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“Brasil em Contra Reforma – desestruturação do Estado e perda de direitos”.

Elaine Rossetti Behring. Ed. Cortez. SP, 2003.

Capítulo 3 - Brasil: entre o futuro e o passado, o presente dilacerado.

1. Crise econômica e o processo de democratização no Brasil dos anos 1980


A autora caracteriza algumas precondições econômicas, políticas, sociais e
culturais que delinearam o contexto da formulação e implementação do Plano Real a partir de
1994 (FHC), e a hegemonia do projeto neoliberal no Brasil, com seu conjunto de contra
reformas.
Ao sublinhar o fenômeno da passagem da ditadura para a democracia brasileira,
Behring cita Fernandes que denominou-o transição conservadora sem ousadia e turbulências.
A adesão brasileira às orientações neoliberais foram tardias e esteve bastante
condicionada, por um lado, ao processo de transição democrática e à resistência ao desmonte
de uma estrutura produtiva construída no Brasil no período substitutivo de importações. A
pressão pela universalização no chamado terceiro mundo se deu após a crise da dívida, e
deparou-se com as condições internas de cada país, determinando ritmos e escolhas.

Como o Brasil adentra os anos 80?


A compreensão do problema do agravamento do endividamento externo e suas
consequências, a partir de 1979, é crucial para responder a esta pergunta. É a partir deste
momento que se aprofundam as dificuldades para formulação de políticas econômicas de
impacto nos investimentos e na redistribuição de renda no conjunto da América Latina.
A opacidade de regimes militares, financiados e estimulados pelos EUA na América
Latina, permitiu a condição institucional para tais acordos, que favoreciam a aliança entre as
oligarquias exportadoras e o capital financeiro internacional.
Para Kuanski e Branford aponta a substituição de importações (política de juros
flutuantes ao invés de juros fixos). Segundo Toussaint houve uma inversão explosiva da
transferência de divisas em prazos muito curtos, mas que foi acompanhada também da queda
das exportações de matérias primas; ocorreu um verdadeiro estrangulamento da economia
latinoamericana. O constrangimento do endividamento gerou uma queda na taxa de inversão,
em especial do investimento do setor público, ao longo de 16 anos (de 26% em 1974, para
15/16% em 1989).
A maior parte da dívida externa foi contraída pelo setor privado, por pressões do FMI –
o “feitor” da dívida –, houve na sequência uma crescente e impressionante socialização da
mesma. No Brasil, 70% da dívida tornou-se estatal. O fenômeno da estatização de 2/3 da
dívida é muito importante para compreender a crise do Estado no Brasil e o quanto é
ideológica sua “satanização”. Para Cano, desde então, o gasto público passa a ser
estruturalmente desequilibrado.
Dessa feita, Behring assinala que as características regionais preexistentes à crise da
dívida foram exacerbadas no contexto dos anos 80, à saber:
 empobrecimento generalizado da América Latina, especialmente no seu país mais
rico, o Brasil;
 a crise dos serviços sociais públicos;
 o desemprego;
 a informalização da economia;
 o favorecimento da produção para exportação em detrimento das necessidades
internas.

A maior dívida da América Latina, a brasileira, cresce vertiginosamente a partir de uma


articulação entre a burguesia nacional, o Estado e o capital estrangeiro, que fundou o “milagre
brasileiro” (quando a economia, sob a ditadura militar cresceu entre 1968/1973, a média de
11,2%). Esse “milagre” foi sustentado a partir de alguns processos:
 êxodo rural de grandes proporções, concentrando força de trabalho barata no
espaço urbano, que foi absorvida pela construção civil e pela indústria
manufatureira de bens duráveis;
 oferecimento de facilidades para empréstimos privados a juros flutuantes, mesmo,
muitas vezes, sem garantias de investimento produtivo.

Os governos democráticos não foram capazes de romper com a submissão,


estabelecendo acordos que expressavam a mais absoluta capitulação, e riscos para a
soberania.
Após a crise da dívida, diante da possibilidade de colapso financeiro internacional,
impõe-se o discurso da necessidade dos ajustes e dos planos de estabilização em toda a região.
Tratou-se, na verdade, de parte de um ajuste global, reordenando as relações entre o centro e
a periferia do mundo do capital. Houve uma espécie de coordenação da reestruturação
industrial e financeira nos países centrais, cujo custo foi pago duramente pela periferia.
Velasco e Cruz identificou, já no início da década de 80, dois discursos e diagnósticos
para uma saída da crise, contemplando a formulação de uma política industrial: o neoliberal e
o desenvolvimentista, este último decorrente da articulação entre segmentos de indústrias e
economistas críticos.
A partir de 1987, o discurso governamental sobre política industrial volta-se para
“advogar a adoção de medidas consequentes para atrair o capital estrangeiro,
desregulamentar a atividade econômica e facilitar a adoção de tecnologias novas”.
A política proposta em 1988, que defendia uma ênfase na priorização de uma política
industrial, foi recebida com cautela pelo empresariado e foi duramente criticada pelos
economistas liberais, porque, segundo eles, mantinha ainda ultrapassadas ilusões dirigidas.
O movimento operário e popular era, naquele contexto, um ingrediente político
decisivo da história recente do país, que ultrapassou o controle das elites. Sua presença e ação
interferiram na agenda política ao longo dos anos 1980 e pautaram alguns eixos na
Constituinte, a exemplo de:
 reafirmação de uma vontade nacional e da soberania, com rejeição das ingerências
do FMI;
 direitos trabalhistas;
 reforma agrária.

Dessa feita, todos os movimentos da transição democrática ao longo da década serão


tensionados por essa presença incômoda para as classes dominantes brasileiras. O texto
constitucional refletiu a disputa de hegemonia, contemplando avanços em alguns aspectos, a
exemplo dos direitos sociais, humanos e políticos, pelo que mereceu a caracterização de
Constituição cidadã, de Ulisses Guimarães.
Na boa síntese de Nogueira, observa-se que ao longo dos anos 1980 as dificuldades do
Estado brasileiro adquiriram transparência em alguns aspectos: sua intensa centralização
administrativa; suas hipertrofias e distorção organizacional, por meio do empreguismo,
sobreposição de funções e competências e feudalização; sua ineficiência na prestação de
serviços e na gestão; sua privatização expressa na vulnerabilidade aos interesses dos grandes
grupos econômicos e na estrutura de benefícios e subsídios fiscais; seu déficit de controle
democrático, diante do poder dos tecnocratas e, dentro disso, o reforço do Executivo em
detrimento dos demais poderes.
Em 1989, a partir da derrota da coalizão comprometida com os avanços democráticos
preconizados na Constituição de 1988, tem-se um cenário de reformas liberais, orientadas
para o mercado.
De um ponto de vista econômico, têm-se, na entrada dos anos 90, um país derrotado
pela inflação; paralisado pelo baixo nível de investimento privado e público; sem solução
consistente para o problema do endividamento; e com uma situação social gravíssima, e uma
crise profunda. Nesse contexto, as propostas neoliberais encontram solo fértil. Tal ambiente
político, econômico e cultural foi reforçado também pelo Consenso de Washington, com seu
receituário de medidas de ajuste. Tem-se, assim, o fermento para a possibilidade histórica da
hegemonia neoliberal.
O Consenso de Washington foi um Seminário realizado naquela cidade em 1993, para
discussão de um texto do economista John Willianson que reuniu executivos de governo, dos
bancos multilaterais, empresários e acadêmicos de onze países. Ali foram discutidos os passos
políticos necessários para implementação de programas de estabilização que, de acordo com a
ótima síntese de Fiori passaria por 3 fases: 1) “estabilização macroeconômica, tendo como
prioridade absoluta um superávit fiscal primário envolvendo invariavelmente a revisão das
relações fiscais intergovernamentais e a reestruturação dos sistemas de previdência pública; 2)
dedicada ao que o Banco Mundial, refere-se as “reformas estruturais”: liberação financeira e
comercial, desregulamentação dos mercados, e privatização das empresas estatais; 3)
retomada dos investimentos e do crescimento econômico.

2. O passaporte brasileiro para a mundialização: a ofensiva neoliberal dos anos 1990

O desfecho do pleito eleitoral de 1989, etapa tão esperada do processo de


democratização, e mais um momento do embate entre os projetos societários antagônicos,
favoreceu, por uma diferença pequena de votos, a candidatura à presidência que defendia
explicitamente as “reformas” orientadas para o mercado, que implicariam um forte
enxugamento do Estado, como saída para a crise econômica e social brasileira.
A promessa de Fernando Collor de Mello foi derrotar heroicamente a inflação com um
“único tiro”, ao lado de medidas gerais de orientação claramente neoliberal, em sintonia com
a cultura econômica monetarista que vinha ganhando terreno desde o final do governo
Sarney.
Sua intervenção de maior fôlego e largo prazo foi a implementação das chamadas
reformas estruturais, na verdade o início da contra reforma neoliberal no país.
A política industrial, fundada na abertura comercial, programas de qualidade industrial
e de capacitação tecnológica e facilidades para ingresso dos capitais externos, no sentido de
fomentar a competitividade internacional, foi um elemento central e de efeito duradouro
dessa estratégia.
Não houve qualquer ação mais ousada em relação ao problema do endividamento,
sem o que é impensável uma perspectiva de investimento e de crescimento, somando
elementos ao processo de desarticulação progressiva do padrão de desenvolvimento da
economia brasileira, em especial da capacidade do setor público.
No que se refere à enorme expectativa democrática quanto ao enfrentamento das
refrações dramáticas da questão social no país, seu pouco tempo de governo pautou-se no
clássico clientelismo, como demonstraram o escândalo das subvenções sociais e a
performance da primeira dama à frente da Legião Brasileira de Assistência (LBA). Deve-se
recordar que Collor de Mello vetou a regulamentação da Lei orgânica da Assistência Social,
demonstrando pouca disposição de implementar o conceito de seguridade social preconizado
pela Constituição.
Tal ambiente político articulado à abertura comercial e à reestruturação produtiva,
geradores de desemprego, teve impactos nos movimentos sociais dos anos 1980, no sentida
da sua desmobilização.
Foram os estudantes, “caras pintadas”, que tomarão a iniciativa das ruas, pelo
impeachment. Esse foi um movimento importante, mas que esteve longe de possuir a
densidade e o componente operário e popular da luta pelas eleições diretas, de 1984.
O curto período de Itamar será palco de avanços limitados, no que se refere à
legislação complementar à Constituição de 1988, a exemplo da LOAS. Mas será também o
momento de articulação da coalizão conservadora de poder constituída em torno de Fernando
Henrique Cardoso, então à frente do Ministério da Fazenda, onde foi formulado o plano de
estabilização protagonizado pela nova moeda: o real.

O Plano Real e a recomposição burguesa no Brasil


O Plano Real promoveu, poucos meses antes da eleição uma verdadeira chantagem
eleitoral: ou se votava no candidato do Plano ou estava em risco a estabilidade da moeda,
promovendo-se a volta da inflação, a ciranda financeira e a escalada de preços.
Os brasileiros, traumatizados com uma inflação, votaram na moeda e na promessa de
que, com a estabilidade, viriam o crescimento e dias melhores. Dessa feita, foi possível uma
rearticulação das forças do capital no Brasil, como há algum tempo não se via.
Fiori sinaliza que o “Plano Real não foi concebido para eleger FHC; FHC é que foi
concebido para viabilizar no Brasil, a coalizão de poder capaz de dar sustentação e
permanência ao programa de estabilização do FMI, e a viabilidade política ao que faltava ser
feito das reformas preconizadas pelo Banco Mundial”.
A sobrevalorização do câmbio, além de destruir a autoridade monetária nacional,
exigiu a captação permanente de recursos no exterior para equilibrar a balança de
pagamentos. Os impactos dessa engenharia de curto prazo do Plano Real têm sido:
 o bloqueio de qualquer possibilidade de desconcentração de renda;
 uma desproporção entre a acumulação especulativa e a base produtiva real, cujo
custo recai sobre o Estado na forma de crise fiscal e compressão dos gastos
públicos em serviços essenciais;
 alienação e desnacionalização do patrimônio público constituído nos últimos 50
anos, um remanejamento patrimonial de grandes proporções e com fortes
consequências políticas;
 inibição do crédito e inadimplência dos devedores;
 mudança do perfil do investimento das indústrias, que tende a ser em redução de
custos e manutenção, mas não em ampliação da base, em virtude dos riscos. Para
Tavares, a indiscriminada abertura comercial e a sobrevalorização do câmbio são
excessos que impuseram uma camisa de força obsessiva, de modo que a expansão
da produção e da demanda interna tornam-se ameaças à estabilização, em vez de
metas desejáveis.

Conforme Teixeira: “o resultado da conjugação de um movimento de reestruturação


perversa e defensiva com políticas macroeconômicas que freiam o dinamismo da economia só
podia ser o desemprego estrutural, com encolhimento dos empregos no setor formal, em
particular na indústria, onde ocorreu enorme destruição de postos de trabalho”. Alguns
elementos da política macroeconômica em execução são fortemente geradoras de
desemprego. A política de altas taxas de juros favorece a queda do investimento produtivo,
com grande deslocamento de capitais para a especulação financeira. Além disso, e mais grave,
favoreceu também o endividamento de empresas, muitas das quais vêm fechando suas portas
por não conseguir pagar os empréstimos assumidos, em especial as pequenas e médias
empresas. A “reforma” do Estado também tem sido geradora de desemprego, por meio de
mecanismos como os programas de demissão voluntária e a instituição das organizações
sociais e agências executivas, cuja relação trabalhista não se pauta pela estabilidade.
A política abrupta de abertura comercial acirrou a competitividade e pressionou a
indústria nacional para a modernização, direcionando-a para o mercado externo. Aqui
assistimos à introdução de tecnologias poupadoras de mão de obra e à precarização do
trabalho.
A perda de postos de trabalho, por sua vez, não foi compensada pelo setor de serviços
e muito menos setor público, jogando milhões de pessoas na informalidade e até no crime
organizado, em nítido avanço na década de 90.
O ataque à Seguridade Social passou também pela política de abertura econômica, no
que diz respeito a baixar o “custo Brasil”, de uma força de trabalho que é das mais baratas do
mundo – em termos de salários indiretos/diretos sociais, para que as unidades produtivas
transnacionais se instalem no país com mais facilidade. Outro impactos foi a redução da
receita de estados e municípios, com implicações amplas para os recursos da política social. A
política, portanto, é cortar, de variadas formas, recursos da área social, nesses tempos de crise
fiscal e de intensa disputa pelo fundo público.
As políticas de geração de emprego têm passado pela flexibilização e
desregulamentação dos contratos, a partir de iniciativas como a instituição do contrato parcial
de trabalho.

Capítulo 4: A Contra Reforma do Estado Brasileiro – projeto e processo

1. A expressão intelectual: o projeto “social-liberal” em Bresser Pereira


Para Bresser Pereira, o Brasil e a América Latina foram atingidos por uma dura crise
fiscal nos anos 1980, acirrada pela crise da dívida externa e pelas práticas de populismo
econômico1. Esse contexto vai exigir, de forma imperiosa, a disciplina fiscal, a privatização e a
liberalização comercial.
Bresser nota também o caráter cíclico e mutável da intervenção do Estado, ou seja,
após o Estado Mínimo, o Estado social-burocrático e o revival neoliberal, caminhar-se-ia para
uma experiência social liberal, pragmática e social democrata.
Bresser critica a esquerda tradicional por se manter presa ao nacional-
desenvolvimentismo populista, que vem incorrendo nos seguintes “equívocos”:
 orientar o desenvolvimento para o mercado interno;
 proteger a indústria nacional;
 incrementar o desenvolvimento tecnológico como elemento complementar da
substituição de importações;
 justificar o déficit público, quando há capacidade ociosa e desemprego, rejeitando
qualquer ajuste fiscal;
 interpretar as taxas de juros como conspiração dos bancos e da especulação;
 dizer que aumento de salário não aumenta a inflação e que o aumento do salário
real é redistributivo numa economia com alta concentração de renda;
 afirmar que as empresas estatais são eficientes mas não são rentáveis, porque
seus preços são artificialmente deprimidos;
 e o “equívoco maior”: defender que a coordenação econômica pelo Estado tende a
ser mais eficiente do que pelo mercado.

1Populismo econômico, numa definição sumária, caracterizar-se-ia por políticas macroeconômicas na América
Latina que mantêm o ativismo do Estado no desenvolvimento, bem como acenam para a redistribuição de renda no
curto prazo, mas sem sustentação no longo prazo, a exemplo do Plano Cruzado.
2. A expressão institucional: o Plano Diretor da Reforma do Estado (PDRE/MARE -
Ministério da Administração e da Reforma do Estado)

Na apresentação do documento sobre as proposições do PDRE elaborado pelo MARE e


aprovado em setembro de 1995 na Câmara da Reforma do Estado, FHC reitera os argumentos
de que a crise brasileira da última década foi uma crise do Estado, que se desviou de suas
funções básicas, do que decorre a deterioração dos serviços públicos mais o agravamento da
crise fiscal e da inflação. Trata-se, para ele, de fortalecer a ação reguladora do Estado numa
economia de mercado, especialmente os serviços básicos e de cunho social.
A “reforma” passaria por transferir para o setor privado atividades que podem ser
controladas pelo mercado, a exemplo das empresas estatais. Outra forma é a descentralização
para o “setor público não estatal”, os serviços que não envolvem o exercício do poder de
Estado, mas devem ser subsidiados por ele, como: educação, saúde, cultura e pesquisa
científica. Trata-se da produção de serviços competitivos ou não exclusivos do Estado,
estabelecendo-se parcerias com a sociedade para o financiamento e controle social dessa
execução. O Estado reduz a prestação direta de serviços mantendo-se como regulador e
provedor. Reforça-se a governança por meio da transição de um tipo rígido e ineficiente de
administração pública para a administração gerencial, flexível e eficiente.

A Reforma distingue quatro setores no Estado: o Núcleo Estratégico (estatal) que


formula políticas públicas, legisla e controla sua execução, composto pelos três poderes; o
Setor de Atividades Exclusivas (estatal), onde são prestados serviços que só o Estado pode
realizar, a exemplo da previdência básica, educação básica, segurança e outros; o Setor de
Serviços não-Exclusivos (pública não estatal), onde o Estado atua simultaneamente com outras
organizações públicas não estatais e privadas, como as universidades, hospitais, centros de
pesquisas e museus; e o Setor de Bens e Serviços para o Mercado (a propriedade estatal não é
desejável, mas deve existir regulamentação e fiscalização), a exemplo de empresas não
assumidas pelo capital privado.
Sobre a administração no Núcleo Estratégico propõe-se um mix entre administração
burocrática e gerencial. Nos demais, a administração gerencial.
3. Uma crítica à concepção da “Reforma” do Estado
A autora passa a sistematizar os elementos que considera para uma reflexão crítica
sobre o projeto hegemônico nos últimos 8 anos.

A explicação da crise contemporânea como crise do ou localizada no Estado. Aí estão


indicadas suas causas e suas saídas, o que expressa uma visão unilateral e monocausal da crise
contemporânea, metodologicamente incorreta e que empobrece o debate.
A perspectiva crítica de análise sustentada pelo marxismo considera que as mudanças
em curso passam por uma reação do capital ao ciclo depressivo aberto no início dos anos 70,
que pressiona por uma refuncionalização do Estado, a qual corresponde a transformação no
mundo do trabalho e da produção, da circulação e da regulação.
As tentativas de retomada de taxas de lucro nos níveis dos “anos de ouro” do capital
(pós-guerra) ocorrem hoje por três eixos que se articulam visceralmente:
 a reestruturação produtiva – que fragiliza a resistência dos trabalhadores ao
aviltamento de suas condições de trabalho e de vida, facilitando a realização de
super lucros;
 a mundialização – uma rearticulação do mercado mundial, com redefinição da
especialização dos países e forte presença do capital financeiro;
 neoliberalismo – representando as reformas liberalizantes, orientadas para o
mercado. O que combina a uma forte ofensiva intelectual e moral, com o objetivo
de criar o ambiente propício à implementação dessas proposições, diluindo as
possíveis resistências.

A “reforma do Estado”, tal como está sendo conduzida, é a versão brasileira de uma
estratégia de inserção passiva e a qualquer custo na dinâmica internacional e representa uma
escolha político-econômica, bem ao estilo de condução das classes dominantes brasileiras ao
longo da história.
Em relação a questão da privatização brasileira, tem-se a entrega do patrimônio
público ao capital estrangeiro, bem como a não obrigatoriedade de as empresas privatizadas
comprarem insumos no Brasil, o que levou ao desmonte de parcela do parque industrial
nacional e a uma enorme remessa de dinheiro para o exterior, ao desemprego e ao
desequilíbrio da balança comercial.
Para Oliveira, esse movimento mostra o quanto é preciso muito Estado para criar um
mercado livre: a exigência de um Estado forte para a condução do ajuste direcionado à
expansão do mercado.
Outro aspecto de destaque na “reforma” do Estado é o Programa de Publicização, que
se expressa na criação das agências executivas e das organizações sociais, e mais
recentemente na regulamentação do terceiro setor. Esta última estabelece um termo de
parceria com ONG’s e instituições filantrópicas para a implementação das políticas.
A essa nova arquitetura institucional na área social se combina ainda o serviço
voluntário, o qual desprofissionaliza a intervenção nessas áreas, remetendo-as ao mundo da
solidariedade, da realização do bem comum pelos indivíduos, por intermédio de um trabalho
voluntário não remunerado. O fortalecimento desse setor público não estatal como via de
implementação de política social, no contexto de uma crise fiscal que é aprofundada pela crise
econômica em curso, encerra alguns problemas e contradições.
Há uma forte tendência de desresponsabilização pela política social – em nome da qual
se faria a “reforma” – acompanhada pelo desprezo pelo padrão constitucional de seguridade
social.

O trinômio do neoliberalismo para as políticas sociais – privatização, focalização e


descentralização.

Capítulo 5: Ilustrações particulares da Contra Reforma

A Contra Reforma do Estado brasileiro concretiza-se em alguns aspectos, à saber:


 perda da soberania, com aprofundamento da heteronomia e da vulnerabilidade
externa;
 no reforço deliberado da incapacidade do Estado para impulsionar uma política
econômica que tenha em perspectiva a retomada do emprego e do crescimento,
em função da destruição dos seus mecanismos de intervenção;
 na parca vontade política e econômica de realizar uma ação efetiva sobre a
iniquidade social, no sentido de sua reversão, condição para uma sociabilidade
democrática.

A autora sublinha que até mesmo os mecanismos mais elementares da democracia


burguesa, a exemplo da independência e do equilíbrio entre os poderes republicanos, não é
considerado.

1. A Flexibilização das Relações de Trabalho


Um pressuposto clássico e sempre importante para um esforço de retomada das taxas
de lucro é a subsunção/exploração do trabalho pelo capital, no sentido da extração da mais
valia, seja mais valia relativa no séc XX, seja na retomada das formas mais bárbaras da extração
da mais valia absoluta. Um elemento fundamental para a extração de superlucros é a partir da
queda dos custos dos fatores de produção. Dentre estes, coloca-se em questão, o “custo” do
trabalho em todos os quadrantes do mundo: redução de custos, por meio da flexibilização das
relações contratuais de trabalho.
Há também a divulgação de uma ideologia de derrotas políticas ao movimento
organizado dos trabalhadores, com o objetivo de destruir sua identidade de classe. Para
Mattoso, “setores dos trabalhadores, pressionados por essa forma predatória de
reestruturação, pelo crescente desemprego, pela precarização das condições de trabalho,
também desfocaram sua ação e colocaram-se na defensiva”.
Desde a adoção do real foram introduzidas modificações amplas na legislação
trabalhista, a exemplo de:
 trabalho por tempo determinado;
 suspensão temporária do contrato de trabalho;
 flexibilização do trabalho a tempo parcial;
 banco de horas, dentre outras.

Essa situação caracteriza também à desproteção do trabalho no país, já que a


informalidade significa o não acesso à previdência, a não ser na condição da autonomia, o que
significa uma contribuição alta para os baixos salários.
Contudo, se o Estado se retira de determinadas funções com a flexibilização, o mesmo
não parece ocorrer com a qualificação, via pela qual aposta-se no combate ao desemprego,
mas cuja eficácia os números contestam com veemência. No entanto, o Fundo de Amparo ao
Trabalhador (FAT) possui um patrimônio acumulado de 30 bilhões de reais (Amaral, 2001:41),
maior que o da política de saúde. Por esta via são financiados os programas de qualificação e
requalificação profissional, além do seguro desemprego, ao qual os trabalhadores têm
recorrido menos, o que revela o acirramento da precariedade.
Amaral relaciona o investimento na qualificação como uma estratégia de passivização
por meio do patrocínio do consenso, para assegurar a colaboração de classes. Não é à toa que
a reação sindical às mudanças da CLT esteve aquém da radicalidade requerida pela situação.

2. As privatizações e a relação com o capital estrangeiro

A autora sublinha que as privatizações foram e são uma estratégia decisiva à


submissão do Brasil à lógica mundial do capital; articulada as intervenções no plano fiscal,
favorecem segmentos determinados do capital nacional em forte articulação com a
especulação financeira internacional. O Brasil é um país cuja história é marcada por uma
presença profunda do capital internacional desde o período colonial.
Contudo, ao adotar esta política, o governo jogou o país numa armadilha dramática, já
que tais serviços não somaram para o equilíbrio do balanço de pagamentos, pois não são
exportáveis. Além disso, considerando que parte da economia passa a ser controlada por não
residentes, o Estado Nacional perde sua margem de manobra na definição de políticas e
estratégias. Estes elementos delineiam um padrão de intervenção estatal pautado pela
atratividade e pela inserção passiva no processo de mundialização, colocando o país numa
trajetória de instabilidade e crise. Tal processo combinou-se à fragilização e até extinção de
segmentos da industria nacional, e também a uma forte concentração de capital no que se
beneficiaram do processo.
Paulani refere-se aos processos de privatização como uma reestruturação patrimonial
de grandes proporções, na qual tem-se o “fortalecimento de determinados grupos, a
desnacionalização e o aumento do grau de concentração e, portanto, do poder de monopólio
em quase todos os setores”. Braga e Prates alertam que a privatização e internacionalização
do sistema bancário foram uma escolha e não uma inexorabilidade. Os autores lembram que
os países desenvolvidos não permitiram tamanha participação estrangeira no setor bancário.

3. A Condição da Seguridade Social Pública no Brasil

Do ponto de vista da lógica do capitalismo contemporâneo, a configuração de padrões


universalistas e redistributivos de proteção social vê-se fortemente tensionada:
 pelas estratégias de extração de superlucros, com a flexibilização das relações de
trabalho;
 pela supercapitalização – com a privatização explícita ou induzida de setores de
utilidade pública, onde se incluem as tendências de contração dos encargos sociais
e previdenciários;
 e, especialmente, pelo desprezo burguês para com o pacto social dos anos de
crescimento, agora no contexto da estagnação, configurando um ambiente:
ideológico individualista, consumista e hedonista ao extremo.

As possibilidades preventivas e até eventualmente redistributivas tornam-se mais


limitadas, prevalecendo o trinômio articulado do ideário neoliberal para as políticas sociais,
qual seja: a privatização, a focalização e a descentralização, aqui compreendida como mero
repasse de responsabilidades para entes da federação ou para instituições privadas e novas
modalidades jurídico-institucionais correlatas, que configuram o setor público não estatal,
componente fundamental do Programa de Publicização.
O conjunto de direitos duramente conquistados no texto constitucional foram, de uma
maneira geral, submetidos à lógica do ajuste fiscal, permanecendo – mais uma vez – uma forte
defasagem entre direito e realidade. Behring cita Mota que afirma que a “tendência é de
privatizar os programas de previdência e saúde e ampliar os programas assistenciais, em
sincronia com as mudanças no mundo do trabalho e com as propostas de redirecionamento da
intervenção social do Estado”. Assim, não há consumo coletivo ou direitos sociais, mas uma
articulação entre assistencialismo focalizado e mercado livre, este último voltado para o
cidadão consumidor.
Um outro fenômeno chamado por Yasbek de refilantropização da assistência (terceiro
setor, voluntariado) é revelador de um verdadeiro retrocesso histórico pois as pequenas
soluções ad hoc e do “reinado do minimalismo” estão levando a uma “descentralização
destrutiva” e ao reforço dos esquemas tradicionais de poder, como as práticas de clientelismo
e favor.
Outra crítica é quanto a autonomia para fazer compras sem licitação e para definir
planos de cargos; isso geraria riscos para a moralidade administrativa, num país que está longe
de superar práticas patrimonialistas e clientelistas.
Ou seja, o que se altera é a modalidade de resposta à questão social, agora ajustada
aos imperativos da dinâmica passiva de inserção econômica no capitalismo contemporâneo,
mas a partir de vetores culturais e políticos marcantes na história brasileira.

Os Direitos Sociais: perda ou restrição?

Na previdência social – uma nova dinâmica institucional/tecnocrática extinguiu


projetos encaminhados anteriormente e criaram novos, com o objetivo de atrair os
trabalhadores autônomos, no sentido de ampliar a base contributiva da previdência.
A “Reforma” da Previdência social ocorreu através da MP (Medida provisória) 1729 de
3/12/98 e de uma legislação complementar ampla, que culmina na lei 9876 de 26/11/99 (mais
conhecida como “Lei do Fator previdenciário”). Em todo o processo prevaleceu a lógica fiscal e
os argumentos demográfico – as perspectivas de envelhecimento da população e seu impacto
sobre a previdência – combinados ao impulso à previdência complementar, consolidando a
dualidade entre uma previdência pobre para os pobres, aqui contribuintes, e uma previdência
complementar para os que “podem pagar”.
Criou-se uma espécie de prêmio pela permanência no mercado de trabalho, com a
aplicação do fator previdenciário. Isso implica conseqüências para a conformação do mercado
de trabalho, pois agrava a dificuldade de absorção de novas pessoas no mercado de trabalho,
numa conjuntura de emprego escasso.
A “Reforma” da Previdência social foi e é considerada um projeto neoliberal que
permanece inconclusa.
Na assistência – vale frisar, a assistência não existe como política pública de seguridade
no PDRE-MARE, a reforma atropela o Conselho Nacional de Assistência social (CNAS) ao
propor o credenciamento daquelas entidades privadas com fins públicos (terceiro setor) no
Ministério da Justiça, o que “facilitaria e desburocratizaria” o processo.
Em relação à assistência, vale lembrar que a LOAS já nasceu sob o tacão do ajuste
fiscal, cuja maior expressão foi a definição do corte de renda de ¼ do salário mínimo per capita
de uma família inteira, para um portador de deficiência ou idoso com mais de 70 anos,
pertencente a esta família, fazer valer seu direito de acesso ao BPC.
Na saúde, a universalização é substituído, na prática, pelo conceito excludente, e
confirma-se por meio da dualização: um sistema pobre para os pobres e um padrão de
qualidade maior para os que podem pagar pelos serviços mais corriqueiros. A privatização
induzida nesta política, por meio de estímulo aos planos de saúde e aos convênios, tende a
torná-la um problema de direito de consumidor e não um problema de direito social para
parcela significativa dos brasileiros.
Além disso, avançou a discussão e montagem da agência executiva (ANS – Agência
Nacional de Saúde) e a transformação das unidades em organizações sociais.
A partir dos elementos levantados acerca da relação entre financiamento da
seguridade social e ajuste fiscal, é possível concluir que existe uma forte capacidade
extrativa do Estado Brasileiro, porém que não está voltada para uma intervenção
estruturante e para os investimentos sociais, mas para alimentar a elite rentista
financeira.
Os investimentos sociais não são, evidentemente, as causas da crise, como
insistiam em afirmar os discursos neoliberais mais dogmático. O déficit público não
está localizado neles, embora tenham sido construídas uma cortina de fumaça
ideológica e algumas artimanhas para forjar e justificar este argumento.

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