ver, fazer sua parte no sentido A ELABORAÇÃO DO PLANO NACIONAL DE CUL-
da construção de uma cultura livre e soli- TURA MOBILIZOU MILHARES DE PESSOAS AO
dária, na qual seja respeitada a diversidade LONGO DE DEZ ANOS, E SUA IMPLEMENTA-
de opções religiosas, culturais e comporta- ÇÃO DEMANDOU MUITO DIÁLOGO E ARTI-
mentais, incluídas as relativas a sexo e gê- CULAÇÃO. O SENHOR ACOMPANHOU ESSE
nero, desde que a prática dessas opções não PROCESSO OU TEVE ALGUMA INTERAÇÃO
afronte os direitos alheios e respeite as leis COM ELE?
do país. O Legislativo deve, ademais, zelar Mario Frias: Não, nesse período estava
pelo cumprimento da legislação que protege concentrado nas minhas atividades artísti-
as crianças e as minorias e eventualmente cas e de produtor. Apesar de não ter partici-
aperfeiçoá-la. pado da construção do plano vigente, tenho
convicção da importância de um plano na-
cional para orientar a formulação de políti-
cas culturais em âmbito nacional.
A ESCUTA DO PODER PÚBLICO 251
QUAL É A SUA OPINIÃO A RESPEITO DO PNC executadas. Entendo que em uma próxima
2010-2020? O PAÍS PRECISA OU NÃO DE UM edição é importante definir prioridade, ter
PNC? ELE MAIS ENGESSA OU MAIS EMPRESTA uma visão pragmática dos desafios que os
DINAMISMO AO SETOR? gestores públicos no governo federal, esta-
MF: O PNC foi produzido com base em duais, no Distrito Federal e nos municípios
amplos debates e deliberações envolvendo enfrentam no seu dia a dia e propor metas
o antigo MinC e parte da sociedade civil, há factíveis de ser alcançadas e, principalmen-
mais de dez anos, em ou- te, mensuradas.
tro contexto político. O PNC vigente foi elaborado Um plano focado,
O primeiro Plano Na- abarcando 53 metas, a maioria contemplando as várias
cional de Cultura foi em delas genérica, imensurável e formas de pensamento
1975, o atual é o segundo; inalcançável, o que dificulta o sobre cultura e economia
podemos dizer que é uma entendimento sobre as ações criativa, sem dúvidas,
experiência nova e sujeita que devem ser realmente pactua as prioridades que
a uma série de falhas de executadas. Em uma próxima a sociedade elegeu e que os
implementação, equívocos edição é importante definir gestores públicos deverão
na amplitude de conceitos prioridade, ter uma visão se esforçar para viabilizar.
e intercorrências, difíceis pragmática dos desafios que
de prever dado o seu quase os gestores públicos enfrentam
ineditismo. no seu dia a dia e propor metas
Infelizmente, o PNC factíveis de ser alcançadas e,
vigente foi elaborado principalmente, mensuradas
abarcando 53 metas, a
maioria delas genérica, imensurável e inal-
cançável, o que dificulta o entendimento
sobre as ações que devem ser realmente
A ESCUTA DO PODER PÚBLICO 253
HÁ PREVISÃO CONSTITUCIONAL PARA O SIS- Tudo isso tem o intuito de que as políti-
TEMA NACIONAL DE CULTURA, MAS TODOS cas públicas de cultura sejam geridas e exe-
SABEMOS QUE SÃO NECESSÁRIOS ESFOR- cutadas de forma mais clara, transparente e
ÇOS EFETIVOS PARA SUA IMPLEMENTAÇÃO eficiente. Contamos com o Departamento do
E CONSOLIDAÇÃO. QUE ATENÇÃO VEM SEN- Sistema Nacional de Cultura, que lida espe-
DO DISPENSADA A ESSE ASSUNTO? COMO cificamente com essas questões e tem o foco
O SENHOR, NA CONDIÇÃO DE SECRETÁRIO primordial em auxiliar os entes na institucio-
ESPECIAL DA CULTURA, PRETENDE ESTI- nalização e implementação da gestão pública
MULAR ESSE PROCESSO E, POR FIM, QUAL É A de cultura. Por meio do VerSNC (http://ver.
PERSPECTIVA OU PERSPECTIVAS, NO CURTO snc.cultura.gov.br/), é possível acompanhar
PRAZO, EM TERMOS DE TEMPO E DEDICAÇÃO a institucionalização e implementação dos
PARA AVANÇAR NESSES ESFORÇOS? sistemas de cultura dos entes federados.
MF: Sabemos que, desde 2012, quando o Ainda precisamos de uma lei que re-
Sistema Nacional de Cultura foi integrado à gulamente o funcionamento do SNC, prin-
Constituição Federal (artigo 216-A) e come- cipalmente no que se refere ao repasse de
çou a ser executado, houve muitos esforços recursos para os entes federados integrantes.
para que os estados e municípios fizessem a Por causa disso, estamos em articulação com
sua adesão ao SNC e iniciassem o processo outros órgãos para que isso aconteça o mais
de institucionalizar seus sistemas de cultura breve possível. É evidente que a consolidação
locais. Por muito tempo, esse foi o foco das do Sistema Nacional de Cultura nas esferas
ações do SNC. federal, estaduais, municipais e distrital é
Contudo, estamos agora em uma nova uma tarefa complexa e de longo prazo.
fase do SNC, que consiste na institucionaliza-
ção, que trata da regulamentação das leis do sis-
tema de cultura e de seus componentes (como
plano, fundo, conselho de política cultural),
bem como na implementação desses elemen-
tos, ou seja, que os entes federados coloquem
em prática a execução desses normativos.
256 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
COLEÇÃO OS LIVROS
DO OBSERVATÓRIO
Arte e Mercado
Xavier Greffe
264 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
SÉRIE RUMOS
PESQUISA
AS REVISTAS
Revista Observatório
Itaú Cultural No 10 –
Cinema e Audiovisual
em Perspectiva:
Pensando Políticas
Públicas e Mercado
PLANO NACIONAL DE CULTURA – ANÁLISES E PERSPECTIVAS 269
Realização