Você está na página 1de 29

[REVISTA 

CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 

30 Anos da Transição no Brasil:


luta de classes e dependência na constituição do Brasil
contemporâneo
Roberto Santana Santos*

Resumo: Nos trinta anos do fim da Ditadura e da Transição no Brasil o artigo propõe
uma reflexão sobre o referido processo histórico, tendo como pontos de debate uma
dupla visão: um panorama estrutural, para compreendermos as modificações
econômicas globais de meados da década de 1980 e que tiveram forte impacto para o
fim do regime de exceção; e o entendimento da Transição como um agudo momento
de luta de classes, onde dois projetos de sociedade se enfrentaram pela liderança do
novo Brasil pós-ditatorial. Essa disputa se desenvolve através de momentos-chave da
história recente do país, como o Colégio Eleitoral de 1985, a Assembleia Nacional
Constituinte e as eleições presidenciais de 1989.

Palavras-chave: Transição, Dependência, Nova República

30 Years of Transition in Brazil: class struggle and dependence in the


constitution of contemporary Brazil

Abstract: In the thirty years since the end of dictatorship and the processes of
democratic Transition in Brazil, the article propose a reflection on that historical
process, based on a double vision : a structural view , to understand the global
economic changes of the mid- 1980s which had a strong impact to the end of the
authoritarian regime; and the understanding of the transition as a moment of acute
class struggle , where two projects of society faced by the leadership of the new post-
dictatorial Brazil . This dispute develops through key moments of the recent history of
the country, such as the 1985 Electoral College, the National Constituent Assembly
and the 1989 presidential elections.

Keywords: Transition, Dependency, New Republic

* Doutorando em Políticas Públicas pelo Programa de Políticas Públicas e Formação Humana da


Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPFH/UERJ). Graduado em História e Mestre em História
Política pela mesma instituição. Secretário Executivo Adjunto da REGGEN (Rede de Economia Global
e Desenvolvimento Sustentável) da UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação,
Ciência e Cultura) e UNU (Universidade das Nações Unidas). Contato: robertossrj@gmail.com

  1 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
O ano de 2015 marca a data de trinta anos do fim da Ditadura no Brasil e a
instalação do atual sistema político liberal em que vivemos. Na historiografia e na
imprensa esse fato ficou conhecido como Transição, e o período histórico por ele
inaugurado e que se prolonga até hoje como Nova República.
Aproveitando a data redonda, o presente artigo apresenta uma reflexão sobre o
referido processo histórico, tendo como pontos de debate uma dupla visão acerca da
Transição: um panorama estrutural, para compreendermos as modificações
econômicas globais de meados da década de 1980 e que tiveram forte impacto para o
fim do regime de exceção; e o entendimento da Transição como um agudo momento
de luta de classes, onde dois projetos de sociedade se enfrentaram pela liderança do
novo Brasil pós-ditatorial. Essa disputa perpassa momentos-chave, como o Colégio
Eleitoral de 1985, a Assembleia Nacional Constituinte e as eleições presidenciais de
1989.
Dessa forma, apresentamos um rápido panorama do nascimento de nosso atual
momento histórico, tanto na análise econômica, quanto nas disputas políticas.
Finalizaremos o artigo com uma reflexão sobre nosso atual sistema político e
eleitoral, suas pretensões democráticas, acertos e limites formulados ao longo das
últimas três décadas.

1) Panorama Estrutural da Transição

Os primeiros indícios de uma crise internacional do capitalismo já apareceram


em 1967, com a baixa na taxa de lucros de grandes empresas e a estagnação das
principais economias mundiais. No entanto, a crise passa a ser mais sentida na década
de 1970, com os choques do petróleo (1973 e 1979), o fim do padrão-ouro do dólar
estadunidense e a alta do desemprego, minando a sustentação do modelo keynesiano e
o estado de bem-estar social.
Ao entrarmos nos anos 1980, observamos importantes transformações na
economia capitalista mundial como resposta à crise. Estava então em marcha a
consolidação hegemônica do neoliberalismo como conjunto de ideias redefinidoras do

  2 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
sistema em escala global. Os governos de Ronald Reagan nos Estados Unidos (1981-
1989) e Margareth Thatcher na Inglaterra (1979-1990) foram os baluartes dessa onda
conservadora, que logo passou a ser implementada também nos países periféricos.
Essas mudanças ocorrem simultaneamente aos anos finais da Ditadura e ao período de
Transição no Brasil.
Medidas como privatizações, flexibilização dos direitos trabalhistas,
terceirização e liberalização do comércio passam a ser aplicadas na política
econômica de diversas nações. Para recuperar suas finanças baseadas num enorme
déficit público, o governo Reagan nos Estados Unidos, assim como outros países
centrais, eleva de forma drástica os juros e amortizações da dívida dos países
subdesenvolvidos (SANTOS, 2004).
Esse novo cenário da economia mundial vai prejudicar fortemente os países
mais pobres, que estavam em situação de grande endividamento. O caso brasileiro é
notório, com a queda nos indicadores econômicos. A média anual de inflação na
década de 1980 foi de incríveis 330% ao ano.1 A população brasileira cresceu 1,7%,
mas a população moradora de favelas aumentou 7,65% no mesmo período. O
coeficiente de GINI do Rio de Janeiro, cidade com grande avanço da favelização no
período, subiu de 0,58 em 1981, para 0,67 em 1989, indicando um aumento da
desigualdade social. (DAVIS, 2006. P 160-161). No ano de 1983 o desemprego
chegava a 15% da população economicamente ativa, e a inflação a 250% (Dados do
IBGE. GIANNOTTI, 2009. P. 255).
Entendemos o Brasil como um país capitalista dependente, dentro dos
conceitos formulados por Ruy Mauro Marini. Países dependentes são nações
formalmente emancipadas, mas que possuem sua economia numa relação subordinada
e constantemente modificada pelo mercado internacional comandado pelas nações
centrais, na qual o resultado do desenvolvimento de suas economias é gerar formas
mais complexas de dependência (MARINI, 2000, p. 109).
Os anos 1980 se apresentam como um momento de formulação da
globalização capitalista, onde os interesses do capital internacional se traduzem na
1
Fonte IBGE. In: PORTAL BRASIL. Inflação. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/economia-e-
emprego/2012/04/inflacao>. Acesso em 25 de dezembro de 2013.

  3 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
aplicação do ideário neoliberal, derrubando restrições ao comércio de bens e serviços,
abrindo novos espaços de reprodução do capital (por meio de privatizações, por
exemplo), aumentando o grau de exploração da força de trabalho – terceirizações e
redução de direitos – e forçando uma forte intervenção estatal a favor do capital
financeiro, que se torna hegemônico a partir desse momento.
O discurso do “Estado mínimo”, apesar de propagandeado pela mídia
monopolizada, se aplica a setores sociais, não a favorecimentos ao grande capital. A
economia dos países, principalmente do capital privado, gira cada vez mais em torno
do endividamento público (que desloca recursos para o capital financeiro) e gastos
estatais - como a indústria militar, de softwares, ou mesmo o trabalho terceirizado
utilizado na esfera pública. O governo que inaugurou essas políticas foi justamente o
de Ronald Reagan, tido como um dos maiores defensores do neoliberalismo
(SANTOS, 2004).
Em um momento de rearranjo da economia mundial, principalmente a norte-
americana, as dívidas dos países da América Latina serviram para transferência de
valor da periferia para as economias centrais. O Brasil apresentava forte
endividamento externo devido à política de desenvolvimento da Ditadura, baseada no
financiamento internacional. Desde o final da Segunda Guerra Mundial (1945) até o
fim da Ditadura (1985), a dependência se manifestava no capitalismo brasileiro por
meio do investimento direto das multinacionais em nossa economia. A
implementação de unidades produtivas dessas empresas em nosso país visava o
controle do mercado interno brasileiro, ainda fechado para a importação de
determinados produtos. A transferência de valor para o centro do sistema capitalista
internacional se dá pela remessa de lucros das empresas estrangeiras, a apropriação de
mais-valia pela circulação das mercadorias produzidas no Brasil no mercado
internacional e o pagamento de juros, empréstimos e dividendos (MARINI, 2000).
Com a globalização neoliberal a situação muda em grande medida. Com um
aumento avassalador da produção, assim como rebaixa nos custos da mesma – devido
à instalação de fábricas na Ásia, as empresas multinacionais pressionam para a
liberalização total do comércio mundial. Seu intuito é construir um mercado mundial

  4 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
de consumidores, sem restrições para a circulação de capitais, bens e serviços. Para
isso, era necessário terminar com qualquer tipo de barreira para a livre circulação,
representada essencialmente, em políticas protecionistas e alfandegárias.
Esse panorama internacional foi um dos motivos da profunda crise econômica
que acompanhou os anos finais da Ditadura empresarial-militar em nosso país e
contribuiu consideravelmente para o seu término. Dessa forma, a Transição de regime
no Brasil ocorre simultaneamente a uma outra transição, de caráter estrutural, que
demarca a passagem de uma fase da dependência à outra. Trata-se do fim da
dependência baseado no investimento direto no mercado interno brasileiro pelas
transnacionais e início da adequação de nossa dependência aos padrões da
globalização neoliberal.
A Crise da Dívida é a contrapartida para a periferia do advento neoliberal.
Nesse primeiro momento o receituário neoliberal estava sendo aplicado nas
economias centrais. O papel da Crise da Dívida periférica foi garantir a transferência
de valor dos países dependentes para as nações hegemônicas. Suas economias são
destroçadas para a rearticulação dos países centrais, principalmente os Estados
Unidos, num intenso processo de acumulação de capital aproveitado pelas gigantes
multinacionais e pelo capital financeiro. O endividamento internacional funcionou
como uma enorme drenagem de recursos, gerando dívidas impagáveis, que levaram
países como o Brasil a uma situação econômica de hiperinflação e aumento da
pobreza e desigualdade social.
Com as economias centrais fortificadas, O Fundo Monetário Internacional
(FMI) e o Banco Mundial, com a participação ativa do Tesouro estadunidense,
propuseram políticas de renegociações das dívidas2 dos países latino-americanos ao
final dos anos 1980 e início dos 1990. Por meio do refinanciamento dos países
endividados, foram impostos ajustes estruturais por esses órgãos multilaterais que
direcionavam as economias periféricas à adoção de medidas neoliberais, como a

2
Não é objetivo do artigo destrinchar essas políticas. Cito aqui o Plano Brady, de 1989, que
refinanciou os países então mergulhados no endividamento externo, com abatimento de parte da dívida
e aliviamento dos juros.

  5 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
abertura dos mercados e a privatização de empresas estatais e serviços públicos. Esses
ajustes estruturais ficaram conhecidos como Consenso de Washington.
O Consenso de Washington configura-se então como um segundo passo.
Primeiro a quebra das economias latino-americanas, com a Crise da Dívida,
reforçando as economias centrais. Posteriormente, condicionar o refinanciamento das
nações dependentes e a rolagem da sua dívida mediante a adoção dos ajustes
estruturais impostos pelo FMI. Assim, o grande capital internacional consegue
derrubar qualquer tipo de protecionismo ou restrição à livre circulação. Como
colocado anteriormente, a liberalização do comércio é uma condição vital para essa
nova fase do capitalismo. Da mesma forma, novos espaços para o investimento de
capital privado transnacional se abrem, por meio da privatização de setores públicos e
pela maior exploração da força de trabalho com terceirizações e retirada de direitos
trabalhistas.
Essa transição estrutural se deu lentamente ao longo dos anos 1980 e 1990.
Passamos da dependência do investimento direito, para uma nova fase, da
globalização neoliberal. Nessa etapa, os países dependentes na América Latina
passam por um forte processo de reprimarização, desindustrialização e
transnacionalização. Suas economias perdem muito do setor secundário, já que não
conseguem competir com os produtos importados, fabricados principalmente na Ásia
por empresas transnacionais. Por outro lado, os produtos primários voltam a ser
dominantes em nossas exportações, com forte participação do capital estrangeiro
(CARCANHOLO, 2014). O endividamento público como forma de transferência de
valor para o setor financeiro e especulativo também representa uma característica do
momento atual do capitalismo dependente brasileiro.
Portanto, o momento da Transição política no Brasil ocorre concomitante a
mudanças estruturais no capitalismo dependente do país. Essas transformações
estruturais tiveram importante papel para o esgotamento da política de
desenvolvimento da Ditadura, a mudança do regime político e também para as
disputas pelos rumos do país nos primeiros anos da Nova República.

  6 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
Isso se manifesta no embate de forças que marcam o período da Transição.
Essas forças podem ser divididas basicamente em dois grupos: os partidos e
organizações comandados pelo empresariado brasileiro, que no período entre 1985 e
1990 vão amadurecendo a defesa de medidas neoliberais na economia; e, por outro
lado, um grupo de forças mais à esquerda, que compreendiam a Transição como um
momento ímpar para passar o país a limpo, num projeto de reformas democrático-
populares, que tinha importante eixo, na distribuição de renda e na melhora de
condições socioeconômicas da maioria da população.
O que estava em jogo estruturalmente, e se manifestava na arena política, era
se o novo regime iniciado em 1985 seria uma ferramenta para a renovação e
aprofundamento da dependência, ou, se seu desenvolvimento significaria ampliar a
participação popular nos rumos do país e melhorar as péssimas condições de vida das
massas, condições herdadas do período ditatorial. Essa luta de classes permeia a
construção da Nova República nos anos imediatamente posteriores ao fim da
Ditadura, aparecendo de forma veemente na Assembleia Nacional Constituinte (1986-
1988) e tendo seu embate definitivo nas eleições presidenciais de 1989.

2) A Transição e os embates políticos

a) Diretas Já x Colégio Eleitoral

A crise internacional do capitalismo enfraqueceu a Ditadura, inviabilizando


seu projeto de desenvolvimento em aliança com o capital internacional. A Crise da
Dívida afundou economicamente o país, que não encontrava mais credores
internacionais, devido ao seu crescente endividamento e impossibilidade de pagar os
débitos contraídos. O ambiente de crise reascendeu as movimentações pró-
democracia. Desde 1979 o regime já estava em um processo de Abertura com o
presidente João Baptista Figueiredo. O AI-5, o bipartidarismo e a censura já haviam

  7 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
sido revogados e a Anistia decretada. Eleições diretas para governadores em 1982
deram ampla vitória para a oposição.3
A partir desse momento as forças progressistas ganham terreno e passam a
reivindicar as eleições diretas para presidente da República. A campanha das Diretas
Já (1983-84) tomaria as ruas de todo o país e uniria no palanque as principais
lideranças contrárias à Ditadura, desde os liberais Ulysses Guimarães, Tancredo
Neves e Fernando Henrique Cardoso (todos, neste momento, do PMDB – Partido do
Movimento Democrático Brasileiro) até as lideranças de esquerda, como Leonel
Brizola (PDT – Partido Democrático Trabalhista), herdeiro do trabalhismo e porta-
voz de um grupo que unia nacionalistas, socialistas e anti-imperialistas; e Luis Inácio
Lula da Silva (PT – Partido dos Trabalhadores), partido que congregava uma base
sindical, das comunidades eclesiais de base da igreja católica e vários movimentos
sociais.
As Diretas Já se tornaram um dos maiores movimentos de massa da história
brasileira, com comícios que arrastaram milhões de pessoas por todo o país,
principalmente nas capitais. Essa mobilização seria a oportunidade de uma derrubada
do regime ditatorial, tendo a população como grande protagonista. Esse era o desejo,
principalmente, das forças de esquerda que se tornavam atores de grande relevo na
política nacional e tentavam impulsionar a participação de sindicatos, movimentos
sociais e instituições de massa para as grandes mobilizações. O objetivo central da
Campanha era, por meio da mobilização popular, impor ao regime a convocação
imediata de eleições diretas para presidente, nas quais era dada como certa a derrota
de qualquer candidato indicado pelo governo ditatorial.
Da mesma forma, os militares e civis que compunham o regime encaravam
com preocupação a Campanha das Diretas, enxergando nela a possibilidade de
radicalização do processo de Transição. Para as forças conservadoras, a Transição
deveria ser totalmente controlada, de modo que as Forças Armadas não fossem
responsabilizadas pelos crimes da Ditadura, garantindo ainda a sobrevivência política

3
Um retrato do avanço da oposição se deu com a vitória nos três principais estados da Federação. São
Paulo, com Franco Montoro (PMDB); Minas Gerais, com Tancredo Neves (PMDB); e Rio de Janeiro,
com Leonel Brizola (PDT), esse último, herdeiro direto do trabalhismo golpeado em 1964.

  8 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
dos quadros civis do regime. Os políticos reunidos no então PDS, herdeiro da
ARENA, partido da Ditadura, precisavam manter suas carreiras viáveis em um
momento que as disputas políticas passariam a ser realizadas pelo sistema de eleições
diretas.
Uma radicalização do processo e uma ascensão de forças como PT, PDT,
MST (Movimento dos trabalhadores Sem Terra), CUT (Central Única dos
Trabalhadores) e lideranças como Lula e Brizola, poderia colocar em risco a transição
ordenada em que as forças ditatoriais desejavam. Era preciso que a Transição
significasse continuidade, sem grandes radicalismos políticos, ou mudanças bruscas
na economia brasileira, muito menos o julgamento dos militares pelos seus crimes de
assassinatos, torturas e sequestros.
A Campanha das Diretas Já foi derrotada em 1984, já que a Emenda Dante de
Oliveira, que colocava a proposta de eleições direitas para presidente não recebeu os
2/3 necessários para sua aprovação, mesmo conseguindo votos até de dentro do PDS.
A partir desse momento, Tancredo Neves (PMDB) passou a articular sua candidatura
no Colégio Eleitoral, com o intuito de rachar o partido governista, o PDS, e obter a
maioria necessária para sua eleição (SANTOS, 2014. P.177-209).
Esse racha se inicia quando José Sarney, então presidente do PDS, abandona a
sigla para ser vice na chapa de Tancredo e do PMDB. Outros líderes do PDS fazem o
mesmo, porém criando uma nova sigla, a Frente Liberal. 4 Dessa maneira, Tancredo,
por meio de costuras políticas que duraram cerca de um ano, evitou uma eleição
direta, onde seu partido escolheria Ulysses Guimarães, se apresentou de forma
palatável aos militares, prometendo uma transição política sem radicalismos, e atraiu
boa parte das lideranças civis da Ditadura para um bloco que lhe elegeu presidente e
comporia seu ministério, como demonstrado pela obra de um de seus assessores,
Ronaldo Costa Couto (COUTO, 1998. P. 345-399).
Configura-se dessa maneira, uma Transição sob o signo da continuidade. A
permanência de antigas lideranças civis da Ditadura no novo governo, e uma mudança

4
A Frente Liberal se tornaria partido ainda em 1985, o Partido da Frente Liberal (PFL). O partido seria
refundado em 2007, quando adota seu nome atual, Democratas (DEM).

  9 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
de regime realizada não pela mobilização popular, mas sim, por meio das conversas
de gabinete, fica evidente no depoimento de José Sarney:

A transição deu certo, porque nós constituímos um grupo de


políticos. A união do Tancredo, do Ulysses, Aureliano, Marco
Maciel, eu, os outros todos. E fizemos uma coisa fundamental:
tomamos vacina contra a área militar. Para inibir reações de setores
militares antagônicos. Isso foi feito com o general Leônidas, no
Exército. O Aureliano ajudou junto à Marinha, com os almirantes
Sabóia e Maximiano (...) O brigadeiro Murilo Santos na
Aeronáutica, e assim por diante. Assim, tínhamos um esquema que,
na hipótese de qualquer reação, O III Exército, com o general
Leônidas, garantiria. Ele fez um proselitismo dentro das Forças
Armadas para que a transição fosse feita, fosse bem-sucedida.
Graças a isso, nós tivemos a segurança de fazê-la. É a minha tese,
que repito sempre: a transição tinha que ser feita com as Forças
Armadas, não contra as Forças Armadas. Quer dizer: o contrário do
caso argentino. A ideia de que a transição deveria significar a
derrubada dos militares do poder, essa era extremamente perigosa.
Então nós fizemos justamente com o Tancredo. Foi feito com
Tancredo, com as Forças Armadas. Ninguém sabe disso até hoje
[1997]! (COUTO, 1998. P. 380)

Devemos compreender que indivíduos representam interesses históricos de


determinados grupos sociais. O empresariado nacional e estrangeiro verificou a
necessidade de fim do regime, não só pela crescente polarização “governo x
oposição”, mas pelo entendimento de que o estado militarizado interventor da
economia não mais cumpria um papel benigno à reprodução do capital. O sistema de
governo e a política econômica brasileira iam, naquele momento, na contra mão das
reformas neoliberais que começavam a gracejar mundo afora. Parte do setor
empresarial já começava a defender uma “modernização” da economia brasileira, o
que se traduzia na defesa das ideias neoliberais.
A classe dominante, autóctone e estrangeira, necessitava naquele momento
evitar o avanço de forças populares, garantir a sobrevivência e viabilidade de seus
quadros políticos civis – descolando-os do regime ditatorial, no intuito de que estes
fossem capazes de manter o poder por meio de vitórias eleitorais. Ao mesmo tempo, a
Transição deveria ser apresentada como uma concessão das elites, misturado com

  10 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
sentido de “missão comprida” por parte dos militares. Tudo para evitar a imagem de
uma Transição que fosse uma vitória popular ou uma derrubada da Ditadura.
Florestan Fernandes sintetizou na época a situação da Transição como uma
conciliação conservadora e seus efeitos sobre o país:

Determinar o sucessor e as condições políticas da “transição”


constituíam dois objetivos centrais, mas não os mais importantes. O
essencial consistia (e ainda consiste) em impedir um deslocamento
de poder, com uma acumulação de forças políticas acelerada das
classes subalternas. O que os militares temiam era ainda mais
temido pela massa reacionária da burguesia. Trocar a ditadura por
um governo de “conciliação conservadora” era uma barganha
imprevista, que o sistema de poder e de propagação ideológica da
burguesia fortaleceu com estardalhaço por todos os meios possíveis
(conferindo, inclusive, à campanha eleitoral de Tancredo Neves o
estatuto de um movimento de salvação nacional). A partir daí, o
PMDB perdera a capacidade de afirmar-se numa linha de combate
coerente pela democracia e adernou à direita, arrastando na queda
sua “esquerda parlamentar” e sua riquíssima irradiação popular. O
antiditatorialismo passou por um processo análogo ao esvaziamento
do republicanismo, provocado pela aliança dos fazendeiros com os
“republicanos históricos”. Os touros estavam soltos na praça. Mas
não havia toureiros. Os próceres do PMDB ocupavam-se em “matar
as cobras com o próprio veneno”, enquanto estas mudavam de covil
e se instalavam confortavelmente entre as cobras que infestavam o
PMDB. Em seu clímax, o movimento político popular sofrera um
golpe mortal. A “transferência de poder” converteu-se numa troca
de nomes e, como afirmou um notável comentarista político, as
velhas e as novas raposas aplainaram o caminho que levava à
satisfação de seus apetites.
Esse era o desdobramento que mais convinha às elites econômicas,
culturais e políticas das classes dominantes. Esvaziar a praça
pública, recolher as bandeiras políticas “radicais”, matar no
nascedouro o movimento cívico mais impressionante da nossa
história – restaurando de um golpe as transações de gabinete, as
composições entre os varões “liberais” da República, o mandonismo
político. Não o que negar: as figuras de proa, como Tancredo
Neves, Ulisses Guimarães, Marco Maciel e Aureliano Chaves à
frente, lavraram um tento. Exibiram um profissionalismo político de
causar inveja. E tiveram êxito. O que consagra a ação política é a
vitória. Vitoriosos, eles demonstraram o seu valor e a sua
competência. E a Nação? Esta foi inapelavelmente empurrada da
estrada principal. Moldura e cenário de uma reestruturação
específica, que nos coloca metade na década de [19]20 e outra
metade na década de [19]40. Mais que a eleição direta de um
presidente, perdeu-se a oportunidade histórica única de usar o
rancor contra a ditadura e a consciência geral da necessidade de

  11 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
mudar profundamente como o ponto de partida de uma
transformação estrutural da sociedade civil e do Estado. E se
ganhou uma mistificação monstruosa: a montagem política e
ideológica de Frankenstein, batizado de Nova República e
trombeteado pela cultura da comunicação de massa como uma
“vitória do Povo na luta pela democracia! (FERNANDES, 1985. P.
27-28)

Os mesmos deputados e senadores que derrubaram a Emenda Dante de


Oliveira, que restituiria as eleições presidenciais direitas e responderia positivamente
aos desejos da campanha das Diretas Já, foram os que garantiram, alguns meses
depois, o fim da Ditadura por meio da eleição indireta de Tancredo Neves. Com esse
ar de continuidade começava a Nova República em 1985.

b) José Sarney: sentido do primeiro governo pós-ditatorial

Com o falecimento de Tancredo Neves antes da posse, seu vice, José Sarney,
assumiu a presidência. Seu governo, de 1985 a 1989, ficou marcado pela promulgação
da nossa atual Constituição, pela continuidade dos graves problemas econômicos e,
consequentemente, da insatisfação popular.
Para tentar controlar a inflação, Sarney e sua equipe econômica, lançaram
várias medidas, das quais a de maior relevo foi o Plano Cruzado. Consistia no
congelamento de preços e salários na tentativa de conter a inflação de três dígitos. No
início, o Plano parecia exitoso, mas com o tempo os preços voltavam a subir, sem os
salários aumentarem na mesma proporção. Mais do que isso, o Plano Cruzado foi
utilizado como uma poderosa arma eleitoral.
Nas eleições para governadores de 1986, os preços foram congelados antes do
pleito, para favorecer os candidatos do PMDB. A medida foi um enorme sucesso,
com o partido se saindo vitorioso em todos os estados, com exceção de Sergipe.
Semanas depois, por meio do Plano Cruzado II, o congelamento foi cancelado e os
preços voltaram a subir. A sensação de armação eleitoral ficou no ar e o PMDB não
seria perdoado pela população nas eleições presidenciais seguintes.

  12 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
A desilusão crescente com um governo civil que não resolvia os graves
problemas socioeconômicos, as jogadas eleitorais do Plano Cruzado e a inflação
galopante aumentavam ainda mais o descontentamento popular. Greves pipocavam
por todo o país e a CUT (Central Única dos Trabalhadores) se tornava um ator de
peso na cena política brasileira.
Foram mais de 9 milhões de grevistas em 1987, com destaque para a
paralisação da CSN (Companhia Siderúrgica Nacional). Contra as três greves
ocorridas na CSN o governo Sarney utilizou um triste expediente dos tempos de
Ditadura. O Exército foi convocado para ocupar a Companhia, desbaratar a greve e
forçar os operários a voltarem ao trabalho. Em 1988 três operários foram assassinados
pelas forças militares, até que os trabalhadores conquistassem o aumento salarial e a
diminuição de horas de trabalho. Em 1989, a maior paralisação em todo o país: 15
milhões de grevistas contra o arrocho salarial (GIANNOTTI, 2009. P. 261-267).
Lançado em 28 de fevereiro de 1986, o Plano Cruzado não conteve a inflação,
que corroia o poder de compra da classe trabalhadora e dos miseráveis. Observamos
que o valor do salário-mínimo em dólares teve uma leve queda ao final do governo
Sarney. Se em março de 1986, o salário-mínio brasileiro era no valor de U$ 114,94,
em dezembro de 1989, ele se apresentava no patamar de U$ 103,07.5 A política
econômica do governo Sarney não se desdobrava em diferença significativa para a
classe trabalhadora, levando o início da Nova República ao mesmo embate de classes
de outrora no regime ditatorial. O aumento das greves e outras formas de contestação
social revelam que a intensidade da luta de classes no Brasil não esmorecia no novo
sistema político.
O aumento gradual de trabalhadores e trabalhadoras paralisadas corresponde à
maneira encontrada para reaver as perdas salariais corroídas pela inflação. Contra elas
foram utilizadas todo um aparato herdado da Ditadura e não desmantelado: a
utilização das Forças Armadas como forma de repressão a contestações sociais e
trabalhistas, a atuação do SNI (Sistema Nacional de Informações) que continuava

5
IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Disponível em <
http://www.ipeadata.gov.br/salárioerenda/ipea>. Acesso em 05 de julho de 2015.

  13 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
espionando forças de esquerda e só seria desmantelado no governo Collor, e o
poderoso aparato de mídia, monopolizada nas mãos de poucas famílias.
Esses acontecimentos ocorriam ao mesmo tempo em que a nova Carta Magna
era discutida. A tese aqui defendida é que o sentido do governo Sarney era manter a
hegemonia conservadora no momento de formação e atuação da Assembleia Nacional
Constituinte e na posterior corrida presidencial para as primeiras eleições diretas
(marcadas para 1989). O desejo da burguesia era conter as forças de esquerda,
formular uma constituição que lhe permita uma primazia do capital sobre o trabalho e
concedê-la uma vantagem para seus candidatos conservadores chegarem com chances
ao pleito presidencial (SANTOS, 2014. P. 210-229).

c) A Assembleia Nacional Constituinte

A formulação de uma nova constituição era o principal passo para a


consolidação do novo regime político. Seus trabalhos durariam dois anos (1986-1988)
e formulariam nossa atual Carta Magna. O processo de eleição de deputados
constituintes, os trabalhos da Assembleia e sua promulgação foram palco de algumas
polêmicas.
A história da Constituinte guarda algumas tentativas de se decidi-la pelo alto,
com a menor participação popular possível. Primeiramente, a vontade de Tancredo
Neves não era a formulação de uma nova carta magna. Seu objetivo era que o
Congresso vigente “reavaliasse” a constituição de 1967, feita pela Ditadura
(SANTOS, 1994. P. 272). Mais uma vez o conservadorismo de Tancredo se sobressai
sobre a figura mítica que se criou dele após sua morte.
Segundo, não houve uma eleição para deputados constituintes. O que houve
foi uma eleição para o legislativo federal, de deputados e senadores, em 1986, que
foram transformados em constituintes e após o fim dos trabalhos permaneceram
exercendo seus mandatos até o fim. Isto levou a uma situação, no mínimo,
desconfortável, onde congressistas eleitos pelas antigas regras continuam com seus
mandatos vigentes sob uma nova constituição. O mais adequado seria uma eleição

  14 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
para deputados constituintes e após o término dos trabalhos a dissolução da
Assembleia e a convocação de novas eleições, agora sob as regras da nova carta.
Em outro agravante, as eleições para deputados e senadores que se tornaram
constituintes ocorreram junto com as eleições para governadores em 1986. Isso tirou a
importância do pleito e confundiu o eleitorado, que não deu muita importância para as
eleições legislativas, apresentando um número alto de votos brancos e nulos (SAAB,
1987. P. 265-273). Seria salutar que a eleição para deputados constituintes tivesse
uma importância maior. A população brasileira vinha de uma Ditadura com eleições
inexistentes ou altamente manipuladas e restritas. É natural que boa parte da
população tivesse dificuldade em compreender o funcionamento e objetivo do pleito.
Por fim, a constituição aprovada não passou por um referendo da população.
Após o trabalho dos constituintes, o mais democrático a fazer seria um referendo, para
a população aprovar ou não o novo texto constitucional. Parecia que o objetivo era
correr com os trabalhos e passar logo essa fase de suma importância para o destino de
um país.
A conjugação de tantos fatos não pode ser encarada como mera coincidência.
Essa é mais uma manifestação do que caracterizamos como o caráter conservador da
Transição, onde a meta era tomar decisões de cúpula e afastar a população dos
momentos decisivos. As forças conservadoras, agora tanto os ex-partidários da
Ditadura, como a antiga oposição liberal liderada pelo PMDB, controlavam todos os
momentos importantes, temendo que o jogo se radicalizasse, isto é, que a soberania
popular fosse exercida de fato.
A utilização do Plano Cruzado pelo PMDB nas eleições para governadores em
1986, também se manifestou no pleito para deputados e senadores constituintes. O
PMDB sozinho fez mais da metade dos deputados eleitos, 260 de 487, caracterizando
53,39% do total. Somado a outros partidos, como o PFL, PDS (antiga ARENA) e
outras siglas fisiológicas menores, esse agrupamento tinha ampla maioria dentro da
Assembleia. A atuação conjunta de tais forças recebeu o nome de “Centro
Democrático”, porém ficou mais conhecido pelo apelido “Centrão”, pretensamente

  15 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
uma união de forças de centro, que na verdade era uma força de direita. Vejamos sua
função como colocada por René Dreifuss:

Nascido no interior do PMDB e PFL, esse agrupamento marcaria o


início da fragmentação do primeiro e o enquadramento direitista de
ambos. O deputado peemedebista Expedito Machado, um dos
líderes do grupo (juntamente com os deputados Carlos Sant’Anna e
Roberto Cardoso Alves, ambos do PMDB, e os peefelistas Ricardo
Fiúza e Luiz Eduardo Magalhães), relacionaria as metas desta
formação suprapartidária, que englobava cerca de metade do
Congresso: alterar o Regimento Interno, modificar e ‘enquadrar’ as
propostas da Comissão de Sistematização, que eram tidas como
‘muito influenciadas pela esquerda’, especialmente na questão
social, no tocante à reforma agrária e ao mandato presidencial.
Entre os pontos a serem modificados estavam: a garantia de
emprego contra a demissão imotivada; o salário mínimo nacional
unificado; a participação dos trabalhadores nos lucros e na gestão da
empresa; o pagamento em dobro da hora extra e a redução da
jornada de trabalho. A função do Centro Democrático era juntar,
num só movimento de força, os parlamentares que poderiam
redesenhar o perfil da futura Constituinte, que, como tinha sido
esboçado pela progressista Comissão de Sistematização, contrariava
uma diversidade de interesses entrincheirados – entre eles os do
empresariado urbano e rural. Mais: o grupo pretendia servir de
plataforma de sustentação à atuação política do governo Sarney.
Sua tarefa básica era a luta contra a ampliação das faixas de
estatização da economia e contra o que via como verdadeira
subversão da ordem social vigente. Enfim, procurando delinear uma
Constituinte de corte ‘privatista’, além de conservadora do ponto de
vista político e social. (DREIFUSS, 1989. P. 111-112)

Para dar suporte as ações do Centrão e reverberar as reivindicações da


burguesia brasileira e internacional, diversas entidades representativas das elites
fizeram intenso lobby durante a constituinte. Alguns dos principais grupos foram a
União Brasileira de Empresários (UB), União Democrática Ruralista (UDR) e a
Associação Brasileira de Defesa da Democracia (militares). A Embaixada dos Estados
Unidos também influenciava em nome dos interesses de transnacionais, como Esso,
Xerox, General Motors, Ford, IBM, Banco de Boston e Citibank. (DREIFUSS, 1989.
P. 191-192)
Os políticos do bloco direitista tinham ampla participação nos meios de
comunicação. Sua participação na mídia sempre vinha acompanhada de exaltação à
iniciativa privada como eficaz, empreendedora e um caminho para um “Brasil

  16 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
moderno”. Ao mesmo tempo, o setor público era apresentado como um antro de
corrupção e incapaz de atender a população com qualidade. Foi no ano de 1988 que
os trabalhos constitucionais terminaram, no qual Fernando Collor lançou sua
candidatura à presidência com seu slogan “caçador de marajás”.
O objetivo de toda essa articulação da direita por meio do Centrão e da
influência de organismos e instituições representativas das elites era minar os direitos
trabalhistas ao máximo, vistos como custos ao empresariado, assim como, garantir em
diversos setores a participação do capital estrangeiro. As forças de esquerda, junto a
centrais sindicais e movimentos sociais, defendiam os direitos dos trabalhadores e
uma proteção, quando não monopólio, a empresas públicas e nacionais frente à
concorrência estrangeira.
A ação do Centrão, portanto, indicava não só uma perpetuação do caráter
dependente da economia brasileira e os interesses patronais contra os trabalhadores.
Ela expressava, em vários momentos, a adequação da estrutura socioeconômica
brasileira ao novo momento do capitalismo internacional, atualizando a dependência e
a superexploração do trabalho aos moldes da globalização neoliberal.
Os trabalhos da Constituinte desenrolam-se então como uma intensa luta de
classes, conectada com as mudanças estruturais que ocorriam na economia brasileira e
mundial. O Centrão se colocava contra medidas como o salário-mínimo, a licença
maternidade e licença paternidade, o adicional de férias, entre outras. Conseguiram
embarrerar a estabilidade no emprego. Conseguiram permitir também a participação
do capital estrangeiro em várias áreas de interesse nacional, como a mineração
(DREIFUSS, 1989). Posições que revelam a defesa da flexibilização de direitos
trabalhistas e a participação cada vez maior do capital estrangeiro em setores
econômicos antes resguardados à ação estatal.
Mesmo com ampla maioria o Centrão não conseguiu emplacar toda sua
agenda conservadora e o culpado por tal intento foi o próprio caráter fisiológico de
boa parte de suas forças constituintes. A esquerda, apesar de minoritária, era mais
coesa e se posicionava em bloco. O Centrão possuía uma série de políticos que
vislumbravam serem candidatos nas eleições seguintes e não queriam ficar

  17 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
reconhecidos como aqueles que votaram contra os direitos dos trabalhadores.
Algumas empresas nacionais, como as empreiteiras, viam com receio o avanço do
capital estrangeiro em algumas áreas e também possuíam seus defensores dentro do
corpo político, fazendo a atuação do Centrão vacilar em certos momentos. Isso
assegurou muitas vitórias trabalhistas, além de incentivos ao desenvolvimento
tecnológico nacional em alguns setores, como a informática.6
Dessa forma, o embate de classes dentro da Constituinte foi grande, com
vitórias e derrotas em ambos os lados. A disputa na Assembleia apenas reverberava o
retrato do Brasil daquele momento entre uma elite que preparava uma nova fase do
capitalismo dependente brasileiro e um agrupamento de forças que representava o
anseio dos trabalhadores por uma renovação social total. Essa disputa teria seu palco
final nas eleições presidenciais de 1989, a primeira direta em quase trinta anos no
país.

d) A eleição presidencial de 1989

A elite brasileira ainda se decidia por um candidato presidencial após a


Constituinte. O PMDB não era mais uma opção naquele contexto. A jogada eleitoral
do Plano Cruzado em 1986 teve uma recepção pública negativa, assim como as
articulações antipopulares do Centrão durante a Assembleia Constituinte.
A resposta eleitoral a esse comportamento fisiológico do PMDB viria rápida.
Ainda em 1988 o partido vê a saída de importantes lideranças como Mario Covas,
Fernando Henrique Cardoso e José Serra, que fundariam o PSDB (Partido da Social-
Democracia Brasileira). Nas eleições municipais do mesmo ano, apesar de ainda
ganhar o maior número de municípios (1606), o PMDB encolheu drasticamente nas
capitais – de 19 para apenas 4 prefeituras. Nas eleições presidenciais de 1989 sua
derrota seria acachapante, quando seu candidato, Ulysses Guimarães, fez somente
4,43% dos votos. O partido passaria décadas sem ter candidato próprio.

6
Boa parte dessas vitórias da esquerda na Constituinte seriam desmontadas no governo de Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002).

  18 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
Boa parte do empresariado, inclusive a poderosa FIESP (Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo), percebia um PMDB vacilante, e incapaz de
realizar as reformas desejadas para o capital. Com o documento “Livre Para Crescer.
Propostas para um Brasil Moderno”, a Federação demonstrava claramente a posição
de boa parte da burguesia brasileira, ao defender, no final da década de 1980, a
implementação de políticas neoliberais. Criticava que o “déficit público ficou muito
agravado com a introdução das inovações criadas pela Constituição de 1988”,
clamando pela “redução das concessões constitucionais que oneram as contas
públicas”, numa clara crítica aos direitos trabalhistas conquistados na Assembleia
Constituinte. Consistiam também em posições da burguesia brasileira nesse momento
a defesa da independência do Banco Central, os critérios de funcionamento das
empresas públicas através do mercado, “como o são para qualquer empresa privada”,
e o fim do que chamavam de “discriminação” aos produtos importados, desde que
estadunidenses e europeus, como forma de liberalização do comércio (FEDERAÇÃO
DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DE SÃO PAULO, 1990. P. 292-323).
A direita precisava de um nome para a eleição de 1989 capaz de seduzir o
eleitorado mais pobre, castigado com o pauperismo e o subconsumo, e afastá-lo das
candidaturas do PT e PDT. Nas eleições municipais de 1988 essas duas siglas
venceram nas duas principais capitais do país, São Paulo (PT com Luiz Erundina) e
Rio de Janeiro (PDT com Marcelo Alencar). As pesquisas de intenção de votos
apresentavam o pedetista Brizola na liderança e o petista Lula seguindo de perto, o
que representava um cenário de total derrota para a direita liberal, que não conseguia
emplacar um candidato.
Fernando Collor de Melo não foi o candidato inicial da elite brasileira. Sua
escolha foi resultado de um processo de “fabricação” de um candidato, no qual outros
nomes foram sendo eliminados pelo caminho. Marco Maciel, Orestes Quércia,
Aureliano Chaves e Afif Domingos, entre outros, foram colocados de lado, assim
como alguns que chegaram a sair candidatos, como Ulysses Guimarães (PMDB) e
Mario Covas (PSDB). Os motivos variavam, desde a não confiança em alguns
candidatos devido sua participação na Constituinte (caso de Covas, que votou junto à

  19 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
esquerda em diversas ocasiões), até o fato do repúdio nas urnas de boa parte dos
pertencentes ao Centro Democrático durante os trabalhos de formulação da nova carta
magna. Boa parte dessas figuras não cumpria os requisitos para ser o “novo” que a
direita precisava para aquele momento político. Talvez Quércia se enquadrasse no
mesmo perfil de Collor. Mas o político paulista foi barrado dentro do PMDB pela
ambição pessoal de Ulysses Guimarães em ser presidente (ambição que não seria
satisfeita). Afif Domingues também poderia ser uma saída para o empresariado, mas
foi avaliado como sem penetração popular. (DREIFUSS, 1989)
Collor construiria sua retórica não só sobre o discurso de levar o Brasil para a
modernidade, em consonância com a posição de classe apresentada pela FIESP, mas
também sobre o signo de oposição. O campo de direita aliado à sua candidatura,
principalmente por meio dos meios de comunicação, capitaliza a ideia de mudança
radical, de rompimento de anos de inflação e miséria e dos políticos tradicionais da
Ditadura. Era com esse sentimento que a população aguardava a eleição presidencial
de 1989, a primeira em quase trinta anos.
Em um trabalho de marketing midiático, Collor foi fabricado como um
contestador do sistema, pegando vácuo no sentimento de renovação. A classe
dominante lançava sua candidatura para realizar as mudanças econômicas necessárias
e atualizar o caráter dependente do capitalismo brasileiro. Para reforçar sua imagem
de oposição e contrário à “política tradicional”, abandonou o PMDB durante seu
mandato como governador de Alagoas e filiou-se a um partido nanico, o PRN
(Partido da Reconstrução Nacional), apenas para se candidatar à presidência.
Nos seus discursos e comícios, usou o genérico termo da corrupção para atacar
a política estatal. Dizia que seria o “caçador de marajás”, em alusão a funcionários
públicos que enriqueciam com dinheiro público sem trabalhar. Nesse discurso já se
encontra a retórica neoliberal, em apresentar o estatal/público como sinônimo de
ineficaz e corrupto, enquanto a iniciativa privada seria exemplo de lisura e bom
funcionamento. Collor não seria um político tradicional, porque esses seriam “todos
iguais”, numa clara tentativa de se mostrar diferente de todos os demais candidatos.

  20 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
Contribuiu para uma derrota da esquerda o fato de PT e PDT não terem
formulado uma chapa conjunta com seus nomes mais fortes, respectivamente, Lula e
Brizola. Tanto PT, quanto PDT, não se colocavam como partidos revolucionários,
nem defendiam que, caso seus candidatos fossem eleitos presidente, este seria o
primeiro passo para a instalação do socialismo no Brasil. Certo é que, tanto Lula
quanto Brizola, significava naquele momento a ruptura com o controle político por
parte da classe dominante e o real significado que o povo esperava da Transição: uma
modificação radical do pauperismo e do estado de penúria que vivia a maior parte da
população.
As propostas tanto do PT, como do PDT, passavam por pontos que
desagradavam claramente o empresariado, como a distribuição de renda, os serviços
públicos, a reforma agrária, a participação do Estado na economia, o controle da
remassa de lucros, dos bancos e principais recursos econômicos do país. No caso do
PDT, havia um diferencial importante que consistia na sua radical posição anti-
imperialista, atacando ferozmente o pagamento da dívida externa, as multinacionais,
os organismos internacionais, como o FMI, e o governo estadunidense. Entre as
promessas de Brizola durante a campanha estava, caso eleito, “fechar a Rede Globo
no dia seguinte”.
Essas propostas permitiriam um empoderamento político dos trabalhadores
organizados e representariam um forte golpe contra as elites nacionais e
internacionais. Portanto, em caso de vitória de Brizola ou Lula, era clara a situação de
revés para a classe dominante, a qual estaria num terreno muito incerto, já que as
forças populares seriam colocadas em posição mais vantajosa na luta pelo poder.
O projeto presidencial do PDT e do PT era um projeto de transição real para
uma democracia no sentido mais amplo, que abarcava não só direitos civis
constitucionais, mas também justiça social. Suas propostas objetivavam a
readequação da economia para as necessidades das massas, a busca pela soberania e
autonomia do país, uma maior proteção trabalhista contra as ambições do grande
capital e a participação política dos trabalhadores de forma efetiva. Contra tudo isso,
se formava um bloco de forças conservadoras ao redor da candidatura Collor.

  21 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
A propaganda midiática foi primordial para a vitória de Collor. Primeiro, as
mídias monopolizadas, principalmente a Rede Globo, criaram a imagem do candidato
como um modelo de sucesso individualista. Depois, trataram de dar forma ao discurso
da austeridade fiscal, da falência do Estado, do falso moralismo contra a corrupção. O
combate às forças de esquerda também foi realizado através do monopólio midiático.
Repetidas vezes eram veiculadas cenas da queda do Muro de Berlim (ocorrida
também em 1989) para associar Lula e Brizola com uma ideologia supostamente
falida. Collor também repetia o discurso do “pacto social”, ou seja, a posição
empresarial de que todas as classes sociais deveriam se sacrificar num momento de
crise profunda como aquele.
A eleição de 1989, por meio de projetos políticos tão distintos e antagônicos
representados pelas principais candidaturas, configurou-se dessa maneira como mais
uma aguda luta de classes no período da Transição, tal como tinham sido o embate
Diretas Já x Colégio Eleitoral e os trabalhos da Constituinte. Além disso, a eleição
presidencial era a evidência de que o país passaria por uma reforma estrutural
profunda. O caráter dessa reforma também era diverso de acordo com o lado da
disputa que saísse vitorioso: o projeto popular, com duas candidaturas separadas,
Brizola e Lula; ou o projeto de modernização reflexa do capitalismo dependente,
capitaneado por Fernando Collor de Mello.
Graças ao trabalho midiático, Collor ficou em primeiro lugar no primeiro
turno com 28,52% dos votos. Lula e Brizola brigaram voto a voto pelo segundo lugar.
No fim, Lula (16,08%) avançou ao segundo turno, com Brizola (15,45%) em terceiro.
Os demais resultados foram: Covas do PSDB com 10,78%, Maluf do PDS com
8,28%, Afif Domingos do PL com 4,53% e Ulysses Guimarães do PMDB com 4,43%
(GIANNOTTI, 2006, p. 268). As urnas mostraram um claro rechaço aos políticos
tradicionais e a necessidade de mudança em relação à situação socioeconômica do
país.
O segundo turno colocaria frente a frente um empresário e um líder sindical.
Numa rara cena, ainda mais se tratando de um país periférico, a luta eleitoral
evidenciou a luta de classes e dois projetos antagônicos de país. Lula significava a

  22 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
participação política das massas num processo de desenvolvimento com referência no
social. Enquanto isso, Collor era o rosto do individualismo burguês, que apresentava
“modernização” como sinônimo de consumismo e acesso aos padrões de vida das
elites do Primeiro Mundo, tendo como método para isso, a adoção de privatizações e
flexibilizações nos moldes neoliberais.
Na semana final antes do segundo turno, a Rede Globo, maior cabo eleitoral
de Collor, promoveu um debate entre os dois candidatos. Esse debate foi editado de
modo a mostrar eloquentes respostas de Collor e somente os momentos em que Lula
balbuciou ou não se saiu tão bem em uma questão. Essa versão editada do debate foi
repetida a exaustão nos dias anteriores à votação, assim como cenas da queda do
Muro de Berlim. Era clara a tentativa de mostrar Lula como alguém despreparado
para ser presidente, principalmente por uma estética preconceituosa de classe, já que
“não sabia falar direito” e não “tinha diploma”.7
Collor vence as eleições no segundo turno com 53,03% contra 46,96% de
Lula. O povo brasileiro foi enganado, não por um candidato, mas sim, por uma peça
de publicidade, um personagem criado pela grande mídia, em especial a Rede Globo
de televisão. Sua vida de presidente seria curta, sofrendo um impedimento em 1992,
com forte mobilização popular. Por ironia, o estopim para sua derrocada foram
justamente denúncias de casos de corrupção e favorecimento, o que Collor jurou
combater durante a campanha eleitoral.
A vitória de Collor significou o desfecho de uma articulação de classe do
capital desde o momento que se configurou a insustentabilidade do regime militar. A
luta na Transição contra uma vitória das ruas, com a campanha das Diretas Já, que foi
sufocada pelo Colégio Eleitoral; os embates de classe durante os trabalhos da
Assembleia Nacional Constituinte, principalmente em relação aos direitos trabalhistas
e a participação do capital estrangeiro na economia brasileira; culminando com a
eleição de Collor, derrotando duas claras opções de esquerda (Lula e Brizola, que

7
Décadas depois a Globo confessaria que editou o debate de forma deliberada para favorecer Collor. A
confissão foi realizada por um de seus mais famosos produtores, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho,
o Boni. Também houve uma confissão da empresa nos programas especiais de 50 anos do canal de
televisão em 2015, com a desculpa de que em 1989, a Globo ainda estava “aprendendo com a
democracia como todo o país”. 

  23 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
apoiou o candidato petista no segundo turno). Todos esses movimentos podem ser
compreendidos como etapas de modificação do sistema político brasileiro, sem a
ameaça de radicalização do processo, ou a perda de controle das rédeas do país para
grupos que representavam os interesses da classe trabalhadora. O empresariado
nacional e estrangeiro travou lutas contra as forças populares para impedir sua
chegada ao poder, mas também, para readequar o capitalismo dependente brasileiro a
um novo momento do capitalismo internacional.
A vitória de Collor fecha o ciclo do investimento estrangeiro direto no
mercado interno e passa o Brasil para a nova fase da divisão internacional do trabalho,
o capitalismo globalizado. A super exploração do trabalho seria aprofundada com a
adoção da multifuncionalidade do trabalhador, o desemprego estrutural, a
terceirização, o crescimento da informalidade e a diminuição da participação
industrial na economia brasileira. O século XXI se aproximava e, de fato, o mundo
caminhava para o encurtamento de distâncias geográficas, mas também, para o
crescimento das distâncias socioeconômicas.

3 – Considerações finais

O processo de Transição no Brasil foi complexo e plural. Muitas opções


estavam disponíveis e forças políticas de matizes diversas tiveram participação ativa
na conjuntura. Se a Transição não foi realizada de forma violenta, isso não quer dizer
que foi isenta de disputas entre projetos bem diferentes.
A eleição de Tancredo Neves em 1985, de forma indireta pelo Colégio
Eleitoral, já se constituiu como um intricado jogo político. A Ditadura evitou ser
derrubada pela gigantesca mobilização popular da Campanha das Diretas Já, para
realizar uma transição mais suave, por meio de um pacto com um opositor liberal-
conservador que era Tancredo. Estava em jogo desde a garantia do não julgamento
dos militares pelos crimes cometidos durante o regime de exceção, passando pela
manutenção de uma política econômica excludente, e chegando a necessidade de não
permitir o crescimento de siglas de esquerda, como o PT e o PDT.

  24 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
Dessa maneira, afastou-se a população do papel de protagonista da Transição,
para que o processo fosse decidido pelas negociações escusas dos bastidores e
gabinetes. Boa parte dos políticos civis partidários da Ditadura e agrupados naquele
momento no PDS (sucessor da antiga ARENA) abandonaram o barco governista às
vésperas do Colégio Eleitoral, para formar um novo partido, o PFL (atual
Democratas), enquanto uma de suas principais lideranças, José Sarney, rumou para o
PMDB e se tornou vice na chapa de Tancredo Neves. Essa manobra assegurou a
maioria do Colégio Eleitoral para Tancredo e pois fim a Ditadura.
Sarney, ex-presidente do partido da Ditadura e recém-convertido à
“democrata”, viu a presidência cair em seu colo com o falecimento de Tancredo antes
da posse. Assim a Transição acabou sendo capitaneada por um antigo prócer da
Ditadura. Seu governo (1985-1989) ficou marcado pela continuidade da crise
inflacionária, da extrema pobreza que permanecia castigando boa parte dos brasileiros
e brasileiras, da utilização das Forças Armadas para conter movimentos grevistas
reivindicatórios da classe trabalhadora, assim como, planos econômicos com víeis
eleitoreiros.
A maior dessas empreitadas foi o Plano Cruzado que assegurou a seu partido,
o PMDB, uma grande vitória nas eleições estaduais de 1986 e na escolha dos
congressistas da Assembleia Constituinte. Na mesma proporção, que seu posterior
fracasso e revelação da jogada eleitoral condenariam o partido a sucessivas derrotas
no futuro.
A Assembleia Nacional Constituinte reunida durante o governo Sarney
formulou uma nova carta magna para o país. Seu conteúdo de garantias civis e
democráticas foi um avanço. Seus embates como vimos, se trataram de um verdadeiro
conflito de classes por meio de propostas irreconciliáveis entre capital e trabalho,
como o caso dos direitos trabalhistas, e sob o signo da dependência, como nos debates
sobre a participação do capital estrangeiro em determinados setores da economia.
Esse conflito se arrastou até as eleições presidenciais de 1989, onde projetos de nação
distintos se enfrentaram, numa cena não usual nos nossos dias: um segundo turno que
materializou a luta de classes em viés eleitoral, ao colocar um membro da elite

  25 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
empresarial contra um líder sindical na disputa pelo posto mais importante da política
nacional.
O que esses acontecimentos que marcaram o período da Transição nos
colocam é a confrontação entre projetos distintos em um momento em que era
perceptível a necessidade de uma reestruturação socioeconômica do país. Essa
reestruturação estava ligada à conjuntura internacional, de ascensão do neoliberalismo
e da globalização, novos pilares de funcionamento do sistema capitalista
internacional. E também à conjuntura interna, onde o modelo de desenvolvimento da
Ditadura chegou à exaustão com a Crise da Dívida. Boa parte da população brasileira
almejava o novo regime político como caminho para uma grande mudança no
conjunto da sociedade, dando resposta aos graves indicadores sociais do Brasil na
época.
O projeto das elites saiu vitorioso, aparado por um potente sistema midiático
monopolizado. Esse projeto, iniciado no governo Collor (1990-1992) e seu sucessor
pós-impeachment, Itamar Franco (1992-1994), aprofundado durante o governo de
Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e com ecos até nos governos do PT no
século XXI (já diferenciado e com algum contorno social, devido à crise de
hegemonia que o pensamento neoliberal vive desde a virada do século) tem como
pilar a readequação da economia brasileira dependente ao capitalismo globalizado.
As políticas neoliberais vêm se manifestando no Brasil das últimas três
décadas pelo Fenômeno RDT: reprimarização, desindustrialização e
transnacionalização. Boa parte do aparato público brasileiro foi privatizado, as leis
trabalhistas flexibilizadas e aumentou o número de profissionais terceirizados. Ao
mesmo tempo, houve um encolhimento do setor industrial e um agigantamento do
agronegócio, num processo de reprimarização da economia, que responde hoje por
mais da metade dos indicadores de exportações brasileiras. Boa parte desse e de
outros setores, está na mão de empresas estrangeiras de influência global. Metade do
PIB brasileiro é deslocado para o pagamento de juros e amortizações da dívida
pública, revelando uma grande fonte de lucros para o capital financeiro e especulativo
internacional.

  26 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
É inegável que a Nova República se apresenta como um grande avanço em
relação ao período ditatorial, onde nenhum tipo de movimentação política popular era
permitido. Nossa atual constituição garante direitos civis, Justiça e participação
política a todos os cidadãos. Além disso, os principais cargos da República são
decididos em eleições periódicas e multipartidárias. Tudo isso se conjuga como a
visão liberal de regime democrático na atualidade.
Contudo, a realidade subdesenvolvida do Brasil e a herança de séculos de
violência e repressão contra a maioria do seu povo ainda pesam. Soma-se ao fato que
até o fim do século XX, os governos da Nova República foram incapazes de diminuir
a miséria absoluta. Muito pelo contrário, a situação social brasileira continuou
degradante durante a década de 1990 e piorou, principalmente em relação ao
desemprego, com a adoção das políticas neoliberais e as sucessivas crises enfrentadas
pela economia brasileira durante o governo Fernando Henrique Cardoso devido à
vulnerabilidade de nosso país no mundo das finanças internacionais.
Mesmo com as melhorias sociais alcançadas durante os governos Lula (2003-
2010) e Dilma (2011-...), nossa democracia continua truncada. Os direitos civis são
constantemente violados, muitas vezes pelo próprio Estado, por meio da polícia,
Justiça e outros órgãos. Percebemos que os direitos de um indivíduo em nossa
sociedade são mais ou menos respeitados de acordo com questões classistas e raciais.
Quanto mais rico e branco uma pessoa é, mas direito a ser tratada como cidadão ela
possui. Caso contrário, o indivíduo é vista como um inimigo em potencial da
sociedade.
Questões como o financiamento empresarial de campanhas impedem um
aprofundamento democrático e permitem a vitória de forças políticas somente se
financiadas por representantes do grande capital brasileiro e estrangeiro. A chamada
“crise de representatividade”, tão discutida nas academias e na imprensa atual, e
escancarada no Brasil com as Jornadas de Junho de 2013, trata-se de uma crise da
“democracia” liberal como um todo.
Movimentos em todo mundo vem nos últimos anos questionando os limites
desse sistema, como o Occupy Wall Street nos Estados Unidos, ou os Indignados na

  27 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
Espanha, além de governos progressistas na América Latina, como Venezuela e
Bolívia, que desenvolvem mecanismos de democracia representativa junto à
democracia direita. Nosso tempo histórico presencia um início de contestação à
concentração de poderes e riquezas, mas que parece não ter ainda assumido uma
forma organizativa clara.
Nesse ponto, os significados da Nova República nesses seus 30 anos, como
um processo de democratização e justiça social, não se concretizaram por completo,
encontrando resistências na estrutura socioeconômica brasileira, na conjuntura
histórica e na ação de grupos privilegiados do Brasil e do exterior. Grandes desafios
para uma verdadeira Nova República estão colocados, como a dependência da
economia brasileira, baseada cada vez mais na reprimarização, desindustrialização e
transnacionalização, e a falta de representatividade política, além da seletividade
classista e racista dos direitos sociais no Brasil.
Todas as forças principais da Nova República nessas três décadas (PMDB,
PSDB e PT) já passaram pelo governo federal e foram incapazes (ou se negaram por
posicionamento político) a realizarem as reformas necessárias para o povo brasileiro
superar esses grandes entraves para seu desenvolvimento justo e soberano.
Cabe às novas gerações superarem os limites da Nova República. Formularem
novas forças políticas capazes de oxigenar o cenário político nacional e colocar em
prática um projeto popular que realmente solucione os problemas civilizacionais do
Brasil e que se arrastam desde a sua formação enquanto povo, insistindo em nos
assolar com sua miséria, violência e servilismo internacional.

Bibliografia

CARCANHOLO, Marcelo Dias. Desafios e Perspectivas para a América Latina do


Século XXI. IN: Argumentum. Vitória (ES), v.6, n.2, p.6-25, jul./dez. 2014.

COUTO, Ronaldo Costa. História indiscreta da Ditadura e da Abertura: Brasil:


1964-1985. Rio de Janeiro: Record, 1998.

DAVIS, Mike. Planeta favela. Tradução de Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo,
2006.

  28 
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REDEMOCRATIZAÇÕES E  Ano 5, n° 7 | 2015, vol.1   
TRANSIÇÕES POLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO]  ISSN [2236‐4846] 
 
DREIFUSS, René Armand. O jogo da direita. Petrópolis: Vozes, 1989.

FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DE SÃO PAULO. Livre para


crescer. Propostas para um Brasil moderno. São Paulo: Cultura Editores Associados,
1990.

FERNANDES, Florestan. Nova República? Rio de Janeiro: Zahar, 1986

GIANNOTTI, Vito. História das lutas dos trabalhadores no Brasil. 3.ed. rev.amp.
Rio de Janeiro: Mauad X, 2009.

MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. In: MARINI, Ruy Mauro. Dialética
da dependência / uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrópolis, RJ: Vozes;
Buenos Aires: CLACSO, 2000.

SAAB, Paulo. A eleição do cruzado. São Paulo: Global Editora, 1987.

SANTOS, Roberto Santana. Uma análise estrutural do fim da Ditadura. IN: História e
luta de classes. Ano 10. Nº 17. Mar. 2014. P. 53-57.

______. Coronéis e empresários. Da esperança da transição democrática à


catástrofe neoliberal (1985-2002). Rio de Janeiro: Multifoco, 2014.

SANTOS, Theotonio dos. Do Terror à Esperança. Auge e declínio do neoliberalismo.


Aparecida: Ideias & letras, 2004.

______. A evolução histórica do Brasil: da colônia à crise da “Nova República”.


Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

Internet

IPEA: < www.ipeadata.gov.br >

PORTAL BRASIL. Inflação. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/economia-e-


emprego/2012/04/inflacao>. Acesso em 25 de dezembro de 2013.

  29 

Você também pode gostar