Você está na página 1de 8

Percurso em Produção Cultural

Curso
Políticas culturais: Contexto histórico e agenda para o século
XXI

Aula: Os desafios de implementação das políticas culturais e da participação


social
Professora: Claudinéli Moreira Ramos

Conteúdo do Podcast 1 – Transcrição

Escola Itaú Cultural apresenta Percurso em Produção Cultural.

Quais os principais desafios para a implementação das políticas culturais no


Brasil deste século 21? E como tratar a participação social nesse processo?
Essas são as duas grandes questões que vão nortear os nossos encontros
aqui no Percurso EAD em Produção Cultural da Escola Itaú Cultural.
 
Olá, eu sou Claudinéli Moreira Ramos, consultora e pesquisadora de gestão e
políticas culturais. Atuei dez anos na Fundação Patrimônio Histórico da Energia
e Saneamento e depois 11 na Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo,
coordenando primeiro a área de museus e depois a de monitoramento e
avaliação de políticas culturais. Tenho 47 anos, pele marrom clara, cabelo
castanho escuro liso e comprido, altura e peso medianos e uso óculos.
 
Bom, vamos estar juntos nos próximos dias, buscando entender o que
acontece com as políticas públicas de cultura em nosso país na atualidade, e
para isso é fundamental conhecer o histórico de construção desse contexto, a
trajetória percorrida até aqui.
 
Acho que nem preciso ressaltar a importância do conhecimento histórico (até
porque isso fugiria do nosso tema, do nosso tempo) mas para ficar numa
situação muito oportuna, como nos ensina o célebre romance distópico 1984
do George Orwell: “quem controla o passado, controla o futuro”. Não é por
acaso, que mais de sete décadas após a primeira edição no Reino Unido, esta
continua sendo uma das obras mais vendidas do mundo. Por sinal, começando
o ano de 2021 no topo da lista de best-sellers globais da Amazon Books.
 
Vivemos tempos incertos: as distopias parecem fazer cada vez mais sentido.
Nos encontros anteriores deste percurso, porém, felizmente, vocês tiveram a
oportunidade de estabelecer contato com algumas reflexões bem significativas
sobre a trajetória das agendas e do pensamento das políticas culturais na
América Latina desde os anos 1970 e também sobre o contexto histórico das
políticas culturais no Brasil.

Essa introdução é super relevante, e caso você por acaso ainda não tenha tido
a chance de assistir a essas aulas, a sugestão é que visite lá o portal do curso
e procure aproveitar esse material. A nossa caminhada aqui parte das
experiências vivenciadas em termos de políticas públicas culturais no Brasil a
partir do século XXI.
 
No artigo que vocês receberam para leitura, que tem esse título grande e
ambicioso, Histórias e resultados do Plano Nacional de Cultura 2010-2020 e o
anseio por um novo e aprimorado plano, apresento uma análise histórica da
elaboração e desenvolvimento desse documento, que também é um processo
norteador das políticas culturais brasileiras. Ele é provavelmente o principal
marco das últimas duas décadas em termos de construção de política cultural
no país. 
 
Nesse texto, também traço uma avaliação geral das 53 metas do plano (o que
vamos examinar um pouco mais detidamente mais adiante) e apresento um
esforço de exame qualitativo, um balanço da década feito por um conjunto de
profissionais do setor, que também se dedicou a reunir contribuições para se
pensar num novo planejamento decenal da cultura em território nacional. 
 
É óbvio que estamos falando de um exercício pontual, mas não deixa de ser
significativo e de nos ajudar a pensar até que ponto a gente avançou, onde
nossas impressões desse longo e atribulado período convergem e que
aprendizados é possível extrair da experiência do Plano Nacional de Cultura
anterior para um próximo PNC. Tudo isso ainda levando em conta toda essa
drástica transformação nas relações sociais e produtivas, que ainda estamos
digerindo e que são frutos ou sequelas da pandemia de coronavírus.
 
Também aqui fica a referência para essa leitura (caso você ainda não tenha
tido tempo de se dedicar a ela), porque esse ensaio será base para várias das
problematizações que vamos juntos tratar nas próximas conversas.

O que tento dizer aqui, gente, é que as aulas anteriores ajudam a criar o pano
de fundo dessa contextualização das políticas culturais brasileiras do século
XXI, bem como a bibliografia de apoio indicada, e esse meu artigo na revista 29
do Observatório Itaú Cultural contribui para que a gente possa saber um pouco
mais como foram os movimentos sociais pela democratização e valorização da
cultura, e sobre as políticas governamentais implementadas. Especialmente o
Plano e o Sistema Nacional de Cultura, cuja a lógica é, em certa medida (e
muito se tem falado sobre isso), precursora do grande movimento que resultou
na Lei Aldir Blanc.
 
Muito bem! Nesses nossos encontros também vamos debater como se
concebeu uma política nacional de cultura a partir de um modelo sistêmico de
gestão compartilhada e em que medida isso virou realidade; que limitações,
que avanços, que continuidades e descontinuidades foram observadas nesse
período.
 
Afinal, o que aconteceu com o PNC 2010-2020 e com o Sistema Nacional de
Cultura na teoria e na prática dos entes federados, ou seja, da união, dos
estados e dos municípios? 
 
A gente sabe que os dez anos regulamentares do plano se encerraram em
2020. Ainda que tenha havido uma prorrogação no finalzinho do ano passado,
estendendo a vigência, o que que a gente pode dizer sobre essa década de
implementação? Os resultados foram positivos? O poder público cumpriu suas
atribuições legais? Como o setor cultural se relacionou com o plano? E você?
Você – aluna ou aluno desse curso que eventualmente já atuava no setor
cultural – teve que experiência em relação a essa política nacional? E a
sociedade? Passados os 10 primeiros dos 12 anos que agora constam da Lei
do Plano Nacional de Cultura, qual é o legado que fica? Tem? Não tem
nenhum? E quanto ao Sistema Nacional, no que resultou todo o empenho por
incluir na Constituição Federal? E o que é que a gente tem hoje desse sistema
em termos concretos?
 
A gente vai trabalhar um pouco de tudo isso, sempre procurando cotejar essa
trajetória histórica, os fatos, acontecimentos, os impactos conjunturais – como
no caso das crises econômicas, da mudança de gestão política do processo e
da própria pandemia – com uma reflexão propositiva, no sentido de tentar ir
além dos diagnósticos dos problemas, em direção a algumas alternativas. Isso
quer dizer que a nossa perspectiva é não só de definir sobre mudar o que não
está funcionando – e a gente está sempre falando em mudar alguma coisa… –
mas também de manter ou recuperar ganhos, processos, dinâmicas de
atuação, que não deveriam ter sidos descontinuados, e ainda de ampliar a
visão a respeito do cenário como um todo. 
 
O que pretendo dizer aqui é que mais do que pensar em polos – nós e eles;
aqueles que são a favor e os que são contra o setor cultural; progressistas
versus reacionários etc. – o esforço proposto é o de pensar em termos de
sociedade, de pessoas em geral, sujeitos de direitos e de deveres com visões
diversas, por vezes contraditórias, vivendo em condições desiguais, e que
fazem parte do universo do respeitável público com o qual a gente precisa
dialogar se quisermos ampliar a voz e a relevância do setor cultural brasileiro
como política pública estratégica de fato. 
 
E o que é isso? Essa política pública estratégica de fato?  É mais do que
discurso e apoio moral; mais até do que alguma renúncia fiscal numa
modelagem bem inferior a outros setores produtivos e com exigências de
contrapartidas bem maiores. Estamos falando aqui de uma política pública que
de verdade assegure reconhecimento e continuidade da atuação e do
investimento - investimento real - focalizado em áreas e ações prioritárias
discutidas com o setor cultural e com a sociedade, independentemente da
coloração partidária dos titulares do poder executivo da vez. 
 
Isso é possível? Isso é realmente possível? Vamos falar sobre isso, mas
vamos por partes. Primeiro, vale a pena resgatar alguns elementos históricos
que nos acompanharão ao longo da jornada. 
 
Durante a maior parte da história brasileira, arte e cultura não fizeram parte das
preocupações governamentais a não ser pontualmente, de maneira acessória,
secundária ou decorativa. Nesse sentido, a maior parte das ações
desenvolvidas pelo poder público foram voltadas ao controle, à censura, ao
enquadramento do setor cultural e artístico e da sua produção. O que a gente
teve mais frequentemente, na verdade, foram tentativas de uso da arte e da
cultura de acordo com alguns interesses que não tinham muito a ver com as
questões de cultura, arte ou mesmo educação. 

Inclusive as iniciativas aparentemente voltadas à democratização do acesso e


à viabilização de direitos culturais para as minorias foram muito marcadas por
mecanismos destinados a canalizar as demandas, até atendendo clamores
corporativos – muitos dos quais absolutamente legítimos é preciso ressaltar –
mas de uma maneira que visava garantir o controle do processo através de
grande burocratização, de modo geral com recursos limitados e
descontinuados, e com constantes remodelações teórico-metodológicas ou de
gestores de programas e projetos: a famigerada, velha e tão atual dança das
cadeiras, impedindo a constituição de tradições de políticas públicas culturais
consistentes.

Então, para a maioria dos governos no nosso país, cultura não era uma
prioridade. Quando surgia uma gestão priorizando, isso quase só durava
enquanto não houvesse crise econômica. Ao menor sinal de crise, as pautas
culturais saiam de cena; os cortes no setor cultural em geral foram
proporcionalmente muito maiores que nos demais setores sempre que se
vivenciou uma dificuldade econômica no país.

Aliás, a  história das políticas culturais no Brasil oscila basicamente entre a


dedicação das elites em promover o uso das artes, do patrimônio histórico e
das manifestações para afirmar determinados valores e interesses junto a
grupos específicos, a estratégia dos governos autoritários de criar narrativas e
simbologias oficiais, e de viabilizar válvulas de escape controladas para
demandas e pulsões criativa. Exemplos disso temos em inúmeras festividades
comunitárias, religiosas e até mesmo na maneira como certos eventos
nacionais foram viabilizados e, “permitidos” (mesmo em período de repressão)
como o carnaval, festas juninas e por aí vai. Ao mesmo tempo temos a
perspectiva de enquadrar, cercear e, se necessário, combater ostensivamente
a produção crítica, tida como, “perigosa” aos interesses da nação. 

Mas, de novo, essa não é uma história de bons contra maus. Não é a história
do setor cultural oprimido, combatente, versus governos opressores e
arbitrários. É claro que existe uma parte expressiva da classe cultural que é
combativa e militante. Mas muitas passagens do século XX ilustram também a
adesão de importantes intelectuais e artistas à visão de mundo de governos
centralizadores, antidemocráticos, assim como registram também a indiferença
à adoção desse lado ou daquele, manifesta por outros tantos, e até mesmo um
certo preconceito com a chamada arte engajada por parte de outros. Isso não é
um privilégio do século XX.

Da mesma maneira, a gente vai ter políticos e lideranças técnicas com


perspectivas diversas, e até contraditórias entre si a respeito da área cultural,
mesmo nos governos militares. Sempre, ao longo da história brasileira, sob
maior ou com menor repressão, haverá movimentos artísticos e culturais
contrapondo-se a regimes autoritários; ou criando inovações completamente
distintas daquilo que era estimulado ou tentando ampliar o acesso a uma
produção cultural variada junto a gente bem pobre e desassistida. Sem falar
numa imensa parcela de agentes culturais que quase não terá relações com as
esferas de governo, a não ser pontualmente e numa perspectiva bem próxima
à da filantropia. Esses grupos de interesse distintos ora se subdividiram ainda
mais, ora vão constituir alianças e de um jeito ou de outro protagonizarão
inúmeros embates entre si. 

Isso vai se refletir em ganhos e perdas de diferentes graus e que terão grande
impacto nesse caldo que, ao mesmo tempo, resulta numa produção cultural tão
cheia de riquezas, belezas e criatividade, que dão um orgulho enorme. E num
setor produtivo tão desvalorizado, desacreditado e que, a cada novo rompante
governamental e social conservador, é criticado pelo compromisso com
supostos valores imorais e pelo suposto pouco apreço ao trabalho – como se o
campo cultural fosse sempre, desde sempre, um lugar duvidoso, um espaço de
exercício profissional menor. Sabe aquela ideia do território do malandro de
ontem e do vagabundo que mama nas tetas da Lei Rouanet de hoje? E entre
um extremo e outro, do engajamento ao desprezo, muitas realidades e
tamanhos do fazer cultural vão se estabelecer, algumas poucas conseguirão
longevidade e outras muitas vão estar em permanente mutação, para
conseguir sobreviver. São as empresas que começam e terminam; o projeto
que garante o sustento, mas também a quitação das dívidas do projeto anterior
ao mesmo tempo em que gera as dívidas a pagar com o próximo. 

E aí é irresistível perguntar: um país reconhecido pela belíssima criatividade


cultural, e não só isso, mas um país que consegue se reconhecer detentor de
uma belíssima criatividade cultural, pode desvalorizar tanto o seu setor de
trabalhadores das artes e da cultura? Como é possível que apenas alguns
expoentes mais bem-sucedidos sejam detentores de admiração e
reconhecimento, de consideração da população em geral?

Se a animosidade recente com a área cultural deixa essa preocupação mais


gritante, a ausência de valor para o trabalhador das artes e da cultura não é
novidade no Brasil. Não é à toa que a remuneração dos profissionais do setor
segue sendo uma questão para a qual aquela famosa citação da Cacilda
Becker continua atualíssima: “Não me peça para dar de graça a única coisa
que tenho para vender”.

Quem nunca pediu ou recebeu uma oferta para realizar um trabalho cultural
sem cachê que atire o primeiro tomate, mas vale notar, não estamos falando só
de reconhecimento no sentido financeiro, embora obviamente ele seja
essencial. O problema é que no caso do setor cultural por vezes as profissões
são alvo de preconceitos que não fazem nenhum sentido, além de revelar
desconhecimento, ignorância e crença em inverdades. 

Se a gente olhar áreas como esportes, por exemplo, as dificuldades dos


profissionais em início de carreira ou daqueles que não figuram entre os mais
bem-sucedidos também envolvem sérios problemas de remuneração. Os
salários são baixos, há dificuldades diversas para a garantia de direitos para a
boa gestão das carreiras. Outros campos profissionais padecem do mesmo
maltrato num país burocrático, de baixo nível de educação e desigual como o
nosso.

No entanto, o preconceito contra as carreiras do setor cultural é ao mesmo


tempo específico e generalizado. Assim, ser atriz, cantor, desenhista, bailarino,
artista visual para muita gente é sinônimo de ser alguém que não quer ou não
gosta de trabalhar; ser museóloga, bibliotecário, arquivista, restauradora é viver
entre coisas velhas, não raro bem chatas; ser curadora, gestor cultural,
designer, agente, produtora cultural é fazer algo que a maioria não consegue
sequer localizar do que se trata numa primeira conversa e que novamente
tende a parecer coisa de gente que não é muito séria, ou quem não tem muito
gosto pelo batente, ou que só quer saber de festa! E para que alguém vai
querer chamar de trabalho e pagar para as pessoas se divertirem? Mas de
onde é que será que vem isso? 

De novo pergunto: como pode ser possível um país reconhecido pela belíssima
criatividade cultural e que é também um país que consegue se reconhecer
detentor de uma belíssima criatividade cultural, desvalorizar tanto o seu setor
de trabalhadores das artes e da cultura? Por que será que apenas os mais
famosos, os mais bem-sucedidos seguem recebendo admiração,
reconhecimento, consideração da maioria da população?

Vou deixar com vocês essa reflexão. Envia para gente, pela plataforma, qual é
a sua análise desse assunto. No próximo encontro, vamos mergulhar um pouco
mais nessa pauta.

Eu sou Claudinéli Ramos e espero você para seguir adiante no nosso Percurso
em Produção Cultural da Escola Itaú Cultural. Até lá!

Você também pode gostar