Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
18
PERSPECTIVAS SOBRE
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL
NA AMÉRICA LATINA
Avaliações de impacto
as ações de instituições culturais
Economia criativa
o Brasil como referência para
o Hemisfério Sul
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA 3
Centro de Memória Documentação e Referência Itaú Cultural
Semestral
ISSN 1981-125X
Este número da Revista Observatório nos anos 1960 e 1970, com suas persegui-
Itaú Cultural, bem como o seminário reali- ções e seus exílios, a redemocratização nos
zado em São Paulo em fins de março deste anos 1980, as crises econômicas do mesmo
ano, está destinado a consolidar experiências período, a bonança econômica nos 1990 e as
anteriormente realizadas pelo Observatório dificuldades deste novo século – promoveram
na procura de análises comparativas da polí- aproximações e ações conjuntas.
tica e da gestão cultural na América Latina. A cultura foi um motor decisivo. Acor-
Durante vários séculos, os países dessa dos como os do Convênio Andrés Bello ou do
parte do mundo viveram focados nas metró- Mercosul Cultural produziram atividades
poles coloniais e, após a independência, nas conjuntas que foram mais eficazes que os
novas metrópoles econômicas e culturais. próprios instrumentos de integração eco-
Isso levou a um mútuo desconhecimento, nômica. Por sua vez, estes promoveram mo-
tanto entre o Brasil e a América Hispânica dificações na legislação que afetam os bens
como dos países entre si. Pode-se afirmar culturais e geram um intercâmbio cada vez
que, durante muitos anos, a desconfiança mais intenso e enriquecedor.
reinou entre eles e as maiores ocasiões de Ainda falta bastante, mas os esforços
encontro aconteceram ou nas guerras ou no e as iniciativas continuam. O Observatório
preparo para elas. As gestas heroicas dos li- Itaú Cultural procura incentivar esses me-
bertadores e dos fundadores das pátrias que, canismos de aproximação e integração. E
como San Martín e Bolívar, procuravam a este número da revista, bem como o semi-
integração e a ação conjunta dos países da nário antes mencionado, constitui ocasião
região foram contestadas e ignoradas dentro propícia para promover esses contatos.
e fora do continente. As políticas e a gestão cultural na
Os eventos experimentados pela maioria Argentina, no Brasil, no Chile, na Colômbia,
dos países – como a luta contra as ditaduras no México, no Paraguai e no Uruguai, assim
8 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
MÉXICO
54. México, o país das reformas
estruturais. A reforma cultural
fora da agenda
Eduardo Cruz Vázquez
Localizada na fronteira entre
o México e os Estados Unidos,
Ciudad Juaréz é o tema do ensaio
Bordertown, de Mayra Martell, que
ilustra as páginas da OBS18.
A cidade mexicana, terra natal da fotógrafa, vem sofrendo um processo de degradação
social e econômica ao longo das últimas décadas, chegando ao ponto de receber o título de
lugar mais violento do mundo. Mayra registrou, de 2004 a 2007, não apenas uma cidade
devastada pela violência, mas sobretudo a ausência daqueles cujos vestígios são a única
prova da sua existência.
16 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Em 1976, na América do Sul, apenas dois países, Colômbia e Venezuela, viviam em demo-
cracia. Todos os outros viviam regimes ditatoriais, extremamente violentos. Para quase todos
os países da América Latina, o futuro era uma palavra absolutamente vazia. Hoje, bem ou mal,
com maior ou menor consistência, com projetos menos ou mais viáveis, de maneira mais ou
menos errática, o que a nossa América vive desde a última década e meia do século XX é, mais
até do que uma etapa de transformação, uma etapa de resgate e recuperação. Da esperança,
da possibilidade, da tentativa talvez ainda inglória de aproximar o futuro.
E
m 1976, a Feira do Livro de Frankfurt de abertura da feira. Foram palavras dolori-
foi dedicada à literatura latino-ame- das e contundentes. Depois de traçar o retrato
ricana. Eram tempos de breu. Na nítido – e um diagnóstico esclarecedor – de
América do Sul, apenas dois países, a Colôm- uma realidade fantasmagórica, ao falar do
bia e a Venezuela, viviam em uma democracia ofício de escritor naquele emaranhado de
e, ainda assim, sob tensão. Argentina, Bolívia, injustiça, desigualdade e violência, afirmava,
Brasil, Chile, Equador, Paraguai, Peru e Uru- convicto: “Não é inútil cantar a dor e a beleza
guai viviam regimes ditatoriais – uns mais, de ter nascido na América”.
outros menos brutais, mas todos extremamen- Seis anos mais tarde, em dezembro de
te violentos. Na América Central, pequenos 1982, outro escritor latino-americano, um
países vagavam entre esse mesmo breu e a colombiano mestre de mestres e padroeiro
matança indiscriminada de camponeses, em de revelações chamado Gabriel García Már-
sua esmagadora maioria indígenas, expulsos quez, também falou das nossas comarcas em
de suas terras pela avidez dos latifúndios. seu discurso ao receber o Prêmio Nobel de
Para quase todos os países da América Literatura. E soube ser especialmente cer-
Latina, o futuro era uma palavra absoluta- teiro ao refletir de maneira clara e dolorida
mente vazia. No melhor dos casos, estaria se o que vivíamos e, sob muitíssimos aspec-
referindo ao improvável e imediato amanhã. tos, continuamos a viver em nossos países.
Naquele ano, o escritor uruguaio Eduardo Seu discurso tinha como título A Solidão da
Galeano foi convidado para fazer o discurso América Latina. Após relembrar passagens
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA Eric Nepomuceno 17
espera pontilhada por imensos períodos da Além disso, esta velocidade com que
mais árida desesperança e por outros tan- as informações cruzam os céus nem sequer
tos da mais ávida esperança. Essa visão, em era imaginada há 50 anos, o que nos per-
todo caso, é a de um tempo pessoal, medido mite – ou deveria permitir – estar mais
na dimensão daquilo que nos foi dado viver. atentos a cada movimento surgido para nos
Posto numa dimensão mais justa e ampla, fortalecer ou debilitar, e não apenas como
a do tempo histórico, o cenário que hoje ve- países individuais, mas como comunidade de
mos, e no qual vivemos, pode ser bem mais povos e nações neste nosso espaço comparti-
esperançoso. Porque pouquíssimas vezes lhado. Afinal, de uma forma ou de outra, nós,
ao longo dos séculos, e apesar da imensidão latino-americanos, jamais deixamos de ser
de caminhos que nos falta percorrer, nossas o que Simón Bolívar assim definiu: “Somos
comarcas viveram um período de tantas se- um pequeno gênero humano. Possuímos um
melhanças e convergências, só que agora já mundo à parte, cercado por dilatados mares,
não mais de horrores, mas de conquistas. novo em quase todas as artes e ciências [...]”.
Bastante relativas ainda, cabe reiterar, mas O que nos falta e faltou desde sempre é – e
nem por isso menos importantes. foi – assumir essa realidade e buscar nosso
Bem ou mal, com maior ou menor próprio rumo, nosso próprio destino.
consistência, com projetos menos ou mais Sob muitos e variados aspectos, é isso
viáveis, de maneira mais ou menos errática, o que vem sendo buscado com maior ou me-
o que a nossa América vive desde a última nor intensidade, de acordo com cada país,
década e meia do século XX é, mais até do que nas últimas duas ou três décadas. E é assim
uma etapa de transformação, uma etapa de que nos encontramos neste século novo: de
resgate e recuperação. Da esperança, da pos- volta ao ponto em que assumir nossa exis-
sibilidade, da tentativa talvez ainda inglória tência deve, necessariamente, merecer um
de aproximar o futuro. olhar mais amplo, mais lúcido, para além de
Assim vamos trilhando o século XXI, nossas fronteiras nacionais.
este novo tempo. É dever de cada um de nós No caso específico dos brasileiros, o
ter essa dupla consciência: o que se avançou sentido de latinidad que ainda existe entre
e o que falta. E ter a clareza e a consciência os vizinhos continua a nos fazer falta. Con-
plena de que não nos resta alternativa: ou tinuamos nos referindo, por exemplo, à
seremos latino-americanos ou não seremos “literatura latino-americana” e à “música
nada. É mais do que hora de buscarmos no latina” como se fôssemos nórdicos, aus-
espelho do tempo a nossa própria face, e não tríacos ou tailandeses. Como se fôssemos
aquela que nos tentam impingir há séculos. estranhos ao universo que García Márquez
É bem verdade que o conceito de latinidad, descreveu como “essa pátria imensa de
nestes nossos dias, difere do que era em me- homens alucinados e mulheres históricas”.
ados do século passado. A própria correlação Como se não pertencêssemos a um mundo
de forças entre os interesses que pairam so- que é nosso e do qual fazemos parte de
bre nosso mapa comum é outra. maneira irremediável. Aliás, valeria a pena
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA Eric Nepomuceno 19
pensar um pouco nas razões e nos motivos tortuoso, um tanto errático, oscilando ao sa-
que há séculos adubam esse nosso alhea- bor dos interesses ocasionais de cada uma
mento. Da mesma forma que desconhecemos das duas partes.
a nossa própria história, desconhecemos a É preciso, em todo caso, destacar as
dos nossos vizinhos e, como consequência, profundas diferenças com que cada coroa
nossa história compartilhada. tratou as terras novas. Durante 30 longos
É verdade que desde seu começo as anos – entre a chegada de Cabral, em 1500, e
relações entre o Brasil e os demais países o envio da primeira expedição colonizadora,
latino-americanos foram pontuadas pelas comandada por Martim Afonso de Sousa, em
diferenças, tanto as reais como as criadas 1530 –, os portugueses pouco ou nada se pre-
justamente para impedir que nos reconhe- ocuparam com o que viria a se tornar o Brasil.
cêssemos ao conhecer os vizinhos. Destacar Concluíram que a colônia era demasiado
divergências é sempre uma forma eficaz de extensa, que havia madeira, mas nenhum
ocultar convergências. Podemos, aliás, par- indício de metais preciosos ou de especiarias,
tir da diferença mais evidente: o Brasil foi os tesouros da época, quando um punhado
descoberto e colonizado pelos portugue- de pimenta valia a mesma coisa que um
ses, enquanto todos os outros territórios punhado de ouro. Para completar, a extensão
latino-americanos foram conquistados e do litoral despertava a cobiça de outros paí-
colonizados pelos espanhóis. Aliás, há uma ses europeus, prejudicados pelo Tratado de
curiosidade quase nunca lembrada, mas Tordesilhas. Não havia perspectiva alguma
que é uma dessas típicas ironias da história: de benefícios imediatos e Portugal não estava
Cristóvão Colombo primeiro tentou o apoio exatamente à altura dos eventuais rivais, em
dos soberanos portugueses para seu projeto termos de poder bélico, econômico e político,
de navegação. Ao não ser atendido, recorreu para resistir à sua cobiça.
à coroa espanhola. Até nisso há um ponto de Só com a chegada de Martim Afonso
encontro e outro de desencontro. O que teria de Sousa as terras novas passaram a ser – e
acontecido se a coroa portuguesa tivesse de maneira um tanto superficial – coloniza-
apoiado o navegante ousado e visionário? das. Assim, enquanto em 1540 as colônias
Pois Colombo chegou, mas, até a via- espanholas se estendiam por quase todo o
gem de Pedro Álvares Cabral, houve um território conquistado, a colônia portuguesa
período de oito anos (1492-1500) em que tinha uma população esparsa, concentrada
as duas coroas, a portuguesa e a espanho- no litoral. Foi a partir do século XVIII que
la, conseguiram alcançar um acordo sobre os portugueses foram povoando a região
a partição do “mar oceano”, delimitando do Centro-Oeste e acrescentando novos
todas as terras “descobertas ou por desco- territórios, que não interessavam tanto aos
brir”. Quando o português chegou, o mundo espanhóis, ao mapa original da colônia.
desconhecido já estava fragmentado e cada Enquanto isso, a coroa espanhola já ha-
metrópole sabia qual seria seu quinhão. E via tratado não apenas de conquistar, mas de
assim a história seguiu seu rumo, um tanto efetivamente colonizar – a um preço brutal,
20 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
de uma forma ou de outra, foi possível pre- que saberemos conhecer sua verdadeira his-
servar trajetórias paralelas, só que, desta tória e, ao conhecê-la, nos reconhecer.
vez, em direção oposta. Saber, como quis Bolívar, que somos
Agora, no rumo da defesa da demo- “um pequeno gênero humano”. E entender
cracia, cada um está buscando a própria de uma vez e para sempre que, como quis
fórmula para combater as desigualdades, Eduardo Galeano, não é inútil cantar a dor
retomar o desenvolvimento e o crescimento e a beleza de ter nascido na América. Inútil,
econômico, defender aquilo que cabe numa e muito mais doloroso, será continuarmos a
palavra tão mal gasta e desprestigiada, a querer ser o que não somos, a ignorar nossa
soberania. Assumindo a responsabilidade própria identidade, a alimentar nossa pró-
por traçar o próprio destino. pria solidão.
Neste século novo, são inegáveis as
mudanças positivas experimentadas pelos
países latino-americanos. Agora, cabe a cada
um deles e a todos nós tratarmos de preser-
var o que se alcançou e, juntos, avançar mais.
No caso específico do Brasil, parecemos dis-
postos a mudar nosso olhar sobre o resto da
América. Entender que nossas diferenças
de formação podem e devem ser elementos
de fortalecimento e aproximação, não de
distanciamento. Finalmente, entender que Eric Nepomuceno
poderemos, entre todos e sem deixar de ser Eric Nepomuceno (1948) trabalhou como
o que somos, confirmar a existência dos mui- jornalista entre 1965 e 1986. Foi correspondente
tos pontos de identidade compartilhada que na Argentina (1973-1976), na Espanha (1976-1979),
nos foram ocultos ao longo dos séculos. no México e na América Central (1979-1983). No
Poucas vezes – pouquíssimas – tive- Brasil, foi correspondente do jornal El País entre
mos, entre todos nós, latino-americanos, 1983 e 1990. Atualmente, é colaborador dos jor-
tamanha oportunidade de descobrir a Amé- nais Página 12, de Buenos Aires, e La Jornada, do
rica Latina. De ir além da retórica oficial, do México. Como enviado especial, percorreu todos os
comércio e da circulação de mercadorias, países latino-americanos. Publicou livros de contos
para chegar à circulação de ideias; de nos (A Palavra Nunca, Coisas do Mundo, Quarta-Feira e
ouvir e de sermos ouvidos mundo afora; de Antologia Pessoal) e de não ficção (O Massacre e
assumir a consciência de que somos quem A Memória de Todos Nós). Tem contos publicados
somos e de quem é nossa gente. A verdadeira em espanhol, francês, holandês, búlgaro e inglês.
integração da América Latina se dará pela Traduziu alguns dos mais notáveis autores hispa-
via das artes e da cultura. Será por meio da- no-americanos, como Juan Rulfo, Julio Cortázar,
quilo que expressa a verdadeira identidade Eduardo Galeano, Gabriel García Márquez, Juan
de cada povo de cada país das nossas terras Carlos Onetti, Mario Benedetti e Juan Gelman.
22 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
N
a prática, a institucionalização secretarias nacionais de cultura que dão ao
das políticas culturais na Améri- setor uma nova hierarquia.
ca Latina começa nos anos 1960. Por meio da análise dessas transfor-
Foram encontradas semelhanças com os mações, diversos trabalhos propõem uma
modelos de administração cultural francês periodização: a recuperação da cultura como
e inglês nesses primeiros desenvolvimentos expressão democrática e o início da institu-
(MEJÍA, 2005). Entretanto, eles ocorreriam cionalização pós-ditatorial (HARVEY, 1990),
em administrações que tradicionalmente os diferentes processos de reorganização no
relegaram a cultura a um papel secundário conjunto da América Latina nos anos 1990
e com um campo cultural reticente à inter- e 2000 (RUBIM; BAYARDO, 2008) e os pos-
venção pública. Já nos anos 1990, ocorre a teriores desenvolvimentos de convergência
criação de ministérios, vice-ministérios e regional da política cultural (PRAT, 2012).
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA KLEIN, ZAMORANO E RIUS 23
Por outro lado, durante seu início, nos as políticas culturais excluíram a pluralidade
anos 1990, a descoordenação do sistema, cultural e social (ZAMORANO, 2012).
baseado na convergência de diversos minis- Entretanto, desde o fim do século XX,
térios e órgãos públicos nessa questão, levaria diversas transformações promoveram o
a um debate em torno da viabilidade de um desenvolvimento dessas políticas. Durante
esquema “à francesa” ou do estabelecimento a transição democrática, foram criadas as
de algum mecanismo de sistematização da subsecretarias de Estado de Educação, Culto
ação pública (SQUELLA, 2001, 2011). Desse e Cultura (Decreto no 5269-1990), instituição
modo, em 2003, foi estabelecido o Conselho com pouca autonomia ou capacidade de ação
Nacional da Cultura e das Artes (CNCA). Sua (ESCOBAR, 2007). A Constituição Nacional
atuação na promoção cultural e dinamiza- de 1992, de tipo multicultural e bilíngue,
ção do campo artístico por meio da entrega serviu de base normativa para o desenvol-
de fundos concursáveis foi fundamental, e vimento da política cultural (SALERNO,
seus recursos e sua capacidade de ação foram 2001). Após o período neoliberal dos anos
aumentando a cada ano. Além disso, o CNCA 1990, marcado pela permanência da Asso-
promoveu a descentralização da política cul- ciação Nacional Republicana (ARN) no
tural por meio de uma norma que impõe que poder e pela corrupção, assim como pela
60% dos fundos concursáveis no setor artís- instrumentalização política no setor cul-
tico devem ser destinados a atividades fora tural, a mobilização setorial e as iniciativas
da região metropolitana. do campo intelectual impulsionaram a
Nos últimos anos, com a finalidade de mudança política (ZAMORANO, 2009).
aprofundar os processos mencionados, foi Dessa forma, em um contexto de de-
apresentado um projeto de lei (2011) para a manda social e mudança política regional,
criação de um Ministério da Cultura duran- com o governo de Nicanor Duarte Frutos
te o governo do Renovação Nacional (2010- (2003-2008), foi aprovada a Lei Nacional
2014). O atual governo deu continuidade a de Cultura (no 3.051, de 22 de novembro de
essa iniciativa e o CNCA mantém o processo 2006), que criava a Secretaria Nacional de
de consultas com esse objetivo a diferentes Cultura (SNC), atribuindo-lhe a categoria
atores vinculantes (CNCA, 2014), entre de ministério. A lei concebia o setor cultural
eles os nove povos indígenas reconhecidos em coerência com a noção de estilo de vida
no país e as comunidades afrodescendentes. e atribuía à ação pública a obrigação dos di-
reitos culturais dos diversos grupos sociais
As políticas culturais no Paraguai: (MOREIRA, 2012). Da mesma forma, em
um recente e incompleto processo contraposição ao improviso histórico no
de institucionalização setor, foi desenhado o Plano Nacional de
Desde sua independência, o Paraguai Cultura 2007-2011. O programa foi intitulado
desenvolveu diversas iniciativas públicas no Descolonizando as Nossas Culturas no Bicen-
setor cultural. Não obstante, em um entorno tenário da Independência, seguindo a tônica
político autoritário, até o início do século XX, regional. No entanto, esse avanço normativo
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA KLEIN, ZAMORANO E RIUS 25
TABELA 1
Comparação entre as políticas culturais do Chile, do Paraguai e do Uruguai
POLÍTICA
CULTURAL CHILE PARAGUAI URUGUAI
Modelos ou refe- Anglo-saxão liberal; contexto Social-democrata – multicul- Francês; contexto regional;
rências externas regional; Unesco. turalista; contexto regional; Unesco-Aecid.
Unesco-Aecid.
Referências bibliográficas
CNCA. Chile quiere más cultura. Definiciones de política cultural 2005-2010. Valparaíso:
Conselho da Cultura e das Artes, 2005.
GETINO, Octavio. Economía y desarrollo en las industrias culturales de los países del
Mercosur. Redes, n. 1, 2003.
MEJÍA, Juan Luis. Apuntes sobre las políticas culturales en América Latina, 1987-2009.
Pensamiento Iberoamericano, 2009. p. 105-129. Disponível em: <http://www.
pensamientoiberoamericano.org/articulos/4/97/0/apuntes-sobre-las-pol-ticas-
culturales-en-am-rica-latina-1987-2009.html>. Acesso em: 30 dez. 2014.
PRAT, Matías Zurita (Ed.). Los estados de la cultura. Estudio sobre la institucionalidad
cultural pública en los estados del Sicsur. Santiago: Conselho Nacional da Cultura
e das Artes, 2012.
RUBIM, Antonio Albino Canelas; BAYARDO, Rubens (Ed.). Políticas culturais na Ibero-
América. Bahia: Editora da Universidade Federal da Bahia, 2008.
SNC. Informe del primer año de gestión de la Secretaría Nacional de Cultura. Asunción:
SNC, 2014.
ZIMMER, Annette; TOEPLER, Stefan. Cultural policies and the welfare state: the cases
of Sweden, Germany, and the United States. The Journal of Arts Management,
Law, and Society, n. 26, 1996. p. 167-193.
____________. The subsidized muse: government and the arts in Western Europe and
the United States. Journal of Cultural Economics, n. 23, 1999. p. 33-49.
Notas
E
ste artigo tem o objetivo de descrever mera construção de uma lista de boas inten-
as políticas culturais na Colôm- ções, sem intervenção na prática. No caso da
bia do século XXI e, para tanto, é política cultural, esse aspecto se torna ainda
necessário estabelecer alguns pontos de mais importante. Quando se fala de cultura,
partida indispensáveis para entender mais geralmente se está no mundo do simbólico,
profundamente os alcances e as limitações do intangível, o que faz com que muitas ve-
deste texto. Um primeiro esclarecimento zes as políticas culturais constituam um
fundamental se refere àquilo que pode ser sonho que dificilmente se torna realidade.
entendido como políticas culturais. Existe Ou, em alguns casos, sua concepção pode ser
uma abundante discussão em torno do um sonho, mas sua administração pode se
assunto. Para facilitar, e por meio de uma tornar um pesadelo.
visão relativamente simples, entender-se-á Um segundo aspecto consiste na adoção
por política cultural a base de referência de de uma visão histórica que descreva a evolu-
caráter estatal que no decorrer do tempo foi ção dessas políticas e permita entender sua
sendo construída em determinada sociedade situação atual e sua possível evolução futu-
e que busca orientar e determinar a ação cul- ra. Nesse aspecto, parte-se da base de que a
tural de forma coerente e consistente. definição assumida do conceito de cultura
Entende-se que as políticas, quando afeta a forma como são estabelecidas as po-
não são aplicadas, costumam não passar de líticas para sua gestão, as quais também são
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA Jaime Ruiz-Gutiérrez 39
Esse auge tornou prioritária para o Colômbia em um futuro próximo com base
Ministério da Cultura a realização de um em seu conteúdo.
compêndio das políticas culturais no país, Um primeiro aspecto a ser destacado
com a finalidade de entendê-las e dar-lhes nesse compêndio é sua concepção como um
coerência. Para isso, em 2009, o Ministé- instrumento de diálogo de caráter inacabado,
rio da Cultura publicou um compêndio de no qual política e cultura se entrecruzam e se
políticas culturais, um grosso volume de enriquecem mutuamente. É proposto como
512 páginas que: um documento aberto:
[...] constitui uma tarefa monumental Abrir-se é a palavra que melhor resume
de compilação que nos permite incluir, em o propósito do compêndio. Este é, finalmente,
uma mesma e única edição, todas as políti- um documento para debater o significado das
cas culturais produzidas pelo Ministério da políticas culturais no próprio setor e para que
Cultura. Um documento que nasce da soma criadores, sindicatos, organizações culturais,
de muitos esforços, com o qual as ações no indústrias culturais, gestores públicos e pri-
campo cultural terão uma orientação e per- vados, movimentos socioculturais e muitos
mitirão as grandes definições em termos de outros contribuam com suas ideias. E, assim,
cultura que o país precisa, com a ativa parti- ampliar cada vez mais o espectro da cultura
cipação do Estado, das entidades privadas, para gerar um diálogo com a economia, a
da sociedade civil, das suas organizações saúde, o desenvolvimento, a educação, o meio
e dos grupos comunitários. Graças à sua ambiente e a totalidade dos campos da vida
intenção de diálogo com a sociedade, inicia, social. (COMPENDIO DE POLÍTICAS CUL-
sem dúvida, um processo cultural histórico. TURALES, 2009, p. 12.)
(COMPENDIO DE POLÍTICAS CULTU-
RALES, 2009, p. 11.) Esse primeiro aspecto destaca o caráter
integral e dinâmico da cultura no contexto
Esse manual será a base da descrição da sociedade colombiana, que não é mais
das políticas culturais que a Colômbia pro- concebida como um setor isolado, mas sim
põe para o desenvolvimento do setor nestas como um elemento em interação contínua
primeiras décadas do século XXI, assunto com todos os setores da sociedade.
da próxima seção. O compêndio destaca os próximos ele-
mentos na formação das políticas culturais
Para onde vai a cultura no país e reconhece em primeiro lugar a
Nesta terceira seção, embora se tome existência de certa tradição na elaboração
como base o compêndio de políticas cultu- dessas políticas, que, em seu desenvolvimen-
rais mencionado anteriormente, o objeti- to atual, procuram que a cultura contribua
vo não é descrevê-lo, já que sua dimensão para a construção de uma identidade cultu-
não o permite. Mais importante é deduzir ral diversa, baseada na descentralização, na
a tendência geral das políticas culturais na proposição e na geração de políticas. Na atual
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA Jaime Ruiz-Gutiérrez 43
Referências bibliográficas
Notas
3 Idem.
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA Jaime Ruiz-Gutiérrez 45
46 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
A POLÍTICA CULTURAL NA
ARGENTINA DO SÉCULO XXI
Rubens Bayardo
Este artigo traça um panorama geral das políticas culturais do Estado federal argentino,
apresentando algumas das principais iniciativas adotadas nos primeiros anos do século XXI.
O autor as relaciona com os eixos ou as orientações que organizaram o âmbito das políticas
culturais em nível internacional a partir de meados do século passado, a saber: democratização,
descentralização, desenvolvimento, diversidade cultural e criatividade.
A
política cultural federal na Argen- passagem política do ibero-americanismo
tina dos primeiros anos do século para um latino-americanismo associado à
XXI vem sendo marcada pelas denominada “virada para a esquerda”. Uma
principais orientações adotadas pelo mundo peculiaridade dos últimos governos do país
desde os anos 1960 até agora. Elas podem é que se referem a muitas das suas políticas
ser resumidas em poucos tópicos sucessivos como fazendo parte de uma “batalha cultu-
que foram se sobrepondo e imbricando, em ral”, por isso, poderiam ser incluídas nesse
torno dos eixos da democratização cultural, domínio medidas como a nacionalização
da descentralização, do desenvolvimento, de empresas e novas leis1. Um critério para
da diversidade cultural e da criatividade. delimitar as políticas culturais será men-
Como construções conceituais, e em par- cioná-las com relação aos eixos citados
ticular como construções globais, deve-se anteriormente, mesmo quando é claro que as
entender que esses termos comuns sinteti- ações e as iniciativas (que ao mesmo tempo
zam significações diferentes, talvez opostas se multiplicaram) os extrapolam.
ou inclusive incomensuráveis. Funcionam As políticas culturais do Estado fede-
mais como senhas que permitem compar- ral na Argentina ampliaram seu campo de
tilhar e comparar um sistema internacional ingerência, indo além das ações habituais
com base em perspectivas nacionais e inte- no setor (artes, letras, patrimônio, folclore) e
resses particulares, de acordo com diversos envolvendo mudanças na organização institu-
contextos regionais e momentos sociais. cional. Isso é especialmente visível na ênfase
No caso argentino, são relevantes o colocada na diversidade cultural, nos direitos
momento de virada econômica do neolibera- culturais e na cidadania cultural, assim como
lismo para um neodesenvolvimentismo com na identidade nacional, na cultura popular e na
intervenção ativa do Estado e o contexto de cultura comunitária. O responsável primário
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA Rubens Bayardo 47
promovidas por André Malraux, na França, mas que foram interrompidas em razão da
com o propósito de aproximar as adminis- ocorrência de alguns conflitos com o pes-
trações dos espaços e dos usuários locais. soal. O local terminou sendo designado como
Em 2010, a Argentina comemorou 200 anos centro cultural ou Casa do Bicentenário.
da Revolução de Maio, que iniciou o processo Outras iniciativas visam reforçar centra-
de separação da Espanha, concluído em 1816 lidades, como é o caso do Centro Cultural
com a Declaração da Independência. Em todo do Bicentenário Néstor Kirchner, que está
o país, foram realizados festejos comemora- sendo construído no antigo edifício do Cor-
tivos do bicentenário da Revolução de Maio. reio Central. Trata-se de um investimento
A Secretaria de Cultura apoiou a entidade de grande magnitude em que a área da cul-
responsável por esses fes- tura acompanha, como em
tejos, a Unidade Executora “A política cultural federal na outros casos, o Ministério
Argentina dos primeiros anos do
do Bicentenário, ligada à do Planejamento Federal.
século XXI vem sendo marcada
presidência da nação. Ao Algo similar acontece com
pelas principais orientações
mesmo tempo, junto com adotadas pelo mundo desde os a Feira de Ciências, Artes
a Secretaria-Geral da Pre- anos 1960 até agora.” e Tecnologia, mais conhe-
sidência e o Ministério do cida como Tecnópolis,
Trabalho, Emprego e Previdência Social, par- iniciada em 2011, que depende da Unidade
ticipou da criação das Casas da História e da Executora Bicentenário e na qual o Ministé-
Cultura do Bicentenário. Foram lançadas 85 rio da Cultura conta com um pavilhão.
Casas do Bicentenário (como normalmente O desenvolvimento não é um assunto
são conhecidas), distribuídas por todo o país, novo em políticas culturais e, de fato, todas
nas quais são realizados debates, exposições, as conferências intergovernamentais o tive-
workshops e eventos ligados ao cinema, ao ram como tema de debate conceitual a partir
teatro, à música e à dança. O Instituto Nacio- dos anos 1970. Mas sua colocação na agenda
nal do Teatro (INT) forneceu o equipamento ocorreu realmente a partir da Conferência de
de luz e som e o Instituto Nacional de Cinema Estocolmo, em 1998, e se traduziu no incenti-
e Artes Audiovisuais (Incaa) colaborou com a vo a estudos e pesquisas orientados a conhe-
instalação de microcinemas. cer e fomentar o lugar da cultura na economia
Uma iniciativa orientada para marcar (em especial, contribuição ao PIB, geração de
uma definição política do centro (mais do que emprego, financiamento público e privado) e
uma descentralização cultural em sentido na promoção de empresas culturais. Em 2003,
estrito) foi o lançamento da Casa de Cultura a SCN iniciou uma sistematização de infor-
de la Villa 21/243, no bairro de Barracas, como mações e de medições da economia do setor,
nova sede da Secretaria de Cultura, até então que anos depois se institucionalizou na área
situada em um palacete da Recoleta, o mais de Indústrias Culturais. Assim, formaram-se
elegante bairro da capital federal. Ali foram o Sistema de Informação Cultural da Argen-
iniciadas obras de refuncionalização de um tina (Sinca) e outras iniciativas importantes,
antigo galpão de 13 mil metros quadrados, como o Mapa Cultural, a Conta Satélite de
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA Rubens Bayardo 49
sentidos prévios das políticas culturais e se mais ligadas às novas tecnologias e à expansão
inscrevem em uma derivação para políticas do que é cultural para o econômico e o social,
econômicas e políticas sociais. Essa invenção transitam por caminhos mais amplos do que
anglo-saxã de 1994 se expandiu muito mais antes. Ocorreram grandes mudanças para
rapidamente do que as práticas discursivas aquilo que foi chamado de desenvolvimento,
anteriores fomentadas pelo British Council, diversidade e criatividade. Mas esses novos
pela Conferência das Nações Unidas para o eixos se tornaram fetiches globais fervoro-
Comércio e o Desenvolvimento (Unctad) samente adotados e, com mais razão do que
e pela própria Unesco, parecendo oferecer as orientações prévias em políticas culturais,
soluções aos estados nacionais em uma glo- requerem discussões que, no momento, não
balização na qual buscam competir por meio ocorreram em nível nacional nem internacio-
de suas empresas e como empresas. Na SCN, nal. Algo similar acontece no antigo desejo da
o Mica, iniciado em 2011, foi a iniciativa mais intersetorialidade ou transversalidade, que
clara a esse respeito. Mesmo que sua deno- parece realizado por políticas culturais que
minação possa desorientar, o Mica da capital extrapolam o setor em parcerias entre mi-
está organizado em áreas das chamadas nistérios capazes de mobilizar significativos
indústrias criativas: artes cênicas, audiovi- fluxos de fundos com o sentido de geração de
sual, design, editorial, música e video game. emprego e de vias de inclusão sociocultural.
Convoca produtores e artistas para gerar Faltam pesquisas empíricas sobre o fun-
negócios no mercado mundial, trocar infor- cionamento e os resultados dessas iniciativas
mação e apresentar a produção argentina. Ao institucionais, centrando-se em suas dimen-
mesmo tempo, organiza encontros pré-Mica sões culturais. Também são necessários
nas regiões argentinas, destinados a captar debates conceituais sobre o conjunto desses
e fomentar micro, pequenas e médias em- eixos e sobre as práticas sustentadas por essas
presas, o que no jargão do setor criativo se políticas que permitam construir indicadores,
denomina indies, fornecedoras das majors. elaborar avaliações quantitativas e qualita-
Nessa iniciativa intersetorial confluem, tivas e repensar as políticas culturais mais
junto com o Ministério da Cultura, o Minis- apropriadas para estes tempos acelerados.
tério da Indústria, o Ministério do Trabalho,
Emprego e Previdência Social, o Ministério
da Economia e Finanças, o Ministério do
Turismo, o Ministério do Desenvolvimento
Social, o Ministério das Relações Exteriores
e Culto e o Ministério do Planejamento Fede- Rubens Bayardo
ral, Investimento Público e Serviços. Doutor em antropologia, professor e pesqui-
A brevidade deste artigo somente permi- sador da Universidade de Buenos Aires e diretor da
te traçar um panorama geral e esboçar alguns especialização em gestão cultural e política cultural
assuntos “bons para pensar”. É claro que as do Instituto de Estudos Sociais da Universidade Na-
políticas culturais na Argentina, cada vez cional de San Martín.
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA Rubens Bayardo 51
Referências bibliográficas
Notas
A política cultural mexicana e o seu aparato institucional não foram capazes de responder
à dinâmica promovida pelo livre comércio. Por isso, evidenciam um notável atraso. A partir de
1982, diferentes governos também deixaram de lado a necessidade de gerar políticas econômi-
cas para aquilo que chamamos de setor cultural. Aqui são exploradas algumas evidências da
economia cultural no desenvolvimento da nação, assim como a pertinência de impulsionar uma
reforma cultural como parte das reformas estruturais geradas pelo atual governo.
A
governos estaduais e em vários munici-
partir da década de 1980, a neces- pais –, ao longo de seis quinquênios foram
sidade de modificar o arcabouço fundadas diversas dependências públicas.
jurídico, trabalhista, administra- Trata-se de um enorme aparato de governo,
tivo e econômico sobre o qual se assentam de exercício de gasto público e de geração
as instituições de governo que atendem a de cadeias de valor. Entretanto, as suas
bens, serviços, direitos e demandas cultu- dimensões ainda são insuficientemente
rais tem sido uma preocupação recorrente. conhecidas e, portanto, pouco estudadas.
Na administração pública federal, é na Por outro lado, no referido período,
Secretaria de Educação Pública (SEP) que os setores social e privado envolvidos na
ocorrem a conceitualização e a execução trama das políticas culturais, na oferta e na
da política cultural, por meio do subsetor demanda de cultura cresceram de forma
da Cultura e da Arte, no qual se agrupam os exponencial. De uma visão praticamente cen-
órgãos coordenados pelo Conselho Nacional tralizada no Estado passou-se à construção
para a Cultura e as Artes (Conaculta), órgão de uma visão setorial. A análise econômica
desconcentrado criado por decreto presi- da cultura, não sem certa lentidão, permitiu
dencial em dezembro de 1988. Com base elaborar funcionalmente o protagonismo
em uma visão de Estado cultural – nas dife- de um setor cultural. A importância da ati-
rentes entidades federativas que formam a vidade econômica da cultura aumentou sua
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA Eduardo Cruz Vázquez 55
na promoção de uma reforma cultural, pro- uma diferença marcante entre o Peca e os
pomos que o alicerce desse setor gere suas então denominados programas setoriais de
arquiteturas por meio de três subsetores, com cultura (com os presidentes Carlos Salinas,
a respectiva reclassificação do Scian: o do Ernesto Zedillo, Vicente Fox e Felipe Cal-
Estado, entendido neste momento por meio derón). Ele consiste em seis objetivos:
da SEP como subsetor de Cultura e Arte e
por meio da institucionalidade em entidades 1. promover e difundir as expressões
federativas e municípios; o segundo, dedi- artísticas e culturais do México, as-
cado às micro, pequenas e médias empresas sim como projetar a presença do país
(MPMEs) e a grandes empresas culturais; e no exterior;
o terceiro, dedicado às instituições de edu- 2. impulsionar a educação e a pesquisa
cação superior (universidades públicas e artística e cultural;
privadas, principalmente), às instituições 3. dotar a infraestrutura cultural de
sem fins lucrativos e aos órgãos de coopera- espaços e serviços dignos e fazer um
ção-coprodução internacional. Tal proposta é uso mais intensivo dela;
viável tanto à luz da própria estrutura setorial 4. preservar, promover e difundir o
do país quanto da construção da CSC. patrimônio e a diversidade cultural;
Outro elemento legal levado em con- 5. apoiar a criação artística e desen-
sideração para a análise tanto da política volver as indústrias criativas para
cultural quanto da política econômica para o reforçar a geração e o acesso a bens
setor é a denominada Lei de Planejamento do e serviços culturais; e
Governo Federal, que fundamenta a elabora- 6. possibilitar o acesso universal à cul-
ção do Plano Nacional de Desenvolvimento tura, aproveitando os recursos da
(PND). Essa lei teve importantes modifi- tecnologia digital.
cações no ano de 2012, sendo uma delas
a inclusão da “viabilidade cultural” como Com relação aos programas anteriores, é
condição dos planos de governo. possível destacar que:
Nessa perspectiva, a atual administra-
ção pública federal concebeu o Programa 1. o Peca inclui um componente de cul-
Especial de Cultura e Arte (Peca) para arti- tura digital;
cular a sua política cultural. Considerando 2. define uma bateria de 17 indicadores
os programas elaborados a partir da criação que não permitem medir seu impacto
do Conaculta, o Peca é importante porque é qualitativo e que servirão pouco ou
sujeito das novas disposições legais. Mas não nada para o Inegi;
é importante pelo seu conteúdo, em virtude 3. coloca-se como bandeira da gestão do
da sua escassa originalidade, da sua falta de Poder Executivo diante da violência
inovação para suplantar o atraso das políticas vivida no país, apresentando a cultura
culturais e de seu divórcio com o desenvol- como reparadora do tecido social, o
vimento econômico do setor. De fato, não há que também não é uma novidade; e
58 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
4. inexiste um objetivo dedicado ao es- nem para articular uma política econômica
tímulo da economia cultural4. para esse setor. Daí a importância da reforma
cultural, que abrange muito mais conteúdos
Como é possível perceber, como parte que os descritos. Ao terminar o mês de novem-
da reforma cultural, propõe-se a revisão do bro de 2014, o papel do Congresso continua
conteúdo da Conta Satélite das Instituições sendo politicamente de baixo impacto e, con-
sem Fins Lucrativos. No ano de 2012, a con- sequentemente, pouco produtivo. Embora nos
tribuição para o PIB foi igual à da cultura, últimos quinquênios tenha havido diferen-
2,7%, inclusive com uma leve superiori- tes tentativas de legislar a favor do setor, a
dade, já que se situa em 406 bilhões de pesos busca de ajustes estruturais fracassou. Aliás,
(aproximadamente 29 bilhões de dólares). A é necessário reconhecer as adições ao artigo
CSISFL estima a existência de 40 mil organi- 4º da Constituição Política, no qual são reco-
zações; a quantidade de pessoal remunerado nhecidos o acesso e o direito à cultura. Isso
é de 1.239.000 e a de trabalhadores voluntá- ocorreu em abril de 2009. Até o momento, os
rios é de 1.344.000. Por outro lado, conforme legisladores e o Poder Executivo não formu-
informação do Sistema de Administração laram a respectiva lei regulamentar.
Tributária (SAT), no país há pouco mais de Para tal fim, e como proposta da Comis-
6.300 organizações donatárias. são de Cultura do Senado da República, foi
A CSISFL estabelece nove tipos de ati- apresentada uma iniciativa de Lei Geral para
vidade: Cultura e Lazer; Serviços Sociais; o Acesso, Fomento e Usufruto da Cultura.
Religião; Ensino e Pesquisa; Desenvol- Como perspectiva, a Comissão de Cultura
vimento e Habitação; Associações e da Assembleia Legislativa do Distrito Fede-
Sindicatos; Saúde; Direitos, Promoção e ral promove a Lei de Direitos Culturais do
Política; além da categoria Outros Grupos. Distrito Federal.
Cultura e Lazer contribui com 3,2%, A reforma cultural não é entendida sem
enquanto 51,7%, ou seja, mais da metade, um Poder Executivo forte, conhecedor, deci-
vêm do segmento de Ensino e Pesquisa dido a ser um protagonista responsável no
(aqui estão incluídas muitas instituições setor cultural; sem a participação do Poder
de educação superior privadas). Temos cer- Legislativo, sem as comissões de cultura e
teza de que, se existisse um setor cultural outras que envolvam o âmbito cultural; e sem
devidamente integrado, as cifras de contri- um Poder Judiciário que assuma a responsa-
buição da cultura para a economia nacional bilidade de abrir precedentes.
seriam outras e, consequentemente, have- A reforma cultural convida à gera-
ria outras políticas públicas para a cultura ção de consensos no âmbito das reformas
e para a atividade empresarial de cultura. estruturais do governo5. Uma agenda de
tamanha envergadura tem entre as suas
Conclusão muitas motivações a geração de empregos:
O panorama não é animador para salvar as presentes e as futuras gerações da
suplantar o atraso das políticas culturais frustração e da pobreza.
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA Eduardo Cruz Vázquez 59
Notas
Potencializar o que já existe e fazer isso com encantamento e magia. Fortalecem-se Pontos
de Cultura nas mais diferentes comunidades e linguagens artísticas - de aldeias indígenas e
assentamentos rurais a favelas e grupos de arte experimental em universidades -, sempre a partir
da ideia da autonomia, do protagonismo e do empoderamento sociocultural, que se desenvolvem
na articulação em rede. São dez anos dessa política pública, entre teoria, conceitos, construção
e gestão. Uma política pública formulada e desenvolvida no Brasil e que, após 2011, se espalhou
por toda a América Latina, de Ciudad Juárez, no México, à terra mapuche, no sul do Chile.
U
nquillo, província de Córdoba, 21 Viva, ainda não votada no Parlamento; ainda
de novembro de 2014. Uma mar- assim, a política pública prosperou e o gover-
cha, centenas de pessoas de toda a no federal já conta com um programa que
Argentina (e convidados de outros países), subsidia centenas de Pontos de Cultura pelo
palhaços, malabaristas, artistas de teatro, país. Também já se começam a criar Círculos
músicos, dançarinos, agentes culturais, mi- de Cultura (Pontões, com atuação de capaci-
dialivristas... Mais um encontro da Cultura tadores, articuladores e difusores na Rede de
Viva em mais um país, Pontos de Cultura Pontos). Outras províncias e cidades também
espalhados da fronteira com a Bolívia até a estão assumindo essa política, até mesmo a
Patagônia, do Chaco a Buenos Aires. A ban- capital federal, o que é uma surpresa, pois em
deira: por uma Cultura Viva comunitária a um país tão polarizado na disputa partidá-
ser definida por lei, assegurando um orça- ria é muito raro forças políticas distintas (o
mento mínimo nacional de 0,1% para grupos governo da capital é de oposição ao governo
culturais comunitários. federal) adotarem a mesma política públi-
Foi o primeiro congresso nacional da ca. Com o conceito da Cultura Viva houve a
Cultura Viva na Argentina, mas a busca união de propósitos.
por essa política pública tem avançado no Cidade da Guatemala, agosto de 2011.
país desde antes de 2010, ano em que tam- Uma marcha, uma comparsa, como eles cha-
bém pude participar de uma marcha com mam por lá; centenas de pessoas tomando as
aproximadamente 500 pessoas na cidade ruas da capital do país, também em defesa
de Buenos Aires, rumo à Casa Rosada, sede da Cultura Viva. Pessoas caminhando com
do governo do país. Naquele momento, con- pernas de pau gigantescas, demonstrando
versamos com senadores e deputados e foi uma habilidade ancestral com origem
apresentada uma lei nacional para a Cultura na cultura maia, grupos de crianças, de
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA Célio Turino 63
San Martín, Amazonas e Ucayali, também Ainda assim, diante de tantas maze-
realizava seu primeiro encontro, agora já las, iniquidades e desencontros, o moderno
com 16 Pontos de Cultura e mais dez em pro- povo colombiano se maltratou e continua
cesso de reconhecimento. Mais um exemplo se maltratando. Mas, como fui, vi, conheci,
de ampliação e articulação de uma rede de senti e vivi (e com diversas voltas), tenho
autonomia e protagonismo sociocultural, em confiança de que vão superar tudo isso. Já
que a identidade se realiza na diversidade. estão superando. Medellín era uma cidade
Colômbia, Medellín, Bogotá, Cali, antes conhecida como a capital do narco-
Pasto, Villa de Leyva, Valle del Cauca... tráfico, sede do cartel de Pablo Escobar,
Muitas datas, muitas vezes, muitas via- onde até 2002 havia 7 mil assassinatos
gens. Um povo em processo de paz, se por ano. Articulando movimentos cívicos,
reinventando pela cultura. coletivos artísticos, empre-
Na primeira vez que fui “Outras províncias e cidades sários compromissados
à Colômbia (em maio de também estão assumindo com sua comunidade e
2011), mesmo sendo um essa política, até mesmo a intelectuais, Medellín se
capital federal, o que é uma
historiador preparado para transformou pela cultura
surpresa, pois em um país
evitar anacronismos e este- e, desde 2012, é conside-
tão polarizado na disputa
reótipos, confesso que um partidária é muito raro forças rada pela Organização das
estigma me acompanhava, políticas distintas.” Nações Unidas (ONU) a
pois imaginava um povo cidade mais inovadora do
impaciente, agressivo, que só conseguia mundo, título que antes era de Barcelona.
resolver seus conflitos na base da violência Um detalhe: assim que o partido mu-
(afinal, é na Colômbia que está a guerrilha nicipal Compromiso Ciudadano venceu
que há mais tempo segue em atividade con- as eleições em 2002 e tomou a decisão de
tínua no mundo, afora os narcotraficantes elevar o orçamento municipal para a Cul-
e os paramilitares, além de uma desigual- tura Cidadã (como eles gostam de nomi-
dade social que só se iguala à brasileira). nar/conceituar a Secretaria de Cultura) de
Surpresa! Encontrei um povo gentil, inova- 0,7% para 5%, foi desencadeado um criativo
dor e festeiro. processo de reaproximação entre Estado
E descobri as raízes dessa gentileza de e sociedade, gerando invenções em série,
ser ao visitar o Museo del Oro, em Bogotá, desde banheiros públicos limpos e deco-
uma ourivesaria delicada retratando cenas rados com mosaicos artísticos até grandes
do cotidiano de um povo milenar. Entre cen- bibliotecas-parques, instaladas em mor-
tenas, milhares de peças de ouro, nenhuma ros e comunas da cidade. Crianças, jovens,
delas trazia cenas de guerra ou violência; o adultos e idosos passam o dia por lá, de tão
que vi foram flores, macacos, pássaros, singe- agradáveis e convidativas que são as biblio-
lezas e delicadezas; o oposto da arte grega ou tecas de Medellín (de Bogotá também).
romana, o oposto da arte dos conquistadores Também investiram em museus, mui-
da terra de El Dorado. tos museus, entre sofisticados, tradicionais,
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA Célio Turino 65
Cima (Ed. Anita Garibaldi, 2009; edições horizontal. Também é a fusão entre: cultura +
também em espanhol e em inglês e dispo- natureza = Cultura Viva. Enfim, um conceito
nível para download gratuito), não sendo o matemático (inspirado no matemático grego
caso de entrar em detalhes. Arquimedes: “[...] dá-me um ponto de apoio e
Mas, em resumo: Ponto de Cultura = uma alavanca e eu moverei o mundo”) apli-
Potência + Afeto; Encantamento + Tra- cado a uma política pública.
balho; Tradição + Invenção; Autonomia + Talvez por isso mesmo, pela simpli-
Protagonismo Comunitário, gerando em- cidade e pela abstração da teoria, tenha
poderamento sociocultural. Os Pontos de encontrado tanta possibilidade de cresci-
Cultura funcionam como uma microrrede, mento e compreensão, independentemente
que atua no território (físico ou virtual) das diferenças entre culturas, governos,
junto às comunidades e nas mais diferentes povos e países. O paradoxo é que essa teoria,
formas de expressão, linguagens artísticas conjunto de conceitos e metodologia de ges-
ou grupos identitários; ou seja, eles são a tão, originalmente pensada e sistematizada
realização da identidade na diversidade ou no Brasil, enquanto florescia pela América
a busca da singularidade na multidão. Mas Latina e agora por outros continentes, a
os Pontos de Cultura só conseguem se rea- partir de 2011 passou a ser combatida, per-
lizar plenamente quando se articulam em seguida e assediada pelo governo brasileiro,
rede, de tal modo que podem ser expressos e só não foi plenamente desmontada porque
em uma equação matemática: Ponto de Cul- uma grande quantidade de Pontos de Cul-
tura = autonomia + protagonismo elevado à tura já havia se empoderado de suas ideias,
potência das redes. Quanto mais redes são seus conceitos e sua utopia.
articuladas no Ponto de Cultura, mais em- Com isso, em 2014 foi aprovada a Lei
poderado ele será, tanto do ponto de vista Cultura Viva, assegurando, quiçá, sua pe-
social, econômico e político como nos as- renização institucional como política pú-
pectos criativos e artísticos. blica. Por falar em utopia, em 2009 houve
Se o Ponto de Cultura é a microrrede, o III Congresso Ibero-Americano de Cul-
a Cultura Viva é a macrorrede, interligando tura em São Paulo, com o tema Cultura e
pontos, ampliando sua sustentabilidade e Transformação Social. Naquele congresso,
dando sentido às ações comunitárias antes produzimos o espetáculo Quijote, Quixote,
circunscritas às comunidades, além de ins- em que grupos de teatro comunitário de
tigar um conjunto de outras ações, antes não 12 países vieram com seus Sanchos Pança
imaginadas no âmbito local (griôs e mestres e Dom Quixotes, e cada um encenou uma
da cultura tradicional, Pontinhos de Cultu- parte da história; houvesse necessidade de
ra para a cultura lúdica e infantil, cultura identificação de um único episódio para a
e saúde, economia viva, interações estéti- celebração de onde tudo começou, diria que
cas, pontos de memória, pontos de leitura, foi ao lado de Dom Quixote de La Mancha,
agentes jovens de cultura cidadã...), de modo sonhando o sonho impossível.
que um ponto aprenda com outro de forma Por fim, El Salvador. Ao citar a presença
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA Célio Turino 71
da Cultura Viva Comunitária em diferentes Cultura Viva propugna: “Hay que potenciar
níveis de compreensão e implantação na las virtudes del pueblo!”. Todos a El Salva-
política da América Latina (exceto as Guia- dor, portanto. E viva a Cultura Viva a unir
nas – Guiana, Suriname e Guiana Francesa, os povos!
mas por que não no futuro?), deixei El Sal-
vador por último não por acaso. Entre 25
e 28 de outubro de 2015, é lá que vai acon-
tecer o II Congresso Latino-Americano da
Cultura Viva. El Salvador é o futuro, mas o
passado também, um sendero (lamparina)
a iluminar esperanças. País pequeno, com
pouco mais de 20 mil quilômetros quadrados
e super-habitado (mais de 300 habitantes
por quilômetro), que já teve uma relativa-
mente boa indústria e economia, mas que
foi desestruturada pela guerra civil e pelo
neoliberalismo, fazendo com que a opção
de trabalho para um terço de seus cidadãos
tivesse de ser a migração para os Estados
Unidos. Pois esse país chiquito e valente
também é a esperança; foi assim quando se
sublevaram contra a opressão oligárquica
e também contra o imperialismo. Também
foi assim quando encontraram o caminho da
paz, no fim do século XX, e também é assim Célio Turino
quando assumem o conceito do bem viver Historiador, escritor e gestor de políticas pú-
como base para seu progresso futuro. blicas. Servidor público há 37 anos, exerceu diversas
Eu próprio, quando jovem universitá- funções, entre elas a de secretário da Cidadania
rio, me encantei por uma terra onde jamais Cultural no Ministério da Cultura (MinC), quando
estive. Depois pude ver com meus próprios foi responsável pela idealização e pela implantação
olhos, conhecendo o resultado de tanto do programa Cultura Viva e dos Pontos de Cultura.
esforço e sacrifício daquele povo. Terra de Autor e organizador de vários livros, entre eles Na
Farabundo Martí, de cardeal Romero (San Trilha de Macunaíma – Ócio e Trabalho na Cidade
Romero!), de Martín-Baró, padre jesuíta, (Senac, 2005) e Ponto de Cultura – O Brasil de
psicanalista social, assassinado na guerra Baixo para Cima (Anita Garibaldi, 2009; em inglês,
civil, que em suas reflexões sobre a psi- pela Gulbenkian, Inglaterra, 2013; em espanhol,
cologia social da guerra e os processos de pela editora RGC Libros, Argentina, 2014, também
socialização pensados na América Central disponível para download gratuito). Atualmente,
propugnava exatamente o mesmo que a dedica-se à difusão da Cultura Viva pelo mundo.
74 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Este artigo objetiva refletir sobre as conexões entre cultura e desenvolvimento com base
na trajetória das políticas e dos programas internacionais e nacionais das indústrias e das
economias criativas. Analisa os significados e as contradições dessas expressões e os impactos
de suas performances em diversos países com base no pensamento de Celso Furtado e Amar-
tya Sen. Relata a institucionalização da Secretaria da Economia Criativa (SEC) no governo
federal, seus desafios e, sobretudo, os princípios que a fundamentaram entre 2011 e 2013. Ob-
serva a transversalidade da economia criativa nas diversas pastas do governo, assim como a
necessidade de tratá-la na perspectiva de uma política de Estado, fruto de uma conciliação de
políticas públicas resultantes da formulação integrada entre ministérios, secretarias, fundações,
agências de fomento, universidades, institutos de pesquisa, estatais, organizações públicas e
privadas e a necessária oitiva da população, especialmente de empreendedores e profissionais
que atuam no campo cultural brasileiro.
A
Inúmeros governos, comissões, redes
Conferência Geral da Organização e lideranças também passam a pactuar e
das Nações Unidas para a Educa- a produzir documentos que avançam na
ção, a Ciência e a Cultura (Unesco), busca de conteúdos mais amplos para o
em 2005, formata e aprova a Convenção desenvolvimento. Por isso, o conceito de
sobre a Proteção e a Promoção da Diversi- sustentabilidade é ampliado, deixando de
dade das Expressões Culturais, ratificando o se limitar a uma qualidade do desenvolvi-
esforço dos países na construção de um diá- mento para se constituir como sua própria
logo intercultural capaz de contribuir para essência; ou seja, além das dimensões eco-
uma cultura de paz entre os povos, conside- nômica, social e ambiental, começa-se
rando a diversidade cultural um patrimônio também a observar no desenvolvimento
comum da humanidade e destacando a cul- seu fundamento cultural. Enfim, as conexões
tura como elemento estratégico das políticas entre cultura e desenvolvimento sustentá-
de desenvolvimento. Identidade, diversidade, vel passam, portanto, a ser percebidas sob
criatividade e solidariedade passam a cons- dois enfoques: de um lado, o do desenvol-
tituir as palavras-chave no início do século vimento dos setores culturais e criativos
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA Cláudia Leitão 75
propriamente ditos (as artes, o turismo, o não se traduziu em acesso da população dos
patrimônio cultural, os segmentos criativos); diversos continentes aos produtos educa-
de outro, o da cultura como eixo estratégico tivos, culturais e sociais. Pelo contrário, as
de desenvolvimento dos estados, por meio conquistas tecnológicas provocaram ainda
do cruzamento das políticas culturais com maiores desigualdades. Se na sociedade da
as demais pastas dos governos (Educação, informação ou do conhecimento o mundo
Ciência e Tecnologia, Saúde, Trabalho e parece encontrar-se cada vez mais em todos,
Emprego e Meio Ambiente, entre outras). impossível não constatar que nem todos se
Em dezembro de 1986, a Organização encontram no mundo.
das Nações Unidas (ONU) produz uma Os anos 1980 seriam especialmente
primeira Declaração sobre o Direito ao importantes para a transfiguração dos pen-
Desenvolvimento, afirmando que ele per- samentos acerca do desenvolvimento na
tence à categoria dos direitos humanos e, perspectiva de uma melhor qualidade de
por isso, é inalienável. A Constituição bra- vida e ampliação de escolhas. É o que propôs
sileira de 1988 segue a declaração da ONU, Amartya Sen, redefinindo o conceito de de-
tratando o direito ao desenvolvimento senvolvimento como o processo de expansão
como um direito fundamental, baseado nas das liberdades e das capacidades humanas,
prestações positivas do Estado capazes de e não mais como mero fluxo de formação de
concretizar a democracia econômica, social capital, medido em indicadores como o pro-
e cultural. Mas as garantias jurídicas sobre duto interno bruto (PIB). Por isso, esboçar
o direito ao desenvolvimento, conquistadas um novo modelo de desenvolvimento, que
no fim do século XX, foram ilusórias, pois considere a riqueza e a diversidade cultural
não conseguiram neutralizar os impactos um ativo fundamental para a qualidade de
negativos de um modelo de desenvolvimento vida e para a ampliação das escolhas hu-
concentrador e insustentável. As crises manas, começa a ser compreendido menos
sociais, econômicas, ambientais e cultu- como uma utopia do que como uma estraté-
rais contemporâneas atestam o fracasso gia de sobrevivência do homem no planeta.
desse modelo fundamentado unicamente Em 1984, o então ministro da Cultura do
na acumulação de riqueza e na exploração Brasil, o economista Celso Furtado, em um
desmedida dos recursos naturais e culturais. encontro com os secretários da Cultura dos
Por outro lado, o avanço das tecnolo- estados brasileiros, afirmava: “Sou da opi-
gias, tão festejado no novo século, também nião de que a reflexão sobre a cultura deve
não implicou desenvolvimento no sentido ser o ponto de partida para o debate sobre
da ampliação do processo de expansão das as opções do desenvolvimento” (D’AGUIAR
liberdades e das capacidades humanas, pois FURTADO, 2013). Furtado dialogou, ao
76 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
longo de sua vida, com as ciências sociais, observa, trará grandes impactos negativos às
a filosofia, as artes e a cultura num esforço liberdades criativas, aos recursos naturais,
maior de compreender do enfim, à própria huma-
que de explicar as armadi- “A Constituição brasileira nidade dos indivíduos.
lhas do capitalismo e suas de 1988 segue a declaração Crítico inclemente das
consequências para os paí- da ONU, tratando o direito sociedades capitalistas e
ses latino-americanos. Na ao desenvolvimento como “de sua forma sofisticada
um direito fundamental,
base de seu pensamento de controle da criatividade
baseado nas prestações
sobre desenvolvimento e de manipulação da infor-
positivas do Estado capazes
percebemos a influência de concretizar a democracia mação”, o economista tinha
intelectual de Amartya econômica, social e cultural.” a consciência de que “[...] a
Sen, seu colega em Cambri- estabilidade das estruturas
dge nos anos 1950, especialmente no que se sociais não igualitárias estaria diretamente
refere à compreensão do desenvolvimento relacionada ao controle por grupos privados
como ampliação das liberdades humanas. dos bens de produção da criatividade artís-
Em seu livro Criatividade e Dependên- tica, científica e tecnológica e do fluxo de
cia na Civilização Industrial (1988), Furtado informações que brota dessa criatividade”
afirma que a política cultural tem por finali- (D’AGUIAR FURTADO, 2013).
dade liberar as forças criativas da sociedade. Ao mesmo tempo grande defensor da
Liberdade de criar é, portanto, a essência do inovação, acentuava, no entanto, a neces-
conceito de desenvolvimento e insumo para a sidade de que o progresso tecnológico
transformação social. Furtado vai ainda mais caminhasse pari passu com o acesso a esses
longe quando traz para seu projeto de desen- produtos pelas camadas mais amplas da
volvimento a retomada da atividade artística sociedade brasileira.
como “promessa de felicidade”. Ressalta, Ora, a tecnologia, sobretudo a tecnolo-
ainda, a importância da construção de novas gia da informação e da comunicação (TIC)
atividades políticas, de novas relações de gê- no século XXI, vem se tornando o grande
nero, inclusive de uma nova ecologia. É quase veículo de divulgação e difusão da produ-
profética sua advertência das consequências ção cultural/criativa. Desempenha também
nefastas dos modelos hegemônicos de desen- papel essencial na produção e na “sintonia
volvimento do século XX: a concentração de social” da criatividade de indivíduos, redes
renda e de riqueza, a sonegação dos direitos e coletivos, por trazer a informação, pos-
sociais, a precarização do mundo do trabalho sibilitar a cooperação, criar um ambiente
e a subalternidade na inserção internacional. cultural amplo, diversificado, ao mesmo
Em sua obra, Furtado insiste nos riscos tempo local e global. Assim, essas tecno-
do deslocamento da lógica dos fins (voltada logias estão presentes ora sob a forma de
para o bem-estar, a liberdade e a solidarie- veículo, ora como instrumento, em todas
dade) para a lógica dos meios (a serviço da as fases da cadeia de produção simbólica
acumulação capitalista). A lógica dos meios, humana, que vai da criatividade (em seu
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA Cláudia Leitão 77
uma forma “macro”, ora com base em uma economia criativa. De um lado, o avanço
perspectiva “micro”. Falta-lhes, contudo, tecnológico dá cada vez mais poder às
avançar em uma compreensão mais apro- indústrias do copyright; de outro, ele
fundada de cada setor cultural e criativo permite o acesso cada vez maior dos indi-
com base em diagnósticos locais. víduos à fruição e ao protagonismo cultural,
Em um mundo em que a exportação gerando produtores independentes, “prosu-
de commodities perde gradativamente sua midores” (os consumidores que produzem
importância diante da exportação de bens conteúdo, capazes de dividir suas expe-
e serviços de alto valor agregado, estudos riências, pautar tendências e contribuir
e pesquisas constatam no processo de criação de
o crescimento dos seto- “Verdadeiramente justa é produtos e serviços), novos
res criativos, mesmo em a sociedade em que cada empreendedores e empre-
momentos de crise, des- cidadão tem oportunidades endimentos no campo da
tacando-se como um dos reais de desenvolver cultura e da criatividade.
seus potenciais e em que
setores mais dinâmicos do De outro lado, as indústrias
encontra os meios de
comércio internacional. E é proprietárias de redes de
expressão de suas vocações,
por essa razão que as indús- habilidades e talentos.” telecomunicação, editoras
trias criativas se tornaram ou canais de televisão nem
o eixo estratégico do desenvolvimento de sempre têm compromisso com processos
países como Austrália, China, Estados educacionais, contribuindo para a aliena-
Unidos e Inglaterra. Portanto, não é sur- ção dos indivíduos e para a ampliação do
preendente que nos países ricos a temática consumo de produtos culturais de baixa
das chamadas indústrias criativas venha qualidade. Enfim, é impossível subestimar
sendo festejada e acolhida, exatamente por o papel das indústrias criativas na amplia-
ser percebida como uma etapa mais sofisti- ção do abismo social e econômico entre os
cada do sistema capitalista. Por isso, nesses hemisférios Norte e Sul, transformando
países, formulam-se mais políticas para as alguns países em produtores e exportado-
indústrias criativas (aquelas caracterizadas res, enquanto a grande maioria se torna
pelo valor agregado da cultura e da ciência e meramente consumidora passiva de bens
da tecnologia na produção em larga escala de e serviços culturais e criativos.
bens e serviços, assim como pelo copyright, Por isso, longe de construir uma narra-
ou seja, pela proteção de caráter individual tiva laudatória sobre as indústrias criativas
dos direitos do autor/criador) do que para e seu crescimento no mundo, devemos, isto
a economia criativa (essa de natureza coo- sim, refletir sobre os impasses conceituais
perativa e includente, voltada para uma e ideológicos entre as “indústrias” e as “eco-
economia de nichos, caracterizada pela pro- nomias” criativas. Avançar para perceber as
teção coletiva dos direitos do autor/criador). diferenças, e não as afinidades, entre as duas
Vale ressaltar o papel dilemático das expressões constitui uma tarefa intelectual
inovações tecnológicas no incremento da tão desafiadora quanto urgente.
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA Cláudia Leitão 79
80 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Cláudia Leitão
Professora e pesquisadora da Universidade Estadual do Ceará (Uece); consultora da
Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento, da Organização
Mundial do Comércio (Unctad/OMC); secretária nacional de Economia Criativa (2011-2013);
e secretária de Cultura do Ceará (2003-2006).
Referências bibliográficas
HOWKINS, John. The creative economy: how people can make money from ideas. New
York: Penguin, 2007.
AVALIAÇÃO DE IMPACTO DA
ATIVIDADE CULTURAL:
O caso das instituições culturais do Banco
da República da Colômbia
Por que apoiar os processos culturais e o quanto esse apoio contribui para a construção
do sentido de cidadania? São duas perguntas que este estudo procura responder. O cumpri-
mento dos objetivos de promoção para o desenvolvimento cultural e social do país pelo Banco
da República da Colômbia, por meio da Subgerência Cultural (SGCL), tem um significado
especial na construção de sentido de cidadania, que é insumo para o desenvolvimento humano
e para a sustentabilidade da nação. A definição de seis índices sintéticos é uma ferramenta
que permite verificar, ratificar, orientar e/ou reconduzir as políticas culturais da instituição
em médio e longo prazo.
O
Banco da República da Colômbia, Biblioteca Luis Ángel Arango, pela Casa da
além de cumprir as atividades pró- Moeda, pelo Museu Botero e pelo Museu do
prias de banco central, inclui em Banco da República, juntamente com as co-
suas funções ser “promotor do desenvolvi- leções de arte, numismática e filatelia.
mento científico, cultural e social do país”. Além de Bogotá, 28 cidades do país
A Subgerência Cultural (SGCL) é a concentram áreas culturais: Armenia, Bar-
entidade orgânica que estrutura direta e ranquilla, Bucaramanga, Buenaventura,
explicitamente a responsabilidade social Cartagena, Cali, Cúcuta, Florencia, Girardot,
do banco em seu interesse de divulgar a Honda, Ibagué, Ipiales, Leticia, Manizales,
atividade cultural. Sua missão é contribuir Medellín, Montería, Neiva, Pasto, Pereira,
para o resgate, a preservação, a análise, o es- Popayán, Quibdó, Riohacha, San Andrés,
tudo, a organização, a pesquisa e a difusão Santa Marta, Sincelejo, Tunja, Valledupar
do patrimônio cultural da nação, propiciar o e Villavicencio. Além disso, a SGCL dispo-
acesso ao conhecimento e consolidar o sen- nibiliza ao público uma série de seminários,
tido de cidadania. Essa finalidade abrange a fóruns, conferências, palestras, visitas
atividade desenvolvida pela Biblioteca Luis programadas e workshops, entre outras ati-
Ángel Arango e sua Rede de Bibliotecas, pelo vidades, que convidam à reflexão acadêmica
Museu do Ouro, pela Sala de Concertos da em diferentes áreas do conhecimento.
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA Fernando Barona Tovar 87
San Andrés
Sincelejo
Monteria
Cúcuta
Bucaramanga
Medellín
Quibdó Tunja
Manizales Honda
Pereira Bogotá
Armenia
Ibagué
Girardot
Villavicencio
Cali
Buenaventura
Neiva
Popayán
Florencia
Pasto
Ipiales
Leticia
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA Fernando Barona Tovar 89
e desenvolvimento humano. Adicional- perto e com quem sabemos que vamos nos
mente, os efeitos e impactos culturais são relacionar diretamente, como também con-
concebidos como contribuições da oferta siderar o outro mais remoto, o ser humano
cultural para mudanças, modificações e aparentemente mais distante – o desco-
transformações do público em três níveis: nhecido, por exemplo, ou quem fará parte
as pessoas como seres individuais; as pes- das futuras gerações. Do mesmo modo, ser
soas e seus grupos ou organizações; e as cidadão implica que se está a favor dos pro-
pessoas e o público. cessos coletivos. Cidadão é aquele que se
associa, organiza-se com outros cidadãos e
Com base nessa abordagem sobre a re- empreende ações coletivas em torno a obje-
lação da cultura com esses três conceitos, tivos e tarefas de interesse comum.
suas definições e suas dimensões derivadas,
propõe-se uma completa estrutura de vari- Afirma também que somos cidadãos
áveis teóricas, que é o insumo, que permitiu “quando medimos as consequências dos
avaliar quantitativamente a contribuição nossos comportamentos em longo prazo e
dos serviços e da programação cultural em conseguimos avaliar ações, normas e conse-
termos de capital social, sustentabilidade e quências”. Por último, diz que “ser cidadão é
desenvolvimento humano focados na cons- terrivelmente complexo; requer, além de ha-
trução do sentido de cidadania. bilidade, conhecimentos, atitudes e hábitos
O conceito de cidadania com o qual se coletivos. Nós nos tornamos, não nascemos
relaciona a medição de efeito e impacto aqui cidadãos, e para isso desenvolvemos habili-
proposta refere-se à convergência de dife- dades e referenciais”.
rentes formas de concebê-la, sendo que sua
construção, formação e consolidação reúne Indicadores e índices culturais
boa parte das atribuições que são associadas O principal interesse deste estudo se
à participação na programação e nos servi- associou à medição das diferentes dimen-
ços culturais. sões que compõem o sentido de cidadania.
O filósofo, matemático e político Anta- Do mencionado anteriormente depreende-se
nas Mockus, pesquisador de assuntos como que os padrões de avaliação e a metodologia
cidadania, convivência, moral e lei, fornece formulada têm como finalidade a medição
uma completa definição sobre o que pode do impacto e do efeito da programação e dos
ser entendido como sentido de cidadania. serviços culturais da SGCL sobre a formação,
Mockus (2004) afirma que a cidadania é um a construção e a consolidação do sentido de
mínimo de humanidade compartilhada, que cidadania dos indivíduos que deles parti-
gera confiança básica, respeito pelos demais, cipam. Além disso, a medição de impacto e
pensar no outro, efeito veio acompanhada da construção de
indicadores e índices culturais que contam
[...] ter claro que sempre há outro e com um conjunto de categorias, variáveis e
ter em conta não somente o outro que está atributos que a antecede, a saber:
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA Fernando Barona Tovar 91
TABELA 1
Valor dos indicadores, em termos percentuais, da contribuição associada a diferentes intensidades
de participação nas atividades culturais do Banco da República
TABELA 2
Valor dos índices, em termos percentuais, da contribuição associada a diferentes intensidades de
participação nas atividades culturais do Banco da República
Referências bibliográficas
SEN, Amartya. Cultura, libertad e independencia. In: Relatório Mundial sobre a Cultura.
Unesco, 1999.
Notas
Existe uma identidade tem essência fixa, ela é “uma espécie de foco
latino-americana? virtual ao qual nos é indispensável referir
N
para explicar certo número de coisas, mas
a abertura, o curador do seminário, sem que tenha jamais uma existência real.
Enrique Saravia, tratou do “lati- [...] Sua existência é puramente teórica: é a
no-americano no século XXI” – existência de um limite ao qual não corres-
tarefa tão necessária quanto controversa, ponde, na realidade, nenhuma experiência”
pois a identidade não é um dado empírico e (apud PENNA, 1992, p. 14).
objetivo, mas uma percepção que depende do Em outras palavras, a identidade é uma
percebedor e do contexto. Uma identidade construção histórica, uma representação
social não existe por si só, delineia-se a par- parcial que apaga divergências internas no
tir do contraste. Um brasileiro se sente mais conjunto e supervaloriza certos aspectos em
brasileiro ao viajar para o exterior. Ao mesmo detrimento de outros. É o caso da mestiça-
tempo, quando se identifica com o conjunto gem, tão acionada no Brasil, desde o século
genérico de brasileiros, coloca entre parên- XIX, para pensar a identidade nacional – e
teses diferenças internas significativas em do “hibridismo cultural”2 latino-americano
nome do desejo de pertencer a um coletivo. (CANCLINI, 2006).
O antropólogo Claude Lévi-Strauss Como argumenta Néstor Canclini, na
chegou a sustentar que a identidade não América Latina, ocorreram hibridismos
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA FIALHO E GOLDSTEIN 103
inusitados de estruturas e práticas dos po- não podemos nos furtar de buscar elementos
vos autóctones com estruturas e práticas dos recorrentes. Como ficará patente ao cabo deste
colonizadores. Esse amálgama entre tempo- relato, o seminário confirmou que, apesar das
ralidades e visões de mundo suscitou uma diferenças no âmbito da gestão e das políticas
criatividade particular e, simultaneamente, culturais, os países latino-americanos efetiva-
gerou ambiguidades no processo de moder- mente enfrentam problemas similares. Pena
nização do Estado e da economia. que, como alguns palestrantes ressaltaram,
Alinhado com essa visão, Saravia en- conheçamos mais a Europa e os Estados Uni-
fatizou a mestiçagem e o hibridismo como dos do que os países vizinhos.
marcas dessa região. Destacou também ou-
tras experiências comuns: a colonização de Política e atividade cultural
origem ibérica, a dificuldade de inserção no Na primeira mesa, o mexicano Jorge
panorama global, a fragilidade da democra- Ruiz Dueñas alertou que diálogos cultu-
cia, a concentração de renda e a corrupção. rais podem ser também guerras culturais.
A partir dessa caracterização do “latino- Interações entre povos diferentes sempre
americano”, uma ambivalência perpassou todo carregaram potencial de tensão. Mas nunca
o evento: se por um lado a noção de identidade antes as fricções acarretaram impactos tão
é problemática e questionável, principalmente globais – o terrorismo é emblemático disso.
nessa região tão vasta e diversa, por outro lado Em sua opinião, a coabitação intercultural é
104 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
o grande desafio do século XXI. Ele mencio- cipantes ratificariam ao longo do seminário, o
nou o Manifesto Convivialista3, divulgado na paradigma que tem predominado na América
França entre 2010 e 2012, que propõe formas Latina é o da miscigenação e do hibridismo,
mais justas e solidárias de se viver. não o do multiculturalismo.
Do ponto de vista das políticas públicas, O brasileiro José Márcio Barros fez a
Ruiz Dueñas acredita que alguns segmen- segunda intervenção, que consistiu em um
tos sociais e regiões do globo necessitam de balanço analítico e panorâmico das políticas
ações específicas, relativas, por exemplo, à culturais no Brasil atual, estruturado em duas
imigração, ao gap tecnológico e às tradições linhas paralelas de reflexão: uma mais voltada
que lutam para existir em meio às práticas glo- às políticas culturais em si, outra alinhada
bais. Isso não deve, no entanto, ser traduzido com questões mais amplas da sociedade bra-
em paternalismo, tutela ou congelamento da sileira. Na primeira linha, Barros destacou
dinâmica cultural. Uma vez que a cultura e a obstáculos crônicos, como o baixo orçamento
identidade são dinâmicas, apesar das forças do Ministério da Cultura (MinC); a fragilidade
homogeneizadoras oriundas do Hemisfério de nossas instituições; o federalismo demasia-
Norte, as culturas locais têm capacidade de damente vertical; a escassez de informações e
adaptação e recriação. O difícil, para os gesto- indicadores culturais; as falhas na formação
res culturais, é calibrar os vetores. “Ser moder- dos agentes culturais; a lógica dos projetos
no não é negar e reprimir o passado, mas tam- pontuais; e a descontinuidade das ações, em
pouco faz sentido a polarização entre tradição razão de mudanças de gestão ou de entraves
e modernidade. A resistência à mudança não burocráticos – problemas, aliás, que aparece-
deixa de ser uma forma de reacionarismo. Um ram na fala de outros convidados.
projeto latino-americano envolve erradicar as Na segunda linha de reflexão, o pales-
petrificações”, disse o palestrante. trante ressaltou ser preciso buscar um novo
O único ponto que nos soou contraditório, lugar político para a cultura, arena na qual
talvez pela falta de tempo para desenvolvê-lo, poderiam ser discutidas “questões que nos
foi a declaração de que “o multiculturalismo é excedem e antecedem”, como as formas de
minha bandeira”. O pensamento multicultura- participação democrática. Propôs alçar a
lista surgiu nos Estados Unidos, nos anos 1970, cultura a um espaço de enfrentamento da
para reafirmar identidades étnicas e de gênero. pobreza e da desigualdade; questionou certa
Minorias numéricas ou simbólicas se assu- visão da economia criativa que “gentrifica”
miram como atores políticos, reivindicando o e higieniza a cidade; afirmou, ainda, não ser
direito à diferença. No multiculturalismo, cada possível dissociar a discussão sobre políticas
segmento tende a se encerrar em si mesmo culturais, democratização da mídia e edu-
(HALL, 2005). Porém, como viera à tona na cação. Barros apresentou, por fim, sua visão
fala inicial de Enrique Saravia – quando se de diversidade cultural como um “conjunto
lembrou da frase proferida por Martí, em de opostos”, um “projeto” e um “campo de
1819, “Nós temos um problema: não somos disputas” – em sintonia com a exposição do
índios, nem europeus” –, e como outros parti- palestrante que o antecedeu.
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA FIALHO E GOLDSTEIN 105
Ilana Goldstein
Especialista em direção de projetos culturais pela Universidade Paris 3 e doutora
em antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi coordenadora
do MBA em Bens Culturais na Fundação Getulio Vargas de 2008 a 2014 e, atualmente,
é professora de antropologia na Universidade Federal de São Paulo. É autora de vários
artigos sobre arte e cultura e dos livros O Brasil Best-Seller de Jorge Amado: Literatura
e Identidade Nacional e Responsabilidade Social: das Grandes Corporações ao Terceiro
Setor. Também atua há mais de 15 anos como consultora nas áreas social e cultural.
Referências bibliográficas
BARBOSA DA SILVA, Frederico; ARAÚJO, Herton Ellery (Org.). Cultura viva: avaliação
do programa Arte, Educação e Cidadania. Brasília: Ipea, 2010.
PENNA, Maura. O que faz ser nordestino. São Paulo: Cortez, 1992.
REIS, Ana Carla Fonseca (Org.) Economia criativa como estratégia de desenvolvimento:
uma visão dos países em desenvolvimento. São Paulo: Itaú Cultural: Garimpo
de Soluções, 2008.
POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL NA AMÉRICA LATINA FIALHO E GOLDSTEIN 115
Notas
3 O Manifesto Convivialista, organizado por Alain Caillé, foi traduzido para várias
línguas. No Brasil, foi publicado pela editora Annablume.
5 Uma das avaliações do Ipea sobre o Cultura Viva foi publicada em forma de livro,
organizado por Barbosa da Silva e Araújo (2010).
7 Para saber mais sobre os Indicadores Unesco de Cultura para el Desarrollo (IUCD),
consulte: <http://es.unesco.org/creativity/iucd/>. Acesso em: 10 abr. 2015.
9 Embora não tenha sido citado nominalmente, acreditamos que se trate do curso
MOOC: Managing the Arts, Marketing for Cultural Organizations, proposto pelo
Goethe Institut e pela Leuphana Digital School. Mais informações sobre o formato
e o conteúdo encontram-se na plataforma: <https://www.goethe-managing-the-
arts.org/?wt_sc=mooc>.
118 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
COLEÇÃO OS LIVROS
DO OBSERVATÓRIO
As Metrópoles Regionais e a Cultura: O Caso Francês,
1945-2000
Françoise Taliano-des Garets
Esta obra traça pela primeira vez a história das políticas culturais de
grandes cidades francesas na segunda metade do século XX. Seis delas,
Bordeaux, Lille, Lyon, Marselha, Estrasburgo e Toulouse, são objeto
de uma história comparada que examina a articulação entre políticas
culturais nacionais e locais na França desde o final da Segunda Guerra
Mundial. É um estudo que contribui para a revisão de certas ideias co-
muns sobre política cultural para as cidades e sobre as articulações entre
as diretivas e os discursos do poder central nacional e a realidade local.
Além disso, mostra como a cultura se impôs em lugares distintos, em
ritmos diferentes, como um campo legítimo da ação pública e fator de
fortalecimento da imagem e de desenvolvimento de cidades que buscam
um lugar de destaque nacional e internacionalmente. Abordando uma
realidade francesa, este livro serve como um poderoso instrumento de
reflexão sobre a política cultural para as cidades onde quer que se situem.
Arte e Mercado
Xavier Greffe
Este título discute as relações da arte com a economia de mercado e
a atual tendência de levar a arte a ocupar-se mais de efeitos sociais e
econômicos – inclusão social, o atendimento das exigências do turismo
e as necessidades do desenvolvimento econômico em geral – do que de
suas questões intrínsecas. Conhecer o sistema econômico é o primeiro
passo para colocar a arte em condições de atender realmente aos direi-
tos culturais, que hoje se reconhecem, como seus.
Cultura e Educação
Teixeira Coelho (Org.)
Esta publicação remete ao Seminário Internacional da Educação e
Cultura realizado no Itaú Cultural, em setembro de 2009. Os partici-
pantes brasileiros, latino-americanos e espanhóis comparam e refletem
práticas capazes de culturalizar o ensino, por meio de iniciativas admi-
nistrativas e curriculares e mediante ações cotidianas em sala de aula.
Saturação
Michel Maffesoli
O título reúne os textos Matrimonium e Apocalipse de Michel Maffesoli.
Neles o autor estende a discussão sobre a pós-modernidade para além
do domínio das artes e analisa os fatos e efeitos pós-modernos na vida
social. A partir deste debate, Maffesoli questiona valores como indiví-
duo, razão, economia, progresso — pedras fundamentais da sociedade
ocidental moderna que está em crise, saturada.
120 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Cultura e Economia
Paul Tolila
Durante muito tempo os economistas negligenciaram a cultura e por
muito tempo o setor cultural também se desinteressou da reflexão eco-
nômica. Vivemos o fim dessa época. Para os atores do setor cultural, as
ferramentas econômicas podem se tornar uma base sólida de desenvol-
vimento; para os tomadores de decisões, a contribuição da cultura para
a economia do conhecimento abre oportunidades originais de ação; para
os cidadãos, trata-se de ter os meios para compreender e defender um
setor cujo valor simbólico e o potencial de riqueza humana e econômica
não podem mais ser ignorados.
AS REVISTAS DO
OBSERVATÓRIO
Revista Observatório Itaú Cultural
Nº 17 – Livro e Leitura: das Políticas Públicas ao Mercado
Editorial
Esta edição reflete sobre livro e leitura no século XXI, levando em conta
novos aspectos e dimensões que vão além das publicações em papel,
das bibliotecas e das livrarias físicas. A revista contempla abordagens
históricas, discussões contemporâneas, contribuições de pesquisadores
acadêmicos e de profissionais do mercado.
124 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL