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DESCRIÇÃO

Estudar a dinâmica do capitalismo, suas crises e reinvenções nas últimas décadas dos séculos
XX e primeiras décadas do
XXI.

PROPÓSITO
Compreender os fenômenos do capitalismo contemporâneo, parte fundamental na dinâmica
mundial, é importante para
profissionais que precisam analisar o mundo contemporâneo.

OBJETIVOS

MÓDULO 1

Descrever a dinâmica do modelo neoliberal de acumulação capitalista


MÓDULO 2

Examinar o fortalecimento dos projetos políticos que, no início do século XXI, questionaram o
modelo neoliberal do
capitalismo internacional

MÓDULO 3

Identificar o fortalecimento de populismos de extrema-direita

INTRODUÇÃO
O capitalismo se consolidou como realidade histórica num longo e complexo processo, que
teve início no século XIV e se
estendeu até o final do século XVIII. Nesse período, várias
experiências colaboraram para o amadurecimento, lento e não
linear, da ordem capitalista: a
crise do feudalismo, a formação do Estado moderno, as reformas religiosas, a revolução
científica, o descobrimento da América e as revoluções burguesas, especialmente a Revolução
Francesa e a Revolução
Industrial. No início do século XIX, o capitalismo já era realidade
estruturada e não havia região no mundo imune à sua
influência. Mas seria equivocado supor
que a afirmação do capitalismo como modo de vida hegemônico significa que o
sistema não foi
desestabilizado por crises internas e por questionamentos daqueles que tentaram superá-lo,
propondo
ordem social alternativa.

Ainda no século XIX, podemos destacar as revoluções sociais de 1848 e de 1871 na França,
que trouxeram ao primeiro plano
de suas reivindicações a superação do capitalismo. A crise
geral de 1873 mostrou como a própria dinâmica interna do
capitalismo era capaz de abalar o
sistema. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foi, em parte, resultado das
contradições
internas do capitalismo. Ao mesmo tempo, acontecia a Revolução Russa, que deu origem à
União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas, com seu projeto de superação do capitalismo
através da implantação do comunismo. Poderíamos
falar, ainda, da crise geral do capitalismo
da década de 1929, da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e da Guerra Fria,
na segunda
metade do século XX.
Em 1973, o capitalismo foi balançado por mais uma crise geral. A história do sistema
econômico, portanto, é a história
de suas mais diversas experiências críticas. É uma história
marcada mais pela instabilidade do que pela estabilidade.
Aqui, neste conteúdo, estamos
interessados em estudar os capítulos mais recentes dessa história. Neste nosso século XXI,
novamente a crise do capitalismo é realidade incontornável, seja no aspecto político, com a
emergência de populismos de
extrema-direita que ameaçam o modelo da democracia liberal
burguesa, seja com a pandemia da covid-19, que colocou o
ocidente capitalista de joelhos.

Nossa reflexão está dividida em quatro momentos: primeiramente, tratamos do neoliberalismo,


modelo de acumulação
capitalista hegemônico no final do século XX e que se tornou alvo de
questionamentos ao longo das duas primeiras décadas
do século XXI. Em seguida, estudamos
os dois governos do democrata Barack Obama nos Estados Unidos (2009-2017),
especialmente o programa “ Obama Care”, que, em diversos aspectos, tensionou o modelo
neoliberal. Depois, nos debruçamos sobre os governos de centro-esquerda que ascenderam
ao poder na América Latina na primeira
década do século XXI, negando
as premissas
neoliberais. Ainda aqui, abordamos o desenvolvimentismo chinês, o grande adversário do
neoliberalismo
ocidental no cenário mundial. Nosso próximo passo é analisar a dinâmica
ideológica dos populismos de extrema-direita,
que se fortaleceram em meio à crise social
provocada pelo neoliberalismo e colocaram em risco o modelo da democracia
liberal burguesa
ao longo da década de 2010. Por último, examinamos os efeitos da pandemia da covid-19 para
o sistema
capitalista internacional.

OBAMA CARE

Programa de saúde governamental do governo Obama, que foi muito criticado pela oposição.

MÓDULO 1
 Descrever a dinâmica do modelo neoliberal de acumulação
capitalista
CONHECENDO O NEOLIBERALISMO

Assista ao vídeo abaixo com o professor Rodrigo Perez apresentando o papel do


neoliberalismo.

NEOLIBERALISMO: HISTÓRIA E
CONCEITOS FUNDAMENTAIS

Imagem: James Bourne/Wikimedia Commons / CC BY-SA 4.0


 Manifestação contrária ao Imposto Comunitário na Trafalgar Square, em 31 de março de
1990.

No final da década de 1980, alguns governos de importantes países centrais, como Estados
Unidos e Inglaterra, começaram
a colocar em prática uma modalidade de gestão político-
administrativa que ficaria conhecida como “neoliberalismo”.

O presidente norte-americano Ronald Reagan (1911-2004) e a primeira-ministra britânica


Margaret Thatcher (1925-2013)
foram os primeiros líderes a seguirem o receituário neoliberal,
caracterizado pelo corte abrupto nos gastos do Estado, o
que significa precarizar (Ofertar o
básico)
serviços públicos e reduzir o arco de direitos sociais garantidos pelo governo.
Em questão
está o debate sobre qual seria a função do Estado, que, na lógica liberal, deve
ficar restrita à garantia da segurança
interna e da soberania nacional, intervindo o
mínimo possível na economia, que deveria funcionar de acordo com a “lei do
livre
mercado”.

Assim, a relação capital versus trabalho, entre patrões e empregados, aconteceria sem
nenhuma mediação do poder público,
com o Estado se eximindo da responsabilidade de
garantir proteção social aos trabalhadores e aos pobres em geral.
Margaret Thatcher e Ronald
Reagan chegaram ao comando político de seus países comprometidos com a agenda
neoliberal, o
que fez com que seus governos tenham sido marcados por muitas tensões e
protestos promovidos pelos trabalhadores e por
outros setores da sociedade civil organizada.
Thatcher já era figura relevante na cena política inglesa desde meados da
década de 1970,
quando liderava a oposição conservadora contra o governo trabalhista comandado por James
Callaghan
(1912-2005).

Imagem: Autor desconhecido /Wikimedia Commons / Domínio público


 O presidente Ronald Reagan com a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, em
Camp David, em 1986.

Em síntese, o governo trabalhista estava fundado no projeto da social-democracia, que


defende o Estado como centro
planejador do desenvolvimento econômico, da promoção da
justiça social e da ampliação dos direitos sociais, como
alimentação, moradia e proteção
laboral aos trabalhadores. Todos esses direitos estariam garantidos através daquilo que
alguns
economistas chamam de taxação progressiva da sociedade.

OU SEJA, AS PESSOAS PAGARIAM IMPOSTOS


DE ACORDO COM SUA RIQUEZA. OS RICOS
PAGARIAM MAIS E FINANCIARIAM OS DIREITOS
SOCIAIS DOS MAIS POBRES, QUE PAGARIAM
MENOS IMPOSTOS. ASSIM, O ESTADO
FUNCIONARIA COMO GARANTIDOR DA
EQUIDADE SOCIAL.
Como podemos perceber, trata-se de uma concepção de Estado completamente diferente
daquela que caracteriza o pensamento
neoliberal. Margaret Thatcher se fortaleceu como
liderança política questionando esse uso do Estado, argumentando que a
taxa tributária
necessária para garantir a manutenção da social-democracia seria demasiadamente alta e
oneraria
equivocadamente a sociedade civil, sufocando a iniciativa privada e o
empreendedorismo individual. Assumindo o comando
político da Inglaterra em maio de 1979,
Thatcher fundou seu governo na ideia de desregulamentação: alterou a legislação
trabalhista, o que provocou muitos protestos organizados pelas principais centrais
sindicais do país; privatizou
empresas públicas e diminuiu impostos. A popularidade que
Thatcher havia acumulado nos anos de oposição diluiu-se
rapidamente, a ponto de ela ter sido
alvo, em 1984, de uma tentativa de assassinato.

TENTATIVA DE ASSASSINATO

A tentativa ocorreu em um atentado terrorista reivindicado pelo IRA (Exército Republicano


Irlandês), com uma explosão no
Grand Hotel Brighton, onde ocorria uma reunião do
partido conservador.

Imagem: D4444n /Wikimedia Commons / Domínio Público


 Grand Hotel após a explosão de atentado ao assassinato de Thatcher.

Imagem: Autor desconhecido /Wikimedia Commons / Domínio Público


 Ronald Reagan.

Ronald Reagan foi eleito o 40° Presidente dos EUA em novembro de 1980, após derrotar o
candidato democrata Jimmy Carter,
que, na época, era o presidente em exercício, tentando
reeleição. A vitória de Reagan foi esmagadora e traduziu um
desejo de mudança compartilhado
pela sociedade norte-americana.

A situação, em parte, era semelhante à inglesa. Na década de 1930, em virtude da crise geral
do capitalismo, os Estados
Unidos, sob a liderança do presidente Franklin Delano Roosevelt
(1882-1945), estabeleceram um tipo de governo que
podemos definir como sendo de matriz
social-democrata.

O Estado se tornou o principal investidor e, por meio de obras públicas, gerou milhares de
empregos, agindo também como
protetor social dos mais pobres, com forte legislação
trabalhista. Isso tudo, às custas e tributação progressiva da
sociedade civil, na qual os ricos
pagam mais impostos e os pobres são os principais receptores dos direitos sociais
garantidos
pelo Estado.

O plano de reestruturação econômica idealizado por Roosevelt, que ficou conhecido como
New Deal, impactou o mundo no
período entreguerras, demonstrando os limites práticos da
tese do livre mercado, fundamental para o repertório liberal a
partir do século XVIII, desde os
textos de Adam Smith (1723-1790) e David Ricardo (1772-1823). As guerras mundiais e o
colapso do sistema capitalista internacional mostraram que, em momentos de crise aguda,
somente o Estado é capaz de
promover movimentos anticíclicos e estimular a economia
quando os investidores privados estão assustados e pouco
dispostos a correrem riscos.
Segundo Pierre Dardot e Christian Laval, foi a “necessidade prática de intervenção do
governo
que pôs em crise o liberalismo dogmático, pautado numa ideia de desregulamentação que
nunca se consolidou na
prática” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 38).

NEW DEAL

O plano tinha uma relação com um modelo econômico baseado em um capitalismo


dirigido e intervencionista conhecido como
keynesianismo.

Foto: Shutterstock.com
 Sinais para a eleição de 1936 nas ruas de Hardwick, Vermont, EUA.

A cultura do New Deal foi fundamental para a superação da crise catastrófica que se abateu
sobre os EUA entre as décadas
de 1930 e 1950. Porém, a partir do final da década de 1960,
ganharam força os questionamentos ao modelo rooseveltiano do
Estado provedor. Como
demonstra Jürgen Habermas, as críticas à social-democracia, nos EUA, tiveram o resultado de
refundar a direita norte-americana, dando início àquilo que o autor chama de “A nova
obscuridade”. Além das críticas à
carga tributária necessária para a manutenção do
experimento social-democrata, ganhou forma, também, um tipo de crítica
cultural, que
explicava o comportamento considerado desregrado da juventude (movimento pelos direitos
civis da população
negra, movimento hippie, festival de Woodstock) pelas alegadas
comodidades que o “Estado assistencialista”
possibilitava. Isso teria dado origem a uma
geração preguiçosa, hedonista e pouco afeita ao trabalho.


SEGUNDO OS NEOLIBERAIS, A SITUAÇÃO DE
COLAPSO MORAL QUE ESTARIA SENDO VIVENCIADA
NOS EUA, NAS DÉCADAS DE 1960 E 1970, SE
EXPLICAVA PELA “INFLAÇÃO DE EXPECTATIVAS E
REINVINDICAÇÕES IMPULSIONADA PELA
CONCORRÊNCIA ENTRE OS PARTIDOS, PELAS
MÍDIAS DE MASSA, PELO PLURALISMO DE
ASSOCIAÇÕES ETC. ESSA PRESSÃO DAS
EXPECTATIVAS DOS CIDADÃOS “EXPLODE” EM UMA
AMPLIAÇÃO DRÁSTICA DAS TAREFAS ESTATAIS. OS
INSTRUMENTOS DE CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO
SE SOBRECARREGAM COM ISSO. A
SOBRECARGA
LEVA TANTO MAIS ÀS PERDAS DE LEGITIMIDADE
QUANTO O ESPAÇO DE AÇÃO ESTATAL É
ESTRANGULADO POR BLOCOS DE PODER
PRÉ-
PARLAMENTARES, E QUANDO OS CIDADÃOS
RESPONSABILIZAM O GOVERNO PELAS PERDAS
ECONÔMICAS PERCEPTÍVEIS. ISSO É TANTO
MAIS
PERIGOSO QUANTO MAIS A LEALDADE DA
POPULAÇÃO DEPENDE DE COMPENSAÇÕES
MATERIAIS.

(HABERMAS, 2015, p. 67)

Foi nesse clima de acirrado conflito e intensas disputas entre concepções de Estado
diametralmente opostas que
aconteceram as eleições presidenciais de 1980. Todo o debate
eleitoral girou ao redor do legado do modelo rooseveltiano.
A vitória esmagadora de Reagan
decretou um novo momento na história dos EUA, caracterizado pela radicalização da
perseguição às esquerdas, pelo enfraquecimento dos sindicatos e pelo desmonte da legislação
destinada à proteção social.

Imagem: Casa Branca/Wikimedia Commons / Domínio Público


 Ronald Reagan dando seu discurso de aceitação da nomeação na Convenção Nacional
Republicana, em Detroit, no estado de Michigan, em 17 de julho de 1980.

Com todo custo social que tiveram, os governos de Thatcher e Reagan conseguiram diminuir
os gastos públicos e garantir
maior rendimento aos setores mais dinâmicos e poderosos do
capitalismo na época, transformando o modelo neoliberal de
gestão em padrão hegemônico.
A FORÇA DO NEOLIBERALISMO PARECIA
INABALÁVEL, TENDO SIDO COROADA PELO
CONSENSO DE WASHINGTON, REALIZADO EM
1989.

O “consenso”, como ficou conhecido, foi um fórum internacional comandado pelo Banco
Mundial, pelo Fundo Monetário
Internacional, o FMI, e pelo Departamento de Tesouro dos EUA
que definiram o receituário neoliberal como o único
tecnicamente correto para administrar as
economias nacionais. O encontro estabeleceu algumas “regras de ouro” para a boa
prática da
gestão econômica, como a desregulamentação dos gastos obrigatórios do Estado, a
privatização das empresas
públicas e diminuição da carga tributária.

O principal efeito ideológico do Consenso de Washington foi transformar aquilo que era uma
orientação ideológica em
obrigação técnica e, dessa forma, conseguir pautar o debate
econômico mundial.

 ATENÇÃO

A hegemonia neoliberal, no entanto, não duraria para sempre. O alvorecer do século XXI
trouxe diversos questionamentos
ao modelo neoliberal, impulsionando diferentes experiências
de crise, como estudaremos nas próximas seções. Por
enquanto, é importante dedicar mais
atenção ao próprio neoliberalismo, às suas transformações, tentando entender seu
lugar na
história do pensamento político/econômico liberal.

AGENDA POLÍTICA NEOLIBERAL


A agenda política e econômica do neoliberalismo consiste na radicalização de preceitos liberais
que vinham sendo
desenvolvidos desde o século XVIII. Na primeira geração do liberalismo
econômico, podemos situar:

Imagem: Thomas Phillips/Wikimedia Commons / Domínio Público

 David Ricardo.

David Ricardo (1772-1823)

Imagem: Autor desconhecido /Wikimedia Commons / Domínio Público

 Adam Smith.

Adam Smith (1723-1790)


Cada um a seu modo, ambos defenderam as ideias do Estado mínimo e do livre mercado, sem
desconsiderar o dilema do
combate à pobreza social, questão fundamental para o pensamento
econômico liberal.

PARA RICARDO E SMITH, A POBREZA SOCIAL


SE RESOLVERIA NATURALMENTE PELA
LÓGICA DA COMPLEMENTARIEDADE.

Ou seja, setores com excesso produtivo compensariam o deficit produtivo de outros setores,
naturalmente, em troca
impulsionada pelo livre fluxo da atividade econômica, sem interferência
do Estado, que somente atrapalharia o
processo. Havia, nesses autores e nas práticas políticas
que eles inspiraram, aquilo que podemos chamar de “utopia
liberal”, segundo a qual o
aprimoramento das liberdades individuais levaria à erradicação da pobreza social.

 ATENÇÃO

O dilema da pobreza social tornou-se ainda maior no século XIX, com o aprofundamento da
Revolução Industrial. Surgiram
grandes conglomerados urbanos em diversos países da
Europa, com trabalhadores amontoados em bairros proletários, com
acesso precário à água e
aos serviços sanitários. As doenças se espalhavam, assim como a violência.

Todos os grandes pensadores oitocentistas trouxeram a pobreza social para o primeiro plano
de suas reflexões. No final
do século XIX, o filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903)
promoveu algumas mudanças no pensamento econômico liberal,
especialmente no que se
refere à questão da pobreza social, tornando-se matriz daquilo que posteriormente seria
conhecido como neoliberalismo.

Tal como Ricardo e Smith, Spencer também defendia que a pobreza social seria naturalmente
extinta pelo livre mercado.
Porém, diferentemente dos seus antecessores, Spencer negava a
lógica da complementariedade produtiva e, evocando os
princípios do darwinismo, falava em
competição social.

Imagem: Autor desconhecido /Wikimedia Commons / Domínio Público


 Herbert Spencer

PARA SPENCER, A POBREZA DESAPARECERIA


COM O DESAPARECIMENTO DOS POBRES,
QUE, MENOS PREPARADOS PARA A DISPUTA
SOCIAL,
TENDERIAM A DESAPARECER, A
MORRER.

Para isso, o Estado não deveria intervir no processo, tampouco garantir amparo social aos
pobres. Na lógica spenceriana,
a pobreza social acabaria na medida em que os pobres
desaparecessem. Nas palavras do próprio Spencer no livro O
indivíduo contra o Estado ,
publicado pela primeira vez em 1884:


SENDO A AQUISIÇÃO DE UM BEM PARA O POVO O
TRAÇO EXTERNO VISÍVEL COMUM NAS MEDIDAS
LIBERAIS NOS TEMPOS ANTIGOS (E ESSE
BEM
CONSISTIA ESSENCIALMENTE NUMA DIMINUIÇÃO DA
COERÇÃO), RESULTOU QUE OS LIBERAIS VIRAM O
BEM DO POVO NÃO COMO UM
OBJETIVO QUE ERA
NECESSÁRIO ATINGIR DIRETAMENTE. E,
PROCURANDO ATINGI-LO DIRETAMENTE,
EMPREGARAM MÉTODOS INTRINSECAMENTE
CONTRÁRIOS AOS QUE HAVIAM SIDO EMPREGADOS
ORIGINALMENTE. (...) QUEREM LASTIMAR AS
MISÉRIAS DOS POBRES MERITÓRIOS, EM VEZ
DE
REPRESENTÁ-LAS – O QUE NA MAIORIA DOS CASOS
SERIA MAIS CORRETO – COMO AS MISÉRIAS DOS
POBRES DEMERITÓRIOS. EM MINHA
OPINIÃO, PODE-
SE CONSIDERAR QUE UM DITADO CUJA VERDADE É
ACEITA IGUALMENTE PELA CRENÇA COMUM E PELA
CRENÇA DA CIÊNCIA
GOZA DE UMA AUTORIDADE
INCONTESTÁVEL. POIS BEM! O MANDAMENTO: “SE
UMA PESSOA NÃO DESEJA TRABALHAR, NÃO DEVE
COMER” É
SIMPLESMENTE O ENUNCIADO CRISTÃO
DESSA LEI DA NATUREZA SOB IMPÉRIO DA QUAL A
VIDA ATINGIU SEU GRAU ATUAL, A LEI SEGUNDO
A
QUAL UMA CRIATURA QUE NÃO É SUFICIENTEMENTE
ENÉRGICA PARA SE BASTAR DEVE PERECER.

(SPENCER apud DARDOT; LAVAL, 2016, pp. 46-47)


O spencerianismo inspirou a formação de um grupo de economistas que ficaria conhecido
como Escola de Chicago, formada
por nomes como George Stigler (1911-1991) e Milton
Friedman (1912-2006). Em síntese, a Escola de Chicago defendia o
monetarismo,
confrontando o keynesianismo, que era o fundamento econômico da social-democracia. Outro
importante grupo
de economistas que sistematizou os valores do neoliberalismo foi a Escola
Austríaca, representada por nomes como Carl
Menger (1840-1921), Eugen von Böhm-Bawerk
(1851-1914) e Ludwig von Mises (1881-1973). As ideias de voluntariedade e
agência são
norteadoras do pensamento econômico desenvolvido pela Escola Austríaca. Para os autores,
as partes
individuais devem ser totalmente livres para negociar suas interações econômicas,
sem nenhum tipo de regulação por parte
do Estado. Para os economistas da Escola Austríaca,
o indivíduo é a célula fundamental da atividade econômica e, por
isso, não deve ser
constrangido por interesses externos a ele.

Nas palavras de Mises:

Imagem: Instituto Ludwig von Mises/Wikimedia Commons / CC BY-SA 3.0


 Ludwig von Mises

Como podemos perceber na citação, o Estado, para Mises, é força coercitiva, cuja única
função é constranger e limitar a
liberdade individual. Estamos aqui muito distantes da
concepção de Estado que foi desenvolvida por outros autores do
escopo liberal, como John
Locke (1632-1704), para quem o Estado tinha a função de garantir as liberdades individuais
através da aplicação da lei. Em Mises, o Estado é a ameaça à liberdade individual, e, quanto
menos Estado, mais
liberdade.
Foi esse modelo neoliberal que se tornou hegemônico no capitalismo internacional em fins do
século XX e, como veremos a
seguir, entrou em colapso já nos primeiros anos do século XXI.

VERIFICANDO O APRENDIZADO

1. O NEOLIBERALISMO SE CONSOLIDOU COMO MODELO HEGEMÔNICO


DE GESTÃO DO CAPITALISMO NO FINAL DA DÉCADA DE 1980.
ASSINALE A OPÇÃO QUE MELHOR DEFINE AS PRINCIPAIS
CARACTERÍSTICAS DO MODELO.

A) As principais características do neoliberalismo são: privatização das empresas públicas,


diminuição da taxa tributária, desregulamentação das relações de trabalho e concepção de
Estado mínimo.

B) As principais características do neoliberalismo são: fortalecimento das empresas públicas,


aumento da carga tributária para os mais ricos e concepção de Estado como provedor de
direitos sociais.

C) As principais características do neoliberalismo são: privatização das empresas públicas,


diminuição da taxa tributária, desregulamentação das relações de trabalho e concepção de
Estado como provedor de direitos sociais.

D) As principais características do neoliberalismo são: fortalecimento das empresas públicas,


aumento da carga tributária para os mais ricos e concepção de Estado mínimo.

E) As principais características do neoliberalismo são: fortalecimento das empresas públicas,


diminuição da carga tributária para os mais ricos e concepção de Estado mínimo.

2. MARGARET THATCHER E RONALD REAGAN SE FORTALECERAM


COMO LIDERANÇAS POLÍTICAS CONFRONTANDO DETERMINADA
CONCEPÇÃO DE ESTADO. ASSINALE A ALTERNATIVA QUE MELHOR
DEFINE ESSA CONCEPÇÃO.
A) Neoliberal, caracterizada pela ideia do Estado mínimo, segundo a qual o poder público não
tem compromisso com a justiça social e com a remediação da miséria.

B) Neoliberal, caracterizada pela ideia de que é dever do Estado coordenar e estimular o


desenvolvimento nacional, protegendo o trabalho e provendo direitos sociais aos mais pobres.

C) Social-democrata, caracterizada pela ideia do Estado mínimo, segundo a qual o poder


público não tem compromisso com a justiça social e com a remediação da miséria.

D) Social-democrata, caracterizada pela ideia de que é dever do Estado coordenar e estimular


o desenvolvimento nacional, protegendo o trabalho e provendo direitos sociais aos mais
pobres.

E) Comunista, caracterizada pela ideia de que o modelo ideal de sociedade é aquele no qual
inexistem as diferenças entre as classes sociais e o resultado da riqueza econômica seja
desfrutado por todos.

GABARITO

1. O neoliberalismo se consolidou como modelo hegemônico de gestão do capitalismo


no final da década de 1980. Assinale a opção que melhor define as principais
características do modelo.

A alternativa "A " está correta.

O neoliberalismo, ao tensionar com o modelo da social-democracia, propõe o encolhimento das


atribuições do Estado.

2. Margaret Thatcher e Ronald Reagan se fortaleceram como lideranças políticas


confrontando determinada concepção de Estado. Assinale a alternativa que melhor
define essa concepção.

A alternativa "D " está correta.

Thatcher e Reagan tensionaram o modelo social-democrata, questionando a alta carga


tributária necessária para a manutenção dessa concepção de Estado.
MÓDULO 2
 Examinar o fortalecimento dos projetos políticos que, no início do século
XXI,
questionaram o modelo neoliberal do capitalismo internacional

CRISES DO NEOLIBERALISMO

Assista ao vídeo abaixo com o professor Rodrigo Perez sobre a crise do modelo neoliberal no
mundo.

CRISE DO NEOLIBERALISMO NAS


AMÉRICAS

Imagem: Shutterstock.com

O século XXI nasceu sobre os impactos da lógica neoliberal acumulados ao longo da década
de 1990. Em regiões mais pobres
do mundo, sobretudo na América Latina, as diretrizes do
Consenso de Washington provocaram o empobrecimento geral das
sociedades civis, a
precarização de serviços públicos e o comprometimento da soberania nacional, com a
privatização em
empresas públicas estratégicas. Um dos principais efeitos do neoliberalismo se
deu na transformação na ideia de Estado
e, consequentemente, de função do poder público.

O ESTADO DEIXOU DE SER VISTO COMO O


RESPONSÁVEL PELA SEGURANÇA E PELO
BEM-ESTAR SOCIAL DA COMUNIDADE PARA
SER TRATADO
COMO UMA EMPRESA QUE
JAMAIS PODE DAR PREJUÍZO.

É o “Estado-firma”, nas palavras de Wendy Brown.


TANTO AS PESSOAS QUANTO OS ESTADOS SÃO
BASEADOS NO MODELO DA EMPRESA
CONTEMPORÂNEA, ESPERA-SE QUE TANTO AS
PESSOAS
QUANTO OS ESTADOS SE COMPORTEM DE
MODOS QUE MAXIMIZEM SEU VALOR CAPITAL NO
PRESENTE E AUMENTEM SEU VALOR FUTURO, E
TANTO
AS PESSOAS QUANTO OS ESTADOS O FAZEM
ATRAVÉS DE PRÁTICAS DE EMPREENDEDORISMO,
AUTOINVESTIMENTO E ATRAÇÃO DE
INVESTIDORES.

(BROWN, 2015, p. 22)

Como o autor deixa claro, a racionalidade liberal, ou a “nova razão do mundo”, para usarmos
as palavras de Pierre Dardot
e Christian Laval, afetou todas as relações humanas, tanto as
públicas como as privadas. É como se o neoliberalismo
tivesse inflado a lógica econômica a tal
ponto que todas as ações humanas passaram a ser vividas a partir das ideias de
lucro e
prejuízo. Até mesmo a temporalidade, como argumenta Arthur Ávilla, foi afetada pela lógica
neoliberal, com
horizontes de futuro sendo fechados e a experiência humana sendo encerrada
no eterno presente, no curto tempo da
performance, da eficiência e do consumo.

A mundialização dos preceitos neoliberais provocou desconforto e mal-estar em diversas


regiões do mundo, o que deu
origem ao surgimento de diversos questionamentos que se
fortaleceram já nos primeiros anos do século XXI. Podemos
começar pela eleição de governos
de centro-esquerda em vários países da América Latina, fortalecidos pela insatisfação
daquelas sociedades com o modelo de administração neoliberal. Em 2005, a empresa de
comunicação britânica BBC realizou
uma pesquisa e concluiu que ¾ dos 350 milhões de
pessoas que viviam na América Latina naquela altura estavam sendo
governadas por projetos
políticos de esquerda ou de centro-esquerda.

Clique no botão abaixo e confira a lista de presidentes de esquerda e seus períodos de


duração.

Clique no botão para ver as informações.


Objeto com interação.

VEJA AQUI!
Na época, o fenômeno ficou conhecido como “guinada latino-americana”. Abaixo, a lista desses
governos, com seus períodos
de duração:

Néstor Kirchner, na Argentina, entre 2003 e 2007.

Cristina Kirchner, na Argentina, entre 2007 e 2015.

Evo Morales, na Bolívia, entre 2006 e 2019.

Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil, entre 2003 e 2011.

Dilma Rousseff, no Brasil, entre 2011 e 2016.

Ricardo Lagos, no Chile, entre 2002 e 2006.

Michelle Bachelet, no Chile, entre 2006 e 2010 e entre 2014 e 2018.

Oscar Arias, na Costa Rica, entre 2006 e 2011.

Maurício Funes, em El Salvador, entre 2009 e 2014.

Salvador Sánchez Cerén, em Salvador, entre 2014 e 2019.

Rafael Correia, no Equador, entre 2007 e 2017.

Manuel Zelaya, em Honduras, entre 2006 e 2009.

Daniel Ortega, na Nicarágua, desde 2007.

Fernando Lugo, no Paraguai, de 2008 a 2012.

Tabaré Vázquez, no Uruguai, de 2005 a 2010 e depois de 2015 a 2020.

José Mujica, no Uruguai, de 2010 a 2015.

Hugo Chávez, na Venezuela, entre 1999 e 2013.


Nicolás Maduro, na Venezuela, desde 2013.

Foto: Testing/Shutterstock.com
 Bandeira de Hugo Chávez durante as eleições presidenciais de abril em Caracas,
Venezuela, 2018.

É claro que esses governos têm suas particularidades e qualquer tentativa de generalização é
analiticamente perigosa.
Entre esses governos, podemos encontrar desde projetos de
conciliação nacional que tentaram negociar com as forças do
capital, como foram os casos do
kirchnismo na Argentina e do petismo no Brasil. Encontramos, também, governos de
enfrentamento e de ruptura, como foi o de Chávez, na Venezuela, e de Morales, na Bolívia.

Mas, se é possível pensarmos em características comuns a todos esses governos, como a


rejeição ao neoliberalismo e
às diretrizes do Consenso de Washington e a recuperação da
função social do Estado, suas trajetórias políticas
também foram bastante diversas.

Alguns encontraram resistências e foram golpeados logo no início, como foram os casos de
Manuel Zelaya, em Honduras,
e de Hugo Chávez, na Venezuela, sendo que Chávez conseguiu
reverter a situação e se manter no poder. Também Evo
Morales foi golpeado, mas depois de
anos de governo. Fernando Lugo, no Paraguai, e Dilma Rousseff, no Brasil, foram
objeto de
processos de impeachment polêmicos e definidos como “golpe parlamentar” por parte da
bibliografia
especializada.
KIRCHNISMO

Nome atribuído ao casal que se revezou na presidência argentina – Cristina e Néstor.

Imagem: Sherlock_wijaya /Shutterstock.com

As resistências ao neoliberalismo nos primeiros anos do século XXI não ficaram restritas à
América Latina. Também
nas duas principais potências do mundo, nos EUA e na China,
aconteceram críticas e questionamentos ao
neoliberalismo.

Seria exagerado dizer que o governo do democrata Barack Obama, entre 2009 e 2017, rompeu
com os preceitos neoliberais.
Mas seria equivocado supor que sua administração seguiu os
mesmos passos dos governos republicanos anteriores, herdeiros
de Ronald Reagan, que
fizeram dos EUA o laboratório mundial das práticas neoliberais. Obama, ao menos dentro
dos EUA,
relativizou algumas dessas práticas, ainda que tenha as imposto a países mais
pobres.

Barack Obama iniciou seu governo sob grande euforia da sociedade civil norte-americana.
Cerca de 2 milhões de pessoas
compareceram à cerimônia de posse em 24 de fevereiro de
2009, num clima de congraçamento político que poucas vezes se
viu naquele país. Não era
para menos, pois os EUA acabavam de eleger o primeiro presidente negro, concluindo um ciclo
de
lutas da população afro-americana que havia começado na década de 1960, com a jornada
dos direitos civis. O governo de
Obama foi bastante contraditório no que se refere à
comparação entre as políticas externa e interna. Poucos presidentes
dos EUA foram tão
belicistas como Barack Obama, cuja administração foi marcada por intensa movimentação
militar,
sobretudo no Oriente Médio.

 RESUMINDO

No plano da política interna, Obama tentou corrigir problemas estruturais históricos da


sociedade norte-americana, como,
por exemplo, a falta de um sistema de saúde ao qual os
cidadãos pudessem recorrer. Pode parecer estranho aos nossos
olhos, mas os EUA não têm
um sistema de saúde para atender à população que não tem dinheiro para pagar pelo serviço
privado. Até o governo de Obama, os pobres não tinham atendimento médico, o que traduz os
valores de um país construído
historicamente a partir da lógica do mercado, da iniciativa
privada, que desconfia de tudo que é público.

Foto: Shutterstock.com.

Ao criar o “Obama Care”, em 2010, Obama ofereceu plano de saúde subsidiado pelo Estado a
todos os cidadãos americanos em
situação de vulnerabilidade social. Com isso, o presidente
trouxe o Estado para o debate nacional sobre o direito à
saúde, recuperando a ideia, de matriz
social-democrata, de que cabe ao poder público garantir acesso a direitos sociais
básicos.
Posteriormente, Donald Trump, sucessor de Obama, tomou o desmonte do “Obama Care”
como prioridade política, o
que estudaremos com mais calma na próxima seção, quando nos
dedicaremos aos populismos de extrema-direita, que se
fortaleceram em diversas partes do
mundo como um dos resultados do colapso do neoliberalismo.

CRISE DO LIBERALISMO NO MUNDO

Imagem: Shutterstock.com

Também do outro lado do Oceano Atlântico, na Ásia, diversos países organizaram estratégias
de desenvolvimento econômico
que confrontaram preceitos do neoliberalismo. Analisando
justamente a crise do império capitalista estadunidense, o
cientista político norte-americano
Chalmers Johnson (1931-2010) foi o primeiro a utilizar o conceito “desenvolvimentismo
asiático” para analisar projetos econômicos emergentes naquela região do mundo ao longo dos
primeiros anos do século
XXI. O livro de Johnson, publicado em 1982, se dedica
principalmente ao “milagre econômico japonês”, mas as linhas
gerais da análise do autor
podem nos ajudar a compreender outros casos que configuram, em grande medida, a crise
contemporânea do capitalismo neoliberal.

Em outra obra, publicada em 1993, Johnson se debruçou especificamente sobre a história


econômica dos países asiáticos na
segunda metade do século XX. Depois do trabalho de
Johnson, tornou-se recorrente dizer que o “estado desenvolvimentista”
foi o grande
responsável pelo desenvolvimento econômico acelerado da Coreia do Sul, Taiwan e Singapura
entre os anos
1960 e 1980, da China, a partir dos anos 1990, e do Vietnã, no início do século
XXI.


O “MODELO ECONÔMICO” JAPONÊS DO PÓS-
GUERRA NÃO ERA ORIGINAL E VINHA DOS ANOS
1920; E SUA CARACTERÍSTICA FUNDAMENTAL NÃO
ERA ECONÔMICA, TINHA A VER COM A
“INTENSIDADE” COM QUE A SOCIEDADE E O
GOVERNO JAPONÊS SE DEDICAVAM AO
ESTABELECIMENTO E
CUMPRIMENTO DOS SEUS
OBJETIVOS ESTRATÉGICOS. ESTA “INTENSIDADE”
SE DEVIA AO FATO DE QUE O “MODELO” TINHA SIDO
CONCEBIDO
COMO UM INSTRUMENTO DE GUERRA E
DE RECONSTRUÇÃO, DEPOIS DA GUERRA, E COMO
INSTRUMENTO DE DEFESA DA SOBERANIA
JAPONESA,
FRENTE AOS DESAFIOS DO MUNDO E DO
CONTEXTO GEOPOLÍTICO ASIÁTICO, NA SEGUNDA
METADE DO SÉCULO XX.

(JOHNSON, 2017, p. 91)


O QUE O AUTOR ESTÁ DIZENDO?

OS MOTIVOS QUE EXPLICAM O SUCESSO


ECONÔMICO JAPONÊS SÃO MAIS POLÍTICOS
DO QUE PROPRIAMENTE ECONÔMICOS.

Em um contexto de reconstrução nacional após a Segunda Guerra Mundial, o Estado japonês


tomou para si a responsabilidade
de zelar pelos interesses nacionais, condicionando toda
atividade econômica ao que Johnson chamou de “pacto de
desenvolvimento coletivo”. Não é
difícil perceber que essa forma de tratar a relação do Estado com a economia é
diametralmente
oposta ao receituário neoliberal. A trilha aberta pelo Japão foi seguida por outras nações
asiáticas.

O recado que vinha da Ásia parecia claro: o neoliberalismo ocidental, com sua concepção de
“Estado-firma”, não servia
para aquela região do mundo. Foi exatamente dessa negação ao
neoliberalismo que se fortaleceu outra ideologia
político-econômica que na transição do século
XX para o século XXI acabou reequilibrando a geopolítica mundial, fazendo
da Ásia a região
mais economicamente ativa e desenvolvida do planeta.

Em 1989, foi publicado outro livro sobre o desenvolvimentismo asiático, dessa vez assinado
pela economista
norte-americana Alice Amsden (1943-2012). Sugestivamente intitulado Asia’s
Next Giant (O próximo gigante asiático , em
tradução livre), Amsden ampliou a análise de
Johnson para a Coreia do Sul, para o “milagre econômico coreano”, nas
palavras da própria
autora. Segundo Amsden, no caso da Coreia do Sul, o modelo de desenvolvimento também
era
caracterizado pelo protagonismo do Estado, fincando suas raízes na primeira metade do
século XX, na luta
anticolonialista contra o próprio Japão.

Sobre a China, Johnson também chama atenção para a experiência da guerra anticolonialista,
o “campesinato
revolucionário” como força de impulsão desenvolvimentista. Para os autores,
as guerras fizeram com que as sociedades
asiáticas criassem vínculos de solidariedade e
confiança com o Estado, visto como o guardião dos interesses nacionais. A
partir da leitura
desses autores, podemos analisar o desenvolvimentismo asiático em quatro características
principais:

Clique nas setas para ver o conteúdo.


Objeto com interação.

Imagem: Shutterstock.com

A prosperidade asiática observada em fins do século XX se deu pelo fortalecimento dos


Estados nacionais, algo que
aconteceu em meados do século passado, a partir de diversas
experiências de guerras emancipatórias. Isso deu origem a um
sistema interestatal regional
altamente competitivo que ajudou a potencializar ainda mais o desenvolvimento dos países
locais.

A estratégia econômica destes países asiáticos esteve sempre muito longe dos valores
neoliberais, rejeitando
frontalmente a premissa do “Estado mínimo”, ou do “Estado-firma”.

Não há nenhuma instituição ou política que explique isoladamente o sucesso do crescimento


asiático, e que possa ser
transplantada para países que tenham se constituído ou estejam fora
de sistemas de poder altamente competitivos. A
simples condição de latecomer ou de
“capitalismo tardio” não explica nada, nem é capaz de gerar um projeto e uma
estratégia de
alto crescimento.

Os asiáticos nunca se referiram a si mesmos como “desenvolvimentistas”. Suas estratégias


econômicas não têm nada a ver
com o chamado “desenvolvimentismo latino-americano”. Sua
política industrial, comercial e macroeconômica sempre esteve a
serviço de sua “grande
estratégia” social e nacional e da sua luta pela conquista ou reconquista de uma posição
internacional autônoma e preeminente. Os asiáticos têm plena consciência de que a política
econômica entregue a si mesma
é cega e incapaz de gerar seus próprios objetivos. E muito
menos ainda de definir os objetivos de uma sociedade e de uma
nação.

Ao longo dos últimos séculos, os olhares do chamado “mundo ocidental” permaneceram


bastante concentrados nos países que
orbitavam em torno das economias europeias e dos
Estados Unidos. Não fossem os países árabes, por sua participação
decisiva no mercado
global de petróleo, e pela Rússia, em função de seu desenvolvimento econômico e das tensões
vestigiais da Guerra Fria, nossas preocupações provavelmente seriam ainda mais
ocidentalizadas. Não sem razão, muitos se
viram perplexos diante da emergência da China no
cenário global, que passou a ostentar taxas médias de crescimento
econômico de 10% a partir
da década de 1990.

Ao longo dos anos, nenhum país ocidental conseguiu rivalizar com esses índices e,
gradualmente, a frase Made in China
começou a se fazer bastante presente em nossa vida
cotidiana. Caso esteja lendo esse texto em seu computador,
recomendamos que vire o
mouse e procure o local em que o produto foi fabricado. A chance de encontrar um Made in
China é
grande. Se não acontecer, basta uma busca simples e você perceberá que muitos
produtos que temos à nossa disposição são
chineses. Ainda que os EUA continuem
responsáveis por boa fatia do comércio internacional, o país asiático deve assumir
a dianteira
até 2026.

Por esse motivo, nenhuma análise sobre as dinâmicas comerciais do século XXI pode ignorar a
participação chinesa no
mercado global. Apesar das inúmeras variáveis e divergências que
compõem o complexo jogo que garantiu essa mudança,
muitos analistas se apoiam em duas
explicações gerais para esse processo.

Segundo Rhys Jenkins (2019, p. 22), essas mudanças podem ser observadas a partir de duas
lentes, uma externa e outra
interna.

EXTERNA

Do ponto de vista externo, observa-se o impacto significativo do "abandono das políticas


keynesianas do consenso
pós-guerra e a adoção do neoliberalismo, especialmente sob
Reagan nos Estados Unidos e Thatcher no Reino Unido. Uma das
estratégias do capital para
restaurar a lucratividade foi deslocar a mão de obra para reduzir os custos da produção”.

INTERNA

Em contraste, a abordagem interna “toma como ponto de partida as mudanças ocorridas na


China após a morte de Mao
Tsé-Tung em 1976. As reformas na política econômica começaram
com Deng Xiaoping em 1978 e desencadearam um processo
dinâmico de crescimento que
ampliou a competitividade da China" (JENKINS, 2019, p. 22).

Nesse sentido, enquanto os países “ocidentais” diminuíram significativamente a presença do


Estado na economia, a China
adotou uma posição oposta, que permitiu o desenvolvimento
tecnológico, a ampliação do mercado consumidor global e
diversas outras ações que tornaram
o país atrativo, inclusive, a investidores estrangeiros.

Foto: Shutterstock.com

Em 2001, as exportações chinesas ganharam novo impulso com a adesão à Organização


Mundial do Comércio (OMC). Diversas
empresas da China começaram a realizar obras no
exterior, e os empréstimos de bancos chineses também consolidaram sua
presença nos
mercados financeiros globais.

EM SUMA, ESSA MUDANÇA ECONÔMICA


DESENCADEOU UMA SÉRIE DE EFEITOS, COMO
AS CHAMADAS “GUERRAS COMERCIAIS”, QUE
REPRESENTAM, TALVEZ, UM DOS ASPECTOS
MAIS VISÍVEIS DO PROTAGONISMO CHINÊS
NESSE INÍCIO DO SÉCULO XXI.

MERCADOS IRREGULARES

Foto: Shutterstock.com

Ainda que a ênfase nos estudos sobre as dinâmicas comerciais se dê a partir de elementos
visíveis, parte importante das
transações econômicas globais acontece à margem dos esforços
oficiais de contabilização. Para além dos grandes debates
acerca do modus operandi de
parte do mercado financeiro, da ausência de transparência em muitas transações, dos
processos de lavagem de dinheiro e de depósitos que se avolumam em paraísos fiscais, parte
do movimento no comércio
global se desdobra para além da superfície através da venda e
compra de produtos de inegáveis impactos políticos,
sociais e econômicos.

 EXEMPLO

O comércio ilegal de armas de fogo é um exemplo conhecido, assim como o de substâncias


psicoativas. Esse último caso,
inclusive, merece uma observação mais atenta.

Não menos importante, os processos de globalização e multilateralismo contribuíram


francamente para o aumento do
comércio internacional de drogas. Ainda que parte dos
processos de importação e exportação de drogas se dê por vias
próprias, a ampliação dos
circuitos de trocas comerciais permitiu que muitos comerciantes incluíssem suas mercadorias
proibidas em redes regulares, o que exige permanente esforço de fiscalização por parte das
autoridades aduaneiras.
Também é difícil rastrear o destino dos valores adquiridos com
comércio ilegal. Ainda que traficantes locais façam
investimentos locais e fracionados para
“lavar” o dinheiro ilícito, acredita-se que parte importante das cifras seja
regularizada através de
aplicações no mercado financeiro, muito mais difíceis de identificar.

Foto: U.S. Customs and Border Protection/Wikimedia Commons / Domínio Público


 Oficial da aduana dos EUA recompensa seu cão farejador após identificar narcóticos
escondidos em uma embalagem em Chicago.

Os números estimados ao longo do século XXI são bastante esclarecedores em relação ao


poder desse mercado ilegal. Em
2003, o mercado varejista de drogas teria arrecadado algo em
torno de 322 bilhões de dólares, soma que é maior do que o
PIB de muitos países. De acordo
com o relatório Estimating Illicit Financial Flows Resulting From Drug Trafficking and
Other
Transnational Organized Crimes (2011), o comércio irregular teria sido responsável por
valores próximos a 1,5% do
PIB mundial em 2009, com destaque para o narcotráfico.
Estimativas do World Drug Report , publicação anual do Escritório
das Nações Unidas sobre
Drogas e Crimes, mostram que, no início do século XXI, cerca de 5,2% da população mundial
entre
15 e 64 anos fez uso, regular ou esporádico, de alguma substância psicoativa ilegal. Em
2012, atingiu-se o número de
4,7% e, em 2015, 5,5%. O relatório aponta que o aumento no
consumo acompanha o crescimento demográfico, mas se mantém
percentualmente estável
(UNODC, 2019).

Também vale destacar que a distinção geral entre drogas lícitas (tabaco, álcool, ansiolíticos
etc.) e ilícitas (maconha,
cocaína, crack, metanfetamina) não depende das características de
cada droga, haja vista que muitas substâncias, hoje
ilegais, já foram permitidas e muitas
drogas, hoje ilegais, já foram autorizadas sem qualquer regulamentação. Há
inúmeras
questões envolvidas nessa equação, desde o estigma social do usuário até a criminalização da
pobreza.

Imagem: Shutterstock.com.

Refletindo

Com o passar dos anos, a crise do neoliberalismo foi ganhando contornos mais trágicos,
motivados pela insatisfação
social provocada pela precarização da qualidade de vida em
diversos países ocidentais. Esse ambiente de frustração e
ressentimento serviu como
combustível para a ascensão de governos de extrema-direita, que, nos anos 2010, colocaram
em
risco a própria ideia de democracia liberal representativa, que estudaremos na próxima
seção.

VERIFICANDO O APRENDIZADO

1. NO COMEÇO DO SÉCULO XXI, ACONTECEU AQUILO QUE ALGUNS


AUTORES CHAMAM DE “GUINADA LATINO-AMERICANA”, QUE
CONSISTIU NA ASCENSÃO DE GOVERNOS DE ESQUERDA E CENTRO-
ESQUERDA NA AMÉRICA LATINA. ASSINALE A OPÇÃO QUE MELHOR
DEFINE A CARACTERÍSTICA COMUM A ESSES GOVERNOS.
A) Todos esses governos tiveram em comum o compromisso com projetos radicais de reforma
agrária que transformaram profundamente a estrutura fundiária latino-americana.

B) Todos esses governos tiveram em comum o compromisso com projetos de implementação


de ditaduras militares que transformaram a geopolítica latino-americana.

C) Todos esses governos tiveram em comum as críticas, em níveis distintos, aos preceitos
neoliberais e às diretrizes do Consenso de Washington.

D) Todos esses governos tiveram em comum projetos de estatização dos sistemas de


comunicação, o que refundou a estrutura de comunicação social na América Latina.

E) Todos esses governos tiveram em comum projetos de universalização dos direitos


indígenas, o que provocou uma avalanche de políticas públicas de reparação histórica que
mudaram o mapa social latino-americano.

2. NA POLÍTICA INTERNA, O GOVERNO DE BARACK OBAMA


CONFRONTOU ALGUMAS PREMISSAS DO RECEITUÁRIO NEOLIBERAL.
ASSINALE A OPÇÃO QUE MELHOR DEFINE A FORMA COMO OBAMA
FEZ ISSO.

A) Obama confrontou algumas premissas do receituário neoliberal ao aumentar os gastos com


investimento militar, rompendo, assim, com a lógica do ajuste fiscal.

B) Obama confrontou algumas premissas do receituário neoliberal ao aumentar os gastos com


obras públicas, rompendo, assim, com a lógica do ajuste fiscal.

C) Obama confrontou algumas premissas do receituário neoliberal ao diminuir os gastos com


investimento militar, rompendo, assim, com o histórico de política externa agressiva dos EUA.

D) Obama confrontou algumas premissas do receituário neoliberal ao aumentar os gastos com


obras públicas, reforçando, assim, com a lógica do ajuste fiscal das contas públicas.

E) Obama confrontou algumas premissas do receituário neoliberal ao subsidiar com dinheiro


público plano de saúde para os cidadãos mais pobres, rompendo com a lógica privatista que
marcava historicamente o setor nos EUA.

GABARITO
1. No começo do século XXI, aconteceu aquilo que alguns autores chamam de “Guinada
latino-americana”, que consistiu na ascensão de governos de esquerda e centro-
esquerda na América Latina. Assinale a opção que melhor define a característica comum
a esses governos.

A alternativa "C " está correta.

Os governos da “guinada latino-americana” confrontaram os preceitos neoliberais, recuperando


a ideia de função social do Estado.

2. Na política interna, o governo de Barack Obama confrontou algumas premissas do


receituário neoliberal. Assinale a opção que melhor define a forma como Obama fez isso.

A alternativa "E " está correta.

Até o governo de Barack Obama, não havia qualquer compromisso do poder público nos EUA
com a promoção do direito à saúde, e o “Obama Care” rompeu com a tradição privatista no
setor, trazendo o Estado para o campo de promoção dos direitos sociais.

MÓDULO 3
 Identificar o fortalecimento de populismos de extrema-direita

A EXTREMA-DIREITA E A DEMOCRACIA
LIBERAL

Assista ao vídeo abaixo com o professor Rodrigo Perez apresentando o debate da ascensão
de movimentos de extrema-direita
no mundo.
COMO AS DEMOCRACIAS MORREM

Imagem: Shutterstock.com

Em 2018, chegou ao Brasil o best seller Como as democracias morrem , de Steven Levitsky e
Daniel Ziblatt, publicado
originalmente nos EUA em 2017. O sucesso do livro escrito pelos
professores de Ciência Política da Universidade de
Harvard foi mundial, o que pode ser
explicado pelo tema tratado no texto, o que nos interessa diretamente aqui, em
nossos
estudos. Os autores analisaram as crises democráticas contemporâneas e o seu principal
desdobramento no plano
político: a ascensão de governos de extrema-direita em diversos
países, como EUA, Georgia, Hungria, Filipinas e Brasil.

O tema também foi explorado por outro livro de destacado sucesso no mercado editorial
internacional: trata-se de O povo
contra a democracia , escrito pelo cientista político Yascha
Mounk e publicado no Brasil também em 2018. É a partir
desses dois textos que discutimos as
crises democráticas contemporâneas, explorando suas relações com o colapso
internacional
da ordem capitalista neoliberal.

MAS DE QUE TIPO DE CRISE DEMOCRÁTICA


ESTAMOS FALANDO?

Tanto “crise” como “democracia” são termos bastante polissêmicos no vocabulário político
ocidental. Começaremos
esclarecendo com cuidado qual modalidade de democracia está
colapsando nos dias de hoje. Trata-se do experimento
democrático liberal burguês que nasceu
no século XVIII na Europa e nos EUA, tendo se tornado hegemônico mundialmente no
final da
década de 1980, com o fim da URSS e com o término da Guerra Fria.

A convicção de que a democracia liberal era vitoriosa foi tão forte que o cientista político norte-
americano Francis
Fukuyama chegou a decretar o “fim da história”, como se a humanidade
houvesse chegado, definitivamente, ao ponto final
de sua evolução política. Em trabalho
conjunto, os cientistas políticos norte-americano e alemão Alfred Stepan e Juan
Linz afirmaram
que a democracia liberal era a “única opção” e que tinha “vindo para ficar”.

Foto: Raphaël Thiémard / Wikimeda Commons / CC BY-SA 2.0


 Queda do muro de Berlim, simbolizando o fim da Guerra Fria, 1989.
A história teria acabado com o triunfo da democracia liberal, fundada no princípio da
representação política e na
proteção das liberdades individuais contra a tirania do Estado, que
seria o melhor arranjo já inventado pela humanidade
no sentido de viabilização da vida
coletiva. Diz Yascha Mounk:


IMPRESSIONADOS COM A ESTABILIDADE SEM
PARALELO DAS DEMOCRACIAS RICAS, OS
CIENTISTAS POLÍTICOS COMEÇARAM A CONCEBER A
HISTÓRIA DO PÓS-GUERRA EM DIVERSOS PAÍSES
COMO UM PROCESSO DE “CONSOLIDAÇÃO
DEMOCRÁTICA”. PARA SUSTENTAR UMA
DEMOCRACIA,
O PAÍS DEVIA ATINGIR UM ALTO NÍVEL
DE RIQUEZA E EDUCAÇÃO. TINHA DE CONSTRUIR
UMA SOCIEDADE CIVIL VIBRANTE E ASSEGURAR A
NEUTRALIDADE DE INSTITUIÇÕES DE ESTADO
FUNDAMENTAIS, COMO O JUDICIÁRIO. GRANDES
FORÇAS POLÍTICAS TIVERAM DE ACEITAR QUE
DEVIAM DEIXAR OS ELEITORES – E NÃO O PODER DE
SEUS EXÉRCITOS OU DE SUAS CARTEIRAS GORDAS
– DETERMINAR OS RESULTADOS
POLÍTICOS. TODOS
ESSES OBJETIVOS FREQUENTEMENTE SE
REVELARAM ESQUIVOS.
(MOUNK, 2018, pp. 18-19)

Qualquer eventual crise nas democracias liberais era explicada, e justificada, pelas condições
inadequadas das
sociedades em que a crise se manifestou, sempre em países pobres,
sobretudo na América Latina, África e Ásia.

 ATENÇÃO

O argumento era o de que a desigualdade social, a pobreza estrutural e o baixo nível de


industrialização dificultavam a
consolidação da democracia, potencializando projetos políticos
autoritários, como as ditaduras militares que governaram
a América Latina, incluindo o Brasil,
entre as décadas de 1960 e 1980.

Foto: Autor desconhecido / Wikimeda Commons / Domínio público


 John F. Kennedy durante a visita do então
presidente João Goulart aos Estados Unidos em
1962. Posteriormente descobriu-se que o presidente estadunidense
planejava invadir
militarmente o Brasil para depor o governo de Goulart.

A causa das crises democráticas, então, não seria o modelo liberal, mas o precário
desenvolvimento capitalista desses
países, sendo os ataques à democracia originários sempre
de atores políticos exteriores ao funcionamento da própria
democracia, como as forças
armadas.
Sobre essas crises democráticas, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt escreveram:


DURANTE A GUERRA FRIA, GOLPES DE ESTADO
FORAM RESPONSÁVEIS POR QUASE TRÊS EM CADA
QUATRO COLAPSOS DEMOCRÁTICOS. AS
DEMOCRACIAS EM PAÍSES COMO ARGENTINA,
BRASIL, GANA, GRÉCIA, GUATEMALA, NIGÉRIA,
PAQUISTÃO, PERU, REPÚBLICA DOMINICANA,
TAILÂNDIA, TURQUIA E URUGUAI MORRERAM DESSA
MANEIRA. (...) COM UM GOLPE DE ESTADO, A MORTE
DA DEMOCRACIA É IMEDIATA E
EVIDENTE PARA
TODOS. O PALÁCIO PRESIDENCIAL ARDE EM
CHAMAS. O PRESIDENTE É MORTO, APRISIONADO
OU EXILADO.

(LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, p.17)

A segunda década do século XXI negou os prognósticos feitos no final dos anos 1980. A
democracia liberal não era uma
realidade eterna. O mundo viu um novo tipo de crise
democrática, bem diferente do modelo “clássico” observado no século
XX e capaz de
desestabilizar o ambiente político, também, em países ricos. Agora, a democracia não está
colapsando
apenas em países pobres.

Países ricos, de desenvolvimento capitalista avançado, estão vendo seus sistemas


democráticos ruírem. Dessa vez, a morte
da democracia não acontece em dia marcado,
demarcada claramente por um evento de ruptura, por um golpe de Estado. A
democracia morre
aos poucos, de dentro para fora, sendo assassinada por líderes políticos eleitos pelos próprios
ritos
democráticos.


PORÉM, HÁ OUTRA MANEIRA DE ARRUINAR UMA
DEMOCRACIA. É MENOS DRAMÁTICA, MAS
IGUALMENTE DESTRUTIVA. DEMOCRACIAS PODEM
MORRER NÃO NAS MÃOS DE GENERAIS, MAS DE
LÍDERES ELEITOS – PRESIDENTES OU PRIMEIROS-
MINISTROS QUE SUBVERTEM O PRÓPRIO
PROCESSO
QUE OS LEVOU AO PODER. ALGUNS DESSES
LÍDERES DESMANTELAM A DEMOCRACIA
RAPIDAMENTE, COMO FEZ HITLER NA SEQUÊNCIA
DO INCÊNDIO DO REICHSTAG EM 1933 NA
ALEMANHA. COM MAIS FREQUÊNCIA, PORÉM, AS
DEMOCRACIAS DECAEM AOS POUCOS, QUE MAL
CHEGAM A SER VISÍVEIS.

(LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, p.15)

Levitsky e Ziblatt afirmam que, do ponto de vista das defesas democráticas, os novos tipos de
crise dificultam ainda
mais a autodefesa dos regimes democráticos. Como não há um momento
claro de ruptura, pois o processo de erosão da
democracia se dá dentro dos próprios ritos
democráticos, nada é capaz de disparar os dispositivos de alarme da
sociedade.

Foto: StringerAL / Shutterstock.com


 Uma mulher com a foto de Hugo Chávez em protesto a favor dele. Caracas, Venezuela,
2007.

Assim, quando a sociedade civil se dá conta, o autoritarismo já está instalado. Os autores


destacam dois casos
emblemáticos desse novo tipo de crise democrática: a Venezuela, com a
ascensão de Hugo Chávez, em 1999, e os EUA, com a
eleição de Donald Trump, em 2016.

Em ambas as situações, argumentam Levitsky e Ziblatt, a própria democracia, representada


pelos partidos políticos
estabelecidos e pelas instituições legislativas e judiciárias, falhou ao
permitir que lideranças com evidentes ideias
antidemocráticas tivessem a oportunidade de
apresentar seus projetos à sociedade civil. O aspecto aparentemente
contraditório desse novo
tipo de crise democrática está no fato de que as lideranças populistas chegam ao poder
legitimadas pelas eleições (o rito mais sagrado da democracia) sendo, inclusive, apoiadas por
segmentos relevantes da
sociedade civil.

Se essas lideranças foram eleitas, se são apoiadas por segmentos relevantes da sociedade
civil, por que representam
ameaças à democracia? Novamente, é relevante prestar atenção no
que dizem Steven Levitsky e Daniel Ziblatt.


UMA VEZ QUE UM ASPIRANTE A DITADOR
CONSEGUE CHEGAR AO PODER, A DEMOCRACIA
ENFRENTA UM SEGUNDO TESTE CRUCIAL: IRÁ ELE
SUBVERTER AS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS OU
SER CONSTRANGIDO POR ELAS? AS INSTITUIÇÕES
ISOLADAMENTE NÃO SÃO O BASTANTE
PARA
CONTER AUTOCRATAS ELEITOS. CONSTITUIÇÕES
TÊM QUE SER DEFENDIDAS – POR PARTIDOS
POLÍTICOS E CIDADÃOS ORGANIZADOS,
MAS
TAMBÉM POR NORMAS DEMOCRÁTICAS, QUE NEM
SEMPRE ESTÃO CODIFICADAS EM LEI.

(LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, pp. 18-19)

ASCENSÃO DE TRUMP

Foto: Nuno21/Shutterstock.com

Em março de 2016, e-mails particulares de John Podesta, principal responsável pela


campanha de Hillary Clinton, foram
divulgados pela WikiLeaks. As mensagens não continham
nada que pudesse levantar suspeitas. No entanto, fóruns da
internet com usuários anônimos
passaram a explorar a repetição das palavras pizza e cheese (queijo) nas mensagens. Eles
alegaram que o termo cheese pizza era uma espécie de código para child pornography
(pornografia infantil), amparados
sobretudo na coincidência que criaram entre as iniciais "c" e
"p". A história continuou sendo alimentada e novas
palavras foram associadas à pedofilia:
segundo esses usuários, por exemplo, a palavra sauce (molho) fazia referência,
naqueles e-
mails, a orgias. A narrativa começou a ficar ainda mais intrincada: esses abusos sexuais
aconteceriam em um
suposto porão da pizzaria Comet Ping Pong, em Washington.

O irmão do coordenador da campanha de Hillary, Tony Podesta, frequentava esse


estabelecimento. O dono da pizzaria, James
Alefantis, foi apresentado a John Podesta e
chegaram a organizar um jantar de arrecadação de fundos para a campanha de
Hillary. Não
tardou para que outras questões fossem associadas à pizzaria, como suposto envolvimento
dos donos com
cultos satânicos. A então candidata passou a ser acusada de associação com
uma rede de pedofilia e a repercussão foi tão
enfática que até mesmo investigações policiais
foram realizadas e, como era de se supor, nenhum indício que sustentasse
essas alegações foi
identificado. O FBI, ainda que acionado, se recusou a investigar um fato visivelmente falso,
criado
no meio da disputa política.
Não menos importante, e ainda que a campanha de Hillary Clinton também tenha adotado esse
expediente, as fakes news
circularam mais e de forma mais intensa em favor de Donald
Trump, conforme diversas análises sugerem (SILVERMAN, 2016).

Muitos consideram que a eficácia dessa tática de Trump não pode ser apartada do
conhecimento dos dados dos usuários
fornecidos ilegalmente pelo Facebook: conhecer
minuciosamente o perfil dos eleitores permitiu produzir notícias falsas
que exploravam
questões sensíveis para o eleitorado norte-americano. Um dos nomes mais expressivos
nesse contexto foi de
Steve Bannon, diretor executivo da campanha de Trump que também era
responsável pelo Breitbart News , um veículo de mídia
de extrema-direita.

Imagem: Anton Khodakovskiy/Shutterstock.com

As instituições da democracia (tribunais de justiça, parlamento, órgãos regulatórios e


instituições policiais), em si,
não são capazes de resistir aos ataques dos autocratas eleitos,
que, uma vez no governo, investem no aparelhamento
desses espaços.

É NECESSÁRIO QUE OS ATORES POLÍTICOS E


A SOCIEDADE CIVIL ZELEM PELO
CUMPRIMENTO DAS NORMAS QUE MUITAS
VEZES NÃO ESTÃO
CODIFICADAS, MAS QUE
SÃO FUNDAMENTAIS PARA O PLENO
FUNCIONAMENTO DA DEMOCRACIA.

Levitsky e Ziblatt chamam essas normas de “padrões de comportamento democrático não


escritos”, como, por exemplo, o
comedimento no uso das prerrogativas constitucionais, o
respeito à liturgia no exercício do cargo, confiança nos
tribunais eleitorais, aceitação dos
resultados eleitorais. Os autores demonstram como Donald Trump, eleito em 2016 o 45°
Presidente dos EUA, atuou como inimigo da democracia, corroendo por dentro aquela que
tinha a fama de ser a república
mais estável do mundo.

Os autores, convencidos de que os EUA são o país mais “livre do mundo”, o que denota
postura algo etnocêntrica, mostram
estupefação com o comportamento de Donald Trump no
governo daquele país.

Imagem: Tyler Merbler/Wikimedia Commons / CC BY 2.0


 Uma forca foi pendurada perto do Capitólio dos
Estados Unidos durante a invasão do
Capitólio dos Estados Unidos em 2021

Sem contar que o texto foi escrito antes da invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021,
quando, em um evento inédito
na história dos EUA, o candidato derrotado não reconheceu o
resultado das eleições e insuflou seus apoiadores a
invadirem o parlamento. Definitivamente, o
novo tipo de crise democrática não acontece, apenas, em países pobres, de
desenvolvimento
capitalista atrasado.
Mas ainda podemos investir mais na questão elementar para essa reflexão: se esses
autocratas foram eleitos e são
apoiados por setores relevantes da sociedade civil, por
que representam um perigo para a democracia?

Agora, é Yascha Mounk quem nos ajuda na reflexão.


AS DEMOCRACIAS LIBERAIS TÊM MUITOS
MECANISMOS DE CONTROLE CRIADOS PARA
IMPEDIR UM PARTIDO DE ACUMULAR DEMASIADO
PODER E
PARA CONCILIAR OS INTERESSES DE
GRUPOS DIFERENTES. MAS NA IMAGINAÇÃO DOS
POPULISTAS A VONTADE DO POVO NÃO PRECISA
SER
MEDIADA E QUALQUER COMPROMISSO COM AS
MINORIAS É UMA FORMA DE CORRUPÇÃO. NESSE
SENTIDO, OS POPULISTAS SÃO PROFUNDAMENTE
DEMOCRATAS: MUITO MAIS FERVOROSOS DO QUE
OS POLÍTICOS TRADICIONAIS, ELES ACREDITAM QUE
O DEMOS DEVE GOVERNAR. MAS TAMBÉM
SÃO
PROFUNDAMENTE ILIBERAIS: AO CONTRÁRIO DOS
POLÍTICOS TRADICIONAIS, DIZEM ABERTAMENTE
QUE NEM AS INSTITUIÇÕES
INDEPENDENTES NEM
OS DIREITOS INDIVIDUAIS DEVEM ABAFAR A VOZ DO
POVO.
(MOUNK, 2018, pp. 23-24)

Se debruçando sobre diversos exemplos de lideranças autocráticas de extrema-direita que vêm


se fortalecendo no mundo
recentemente, o autor propõe uma tipologia geral desse tipo de
orientação política ideológica. Seja nos EUA de Donald
Trump, na Hungria de Viktor Orbán, na
Grã-Bretanha de Nigel Farage, na França de Marine Le Pen ou no Brasil de Jair
Bolsonaro,
está acontecendo a perversão da própria ideia de democracia que vem sendo construída na
cultura ocidental
desde os gregos.

TEMOS AQUI UMA DISCUSSÃO MUITO DIFÍCIL E


QUE EXIGE DE NÓS MUITA ATENÇÃO!

Foto: Shutterstock.com

A democracia não é simplesmente o governo fundado na vontade da maioria. Esse é um


aspecto elementar da democracia, mas
não a esgota. A democracia não pode se esgotar na
simples manifestação da vontade da maioria porque é função do Estado
democrático proteger,
também, as minorias, muitas vezes contra a vontade da maioria. Posições políticas minoritárias
e
derrotadas nas eleições, minorias étnicas, grupos socialmente vulneráveis por questões de
raça e gênero. É dever da
democracia garantir a existência, na diversidade, dessas
pessoas, com pleno acesso a todos os direitos garantidos pela
cidadania. Por isso, ao
transformar a democracia em tirania da maioria, esses autocratas eleitos, mesmo que contando
com
apoio de setores numericamente relevantes da sociedade, se transformam em risco para
a ordem democrática.

Há ainda outra questão fundamental em nosso exercício de compreensão das crises


democráticas contemporâneas. Yascha
Mounk demonstra dados que apontam para um cenário
bastante preocupante:


HÁ UM QUARTO DE SÉCULO, A MAIORIA DOS
CIDADÃOS DAS DEMOCRACIAS LIBERAIS ESTAVA
MUITO SATISFEITA COM SEUS GOVERNOS E O
ÍNDICE
DE APROVAÇÃO DE SUAS INSTITUIÇÕES ERA
ELEVADO; HOJE, A DESILUSÃO É MAIOR DO QUE
NUNCA. HÁ UM QUARTO DE SÉCULO, A
MAIORIA DOS
CIDADÃOS TINHA ORGULHO DE VIVER NUMA
DEMOCRACIA LIBERAL E REJEITAVA
ENFATICAMENTE UMA ALTERNATIVA
AUTORITÁRIA A
SEU SISTEMA DE GOVERNO; HOJE, MUITOS ESTÃO
CADA VEZ MAIS HOSTIS À DEMOCRACIA.

(MOUNK, 2018, p. 19)

O que mudou? Por que o povo está contra a democracia? A resposta passa pela situação de
mal-estar social gerado pela
própria lógica econômica neoliberal que já estudamos.

Até mesmo nos países ricos, cada vez mais, o neoliberalismo está cobrando um alto preço
social. Na medida em que o
Estado, movido pela necessidade de corte de gastos e pela
imposição de projetos de ajuste fiscal, vai abandonando sua
vocação protetora, as pessoas se
sentem mais desamparadas.

Foto: rafapress / Shutterstock.com

O trabalho nunca esteve tão precarizado, a ponto de, mesmo nas economias centrais, ser raro
encontrar trabalhador, fora
do serviço público, sendo protegido pelos direitos tradicionais
garantidos pela social-democracia, como férias
remuneradas, 13° salário, licença-maternidade.
Soma-se à “flexibilização das relações trabalhistas” a precarização dos
serviços públicos
provocada pela redução da capacidade de investimento dos governos. A máxima neoliberal do
“Estado
mínimo” é especialmente opressora com as pessoas comuns, trabalhadoras, e
generosa com os grandes investidores que atuam
no mercado financeiro.

É COMO SE FOSSE “ESTADO MÍNIMO” PARA A


MAIORIA DA POPULAÇÃO E “ESTADO MÁXIMO”
PARA OS GRANDES OPERADORES
FINANCISTAS.

A população percebe isso, entende que a política se transformou no avalista da especulação e


direciona sua revolta às
instituições democráticas e à classe política tradicional. Não à toa,
Donald Trump foi eleito nos EUA com um discurso
contra Wall Street, e prometendo defender
os empregos da indústria norte-americana. Nesse sentido, a ascensão dos
populismos de
extrema-direita, que no mundo inteiro estão abalando a ordem liberal-democrática, é um dos
desdobramentos
do esgotamento do modelo neoliberal de acumulação capitalista. Na próxima
seção, estudaremos como a pandemia da
covid-19, decretada pela OMS em março de 2020,
vem intensificando as contradições do neoliberalismo.

A PANDEMIA E O CAPITALISMO

Assista ao vídeo abaixo com o professor Rodrigo Perez sobre a pandemia da covid-19 e a
intensificação das contradições
do neoliberalismo.

COVID-19 E O MUNDO EM CRISE


Foto: Shutterstock.com

Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde usou pela primeira vez o termo
“pandemia” para se referir à
covid-19. Naquela altura, a doença já estava espalhada pelo
mundo, impondo desafios estruturais à ordem social, política
e econômica capitalista.
Liberdades individuais como o direito de ir e vir, livre mercado, Estado mínimo. Todo o sistema
de valores construído desde o século XVI, que estruturou historicamente o capitalismo, foi
desafiado pela doença que se
mostrou ser, antes de tudo, uma patologia social.

Desde o início, os especialistas foram claros: até o desenvolvimento de vacinas capazes de


imunizar em massa a população
mundial e de remédios com poder de atenuar os efeitos da
doença, o isolamento e o distanciamento social eram as únicas
formas de conter o avanço do
vírus. Começou, então, aquele que talvez tenha sido o mais espetacular capítulo da história
da
ciência.

Os cientistas mais brilhantes do mundo começaram a trabalhar 24 horas por dia com o objetivo
de desenvolver substâncias
capazes de controlar o contágio e a letalidade do SARSCOV-19. A
vacina foi desenvolvida em tempo recorde. A “corrida
pela vacina” se tornou mais do que uma
urgência de saúde pública. Transformou-se mesmo em questão geopolítica de
primeira
importância.

Foto: Shutterstock.com

Em agosto de 2020, a Rússia, sob desconfianças da comunidade científica internacional,


registrou a SPUTNIK V, primeira
vacina contra a covid-19. O governo russo, comandado por
Vladimir Putin, viu na vacina a oportunidade de reeditar o
protagonismo do país vigente nos
tempos da Guerra Fria.

O mundo, entretanto, recebeu a vacina russa com ressalva e o imunizante não foi usado pelas
nações centrais. Isso
aconteceria apenas com a vacina BNT162b2 desenvolvida pela
farmacêutica multinacional Pfizer, em parceria com o
laboratório alemão Biontech.


SAIBA MAIS

Em 08 dezembro de 2020, Margaret Keenan, mulher inglesa com 90 anos, se tornou o primeiro
ser humano vacinado contra a
covid-19. A partir de então, a “vacina do Pfizer”, como ficou
popularmente conhecida, passou a ser usada em diversos
países do mundo, com a exceção
daqueles que tiveram o infortúnio de serem governados por lideranças negacionistas.

Mesmo com o desenvolvimento em tempo recorde da vacina, a pandemia continuou


avançando, provocando milhares de mortes
por dia, em todos os países do mundo, com
destaque para EUA, Índia e Brasil, que rapidamente se tornaram epicentros
mundiais da
pandemia. A limitação operacional dos laboratórios e a dificuldade da comunidade internacional
em avançar na
discussão sobre a quebra das patentes foram os principais obstáculos para que
a humanidade avançasse em ritmo acelerado
no sentido da imunização em massa e do fim da
pandemia.
PORTANTO, MESMO COM VACINAS
DISPONÍVEIS, A COVID-19 CONTINUOU
AVANÇANDO E MATANDO.

Governos de quase todos os países do mundo se viram, então, obrigados a adotar medidas de
restrição de movimentação
social, decretando toques de recolher, lockdowns , multando
pessoas que transitassem nas ruas sem justificativa.
Criou-se, assim, a normalização de um
Estado de exceção que durou muitos meses, nos quais os direitos de livre movimento
e de
reunião, dois entre os mais importantes no repertório do liberalismo político democrático, foram
sacrificados.
Aqueles que por séculos foram considerados direitos individuais sagrados, como
símbolos da luta da sociedade contra a
tirania do Estado, foram suspensos, mostrando na
prática, como os valores políticos ocidentais não eram capazes de
enfrentar o novo desafio que
se impunha ao mundo.

Foto: Roman Yanushevsky / Shutterstock.com

Outro recado claro que a pandemia da covid-19 deu ao mundo foi em relação ao esgotamento
do neoliberalismo como modelo
viável de organização da economia capitalista.

 ATENÇÃO
O SARSCOV-19 não mata apenas as pessoas, mas também a capacidade do Estado em tratar
os doentes. Como o vírus tem grande
capacidade de contágio, muitas pessoas adoecem ao
mesmo tempo, o que sobrecarrega os hospitais públicos e privados,
demandando dos
governos mais investimentos na construção de estruturas hospitalares de emergência, na
aquisição de
insumos médicos e na viabilização de assistência social e políticas públicas de
distribuição de renda para aqueles cujo
sustento depende da atividade social, da circulação de
pessoas.

Em outras palavras, para sermos mais diretos: com as necessárias medidas de restrição de
atividade social, a economia
mundial entrou na maior recessão desde 1929, o que
praticamente anulou a capacidade de investimento das empresas
privadas. Se a iniciativa
privada não é capaz de, por si só, contrariar o ciclo econômico recessivo, quem seria? A
resposta é óbvia: o Estado, o poder público, os governos. Mas como fazê-lo dentro da cartilha
neoliberal? A resposta
está vindo da economia mais capitalista do mundo, que, simplesmente,
propõe o abandono da cartilha neoliberal.

ESTAMOS FALANDO DO GOVERNO DO


DEMOCRATA JOE BIDEN NOS EUA.

NOVOS RUMOS?

Foto: Shutterstock.com

Biden assumiu a Casa Branca no início de 2021 em um cenário político bastante conflituoso,
como já vimos na seção
anterior. Logo nos primeiros dias de seu mandato, Biden anunciou um
pacote de recuperação econômica na ordem de 2,3
trilhões de dólares, o maior da história
daquele país. Trata-se de investimento público direto em proteção social a
pessoas e
empresas e obras de infraestrutura com o objetivo de gerar empregos. Segundo o economista
norte-americano Paul
de Grauwe, Biden está rompendo com a herança de Reagan e
retomando herança ainda mais antiga, de Franklin Roosevelt
(1882-1945), o New Deal . Biden
estaria, portanto, ainda segundo Paul de Grauwe, apresentando para a sociedade
norte-
americana um Great New Deal e, com isso, está dizendo ao mundo que os preceitos
neoliberais não são capazes de
solucionar a crise provocada pela pandemia, que só o Estado,
agindo como indutor do desenvolvimento e não como “firma”,
pode proteger a economia e a
vida das pessoas.

A China e a Rússia, adversários globais dos EUA, também aumentaram a participação dos
investimentos públicos em suas
economias. O mesmo aconteceu na Espanha, Portugal,
Inglaterra e França, também segundo os dados apresentados por Paul de
Gauwe. Poucos
países do mundo ainda insistem na fórmula neoliberal do ajuste fiscal e da redução de gastos
públicos,
como o Brasil e a Índia. Não à toa, são países que, após mais de um ano de
pandemia, encontram mais dificuldades em
controlar o número de pessoas infectadas e mortas
pelo SARSCOV-2.
NÃO SERIA EXAGERADO, PORTANTO, AFIRMAR
QUE A PANDEMIA DA COVID-19 REPRESENTA
MAIS UM CAPÍTULO NA HISTÓRIA DAS CRISES
DO
CAPITALISMO, TENDO A ESPECIFICIDADE
DE TER ESCANCARADO OS LIMITES DA
LÓGICA NEOLIBERAL.

VERIFICANDO O APRENDIZADO

1. DIVERSOS ESTUDOS ESPECIALIZADOS APONTAM PARA A


EXISTÊNCIA DE UMA CRISE DEMOCRÁTICA NO MUNDO
CONTEMPORÂNEO. ASSINALE A ALTERNATIVA QUE MELHOR DEFINE
ESSA EXPERIÊNCIA DE CRISE.

A) As crises democráticas contemporâneas são sempre precedidas por guerras civis, que
marcam a transição da situação democrática para governos autoritários comandados por
lideranças militares.

B) As crises democráticas contemporâneas são sempre precedidas por crises econômicas que
se desdobram em distúrbios sociais, o que marca com clareza a transição da ordem
democrática para a ordem autocrática.

C) As crises democráticas contemporâneas são marcadas pela eleição de autocratas que


manipulam as instituições da democracia, implodindo o sistema por dentro, sem que a
transição para a ordem autocrática seja claramente delimitada por um evento fundador.

D) As crises democráticas contemporâneas são marcadas pela intervenção direta das forças
armadas no processo político, o que faz com que o colapso da democracia seja facilmente
identificado por um evento fundador.
E) As crises democráticas contemporâneas são caracterizadas pela eleição de lideranças
militares, que, uma vez no poder, são golpeadas por lideranças civis autocráticas, o que torna o
colapso da democracia facilmente identificável por um evento fundador.

2. AS CRISES DEMOCRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS SÃO MARCADAS


PELA INSATISFAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL COM AS INSTITUIÇÕES
DEMOCRÁTICAS. MARQUE A OPÇÃO QUE MELHOR EXPLICA ESSA
INSATISFAÇÃO.

A) A insatisfação das diversas sociedades civis com a ordem democrática se explica pela
constante incapacidade da democracia liberal em atender aos desejos de liberdades políticas
individuais.

B) A insatisfação das diversas sociedades civis com a ordem democrática se explica pela
dificuldade da democracia em atender às demandas da cultura popular, sobretudo no que se
refere às festas pertencentes ao repertório do folclore.

C) A insatisfação das diversas sociedades civis com a ordem democrática se explica pela
situação de mal-estar social, insegurança laboral e precarização das relações de trabalho
provocadas pela lógica neoliberal da acumulação capitalista.

D) A insatisfação das diversas sociedades civis com a ordem democrática se explica pela
catástrofe ambiental potencializada pela lógica neoliberal da acumulação capitalista.

E) A insatisfação das diversas sociedades civis com a ordem democrática se explica pela
inclinação autoritária que sempre fundamenta a racionalidade política das massas.

GABARITO

1. Diversos estudos especializados apontam para a existência de uma crise democrática


no mundo contemporâneo. Assinale a alternativa que melhor define essa experiência de
crise.

A alternativa "C " está correta.

As crises democráticas contemporâneas são provocadas pela disfuncionalidade das próprias


instituições democráticas, quase sempre a partir da eleição de lideranças autocráticas. Não há
um evento disruptivo claro capaz de delimitar o momento de morte da ordem democrática.

2. As crises democráticas contemporâneas são marcadas pela insatisfação da sociedade


civil com as instituições democráticas. Marque a opção que melhor explica essa
insatisfação.

A alternativa "C " está correta.

A ascensão dos populismos de extrema-direita que, em diversas partes do mundo, está


provocando a derrocada da democracia liberal é um dos desdobramentos da lógica neoliberal.
Na medida em que o Estado protetor se transforma em Estado-firma, direitos sociais até então
garantidos pelo poder público são destruídos, o que aumenta a situação de mal-estar social e,
por conseguinte, a insatisfação da sociedade civil contra as instituições estabelecidas.

CONCLUSÃO

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste estudo, nos dedicamos a entender com mais cuidado a história recente do capitalismo
internacional, com atenção
especial à dinâmica neoliberal e às crises por ela provocada. Como
vimos na primeira seção, o neoliberalismo é
hegemônico no sistema capitalista desde a década
de 1980, quando nasceu com a promessa de desonerar a sociedade civil da
carga tributária
necessária para a manutenção do Estado de Bem-Estar Social. Com o tempo, entretanto, o
resultado foi o
contrário, tendo como consequências o aumento das desigualdades sociais e a
precarização das condições de vida em
diversas cidades do mundo. O aumento das
insatisfações sociais levou a diversos questionamentos do modelo neoliberal ao
longo das
duas primeiras décadas do século XXI, indo desde governos progressistas na América Latina e
nos EUA até os
populismos de extrema-direita, passando pelo desenvolvimentismo asiático.

A pandemia da covid-19, deflagrada no início de 2020, se tornou a prova cabal da dificuldade


do neoliberalismo em reagir
a crises estruturais, quando a economia precisa de incentivos e a
iniciativa privada não pode investir, seja porque não
tem dinheiro, seja porque não tem
confiança para gastar suas reservas. Em situações desse tipo, somente o Estado, agindo
como
indutor do desenvolvimento social e econômico, é capaz de romper com o ciclo da carestia.

É impossível saber de antemão os desdobramentos da atual crise do capitalismo. Certo


mesmo é que a história do
capitalismo, desde o início, é a história de suas crises, mas também
de suas refundações. A ver o que acontece dessa
vez.

FALA MESTRE
Capitalismo, propriedade e fatores de produção

Sinopse: José Luiz Niemeyer, coordenador do curso de Relações Internacionais do Ibmec RJ,
e Guilherme Benchimol, fundador da XP Inc, refletem sobre os caminhos possíveis para a
evolução do capitalismo.

Sinopse: José Luiz Niemeyer, coordenador do curso de Relações Internacionais do Ibmec RJ,
e Guilherme Benchimol, fundador da XP Inc, refletem sobre os caminhos possíveis para a
evolução do capitalismo.

AVALIAÇÃO DO TEMA:

REFERÊNCIAS
ÁVILA, Arthur Lima de. Apontamentos sobre o fim da temporalidade: elementos para uma
discussão. In : PEREZ,
Rodrigo; SILVA, Daniel. Tempos de crise: ensaios de história política.
Rio de Janeiro: Autografia, 2020. pp. 127-150.

BROWN, Wendy. Undoing the Demos: neoliberalism’s stealth revolution. Nova York: Zone
Books, 2015.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Boitempo,
2016.

FUKUYAMA, Francis. The end of history and the last man. Nova York: Free Press, 1992.

GUERRA, Roberto Rodrigues. El liberalismo conservador contemporâneo. Santa Cruz de


Tenertie: Universidade de La
Laguna, 1998.

HABERMAS, Jürgen. A nova obscuridade. São Paulo: UNESP, 2015.

JENKINS, Rhys. How China is Reshaping the Global Economy. Development Impacts in
Africa and Latin America. Oxford:
Oxford University Press, 2019.

JHONSON, Chalmers. O milagre da Ásia de Leste: Crescimento Econômico e Política


Pública. Rio de Janeiro: Record,
2017.

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar,
2018.

LINZ, Juan; STEPAN, Alfred. Toward consolidated democracies. Journal of democracy, v. 27,
n 3, 2016, pp 5-17.
Consultado na internet em: 4 maio 2021.

MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS
AND CRIME - UNODC. About UNODC. [S.l.], 2019.
Consultado na internet em: 4 maio 2021.

SILVERMAN, Craig; ALEXANDER, Lawrence. How teens in the Balkans are duping Trump
supporters with fake news. Buzzfeed
News, v. 3, p. 874-888, 2016. Consultado na internet
em: 4 maio 2021.

EXPLORE+
Leia o artigo Neoliberalismo: genocídio de almas , publicado pela Revista Cult , sobre formas
críticas de pensar o
capitalismo.
Leia também o texto publicado em Opera Mundi , intitulado Hoje na História: 1933 -Roosevelt
apresenta New Deal ao
congresso , sobre o pensamento de Roosevelt.

Por último, consulte o texto Coronavírus: OMS decreta pandemia; o que muda nos cuidados
com a saúde? , publicado no
portal UOL, sobre a pandemia de coronavírus.

CONTEUDISTA
Rodrigo Perez Oliveira

 CURRÍCULO LATTES

NOTAS
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