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burguesa, seja com a pandemia da covid-19, que

Crise do Capitalismo e Sua Reinvenção no colocou o ocidente capitalista de joelhos.

Século XXI
Nossa reflexão está dividida em quatro
momentos: primeiramente, tratamos do
INTRODUÇÃO
neoliberalismo, modelo de acumulação
capitalista hegemônico no final do século XX e
O capitalismo se consolidou como realidade que se tornou alvo de questionamentos ao longo
histórica num longo e complexo processo, que das duas primeiras décadas do século XXI. Em
teve início no século XIV e se estendeu até o seguida, estudamos os dois governos do
final do século XVIII. Nesse período, várias democrata Barack Obama nos Estados Unidos
experiências colaboraram para o (2009-2017), especialmente o programa
amadurecimento, lento e não linear, da ordem “ Obama Care”, que, em diversos aspectos,
capitalista: a crise do feudalismo, a formação do tensionou o modelo neoliberal. Depois, nos
Estado moderno, as reformas religiosas, a debruçamos sobre os governos de centro-
revolução científica, o descobrimento da esquerda que ascenderam ao poder na América
América e as revoluções burguesas, Latina na primeira década do século XXI,
especialmente a Revolução Francesa e a negando as premissas neoliberais. Ainda aqui,
Revolução Industrial. No início do século XIX, abordamos o desenvolvimentismo chinês, o
o capitalismo já era realidade estruturada e não grande adversário do neoliberalismo ocidental
havia região no mundo imune à sua influência. no cenário mundial. Nosso próximo passo é
Mas seria equivocado supor que a afirmação do analisar a dinâmica ideológica dos populismos
capitalismo como modo de vida hegemônico de extrema-direita, que se fortaleceram em meio
significa que o sistema não foi desestabilizado à crise social provocada pelo neoliberalismo e
por crises internas e por questionamentos colocaram em risco o modelo da democracia
daqueles que tentaram superá-lo, propondo liberal burguesa ao longo da década de 2010.
ordem social alternativa. Por último, examinamos os efeitos da pandemia
da covid-19 para o sistema capitalista
Ainda no século XIX, podemos destacar as internacional.
revoluções sociais de 1848 e de 1871 na França,
que trouxeram ao primeiro plano de suas NEOLIBERALISMO: HISTÓRIA E
reivindicações a superação do capitalismo. A CONCEITOS FUNDAMENTAIS
crise geral de 1873 mostrou como a própria
dinâmica interna do capitalismo era capaz de
abalar o sistema. A Primeira Guerra Mundial
(1914-1918) foi, em parte, resultado das
contradições internas do capitalismo. Ao mesmo
tempo, acontecia a Revolução Russa, que deu
origem à União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas, com seu projeto de superação do
capitalismo através da implantação do
comunismo. Poderíamos falar, ainda, da crise
geral do capitalismo da década de 1929, da
Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e da Manifestação contrária ao Imposto Comunitário na Trafalgar Square,
Guerra Fria, na segunda metade do século XX. em 31 de março de 1990.

No final da década de 1980, alguns governos de


Em 1973, o capitalismo foi balançado por mais importantes países centrais, como Estados
uma crise geral. A história do sistema Unidos e Inglaterra, começaram a colocar em
econômico, portanto, é a história de suas mais prática uma modalidade de gestão político-
diversas experiências críticas. É uma história administrativa que ficaria conhecida como
marcada mais pela instabilidade do que pela “neoliberalismo”.
estabilidade. Aqui, neste conteúdo, estamos
interessados em estudar os capítulos mais
O presidente norte-americano Ronald Reagan
recentes dessa história. Neste nosso século XXI,
(1911-2004) e a primeira-ministra britânica
novamente a crise do capitalismo é realidade
Margaret Thatcher (1925-2013) foram os
incontornável, seja no aspecto político, com a
primeiros líderes a seguirem o receituário
emergência de populismos de extrema-direita
neoliberal, caracterizado pelo corte abrupto nos
que ameaçam o modelo da democracia liberal
gastos do Estado, o que
significa precarizar serviços Ou seja, as pessoas pagariam impostos de
públicos e reduzir o arco de direitos sociais
garantidos pelo governo. Em questão está o acordo com sua riqueza. Os ricos pagariam
debate sobre qual seria a função do Estado, que, mais e financiariam os direitos sociais dos
na lógica liberal, deve ficar restrita à garantia mais pobres, que pagariam menos impostos.
da segurança interna e da soberania
Assim, o Estado funcionaria como garantidor
nacional, intervindo o mínimo possível na
economia, que deveria funcionar de acordo da equidade social.
com a “lei do livre mercado”.
Como podemos perceber, trata-se de uma
Assim, a relação capital versus trabalho, entre concepção de Estado completamente diferente
patrões e empregados, aconteceria sem daquela que caracteriza o pensamento
nenhuma mediação do poder público, com o neoliberal. Margaret Thatcher se fortaleceu
Estado se eximindo da responsabilidade de como liderança política questionando esse uso
garantir proteção social aos trabalhadores e aos do Estado, argumentando que a taxa tributária
pobres em geral. Margaret Thatcher e Ronald necessária para garantir a manutenção da social-
Reagan chegaram ao comando político de seus democracia seria demasiadamente alta e
países comprometidos com a agenda neoliberal, oneraria equivocadamente a sociedade civil,
o que fez com que seus governos tenham sido sufocando a iniciativa privada e o
marcados por muitas tensões e protestos empreendedorismo individual. Assumindo o
promovidos pelos trabalhadores e por outros comando político da Inglaterra em maio de
setores da sociedade civil organizada. Thatcher 1979, Thatcher fundou seu governo na ideia de
já era figura relevante na cena política inglesa desregulamentação: alterou a legislação
desde meados da década de 1970, quando trabalhista, o que provocou muitos protestos
liderava a oposição conservadora contra o organizados pelas principais centrais
governo trabalhista comandado por James sindicais do país; privatizou empresas
Callaghan (1912-2005). públicas e diminuiu impostos. A popularidade
que Thatcher havia acumulado nos anos de
oposição diluiu-se rapidamente, a ponto de ela
ter sido alvo, em 1984, de uma tentativa de
assassinato.

Grand Hotel após a explosão de atentado ao assassinato de Thatcher.

O presidente Ronald Reagan com a primeira-ministra britânica


Margaret Thatcher, em Camp David, em 1986.

Em síntese, o governo trabalhista estava


fundado no projeto da social-democracia, que
defende o Estado como centro planejador do
desenvolvimento econômico, da promoção da
justiça social e da ampliação dos direitos
sociais, como alimentação, moradia e proteção
laboral aos trabalhadores. Todos esses direitos Ronald Reagan.
estariam garantidos através daquilo que alguns
economistas chamam de taxação progressiva da Ronald Reagan foi eleito o 40° Presidente dos
sociedade. EUA em novembro de 1980, após derrotar o
candidato democrata Jimmy Carter, que, na
época, era o presidente em exercício, tentando
reeleição. A vitória de Reagan foi esmagadora e Porém, a partir do final da década de 1960,
traduziu um desejo de mudança compartilhado ganharam força os questionamentos ao modelo
pela sociedade norte-americana. rooseveltiano do Estado provedor. Como
demonstra Jürgen Habermas, as críticas à social-
A situação, em parte, era semelhante à inglesa. democracia, nos EUA, tiveram o resultado de
Na década de 1930, em virtude da crise geral do refundar a direita norte-americana, dando início
capitalismo, os Estados Unidos, sob a liderança àquilo que o autor chama de “A nova
do presidente Franklin Delano Roosevelt (1882- obscuridade”. Além das críticas à carga
1945), estabeleceram um tipo de governo que tributária necessária para a manutenção do
podemos definir como sendo de matriz social- experimento social-democrata, ganhou forma,
democrata. também, um tipo de crítica cultural, que
explicava o comportamento considerado
desregrado da juventude (movimento pelos
O Estado se tornou o principal investidor e, por direitos civis da população negra, movimento
meio de obras públicas, gerou milhares de hippie, festival de Woodstock) pelas alegadas
empregos, agindo também como protetor social comodidades que o “Estado assistencialista”
dos mais pobres, com forte legislação possibilitava. Isso teria dado origem a uma
trabalhista. Isso tudo, às custas e tributação geração preguiçosa, hedonista e pouco afeita ao
progressiva da sociedade civil, na qual os ricos trabalho.
pagam mais impostos e os pobres são os
principais receptores dos direitos sociais
garantidos pelo Estado. Segundo os neoliberais, a situação de colapso
moral que estaria sendo vivenciada nos EUA,
O plano de reestruturação econômica idealizado nas décadas de 1960 e 1970, se explicava pela
por Roosevelt, que ficou conhecido como New “inflação de expectativas e reinvindicações
Deal, impactou o mundo no período impulsionada pela concorrência entre os
entreguerras, demonstrando os limites práticos partidos, pelas mídias de massa, pelo pluralismo
da tese do livre mercado, fundamental para o de associações etc. Essa pressão das
repertório liberal a partir do século XVIII, desde expectativas dos cidadãos “explode” em uma
os textos de Adam Smith (1723-1790) e David ampliação drástica das tarefas estatais. Os
Ricardo (1772-1823). As guerras mundiais e o instrumentos de controle da administração se
colapso do sistema capitalista internacional sobrecarregam com isso. A sobrecarga leva
mostraram que, em momentos de crise aguda, tanto mais às perdas de legitimidade quanto o
somente o Estado é capaz de promover
espaço de ação estatal é estrangulado por blocos
movimentos anticíclicos e estimular a economia
quando os investidores privados estão de poder pré-parlamentares, e quando os
assustados e pouco dispostos a correrem riscos. cidadãos responsabilizam o governo pelas
Segundo Pierre Dardot e Christian Laval, foi a perdas econômicas perceptíveis. Isso é tanto
“necessidade prática de intervenção do governo mais perigoso quanto mais a lealdade da
que pôs em crise o liberalismo dogmático, população depende de compensações materiais.
pautado numa ideia de desregulamentação que
(HABERMAS, 2015, p. 67)
nunca se consolidou na prática” (DARDOT;
LAVAL, 2016, p. 38).
Foi nesse clima de acirrado conflito e intensas
disputas entre concepções de Estado
diametralmente opostas que aconteceram as
eleições presidenciais de 1980. Todo o debate
eleitoral girou ao redor do legado do modelo
rooseveltiano. A vitória esmagadora de Reagan
decretou um novo momento na história dos
EUA, caracterizado pela radicalização da
perseguição às esquerdas, pelo enfraquecimento
dos sindicatos e pelo desmonte da legislação
destinada à proteção social.

Sinais para a eleição de 1936 nas ruas de Hardwick, Vermont, EUA.

A cultura do New Deal foi fundamental para a


superação da crise catastrófica que se abateu
sobre os EUA entre as décadas de 1930 e 1950.
AGENDA POLÍTICA NEOLIBERAL

A agenda política e econômica do


neoliberalismo consiste na radicalização de
preceitos liberais que vinham sendo
desenvolvidos desde o século XVIII. Na
primeira geração do liberalismo econômico,
podemos situar:

Ronald Reagan dando seu discurso de aceitação da nomeação na


Convenção Nacional Republicana, em Detroit, no estado de
Michigan, em 17 de julho de 1980.

Com todo custo social que tiveram, os governos


de Thatcher e Reagan conseguiram diminuir os
gastos públicos e garantir maior rendimento aos
setores mais dinâmicos e poderosos do
capitalismo na época, transformando o modelo
neoliberal de gestão em padrão hegemônico.

A força do neoliberalismo parecia inabalável, David Ricardo.


tendo sido coroada pelo Consenso de
David Ricardo (1772-1823)
Washington, realizado em 1989.

O “consenso”, como ficou conhecido, foi um


fórum internacional comandado pelo Banco
Mundial, pelo Fundo Monetário Internacional, o
FMI, e pelo Departamento de Tesouro dos EUA
que definiram o receituário neoliberal como o
único tecnicamente correto para administrar as
economias nacionais. O encontro estabeleceu
algumas “regras de ouro” para a boa prática da
gestão econômica, como a desregulamentação
dos gastos obrigatórios do Estado, a
privatização das empresas públicas e diminuição
da carga tributária. Adam Smith.

Adam Smith (1723-1790)


O principal efeito ideológico do Consenso de
Washington foi transformar aquilo que era uma
orientação ideológica em obrigação técnica e, Cada um a seu modo, ambos defenderam as
dessa forma, conseguir pautar o debate ideias do Estado mínimo e do livre mercado,
econômico mundial. sem desconsiderar o dilema do combate à
pobreza social, questão fundamental para o
pensamento econômico liberal.
Atenção
A hegemonia neoliberal, no entanto, não duraria
para sempre. O alvorecer do século XXI trouxe Para Ricardo e Smith, a pobreza social se
diversos questionamentos ao modelo neoliberal, resolveria naturalmente pela lógica da
impulsionando diferentes experiências de crise, complementariedade.
como estudaremos nas próximas seções. Por
enquanto, é importante dedicar mais atenção ao
Ou seja, setores com excesso produtivo
próprio neoliberalismo, às suas transformações,
compensariam o deficit produtivo de outros
tentando entender seu lugar na história do
setores, naturalmente, em troca impulsionada
pensamento político/econômico liberal.
pelo livre fluxo da atividade econômica, sem
interferência do Estado, que somente
atrapalharia o processo. Havia, nesses autores e
nas práticas políticas que eles inspiraram, aquilo Sendo a aquisição de um bem para o povo o
que podemos chamar de “utopia liberal”, traço externo visível comum nas medidas
segundo a qual o aprimoramento das liberdades liberais nos tempos antigos (e esse bem
individuais levaria à erradicação da pobreza consistia essencialmente numa diminuição da
social. coerção), resultou que os liberais viram o bem
do povo não como um objetivo que era
Atenção necessário atingir diretamente. E, procurando
O dilema da pobreza social tornou-se ainda atingi-lo diretamente, empregaram métodos
maior no século XIX, com o aprofundamento da intrinsecamente contrários aos que haviam sido
Revolução Industrial. Surgiram grandes empregados originalmente. (...) Querem
conglomerados urbanos em diversos países da lastimar as misérias dos pobres meritórios, em
Europa, com trabalhadores amontoados em vez de representá-las – o que na maioria dos
bairros proletários, com acesso precário à água e casos seria mais correto – como as misérias dos
aos serviços sanitários. As doenças se
pobres demeritórios. Em minha opinião, pode-se
espalhavam, assim como a violência.
considerar que um ditado cuja verdade é aceita
igualmente pela crença comum e pela crença da
Todos os grandes pensadores oitocentistas
ciência goza de uma autoridade incontestável.
trouxeram a pobreza social para o primeiro
plano de suas reflexões. No final do século XIX, Pois bem! O mandamento: “Se uma pessoa não
o filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903) deseja trabalhar, não deve comer” é
promoveu algumas mudanças no pensamento simplesmente o enunciado cristão dessa lei da
econômico liberal, especialmente no que se natureza sob império da qual a vida atingiu seu
refere à questão da pobreza social, tornando-se grau atual, a lei segundo a qual uma criatura que
matriz daquilo que posteriormente seria não é suficientemente enérgica para se bastar
conhecido como neoliberalismo. deve perecer.
(SPENCER apud DARDOT; LAVAL, 2016,
Tal como Ricardo e Smith, Spencer também pp. 46-47)
defendia que a pobreza social seria naturalmente
extinta pelo livre mercado. Porém,
O spencerianismo inspirou a formação de um
diferentemente dos seus antecessores, Spencer
grupo de economistas que ficaria conhecido
negava a lógica da complementariedade
como Escola de Chicago, formada por nomes
produtiva e, evocando os princípios do
como George Stigler (1911-1991) e Milton
darwinismo, falava em competição social.
Friedman (1912-2006). Em síntese, a Escola de
Chicago defendia o monetarismo, confrontando
o keynesianismo, que era o fundamento
econômico da social-democracia. Outro
importante grupo de economistas que
sistematizou os valores do neoliberalismo foi a
Escola Austríaca, representada por nomes como
Carl Menger (1840-1921), Eugen von Böhm-
Bawerk (1851-1914) e Ludwig von Mises
(1881-1973). As ideias de voluntariedade e
agência são norteadoras do pensamento
Herbert Spencer econômico desenvolvido pela Escola Austríaca.
Para os autores, as partes individuais devem ser
Para Spencer, a pobreza desapareceria com o totalmente livres para negociar suas interações
desaparecimento dos pobres, que, menos econômicas, sem nenhum tipo de regulação por
parte do Estado. Para os economistas da Escola
preparados para a disputa social, tenderiam
Austríaca, o indivíduo é a célula fundamental da
a desaparecer, a morrer. atividade econômica e, por isso, não deve ser
constrangido por interesses externos a ele.
Para isso, o Estado não deveria intervir no
processo, tampouco garantir amparo social aos Nas palavras de Mises:
pobres. Na lógica spenceriana, a pobreza social
acabaria na medida em que os pobres
desaparecessem. Nas palavras do próprio
Spencer no livro O indivíduo contra o Estado,
publicado pela primeira vez em 1884:
1. O neoliberalismo se consolidou como
modelo hegemônico de gestão do capitalismo
no final da década de 1980. Assinale a opção
que melhor define as principais
características do modelo.

Ludwig von Mises

Jamais houve um poder político que desistisse


voluntariamente de interferir na livre operação e
As principais características do neoliberalismo
no desenvolvimento da propriedade privada dos
são: privatização das empresas públicas,
meios de produção. Os governos toleram, com
diminuição da taxa tributária,
efeito, o direito dominical dos indivíduos apenas
desregulamentação das relações de trabalho e
quando não têm outro remédio; eles nunca
concepção de Estado mínimo.
admitem voluntariamente sua conveniência
social. Mesmo os políticos liberais,
convenhamos, quando chegam ao poder,
relegam a um certo limbo as ideias que os
alimentaram. As principais características do neoliberalismo
são: fortalecimento das empresas públicas,
(MISES apud GUERRA, 1998, p. 64) aumento da carga tributária para os mais ricos e
concepção de Estado como provedor de direitos
sociais.
Como podemos perceber na citação, o Estado,
para Mises, é força coercitiva, cuja única função
é constranger e limitar a liberdade individual.
Estamos aqui muito distantes da concepção de
Estado que foi desenvolvida por outros autores As principais características do neoliberalismo
do escopo liberal, como John Locke (1632- são: privatização das empresas públicas,
1704), para quem o Estado tinha a função de diminuição da taxa tributária,
garantir as liberdades individuais através da desregulamentação das relações de trabalho e
aplicação da lei. Em Mises, o Estado é a ameaça concepção de Estado como provedor de direitos
à liberdade individual, e, quanto menos Estado, sociais.
mais liberdade.

Foi esse modelo neoliberal que se tornou


hegemônico no capitalismo internacional em As principais características do neoliberalismo
fins do século XX e, como veremos a seguir, são: fortalecimento das empresas públicas,
entrou em colapso já nos primeiros anos do aumento da carga tributária para os mais ricos e
século XXI. concepção de Estado mínimo.

VERIFICANDO O APRENDIZADO

As principais características do neoliberalismo


são: fortalecimento das empresas públicas,
diminuição da carga tributária para os mais ricos
e concepção de Estado mínimo.

Comentário

Parabéns! A alternativa "A" está correta.

O neoliberalismo, ao tensionar com o modelo da


social-democracia, propõe o encolhimento das
atribuições do Estado.
2. Margaret Thatcher e Ronald Reagan se CRISE DO NEOLIBERALISMO NAS
fortaleceram como lideranças políticas AMÉRICAS
confrontando determinada concepção de
Estado. Assinale a alternativa que melhor
define essa concepção.

Neoliberal, caracterizada pela ideia do Estado


O século XXI nasceu sobre os impactos da
mínimo, segundo a qual o poder público não
lógica neoliberal acumulados ao longo da
tem compromisso com a justiça social e com a
década de 1990. Em regiões mais pobres do
remediação da miséria.
mundo, sobretudo na América Latina, as
diretrizes do Consenso de Washington
provocaram o empobrecimento geral das
sociedades civis, a precarização de serviços
Neoliberal, caracterizada pela ideia de que é públicos e o comprometimento da soberania
dever do Estado coordenar e estimular o nacional, com a privatização em empresas
desenvolvimento nacional, protegendo o públicas estratégicas. Um dos principais efeitos
trabalho e provendo direitos sociais aos mais do neoliberalismo se deu na transformação na
pobres. ideia de Estado e, consequentemente, de função
do poder público.

O Estado deixou de ser visto como o


Social-democrata, caracterizada pela ideia do responsável pela segurança e pelo bem-estar
Estado mínimo, segundo a qual o poder público
não tem compromisso com a justiça social e social da comunidade para ser tratado como
com a remediação da miséria. uma empresa que jamais pode dar prejuízo.

É o “Estado-firma”, nas palavras de Wendy


Brown.
Social-democrata, caracterizada pela ideia de
que é dever do Estado coordenar e estimular o Tanto as pessoas quanto os estados são baseados
desenvolvimento nacional, protegendo o no modelo da empresa contemporânea, espera-
trabalho e provendo direitos sociais aos mais se que tanto as pessoas quanto os Estados se
pobres. comportem de modos que maximizem seu valor
capital no presente e aumentem seu valor futuro,
e tanto as pessoas quanto os Estados o fazem
através de práticas de empreendedorismo,
Comunista, caracterizada pela ideia de que o autoinvestimento e atração de investidores.
modelo ideal de sociedade é aquele no qual (BROWN, 2015, p. 22)
inexistem as diferenças entre as classes sociais e
o resultado da riqueza econômica seja
desfrutado por todos. Como o autor deixa claro, a racionalidade
liberal, ou a “nova razão do mundo”, para
usarmos as palavras de Pierre Dardot e Christian
Comentário Laval, afetou todas as relações humanas, tanto
Parabéns! A alternativa "D" está correta. as públicas como as privadas. É como se o
neoliberalismo tivesse inflado a lógica
econômica a tal ponto que todas as ações
humanas passaram a ser vividas a partir das
ideias de lucro e prejuízo. Até mesmo a
temporalidade, como argumenta Arthur Ávilla,
Thatcher e Reagan tensionaram o modelo foi afetada pela lógica neoliberal, com
social-democrata, questionando a alta carga horizontes de futuro sendo fechados e a
tributária necessária para a manutenção dessa experiência humana sendo encerrada no eterno
concepção de Estado.
presente, no curto tempo da performance, da
eficiência e do consumo.

A mundialização dos preceitos neoliberais


provocou desconforto e mal-estar em diversas
regiões do mundo, o que deu origem ao
surgimento de diversos questionamentos que se
fortaleceram já nos primeiros anos do século
XXI. Podemos começar pela eleição de
governos de centro-esquerda em vários países
da América Latina, fortalecidos pela
Bandeira de Hugo Chávez durante as eleições presidenciais de abril
insatisfação daquelas sociedades com o modelo em Caracas, Venezuela, 2018.
de administração neoliberal. Em 2005, a
empresa de comunicação britânica BBC É claro que esses governos têm suas
realizou uma pesquisa e concluiu que ¾ dos 350 particularidades e qualquer tentativa de
milhões de pessoas que viviam na América generalização é analiticamente perigosa. Entre
Latina naquela altura estavam sendo governadas esses governos, podemos encontrar desde
por projetos políticos de esquerda ou de centro- projetos de conciliação nacional que tentaram
esquerda. negociar com as forças do capital, como foram
os casos do kirchnismo na Argentina e do
Na época, o fenômeno ficou conhecido como petismo no Brasil. Encontramos, também,
“guinada latino-americana”. Abaixo, a lista governos de enfrentamento e de ruptura, como
desses governos, com seus períodos de duração: foi o de Chávez, na Venezuela, e de Morales, na
Bolívia.
 Néstor Kirchner, na Argentina, entre 2003 e
2007.
 Cristina Kirchner, na Argentina, entre 2007 e Mas, se é possível pensarmos em características
2015. comuns a todos esses governos, como a rejeição
 Evo Morales, na Bolívia, entre 2006 e 2019. ao neoliberalismo e às diretrizes do Consenso de
 Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil, entre 2003 Washington e a recuperação da função social do
e 2011. Estado, suas trajetórias políticas também foram
 Dilma Rousseff, no Brasil, entre 2011 e 2016. bastante diversas.
 Ricardo Lagos, no Chile, entre 2002 e 2006.
 Michelle Bachelet, no Chile, entre 2006 e 2010 Alguns encontraram resistências e foram
e entre 2014 e 2018. golpeados logo no início, como foram os casos
 Oscar Arias, na Costa Rica, entre 2006 e 2011. de Manuel Zelaya, em Honduras, e de Hugo
 Maurício Funes, em El Salvador, entre 2009 e Chávez, na Venezuela, sendo que Chávez
2014. conseguiu reverter a situação e se manter no
 Salvador Sánchez Cerén, em Salvador, entre poder. Também Evo Morales foi golpeado, mas
2014 e 2019. depois de anos de governo. Fernando Lugo, no
 Rafael Correia, no Equador, entre 2007 e 2017. Paraguai, e Dilma Rousseff, no Brasil, foram
 Manuel Zelaya, em Honduras, entre 2006 e objeto de processos de impeachment polêmicos
2009. e definidos como “golpe parlamentar” por parte
 Daniel Ortega, na Nicarágua, desde 2007. da bibliografia especializada.
 Fernando Lugo, no Paraguai, de 2008 a 2012.
 Tabaré Vázquez, no Uruguai, de 2005 a 2010 e
depois de 2015 a 2020.
 José Mujica, no Uruguai, de 2010 a 2015.
 Hugo Chávez, na Venezuela, entre 1999 e 2013.
 Nicolás Maduro, na Venezuela, desde 2013.
Resumindo
No plano da política interna, Obama tentou
corrigir problemas estruturais históricos da
sociedade norte-americana, como, por exemplo,
a falta de um sistema de saúde ao qual os
cidadãos pudessem recorrer. Pode parecer
estranho aos nossos olhos, mas os EUA não têm
um sistema de saúde para atender à população
que não tem dinheiro para pagar pelo serviço
privado. Até o governo de Obama, os pobres
não tinham atendimento médico, o que traduz os
valores de um país construído historicamente a
partir da lógica do mercado, da iniciativa
privada, que desconfia de tudo que é público.

As resistências ao neoliberalismo nos primeiros


anos do século XXI não ficaram restritas à
América Latina. Também nas duas principais
potências do mundo, nos EUA e na China,
aconteceram críticas e questionamentos ao
neoliberalismo.

Ao criar o “Obama Care”, em 2010, Obama


Seria exagerado dizer que o governo do ofereceu plano de saúde subsidiado pelo Estado
democrata Barack Obama, entre 2009 e 2017, a todos os cidadãos americanos em situação de
rompeu com os preceitos neoliberais. Mas seria vulnerabilidade social. Com isso, o presidente
equivocado supor que sua administração seguiu trouxe o Estado para o debate nacional sobre o
os mesmos passos dos governos republicanos direito à saúde, recuperando a ideia, de matriz
anteriores, herdeiros de Ronald Reagan, que social-democrata, de que cabe ao poder público
fizeram dos EUA o laboratório mundial das garantir acesso a direitos sociais básicos.
práticas neoliberais. Obama, ao menos dentro Posteriormente, Donald Trump, sucessor de
dos EUA, relativizou algumas dessas Obama, tomou o desmonte do “Obama Care”
práticas, ainda que tenha as imposto a países como prioridade política, o que estudaremos
mais pobres. com mais calma na próxima seção, quando nos
dedicaremos aos populismos de extrema-direita,
Barack Obama iniciou seu governo sob grande que se fortaleceram em diversas partes do
euforia da sociedade civil norte-americana. mundo como um dos resultados do colapso do
Cerca de 2 milhões de pessoas compareceram à neoliberalismo.
cerimônia de posse em 24 de fevereiro de 2009,
num clima de congraçamento político que
CRISE DO LIBERALISMO NO MUNDO
poucas vezes se viu naquele país. Não era para
menos, pois os EUA acabavam de eleger o
primeiro presidente negro, concluindo um ciclo
de lutas da população afro-americana que havia
começado na década de 1960, com a jornada
dos direitos civis. O governo de Obama foi
bastante contraditório no que se refere à
comparação entre as políticas externa e interna.
Poucos presidentes dos EUA foram tão
belicistas como Barack Obama, cuja
administração foi marcada por intensa
movimentação militar, sobretudo no Oriente
Médio.
Também do outro lado do Oceano Atlântico, na interesses nacionais, condicionando toda
Ásia, diversos países organizaram estratégias de atividade econômica ao que Johnson chamou de
desenvolvimento econômico que confrontaram “pacto de desenvolvimento coletivo”. Não é
preceitos do neoliberalismo. Analisando difícil perceber que essa forma de tratar a
justamente a crise do império capitalista relação do Estado com a economia é
estadunidense, o cientista político norte- diametralmente oposta ao receituário neoliberal.
americano Chalmers Johnson (1931-2010) foi o A trilha aberta pelo Japão foi seguida por outras
primeiro a utilizar o conceito nações asiáticas.
“desenvolvimentismo asiático” para analisar
projetos econômicos emergentes naquela região O recado que vinha da Ásia parecia claro: o
do mundo ao longo dos primeiros anos do neoliberalismo ocidental, com sua concepção de
século XXI. O livro de Johnson, publicado em “Estado-firma”, não servia para aquela região
1982, se dedica principalmente ao “milagre do mundo. Foi exatamente dessa negação ao
econômico japonês”, mas as linhas gerais da neoliberalismo que se fortaleceu outra ideologia
análise do autor podem nos ajudar a político-econômica que na transição do século
compreender outros casos que configuram, em XX para o século XXI acabou reequilibrando a
grande medida, a crise contemporânea do geopolítica mundial, fazendo da Ásia a região
capitalismo neoliberal. mais economicamente ativa e desenvolvida do
planeta.
Em outra obra, publicada em 1993, Johnson se
debruçou especificamente sobre a história Em 1989, foi publicado outro livro sobre o
econômica dos países asiáticos na segunda desenvolvimentismo asiático, dessa vez
metade do século XX. Depois do trabalho de assinado pela economista norte-americana Alice
Johnson, tornou-se recorrente dizer que o Amsden (1943-2012). Sugestivamente
“estado desenvolvimentista” foi o grande intitulado Asia’s Next Giant (O próximo gigante
responsável pelo desenvolvimento econômico asiático, em tradução livre), Amsden ampliou a
acelerado da Coreia do Sul, Taiwan e Singapura análise de Johnson para a Coreia do Sul, para o
entre os anos 1960 e 1980, da China, a partir “milagre econômico coreano”, nas palavras da
dos anos 1990, e do Vietnã, no início do século própria autora. Segundo Amsden, no caso da
XXI. Coreia do Sul, o modelo de desenvolvimento
também era caracterizado pelo protagonismo
O “modelo econômico” japonês do pós-guerra do Estado, fincando suas raízes na primeira
não era original e vinha dos anos 1920; e sua metade do século XX, na luta anticolonialista
característica fundamental não era econômica, contra o próprio Japão.
tinha a ver com a “intensidade” com que a
sociedade e o governo japonês se dedicavam ao Sobre a China, Johnson também chama atenção
estabelecimento e cumprimento dos seus para a experiência da guerra anticolonialista, o
objetivos estratégicos. Esta “intensidade” se “campesinato revolucionário” como força de
devia ao fato de que o “modelo” tinha sido impulsão desenvolvimentista. Para os autores,
concebido como um instrumento de guerra e de as guerras fizeram com que as sociedades
asiáticas criassem vínculos de solidariedade e
reconstrução, depois da guerra, e como
confiança com o Estado, visto como o guardião
instrumento de defesa da soberania japonesa, dos interesses nacionais. A partir da leitura
frente aos desafios do mundo e do contexto desses autores, podemos analisar o
geopolítico asiático, na segunda metade do desenvolvimentismo asiático em quatro
século XX. características principais:
(JOHNSON, 2017, p. 91)
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O que o autor está dizendo?

Os motivos que explicam o sucesso


econômico japonês são mais políticos do que
propriamente econômicos.

Em um contexto de reconstrução nacional após


a Segunda Guerra Mundial, o Estado japonês
tomou para si a responsabilidade de zelar pelos
A prosperidade asiática observada em fins do se fazer bastante presente em nossa vida
século XX se deu pelo fortalecimento dos cotidiana. Caso esteja lendo esse texto em seu
Estados nacionais, algo que aconteceu em computador, recomendamos que vire o mouse e
meados do século passado, a partir de diversas procure o local em que o produto foi fabricado.
experiências de guerras emancipatórias. Isso A chance de encontrar um Made in China é
deu origem a um sistema interestatal regional grande. Se não acontecer, basta uma busca
altamente competitivo que ajudou a simples e você perceberá que muitos produtos
potencializar ainda mais o desenvolvimento dos que temos à nossa disposição são chineses.
países locais. Ainda que os EUA continuem responsáveis por
boa fatia do comércio internacional, o país
A estratégia econômica destes países asiáticos asiático deve assumir a dianteira até 2026.
esteve sempre muito longe dos valores
neoliberais, rejeitando frontalmente a premissa Por esse motivo, nenhuma análise sobre as
do “Estado mínimo”, ou do “Estado-firma”. dinâmicas comerciais do século XXI pode
ignorar a participação chinesa no mercado
Não há nenhuma instituição ou política que global. Apesar das inúmeras variáveis e
explique isoladamente o sucesso do crescimento divergências que compõem o complexo jogo
asiático, e que possa ser transplantada para que garantiu essa mudança, muitos analistas se
países que tenham se constituído ou estejam apoiam em duas explicações gerais para esse
fora de sistemas de poder altamente processo.
competitivos. A simples condição
de latecomer ou de “capitalismo tardio” não Segundo Rhys Jenkins (2019, p. 22), essas
explica nada, nem é capaz de gerar um projeto e mudanças podem ser observadas a partir de duas
uma estratégia de alto crescimento. lentes, uma externa e outra interna.

Os asiáticos nunca se referiram a si mesmos EXTERNA


como “desenvolvimentistas”. Suas estratégias
econômicas não têm nada a ver com o chamado Do ponto de vista externo, observa-se o impacto
“desenvolvimentismo latino-americano”. Sua significativo do "abandono das políticas
política industrial, comercial e macroeconômica keynesianas do consenso pós-guerra e a adoção
sempre esteve a serviço de sua “grande do neoliberalismo, especialmente sob Reagan
estratégia” social e nacional e da sua luta pela nos Estados Unidos e Thatcher no Reino Unido.
conquista ou reconquista de uma posição Uma das estratégias do capital para restaurar a
internacional autônoma e preeminente. Os lucratividade foi deslocar a mão de obra para
asiáticos têm plena consciência de que a política reduzir os custos da produção”.
econômica entregue a si mesma é cega e
incapaz de gerar seus próprios objetivos. E INTERNA
muito menos ainda de definir os objetivos de
uma sociedade e de uma nação.
Em contraste, a abordagem interna “toma como
ponto de partida as mudanças ocorridas na
Ao longo dos últimos séculos, os olhares do China após a morte de Mao Tsé-Tung em 1976.
chamado “mundo ocidental” permaneceram As reformas na política econômica começaram
bastante concentrados nos países que orbitavam com Deng Xiaoping em 1978 e desencadearam
em torno das economias europeias e dos Estados um processo dinâmico de crescimento que
Unidos. Não fossem os países árabes, por sua ampliou a competitividade da China"
participação decisiva no mercado global de (JENKINS, 2019, p. 22).
petróleo, e pela Rússia, em função de seu
desenvolvimento econômico e das tensões
vestigiais da Guerra Fria, nossas preocupações Nesse sentido, enquanto os países “ocidentais”
provavelmente seriam ainda mais diminuíram significativamente a presença do
ocidentalizadas. Não sem razão, muitos se Estado na economia, a China adotou uma
viram perplexos diante da emergência da China posição oposta, que permitiu o desenvolvimento
no cenário global, que passou a ostentar taxas tecnológico, a ampliação do mercado
médias de crescimento econômico de 10% a consumidor global e diversas outras ações que
partir da década de 1990. tornaram o país atrativo, inclusive, a
investidores estrangeiros.

Ao longo dos anos, nenhum país ocidental


conseguiu rivalizar com esses índices e,
gradualmente, a frase Made in China começou a
substâncias psicoativas. Esse último caso,
inclusive, merece uma observação mais atenta.

Não menos importante, os processos de


globalização e multilateralismo contribuíram
francamente para o aumento do comércio
internacional de drogas. Ainda que parte dos
processos de importação e exportação de drogas
se dê por vias próprias, a ampliação dos
Em 2001, as exportações chinesas ganharam circuitos de trocas comerciais permitiu que
novo impulso com a adesão à Organização muitos comerciantes incluíssem suas
Mundial do Comércio (OMC). Diversas mercadorias proibidas em redes regulares, o que
empresas da China começaram a realizar obras exige permanente esforço de fiscalização por
no exterior, e os empréstimos de bancos parte das autoridades aduaneiras. Também é
chineses também consolidaram sua presença nos difícil rastrear o destino dos valores adquiridos
mercados financeiros globais. com comércio ilegal. Ainda que traficantes
locais façam investimentos locais e fracionados
para “lavar” o dinheiro ilícito, acredita-se que
Em suma, essa mudança econômica parte importante das cifras seja regularizada
desencadeou uma série de efeitos, como as através de aplicações no mercado financeiro,
chamadas “guerras comerciais”, que muito mais difíceis de identificar.
representam, talvez, um dos aspectos mais
visíveis do protagonismo chinês nesse início
do século XXI.

MERCADOS IRREGULARES

Oficial da aduana dos EUA recompensa seu cão


farejador após identificar narcóticos escondidos
em uma embalagem em Chicago.

Os números estimados ao longo do século XXI


são bastante esclarecedores em relação ao poder
desse mercado ilegal. Em 2003, o mercado
Ainda que a ênfase nos estudos sobre as varejista de drogas teria arrecadado algo em
dinâmicas comerciais se dê a partir de torno de 322 bilhões de dólares, soma que é
elementos visíveis, parte importante das maior do que o PIB de muitos países. De acordo
transações econômicas globais acontece à com o relatório Estimating Illicit Financial
margem dos esforços oficiais de contabilização. Flows Resulting From Drug Trafficking and
Para além dos grandes debates acerca do modus Other Transnational Organized Crimes (2011),
operandi de parte do mercado financeiro, da o comércio irregular teria sido responsável por
ausência de transparência em muitas transações, valores próximos a 1,5% do PIB mundial em
dos processos de lavagem de dinheiro e de 2009, com destaque para o narcotráfico.
depósitos que se avolumam em paraísos fiscais, Estimativas do World Drug Report, publicação
parte do movimento no comércio global se anual do Escritório das Nações Unidas sobre
desdobra para além da superfície através da Drogas e Crimes, mostram que, no início do
venda e compra de produtos de inegáveis século XXI, cerca de 5,2% da população
impactos políticos, sociais e econômicos. mundial entre 15 e 64 anos fez uso, regular ou
esporádico, de alguma substância psicoativa
ilegal. Em 2012, atingiu-se o número de 4,7% e,
Exemplo em 2015, 5,5%. O relatório aponta que o
O comércio ilegal de armas de fogo é um aumento no consumo acompanha o crescimento
exemplo conhecido, assim como o de
demográfico, mas se mantém percentualmente 1. No começo do século XXI, aconteceu
estável (UNODC, 2019). aquilo que alguns autores chamam de
“Guinada latino-americana”, que consistiu
Também vale destacar que a distinção geral na ascensão de governos de esquerda e
entre drogas lícitas (tabaco, álcool, ansiolíticos centro-esquerda na América Latina. Assinale
etc.) e ilícitas (maconha, cocaína, crack, a opção que melhor define a característica
metanfetamina) não depende das características comum a esses governos.
de cada droga, haja vista que muitas
substâncias, hoje ilegais, já foram permitidas e
muitas drogas, hoje ilegais, já foram autorizadas
sem qualquer regulamentação. Há inúmeras
questões envolvidas nessa equação, desde o
estigma social do usuário até a criminalização
da pobreza. Todos esses governos tiveram em comum o
compromisso com projetos radicais de reforma
agrária que transformaram profundamente a
estrutura fundiária latino-americana.

Todos esses governos tiveram em comum o


compromisso com projetos de implementação
de ditaduras militares que transformaram a
geopolítica latino-americana.

Refletindo
Todos esses governos tiveram em comum as
Com o passar dos anos, a crise do críticas, em níveis distintos, aos preceitos
neoliberalismo foi ganhando contornos mais neoliberais e às diretrizes do Consenso de
trágicos, motivados pela insatisfação social Washington.
provocada pela precarização da qualidade de
vida em diversos países ocidentais. Esse
ambiente de frustração e ressentimento serviu
como combustível para a ascensão de governos Todos esses governos tiveram em comum
de extrema-direita, que, nos anos 2010, projetos de estatização dos sistemas de
colocaram em risco a própria ideia de comunicação, o que refundou a estrutura de
democracia liberal representativa, que comunicação social na América Latina.
estudaremos na próxima seção.

VERIFICANDO O APRENDIZADO
Todos esses governos tiveram em comum
projetos de universalização dos direitos
indígenas, o que provocou uma avalanche de
políticas públicas de reparação histórica que
mudaram o mapa social latino-americano.

Comentário

Parabéns! A alternativa "C" está correta.

Os governos da “guinada latino-americana”


confrontaram os preceitos neoliberais,
recuperando a ideia de função social do Estado.
2. Na política interna, o governo de Barack COMO AS DEMOCRACIAS MORREM
Obama confrontou algumas premissas do
receituário neoliberal. Assinale a opção que
melhor define a forma como Obama fez isso.

Obama confrontou algumas premissas do


receituário neoliberal ao aumentar os gastos
com investimento militar, rompendo, assim, Em 2018, chegou ao Brasil o best seller Como
com a lógica do ajuste fiscal. as democracias morrem, de Steven Levitsky e
Daniel Ziblatt, publicado originalmente nos
EUA em 2017. O sucesso do livro escrito pelos
professores de Ciência Política da Universidade
de Harvard foi mundial, o que pode ser
Obama confrontou algumas premissas do explicado pelo tema tratado no texto, o que nos
receituário neoliberal ao aumentar os gastos interessa diretamente aqui, em nossos estudos.
com obras públicas, rompendo, assim, com a Os autores analisaram as crises democráticas
lógica do ajuste fiscal. contemporâneas e o seu principal
desdobramento no plano político: a ascensão de
governos de extrema-direita em diversos
países, como EUA, Georgia, Hungria,
Filipinas e Brasil.
Obama confrontou algumas premissas do
receituário neoliberal ao diminuir os gastos com
investimento militar, rompendo, assim, com o O tema também foi explorado por outro livro de
histórico de política externa agressiva dos EUA. destacado sucesso no mercado editorial
internacional: trata-se de O povo contra a
democracia, escrito pelo cientista político
Yascha Mounk e publicado no Brasil também
em 2018. É a partir desses dois textos que
Obama confrontou algumas premissas do
discutimos as crises democráticas
receituário neoliberal ao aumentar os gastos
contemporâneas, explorando suas relações com
com obras públicas, reforçando, assim, com a
o colapso internacional da ordem capitalista
lógica do ajuste fiscal das contas públicas.
neoliberal.

Mas de que tipo de crise democrática estamos


Obama confrontou algumas premissas do falando?
receituário neoliberal ao subsidiar com dinheiro
público plano de saúde para os cidadãos mais Tanto “crise” como “democracia” são termos
pobres, rompendo com a lógica privatista que bastante polissêmicos no vocabulário político
marcava historicamente o setor nos EUA. ocidental. Começaremos esclarecendo com
cuidado qual modalidade de democracia está
Comentário colapsando nos dias de hoje. Trata-se do
experimento democrático liberal burguês que
Parabéns! A alternativa "E" está correta. nasceu no século XVIII na Europa e nos EUA,
tendo se tornado hegemônico mundialmente no
final da década de 1980, com o fim da URSS e
com o término da Guerra Fria.

Até o governo de Barack Obama, não havia A convicção de que a democracia liberal era
qualquer compromisso do poder público nos vitoriosa foi tão forte que o cientista político
EUA com a promoção do direito à saúde, e o norte-americano Francis Fukuyama chegou a
“Obama Care” rompeu com a tradição privatista decretar o “fim da história”, como se a
no setor, trazendo o Estado para o campo de humanidade houvesse chegado, definitivamente,
promoção dos direitos sociais. ao ponto final de sua evolução política. Em
trabalho conjunto, os cientistas políticos norte-
americano e alemão Alfred Stepan e Juan Linz crise se manifestou, sempre em países pobres,
afirmaram que a democracia liberal era a “única sobretudo na América Latina, África e Ásia.
opção” e que tinha “vindo para ficar”.
Atenção
O argumento era o de que a desigualdade social,
a pobreza estrutural e o baixo nível de
industrialização dificultavam a consolidação da
democracia, potencializando projetos políticos
autoritários, como as ditaduras militares que
governaram a América Latina, incluindo o
Brasil, entre as décadas de 1960 e 1980.

John F. Kennedy durante a visita do então presidente João Goulart


aos Estados Unidos em 1962. Posteriormente descobriu-se que o
Queda do muro de Berlim, simbolizando o fim da Guerra Fria, 1989.
presidente estadunidense planejava invadir militarmente o Brasil
para depor o governo de Goulart.
A história teria acabado com o triunfo da
democracia liberal, fundada no princípio da A causa das crises democráticas, então, não
representação política e na proteção das seria o modelo liberal, mas o precário
liberdades individuais contra a tirania do desenvolvimento capitalista desses países, sendo
Estado, que seria o melhor arranjo já inventado os ataques à democracia originários sempre de
pela humanidade no sentido de viabilização da atores políticos exteriores ao funcionamento da
vida coletiva. Diz Yascha Mounk: própria democracia, como as forças armadas.

Impressionados com a estabilidade sem paralelo Sobre essas crises democráticas, Steven
das democracias ricas, os cientistas políticos Levitsky e Daniel Ziblatt escreveram:
começaram a conceber a história do pós-guerra
em diversos países como um processo de Durante a Guerra Fria, golpes de Estado foram
“consolidação democrática”. Para sustentar uma responsáveis por quase três em cada quatro
democracia, o país devia atingir um alto nível de colapsos democráticos. As democracias em
riqueza e educação. Tinha de construir uma países como Argentina, Brasil, Gana, Grécia,
sociedade civil vibrante e assegurar a Guatemala, Nigéria, Paquistão, Peru, República
neutralidade de instituições de Estado Dominicana, Tailândia, Turquia e Uruguai
fundamentais, como o judiciário. Grandes forças morreram dessa maneira. (...) Com um golpe de
políticas tiveram de aceitar que deviam deixar Estado, a morte da democracia é imediata e
os eleitores – e não o poder de seus exércitos ou evidente para todos. O palácio presidencial arde
de suas carteiras gordas – determinar os em chamas. O presidente é morto, aprisionado
resultados políticos. Todos esses objetivos ou exilado.
frequentemente se revelaram esquivos.
(LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, p.17)
(MOUNK, 2018, pp. 18-19)
A segunda década do século XXI negou os
Qualquer eventual crise nas democracias prognósticos feitos no final dos anos 1980. A
liberais era explicada, e justificada, pelas democracia liberal não era uma realidade eterna.
condições inadequadas das sociedades em que a O mundo viu um novo tipo de crise
democrática, bem diferente do modelo
“clássico” observado no século XX e capaz de ascensão de Hugo Chávez, em 1999, e os EUA,
desestabilizar o ambiente político, também, em com a eleição de Donald Trump, em 2016.
países ricos. Agora, a democracia não está
colapsando apenas em países pobres. Em ambas as situações, argumentam Levitsky e
Ziblatt, a própria democracia, representada
Países ricos, de desenvolvimento capitalista pelos partidos políticos estabelecidos e pelas
avançado, estão vendo seus sistemas instituições legislativas e judiciárias, falhou ao
democráticos ruírem. Dessa vez, a morte da permitir que lideranças com evidentes ideias
democracia não acontece em dia marcado, antidemocráticas tivessem a oportunidade de
demarcada claramente por um evento de apresentar seus projetos à sociedade civil. O
ruptura, por um golpe de Estado. A democracia aspecto aparentemente contraditório desse novo
morre aos poucos, de dentro para fora, sendo tipo de crise democrática está no fato de que as
assassinada por líderes políticos eleitos pelos lideranças populistas chegam ao poder
próprios ritos democráticos. legitimadas pelas eleições (o rito mais sagrado
da democracia) sendo, inclusive, apoiadas por
Porém, há outra maneira de arruinar uma segmentos relevantes da sociedade civil.
democracia. É menos dramática, mas
igualmente destrutiva. Democracias podem Se essas lideranças foram eleitas, se são
morrer não nas mãos de generais, mas de líderes apoiadas por segmentos relevantes da sociedade
eleitos – presidentes ou primeiros-ministros que civil, por que representam ameaças à
subvertem o próprio processo que os levou ao democracia? Novamente, é relevante prestar
poder. Alguns desses líderes desmantelam a atenção no que dizem Steven Levitsky e Daniel
democracia rapidamente, como fez Hitler na Ziblatt.
sequência do incêndio do Reichstag em 1933 na
Alemanha. Com mais frequência, porém, as Uma vez que um aspirante a ditador consegue
democracias decaem aos poucos, que mal chegar ao poder, a democracia enfrenta um
chegam a ser visíveis. segundo teste crucial: irá ele subverter as
instituições democráticas ou ser constrangido
(LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, p.15) por elas? As instituições isoladamente não são o
bastante para conter autocratas eleitos.
Levitsky e Ziblatt afirmam que, do ponto de Constituições têm que ser defendidas – por
vista das defesas democráticas, os novos tipos partidos políticos e cidadãos organizados, mas
de crise dificultam ainda mais a autodefesa dos também por normas democráticas, que nem
regimes democráticos. Como não há um
sempre estão codificadas em lei.
momento claro de ruptura, pois o processo de
erosão da democracia se dá dentro dos próprios (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, pp. 18-19)
ritos democráticos, nada é capaz de disparar os
dispositivos de alarme da sociedade.
ASCENSÃO DE TRUMP

Uma mulher com a foto de Hugo Chávez em protesto a favor dele. Em março de 2016, e-mails particulares de John
Caracas, Venezuela, 2007. Podesta, principal responsável pela campanha
de Hillary Clinton, foram divulgados pela
Assim, quando a sociedade civil se dá conta, o
WikiLeaks. As mensagens não continham nada
autoritarismo já está instalado. Os autores
que pudesse levantar suspeitas. No entanto,
destacam dois casos emblemáticos desse novo
fóruns da internet com usuários anônimos
tipo de crise democrática: a Venezuela, com a
passaram a explorar a repetição das
palavras pizza e cheese (queijo) nas mensagens.
Eles alegaram que o termo cheese pizza era uma
espécie de código para child
pornography (pornografia infantil), amparados
sobretudo na coincidência que criaram entre as
iniciais "c" e "p". A história continuou sendo
alimentada e novas palavras foram associadas à
pedofilia: segundo esses usuários, por exemplo,
a palavra sauce (molho) fazia referência,
naqueles e-mails, a orgias. A narrativa começou
a ficar ainda mais intrincada: esses abusos
sexuais aconteceriam em um suposto porão da
pizzaria Comet Ping Pong, em Washington.

As instituições da democracia (tribunais de


O irmão do coordenador da campanha de justiça, parlamento, órgãos regulatórios e
Hillary, Tony Podesta, frequentava esse instituições policiais), em si, não são capazes de
estabelecimento. O dono da pizzaria, James resistir aos ataques dos autocratas eleitos, que,
Alefantis, foi apresentado a John Podesta e uma vez no governo, investem no
chegaram a organizar um jantar de arrecadação aparelhamento desses espaços.
de fundos para a campanha de Hillary. Não
tardou para que outras questões fossem
associadas à pizzaria, como suposto É necessário que os atores políticos e a
envolvimento dos donos com cultos satânicos. sociedade civil zelem pelo cumprimento das
A então candidata passou a ser acusada de
normas que muitas vezes não estão
associação com uma rede de pedofilia e a
repercussão foi tão enfática que até mesmo codificadas, mas que são fundamentais para
investigações policiais foram realizadas e, como o pleno funcionamento da democracia.
era de se supor, nenhum indício que sustentasse
essas alegações foi identificado. O FBI, ainda Levitsky e Ziblatt chamam essas normas de
que acionado, se recusou a investigar um fato “padrões de comportamento democrático não
visivelmente falso, criado no meio da disputa escritos”, como, por exemplo, o comedimento
política. no uso das prerrogativas constitucionais, o
respeito à liturgia no exercício do cargo,
Não menos importante, e ainda que a campanha confiança nos tribunais eleitorais, aceitação dos
de Hillary Clinton também tenha adotado esse resultados eleitorais. Os autores demonstram
expediente, as fakes news circularam mais e de como Donald Trump, eleito em 2016 o 45°
forma mais intensa em favor de Donald Trump, Presidente dos EUA, atuou como inimigo da
conforme diversas análises sugerem democracia, corroendo por dentro aquela que
(SILVERMAN, 2016). tinha a fama de ser a república mais estável do
mundo.
Muitos consideram que a eficácia dessa tática de
Trump não pode ser apartada do conhecimento Os autores, convencidos de que os EUA são o
dos dados dos usuários fornecidos ilegalmente país mais “livre do mundo”, o que denota
pelo Facebook: conhecer minuciosamente o postura algo etnocêntrica, mostram estupefação
perfil dos eleitores permitiu produzir notícias com o comportamento de Donald Trump no
falsas que exploravam questões sensíveis governo daquele país.
para o eleitorado norte-americano. Um dos
nomes mais expressivos nesse contexto foi de
Steve Bannon, diretor executivo da campanha
de Trump que também era responsável
pelo Breitbart News, um veículo de mídia de
extrema-direita.

Uma forca foi pendurada perto do Capitólio dos Estados Unidos


durante a invasão do Capitólio dos Estados Unidos em 2021
Sem contar que o texto foi escrito antes da
invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021,
quando, em um evento inédito na história dos
EUA, o candidato derrotado não reconheceu o
resultado das eleições e insuflou seus
apoiadores a invadirem o parlamento.
Definitivamente, o novo tipo de crise
democrática não acontece, apenas, em países
pobres, de desenvolvimento capitalista atrasado.

Mas ainda podemos investir mais na questão A democracia não é simplesmente o governo
elementar para essa reflexão: se esses fundado na vontade da maioria. Esse é um
autocratas foram eleitos e são apoiados por aspecto elementar da democracia, mas não a
setores relevantes da sociedade civil, por que esgota. A democracia não pode se esgotar na
representam um perigo para a democracia? simples manifestação da vontade da maioria
porque é função do Estado democrático
proteger, também, as minorias, muitas vezes
Agora, é Yascha Mounk quem nos ajuda na contra a vontade da maioria. Posições políticas
reflexão. minoritárias e derrotadas nas eleições, minorias
étnicas, grupos socialmente vulneráveis por
As democracias liberais têm muitos mecanismos questões de raça e gênero. É dever da
de controle criados para impedir um partido de democracia garantir a existência, na
acumular demasiado poder e para conciliar os diversidade, dessas pessoas, com pleno acesso
interesses de grupos diferentes. Mas na a todos os direitos garantidos pela cidadania.
imaginação dos populistas a vontade do povo Por isso, ao transformar a democracia em tirania
não precisa ser mediada e qualquer da maioria, esses autocratas eleitos, mesmo que
compromisso com as minorias é uma forma de contando com apoio de setores numericamente
relevantes da sociedade, se transformam em
corrupção. Nesse sentido, os populistas são
risco para a ordem democrática.
profundamente democratas: muito mais
fervorosos do que os políticos tradicionais, eles
acreditam que o demos deve governar. Mas Há ainda outra questão fundamental em nosso
também são profundamente iliberais: ao exercício de compreensão das crises
democráticas contemporâneas. Yascha Mounk
contrário dos políticos tradicionais, dizem
demonstra dados que apontam para um cenário
abertamente que nem as instituições
bastante preocupante:
independentes nem os direitos individuais
devem abafar a voz do povo.
Há um quarto de século, a maioria dos cidadãos
(MOUNK, 2018, pp. 23-24) das democracias liberais estava muito satisfeita
com seus governos e o índice de aprovação de
Se debruçando sobre diversos exemplos de suas instituições era elevado; hoje, a desilusão é
lideranças autocráticas de extrema-direita que maior do que nunca. Há um quarto de século, a
vêm se fortalecendo no mundo recentemente, o maioria dos cidadãos tinha orgulho de viver
autor propõe uma tipologia geral desse tipo de numa democracia liberal e rejeitava
orientação política ideológica. Seja nos EUA de enfaticamente uma alternativa autoritária a seu
Donald Trump, na Hungria de Viktor Orbán, na sistema de governo; hoje, muitos estão cada vez
Grã-Bretanha de Nigel Farage, na França de mais hostis à democracia.
Marine Le Pen ou no Brasil de Jair Bolsonaro,
está acontecendo a perversão da própria ideia de (MOUNK, 2018, p. 19)
democracia que vem sendo construída na
cultura ocidental desde os gregos. O que mudou? Por que o povo está contra a
democracia? A resposta passa pela situação de
Temos aqui uma discussão muito difícil e que mal-estar social gerado pela própria lógica
econômica neoliberal que já estudamos.
exige de nós muita atenção!

Até mesmo nos países ricos, cada vez mais, o


neoliberalismo está cobrando um alto preço
social. Na medida em que o Estado, movido
pela necessidade de corte de gastos e pela
imposição de projetos de ajuste fiscal, vai COVID-19 E O MUNDO EM CRISE
abandonando sua vocação protetora, as pessoas
se sentem mais desamparadas.

O trabalho nunca esteve tão precarizado, a Em 11 de março de 2020, a Organização


ponto de, mesmo nas economias centrais, ser Mundial da Saúde usou pela primeira vez o
raro encontrar trabalhador, fora do serviço termo “pandemia” para se referir à covid-19.
público, sendo protegido pelos direitos Naquela altura, a doença já estava espalhada
tradicionais garantidos pela social-democracia, pelo mundo, impondo desafios estruturais à
como férias remuneradas, 13° salário, licença- ordem social, política e econômica capitalista.
maternidade. Soma-se à “flexibilização das Liberdades individuais como o direito de ir e
relações trabalhistas” a precarização dos vir, livre mercado, Estado mínimo. Todo o
serviços públicos provocada pela redução da sistema de valores construído desde o século
capacidade de investimento dos governos. A XVI, que estruturou historicamente o
máxima neoliberal do “Estado mínimo” é capitalismo, foi desafiado pela doença que se
especialmente opressora com as pessoas mostrou ser, antes de tudo, uma patologia
comuns, trabalhadoras, e generosa com os social.
grandes investidores que atuam no mercado
financeiro. Desde o início, os especialistas foram claros: até
o desenvolvimento de vacinas capazes de
É como se fosse “Estado mínimo” para a imunizar em massa a população mundial e de
remédios com poder de atenuar os efeitos da
maioria da população e “Estado máximo” doença, o isolamento e o distanciamento social
para os grandes operadores financistas. eram as únicas formas de conter o avanço do
vírus. Começou, então, aquele que talvez tenha
A população percebe isso, entende que a sido o mais espetacular capítulo da história da
política se transformou no avalista da ciência.
especulação e direciona sua revolta às
instituições democráticas e à classe política Os cientistas mais brilhantes do mundo
tradicional. Não à toa, Donald Trump foi eleito começaram a trabalhar 24 horas por dia com o
nos EUA com um discurso contra Wall Street, e objetivo de desenvolver substâncias capazes de
prometendo defender os empregos da indústria controlar o contágio e a letalidade do
norte-americana. Nesse sentido, a ascensão dos SARSCOV-19. A vacina foi desenvolvida em
populismos de extrema-direita, que no mundo tempo recorde. A “corrida pela vacina” se
inteiro estão abalando a ordem liberal- tornou mais do que uma urgência de saúde
democrática, é um dos desdobramentos do pública. Transformou-se mesmo em questão
esgotamento do modelo neoliberal de geopolítica de primeira importância.
acumulação capitalista. Na próxima seção,
estudaremos como a pandemia da covid-19,
decretada pela OMS em março de 2020, vem
intensificando as contradições do
neoliberalismo.
Em agosto de 2020, a Rússia, sob desconfianças ocidentais não eram capazes de enfrentar o novo
da comunidade científica internacional, desafio que se impunha ao mundo.
registrou a SPUTNIK V, primeira vacina contra
a covid-19. O governo russo, comandado por
Vladimir Putin, viu na vacina a oportunidade de
reeditar o protagonismo do país vigente nos
tempos da Guerra Fria.

O mundo, entretanto, recebeu a vacina russa


com ressalva e o imunizante não foi usado pelas
nações centrais. Isso aconteceria apenas com a
vacina BNT162b2 desenvolvida pela
farmacêutica multinacional Pfizer, em parceria
com o laboratório alemão Biontech.

Saiba mais
Em 08 dezembro de 2020, Margaret Keenan, Outro recado claro que a pandemia da covid-19
mulher inglesa com 90 anos, se tornou o deu ao mundo foi em relação ao esgotamento do
primeiro ser humano vacinado contra a covid- neoliberalismo como modelo viável de
19. A partir de então, a “vacina do Pfizer”, organização da economia capitalista.
como ficou popularmente conhecida, passou a
ser usada em diversos países do mundo, com a Atenção
exceção daqueles que tiveram o infortúnio de
O SARSCOV-19 não mata apenas as pessoas,
serem governados por lideranças negacionistas.
mas também a capacidade do Estado em tratar
os doentes. Como o vírus tem grande
Mesmo com o desenvolvimento em tempo capacidade de contágio, muitas pessoas
recorde da vacina, a pandemia continuou adoecem ao mesmo tempo, o que sobrecarrega
avançando, provocando milhares de mortes por os hospitais públicos e privados, demandando
dia, em todos os países do mundo, com destaque dos governos mais investimentos na construção
para EUA, Índia e Brasil, que rapidamente se de estruturas hospitalares de emergência, na
tornaram epicentros mundiais da pandemia. A aquisição de insumos médicos e na viabilização
limitação operacional dos laboratórios e a de assistência social e políticas públicas de
dificuldade da comunidade internacional em distribuição de renda para aqueles cujo sustento
avançar na discussão sobre a quebra das depende da atividade social, da circulação de
patentes foram os principais obstáculos para que pessoas.
a humanidade avançasse em ritmo acelerado no
sentido da imunização em massa e do fim da
Em outras palavras, para sermos mais diretos:
pandemia.
com as necessárias medidas de restrição de
atividade social, a economia mundial entrou na
Portanto, mesmo com vacinas disponíveis, a maior recessão desde 1929, o que praticamente
covid-19 continuou avançando e matando. anulou a capacidade de investimento das
empresas privadas. Se a iniciativa privada não é
capaz de, por si só, contrariar o ciclo econômico
Governos de quase todos os países do mundo se recessivo, quem seria? A resposta é óbvia: o
viram, então, obrigados a adotar medidas de Estado, o poder público, os governos. Mas
restrição de movimentação social, decretando como fazê-lo dentro da cartilha neoliberal? A
toques de recolher, lockdowns, multando resposta está vindo da economia mais capitalista
pessoas que transitassem nas ruas sem do mundo, que, simplesmente, propõe o
justificativa. Criou-se, assim, a normalização de abandono da cartilha neoliberal.
um Estado de exceção que durou muitos meses,
nos quais os direitos de livre movimento e de
reunião, dois entre os mais importantes no Estamos falando do governo do democrata
repertório do liberalismo político democrático, Joe Biden nos EUA.
foram sacrificados. Aqueles que por séculos
foram considerados direitos individuais
sagrados, como símbolos da luta da sociedade
contra a tirania do Estado, foram suspensos,
mostrando na prática, como os valores políticos
NOVOS RUMOS? VERIFICANDO O APRENDIZADO

1. Diversos estudos especializados apontam


para a existência de uma crise democrática
no mundo contemporâneo. Assinale a
alternativa que melhor define essa
experiência de crise.

Biden assumiu a Casa Branca no início de 2021


em um cenário político bastante conflituoso,
como já vimos na seção anterior. Logo nos
primeiros dias de seu mandato, Biden anunciou
um pacote de recuperação econômica na ordem As crises democráticas contemporâneas são
de 2,3 trilhões de dólares, o maior da história sempre precedidas por guerras civis, que
daquele país. Trata-se de investimento público marcam a transição da situação democrática
direto em proteção social a pessoas e empresas e para governos autoritários comandados por
obras de infraestrutura com o objetivo de gerar lideranças militares.
empregos. Segundo o economista norte-
americano Paul de Grauwe, Biden está
rompendo com a herança de Reagan e
retomando herança ainda mais antiga, de
Franklin Roosevelt (1882-1945), o New Deal. As crises democráticas contemporâneas são
Biden estaria, portanto, ainda segundo Paul de sempre precedidas por crises econômicas que se
Grauwe, apresentando para a sociedade norte- desdobram em distúrbios sociais, o que marca
americana um Great New Deal e, com isso, está com clareza a transição da ordem democrática
dizendo ao mundo que os preceitos neoliberais para a ordem autocrática.
não são capazes de solucionar a crise provocada
pela pandemia, que só o Estado, agindo como
indutor do desenvolvimento e não como
“firma”, pode proteger a economia e a vida das As crises democráticas contemporâneas são
pessoas. marcadas pela eleição de autocratas que
manipulam as instituições da democracia,
A China e a Rússia, adversários globais dos implodindo o sistema por dentro, sem que a
EUA, também aumentaram a participação dos transição para a ordem autocrática seja
investimentos públicos em suas economias. O claramente delimitada por um evento fundador.
mesmo aconteceu na Espanha, Portugal,
Inglaterra e França, também segundo os dados
apresentados por Paul de Gauwe. Poucos países
do mundo ainda insistem na fórmula neoliberal As crises democráticas contemporâneas são
do ajuste fiscal e da redução de gastos públicos, marcadas pela intervenção direta das forças
como o Brasil e a Índia. Não à toa, são países armadas no processo político, o que faz com que
que, após mais de um ano de pandemia, o colapso da democracia seja facilmente
encontram mais dificuldades em controlar o identificado por um evento fundador.
número de pessoas infectadas e mortas pelo
SARSCOV-2.

Não seria exagerado, portanto, afirmar que a As crises democráticas contemporâneas são
pandemia da covid-19 representa mais um caracterizadas pela eleição de lideranças
capítulo na história das crises do capitalismo, militares, que, uma vez no poder, são golpeadas
por lideranças civis autocráticas, o que torna o
tendo a especificidade de ter escancarado os colapso da democracia facilmente identificável
limites da lógica neoliberal. por um evento fundador.
Comentário catástrofe ambiental potencializada pela lógica
neoliberal da acumulação capitalista.
Parabéns! A alternativa "C" está correta.

A insatisfação das diversas sociedades civis


com a ordem democrática se explica pela
As crises democráticas contemporâneas são
inclinação autoritária que sempre fundamenta a
provocadas pela disfuncionalidade das próprias
racionalidade política das massas.
instituições democráticas, quase sempre a partir
da eleição de lideranças autocráticas. Não há um
evento disruptivo claro capaz de delimitar o Comentário
momento de morte da ordem democrática.
Parabéns! A alternativa "C" está correta.

A ascensão dos populismos de extrema-direita


que, em diversas partes do mundo, está
2. As crises democráticas contemporâneas provocando a derrocada da democracia liberal é
são marcadas pela insatisfação da sociedade um dos desdobramentos da lógica neoliberal. Na
civil com as instituições democráticas. medida em que o Estado protetor se transforma
Marque a opção que melhor explica essa em Estado-firma, direitos sociais até então
insatisfação. garantidos pelo poder público são destruídos, o
que aumenta a situação de mal-estar social e,
por conseguinte, a insatisfação da sociedade
civil contra as instituições estabelecidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A insatisfação das diversas sociedades civis
com a ordem democrática se explica pela Neste estudo, nos dedicamos a entender com
constante incapacidade da democracia liberal mais cuidado a história recente do capitalismo
em atender aos desejos de liberdades políticas internacional, com atenção especial à dinâmica
individuais. neoliberal e às crises por ela provocada. Como
vimos na primeira seção, o neoliberalismo é
hegemônico no sistema capitalista desde a
década de 1980, quando nasceu com a promessa
A insatisfação das diversas sociedades civis de desonerar a sociedade civil da carga
com a ordem democrática se explica pela tributária necessária para a manutenção do
dificuldade da democracia em atender às Estado de Bem-Estar Social. Com o tempo,
demandas da cultura popular, sobretudo no que entretanto, o resultado foi o contrário, tendo
se refere às festas pertencentes ao repertório do como consequências o aumento das
folclore. desigualdades sociais e a precarização das
condições de vida em diversas cidades do
mundo. O aumento das insatisfações sociais
levou a diversos questionamentos do modelo
neoliberal ao longo das duas primeiras décadas
A insatisfação das diversas sociedades civis do século XXI, indo desde governos
com a ordem democrática se explica pela progressistas na América Latina e nos EUA até
situação de mal-estar social, insegurança laboral os populismos de extrema-direita, passando pelo
e precarização das relações de trabalho desenvolvimentismo asiático.
provocadas pela lógica neoliberal da
acumulação capitalista.
A pandemia da covid-19, deflagrada no início
de 2020, se tornou a prova cabal da dificuldade
do neoliberalismo em reagir a crises estruturais,
quando a economia precisa de incentivos e a
A insatisfação das diversas sociedades civis iniciativa privada não pode investir, seja porque
com a ordem democrática se explica pela não tem dinheiro, seja porque não tem confiança
para gastar suas reservas. Em situações desse
tipo, somente o Estado, agindo como indutor do
desenvolvimento social e econômico, é capaz de
romper com o ciclo da carestia.

É impossível saber de antemão os


desdobramentos da atual crise do capitalismo.
Certo mesmo é que a história do capitalismo,
desde o início, é a história de suas crises, mas
também de suas refundações. A ver o que
acontece dessa vez.

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