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SALLUMTempo

JR., Brasilio. Sobre oRev.


Social; dossiêSociol.
FHC. Tempo
USP, Social; Rev. Sociol.
S. Paulo, 11(2):USP,
1-2,S.out.
Paulo, NOTA
11(2): 1-2, out. 1999 (editado
1999 em DE
fev.
2000). (editado em fev. 2000). APRESENTAÇÃO

Sobre o dossiê FHC


o organizar este número especial Tempo Social, busca-se cumprir,

A com os meios de se que dispõe, o que se considera uma das respon-


sabilidades da Universidade: analisar criticamente o modo como
vem sendo conduzidos os negócios públicos no país.
Não se trata obviamente de responsabilidade inscrita em lei ou esta-
tuto. Nem de encargo derivável da natureza da Universidade. Trata-se de uma
responsabilidade reivindicada, por quem entende que a Universidade, como centro
de transmissão e produção de saber mantido pelo poder público, deve pôr-se em
sintonia com o movimento democratizante que atravessa a sociedade.
Embora a missão de analisar crítica mas objetivamente as ativida-
des governamentais sempre seja espinhosa, o fato de estar em questão o pri-
meiro governo de Fernando Henrique Cardoso multiplica as dificuldades.
A própria origem acadêmica do presidente da República e de um
número expressivo de seus auxiliares torna mais intrincada a usualmente com-
plexa relação entre sujeito e objeto de conhecimento. Quando se analisa o
governo Fernando Henrique, a dificuldade não provém apenas de os cientistas
sociais serem parte da própria sociedade da qual destacam um aspecto para
analisarem. O nó está também no fato de que o objeto de investigação tem no
seu núcleo o que era, até há pouco, parte significativa do “mundo acadêmico”
– intelectuais que constituíam marcos importantes do seu sistema de referên-
cias e com quem, por vezes, os sujeitos da investigação mantém ou, pelo me-
nos, mantinham relações profissionais e afetivas.
Isso já não seria pouco, mas não é tudo. A dificuldade não aumenta
apenas porque participantes significativos da “comunidade acadêmica” se trans-
feriram para o governo em exame, mas também porque o contato dessa comuni-
dade com a política nacional não tem sido epidérmico. Nas últimas décadas,
vem ocorrendo o contrário. Nos anos 70, uma parte da comunidade acadêmica
passou a participar ativamente da vida política nacional, fazendo oposição ao
regime militar por meio de várias vias institucionais – SBPC, imprensa nanica,
MDB, etc. Depois, na década de 80, quando a oposição política segmentou-se
em distintos partidos, a comunidade seguiu-lhe os passos, desdobrando-se em
tendências políticas distintas e participando tanto do debate público, das cam-
panhas eleitorais e dos movimentos de massa como também do exercício do
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SALLUM JR., Brasilio. Sobre o dossiê FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 1-2, out. 1999 (editado em fev.
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poder de Estado, seja no plano federal, estadual ou municipal. O mundo acadê-


mico tem se mostrado, pois, permeável à política nacional, tem sido transpassado,
dividido e envolvido por divisões e conflitos políticos.
Ademais, com a passagem dos anos 80 para a década de 90, as fraturas
político-ideológicas existentes no meio acadêmico ganharam outra dimensão. Na
nova década, tanto o núcleo da agenda política deslocou-se da democratização
para a liberalização econômica, acompanhando as mudanças em curso em âmbito
mundial, como as forças políticas redefiniram suas posições no plano nacional.
Esta redefinição de agenda e de posicionamento político ocorreu aos poucos, atin-
gindo o auge no governo Fernando Henrique. O impacto dessas mudanças sobre a
ideologicamente já dividida “comunidade” acadêmica foi enorme. Divergências
em torno de meios e diferenças de ênfase em relação a objetivos políticos similares
não deixaram de existir, mas foram deslocadas por contraposições mais profun-
das ancoradas em valores contrapostos. Em meio a essas divisões, as ações de
governo tendem a ser qualificadas de forma absoluta, negativa ou positivamente,
conforme sua identificação com os valores em confronto.
Certamente, algumas dessas circunstâncias prejudiciais à análise
sociológica do governo Cardoso seriam minimizadas com o tempo. De fato, a
circunstância de se fazer uma análise “sem perspectiva histórica”, isto é, com
os analistas envolvidos pelo mesmo confronto de valores em disputa na arena
política, dramatiza as dificuldades inerentes à produção de conhecimentos nas
ciências sociais. Mas é justamente essa contemporaneidade que torna mais
relevante a tarefa do ângulo da construção da democracia.
Os cientistas sociais convidados por Tempo Social responderam ao
desafio que lhes foi proposto com análises que constituem, em conjunto, avanço
significativo na compreensão da história contemporânea. É notável o esforço
que se fez para reconstituir de forma cuidadosa e equânime cada política exa-
minada e o governo como um todo.
Os aspectos abrangidos pelos artigos aqui publicados certamente
não esgotam todas as áreas da atuação governamental e nem mesmo todas as
cuidadas por ministérios específicos. As limitações de espaço tornaram isso
inevitável. Mesmo assim, cobriu-se uma ampla faixa das atividades de gover-
no – a política econômica e as relações Estado/mercado, a reordenação da
Federação, as relações Executivo/Legislativo, as políticas sociais, de educa-
ção, de saúde, de segurança pública, as relações Estado/trabalhadores urba-
nos e Estado/propriedade agrária/trabalhadores rurais.
Não cabe aqui expor o conteúdo de cada um dos artigos, mas ape-
nas manifestar a esperança de que a sua leitura constitua estímulo para que se
intensifique o debate qualificado sobre o modo como se vem governando a
sociedade brasileira. Se assim for, este número terá colocado o seu tijolo no
processo de construção da democracia.

Professor do Departa- Brasilio Sallum Jr.


mento de Sociologia
da FFLCH - USP (organizador do dossiê)
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TOURAINE, Alain.Social;
Tempo O campo político de FHC. USP,
Rev. Sociol. TempoS.
Social;
Paulo,Rev.11(2):
Sociol.3-22,
USP, S. Paulo,
out. 1999 DOSSIÊ
11(2): 3-22, out. 1999 (editado emFHC
fev.
2000). (editado em fev. 2000). o
1 GOVERNO

O campo político de FHC


ALAIN TOURAINE

RESUMO: O artigo pretende mostrar que, embora o sociólogo presidente UNITERMOS:


Fernando Henrique Cardoso tenha sido severamente criticado por ter abando- mobilização social,
economia global,
nado suas antigas idéias e ter se entregado à ditadura do mercado, um balanço
liberalismo,
de seu primeiro mandato, além de ser claramente positivo, situa-o no domínio capacidade de ação
de centro-esquerda, o que faz esperar que sua segunda presidência poderá política,
representar, para o Brasil, o renascimento da vida social e política. democracia.

A
política não é a ação de uma vontade soberana sobre uma situação
maleável; esta imagem só pode corresponder a regimes autoritários
e se destrói por si mesma, pois os resultados de um tal voluntarismo
são sempre opostos aos fins proclamados. A política é, ao contrá-
rio, um esforço para intervir num conjunto de limitações interiores e exterio-
res de todas as ordens, de modo a alargar o campo do possível, ou seja, a
diminuir o peso destas limitações. O mais importante, na análise de uma polí-
tica, é, portanto, avaliar a capacidade de ação política. Esta capacidade é tanto
mais fraca quanto os atores sociais, políticos e outros são, ao mesmo tempo,
mais fortes e mais autônomos; ela é mais forte, ao contrário, quando a autori-
dade do poder é exercida sobre uma sociedade fraca, em crise, até mesmo
perturbada. É por isto que as situações revolucionárias, nas quais o poder
político parece dominado pelos movimentos sociais, são, ao contrário, mais
favoráveis à formação de um Estado forte, já que a sociedade está mais em
crise do que em ação, e os atores políticos ou sociais particulares são ao mes- Diretor de Estudos da
mo tempo fracos e pouco autônomos, pois que se trata de uma crise geral. O EHESS - Paris

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TOURAINE, Alain. O campo político de FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 3-22, out. 1999 (editado em fev.
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que nos leva a uma constatação clássica. Sem democracia, o Estado é mais
forte; na democracia, ele é muito fraco; a ponto que certos liberais ou marxis-
tas sonharam com uma redução extrema do Estado, o que deixaria o papel
principal aos atores e sobretudo às contradições do sistema econômico. Faça-
mos aqui a hipótese, que tentaremos utilizar e a respeito da qual tentaremos
argumentar, de que o Brasil contemporâneo é um país de fraca capacidade
política, exceto em situações de crise extrema.
Esta formulação parece paradoxal. A história do Brasil não é, ao
contrário, desde os inícios da República, a de um Estado que unifica um terri-
tório vasto muito diversificado? Excelentes análises mostraram o fracasso da
construção de uma democracia liberal nos anos 20 e a frouxa predominância
de um Estado modernizador autoritário, mais que liberal, sob Vargas, assim
como sob a ditadura militar. A única exceção notável foi a presidência de
Juscelino Kubitchek, já que depois dele assistiu-se a uma rápida decomposi-
ção do poder. Este Estado forte conduziu com decisão uma política de indus-
trialização que acelerou a urbanização, mas também a distância entre a cidade
e o campo, os ricos e os pobres, que outrora no Brasil eram freqüentemente
fisicamente próximos uns dos outros, não somente nos domínios rurais, mas
que se expressava também pela presença de favelas no centro das grandes
cidades. Os anos 70 viram um país em grande expansão suportar desigualda-
des sociais cada vez maiores. O lento retorno à democracia não mudou a situ-
ação e o Brasil não empreendeu uma luta ativa contra a desigualdade. Foi
mesmo uma liberalização mal controlada e roída pela corrupção a que predo-
mina durante a presidência de Fernando Collor. Esta situação, agravada por
uma inflação que se aproximava de uma hiper-inflação, foi herdada por FHC.
Quando ele foi eleito presidente da República, o Brasil estava fraco.
A abertura liberal da economia foi feita em condições desastrosas. A situação
diante da qual o Brasil se encontrava nada tinha contudo de particular; era a
mesma de quase todos os países. Depois da Segunda Guerra Mundial, os regi-
mes de reconstrução nacional apoiavam-se sobre um forte movimento de
integração, ao mesmo tempo em que, no mundo inteiro, surgiram conflitos so-
ciais, num momento em que a economia internacional estava desorganizada e
numerosos países se encontravam numa situação de extrema fragilidade, em
particular os novos países nascidos da descolonização, que estavam quase sem
recursos. Este período durou relativamente pouco tempo. No início dos anos 70,
encerrou-se o crescimento na União Soviética, e, durante este decênio, os países
ocidentais industrializados deram prioridade para a abertura dos mercados in-
ternacionais. Vinte anos mais tarde, pode-se dizer que a resistência do
voluntarismo do pós-guerra cessou em toda parte. O que não quer dizer que o
mundo instalou-se de modo durável numa sociedade de mercado, mas antes que
vivemos a formação lenta e difícil de novos atores sociais e políticos capazes de
limitar os efeitos dos mercados internacionalizados, e de combinar a abertura da
economia mundial com a manutenção ou criação de garantias sociais e de uma
diversidade cultural real no nível internacional ou local. Na América Latina,
certos países tomaram claramente a via liberal. Foi o caso da Bolívia, depois da
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hiper-inflação e o retorno ao poder de Victor Paz Estensoro, como também do


Chile, que só obteve resultados positivos a partir de 1983-1984. Outros resisti-
ram a esta evolução geral, seja por incapacidade de colocar em causa uma eco-
nomia administrada – que foi durante muito tempo o caso da Argentina e, de
maneira muito diferente, da Venezuela – seja pela força que o modelo naciona-
lista e voluntarista havia adquirido. Foi em parte o caso do México; foi sobretu-
do o caso do Brasil, já que o milagre brasileiro, pilotado pelo Ministro Delfim
Neto, tinha sido fundado sobre intervenções políticas.
O Brasil conheceu pois o movimento geral de globalização e por-
tanto de abertura da economia, apoiando-se em forças econômicas importan-
tes, sobretudo as empresas de São Paulo, mas sem que fosse transformado o
conjunto da sociedade e, em particular, o próprio setor público e, sobretudo, a
representação geral pela sociedade de seu próprio desenvolvimento.
O recuo do voluntarismo de Estado liberou dois tipos opostos de
forças sociais. O primeiro é formado pelas elites regionais. Elas haviam sido
mais ligadas ao poder de Estado no Brasil do que no Peru, por exemplo, ou no
México, pois os coronéis eram mais ligados ao poder central do que os monales
ou os caciques de outros países. O segundo tipo, ao contrário, é formado pela
classe média ligada ao Estado, que tinha sido a grande beneficiária da política
nacional popular, e que sofreu os efeitos negativos da nova política econômi-
ca do Estado. São estas categorias médias ligadas ao Estado, mais do que as
categorias populares sobre as quais pesam as grandes desigualdades que mais
se opõem ao abandono do voluntarismo de Estado, que são e permanecem
ligadas a uma ideologia que os franceses denominam republicanista ou
soberanista. Mais fraco ainda, e há muito tempo no Brasil, foi o voluntarismo
revolucionário da guerrilha, brutalmente destruído pelo regime militar a partir
do AI-5 de 1968. O Brasil, portanto, saiu do modelo dirigista do pós-guerra
mais do que entrou numa sociedade liberal capaz de grandes iniciativas. Vem
daí o fracasso de várias tentativas de reforma monetária e da luta contra a
inflação. No lugar do voluntarismo de Estado, fora de uma crise grave, só
pode existir, numa democracia, um sistema de relações políticas centrado so-
bre instituições representativas e que assegure uma ligação aceitável entre o
poder do Estado e o Parlamento e entre o Parlamento e as forças sociais, quais-
quer que sejam suas formas de organização. Este modelo ideal, que
correspondeu muito bem ao sistema político britânico e também às sociais-
democracias européias, pode ser modificado em dois sentidos. O primeiro o
aproxima do modelo americano que, por um lado, é caracterizado por um
poder presidencial forte e sobretudo por um poder de controle constitucional,
e, por outro, por um poder monetário, que asseguram um elo direto entre as
diversas forças sociais e econômicas e o Presidente, enquanto o Congresso
assegura uma ligação, que é freqüentemente fraca, entre o Estado e a socieda-
de, influenciada por lobbies e por pressões dos interesses locais. Mas este
sistema presidencial supõe uma grande capacidade de ação dos atores sociais
e em particular econômicos, o que compensa largamente a fragmentação da
vida política. O segundo, ao contrário, distancia-se do modelo “central” por
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uma pressão mais direta das forças sociais sobre o Estado e em particular
sobre o Parlamento. É um modelo muito europeu, no qual as noções de direita
e de esquerda indicam uma forte ligação entre atores sociais e representantes
políticos. Mas, no período recente, este laço enfraqueceu-se muito, a ponto
que alguns chegaram a pensar que não havia mais diferença entre políticas de
esquerda ou de direita, o que certamente não corresponde à realidade, mas
indica uma crise séria deste modelo político.
O que caracteriza a situação brasileira é que a capacidade de ação
política do Presidente não somente não foi fortalecida, mas foi mesmo
enfraquecida pela fragmentação tanto dos atores políticos quanto dos atores
sociais. Mesmo que não exista no Brasil nenhuma tendência importante para
um regime autoritário, pode-se dizer que a sociedade política brasileira ofere-
ce melhores apoios a um dirigente autoritário do que a um dirigente democrá-
tico. A comunicação entre o Estado e as demandas sociais encontra dois obs-
táculos principais. Primeiro a fragmentação e a instabilidade do mundo políti-
co, onde quase não existem partidos organizados e autocontrolados. O PFL é
o que está mais próximo de ser um partido; o PMDB é o que está mais distan-
te. Esta fraqueza acarreta uma surpreendente mobilidade dos eleitos, que pas-
sam em grande número de um partido para outro durante uma mesma
legislatura. Esta situação é aparentemente favorável ao Presidente, que não
encontra resistência em partidos fortes; de fato, ela diminui a capacidade de
decisão política já que ele deve – como ocorre também nos Estados Unidos –
assegurar-se de uma maioria, obtendo não o acordo global de um partido, mas
antes o apoio, freqüentemente frágil, dos candidatos eleitos preocupados so-
bretudo em defender interesses locais. O próprio PT age pouco como um par-
tido e mais como uma coalizão de forças de oposição que se agrupam cada
vez mais em torno dos candidatos possíveis à próxima eleição presidencial,
como Lula ou Tarso Genro.
Em segundo lugar, a capacidade de ação política diminuiu por causa
da fraca integração da própria sociedade. Por mais que a integração territorial
tenha progredido e que tenham sido criados e fortalecidos pólos de desenvolvi-
mento fora de São Paulo, a integração social é fraca – desigualdades sociais
muito fortes, existência de uma população marginalizada, precarizada ou exclu-
ída nas cidades e no campo. Os progressos importantes realizados durante a
primeira presidência de FHC não impediram que o acesso à educação seja ainda
muito desigual, e os contrastes nas situações urbanas ainda impressionantes .
Este fenômeno não é apenas brasileiro, mas é preciso medir sua im-
portância para este país assim como para muitos outros. As categorias “não
integradas” – quer se trate de desempregados e dos que dependem de rendimen-
tos precários, dos participantes de uma economia criminosa ou, inversamente,
daqueles que vivem numa economia global mais do que numa sociedade nacio-
nal – representam uma parte importante da população. Há um terço de século os
intelectuais latino-americanos, em particular argentinos mas também brasilei-
ros, já debatiam e disputavam entre si para saber se aqueles que chamamos de
marginais formam um exército de reserva da força de trabalho ou um fenômeno
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mais global e mais permanente. Foi esta segunda interpretação que se impôs.
Não para satisfazer-se com o conteúdo vago e ambíguo da palavra marginalidade
mas, ao contrário, porque a análise deslocou-se das relações de trabalho para o
modo de desenvolvimento; em termos mais concretos, ela se deslocou da socie-
dade industrial para o que é mais propriamente o capitalismo, sobretudo inter-
nacional e financeiro, que orienta a mudança econômica e social em função dos
interesses dos acionistas. É impossível examinar qualquer ação política sem dar
uma importância central a esta transformação. Nós não temos mais face a face
um patronato e uma classe operária – ou, pelo menos, esta relação é cada vez
menos central – mas sim uma recentralização da atividade econômica em torno
do lucro mais do que da produção ou da repartição de bens. A cena sócio-políti-
ca esvaziou-se; ao invés de se falar em patrões, fala-se da globalização; ao invés
de exploração, fala-se de exclusão. Todo juízo que se refere ao conflito de clas-
ses como um eixo central da política tornou-se exterior à realidade e não nos
informa mais. Em contrapartida, é legítimo nos perguntarmos se a oposição
entre a direita e a esquerda foi substituída por aquilo que alguns denominam
pensamento único, ou seja, a subordinação dos principais dirigentes políticos ao
poder mundializado dos capitalistas, sejam eles oriundos da esquerda ou da
direita, expressão que designa tanto fundos de pensão sindicais quanto opera-
ções propriamente especulativas. Mas devemos rejeitar imediatamente esta tese,
como o fazem aliás os eleitores que não se dividem ao acaso entre os partidos, e
que, mesmo se a abstenção freqüentemente aumenta, consideram sua escolha
importante e representativa de seus interesses. De maneira mais realista, consta-
tamos que a cena social está mais vazia do que no passado, ao mesmo tempo em
que a capacidade de ação política enfraqueceu-se. A impressão do “vazio” so-
cial e político, assinalada por muitos, é justa. Os problemas são visíveis por
toda parte, na violência metropolitana ou na pobreza ou desemprego, mas, entre
estes fatos e sua expressão política há uma vasta distância que aumenta ao invés
de diminuir. As ciências sociais no Brasil – assim como no Chile, que estiveram
por muito tempo associadas graças ao CEPAL – foram o centro de criação de
idéias, de pesquisas, de debates sobre o Continente, entre os economistas e os
antropólogos, tanto quanto entre os sociólogos. Hoje em dia, entretanto, as ciên-
cias sociais no Continente e, em particular, no Brasil, fazem-se ouvir menos. O
Chile está quase silencioso e, mesmo se o México é mais criador de idéias, a
inovação intelectual no Brasil parece mais fraca do que antes, e, assim como em
outros lugares, tem-se a impressão que os intelectuais reagem mais como cate-
goria socioprofissional do que como analistas. Este juízo deve ser relativizado
pois diversas universidades elevaram claramente o seu nível. O Rio de Janeiro
tem ganho vida neste domínio assim como em outros, e São Paulo permanece
bem equipado. Fica contudo o fato de que, como em quase todos os lugares nos
anos 90, os intelectuais no Brasil estão na defensiva; eles denunciam,
freqüentemente de modo justo, as violências, as desigualdades ou o enriqueci-
mento de alguns, mas não definem claramente as causas destas situações nem
como elas evoluem, nem sobretudo qual é a margem do possível e as condições
de transformação de situações consideradas como inaceitáveis.
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Impõe-se uma conclusão: a passagem de sociedades “inner-directed”


para sociedades “other-directed” para falar como Riesman, de sociedades ori-
entadas “hacia adentro”, para falar como o CEPAL, para sociedades orienta-
das para fora, pela ação de empresas econômicas internacionais e redes finan-
ceiras, fez com desaparecessem os atores sociais e políticos voltados para o
interior, ou seja, que acreditam na possibilidade de transformações sociais
internas, e os substituiu por uma mistura pouco integrada de denúncia global,
de defesa de interesses particulares ou locais e por uma separação quase com-
pleta entre os intelectuais e a política. O que o FMI pensa tornou-se muito
mais importante do que aquilo que os universitários dizem.
Última observação: sabemos, entretanto, que esta representação não
é inteiramente justa e que em todas as grandes crises regionais pelas quais
passamos nos últimos vinte anos as causas nacionais e os remédios nacionais
sempre tiveram uma importância extrema. Pode-se falar da queda do rublo em
agosto de 1998 sem falar da impotência do poder russo para controlar a eco-
nomia de seu país? Os japoneses não são os principais responsáveis pelo fato
da bolha financeira que se formou em seu país ter estourado e causado desas-
tres? No caso brasileiro, também, seria superficial lançar toda a responsabili-
dade sobre os movimentos especulativos internacionais. A sobrevalorização
do real com suas conseqüências sobre o comércio exterior e as taxas de juros
explica-se por razões internas e em particular pelo medo do governo e dos
experts de que uma desvalorização acarretasse uma nova onda de inflação
que não seria contida e conduziria a perturbações graves. Os capitais nacio-
nais e estrangeiros analisam as situações nacionais e regionais de maneira
objetiva, mas seu comportamento, em geral de recuo, pode agravar uma crise
nacional e amplificar suas conseqüências por um efeito de dominó. O que
caracteriza todas as graves crises nacionais recentes é que elas foram acompa-
nhadas por uma consciência da impotência nacional, da incapacidade de pre-
ver a crise e de enfrentá-la. Ao passo que a experiência histórica mostra que,
ao contrário, nestas crises os governos poderiam ter agido para reajustar mais
ou menos rapidamente uma situação ameaçadora. A ação do Presidente Zedillo
no México certamente não impediu as categorias populares e médias de paga-
rem o preço alto do reajuste econômico; pelo menos, este reajuste foi obtido.
No Japão, depois de numerosos apelos internacionais, o governo decidiu apoiar
os pedidos. Existe um contraste surpreendente entre a consciência da impo-
tência da maior parte dos países e sua procura por responsabilidades exterio-
res, de um lado, e, de outro, da capacidade real dos governos nacionais para
tomar decisões, de um tipo ou de outro, que têm efeitos importantes, positivos
ou negativos, sobre a vida econômica nacional. Esta fraqueza – freqüentemente
até mesmo esta ausência de capacidade de definir o possível e de intervir – em
geral conduziu a crises econômicas acompanhadas de ruptura social,
desencadeadas por uma inflação que sempre se transformava em hiper-infla-
ção ou chegava a níveis suficientemente elevados para desorganizar a socie-
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TOURAINE, Alain. O campo político de FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 3-22, out. 1999 (editado em fev.
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dade. Se a queda do Chile autoritário em 1981 nos lembra que uma ditadura
militar não é proteção contra um fracasso econômico, o caso da Bolívia ou da
Argentina mostraram a possibilidade de uma intervenção nacional, enquanto
o caso do México e em parte o do Brasil mostraram a extrema importância de
garantias internacionais dadas aos países ameaçados. É difícil encontrar um
exemplo de país que tenha elaborado uma política de reajuste sem ruptura. O
Brasil foi o caso mais distante desta capacidade de ação autônoma. Bem re-
centemente, a Argentina, mergulhada na catástrofe econômica, soube reerguer-
se ao preço de um grande aumento do desemprego, mas levou a efeito várias
reformas profundas que dão à sua economia chances bem melhores do que no
passado. O Brasil fracassou por diversas vezes em sua luta contra a inflação.
Provavelmente, porque se esforçou para procurar na própria sociedade os re-
médios para a crise, para lutar contra a inflação. Esses fracassos mostraram a
incapacidade da sociedade para agir sobre si mesma e de modificar suas pró-
prias condutas. Os planos que obtiveram êxito, por mais distintos entre si que
tenham sido, tiveram como traço comum o de organizar-se em torno de medi-
das técnicas, não propriamente sociais, antes de tudo monetárias, e, portanto,
impondo-se ao país inteiro, independentemente das proposições, em geral fra-
cas, dos atores políticos. A planos tecnocráticos impostos, como dizem mui-
tos, juntam-se aqueles impostos pelo FMI. Esses juízos, mesmo se estão lon-
ge de corresponder à maioria dos casos, insistem muito justamente sobre o
fato de que os planos que permitiram ao país recuperar-se e vencer a inflação
foram aceitos por países em grande crise e em geral com a oposição ou a
reticência dos atores sociais, pois essas crises se situavam para além da capa-
cidade de ação política e social. Tais crises, e é preciso repeti-lo, tinham cau-
sas mais interiores do que exteriores.
No Brasil, como na Argentina, a principal medida foi a de criar uma
nova moeda ligada ao dólar, para impedir a dolarização selvagem da economia.
Este método de choque pôs um fim à inflação, o que acarretou no Brasil uma
grande redistribuição de renda em favor de categorias pobres e periféricas, já
que a inflação era para elas um imposto esmagador, enquanto as categorias que
dispunham de recursos e, portanto, de uma poupança maior protegiam-se da
inflação utilizando-se das escalas móveis. O Nordeste e os pobres puderam au-
mentar o seu consumo e o Presidente FHC recebeu um grande apoio da opinião
que correspondia mais ao sucesso de um plano do que à vitória de certas forças
políticas e sociais. Durante a primeira presidência FHC, o verdadeiro Presidente
foi o Real, muito eficaz no início e apoiado pelas categorias populares, enquanto
as classes médias públicas estavam reservadas ou hostis em relação a um gover-
no que queria reformar, ou seja, reduzir as vantagens relativas destas categorias.
Situação que pode parecer paradoxal: FHC, acusado de traição contra o povo
pela sua aliança com um partido de direita, foi apoiado pelas categorias popula-
res e criticado ou rejeitado por uma fração importante e crescente das classes
médias assalariadas. Mas, o sucesso do Plano Real não criou por si mesmo
condições interiores nacionais que teriam permitido ao país transformar-se, por
não conhecer uma nova crise e aumentar pois sua capacidade de ação sobre si
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mesmo. É aqui que o balanço do período que corresponde à primeira presidên-


cia FHC se torna negativo. O fim da inflação não acarreta reformas suficientes
para permitir à economia brasileira viver com uma taxa de câmbio tão forte e
empreender reformas profundas. O que se observa, e que foi tão freqüentemente
descrito, é que o real logo foi supervalorizado, o que fez com que diminuíssem
as exportações e aumentassem as importações. Inquietos com este desequilíbrio,
os capitais começaram a se afastar e foi preciso para retê-los propor-lhes taxas
de juros tão altas que ameaçavam a capacidade nacional de investimento e que,
por consequência, enfraqueceram a economia brasileira. O Mercosul, ao contrá-
rio, foi, durante este período, pouco afetado, pois as duas moedas, o austral
(peso) e o real, eram mantidas paralelamente a uma taxa de câmbio próximo da
conversão com o dólar. O que reforça minha análise anterior é que, durante
muito tempo, o Brasil recusou-se a desvalorizar pelo medo de uma onda de
inflação e porque a estabilidade da moeda era a principal razão da confiança do
povo no Presidente. O reino do real lhe dava, em princípio, uma grande liberda-
de de ação, já que a estabilidade monetária lhe valia um forte apoio popular.
Mas, entretanto, ao final desta primeira presidência explode uma grave crise, de
alcance internacional, acompanhada de uma outra crise mais diretamente interi-
or, a da revolta dos governadores. Mesmo no momento atual, no qual o Brasil
mostrou que saía mais depressa do que o previsto da crise monetária, da alta
extrema das taxas de juros e da baixa do produto nacional, a opinião brasileira
tornou-se fortemente hostil ao Presidente e a fraqueza da moeda aumentou por
causa de fortes pressões vindas do interior. O balanço deste período, todavia,
está longe de ser negativo. O aparelho de Estado foi modernizado, a educação
de base fez grandes progressos e os mecanismos de redistribuição de créditos
para a educação em favor dos estados e dos municípios pobres foram postos em
ação. As empresas, sobretudo as industriais, confrontadas a condições de câm-
bio muito desfavoráveis, reagiram, pelo menos parcialmente, e o Brasil perma-
nece claramente como um país industrial no qual as exportações de tecnologias
avançadas são mais elevadas do que as de café.
Mas estes resultados, aparentemente positivos, não impedem que
as duas grandes fraquezas que assinalei se agravem ou se mantenham. O Pre-
sidente pôde, no meio da crise, tomar medidas para diminuir os déficits públi-
cos, mas elas ainda são insuficientes e os Estados ainda gastam demais em
relação às suas rendas, do mesmo modo que o sistema de aposentadorias é ao
mesmo tempo pesado e muito desigual. O exemplo italiano mostra que é pos-
sível mas muito difícil modificar as condições de trabalho e de aposentadorias
do setor público. A crise dos Estados endividados, incapazes de cumprir suas
obrigações internacionais e voltando-se contra o Estado Federal, mostrou ao
mesmo tempo a má gestão administrativa do setor público e a vontade de
alguns governos e sobretudo do antigo Presidente Itamar, que FHC havia apoi-
ado fortemente ao lançar o Plano Real, de atacar o Presidente. A capacidade
de ação deste último permanece fraca e a campanha levada pelo Presidente
para sua reeleição diminuiu mais esta capacidade. O PSDB, que é chamado de
partido do Presidente, é fraco e dividido. O PT é forte, porém mais dividido
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ainda; o PMDB é quase apenas uma etiqueta eleitoral. Todas estas situações
fortalecem o PFL, a ponto que é em suas fileiras que se encontrava o sucessor
possível do Presidente, cujo prematuro desaparecimento não somente enfra-
queceu o clã Magalhães, como também deixou incerto o futuro da política
brasileira, embora, é verdade, assegurado ainda por vários anos.
Mas, o enfraquecimento mais importante da capacidade de ação
política vem do fracasso das políticas de integração social em todos os níveis.
O mais visível, neste país que se tornou amplamente urbano, é a miséria e
sobretudo a violência urbana. A população as vive de modo cada vez mais
difícil, tanto que os políticos e as polícias locais são sempre colocados em
questão. As violências sofridas pelas crianças de rua, dos maus tratos aos
assassinatos, não são fatos novos nem mais extremos do que aqueles que
Buñuel mostrava no México ou os que concerniam os meninos de Bogotá.
Mas esta miséria e esta violência tornaram-se mais pesadas nas cidades como
São Paulo, onde o desemprego aumentou, e são cada vez menos aceitas num
país no qual os lugares de modernidade e de riqueza são numerosos e espeta-
culares. Numa frase célebre, FHC disse que o Brasil não era um país pobre,
mas injusto. Esta injustiça vai além de extremas desigualdades; ela significa
que uma parte importante da população está excluída da produção e do consu-
mo modernos. O fim da estabilidade monetária destruiu aquilo que a popula-
ção considerava sua principal proteção. A angústia e a revolta estão, pois,
aumentando, o que diminui ainda mais a capacidade de ação do sistema polí-
tico. Mesmo se as comunidades de base, a teologia da libertação e o extremo
radicalismo político estejam em recuo, em particular por causa do fim do mo-
delo soviético e cubano, a consciência de que uma parte da população é, ao
mesmo tempo, sacrificada e não representada é muito difundida. Ela dificil-
mente se exprime em termos políticos ou sindicais, mas é difusa e manifesta-
se sobretudo pela perda de confiança no governo.
O Brasil não parece estar à procura de uma terceira via à moda
inglesa ou alemã, mas, ao contrário, existe uma polarização crescente entre,
de um lado, os que participam da sociedade mundializada, e, de outro, os que
são por ela rejeitados. Entre os dois, as classes médias, que estavam larga-
mente apoiadas sobre o Estado, estão cada vez mais descontentes com uma
política da qual se consideram vítimas.
É possível inverter esta situação e criar no Brasil uma forma parti-
cular de terceira via, tão freqüentemente mencionada na Europa? Os intelec-
tuais não parecem dispostos a criar uma tal ideologia. Eles dividiram-se em
dois grupos. Alguns se profissionalizaram ou mesmo, mais raramente, estão
perdidos na máquina complexa de economia mundializada; outros estão dila-
cerados entre a nostalgia dos combates passados e sua vontade de sair deste
passado sem olhar para trás, com os olhos baixos, às vezes sofrendo, às vezes
procurando no novo Presidente um bode expiatório, às vezes defendendo sim-
plesmente os interesses de sua categoria profissional, que julgam estar sendo
ameaçados. Os que se esforçam para compreender o que se passa, em tal ou
qual parte do mundo, sobretudo nos últimos dez anos, sentem que mergulham
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seu olhar num buraco negro. Procuram atores da história, vencedores ou ven-
cidos, dominados ou dominantes, e não vêem nenhum. Vêem apenas redes de
informação, defesas identitárias, consumações vazias de sentido ou a pobreza
que não conduz à revolta: estas são as quatro partes da sociedade que conse-
guimos extrair do vazio sobre os qual estamos inclinados. O barulho nos ator-
doa, mas não escutamos nenhuma voz, como escutamos ainda as vozes desa-
parecidas de Jan Pallach ou de Che Guevara, ou como vemos ainda o homem
de camisa branca de Tien-an-Men ou Vinícius Caldeira Brandt torturado em
São Paulo. Vivemos um eclipse de história, e o ato mais inteligente que pode-
mos praticar, dizem muitos, é o de aceitar nossa impotência, rejeitar tanto a
ideologia otimista da globalização quanto a ideologia mentirosa do apelo às
massas populares, que se tornaram fantasmáticas.
Tendo chegado a este ponto, que parece distante da análise que me foi
pedida, devo dizer que creio ao contrário ter-me aproximado dela. Em nome de
que, em nome de qual sentido da história, qualquer um de nós pode dizer que
conhece atores que não vê, e que pode falar em seu nome? É para evitar que
ouçamos juízos tão arbitrários que vou tão longe. É possível e necessário anali-
sar os mecanismos de uma crise econômica e financeira, os processos de decisão
política, os interesses dos Estados Unidos e da Fundo Monetário Internacional,
mas devemos também pensar a situação brasileira, assim como outras situa-
ções, a partir de atores sociais, de suas demandas, de seus conflitos e sobretudo
de sua capacidade de agir. Ora, esta é, no conjunto, tão fraca que é quase impos-
sível detectar a existência de atores sociais. Não há senão a extrema repressão
que abafa as vozes e estamos mesmo convencidos que conseguimos sempre
ouvir a voz de um Spartacus, de um negro clandestino ou de um fuzilado. Mas
estamos num momento no qual as ideologias, as representações, as palavras,
dissolveram-se e no qual um mundo puramente econômico, onde as informa-
ções circulam em tempo real, faz com que desapareçam as vozes e os atores
sociais. Existem sons, gestos, gritos, mas eles não formam mais frases, e, quan-
do acreditamos decifrá-las, é como se reaprendêssemos uma língua desapareci-
da. É certo que não existe silêncio completo e durável das sociedades; mas no
final de um século XX dominado por discursos, ideologias, sistemas de uma
força excepcional, ensurdecedora, vivemos um momento – que só pode ser mui-
to breve – no qual só ouvimos o ruído dos buldozeres que evacuam as ruínas
deste universo sonoro e onde não percebemos o barulho fundo das miríades de
informações que são trocadas a cada instante, e que não se referem mais a atores
sociais do que o fazem as ondas do mar.
O que nos conduz à nossa interrogação central: há ainda um espaço e
um tempo do possível? Mais concretamente, os dirigentes políticos, econômi-
cos e intelectuais ainda têm uma responsabilidade? E, se possuem um certo
espaço de escolha, eles decidiram bem ou mal? Não falo aqui daqueles que
denunciam os poderosos em nome de um discurso que outros já denunciaram e
nem daqueles que não crêem senão na ação econômica racional. A questão é:
como se pode restabelecer a comunicação entre uma economia cada vez mais
mundializada, instituições políticas nacionais ou locais e as demandas ou pro-
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testos sociais e culturais? Tudo parece vir do alto, enquanto embaixo só se vê


confusão e violência. Trata-se de saber se podemos encontrar sentido embaixo e
transmiti-lo para o alto, ampliando o mais possível o campo do político.
Meu juízo é que FHC, absolutamente consciente do desaparecimento
dos antigos discursos e muito afastado da ilusão liberal – segundo a qual os
problemas se resolvem tanto melhor quanto menos neles se intervém – quis
estender o possível, ou seja, reconstruir o político e mesmo construir a demo-
cracia num país que tinha permanecido freqüentemente distante dela. Esta
opinião pode surpreender, já que se critica o sociólogo-Presidente por ter aban-
donado suas idéias e aceitado a ditadura do mercado. Para explicar o erro
desta crítica e minha própria interpretação, é preciso examinar a história inte-
lectual e profissional de FHC.
O pensamento político da América Latina foi dominado, durante quase
meio século, não pela oposição entre liberais e intervencionistas mas pela oposi-
ção entre duas versões da teoria da dependência. Esta noção, com efeito, fornecia
de uma maneira evidentemente pertinente uma análise da realidade latino-ameri-
cana, da dualização entre a economia e as sociedades. Os teóricos “radicais” da
dependência afirmaram que ela era tão grande e tão completa pelas manipulações
dos dominadores, sobretudo estrangeiros, que não poderia haver ação social “cons-
ciente e organizada”. Indo ainda mais longe, os teóricos e práticos do Foco revolu-
cionário e das guerrilhas não acreditaram senão na ação de vanguardas móveis,
cuja eficácia parecia ter sido demonstrada pelo sucesso de Fidel Castro em Cuba,
e das quais Che Guevara havia sido o mártir apaixonadamente admirado. Nenhum
movimento de massas é possível, dizem os radicais, pois as massas são corrompi-
das pela demagogia, pelos políticos do aparelho ou por agentes corruptos estran-
geiros. As instituições democráticas não merecem nenhuma confiança pois são
factícias ou corrompidas. A espada deve encontrar a falha na couraça; a
Kalanichnikoff deve estourar a malha mais fraca da dependência. Este pensamen-
to e as ações por ele animadas nunca foram dominantes, bem ao contrário, mas
foram amplamente aceitos, em particular pelos intelectuais e os jovens que queri-
am uma revolução ao mesmo tempo necessária e impossível, um movimento po-
pular libertador, mas que nunca se aproximaria do poder e de suas tentações. Este
pensamento e estas ações tiveram e guardam uma forte realidade histórica, pois
são formadas em sociedades nas quais uma parte importante da população é
proletarizada, excluída, privada de terras e de direitos, população de colonizados
ou de excluídos. A América Latina foi marcada em todas as partes de seu corpo
por esta paixão pela ação impossível, pela mistura entre análises que pretendiam
ser objetivas e um espírito de sacrifício extremo, pela crença portanto numa ação
sem autor, numa salvação dada aos homens marcados por um pecado original,
confinados numa sociedade que os reprime, pune e engana. Este pensamento foi
particularmente forte na Argentina e no Uruguai, na Venezuela, México e
Guatemala. Em Cuba, ele se impôs rapidamente afastando o movimento de mas-
sas de 26 de julho, que era forte sobretudo em Havana. No Brasil, este pensamento
exerceu também uma grande influência sem contudo conseguir se impor.
Pois foi no Brasil e no Chile, unidos pela presença de muitos exila-
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dos brasileiros, que se expressou com mais força o que podemos chamar de
teoria política – e portanto não radical – da dependência. E foi FHC quem,
diretamente ou associado a Enzo Faletto, exprimiu-a de modo mais forte. Em
nome de um raciocínio simples e forte: sim, a dependência é uma dimensão
que está sempre presente em nossa existência, mas, as relações de classe tam-
bém estão sempre presentes bem como o conflito entre a integração nacional e
os poderes locais. A vida social e política é tridimensional; e como seus eixos se
cruzam ao invés de serem paralelos, existe sempre, em torno de seu cruzamento,
um espaço político, autônomo, espaço do possível e da decisão. Esta autonomia
do político, esta afirmação do possível me parece ter sido de maneira constante,
e até hoje, a principal afirmação intelectual de FHC, e sua formação marxista
explica em boa parte este conteúdo de seu pensamento. Aqueles que deploram a
transformação de um intelectual marxista num político liberal sustentam um
discurso que combina em poucas palavras todos os erros e contra-sensos possí-
veis. De início – é a observação mais simples – porque, exceto em regime auto-
ritário, o pensamento de um intelectual não pode transformar-se em programa
político. Este deve obter uma maioria e o voto popular nunca corresponde a uma
idéia, mas a alianças complexas e à expressão de interesses e convicções muito
diversas. Em seguida, porque não se pode situar uma política a não ser no inte-
rior de um espaço político e de um espaço do possível. Um intelectual ou um
ativista que contestam o conjunto de uma situação não podem ser considerados
como de esquerda ou extrema-esquerda se não querem mais referir-se ao siste-
ma de decisões possíveis. Eles fecham-se, seja na extrema-direita, seja na extre-
ma-esquerda, o que é bem diferente.
A partir desta constatação principal, a fraca capacidade política do
Brasil atual, como se pode analisar o uso que dela se fez durante a primeira
presidência de FHC? Ouvimos falar em Third Way na Grã-Bretanha, na Alema-
nha, e, em certa medida, na Itália, mas não na França, na qual a “esquerda plu-
ral” se define de modo diferente e onde se ouviu um Cohn Bendit opor a terceira
esquerda à terceira via. Outros governos, como o de Aznar na Espanha, decla-
ram-se de direita, mas suas práticas não estão muito longe das políticas do tipo
inglês. O Chanceler Schröder representa bem a instabilidade, a fragilidade de
uma ação rejeitada de um lado pelo patronato e seus aliados partidários do mo-
delo americano, e, de outro, por uma parte importante do SPD, apoiado sobre o
DGB e também pelos verdes, eles mesmos divididos entre “fundis” e “realos”.
Pode-se estabelecer uma tipologia comparável na América Latina? E
onde situar FHC nesta tipologia e em relação à tipologia européia? Estas duas
questões exigem respostas que é preciso formular claramente antes mesmo de
justificá-las. Em primeiro lugar, o espaço do possível é muito mais limitado na
América Latina do que na Europa e, em segundo lugar, no espaço do possível no
Brasil, FHC situa-se no centro, ou no centro-esquerda, e não no centro-direita. É
permitido àqueles que têm uma concepção diferente da esquerda dizer que a
ação de FHC, julgada segundo seus critérios pessoais, é uma política de direita.
Mas aqui estamos no domínio da opinião, e não no da análise.
A primeira afirmação é a mais importante, razão pela qual abordo o
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tema da fraca capacidade de ação política nas democracias latino-americanas


desde o início deste texto. A fragmentação da sociedade, as desigualdades no
próprio interior das grandes categorias sociais (por exemplo, os salários na in-
dústria), a importância do que se denomina agora o “precariato”, para distinguir
do salariato, vêm completar a fraqueza do sistema político que é muito grande
no Brasil, menor no Chile ou até mesmo na Argentina, mas que é um traço
dominante do Continente. Os países parcialmente desenvolvidos, como o são o
Brasil, o México ou a Índia, são ao mesmo tempo muito dependentes dos mer-
cados financeiros internacionais, muito divididos em grupos regionais ou de
interesses, dispõem às vezes de uma administração pública insuficiente; tudo
isto limita a capacidade de ação do Estado. No caso brasileiro, esta fraqueza é
aumentada pela forte realidade de um Estado Federal, enquanto que o federalis-
mo mexicano concentra mais poder e recursos nas mãos do governo central. A
importância das empresas públicas é também – como na França ou na Itália –
um elemento de enfraquecimento de um Estado que se torna responsável de uma
má gestão freqüente. Contudo, o Brasil deu tanta importância ao setor público
que hoje em dia ainda a Petrobrás não é equivalente à Pemex e que, antes da
privatização, a Vale do Rio Doce era considerada como uma empresa dinâmica.
A dissociação entre a sociedade política e a sociedade econômica é muito gran-
de apesar de uma forte participação eleitoral. Um número cada vez maior de
interesses é associado ao funcionamento da economia internacional e, inversa-
mente, muitos pobres e excluídos dependem mais de poderes locais, legais ou
ilegais, do que do Estado central. Enfim, já se falou das razões que levaram os
intelectuais a procurar reduzir, mais do que ampliar, o campo das políticas pos-
síveis. Mas, o mais importante é, ao contrário, que o Brasil é um país relativa-
mente firme sobre si mesmo, em grande parte por causa da dimensão de seu
território e de seu mercado interno, o que é uma das explicações para o fato feliz
de que a desvalorização não tenha desencadeado uma nova inflação. A grande
maioria dos brasileiros continua a viver num espaço mais brasileiro do que mun-
dial. A diferença é grande em relação ao México, sobretudo depois da entrada
em vigor da NAFTA, como também à Argentina, país tradicionalmente expor-
tador e que conheceu, depois do plano Cavallo, reformas estruturais muito mais
rápidas do que o Brasil. A importância do Brasil como grande potência econô-
mica explica o temor que sua crise monetária inspirou no sistema financeiro
internacional; mas o Brasil não é, não mais do que o Japão, um país determina-
do pelo exterior. Observação inseparável daquela que já foi feita e que parece ir
no sentido oposto: a margem do possível no Brasil é limitada, com efeito; mas
por razões mais internas do que externas.
Resta definir mais concretamente este campo dos possíveis a fim
de situar a primeira presidência FHC. As observações precedentes indicaram
que este campo era mais reduzido na América Latina do que na Europa –
como era também mais fraco – e que seu ponto de equilíbrio é pois “a direita”,
mais próxima ainda dos programas liberais do que na Europa. De fato, a ten-
dência mais forte em todos os países cuja economia foi durante muito tempo
dominada pelo Estado é a abertura, a liberalização, a privatização, enquanto
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as posições de “esquerda” se situam fora de prumo, ou até mesmo, como na


quase totalidade do Continente, são marginalizadas. Dizer que FHC vendeu
sua alma ao aliar-se ao PFL, portanto, à direita, é um estranho equívoco. Pois
é exatamente a centro-direita que era e ainda é a solução mais possível para a
América Latina, ou seja, a prioridade dada à eliminação das barreiras, à aber-
tura e à competitividade da economia mundial. O que só vem a reforçar a
posição dos que, diferentemente dos precedentes, reconhecem o peso político
importante do PFL, mas assinalam que ele não é muito liberal quando se liga
a um Estado do qual quer utilizar a política de liberalização em seu próprio
favor. A posição de centro é aquela que dá prioridade ao fortalecimento do
Estado, aperfeiçoando o seu funcionamento e ao mesmo tempo diminuindo
seus encargos, ou seja, fazendo uma reforma administrativa. Esta prioridade
dada ao fortalecimento do Estado é verdadeiramente “centrista”, no sentido
em que este fortalecimento é um objetivo necessário para todos os países,
todos ameaçados pela desagregação de sociedades divididas entre a
mundialização da economia e a fragmentação de uma sociedade da qual uma
parte importante está na informalidade, tanto de maneira legal ou para-legal,
quanto no campo ilegal – o do contrabando, do tráfico de armas e sobretudo
de droga. Cardoso compartilha com muitos dirigentes do Continente a convic-
ção da necessidade e da extrema dificuldade de uma reforma do Estado que
exige tocar no estatuto da função pública e no sistema de aposentadorias. Não
é aceitável considerar uma tal política como dirigida aos interesses da maioria
e, ao mesmo tempo, considerá-la reacionária. Pode-se, ao contrário, conside-
rar que os países da América Latina, e o Brasil em particular, têm necessidade
tanto de uma transferência de recursos das categorias médias para as catego-
rias pobres quanto de uma taxação fiscal mais importante e mais eficaz sobre
as rendas elevadas. Mas, uma política de centro-centro viria um pouco tarde
pois esta classe média pública ou apoiada pelo Estado já perdeu grande parte
de seus recursos e de sua influência. O que explica seu descontentamento, em
particular contra FHC, acusado de querer enfraquecê-la mais ainda. Esta cate-
goria social tinha sido o elemento principal da aliança entre classes médias e
populares que definia os regimes nacional-populares. Na realidade, só uma
parte das classes populares entrava nesta aliança – a que, no Brasil, era prote-
gida pelas leis sociais – e, da mesma maneira, apenas as classes médias direta
ou indiretamente associadas ao Estado haviam participado ativamente neste
tipo de regime. Atualmente, estas categorias perderam muito terreno, por ra-
zões ao mesmo tempo políticas – durante a ditadura militar – e econômicas.
Podemos pois nos perguntar se o tema da reforma do Estado não recebe uma
prioridade artificial e não serve senão para cobrir o poder crescente das em-
presas ligadas mais diretamente ao mercado do que ao Estado. Isto é o que
pensam aqueles que, numerosos, classificam o governo FHC como de centro-
direita, para não dizer de direita.
Em que pode consistir a vertente centro-esquerda deste espaço po-
lítico reduzido? Digamos, de início, que não há política de esquerda na Amé-
rica Latina e que há mesmo poucos pretendentes ao exercício de uma tal polí-
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tica. O Uruguai é um dos raros países onde um partido político afirma sua
vontade de romper com uma política de acordo com os dois grandes partidos
cuja aliança se situa com efeito na centro-direita. Esta declaração, que pode
parecer brutal, é apenas a conseqüência do que foi dito: o laço entre as forças
sociais populares organizadas e certos partidos políticos quase não existe em
nenhum lugar. Considerar, no México, o PAN como de direita, o PRI como
centro e o PRD como esquerda é um equívoco, como mostram as pesquisas
atuais sobre o acordo entre o PAN e o PRD, ou ainda a semelhança entre os
meios pelos quais os diferentes partidos utilizam, quando podem, os recursos
do Estado. Centro-esquerda, portanto, e não esquerda.
O argumento que situa FHC na centro-esquerda porque durante sua
presidência o fim da inflação melhorou o nível de vida popular e portanto
diminuiu as desigualdades sociais e regionais não é válido, já que a razão de
ser do Plano Real era a luta contra a inflação, e que a melhora do nível de vida
popular foi uma conseqüência importante e desejada deste plano, mas não sua
causa explicativa. Contudo, esta classificação de FHC na centro-esquerda me
parece exata, mas por razões menos diretas e menos maciças. Tony Blair con-
sidera-se de centro-esquerda porque quis acabar com a política puramente
liberal de Madame Tatcher e seu fraco sucessor. Ele proclamou a grande ne-
cessidade de dar prioridade aos problemas da educação e da saúde; podemos
ter nossas reservas quanto à apreciação da política inglesa real, que continua
a dar uma forte prioridade às exigências da economia internacional. Mas não
se pode negar a diferença, muito bem percebida pelos eleitores ingleses, entre
Tony Blair e seu predecessor. FHC agiu, em situações em que era tão mais
simples levar a efeito uma política de pura liberalização, mantendo uma polí-
tica que permitia aos atores sociais apoiarem-se no Estado. Deve-se mencio-
nar, por exemplo, a política de Paulo Renato no domínio da educação; mas,
antes de tudo, a possibilidade de reconstruir um sistema aberto, ou seja, de-
mocrático, de decisões políticas e sociais, que seja melhor no final da presi-
dência do que no seu começo. Nada foi resolvido, mas as relações com a CUT
melhoraram e sobretudo o PT, apesar das divisões, torna-se lentamente, muito
lentamente e muito parcialmente, um partido de governo. Muitos homens po-
líticos brasileiros, no Rio como em Brasília, em Porto Alegre e em outras
cidades, falam da urgência de reorganizar a vida política no quadro da nova
política econômica. Aqueles que classificam FHC entre os de direita ou mes-
mo que o acusam de traição possuem uma linguagem sem conteúdo já que não
existe um só país no mundo que feche sua economia aos fluxos internacio-
nais. Podemos ficar indignados com as privatizações, mas deve-se dizer que o
governo Leonel Jospin na França é um governo de direita porque privatiza, e
considerar Massimo D’Alema, ex-dirigente comunista italiano como um re-
negado porque aplica o Tratado de Maastricht? Seria suficiente reconhecer
que num período de vida política e mesmo de grande pressão econômica exte-
rior, FHC não escolheu a mesma política do Presidente Menem, por exemplo,
para lhe atribuir este lugar na centro-esquerda que lhe é recusado com violên-
cia por aqueles que permanecem ligados, de maneira estimável mas irrealista,
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a um quadro de análise que não existe mais há vinte anos. Para melhor com-
preender este julgamento, não o consideremos como um juízo de valor. Pode-
se considerar que a política argentina, em particular depois do plano Cavallo,
permitiu uma transformação mais rápida e mesmo que deu mais certo do que
a do Brasil. A imagem de FHC liberal em sua ideologia e em sua ação está
longe da realidade. De modo mais justo, poderíamos assinalar que todos os
aspectos de um desenvolvimento “hacia adentro” ainda existem no Brasil,
país onde numerosas fronteiras avançam, frentes de produção se deslocam
rapidamente, país que é muito menos o do café do que o foi nos anos anterio-
res. Para o melhor e para o pior, economicamente, burocraticamente, cultural-
mente e politicamente, este país permanece muito mais voltado para si mesmo
do que para grandes horizontes. Pode-se mais facilmente compará-lo aos Es-
tados Unidos pela importância predominante de seu mercado interno do que à
Inglaterra vitoriana. O que explica o fraco espaço político deixado a um can-
didato de direita à Presidência, como era o caso de Paulo Maluf, cuja influên-
cia era reduzida fora de São Paulo. Acrescentemos enfim que no Brasil, como
em outros países do Cone Sul que sofreram ditaduras militares, um programa
de direita aparece retrospectivamente em oposição ao movimento democráti-
co que finalmente triunfou.
Mas não criemos mal-entendidos. Esta reconstrução política e so-
cial é agora cada vez mais possível, ao mesmo tempo que necessária. Mas, ela
ainda não foi realizada. Contudo, o juízo que se refere à primeira presidência
de FHC deve ser orientado pela seguinte observação: o Brasil, no momento do
Plano Real, era obrigado a levar uma política técnica que, de fato, deixava
para mais tarde o tratamento dos grandes problemas sociais. Estes problemas
não foram resolvidos, mas o Brasil agora efetuou uma mudança de época
histórica. Não somente saiu do voluntarismo civil ou militar, não somente
escapou de uma política fortemente liberal seja à maneira de Salinas, seja à
maneira de Fujimori, mas começou a reconhecer que seus principais proble-
mas são internos e, portanto, que as soluções a serem encontradas devem sê-
lo no país, e pelo jogo das reivindicações sociais e das iniciativas políticas.
Certamente, os atos essenciais desta Presidência ainda consistiram em acabar
com os perigos prementes, por meio de uma ação governamental e sem mobi-
lização popular. A crise monetária que explodiu no final da Presidência havia
sido retardada, pois o governo temia, ao desvalorizar a moeda, desencadear a
inflação que havia sido tão difícil de controlar, e ainda temia quebrar o pacto
de confiança que havia sido estabelecido entre o Presidente e o povo. Se esta
crise foi, no total, tão rapidamente superada, foi por causa da força da econo-
mia brasileira, cujo mercado interno é bastante forte para limitar a dependên-
cia em relação ao dólar; foi também e sobretudo porque a comunidade finan-
ceira internacional manifestou sua confiança em FHC, única personalidade
latino-americana que dispunha de um grande crédito pessoal junto aos diri-
gentes financeiros e políticos. Seria paradoxal não reconhecer que esta Presi-
dência abriu-se com uma queda vitoriosa da inflação e fechou-se com a limi-
tação e o controle de uma crise de causas profundas e sobretudo nacionais,
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mas que poderia transformar-se em crise mundial.


Estes fatos mostram a que ponto a capacidade de ação política do
Brasil permanece limitada e mesmo teria podido reduzir-se mais ainda. Pare-
ce-me todavia que no Brasil, como antes no México e amanhã provavelmente
no Chile, impõe-se enfim a idéia de que a sorte do país depende, antes de tudo,
de sua própria capacidade de elaborar e de levar a efeito uma política e, por-
tanto, de ampliar e reorganizar a vida política. O trajeto a ser percorrido é
longo e difícil, como havia sido depois da guerra a passagem do desenvolvi-
mento orientado para o exterior ao desenvolvimento voltado para o interior. O
caminho inverso, a abertura das fronteiras e o fim do intervencionismo de
Estado, pode ser operada mais brutalmente, mas ao preço de uma grande de-
composição das forças políticas, deste enfraquecimento da capacidade da ação
política que é o tema central deste texto. É impossível afirmar que o balanço
da primeira presidência, deste ponto de vista, seja claramente positivo; mas é
importante de início afirmar que ele não é negativo, enquanto que poderia tão
facilmente sê-lo. O que conduz a formular a hipótese de que a segunda presi-
dência pode ser a do renascimento da vida social e política, logo, do aumento
da capacidade de escolha e de ação políticas. Este renascimento só produzir-
se-á se, em todos os níveis da sociedade, formarem-se novos atores. Mas, à
medida que eles se formarem encontrarão diante de si uma situação muito
mais favorável à ação, graças à gestão e ao governo FHC.
O que supõe uma grande reabertura do campo político, associada a
uma grande capacidade de mobilização social. Não é concebível que o silên-
cio mundial dure muito tempo ainda. É certo que ele durará se as reivindica-
ções forem recobertas por declarações repetitivas contra a globalização como
outrora contra o imperialismo. Mas o aumento das desigualdades, o desem-
prego e a precariedade, a predominância dos interesses financeiros sobre to-
dos os outros fatores de produção não podem, após um longo período de de-
composição das ideologias, não fazer nascerem reivindicações, críticas mais
amplas, contra-projetos de governo. A margem de ação possível, eu repito, é
mais estreita na América Latina do que na Europa, o que explica o silêncio de
Cuhautemoc Cárdenas no México, ou a abertura muito liberal do candidato
socialista à presidência do Chile, Ricardo Lagos. Mas estas ações bastante
limitadas e que parecem mesmo sem brilho, ganham relevo quando as compa-
ramos às de seus adversários políticos, em particular no caso chileno. No Bra-
sil, como aliás na França – mas não na Itália – um dos fatores que limitam a
evolução do centro para a centro-esquerda é a força, por certo declinante, mas
ainda importante, dos quadros de pensamento e de ação de uma esquerda que
permanece ligada ao período da guerra fria, pelo menos em sua condenação
em bloco de uma situação econômica da qual ninguém contudo acredita que
se possa sair, mas que se pode certamente transformar. É esta fraqueza atual
dos atores sociais que explica também que o MST, que foi no começo um
movimento social, tenha passado rapidamente para o controle de dirigentes
políticos e religiosos mais ligados a uma contestação global do que a uma
ação propriamente social. Mas, no mesmo momento, o ressurgimento das rei-
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TOURAINE, Alain. O campo político de FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 3-22, out. 1999 (editado em fev.
2000).

vindicações se faz mais pela luta contra a desintegração social do que por uma
contestação geral do sistema econômico mundial. A violência e a inseguran-
ça, o desemprego e as diferenças extremas entre as rendas, que atingem os
mais fracos, ameaçam também a própria nação. É esta defesa social da nação,
mais distante possível de qualquer nacionalismo, que será e já é o tema das
novas reivindicações. É o caso também do México, onde as ONGs prolifera-
ram desde o terremoto de 1985 e os escândalos que foram denunciados nesta
ocasião. A eleição triunfal de Cárdenas no distrito federal deveu-se a este tipo
de inquietudes e reivindicações. A marcha do MST organizada em abril de
1997, e que chegou em Brasília no dia 17, tinha mostrado uma grande
integração entre os temas da reforma agrária e os do emprego e da justiça, que
figuravam no mesmo plano no movimento. De seu lado, o movimento nacio-
nal dos meninos e meninas do Rio de Janeiro chamou a atenção para a crise
urbana e o emprego. A opinião pública brasileira e internacional foi muito
sensível a estas ações, assim como ficou impressionada pelo livro de fotogra-
fias de Sebastião Salgado sobre os camponeses – com o apoio de Chico Buarque
e textos de José Saramago. Mesmo se a maior parte das ONGs urbanas são
sustentadas por fundos estrangeiros, pode-se concluir com Maria Glória Gohn1,
que o tema da cidadania tornou-se central nos movimentos populares. Trans-
formação profunda: ao invés de rebeliões armadas que se consideravam a
serviço das categorias menos favorecidas, vê-se a formação de movimentos
de massa que se associam a uma vontade de democratização de todo o país, ao
mesmo tempo que a afirmação dos direitos das categorias desfavorecidas.
Pode-se aqui fazer uma aproximação com os movimentos indígenas do Norte
do Continente, e, em particular, com o movimento zapatista de Chiapas, que é
o contrário mesmo da guerrilha já que associa a defesa dos povos maias à
democratização da política mexicana. A fragilidade deste movimento não o
impediu de suscitar em torno dele um vasto movimento de apoio mexicano e
internacional. O Brasil, durante muito tempo, foi definido pelos geógrafos
como um arquipélago; ele torna-se um continente. Seus problemas internos
de integração são cada vez mais importantes e, conseqüentemente, a ação
política dos dirigentes é considerada como cada vez mais indispensável para
resistir às ameaças internas e externas que pesam sobre o país. Não subesti-
memos a crescente integração do território associada a um vivo movimento de
urbanização que de início conduziu à constituição de grandes megalópoles e
que, mais recentemente, no interior do Estado de São Paulo em particular,
conduziu ao grande desenvolvimento de cidades médias do interior.
Estas tendências à integração – e a consciência de sua necessidade
– não são somente os produtos da ação do Presidente, mas convergem com a
vontade de reforçar em Brasília o poder central diante de uma autonomia am-
pla demais dos estados e municípios que acaba por deixar ao encargo do esta-
do federal as más gestões locais sendo responsável também por atos de vio-
1
lência. Muito tardiamente, mas agora de modo acelerado, o velho Brasil, aquele
Os sem-terra, ONGs e
cidadania. São Paulo, da aliança entre o poder central e os grandes chefes provinciais é substituído
Cortez, 1997. por uma integração maior do país, ao mesmo tempo que sua economia se
20
TOURAINE, Alain. O campo político de FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 3-22, out. 1999 (editado em fev.
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integra mais à economia internacional.


A evolução do Brasil durante a segunda presidência de FHC far-se-á
provavelmente no sentido de uma abertura do campo político associado a um
ressurgimento das ações sociais coletivas e conseqüentemente de um fortaleci-
mento necessário da capacidade política do país, em particular do Presidente.
Do mesmo modo que se compreende facilmente aqueles que condenam FHC
porque ele está cada vez mais afastado da principal tradição da esquerda latino-
americana – constatação exata, mas que pode ser tanto debitada quanto credita-
da ao Presidente – assim também deve-se assinalar que FHC, durante sua pri-
meira presidência, não encorajou absolutamente o vazio social ou político.
Constatação menos limitada quanto pode parecer, já que o Brasil, como outros
países, sofre de um atraso político, ou seja, de uma confrontação de ideologias e
de práticas políticas antigas com um capitalismo profundamente transformado
em todos os seus aspectos e em todos os seus níveis. Esta constatação é compar-
tilhada pela grande maioria dos analistas. Pouco importa que uns façam suas
críticas aos dirigentes do poder, outros às redes financeiras internacionais, ou-
tros ainda às forças nacionais de oposição. Estas divergências de interpretação
não atingem a unidade profunda das análises. Pode-se censurar FHC, como to-
dos os dirigentes políticos oriundos da esquerda, por ter situado sua ação num
sistema econômico internacional aberto e não controlado, numa palavra, num
sistema capitalista. Com efeito, vivemos, há dez ou vinte anos, dependendo do
país, um novo período do capitalismo triunfante, e seria natural que se formas-
sem novos movimentos sociais e políticos anticapitalistas, se definimos bem o
capitalismo como um modo de desenvolvimento comandado pela autonomia e
mesmo a dominação dos detentores de capitais em relação a todas as formas de
intervenção públicas que têm outras finalidades que não são o fortalecimento
deste capitalismo. Mas é preciso que a crítica de um modelo mundial de desen-
volvimento se transforme em pressões em favor de reformas sociais internas. O
que não foi feito quase em nenhum lugar mas que é indispensável em toda parte.
Um dirigente de centro-esquerda é aquele que cria as condições favoráveis a
esta mobilização “hacia adentro”. No final do primeiro grande período de triun-
fo do capitalismo na Europa do século XIX, surgiu, sobretudo nos países lati-
nos, um radicalismo político que se inspirava nas idéias da Revolução Francesa,
mas que afastou-se cada vez mais do movimento operário nascente. Da mesma
maneira hoje em dia, os discursos inspirados nas ideologias do movimento ope-
rário são cada vez mais deslocados em relação às realidades econômicas e ao
mesmo tempo em relação às novas reivindicações sociais e culturais, seja que
estas se refiram ao emprego, à desigualdade das mulheres, à defesa do meio
ambiente ou às minorias. A América Latina em seu conjunto conheceu constan-
temente o que Marx criticava na França do século XIX: a ilusão política. A
predominância extrema da iniciativa política sobre a mobilização social explica
a crise profunda das formas e das forças de oposição sociais e políticas, a dimi-
nuição da capacidade de intervenção política em todos os Estados, o enfraqueci-
mento marcante do papel dos intelectuais assim como dos sindicatos. Tudo o
que fizer a crítica e a análise desta fraqueza da ação política é justificado, mas
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TOURAINE, Alain. O campo político de FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 3-22, out. 1999 (editado em fev.
2000).

tudo o que tende a agravar mais ainda esta fraqueza em nome de discursos e
programas sem relação com o campo de ação possível deve ser criticado mais
fortemente ainda. Se faço um juízo mais favorável do que outros sobre a primei-
ra presidência de FHC é porque, durante estes anos, o Brasil se aproximou do
realismo político sem ceder às ilusões liberais nem aos discursos denunciadores
rituais. Pouco a pouco, a sociedade brasileira toma consciência de si mesma. A
conjuntura poderia levar a fraqueza política a um ponto extremo e colocar em
perigo a democracia, como se vê em vários países do Continente. FHC nunca
cedeu a tais tendências; sua presidência, que, talvez, foi menos sua do que do
real, vai permitir à segunda presidência ver se reconstituir a ação social e polí-
tica, da qual, aliás, não é certo que o Presidente atual seja o beneficiário.
O que eu quis mostrar aqui é a necessidade de avaliar um governo,
um regime e um Presidente em função da capacidade de ação dos quais eles
dispõem e julgá-los antes de tudo a partir dos efeitos favoráveis ou desfavorá-
veis de sua ação para o aumento desta capacidade de intervenção política. É
deste ponto de vista, distante de qualquer julgamento ideológico tanto quanto
independente de uma avaliação puramente econômica, que o balanço da pri-
meira presidência de FHC me parece “globalmente positivo”, o que não está
em contradição com o julgamento inverso daqueles que avaliam esta presi-
dência seja do ponto de vista de suas convicções tradicionais, seja do ponto de
vista do funcionamento do sistema econômico. Mas o papel da sociologia,
assim como da ciência política, é o de analisar os personagens, as instituições
e os autores coletivos do ponto de vista de seus efeitos, positivos ou negati-
vos, sobre a capacidade da sociedade de agir sobre si mesma.

Tradução de Maria das Graças S. Nascimento

Recebido para publicação em agosto/1999

TOURAINE, Alain. The political field of Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol.
USP, S. Paulo, 11(2): 3-22, Oct. 1999 (edited Feb. 2000).

UNITERMS: ABSTRACT: This article intends to show that the socialist and president FHC,
social mobilization, even having being severely criticized for having abandoned his old ideas and
global economy,
having turned to be part of the market dictatorship, in a balance of his first
liberalism,
capacity of political mandate, has not only a clearly positive mandate, but also situates him in the
action, middle-left domain, which makes us expect that his second presidency can
democracy. represent the reborn of the social and political life in Brazil.

22
SALLUM JR., Brasilio.
Tempo Social;O Brasil
Rev.sobSociol.
Cardoso:USP,
neoliberalismo
S. Paulo,e desenvolvimentismo.
11(2): 23-47, out.Tempo DOSSIÊ
1999Social; Rev. Sociol. FHC
USP, S. Paulo,
11(2): 23-47, out. 1999 (editado em(editado
fev. 2000).em fev. 2000). o
1 GOVERNO

O Brasil sob Cardoso


neoliberalismo e desenvolvimentismo
BRASILIO SALLUM JR

RESUMO: Este artigo tem três partes. Na primeira, faz-se o exame dos pro- UNITERMOS:
cessos de conquista do poder de Estado que culminaram na eleição de FHC Estado,
governo,
usando o conceito de hegemonia e a idéia de momento maquiaveliano, deriva- crise política,
da de Pocock. Na segunda parte, mostra-se que o novo bloco político no po- transição política,
der, para além de sua orientação liberal e internacionalizante, polariza-se en- hegemonia,
tre duas versões contrapostas de liberalismo, o fundamentalismo neoliberal e politica econômica,
desenvolvimento,
o liberal-desenvolvimentismo. Discute-se os efeitos socioeconômicos da ado- neoliberalismo,
ção pelo governo do neoliberalismo como eixo de sua política macroeconômica. Fernando Henrique
Na terceira parte, analisam-se as razões políticas que levaram a Presidência Cardoso.
reiteradamente a essa escolha. A hipótese explicativa sugerida é de que a
Presidência da República interpretou a manutenção do fundamentalismo
neoliberal como um meio decisivo para assegurar o necessário controle sobre
o sistema político. Sugere-se, ao final, que as mudanças macroeconômicas
iniciadas em janeiro de 1999 dão as bases para uma reorientação liberal-
desenvolvimentista do governo.

D
esde os anos 80, quase todos os países da América Latina vêm
passando por profundos processos de transição política. Não se trata
apenas de mudanças de regime político. Também tem se alterado a
relação entre poder político, sociedade e mercado e a forma de in-
serção internacional das economias nacionais1. Entretanto, em cada país lati-
no-americano, os ritmos e as formas particulares de transformação ocorridas Professor do Departa-
mento de Sociologia
nas várias dimensões têm sido muito diferentes. da FFLCH - USP

23
SALLUM JR., Brasilio. O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e desenvolvimentismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 23-47, out. 1999 (editado em fev. 2000).

No Brasil, é evidente que a mudança no regime político se deu mais


rapidamente do que nas demais dimensões. É por isso que Fernando Henrique
Cardoso, ainda antes de sua posse na Presidência da República, pode situar o
seu governo entre duas dimensões/etapas da transição. Entre a transição polí-
tico-institucional para a democracia, que se teria encerrado com a sua própria
eleição2, e a transição para além da Era Vargas, que assume como programa
de governo. Propunha-se, assim, sob as regras de uma democracia política
consolidada, romper com certas articulações entre poder político, sociedade e
economia remanescentes do período Getúlio Vargas.
Neste artigo examino em que direção foram transformadas as rela-
ções entre política e economia, ao longo do governo Fernando Henrique. Na
primeira seção, procuro colocar em perspectiva sociológica as intenções enun-
ciadas pelo presidente, mostrando que elas reafirmavam o rumo predominan-
te no próprio processo de transformação histórica em curso. Logo depois,
sublinho a maneira específica com que o governo Cardoso tentou superar o
que denomina Era Vargas. Por último, sugiro algumas hipóteses para explicar
politicamente a orientação da política econômica do governo FH.

Discuti este artigo com Transição Política, Moeda e Eleição


Gildo Marçal Brandão,
Eduardo Kugelmas e
Geraldo Gardenalli, a A interseção entre política e economia foi uma questão chave no
quem agradeço pelas
críticas e sugestões. debate em torno da ascensão de Fernando Henrique ao poder, antes mesmo do
início de seu governo. Sua própria eleição foi interpretada sob pontos de vista
diametralmente opostos no que se refere às relações com a economia.
1
Manuel Garretón su- Já durante a campanha, duas interpretações principais competiram
blinha, com razão, pelo entendimento do fenômeno eleitoral – uma voluntarista e outra
que as transições po- hiperestruturalista. Conforme a primeira, Fernando Henrique teria concebido
líticas (de regime)
vêm ocorrendo em o Plano Real para eleger-se. Aqui não é relevante se o candidato foi identifica-
meio a uma verdadei- do como ser benfazejo ou maléfico. O que importa é que sua vontade foi
ra crise da “matriz interpretada como capaz de dominar uma economia em desordem e, por con-
sóciopolítica” dos paí-
ses latino-americanos seqüência, ganhar o favor popular. De acordo com a segunda interpretação,
(cf. Garretón, 1993). pelo contrário, “o Plano Real não teria sido concebido para eleger FHC mas,
2
Nas palavras do Presi-
dente eleito: “estas na ordem inversa, a candidatura FHC teria sido gestada pelas novas elites
eleições (de outubro dominantes para viabilizar, no Brasil, a coalizão de poder capaz de dar susten-
de 1994) colocam, a tação de permanência ao programa de estabilização hegemônico” [no âmbito
meu ver, um ponto fi-
nal na transição. De- do capitalismo mundial](Fiori, 1995, p. 236). Esta interpretação cede “à ten-
pois de 16 anos de tação ou à obstinação de considerar Fernando Henrique Cardoso uma engre-
marchas e contramar- nagem decorativa na moenda da nova etapa do capitalismo mun-
chas, a ‘abertura len-
ta e gradual’ do ex- dializado”(Nobre & Freire, 1998).
presidente Geisel pa- Convertendo Fernando Henrique em demiurgo ou, ao invés, em jo-
rece finalmente che-
gar ao porto seguro de
guete de movimentos estruturais, essas vertentes explicativas opostas econo-
uma democracia con- mizam analiticamente quer os processos sociais de construção e direcionamento
solidada” (Fernando da vontade política quer a própria política enquanto atividade de articulação
Henrique Cardoso,
dircurso ao Senado, da vontade coletiva.
14/12/94). De fato, a coligação eleitoral que articulou a candidatura Cardoso
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SALLUM JR., Brasilio. O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e desenvolvimentismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 23-47, out. 1999 (editado em fev. 2000).

deu o acabamento final a um longo processo de construção social de um novo


bloco hegemônico saído das entranhas da Era Vargas mas em oposição a ela.
Vejamos isso com mais vagar.
A Era Vargas refere-se metaforicamente a um sistema de dominação
enraizado na sociedade e na economia que se perpetuou por mais de meio século
na vida brasileira. Começou a ser construído nos anos 30, atingiu o ápice na
década de 1970 e desagregou-se paulatinamente a partir dos anos 803.
Ao longo desse período, o Estado passou a constituir-se em núcleo
organizador da sociedade brasileira e alavanca de construção do capitalismo
industrial no país. Quer dizer, tornou-se um Estado de tipo desenvolvimentista.
Nos últimos anos da década de 1970, entretanto, essa estrutura complexa de
dominação começou a sofrer um processo lento e descontínuo de desgaste. A
partir daí a capacidade de comando do velho Estado sobre a sociedade e a eco-
nomia passa a ser severamente restringida, tanto pelas transformações econô-
micas internacionais, que marcam a transição do capitalismo mundial para sua
forma transnacional, como pela emergência de movimentos e formas de organi-
zação autônoma dos segmentos sociais, principalmente dos subalternos. Numa
palavra: transnacionalização do capitalismo e democratização da sociedade
foram (e vêm sendo), sob várias modalidades de manifestação, os processos
mais abrangentes de superação do Estado desenvolvimentista.
Embora este Estado viesse se desgastando material e politicamente
desde os anos 70, ele entra em desagregação apenas no início da década de 80,
particularmente em 19834. Ocorre aí uma crise essencialmente política, mes-
mo que ela tenha sido precipitada pela insolvência decorrente do crescimento
desmesurado da dívida externa e tenha se materializado como “crise fiscal”.
Com efeito, foi uma crise de hegemonia, em que – como ocorre em rupturas
deste tipo – os representantes, os que seguravam o leme do Estado, dissociaram-
se dos representados, que se fracionaram e polarizaram em torno de interesses
e idéias distintos. Fraturaram-se, por uma parte, as articulações típicas entre o
Estado (e suas empresas), os capitais privados locais e o capital internacional,
entre o setor público e o privado. Por outra parte, foi posta em xeque a estru-
tura existente de agregação e intermediação de interesses econômico-sociais
em face do poder estatal. E os vários segmentos sociais que compunham a
velha aliança desenvolvimentista magnetizaram-se por diferentes “fórmulas”
de enfrentamento da crise econômica, fórmulas que oscilaram ideologicamen-
te entre o nacionalismo desenvolvimentista e o neoliberalismo.
Essas rachaduras nas vigas de sustentação do velho Estado impulsio-
naram a derrocada do regime militar-autoritário. Contudo, a crise de hegemonia
e a instabilidade econômica permaneceram irresolvidas ao longo da década de 3
Cf., sobre a Era Var-
80 e nos primeiros anos da de 90. Em primeiro lugar, porque as dificuldades gas, Barboza Filho
(1995).
internacionais agravaram-se no período. O investimento externo, componente 4
Encontra-se uma aná-
essencial do padrão brasileiro de desenvolvimento, converteu-se na década de lise dessa crise de Es-
80 em desinvestimento. Não só os empréstimos privados estrangeiros cessaram tado e seus desdobra-
mentos até a eleição
como ocorreu, ao longo desses anos, uma enorme transferência líquida de recur- de Fernando Collor
sos para o exterior, principalmente em função do serviço da dívida externa. em Sallum Jr. (1996).
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11(2): 23-47, out. 1999 (editado em fev. 2000).

Além disso, desde a segunda metade da década, acentuaram-se as pressões po-


líticas norte-americanas em prol da “liberalização econômica”. Em segundo lu-
gar, aumentou muito a presença no espaço público nacional de movimentos
sociais, organizações populares, de classe média e, mesmo, de empresários que
– além de impulsionarem a consolidação da democracia política – reduziram
drasticamente o raio de manobra que tinham os dirigentes do Estado para defi-
nir saídas para a crise “de cima para baixo”.
Apesar dessas circunstâncias – completamente distintas das existen-
tes até os anos 70 – tentou-se resolver problemas derivados da crise do Estado
Desenvolvimentista dentro de seu antigo quadro de referência. Buscou-se recu-
5
Encontra-se descrição
perar autoridade do governo sobre o Estado e deste sobre a sociedade como se o
detalhada da organi- Estado já não tivesse perdido grande parte de sua autoridade política e sua força
zação e atividades das material. Em razão disso os ensaios ortodoxos e heterodoxos de enfrentamento
novas associações em
Freifuss (1989) e em da crise econômica – desencadeados no governo Sarney e no período Collor –
Diniz (1993). defrontaram-se com o veto e/ou a adesão reticente dos componentes da antiga
6
Está fora dos propósi- aliança desenvolvimentista, “aliança” que se manteve no poder, mesmo depois
tos deste artigo discu-
tir as origens das idéi- da crise de 1983, embora frouxamente alinhavada e sem direção definida.
as liberais que acaba- Apenas por volta de 1986/1988 é que, em meio à desagregação da
ram por se difundir no herança varguista, os participantes do antigo pacto nacional-desenvolvimentista
seio do empresariado
brasileiro. Mas vale começam a reorientar-se politicamente.
lembrar que sua reori- As classes proprietárias e empresariais, como reação às iniciativas
entação ideológica,
embora seja elemen-
reformistas do governo na Nova República e, principalmente, ao Plano Cru-
to-chave para explicar zado, passaram a mobilizar-se e a organizar-se de forma autônoma visando
a emergência de um conformar a ação e as estruturas estatais. Com o fim do regime militar-autori-
novo bloco político
hegemônico no país, tário, pareceu que o corporativismo, os “anéis burocráticos” e os “cartórios”
constitui parte da ex- deixaram de ser suficientes como garantias do controle exercido pelo
pansão mundial das empresariado sobre o Estado. Não apenas o empresariado renova e multiplica
idéias econômicas li-
berais. Esta expansão suas organizações e expande sua atuação na esfera pública5 mas também a
ocorre com vigor a sua perspectiva passa a predominar largamente nos meios de comunicação de
partir do final dos
anos 70, quando os
massa, difundindo-se, com isso, na massa empresarial e nas classes médias.
governos Ronald Rea- O importante é que esta atuação desenvolta não se orientava para o
gan nos EUA e Mar- passado, para reconstituir o velho Estado e mesmo a sociedade autocrática que a
gareth Thatcher na
Inglaterra passam a alicerçava. No correr da década dos 80 foi tornando-se claro para o empresariado
lhes dar peso nas res- que a retomada do crescimento econômico e a redução das tensões sociais já não
pectivas políticas do- poderia depender da presença dominante do Estado no sistema produtivo. Pelo
mésticas e no plano
internacional. É claro contrário, ela dependeria da ampliação do grau de associação da burguesia local
que os constrangimen- com o capital estrangeiro e envolveria concessões liberalizantes em relação ao
tos políticos e econô-
micos internacionais
padrão de desenvolvimento anterior. Agora, o empresariado combate o
e as situações inter- intervencionismo estatal, clama por desregulamentação, por uma melhor aco-
nas afetaram muito o lhida ao capital estrangeiro, por privatizações, etc. Em suma, passa a ter uma
quando e o ritmo em
que aquelas idéias se orientação cada vez mais desestatizante e internacionalizante6.
difundiram e foram re- Apesar desta guinada político-ideológica do empresariado ter pareci-
elaboradas em cada do avassaladora, especialmente pelo domínio que tinha da mídia, seu resultado
país. Para uma discus-
são abrangente do tema de curto prazo foi modesto. Em primeiro lugar, ela encontrou resistências entre
cf. Biersteker (1995). os assalariados organizados. Provocou no pessoal do Estado, especialmente das
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empresas estatais, antigos aliados do pacto nacional-desenvolvimentista, um


movimento ideológico de sentido oposto, de defesa do “nacional” e do “esta-
tal”, identificados em geral com os partidos de “centro esquerda” e “de esquer-
da”. Acrescente-se que, a partir do reconhecimento do direito de sindicalização
dos funcionários públicos pela Constituição de 1988, dezenas e, depois, cente-
nas de organizações formadas por eles ingressaram na Central Única dos Traba-
lhadores reforçando sua orientação estatista e nacionalista.
Em segundo lugar, as organizações empresariais não conseguiram
converter seu crescimento sociopolítico em força político-institucional. Fo-
ram derrotadas no Congresso Constituinte com a ampliação das limitações
ao capital estrangeiro, com o aumento do controle estatal sobre o mercado em
geral e com a multiplicação dos mecanismos de proteção social aos funcioná-
rios, trabalhadores, aposentados e assim por diante. De fato, apesar de deca-
dente, o modelo nacional-desenvolvimentista – é verdade que permeado por
conquistas democratizantes – foi juridicamente consolidado através da Cons-
tituição de 1988. Criou-se uma carapaça legal rígida, aparentemente podero-
sa, que assegurava a preservação das velhas formas de articulação entre Esta-
do e mercado no exato momento em que o processo de transnacionalização e
a ideologia neoliberal estavam para ganhar, de fato, uma dimensão mundial
com o colapso dos socialismos de Estado, cujo eixo era a União Soviética.
A constitucionalização parcial da “era Vargas” deu-lhe uma sobrevida,
em meio à mudança na correlação de forças econômicas e sociais no plano na-
cional e internacional. Mas fez da Constituição de 1988 um alvo de ataque de
médio e longo prazo7 das elites empresariais e de seus porta-vozes intelectuais e
políticos e, inversamente, trincheira de defesa das organizações operárias, de
funcionários públicos, de empregados da empresas do Estado e da classe média
assalariada, especialmente da ligada aos serviços públicos. 7
Digo alvo de médio e
As eleições presidenciais de 1989 radicalizaram as polarizações políti- longo prazo porque a
co-ideológicas entre Estado/mercado, internacional/nacional e adicionaram a es- instabilidade da moeda
e a forma de combatê-
tes pares opostos a contraposição de modalidades distintas de democracia, a de- la tornaram-se cada vez
mocracia política numa versão delegativa e outra numa versão mais participativa, mais as questões polí-
ao estilo social-democrata8. Apesar da vitória de Fernando Collor – porta-voz do ticas centrais da socie-
dade brasileira.
anti-estatismo, do ingresso do país no Primeiro Mundo (pela modernização tecno- 8
A contraposição entre
econômica) e de uma visão shumpeteriana de democracia – a enorme votação de essas versões de de-
Luiz Inácio da Silva mostrou como tinha força popular seu projeto de mocracia inspira-se
na distinção feita por
desenvolvimentismo democratizado e distributivista e, ao revés, como penetrara Luiz Werneck Viana,
pouco na sociedade o projeto liberal-internacionalizante do empresariado. a propósito dos proje-
tos de Lula e Collor e
De qualquer maneira, mesmo por vias transversas, o governo Collor depois de Lula e Fer-
(março de 1990 a setembro de 1992) contribuiu para danificar o arcabouço nando Henrique, en-
institucional nacional-desenvolvimentista e para reorientar em um sentido anti- tre democracia políti-
ca e democracia so-
estatal e internacionalizante a sociedade brasileira. E isso tanto no plano das regras cial, esta sendo enten-
e normas articuladoras de Estado e mercado como no plano da difusão ideológica. dida como a absorção
Foram suspensas as barreiras não-tarifárias às compras do exterior no plano político do
processo de democra-
e implementou-se um programa de redução progressiva das tarifas de impor- tização da sociedade
tação ao longo de quatro anos9. Ao mesmo tempo, implantou-se um programa (cf. Viana, 1995).
27
SALLUM JR., Brasilio. O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e desenvolvimentismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 23-47, out. 1999 (editado em fev. 2000).

de desregulamentação das atividades econômicas e de privatização de empre-


sas estatais (não protegida pela Constituição) para recuperar as finanças pú-
blicas e reduzir aos poucos o seu papel na impulsão da indústria doméstica.
Finalmente, a política de integração regional materializada na constituição do
Mercosul (1991) tinha como horizonte ampliar o mercado para a produção
doméstica dos países-membros.
9
As tarifas alfandegári- Com isso, desistia-se de construir no país uma estrutura industrial
as médias passaram de completa e integrada, em que o Estado cumpria o papel de redoma protetora
31,6% em 1989 para
30,0% em setembro de em relação à competição externa e de alavanca do desenvolvimento industrial
1990, 23,3% em 1991, e da empresa privada nacional. De um ponto de vista positivo, definiu-se com
19,2% em janeiro de as medidas tomadas uma estratégia de integração competitiva da economia
1992, 15,0% em outu-
bro de 1992 e 13,2% doméstica ao sistema econômico mundial. Esperava-se preservar apenas aque-
em julho de 1993, seis les ramos industriais que conseguissem, depois de um período de adaptação,
meses antes que o
cronograma inicial-
mostrar suficiente vitalidade para competir abertamente numa economia in-
mente fixado. ternacionalizada. Dessa forma, o parque industrial doméstico tendia a conver-
10
Apesar da redução das ter-se em parte especializada de um sistema industrial transnacional10.
barreiras às importa-
ções, o fracasso dos Esta reorientação estratégica constituiu inflexão importante na nossa
programas de estabi- transição política, pois produziu alterações institucionais que incorporavam no
lização lançados a plano do Estado mudanças político-ideológicas que já vinham ocorrendo no
partir do início do go-
verno Collor (exceção seio do empresariado e das camadas médias. No entanto, embora sintonizada
feita ao Plano Real), doutrinariamente com o empresariado local e o transnacional, a inflexão liberal
a recessão vigente na
maior parte do perío-
não foi suficiente para soldar um novo pacto que superasse a crise de hegemonia
do e a preservação de instaurada em 1983. É que embora à primeira vista Collor parecesse e, mesmo,
uma política cambial quisesse apresentar-se como um César providencial, saído das fendas da ordem
favorável às exporta-
ções e prejudicial às política em crise para superá-la, o seu governo, ao invés, contribuiu para au-
importações deses- mentar drasticamente as incertezas, quebrando completamente as expectativas
timularam novos in- das forças políticas em disputa. Recorde-se a promessa de Collor de deixar a
vestimentos industri-
ais e restringiram a direita furiosa e a esquerda perplexa. Sem dúvida cumpriu a promessa, atacando
concorrência dos pro- as classes proprietárias muito além do que Lula ousaria.
dutos estrangeiros.
Por isso, o impacto
Com efeito, para estabilizar a moeda, o Plano Collor colocou em xeque
das medidas libera- a segurança jurídica da propriedade privada: além de retomar o congelamento de
lizantes sobre a estru- preços, seqüestrou e reduziu parte dos haveres financeiros do empresariado e da
tura do parque indus-
trial brasileiro foi di- classe média. O governo, ademais, sujeitou as organizações tradicionais de re-
minuto. Além disso, a presentação empresarial a ataques verbais sistemáticos e articulou, em paralelo,
indústria doméstica grupos de empresários para lhe dessem suporte na implementação de sua políti-
encontrou no Mer-
cosul uma válvula de ca de desenvolvimento. Pretendeu exercer o poder dissociado da classe política e
escape à recessão in- seus mecanismos tradicionais de sobrevivência. Reduziu as despesas do Estado
terna e às dificuldades desorganizando a administração pública com dispensas arbitrárias e em massa de
de competir no plano
mundial. funcionários. Tentou fragilizar as organizações operárias que se lhe opunham in-
11
Referimo-nos aqui ao centivando organizações alternativas ligadas ao governo.
cesarismo, fenômeno
político em que, numa
Em suma, Collor no governo fracassou como César11, tornou-se
situação de crise, o en- agente de aprofundamento da crise política. Ao invés de oferecer às forças em
trechoque de forças disputa meios para saírem de modo consentido dos seus impasses, tentou im-
políticas eqüipotentes
permite o surgimento por-lhes uma alternativa “de cima para baixo”. Tentou restaurar autocratica-
de um líder providen- mente a estabilidade da moeda, base das relações de troca e da autoridade do
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11(2): 23-47, out. 1999 (editado em fev. 2000).

Estado sobre o mercado, numa sociedade que, embora mal alinhavada politi-
camente, havia avançado muito no caminho da democratização.
A mudança nas condições do mercado internacional de capitais, o
legado de Collor (positivo e negativo), a exacerbação da instabilidade políti-
co-econômica no período Itamar Franco e o crescimento avassalador do pres-
tígio popular do candidato das esquerdas à Presidência da República consti-
tuíram condições e alavancas poderosas para a tentativa seguinte, efetivada cial, que constrói a
em 1994, de “costurar” a superação da crise de hegemonia que corroía a so- ponte política para um
novo tipo de Estado em
ciedade brasileira desde o início dos anos 8012. que as forças em luta
Recordemos rapidamente as novas condições a que se fez referência. possam conviver (cesa-
Em primeiro lugar, o reinício do afluxo de capitais para a América Latina, como rismo progressivo) ou,
pelo contrário, é o elo
muitos já sublinharam, mudou completamente as condições para o exercício de de ligação entre a si-
políticas de estabilização pois a precariedade das reservas internacionais tinha tuação catastrófica e
uma forma política
sido uma severa restrição às políticas anti-inflacionárias desde os anos 8013. antiga, já ultrapassada
Quanto à herança do período Fernando Collor, há dois aspectos a (cesarismo regressi-
salientar. Mesmo com a repulsa que culminou no processo de impeachment, vo). O autor chave a
este respeito é Antônio
preservou-se – a despeito das objeções do presidente Itamar Franco – a estraté- Gramsci. O emprego
gia liberal que se começara a implementar em 1990 (abertura comercial e que aqui se faz é algo
privatizações). Isso sinaliza que, entre as forças político-partidárias majoritári- metafórico. Para um
balanço curto, mas
as que sustentavam o governo Itamar, o reformismo liberal já avançara tanto rico, dos significados
que inviabilizava qualquer volta ao nacionalismo desenvolvimentista. Ademais, do termo na literatura
especializada, cf. o ver-
depois dos experimentos heterodoxos de Collor, tornou-se muito arriscado – bete “Cesarismo” em
tanto do ponto de vista político quanto em função da eventual reação do Judici- Bobbio (1994).
12
ário – quebrar a indexação pelo controle ou congelamento de preços ou quais- Utilizo-me abundante-
mente da análise das
quer medidas legislativas de duvidoso valor jurídico. Se estas novas condições condições econômicas
restringiam o campo das possibilidades de desenhar uma “saída para a crise”, o e políticas que cerca-
crescimento do prestígio popular das oposições, impulsionado pela instabilida- ram a elaboração do
Plano Real que se en-
de política e econômica do período Itamar, recomendava às forças governistas contra em Sola &
não só eliminarem a causa do crescimento do adversário mas união para enfrentá- Kugelmas (1996).
13
O afluxo de capitais
lo, sob pena de naufragarem como no final da Nova República. começou a atingir o
Essas condições e alavancas deram especificidade à fortuna encon- Brasil em 1991 inten-
trada por algumas lideranças políticas que, bem situadas no seio do Estado, sificando-se a partir
de 1992, o que permi-
tiveram virtu suficiente para negociar a associação entre partidos de centro e tiu acumular reservas
direita em torno da continuidade das reformas liberais, da estabilização da de divisas considerá-
economia e da tomada do poder político central, corporificando tudo isso no veis – de algo como 9
bilhões em fins de
lançamento bem sucedido do Plano Real e na candidatura, afinal vitoriosa, à 1991, passou-se a qua-
Presidência da República do seu articulador, o então Ministro da Fazenda se 24 bilhões em 1992
Fernando Henrique Cardoso. para atingir cerca de
42 bilhões em meados
Esta referência ao encontro entre fortuna e virtu retoma, de modo um de 1994.
14
pouco diverso, a idéia de “momento maquiaveliano”, de Pocock, usada por Estes autores transfe-
rem para a experiên-
Lourdes Sola e Eduardo Kugelmas para enfatizar a atuação das lideranças na cia brasileira a idéia
reconstrução do Estado, na mesma situação histórica14. Eles lembram que nas de Pocock (1975) uti-
conjunturas críticas é central a capacidade das lideranças de aproveitarem ou lizada por Malloy &
Connaghan (1996), na
não “as janelas de oportunidade (no plano internacional, por exemplo) graças à análise dos países dos
recombinação de algumas das propriedades (genéticas) das instituições dadas Andes Centrais.
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no sistema político e econômico brasileiro; uma recombinação que justifica o


uso da categoria de statecraft porque determinada pela prevalência do interesse
geral da comunidade política – e da ordem política – ameaçadas pelo confronto
entre interesses particularistas”(Sola & Kugelmas, 1996, p. 404).
Segundo este raciocínio, a utilização criativa da revisão constitucional
para gerar condições fiscais mínimas para a estabilização (o Fundo Social de
Emergência, votado pelo Congresso em fevereiro de 1994); a instituição de uma
moeda paralela, a URV, unidade de conta (cujo valor em Cruzeiros Reais era fixa-
do diariamente) que não quebrou a indexação mas a exacerbou, gerando por al-
guns meses uma espécie de “hiperinflação de laboratório”; e a substituição da
URV pelo Real em 01/07/1994, ancorado no dólar, mas não igual a ele; tudo isso,
em suma, além de dezenas de regulamentações específicas, teria produzido a esta-
bilidade. Por essa via se teria assegurado “um princípio de universalidade – incor-
porado em instituições e práticas – sobreposto à particularidade e à contingência
inerentes ao comportamento descontrolado das forças contendoras”, para usar as
palavras de Malloy e Connaghan sobre o momento maquiaveliano.
Em relação a isso haveria que fazer alguns poucos reparos. Em pri-
meiro lugar, esse princípio de universalidade que se sobrepõe aos particularismos,
esse interesse geral que está na base da construção ou reconstrução do Estado é
ele próprio, e estou seguro que os autores o reconheceriam, um particular que
ganha foros de universal porque se torna hegemônico. O momento maquiaveliano
em questão foi passo decisivo na superação de uma crise de hegemonia, na
definição de um novo sistema estável de poder para sociedade brasileira. Segun-
do, o papel das lideranças, a virtu, teve menos latitude do que supõem Sola e
Kugelmas. Com efeito, o que se efetiva em 1994 dá apenas a amarração final em
alicerces que vinham sendo socialmente construídos, como se mostrou, desde o
Plano Cruzado. Terceiro, mesmo que o Plano Real tenha sido uma formula téc-
nica brilhante de converter uma “hiperinflação surda” em estabilidade monetá-
ria, ele foi apenas um instrumento essencial mas subordinado do “momento
maquiaveliano”. O essencial deste estava na composição política entre a direita
e o centro político-partidário em torno de um projeto de conquista e reconstru-
ção do poder de Estado segundo uma ótica predominantemente liberal. Não fora
assim, como entender que o Congresso Nacional tenha transferido, ainda em
fevereiro de 1994, recursos fiscais importantes dos estados e municípios para a
União (com a criação do Fundo Social de Emergência), para sustentar um pro-
grama de estabilização a ser implantado pelo ministro da Fazenda – e possível
candidato à Presidência – quando todos os partidos disputavam as governanças
estaduais e, portanto, poderiam ser prejudicados pela decisão?
O extraordinário sucesso do Plano Real, a eleição de Fernando Henrique
Cardoso para a Presidência já no primeiro turno, a escolha de um Congresso Na-
cional em que a coalizão partidária vitoriosa tinha folgada maioria, a vitória de
aliados políticos do presidente da República nos pleitos para as governanças de
quase todos os estados – tudo isso anunciava que, em 1º de janeiro de 1995, assu-
miriam o leme de um Estado, já ancorado numa moeda com boas chances de
manter-se estável, representantes de um novo sistema de poder hegemônico, pron-
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tos para completar a tarefa de moldar a sociedade às suas diretrizes.


A ênfase dada ao momento maquiaveliano na reconstrução do Es-
tado, complementa e reforça o papel cumprido pelo conceito de hegemonia.
Os dois sublinham a insuficiência do conhecimento das estruturas para a ex-
plicação dos processos políticos, especialmente em situações de crise; uma
classe dominante não se transforma em dirigente a menos que consiga organi-
zar-se e universalize os seus interesses na sociedade; e isso não ocorre a me-
nos que lideranças políticas encontrem uma “fórmula política” que permita a
adesão da maioria das forças políticas em presença.
Um bom mapa estrutural permite perceber, por exemplo, que toda a
“janela de oportunidade” tem seu preço. Assim, a volta das aplicações de capital
estrangeiro ao país permitiu acumular reservas em divisas que puderam ser apro-
veitadas para “ancorar” o Real, mas a estabilidade da nova moeda ficou na depen-
dência de sua recriação constante e, portanto, em parte, da “boa vontade” do siste-
ma financeiro internacional e das empresas multinacionais. Um mapa desse tipo é
insuficiente, porém, porque não permite deduzir de forma fundamentada, por exem-
plo, que meios serão escolhidos para a recriação das reservas necessárias à estabi-
lidade monetária, escolha essa que afeta o grau e a forma da referida dependência.
A menos, é claro, que se acredite que só há uma maneira de fazê-lo. Mas isso seria
cair no discurso oficial que tende a justificar suas escolhas como “inevitáveis”15.

Liberalismo, Estabilização e Desenvolvimento

Mesmo do ângulo específico que se explora aqui, não há forma


simples de caracterizar o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso.
De uma perspectiva econômica e sóciopolítica, sua gestão forma uma unidade 15
Encontram-se na p. 126
que cobre um período superior ao do mandato oficial. Começa de fato no do artigo de Nobre &
Freire (1998) ótimas
lançamento do Plano Real, antes pois da posse oficial do Presidente, e termina observações sobre a
já no seu segundo governo, no dia 15 de janeiro de 1999, quando se alterou produção oficial do
“inevitável”.
radicalmente o regime cambial do país. 16
A estratégia de apro-
Durante todo este período, o governo Cardoso buscou com perseveran- fundar o Mercosul in-
ça cumprir o propósito de liquidar os remanescentes da Era Vargas, pautando-se dica quão moderado
era o liberalismo que
por um ideário multifacetado, mas que tinha no liberalismo econômico sua carac- perpassava o novo
terística mais forte. Salvo engano, o núcleo dessa perspectiva pode ser resumido bloco hegemônico.
neste pequeno conjunto de proposições: o Estado não cumpriria funções empresa- Pelo menos desde
1993, o Mercosul dei-
riais, que seriam transferidas para a iniciativa privada; suas finanças deveriam ser xou de ser visto ape-
equilibradas e os estímulos diretos dados às empresas privadas seriam nas como bloco co-
parcimoniosos; não poderia mais sustentar privilégios para categorias de funcio- mercial. Desde então
o Brasil buscou inte-
nários; em lugar das funções empresariais, deveria desenvolver mais intensamen- grar-se regionalmente
te políticas sociais; e o país teria que ampliar sua integração com o exterior, mas também do ponto de
vista energético e in-
com prioridade para o aprofundamento e expansão do Mercosul16. dustrial. Além disso, a
Este ideário liberal básico materializou-se em iniciativas que mudaram política brasileira
institucional e patrimonialmente a relação entre Estado e mercado. Seu alvo cen- tem como horizonte a
integração da América
tral foi quebrar alguns dos alicerces legais do Estado nacional-desenvolvimentista, do Sul. Cf., a respeito,
parte dos quais fora constitucionalizado em 1988. Ou seja, visaram reduzir a par- Sallum Jr. (1997).
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ticipação estatal nas atividades econômicas e dar tratamento igual às empresas de


capital nacional e estrangeiro. O governo Cardoso conseguiu isso através da apro-
vação quase integral de projetos de reforma constitucional e infra-constitucional
que submeteu ao Congresso Nacional. Os mais relevantes foram: a) o fim da dis-
criminação constitucional em relação a empresas de capital estrangeiro; b) a trans-
ferência para a União do monopólio da exploração, refino e transporte de petróleo
e gás, antes detido pela PETROBRÁS, que se tornou concessionária do Estado
(com pequenas regalias em relação a outras concessionárias privadas); c) a autori-
zação para o Estado conceder o direito de exploração de todos os serviços de
telecomunicações (telefone fixo e móvel, exploração de satélites, etc.) a empresas
privadas (antes empresas públicas tinham o monopólio das concessões).
Além de desencadear este conjunto de reformas constitucionais, o go-
verno Fernando Henrique estimulou fortemente o Congresso a aprovar lei com-
plementar regulando as concessões de serviços públicos para a iniciativa privada,
já autorizadas pela Constituição (eletricidade, rodovias, ferrovias, etc.), conseguiu
a aprovação de uma lei de proteção à propriedade industrial e aos direitos autorais
nos moldes recomendados pelo GATT e preservou o programa de abertura comer-
cial que já havia sido implementado. Sustentado pela legislação que permitia e
regulava a venda de empresas estatais desde o período Collor e pelas reformas
constitucionais promovidas desde 1995, executou um enorme programa de
privatizações e de venda de concessões tanto no âmbito federal como no estadual.
Este conjunto de iniciativas parece ter materializado o código comum
do novo bloco hegemônico – grande maioria dos parlamentares, burocratas e
dirigentes do Executivo, empresariado de todos os segmentos, mídia, etc. – com
larga penetração na classe média e em parte do sindicalismo urbano e na massa
da população. Com efeito, as medidas legislativas foram aprovadas com facili-
dade pelo Congresso Nacional, apesar da oposição da minoria de esquerda
posicionada atrás das bandeiras da defesa do “patrimônio público” e da “econo-
mia nacional”. E as privatizações e vendas de concessões foram realizadas com
grande sucesso e apoio popular, a despeito das escaramuças jurídicas promovi-
das pelas organizações de esquerda e seus simpatizantes.
Contudo, para além do código que dava um mínimo de unidade de
crença e propósito ao novo bloco político hegemônico, houve fortes polariza-
ções no seu interior, polarizações que se materializaram em uma disputa in-
terna sempre renovada em torno da política econômica e em certa duplicidade
e hibridismo das próprias ações do Estado em relação à economia.
O exame destas disputas político-ideológicas no interior do novo
bloco político hegemônico e das ações do governo torna perceptível a existên-
cia de uma polarização básica entre duas versões distintas de liberalismo –
uma mais doutrinária e fundamentalista, o neoliberalismo e outra, que absor-
ve parte da tradição anterior, o liberal-desenvolvimentismo. A primeira ver-
são foi sem dúvida a predominante, orientando de modo consistente o núcleo
duro da política econômica governamental. A segunda versão de liberalismo
não teve a consistência da primeira, não se materializou em texto programático
e nem chegou a orientar sistematicamente a ação governamental (cf. Sallum
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Jr., 1998, p. 63-115; p.157-199)17. Mas pode ser reconstruída a partir do de-
bate público, de conceitos esparsos aparecidos em documentos oficiais e do
17
No texto citado, ca-
“espírito” de iniciativas governamentais surgidas em reação a certas conse- racterizo o liberal-
qüências sociais e econômicas supostamente negativas da ortodoxia liberal. desenvolvimentismo
Para a corrente neoliberal dominante a prioridade era a estabilização de forma diversa, co-
mo uma estratégia em
rápida dos preços por meio das seguintes medidas complementares: a) manu- construção. O texto foi
tenção do câmbio sobrevalorizado frente ao dólar e outras moedas18, de forma a escrito em julho de
estabilizar os preços internos e pressioná-los para baixo pelo estímulo à concor- 1997 e havia sinais que
permitiam essa inter-
rência derivada do barateamento das importações; b) preservação e, se possível, pretação do processo.
ampliação, da “abertura comercial” para reforçar o papel do câmbio apreciado 18
A sobrevalorização
na redução dos preços das importações; c) o barateamento das divisas e a aber- cambial não é ineren-
te à perspectiva neo-
tura comercial permitiriam a renovação rápida do parque industrial instalado e liberal. Pelo contrá-
maior competitividade nas exportações; d) política de juros altos, tanto para rio, esta orienta-se por
um câmbio “de mer-
atrair capital estrangeiro – que mantivesse um bom nível de reservas cambiais e cado”. A versão abra-
financiasse o déficit nas transações do Brasil com o exterior, como para reduzir sileirada de neoli-
o nível de atividade econômica interna – evitando assim que o crescimento das beralismo, que domi-
nou a política econô-
importações provocasse maior desequilíbrio nas contas externas; e) realização mica, via na sobre-
de um ajuste fiscal progressivo, de médio prazo, baseado na recuperação da valorização um meio
carga tributária, no controle progressivo de gastos públicos e em reformas es- eficaz de obrigar as
empresas nacionais a
truturais (previdência, administrativa e tributária) que equilibrassem “em defi- buscar rapidamente
nitivo” as contas públicas; f) não oferecer estímulos diretos à atividades econô- padrões internacio-
nais de eficiência sob
micas específicas, o que significa condenar as políticas industriais setoriais e, pena de saírem do
quando muito, permitir estímulos horizontais à atividade econômica – exporta- mercado. Esta versão
ções, pequenas empresas, etc., devendo o Estado concentrar-se na preservação é fundamentalista no
sentido de que se cons-
da concorrência, através da regulação e fiscalização das atividades produtivas, titui numa política de
principalmente dos serviços públicos (mas não estatais)19. conversão forçada dos
Entre o lançamento do Plano Real e março de 1995, essa perspectiva que não se enqua-
dram. Sobre o neoli-
fundamentalista dominou plenamente a política econômica. Deixou-se o real va- beralismo, cf. Unger
lorizar até quase 0,80 por dólar, estancando de forma dramática a inflação, o que (1998). A respeito da
apreciação cambial e
aumentou extraordinariamente a renda disponível e a demanda das camadas mais sua quantificação, cf.
pobres da população. Com isso, apesar dos juros altos, a economia – que já vinha Schwartsman (1999).
19
aquecida desde o começo do governo Itamar Franco – apresentou um boom extra- Essa perspectiva neo-
liberal teve como re-
ordinário, amplificando a demanda por importações e tornando-se um desaguadouro presentantes político-
mais fácil para produtos usualmente exportados. Ademais, com o objetivo decla- intelectuais caracterís-
rado de evitar que a demanda maior resultasse em acréscimos de preços, decidiu- ticos: no governo, o ex-
presidente do Banco
se em agosto-setembro reduzir as tarifas alfandegárias em relação aos países do Central, Gustavo Fran-
Mercosul, antecipando a tarifa externa comum, a ser implantada apenas em janei- co, o ex-secretário de
ro de 1995. Isso tudo levou à reversão dos saldos no comércio exterior brasileiro, Política Econômica
Winston Fritsch e o
positivos desde 1987. Já em novembro de 1994 os déficits comerciais começaram ministro da Fazenda
a aparecer, chegando em dezembro a mais de 1 bilhão de dólares. Pedro Malan; fora do
governo, suas expres-
Do ângulo do fundamentalismo liberal, o desequilíbrio externo não sões mais notórias fo-
constituía grande problema. Como o essencial era chegar o mais rapidamente ram alguns economis-
à estabilidade dos preços, era preciso manter apreciada a taxa de câmbio por tas da PUC-Rio, den-
tre os quais Rogério
um longo período e reduzir, com importações, o poder dos oligopólios indus- Werneck e Marcelo de
triais fixarem preços. Eventuais déficits no comércio e nos serviços com o Paiva Abreu.
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exterior poderiam ser cobertos pelas reservas de divisas disponíveis e pelo


afluxo de capitais externos. Acreditava-se que o ambiente de estabilidade cri-
ado pelo Plano Real e taxas elevadas de juros atrairiam parte da enorme mas-
sa de capitais disponíveis no mercado mundial. E que, aos poucos, o sistema
econômico se ajustaria em bases mais produtivas, de forma a ter uma inserção
mais equilibrada no mercado mundial, o que reduziria a necessidade de pou-
pança externa para “fechar” o balanço de pagamentos.
Obviamente, constitui pressuposto dessa política neoliberal de es-
tabilização uma visão extremamente otimista do mercado financeiro mun-
dial e da rapidez com que o “ajuste fiscal” se tornaria a nova âncora do real,
em lugar do dólar.
A crise mexicana de dezembro de 1994 sinalizou os riscos implícitos
na adoção de uma política macroeconômica orientada pelo fundamentalismo libe-
ral. Quer dizer: dependendo das circunstâncias internacionais, um desequilíbrio
acentuado da balança comercial e de serviços poderia encontrar dificuldades de
ser financiado por capitais externos. No caso em pauta, as reservas internacionais
caíram de mais de 41 bilhões de dólares, em outubro de 1994, para 31,4 bilhões
em junho de 1995, tendo-se reduzido 1,2 bilhões apenas entre fevereiro e março.
Além disso, a enorme apreciação cambial apontou para a possibili-
20
Em março de 1995, o dade de desindustrialização parcial do país pois, para as multinacionais de
Banco Central criou alguns setores (como as do setor automotivo), importar foi se tornando mais
um sistema de bandas
– tetos máximo e mí-
vantajoso do que produzir internamente, e porque ficou cada vez mais difícil
nimo – de variação para as empresas locais competir com os importados sem aumentar as com-
cambial, provocando pras de matérias primas e componentes no Exterior.
uma desvalorização do
real em relação ao dó- Frente às conseqüências real ou potencialmente negativas do
lar de 6,0 %. A partir fundamentalismo liberal, desde março de 1995 até o final de 1998, o governo
daí e ao longo de 1996 passou a tomar medidas compensatórias, tais como: criação do sistema de ban-
o BC promoveu mini-
desvalorizações cam- das cambiais móveis, desvalorização nominal e depois real, embora suave, do
biais seguindo aproxi- câmbio20, aumento de tarifas alfandegárias para alguns produtos industriais,
madamente a variação
dos preços do atacado.
política industrial para o setor automotivo, ampliação extraordinária do volume
Desde o final de 1996, de empréstimos pelo sistema do Banco Nacional de Desenvolvimento Econô-
com a perspectiva da mico e Social com taxas especiais de juros (taxas de longo prazo), programação
produção de um défi-
cit acentuado na balan- de investimentos em parceria com a iniciativa privada para a recuperação da
ça comercial, inicia-se infra-estrutura econômica do país (Programa Brasil em Ação), programas de
um processo de desva- estímulo à exportação, seja por isenção de impostos para produtos agrícolas,
lorização em relação ao
dólar mais intenso do seja por financiamento a juros subsidiados, renegociação das dívidas agrícolas,
que a inflação domésti- programas especiais de financiamento para setores industriais selecionados, de
ca. Todas essas altera-
ções, porém, não foram
financiamento para pequenas e médias empresas e assim por diante.
reconhecidas como po- Não cabe aqui analisar cada uma dessas iniciativas, mas a maioria de-
líticas. Só a partir da cri- las contribuiu para a preservação e reestruturação do sistema econômico nacional
se asiática, em 1998, o
governo admite que sua e de vários setores específicos, inclusive tradicionais (como o setor de têxteis e de
política cambial envol- calçados). O que importa é que a maioria dessas medidas teve como fonte de
via uma desvalorização inspiração aquilo que denominamos antes liberal-desenvolvimentismo. Nele, o
real de 7,5 % anuais em
relação à moeda norte- velho desenvolvimentismo dos anos 50 a 70 renasce sob predomínio liberal. Nes-
americana. sa versão de liberalismo também dá-se prioridade à estabilização monetária, mas
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a urgência com que ela é perseguida aparece condicionada aos efeitos potenciais
destrutivos que as políticas antiinflacionárias ocasionarão no sistema produtivo.
Por isso, combate-se o radicalismo dos fundamentalistas, exigindo-se um câmbio
não apreciado, para evitar déficits na balança de transações correntes (comercial e
de serviços), e juros mais baixos para não desestimular a produção e o investimen-
to. De outra forma: a combinação de câmbio menos valorizado e juros “razoáveis”
não permitiria uma queda tão brusca da inflação, mas provocaria menos
desequilíbrios da economia doméstica em relação ao exterior e, assim, menor de-
pendência de aportes de capitais estrangeiros para equilibrar o balanço de paga-
mentos. Este desenvolvimentismo continua industrializante, mas seu foco am-
pliou-se para incluir as atividades produtivas em geral, desde a agricultura até os
serviços. Além disso, os seus partidários não aspiram, como desejavam seus
antecessores dos anos 50, construir no país um sistema industrial integrado. Aspi-
ram, sim, que a produção local tenha uma participação significativa no sistema
econômico mundial. No entanto, esse desenvolvimentismo limitado pelo molde
liberal apenas vê com bons olhos formas bem delimitadas de intervenção do Esta-
do no sistema produtivo. Assim, dentro dessa perspectiva, são favorecidas as po-
líticas industriais setoriais, mas desde que limitadas no tempo e parcimoniosas nos
subsídios. Tais políticas terão por objetivo não a substituição de importações a
qualquer preço mas o aumento da competitividade setorial e, quando muito, o
“adensamento das cadeias produtivas” para desenvolver no país o máximo possí-
vel de atividades econômicas com padrão internacional de produtividade21.
Não obstante certa flexibilização da política cambial e a adoção
paulatina de medidas “compensatórias” sob a inspiração liberal-desen-
volvimentista, o fundamentalismo liberal continuou sendo o eixo da política
econômica. Quer dizer, embora o ajuste fiscal “definitivo” fosse sendo sem-
pre postergado ao longo do governo FHC (em função das dificuldades e inte-
resses políticos imediatos do governo federal), valorização cambial e juros 21
Dentro do governo in-
elevados foram convertidos em instrumentos permanentes de estabilização. cluem-se nesta pers-
pectiva, dentre outros,
Este conjunto de políticas e/ou de ausência de políticas governa- o ministros José Ser-
mentais provocou uma distribuição de recursos econômicos que alterou deci- ra, Luiz Carlos Men-
sivamente, em relação ao passado, as posições relativas dos vários segmentos donça de Barros e
Luiz Carlos Bresser
socioeconômicos que estão na base do novo bloco hegemônico22. É o que se Pereira e o Secretário
verá esquematicamente na seqüência. de Política Econômica
Em primeiro lugar, o predomínio neoliberal na política macro- e, depois, da CAMEX,
José Roberto Men-
econômica fragilizou dramaticamente a economia nacional em relação ao sis- donça de Barros. Fora
tema financeiro mundial. É certo que a política macroeconômica não produziu do governo alinham-
o resultado sozinha. Somaram-se a ela, para desequilibrar as trocas da econo- se uma enorme quan-
tidade de economis-
mia com o exterior, os muitos anos de relativa estagnação econômica e insta- tas, tendo à frente
bilidade monetária e a abertura comercial. De qualquer modo, esse desequilíbrio Antônio Delfim Neto,
jornalistas econômi-
crônico ampliou o grau de dependência da economia nacional em relação ao cos, como Luiz Nassif
sistema financeiro mundial pois ela passou a demandar volumoso ingresso e Celso Pinto, etc.
22
líquido de capitais estrangeiros para equilibrar o Balanço de Pagamentos. Produzem-se efeitos
também sobre os domi-
Vejamos isso mais de perto. Em situações em que as relações entre nados, mas não pode-
uma economia nacional e o sistema financeiro mundial são normais, o grau de mos tratar disso aqui.
35
SALLUM JR., Brasilio. O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e desenvolvimentismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 23-47, out. 1999 (editado em fev. 2000).

fragilidade financeira externa se altera conforme forem as necessidades que a


economia considerada tenha de recorrer ao mercado financeiro internacional
para cobrir seu déficit externo corrente e as dívidas que estão vencendo23.
Quanto mais ela tem de obter recursos externos para equilibrar suas contas,
mais uma mudança nas condições do mercado internacional de capitais torna-
se capaz de afetar os fluxos de financiamento para o país, sujeitando a moeda
nacional ao perigo de eventuais ataques especulativos tendentes a desvalorizá-
la. O gráfico abaixo indica a evolução da fragilidade financeira externa brasi-
leira entre 1992 e 1997, cotejando-a com a curva que mostra o comportamen-
to negativo da balança comercial no mesmo período24.
saldo comercial índice de
(U$ 1,000.00) fragilização
5000 1,2
4000
3000 1
2000 0,8
1000
0 0,6
-1000
-2000 0,4
-3000 0,2
-4000
-5000 0
Fragilidade Financeira
e
IV/92

IV/93

IV/94

IV/95

IV/96

IV/97
III/92

III/93

III/94

III/95

III/96

III/97
str
II/92

II/93

II/94

II/95

II/96

II/97
I/92

I/93

I/94

I/95

I/96

I/97
Externa e Saldo da
me
Balança Comercial tri
BC IFE

23
O conceito de fragili- A crise mexicana do fim de 1994, a crise asiática de 1997 e a morató-
dade financeira origi- ria da Rússia, de agosto de 1998, deram lugar a ataques especulativos do tipo
na-se em H. Minsky
tendo sido reelabo- mencionado. Em todas as situações críticas, o Brasil perdeu grande quantidade
rado e adaptado para de reservas internacionais e o governo reagiu de forma similar: manteve a esta-
a economia brasileira
por Paula & Alves Jr.
bilidade da moeda, elevando drasticamente os juros para preservar reservas,
(1999, p. 79). para restringir a atividade econômica interna e o desequilíbrio externo25.
24
No artigo antes citado É verdade que, em função dos choques externos, se adotaram cada
encontra-se análise eco-
nômica da evolução da vez mais enfaticamente as políticas “compensatórias” antes mencionadas, in-
fragilidade durante o clusive uma leve desvalorização real da taxa cambial. Mas elas não foram
Plano Real e também suficientes para contrabalançar a fragilidade financeira externa, especialmen-
explicações quanto aos
cálculos dos índices a te à medida que a situação internacional tornou-se bem mais instável do que
partir dos dados do Ba- na época do lançamento do Plano Real. O resultado é conhecido: crises suces-
lanço de Pagamentos do sivas até o “ataque” final contra o real, já no início do segundo mandato de
Banco Central.
25
A política de desa- Fernando Henrique Cardoso, que acabou provocando a mudança completa do
quecimento adotada regime de câmbio (para câmbio flutuante) e a conseqüente desvalorização do
depois da crise mexica-
na provocou, segundo o
real em cerca de 50% até o fim de janeiro de 1999.
CNI, um ano de redu- Em segundo lugar, a estratégia de estabilização privilegiou a esfera
ção dos índices de financeira vis-a-vis as atividades de produção/comercialização de bens e serviços.
produção industrial
(abril de 1995 a mar- Assim, apesar da redução do peso das instituições financeiras no PIB, as políticas
ço de 1996), sendo que monetária e cambial têm funcionado permanentemente como bombas de sucção
36
SALLUM JR., Brasilio. O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e desenvolvimentismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 23-47, out. 1999 (editado em fev. 2000).

de rendimentos dos segmentos econômicos da órbita real e do Estado para o con-


junto dos detentores de títulos financeiros, tanto estrangeiros como locais.
Dentro desse quadro geral, sublinhe-se que a política de contenção
permanente das atividades econômicas traduziu-se em baixas taxas de cresci-
mento do produto e, a partir de 1997, em altos índices de desemprego26. Desta
forma, embora a estabilização da moeda tenha provocado, de início, ganhos
reais para as camadas assalariadas menos privilegiadas, a continuidade da entre agosto de 95 a
política de câmbio apreciado e juros altos vem produzindo, desde 1996, uma março de 96 os índices
caíram abaixo de zero.
regressão naquele processo e uma acentuada transferência de renda para os A partir de abril desse
detentores de haveres financeiros. ano notou-se uma recu-
Outro ponto a sublinhar é que a perpetuação das políticas cambial peração ainda hesitan-
te das atividades indus-
e monetária como substitutivo do ajuste fiscal acabou por elevar sistematica- triais. No primeiro se-
mente o endividamento público, principalmente em relação a credores inter- mestre de 97 houve re-
cuperação nítida, o que
nos27, de tal forma que no último ano do primeiro governo Cardoso o paga- levou a um déficit gran-
mento de juros passou a ser o principal fator explicativo do crescimento do de na balança de co-
déficit público, maior que o déficit da previdência pública e privada (cf. mércio exterior daque-
le ano. Com a explosão
Schwartsman, 1999, p. 20-21). Isso significa que, mesmo quando alterados da crise asiática no fim
os parâmetros básicos da política econômica, a dívida pública demandará que de 97 o Banco Central
continue a haver transferências muito elevadas de recursos do conjunto da voltou a elevar dras-
ticamente os juros,
sociedade para o Estado, de modo que este possa satisfazer os seus credores. desaquecendo nova-
Sublinhe-se que, caso houvesse predominado na política econômi- mente as atividades
econômicas.
ca a ala liberal-desenvolvimentista do bloco hegemônico, o impacto sobre as 26
Segundo o IBGE, no
frações socioeconômicas teria sido completamente distinto. É muito provável período pós-REAL
que a inflação não tivesse caído tão drasticamente, mas em compensação não (de 01/07/1994 em di-
ante) as taxas de cres-
teriam sido tão privilegiados os rendimentos financeiros vis-a-vis os deriva- cimento do PIB e as
dos das atividades produtivas e do trabalho. Por isso, há que reexaminar inter- taxas médias anuais
pretações que vêem o governo FHC como expressão da conquista do poder de desemprego aber-
to (30 dias) foram,
político pela burguesia paulista ou que afirmam que, desde as eleições de respectivamente, de
1994, os “paulistas” estariam no poder28. Vale lembrar que o empresariado 7,81% e 4,84% em
94-95, de 0,45% e
industrial paulista manifestou-se várias vezes contra a política econômica do 5,75% em 95-96, de
governo Fernando Henrique e que esta foi comandada por economistas oriun- 5,39% e 5,77% em
dos da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e sintonizada com a 96-97, de 1,41% e
7,37% em 97-98 e de
ortodoxia liberal lá dominante. Com efeito, a argumentação desenvolvida até –0,67% e 8,32% em
aqui, sublinha que, ao invés de manter afinidades com a burguesia paulista ou 98-99. As taxas de
mesmo uma modernidade abstrata de mercado representada pelos paulistas, o crescimento do PIB
partem da base zero.
governo Fernando Henrique tendeu a se sintonizar com as orientações daqui- As taxas médias anu-
lo que Chesnais denomina capitalismo mundial financeirizado (cf. Chesnais, ais de desemprego fo-
1998a; 1998b). E o fez, apesar da resistência que havia dentro do governo, ram cedidas gentilmen-
te por Alvaro Comin.
fora dele mas no interior do novo bloco hegemônico e no conjunto das forças 27
Entre dezembro de
políticas contrárias ao novo bloco hegemônico. 1994 e julho de 1998 a
Dívida Líquida Total
Em terceiro lugar, o Estado reorientou suas políticas em relação aos do setor público passou
setores socioeconômicos. O mais importante e mais óbvio: as empresas estatais de 28,1% para 38,6%
deixaram de ser os pilares da política estatal. Não só elas vêm sendo privatizadas do PIB (36,3% apenas
para os credores inter-
com rapidez, mas setores que antes eram atendidos por serviços da administra- nos) (cf. Schwartsman,
ção direta têm sido entregues ao cuidado de empresas privadas. O exemplo mais 1999, p. 21).
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11(2): 23-47, out. 1999 (editado em fev. 2000).

gritante aqui é o das estradas de rodagem, cuja manutenção ou construção tem


sido concedida a empresas privadas em troca da exploração dos serviços que
prestam – pedágio e arrendamento dos terrenos públicos que as margeiam. Esta
redução das funções empresariais do Estado não eliminou mas tem transforma-
do profundamente o intervencionismo estatal. Ele vem expandindo suas fun-
ções normativas e de controle – seguindo o modelo da agência reguladora de
telecomunicações (Anatel) – e preserva grande parte da sua capacidade de mol-
dar as atividades econômicas por meio das compras de bens e serviços.
A empresa privada nacional também deixou de ser o foco privile-
giado das políticas do Estado. Se o Estado conserva o seu viés industrializante,
como se viu, até agora não há indicação nem de intenção governamental nem
de reivindicação empresarial de desenvolver uma indústria propriamente na-
cional. Pelo contrário, além das empresas estrangeiras terem sido equiparadas
constitucionalmente às nacionais, a orientação básica do Estado tem sido a de
atrair ao máximo os investimentos estrangeiros e promover sua associação
com empresas nacionais. Entre as associações empresariais a reivindicação
não é privilegiar as empresas nacionais mas reduzir as suas desvantagens com-
petitivas, pela equalização das condições – tributárias, de juros, de infra-es-
trutura, etc. – de que dispõem as estrangeiras.
Mesmo o sistema de financiamento estatal foi moldado por esta
orientação, no mínimo “equalizadora”. Na verdade, esta mudança teve início
no governo Collor. Já então o BNDES foi autorizado a financiar empresas
estrangeiras desde que captasse recursos externos e, com autorização da Pre-
sidência de República, mesmo sem este tipo de recursos. Quando o governo
tratava de tornar atraente o setor de telecomunicações para investimentos es-
trangeiros, em 1997, a Presidência da República, através de medida provisó-
ria, autorizou empréstimos dos bancos oficiais a empresas de capital estran-
geiro em setores considerados prioritários, como o de telecomunicações, inde-
pendentemente da fonte de recursos.
O governo FHC fez, no entanto, mais do que “equalizar” as condi-
ções entre empresas estrangeiras e nacionais. A política de estabilização (ju-
28
Refiro-me aqui, res- ros altos/câmbio apreciado) por si só desvalorizou as empresas locais porque
pectivamente, aos –
sob outros aspectos –
contribuiu para descapitalizá-las e favoreceu as empresas multinacionais, na
excelentes trabalhos medida em que dispõem de alternativas de financiamento fora do Brasil, além
de Viana (1995) e de de outras vantagens que o tamanho e a presença em vários mercados lhes dão.
Barboza Filho (1995).
29
O indicador mais geral Além disso, o Estado (nos níveis federal e estadual) procurou atrair sistemati-
desta mudança é o camente empresas multinacionais para dois setores-chave da indústria, o
crescimento muito len- automotivo e o de telecomunicações, não só modulando a legislação tributária
to do peso dos investi-
mentos no PIB compa- e o sistema de financiamento mas também através de “convites” e outras ini-
rado com o aumento ciativas destinadas a “vender” o Brasil como destino prioritário de investi-
extraordinário dos in-
vestimentos diretos es-
mentos para o capital estrangeiro. Este conjunto de incentivos implícitos e
trangeiros no país (o explícitos certamente contribuiu para o substancial aumento verificado na
Brasil tornou-se o se- participação nos principais mercados das empresas de capital estrangeiro vis-
gundo destino mais im-
portante entre os países a-vis às de capital nacional29.
“emergentes”). Ademais, desapareceu – ou quase – a prioridade que o nacional-
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desenvolvimentismo dava à indústria. No âmbito do BNDES, principal agente


financeiro da industrialização do país, foi notável a diversificação setorial das
empresas atendidas. Além da indústria, passou-se também a financiar atividades
comerciais (centros de compras), turísticas (parques de diversão), agrícolas, etc.
Em contrapartida, a agricultura empresarial ganhou uma inusitada
preeminência na gestão econômica do governo Fernando Henrique. Além de
medidas que beneficiaram diretamente o setor30, as autoridades governamen- 30
Foram renegociadas as
tais deram-se conta de que a agricultura brasileira – nas novas circunstâncias, dívidas dos agriculto-
res – deu-se carência,
de concorrência internacional mais aberta – tem uma grande capacidade de os prazos foram alon-
competição, mesmo sob condições adversas (infra-estrutura, financiamento e gados e os juros redu-
câmbio). Por isso, o setor tornou-se objeto de especial preocupação do gover- zidos. Com isso, abriu-
se a oportunidade para
no também no plano internacional. A partir de 1996 e, especialmente, em novos investimentos.
1997 – por ocasião das discussões sobre a Associação de Livre Comércio das Foi criada uma linha de
crédito muito favore-
Américas (ALCA) e sobre um acordo de livre comércio com a União Euro- cido para a agricultura
péia – as questões agrícolas e o combate ao protecionismo norte-americano e familiar, o PRONAF.
europeu ganharam posição central na diplomacia brasileira. Os planos de safra pas-
saram a ser divulgados
As mudanças havidas nas diretrizes de exercício do poder não foram a tempo, antes das de-
tão drásticas a ponto de romper um parâmetro básico da aliança nacional- cisões de plantio. Foi
desenvolvimentista, a intocabilidade da propriedade agrária. É verdade que a reformado o sistema de
seguro agrícola, bene-
própria estabilização monetária reduziu drasticamente valor da propriedade ficiando os agricultores
territorial enquanto a fonte de apropriação de riqueza ao desvalorizar a terra em obedientes ao zonea-
mento do Ministério da
cerca de 45% (em média). Mas, além disso, por iniciativa própria e por pressão Agricultura. Isentou-se
social (do Movimento dos Sem-Terra [MST], Confederações Nacional dos Tra- de ICMS as exportações
balhadores na Agricultura [CONTAG] e da Igreja), o governo desenvolveu ao agrícolas e os equipa-
mentos destinados à
longo de quatro anos um extenso programa de reforma agrária. Este programa agricultura. Em lugar
envolveu não apenas um grande número de desapropriações e de assentamen- da política de preços
tos31. Ademais, promoveu-se um conjunto de reformas institucionais que visa- mínimos, foram criados
instrumentos financei-
vam ampliar a taxação sobre a terra improdutiva e aumentar o poder de inter- ros para aumentar a se-
venção do poder público na estrutura fundiária. Modificou-se em 1996 o siste- gurança de comercia-
lização da safra. Boa
ma de tributação do Imposto Territorial Rural introduzindo-se sobretaxas para parte das obras de infra-
terras improdutivas (a maior delas é de 20% do valor da terra improdutiva para estrutura do programa
propriedades com mais de 5000 hectares e menos de 30% de utilização) e esti- “Brasil em Ação” des-
tinaram-se a melhorar o
pulou-se que o valor da terra nua seria declarado pelo proprietário e serviria escoamento dos produ-
como valor máximo para efeitos de desapropriação. Instituiu-se também o rito tos agrícolas (cf. Men-
sumário nas desapropriações de terras dificultando para os proprietários de ter- donça de Barros, 1998).
31
No período de 1965 a
ras improdutivos o uso de medidas protelatórias. 1984, foram assenta-
Não cabe subestimar estas iniciativas. No entanto, os seus efeitos das cerca de 208.889
estiveram longe de corresponder às expectativas iniciais. Em primeiro lu- famílias, as quais re-
ceberam em média
gar, a arrecadação do ITR não apresentou alterações substanciais (o que já 135 ha. Entre 1985 e
seria de esperar pela facilidade com que foi aprovado pela “bancada 1994, foram assenta-
das 206.650 famílias,
ruralista”) e, em segundo lugar, os assentamentos efetuados concentram-se recebendo em média
mais nas regiões de ocupação recente do que nas antigas32. Isso indica a 54 ha. Entre 1995 e
grande capacidade de resistência da velha estrutura agrária e de seus repre- 1997, 193.667 famíli-
as receberam 44 ha
sentantes, mesmo quando não contam com o respaldo do poder Executivo e em média (cf. Tavares
encontram poucos porta-vozes explícitos. dos Santos, 1998).
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Estratégia Política e Gestão Econômica

A exposição anterior, apesar de tocar apenas em alguns aspectos da


política governamental, indica claramente que, ao longo do primeiro mandato
de Fernando Henrique Cardoso, o governo contribuiu para ocorressem enor-
mes mudanças no sistema socioeconômico nacional e nas suas relações com o
Exterior. Entretanto, apesar dessas alterações e/ou por causa delas, alguns
dos seus principais alvos originais não foram atingidos.
Com efeito, passados quase cinco anos desde o lançamento do Pla-
no Real, o governo Cardoso não conseguiu produzir contas públicas estrutu-
ralmente equilibradas, que pudessem ancorar a moeda nacional em lugar do
dólar. Colheu esse resultado sem desvio significativo em relação ao
32
A repartição por gran- neoliberalismo abrasileirado que, desde o Plano Real, dominou a adminis-
des regiões, entre 1988
e 1997, mostra uma
tração da política monetária e cambial, mesmo que alguns dos seus custos se
concentração de famí- tornassem cada vez mais evidentes – crescimento medíocre, privilegiamento
lias assentadas no Nor- dos rendimentos financeiros, desnacionalização da economia, intercâmbio cro-
te (38%) e no Nordes-
te (36%), totalizando nicamente deficitário com o Exterior e, por fim, alto desemprego. O eixo da
74% dos assentamen- política macroeconômica foi mantido, mesmo em meio à instabilidade finan-
tos no Brasil. Este pa- ceira mundial reinante de 1997 em diante, até que o governo viu-se na contin-
drão se mantém nos úl-
timos três anos (1995- gência de romper o próprio regime cambial vigente – apesar do respaldo que
1997), pois embora o tinha do FMI e dos países do G 7 – como último recurso contra o “ataque
Nordeste passe a lide-
rar o processo, com
especulativo” (fuga de divisas) ocorrido na virada dos anos 1998/199933.
40% das famílias as- Como explicar a insistência nessa política macroeconômica se, pelo
sentadas, o Norte, com menos desde meados de 199634, já era sabido com bastante segurança que
32% e o Centro-Oeste,
com 19%, totalizam 51 dificilmente se chegaria ao fim do governo Fernando Henrique com finanças
% das famílias assen- públicas estruturalmente equilibradas? De fato, a expectativa de demora era
tadas (cf. Tavares dos tão grande que, nesta época, já se ensaiava justificar a necessidade de reelei-
Santos, 1998).
33
Depois da quebra do ção do presidente da República justamente para que se pudesse ter tempo de
regime cambial e da completar as “reformas estruturais”. Qual a razão, então, de o governo optar
introdução do câmbio
flutuante, a estabili-
reiteradamente por uma política econômica tendente a produzir custos sociais
dade tem sido man- internos e de riscos financeiros externos muito maiores do que uma alternati-
tida graças a um ajus- va de tipo liberal-desenvolvimentista?
te-fiscal-conjuntural-
e-repressivo e à polí- Não creio que se encontre uma resposta convincente para essas ques-
tica monetária. tões na discussão econômica das alternativas que se apresentavam. Mesmo
34
Em 17 de julho de que o debate econômico tenha sido, e seja, essencial para identificar as impli-
1996, um ano e meio
depois de começar a cações socioeconômicas prováveis das opções governamentais, minha hipó-
tramitar o projeto de tese é que a escolha feita em prol do fundamentalismo liberal tem uma expli-
reforma da previdên- cação principalmente política. Certamente, não foi uma escolha simples, to-
cia, chave do “ajuste
fiscal”, o governo so- mada de uma vez por todas. A questão apresentou-se várias vezes durante o
freu várias derrotas im- mandato de FHC e mesmo antes dele (quando da crise mexicana, por exem-
portantes na Câmara
dos Deputados quando
plo). Infelizmente não há condições, nos limites deste artigo, de examinar o
da votação do projeto problema nas conjunturas que se apresentou. Tentar-se-á, de todo modo, iden-
em 2º turno. A ponto de tificar os principais parâmetros das decisões políticas tomadas.
se dar ao senador Beni
Veras a missão de “re- Creio que a hipótese mais consistente para explicar a opção gover-
compô-lo” no Senado, namental é bastante simples: a manutenção do fundamentalismo neoliberal
40
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foi interpretado pela Presidência da República como um meio decisivo para


assegurar o necessário controle sobre o sistema político, tendo em vista reali-
zar a pesadíssima agenda de reformas institucionais que constituía o núcleo
duro do programa do governo.
Explico-me. O objetivo central do programa de governo de Fernando
Henrique era preservar a estabilidade monetária e mudar o padrão de desen-
volvimento brasileiro, superando a Era Vargas, que – nas palavras do Presi-
dente – “ainda atravanca o presente e retarda o avanço da sociedade”. Já que
ela fora parcialmente constitucionalizada em 1988, o cerne do programa do
novo governo consistia em um conjunto de projetos destinados a reformar
parte da Constituição e alterar leis infra-constitucionais que materializavam
institucionalmente o remanescente do varguismo.
Como as reformas constitucionais programadas eram numerosas e para que pudesse reco-
meçar do zero na Câ-
de aprovação muito difícil (uma mudança constitucional exige 3/5 de votos mara. Além da lentidão
nominais em dois turnos de votação em cada uma das casas do Congresso e diluição da reforma
Nacional), o governo dedicou a maior parte das suas energias à luta na arena da previdência, tam-
bém davam motivos
político-institucional35. Ora, nessa arena, a coalizão vitoriosa em 1994 con- para pessimismo quan-
tou, desde o seu início, com uma posição política excepcional para realizar to ao “ajuste fiscal” as
seus propósitos. O pleito resultou não apenas na vitória da candidatura de dificuldades de avan-
çar na reforma admi-
Fernando Henrique Cardoso, mas também numa boa maioria no Congresso nistrativa e os grandes
Nacional para a coligação partidária de centro-direita que se articulou em tor- aumentos de despesas
públicas ocorridas por
no dele (PSDB-PFL-PTB). Além disso, nos principais estados da Federação reajustes salariais con-
venceram as eleições candidatos a governador aliados do presidente. Ade- cedidos, em 1994, por
mais, a escolha do ministério permitiu ao presidente eleito consolidar sua Itamar Franco e vários
governadores de Estado
maioria parlamentar, incorporando à coalizão original o maior partido brasi- em final de mandato.
leiro, o PMDB, cujo candidato à Presidência havia sido fragorosamente der- 35
Distinguem-se aqui
rotado. Em boa parte das votações, além disso, a coligação governista podia três arenas de disputa
do poder, segundo os
contar com a maioria dos votos do PPB, partido situado à direita da aliança diferentes tipos de re-
governista. Em contrapartida, as forças de esquerda – marcadas pelo naciona- cursos políticos utiliza-
dos: a arena institu-
lismo e pelo estatismo, orientadas para a reconstrução do projeto nacional- cional – onde os atores
desenvolvimentista numa versão favorável à incorporação das massas popu- usam os recursos deri-
lares – conseguiram obter só uma presença frágil no mundo político oficial, vados das posições
institucionais que ocu-
cerca de1/5 das cadeiras da Câmara dos Deputados e menos ainda do Senado. pam; a arena da influ-
Elegeram alguns governadores, mas estes acabaram mostrando-se favoráveis ência, em que os ato-
ao projeto de reforma do Estado defendido por Cardoso. Em suma, na arena res competem entre si
usando como recursos
institucional, a coligação político-partidária afinada com a orientação política sua capacidade de con-
do presidente da República, além de dominar o Executivo federal, dominava vencimento (espaço na
claramente o Legislativo e tinha grande presença na Federação. mídia, lideranças lo-
cais, etc.); e a arena de
Contudo, uma afinidade de orientação político-ideológica entre coerção, em que os ato-
Executivo e sua base parlamentar não costuma converter-se automaticamente res políticos usam mei-
os físicos para conse-
em votos favoráveis às propostas governamentais. No sistema político brasi- guir seus objetivos (gre-
leiro, essa conversão está usualmente associada, tanto à distribuição para a ves, passeatas, lockout,
base parlamentar de recursos políticos específicos, controlados pelo Executi- forças para-militares,
etc.). A distinção foi
vo e por seu “dispositivo” de apoio no Congresso, como ao “prestígio políti- proposta em Flanagan
co” do governo e do Presidente, isto é, à aprovação difusa que eles têm da (1973).
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população36. Pode-se até dizer sem receio que quanto mais o governo dispõe
de prestígio político, menos necessidade tem de recorrer à distribuição de re-
cursos específicos, no estilo clientelista.
Na arena da influência, onde Fernando Henrique podia obter parte
desse prestígio político para si e para seu programa, sua posição também era
muito favorável. Os órgãos de comunicação de massa e a maioria dos “forma-
dores de opinião” já aderira, há bastante tempo, à perspectiva mais liberal e
internacionalizante que orientava o novo bloco hegemônico. Em especial, o
próprio presidente da República era apresentado de forma extraordinariamente
favorável: intelectual brilhante, com prestígio internacional; político afeito ao
diálogo, reformista moderado, moralmente inatacável; e que, além de tudo
isso, mostrara a rara capacidade de administrar com muita habilidade, em
meio à turbulência econômica e política do governo Itamar Franco, um pro-
36
Argelina C. Figueiredo grama muito bem sucedido de estabilização. Contudo, a sintonia entre mídia e
e Fernando Limongi governo não é algo que se mantém “naturalmente”, por inércia; depende, em
têm acentuado em vá- parte, do grau em que a massa de consumidores das mídia mostra-se receptiva
rios artigos a força dos
controle político do às políticas governamentais.
Executivo e de seu É claro que o domínio governamental numa das arenas serviu como
“dispositivo partidá- reforço para controlar a outra. Contudo, o mais relevante é que tanto na arena
rio” sobre a base par-
lamentar no interior do institucional como na de influência a posição dominante do governo e do pre-
Congresso Nacional. sidente foi sempre alicerçada na simpatia da grande maioria da população,
Eles mostram força até
na aprovação de maté-
sentimento derivado da estabilidade dos preços obtida com o Plano Real e da
rias impopulares como subseqüente melhora temporária das suas condições de vida. Explica-se: ape-
a reforma da previdên- sar de difuso, o prestígio popular tinha possibilidades de se converter, eventu-
cia (cf. Figueiredo &
Limongi, 1998). almente, em formas específicas e variadas de apoio político ao governo – boa
37
A paralisação – que receptividade às suas mensagens ou impermeabilidade à opiniões contrárias a
entre outras deman- ele, disponibilidade para mobilizar-se em favor dele ou para votar em candi-
das exigia o cumpri-
mento de promessas datos a ele associados e assim por diante.
salariais feitas no pe- Mesmo na arena coercitiva, onde a oposição dispunha de mais re-
ríodo Itamar Franco –
durou cerca de dois
cursos, o referido sentimento difuso de simpatia popular teve relevância. Ele
meses. Ela tornou-se dificultou as mobilizações contrárias ao governo e facilitou o combate políti-
muito impopular por- co às organizações de oposição que conseguiam ultrapassar aquela barreira.
que, além da reivindi-
cação de aumento de Sublinhe-se, entretanto, que na arena coercitiva o efeito
salários ter sido estig- desmobilizador do prestígio popular difuso proveniente da estabilização teve
matizada pelo discur- apenas um papel suplementar. A própria estabilização quebrou o padrão cos-
so oficial como “exa-
gerada” e “perigosa tumeiro de luta distributiva, quer dizer, o estilo de mobilização e luta desen-
para o Plano Real”, volvido pelas organizações de assalariados para enfrentar o regime de infla-
ocasionou falta de gás
de cozinha e de com-
ção alta e indexada. Com isso, os resultados das mobilizações e paralisações
bustíveis. Essa impo- tornaram-se mais incertos e as reivindicações mais difíceis de obter.
pularidade abalou a Ademais, o governo tratou de reduzir ao mínimo as possibilidades
unidade do movimen-
to e facilitou sua der- da oposição operar na arena coercitiva, tentando derrotar politicamente a Cen-
rota para o governo, tral Única dos Trabalhadores. Para isso adotou, já no primeiro semestre de
cuja posição teve o 1995, uma posição não-negociadora e legalista para vencer a greve dos sindi-
suporte do Judiciário,
que caracterizou a catos de petroleiros37. Esperava quebrar, assim, a espinha dorsal do sindicalismo
greve como ilegal. de oposição e debilitar um dos principais ícones do estatismo e do nacionalis-
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mo. É provável que tenha tido sucesso e que se possa atribuir à derrota dos
petroleiros algo da debilidade apresentada pelo movimento sindical ao longo
do governo Fernando Henrique.
A propósito da arena coercitiva, cabem duas pequenas mas impor-
tantes digressões. Em primeiro lugar, o governo Fernando Henrique não fez
esforço para obter a contribuição positiva de organizações societárias para a
execução de seu programa. Quer dizer, não apenas procurou desmobilizar a
oposição mas desprezou a mobilização social em seu favor. Quase sempre
procurou aprisionar a política nas arenas institucional e de influência38, iso-
lando a política da sociedade organizada (cf. Oliveira, 1996, p. 59-60; p. 69).
Apesar disso – e este é outro ponto a sublinhar a propósito da arena
coercitiva – o Movimento dos Sem-Terra (MST) manteve-se na ofensiva duran-
te todo o governo Cardoso e com alto grau de apoio popular urbano. Fustigando
o governo com invasões de terra e manifestações em todo o país, o MST obri-
gou a Presidência da República a transformar os órgãos dedicados ao tratamen-
to da questão fundiária e a adotar medidas inovadoras para melhorar o seu pro-
grama de reforma agrária. O inegável sucesso desse movimento em prol de mais
igualdade – mesmo sob as condições adversas que afetavam principalmente os
atores coletivos enraizados nas classes populares – indica que o movimento de
democratização da sociedade ainda continuará, por muito tempo, a ser uma das
molas básicas da transformação da sociedade brasileira.
Este balanço esquemático da situação nas três arenas consideradas
indica a enorme importância que tinha para o governo, e para a realização de
seu programa, a manutenção do prestígio popular difuso produzido pela pre-
servação da estabilidade de preços. Essa “simpatia” difundida no plano
psicossocial dava ao governo bases sólidas para produzir resultados favorá-
veis nos vários campos de luta política.
Cabe tornar mais precisa esta proposição em dois sentidos. O pri-
meiro deles é apenas uma reiteração. A ação política bem sucedida do gover-
no nas várias arenas políticas teve no apoio difuso recebido da população
apenas um dos seus componentes causais. Mesmo na arena político-
38
institucional, onde o governo Cardoso estava melhor posicionado, seu suces- Foram exceções a mo-
bilização e organiza-
so dependeu de outras condições tais como, do funcionamento dos sistemas ção do empresariado
de controle do “dispositivo governista” sobre sua base parlamentar, do con- agrícola junto ao Mi-
teúdo específico das medidas que pretendeu aprovar, etc. nistério da Agricultu-
ra no começo do go-
O segundo é quase óbvio mas muito importante: a valorização da verno e a tentativa de
estabilidade monetária foi socialmente produzida. Ela não teria ocorrido caso negociação com a CUT
de um aspecto da re-
a maior parte da população não tivesse sofrido a experiência traumática de forma da previdência
alta inflação no período anterior ao Plano Real. Conseqüentemente, caso o social. Sublinhe-se
status quo ante tivesse sido de estagnação econômica, baixa inflação e de- que, em ambos os ca-
sos, o rompimento do
semprego elevado, é provável que políticas orientadas para o crescimento rá- isolamento deu-se para
pido e o emprego teriam sido as de maior impacto popular. melhorar uma posição
A argumentação desenvolvida até aqui pretendeu sublinhar a lógi- governamental tem-
porariamente desvan-
ca política que explica, em parte, a preferência pelo fundamentalismo neoliberal tajosa na arena ins-
ao longo do primeiro governo Fernando Henrique. Essa escolha pode ter sido titucional.
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percebida pela Presidência da República como a forma mais segura de preser-


var a estabilidade dos preços, produzir prestígio político difuso para o gover-
no e, conseqüentemente, maior controle sobre a atuação dos agentes e sobre
os resultados obtidos nas várias arenas de disputa política.
Todavia, desvendar a determinação política da opção por uma al-
ternativa de gestão econômica não significa transformá-la em algo inevitável.
Ainda mais porque em cada momento em que a escolha foi reiterada não se
decidiu entre políticas de objetivos antagônicos, como entre inflação versus
estabilidade, ajuste ou desequilíbrio fiscal, etc. As alternativas que se ofereci-
am situavam-se no mesmo espectro político-ideológico, embora aí se locali-
zassem em pólos opostos e cada uma delas produzisse, como já se enfatizou
anteriormente, implicações socioeconômicas muito diferentes.
Para que se entenda melhor a lógica das escolhas feitas, vale mon-
tar uma pequena equação das implicações em custos/benefícios prováveis da
escolha entre fundamentalismo neoliberal e liberal-desenvolvimentismo. O
primeiro oferecia mais garantias imediatas de “segurar o Real” – preservando
o prestígio político difuso que ajudava o governo a manter suas posições nas
várias arenas políticas – e mais riscos de médio e longo prazo, por conta do
eventual crescimento da taxa de desemprego e de perturbações provenientes
do sistema financeiro internacional. O segundo prometia mais garantias de
médio e longo prazo – maior impulso ao crescimento e ao equilíbrio das rela-
ções econômicas com o exterior e menor fragilidade em relação a oscilações
bruscas do sistema financeiro internacional – porém menos segurança políti-
ca de curto prazo, em função da eventual perturbação monetária derivada, por
exemplo, de uma mudança na política cambial ou de juros.
É claro que, na avaliação de riscos, a seqüência temporal dos even-
tos altera o peso dos fatores a considerar. Ao longo do transcurso do primeiro
governo Cardoso tornaram-se mais óbvios os ônus implícitos na gestão
macroeconômica dominada pelo fundamentalismo neoliberal. Em compensa-
ção, a dinâmica dos eventos políticos que podiam colocar em xeque o domí-
nio da coalizão governante e a liderança da Presidência da República sobre
ela – eleições municipais, aprovação do direito de reeleição, nova eleição para
cargos estaduais e federais, etc. – tendeu a acentuar os eventuais prejuízos
políticos de uma mudança de política macroeconômica.
A perspectiva política de curto prazo, que parece ter dominado as
opções do governo Fernando Henrique em política macroeconômica, não pode,
entretanto, ser atribuída apenas ao resultado de cálculos políticos ad hoc, fei-
tos a partir de uma equação mais ou menos complexa de custos e benefícios.
Diversamente, ela tem afinidade com uma certa concepção de exer-
cício de democracia que marcou a estratégia política governamental ao longo
do primeiro mandato presidencial de Fernando Henrique Cardoso. Trata-se de
concepção de democracia representativa que não se abre – exceto excepcio-
nalmente – à incorporação no espaço público de organizações sociais porta-
dores de interesses coletivos. Com efeito, na elaboração de políticas públicas,
o governo Fernando Henrique, ancorado no apoio difuso da população, res-
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tringiu a um mínimo sua articulação direta com grupos de interesse ou agru-


pamentos não-partidários de opinião. No exercício do poder, sua estratégia
foi insular-se sistematicamente dos movimentos da sociedade organizada, con-
centrando seus esforços nas arenas institucional e de influência.
Desta forma, embora não haja como negar ao governo Fernando
Henrique a qualificação de democrático e representativo, ele afastou-se de qual-
quer veleidade social-democrata. Pelo contrário, sua prática democrática foi de
estilo delegativo. Não há que confundi-la, porém, com a concepção de democra-
cia inerente ao programa de Collor, à medida que a delegação suposta no exercí-
cio de governo de Fernando Henrique não tem a marca personalista daquele.

Considerações Finais

Os acontecimentos de janeiro de 1999 quebraram, a despeito da von-


tade do governo Cardoso, as bases macroeconômicas que delimitaram o seu
primeiro mandato presidencial. Em lugar do câmbio semi-fixo e sobrevalorizado,
instituiu-se o câmbio flutuante e provavelmente subvalorizado, pelas circuns-
tâncias desfavoráveis da mudança. Ao invés de uma política de juros altos, o
Banco Central passou a orientar-se para a baixa dos juros até o patamar interna-
cional, à medida que o controle da inflação assim o permitir.
O que se inaugurou, porém, com a crise econômico-financeira de ja-
neiro não foi um processo de mudança para além dos limites do bloco hegemônico.
Lançou-se, sim, em janeiro, as bases econômicas para uma possível transforma-
ção política no seu interior, em direção ao pólo liberal-desenvolvimentista.
No entanto, uma reversão desse tipo é extremamente problemática.
E não me refiro aqui apenas às circunstâncias econômicas desfavoráveis em
que se encontra o país, tanto no plano interno como no externo. O empobreci-
mento da população, a crise de janeiro e a elevação da inflação liquidaram o
prestígio político difuso que sustentava boa parte do controle do governo so-
bre as várias arenas políticas. Apenas isso já tornaria a operação política mui-
to mais difícil. Ademais, a insistência da Presidência na preservação do
fundamentalismo liberal no primeiro mandato devorou parte dos quadros téc-
nicos e dos apoios político-sociais que lhe permitiriam agora “virar o jogo”.
Por fim, ainda não está claro se o próprio presidente da República está con-
vencido de que pode e deve transitar para a alternativa liberal-desen-
volvimentista e para formas mais ativas de articulação do Estado com a socie-
dade organizada. Ainda mais porque estas alternativas, embora sintonizadas
com o processo de democratização da sociedade que o país continua atraves-
sando, envolvem grandes dificuldades políticas para sua implantação.

Recebido para publicação em agosto/1999

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11(2): 23-47, out. 1999 (editado em fev. 2000).

SALLUM JR., Brasilio. Brazil under Cardoso: neoliberalism and developmentism. Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 23-47, Oct. 1999 (edited Feb. 2000).

UNITERMS: ABSTRACT: This article has got three parts. The first makes an exam of the
State, processes of conquest of the power of the State, which culminated in the
government,
reelection of FHC, using the concept of hegemony and the idea of Machiavellian
political crises,
political transition, moment derived from Pocock. The second part shows that the new political
hegemony, block in charge, besides its liberal and internationalizating orientation, polari-
economical policy, zes itself between two opposed versions of liberalism, the neoliberal
development,
fundamentalism and the liberal-developmentism. It also discusses the social
neoliberalism,
FHC. economical effects of the adoption of the neoliberalism by the government as
an axe of its macroeconomic policy. The third part analyses the political reasons,
which guided the presidency reiteratedly to this choice. The suggested
hypothesis are that the Presidency of the Republic interpreted the maintenance
of the neoliberal fundamentalism as a decisive way of assuring the necessary
control over the political system. At the end it is suggested that the
macroeconomical changes that started in January 1999 are the basis for a
liberal-developmentist reorientation of the government.

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FIGUEIREDO,
TempoArgelina Cheibub,
Social; Rev.LIMONGI, Fernando
Sociol. USP, & VALENTE,
S. Paulo, Ana49-62,
11(2): Luzia. Governabilidade
out. 1999 DOSSIÊ
e concentração de poder FHC
institucional: o Governo FHC. Tempo Social; Rev.
(editado Sociol.
em fev. USP, S. Paulo, 11(2): 49-62, out. 1999 (editado emo fev. 2000).
2000). 1 GOVERNO

Governabilidade e
concentração de poder
institucional - o Governo FHC
ARGELINA CHEIBUB FIGUEIREDO - FERNANDO LIMONGI

ANA LUZIA VALENTE

RESUMO: O artigo analisa o governo Fernando Henrique Cardoso como parte UNITERMOS:
de um padrão mais geral de relações Executivo-Legislativo que se caracteriza governabilidade,
relações Executivo-
por forte concentração de poder nas mãos do Presidente da República e dos Legislativo,
líderes partidários. A centralização decisória que se observa nesse governo produção legal,
tem bases institucionais, distinguindo-se do chamado “presidencialismo impe- apoio partidário,
rial”, de base personalista. Os poderes institucionais de agenda e o controle agenda legislativa,
governo FHC.
sobre o processo legislativo têm forte impacto na produção legal e na capaci-
dade do governo em obter apoio para a sua agenda legislativa.

Introdução

N
o governo Fernando Henrique Cardoso testemunhamos o pleno
funcionamento de um sistema decisório que se caracteriza por forte
concentração de poder nas mãos do Presidente da República e dos
líderes partidários no Congresso. A centralização decisória obser-
vada nesse governo é parte de um padrão mais geral de interação Executivo- Professora do Departa-
Legislativo que resulta da escolha institucional de constituintes e parlamenta- mento de Ciência Polí-
tica do IFCH - Unicamp
res1. Os extensos poderes legislativos do Executivo, constitucionalmente con- Professor do Departa-
feridos, e a alocação de direitos e recursos parlamentares em favor dos líderes mento de Ciência Polí-
tica da FFLCH - USP
partidários, garantida regimentalmente, criaram um modelo institucional que
favorece a governabilidade, entendida, em sentido restrito, como a capacidade Bolsista de Iniciação
Científica da Fapesp e
de fazer valer a agenda legislativa do Executivo. Estagiária do Cebrap

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FIGUEIREDO, Argelina Cheibub, LIMONGI, Fernando & VALENTE, Ana Luzia. Governabilidade e concentração de poder
institucional: o Governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 49-62, out. 1999 (editado em fev. 2000).

A assimetria de poderes entre Executivo e Legislativo, em favor do


primeiro, se apóia, portanto, em uma construção institucional. Dessa forma, se
distingue marcadamente do chamado “presidencialismo imperial”, de base
personalista, visto como peculiaridade dos sistemas políticos latino americanos.
Desenhos institucionais similares, de fato, se difundiram nas novas democracias
contemporâneas da América Latina, do Leste e do Sul da Europa (cf. Carey &
Shugart, 1998). Historicamente, porém, o fenômeno é mais geral, e pode ser
observado também nas democracias européias do pós-guerra, especialmente, na
França, cujo arcabouço institucional se mantém intacto desde 19582.
Como parte desse padrão mais geral, o governo Fernando Henrique
Cardoso foi dotado de alta capacidade decisória. O sistema institucional em
que se apoiava garantia a dominância do Executivo na produção legal e um
alto grau de sucesso na aprovação de sua agenda legislativa.
A agenda legislativa desse governo foi extensa e complexa. Certa-
mente não contemplava o amplo leque de questões que compunham a agenda
pública. A questão da desigualdade social, por exemplo, não fazia parte dessa
agenda. A estabilidade monetária obteve prioridade máxima, assim como as
reformas tidas como necessárias para garantir o controle inflacionário e per-
mitir a inserção do país na economia internacional. A agenda reformista, já
esboçada no governo Sarney e reforçada no governo Collor, só então se con-
cretiza em um conjunto abrangente de propostas legislativas. A implementação
das reformas, porém, requeria a aprovação de mudanças constitucionais. Para
a aprovação de mudanças no texto constitucional, o governo não tinha à sua
disposição o aparato institucional que garantia o seu sucesso na implementação
da agenda legislativa ordinária. Pelo contrário, por sua natureza constitucio-
nal, essas propostas deviam ser submetidas a um processo decisório, cujas
regras impunham maiores exigências à base parlamentar do governo, ao mes-
* Agradecemos o apoio
da Fapesp para o Pro- mo tempo que abriam espaço para a atuação mais ativa da oposição. Ainda
jeto Temático “Insti- assim, não se pode dizer que os resultados alcançados foram modestos.
tuições Políticas, Pa-
drões de Interação
Para a implementação desse programa, a estratégia de formação do
Executivo-Legislativo governo foi ampliar as bases de apoio parlamentar, reforçando a participação
e Capacidade Gover- dos partidos da aliança eleitoral e incorporando novos partidos dentro do espec-
nativa” e do CNPq
para as bolsas de pes- tro ideológico de centro direita. Da mesma forma, os partidos assumiram for-
quisa. malmente sua participação no governo. Essa participação aumentou o acesso a
1
Para uma análise deta- recursos, influência e, portanto, o interesse dos partidos no sucesso do governo;
lhada, cf. Figueiredo e
Limongi (1999). garantindo, por outro lado, o seu apoio às suas propostas legislativas. Este apoio,
2
Análise recente desse como veremos, foi forte e estável, mas proporcional à participação de cada par-
sistema encontra-se tido no governo. Constituiu-se, portanto, um governo de coalizão majoritário de
em Huber (1996). Na
Itália, a medida provi- centro direita que fez amplo uso do aparato institucional de que dispunha e
sória, instituída em colocou em funcionamento um “rolo compressor”, como a crônica jornalística e
1948, não fez parte de
um conjunto mais am-
a oposição parlamentar passaram a chamar a atuação do governo e de seus
plo de prerrogativas líderes na arena parlamentar. Nesse governo, portanto, verificou-se um
de controle do proces- majoritarismo exacerbado na definição das políticas públicas nacionais.
so legislativo, que
funcionava de forma A existência da estrutura consociativa de organização política, a frag-
descentralizada. mentação partidária, a ausência de controle partidário na arena eleitoral, em
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FIGUEIREDO, Argelina Cheibub, LIMONGI, Fernando & VALENTE, Ana Luzia. Governabilidade e concentração de poder
institucional: o Governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 49-62, out. 1999 (editado em fev. 2000).

suma, toda a base institucional do sistema de representação política, mantida


intacta pela Constituição de 1988 que, além disso, reforçou o federalismo, não
impediram a aprovação de emendas constitucionais que compreendiam medi-
das altamente impopulares e impunham perdas a camadas consideráveis da po-
pulação, assim como a grupos sociais altamente organizados. Da mesma forma,
a despeito do alegado peso dos estados e municípios no Congresso, o governo
conseguiu também a recomposição das receitas da União. Por fim, o controle
inflacionário foi implementado por meio de uma política de ajuste que logrou
efetuar cortes significativos de despesas, ainda que com resultados aquém do
que o governo almejava ou via como necessário; e de medidas recessivas com
perversos efeitos sociais, que passaram pela aprovação legislativa.
O que se pretende ressaltar aqui, é que tudo isto foi obtido sem que
se recorresse a medidas de natureza extra ou para constitucional e legal, a
despeito de controvérsias sobre o uso abusivo desses poderes. O modelo
institucional que concentra poderes nas mãos do presidente e das lideranças
partidárias, e a conseqüente centralização do processo decisório, restringe os
direitos dos parlamentares, funcionando como um freio ao processamento de
demandas que, por meio do sistema de representação vigente, são de fato ca-
nalizadas para o interior do Congresso Nacional.
Isto não significa dizer que os parlamentares são inteiramente alijados
das decisões, nem que o Executivo possa impor sua vontade contra a da maioria
do Congresso. Os poderes de agenda do Executivo podem funcionar também como
instrumentos para a resolução da “barganha horizontal” entre o governo e sua
maioria de apoio, especialmente em governos de coalizão, e não apenas para a
resolução do “conflito vertical” entre o governo e o Congresso. Sendo assim, a
medida provisória, por exemplo, mais do que uma arma de governos minoritários
contra o Congresso, pode ser um poderoso instrumento nas mãos de um governo
majoritário: protege a sua maioria contra incentivos para perseguir ganhos
particularistas e de curto prazo e facilita a preservação de acordos sobre políticas
públicas. O governo FHC é um caso exemplar do uso desse instrumento para a
manutenção de um grau razoável de coesão de sua base parlamentar para apoiar
medidas que são de difícil aprovação em qualquer sistema democrático.
No governo FHC consolidou-se, portanto, um padrão decisório, em
que instrumentos institucionais de controle de agenda facilitaram a atuação con-
centrada do Executivo e dos líderes dos partidos que faziam parte da coalizão de
governo, ampliando enormemente a área de atuação autônoma do Estado e de
sua burocracia. Este padrão teve efeitos negativos para o papel do Congresso.
A sua influência direta e autônoma na formulação de políticas pú-
blicas diminuiu, especialmente na área econômica. O Congresso deixou de ser
o locus decisório e de debates, dando lugar a negociações entre líderes gover-
nistas e ministros e técnicos da alta burocracia governamental. Com isto, per-
deu capacidade deliberativa, estreitando o espaço de debate público, reduzin-
do a visibilidade das decisões políticas e o acesso dos cidadãos a informações
sobre políticas públicas. Em conseqüência, verifica-se uma diminuição na
capacidade do Congresso, enquanto contrapeso institucional e mecanismo de
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FIGUEIREDO, Argelina Cheibub, LIMONGI, Fernando & VALENTE, Ana Luzia. Governabilidade e concentração de poder
institucional: o Governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 49-62, out. 1999 (editado em fev. 2000).

controle das ações do Estado, com efeitos sobre a própria possibilidade de


controle vertical por parte dos cidadãos.
No entanto, o Congresso desempenhou um importante papel na formu-
lação de políticas sociais. A sua atuação nessa área pautou-se pela preocupação
em garantir e ampliar direitos universais de cidadania, dando origem a uma exten-
sa legislação sobre meio ambiente, direitos do consumidor, acesso à justiça, garan-
tia de direitos civis e punição de práticas discriminatórias. Não exerceu de forma
sistemática e centralizada o seu papel de fiscalização das ações do executivo, mas
estabeleceu e aperfeiçoou um sistema de normas e procedimentos regulamentando
a ação civil pública e a defesa de direitos coletivos que possibilita o aumento do
controle descentralizado de grupos e movimentos sociais e dos cidadãos sobre as
ações do Estado. Nesse sentido, o Congresso contribuiu para diminuir a dissociação
entre a agenda pública e a agenda do governo.
As seções que se seguem têm por objetivo apresentar algumas evi-
dências e desenvolver um pouco mais cada um desses pontos.

Mecanismos institucionais e a implementação da agenda legislativa do


governo

O sistema decisório nacional caracteriza-se por um alto grau de dele-


gação de poderes: do Legislativo para o Executivo, de um lado, e no interior do
Congresso Nacional, dos parlamentares para as lideranças partidárias.
As regras constitucionais que regulam as relações Executivo-
Legislativo atribuem ao primeiro extensos poderes legislativos que lhe permi-
tem controlar a agenda do Legislativo. O executivo brasileiro tem o monopólio
de iniciativa legal em áreas fundamentais de regulação como as referentes a
matérias tributárias e orçamentárias, além da administração do aparato do Esta-
do; detém o poder de solicitar urgência para os seus projetos, determinando a
sua prioridade e prazo de apreciação; e dispõe ainda do mais poderoso de todos
os instrumentos legislativos: a prerrogativa de emitir atos com força imediata de
lei, através da edição de medidas provisórias. Através da edição de uma MP, o
Executivo altera unilateralmente o status quo, criando um fato consumado que,
em certas circunstâncias, torna praticamente impossível a sua rejeição. Modifi-
ca a estrutura da escolha parlamentar, pois esta não é feita entre o status quo
anterior à sua edição e a MP, mas entre esta última e os efeitos que decorreriam
de sua rejeição. Sendo assim, mesmo que o Congresso preferisse o status quo à
medida provisória, poderia ser levado a aprová-la. Isto significa que se a mesma
proposta tivesse sido apresentada como um projeto de lei ordinária poderia ter
sido rejeitada. Dessa forma, por meio da medida provisória, o executivo não só
determina a pauta dos trabalhos legislativos, como influi nos seus resultados.
As regras regimentais que distribuem poder no interior do Congres-
so, por sua vez, favorecem os líderes partidários. O presidente da Mesa e os
líderes dos partidos estabelecem a pauta dos trabalhos e detém direitos
procedimentais que lhes permitem representar a sua bancada. Por meio dessa
prerrogativa, controlam os pedidos de solicitação de votações nominais, de des-
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institucional: o Governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 49-62, out. 1999 (editado em fev. 2000).

taques para votação em separado e os pedidos de urgência. Estes últimos são


especialmente importantes pois a tramitação em regime de urgência permite que
os projetos sejam retirados do âmbito de influência das comissões e restringe a
apresentação de emendas no plenário. Os líderes têm ainda a prerrogativa de
indicar os membros das comissões e substituí-los a qualquer momento. Por meio
desses instrumentos os líderes podem exercer, e de fato têm exercido, controle
sobre o processo legislativo e sobre o comportamento do plenário.
Esse conjunto de regras de distribuição de poderes institucionais entre
Executivo e Legislativo e no interior do Congresso Nacional deu origem a um
sistema decisório altamente centralizado. Seu impacto sobre a capacidade decisória
dos governos recentes fica óbvio pela análise da tabela abaixo. O executivo domi-
na a produção legislativa em um patamar alto e obtém alto grau de sucesso para 1 . Produção Legal por
suas propostas legislativas em todos os governos do período recente. Governo: Iniciativa,
Dominância e Sucesso
Total do do Executivo 1989-1998
Governos Sarney Collor Franco Cardoso Fonte: PRODASEN;
período
Banco de Dados
Média mensal de leis sancionadas por tipo e origem Legislativos, Cebrap.
* Além das leis relativas
Executivo 15.3 12.5 14.5 13.5 13.7 ao orçamento anual,
Orçamentárias* 7.1 6.0 8.4 7.9 7.5 referem-se aos pedidos de
abertura de créditos
Medida Provisória 5.8 2.4 2.6 2.6 3.0
suplementares para
Outras Leis 2.4 4.0 3.4 2.8 3.2 alterar despesas
Legislativo 2.7 1.6 3.2 2.9 2.6 aprovadas na lei
orçamentária.
Total (Executivo **Proporção de leis do
18.1 14.1 17.7 16.4 16.3
e Legislativo) Executivo sobre o total de
leis sancionadas.
Dominância/Sucesso do Executivo *** Proporção de projetos
Dominância** 85% 88% 82% 82% 84% de lei do Executivo
apresentados e aprovados
Sucesso*** 72% 65% 72% 71% 71% no mesmo governo.

Como se vê, não há variações significativas entre os governos nas


taxas de dominância do Executivo: a média mensal de leis de sua iniciativa é
13,7 contra 2,6 do legislativo. Seus poderes constitucionais de agenda lhe
garantem essa dominância. O maior número de leis refere-se a matérias orça-
mentárias, área em que o Executivo tem monopólio de iniciativa. Além das
leis relativas ao orçamento anual, as leis orçamentárias incluem pedidos de
abertura de créditos suplementares para alterar a alocação de despesas apro-
vadas na lei orçamentária. Constituem importantes instrumentos de distribui-
ção de recursos e, portanto, de definição de prioridades de políticas públicas.
O monopólio de iniciativa que possibilita o uso estratégico do tempo para a
apresentação desses pedidos é um efetivo instrumento de pressão e diminui a
margem de atuação do legislativo. Em conseqüência, no período como um
todo, apenas quatro projetos de pedidos de crédito foram rejeitados. Esses
projetos de lei tiveram também as mais baixas médias de tempo de tramitação.
A tabela acima mostra ainda que o número de leis que se origina-
ram em medidas provisórias é equivalente ao número de leis que o executivo
enviou como projetos de lei ordinária: uma média de 3,0 e 3,2 respectivamen-
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FIGUEIREDO, Argelina Cheibub, LIMONGI, Fernando & VALENTE, Ana Luzia. Governabilidade e concentração de poder
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te por mês. Como a probabilidade de aprovação de medidas por meio de MPs


é muito superior à sua aprovação por meio de instrumentos legislativos ordi-
nários, não surpreende o seu uso extensivo pelo executivo.
Por essa razão, foram o instrumento por excelência da imple-
mentação de política econômica, especialmente de planos de estabilização
monetária: mais de 50% em todos os governos, e cerca de 60% das MPs do
governo FHC, referem-se a matérias econômicas. A análise do conteúdo das
MPs de natureza social e administrativa mostra ainda que muitas delas con-
sistiam em medidas complementares aos planos implementados. Foram então
um poderoso instrumento de aprovação da agenda desses governos, tendo em
vista a centralidade que a estabilidade econômica assumiu para todos eles.
Neste caso, quanto mais drástica a alteração promovida pela MP, menor a
capacidade de rejeição do Congresso. O plano Collor representa um caso exem-
plar: a MP 168 que tratava do chamado “confisco da poupança” foi aprovada
sem alterações pelo Congresso, apesar da enorme resistência gerada.
Porém, o governo FHC inaugurou um novo padrão de relações com
o legislativo. Esse novo padrão mostra que as MPs, mais do que um meio para
superar resistências do legislativo, podem ser instrumentos ainda mais pode-
rosos nas mãos de um governo majoritário. A tabela abaixo resume os princi-
pais indicadores quantitativos que nos permitem comparar os governos Collor
e FHC quanto ao uso das MPs e as respostas do Congresso.
2. Medidas provisórias
por governo Governos Collor Cardoso
1989-1998 MPs editadas (média mensal) 2,9 3,3
Fonte: PRODASEN;
Banco de Dados MPs reeditadas (média mensal) 2,3 51,2
Legislativos, Cebrap. Total (média mensal) 5,2 54,6
*A diferença se deve a MPs
% de projetos do Executivo enviados como MP 30,3 47,6
que perderam a eficácia e
não foram reeditadas e % MPs rejeitadas* 7,9 -
MPs em tramitação. % MPs modificadas pelo Congresso 59,6 23,0
** Inclui leis de origem
do legislativo. % MPs transformadas em lei** 74,2 50,3

Os dados reunidos nessa tabela mostram que os dois governos fizeram


extenso uso de medidas provisórias: médias mensais equivalentes de 2,9 e 3,3
respectivamente considerando-se apenas as primeiras edições. Diferem
marcadamente, porém, quanto à regularidade de seu uso e o volume de reedições e
sua relação com instrumentos legislativos ordinários. Enquanto no governo Collor
as MPs concentraram em torno da edição do Plano Collor, no governo FHC distri-
buíram-se igualmente por todo o período. A proporção de projetos enviados como
MP em relação aos projetos iniciados por meio do processo legislativo ordinário
aumentou consideravelmente. No governo FHC 47,6% dos projetos do executivo
(excluindo os orçamentários) foram enviados ao legislativo como medida provi-
sória, contra 30,3% no governo Collor. Consolidou-se também, nesse governo, a
prática já iniciada com a edição do Plano Real no governo anterior, de reedições de
MPs. No governo FHC estas subiram drasticamente: de uma média mensal de
duas reedições no governo Collor, para mais de cinqüenta. Ou seja, as MPs passa-
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ram a fazer parte da implementação rotineira de política pública.


Por outro lado, os indicadores acima mostram uma participação muito
menos ativa do Congresso na apreciação das MPs. Não houve medidas provisóri-
as rejeitadas e diminuiu consideravelmente a proporção de MPs modificadas pelo
Congresso por meio de Projetos de Lei de Conversão, que são alternativas propos-
tas pelo legislativo. No governo Collor 59,6% das MPs foram convertidas em
projetos do legislativo, proporção que caiu para apenas 16% no governo FHC.
A reedição de MPs merece uma análise mais detida. Concretamen-
te, significa que o legislativo deixou de apreciá-las no prazo constitucional-
mente previsto. O executivo pode evitar que uma MP seja votada, se tem
dúvidas sobre a sua aprovação, negando quorum para a sua votação, uma
estratégia utilizada com freqüência. Porém, se o Congresso reúne maioria con-
trária à MP, o executivo não tem meios de impedí-lo de votar e rejeitar uma
MP, como aconteceu nos governos Collor e Sarney. Se o Congresso tem essa
maioria por que haveria de preferir a reedição contínua de MPs?
Uma interpretação genérica e simplista da inação do Congresso é a de
“falta de vontade política”, como se não votar fosse determinado exclusivamente
pela inércia e, portanto, dispensasse ações concretas que exigissem explicações.
Uma explicação, sugerida por Carey e Shugart , atribui a delegação de poderes ao
Executivo aos interesses da maioria em perseguir políticas particularistas e de
curto prazo, deixando as políticas gerais e de longo prazo a cargo do primeiro. Isto
ocorre em sistemas políticos onde, como o brasileiro, funciona o “segredo da ine-
ficiência” que consiste na combinação de poderes legislativos fortes e um con-
gresso eleito em bases clientelistas. Esta interpretação estabelece premissas fortes
sobre as motivações dos parlamentares e seus interesses em políticas. Assume
também que esses necessariamente estão em conflito com os interesses do execu-
tivo. Por essa razão, prevê uma relação conflitiva entre os dois poderes, uma vez
que presidentes fortes são encorajados a governar unilateralmente e não têm in-
centivos para negociar (cf. Carey & Shugart, 1992, p. 37-38 e p. 165).
As evidências, no entanto, reforçam a interpretação que leva em conta
os interesses dos partidos da coalizão em cooperar com o governo. A reedição
reiterada contou com a colaboração desses líderes, que controlavam o processo de
apreciação de MPs, exercendo influência nas suas alterações. Estas, como mos-
tram os registros oficiais, foram freqüentes nas reedições. Essa participação se
fazia por meio da atuação das relatorias que, no período, foram controladas pelos
dois principais partidos da coalizão, cabendo ao PFL a maioria delas. As comis-
sões especiais formadas para a apreciação de MPs não chegavam a se reunir e
visavam fundamentalmente a indicação do relator. Não funcionaram, portanto,
como um órgão de deliberação e decisão. As negociações e os acordos com o
executivo eram conduzidos, com grande autonomia, pelo relator da MP. Esse pa-
drão decisório resulta da interação entre poderes decorrentes das prerrogativas
institucionais de controle de agenda e do processo legislativo, com poderes políti-
cos que resultam da distribuição de cadeiras no legislativo. O custo de reedição é
menor tanto para o governo, quanto para os partidos que o apóiam.
A aprovação de boa parte da agenda do governo funcionou, portan-
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FIGUEIREDO, Argelina Cheibub, LIMONGI, Fernando & VALENTE, Ana Luzia. Governabilidade e concentração de poder
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to, sob o manto protetor das medidas provisórias e do controle dos líderes
sobre o processo de apreciação e votação.
Os freqüentes pedidos de urgência para a tramitação de matérias, por
parte dos líderes de bancadas, permitiram que grande parte dos projetos de lei
fossem votados sem que as comissões tivesse apresentado um parecer sobre a
matéria e o processo de votação. Com isto foi possível neutralizar a influência
parlamentar nessa instância decisória, onde esta influência pode ser mais efeti-
va. Os líderes podem ainda influenciar no resultado dos trabalhos das comis-
sões por meio da prerrogativa de indicar e promover alterações na composição
das comissões e nas mudanças de seus membros. Usando dessa prerrogativa,
agiram muitas vezes no sentido de trocar um parlamentar, cujos vínculos eleito-
rais tornariam mais difícil seu voto favorável à matéria em questão. Com isto
influíam diretamente nos resultados das votações. Este tipo de prática, normal-
mente vista como manifestação de deformação ou fragilidade dos partidos bra-
sileiros, consistem, na realidade, em uma atuação que visa garantir os interesses
do partido como um todo, em detrimento de interesses de parlamentares a partir
de seus vínculos eleitorais. Conta, no entanto, com o acordo dos parlamentares
que são alvo deste tipo de ação, pois ela “protege” esses vínculos, impedindo
que sofram retaliações de suas bases.
A tramitação em urgência aumenta também o controle dos líderes
sobre o plenário. Por meio desse instrumento, são capazes de neutralizar tam-
bém a participação parlamentar em plenário, pois o regime de urgência res-
tringe a apresentação de emendas. A votação em urgência aumenta, também,
o controle das lideranças partidárias sobre as informações a respeito da maté-
ria em votação, tornando mais fácil a sua aprovação.
Todavia, tendo em vista a natureza da agenda do governo, a oposi-
ção adotou a estratégia de aumentar os custos de aprovação das medidas pro-
postas para a base do governo. Foi considerável o número de projetos levados
a votação nominal nesse governo. Como se sabe, a votação nominal de uma
matéria depende de solicitação das lideranças partidárias. Tendo em vista a
baixa capacidade de influir na pauta e no conteúdo dos projetos legislativos, a
oposição atuou no sentido de marcar sua posição política e aumentar a expo-
sição pública das decisões parlamentares, especialmente das medidas impo-
pulares. Para tanto recorreu freqüentemente a pedidos de votação nominal.
Cerca de dois terços foram solicitadas pelo PT e PDT. O embate entre líderes
oposicionistas e governistas girou muitas vezes em torno da atuação dos pri-
meiros para forçar votações nominais e a dos últimos para impedí-las.
O controle do processo de votação e do plenário pelos líderes governis-
tas adquiriu importância ainda maior na aprovação das reformas constitucionais.
Neste caso, o executivo não contava com os poderes legislativos de que dispunha
na implementação de suas propostas. Como se sabe, alterações constitucionais
requerem condições bastante exigentes para a os seus proponentes: votação nomi-
nal para cada alteração proposta e a sua aprovação em dois turnos por três quintos
de ambas as casas legislativas. Os seus opositores, por sua vez, contavam com um
recurso adicional para a exposição pública das decisões parlamentares: podiam
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solicitar que partes do texto em votação, geralmente as mais impopulares, fossem


submetidas a votação em separado. Por meio desse recurso, a mesma matéria era
submetida a várias votações. O resultado foi a ocorrência de um número conside-
rável de votações nominais durante esse governo. A tabela abaixo compara o nú- 3. Votações nominais na
mero de votações nominais ocorridas no governo FHC e nos governos anteriores. Câmara dos Deputados
1989-1999*
Governo Matéria Ordinária Matéria Constitucional Fonte: Diário do
Objeto Procedimento Substantiva Média Procedimento Substantiva Média Congresso Nacional;
N N Mensal* N Mensal* Banco de Dados
N Legislativos, Cebrap.
Outros 53 144 2,7 2 17 0,3 *Até fevereiro de 1999,
FHC 112 115 4,7 44 188 4,8 final da legislatura
correspondente ao
Total 165 259 3,5 46 205 2,1 primeiro governo FHC.

A base parlamentar do governo foi, portanto, freqüentemente posta


à prova. Ao todo foram quase 500 votações nominais que correspondem a
75% das votações do período pós-constituinte. Como se vê pela tabela acima,
em média, 3,5 votações de matérias ordinárias e 2,1 de matérias constitucio- 3
Para argumentos con-
nais foram votadas mensalmente na Câmara de Deputados. trários a essa visão cf.
Figueiredo e Limongi
Composição política do governo e apoio parlamentar (no prelo). Laver e
Schofield (1990) mos-
tram que governos
De uma maneira geral, supõe-se que a lógica de formação de gover- multiparidários no
parlamentarismo en-
nos nos sistemas parlamentaristas e presidencialistas são diametralmente diver- frentam problemas si-
sas3. A prerrogativa do presidente na escolha do ministério é geralmente levada milares aos normal-
às últimas conseqüências, como se esta escolha não sofresse nenhum constran- mente identificados
como peculiares ao
gimento. Assume-se que a independência do mandato popular do presidente o presidencialismo.
levaria a superestimar o seu poder e relutar em ceder poder a outros partidos que 4
Esses argumentos são
poderiam compor uma coalizão governamental. Estes, por sua vez, teriam como resumidos por Jones
(1995, p. 6).
estratégia dominante fazer oposição ao governo visando conquistar a presidên- 5
No caso do Brasil,
cia na eleição seguinte. Supõe-se, portanto, que a participação no governo não Octavio Amorim Neto
(1995) mostra que dois
gera retornos eleitorais4. Assume-se assim, ainda que contra as evidências terços dos governos nos
empíricas, que governos de coalizão são inviáveis no presidencialismo5. períodos 46-64 e 85-98
Contrariando essas premissas, a formação do ministério FHC obe- constituíram gabinetes
de coalizões partidárias;
deceu a estratégias opostas. Apesar da importância que o sucesso do plano Rachel Meneguello
real teve na vitória eleitoral, a formação do ministério visava reforçar a alian- (1998) analisa a parti-
ça eleitoral (PSDB, PFL e PTB) de apoio ao candidato à presidência e ampliar cipação dos partidos
nos governos pós 1985
a coalizão governamental com a incorporação de dois partidos do espectro e seus retornos político-
centro-direita: o PMDB, logo no início do governo, e o PPB, no ano seguinte. eleitorais.
6
O governo de ampla coalizão de centro direita constituiu assim uma Essa é uma das razões
arroladas por Laver e
supermaioria parlamentar que servisse de apoio às reformas constitucionais6. Schofield para a forma-
A análise da distribuição dos ministérios e do comportamento dos ção de governos super-
majoritários. Gabine-
partidos nas votações nominais ocorridas durante o governo FHC mostra que tes com supermaiorias
o apoio parlamentar obtido foi, em geral, alto e proporcional à participação são encontrados em 46
dos partidos no governo. dos 218 gabinetes por
eles analisados (cf.
A distribuição numérica de ministérios não foi estritamente pro- Laver e Schofield,
porcional à força parlamentar dos partidos da coalizão governamental, como 1990, p. 82, p. 71).
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FIGUEIREDO, Argelina Cheibub, LIMONGI, Fernando & VALENTE, Ana Luzia. Governabilidade e concentração de poder
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mostra a tabela abaixo. A vitória eleitoral em primeiro turno e a importância


do sucesso do Plano Real, implementado pelo candidato a presidente como
Ministro da Fazenda no governo anterior, garantiu ao PSDB o maior número
de postos ministeriais. O ministério, porém, teve uma considerável quota de
4. Distribuição de indicações não partidárias: 39% do total de postos; proporção próxima à do
ministérios, participação primeiro ministério do governo Collor (42%). A quota do presidente e do seu
nos gastos federais partido, além disso, compreendia os ministérios chave à implementação das
e distribuição de cadeiras
no Congresso – 1995 prioridades de governo, como os ministérios da Fazenda, Planejamento, Co-
Fontes: Meneguello 1998, municações e Indústria e Comércio, garantindo a ele o controle sobre a condu-
p. 197-198; SIAF/
Consultoria de Orçamen-
ção da política econômica e a orientação geral da política de governo.
to e Fiscalização da
Câmara dos Deputados; Órgão Número de % % % %
Banco de Dados Ministérios Ministérios Orçamento Cadeiras Cadeiras
Legislativos, Cebrap. Realizado* Câmara Senado
* Dados referentes ao
orçamento de 1996, o
Titulares sem partido 7 39 30 - -
primeiro do Governo Titulares do PSDB 5 28 13 14 19
FHC. A distribuição dos Titulares do PFL 3 17 48 18 22
gastos dos ministérios é
praticamente constante Titulares do PMDB 2 11 5 20 23
no período 95-98. Titular do PTB 1 5 6 5
** Exclui os ministérios
4
militares Total geral** 18 100 100 58 69

O número de postos que os partidos detêm, porém, não diz tudo


sobre a sua importância e papel na coalizão governamental. Ao principal par-
ceiro da aliança eleitoral, o PFL, além de uma participação proporcional ao
seu peso parlamentar, foi garantido o controle da maior fatia dos gastos públi-
cos. Os três ministérios ocupados pelo PFL são responsáveis pela maior par-
ticipação no orçamento federal. Na realidade, apenas o Ministério da Previ-
dência, por todo o período controlado pelo PFL, é responsável por quase 47%
do total de gastos dos ministérios (excluídos os militares). Os dois outros
ministérios ocupados pelo PFL – Minas e Energia e Meio Ambiente – respon-
dem, portanto, por parcela pequena dos gastos governamentais.
A indicação do PTB para o ministério da Agricultura pode ser atri-
buída ao interesse dos parlamentares desse partido na política para o setor.
Levando em conta ainda interesses dos partidos em áreas específicas
de políticas públicas, cabe ressaltar que para um partido como o PFL, depen-
dente de recursos de patronagem, é sem dúvida importante o controle do minis-
tério da Previdência. Porém, o comprometimento de parte desses recursos com
despesas legalmente previstas com os benefícios providos diminui considera-
velmente o montante de recursos passíveis de uso político. Além disso, há que
se levar em conta que o comando do ministério implica, também, compromisso
com a implementação da política do governo e que a natureza das mudanças
propostas impõe ao seu titular custos na interação com as bases do partido.
O PMDB, partido com maior representação no Congresso, ficou sub-
representado: obteve o menor número de pastas e a menor parcela no orçamen-
to. Além disso, os ministros indicados – Nelson Jobim para a Justiça e Odacir
Klein para os Transportes – representavam apenas uma ala do partido.
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institucional: o Governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 49-62, out. 1999 (editado em fev. 2000).

De uma maneira geral, o apoio ao governo foi a tônica. A coalizão


governamental apoiou unida as propostas legislativas que compunham a agenda
do governo. A análise das votações nominais do governo FHC mostra que os
líderes dos partidos que faziam parte da coalizão governamental encaminha-
ram votos de acordo com o líder do governo em 91% das votações que faziam
parte da agenda do governo7. Em menos de 10% dos casos, ela se dividiu, seja
por discordância ou por liberação da bancada. As bancadas desses partidos
acompanharam as indicações de seus líderes, apresentando índices de disci-
plina médios de 90%. Estas proporções se mantêm constantes para todos os
tipos e natureza de votações, inclusive matérias constitucionais.
No entanto, o grau de apoio dos líderes e a disciplina dos partidos-
membros da coalizão variaram de acordo com a sua participação no governo.
O PMDB e o PPB foram os partidos com mais baixas taxas de disciplina
(82% e 84% respectivamente), enquanto os principais parceiros na coalizão
governamental foram responsáveis pelos mais altos índices de apoio: 95% o
PFL e 93% o PSDB.
Este aspecto nos leva a um último ponto que não pode ser
desconsiderado: a proximidade entre a agenda legislativa do governo e as pre-
ferências dos parlamentares. Pesquisas de opinião revelam que a distribuição
de preferências dos parlamentares os aproxima da agenda reformista, e essas
opiniões podem ser identificadas com os partidos de centro direita (cf. Almeida
& Moya, 1997; Kinzo, 1993; Rodrigues, 1995).
A análise do comportamento dos partidos nas votações nominais
mostra que o conflito no Congresso se estrutura em bases partidárias e que os
partidos podem ser dispostos em um contínuo ideológico no eixo esquerda-
direita, contínuo este que coincide com a posição a eles normalmente atribuídas.
Ou seja, da esquerda para a direita os sete maiores partidos ocupam as seguintes
posições no espaço ideológico: PT, PDT, PSDB, PMDB, PTB, PFL E PPB.
Os encaminhamentos de voto dos líderes partidários revelam o
ordenamento da posição ideológica dos partidos: a probabilidade de indica-
ções semelhantes cai monotonicamente à medida que a distância ideológica
entre os partidos aumenta. As coalizões de centro direita foram a tônica do
período. A comparação entre os diferentes governos, no entanto, mostra que
as alianças se alteraram. Cabe mencionar especialmente a aproximação entre
PFL e PSDB: enquanto no governo Collor as indicações semelhantes entre
esses dois partidos era de 42%, no governo FHC os líderes dos dois partidos
indicaram votos semelhantes em 92% das votações nominais. A distância en-
tre partidos que compõem a coalizão é um fator chave no funcionamento do
governo (cf. Laver & Schofield, 1990; Tsebelis, 1997).

O Congresso e o governo 7
As votações definidas
como parte da agenda
Poderes institucionais de agenda e controle sobre o processo do governo são aque-
las sobre as quais o lí-
legislativo têm forte impacto na produção legal e na capacidade dos governos der do governo na Câ-
em obter apoio para a sua agenda legislativa. Esses poderes afetam a estrutura mara se manifestou.
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FIGUEIREDO, Argelina Cheibub, LIMONGI, Fernando & VALENTE, Ana Luzia. Governabilidade e concentração de poder
institucional: o Governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 49-62, out. 1999 (editado em fev. 2000).

de incentivos dos políticos levando-os a cooperarem entre si e com o governo


na elaboração de políticas públicas8. Em governos de coalizão poderes
institucionais podem ser usados para facilitar e preservar acordos entre o go-
verno e sua maioria e, assim, aumentar a coesão da coalizão de apoio ao go-
verno. Essas prerrogativas, normalmente vistas como traços distintivos do
parlamentarismo (cf. Tsebelis, 1997), podem produzir os mesmos efeitos no
presidencialismo, como mostra a análise aqui feita do governo FHC.
A centralização do processo decisório reduz a influência dos parlamen-
tares, limitando o acesso a recursos que lhes permitam garantir benefícios para
suas clientelas. Dessa forma, elimina a possibilidade de que o Congresso se cons-
titua em veto institucional à agenda governamental em decorrência de divergênci-
as de interesses entre os dois poderes. Ou seja, afeta diretamente a fonte onde tem
origem o que é normalmente identificado como “crise de governabilidade”. Con-
tribui para impedir que o conflito institucional latente, contido no princípio de
separação de poderes, se concretize. Em suma, aumenta a governabilidade, enten-
dida como a capacidade do governo em fazer valer a sua agenda.
Pode-se observar, no entanto, como de fato ocorreu ao longo do gover-
no FHC, uma dissociação entre as prioridades da agenda legislativa do governo e
questões fundamentais da agenda pública, como o problema das desigualdades
sociais. O Congresso é mais sensível a pressões eleitorais, seja de interesses locais
ou corporativos, seja de grupos e camadas mais amplas. Por isto, observa-se tam-
bém uma dissociação entre a agenda legislativa do Executivo e do Legislativo.
A agenda legislativa do Congresso é social, em contraposição à agenda
econômica do governo. Apenas nessa área de política pública a participação do
Congresso se iguala à do Executivo. A análise do conteúdo das leis de iniciativa
do legislativo revela que a grande maioria delas se refere a questões de natureza
geral. Portanto, ao contrário do que normalmente se propala, a ação do Con-
gresso não se volta para o atendimento de clientelas específicas: 86% das leis
sociais do legislativo são de natureza geral; criam e ampliam direitos universais
ou se aplicam a amplas categorias sociais. As políticas sociais do executivo,
como complementares à política econômica, são de natureza restritiva.
O problema da desigualdade e da participação social dominou a agen-
da pública da redemocratização e a constituinte deu estatuto constitucional a parte
significativa das demandas que se fizeram sentir pela pressão social, tanto de gru-
pos corporativos como de amplas camadas da sociedade. Com o aprofundamento
da crise fiscal e as mudanças na economia mundial, o ajuste das contas públicas e
as reformas econômicas passaram a dominar a agenda dos diferentes governos,
mas só se transformaram em propostas legislativas no governo FHC. Políticas
redistributivas não estavam contempladas. A diminuição das desigualdades so-
ciais, na visão do governo, dependia diretamente da resolução dos problemas eco-
nômicos e da manutenção da estabilidade. O sucesso eleitoral do Plano Real e seus
efeitos imediatos sobre o poder de compra das camadas mais baixas da população
8
garantiram a autonomia do governo na implementação de sua agenda legislativa.
Para o argumento com-
pleto cf. Figueiredo e O aprofundamento dos efeitos da crise, no entanto, teve reflexos imediatos no
Limongi (no prelo). Congresso, aumentando as divergências na base do governo.
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FIGUEIREDO, Argelina Cheibub, LIMONGI, Fernando & VALENTE, Ana Luzia. Governabilidade e concentração de poder
institucional: o Governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 49-62, out. 1999 (editado em fev. 2000).

No entanto, ainda que essas pressões tenham repercutido no Con-


gresso, os incentivos do sistema, tendo em vista os interesses dos partidos,
vão no sentido da rearticulação da base de apoio ao governo. Dessa forma, o
Congresso, ainda que servindo de porta de entrada para essas demandas, têm
baixa autonomia na definição da pauta de prioridades de políticas públicas.
O problema da governabilidade tem sido tratado, na literatura na-
cional, como na internacional, como dependente diretamente da forma de go-
verno e do sistema eleitoral. Por esta razão, as propostas de reformas
institucionais enfatizam a importância de instituições restritivas à entrada de
demandas no sistema político, tais como, a adoção do parlamentarismo para
promover a fusão de poderes e mudanças na legislação partidária visando
limitar o número de partidos e o acesso ao legislativo.
Procuramos mostrar que a concentração de poder decisório produz
muitos dos efeitos buscados pelos proponentes dessas reformas. O governo bra-
sileiro não se encontra paralisado por falta de apoio partidário e parlamentar.
Sendo assim, não há razões para diminuir o número de partidos e, muito menos,
conferir maiores vantagens aos líderes partidários. Da mesma forma, está longe
de ser verdade que o governo brasileiro se encontra imobilizado porque soterra-
do por excessivas demandas da sociedade, que se expressam sem filtros no sis-
tema político, em razão da fragilidade institucional dos partidos políticos. Intro-
duzir barreiras de entrada no sistema político poderia restringir ainda mais o
papel que o Congresso Nacional exerce sobre a definição da agenda do governo.

Recebido para publicação em setembro/1999

FIGUEIREDO, Argelina C.; LIMONGI, Fernando & VALENTE, Ana Luiza. Governability and
institutional power concentration: the government of FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 49-62, Oct. 1999 (edited Feb. 2000).

ABSTRACT: This article tries to analyses the government of FHC as part of a more UNITERMS:
general pattern of Executive-Legislative relationship which are featured by a strong governability,
Executive-Legislative
concentration of power in the hands of the President and the Party leaders as well.
relationship,
The centralization of the decisions that is noticed in this government has institutional legal production,
basis, distinguishing itself from the called “imperial presidencialism”, with party support,
personalistic basis. The institutional power and the control over the legislative legislative agenda,
FHC government.
process have a strong impact in the legal production and in the capacity of the
government in obtaining the support for his legislative agenda.

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FIGUEIREDO, Argelina Cheibub, LIMONGI, Fernando & VALENTE, Ana Luzia. Governabilidade e concentração de poder
institucional: o Governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 49-62, out. 1999 (editado em fev. 2000).

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KUGELMAS,
Tempo Eduardo & SOLA,
Social; Rev.Lourdes.
Sociol.Recentralização/Descentralização:
USP, S. Paulo, 11(2): 63-81, dinâmica DOSSIÊ
do regime federativo
out. 1999 FHC
no Brasil dos anos
90. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,em
(editado 11(2):
fev.63-81, out. 1999 (editado em fev. 2000).
2000). o
1 GOVERNO

Recentralização/Descentralização
dinâmica do regime federativo
no Brasil dos anos 90
EDUARDO KUGELMAS

LOURDES SOLA

RESUMO: Este artigo discute a evolução das práticas e instituições federati- UNITERMOS:
vas no Brasil dos anos recentes, enfatizando a simultaneidade de processos federalismo,
políticas públicas.
de recentralização e descentralização. A trajetória descentralizadora que cul-
mina com a Constituição de 1988, a crise fiscal do estado brasileiro e os efei-
tos do Plano Real são discutidos a partir de um quadro de referências de tipo
comparativo, que busca incorporar escritos muito recentes de Alfred Stepan.

T
omemos como ponto de partida uma metáfora amplamente utilizada
nas análises em torno do regime federativo no caso brasileiro, a da
sístole/diástole, ou seja, a da alternância de períodos de centralização
e de descentralização na história do país, identificando-se habitual-
mente a centralização com o autoritarismo e a descentralização com avanços demo-
cráticos. Assim, à monarquia de formato unitário seguiu-se a “Primeira Repúbli-
ca” (1889-1930), quando se institucionalizou o regime federativo no país, sendo a
Constituição de 1891 seu primeiro marco institucional. A Revolução de 1930 e a
ascensão de Vargas abrem um período centralizador que culmina com o Estado
Novo (1937-1945). O período democrático da Constituição de 1946 é interrompi-
do pelo regime militar de 1964 que se estende até 1985. Neste momento, a centra-
lização autoritária atinge seu ponto máximo, na década de 70, com os governos Professor do Departa-
Medici e Geisel. A transição democrática tem como momento emblemático a Cons- mento de Ciência Po-
lítica da FFLCH - USP
tituição de 1988, considerada um marco de descentralização federativa.
Este relato tantas vezes repetido é, porém, problemático. A tão se- Professora do Departa-
mento de Ciência Polí-
dutora metáfora, atribuída ao general Golbery do Couto e Silva e que tem sua tica da FFLCH - USP
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KUGELMAS, Eduardo & SOLA, Lourdes. Recentralização/Descentralização: dinâmica do regime federativo no Brasil dos anos
90. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 63-81, out. 1999 (editado em fev. 2000).

origem no pensamento de Vilfredo Pareto é excessivamente simplista e pode


conduzir a equívocos.
Ficam na sombra alguns aspectos de continuidade nestes processos
que são essenciais para a melhor compreensão da evolução do regime federativo
e da oscilação entre centralização e descentralização. Se há um movimento
pendular, não há simetria neste movimento. Nem o Estado Novo chega a des-
truir a estrutura federativa, nem a Constituição de 1946 abala o reforço do go-
verno central e sua ampliação de atribuições (cf. Campello de Souza, 1976).
Mais perto do momento atual, o regime autoritário controlou ferreamente os
níveis subnacionais de poder, principalmente através das eleições indiretas para
os governos estaduais e da centralização fiscal. Por outro lado não excluiu as
elites políticas regionais do pacto de dominação e manteve em boa medida as
atribuições administrativas das esferas subnacionais (cf. Souza, 1997). A céle-
bre metáfora pode induzir a crença de uma anulação completa dos mecanismos
institucionais anteriores a cada movimento pendular, quando o que de fato ocor-
re é uma modificação do padrão de relacionamento entre as esferas, através de
uma dinâmica de aperto/afrouxamento de controles políticos e fiscais1.
Ressaltar estes aspectos é de peculiar relevância para uma análise da
rica e complexa conjuntura recente, onde convergem aspectos recentralizadores e
descentralizadores. Vem daí a importância de buscarmos superar a útil mas insufi-
ciente idéia da alternância de momentos de centralização e de descentralização,
buscando os contextos políticos e institucionais da atuação dos principais atores
envolvidos e permanecendo atentos as manifestações de path dependence.
Para a análise da evolução recente do regime federativo no país
primeiramente discutiremos alguns aspectos conceituais e a seguir procedere-
mos a uma avaliação das transformações ocorridas no padrão de relaciona-
mento entre os componentes da federação a partir da Constituição de 1988,
com ênfase na questão fiscal.

Conceitos, comparações, contextos

As definições de federalismo giram, reiteradamente, em torno de


um problema nada trivial da teoria política, a questão da soberania. Nas polities
de tipo federativo, por mais distintas que sejam as fórmulas adotadas, sempre
se coloca a coexistência de duas instâncias governativas. Seja qual for a defi-
nição adotada, – e é difícil superar em concisão a clássica fórmula de Danniel
Elazar, um dos maiores estudiosos do tema, que resume a essência do federa-
lismo em self-rule plus shared rule – sempre se coloca a questão de uma
soberania dual ou de uma soberania compartilhada (cf. Elazar, 1987).
Por longo tempo preponderaram as abordagens de tipo jurídico-for-
1
Críticas ao uso abusivo
mal, quase exclusivamente circunscritas ao campo do direito constitucional. O
da metáfora, baseadas exemplo arquetípico desta abordagem é o livro de Kenneth Wheare, Federal
em outras linhas de ar- Government, de 1946, muitas vezes reeditado e atualizado (cf. Wheare, 1970).
gumentação podem ser
vistas em Fiori (1995) Na tentativa de superar este enfoque considerado demasiado estreito surgiu uma
e Sallum Jr. (1996). ampla literatura que examina o tema do ângulo da ciência política e também um
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90. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 63-81, out. 1999 (editado em fev. 2000).

extenso conjunto de estudos sobre a temática do federalismo fiscal, visto como


capítulo da área das finanças públicas2. Examinaremos a seguir algumas contri-
buições recentes ao debate do ângulo da ciência política que nos permitam colo-
car melhor a discussão dos processos ora em curso no Brasil.
Stepan (1997) busca estabelecer alguns pontos de partida para uma
análise comparativa dos sistemas federais existentes. Nesta tarefa, seu procedi-
mento é o de realizar uma avaliação crítica dos trabalhos de William Riker, talvez
o mais influente dos autores que estudaram o federalismo do ângulo da ciência
política (cf. Riker, 1964). Para Stepan, a abordagem de Riker privilegia demasi-
adamente as federações constituídas através do arquétipo americano, o da con-
venção constitucional de Filadélfia, em 1787. Deste ângulo seriam federações
apenas os resultados de pactos entre entidades previamente soberanas. O ponto
central dos estudos sobre o federalismo seria, desta forma, a negociação inicial, o
bargaining entre as partes para dar origem e posteriormente manter e viabilizar o
estado federado. A distinta trajetória histórica dos estados unitários que se trans-
formaram em federações não é, pois, levada devidamente em conta. Como lembra
Stepan, além das coming together federations, do modelo americano, um quadro
de referência analítico deve, necessariamente, incluir as holding together
federations, sendo exemplos recentes as constituições da Espanha, de 1976 e da
Bélgica, de 1993. Para nosso país, isto traz ecos de discussões antigas, que remon-
tam à própria fundação da Republica Federativa3. Outro ponto levantado é o do
caráter paradoxal de uma afirmação de Riker, para quem a existência ou não de
instituições federativas seria de pouca importância na definição e adoção de polí-
ticas, ou seja, teriam escassa relevância na definição de outcomes, o que é
vigorosamente contestado por Stepan.
O esforço maior deste é o de trazer elementos que permitam com-
parar os sistemas federativos existentes, avaliando o grau e a intensidade das
conexões entre seus traços definidores e a consolidação e/ou aperfeiçoamento
das instituições democráticas. Criticando não somente a Riker mas o conjunto
da literatura por darem insuficiente atenção às relações entre federalismo e
democracia, Stepan vai chegar à seguinte definição:
É provável que os sistemas democráticos não pos-
sam ser chamados de sistemas federais, a não ser
que preencham dois critérios. Primeiramente, no in-
2
terior do Estado nacional devem existir subunidades Para uma excelente
avaliação das limita-
políticas territoriais cujo eleitorado seja exclusiva- ções de uma aborda-
mente composto por cidadãos da subunidade e que gem ao tema apoiada
exclusivamente no
possuam áreas de autonomia e soberania jurídicas e enfoque de finanças
de elaboração de políticas constitucionalmente ga- públicas, cf. Aguirre
rantidas. Em segundo lugar, deve existir uma unida- & Moraes (1997).
3
Entre outros, Ruy
de política nacional que contenha um Legislativo Barbosa enfatizou esta
eleito pelo conjunto da população e que tenha algu- característica do sur-
mas áreas jurídicas e políticas de competência ga- gimento do federalis-
mo entre nós. Torres
rantidas constitucionalmente com pertencentes à (1961) discute ampla-
soberania da entidade nacional (Stepan, 1997, p. 15). mente o tema.
65
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90. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 63-81, out. 1999 (editado em fev. 2000).

Em outras palavras, uma federação democrática é aquela em que os


cidadãos participam pelo voto em duas diferentes instâncias, com atribuições
diversas e com definições constitucionais nítidas sobre a natureza destas mes-
mas atribuições. Em termos ideais, estes cidadãos teriam identidades políti-
cas duplas porém complementares.
E exatamente a partir das enormes dificuldades em alcançar tal equilí-
brio que Stepan vai procurar avaliar a estrutura e o funcionamento das federações
existentes. Primeiramente, ressalta a importância substantiva do tema, ao lembrar
que embora as federações sejam poucas (aproximadamente dez por cento do total
de países membros das Nações Unidas) incluem alguns dos maiores países do
mundo tanto em extensão territorial como em população – os Estados Unidos, a
Rússia, a Índia e o Brasil, também um dos maiores em área, o Canadá, e a princi-
pal potência econômica do continente europeu, a Alemanha. A seguir, Stepan dis-
cute o caráter necessariamente consociativo das organizações federativas, no sen-
tido da existência inevitável de mecanismos que limitam as maiorias. Todas as
federações têm dispositivos que protegem minorias e/ou fazem distinções de tipo
territorial no estabelecimento das regras de representação, o que as aproxima do
modelo consociativo no sentido atribuído ao termo por Lipjhart (1984).
Em conseqüência, há uma maior complexidade no próprio funciona-
mento do sistema e faz parte das regras do jogo constitucional uma limitação
aos critérios mais simples de acatamento às maiorias. A existência de uma Câ-
mara no Congresso que represente as entidades subnacionais – estados, provín-
cias, regiões, cantões, Lander – é uma das principais destas regras; outra é a
dificuldade maior nos processos de modificação constitucional e na exclusão
formalizada de determinados temas das agendas político-institucional, sendo a
própria organização federativa um destes temas. Stepan sugere, como recurso
analítico, a comparação entre as federações em termos da maior ou menor inci-
dência de mecanismos do tipo majority-constraining e chega à conclusão de
que o Brasil é um dos casos onde tais mecanismos são mais fortes.
Outra análise importante é a de Gagnon (1997), que enfatiza no fede-
ralismo seu caráter instrumental na solução de conflitos. Em suas palavras:
O sucesso dos sistemas federais não deve ser medido
em termos da eliminação de conflitos sociais, mas sim
pela capacidade de regular e gerenciar tais conflitos. É
completamente equivocado esperar que o federalismo
resolva os conflitos sociais. Na realidade, pode apenas
amenizar tensões e ser sensível à diversidade. Os con-
flitos devem ser vistos com componentes inerentes à to-
das as sociedades federais (Gagnon 1997, p. 18).
Em seu balanço dos estudos sobre o tema, Gagnon também acentua
um aspecto metodológico, defendendo a perspectiva de uma difícil mas ne-
cessária combinação da análise institucional e da perspectiva estrutural, que
procura apreender as raízes (socioeconômicas, culturais, lingüísticas
territoriais) da tensão entre homogeneidade e heterogeneidade, entre unidade
e diversidade, tensão esta que caracteriza todos os arranjos federativos.
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Desta discussão sobre enfoques analíticos podem ser retiradas algu-


mas conclusões especialmente relevantes para o caso brasileiro. Como pano de
fundo, podem ser ressaltadas a importância de uma visão comparativa e a necessi-
dade de cautela frente a um normativismo ingênuo, que valorize de forma invaria-
velmente positiva as experiências federativas. Outro ponto fundamental é a com-
preensão da natureza essencialmente política dos processos federativos como
mecanismos e arranjos de solução de conflitos, o que é muito distinto de um enfoque
formalizante em que se aprova (ou desaprova) uma organização federativa con-
creta de acordo com a maior ou menor distância a um modelo idealizado.
Em outras palavras, a perspectiva analítica mais promissora é a de exa-
minar o tipo de heterogeneidade existente e as possibilidades dos distintos arran-
jos federativos em processar as diversidades de forma a manter (ou não) a unidade
do Estado nacional. Chamam especialmente a atenção, pela sua dramaticidade, os
conflitos que por vezes eclodem nos países que adotaram o regime federativo para
acomodar diversidades étnicas, lingüísticas e religiosas. A tragédia iugoslava pode
ser vista como um caso em que os mecanismos federativos foram manifestadamente
insuficientes para conter a extensão e profundidade das clivagens. No caso da
Índia, é freqüente que se ponha em dúvida a estabilidade das instituições demo-
cráticas. Continua presente no cenário canadense a incerteza sobre a situação futu-
ra do Quebec. Mesmo na federação arquetípica, os Estados Unidos, o arranjo
inicial foi posto duramente à prova na Guerra da Secessão.
Em países como o Brasil, os conflitos a serem processados são de outra
natureza. O que está aqui em causa é o quadro de clivagens regionais notoriamente
marcado por notáveis desigualdades, a fragmentação do sistema político, as difi-
culdades da representação e a questão da indefinição – não apenas institucional ou
administrativa – do escopo e alcance da atividade estatal e da divisão de compe-
tências entre os três níveis de poder. Mais do que um tema específico, a questão da
federação no Brasil confunde-se com a própria formação histórica do Estado na-
cional4 e permeia o conjunto de questões da agenda do país.

União e Estados – desequilíbrios e reequilíbrios

No momento da promulgação da Constituição de 1988 a reação à


centralização fiscal do regime autoritário atingiu seu ponto culminante; o pa-
drão de organização federativa que então emerge é tido como um dos mais des-
centralizados entre os países em desenvolvimento. São conhecidas as caracte-
rísticas da centralização anterior, estabelecida pela reforma tributária de 1966 e
pela Constituição de 1967. Neste período, ampliou-se a capacidade extrativa da
União, reforçou-se a dependência dos Estados menos desenvolvidos, receptores
da maior parcela das transferências do Fundo de Participação dos Estados e 4
As contribuições de
limitou-se a autonomia administrativa dos governos estaduais, ao atribuir ao Aspasia Camargo e
Senado a fixação das alíquotas do ICM, sua grande fonte de receita própria. José Murilo Carvalho
Tais medidas eram perfeitamente congruentes com outras medidas concentradoras ao volume organizado
por Marcello Carma-
de poder, como o estabelecimento de controles sobre o aparato policial dos Es- gnani (1993) aprofun-
tados. Do lado político, o mecanismo de eleições indiretas pelas obedientes As- dam esta discussão.
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90. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 63-81, out. 1999 (editado em fev. 2000).

sembléias Legislativas estaduais equivalia a uma indicação do poder central.


Com o desencadeamento do processo de abertura no governo Geisel
(1974-1979) surgem algumas modificações no quadro. Torna-se mais impor-
tante para o regime a participação das elites regionais agrupadas no partido
oficialista, a ARENA e uma emenda constitucional vai elevar os percentuais
destinados aos Fundos de Participação. Por outro lado, são tomadas medidas
destinadas a aumentar ainda mais a sobre-representação parlamentar dos Es-
tados menores e menos desenvolvidos, com o objetivo expresso de contraba-
lançar o crescimento político e eleitoral do MDB (então único partido de opo-
sição) nas regiões Sul e Sudeste.
Como tem sido apontado nos estudos sobre a transição política, a
realização das eleições diretas para os governos estaduais em 1982 foi o pon-
to de inflexão decisivo. Vitoriosos nos três principais Estados do país, São
Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, os governadores então eleitos vão im-
pulsionar a campanha pelas eleições diretas para a Presidência, que, embora
frustrada abre o caminho para a eleição indireta da chapa Tancredo Neves –
José Sarney, assinalando o fim do período autoritário5.
Do ponto de vista deste trabalho é fundamental enfatizar a seqüên-
cia dos eventos. É excepcional, talvez único nas transições democráticas a
realização de eleições de nível subnacional antes de um pacto nacional ou de
eleições gerais. O contraste entre a situação brasileira e o caso da Espanha,
onde foi trilhado o caminho inverso foi apontado em estudos comparativos,
como o de Stepan & Linz (1996).
Com a eleição de 1982, criou-se no país uma situação já por vezes
descrita como de diarquia6, a de coexistência de duas fontes de legitimação; o
conjunto de governadores e não apenas os eleitos pela oposição passa a atuar com
desenvoltura, demonstrando que a capacidade política e administrativa dos gover-
nos estaduais tinha sobrevivido, em estado latente, durante a etapa anterior. Do
lado fiscal, a nova constelação de forças logo se refletiu no início de um processo
de desconcentração de recursos. Graças à aprovação da emenda Passos Porto em
1983, foram elevados os percentuais dos Fundos de Participação, e também modi-
ficados os critérios de cálculo de forma favorável aos entes subnacionais. Entre
1983 e 1988, inverte-se a tendência das duas décadas anteriores e a participação
da União no total da receita disponível decresce, passando de 69,8 % a 60,1 %.
Durante o período da “Nova República”, cresce a margem de mano-
bra e o poder de influência dos governadores. Vai-se constituindo o que Abrucio
(1998) denominou “federalismo estadualista”, caracterizado pelo amplo raio de
manobra dos governadores no quadro de seus estados e pela forte influência que
exercem sobre as respectivas bancadas no Congresso nacional. Dada a notória
5
debilidade do sistema partidário e o relativo enfraquecimento da Presidência no
Para uma revisão da
década de 80, cf. período Sarney, os governadores tornam-se atores políticos de especial relevân-
Sallum Jr. (1996). cia, o que terá imediatas conseqüências fiscais. Conseguem a federalização da
6
Para uma discussão a dívida externa, o que significa a transformação desta em dívida de longo prazo
respeito desta dupla
legitimidade, cf. La- para com o Tesouro Nacional e resistem as várias tentativas de repactuação de
mounier (1985). seu estoque de dívidas feitas pelo governo federal, que busca, sem sucesso, divi-
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90. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 63-81, out. 1999 (editado em fev. 2000).

dir com os estados os ônus do ajuste externo.


A Constituição de 1988, votada pelo Congresso eleito em 1986 e
portanto numa eleição “casada”, simultânea à eleição dos governadores, re-
fletirá com nitidez esta correlação de forças. Ao longo de todo o período de
abertura, fortalecera-se no país a noção de associação ou até simbiose entre
descentralização e democratização.
Foi neste ambiente que se deu início, no primeiro tri-
mestre de 1987, ao processo de elaboração da nova
Constituição. A reação natural a 20 anos de concen-
tração do poder político alçou o fortalecimento da
Federação à condição de seu principal objetivo no
que toca ao Estado brasileiro. Tal objetivo exigia,
no que diz respeito às finanças públicas, o aumento
do grau de autonomia fiscal dos estados e municípi-
os, a desconcentração dos recursos tributários dis-
poníveis e a transferência de encargos da União para
aquelas unidades (Versano et alii, 1998, p. 12).
Durante os debates da Assembléia, foi-se gerando uma coalizão (explí-
cita ou implícita) entre os Estados mais desenvolvidos do Sudeste e do Sul, inte-
ressados em aumentar sua capacidade em gerar receitas próprias e os menos de-
senvolvidos, desejosos em fazer crescer sua parcela de participação nas receitas
transferidas. Embora conflitassem em torno a outros temas, como o da política de
desconcentração industrial, todos coincidiam na busca de mais recursos fiscais.
Como seria de se esperar, emergiu um modelo de Federação notavel-
mente descentralizado, com uma peculiaridade que o singulariza de forma marcante
no contexto internacional, que é a menção explícita do município como ente federado
no próprio texto constitucional (Art. 18). Estabeleceu-se uma progressiva amplia-
ção dos percentuais da arrecadação do imposto de renda e do IPI destinados aos
fundos de participação, atingindo em 1993 a 21,5 % e 22,5 %, respectivamente.
Outras formas de repartição dos recursos arrecadados a nível federal foram tam-
bém especificadas no Art. 159. O principal recurso estadual, o ICM teve suas
bases ampliadas e transformou-se no atual ICMS. Também os municípios foram
beneficiados pelo aumento do percentual a eles destinado deste último imposto.
Em conseqüência, a participação federal na receita disponível pas-
sa de 61,1% em 1989 para 56,4 % em 1996. A dos estados cresce de 25% a
27% enquanto a parcela dos municípios sobe de 13,9 % a 16,7 % no mesmo
período (Versano et alii, 1998). Segundo estimativas do Banco Mundial, a
despesa estadual cresceu 33% entre 1986 e 1995, em termos reais, enquanto o
crescimento do PIB foi de apenas 14% (cf. Dillinger & Webb, 1999, p. 23).
Uma das respostas do governo federal foi o aumento das contribui-
ções sociais -COFINS, PIS-PASEP e outras, fontes de receita que não preci-
sam ser partilhadas com as instâncias subnacionais. Segundo a opinião unâni-
me dos peritos em questões tributárias, isto significou um aumento da
irracionalidade do sistema fiscal. (cf. Versano et alii, 1998).
Descrevendo o processo brasileiro, dois conhecidos especialistas
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KUGELMAS, Eduardo & SOLA, Lourdes. Recentralização/Descentralização: dinâmica do regime federativo no Brasil dos anos
90. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 63-81, out. 1999 (editado em fev. 2000).

assim resumem o modelo que emerge:


“A lógica para aumentar recursos e poderes nas mãos dos governos
intermediários e/ou locais é, antes de tudo, enfraquecer o governo central... A
descentralização não nasce de uma ação da política fiscal ou econômica, mas
sim de uma reação dos governos subnacionais, ou em favor destes, contra os
poderes ditos excessivos do centro” (Afonso & Lobo, 1996, p. 10)
O que seria o reverso da moeda, ou seja, a transferência de encargos
não ocorre de forma sistemática, permanecendo até hoje um objetivo a atingir.
Uma das características do modelo federativo brasileiro é o grande número de
competências conjuntas dos três níveis, sem uma definição clara das respecti-
vas esferas. Como será visto mais adiante, este é um dos problemas mais
ponderáveis no equacionamento da descentralização das políticas sociais.
Este processo de redução da capacidade extrativa da União só teve
oposição mais marcante na esfera do Executivo federal, cujos técnicos apon-
taram a gravidade das conseqüências destas perdas em um momento em que o
país enfrentava o ponto mais agudo da crise da dívida externa e estava amea-
çado pela hiperinflação.
Será sob o signo dos impasses macroeconômicos que se daria a rodada
seguinte deste complexo emaranhado de relações intergovernamentais. . Como a
absorção de parcelas crescentes das dívidas dos Estados vai aumentando progres-
sivamente o peso da dívida (interna e externa) nas contas fiscais da União, bus-
cou-se de todas as formas uma renegociação que forçasse os Estados a destinar
uma parcela significativa de suas receitas ao pagamento de juros e amortizações.
Embora as sucessivas negociações e renegociações tivessem poucos resultados
imediatos, foi aumentando a consciência da gravidade do problema e dos perigos
das soluções paliativas, que simplesmente adiassem o problema para um futuro
indefinido. Em 1990, o Banco do Brasil deixou de financiar a rolagem automática
dos títulos da dívida estadual, comprometendo ainda mais a situação.
A prolongada crise política que culminou com o afastamento do pre-
sidente Collor de Mello em fins de 1992, acompanhada do recrudescimento da
ameaça de hiperinflação teve implicações de distinta natureza para as relações
intergovernamentais. Por um lado multiplicam-se as tentativas da tecnoburocracia
federal em enquadrar as finanças estaduais, mas por outro a importância dos
governadores como atores políticos lhes dá condições de resistência. Através
das intervenções do Senado Federal, que tem entre suas competências privati-
vas a de dispor sobre os limites e condições do endividamento dos entes
subnacionais, facilitava-se a rolagem das dívidas assumidas com a União.
Em meados de 1993, como parte dos preparativos para o lança-
mento do Plano Real, o então ministro da Fazenda do governo Itamar, Fernando
Henrique Cardoso propõe a criação, dentro do processo em curso de revisão
constitucional, do FSE-Fundo Social de Emergência, que limita o volume das
transferências vinculadas a estados e municípios. A aprovação deste disposi-
tivo foi conseguida a duras penas e explica-se pelo temor da explosão inflaci-
onária e por seu caráter transitório (o texto referia-se apenas aos anos de 1994
e 1995). Considerada vital para dar credibilidade fiscal ao plano de estabiliza-
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KUGELMAS, Eduardo & SOLA, Lourdes. Recentralização/Descentralização: dinâmica do regime federativo no Brasil dos anos
90. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 63-81, out. 1999 (editado em fev. 2000).

ção, esta medida foi a primeira reversão na trajetória descentralizadora que se


iniciara nos últimos anos do regime militar.
Com o êxito do Plano Real e a dramática queda dos índices inflaci-
onários abre-se o caminho para a eleição de FHC e inicia-se uma nova etapa.
(cf. Sola & Kugelmas, 1995).

O novo enquadramento

Muda expressivamente a correlação de forças entre governo federal e


estados, graças a um conjunto de fatores. A vitória sobre a ameaça hiperinflacionária
e a eleição do novo presidente fez renascer com redobrada legitimidade a clássica
tradição brasileira de presidência forte, esmaecida durante a crise que derrubou o
presidente Collor. A linha mestra do novo governo era a de consolidar o processo
de estabilização, o que significava o combate aos desequilíbrios fiscais e, mais a
longo prazo, um ambicioso projeto de superação do velho modelo nacional-
desenvolvimentista, sintetizado na expressão “superação da era Vargas”. Assim,
reforma profunda do aparato estatal, e integração competitiva na ordem econômi-
ca internacional globalizada passam a ser as palavras de ordem.
Embora não houvesse um programa claramente explicitado de
reformulação do quadro de relações intergovernamentais, estas seriam forço-
samente afetadas. Na véspera da posse de FHC, ou seja, no último dia do ano
de 1994, o Banco Central intervém nos dois principais bancos estaduais do
país, o BANESPA e o BANERJ. O timing político desta medida tem implica-
ções óbvias: evitava-se tanto os possíveis protestos dos governadores em fi-
nal de mandato como uma possível reação negativa dos recém eleitos, embora
tanto o paulista, Mário Covas, como o fluminense, Marcelo Alencar fossem
companheiros de partido do presidente7.
Durante todo o período do primeiro mandato FHC a questão do
novo padrão a ser buscado nas relações entre União e estados foi marcada
pelas tentativas de reenquadramento destes pelo poder central, em nome da
busca de solução dos desequilíbrios fiscais. Se a partilha tributária se realiza-
ra em um momento de notável fraqueza do poder central, seria a capacidade
regulatória no campo macroeconômico do governo federal, reforçada pelo êxito
do Plano Real que daria os traços definidores da nova etapa. Nesta, as finan-
ças estaduais foram duramente afetadas de distintas maneiras.
A própria queda da inflação foi um golpe de importância conside-
rável, terminando com a corrosão das despesas, especialmente as de pessoal
enquanto as receitas não se ampliavam. O fim dos ganhos fáceis do floating, a
perda do valor real dos depósitos não-indexados, afetou todo o sistema finan-
ceiro abalando especialmente os já enredados bancos estaduais. Também os
“testamentos “dos governadores que se despediram em finais de 1994 com 7
Sobre a relação Ban-
generosos aumentos salariais para categorias específicas e outras medidas que co Central – bancos
limitavam a ação dos seus sucessores pesaram na balança. Para completar o estaduais e o caso
BANESPA, cf. Gar-
quadro, uma política monetária de juros elevados, como contrapartida da man, Leite e Marques
sobrevalorização cambial iria agravar o endividamento dos estados. (1998).
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90. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 63-81, out. 1999 (editado em fev. 2000).

Abre-se então um amplo e complexo processo de reestruturação da


dívida dos estados com a União, em busca de uma solução deste sempre poster-
gado saneamento, agora explicitamente combinado com a questão dos bancos
estaduais. O uso indiscriminado dos empréstimos destes para seus próprios
controladores foi uma das principais fontes de poder dos governadores e um
loophole, uma válvula de escape importante para os apertos orçamentários.
No caso brasileiro, as dificuldades políticas enfrentadas pelo Ban-
co Central ao buscar enquadrar estas instituições financeiras chegaram a tais
extremos que se dizia que eles teriam, na prática, o direito de emissão. A
situação de ameaça hiperinflacionária e o poder politico dos governadores
combinou-se para criar uma situação de erosão da autoridade do Banco Cen-
tral sobre a politica monetária, fazendo dos bancos estaduais pólos rivais de
poder com a capacidade de fato (obviamente não de direito) de emitir moeda.
(cf. Sola, Garman & Marques, 1998).
Graças ao êxito do Plano Real, e ao mesmo tempo para garanti-lo, o
governo federal buscou atingir, de forma conjunta, o reequilíbrio da pesada car-
ga da dívida dos Estados e o saneamento dos seus bancos. Embora a solução
preferida pelo Banco Central e pelo Ministério da Fazenda fosse a privatização
dos bancos estaduais, as dificuldades no encaminhamento desta proposta e es-
pecialmente a forte resistência do governo paulista quanto ao BANESPA impe-
diram um maior avanço nesta direção durante o primeiro ano de governo.
Em dezembro de 1995, é lançado pelo governo federal o programa
de apoio aos Estados, marco fundamental da reestruturação das dívidas esta-
duais. A partir deste momento a contrapartida dos estados que desejassem
assistência financeira seria um amplo programa de reformas: compromisso
com metas de ajuste fiscal, controle da folha salarial, inclusão das empresas
estaduais no programa nacional de privatização, em outras palavras, um ajus-
te patrimonial (cf. Lopreato, 1997, p. 101). Foi estabelecido um sistema de
monitoramento pela STN (Secretaria do Tesouro Nacional), semelhante ao
acompanhamento das agências internacionais e não faltaram as queixas quan-
to ao “FMI do Malan”. Este programa draconiano teve enormes dificuldades
de execução; embora a maior parte dos Estados tivesse assinado os acordos,
ocorreram sucessivos pedidos de adiamento e tentativas de moratória; tam-
bém a tendência do Senado a acolher propostas de rolamento colaborou para
retardar sua implementação. Porém, seus marcos de referência estabeleceram
o balizamento, o início de um novo padrão de relações intergovernamentais.
Em consonância com esta tendência ao enquadramento, a MP 1514
de Agosto de 1996 determinou um severo conjunto de condições para a ques-
tão dos bancos estaduais8. Mimetizando a solução encontrada para o caso
específico do BANESPA, são oferecidas aos governos estaduais duas opções:
a primeira destas seria o financiamento do total da dívida do banco estadual
em troca de sua privatização ou transformação em simples agência de fomen-
to; a alternativa seria a manutenção do banco caso o respectivo governo pa-
gasse imediatamente metade da dívida com recursos próprios.
No decorrer do tempo, a carga dos juros não pagos e acrescentados ao
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KUGELMAS, Eduardo & SOLA, Lourdes. Recentralização/Descentralização: dinâmica do regime federativo no Brasil dos anos
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estoque da dívida fora crescendo de tal maneira que começa a parecer aos estados
um second best aceitável o atendimento, com menos resistências, às condições
apresentadas pelo poder central. O próprio peso da dívida conjunta dos Estados,
calculado em torno de 100 bilhões de dólares, maior que a dívida externa de quase
todos os países emergentes, demonstrava a gravidade e extensão do problema. O
governo paulista desiste da hipótese de manutenção do BANESPA e concorda
com sua federalização como preparação de uma futura privatização.
Outras manifestações de força da União neste período foram a pror-
rogação do FSE, agora denominado Fundo de Estabilização Fiscal e a insti-
tuição da chamada Lei Kandir, que isenta as exportações do pagamento do
ICMS (Setembro de 1996). A partir do final de 1996 vai-se consolidando o
novo formato, caracterizado por acordos caso a caso prevendo a troca da dívi-
da mobiliária por uma dívida de longo prazo com a União a juros preferenci-
ais, de 6 a 7,5% ao ano, comprometendo-se os estados em contrapartida à
utilização de parcelas entre 11 a 13% de sua receita líquida com os pagamen-
tos referentes a esta dívida. Os acordos incluíam também compromissos com
a privatização de empresas estaduais, cortes de despesa, incluindo a promessa
de obediência à Lei Camata, que limita as despesas com pessoal a 60% da
receita líquida e restrições ao endividamento futuro.
A nova situação assim foi descrita por um especialista no tema:
Os governadores, até então, haviam usado o poder po-
lítico para obter favores financeiros e sustentar gas-
tos acima do que seria possível com base nos recursos
fiscais... O programa do governo, ao negar este quadro
e forçar o ajuste patrimonial dos estados, aliado ao
programa de privatizações de órgãos federais, abriu
uma fase de transição a um novo pacto federativo...
As mudanças no ordenamento institucional, ora em
gestação, interferem com as articulações financeiras
presentes nas relações governamentais e restringem
as possibilidades dos estados usarem a vinculação com
as suas empresas e bancos para fugirem aos limites
dados pela órbita fiscal (Lopreato, 1997, p. 102).
Ainda não se vislumbra, porém, qual possa ser o novo desenho
institucional de relações intergovernamentais. O que se observa com nitidez é
a ausência de mecanismos cooperativos mais eficazes, quer entre União e es-
tados, quer nas relações entre estes. Tem sido utilizada a expressão “federalis-
mo predatório “para caracterizar a situação reinante, marcada pelo perpétuo
conflito em torno dos recursos a serem atribuídos a cada esfera e também pela
guerra fiscal entre os estados, ansiosos por atrair novos investimentos através
de mecanismos de renúncia tributária, principalmente isenções da cobrança
do ICM. A ineficácia do CONFAZ-Conselho de Política Fazendária, que se-
8
ria, em tese, o órgão harmonizador dos estados entre si é notória. Este assunto é analisa-
do em Lopreato (1997)
Uma avaliação recente dos problemas do modelo federativo brasi- e Garman, Leite e
leiro acentua este caráter predatório e a notável dificuldade em criar instru- Marques (1998).

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mentos de ação que sejam eficazes na prevenção de conflitos e no estabeleci-


mento de incentivos para um jogo cooperativo quer no sentido horizontal,
entre os estados, quer no vertical, entre a União e as instâncias subnacionais.
Nas palavras de seus autores:
é possível dizer que se formaram dois tipos de jogos
na redemocratização. Na relação entre os estados e
a União, no que tange principalmente à questão fi-
nanceira, predomina um jogo predatório praticado
pelas unidades estaduais; na relação dos estados
entre si vigora uma competição não cooperativa
(Abrucio & Ferreira Costa, 1998, p. 39-40).
Outro dado fundamental no caso brasileiro, pela singularidade da ca-
racterização dos municípios como entes federados é o da facilidade de criação
destes. De 1988 a 1997 o número de municípios no país passou de 4189 a 5507,
através do desmembramento de distritos; ao serem criados, os novos municípi-
os têm direito automaticamente a uma parcela do FPM, com o efeito perverso de
pulverização da receita. Segundo uma estimativa, a quase totalidade dos meno-
res municípios, com população até dez mil habitantes dependem do FPM na
proporção de 59% de suas receitas. (cf. Mendes 1999, p. 30).
Esta situação demonstra com clareza até que ponto a questão de refor-
ma do Estado, objeto de tantas discussões e propostas e que foi até o campo de
atuação de um ministério específico, possui uma fortíssima dimensão federativa.
A absoluta prioridade dada pelo governo à busca de um alívio às
questões fiscais no trato deu o tom à busca, ainda em andamento, de um
redesenho das relações intergovernamentais. O empenho pela redefinição da
questão da dívida e pelo saneamento dos bancos estaduais foi acentuado no
final de 1998 pela formalização de um acordo com o FMI e com o compro-
misso com ambiciosas metas de obtenção de um superávit primário. A fluidez
da situação e a dificuldade em encontrar soluções definitivas tornou-se paten-
te com o pedido de moratória do governo de Minas Gerais em Janeiro de
1999. Se mesmo a presença de governadores aliados nos principais estados
não impedira situações conflitivas durante o primeiro mandato, como se viu
no caso do BANESPA, a eleição de governadores de oposição no pleito de
outubro de 1998 reforçaria os protestos contra o aperto fiscal.

Políticas sociais

Inverter a tendência centralizadora do período autoritário no que se


refere às políticas sociais seria, em tese, um objetivo comum a todos os atores
relevantes da cena brasileira. Quer por razões de eficácia técnica, quer por mo-
tivações ideológicas, como a identificação aliterativa entre democratização e
descentralização ou mesmo pela busca pragmática pelo governo federal de uma
redução de seus encargos, descentralizar é um verbo sempre conjugado nas de-
clarações de princípio. Mais recentemente, coloca-se em dúvida a automaticidade
dos benefícios da descentralização é; como descentralizar com êxito quando
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90. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 63-81, out. 1999 (editado em fev. 2000).

faltarem a estados ou a municípios as condições administrativas, financeira e


institucionais para implementar programas? A precariedade dos mecanismos de
accountability também conspira contra os entusiasmos mais ingênuos.
A avaliação desta temática requer algumas aclarações conceituais;
se toda organização federativa supõe alguma forma de descentralização, a
recíproca não é verdadeira, ou seja, regimes político-institucionais de tipo
unitário podem conviver com fortes doses de descentralização administrativa.
Além disto, é notável a variedade de situações nas federações e as impreci-
sões semânticas merecem atenção.
Na literatura especializada de relações intergo-
vernamentais, o termo ‘descentralização’ está longe
de ter um significado preciso. Ele tem sido utilizado
indistintamente para indicar graus e modalidades di-
versas de redução do escopo do governo federal em
decorrência: a) do deslocamento da capacidade de
decidir e implementa políticas para instâncias
subnacionais; b) da transferência para outras esfe-
ras de governo da implementação e administração
de políticas definidas no plano federal; ou c) da pas-
sagem de atribuições da área governamental para o
setor privado (Almeida, 1995, p. 90).
A experiência recente do país nos mostra um mosaico multifacetado,
onde convivem experiências bem sucedidas e tentativas frustradas, vitórias e
retrocessos. Como mostra um cuidadoso estudo recente, algumas tentativas
de descentralização foram levadas a cabo com grande sucesso enquanto ou-
tras permaneceram nas manifestações de intenção; as diferentes trajetórias de
cada política, a multiplicidade de casos e as distintas respostas dos estados
dificultam as generalizações.
Porém, é possível afirmar que, com exceção da esfera da previdên-
cia, marcada por uma complexidade específica, houve um significativo redesenho
do sistema anterior, fortemente marcado pela centralização autoritária. Ao fazer
o balanço da década, o mencionado estudo assim resume as mudanças:
Em 1997, instâncias colegiadas estaduais, com represen-
tação paritária de estados e municípios eram responsá-
veis pela alocação da totalidade dos recursos da princi-
pal fonte financeira da política federal de saneamento e
habitação popular -o FGTS; a oferta de merenda esco-
lar era inteiramente gerida por estados e municípios; pelo
menos 33% dos municípios brasileiros estavam habilita-
dos a gerir os recursos federais destinados à oferta de
serviços assistenciais; 58% dos municípios brasileiros
estavam enquadrados em alguma das condições de ges-
tão previstas pelo Sistema Único de Saúde -SUS, e 69%
das consultas médicas eram realizadas por prestadores
federais ou estaduais (Arretche 1999, p. 140).
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Ao examinarmos as condições em que se vai desenrolando o pro-


cesso de descentralização, os seguintes pontos merecem destaque e se consti-
tuem em variáveis analíticas relevantes:
• a linguagem genérica do texto constitucional, que refere-se em
vários incisos à descentralização político-administrativa como “diretriz”, caso
do art. 198, referente ao SUS e do art. 204, referente à assistência social. São
em torno de trinta os casos de competências concorrentes dos níveis de poder,
o que é sinal de uma forte margem de indefinição.
• a estrutura preexistente, que pode facilitar ou dificultar um pro-
grama eficaz de descentralização.
• a estrutura de incentivos financeiros e/ou institucionais para que
as instâncias subnacionais adotem uma postura ativa.
• a ênfase dada pelo governo federal à adoção efetiva de uma polí-
tica descentralizadora.
No campo da educação, uma inovação de grande alcance foi a cria-
ção, pela emenda constitucional 14 (Setembro de 1996) do FUNDEF, Fundo
destinado à melhoria do ensino fundamental e que prevê a transferência de
recursos federais a estados e municípios para o fim específico de melhora dos
salários dos professores.
Um caso interessante de êxito é o da municipalização do programa
da merenda escolar, onde os recursos são repassados pela esfera federal e as
vantagens para as prefeituras são grandes; em contrapartida, há desinteresse
do nível municipal no caso do saneamento básico, onde os custos são grandes
e não há uma política federal de incentivos.
Embora se trate de um processo em curso, algumas hipóteses podem
ser sugeridas; tudo indica que as correlações políticas específicas das instâncias
subnacionais são determinantes para a descentralização bem sucedida. Três ca-
sos receberam atenção internacional, os dos estados de Minas Gerais e do Ceará
e a prefeitura de Porto Alegre. O programa de municipalização e de melhoria do
ensino básico de Minas recebeu prêmios de organizações internacionais e o
mesmo ocorreu com os esforços de combate à mortalidade infantil no estado
nordestino. Também a experiência das últimas administrações da capital do Rio
Grande do Sul em criar mecanismos de participação popular na elaboração or-
çamentária está sendo acompanhada com interesse e atenção (cf. Montero, 1998).
O que parece certo é que o florescimento das esperadas vantagens da
descentralização, como maior eficiência, aumento de transparência e abertura para
maior participação da sociedade civil não dependem unicamente de um real ou
suposto figurino institucional mas de um contexto social e cultural mais amplo.

Interrogantes e aporias

Frente a um panorama in flux como o acima descrito, um conjunto de


questões pode ser colocado. Uma conclusão inescapável é a do caráter inconcluso
da institucionalização democrática no país, sendo a indefinição ainda presente
do padrão de relações intergovernamentais uma das facetas mais visíveis deste
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feitio inacabado. A imprecisão dos dispositivos sobre competências concorren-


tes, a longa espera pela votação do conjunto de leis complementares, o caráter
imediatista e ad hoc das soluções encontradas em momentos de crise, a perpé-
tua remissão às calendas gregas da inclusão de uma reforma política na agenda,
os obstáculos ao encaminhamento de uma ampla reforma tributária, tudo induz
ao ceticismo. A idéia muitas vezes levantada de uma acentuada e perigosa ten-
dência a uma paralisia decisória merece exame.
Qual o peso da dimensão federativa em uma avaliação do panora-
ma institucional? O caráter consociativo, ou assemelhado ao consociativismo
das federações é um dos componentes fundamentais do quadro brasileiro9.
Como já vimos, a descentralização de recursos fiscais é extensa; um minucio-
so estudo comparativo sobre alguns dos principais países latino-americanos,
incluindo, México, Argentina, Colômbia e Venezuela considera o Brasil como
mais descentralizado do conjunto, caracterizado por “an uncommon degree of
decentralization: substantial automatic transfers, weak conditionality over the
use of funds, increased subnational taxing powers, and a weak delineation of
responsibilities”(Willis, Garman & Haggard, 1999, p. 40).
Retomando o quadro analítico proposto por Stepan encontraremos
quatro variáveis associadas à classificação e comparação dos regimes federa-
tivos como mais ou menos majority -constraining. Estas seriam:
1- o grau de sobre-representação da câmara de representação
territorial, o Senado no caso brasileiro (como também nos Estados Unidos).
2- o escopo, o grau de amplitude das atribuições desta Câmara
territorial.
3- a extensão das competências constitucionalmente alocadas às
entidades subnacionais, associada ao grau de dificuldade em efetuar mudan-
ças no texto constitucional.
4- o grau de orientação nacional do sistema partidário.
Em comparação com outras federações, o Brasil surge sempre, como
veremos, como o mais marcado por características de tipo descentralizador e
de limitação potencial das maiorias.
No que se refere à primeira variável, a representação desigual (por
vezes, mas não sempre paritária), na Câmara que representa as unidades
territoriais e não o conjunto da população é característica geral dos regimes
federativos. O que se discute aqui é o grau desta desigualdade. No caso brasilei-
ro, a existência de estados esparsamente povoados como Roraima com seus 250
mil habitantes, em contraste marcante com os 31 milhões de habitantes de São
Paulo ou os 17 milhões de Minas Gerais cria um caso extremo, semelhante,
aliás aos EUA. No caso brasileiro ocorre outra desproporção, sem paralelo no
mundo, que é o forte grau de distorção na Câmara de Deputados, que, como em 9
As possibilidades e di-
outros regimes bicamerais deveria representar o conjunto da população do país. ficuldades do uso des-
te conceito são discu-
A existência de um limite inferior de oito deputados por estado e um limite tidas em Lamounier
superior de 70, dá origem a um quadro que já foi descrito como de “egregious (1995), Souza (1997),
malapportionment” (Mainwaring, 1999, p. 267). A criação em 1988 de quatro Couto (1997) e Aze-
vedo & Melo (1997).
novos estados (os antigos territórios federais do Acre, Roraima e Amapá e o
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estado de Tocantins, desmembrado de Goiás), além da atribuição de representa-


ção ao Distrito Federal significou, de uma só vez, a presença de mais quinze
senadores e quarenta deputados no Congresso Nacional aumentando a já
fortíssima sobre-representação das regiões menos desenvolvidas. Assim, as re-
giões Nordeste, Norte e Centro-Oeste, especialmente estas duas últimas são
beneficiadas por uma representação parlamentar superior a seu peso populacional.
Segundo uma estimativa de Stepan, seria possível, ao menos em tese, a forma-
ção de uma coalizão majoritária no Senado formada por senadores que repre-
sentassem treze por cento do conjunto da população (cf. Stepan 1997, p. 34).
No que se refere à segunda variável, o Senado brasileiro tem nada
menos que doze áreas de competência exclusiva, incluindo, como já foi visto,
a de aprovar os limites de endividamento estadual, tornando-o um dos princi-
pais atores na questão mais estratégica para a redefinição das relações
intergovernamentais. No Brasil, como nos EUA e em contraste com outras
federações a amplitude das atribuições da Câmara Alta é enorme. Isto torna
especialmente significativos os efeitos potenciais de uma coalizão regional.
Com relação à terceira variável, já vimos a extensão das atribui-
ções (ao menos nominais) das entidades subnacionais no caso brasileiro; tam-
bém a competência residual cabe aos estados, na tradição constitucional do
país. Se levarmos em conta o efeito das variáveis já apontadas anteriormente
sobre o ritual do processo de reforma constitucional-aprovação em dois tur-
nos por uma maioria qualificada de três quintos em cada uma das duas casas
do Congresso -mais uma vez colocaremos o Brasil no ponto extremo do
gradient proposto por Stepan, ou seja, como um dos casos onde é mais nítida
a presença de mecanismos majority constraining.
Se tomarmos a quarta variável, a notória ausência no caso brasilei-
ro de um sistema partidário forte e disciplinado, orientado para temas de esco-
po nacional é mais uma fonte de fragmentação e descentralização de poder.
Diante deste quadro é difícil escapar da conclusão de que temos no
Brasil um caso extremo de fragmentação de poder, levantando a ameaça da
ingovernabilidade. Há, porém, um outro lado da moeda, que é o da extensão dos
recursos de poder do Executivo federal e especialmente o poder da Presidência da
República: uma avaliação mais cuidadosa terá que levar em conta que, apesar de
tudo, foi possível implementar um programa de estabilização, encaminhar impor-
tantes reformas constitucionais e estabelecer limitações fiscais aos estados.
As possíveis coalizões congressuais de completo bloqueio às propos-
tas do Executivo são mais que nada uma ameaça potencial e influem sobre a com-
posição da agenda, como é especialmente visível nas dificuldades em encaminhar
a reforma tributária e a reforma política. Esta última não consegue se consolidar
na agenda do país e não se vislumbra uma solução para o clássico problema da
reforma que deve forçosamente ser votada pelos atuais beneficiários de um siste-
ma enviesado de representação. Também a reforma tributária é sabidamente um
exemplo deste “poder de veto não formal” (Azevedo & Melo, 1997, p. 91), que
acaba por limitar e enquadrar as próprias propostas das elites técnicas.
Por outro lado, um conjunto de fatores dá margem de manobra às pro-
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KUGELMAS, Eduardo & SOLA, Lourdes. Recentralização/Descentralização: dinâmica do regime federativo no Brasil dos anos
90. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 63-81, out. 1999 (editado em fev. 2000).

postas do Executivo. O caráter plebiscitário das eleições presidenciais conferindo


uma legitimidade especial de grande peso na cultura política brasileira é um deles,
bem como a notável soma de poderes da tecnoburocracia federal. Aliás, é exata-
mente nos estados pequenos e pobres que o Executivo, em muitos momentos,
constrói uma base de apoio de tipo clientelístico. (cf. Mainwaring, 1999, p. 271).
Tudo indica, porém, que estamos chegando ao limite destas “solu-
ções “de tipo imediatista, e pouco congruente com uma consolidação de práti-
cas republicanas. O regime federativo no país é um dos elementos constituin-
tes de um imbroglio político-institucional caracterizado por uma multiplicidade
de veto points. Deve ser lembrado que a preocupação com as reformas e o
problema da governabilidade não é apenas uma queixa do Executivo federal e
independe do conteúdo específico das políticas por este defendidas. Não é
difícil imaginar a extensão das dificuldades que um presidente eleito pela atu-
al oposição teria em realizar seu programa.
É constante, talvez diária a presença de apelos por um novo pacto
federativo na mídia, nos discursos parlamentares, nos seminários acadêmi-
cos. Não parece possível nem provável que tal pacto possa ser urdido a partir
da preocupação quase exclusiva do governo com a questão fiscal, ou da defe-
sa ingênua da descentralização como benfazeja por definição.
É necessário enfrentar de forma criativa os desafios da etapa atual,
como faz Manuel Castells ao propor o Estado-Rede, associação de blocos
regionais, estados nacionais, diversos tipos de instâncias subnacionais, asso-
ciações da sociedade civil, organizações não governamentais, interligadas por
redes de parceria e cooperação (cf. Castells, 1998).
Mais do que um pacto definitivo, talvez inatingível, deve-se pensar
em um processo contínuo de redefinição e aperfeiçoamento da dimensão fede-
rativa que está presente na própria idéia de reforma do Estado e do sistema
político em seu conjunto. Mais do que nada é a questão da recuperação plena
do caráter republicano das instituições que deve nortear estes esforços.

Recebido para publicação em novembro/1999

KUGELMAS, Eduardo & SOLA, Lourdes. Recentralization/Decentralization: dynamics of the federative regime in
Brazil 90’s. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 63-81, Oct. 1999 (edited Feb. 2000).

ABSTRACT: This article discusses the evolution of the federative practice and UNITERMS:
institutions in Brazil in the past few years, emphasizing the simultaneity of the federalism,
decentralization processes. The decentralizing trajectory which culminates in public policies.
the 1988 Constitution, the fiscal crises of the Brazilian State and the effects of
Plano Real are discussed based in a set of comparative references, trying to
incorporate very recent works by Alfred Stepan.

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KUGELMAS, Eduardo & SOLA, Lourdes. Recentralização/Descentralização: dinâmica do regime federativo no Brasil dos anos
90. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 63-81, out. 1999 (editado em fev. 2000).

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SCHWARTZ,
Tempo Gilson. Além da
Social; estabilização:
Rev. do Plano
Sociol. USP, S. Real à reconstrução
Paulo, da economia
11(2): 83-96, política brasileira.DOSSIÊ
out. 1999 Tempo Social;FHC
Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 83-96,(editado
out. 1999 em
(editado
fev.em fev. 2000).
2000). o
1 GOVERNO

Além da estabilização
Do Plano Real à reconstrução da economia
política brasileira
GILSON SCHWARTZ

Minha geração, toda ela, esteve voltada para


a idéia de desenvolvimento, projeto foi a
palavra mágica do existencialismo que
consumimos e a constituição de um novo
homem marcou nossas opções políticas. Como
é possível hoje se falar num salto para o
futuro, depois da desintegração dos países do
Leste europeu, quando não parece haver para
o modo de produção da riqueza outra forma
que não o capitalismo e quando o futuro se
torna incerto e miserável, quando o presente
deixa de ser o sintoma desse mesmo futuro?
(Giannotti, 1992)

RESUMO: Este artigo examina as condições econômicas gerais associadas UNITERMOS:


ao processo de estabilização de preços no Brasil, chamando a atenção para macroeconomia,
economia brasileira,
questões ainda em aberto relativas ao papel do Estado e à definição de um
estabilização,
modelo de desenvolvimento econômico. Apesar das restrições externas e da desenvolvimento,
prioridade conferida à estabilidade, o autor argumenta que há espaço para Estado,
definições inovadoras no campo das políticas publicas de longo prazo. inflação.

a estabilização ao desenvolvimento, o debate está aberto. A seguir,

D faz-se um desmonte de armadilhas retóricas que opõem “fracasso-


maníacos” e “integrados”. Em seguida, evidencia aspectos estrutu-
rais que fazem das relações entre Estado e mercado na economia brasi-
leira um espaço de negociação de projetos econômicos e políticos ainda em aber-
Professor do Núcleo de
Pesquisa em Relações
Internacionais - USP

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SCHWARTZ, Gilson. Além da estabilização: do Plano Real à reconstrução da economia política brasileira. Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 83-96, out. 1999 (editado em fev. 2000).

to. Nesse diagnóstico, uma compreensão mais detalhada do ciclo de investimentos


em curso é decisiva. Finalmente, retomamos aspectos mais conjunturais, exami-
nando algumas das razões para a frustração dos prognósticos mais catastrofistas
que se faziam para quando houvesse o abandono da âncora cambial.

“Além da Estagnação”: trinta anos depois

O presidente Fernando Henrique Cardoso, numa entrevista concedida


ao jornal Folha de S. Paulo1, cometeu uma injustiça intelectual e um erro histórico,
identificando uma de suas atuais críticas mais ferozes, a economista Maria da
Conceição Tavares, entre os que no passado acreditaram na estagnação inescapável
1
da economia brasileira. No caso, o presidente/sociólogo não estava propriamente
“A Cepal sabia do pro-
cesso de transforma- dizendo “esqueçam o que eu escrevi” mas sim que “esqueci o que eu mesmo li”.
ção. (...) O Prebisch Pelo menos lá está ele, citado na primeira nota ao trabalho escrito
entendeu a necessida- por Maria da Conceição Tavares e José Serra, Além da Estagnação2, nota
de de capital externo
e do papel do Estado, mencionando um grupo que ofereceu “valiosos comentários” que “contribuí-
da substituição de im- ram para o enriquecimento do trabalho”: Luís Souza, Cláudio Salm, Fernando
portações. Economi-
camente, para a épo- Henrique Cardoso, Luís Barros e Francisco Weffort.
ca, era adequado. Era O objetivo maior do ensaio de Conceição e Serra era dar uma surra
preciso fazer e real- teórica nos “fracassomaníacos” de então, sobretudo os de esquerda, em plena
mente foi feito. Eles
diziam que haveria ditadura militar, ao mesmo tempo reservando cascudos conceituais para o coro
estagnação econômica dos contentes da direita. FHC, que leu os originais, mesmo sem ter-se filiado
– a (Maria da) Con-
ceição Tavares, o Cel- à esquerda, também havia bandeado para os que acreditavam na “castração”
so Furtado etc. Era do desenvolvimento nacional, como notamos acima.
bobagem. Iria haver O criticado-mor, entretanto, tinha nome e pedigree: Celso Furtado.
(1967, começo do “mi-
lagre econômico’’) um Seu “modelo” (designado pelos autores da crítica assim mesmo, entre aspas)
ciclo de expansão, indicava que o esgotamento do processo de substituição de importações con-
com capital externo.
Não era mais “socia- denava as economias latino-americanas à estagnação. Um pensamento inacei-
lismo ou estagnação’’. tável em pleno processo de recuperação cíclica, uma etapa que a mitologia
Mas é o próprio FHC fascista da época designava como “milagre”.
que, a seguir, cai em
contradição, ao afir- Hoje, quase 30 anos depois de “Além da Estagnação”, o modelo eco-
mar que em sua pró- nômico brasileiro parece oscilar entre ser uma colcha de retalhos e desandar
pria obra “(...) quan-
do falei do subcapita- numa geléia geral. Continua inspirando a velha pecha de que nos falta serieda-
lismo não tinha essa de. O país ainda é o patinho feio das conferências acadêmicas e financeiras
visão de que haveria internacionais. Enquanto outros países da América Latina ou do Leste Europeu
desenvolvimento: para
mim, ele seria castra- rezaram de joelhos a cartilha do ajuste neoliberal, o Brasil foi embalado numa
do. No livro Empre- mistura que inclui pitadas de neoliberalismo, sobrevivência do gigantismo esta-
sário Industrial e De-
senvolvimento Econô- tal e esforços recorrentes para salvaguardar a instituição da moeda nacional.
mico no Brasil existia O leque de receitas de ajuste econômico e reforma estrutural tem
ainda o pressuposto dois extremos: de um lado, os casos asiáticos, com políticas estratégicas de
da esquerda tradicio-
nal: sem autonomia resistência ao capitalismo ocidental, de outro, os modelos ortodoxos orienta-
nacional não existe dos para a liberalização dos mercados e o enxugamento do Estado.
desenvolvimento ca-
pitalista” (cf. Freire, O modelo brasileiro imita o asiático no gradualismo e nas tentativas de
1996, p. 5-4). seletividade da abertura comercial, na privatização e na liberalização relativamen-
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SCHWARTZ, Gilson. Além da estabilização: do Plano Real à reconstrução da economia política brasileira. Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 83-96, out. 1999 (editado em fev. 2000).

te mais cautelosas. Entretanto, o gradualismo seletivo das economias asiáticas


está ancorado em políticas de investimento, reforma educacional e redefinição das
relações entre os setores público e privado. Já no Brasil o gradualismo às vezes
reflete muito mais a força dos lobbies setoriais e das alianças entre facções da
elite, reflete interesses contrariados que encontram formas de evitar reformas pro-
fundas, sem uma estratégia de longo prazo transparente e consistente.
Um exemplo é o desmonte do tal modelo de substituição de impor-
tações. O Brasil seguiu a tendência internacional de renegar esse modelo (que
há 30 anos já era tema de reavaliação crítica entre economistas de esquerda),
mas não fez os investimentos materiais, institucionais e sociais para colocar
algo melhor no lugar. O ajuste brasileiro acaba assim ocorrendo ao longo das
linhas de menor resistência, com clara elevação dos seus custos sociais e uma
evidente desnacionalização da estrutura produtiva.
Curiosamente, portanto, FHC não se lembra que a Conceição que
hoje o atazana era, na época, uma crítica (ao lado de José Serra, seu ministro
da Saúde) da crença politizada na estagnação e, já então, uma estudiosa dos
efeitos do esgotamento do processo de substituição de importações, não sua
defensora nacionalista ou eventualmente nostálgica. 2
Publicado no Brasil
Há pouco mais de 25 anos, a mensagem já era “além da estagnação”. pela Zahar Editores
Conceição e Serra diziam com todas as letras: do Rio de Janeiro no
livro Da substituição
Nossa idéia é de que a crise que acompanha o esgota- de importações ao
mento do processo substitutivo representa no essenci- capitalismo financei-
ro – ensaios sobre a
al, pelo menos no caso de alguns países, uma situa- economia brasileira.
ção de transição a um novo esquema de desenvolvi- O ensaio foi escrito
mento capitalista (Tavares & Serra, 1980). em parceria com José
Serra, contendo parte
De fato, muitas estatísticas mostravam que a estagnação ou até o do material utilizado
retrocesso eram comuns, sobretudo em aspectos sociais. Mas, prosseguiam pelos autores nos cur-
sos da Escola Latino-
nossos autores clássicos, o novo esquema de desenvolvimento: Americana de Socio-
pode apresentar características bastante dinâmicas logia da Faculdade
e ao mesmo tempo reforçar alguns traços do “mode- Latino-Americana de
Ciências Sociais (Elas-
lo” substitutivo de crescimento em suas etapas mais Flacso) e da Escolatina
avançadas, ou seja, a exclusão social, a concentra- (Programa de Estudos
de Pós-Graduação da
ção espacial, bem como o atraso de certos subsetores Faculdade de Econo-
econômicos quanto aos níveis de produtividade mia da Universidade
(Tavares & Serra, 1980, p. 157). do Chile). Foi apre-
sentado no II Seminá-
Hoje, quando já se foi muitíssimo além da estagnação, a pergunta é rio Latino-americano
outra: é possível ir além da estabilização, quando se constata que as bases da para o Desenvolvi-
mento, promovido pela
política de estabilização exigem extrema cautela na promoção do crescimen- Unesco e Flacso em
to, já que por enquanto só é possível financiá-lo com “poupança externa”? novembro de 1970 e
Mas, se houverem alternativas, estaria a esquerda repetindo o mesmo erro publicado no Trimes-
tre Econômico de no-
outrora criticado por Conceição Tavares e Serra, de acreditar na condenação vembro/dezembro de
do regime por impossibilidade de superar os obstáculos ao crescimento? 1971 e na Revista
Latinoamericana de
É possível reconhecer novamente os traços da estagnação, do atraso e Sociologia em janeiro
da destruição em muitos setores e subsetores. Alguns defendem uma verdadeira de 1972.
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SCHWARTZ, Gilson. Além da estabilização: do Plano Real à reconstrução da economia política brasileira. Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 83-96, out. 1999 (editado em fev. 2000).

“limpeza étnica” eliminando os fracos descendentes do “modelo” anterior. Mas a


transição ainda está sendo negociada – aliás, os espaços de negociação ainda estão
em aberto, sendo construídos. Há uma ampla “sociologia econômica” ainda em
curso, depois do choque da estabilização, cuja lógica depende da restauração da
capacidade do Estado arbitrar níveis de proteção, esquemas de refinanciamento de
dívidas públicas e privadas, instrumentos de política industrial e tecnológica e, por
fim mas não por menos, programas de distribuição de terra e renda.
Como a herança é um estoque monumental de dívidas, ampliadas
pelo ciclo de euforia e crise gerado pela própria estabilização artificial da taxa
de câmbio, sobretudo dívidas públicas, o saneamento financeiro é complexo e
leva tempo. Se, no meio do caminho, o setor financeiro privado fosse levado
de roldão, a tarefa seria ainda mais delicada, forçando sempre o Banco Cen-
tral a atuar como “emprestador de última instância”.
Quem sobreviverá? Quais os limites de uma política de estabiliza-
ção com relação à distribuição de renda e de patrimônio? Que acertos finan-
ceiros devem ser feitos para que se estabeleçam critérios de equivalência
patrimonial que permitam a recuperação do investimento público?
A ponte entre política de estabilização e reconstrução gradual de
um modelo de desenvolvimento exige uma ampla e prolongada mediação es-
tatal num momento em que, em virtude da rede de segurança armada pelos
credores internacionais, públicos e privados, as pressões contra o uso político
de recursos públicos são permanentes e explícitas, por meio do monitoramento
do Fundo Monetário Internacional.
Essa difícil reengenharia do modelo de desenvolvimento tem sido
conduzida a frio. Collor colocou em primeiro plano no imaginário nacional o
desafio, senão a promessa de “chegar ao Primeiro Mundo”. FHC, para surpre-
sa geral, tem sido inepto como produtor de imagens legitimantes. A estabili-
zação de preços é um compromisso fundamental, mas é possível ter
credibilidade nesse compromisso sem outros, relativos à consistência ao lon-
go do tempo do compromisso com o crescimento econômico? Como ir além
da estabilização e como mostrar à opinião pública que este além não está
depois da morte? (Keynes dizia que a longo prazo estaremos todos mortos).
A estabilização corre o risco de se tornar uma religião cultivada,
surpreendentemente, por uma geração de intelectuais que depois de exilada
migrou para a política. Para os críticos mais amargos, a imaginação, no
poder, virou amnésia.
Entre as dificuldades inerentes à atual transição, há uma de ordem
quase emocional (se é que os economistas possuem emoções). Para o
“desenvolvimentista” ou “estruturalista”, o discurso e os instrumentos da es-
tabilização soam como freios, limites e incapacidade de percepção dinâmica
da realidade. Já para o policy-maker que gerencia a estabilização de preços,
toda demanda pode gerar “excesso de demanda” e o crescimento, subtexto da
idéia de “desenvolvimento”, pode ser arriscado e não apenas colocar em xe-
que a estabilidade como afinal revelar-se ilusório (como, em certa medida,
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SCHWARTZ, Gilson. Além da estabilização: do Plano Real à reconstrução da economia política brasileira. Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 83-96, out. 1999 (editado em fev. 2000).

foram os surtos dos anos 80 e 90, “décadas perdidas”). Parece que surgiu uma
versão pós-moderna do conflito entre estatizantes e privatistas, estruturalistas
e monetaristas, industrialistas e oligarcas, abolicionistas e escravocratas e,
para alguns, até mesmo da velha rixa entre paulistas e cariocas.
Mas o debate não é apenas doméstico. A globalização também acon-
tece neste plano, e o mesmo debate transcorre internacionalmente. No mundo
inteiro discute-se novamente a questão do crescimento, especialmente em face
do que se consideram taxas medíocres nas principais economias da OCDE. Na
França e em toda a União Européia discute-se o custo social do apego a uma
norma monetária rígida. Nos Estados Unidos, até as estatísticas estão sendo
rediscutidas pelos que pretendem repensar, diante do vigor do processo de cres-
cimento não-inflacionário, a própria teoria do crescimento econômico.
A dificuldade maior, entretanto, parece radicar nos dilemas exis-
tenciais de uma geração que passou da aposta em projetos ao gerenciamento
passivo de um presente estreito, quase imobilizada pelo espectro de um “futu-
ro incerto e miserável”. Essa geração, no poder com FHC, foi até agora inca-
paz de formular uma agenda votada para o que está além da estabilização.

Do pragmatismo irresponsável à construção de um modelo

Na visão de Celso Furtado, economista de uma geração keynesiana


(e muito mais radicada num ambiente de “projetos existencialistas” e, depois,
“estruturalistas”), um sistema econômico que perde um “motor” como a subs-
tituição de importações, sendo caracterizado por forte concentração de renda,
não tem como encontrar de modo natural outra fonte de energia para sua ex-
pansão, outro fator de demanda.
Na sua visão, a tendência à estagnação viria da exaustão de uma de-
manda doméstica e cativa, que criava horizontes para a ampliação da oferta de
produtos, através de investimentos em novas fábricas (para propiciar o atendi-
mento dessa demanda). Furtado enxergava portanto um típico “problema de
demanda efetiva”, de “insuficiência de demanda” ou de “subconsumo”.
Já Conceição Tavares, a rigor, atualizava em linguagem cepalina a
conhecida imagem desenhada por Leon Trotsky: a dinâmica do capitalismo é
a do desenvolvimento desigual e combinado, numa dimensão necessariamen-
te mundial. Voltando ao texto de Conceição e Serra:
Diz-se, às vezes, que uma economia está estagnada ou
tende a esse caminho quando seu crescimento se
desacelera em determinado período. No entanto, é pos-
sível que enquanto o produto global per capita esteja cres-
cendo a uma taxa reduzida, estejam verificando-se, no
interior da economia, avanços e retrocessos significati-
vos na evolução dos diferentes setores ou estratos econô-
micos, bem como surgindo novas atividades “dinâmicas”.
Neste sentido, a utilização da categoria “expansão” pode
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Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 83-96, out. 1999 (editado em fev. 2000).

ser mais adequada que a de crescimento, visto que a pri-


meira incluiria dentro de uma economia capitalista as
flutuações cíclicas do nível de atividade econômica, bem
como o caráter desigual e combinado do desenvolvimento
desse sistema (Tavares & Serra, 1980, p. 174).
Assim, uma característica metodológica comum a Furtado e a Concei-
ção Tavares/Serra é que ambos trabalham criticamente com o conceito de “mode-
lo”, mas tentando cada um a seu modo injetar a “variável tempo” e, de modo geral,
a história no próprio modelo, traduzindo a história em forças dinâmicas distintas.
Furtado historiciza o mecanismo keynesiano da demanda efetiva, Con-
ceição e Serra afastam-se da visão mecanicista e colocam em primeiro plano o fato
de que ciclos, etapas e, de modo geral, a “expansão” capitalista são feitos de cres-
cimento e contração, fases ou etapas que ao longo do tempo subvertem os funda-
mentos de cada mecanismo sem que o sistema esteja fadado à estagnação.
Em particular, Serra e Conceição alertavam para o diagnóstico que
prematuramente tomasse a exclusão social como obstáculo estrutural ao de-
senvolvimento, como se a pobreza condenasse à pobreza:
(...) poder-se-ia dizer que enquanto o capitalismo
brasileiro desenvolve-se de maneira satisfatória, a
nação, a maioria da população, permanece em con-
dições de grande privação econômica, e isso, em
grande medida, devido ao dinamismo do sistema ou,
melhor, ao tipo de dinamismo que o anima (Tavares
& Serra, 1980, p. 158).
O texto clássico de Serra e Conceição Tavares teve esse papel crucial
de reabrir o debate sobre modelos de desenvolvimento, sob o jugo feroz das
ditaduras militares latino-americanas, quando quase todas as esperanças esta-
vam exiladas e acreditar no fim do mundo ou na estagnação econômica era a
forma mais evidente de negar a ditadura, ou seja, negar-lhe futuro.
Custo a crer que, numa democracia, cujo presidente participou da-
queles debates e de tantos outros que vieram depois, animando a própria de-
mocratização, tenha afinal se tornado mais difícil ainda discutir modelos al-
ternativos. Hoje se tem a impressão de que ninguém, sobretudo no governo
federal, consegue ou deseja enxergar algo além da estabilização. Já cheguei a
3
A declaração foi feita ouvir, num seminário sobre globalização e empresas multinacionais, um as-
pela economista Lidia
Goldenstein em semi- sessor do BNDES assumir publicamente que o governo conduz o processo de
nário organizado em abertura econômica “aos trancos e barrancos”3.
1998 pela Sociedade
Brasileira de Estudos A oposição de esquerda tem dado demonstrações igualmente constran-
sobre Globalização e gedoras de falta de apetite intelectual. Para ficar num exemplo recente e gritante,
Empresas Transna- leia-se a seguinte abertura de um livro que tem por eixo a crítica aos anos FHC:
cionais (Sobeet). As
palestras e debates No Brasil, entre os anos 30 e o final dos anos 80 houve
foram gravados e ar- um processo de construção de um Estado nacional. Foi
quivados pelo Conse-
lho Regional de Eco- Collor de Mello quem iniciou, em 1990, o seu desmon-
nomia de São Paulo. te, com a adoção do ideário neoliberal. Mas a iniciati-
88
SCHWARTZ, Gilson. Além da estabilização: do Plano Real à reconstrução da economia política brasileira. Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 83-96, out. 1999 (editado em fev. 2000).

va de Collor foi interrompida pelo seu impeachment.


Fernando Henrique Cardoso se encarregou de levá-la
a seu pleno desenvolvimento. No início de seu governo,
em 1995, o Brasil era um país ainda respeitado inter-
nacionalmente, com um parque industrial significati-
vo, com imensos recursos naturais, com empresas esta-
tais altamente competitivas em áreas estratégicas, como
a Petrobras, a Vale do Rio Doce, com um setor de Tele-
comunicações desenvolvido, com uma enorme rede de
produção de energia elétrica, com um grande potencial
de desenvolvimento e onde o trabalho era ainda o prin-
cipal bem que as pessoas possuíam (Lesbaupin, 1999).
Sem entrar no mérito da periodização desajeitada, creio que por
mais que se repudiem as políticas adotadas pelo governo FHC, esse tipo de
afirmação é eminentemente política, ou seja, funciona mais como declaração
de princípios, sem se dar ao trabalho de fazer avaliações concretas mais cui-
dadosas. Não há como atribuir ao período presidencial de FHC um potencial
de transformação tão monumental e uma destruição tão inelutável. Estamos
face à velha escatologia de esquerda, àquele mesmo espírito de condenação
do país à estagnação econômica apenas porque há críticas ideológicas de fun-
do à aliança política dominante.
A reconstrução de um modelo de desenvolvimento continua possí-
vel, suas bases são reais e espero não ser tachado de “tucano” por buscar um
diagnóstico que evite seja o catastrofismo, seja a aceitação passiva da estabi-
lização como fim em si e último da política econômica.
A questão fundamental da segunda metade do século 20 foi a falência
do Estado (cf. Schwartz, 1998). Isso é relativamente sabido e repetido, somente
bolcheviques nostálgicos se arriscam a negar o fato. Mas é preciso lembrar que
surgem novas formas privadas de organização da produção. Nesse processo, até
os liberais foram pegos de surpresa. Pois ficou evidente que, mais que privatizar
estatais, o que está em jogo nas ondas de fusões e aquisições, na reavaliação de
mercados-alvo e mesmo nas decisões de caráter meramente gerencial é a capaci-
dade de processar informação. Surge um paradoxo evidente: as novas formas de
acumulação de capital são predominantemente privadas, mas o seu sucesso de-
pende da eficiência com que se produz e distribui informação – um processo que,
por definição, não pode ser exclusivamente privado!
Já é possível, cinco anos depois do Plano Real, afirmar que erraram
os que apostaram em cenários de desindustrialização, desestruturação das ca-
deias industriais e algo que evocaria Chile e Argentina entre 1976 e 1982. De
outro lado, um grupo hegemônico dizia que essa preocupação não tinha senti-
do e que a “obsessão com chaminés” é ultrapassada, que hoje não essa a
forma de agregar valor e que o mercado saberia definir as oportunidades da
economia brasileira, que os preços relativos indicariam as novas vantagens
comparativas. Além disso, uma indústria que tinha sido desenvolvida apenas
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SCHWARTZ, Gilson. Além da estabilização: do Plano Real à reconstrução da economia política brasileira. Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 83-96, out. 1999 (editado em fev. 2000).

com benefícios estatais seria essencialmente dispensável e custosa.


Nenhuma das duas posições se confirmou. Aliás, o que mais chama
a atenção dos especialistas em economia industrial é a continuidade setorial
da economia brasileira4. Os mesmos setores são confirmados como eixos de
desenvolvimento industrial:
Insumos básicos – nada mudou, as empresas são as mesmas, ainda
que mudando de propriedade, as plantas são as mesmas, as mudanças de equi-
pamento são periféricas, as escalas são as mesmas. Seja na petroquímica, no
aço ou no processamento de minério, há uma enorme confirmação das opções
feitas anteriormente e a cada dia surgem sinais de que o Brasil tem uma posi-
ção sólida na área de insumos básicos;
Bens de capital – mesmo aí já ocorre uma recuperação, com alguma
perda em seriados, mas o setor demonstra um fôlego que revela como a sua
morte anunciada estava desfocada;
Bens duráveis – é o setor mais vulnerável às oscilações do crédito
no curto prazo, mas é ainda o setor automobilístico que domina a agenda de
política industrial (com amplo apoio fiscal e tarifário), tem dado sinais recor-
rentes de disposição a investir e a se modernizar.
Em resumo, contata-se que há uma relativa resistência das cadeias pro-
dutivas e mesmo sintomas de violenta reconstituição em alguns casos, abrindo-se
um novo ciclo de substituição de importações. O Brasil se caracterizou desde o
surgimento da indústria automobilística como um caso de vigorosa formação de
cadeias industriais. É o contrário da visão, que chegou a ser muito forte no Brasil,
de que com uma economia aberta o sistema industrial organizado por cadeias
setoriais seria uma idéia ultrapassada, pois cada empresa compraria onde fosse
mais barato, via global sourcing, sem criar um tecido relativamente mais fechado
de relações inter e intra-setoriais, propiciando uma dinâmica econômica e política
interna suficientemente forte para recolocar, sim, a questão da autonomia nacional
como uma das mediações decisivas do processo de desenvolvimento econômico.
Outra linha de continuidade interessante, em outro pólo de desenvol-
vimento, é a do setor agropecuário. No Centro-Oeste ganhou importância a pro-
dução de grãos. Muitos disseram que seria um desenvolvimento artificial, com o
apoio do Estado. Hoje se vê que a região tende a centralizar a produção de grãos
do Brasil, Paraná e Santa Catarina já se preocupam em como sobreviver a essa
nova fronteira agrícola de competitividade crescente. Mas não se trata de uma
novidade, é uma tendência que vem do final dos anos 70, com uma agricultura
altamente mecanizada, uso intensivo de terra plana e clima regular.
4
Para esse retrato pro- Nada indica a falência estrutural do modelo brasileiro de consumo
curo me valer sobre- de massa, que se havia iniciado em 1970. Há quem alerte para uma esquisita
tudo das análises ela- modernidade do pobre brasileiro, sempre candidato a consumir tudo o que a
boradas pelo econo-
mista Antônio Barros classe média consome. Há uma grande unidade cultural consumista no Brasil,
de Castro, professor que é uma das bases fundamentais para decisões de investimento e ampliação
da UFRJ e ex-presi-
dente do BNDES (ges- da capacidade produtiva doméstica, sobretudo porque as três décadas de in-
tão Itamar Franco). flação crônica e hiperinflação reprimida tornaram a economia brasileira abso-
90
SCHWARTZ, Gilson. Além da estabilização: do Plano Real à reconstrução da economia política brasileira. Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 83-96, out. 1999 (editado em fev. 2000).

lutamente retardatária em termos de crédito ao consumo.


O investimento na economia brasileira sempre esteve assentado no
famoso tripé: investimento estatal, investimento privado nacional e investi-
mento externo. Como estão ocorrendo mudanças qualitativas na própria es-
trutura produtiva, torna-se extremamente difícil o processo de criação de cré-
dito e de avaliação do risco sistêmico por parte dos bancos. Some-se a isso o
fato de que no Brasil o paradigma de análise de crédito ainda precisa ser cria-
do, ou está sendo criado, depois da implosão da bolha especulativa imediata-
mente posterior à estabilização.
Mas sobre esse pano de fundo se soma, como um novo motor de
expansão e estímulo à substituição de importações, a superação da âncora
cambial. A abertura comercial e o câmbio valorizado levaram muitas empre-
sas brasileiras a importar qualquer coisa, momentaneamente descartando for-
necedores tradicionais. Superada a idiotia cambial, as cadeias entre fornece-
dores e produtores estão sendo reconstruídas, em muitos casos negociando
agora com novos fornecedores multinacionais que compraram ou instalaram
plantas produtivas locais.
Passada a fase de euforia consumista, a construção de um modelo
de crescimento sustentado ainda exigirá muitas mudanças estruturais. Mas já
se percebe que as grandes dores de parto são na natureza e funções do Estado,
em especial na orientação dos mecanismos de crédito e financiamento, terreno
onde os fatores políticos são cruciais. Mas o pleno desenvolvimento de um
novo ciclo de crédito de longo prazo, ponto de partida para investimentos,
depende de uma dinâmica setorial que já está em curso.
No caso do Brasil, deve-se ressaltar que ocorre sobretudo o
renascimento de um sistema de planejamento que a rigor nunca deixou de
existir e produzir diagnósticos (cf. Ipea, BNDES) mas que tinha menos espa-
ço num ambiente hiperinflacionário e ficou subordinado, senão passivo, numa
fase em que a estabilização e a privatização dominavam a agenda.
Já se falou muito da ausência de um “projeto nacional” como obs-
táculo à definição de modelos de desenvolvimento. No Brasil há um esforço
claro para criar esse contexto institucional-estatal que está associado à tradi-
ção desenvolvimentista brasileira. Curiosamente, nesse mesmo momento o
chamado “novo consenso de Washington” sublinha a importância do institution
building. O institutional building vai lado a lado com a aplicação de uma
receita conhecida como “crédito seletivo” ou policy-oriented credits, modelo
que o BNDES nunca deixou de utilizar.
O BNDES pode ser uma das alavancas fundamentais, tanto no apoio
diferenciado a empresas de vários setores com crédito, quanto no saneamento
das finanças estaduais através de programas de antecipação de receitas de
privatização. Ou seja, o Banco tem fundos e está criando crédito na economia,
por canais diferenciados. O Ministério do Desenvolvimento também pode ope-
rar um projeto de abertura comercial seletiva, em que não há recuo na tarifa
média, mas podem ocorrer rebalanceamentos setoriais muitas vezes cruciais
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SCHWARTZ, Gilson. Além da estabilização: do Plano Real à reconstrução da economia política brasileira. Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 83-96, out. 1999 (editado em fev. 2000).

para a sobrevivência de empresas nacionais.


Há portanto instituições estatais cruciais na montagem de um mo-
delo de desenvolvimento que amplie as bases da estabilização, no sentido de
impedir uma desestruturação e ao mesmo tempo tentar lançar bases para um
crédito de mais longo prazo.
A promoção da diferenciação econômica setorial e o resgate do pa-
pel pró-desenvolvimento do Estado são dois aspectos do processo de mudan-
ça nas relações entre as três pernas do tripé: o investimento estatal, o privado
nacional e o estrangeiro. Abre-se um novo “ciclo de expansão”, o que não
significa seja a abolição da instabilidade macroeconômica, seja a condenação
do país ao atraso e à destruição patrimonial.
Na prática, ainda que de modo errático ou atendendo a pressões
corporativas, tem crescido a adoção de políticas intervencionistas, assim como a
manipulação das regras do jogo de mercado. Aliás, há também uma natural reação
defensiva diante da deterioração das condições externas de financiamento.
Exemplos de medidas “pragmáticas” do governo brasileiro nas áre-
as fiscal e de contas externas:
• política setorial para produtores de equipamentos de telecomuni-
cações;
• regime automotivo com incentivos regionais diferenciados;
• maior proteção tarifária a setores escolhidos (como brinquedos);
• restrições ao financiamento de curto prazo às importações (antes
da crise);
• uso do BNDES com créditos seletivos para reconversão industrial;
• uso do BNDES para antecipar receitas de privatização a governos
estaduais;
• prorrogação do Fundo de Estabilização Fiscal;
• privatizações capital-intensivas (Vale, Telecom e setor elétrico);
• redução do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) sobre in-
vestimentos estrangeiros;
• anúncio de política setorial para produtores de máquinas e equi-
pamentos;
• oferta de novas linhas de crédito para exportação pelo BNDES;
• flexibilização do monopólio da Petrobras com exigências de subs-
tituição de importações e apoio à indústria local;
• resistência à aceleração do cronograma de integração das Américas.
O maior perigo, no momento atual, é acreditar que a nova configura-
ção de preços relativos (câmbio corrigido, juros em queda, salários contidos)
funciona automaticamente com indutor dos investimentos. Pode até mesmo ocor-
rer uma indução, mas o ciclo de investimentos será sustentável apenas se houver
uma regulação estatal atenta para os impactos desses investimentos sobre as
contas externas, as contas públicas e a dinâmica inter e intra-setorial.
Vários economistas de orientação menos ortodoxa têm alertado para
os riscos de um ciclo de investimento espontâneo, que é incapaz de gerar me-
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SCHWARTZ, Gilson. Além da estabilização: do Plano Real à reconstrução da economia política brasileira. Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 83-96, out. 1999 (editado em fev. 2000).

canismos de financiamento mais estáveis ou de delinear perfis de acumulação


minimamente consistentes, do ponto de vista macroeconômico. Estudos da
própria Cepal, como os conduzidos por Ricardo Bielschowsky, têm produzi-
do alertas nesse sentido, para os principais países da América Latina.
Esses estudos revelam que, no caso brasileiro, os investimentos cres-
ceram em relação à medíocre primeira metade dos 90, mas com exceção de
telecomunicações, continuaram muito abaixo dos níveis médios das décadas
de 70 e 80. Os dados revelam que a indústria brasileira de fato passou por um
ciclo de modernizações, em que investiu sobretudo na reposição de equipa-
mentos e na redução de custos. Entretanto, para que esse “mini-ciclo” possa
engatar-se a um ciclo de longo prazo, o Estado precisa intervir e os limites
externos ao crescimento precisam ser gradualmente reduzidos.

Overshooting: por que o Brasil não implodiu?

O fim da chamada “âncora cambial” é o terceiro momento de nossa


análise do Plano Real. A compreensão de como o abandono dessa política de
estabilização não levou a um colapso econômico, como previam setores liga-
dos ao governismo e ao sistema financeiro, ajuda a entender também as possi-
bilidades ainda existentes de formulação e implementação de um projeto na-
cional de desenvolvimento.
O overshooting em episódios de abandono de âncora cambial é um
fenômeno esperado e de curto prazo, a questão fundamental continua sendo de
natureza fiscal ou, colocada de modo mais amplo, de financiamento da econo-
mia brasileira. Foi a fragilização crescente dos compromissos com o ajuste fis-
cal, em particular a frustração diante dos resultados efetivamente obtidos um
ano depois do pacote de outubro de 1997, que retirou credibilidade da política
de juros subjacente à âncora cambial. A percepção dessa fragilidade, somada às
expectativas de mudanças de regime cambial que se concentraram no período
pós-eleitoral (em analogia com outros casos, em especial com a flutuação do
peso mexicano em 1994), minou as bases de sustentação da política econômica
brasileira. A crise de confiança não resulta apenas da percepção de um evidente
atraso cambial, mas também da fragilidade do Estado, questão política ampla
que os economistas resumem como sendo de natureza fiscal.
Mas é preciso lembrar que, ao contrário do que ocorreu em outros
casos recentes de crise cambial, no Brasil foi criada uma rede de proteção
(liderada pelo FMI) que se somou a um processo de saneamento do sistema
bancário que teve início logo depois da crise mexicana. Ou seja, a crise cam-
bial brasileira seguiu o roteiro exatamente simétrico ao de casos na Ásia ou na
Rússia: lá, houve fragilidade fiscal e financeira, colapso do sistema bancário e
os países-líderes foram relutantes no resgate. No Brasil, em parte porque o
sistema global já estava estressado e havia dois anos de aprendizado, a crise
cambial irrompeu em condições mais seguras.
Internamente, o grau de endividamento das empresas brasileiras já
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SCHWARTZ, Gilson. Além da estabilização: do Plano Real à reconstrução da economia política brasileira. Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 83-96, out. 1999 (editado em fev. 2000).

se havia reduzido a um mínimo nos últimos anos, enquanto o sistema bancá-


rio passava por reestruturações após a crise mexicana. Finalmente, é impor-
tante lembrar que a economia brasileira, mesmo no período de estabilidade e
afluxo de capitais externos, não chegou a gerar uma bolha especulativa, em
especial no setor imobiliário.
Ou seja, sem menosprezar os custos de um ajuste cambial forte, a
reestruturação produtiva e financeira dos últimos anos representa uma garantia
a mais de que a adaptação ao choque de custos não transborde em problemas
patrimoniais mais graves no sistema empresarial ou no sistema financeiro. Mas
isso significa também que, passado o período emergencial, há muito mais graus
de liberdade no relacionamento com os organismos internacionais e mesmo na
efetiva utilização dos fundos externos negociados com o FMI e o G-7 para ab-
sorver as pressões de demanda por moeda estrangeira em meio ao período de
transição. Trata-se, nesse caso, de uma possibilidade, cuja implementação obvi-
amente depende de planejamento e vontade política, o que naturalmente é difícil
quando a elite política tem um certo apego já tradicional ao sentimento de “cas-
tração” de projetos nacionais de desenvolvimento.
Nesse cenário, a nova armadilha consiste no governo voltar a de-
pender da restauração de fluxos de capitais especulativos, acumulando reser-
vas com base em operações de arbitragem de curto prazo (atração de capitais
com base em juros locais muito elevados frente aos níveis internacionais) en-
quanto a economia real fica sujeita a freios que reduzem os investimentos
diretos e estreitam até mesmo as perspectivas de privatização.
Adicionalmente, como tem sido sublinhado por inúmeros analistas,
o mercado monetário brasileiro difere radicalmente de casos recentes em que
houve uma conexão automática entre crise cambial e default da dívida públi-
ca, simplesmente porque no Brasil a dívida pública não está dolarizada ou
sequer colocada junto a investidores externos. Ao contrário, uma das diferen-
ças institucionais relevantes da economia brasileira é a existência de uma in-
dústria de fundos vigorosa, dominada por investidores institucionais locais e
fundos de pensão do próprio setor público. Não houve portanto um mecanis-
mo de transmissão crítico entre a crise cambial e a rolagem da dívida pública
interna, embora os níveis de endividamento público por meio de papéis corri-
gidos pelo dólar viessem aumentando de modo preocupante no final da gestão
Gustavo Franco à frente do Banco Central.

Conclusão

A geração de políticos e intelectuais que chegou ao poder com


Fernando Henrique Cardoso ainda se debate com os fantasmas do fracasso na
formulação e implementação de um projeto de desenvolvimento nacional. É
bastante curiosa a citação com que abrimos esse texto, em que um proeminen-
te professor de filosofia do grupo mais íntimo de FHC formula esse sentimen-
to de castração de modo tão radical.
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SCHWARTZ, Gilson. Além da estabilização: do Plano Real à reconstrução da economia política brasileira. Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 83-96, out. 1999 (editado em fev. 2000).

Um país cujos líderes políticos e intelectuais abdicam do desafio de


imaginar novos projetos obviamente não pode ter um projeto nacional. Cinco
anos depois de mais um plano de estabilização, a economia brasileira ainda
pode ser descrita como um “processo de transição”: nem a transformação
política, nem a mudança de modelo econômico que a democratização parecia
prometer ocorreram de modo satisfatório e, menos ainda, irreversível.
À esquerda e à direita, os fatores externos continuam a ser escolhi-
dos mais freqüentemente como causas da eterna síndrome de “país do futu-
ro”. Para os críticos de esquerda, a ideologia da globalização e a instabilidade
sistêmica do capitalismo internacional são obstáculos intransponíveis. Os
pensadores a serviço do status quo mudam a terminologia, mas também atri-
buem a “choques externos” a responsabilidade por desequilíbrios numa traje-
tória que, supostamente, teria sido inequívoca, ainda que gradual, rumo ao
equilíbrio macroeconômico.
É urgente, política e tecnicamente, dar aos fatores dinâmicos inter-
nos um peso maior que o usual, para que a lenta transição democrática brasi-
leira cumpra minimamente as suas promessas de desenvolvimento econômico
e redução da desigualdade social. Se, há 30 anos, era preciso entender essa
dinâmica interna para enxergar horizontes além da estagnação, hoje, cinco
anos depois do Plano Real, é possível e urgente reconstruir os horizontes de
uma economia política que abra caminhos além da estabilização.

Recebido para publicação em julho/1999

SCHWARTZ, Gilson. Beyond stabilization: from Plano Real to the reconstruction of the Brazilian political
economy. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, 11(2): 83-96, Oct. 1999 (edited Feb. 2000).

ABSTRACT: This article analyses the general economical conditions associated UNITERMS:
to the process of stabilization of prices in Brazil, emphasizing some questions macroeconomy,
Brazilian economy,
related to the role of the definition of a model of economical development. Even
stabilization,
having external restrictions and a priority given to the stability, the author argues development,
that there is still space for new definitions in long term public politics. State,
inflation.

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SCHWARTZ, Gilson. Além da estabilização: do Plano Real à reconstrução da economia política brasileira. Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 83-96, out. 1999 (editado em fev. 2000).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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da Nação, balanço do governo FHC. Petrópolis, Vozes.
SCHWARTZ, Gilson. (1998) Nem catástrofe, nem despertar dos mágicos, São
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96
MARTINS,
Tempo JoséSocial;
de Souza.Rev.
Reforma agrária
Sociol. – o impossível
USP, S. Paulo,diálogo
11(2):sobre a História
97-128, out.possível. DOSSIÊ
1999 Tempo Social; Rev. Sociol.FHC
USP,
S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999(editado
(editado em
em fev.fev.
2000).
2000). o
1 GOVERNO

Reforma agrária
o impossível diálogo sobre
a História possível
JOSÉ DE SOUZA MARTINS

RESUMO: Os desencontros entre o governo, de um lado, e o MST, a Igreja e as UNITERMOS:


oposições, de outro, quanto à política de reforma agrária, só podem ser compre- reforma agrária,
questão agrária,
endidos se tivermos em conta o que vem a ser a questão agrária no Brasil. Num movimentos sociais,
país em que o grande capital se tornou proprietário de terras, a concepção clássi- governabilidade,
ca da questão agrária, e das reformas que ela pede, fica substancialmente altera- Fernando Henrique
da. São essas alterações que propõem as condições e os limites da reforma Cardoso.
agrária no país. São elas, também que apontam o desenrolar possível da história
brasileira a partir dessa referência estrutural. A reforma agrária se tornou uma
reforma cíclica em virtude da, de certo modo, contínua entrada e reentrada em
cena de clientes potenciais dessa medida. O fato de que o MST e os sem-terra
tenham assumido a iniciativa das ocupações, atuando o governo como suplente
para fazer a reforma, não indica a debilidade do Estado democrático para realizá-
la. Apenas indica que a sociedade civil, através de organizações e movimentos
populares, passou a ter um papel na nova estrutura do Estado brasileiro.

A conjuntura histórica e o tempo da questão agrária

tema da reforma agrária é, seguramente, um dos mais equivocados nos

O embates políticos e partidários deste momento no Brasil. Equivocado


pelo modo como é comumente proposto em diferentes meios; equi-
vocado pela enorme carga de subinformação que o acompanha, pelas
descabidas paixões que desperta, pela real ignorância do tema que
se manifesta em muitas das opiniões a respeito: todos parecem ter um palpite a dar
Professor do Departa-
mento de Sociologia
da FFLCH - USP

97
MARTINS, José de Souza. Reforma agrária – o impossível diálogo sobre a História possível. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000).

sobre o assunto, da apresentadora de televisão ao dirigente estudantil, e acham que


sua ocupação já os qualifica para opinar e opinar de maneira contundente e defini-
tiva. Todos parecem ter respostas, o que inclui não poucos especialistas. São ra-
ros, porém, os que tem o fundamental na produção do conhecimento e das propos-
tas necessárias à solução dos problemas sociais: as perguntas, base da indagação
séria e conseqüente e ponto de partida da reflexão objetiva.
Mesmo nos meios acadêmicos, intérpretes tardios, desinformados e
estranhos ao tema e à área, com a afoita sede de quem chegou fora de hora,
lançam-se no que chamam de “sociologia militante” na esperança de participar
de um confronto que poderá “fazer história”. Misturam ciência e ideologia,
marxismo panfletário, senso comum e descabidas raivas pessoais. Prestam um
grave desserviço aos próprios trabalhadores rurais que, não raro arriscando a
vida, optam pelo enfrentamento e pelas ocupações como última alternativa para
sair da pobreza e viver com dignidade. Minha análise, neste texto, vai deixar de
lado essas intervenções e interpretações oportunistas e deformantes.
Um balanço do estado atual do problema esbarra desde o início nesse
muro pichado de intervenções gratuitas e passionais, derivadas de motivações
inteiramente estranhas ao problema em si e à realidade de seus protagonistas mais
autênticos. Em meio a um grande número de estudos qualificados, alguns de gran-
de qualidade, baseados em pesquisas sérias e objetivas, há uma maçaroca de tex-
tos panfletários que nada acrescentam no conhecimento e na solução do problema.
Essa espécie de baderna interpretativa tem prejudicado seriamente a
ação dos protagonistas do drama agrário no país, tanto aqueles que, na socieda-
de civil, com razão histórica pedem profunda e ampla intervenção na questão
agrária, quanto aqueles que, no governo, agem no sentido de concretizar tal
intervenção. O panfletarismo se junta ao clima de comício que reduz o problema
a simplificações que o desfiguram, que lhe retiram a complexidade e a gravida-
de e que, portanto, vão progressivamente tornando-o um tema banal.
Uma reflexão sociológica sobre o estado atual do problema pede
inicialmente, portanto, uma demarcação do território da reflexão a ser feita. O
tema proposto do artigo é o da questão agrária, o modo como ela se propõe na
conjuntura atual, que seria a conjuntura do governo de Fernando Henrique
Cardoso. Seria um erro óbvio imaginar que a questão agrária se confunde com
as supostamente diferentes propostas de reforma agrária que estão presentes
no cenário do embate partidário atual e que tudo se resume a optar por uma
delas. Como seria um erro imaginar que a questão agrária foi criada pelo atual
presidente da República ou pelo atual ministro de Política Fundiária e que se
resume ao discutível da ação administrativa no âmbito do problema fundiário.
Como seria um erro, ainda, supor que a questão agrária não tem uma história,
gênese e desdobramentos históricos, sociais e políticos, que marcam e demar-
cam seu lugar na história do presente.
O ponto essencial e problemático raramente considerado, mesmo por
quem é sério e competente, é o de que a questão agrária tem a sua própria
temporalidade, que não é o “tempo” de um governo. Ela não é uma questão
monolítica e invariante: em diferentes sociedades, e na nossa também, surge em
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circunstâncias históricas determinadas e passa a integrar o elenco de contradi-


ções, dilemas e tensões que mediatizam a dinâmica social e, nela, a dinâmica
política. É por isso mesmo alcançada continuamente pelas condições cambian-
tes do fazer história. O próprio ato de intervir na questão, de um modo ou de
outro, numa perspectiva ideológica ou noutra, já altera a questão agrária. Não
só a atenua ou a agrava, como também muda-a qualitativamente, define as pos-
sibilidades de nela se continuar intervindo, as condições em que tal intervenção
pode ser feita. A questão é, portanto, essencialmente uma questão histórica.
Embora ela possa se tornar uma questão partidária e política, há cir-
cunstâncias em que nem mesmo se expressa partidariamente, perdida nas miu-
dezas de pequenos confrontos muito mediatizados por outras questões ou então
no caráter difuso que grandes confrontos históricos podem às vezes ter. No Bra-
sil, não raro, durante quase um século, a questão agrária se expressou por meio
de tensões religiosas, de confrontos sangrentos entre o catolicismo popular e o
catolicismo institucional ancorado no aparelho de estado, mesmo com a separa-
ção entre a Igreja e o Estado da era republicana. Portanto, uma questão agrária
que se torna questão religiosa, que se torna questão política, que se torna ques-
tão policial, que se torna questão militar, como aconteceu em Canudos, no Con-
testado e em vários outros episódios das lutas sociais no campo, incluindo epi-
sódios relativamente recentes, do tempo da ditadura. Um balanço apropriado do
conflito fundiário nas últimas décadas nos revelaria que ele é apenas um subtema
de conflito maior e mal definido entre o Estado oficialmente laico e a Igreja.
É nessa perspectiva que o pesquisador deve preferencialmente traba-
lhar, para ter a segurança de lidar com a dimensão apropriada de tempo dos
processos sociais que examina. Por isso, o tempo de referência destas conside-
rações é o tempo da conjuntura histórica, diferente da conjuntura política e
eleitoral, na qual se movem os partidos e os chamados militantes, mesmo, mui-
tas vezes, os militantes de causas humanitárias. Quando se diz, em relação a um
tema como este, que um partido não tem proposta alternativa, o que se está
dizendo, na verdade, é que esse partido não consegue ter uma consciência de sua
ação na perspectiva histórica, a perspectiva do tempo longo das grandes trans-
formações sociais e políticas. Ter proposta alternativa não é o mesmo que ter
um propósito proclamado num panfleto ou num programa partidário. O tempo
da conjuntura histórica implica menos julgar ações e opiniões de pessoas, e ser
contrário ao que são ou parecem ser e fazem. Implica, isso sim, considerar as
condições e conseqüências estruturais e históricas do que pensam e dizem, o
alcance das decisões que tomam, os limites dessas ações e as possibilidades de
seu alcance definidas pela circunstância histórica.
É esse o ponto de vista que me permite compreender que uma política
de reforma agrária depende de se conhecer a questão agrária para a qual ela é
uma resposta. A questão agrária é, em termos clássicos, o bloqueio que a pro-
priedade da terra representa ao desenvolvimento do capital, à reprodução ampli-
ada do capital. Esse bloqueio pode se manifestar de vários modos. Ele pode se
manifestar como redução da taxa média de lucro, motivada pela importância
quantitativa que a renda fundiária possa ter na distribuição da mais-valia e no
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parasitismo de uma classe de rentistas. Não é manifestamente o caso brasileiro,


ou não o é especialmente, embora também o seja de um modo indireto.
Aqui, o grande capital se tornou proprietário de terra, especialmente
com os incentivos fiscais durante a ditadura militar. Antes disso, em muitas
regiões do Brasil, grandes proprietários de terra haviam se tornado empresários
capitalistas, tanto na região canavieira do Nordeste quanto na região cafeeira do
Sudeste. Não se pode explicar a industrialização brasileira a partir do século
passado se não se leva em conta essa competência de grandes fazendeiros para
acompanhar as possibilidades históricas de seu tempo. Por outro lado, já na
ditadura militar, com a política de incentivos fiscais, o capital personificado
pelo capitalista, por aquele que pode tomar consciência das contradições que
perturbam a reprodução ampliada do capital, foi compensado das irracionalidades
1
da propriedade da terra como titular de renda fundiária. Essas situações, que são
É o que nos diz o in-
fluente Francisco Gra-
as do nosso país, são aquelas em que o capital personificado não se libertou da
ziano, que foi presi- propriedade da terra, como aconteceu em outros, na extensão necessária a que a
dente do INCRA – Ins- contradição entre capital e terra se manifestasse à consciência das diferentes
tituto Nacional de Co-
lonização e Reforma classes sociais como oposição de interesses e irracionalidade que bloqueia o
Agrária: “... nada com- desenvolvimento econômico e social (e político!).
prova que dar um pe- Um segundo modo, como o que ocorreu nos Estados Unidos e ou-
daço de terra para es-
sas famílias margina- tros países, é a necessidade de um mercado interno para o capital industrial.
lizadas seja a única, Esse mercado pode crescer com o crescimento da população economicamente
nem a melhor solução,
do ponto de vista do
ativa, que receba salários e possa comprar. Se as condições de vida dos traba-
interesse público. Tal- lhadores em geral e dos pequenos agricultores são ruins, é necessário que elas
vez um bom emprego melhorem para que eles ampliem sua entrada no mercado com seu trabalho ou
seja preferível ao as-
sentamento. Ou então, seus produtos. Se eles entram no mercado de produtos ou no mercado de for-
tratá-las com mecanis- ça-de-trabalho de modo restrito, reduzem as possibilidades da reprodução
mos de política social, ampliada do capital em seu conjunto. Por isso, em princípio, a modernização
assistindo-as devida-
mente, garantindo-lhes das relações de trabalho e a melhora das condições de vida dos trabalhadores
alimentação e saúde” interessa, em primeiro lugar, ao próprio capitalista. Este é um ponto que pede
(Graziano, 1996, p. 19;
Graziano Neto, 1998,
discussão: estamos falando da pobreza como empecilho ao desenvolvimento
p. 168). Graziano se do capital e, por extensão, ao desenvolvimento da sociedade, ainda que nos
esquece, como é co- limites do capitalismo. Podem ocorrer desvios significativos nessa possibili-
mum entre os que se
preocupam com a dade histórica. Numa economia que está se tornando cada vez mais dependen-
questão social do cam- te de exportação, a redução dos preços dos produtos agrícolas é essencial na
po de um ponto de vis- concorrência internacional. Na exportação de produtos industriais, o mesmo
ta meramente econô-
mico, que a luta pela ocorre, na redução dos custos de reprodução da força de trabalho representa-
terra, da qual deriva a dos não só pela alimentação, que em grande parte vem da agricultura.
luta pela reforma agrá- Portanto, até mesmo a grave anomalia de uma massa de miseráveis
ria, é também uma luta
pela inclusão, pela in- vivendo em condições sub-humanas não compromete o desenvolvimento capi-
serção social ativa, pro- talista. A exclusão se tornou parte integrante da reprodução do capital, mas se
dutiva, participante e
criativa, na sociedade,
tornou ao mesmo tempo uma anormalidade social (cf. Martins, 1998). Mesmo
é luta por dignidade e assim, sobretudo entre técnicos, há quem fale numa espécie de auxílio estatal à
respeito e não por aqui- pobreza que dispensaria a reforma agrária, custosa, e asseguraria a sobrevivên-
lo que na consciência
popular é tido como cia dos pobres em condições mínimas sem necessidade de pagar o custo de
esmola. grandes transformações econômicas e sociais, como a reforma agrária1.
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Nesse âmbito mais amplo, os sujeitos das contendas relativas à ques-


tão agrária não são, obviamente, pessoas determinadas com nome e endereço,
mas sim personificações dos dilemas e possibilidades de cada momento e da
situação social da pessoa. A conflitividade polarizada no tema da reforma
agrária propõe que se evite esse território gelatinoso do conflito de opiniões e
dos antagonismos partidários e, freqüentemente, eleitorais, para considerar o
tema tendo como referência não o governo e menos ainda o governante ou o
ministro, mas o Estado. A questão agrária está no centro do processo
constitutivo do Estado republicano e oligárquico no Brasil, assim como a ques-
tão da escravidão estava nas próprias raízes do Estado monárquico no Brasil
imperial. Tanto que o término da escravidão negra em grande parte decretou o
término da monarquia. O tempo da questão agrária é o tempo longo dos blo-
queios, dificuldades e possibilidades a que o Estado faça uma revisão agrária
de alcance histórico e estrutural, mais contida ou mais ousada.
Convém não esquecer de que sendo a questão agrária mais do que a
questão dos antagonismos de classes sociais, é também uma questão estrutu-
ral maior do que a das questões econômicas, a questão da pobreza, a questão
das injustiças sociais. Uma reforma desse tipo interessa não apenas aos po-
bres, como freqüentemente se supõe. A principal frente de luta e as principais
lideranças da luta pela reforma agrária vêm da classe média, ainda que de uma
classe média recente, e não raro de intelectuais que não têm nenhum vínculo
com a terra ou a agricultura, razão, aliás, das muitas distorções que tem alcan-
çado o debate político sobre o tema.
Estamos em face de um processo histórico em que claramente inte-
resses contraditórios se combinam e forças contrárias se empenham numa certa
mesma direção básica. Não só grupos populares estão querendo, mais do que
uma reforma agrária. Querem uma revisão do direito de propriedade ao contes-
tarem na prática a sua legitimidade. Também o Estado, e mesmo setores das
elites (como os intelectuais, a classe média, setores das forças armadas, as igre-
jas) estão empenhados nessa revisão ainda que de diferentes modos, mesmo que
se desentendam em relação àquilo em que de fato pensam da mesma maneira. A
questão agrária hoje é um conjunto de pontas desatadas desse longo e inacabado
processo histórico. É nessa perspectiva que pretendo situar a política de reforma
agrária do governo atual, em função justamente das mudanças acentuadas que
atingem sua definição na quadra histórica presente. É nessa perspectiva, tam-
bém, que pretendo situar as posições e antagonismos dos contestadores da atual
política de reforma agrária. Num caso e noutro, o objetivo é confrontar posi-
ções, orientações, decisões e ações com o que sociologicamente é o conjunto de
possibilidades históricas para concretizar uma reforma agrária no Brasil.
Não só estão ocorrendo substanciais e significativas mudanças na ori-
entação do Estado brasileiro quanto a isso, como também a sociedade, e nela os
grupos mais ativamente interessados numa reforma agrária, está passando por um
período muito rico e muito criativo no que se refere a inovações sociais. O fato de
que as inovações estejam sendo praticadas por grupos e sujeitos que aparentemen-
te se combatem, não exclui evidências muito claras de encontro e cooperação cri-
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ativa entre Estado e sociedade para realizar o que pode ser uma importante expe-
riência de reinvenção social na história contemporânea do Brasil.

As ciladas da História na fragilização da questão agrária

É evidente que há no Brasil uma questão agrária. Mas, uma questão


agrária que parece distanciada das condições históricas de sua solução definitiva,
porque esta sociedade perdeu as poucas oportunidades históricas que teve para
resolvê-la. Temos uma questão agrária administrada, sob controle, em grande par-
te porque, mesmo na máxima exacerbação da luta dos que reivindicam a reforma
agrária, ela não se revela comprometedora para o funcionamento dos diferentes
níveis do sistema econômico e do sistema político. Ela tende a aparecer residual-
mente como um problema social não referido a uma questão estrutural.
Para compreender a real natureza dos impasses atuais é preciso re-
montar à gênese da luta pela reforma agrária e às peculiaridades de seus pro-
tagonistas. Com a questão agrária ocorreu algo parecido ao que ocorrera com
o problema da escravidão. O fim da legalidade da escravidão no Brasil não foi
fundamentalmente resultado de uma luta dos escravos e sim de uma luta das
classes dominantes, sobretudo dos chamados liberais exaltados, para que os
grandes proprietários de terra fossem, eles sim, libertados do ônus econômico
e das irracionalidades econômicas do cativeiro. Houve, sim, lutas pessoais e
grupais de escravos pela própria liberdade. Mas, essas lutas nunca confluíram
para um projeto coletivo e nacional de libertação dos negros escravizados. É
significativo que a promulgação da Lei Áurea tenha ocorrido durante o gover-
no de um gabinete Conservador, constituído por bacharéis e grandes proprie-
tários de terra. O modo como se deu o fim da escravidão foi, aliás, o responsá-
vel pela institucionalização de um direito fundiário que impossibilita desde
então uma reformulação radical da nossa estrutura agrária.
A reivindicação da reforma agrária, do mesmo modo, nasceu nos anos
cinqüenta como reivindicação dos setores esclarecidos da classe média urbana,
de setores católicos conservadores e familistas, marcados por moderado e cau-
teloso empenho, de alguns setores católicos de esquerda e de uma fração das
esquerdas laicas. Portanto, mais por um impulso ideológico e por motivação
humanitária voltada para a solução das injustiças sociais do que, propriamente,
por ser expressão de uma inadiável necessidade de mudança. Geralmente, as
transições sociais lentas, como as nossas, tendem a chegar fora de hora à cons-
ciência dos setores médios desenraizados, que se sentem impelidos, não raro
tardiamente, a radicalizar as mudanças para acelerá-las. Em parte, a luta pelas
reformas de base, entre as quais a agrária, teve essas características. Minha im-
pressão, aliás, é a de que dois grandes problemas nacionais, o da violência con-
tra os posseiros da Amazônia e o do trabalho escravo na mesma região, cujo
momento agudo ocorreu nos anos setenta e nos anos oitenta, só agora chega
com um ímpeto defasado à consciência de alguns setores da classe média urba-
na, que deles não tomaram ampla consciência no devido tempo.
Justamente essa origem “fora de lugar”, na classe média, revestiu a
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luta pela reforma agrária entre nós de uma intensa ambigüidade, da qual não
se libertou até hoje. Basta ter em conta que sob o mesmo rótulo de reforma
agrária havia desencontrados projetos de intervenção no direito de proprieda-
de, sempre em nome de terceiros, os trabalhadores rurais. Grupos mais do que
antagônicos, inimigos, preconizavam a reforma agrária. Uns em nome do
conservadorismo. Outros em nome da revolução. Sem contar que as esquer-
das estavam, a respeito, radicalmente divididas. De um lado, havia uma pro-
posta de reforma agrária claramente conservadora, sobretudo a mal definida
reforma católica. De outro, havia uma proposta de reforma agrária radical, a
das Ligas Camponesas, também ela não muito clara.
A Igreja estava preocupada com a questão social do campo, mais do
que com a questão agrária, em posição oposta à do Partido Comunista e por
oposição a ele. Na linha do conhecido documento pioneiro de Dom Inocêncio,
bispo de Campanha (MG), de 1950, a Igreja reconhecia o risco político das
migrações, do êxodo rural e do desenraizamento, que supostamente lançariam
os pobres do campo nos braços dos comunistas nas cidades de destino, como
Rio e São Paulo. A Igreja passava a pensar alternativas no sentido da preserva-
ção da unidade familiar de produção, do trabalho familiar e da família, trabalho
familiar que incluía o trabalho não autônomo dos colonos das fazendas de café
no Sudeste e dos moradores das fazendas de cana de açúcar no Nordeste, cuja
continuidade era comprometida pelas migrações para o meio urbano.
A reforma agrária, ainda sem qualquer definição, passava a ser um
objetivo para ela, porém contido e limitado pelo temor de questionar o direito de
propriedade e os direitos da classe de proprietários de terra. Era uma motivação
conservadora e de direita, menos construída em cima de uma práxis social, que
ainda não tinha lugar, uma espécie de antecipação preventiva, e muito mais deri-
vada de um claro antagonismo ideológico em relação às esquerdas. Justamente
por isso, Dom Inocêncio reuniu fazendeiros para produzir sua carta pastoral a
favor de uma reforma agrária, com base numa posição claramente anticomunista.
Uma exceção anômala nas esquerdas, que poderia ter representado
a alternativa de esquerda para a questão fundiária, foi a postura das Ligas
Camponesas. O socialista Francisco Julião, também em oposição ao Partido
Comunista e por ele hostilizado, mas igualmente hostilizado pelos católicos,
procurado pelos trabalhadores de um engenho, propôs que o problema se re-
solvesse pela Lei do Inquilinato, que já existia, na qual se enquadravam os
direitos de parceiros, arrendatários e moradores. Era apenas o preâmbulo da
reforma agrária radical por ele preconizada. Mesmo assim, um radicalismo
aquém do que entendiam alguns ser o necessário. Do que decorreu o extremis-
mo de Clodomir Moraes e seu grupo, seu afastamento das Ligas, e a fracassa-
da tentativa da guerrilha em Dianópolis (GO). Na base, portanto, uma pro-
posta conservadora, campesinista, e a inquietação camponesa como base de
um radicalismo político na superestrutura. Algo muito parecido com o que
ocorre atualmente. E na mesma linha, mais adiante, a ação do Partido Comu-
nista do Brasil, secessão filochinesa do Partido Comunista Brasileiro, que
preconizava uma via camponesa para o socialismo.
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Em geral, os autores de hoje se esquecem de que, antes do golpe, os


que se inquietavam com os problemas do campo não estavam articulados por
uma interpretação unânime de causas e por unânime proposição de projetos
sociais. Os que se identificavam com as idéias do Partido Comunista Brasilei-
ro entendiam que tinha precedência em relação à reforma agrária e a ela se
sobrepunha a regulamentação das relações de trabalho no campo. A reforma
poderia fortalecer um campesinato cuja condição de classe o levaria para po-
sições conservadoras e de direita. Para esse grupo, estávamos no limiar de
uma etapa de desenvolvimento capitalista que pedia modernização das rela-
ções de produção, viabilização do trabalho assalariado e transformação dos
trabalhadores rurais numa classe operária do campo. Essas concepções per-
duraram fortemente entre militantes e intelectuais de esquerda, e ainda perdu-
ram, e foi um dos fatores da contestação surda, mais tarde, do trabalho da
Pastoral da Terra e, até mesmo, um dos fatores do aparelhismo que o atingiu.
Hoje estamos em face de uma espécie de esquizofrenia política derivada de
uma prática apoiada na realidade do trabalho familiar e de uma ideologia refe-
rida a uma classe operária teórica, que raramente se confirma na realidade.
Dessa visão do problema rural resultou, antes do golpe de 1964,
uma aliança parlamentar entre a esquerda, os trabalhistas e o que se poderia
definir como liberais e nacionalistas para viabilizar a lei de regulamentação
das relações de trabalho. Que se consumou com o que na prática foi a exten-
são das leis trabalhistas aos trabalhadores rurais, supondo-se que isso trans-
formaria as atrasadas relações do colonato no café, da moradia na cana-de-
açúcar, do arrendamento em espécie e em trabalho e da parceria em relações
contratuais e assalariadas. Era a reivindicação das esquerdas, que raciocina-
vam a partir de uma concepção de história por etapas. Aí se proclamava a
suposta superioridade histórica do trabalho assalariado sobre o trabalho cam-
ponês e familiar. Foi, assim, aprovado o Estatuto do Trabalhador Rural, em
1962, durante o governo de João Goulart, que viabilizava a interpretação le-
gal dos conflitos não como conflitos fundiários, embora muitas vezes o fos-
sem, mas como conflitos trabalhistas, embora nem sempre o fossem.
Essa vitória das esquerdas cindiu a luta no campo, esvaziando sig-
nificativamente o empenho dos que lutavam pela terra ou cuja luta tinha mais
sentido como luta pela reforma agrária do que por direitos trabalhistas (cf.
Gnaccarini, 1980, p. 177; Furtado, 1964, p. 150-151). De certo modo, am-
plos setores da esquerda institucional esvaziaram ou ao menos enfraqueceram
definitivamente a luta pela reforma agrária. Quando, nos anos recentes, em
face das óbvias evidências de radicalismo agrário, esses grupos todos, com
variados graus de relutância e incerteza, aceitaram finalmente a evidência da
força política do trabalho familiar nas singularidades próprias da sociedade
brasileira, acabaram se defrontando com um impasse criado por eles próprios.
A ação das esquerdas, já antes do golpe de 1964, dividiu e enfraqueceu a
massa dos trabalhadores rurais, segmentando-a em dois grupos com interes-
ses desencontrados: os que lutam pelo salário e pelos direitos trabalhistas, de
um lado, e os que lutam pela terra, de outro. Mesmo aglutinados numa única
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corporação sindical, a Contag – Confederação Nacional dos Trabalhadores na


Agricultura – foram raros os momentos de coincidência de propósitos e de
táticas dos dois grupos. Com freqüência, aliás, tem se falado na conveniência
de separar os dois grupos em organizações distintas.
Ficava, pois, em grande parte inviável o projeto, muito pouco ela-
borado aliás, de uma reforma agrária que transformasse as relações atrasadas
do campo em autonomia camponesa e numa economia familiar moderna. A
Igreja cometeu sérios erros e relutou comprometedoramente em assumir em
tempo a reforma agrária como meio apropriado de política social que assegu-
rasse às suas bases camponesas o direito sobre a terra, pois essa reforma a
colocaria numa relação conflitiva com os grandes proprietários de terra, dos
quais era uma aliada histórica.
Antes que a Igreja firmasse um ponto de vista oficial e uma posição
doutrinária a favor da reforma agrária, o que só se daria em 1980, com o
documento Igreja e Problemas da Terra, depois de um lento amadurecimento
de sua experiência de pastoral da terra, a ditadura teve dezesseis anos para
desmantelar os quadros das esquerdas que atuavam no campo. E sobretudo
para concretizar a própria intervenção do Estado no sentido de promover e
alicerçar uma aliança entre terra e capital que reduzia o alcance de qualquer
reforma agrária porque retirava do capital a necessidade de incluir em seus
propósitos políticos o interesse por ela. Aliança cimentada, também, no plano
político mediante a repressão policial e militar que promoveria uma limitada
reforma agrária dentro da ordem instituída pela ditadura. Aliança garantida
pela política de incentivos fiscais e de subsídios para a conversão das empre-
sas urbanas (indústrias, bancos, empresas comerciais) em proprietárias de terra.
Essencialmente, o golpe de Estado assegurara que a propriedade da terra, isto
é, a renda fundiária, continuaria sendo um dos fundamentos da acumulação e
do modelo capitalista de desenvolvimento no Brasil. Portanto, um capitalis-
mo discrepante em relação ao modelo dominante nos países hegemônicos.
Desde 1964, justamente em face dos impasses políticos resultantes
da questão agrária, que levaram ao golpe, o Estado brasileiro criou um apara-
to institucional para administrar a questão fundiária, de modo a que ela não
comprometesse e não comprometa os planos nacionais de desenvolvimento
que a têm como um dado secundário.
Não houve reforma agrária em lugar algum em que ela não se apre-
sentasse no centro dos impasses históricos. E estar no centro dos impasses
históricos depende da própria história e das contradições sociais e não do
voluntarismo político de grupos, partidos ou pessoas. Mesmo em 1964, o
problema fundiário não respondia sozinho nem principalmente pela crise po-
lítica. No Brasil de hoje, a questão agrária é, certamente, uma das fontes
mediatas dos problemas sociais, mas não a fonte imediata. Este não tem se
mostrado como o momento histórico de uma reforma agrária que ponha radi-
calmente em questão as origens das nossas injustiças sociais e que propicie
uma revisão radical dos nossos rumos históricos. As circunstâncias históricas
e as composições políticas, mesmo e sobretudo das oposições, não apontam
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nessa direção. Não o é justamente porque os protagonistas de uma eventual


revisão de curso histórico se dividiram num passado não muito distante, como
mencionei. As facções atualmente em contenda ideológica e partidária não se
deram conta disso e continuam atuando, especialmente as oposições, como se
lá atrás, os termos da emergência política da questão agrária não tivessem
sido definidos, demarcando assim o seu lugar histórico limitado nos tempos
que se seguiram e em nossos dias.
A inquietação no campo produziu, portanto, em âmbitos antagônicos,
já a partir dos anos cinqüenta e início dos anos sessenta, essas duas intervenções
no processo político que redefiniram profundamente os rumos históricos da socie-
dade brasileira e a possibilidade de mudanças a partir do campo e da questão
agrária: o enquadramento legal diferençado da questão da terra e da questão do
trabalho (que, de fato, desde a Lei de Terras, eram uma única e inseparável ques-
tão), por iniciativa das esquerdas; e a conversão maciça do grande capital em
2
“Praticamente a única proprietário de terra, por iniciativa da direita. Essas duas grandes transformações
derrota social que ocor- históricas das últimas décadas bloquearam, talvez para sempre, a possibilidade de
reu na Constituinte foi
na questão agrária, pois uma reforma agrária referida à dimensão clássica da questão agrária, a do impasse
em todos os outros histórico que inviabiliza o desenvolvimento do capitalismo.
itens houve avanços” O impasse histórico, a contradição entre terra e capital, que susten-
(Stedile & Fernandes,
1999, p. 67). tava a luta remanescente pela reforma agrária, se resolveria pelo caminho ines-
3
A necessidade de, ao perado e pelo antimodelo de um capitalismo rentista. Para administrar e con-
falar de reforma agrá-
ria, ter que conceituá-
trolar os problemas sociais e políticos que pudessem advir dessa opção, o
la ao mesmo tempo, regime militar editou o Estatuto da Terra e promoveu a reforma constitucional
como ocorre com mi- que tornaria aquela reforma agrária possível. O próprio golpe de Estado sela-
litantes e especialistas,
já é em si mesma uma ra de vez não só a modalidade de reforma agrária politicamente tolerável, mas
indicação do terreno também seu lugar limitado nas transformações históricas futuras, o que a
impreciso em que me- Constituição de 1988, editada com livre e clara participação das esquerdas, e
dram antagonismos e
contestações que não contra sua vontade, limitou mais ainda2.
se fundam na própria Não é, portanto, por acaso que o confronto atual entre as oposições
questão agrária e que
se deslocam para o
e o governo esteja profundamente marcado por questões inessenciais. Uma
terreno mais comple- delas é o empenho do MST, da CPT e de vários intelectuais de esquerda na
xo do questionamento reinvenção da reforma agrária. Uma boa parte do discurso dessas agências de
de legitimidades (cf.
Stedile & Fernandes, mediação é hoje dedicada ao conceito de reforma agrária e praticamente nada
1999, p. 157 e ss.; é dedicado à questão agrária, embora muito se fale na reforma agrária, pro-
Fernandes, 1998, p. 2; priamente dita3. O que é a questão agrária no Brasil de hoje, afinal de contas,
Abelém & Hébette,
1998, p. 246; Carnei- que justificaria a necessidade de uma reforma agrária e qual reforma agrária?
ro et alii, 1998, p. O empenho é muito mais acentuado na resposta a um problema que se supõe
267). Convém ter em
conta que, para ques-
definido do que na pergunta que poderia definir o problema a ser resolvido.
tionar legitimidades e Qualquer ato do governo em relação à reforma agrária é questionado
afirmar a própria su- em nome do fato de que não se trata de reforma agrária. Autores e militantes
posta legitimidade, é
necessário ganhar elei- dizem com freqüência que a regularização fundiária da situação dos posseiros
ções majoritariamente na extensa e complicada região amazônica e no centro-oeste não é reforma agrá-
e com margem sufici- ria e não deveria entrar nas estatísticas oficiais da reforma. Estranhíssima inter-
ente para propor alte-
rações radicais na or- pretação. Todo o atual aparato institucional das oposições para lutar pela refor-
dem legal e política. ma agrária nasceu, floresceu e se consolidou com as sangrentas lutas dos possei-
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ros, sobretudo da Amazônia Legal, para terem seu direito à terra de trabalho
reconhecido e legalizado. As grandes lutas pela terra nos anos sessenta e setenta
e ainda nos anos seguintes foram fundamentalmente lutas pela regularização
fundiária. Então, as oposições à ditadura, a Igreja (e não só a CPT) e a Contag
definiam essas regularizações como reforma agrária e clamavam por ela com
base no Estatuto da Terra outorgado pela ditadura militar.
De fato, a regularização fundiária no Brasil é, na maioria dos casos,
legítimo ato de reforma agrária. Apenas quem não conhece a realidade social
do campo pode supor que a regularização é mero ato administrativo sem mai-
or alcance. A sofrida e sangrenta resistência dos posseiros à sua expulsão
violenta da terra para beneficiar grileiros e latifundiários e viabilizar a política
de consolidação da aliança da terra com o capital, fator de esvaziamento da
reforma, impôs ao Estado brasileiro nos anos mais difíceis e repressivos da
ditadura a necessidade de atenuar e redefinir parcialmente o seu projeto
fundiário. Foi o que salvou o país de se transformar num território de enclaves
do poder absoluto do capital latifundista. Esquecer disso ou não saber disso,
desqualifica qualquer análise pretensamente crítica da reforma agrária em
andamento. A regularização da situação fundiária dos posseiros de extensas
regiões do país foi e é um legítimo ato de reforma agrária porque impõe limi-
tes ao processo expropriatório que daria ao país uma estrutura fundiária mui-
to mais concentrada e latifundista do que a atual. Chamo a atenção para a
proliferação de municípios e cidades onde essa resistência ocorreu, conse-
qüência de ações que impuseram limites ao enclavismo do latifúndio.
Um segundo questionamento da ação governamental é o da
impugnação da política de assentamentos sob o pretexto de que assentamento
não é reforma agrária. Ora, assentamento é a forma da redistribuição da terra,
que é em que consiste, no essencial, qualquer reforma agrária. Reforma agrá-
ria é todo ato tendente a desconcentrar a propriedade da terra quando esta
representa ou cria um impasse histórico ao desenvolvimento social baseado
nos interesses pactados da sociedade. Pacto que só se torna eficaz através da
mediação dos partidos políticos e no âmbito do possível. Isto é, no âmbito das
concessões que as forças em confronto possam fazer para viabilizar uma trans-
formação institucional e social necessária e inadiável em favor do bem co-
mum. E não em favor dos interesses particularistas de uma classe, ou fração
de classe, ainda que beneficiando-a de algum modo, seja ela de pobres ou de
ricos. Quando os partidos não conseguem chegar a um acordo em nome da
sociedade para viabilizar uma reforma desse alcance, abre-se o caminho para
a revolução. Mas, a revolução não depende de irritações pessoais. Também
ela depende de um consenso básico a respeito do que é necessário, mas se
tornou inviável pela via da negociação. Quem se recusa à negociação desde o
início da proposição de um problema político, não só não viabiliza seu proje-
to por caminhos institucionais como não o viabiliza por caminhos revolucio-
nários. É o que se chama de voluntarismo.
Um terceiro questionamento da ação do governo diz respeito aos
“números da reforma agrária”. O bate-boca em torno desse tema é uma clara
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MARTINS, José de Souza. Reforma agrária – o impossível diálogo sobre a História possível. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
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expressão do desenraziamento do tema da reforma agrária. Considerar assen-


tamentos todos os casos em que a família se credenciou para receber um título
de propriedade de terra inflaciona os números do êxito governamental sem
evidenciar, como é necessário, a diversidade de situações problemáticas que
pedem ao governo uma ação de política fundiária. A explicitação dessa diver-
sidade, aliás, já obrigaria o MST e a Igreja a melhorarem os seus números e
revelaria âmbitos de atuação diversificada das agências de mediação em que a
qualidade da sua ação é claramente desigual e até insatisfatória.
Os números de outras agências de mediação também têm fragilida-
des que em nada ajudam na luta em favor dos injustiçados do campo. Utili-
zam um modo de calcular a clientela potencial da reforma agrária que repete
os erros de procedimento similar adotado pela Contag durante toda a ditadu-
ra. O modo como a Contag utilizava os dados do censo introduzia um viés
óbvio no número de vítimas do regime fundiário: somava o número de assala-
riados, ao de posseiros, arrendatários e parceiros e ao de proprietários
minifundistas. No cálculo dos assalariados usava os dados do censo
agropecuário, sem levar em conta a rotatividade da mão-de-obra agrícola e o
fato de que cada trabalhador é, provavelmente, nesse censo, contado várias
vezes. Chegava a um número fantástico de mais de uma dezena de milhões de
pessoas que supostamente precisavam e pediam uma reforma agrária.
O fato de que os números de assentamentos e regularizações no
governo de Fernando Henrique Cardoso ultrapassem os trezentos mil não mede
satisfatoriamente a demanda de terra por parte do agricultor familiar, pois o
número de sem-terra nas ocupações não diminui. De qualquer modo, há um
único número realista, que é o do próprio MST, muito aquém desses números
todos. Em termos reais, a efetiva demanda por reforma agrária é constituída
pelos sessenta mil sem-terra acampados nas ocupações. É evidente que isso
não quer dizer que o problema social da terra se limite a eles. Mas, são eles
que expressam acima de qualquer dúvida uma demanda por reforma agrária
urgente. É inútil dizer que há 4,5 milhões de famílias sem-terra em todo o
Brasil, se apenas cerca de sessenta mil assumem essa identidade. Isso é o que
conta politicamente. No mínimo estamos diante de uma demanda diversificada
de reforma agrária, que reflete as diversidades regionais do país, o que pode
explicar a também diversificação das agências de mediação e o aparecimento
de várias delas que preferem encaminhar suas reivindicações por dentro das
possibilidades institucionais.
Apesar dos assentamentos e regularizações crescentemente reali-
zados, há também uma renovação cíclica crescente da clientela de reforma
agrária. Portanto, essa clientela não procede exclusivamente daquilo que pode
ser indicado por estatísticas que se referem, excetuadas a dos assentamentos
recentes e a dos acampados, a um passado em que esse problema cambiante
era diverso do que é atualmente. Raramente, os dados estatísticos de referên-
cia para considerações sobre o presente tem menos de dez anos, quando as
coisas eram bem diversas do que são hoje e quando a ação do Estado era bem
modesta em comparação com a atual.
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MARTINS, José de Souza. Reforma agrária – o impossível diálogo sobre a História possível. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
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A reforma agrária é um tema político que se propõe em termos


qualitativos e não em termos quantitativos. Não é o número de desapropria-
ções ou o número de assentamentos em terras desapropriadas ou compradas
que definem o perfil da reforma agrária brasileira, sua justeza ou não. O es-
sencial é que haja um setor ponderável da sociedade reivindicando a amplia-
ção do lugar da agricultura familiar no sistema econômico e que em parte essa
agricultura familiar esteja nas mãos de pessoas que se ressocializaram na luta
pela reforma agrária e nela se politizaram. É o que assegura no campo e no
interior a diversificação das oportunidades de trabalho e a modernização não
só econômica, como também das mentalidades e das relações sociais. Mesmo
que a referência ideológica seja equivocada e insubsistente, posta além da
realidade histórica de quem luta pela reforma ou é por ela alcançado. É uma
descabida perda de tempo essa querela sobre números que, tanto num lado
como no outro, representam algo diverso do que está sendo discutido.
É evidente que o MST, com apoio da Igreja, tem uma proposta de
reforma agrária em que a sua forma difere profundamente da forma que lhe dá
o Estado brasileiro desde o Estatuto da Terra e, pode-se dizer, desde a Lei de
Terras de 1850. A reforma preconizada pelo Estado esteve longamente
subjugada, e não só agora, pelo princípio jurídico de que a propriedade da
terra neste país é propriedade individual ou de uma associação de indivíduos.
Passa, portanto, por um direito individual e não por direitos coletivos ou co-
munitários, que são os que dão sentido às propostas do MST e da Igreja, mais
naquele do que nesta. Foi somente em 1980, que a CNBB em seu documento
Igreja e Problemas da Terra reconheceu e pediu o reconhecimento de um
direito costumeiro muito presente entre os pobres de amplas regiões brasilei-
ras, que conflitava com o direito dominante e os desfavorecia nos confrontos
com a justiça oficial. A Constituição de 1988, de algum modo incorporou esse
reconhecimento. Abriu caminho para um reparo parcial, embora tardio, das
injustiças fundiárias que decorreram do direito absoluto de propriedade im-
plantado pela Lei de Terras. Esse direito anulara o direito costumeiro fundado
no anterior regime de sesmarias, um direito baseado na justa concepção de
que o trabalho e a obra do trabalho têm precedência moral em relação aos
privilégios de um direito de propriedade fundado no poder ou na compra e na
venda. Ao menos, abriu um leque de alternativas para uso social do solo.
A eficácia das intervenções do MST, e sua extraordinária prática de
reinvenção social nos assentamentos em que está presente, tem se beneficiado
amplamente dessa conquista, embora seus dirigentes e seus militantes não o
saibam. A que se junta a abertura de canais de cooperação do Estado, que a
reforçam ainda mais nesta conjuntura histórica de fortalecimento da socieda-
de civil e seu protagonismo. Além do extenso número de assentamentos e
regularizações, a cooperação técnica e creditícia, mesmo que na oscilante e
até insuficiente disponibilidade de créditos. O que ao mesmo tempo mostra
que essas alternativas são inúteis se a reforma agrária ficar exclusivamente
nas mãos de técnicos e burocratas públicos, pois são alternativas que depen-
dem de uma ação direta da sociedade e de uma mística de inovação que o
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empregado do Estado raramente tem. Nos assentamentos, o trabalhador fami-


liar movido por essa mística pode ousar além do imaginável pelo racionalismo
formal e burocrático de técnicos e funcionários governamentais.
Portanto, qualquer que seja o número de famílias assentadas ou
cuja posse de terra foi regularizada, que ultrapasse o número dos acampados,
representa um ganho histórico na luta pela reforma agrária, pois representa
inclusão de pessoas no âmbito do direito e do contrato social, inclusão de
excluídos. Representa, também, inclusão na alternativa da agricultura famili-
ar com apoio institucional do Estado e a criação de uma situação social que
torna amplamente viáveis as inovações sociais propostas pelos beneficiários
em nome da mística acima referida e com base no protagonismo histórico da
própria sociedade civil. Nesse plano, o governo se situa adiante da reivindica-
ção popular ativa. Ao mesmo tempo, a estabilidade do número de acampados
que reivindicam assentamento denuncia insuficiências da política fundiária,
pois nos fala de uma contínua recriação de uma forma perversa de pobreza,
que é a exclusão e a privação da inserção ativa nas possibilidades sociais e
econômicas das novas tendências históricas.
Já o desencontro de opiniões quanto ao que deva e como deva ser a
reforma agrária, sobretudo entre os insatisfeitos com a reforma, nos põe diante
de uma pobreza de consciência histórica que decorre da desinteligência entre a
prática e a teoria dessa prática. Este último é, sem dúvida, o mais grave dos
problemas, pois, em nome das paixões e dos interesses partidários e eleitorais
de uma classe média profundamente dividida e amplamente desprovida de cons-
ciência histórica, dificulta, restringe ou mesmo inviabiliza um serviço aos po-
bres num momento dramático da economia mundial. Uma classe média cujo
antagonismo intransigente em relação ao que vem sendo feito no âmbito do
possível é, na história de nosso país, muito mais expressão de uma postura já
antiga de tutela iluminista dos pobres e desvalidos, muito mais resquício de uma
cultura de tutela gestada na casa-grande, muito mais expressão de uma mentali-
dade de culpa, pena e caridade do que de uma mentalidade revolucionária.

A fabricação da História na disputa de legitimidades

O desencontro de interpretações sobre os números da reforma agrá-


ria, entre o entendimento que deles têm o MST, a Igreja e o PT, de um lado, e
o entendimento que deles tem o governo, de outro, revela um território de
ficção de grande importância sociológica e política para a compreensão dos
confrontos atuais em relação ao tema. Essa é uma ficção reveladora do que é,
no conjunto, o embate entre um lado e outro. A compreensão desse conjunto é
fundamental para situar e definir o estado da questão agrária e da reforma
agrária possível nesta conjuntura histórica. Como mostrei antes, os números
utilizados não nos indicam a natureza e o tamanho do problema. Sobretudo,
não nos indicam quem são os verdadeiros sujeitos da luta pela reforma agrá-
ria. Essa parece ser a grande dificuldade do MST e da Contag, e dos que os
apóiam, e é, ao mesmo tempo, a grande dificuldade do governo. Temo que aí
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resida um fator de afastamento potencial entre essas agências de mediação da


luta pela terra e os reais protagonistas dessa luta.
Uma outra expressão do caráter ficcional dos números é a ficção da
História fabricada, em que agências ou grupos de mediação da luta dos traba-
lhadores rurais buscam legitimidade para sua justa intervenção na conversão da
luta pela terra em luta pela reforma agrária. Essas agências têm uma concepção
difusa do processo histórico sobre o qual incide a sua prática. Não é uma con-
cepção fundada diretamente em sua rica experiência nem é concepção fundada
em boa teoria. Antes, é concepção que resulta de mediações ideológicas utiliza-
das como suporte de uma intervenção em que o protagonista real não tem condi-
ções históricas de se interpretar diretamente. Esse é sempre um complicado tema
na história das lutas camponesas. Está relacionado com o fato de que as media-
ções interpretativas da luta pela terra são realizadas por agentes de classe média
e a ação se apóia numa visão do processo histórico que é própria dos setores
militantes e radicais dessa classe e não do campesinato4.
No meu modo de ver, os intelectuais orgânicos diretamente envol-
vidos na luta pela reforma agrária não só, no geral, partidarizaram sua visão
do problema, a partir de sua própria inserção de classe, o que já é um
complicador do entendimento dos confrontos atuais. Mas, também, estão
empenhados em criar um senso comum que promove radical revisão da histó-
ria da sociedade brasileira com o objetivo de legitimar a luta política de que
participam. Esperam com isso legitimar historicamente o pleito da reforma
agrária e o resultado acaba sendo exatamente o oposto. É fácil identificar em
seu discurso categorias referidas à necessidade de uma revisão histórica que
atribua aos pobres um lugar central na história social do país, mesmo que à
custa de distorções óbvias. Esse revisionismo populista não se limita aos tra-
balhadores rurais. Por conta das mesmas mediações de classe média, ele se
estende aos grupos étnicos e raciais, como os índios e os negros e se estende a
outras classes sociais, como a classe operária. Estou inteiramente de acordo
com a necessidade epistemológica de uma revisão do que se sabe sobre o
lugar social das diferentes categorias sociais no processo histórico. Mas, es-
tou inteiramente em desacordo com a ideologização dessa revisão, que deve
ser feita com critérios científicos rigorosos.
Os resultados da revisão ideológica são melancólicos. Os militan-
tes negros fetichizam a história de Palmares e omitem informações importan-
tes para que se compreenda porque de fato as populações escravas neste país
nunca conseguiram realizar uma insurgência que as tornasse ativas protago-
nistas de transformações sociais que as beneficiassem. Omitem os conflitos
entre etnias negras, omitem as enormes diferenças culturais entre essas etnias, 4
Estou utilizando a pa-
omitem o envolvimento de etnias inimigas na captura, escravização e venda lavra “campesinato”
porque é designação
de negros de outras etnias aos traficantes brancos, omitem que em Palmares incorporada, pela via
também havia escravidão e que, por isso, a longa luta ali desenvolvida nada política, ainda que
tinha a ver com os princípios da cidadania proclamados mais de um século indevidamente, ao
vocabulário corrente
depois pela Revolução Francesa. A concepção de liberdade que os palmarinos no trato da questão
conheciam e praticavam não era muito diferente da relativa liberdade das con- agrária.
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cepções dos senhores de escravos, uma liberdade circunscrita aos limites de


um estamento, apoiada, portanto, em desigualdades sociais profundas.
O mesmo se pode dizer de Canudos. Já ouvi um professor univer-
sitário afirmando num documentário que a luta de Canudos era uma luta
socialista e igualitária, pela socialização da propriedade da terra. E ouvi,
também, o professor José Calasans, competente especialista na história de
Canudos, contrapondo-se a essa esdrúxula interpretação com ceticismo, ci-
tando nominalmente moradores e participantes da guerra que eram comerci-
antes e proprietários. Sem contar que a luta de Canudos foi em grande parte
uma luta camponesa, mas não foi diretamente uma luta pela terra, que lá não
tinha o menor sentido. Canudos foi uma guerra religiosa, em que os mora-
dores tiveram como inimigos e algozes o Estado e a Igreja. Tanto um quanto
outra, de diferentes modos, se envolveram no desencadeamento da guerra
porque estavam divididos por suas próprias crises: o Estado e seu
5
Marcelo Sampaio Car- republicanismo de cúpula, recente e incerto; a Igreja e os problemas inter-
neiro et alii, em seu nos derivados da romanização. Sobretudo, por um e por outra Canudos era
estudo sobre a reforma
agrária no Maranhão, considerado um perigo político e um perigo religioso. Sem contar que os
insistentemente cha- sertanejos de Canudos não declararam guerra a ninguém: foram atacados,
mam a atenção para o como tem acontecido em todas as lutas camponesas deste país, lutas passi-
grande desencontro
cultural que há entre vas e defensivas. Canudos foi resultado do grande desencontro que separa,
técnicos do governo e ainda hoje, neste país, as elites do povo, desencontro que aparece
assentados, sublinhan-
do que os técnicos são
freqüentemente entre mentores e povo nas lutas recentes pela terra. As eli-
“completamente igno- tes políticas e sua massa, a classe média, não têm a menor compreensão dos
rantes acerca do cálcu- códigos que explicam o mundo e regem a vida dos pobres no Brasil. Indício
lo camponês no que
toca à produção para do ainda forte caráter estamental de nossas classes sociais. Isso vale tanto
autoconsumo e para para os setores da elite que estão nos movimentos sociais quanto para os
comercialização” (Car- setores da elite que estão no “outro lado”, no Estado5.
neiro et alii, 1998, p.
275). Convém ter em Um dos resultados desse desencontro tem sido o da extemporânea
conta o risco de igno- tomada de consciência de que a história do país é uma história de injustiças
rância semelhante do
outro lado, o dos inte-
sociais acumuladas, de violências reais e simbólicas incorporadas na rotina
lectuais que apoiam a de vida dos trabalhadores do campo e da cidade. E outro resultado é a cons-
luta pela terra e se em- ciência maniqueísta desse processo, particularmente clara nos confrontos
penham na causa da
emancipação dos po- relativos à questão agrária.
bres da terra. O proble- No meu modo de ver, por essas razões, os grupos de mediação
ma mais comum é o do concebem a questão agrária, tardiamente, como se ainda fosse predominan-
resgate etnográfico de
categorias do pensa- temente uma questão estrutural e histórica. Essa concepção se baseia em
mento popular sem o vários deslocamentos, que têm a ver com o método de leitura da realidade.
correspondente resgate
da lógica camponesa
Usam um método que acumula, que soma, informações históricas. À medi-
mediadora das possibi- da em que mais informações são colhidas sobre a história dos pobres é como
lidades do processo se elas se agregassem para constituir um tipo humano, um pobre sempre
histórico, o possível
próprio da dialética, igual e sempre o mesmo ao longo da história, o que é uma abstração. Esse
sem o que caímos num pobre não existe, não é real nem tem personalidade política. Desse modo, a
reducionismo que com- história aparece como uma soma; não como um movimento de tensões e
promete seriamente os
propósitos do apoio e desencontros, um contraditório processo, uma sucessão de momentos, em
da identificação. que a “bondade” e a “maldade” (se é que se pode falar assim)
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MARTINS, José de Souza. Reforma agrária – o impossível diálogo sobre a História possível. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
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intercambiam-se entre categorias sociais, conforme a circunstância. Isso


nos impede de ver que no processo reprodutivo de uma sociedade profunda-
mente marcada por injustiças, a reprodução só é possível com algum grau
de conivência da vítima cooptada pelas circunstâncias e pelas próprias ur-
gências da vida. A História não é apenas um contínuo processo de rupturas.
É, também, um processo de contínuas recriações e reiterações.
No camponês de hoje já não subsiste o camponês do passado, senão
como um conjunto de superações. Quando se fala em 500 anos de injustiça,
cria-se um slogan vazio baseado nessa epistemologia da acumulação, portanto,
baseado numa concepção estática da história. Estática e quantitativa, em que as
quantidades são interpretadas ao contrário do que são, o que é próprio do racio-
cínio conservador. Não há aí uma história da práxis, mas uma anti-história,
uma história que tem apenas vítimas e não agentes ativos da transformação
social. Mesmo silenciado e mesmo por vias indiretas o homem comum tem sido
um protagonista da História. Sem essa compreensão, a luta política em nome
dos pobres do campo se torna um equívoco e até um engodo.
Nesses grupos de mediação, nota-se uma tentativa de transformar
num corpo ideológico coerente o que é um conjunto de resíduos de consciên-
cia e de possibilidades próprios de diferentes momentos históricos em que
tais possibilidades não se consumaram. Uma petrificação ideológica que pre-
cisa ser explicada e superada, se queremos de fato nos comprometer com o
destino dos pobres. A substancialização dessas sobrevivências só podem ser
explicadas pela desconexão entre prática e teoria. Elas se corporificam num
extenso antagonismo maniqueísta, o que talvez explique sua persistência sem
a necessidade da verificação na práxis. Estando postas em termos muito ge-
rais, elas se confirmam tanto quando as reivindicações são atendidas quanto
quando não o são, na medida em que se propõem em termos de uma espécie
de luta entre o bem e o mal. Esse maniqueísmo cultural é bem característico
do nosso senso comum e de nossa cultura popular, uma cultura de excludência
que, ao mesmo tempo, gera o conformismo maniqueísta e simplificador, que
justifica tanto os ganhos quanto as perdas.
A durabilidade em geral curta dos movimentos sociais e, entre nós,
sua mais ou menos rápida conversão em organizações, talvez se explique por
essa dinâmica redutiva, que não cobra da ideologia a necessidade de sua verifi-
cação contínua na práxis. Portanto, um discurso ideológico que, a despeito de
seu radicalismo, se conforma com uma práxis aquém das metas ideológicas e,
portanto, se dilui na dimensão propriamente reprodutiva (e conformista) dos
processos sociais. Trata-se de um falso radicalismo. Por isso, comporta a congérie
surrealista de orientações “teóricas” discrepantes, antagônicas e desencontradas:
do personalismo católico de Mounier à pseudo dialética do estruturalismo tomista
de Althusser, um estruturalismo mecanicista e antidialético que busca coerênci-
as formais entre estrutura e superestrutura e não a incoerência revolucionária
dos descompassos históricos que fecundam a práxis e a teoria.
Os que lutam pelos trabalhadores rurais querem uma reforma agrá-
ria confiscatória e punitiva para o latifúndio. Esse é certamente o ponto que
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de modo mais claro revela uma certa anulação da concepção de história. No


sentido de que os débitos do passado devem ser pagos agora. O latifúndio do
passado, porém, era outra coisa. Como mostrou Caio Prado Jr., a fazenda era
um mundo, uma comunidade de relações entre estamentos e entre etnias, uma
forma peculiar de auto-suficiência, de exploração e desigualdade, permeada
por uma violência singular. Hoje o latifúndio é renda fundiária, fonte de um
tributo social ao proprietário privado de terra, reserva de valor, instrumento
de intervenção especulativa na economia. É o presente que justifica a reforma
agrária e não o passado. Li recentemente, no título de um livro sobre o tema, a
expressão “revanche camponesa”. Portanto, uma certa idéia negativa de vin-
gança, uma negação passiva e imobilista, mas não a negação da negação pró-
pria da dialética das superações e da revolução. Esse é o complicado débito
teórico que informa o confronto entre MST e Estado, um débito que não afir-
ma a positividade da sociedade contra o Estado, mas apenas a particularidade
de um grupo social circunscrito.
Isso aparece, também, na idéia de 500 anos de resistência, em moda
nestes dias, como se não houvesse nenhuma diferença entre os momentos his-
tóricos, como se os camponeses de hoje estivessem há quinhentos anos espe-
rando por justiça. E os índios também. Os injustiçados morreram e seus des-
cendentes já não têm condições nem de perdoar nem de receber a justa com-
pensação moral e material pelas injustiças sofridas, das quais resulta a situa-
ção em que se encontram. Mudou, também, a própria concepção de justiça,
sem contar que era outra a idéia que eles próprios tinham dela. Em nenhum
momento se leva em conta que os camponeses que hoje majoritariamente lide-
ram o MST são originários do Sul, descendentes de imigrantes, não raro no
passado envolvidos no massacre das populações indígenas na disputa pela
terra, como aconteceu em Santa Catarina nas lutas de colonos contra os
Xokleng6. As histórias recentes de Rondônia (do confronto com os Suruí e os
6
João Pedro Stedile, Uru-eu-wau-wau) são histórias de conflitos entre colonos descendentes de
em seu depoimento a
Bernardo Mançano
imigrantes do sul e do sudeste e populações indígenas frágeis e desampara-
Fernandes sobre o das. E o próprio MST tem sua raiz imediata na expulsão dos colonos de as-
MST, relembra a im- cendência européia pelos índios Kaingang de Nonoai, cujas terras arrenda-
portância da expulsão
de 1.200 famílias de vam da Funai mediante pagamentos ínfimos que não redundavam no bem
arrendatários brancos estar dos índios, impedindo que os próprios índios as cultivassem.
da reserva de Nonoai, É, portanto, necessário compreender a História como ela é, como
pelos índios Kaingang,
nos episódios precurso- processo contraditório em que o negativo e o positivo se opõem, se alternam,
res do surgimento da se combinam e se superam na produção do novo: novo momento, nova situa-
organização. E subli- ção, novas possibilidades. O campesinato do sul tanto produziu o colono que
nha que os expulsos
punham a culpa de sua massacrou ou explorou índios até recentemente, quanto, no período relativa-
situação nos índios (cf. mente recente, produziu os agentes da luta pela terra e pela reforma agrária,
Stedile & Fernandes,
1999, p. 25-26). Eles
quanto produziu ainda a intelectualidade orgânica em que se constituem os
ocupavam as terras dos cleros brasileiros, majoritariamente originários do sul e de famílias campone-
índios, que viviam na sas, responsáveis pela admirável linha de pastoral social de católicos e luteranos.
miséria, pagando à
Funai um ínfimo arren- Desconhecer essas contradições não ajuda nem um pouco a firmar uma legíti-
damento. ma bandeira de reivindicação social. Essas contradições são justamente
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indicativas de como as pessoas e os grupos sociais, ao longo das gerações,


podem se transformar profundamente em direção a um ser humano
crescentemente humanizado, emancipado e dotado de grande senso de justiça.
No ambiente que dá sentido à atuação da CPT e do MST e ao seu
oposicionismo, tem havido uma busca de compensação para essas omissões nos
chamados pedidos de perdão. Como o da CNBB, recentemente, que pediu per-
dão pela complacência e conivência da Igreja com a escravização de índios e
negros, pedido que se materializará em cerimônias e rituais previstos para o ano
2000, o ano do Jubileu. Pode-se compreender a importância do gesto simbólico.
Mas, é justamente um gesto que anula o sentido da história, que atribui aos
protagonistas do passado o pecado do massacre e da escravização. Mas, alguém
poderia dizer que a Igreja continua fazendo trabalho missionário entre os índios
e que a anulação cultural do outro continua em muitos de seus setores. Embora
se deva reconhecer que, com a Igreja ou sem a Igreja, setores laicos da sociedade
e do Estado também realizam seu “trabalho missionário” junto às populações
indígenas e pobres. Um trabalho que as violenta culturalmente, sendo justo e
necessário um missionarismo de contestação orientado pelo propósito da eman-
cipação do outro das injustiças que o degradam e da violência cultural que o
aniquila, como de certo modo fizeram os jesuítas no Território das Missões.
O pedido de perdão é generoso e do ponto de vista ético é pedagógico
e educativo. Mas, anula o sentido da história porque apaga, desse modo, as
formas concretas de inovação e de consciência na circunstância de cada época.
Na história da Igreja houve ações orientadas no sentido da emancipação das
vítimas do cativeiro, como houve deliberadas ações no sentido de desconhecer a
humanidade dos cativos. No pedido de perdão há a suposição historicamente
equivocada de que tanto as pessoas como os grupos institucionais são culpados
por não terem pensado adiante de sua época. Convém lembrar, que quem pensa-
va adiante de sua época, nesses tempos recuados, ia para a forca ou era queima-
do vivo. O pedido de perdão, se não for devidamente situado pelo magistério
pastoral, instrumentaliza a história contra a própria História para legitimar e
justificar sem mediações os conflitos do presente. Uma nulificação da história
que anula a historicidade do presente e que justifica o confronto ideologicamen-
te maniqueísta entre MST, CPT e Igreja, de um lado, e Estado do outro. O que
dá à luta pela reforma agrária características de uma guerra santa que, como
toda guerra santa, é uma guerra sem alternativas e sem saídas políticas.
Essa tendência, no meu modo de ver, começou a tomar conta da
ação dos agentes de pastoral a partir do final da ditadura, momento em que os
bispos se afastaram do que chamavam de pastoral de suplência. Desse modo
devolviam aos leigos a direção das grandes e significativas propostas da Pas-
toral da Terra e das outras pastorais sociais. Esse afastamento aproximada-
mente coincidiu com a decisão de alguns agentes de pastoral de laicizarem a
luta pela terra através da fundação do MST, uma decisão apropriada num
momento em que se lutava pela expansão das liberdades civis.
Mas, os leigos, por força das características da prática desses grupos
de mediação, radicalizaram suas concepções e sua atuação a partir de orienta-
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MARTINS, José de Souza. Reforma agrária – o impossível diálogo sobre a História possível. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000).

ções ideológicas que acentuavam o confronto e a polarização. Deixaram em


segundo plano o sistema de concepções referidos à idéia de pessoa do
personalismo de Mounier e da doutrina social católica7, que até então fora a
base da intervenção dos bispos na defesa das comunidades alcançadas pelos
conflitos fundiários. Em grande parte, o recurso ao que pode ser chamado de
marxismo vulgar, substancialmente diverso do marxismo clássico8, foi uma ten-
tativa de encontrar uma definição concreta, uma cara, para os protagonistas dos
conflitos que pareciam propor a emergência de um novo sujeito histórico. Novo
não por sua novidade. Mas, novo por sua consciência e sua luta: enfim os traba-
lhadores da terra decidiam emergir das sombras e da passividade e reivindicar.
Obviamente, na luta pela terra não havia a polarização ideológica que tenderia a
aparecer na sua mediação pastoral, sobretudo mais tarde. A radicalidade cam-
ponesa é menos dicotômica, mais rica e culturalmente muito complexa. A medi-
ação pastoral laicizada tende a simplificar os conteúdos dessa luta, uma luta que
não se resume à luta pela terra, como aliás indica a experiência do MST nos
assentamentos, mas que se estende à revitalização da família e seu mundo.
É evidente que se posseiros resistiam ou se queixavam, estavam
expressando um antagonismo objetivo com quem os expropriava e com quem
os explorava. Na conjuntura histórica da ditadura militar, isso significava con-
fronto não só com os grandes proprietários de terra e grileiros, mas confronto,
também, com o Estado que a estes estimulava, subsidiava e protegia com seu
modelo militar de ocupação da Amazônia. Para uma igreja missionária, como
7
Esta frase de João a Igreja na Amazônia, não havia qualquer outra alternativa. Aceitar o progra-
Pedro Stedile indica ma oficial e suas conseqüências era o mesmo que renunciar ao trabalho missi-
os efeitos dessa inver-
são de referências: “O onário. É óbvio que houve muitas descobertas e muitos encontros nessa ad-
único debate que con- versidade. Sobretudo, a notável insurgência moral e religiosa de bispos, pa-
seguimos, nessa épo- dres, freiras e leigos contra brutalidades e injustiças.
ca, era pelo viés idea-
lista, cristão” (Stedile O confinamento das igrejas em relação à alternativa escolhida pelo
& Fernandes, 1999, Estado criou a circunstância própria para que valores fundamentais do catoli-
p. 96) (grifo meu).
8
Discordo de Zander
cismo e do cristianismo fossem revigorados e para que um certo humanismo
Navarro quando ele de fundo religioso reafirmasse as opções evangélicas de bispos e agentes de
fala em “atoleiro con- pastoral. Mas, numa situação altamente politizada pelo Estado, e repressiva,
ceitual do marxismo
clássico” para referir- as alternativas antagônicas que se abriam pediam a politização da visão de
se ao marxismo que mundo católica, sobretudo a necessidade de definir e compreender as catego-
informa a ação do rias sociais dos que eram vítimas da injustiça e pediam misericórdia.
MST. Não há nada de
propriamente clássi- A aproximação dos católicos de esquerda, educados na tradição da
co nesse marxismo Ação Católica, com os grupos organizados de esquerda, apoiados em corpos
reducionista que che-
ga até aos agentes de
doutrinários fechados, durante a ditadura militar, permitiu que os católicos se
mediação da luta pela apropriassem dessas doutrinas para alargar sua compreensão da realidade so-
reforma agrária por cial com a qual lidavam. A pobreza metodológica desse marxismo simplificado
meio de textos e de
uma sofrível pedago- não lhes permitiu, porém, que se dessem conta do grande desencontro que havia
gia de vulgarização entre a pobreza da teoria e a riqueza da prática no trabalho pastoral que se abriu
de origem ou de ins- inicialmente na região amazônica e depois no Brasil inteiro. Esse é certamente o
piração althusseriana
(cf. Navarro, 1996, p. mais grave impasse do momento na atuação da CPT e claramente na atuação do
20 (nota)). MST. Boa parte de seu projeto supostamente alternativo se perde no redutivismo
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MARTINS, José de Souza. Reforma agrária – o impossível diálogo sobre a História possível. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
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ideológico que anula justamente o que é de fato riqueza de possibilidades e


possibilidade do alternativo em sua experiência de base. Esse simplismo tem
sido agravado por intelectuais comprometidos com partidos políticos identifica-
dos com uma tradição teórico-ideológica laica e iluminista, de raízes burguesas,
incapaz de lidar com as utopias, com o simbólico e com as crenças. Um materi-
alismo mambembe que se propõe a si mesmo como um substituto das religiões
e retira da práxis dos trabalhadores rurais e dos militantes a mística que a anima
e que a faz poderoso meio de inovação social.

O caráter cíclico da questão agrária e o historicamente possível

A ditadura foi, possivelmente, o último episódio do movimento


pendular que, no regime republicano, deu vazão às necessidades políticas
centralizadoras do Estado nacional, alternando-as com a força do poder local,
regional e oligárquico (cf. Leal, 1975). Esse movimento pendular se manifes-
tou na alternância de ditadura e democracia ao longo deste pouco mais de
século da República e expressa o momento inconciliável das contradições
políticas presentes na constituição do Estado nacional. Foi também o movi-
mento que condenou a democracia em nosso país e as ações cidadãs da socie-
dade civil a um confinamento restritivo no interior de uma estrutura política
clientelista e oligárquica. Sempre que aqui se lutou por um regime democráti-
co, essa luta carregou consigo, como aliado inevitável, os partidos que repre-
sentam o poder pessoal e o oligarquismo. Porque, convém lembrar, essa tem
sido, contraditoriamente, a base do nosso federalismo e do nosso liberalismo
(cf. Leal, 1975; Martins, 1994). São muitas as indicações de que esse casulo
de contenção pode estar sendo rompido, de modo a viabilizar a liberdade de
manifestação da sociedade civil. Já com base no direito à diferença e não com
base em uniformidades totalitárias, a partir de referências ideológicas outras
que não as decorrentes das formas tradicionais de dominação. É verdade que
estamos, também, presos a um novo enredamento de contenção do ritmo das
transformações sociais: as alianças cruzadas.
Há no país partidos antioligárquicos eleitoralmente representativos
o suficiente para constituir uma frente política que precipite o Brasil na
modernidade política. Mas, que não se aliam entre si. Antes, são marcados
por um confronto intolerante que torna essa via impossível. Parece não restar
outra alternativa senão a do que estou chamando de alianças cruzadas: cada
partido progressista se alia com a oligarquia que pode. Assim como o PSDB
se aliou ao PFL e a outros partidos que compõem o pacto de sustentação do
governo atual, o PT, por sua vez, neste mesmo ano de 1999, vem fazendo
alianças táticas mais complicadas ainda, de que destaco a aliança com o ex-
presidente Itamar Franco e, sobretudo, a aliança com a UDR, na Comissão de
Agricultura, na votação da questão das dívidas dos produtores rurais. Portan-
to, o pacto que viabiliza o governo e o regime atinge a todos, mesmo aqueles
que se imaginam fora dele. É verdade que na falta das alianças cruzadas os
remanescentes do oligarquismo, do populismo de direita e da própria ditadura
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teriam condições de se juntar numa poderosa frente política capaz de pôr em


risco o regime atual. Mas, também eles estão divididos.
De fato, a Constituição de 1988 (e a legislação decorrente) e o “pacto
político” que nela se confirmou apontam nos seguintes sentidos: a) modernização
e empresarialização das oligarquias, que ocorreu sobretudo durante a ditadura,
através da aliança entre o capital e a propriedade da terra; b) descentralização
política, com maiores destinações de recursos públicos aos estados e municípios
(o que em outras épocas significou o fortalecimento das oligarquias e a descentra-
lização do poder nacional); c) fortalecimento político do governo central, com
maiores poderes na definição das diretrizes no uso dos recursos públicos, com
formas e proporções de gastos definidos previamente pela Constituição federal ou
em leis federais; d) possibilidade de atribuição de deveres federais aos governos
locais, como é o caso da reforma agrária, da saúde e da educação pública.
Portanto, no geral, uma conciliação delicada entre poder local e poder
nacional, com atribuição de responsabilidades federais aos estados e municí-
pios e, por extensão, às comunidades locais. O risco de repetir-se o
reavivamento do clientelismo político municipal e regional parece atenuado
pela tutela das grandes diretrizes de política social, econômica e educacional
por parte do governo federal. Atenuado, mas não suprimido.
É possível, pois, que a transição e a Constituição de 1988 tenham
inaugurado um longo período de estabilidade política, na medida em que evitam
que o federalismo e o localismo inviabilizem a nação. Estamos em face de um
pacto em que os conflitos sociais e políticos rotineiros numa democracia, qual-
quer que seja ela, já não podem alimentar essas polarizações estruturais e bási-
cas do nosso sistema político e levar à ingovernabilidade do país. Uma saída
conciliadora que evita os inconvenientes do presidencialismo, através de um
presidencialismo informalmente parlamentarista, se é que se pode defini-lo as-
sim. A presidência já não pode ser exercida como variante do poder pessoal,
com características monárquicas, como está na expectativa popular e nos pres-
supostos do radicalismo pequeno-burguês de vários grupos de esquerda envol-
vidos na luta pela reforma agrária. A governação, no novo ordenamento políti-
co, pede a corresponsabilidade de todos os setores sociais e políticos do país,
sem que isso afete a liberdade de consciência e de filiação partidária. Os muni-
cípios e os estados é que se tornam o território do alternativo, cabendo à União
propor e gestir as causas e processos supralocais, supra-regionais e até mesmo
suprapartidários, como é concretamente o caso da reforma agrária. Estamos,
provavelmente, em face de uma redefinição prática das funções da presidência
da República, em face de sua especialização, e de uma redefinição histórica das
funções da União. Esse é o ponto de compreensão mais difícil.
Em outras palavras, o novo ordenamento propõe o fortalecimento
da sociedade e dos movimentos sociais que se manifestam por ela em face do
Estado e o recolhimento do Estado nacional a funções reduzidas e ordenadoras.
Em grande parte, portanto, o chamado “estado mínimo” tem entre nós as fun-
ções de desoligarquizar paulatinamente o Estado e de atribuir à sociedade
civil ações e iniciativas que lhe deveriam ser próprias e que foram viabilizadas,
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embora monopolizadas, pelo Estado desde, pelo menos, a Revolução de 1930.


Essa atribuição, porém, implica num novo pacto entre o Estado e a sociedade,
o pacto da ordem e da lei e nele o pacto da atualização e modernização da lei,
até mesmo por iniciativa popular. A sociedade, portanto, passou a ter até mes-
mo funções legislativas diretas no caso em que a delegação de vontades, atra-
vés do voto, não dê conta de todas as demandas sociais.
No meu modo de ver, as complicadas transformações que estão ocor-
rendo no país se explicam nesse quadro de referência e é por meio dele que
estou procurando compreender os desencontros entre o MST e as oposições,
de um lado, e o governo, de outro. Para, no final, procurar entender que rumos
estão de fato abertos ou se abrindo como caminhos possíveis para ações e
propostas de resolução dos problemas sociais, dentre eles o problema da po-
breza no campo. Trata-se de saber qual é o possível que se abre diante de nós
e em que medida as posições e ações do governo, de um lado, e dos que a ele
se opõem, de outro, sobretudo no que se refere à reforma agrária, correspondem
a esse possível ou se colocam aquém ou adiante dele. Trata-se de uma refle-
xão sobre as mediações e as condições objetivas da práxis dos poderes, gru-
pos, classes e movimentos sociais que se crêem atuando em função das possi-
bilidades objetivas do momento histórico. Tudo sugere que mesmo os grupos
que se consideram dotados do mandato da História e até do mandato divino
estão muito aquém dessas possibilidades.
A tortuosa via de demonizar o governante, percorrida atualmente
pelos que querem ações de governo diversas das atuais, dentre eles os que
lutam por uma supostamente outra reforma agrária, vitimará mais adiante os
atuais opositores. Nesse quadro de referência, como acontece num regime par-
lamentar, o presidente personifica as contradições do Estado e do pacto que o
sustenta. Atua, portanto, nos limites de sua função pública e não na amplitude
de sua vontade pessoal. E nesse caso fica mais claro que o Estado não é a
presidência da República e sim uma multiplicidade de funções em três pode-
res independentes entre si numa república federativa.
Essas mudanças afetam decisivamente a questão agrária e a políti-
ca fundiária do Estado brasileiro. A propriedade da terra, já na ditadura mili-
tar, como mostrei antes, associada ao capital e claramente submetida à lógica
da reprodução capitalista ampliada, se institucionaliza politicamente, através
do pacto, como fundamento do nosso capitalismo rentista. Porém, o objetivo
do governo e do partido nele hegemônico parece ser o de modernizar e desen-
volver, conciliando. Nesse sentido, o rentismo apoiado na relevância da pro-
priedade da terra está em conflito com os propósitos governamentais e, ao
mesmo tempo, está “domesticado” pela aliança política em que o governo se
baseia. A questão agrária está passando a ser, provavelmente, uma questão
social e historicamente cíclica e deixando de ser uma questão que apareça em
primeiro plano no processo político como questão estrutural. Algumas das
ações mais significativas do atual governo, no âmbito da questão agrária, tem
sido justamente as de confinar o rentismo nos limites de uma legalidade es-
treita, agindo dentro da lei e não contra ela. Neste final de 1999, quando estou
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escrevendo este artigo, o ministro de Política Fundiária determinou a anula-


ção de todos os títulos de terra irregulares, cancelando os respectivos regis-
tros. Trata-se de uma verdadeira desconstrução do regime fundiário que teve
sua origem na Lei de Terras, de 1850, e seu cume na ditadura militar, na com-
placência para com formas irregulares de apossamento de terras por parte de
grileiros e especuladores. Uma atuação direta sobre os elementos propria-
mente históricos de nossa questão agrária.
Se assim for, a política fundiária tem por objetivo reconhecer a
institucionalidade do problema como problema social e o ministro tem aí a função
de gestor de uma conflitividade administrável, como de certo modo já se propunha
no regime anterior. Com a diferença de que agora devem prevalecer os mecanis-
mos da negociação, e portanto os da lei, e não os da repressão. A política fundiária
tem por objetivo atenuar e circunscrever o rentismo, atenuado, portanto, pela pró-
pria reforma agrária, gostem dela ou não os opositores do governo. Quando se diz
que a reforma agrária entrou na agenda política do Estado, ainda que de modo
limitado, não é apenas, e talvez nem fundamentalmente, em conseqüência da ação
do MST e das oposições ao governo. Pois em termos de conflitividade ela já esta-
va proposta no regime militar. No meu modo de ver, entrou na agenda do Estado
como recurso institucional para atenuar os efeitos politicamente conservadores da
propriedade da terra, que se manifestam nos problemas sociais, e para acelerar a
modernização da elite fundiária e das oligarquias.
Nesse sentido, a ação modernizadora do governo, por essa via, tem
um aliado fundamental no oposicionismo do MST, da Igreja e do PT quanto à
reforma agrária. O pacto seria provavelmente inviável sem essa oposição. É o
que torna extremamente difícil para essas agências de mediação da luta pela
terra sair da armadilha histórica em que aparentemente caíram em conseqüência
dos conflitos e contradições entre as facções políticas anteriores à ditadura,
que fragmentaram a questão agrária e lhe retiraram força e prioridade históri-
cas. Esse parece ser um dos efeitos da prática política baseada na concepção
da história por etapas, difundida entre nós como doutrina por alguns grupos
de esquerda. Com isso, a amplitude da intervenção na questão agrária é hoje
dominada por necessidades sociais e políticas que não são apenas as necessi-
dades dos trabalhadores rurais sem terra.
Essa frente de ação sobre o latifúndio e o clientelismo oligárquico
foi aberta pelo Estado pós-ditatorial como forma de intervenção indireta nos
estados e sobretudo nos municípios quanto ao uso dos recursos públicos, quanto
9
Zander Navarro, numa ao cumprimento local de obrigações constitucionais da União e quanto à trans-
perspectiva completa-
mente diferente da que
ferência a grupos comunitários locais e aos municípios de funções públicas
adoto neste texto, cha- sob controle federal. Como mencionei, é o caso da reforma agrária e da gestão
ma a atenção para o das condições de desenvolvimento e consolidação da agricultura familiar. A
desinteresse do MST
por essas novas possi- municipalização das políticas relativas a temas sociais abre um amplo terreno
bilidades de atuação de participação da sociedade civil por delegação do Estado9. A sociedade pode,
decorrentes da des- assim, através de grupos comunitários e das administrações locais, se tornar
centralização política
do país (cf. Navarro, guardiã e gestora direta das questões relativas ao chamado bem comum. Em
1996, p. 15 e 44). boa parte, funções que as câmaras municipais tiveram no período colonial,
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agora, porém, muito ampliadas. Trata-se, portanto, de um revigoramento dos


valores mais positivos do nosso municipalismo.
Ora, esse tem sido o território do poder oligárquico, em última ins-
tância beneficiário do capitalismo rentista e das formas de dominação propicia-
das pelo latifúndio. Tais mudanças criam o aparato institucional que coloca o
latifúndio e seu poder político em face dos clamores e dos direitos do povo, da
sociedade, dos movimentos sociais e dos grupos comunitários. Portanto, estamos
em face de uma transferência de poder que, ao mesmo tempo em que assegura a
funcionalidade do pacto político atual, pode incorporar os descontentes e politi-
camente excluídos na co-responsabilidade da gestão da coisa pública. Eu não
subestimaria a enorme brecha à participação popular que se abre com essas
mudanças. Mas, não subestimaria, também, a competência dos grupos políticos
de tradição oligárquica para se aproveitarem dessas possibilidades, mesmo ten-
do que disputá-las com os grupos emergentes da sociedade pós-ditatorial.
Aliás, em muitos lugares, o MST tem se aproveitado larga e inteli-
gentemente dessas possibilidades e o mesmo se pode dizer de vários setores das
igrejas. Essas mudanças começaram por iniciativa popular, durante a ditadura,
nos vários lugares da Amazônia em que as lutas populares, em particular a luta
pela terra, deram lugar à luta pela criação dos novos municípios e à formação
dos governos locais num espaço de participação aberto claramente pelo traba-
lho pastoral. Processos similares têm acontecido em outros lugares do país após
o fim da ditadura. Quase que se pode dizer que na história do Brasil são essas
iniciativas novas que invertem o processo característico que aqui fez do Estado
o criador da sociedade civil10. Nesses casos, é a sociedade civil que toma a inici-
ativa de estender a rede das instituições do Estado. Trata-se de uma inversão de
rumos de importância fundamental no desenvolvimento social, no combate ao
oligarquismo e ao poder pessoal e na consolidação da democracia.
Essas mudanças abrem tais possibilidades de intervenção histórica
nos rumos sociais e políticos do país por parte da sociedade e dos que são con-
siderados excluídos que seria um erro subestimá-las. Muitas ações do MST e de
setores da Igreja, em diferentes pontos do país, indicam um apropriado aprovei-
tamento dessas possibilidades, mesmo que o MST combata explicitamente o 10
Foi Fernando Henrique
que entende ser as “segundas intenções” de mudanças que, na verdade, são an- Cardoso quem chamou
teriores ao atual governo, quando não havia nem mesmo “primeiras intenções”11. a atenção para a pecu-
Elas têm sido alargadas pela ação desses grupos e propiciado uma atividade liaridade do caso bra-
sileiro, em que ao in-
criadora que pode ser definida como reinvenção social, que é o verdadeiro sen- vés da sociedade civil
tido da práxis. Algo inimaginável pelas esquerdas tradicionais antes e depois do criar o Estado, o Esta-
do é uma herança da
golpe e inimaginável pelos governos e técnicos governamentais tem decorrido metrópole e tem sido
dessas possibilidades: a modernização criativa da agricultura familiar, sobretu- dele a iniciativa de
do em áreas de reforma agrária, a partir da mística da tradição, da família e dos criar a sociedade civil
(cf. Cardoso, 1977,
laços comunitários reavivados e modernizados na experiência ressocializadora p. 81-84).
dos acampamentos e da luta pela terra. Mesmo que nesse processo possa ocor- 11
Em relação à suposição
rer a anomalia de manifestações de mandonismo dos próprios militantes, tam- sobre as “intenções
ocultas” do governo, cf.
bém eles, não raro, ainda influenciados por uma cultura do poder pessoal. Stedile & Fernandes
Convém levar em conta, ainda, um conjunto de alterações no direi- (1999, p. 49-155).
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to de propriedade, restrições redutivas, que não têm sido notadas pelos que se
preocupam com a reforma agrária, mas que em geral não as vinculam à ques-
tão agrária e à questão do território. Refiro-me à lenta retomada do senhorio,
do domínio, do território por parte do Estado e ao fato de que essa retomada
praticamente nada tem a ver com as lutas sociais no campo nem com as lutas
indígenas, sobretudo no período da ditadura. A Lei de Terras, de 1850, fôra
promulgada por um Parlamento constituído de grandes fazendeiros e senho-
res de escravos. Não havia nenhum grupo popular reivindicando um regime
fundiário diferente do aprovado em substituição ao regime de sesmarias que
cessara nas vésperas da Independência. Por essa Lei, dois distintos institutos
foram unificados num só: o domínio, que pertencia ao Estado, e a posse útil,
que era do particular. Por ter o domínio da terra, o senhorio, o Estado preser-
vava o direito de arrecadar as terras às quais o particular não desse utilidade,
não tornasse produtivas. Até o século XVIII, a Coroa com freqüência recorreu
a essa prerrogativa para redistribuir terras que não fossem devidamente utili-
zadas. A Lei de Terras, porém, transferiu ao particular domínio e posse, crian-
do uma espécie de direito absoluto que é a principal causa do latifundismo
brasileiro e das dificuldades para dar à terra, plenamente, uma função social.
Sobretudo a partir da Revolução de 1930, o Estado brasileiro co-
meçou uma lenta retomada do seu domínio sobre o território por meio de
medidas restritivas ao direito de propriedade. A primeira foi o Código de Águas,
que restringiu o direito de propriedade ao solo e dele excluiu o subsolo. Ou-
tras medidas na mesma linha: o senhorio da União sobre terras de marinha.
Mais tarde, o decreto de tombamento de bens históricos, que introduziu con-
dições restritivas ao exercício do direito de propriedade, legislação que foi
alargada para os bens de interesse turístico e ambiental; o reconhecimento da
posse imemorial das terras indígenas pelos respectivos povos, tutelados da
União; a separação de domínio e posse no território do Distrito Federal; a
proteção às reservas florestais e nesse sentido a imposição de restrições de
uso de uma parcela da propriedade fundiária. Na ditadura militar, o próprio
Estatuto da Terra, ao definir a categoria de latifúndio e estabelecer-lhe restri-
ções que o tornam passível de desapropriação por interesse social, estendeu
ao solo uma parcela de domínio regulamentar por parte da União, num certo
sentido próximo do regime sesmarial. Mais recentemente, na própria Consti-
tuição de 1988, o reconhecimento do direito de posse às terras dos antigos
quilombos por parte das comunidades negras. E por fim o estabelecimento do
confisco territorial das propriedades utilizadas para o cultivo de plantas tóxi-
cas que causem dependência física de seus usuários, como a maconha.
Desde o Estatuto da Terra, a reforma agrária se situa nesse proces-
so lento de retomada do domínio da terra por parte do Estado. Como menci-
onei antes, o Ministério de Política Fundiária promoveu, nas últimas semanas
de 1999, a anulação dos títulos de 3.065 propriedades, correspondentes a
93.620.587 hectares de terra, conforme o Livro Branco da Grilagem de Ter-
ras, duas vezes a área da França. Serão revertidos ao domínio da União, para
integrar o fundo de reforma agrária ou para projetos ambientais. O que cons-
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titui uma poderosa indicação de que a questão agrária reaparece com toda sua
força histórica na questão do território e, portanto, no âmbito dos poderes do
Estado nacional. A questão agrária se redefine como forte componente da
questão da soberania e não mais exclusiva ou principalmente como
irracionalidade do processo de reprodução ampliada do capital. Redefine-se,
pois, como questão política engendrada pela questão social, o que confirma a
nossa tendência histórica de ter nos pobres e desvalidos os agentes sempre
indiretos das ações demarcatórias da História, ainda que delas destinatários,
mesmo que não reconheçam aí o seu “projeto social explícito”.
É necessário ter isso em conta quando se fala em reforma agrária no
Brasil. Sobretudo porque, por esse meio, a reforma se torna parte de uma ação
do Estado que reconhece a precedência das funções e dos interesses sociais e
do Estado em relação ao direito de propriedade. Por meio da União, o Estado
retira direitos territoriais do particular e os entrega à sociedade. São bens a
cujo uso e gestão se sobrepõem os direitos atuais e futuros da sociedade. Tra-
ta-se do estabelecimento de progressivas, ainda que lentas, limitações ao exer-
cício do direito de propriedade em nome não só de sua função social, mas
também de sua função política na soberania do Estado.
Houve, mesmo, outras intervenções para emendar a excessiva am-
plitude dos direitos transferidos aos particulares pela Lei de Terras, nos casos
em que o direito de propriedade passou a ser causa de problemas sociais.
Além do Estatuto da Terra, já mencionado, o regime militar, ainda no governo
Castelo Branco, reconheceu em relação ao Nordeste canavieiro o direito de
enfiteuse dos trabalhadores da cana sobre a parcela de terra utilizada na pro-
dução direta dos meios de vida pela família do morador. É um direito de uso,
em parte conforme uma possibilidade aberta pela Lei de Terras quando esta-
beleceu a possibilidade de reconhecimento da posse em fazenda alheia até
como propriedade do morador. Trata-se da chamada “lei do sítio”. Uma deci-
são surpreendente num regime nascido de um golpe de Estado para defender
os direitos do latifúndio e consumar de vez os propósitos da Lei de Terras.
Nessa perspectiva, trato do tema tendo em conta mudanças estrutu-
rais de longo curso e, por elas, o balizamento da questão agrária. Não obstante,
tanto do lado do MST, da Igreja e das oposições partidárias e civis ao gover-
no, quanto do lado do próprio governo, parece não haver a menor clareza
quanto a uma questão essencial que essa perspectiva sugere. Penso ter mos-
trado neste artigo, como já o fiz em outros trabalhos, os bloqueios gerados
pelo modo histórico como se deu a abolição da escravatura e a implantação do
correlato regime de propriedade fundiária que temos. Bem como os episódios
sucessivos, até mesmo com a participação de grupos que hoje têm uma con-
cepção radical do problema, que simplificaram a questão agrária e reduziram
a possibilidade de uma reforma na profundidade que muitos almejam.
Mesmo atenuado pelas sucessivas intervenções que apontei, o regi-
me de propriedade envolveu tão intensamente as instituições, em especial o
Judiciário, ao longo da história republicana, que se tornou impossível fazer
uma reforma agrária que não passe pelo pagamento de uma substancial renda
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MARTINS, José de Souza. Reforma agrária – o impossível diálogo sobre a História possível. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000).

fundiária aos proprietários. A questão, portanto, não é a de se optar entre


pagar e não pagar como parecem supor o MST e a CPT, na compreensível
suposição da supressão histórica da renda fundiária e da estatização da pro-
priedade da terra. Mesmo nos casos de desapropriações com base na Consti-
tuição, o governo é obrigado a pagar pela terra e não raro tem sido obrigado,
por decisões judiciais, a pagar mais do que ela realmente vale, conforme reve-
la o chamado Livro Branco das Superindenizações, do Ministério Extraordi-
nário de Política Fundiária12. Sem contar os casos reconhecidos ou denuncia-
dos pelo próprio governo em que funcionários do órgão encarregado da refor-
ma aparecem envolvidos em avaliações indevidas. Além disso, o assentado
em terras oriundas de desapropriações, desde a Lei de Terras de 1850, tem
que pagar pela terra recebida, sem o que as leis não permitem que lhe seja
entregue o título definitivo de propriedade.
A questão é, portanto, outra: como adquirir terras necessárias à re-
forma agrária pelo menor preço e em condições menos desvantajosas. Porque
na questão agrária há o lado do direito de propriedade só parcialmente atenu-
12
Com base em informa- ado ao longo da história republicana e há o lado dos problemas sociais que
ções sobre mais de se- gera em ritmo relativamente rápido. É esse desencontro que faz com que a
tenta processos judiciais questão agrária se manifeste como questão social e não como questão econô-
de donos de terras desa-
propriadas, movidos mica ou simplesmente política. O enquadramento do regime de propriedade
contra o Incra, as su- nas necessidades da sociedade e do Estado vem se dando de modo muito len-
perindenizações soma-
vam, em 30 de setem-
to, devido aos bloqueios políticos de que ela está cercada. Já os problemas
bro de 1999, mais de sociais que ela cria podem ser resolvidos, e vêm sendo, com agilidade muito
sete bilhões de reais, su- maior, mesmo que haja quem a considere insuficiente. Isso se dá em grande
ficientes para assentar
trezentas mil famílias de parte, porque a reforma agrária se tornou uma resposta às conseqüências da
agricultores. As indeni- questão agrária e não às suas causas de longo curso histórico. MST e CPT
zações pleiteadas da querem uma reforma agrária que atinja as causas, que são causas históricas,
Justiça e muitas vezes
concedidas estão muito que se tornaram causas institucionais e políticas, sem, entretanto, oferecerem
acima das avaliações perspectivas de saída política para elas no marco da lei e da ordem. Pois, para
feitas pelo próprio órgão
de reforma agrária.
isso é preciso ganhar eleições e não as ganhando é preciso estar disponível
13
O Ministro de Políti- para a negociação política de questões como essa, que são questões sociais e
ca Fundiária, nos pri- nacionais, suprapartidárias, como foi a abolição da escravatura. É aí que a
meiros dias de janei-
ro de 2000, criou a Su- credibilidade e a legitimidade do confronto se perde.
perintendência Extra- A estratégia governamental tem sido, no meu modo de ver, a de
ordinária do Incra no encontrar caminhos que permitam criar um estoque de terras disponíveis para
Médio São Francisco,
abrangendo o chama- realização de assentamentos, mediante a definição de uma variedade de alter-
do “polígono da maco- nativas: sejam as desapropriações, sejam as compras em leilão (que forçam a
nha”. No mesmo dia
solicitou à Advocacia
queda do preço a ser pago), seja o Imposto Territorial Rural, que pode contri-
Geral da União a exe- buir para a depreciação de preços acrescidos pela especulação, sejam as terras
cução de 79 proprie- arrecadadas por outros meios, como as oriundas do pagamento de débitos a
dades expropriadas,
com cerca de sete mil agências do governo, ou confiscadas, como é o caso das terras em que a Polí-
hectares, para imedi- cia Federal descobre cultivos de maconha13.
ata utilização no pro- Duas orientações do governo, portanto, se combinam para fazer da
grama de reforma
agrária e assentamen- reforma agrária um procedimento cíclico de política fundiária e social: de um
to de 250 famílias. lado, uma rotina de formação de estoques de terras para reforma agrária; de
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S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000).

outro, uma diversidade de mecanismos de aquisição de terras para formação


desses estoques. A que se acresce agora uma terceira, a de incorporar a agricul-
tura familiar ao Ministério de Política Fundiária, forma de reconhecer a necessi-
dade de uma política fundiária e social em relação a essa parcela da população
brasileira. População que reentra ciclicamente na demanda de terra e de reforma
agrária, muitas vezes em conseqüência da má gestão dos projetos de assenta-
mento nas mãos de funcionários governamentais, ou de seu excessivo tecnicismo,
um dos fatores de alta proporção de abandono de terras distribuídas em ocasi-
ões anteriores a beneficiários da reforma agrária. Os motivos ainda não estão
inteiramente claros, mas provavelmente em conseqüência de erros técnicos sis-
temáticos praticados desde o governo militar, e até antes (nos casos da coloniza-
ção oficial), por funcionários responsáveis pela execução da reforma14. Essa má
gestão e fatores outros, como a escolha de terras impróprias para agricultura e
crises de mercado, acabam reintroduzindo no elenco dos que pedem reforma
agrária outros membros de famílias, em especial seus descendentes, por ela su-
postamente beneficiadas em décadas passadas.
Isso nos põe diante de uma circularidade de demanda por novos
assentamentos que tira da reforma agrária seu caráter extraordinário e a repõe
e vai repor continuamente ainda como um problema social com aparência de
problema estrutural, com características de um confronto radical que questio-
na tanto o Estado quanto a própria sociedade. Portanto, um problema, que se
tornou rotineiro, de emprego e de reincorporação contínua ao processo produ-
tivo, através de redistribuição de terras, dos que foram por ele descartados.
14
Um problema que acaba indevidamente aparecendo ou sendo apresentado como Os graves problemas
do relacionamento
um impasse histórico que pede, para alguns, uma revolução, quando na ver- dos técnicos do Incra
dade pede uma profunda transformação do modo de vida de significativas com os assentados, in-
parcelas da população, sobretudo a devotada ao trabalho agrícola. troduzindo irraciona-
lidades inacreditáveis
Aparentemente, o Estado brasileiro caminha rápido para a definição na execução da refor-
da institucionalidade dessa intervenção cíclica e tópica na estrutura fundiária ma agrária, é consta-
tada por um grupo de
para reparar-lhe os defeitos, na impossibilidade de uma intervenção definitiva e pesquisadores da Uni-
extraordinária que tenha efeito, ao menos, a longo prazo. Portanto, a política versidade Federal do
fundiária do governo atual não tem se limitado à redistribuição e à regularização Maranhão num dos
projetos de assenta-
da posse da terra, como pedem os opositores, mas tem se orientado, pela primei- mento daquele estado:
ra vez na história republicana, no sentido de fazer da reforma agrária um proce- “Aqui o problema re-
dimento institucional que reconhece e assegura o lugar social e institucional da sidia no fato de os tra-
balhadores já terem
agricultura familiar na sociedade e na economia. Tudo indica que estamos em plantado e colhido
face de um esforço político para pôr um garrote nos mecanismos de expulsão e duas safras de cana-
de exclusão das populações rurais. E, também, para assegurar que a eficácia de-açúcar e de não te-
rem tido o que fazer
econômica comparativa da agricultura familiar em relação às degradadas alter- com aquela produção,
nativas de inserção na vida urbana constitua um eixo de proteção e até de pois teria havido a
promessa de constru-
reaglutinação das famílias atingidas ao longo das últimas décadas, desde o go- ção de uma destilaria
verno Goulart, por mecanismos econômicos de dispersão e de desagregação. para a produção do
Ao mesmo tempo, uma política de modernização que previne o confinamento aguardente e da rapa-
dura, o que não ocor-
dessas mesmas famílias num tradicionalismo arcaizante que tem seus óbvios reu” (Carneiro et alii,
efeitos excludentes. Justamente aí são óbvias as convergências entre as orienta- 1998, p. 275).
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S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000).

ções do MST e as orientações do governo, o que dá à contestação do primeiro


em relação ao segundo uma conotação estranha ao tema propriamente da refor-
ma agrária. As desapropriações, assentamentos e regularizações vão aos pou-
cos se tornando um momento de uma intervenção maior de política social que
tem outras implicações e desdobramentos.
Os críticos e opositores do governo têm reiteradamente assinalado
que a intervenção governamental no problema da terra é caudatária das iniciati-
vas dos próprios ocupantes de terra e das ações do MST na ocupação de terras
improdutivas. Isso é certamente verdade, em grande parte. Mas, o que é aponta-
do como debilidade da ação governamental é, de fato, debilidade de compreen-
são das novas circunstâncias históricas do agir político por parte desses
opositores. Seria um erro não reconhecer que, desde o Estatuto da Terra, a dita-
dura, por razões de segurança nacional e de controle militar das lutas sociais no
campo, havia incorporado na própria lei elementos de definição prévia de áreas
de tensão social para que o governo se antecipasse ao conflito e fizesse as desa-
propriações necessárias à reforma. Esse procedimento tinha por objetivo
inviabilizar a transformação das tensões no campo em conflitos articulados ideo-
logicamente e vinculados a partidos na ilegalidade, que comprometessem a se-
gurança do regime. Aliás, o governo militar teve como norma não fazer desa-
propriações nem realizar assentamentos em áreas invadidas.
Quem reivindica hoje essa antecipação governamental parece não se
dar conta de que ela diz respeito à continuidade de um procedimento ditatorial
para esvaziar as lutas e reivindicações sociais. A situação histórica e política agora
é outra. E é outra também no sentido de que a precipitação das tensões, num clima
de negociação política possível, como o atual, e de administração possível dessas
tensões, indica com precisão maior do que a dos critérios técnicos os lugares e as
propriedades em que a intervenção governamental é necessária. Portanto, uma
mudança politicamente significativa em relação ao que ocorria no tempo da dita-
dura. Com a descentralização política antes mencionada, e a redefinição do lugar
da sociedade, em face do Estado, na gestão de questões sociais ou das questões de
interesse da comunidade local, a precedência e a iniciativa das organizações e
movimentos sociais no processo da reforma agrária é o normal e não o contrário.
Esse parece ser o novo formato da ordem política.
O cíclico e o institucional da questão agrária apontam numa dire-
ção que o governo aparentemente não está considerando nem as oposições
estão, se temos em conta o modesto desempenho e a modesta criatividade dos
partidos de oposição no Congresso, em relação à questão agrária, em contras-
te com um desempenho em geral notável em relação a outros temas. Na im-
possibilidade política de uma revisão suficientemente profunda do regime de
propriedade e da estrutura fundiária, e em face de um agudo questionamento
da legitimidade da lei, cabe, mas não tem sido considerada, a alternativa de
uma intervenção prospectiva nesse direito. Refiro-me à possibilidade do Es-
tado brasileiro legislar prospectivamente em relação à herança fundiária, no
que se refere ao latifúndio, estabelecendo limites físicos ao tamanho da pro-
priedade, como faz o Estatuto da Terra, e restrições adicionais do mesmo tipo,
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MARTINS, José de Souza. Reforma agrária – o impossível diálogo sobre a História possível. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000).

na sucessão dos herdeiros. E no caso de empresas, definir prazo e modalidade


de aproveitamento produtivo e correto da terra. Dependendo das circunstânci-
as políticas, o ritmo dessa revisão da persistência de latifúndios e enclaves,
que ultrapassem o que a lei estabelece, pode ser acelerado ou ralentado. Seria
possível estabelecer que, nos casos de sucessão de propriedades acima de um
módulo pré-fixado e nos casos de empresas e entidades, essas terras teriam
que ser parcialmente incorporadas ao fundo da reforma agrária cíclica, medi-
ante a indenização e pelo meio que a lei definisse.
Os efeitos simplificadores da concepção da história e limitadores de
uma práxis conseqüente em relação à questão agrária se revelam aí. Eles se
revelam na falta de uma providência prática em relação ao futuro e às gerações
futuras, dada a aparente impossibilidade de encaminhar a questão de outro modo
no presente. A história não é apenas o processo do atual, mas também a inter-
venção nas necessidades sociais e nas possibilidades do amanhã, quando o país
se vê hoje em face de obstáculos politicamente intransponíveis para concretizar
mudanças mais profundas. Certamente, é possível um pacto nacional de todos
em relação às necessidades do futuro, em relação a um problema social e histó-
rico que é, de fato, um problema suprapartidário, como o foi o da escravidão no
século passado. Partidarizá-lo não é, propriamente, prestar um serviço aos po-
bres da terra e, certamente, menos o é reformar o passado.

Recebido para publicação em dezembro/1999

MARTINS, José de Souza. Agrarian Reform – the impossible dialogue about the possible History.
Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 97-128, Oct. 1999 (edited Feb. 2000).

ABSTRACT: The misunderstandings between the government, on one side, and UNITERMS:
the MST, the Church and the opposition parties on the other side, when the topic agrarian reform,
agrarian matter,
is the agrarian reform, can only be understood if we keep in mind what this
social movements,
agrarian matter is in Brazil. In a country which the big capital turned to be the governability,
owner of the lands, the classical conception of the agrarian matter, and of the Fernando Henrique
reforms required by it, is substantially altered. These reforms are what really Cardoso.
propose the new conditions and limits to the reform in the country. Moreover,
they also point to a possible development of the History of Brazil based in this
structural reference. The agrarian reform turned to be a cyclical reform due to
the continuous entry and reentry of potential clients in this scene. The fact that
the MST and the landless have assumed the initiative of the occupations, being
the government only a proxy for the reform, does not indicate the debility of the
democratic State in doing the reform. It only indicates that the civil society, through
some organization and popular movement, started to have a new role in the
structure of the Brazilian State.

127
MARTINS, José de Souza. Reforma agrária – o impossível diálogo sobre a História possível. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000).

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128
ADORNO,
Tempo Sérgio. Insegurança
Social; Rev.versus direitos
Sociol. USP, humanos: entre11(2):
S. Paulo, a lei e a129-153,
ordem. Tempo 1999 Rev. Sociol.DOSSIÊ
out. Social; USP, S. Paulo,FHC
11(2):
129-153, out. 1999 (editado em fev.(editado
2000). em fev. 2000). 1o GOVERNO

Insegurança versus direitos


humanos
entre a lei e a ordem
SÉRGIO ADORNO

RESUMO: O propósito deste artigo é analisar a política de segurança pública UNITERMOS:


formulada e implementada pelo Governo do presidente Fernando Henrique crime,
violência,
Cardoso em sua primeira gestão governamental (1995-1998). A análise procu- medo,
ra inventariar alguns dos constrangimentos políticos que limitam o alcance e insegurança,
escopo das diretrizes formuladas e implementadas. Apresenta inicialmente o criminalidade,
cenário social e político mais amplo que contribuiu para que problemas de crescimento,
políticas públicas,
segurança pública e de justiça penal viessem a ocupar certa centralidade nas segurança,
políticas governamentais. Em seguida, detém-se na análise das iniciativas direitos humanos,
implementadas pelo governo FHC, particularmente no campo dos direitos hu- governo FHC,
manos, avaliando alguns de seus impactos e resultados bem como identifican- 1995-1998.
do-lhes ambivalências e impasses.

O governo FHC e sua proposta de segurança

propósito deste artigo é analisar a política de segurança pública formu-

O lada e implementada pelo Governo do presidente Fernando Henrique


Cardoso em sua primeira gestão governamental (1995-1998). Sua
proposta de governo, intitulada Mãos à obra (cf. Cardoso, 1994),
propôs redefinir os rumos do desenvolvimento no Brasil para a próxi-
ma geração, abrindo-se perspectivas de melhor qualidade de vida para o conjunto
Professor do Departa-
da população. Partindo de um diagnóstico a respeito do impacto do processo de mento de Sociologia
globalização em curso1, em particular sobre a produção e comercialização de da FFLCH - USP

129
ADORNO, Sérgio. Insegurança versus direitos humanos: entre a lei e a ordem. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2):
129-153, out. 1999 (editado em fev. 2000).

mercadorias, sobre o fluxo de capitais e sobre a difusão de ciência e tecnologia,


acenou para o desenho de um novo modelo de desenvolvimento que fosse econô-
mica e ambientalmente sustentável, que estimulasse participação ativa na vida
internacional e que promovesse justiça social através da qual o direito à vida fosse
assegurado. Em termos de políticas sociais, estabeleceu cinco metas de governo:
emprego, educação, saúde, agricultura e segurança.
No domínio da segurança, o programa de governo pretendeu ser
abrangente e atacar múltiplas questões. Partiu de um diagnóstico conciso porém
preciso do cenário de insegurança no Brasil contemporâneo. Abordou o descrédi-
to nas instituições públicas, a influência crescente do tráfico e uso de drogas em
outros crimes (como homicídios, roubos e seqüestros), o ciclo igualmente crescen-
te de impunidade, a sistemática violação de direitos humanos, a ação de grupos de
extermínio privados e de grupos paraestatais. Referiu-se ao peso relativo da po-
breza e das injustiças sociais como causa da violência: “Dizer que a criminalidade
1
é filha da miséria e das injustiças sociais é uma meia-verdade. A outra metade do
Entende-se por globa-
lização “a espetacular problema é que os braços do poder público para a aplicação da lei estão quebra-
intensificação das in- dos, como quase toda a máquina do Estado brasileiro” (Cardoso, 1994, p. 160).
terações transnacio-
nais ocorrida nas últi- Conseqüentemente, nomeou vários problemas: insuficiência do poli-
mas três décadas e ciamento ostensivo, quadros humanos mal preparados, métodos de investiga-
que se estende da ção policial ultrapassados, inquéritos atrasados, registros de ocorrências
globalização dos sis-
temas produtivos e engavetados. Particularmente no caso da Polícia Federal, apontou problemas
das transferências fi- tais como escassez de efetivos e equipamentos, distorções salariais e até mesmo
nanceiras até à difu-
são mundial da infor- um sindicalismo radical comprometendo a disciplina e hierarquia nessa organi-
mação e da imagem, zação policial. Mas, não se deteve nesta esfera. Na esfera judicial, identificou
da cultura de massas déficits nos quadros de promotores e juízes, ressaltou o envelhecimento do Có-
e dos estilos de con-
sumo e aos desloca- digo Penal, o congestionamento dos tribunais e a morosidade da justiça. Além
mentos maciços de do mais, destacou a superpopulação dos presídios – “escolas de pós-graduação
pessoas como turistas,
emigrantes e refugia-
para os pobres” (Cardoso, 1994, p. 161) –, a existência de presos irregularmen-
dos. Seus efeitos têm te cumprindo penas em cadeias públicas igualmente superlotadas, cenário agra-
sido muito profundos vado ainda mais pela estimativa de trezentos mil mandados de prisão que deixa-
e desestruturadores
das sociedades nacio- vam de ser cumpridos em virtude da falta de vagas.
nais, minando a eficá- A partir deste diagnóstico, o programa de governo teve por objeti-
cia dos mecanismos
de regulação nacional. vo principal a retomada do controle da criminalidade mediante rigoroso cum-
Esse impacto é resul- primento da lei. Em outras palavras, um programa que insistia em lei e ordem.
tado de uma “negoci- “A retomada sustentada do crescimento econômico e a distribuição de renda –
ação” complexa entre
os fatores exógenos, nossos objetivos maiores – são condições necessárias, mas não suficientes
internacionais e trans- para reverter a escalada da violência. E não se trata de escolher entre o Esta-
nacionais, e os fatores
endógenos, nacionais, do-polícia e o Estado de bem-estar social. Primeiro, porque não há democra-
regionais e locais. Em cia sem obediência à lei que, em última análise, depende do poder coercitivo
sua amplitude, esse do Estado. Segundo, porque a capacidade do Estado de prover bem-estar de-
processo é desigual,
heterogêneo e mesmo pende, em larga medida, do seu poder coercitivo:...” (Cardoso, 1994, p. 161-
contraditório nos im- 162). Reafirmando o respeito aos princípios constitucionais, o programa pre-
pactos que produz nas
diferentes sociedades”
tendeu portanto o fortalecimento das agências próprias do sistema de segu-
(Sousa Santos, 1999). rança e justiça, dispensando o recurso às Forças Armadas somente em caso
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extremo. Como o próprio texto enfatizava, “um trabalho a ser desenvolvido


sem concessões à truculência, mas com firmeza...” (Cardoso, 1994, p. 163).
Em decorrência dos argumentos contidos no diagnóstico e do objetivo
a ser alcançado, o programa de governo fixou quatro linhas de ação: a) estreitar a
cooperação com os estados e municípios na defesa da segurança pública; b) justi-
ça mais rápida e acessível para todos; c) implementação e aperfeiçoamento do
sistema penitenciário previsto na legislação vigente; d) fortalecer os órgãos fede-
rais de segurança e fiscalização. Cada uma destas linhas de orientação vinha acom-
panhada de metas, tais como articular as ações dos órgãos de segurança federais,
estaduais e municipais mediante criação da Secretaria Nacional de Segurança Pú-
blica, vinculada ao Ministério da Justiça; reforma do Código do Processo Penal;
criação do Juizado de Pequenas Causas Criminais, para julgamento com rito su-
mário de contravenções e crimes menos graves; criação do Conselho Nacional de
Justiça, composto por membros dos Tribunais Superiores e dos Tribunais de Jus-
tiça dos estados bem como representantes da sociedade civil; apoio aos governos
estaduais para construção, reforma, ampliação e reequipamento de penitenciárias
e estabelecimentos prisionais; implementação de dispositivos do Código de Exe-
cuções Penais referentes ao cumprimento de pena em regime aberto e semi-aberto
ao mesmo tempo proposição de legislação mais rigorosa nos casos de livramento
condicional e de transferência de regime fechado para semi-aberto. Quanto à últi-
ma linha de ação, as metas pretenderam não apenas a recomposição dos quadros
tanto da Polícia Federal como da Polícia Rodoviária Federal como uma atuação
mais incisiva contra a sonegação fiscal.
A despeito do propósito ambicioso de seu programa e do conjunto de
medidas que foram sendo adotadas, os quatro anos do governo FHC não conhe-
ceram dias de tranqüilidade no domínio da segurança pública. As tendências de
crescimento dos crimes e da violência mantiveram-se elevadas. O clima de medo
e insegurança generalizado não parece ter sido estancado. Vez ou outra, ocor-
rências mais graves como um roubo espetacular, um seqüestro bombástico ou
um homicídio hediondo ao lado de outras ocorrências como as dezenove mortes
de Eldorado dos Carajás ou a greve de policiais federais e de policiais militares
nos estados acabaram mobilizando a opinião pública, atraindo a atenção da
mídia e colocando em questão as iniciativas formuladas e que estavam sendo
implementadas. Ao mesmo tempo, o conjunto de iniciativas não foram poucas,
sequer irrelevantes. Seu alcance não pode ser sob qualquer hipótese menospre-
zado. Seu êxito parece ter sido eclipsado por circunstâncias políticas, algumas
das quais associadas ao pacto federativo, outras às alianças de sustentação polí-
tica do governo, outras ainda à própria dinâmica da sociedade brasileira.
A análise que se segue procura inventariar algumas dessas circunstân-
cias. Apresenta inicialmente o cenário social e político mais amplo que contribuiu
para que problemas de segurança pública e de justiça penal viessem a ocupar certa
centralidade nas políticas governamentais. Em seguida, detém-se na análise das
iniciativas implementadas pelo governo FHC, avaliando alguns de seus impactos
e resultados bem como identificando-lhes ambivalências e impasses.
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ADORNO, Sérgio. Insegurança versus direitos humanos: entre a lei e a ordem. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2):
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O contexto social e seus constrangimentos políticos

Se a estabilidade da moeda foi um importante trunfo que impulsio-


nou a candidatura FHC em direção à presidência, o certo é que o novo presi-
dente tomou posse em meio a um turbilhão de problemas e desafios, alguns
dos quais ainda velhas heranças do passado autoritário, outros decorrentes da
incapacidade dos governos civis que sucederam à abertura do regime em
enfrentá-los. No domínio da segurança pública, os problemas não eram de
pequena envergadura, sequer irrelevantes.
Desde o início da década passada, parece ter se acentuado o senti-
mento de medo e insegurança diante da violência e do crime. Qualquer cidadão,
independentemente de suas origens ou de suas características étnicas, de gêne-
ro, geração, riqueza ou poder sentiu-se ameaçado e inseguro diante do futuro de
seu patrimônio pessoal, em especial quanto à proteção de seu bem mais precio-
so – sua vida. É certo que não se trata de um fenômeno exclusivamente brasilei-
ro. Sondagens de opinião tanto nos Estados Unidos, quanto na Inglaterra ou na
França, já vinham anotando idênticas expressões de comportamento coletivo,
conquanto as ênfases ou o objeto da insegurança variassem de país para país.
Na França, por exemplo, estudos indicam que os sentimentos de medo e insegu-
rança estavam menos associados ao crescimento da delinqüência, porém à de-
gradação de alguns bairros na periferia das grandes cidades, à chegada de levas
de migrantes árabes e africanos, ao acirramento da competição por postos no
mercado de trabalho, tudo isso percebido como crise das instituições republica-
nas (cf. Lagrange, 1995). No Brasil, esse cenário de medo e insegurança parece
ter se agravado durante a transição do regime autoritário para a democracia.
Suas razões ainda são pouco claras e estão a merecer estudos mais aprofundados.
Embora as análises disponíveis não sejam consensuais, não se pode
desprezar o peso do autoritarismo social e das heranças deixadas pelos regimes
autoritários nas agências encarregadas do controle repressivo da ordem pública.
Conforme já tive oportunidade de analisar em outros estudos (cf. Adorno, 1996
e 1998a), no terreno da criminalidade comum, os efeitos do amplo processo de
reordenação das relações sociais e políticas em torno do regime autoritário fo-
ram bem demarcados. Desde meados da década de 1960, é cada vez mais acen-
tuada a participação dos órgãos federais na condução das políticas de segurança
e justiça estaduais. O policiamento preventivo e ostensivo é militarizado (cf.
Pinheiro, 1982), tornando-se freqüentes as inspeções policiais arbitrárias nas
ruas e sobretudo nas habitações populares através de operações do tipo “tira da
cama”, sem prévia autorização judicial (cf. Adorno e Fischer, 1987). Nas dele-
gacias e distritos policiais, torturas e maus tratos contra presos, suspeitos da
prática de crimes, constituíam rotina nas investigações policiais. Além do mais,
o período é caracterizado pelo acirramento da “guerra” entre policiais e delin-
qüentes, na origem da qual surgiram esquadrões da morte, organizações para-
militares, envolvendo policiais e civis, cujos objetivos eram eliminar bandidos
comprometidos com tráfico de drogas, contrabando e assalto a bancos como
também liquidar testemunhas que pudessem denunciá-los à justiça pública.
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ADORNO, Sérgio. Insegurança versus direitos humanos: entre a lei e a ordem. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2):
129-153, out. 1999 (editado em fev. 2000).

Por sua vez, os tribunais de justiça penal mantiveram-se aparentemente


alheios a esse processo. Não esboçaram resistências à imposição das regras arbi-
trárias ao controle repressivo da ordem pública. Suspeita-se que, no período, te-
nham sido mais rigorosos na distribuição de sanções penais, sobretudo nos crimes
contra o patrimônio, uma das modalidades de ação delituosa mais freqüentes nas
estatísticas policiais e, via de regra, cometida por cidadãos das classes populares.
Quanto às prisões, assiste-se a crescente intervenção de órgãos normativos fede-
rais, como o Conselho Nacional de Política Penitenciária e o Departamento Peni-
tenciário Federal, preocupados com a gestão administrativa de amplas massas
carcerárias que se acumulavam, notadamente nas grandes capitais brasileiras.
Ao longo de pelo menos duas décadas, esse processo de centraliza-
ção de controles e de militarização da segurança pública acabou por produzir ao
menos três conseqüências institucionais: primeiramente, transformou o contro-
le da criminalidade comum em problema de segurança interna, estimulando –
intencionalmente ou não – uma sorte de confusão entre o controle civil da ordem
pública e o controle da segurança nacional; em segundo lugar, os problemas
relacionados com a repressão do crime comum transfiguraram-se cada vez mais
em problemas afetos à órbita das agências policiais, em especial das polícias
militares. Conseqüentemente, é cada vez maior a militarização da segurança e
cada vez mais os problemas do setor passam a ser vistos como pertinentes às
estratégias e táticas de guerra contra um inimigo comum – o bandido, esse per-
sonagem freqüentemente mal definido e mal identificado. Não sem motivos, ao
longo do regime autoritário e mesmo no curso do processo de redemocratização,
as polícias militares conquistaram autonomia e poder a ponto de se sentirem
legitimadas junto a expressivos segmentos da população quando abatiam cida-
dãos, suspeitos de haver cometido crimes, sob alegação de resistência à ordem
de prisão. Em terceiro lugar, além da flagrante distorção segundo a qual toda a
política de segurança passa a gravitar em torno do desempenho policial, abstra-
indo-se dos demais segmentos do sistema de justiça penal – Ministério Público,
Poder Judiciário e sistema prisional –, os governos estaduais recém-eleitos após
a abertura do regime tiveram de enfrentar delicadíssimo problema político, até
hoje mal equacionado: o de reenquadrar suas polícias militares e reconquistar o
controle civil sobre a segurança pública. Eis aqui, desde já, um dos principais
constrangimentos ao êxito da política de segurança do governo FHC.
A política de segurança herdada do regime autoritário também pro-
duziu efeitos inesperados, entre os quais forte resistência de grupos organizados
da sociedade civil. Já abordei anteriormente esse mesmo tema (cf. Adorno, 1996
e 1998a). Em fins da década de 1970, o processo de transição democrática esta-
va em seus passos iniciais. No domínio dos direitos humanos, a agenda de rei-
vindicações não era nada desprezível: incluía a inviolabilidade do domicílio, a
proibição de prisões ilegais, o instituto do habeas-corpus, a garantia de ampla
defesa aos acusados, a extinção de foros privilegiados ou tribunais especiais
para julgamento de crimes de abuso de poder praticados por policiais e autori-
dades públicas. Com a promulgação da Constituição de 1988 que restituiu nor-
malidade democrática à sociedade brasileira, criaram-se instrumentos legais de
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ADORNO, Sérgio. Insegurança versus direitos humanos: entre a lei e a ordem. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2):
129-153, out. 1999 (editado em fev. 2000).

defesa dos civis contra o arbítrio do Estado. Tinha-se em vista, entre outros
objetivos, conter a ação das agências encarregadas de controle repressivo da
ordem pública dentro dos limites da legalidade, inclusive aquelas responsáveis
pela implementação de políticas de segurança e justiça.
Os confrontos entre forças conservadoras e forças “progressistas”
logo se tornaram manifestos. E, com progressão quase explosiva. Por um lado,
assiste-se à constituição de movimentos de defesa de direitos humanos, em dife-
rentes partes do país, mas especialmente em cidades como São Paulo, Rio de
Janeiro e Recife, preocupados em conquistar/resgatar a cidadania para segmen-
tos da população, como as diferentes categorias de trabalhadores empobrecidos,
bem como protegê-los contra as arbitrariedades e violências perpetradas seja
pelo Estado, seja por grupos da sociedade civil. A constituição desses movi-
mentos foi, como se sabe, seguida de uma torrente infindável de denúncias de
toda sorte, sobretudo contra a violência policial e contra a violência nas prisões,
a par de outras práticas tais como visitas periódicas às instituições de contenção
e repressão ao crime, intervenções constantes na imprensa e na mídia eletrônica,
organização de inúmeros fóruns de debates dos mais distintos tipos – técnicos,
profissionais, acadêmicos –, reunindo especialistas, pesquisadores, profissio-
nais, formadores de opinião e público leigo em geral. Foram esses movimentos
responsáveis por descobertas surpreendentes, entre as quais a extrema intimida-
de e solidariedade entre as estratégias e táticas de repressão ao crime comum e
de repressão à dissidência política.
Do lado daqueles que se encontravam sob crítica dos movimentos de
defesa dos direitos humanos, as reações também não se fizeram por esperar.
Desconfiados dos rumos que tomava a redemocratização da sociedade brasilei-
ra, temerosos de eventuais represálias ou apuração de abusos cometidos durante
a vigência do regime autoritário, inseguros quanto a possíveis deslocamentos
dos tradicionais postos de poder aos quais haviam se apegado com afinco, logo
armaram estratégias de defesa e ataque. Desfrutando de posição privilegiada no
interior dos aparelhos de Estado e gozando de certo prestígio junto a alguns
segmentos da imprensa escrita – sobretudo da reportagem policial – e mesmo da
mídia eletrônica, representantes das forças conservadoras conseguiram, em cur-
to espaço de tempo, reascender o autoritarismo social que, não raro, caracteriza
certos traços da cultura política brasileira. Não somente mobilizaram sentimen-
tos coletivos de insegurança que já se anteviam no início dos anos 80, atraindo a
seu favor opiniões favoráveis a uma intervenção autoritária no controle da or-
dem pública; isto é, reforçando percepções coletivas populares segundo as quais
a única forma legítima e imperativa de conter a violência do delinqüente é o
recurso à violência policial sem interditos legais ou morais. Mais do que isto,
lograram enfraquecer argumentos caros aos movimentos de defesa de direitos
humanos. Iniciaram com êxito campanha contra os “direitos humanos do pre-
so”, qualificados como privilégios conferidos a bandidos em uma sociedade
onde o “homem de bem”, trabalhador honesto, não tem a proteção das leis, das
políticas sociais e do poder público (cf. Caldeira, 1991 e 1992; Cardia, 1994).
Neste domínio nunca é demais ressaltar que os sentimentos de medo
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e de insegurança não se distribuem uniformemente entre cidadãos procedentes


das distintas classes sociais. Cidadãos mais vulneráveis à violência fatal tendem
a habitar regiões ou bairros onde predominam precárias condições de existên-
cia, conforme apontaram os mapas da violência confeccionados para várias ci-
dades brasileiras (cf. CEDEC, 1995). De modo geral, estes cidadãos são os
protagonistas principais, seja na condição de vítima ou agressor, dos aconteci-
mentos violentos que habitam cotidianamente a mídia eletrônica e impressa. Ao
contrário, cidadãos procedentes das classes médias e altas, menos vulneráveis à
violência fatal porém mais vulneráveis aos ataques a seu patrimônio pessoal,
são justamente aqueles que dispõem de maior capacidade de pressão sobre as
autoridades públicas ao mesmo tempo em que parecem ocupar mais espaço na
mídia enquanto agentes formadores de opinião pública. Disto resulta um cená-
rio distorcido: os protagonistas da violência fatal não são necessariamente aqueles
capazes de influenciar a formulação e implementação de políticas de segurança
pública em qualquer direção que seja.
Em conclusão, o cenário social no qual as questões de segurança pú-
blica e justiça penal são colocadas à mesa torna-se ainda mais complexo. Por
um lado, é evidente a polarização de opiniões pró e contra os direitos humanos.
Para alguns, somente com uma política de respeito aos direitos fundamentais da
pessoa humana será possível resgatar o Estado de direito e conquistar o controle
civil da ordem pública bem como o monopólio estatal da violência física legíti-
ma (cf. Weber, 1970). Para outros, contudo, a política de direitos humanos ape-
nas serve de pretexto para proteger um segmento da população, justamente os
bandidos, aumentando a impunidade e contribuindo para aumento incontrolável
dos crimes. Por outro lado, essa polarização em torno dos direitos humanos
esconde outras sutis nuanças que passam por recortes de classe, de gênero, de
geração. Não é raro encontrar aqueles que temem a polícia e a consideram muito
violenta, porém ao mesmo tempo defendem que “bandido bom é bandido mor-
to”. Estudando movimentos de defesa por moradia, Ana Amélia da Silva (1996)
identificou moradora de habitação popular, militante de movimentos de direitos
sociais, altamente politizada que todavia manifestava ódio quase mortal contra
o bandido, quase mortal diga-se de passagem porque ela se declarava contra a
pena de morte! Em outras palavras, esse universo de representações sobre o
medo, a insegurança, o crime, a violência, os direitos revela uma miríade com-
plexa e multifacetada de valores que torna praticamente impossível identificar
consenso em meio a um profundo dissenso.
Dito de outro modo, resulta aqui outro grande constrangimento ao êxi-
to de políticas de segurança e justiça penal: a ausência de um consenso, mínimo
que seja, a respeito de como deve ser implementada lei e ordem. O cenário social
brasileiro neste domínio é dos mais inquietantes. Em algumas cidades brasileiras,
há raras manifestações de solidariedade entre classes sociais, entre ricos e pobres,
entre cidadãos protegidos pelas leis e os excluídos. Quando isto acontece, a segre-
gação e o isolamento tendem a agravar os conflitos; e a luta pelo espaço vital e as
pressões em torno das autoridades acabam por implementar proteção e segurança
para determinados segmentos sociais em detrimento de outros. Nestes casos, é
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ADORNO, Sérgio. Insegurança versus direitos humanos: entre a lei e a ordem. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2):
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comum que segmentos de classe média organizem seus próprios movimentos contra
a violência e o crime, não raro levantando bandeiras de ordem contra a política de
direitos humanos ou mais recentemente contra as iniciativas governamentais e
não-governamentais em torno do desarmamento da população. Este certamente
não é um quadro geral, pois há outras experiências em sentido completamente
contrário que tendem a encarar o problema do crime e da violência como um
problema da cidade, que envolve por conseguinte o concurso de múltiplos seg-
mentos da sociedade na busca de um espaço comum a partir do qual seja possível
gerenciar programas e planos voltados para a pacificação da sociedade.
Este cenário estaria incompleto se a ele não se agregassem outros
componentes igualmente comprometedores ao êxito das políticas de seguran-
ça propostas. Um desses elementos é sem dúvida o crescimento da violência e
dos crimes. Não vou insistir muito nesta questão na medida em que ela já vem
sendo analisada com maior freqüência e há inúmeros estudos que já permitem
alcançar uma visão algo mais nacional, para além do que já se sabia a respeito
2
de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. De qualquer modo, a oportunida-
As estatísticas oficiais
de criminalidade com- de é ímpar para acentuar algumas características desse cenário.
portam não poucos pro- Inicialmente, é sempre bom lembrar que o crescimento da violência e
blemas, entre os quais do crime não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Michel Wieviorka (1997)
a suspeição de eleva-
das “cifras negras”, a identificou na contemporaneidade um novo paradigma da violência, manifesto
intervenção de critéri- por mudanças que se podem entrever em três domínios: fatos, percepções e
os burocráticos de ava-
liação de desempenho
explicação científica. A fenomenologia da violência mudou comparativamente
administrativo, as “ne- à tradição predominante no século passado e na primeira metade deste século.
gociações” paralelas No momento atual, assiste-se a emergência de novas ondas de violência cujas
entre vítimas, agres-
sores e autoridades, a referências gravitam em torno de lutas pela afirmação de identidades étnicas e/
implementação de po- ou religiosas. Mudaram, portanto, os fatos. Mas, não apenas os fatos, como
líticas determinadas de também as percepções coletivas a respeito da violência. Nos anos recentes, é
segurança pública que
conjunturalmente pri- flagrante a perda de legitimidade da violência no campo político. Por um lado,
vilegiam a contenção ela é condenada pelos seus excessos associados à diabolização do estrangeiro, à
de uma ou outra moda-
lidade delituosa e ain-
racialização dos perigosos, à alteridade dos diferentes. Por outro, ela é criticada
da a desistência da ví- por seus efeitos mediáticos que se expressam em sempre mais e mais
tima em denunciar o- dramatização intensificando o círculo cerrado: maior medo, maior insegurança;
corrência motivada por
desinteresse pessoal ou maior insegurança, maior medo. Paradoxalmente, a violência vem adquirindo o
descrença na eficácia estatuto de uma categoria explicativa do mundo contemporâneo que atravessa e
das instituições. A articula as relações sociais, desde o âmbito das relações internacionais até o
respeito, cf. Paixão
(1983), Coelho (1988), âmbito privado das relações domésticas.
Fundação João Pinhei- Embora o crescimento da criminalidade urbana seja matéria controver-
ro (1984), Robert et alii tida, as estatísticas oficiais de criminalidade2, base sobre a qual se realizam diag-
(1994), Wright (1987).
3
Os dados aqui apresen- nósticos, avaliações, análises e estudos científicos, estão apontando no sentido de
tados sobre a crimi- uma tendência mundial de crescimento dos crimes, em especial aqueles que envol-
nalidade na Europa,
nos Estados Unidos da
vem grave ameaça à integridade física dos indivíduos. Na Europa3, em especial
América e no Brasil nos países de tradição anglo-saxã, essa tendência vem sendo acompanhada e ob-
foram extraídos de servada desde meados da década de 1950. Na Grã-Bretanha, entre o final da II
Adorno (1996) e pu-
blicados em Adorno Guerra Mundial e o início da década de 1960, as estatísticas oficiais indicavam
(1998a; 1998b). menos de 750 mil ofensas criminais. A partir desse período, segue-se uma escala-
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da da violência. Em 1964, registraram-se 1 milhão de ocorrências; em 1975, dois


milhões; em 1985, três milhões (cf. Morris, 1989). Na França, os estudos realiza-
dos por Robert e colaboradores (1994) indicam não ter havido, no período de
1950 a 1974, crescimento significativo de infrações graves como os homicídios e
os estupros, nos últimos vinte e cinco anos. No entanto, no mesmo período, obser-
varam uma notável explosão das infrações contra o patrimônio, em particular
roubos e arrombamentos4. Nos Estados Unidos, os Uniform Crime Reports indi-
caram que, entre 1958 e 1968, as taxas nacionais de homicídio saltaram de 4,6
para 6,8/cem mil habitantes; as de seqüestro, de 9,3 para 15,5/cem mil hab.; as de
roubo, de 54,9 para 131/cem mil hab.; as de roubo com agravante de 78,8 para
141,3/cem mil habitantes. A combinação de crimes violentos saltou de 147,6 para
294,6/cem mil habitantes (cf. Weiner & Wolfgang, 1985). Desde o ano de 1985,
observa-se novo influxo ascendente. A mesma fonte – FBI – aponta para o cresci-
mento, no período de 1985-1990, de agressões (26%), roubos (18%), estupro
(2%) e homicídios (14%). Em 1990, a cidade de Washington – onde se registram
as mais elevadas taxas dessa modalidade delituosa em todos os Estados Unidos –
acusou uma taxa de 77,8 homicídios/cem mil habitantes. Nesse país, a par das
altas taxas de crimes contra o patrimônio, as taxas de homicídios voluntários são
quase oito vezes maiores do que aquelas do Japão (Apud Soares et alii, 1996).
Não era de esperar que a sociedade brasileira estivesse imune a esse
movimento de tendências crescentes, sobretudo porque o país se encontra no
circuito das rotas do tráfico internacional de drogas e de outras modalidades de 4
A propósito Robert e
crime organizado em bases transnacionais como o contrabando de armas, ativi- colaboradores apontam
dades que parecem se constituir na bomba de combustão do crescimento da em seus estudos as
principais dificuldades
criminalidade violenta. Mais surpreendente, contudo, é verificar que as taxas de em se lidar com as es-
criminalidade violenta no Brasil, em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, tatísticas oficiais de
são superiores inclusive às taxas de algumas metrópoles norte-americanas. criminalidade. No ca-
so da França, o total de
Os estudos de Edmundo Campos Coelho (1978 e 1988) apontam o ocorrências policiais
crescimento da criminalidade violenta no período de 1978-1988. No município passou de 574000 para
3800000. No entanto,
do Rio de Janeiro os registros oficiais acusaram respectivamente nos anos de há inúmeras precau-
1977 e 1986, as taxas de 15 e 34 ocorrências/cem mil habitantes. O estudo de ções a serem conside-
Soares et alii (1996) sugere o agravamento dessas tendências. Ele observou que, radas, pois os números
apresentam sérias limi-
no município do Rio de Janeiro, cresceram os homicídios dolosos, entre 1985 tações: não fazem dis-
(33,35 registros/cem mil habitantes) e 1989 (59,16 registros/cem mil habitantes). tinção entre tentativas
O crescimento das mortes violentas nos grupos etários de 15-24 anos e 25-29 e fatos consumados;
não diferenciam as
anos, entre 1980 e 1991, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, também foi ocorrências registra-
atestado em recente estudo (cf. Dellasoppa, Bercovich & Arriaga, 1999). das pela polícia daque-
No município de São Paulo, entre 1984 e 1993, a participação dos las registradas pela
“gendarmerie”; não al-
crimes violentos no total da massa de crimes registrados cresceu 10,1%, confor- cançam os contencio-
me conclui recente análise (cf. Feiguin & Lima, 1995). Esse mesmo estudo aponta sos do tráfego nem
aqueles de impostos,
que o crescimento foi mais acelerado a partir de 1988, quando essa modalidade dos serviços alfandegá-
de delinqüência passou a representar, em média, 28,8% do total das ocorrências rios, da inspeção do
registradas. Essas informações, todavia, necessitam ser comparadas com os da- trabalho ou dos servi-
ços veterinários. Ro-
dos que expressam o crescimento demográfico urbano. Essa relação acusa re- bert et alii (1994), es-
sultados surpreendentes. Estudo anteriormente realizado por Caldeira (1989) pecialmente p. 25-41.
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observou que, nos intervalos de 1982-83 e 1983-1984, as taxas de criminalidade


violenta, por cem mil habitantes, acusaram crescimento. Nos períodos subse-
qüentes, essas taxas tenderam a declinar sistematicamente. Mesmo assim, para
o ano de 1987, essa taxa foi da ordem de 747 ocorrências de crimes violentos/
cem mil habitantes, superior ao índice de 1981 (685,6). Para o período posterior
a 1988, Feiguin & Lima (1995) atestaram a retomada do crescimento dessas
Taxas de crimes violentos, taxas: “... nota-se que os crimes violentos saltaram de uma taxa de 945,1 por
segundo os tipos 100.000 habitantes, em 1988, para 1.119,2 por cem mil habitantes, em 1993.
Município de São Paulo
1988-1993 Trata-se de um crescimento da ordem de 18,4% num período de seis anos, o que
Fonte: justificaria dizer que os sentimentos de medo e de insegurança da população não
Secretaria da Segurança parecem infundados” (Feiguin & Lima, 1995, p. 76).
Pública – SSP
Delegacia Geral de A tabela 1, a seguir transcrita, ilustra essa evolução dos crimes vio-
Polícia – DGP lentos.
Departamento de
Planejamento e Controle
da Polícia Civil – Deplan Crimes Taxas de crimes violentos (por 100.000 habitantes)
Centro de Análise de 1988 1989 1990 1991 1992 1993
Dados – CAD Fundação
Homicídio/tentativa 41,6 48,9 48,8 50,6 44,0 50,2
Sistema Estadual de
Análise de Dados – Seade. Roubo/Tentativa 567,0 554,4 662,8 700,6 701,5 750,3
In: Feiguin & Lima (1994). Lesões Corporais 308,9 337,4 305,3 279,2 273,2 289,8
(*) Excluem-se ocorrênci-
as registradas no Latrocínio 2,0 2,8 3,4 3,7 3,1 2,5
Departamento Estadual de Estupro/Tentativa 16,5 16,5 16,3 16,5 15,1 13,9
Investigações sobre
Narcóticos – Denarc.
Tráfico de drogas* 8,6 62 6,6 10,1 11,0 12,0

Esse cenário torna-se ainda mais agudo quando se observa o compor-


5
As fontes que servem tamento dos homicídios voluntários. Nesse domínio, a distância que separa o
de subsídios para men- medo coletivo dos fatos objetivos parece cada vez mais estreita. A vida imita a
surar os óbitos por cau-
sas externas, nisto
arte e vice-versa. De fato, como sugerem alguns estudos brasileiros (cf. Adorno,
compreendidos os ho- 1994; Caldeira, 1989 e 1992; Mello Jorge, 1981, 1982 e 1986; Soares e outros,
micídios voluntários, 1996; Yazabi & Ortiz Flores, 1988; Zaluar, 1994) desde a última década vem
comportam igualmente
uma série de proble- crescendo de modo acentuado a mortalidade por causas externas, motivada pela
mas. Embora a implan- violência5. Camargo et alii (1995) observam que, ao longo da década de 1980,
tação do Sistema de In- enquanto o número total de óbitos cresceu 20%, os óbitos motivados por causas
formações sobre Mor-
talidade/SIM tenha re- violentas cresceram 60%. No município de São Paulo, no período de 35 anos
presentado uma grande (1960-1995), o coeficiente de homicídios para adolescentes, do sexo masculino,
avanço no sentido da na faixa de 15-19 anos, passou de 9,6 para 186,7 por 100 mil habitantes, vale
melhoria substantiva
dos dados estatísticos e dizer um crescimento da ordem de 1800% (cf. Mello Jorge, 1998). Segundo
indicadores disponí- informações do Datasus, no ano de 1994, ano da eleição de Fernando Henrique
veis de mortalidade,
estima-se que os regis-
Cardoso, a taxa de homicídio no município de São Paulo era de 46,09 homicídi-
tros abranjam cerca de os por 100 mil habitantes, enquanto que a taxa nacional era, no mesmo período,
75% dos casos de óbi- 21,21 homicídios por 100 mil habitantes6.
tos nessas circunstânci-
as. Nas regiões Norte, É muito provável que, também em São Paulo, parte significativa
Nordeste e Centro Oes- dessas mortes se deva aos conflitos entre quadrilhas, associados ou não ao
te acredita-se que par- tráfico de drogas7. A esse quadro, conviria agregar as mortes praticadas por
te dos óbitos não é sub-
metida a registro civil, justiceiros e grupos de extermínio, cujos alvos são cidadãos procedentes das
em cartório ou o pró- classes populares, inclusive crianças e adolescentes. Pesquisa realizada no
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início desta década estimou em 2,7/dia o número de jovens assassinados no


Estado de São Paulo, no ano de 1990. Esse mesmo estudo revelou que a gran-
de maioria das vítimas havia sido morta mediante emprego de arma de fogo,
circunstância indicativa da intencionalidade na consumação da morte (cf. Castro
et alii, 1992; Castro 1993)8. Trata-se de uma tendência que vem sendo obser-
vada nos estudos sobre mortalidade violenta. Souza (1994) assinala, no pe-
ríodo de 1980 a 1988, que mais da metade dos homicídios verificados nas prio cartório deixa de
capitais brasileiras observadas (Belo Horizonte, Fortaleza, Recife, Belém, comunicar o fato ao
Ministério da Saúde.
Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre) foi praticada Ademais, é elevada a
através desse meio. No Rio de Janeiro, 46,8% das ocorrências de homicídio proporção de causas
envolveram pessoas alvejadas por tiros de arma de fogo9. O emprego de ar- maldefinidas, o que
acaba por inflacionar
mas de fogo também constitui um traço distintivo no funcionamento de gru- a categoria “demais
pos de extermínio, espraiam-se por todo o país, sediados sobretudo na região causas externas”, agru-
pamento indicativo de
do ABC paulista e nas capitais dos estados de Pernambuco e Rio de Janeiro indefinição quanto à
(Américas Watch, 1994). Ademais, ao longo das décadas de 1980 e 1990 natureza da violência.
observou-se intensificação de casos de linchamentos em todo o Brasil, parti- Cf. Camargo, Ortiz &
Fonseca (1995). Ade-
cularmente nas regiões metropolitanas de São Paulo e em Salvador (cf. Pi- mais, há sérios proble-
nheiro et alii, 1997-1998; Martins, 1996). mas de compatibili-
Persistiram também as mortes causadas por policiais militares em zação de informações
entre fontes diversas,
confronto com civis. Pesquisa coordenada por Paulo Sérgio Pinheiro (cf. Pi- como os dados forneci-
nheiro et alii, 1991) no Núcleo de Estudos da Violência, relativa ao período de dos pelo Ministério da
Saúde, aqueles conta-
1983 a 1987, concluiu que “mais de 3.900 pessoas (foram) mortas, entre polici- bilizados pelo Proaim,
ais e não policiais, e mais de 5.500 feridos, dados apenas da Polícia Militar. O da Prefeitura Munici-
número de mortos chega à média de 1,2 morte por dia no período, com a máxi- pal de São Paulo, e os
registros policiais. Cf.
ma de 1,6 em 1985. [... ] Os totais de mortes em confronto com a polícia no Feiguin & Lima (1995).
Estado de São Paulo são extremamente altos, também tendo em vista outros 6
Para Minas Gerais,
países. Como comparação, na Austrália, que possui uma população de cerca de vide os estudos de
Claudio Beato (1998).
17 milhões de habitantes, pouco menos que a da região da Grande São Paulo, de Para o Rio Grande do
1974 a 1988 foram mortas 49 pessoas e 21 policiais, ou seja, 46 vezes me- Sul, os estudos vêm
sendo conduzidos por
nos”10. Aliás, a escalada da violência policial vem se acentuando desde fins da grupo coordenado por
década de 1970, neste estado da federação. No ano de 1992, a Polícia Militar José Vicente Tavares
atingiu seu ápice, abatendo 1.359 pessoas (cf. Amaral, 1993)11. Embora não se 7
dos Santos.
A ausência de estudos,
possa fazer generalizações12, essa escalada da violência policial pode ser obser- similares ao realizado
vada em outros estados, sobretudo do Nordeste, e em especial no Rio de Janeiro, por Zaluar para o Rio
como o demonstraram os acontecimentos da Candelária e de Vigário Geral. de Janeiro, impossibi-
lita extrair conclusões
Finalmente, haveria que se computar as mortes violentas provocadas fidedignas.
por tensões nas relações intersubjetivas e que nada parecem ter em comum com a 8
A pesquisa, realizada
criminalidade cotidiana. Trata-se de um infindável número de situações, em geral mediante apoio do
Centro Brasileiro para
envolvendo conflitos entre pessoas conhecidas, cujo desfecho acaba, muitas vezes a Infância e Adolescên-
até acidental e inesperadamente, na morte de um dos contendores. Compreendem cia (FCBIA), escritório
de São Paulo, contou
conflitos entre companheiros e suas companheiras, entre parentes, entre vizinhos, com a coordenação de
entre amigos, entre colegas de trabalho, entre conhecidos que freqüentam os mes- Myriam Mesquita Pu-
mos espaços de lazer, entre pessoas que se cruzam diariamente nas vias públicas, gliese de Castro e a
participação dos pes-
entre patrões e empregados, entre comerciantes e seus clientes. Resultam, em não quisadores Cristina
poucas circunstâncias, de desentendimentos variados acerca da posse ou proprie- Eiko Sakai, Amarylis
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dade de algum bem, acerca de paixões não correspondidas, acerca de compromis-


sos não saldados, acerca de reciprocidades rompidas, acerca de expectativas não
preenchidas quanto ao desempenho convencional de papéis como os de pai, mãe,
mulher, filho, estudante, trabalhador, provedor do lar etc. No mais das vezes, reve-
lam o quanto o tecido social encontra-se sensível a tensões e confrontos que, no
passado, raramente convergiam para um desfecho fatal.
Em síntese, o governo FHC herdou um cenário bastante desfavorável
no domínio da segurança pública. Além do legado autoritário nas agências de
Nóbrega Ferreira, Nel- contenção da violência e a par da polarização da opinião pública em torno de
son Casagrande e Mar- posturas pró ou contra os direitos humanos, verificou-se um acentuado cresci-
celo Gomes Justo. O mento da violência em múltiplas direções – crescimento do crime comum, do
relatório ensejou poste-
riormente a publicação crime organizado, do crime violento, dos linchamentos, dos assassinatos sob en-
de um artigo em revis- comenda, dos crimes contra os direitos humanos, da conflituosidade no âmbito
ta especializada. Cf.
Castro et alii (1992). O
das relações intersubjetivas e domésticas. Mas, esse cenário ainda estaria incom-
mesmo fenômeno vem pleto se a ele não se agregasse uma violenta crise no sistema de justiça criminal,
sendo detectado por assunto que abordei também em outros estudos (cf. Adorno, 1994, 1996 e 1998a).
todo o país, em especi-
al nas cidades do Rio “O processo de democratização coincide com forte crise econômica e com fortes
de Janeiro, Vitória, restrições ao Estado para fomentar a infra-estrutura indispensável ao crescimento
Salvador, Recife e Ara- econômico. Por um lado, o Estado manifesta-se incapaz de reduzir a violência
caju. Sobre o assunto,
cf. Castro (1993). através do estímulo ao desenvolvimento econômico, à expansão do mercado de
9
Referindo-se a estudo trabalho e à garantia de um mínimo de qualidade de vida para o conjunto da popu-
de Mercy et alii (1993),
Souza destaca que: (1)
lação. Se, a crise econômica afeta a qualidade de vida de imensas populações
nos Estados Unidos urbanas, sobretudo de seus segmentos pauperizados e de baixa renda, a crise afeta
cerca de 65% dos ho- também a capacidade do Estado em aplicar as leis e garantir a segurança da popu-
micídios registrados no
ano de 1990 envolve- lação (cf. O’Donnell, 1993). Os cortes no orçamento impedem o atendimento da
ram o emprego de ar- demanda de todo o sistema de justiça criminal13” (Adorno, 1998a, p. 235).
mas de fogo; (2) este Os resultados do impacto do crescimento da criminalidade violenta
instrumento influencia
decisivamente o cresci- urbana sobre o sistema de justiça criminal podem ser avaliados. Os crimes cres-
mento das taxas de cem em velocidade acelerada muito além da capacidade de resposta por parte
mortes violentas; (3) a
presença de uma arma
das agências encarregadas do controle repressivo da ordem pública. Em decor-
de fogo contribui para rência, acentua-se o gap entre o registro de ocorrências policiais e o processo
aumentar a probabili- final sob a forma de condenação dos autores juridicamente caracterizados como
dade de um dos parti-
cipantes de um confli- réus. A conseqüência mais evidente é o sentimento coletivo de impunidade: os
to ser morto; (4) a pos- crimes crescem, se tornam mais violentos e não chegam a ser punidos. Daí as
se de uma arma de fogo demandas por “ordem”, mais policiamento repressivo, maior violência contra
fornece risco signi-
ficante ao proprietário os bandidos, apoio à pena de morte e outras medidas do gênero. Na seqüência
e sua família. Obser- deste processo, arrastam-se tantas outras conseqüências: aumento da seletividade
vam os autores que, dos casos a serem investigados com o conseqüente aumento do arbítrio e da
para cada vez que um
revólver é utilizado corrupção; excesso de formalismos contribuindo para acentuar a morosidade
para matar alguém em judicial e processual; elevado número de casos arquivados por impossibilidade
legítima defesa, ele é
utilizado 43 vezes em
de investigá-los. Ao mesmo tempo, aumento do número de prisões, sobretudo
suicídios, acidentes e nos postos e delegacias policiais, tornando a situação carcerária do país cada
assassinatos que não vez mais explosiva, pelo menos em algumas regiões, mais particularmente nas
têm por objetivo a pre-
servação da vida de prisões de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
quem quer que seja. Por fim, ainda caberiam breves considerações a respeito dos cons-
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trangimentos relacionados ao pacto federativo. Como se sabe, embora o go-


verno federal desempenhe uma posição estratégica na formulação e
implementação de políticas de segurança e justiça, a execução dessas políti-
cas está sob encargo dos governos estaduais que, por sua vez, enfrentam seus
problemas locais, entre os quais o de ter de lidar com características peculia-
res e históricas de suas agências de contenção do crime, particularmente as
ligações entre polícias, Ministério Público, Poder Judiciário e autoridades
penitenciárias com o governo civil e com as elites políticas locais. Trata-se de
uma questão de vital importância porque depende antes de tudo das alianças
políticas entre governos estaduais e governo federal, mediadas pelas ligações
entre bancadas estaduais e bancadas federais que não raro controlam lobbies
muito poderosos como os das corporações policiais e judiciais.
Restaria agora saber como o governo FHC, em seu primeiro manda-
to, logrou enfrentar esse quadro de adversidades e constrangimentos, alterando-
o no sentido de sua proposta, qual seja de resgatar o império da lei e da ordem.

Direitos humanos e segurança no governo FHC

Em meio a este quadro politicamente adverso, o governo FHC pro-


curou executar seu programa de governo para área de segurança. Agiu em três
direções, nem sempre conectadas entre si. Por um lado, amplas iniciativas e
ações no campo dos direitos humanos; por outro, iniciativas no campo das
políticas de controle do uso abusivo e do comércio ilegal de drogas. Em meio
a esses dois pólos, gerenciou problemas administrativos e políticos sobretudo
na esfera da Polícia Federal, interveio em algumas situações críticas nos esta-
dos, particularmente no caso de greves nas Polícias Militares e suplementou
recursos para expansão e reforma do sistema penitenciário. No conjunto, es-
sas iniciativas produziram efeitos díspares até porque buscaram atender de-
mandas diferenciadas procedentes de grupos sociais distintos, portadores de 10
Instigante estudo com-
parativo entre Jamaica,
concepções conflitantes a respeito das causas e remédios para os problemas Argentina e Brasil a
da segurança pública e da justiça penal no Brasil. respeito das mortes co-
Neste ensaio, a análise ficará concentrada no campo das relações metidas pelas forças
policiais encontra-se
entre direitos humanos e segurança. Embora este recorte não alcance todo o em Chevigny (1990).
universo de iniciativas no campo da segurança pública, o conjunto de iniciati- 11
Sobre o mesmo assun-
vas adotado é suficiente para dar conta de alguns impasses e dilemas enfrenta- to, cf. também Bar-
cellos (1993).
dos pelo governo FHC na implementação de lei e ordem, o objetivo principal 12
Não se pode fazê-las
de seu plano de ação. Conseqüentemente, as análises das diretrizes formula- porque o maior ou
das e implementadas nos demais campos da segurança serão portanto objeto menor envolvimento
de policiais militares
de estudo complementar. nesses episódios de-
Foi no campo dos direitos humanos, onde as iniciativas governa- pende não apenas das
características locais
mentais ganharam maior notoriedade, inclusive internacional, maior visibili- da organização bem
dade por parte da mídia e maior aceitabilidade por parte da classe política. como da maior ou
Além do mais, ainda que seja prematuro avaliar o impacto das medidas adotadas menor ascendência do
Executivo estadual
neste campo junto à opinião pública, de qualquer modo é muito provável que sobre suas organiza-
tenham contribuído para amortecer tradicionais resistências e tornar a palavra ções policiais.
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direitos humanos menos estranha junto ao cidadão comum.


Como sugerido anteriormente, a mobilização da sociedade civil em
torno dos direitos humanos esteve inicialmente atada às graves violações de
direitos cometidas contra dissidentes políticos do regime autoritário. No curso
da transição política e da reconstrução do Estado de direito, à medida em que
retraíam essas modalidades de violações descortinou-se toda uma prática roti-
neira, tradicional, de longa data, vigente no cotidiano das delegacias e agências
de controle repressivo dos crimes e da ordem pública que apelava para a tortura
e para maus tratos contra cidadãos suspeitos de haver cometido infração penal
ou mesmo contra indiciados na esfera policial e/ou réus na esfera penal. Trata-
va-se de uma prática rotineira, pouco denunciada pela opinião crítica informada
e tolerada na maioria dos casos como uma forma “imperativa” de conter a vio-
lência (cf. Lima, 1994; Bretas, 1995; Mingardi, 1992)14. Descobriu-se mais.
Em quase todos os estados da federação, eram comuns e freqüentes assassina-
tos cometidos por policiais militares contra suspeitos ou mesmo criminosos sob
a rubrica de “resistência à prisão seguida de morte”. Logo, tais ocorrências se
revelaram abusos de poder praticados ao mais completo arrepio das leis, embo-
ra tolerados pelos comandos das polícias militares (não raro, incentivados mes-
mo) como circunstâncias inevitáveis do trabalho “preventivo” realizado nas ruas
e nos locais onde se suspeitavam estarem os delinqüentes concentrados ou es-
condidos – mais propriamente, as habitações populares como favelas.
No curso do processo de redemocratização, acumularam-se denún-
cias de incontáveis ocorrências, através das quais personalidades públicas,
movimentos sociais, organizações não-governamentais sobretudo de defesa
dos direitos humanos, organizações de classe como Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) exigiam imediatas
providências por parte dos poderes constituídos, entre as quais rigorosa apu-
ração de casos com a responsabilização penal dos réus e instalação de Comis-
14
Aliás, nunca é demais sões Parlamentares de Inquérito contra a violência institucional, inclusive
lembrar, desde os pri-
mórdios da ditadura,
policial e os abusos cometidos nas prisões e delegacias de polícia. Pouco a
esquadrões da morte, pouco, portanto, esses grupos organizados da sociedade civil alcançaram nova
na maior parte consti- fase em suas práticas e ações: abandonaram progressivamente uma postura
tuídos de policiais ci-
vis ou ex-policiais, exclusivamente sustentada na denúncia de casos e na articulação com ONGs
quase sempre envolvi- internacionais para adentrar uma fase propositiva, pressionando os poderes
dos em organizações Legislativo, Executivo e mesmo o Judiciário. Em meados da década de 1980,
criminosas, matavam
impunemente sob pre- esses grupos – é bom que se diga, na maior parte constituídos de cidadãos
textos os mais varia- identificados com a esquerda política em seus mais variados matizes, de cida-
dos, desde a corriquei- dãos vinculados às igrejas (católica, protestante e judaica) em suas vertentes
ra “queima de arquivo”
às desavenças no con- progressistas, de cidadãos comprometidos com uma identidade cívica e pro-
trole de alguma ativi- fissional fundadas no liberalismo jurídico-político, formando um largo espec-
dade, como o tráfico de
drogas. A esse respei-
tro composto por estudantes, operários, profissionais liberais, professores,
to, a atuação do Promo- empresários, políticos profissionais, donas de casa etc. – se tornam mais aguer-
tor Público e ex-depu- ridos à política dos direitos humanos. Mais do que isso, lograram articular os
tado federal pelo PT
Hélio Bicudo é memo- direitos humanos como requisito da democracia plena, como fundamento da
rável (Bicudo, 1978). consolidação do Estado democrático de direito (ainda que tenham pago o ônus
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de serem vistos como defensores de bandidos, como explicitado anteriormen-


te). Mesmo assim, obtiveram algum êxito, conseguindo sensibilizar parte da
sociedade civil e mesmo da sociedade política, a despeito das fortes resistên-
cias que o tema suscitava e ainda suscita.
Ainda que em sua composição de forças e alianças políticas, o recém
eleito governo FHC não refletisse inteiramente o espectro de forças que susten-
tava os movimentos de direitos humanos, havia fortes esperanças de que o tema
não seria ignorado, até porque em seu programa de governo o novo presidente
acenara largamente para a questão. A indicação de José Gregori para a Chefia
de Gabinete do Ministério da Justiça sinalizava nessa direção. De fato, no domí-
nio dos direitos humanos, o primeiro ano de governo foi dedicado a um extenso
e intenso entendimento entre lideranças políticas e lideranças da sociedade civil
que resultaram no Programa Nacional de Direitos Humanos.
A idéia de Programas Nacionais de Direitos Humanos foi uma de-
corrência da Conferência Mundial dos Direitos Humanos verificada em Viena
(Áustria), em 1993. Nessa Conferência, decidiu-se recomendar aos países pre-
sentes que elaborassem programas nacionais com o propósito de integrar a
promoção e proteção dos direitos humanos como programa de governo. Em 7
de setembro de 1995, o governo FHC anunciou sua intenção de propor um
plano de ação para os direitos humanos, concretizado no ano seguinte.
A preparação do Programa Nacional de Direitos Humanos, o primei-
ro na América Latina e terceiro no mundo, sucedendo Austrália e Filipinas,
demandou mobilização e consultas amplas – em São Paulo, Rio de Janeiro,
Porto Alegre, Recife, Natal e Belém, entre outubro de 1995 a maio de 1996 – a
ONGs, movimentos sociais, entidades representativas de organizações profissi-
onais, centros de pesquisa. As consultas foram realizadas mediante seminários
e acolhimento de propostas, processo coordenado pelo Núcleo de Estudos da
Violência da USP – NEV/USP. O relatório contendo todas as propostas foi
endereçado ao Ministério da Justiça que lhe conferiu formato definitivo, enca-
minhando em seguida à Presidência da República. Finalmente, o Programa Na-
cional de Direitos Humanos – PNDH, contendo 226 propostas, foi lançado em
13 de maio de 1996, em uma conjuntura bastante conturbada: a do trauma na-
cional motivado pelo massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará.
O Programa encontra-se amplamente divulgado através da publica-
ção sob a forma de livro – cerca de 300.000 mil exemplares, através da revista
PNDH em Movimento, inclusive em edição eletrônica via Internet, além de já
ter sido alvo de quatro conferências nacionais. Em duas oportunidades, Pinhei-
ro e Mesquita Neto (1997 e 1998), analisaram os caminhos que conduziram ao
Programa Nacional de Direitos Humanos, avaliaram o primeiro ano de sua
implementação, identificaram desafios e perspectivas futuras. Em sua análise,
eles sublinham as seguintes características do plano de ação governamental: a)
primeiramente, sua natureza supra-partidária. A questão dos direitos humanos
tornou-se uma problemática essencial à consolidação da sociedade democrática
no Brasil que ultrapassa as divergências de ordem político-ideológica; b) trata-
se de um Programa que envolve parceria entre sociedade civil organizada e Es-
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tado, no qual a autonomia da sociedade civil é assegurada. Sob esta perspectiva,


é algo além de um mero contrato de confiança entre Estado e ONGs; c) O Pro-
grama compreende uma nova concepção de direitos humanos. Seguindo a ori-
entação da Conferência Mundial de 1993, reconhece-se a indivisibilidade dos
direitos humanos: direitos humanos não são apenas direitos civis e políticos,
mas também direitos econômicos, sociais, culturais, coletivos, o que é uma grande
novidade na história social e política republicana no Brasil; d) O Programa re-
conhece também que direitos humanos não se limitam aos direitos definidos em
constituições e leis nacionais, abrangendo ainda direitos consagrados em con-
venções internacionais. Ademais, admite-se que indivíduos, coletividades e ONGs
possam requisitar apoio de outros estados e/ou organizações internacionais para
proteção de direitos humanos violados.
A lista de realizações não é pequena. Compreende múltiplas ações
que vão muito além do que se poderia convencionar como esfera de segurança
pública. Contempla em verdade medidas de curto, médio e longo prazos vol-
tados para a proteção do direito à vida e à liberdade. Diante deste escopo tão
largo e abrangente, ocupou-se dos direitos das mulheres, dos negros, das crian-
ças, dos idosos, dos índios e dos portadores de deficiência; da defesa do con-
sumidor; do trabalho infantil; criação do serviço civil através do qual jovens
dispensados do serviço militar pudessem desempenhar, por período de tempo
determinado, funções junto a comunidades pobres ou carentes; criação de um
sistema de informações sobre criança e adolescência com o objetivo de orien-
tar as políticas de atendimento a esses segmentos da população brasileira bem
como auxiliar no monitoramento da aplicação do Estatuto da Criança e do
Adolescente – ECA; ações visando implementação de Convenção da Organi-
zação Internacional do Trabalho (OIT) bem como outras medidas visando
coibir a discriminação no recrutamento e no ambiente de trabalho; manteve
ainda iniciativas conjuntas, relacionadas aos direitos humanos, com os Minis-
térios da Reforma Agrária, da Saúde, da Educação e Desporto, da Previdência
e Assistência Social e com o Conselho do Comunidade Solidária.
No campo da segurança pública, as iniciativas não foram de menor
envergadura. A lista é extensa:
• sanção da lei no 9.299/96, transferindo a competência para julga-
mento de policiais militares acusados de crimes dolosos contra a vida da Jus-
tiça Militar para a Comum (agosto 1996);
• sanção da lei no 9.455/97, que tipificou o crime de tortura e esta-
beleceu penas severas;
• sanção da lei no 9.437/97, que tornou crime o porte ilegal de ar-
mas e criou o Sistema Nacional de Armas (Sinarm);
• sanção da lei no 9.474/97, que estabelece o Estatuto dos Refugiados;
• sanção da lei no 9.454/97, que cria o Registro de Identidade Civil
e o Cadastro Nacional de Registro de Identidade Civil;
• aprovação de projeto, na Comissão de Constituição e Justiça da
Câmara, proposto pelo governo federal conferindo à Justiça federal compe-
tência para julgamento de crimes contra os direitos humanos (abril de 1997);
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• sanção da lei no 9.534/97, que estabelece a universalização da


gratuidade da certidão de nascimento e óbito;
• criação da Secretaria Nacional de Direitos Humanos (abril de
1997), tendo por titular José Gregori, o qual permaneceu no cargo no segundo
mandato presidencial;
• sanção da Lei Complementar no 88/96, que estabelece o rito su-
mário nos processos de desapropriação para fins de reforma agrária;
• sanção da lei no 9.415/96, que estabelece a presença obrigatória
do Ministério Público em todas as fases processuais que envolvem litígios
pela posse da terra urbana e rural;
• sanção da lei no 9.296/96, que regulamenta o inciso XII, parte
final do artigo 5º da Constituição Federal, sobre escuta telefônica;
• sanção da lei no 9.303/96, que altera o art. 8º da lei no. 9.034/96,
que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e a
repressão de ações praticadas por organizações criminosas.
A par dessas iniciativas, inúmeras outras medidas foram adotadas se-
lando a parceria entre sociedade civil e o Estado, através de contratos e convênios
firmados com o Ministério da Justiça e a Secretaria Nacional de Direitos Huma-
nos. Entre as principais, mencionam-se: Relatório sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Racial; Mapas de Risco (São Paulo, Curitiba, Rio de
Janeiro, Salvador, projeto coordenado pelo Centro de Estudos de Cultura Contem-
porânea – CEDEC); criação dos Balcões de Direito (prestação de serviços gratui-
tos de assessoria jurídica em várias cidades brasileiras); Rede de proteção de teste-
munhas e vítimas no NE (Recife, projeto coordenado pelo Gabinete de Assessoria
aos Movimentos Populares – GAJOP), que acabou norteando a criação de um
Programa Nacional chamado PROVITA; programa de atendimento às vítimas
(Paraná e Santa Catarina); cursos de reciclagem para policiais civis e militares
(programa patrocinado pela Cruz Vermelha Internacional e executado pela
FLACSO); Planos de prevenção da violência (firmado com o Centro de Articula-
ção de Populações Marginalizadas – CEAP/RJ e com o Instituto Brasileiro de
Estudos e Apoio Comunitário – IBEAC); Programa Nacional de Informações
Criminais (INFOSEG) e Conselhos Regionais de Segurança; Projeto de lei para
ampliar a aplicação das Penas Alternativas à Prisão; apoio, em todo o país, dos
serviços disque-denúncia; elaboração do Manual de Direitos Humanos com o ob-
jetivo de orientar ONGs que pretendam trabalhar com direitos humanos.
Além dessas iniciativas, foram criados, em nível de Ministério da
Justiça, vários Conselhos e Comissões para tratar de assuntos diversos. Entre os
colegiados mais importantes, figuram as Comissões nomeadas para a Reforma
do Código Penal e do Código do Processo Penal, o Grupo de acompanhamento
do ECA, o Grupo constituído para abordar a segurança pública sob a ótica dos
direitos humanos, o qual elaborou trinta propostas para uma Política Nacional
de Segurança Pública, com grande ênfase na reforma das polícias militar e civil.
Sem dúvida, o mais importante desse colegiado é o Grupo encarregado do
monitoramento da aplicação do Programa Nacional dos Direitos Humanos.
Como se pode constatar, trata-se de um programa ambicioso em
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129-153, out. 1999 (editado em fev. 2000).

vários sentidos. Em primeiro lugar, porque pretende cumprir as orientações


gerais contidas no programa geral do governo FHC, particularmente no que
concerne à área de segurança. Em segundo lugar, porque elabora um Progra-
ma Nacional abrangente, procurando contemplar demandas procedentes dos
mais variados segmentos, grupos e classes sociais, não se restringindo àquilo
que tout court se poderia convencionar de segurança pública. Em terceiro
lugar, porque procura entendimentos com a classe política de sorte a aprovar,
na esfera do legislativo, com relativa rapidez projetos que, em governos ante-
riores, teriam permanecido engavetados ou teriam sido recusados, como, por
exemplo, a transferência de competência da Justiça Militar para a Justiça
Comum dos crimes cometidos por policiais militares. Em quarto lugar, por-
que buscou articular distintos segmentos do Estado nos três níveis – federal,
estadual e municipal –, evitando tanto quanto possível a tradicional fragmen-
tação que caracteriza as políticas públicas no Brasil, em especial as políticas
sociais. Por fim, porque articulou, com relativo sucesso ao que tudo indica,
distintos segmentos da sociedade civil organizada, mantendo compromissos
conjuntos de trabalho com resultados de curta, média e longa duração.
Não sem motivos, essa foi uma das áreas que menor problemas parece
ter oferecido ao governo FHC. Suas equipes de trabalhos via de regra mostraram-
se mais homogêneas e mais afinadas entre si. Não houve embates desgastantes
entre a Secretaria Nacional de Direitos Humanos e o Ministério da Justiça. Salvo
no episódio da “expulsão” dos estrangeiros que haviam participado do seqüestro
do empresário Abílio Diniz, em que o cenário político pareceu mais tenso e mais
denso, exigindo habilidade política para além do convencional, os demais proble-
mas existentes tiveram origem na sociedade civil, até porque as graves violações
de direitos humanos continuaram a ocorrer, entre as quais o caso da Favela Naval
(SP), torturas praticadas por policiais militares em Cidade de Deus (RJ), assassi-
nato de dois trabalhadores em Paraopeba (PA), envolvimento de policiais milita-
res em chacinas verificadas em São Paulo (apud Pinheiro & Mesquita, 1998).
Pelo sim e pelo não, a temática dos direitos humanos também permaneceu, duran-
te quase todo o governo, em evidência internacional.
A despeito de sua abrangência, do conjunto e alcance de suas inicia-
tivas e do relativo êxito alcançado, o Programa Nacional de Direitos Humanos
não logrou reduzir ou mitigar os sentimentos coletivos de medo e insegurança
da população e não parece ter tido algum efeito na contenção do crime urbano.
Nas palavras de Paulo Sérgio Pinheiro e Paulo Mesquita Neto, “a questão é
saber como esta nova concepção de direitos humanos, refletida e fortalecida
pelo Programa Nacional de Direitos Humanos, PNDH, lançado pelo Presidente
Fernando Henrique Cardoso, em 13 de maio de 1996, afeta o sistema político no
Brasil. O desafio é avaliar se essa nova concepção pode contribuir efetivamente
para diminuir a violência e a criminalidade e para aumentar o grau de respeito
aos direitos humanos no país” (Pinheiro & Mesquita Neto, 1998, p. 44).
De fato, aqui parece residir o nó da questão. Se o Programa Nacional
logrou colocar os direitos humanos na agenda política brasileira – o que foi, sem
qualquer dúvida, um êxito irrefutável numa sociedade que tradicionalmente des-
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confia desses direitos –, não logrou em contrapartida convencer o cidadão co-


mum que a promoção e proteção dos direitos humanos constitui requisito de
segurança pública. Em outras palavras, não foi possível fazer o link entre direi-
tos humanos e segurança pública. Ainda que o cidadão comum, após quatro
anos de governo FHC, possa até ter começado a aceitar a linguagem dos direitos
humanos, diminuindo suas resistências e críticas, de qualquer forma, ao que
tudo indica, esse mesmo cidadão não conseguiu estabelecer uma sorte de cone-
xão entre esses direitos e o medo do crime, do criminoso e da violência em geral.
Explicar as razões para este impasse não é fácil e requereria exame
mais pormenorizado e completo da política de segurança pública proposta
pelo governo FHC, contemplando inclusive as políticas relativas ao funciona-
mento das agências de contenção da violência, as políticas relativas ao con-
trole e repressão do uso abusivo e do tráfico ilícito de drogas, aliás uma área
que conheceu grandes desenvolvimentos, políticas no entanto que não foram
examinadas neste texto, em virtude das razões apresentadas anteriormente.
Mesmo considerando essas limitações, é possível aventar hipóteses.
Nas três Conferências Nacionais de Direitos Humanos realizadas du-
rante o primeiro mandato FHC, uma crítica é recorrente. Embora o Programa
Nacional de Direitos Humanos se fundamente na concepção de indivisibilidade
dos direitos humanos, ele jamais aborda a questão dos direitos econômicos e so-
ciais. Em particular, os movimentos de direitos humanos questionam a possibili-
dade de alcançar avanços reais e concretos caso problemas relacionados ao de-
semprego, à fome, à seca, à reforma agrária, entre outros, não sejam equacionados. 15
No segundo mandato
Muitos duvidam que o Programa possa se sustentar a longo prazo à medida em presidencial, a Secre-
taria Nacional dos Di-
que persistem e mesmo se aprofundam as desigualdades sociais entre ricos e po- reitos Humanos, atra-
bres, entre as regiões do país, entre brancos e negros, entre homens e mulheres, vés da Portaria no 7 de
entre adultos e crianças. Quanto a estas críticas, tem havido duas respostas gover- 01/06/99, instituiu
grupo de trabalho es-
namentais. Por um lado, um certo silêncio, tudo indicando que a questão dos direi- pecial incumbido de
tos econômicos e sociais envolve política econômica, estabilidade monetária, con- propor a atualização
do Programa Nacional
trole da infração, regras de ouro do governo FHC que não podem ser alteradas. dos Direitos Huma-
Sob esta perspectiva, a política econômica vigente apareceria como uma espécie nos. A revisão prevê
de obstáculo à consolidação dos direitos humanos15. Por outro lado, há quem reco- inclusive a incorpora-
ção dos direitos econô-
nheça esses limites porém argumente que, em uma sociedade como a brasileira, micos e sociais.
impõe-se primeiramente assegurar os direitos civis fundamentais, entre os quais o 16
As Conferências Na-
mais importante deles o direito à vida, como pré-requisito para a defesa dos direi- cionais de Direitos
Humanos têm sido
tos econômicos e sociais. Esse argumento apoia-se sobretudo na experiência his- oportunidade para inú-
tórica do Ocidente, cujas democracias foram erguidas em torno de um modelo meras outras críticas.
Por exemplo, a não
contratual que inicialmente privilegiava os direitos individuais e políticos, os quais, inclusão dos direitos
uma vez conquistados, serviram de alavanca para a conquista dos direitos econô- dos homossexuais no
micos e sociais e, mais recentemente, para a conquista dos direitos coletivos, com- Programa original.
Também tratam de
pletando-se assim o ciclo contemporâneo dos direitos humanos. Certo ou não, questões como funci-
trata-se de uma questão em aberto cujo peso não é desprezível, porém cujo alcan- onamento da polícia e
ce, desconhecido, certamente não é suficiente para explicitar os dilemas e impasses funcionamento do Ju-
diciário. Por razões de
suscitados pelas relações entre direitos humanos e segurança16. espaço, não tratarei
Ao que tudo indica, os principais obstáculos são de outra ordem e natu- destas críticas.
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ADORNO, Sérgio. Insegurança versus direitos humanos: entre a lei e a ordem. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2):
129-153, out. 1999 (editado em fev. 2000).

reza. Primeiramente, é preciso reconhecer que o Programa Nacional dos Direitos


Humanos buscou, no campo da segurança pública, priorizar um tema caro e vital
para os direitos humanos. Os abusos de poder cometidos por autoridades públicas
no exercício de suas atribuições legais de contenção do crime e da violência. Nessa
medida, a maior parte das iniciativas procurou proteger o cidadão comum contra
eventuais arbitrariedades cometidas pelo poder público. Trata-se evidentemente
de uma peça importante no tabuleiro da segurança pública. Porém, não completa-
mente suficiente. É certo que é desejável coibir as graves violações de direitos
humanos cometidas por agentes policiais como requisito de pacificação social. No
entanto, como fica o outro lado da questão? Como enfrentar o crescimento da
criminalidade? Como enfrentar o envolvimento crescente de jovens do tráfico de
drogas, constituindo precoces carreiras no mundo da delinqüência? Enfim como
deter a onda crescente de violência urbana, em especial as taxas assustadoras de
homicídios cujas vítimas preferenciais são jovens?
Bem, esses são problemas que melhor devem ser respondidos pelas
agências encarregadas de repressão do crime e de contenção da ordem pública.
Neste domínio, a tradição é outra, o legado autoritário ainda é forte e presente,
tudo se resume a estratégias, táticas, equipamentos e know-how modernos. Nes-
te domínio, os lobbies constituídos em torno de representantes com mandato
legislativo são atuantes e evitam, o quando podem, mudanças radicais que pro-
movam um deslocamento acentuado do eixo da segurança pública em direção
ao governo civil. É neste domínio que o pacto federativo e as alianças políticas
de sustentação governamental funcionam como uma espécie de entrave.
Para que o problema da segurança começasse a ser enfrentado impõe-
se profunda mudança no sistema de justiça criminal (reforma da polícia, reforma
do Judiciário e reforma do sistema de distribuição e cumprimento de penas). Não
se trata aqui apenas de uma reforma no sentido da racionalização dos procedimen-
tos legais, formais, técnicos; trata-se, antes de tudo de reforma estrutural que avance
no sentido de promover susbstantivas mudanças nas relações de poder entre aque-
les incumbidos de aplicar as leis e de distribuir justiça e aqueles que se encontram
na condição de tutelados ou justiçados. Mais do que reforma administrativa, fala-
se aqui em reforma política, em transformação do eixo de poder que mediatiza as
relações entre oferta e demanda por serviços judiciais. Contempla entre outras
coisas: ampla e profunda reforma das agências policiais (reforma de práticas e de
mentalidade), criação de instrumentos de controle externo (tanto da Polícia quanto
da Justiça), desobstrução dos obstáculos e barreiras entre o cidadão comum e a
Justiça (problemática da ampliação do acesso à Justiça).
Sob esta perspectiva, trata-se de conceber a Justiça como instru-
mento efetivo de mediação pública nos conflitos entre particulares e entre
estes e o Estado e não apenas como instrumento de controle social e de con-
formidade às regras pactadas. A reforma da Justiça requer, para além de uma
nova normatividade institucional (racional-legal, burocrático-administrativa),
uma nova regulação das relações de poder de forma a que os cidadãos sejam
levados a acreditar que a Justiça se encontra a serviço da resolução pacificada
de seus conflitos e não como instrumento de imposição de regras que não
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ADORNO, Sérgio. Insegurança versus direitos humanos: entre a lei e a ordem. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2):
129-153, out. 1999 (editado em fev. 2000).

raramente lhes parecem arbitrárias e destituídas de qualquer sentido. Em ou-


tras palavras, trata-se justamente de aumentar a confiabilidade dos cidadãos
em suas instituições de justiça não porque eles passem misteriosamente a con-
ceder-lhes crédito, todavia porque essas agências se tornaram confiáveis di-
ante dos olhos dos cidadãos.
A reforma do sistema de justiça é um processo político complexo e
que requer muita habilidade política e sobretudo doses elevadas de negocia-
ções já que envolvem interesses corporativos que necessitam ser trincados e
bloqueados. Dada a natureza do sistema de justiça e a distribuição de compe-
tências entre estados e federação, estabelecida constitucionalmente, qualquer
projeto de reforma deverá passar necessariamente pelos governos estaduais e
pelas lideranças políticas locais. Salvo exceções, predominam nessas áreas os
interesses mais conservadores no tocante ao controle da ordem social, à con-
tenção repressiva dos crimes e ao trato nas questões de segurança pública.
Mesmo quando toleram falar em direitos humanos, desconfiam com freqüên-
cia das soluções liberais e da aposta em políticas distributivas. Ao contrário,
enfatizam as políticas retributivas, que sustem maior rigor punitivo, se possí-
vel concentrado em penas restritivas de liberdade, além da maior liberdade de
ação para as agências policiais no “combate” ao crime. Dado que essas forças
sociais sustentam suas representações políticas nas esferas federais, em espe-
cial na Câmara e no Senado, é pouco provável que uma reforma radical do
sistema de justiça criminal compatível com uma política de direitos humanos
adquira lastro político entre distintos segmentos sociais a ponto de romper
com os atuais constrangimentos institucionais, corporativos e políticos.

Recebido para publicação em setembro/1999

ADORNO, Sérgio. Insecurity versus human rights: between law and order. Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 129-153, Oct. 1999 (edited Feb. 2000).

ABSTRACT: The purpose of this article is to analyses the public security policy UNITERMS:
formulated and implemented by the government of Fernando Henrique Cardo- crime,
violence,
so in his first governoship (1995-1998). This analysis tries to inventory some
scare,
political constraints, which limit the target of the line of directions formulated insecurity,
and implemented. Initially it presents a social and political scenery wider than criminality growth,
the previous ones, which has contributed that public security and penal justice public security politics,
human rights,
problems occupy a central position in the governmental policies. Then, we
FHC government.
analyses the government of FHC's initiatives mainly in human rights, evaluating
some impacts and results, identifying ambivalence and impasses as well.

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ADORNO, Sérgio. Insegurança versus direitos humanos: entre a lei e a ordem. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2):
129-153, out. 1999 (editado em fev. 2000).

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154
MARTINS,
Tempo Heloísa de Souza
Social; & RODRIGUES,
Rev. Sociol. USP, Iram
S.Jácome.
Paulo, O11(2):
sindicalismo brasileiro
155-182, segunda metadeDOSSIÊ
out.na1999 FHC
dos anos 90. Tempo
Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,(editado
11(2): 155-182, out. 1999
em fev. (editado em fev. 2000).
2000). o
1 GOVERNO

O sindicalismo brasileiro na
segunda metade dos anos 90
HELOÍSA DE SOUZA MARTINS

IRAM JÁCOME RODRIGUES

RESUMO: Este texto discute as relações capital/trabalho durante o primeiro man- UNITERMOS:
dato do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-1998). Se, de um lado, sindicalismo,
trabalho,
esse período trouxe a estabilidade da moeda e o fim da inflação, de outro, ele- relações de trabalho,
vou em muito as taxas de desemprego. Assim, o tema do emprego se transfor- estratégia sindical,
mou na questão central da agenda sindical. Este artigo procura responder às governo Fernando
seguintes indagações: 1. Qual a especificidade das relações capital/trabalho Henrique.
neste período? 2. Qual o tratamento que foi dado à questão trabalhista nestes
últimos anos? 3. Qual a relação deste governo com os sindicatos?

Apresentação

ste texto procura discutir as relações capital/trabalho durante o pri-

E meiro mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-1998),


período em que esse processo de mudanças ganha contornos mais defi-
nidos. Se, de um lado, esse período trouxe a estabilidade da moeda e o
fim da inflação, de outro, elevou em muito as taxas de desemprego.
Esta questão acabou, assim, por se transformar na raiz da estraté-
gia sindical, nos dias de hoje e também em um dos elementos mais importan- Professora do Depar-
tes da crise por que passa a instituição sindical no mundo contemporâneo. tamento de Sociologia
da FFLCH - USP
No caso brasileiro, o desemprego se deve, em parte, ao processo de
Professor do Departa-
reestruturação industrial e, em parte, à política econômica de juros elevados mento de Economia
que tem trazido dificuldades para as empresas e, conseqüentemente, represen- da FEA - USP

155
MARTINS, Heloísa de Souza & RODRIGUES, Iram Jácome. O sindicalismo brasileiro na segunda metade dos anos 90. Tempo
Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 155-182, out. 1999 (editado em fev. 2000).

ta um óbice para a ação trabalhista em nosso País.


Ao mesmo tempo que o governo Fernando Henrique no primeiro
mandato passou à história como aquele que conseguiu a estabilização econô-
mica e o fim da inflação, deixa nesse período uma outra marca: as mais altas
taxas de desemprego que o País já conheceu. Esse processo, no seu conjunto,
coloca um paradoxo para ação sindical no Brasil: de um lado, ter uma atitude
mais flexível na relação capital/trabalho e, de outro, manter sua identidade.
Em resumo, esse artigo procura refletir sobre esses temas respon-
dendo a algumas indagações: 1. Qual é a especificidade das relações capital/
trabalho neste período? 2. Qual o tratamento que foi dado à questão trabalhis-
ta nestes últimos anos? 3. Qual a relação deste governo com os sindicatos?

O texto e o contexto da ação sindical: enfrentamento e negociação

A análise do período de 1995 a 1998 deve ter como referência as suces-


sivas tentativas de solucionar a crise econômica que vinham ocorrendo desde a
década de 80, correspondente ao que Pomeranz e Nunes Ferreira denominam de
“primeira onda de ajustes estruturais” (Dupas, 1999). A opção por um modelo
recessivo, com a queda do PIB, fez com que as taxas de desemprego se elevassem
a patamares nunca antes registrados. A segunda onda de ajustes estruturais, inici-
ada em 1990, com a política de abertura comercial, fez com que as empresas
brasileiras, diante da necessidade de competir, acelerassem o processo de
reestruturação produtiva. Ainda que ocorrendo de maneira diferenciada nos dife-
rentes setores e ramos da economia, a introdução de inovações tecnológicas e as
novas formas de organização do trabalho, marcadas pela idéia da flexibilização,
agravam a crise do mercado de trabalho. Apesar de uma ligeira recuperação inicial
do PIB, a partir de 1994 sua taxa entrou em declínio, caindo mais acentuadamente
a partir de 1997. Isto traz, obviamente, conseqüências para o mercado de trabalho.
Dados do IBGE, referentes ao emprego, mostram que a partir de 1990
os empregos industriais diminuíram 34,0%, a construção civil perdeu 8,0% de
postos e no setor de serviços houve um acréscimo de 9,0%. Assim, “nos seis anos
que se seguiram à abertura do governo Collor (1991-1997), o Brasil metropolita-
no perdeu 4% dos seus empregos, quando havia ganho 20% nos cinco anos ante-
riores” (Dupas, 1999, p. 125). O ponto importante a considerar é que em função
da reestruturação econômica ocorreu o processo de desestruturação do mercado
de trabalho (cf. Krein, 1999). A tendência que caracteriza o período é a da dimi-
nuição drástica do emprego formal e o crescimento do trabalho informal ou flexí-
vel. Segundo Dupas (1999), houve uma perda de 2,2 milhões de postos de traba-
lho no setor formal e ganho de 1,7 milhões de postos no setor informal, especial-
mente o informal por conta própria. Isto se expressa no crescimento do emprego
sem carteira assinada, que no período de 1991 a 1997 aumenta em 27%. Por outro
lado, o emprego com carteira assinada registra uma queda de 28%.
O processo de crescimento do emprego flexível “levou o setor informal
a representar cerca de 54% da mão-de-obra metropolitana brasileira em 1998”
(Dupas, 1999, p. 127). Mas, como destaca este autor, esse processo tem implica-
156
MARTINS, Heloísa de Souza & RODRIGUES, Iram Jácome. O sindicalismo brasileiro na segunda metade dos anos 90. Tempo
Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 155-182, out. 1999 (editado em fev. 2000).

ções que vão além da alteração da ocupação predominante no mercado de traba-


lho, na medida em que afeta a qualidade do trabalho e ameaça os esquemas de
proteção social. A nova realidade do mercado de trabalho, entretanto, não foi acom-
panhada por mudanças no imaginário social e os trabalhadores continuam a pau-
tar o seu comportamento e aspirações pela referência do emprego no setor formal
“com as garantias a ele associadas de direitos trabalhistas e previdenciários” (Dupas,
1999, p. 128). A flexibilização do trabalho, portanto, vem sendo acompanhada
pela precarização e insegurança no que se refere à permanência e entrada no mer-
cado de trabalho formal. O temor de perda do emprego e as dificuldades de inser-
ção no mercado fazem com que o trabalhador se submeta às pressões e às exigên-
cias empresariais, aceitando com facilidade as novas condições de trabalho e as
propostas de flexibilização dos direitos trabalhistas.
Este é o quadro em que se situa a análise do primeiro governo de
Fernando Henrique Cardoso, especialmente no que se refere às mudanças nas
relações de trabalho. Ainda que reconhecendo, segundo Krein (1999), que o
debate sobre um novo sistema de relações de trabalho foi posto na agenda
nacional como demanda do novo sindicalismo surgido no final dos anos 70 e
início dos anos 80, interessa-nos discutir como a reformulação do sistema foi
sendo elaborada naquele período, quais as medidas e propostas governamen-
tais e empresariais e como as entidades sindicais dos trabalhadores reagiram
às pressões para a flexibilização e desregulamentação do trabalho.
Logo no início do primeiro mandato ocorreu a greve dos petroleiros,
que viria revelar a face intransigente do governo FHC. Iniciada no dia 3 de maio
de 1995, essa greve estava sendo preparada há quatro meses nas diversas bases
estaduais da categoria, mas teve a sua deflagração adiada para acompanhar a
mobilização que ocorria em outras categorias do funcionalismo público: “Nos
primeiros dois meses do atual governo [jan/fev/95], diante da disposição de não
cumprimento dos acordos anteriormente firmados, com os trabalhadores de vá-
rios setores de produção e de serviços estatais, petroleiros, eletricitários, traba-
lhadores dos correios, docentes e funcionários de Universidades federais come-
çaram a preparar em conjunto uma greve das parcelas de trabalhadores que
teriam a mesma data base de negociação. A greve unificada tinha como propó-
sito fazer valer acordos anteriormente assinados. Tratava-se do primeiro grande
embate e da primeira possibilidade de abertura de negociações com o governo
recém empossado” (Rizek, 1998, p. 97). A paralisação atingiu principalmente
os petroleiros e eletricitários pois estas categorias tinham pendências relaciona-
das com acordos realizados anteriormente e não cumpridos pelo governo “que
negava validade jurídica e a viabilidade dos acordos realizados entre essas cate-
gorias e o governo anterior” (Rizek, 1998, p. 97).
De toda forma, o balanço do primeiro dia da greve, segundo o Coman-
do de Greve da CUT, dava conta que entre os petroleiros, de um total de 50 mil,
42.500 haviam aderido à paralisação (85%); dos 45 mil eletricitários, 36 mil esta-
vam participando do movimento (80%); dos 70 mil telefônicos, cerca de 28 mil
entraram em greve (40%); de um total de 104 mil servidores da educação, 53 mil
(50%) paralisaram suas atividades e entre os previdenciários, 40% dos 230 mil
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funcionários (92 mil) haviam aderido ao movimento paredista. De acordo com o


Jornal do Brasil (04/05/1995), “as empresas mais afetadas no Rio de Janeiro
foram Petrobrás, Eletrobrás, Light, Furnas e serviços de previdência e saúde, além
da Universidade Federal do Rio de Janeiro”. Segundo um diretor da CUT “o mo-
vimento tendia a crescer. As bases estão radicalizadas porque as empresas vêm
descumprindo, sob orientação do governo, cláusulas importantes de acordos cole-
tivos”. As notícias davam conta, ainda, que o Banco do Brasil, Caixa Econômica
e universidades realizariam assembléias para decidirem a adesão à greve.
O movimento, segundo o Comando de Greve, seria por tempo
indeterminado para petroleiros, eletricitários, professores e previdenciários.
Apenas no setor telefônico a greve era por tempo determinado e durou 24
horas. Os funcionários dos correios não fizeram greve. As principais reivindi-
cações dos trabalhadores eram: reposição das perdas salariais; reajustes men-
sais; reintegração de 35 mil servidores demitidos desde 85 e a retirada do
Congresso das emendas da Reforma Constitucional. Esta era vista pelo go-
verno como decisiva para os seus planos de ajuste econômico e na pauta esta-
vam a Reforma Fiscal, a Reforma Tributária, a Reforma Patrimonial e a Re-
forma Política (cf. Bianchi, 1996, p. 95)1. Isto talvez explique a dura resistên-
cia do governo ao movimento.
Além do mais, a paralisação parecia se alastrar por todo o país: Paraná,
Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais. De outra
parte, os trabalhadores aeroportuários que entraram em greve antes, estavam já no
terceiro dia de paralisação em treze aeroportos: “Cumbica, Congonhas, Campo de
Marte, Confins (Belo Horizonte) e o Internacional de Brasília, além de oito locais
com 3.500 dos 7.600 funcionários parados” (Jornal do Brasil, 04/05/1995). Ape-
sar do recuo de algumas categorias, mas com a adesão de outras, “na primeira
quinzena de maio mais de 350 mil trabalhadores pararam suas atividades e decre-
taram greve” (Bianchi, 1996, p. 93). Entretanto, os petroleiros se mantinham no
enfrentamento com o governo, que estava, então, amparado pelas decisões do
Tribunal Superior do Trabalho. A greve dos petroleiros foi julgada abusiva pelo
TST no dia 9 de maio. No dia 24, seguindo ordens do governo, o exército ocupou
quatro refinarias: Paulínia, Capuava e Henrique Lage em São Paulo e Presidente
Getúlio Vargas no Paraná. Além disso, as empresas suspenderam o pagamento
aos grevistas. No dia 26, o TST, em julgamento de recurso, decretou o pagamento
de multa no valor de R$ 100 mil diários [para os sindicatos], caso os trabalhadores
não voltassem imediatamente ao trabalho. No dia 2 de junho acabou a greve. Nes-
1
Apesar dos esforços ta mesma data, “é iniciado o bloqueio das contas das entidades, retenção das recei-
do governo, na época, tas e penhora de bens” (Santiago, 1995, p. 9).
em caracterizar a gre-
ve como sendo contra Analisando esta paralisação, Paul Singer observa que nunca havia vis-
as reformas e os petro- to “uma greve de trabalhadores ser tratada de forma tão despótica e repressiva. Só
leiros, especialmente,
como os vilões da his-
mesmo no regime militar, em seu período mais autoritário. O governo se escudou
tória, hoje, depois de detrás de uma decisão judicial para recusar qualquer conversação com os petrolei-
quatro anos, vemos ros em greve, para demitir, para ocupar refinarias por tropas do Exército, para
que muito pouco se
fez em termos das re- abrir inquérito policial contra os grevistas. Está vitorioso. Obrigou os petroleiros a
formas pretendidas. voltar ao trabalho de mãos abanando, sem qualquer garantia de que não haverá
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punições, de que o desconto dos dias parados será parcelado, de que a reivindica-
ção salarial será negociada. Enfim, o governo impôs ao ‘inimigo’ rendição incon-
dicional” (Folha de São Paulo, 16/06/1995). As palavras de Singer retratam muito
bem o desenrolar dos acontecimentos e o seu desfecho. O que teria levado o gover-
no a agir dessa forma? Aparentemente, o governo que se auto-intitulava social-
democrata, começava seu mandato, numa postura avessa às práticas da social
democracia e havia resolvido dar uma “lição” ao sindicalismo-CUT. Face à pro-
posta governamental de levar às últimas conseqüências o processo de
desregulamentação da economia, privatização das empresas estatais, reforma da
previdência etc., a atitude dura frente aos trabalhadores grevistas tinha como obje-
tivo, certamente, quebrar a espinha dorsal do movimento sindical.
Nos jornais e revistas da época aparecia com muita ênfase a “com-
paração” entre o governante que iniciava seu mandato e a Primeira Ministra
britânica Margareth Tatcher. Em outras palavras, o objetivo primordial da
política de “terra arrasada” inaugurada por FHC, no período mais recente,
seria minar e mesmo acabar com a possível força que os sindicatos ainda
tinham em nosso País. Era o início de novo governo e, em razão do Plano
Real, havia uma quase unanimidade em torno de FHC.
Mesmo agindo com rigor, só comparável à época do regime autori-
tário, o governo não conseguiu seu intento. Quatro anos e meio depois, na
última semana de julho de 99, os caminhoneiros fizeram um movimento que
durante quatro dias praticamente parou o País. O governo foi pego de surpre-
sa com a extensão do movimento e, de certa forma, cedeu em, praticamente,
todos os pontos reivindicados pelos caminhoneiros.
O que mudou nestes quatro anos? Simplesmente, o Executivo se
enfraqueceu, está com baixos índices de popularidade, que podem ser compa-
rados com os piores momentos dos governos Sarney e Collor. O Plano Real,
principalmente após a desvalorização cambial ocorrida em janeiro de 99, agra-
vou problemas que já vinham de antes, em particular o desemprego. As
melhorias anunciadas no início de 95 ainda não chegaram para a ampla maio-
ria da população. Essa é a principal diferença entre estes dois momentos...
Nos quatro primeiros anos do governo FHC ocorreram muitas ma-
nifestações trabalhistas, notadamente contra o processo de privatização das
empresas estatais. Foram, no entanto, movimentos com pouco poder de
arregimentação dos próprios trabalhadores. Foi um período de lutas extrema-
mente defensivas para os empregados.
No final do primeiro ano do governo de FHC, Vicente Paulo da
Silva, presidente da CUT, assinalava as principais questões que viriam a mar-
car as relações entre as entidades sindicais e o governo. Apesar de destacar as
mobilizações contra a política econômica realizadas durante o ano de 1995,
reconhece que “passamos o ano nos defendendo, lutando apenas para garantir
direitos e não para conquistar novos” (O Estado de S. Paulo, 17/12/1995,
p. B-13). É justamente essa imagem de um movimento sindical acuado diante
de uma situação de perdas constantes, tentando resistir às propostas da
flexibilização dos direitos trabalhistas e de desregulamentação do sistema de
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relações de trabalho, que caracteriza o período analisado.


De um lado, um governo que, como diz Vicentinho na mesma entre-
vista, é “dinâmico, que cria pauta e com muitas propostas de mudança. Discor-
damos dessas propostas, que só tiram direitos, mas a verdade é que não acom-
panhamos a rapidez do governo”. E de outro, as dificuldades de mobilização
dos trabalhadores, especialmente os urbanos, “que ficaram um pouco imobili-
zados, ou por experiência passadas de greves fracassadas ou pelas dificuldades
de conquistas em ano de plano econômico e desemprego”. Iniciava-se um perío-
do de aprendizagem e revisão das práticas sindicais e uma reaproximação das
bases, buscando reforçar os laços com outros movimentos sociais, abrindo no-
vos caminhos. As expectativas são pessimistas, porque reconhecem que as difi-
culdades não são passageiras e, que nesse quadro, não cabem mais as antigas
ações mobilizadoras, com a greve ocupando um lugar privilegiado: “não pode-
mos querer dar um salto maior do que o trabalhador pode acompanhar, isso do
ponto de vista político, ou imaginar que porque o militante quer uma greve geral
o trabalhador comum também quer. Não adianta mais ficar esbravejando na
porta da fábrica sem saber que tipo de sentimento tem o peão hoje”.
Na realidade, este discurso não resulta dos embates durante o primeiro
ano do governo FHC. Desde o início da década de 90 percebe-se, especialmente
no campo da CUT, o reconhecimento da necessidade de negociar (cf. Ramalho,
1994; Rodrigues, 1997) e a disposição de participar, seja das Câmaras Setoriais,
seja do Fórum Nacional sobre Contrato Coletivo e Relações de Trabalho, convo-
cado pelo Ministro do Trabalho Walter Barelli, durante o governo Itamar Franco.
Nesse momento, delineia-se uma “estratégia propositiva” (Portella de Castro, 1999)
com o objetivo de garantir uma reforma do sistema de relações de trabalho mais
favorável aos trabalhadores. Apesar dos reconhecidos avanços conseguidos com
essas duas experiências, elas não tiveram prosseguimento a partir do plano Real e
da política econômica posta em prática no governo FHC. No âmbito do Fórum já
tinham sido explicitadas as divergências que opunham, de um lado, CUT, Força
Sindical, PNBE e SINFAVEA, com uma proposta de reforma global do sistema de
relações de trabalho, no sentido de uma maior democratização e garantia dos direi-
tos trabalhistas básicos e, de outro lado, a proposição das principais entidades
empresariais, com ênfase na desregulamentação do sistema de relações e da
flexibilização dos direitos trabalhistas. Como assinala Krein (1999, p. 12) “o de-
bate ficou polarizado entre essas posições, mas, em função da reorientação do
‘modelo de desenvolvimento’ brasileiro, ganha maior expressão a proposição de
desregulamentar o atual sistema e de privilegiar a livre negociação. Assim, a mo-
dernização das relações de trabalho passa a fazer parte das políticas de
enfrentamento de uma economia aberta e competitiva”.
Com a mudança do quadro econômico e com uma conjuntura política
desfavorável aos sindicatos, no ano de 1996 o discurso de Vicentinho apresenta
algumas mudanças. Em entrevista de abril de 1996, Vicentinho refere-se à come-
moração do 1º de maio como o começo da mobilização dos trabalhadores para
uma greve-geral de 24 horas: “a greve é por mais emprego e por reformas – agrá-
ria, tributária e de relações trabalhistas – mas não as defendidas pelos empresári-
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os”. Agora, entretanto, contrariando a sua análise anterior, refere-se à greve como
vontade do trabalhador que, mesmo acuado, com medo do desemprego, “está ven-
do que sem lutar ele perde mais. Estão nos matando. Por isso a greve geral está
voltando à pauta. Apesar de todas as dificuldades, prevejo um ano de grandes
mobilizações, e dessa vez com trabalhadores e com sindicatos muito mais avança-
dos. Uma hora dessas vocês todos, que acham que o movimento sindical só nego-
cia mas não mobiliza, vão ver...” (O Estado de S. Paulo, 28/04/1996, p. B-7).
As previsões, entretanto, não se realizaram, pelo menos no que se refe-
re à greve geral. Finalmente marcada para o dia 21 de julho de 1996, a greve
convocada pelas três centrais sindicais – CUT, CGT e Força Sindical – não teve o
sucesso esperado. Os próprios sindicalistas reconheceram que não houve adesão
total, confirmando-se, assim, a resistência dos trabalhadores à proposta de greve
em um contexto de desemprego. A posição dos sindicalistas, especialmente os da
CUT, no que diz respeito à greve como forma de mobilização dos trabalhadores,
passou por uma grande transformação nos últimos anos. A maior expressão dessa
mudança é a proposta do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC de redução do
número de greves em sua base. Segundo Luiz Marinho, seu presidente, a greve,
que foi uma forma de luta eficiente nos anos 70 e 80, continuará a ser usada
“contra empresas e empresários que pararam naquele tempo e se recusam a nego-
ciar com seriedade”. Buscando a criação de alternativas sindicais, o sindicalista
afirma a importância da organização no local de trabalho, com a formação dos
comitês sindicais de base, “com pressão cotidiana e negociação constante”. Ante-
pondo-se ao que denomina de parcela atrasada e insignificante “com discurso
raivoso”, Marinho reconhece que o trabalhador não é mais atraído pela proposta
de greve e que esta já não tem a mesma eficácia. Por um lado, o discurso tem o
objetivo de atrair investimentos para a região, convencendo os empresários de que
a prática sindical mudou e, de outro, mostrar aos trabalhadores a necessidade da
organização no local de trabalho, como forma de preparar-se para o fim da unicidade
sindical (cf. O Estado de S. Paulo, 14/05/1997, p. B-1; 19/05/1997, p. B-4).
Ainda com referência à greve geral, cabe destacar os esforços para
garantir a união das três centrais durante a paralisação, superando as diver-
gências. Vicentinho, dirigente da CUT, e Canindé Pegado, da CGT, declara-
vam-se surpresos com o comportamento da Força Sindical não desistindo da
greve e negando a sua prática de negociação com o governo. O discurso de
Luiz Antônio de Medeiros, por exemplo, neste episódio, era de oposição e de
crítica ao governo. E segundo líderes da própria Força Sindical, “o ministro
do Trabalho, Paulo Paiva, ofereceu a presidência da Delegacia Regional do
Trabalho de São Paulo para a Força Sindical, em troca da desistência da gre-
ve” (O Estado de S. Paulo, 23/06/1996, p. B-4).
Na realidade, o ano de 1996 é marcado por tentativas de união, seja
de entidades sindicais, seja das centrais, em vários momentos, apesar das difi-
culdades de superação das divergências. Paulo Pereira da Silva, presidente do
Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, e Heiguiberto Navarro, presidente
do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, negociaram uma campanha
salarial conjunta, fora da data-base da categoria, para tentar repor as perdas
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salariais. Entretanto, a Federação dos Metalúrgicos da CUT recusou-se a par-


ticipar de uma plenária convocada pela Força Sindical, alegando que mais de
60% dos filiados já tinham conquistado reposição ou antecipação salariais
nos últimos meses e a estratégia da CUT era de encaminhar as reivindicações
por empresas (cf. O Estado de S. Paulo, 04/07/1996, p. B-7).
Outra tentativa, no sentido de pressionar o governo, foi a proposta da
campanha salarial articulada de cerca de 1,4 milhões de trabalhadores bancários,
petroleiros, químicos e metalúrgicos, no último quadrimestre do ano. O que moti-
vava a proposta de união era a previsão dos dirigentes sindicais de embates difí-
ceis com os empresários e o clima de insatisfação e de “rompimento” com o go-
verno. Tanto a CUT quanto a Força Sindical declaram-se insatisfeitas com o não
atendimento de suas propostas: “Dirigentes das duas centrais lembram que o go-
verno rejeitou todas as suas reivindicações este ano: sobre a reforma da Previdên-
cia, o reajuste dos aposentados, a reforma tributária, as políticas de crescimento de
emprego, as mudanças na política de importação, no índice de nacionalização de
componentes de produtos, a reativação de câmaras setoriais e outros” (O Estado
de S. Paulo, 26/08/1996, p. B-1). No bojo dessa campanha, as centrais se unem
propondo a criação de um movimento nacional intersindical, denominado Reage
Brasil, contra a política econômica do governo. Além das centrais, participariam
do movimento os dirigentes dos metalúrgicos, petroleiros, químicos, bancários e
outras categorias. Foi estabelecido um calendário de mobilização, com atividades
nos meses de setembro e outubro (cf. O Estado de São Paulo, 19/09/1996, p. B-5).
Nesse contexto, no final de setembro, início de outubro de 1996, os
bancários paulistas realizaram greve de uma semana (de 26/09 a 04/10/1996).
Conseguiram “10,8% de reajuste, abono equivalente a 45% do salário (vari-
ando entre R$ 315,00 e R$ 1.125,00), 12% para os pisos de caixas e escritu-
rários e prêmios de participação nos lucros e resultados (PLR) de 60% do
salário mais R$ 270,00 fixos, a ser pago até 28 de fevereiro [de 1998]” (O
Estado de S. Paulo, 05/10/1996).
O ano de 1996 foi marcado, entretanto, pela luta dos sindicalistas con-
tra o desemprego que, em progressão acentuada, atingiria, em dezembro, a taxa de
14,2%, na região metropolitana de São Paulo (cf. Dieese, 1999, p. 28). Embora a
CUT também manifestasse a sua insatisfação com o governo, é na Força Sindical,
até então a interlocutora privilegiada do governo e dos empresários, que se verifi-
cou uma mudança de rumo, passando da ênfase na negociação ao enfrentamento
direto com o governo. Segundo Luiz Antônio de Medeiros, “O diálogo com o
governo não estava dando nenhum resultado. Esse governo não é articulado o
suficiente para tomar medidas negociadas, ouvir a sociedade. Infelizmente, desco-
brimos que o método deve ser outro” (O Estado de S. Paulo, 18/08/1996, p. B-4).
Daí a opção de ir “para a luta” pois, segundo Medeiros, na mesma entrevista, “se
investíssemos no diálogo, iríamos nos liquidar como central”... “O governo pro-
meteu dinheiro para qualificação profissional e não mandou. O governo nem se
mexeu para abrir frentes de trabalho. O governo não está cuidando dos problemas
sociais, da saúde, da educação, do desemprego. O movimento sindical está tendo
de enfrentar sozinho o drama das vítimas da modernização mal conduzida”.
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Nessa linha de ação sindical ocorreu a invasão do prédio do Ministé-


rio da Fazenda, em São Paulo, por cerca de oitocentos trabalhadores da Sofunge
e da Vicunha, empresas que encerraram suas atividades, demitindo cerca de
2.850 empregados, no total. No confronto com seguranças e com a Polícia Mi-
litar, dois sindicalistas foram feridos, um deles Paulo Pereira da Silva, presiden-
te do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, que teve um olho e o rosto
atingidos por um soco. Atendido no hospital, constatou-se que ele estava com
três fraturas no rosto. Cerca de trezentos trabalhadores da Sofunge permanece-
ram acampados no Ministério da Fazenda. Medeiros acusou o governo de “imo-
bilidade” e o Ministro Paulo Paiva de “ministro de gabinete, ausente quando
precisamos dele” (O Estado de São Paulo, 09/08/1996, p. B-7).
Esse discurso de oposição, incomum no campo da Força Sindical,
tinha o objetivo de pressionar o governo, no sentido de conseguir as suas reivin-
dicações. É ele que dá sentido à participação dessa central nas lutas conjuntas
com a CUT, desde a tentativa de greve geral. Mas ele expressa, também, o reco-
nhecimento da crise decorrente da política econômica, das altas taxas de desem-
prego, da acentuação do desnível na distribuição de renda, do enfraquecimento
dos sindicatos. A análise de Paulo Pereira da Silva é significativa, nesse sentido:
“o movimento sindical está tão perdido quanto o resto do Brasil. Era fácil ser
dirigente com a inflação de 70%. Você ia lá, negociava 60% e ainda era aplaudi-
do pela base. Sindicalista perdeu a função que tinha. A situação é séria e os
dirigentes estão percebendo isso e ficando mais sérios”... “[o trabalhador] está
desesperado”... “sem horizontes” (O Estado de S. Paulo, 28/04/1996, p. B-7).
Mas, ao mesmo tempo em que os sindicalistas se organizavam em
movimentos de contestação e de reivindicação, mostravam, também, a disponi-
bilidade de participar, juntamente com os empresários, das comissões técnicas e
dos conselhos tripartites criados pelo governo. Em setembro de 1996 é instala-
do, pelo Ministro Paulo Paiva, o Conselho Nacional do Trabalho. Na primeira
reunião desse Conselho, entretanto, percebe-se que a pauta a ser cumprida seria
definida pelo governo, cujos objetivos de flexibilização da legislação trabalhis-
ta e sindical divergem dos interesses que orientavam a participação de empresá-
rios e sindicalistas. Segundo Vicentinho “a discussão mais urgente não é modi-
ficar a legislação, mas criar emprego”. Para o presidente da Federação Brasilei-
ra de Bancos, Maurício Schulman, “o maior desafio agora é criar investimento e
não é possível criar mais emprego com as taxas de juros da economia”. E para o
Ministro, “há vários caminhos para se criar emprego. Um deles é modernizar a
legislação”. Nesse sentido, ao marcar a segunda reunião do Conselho para 11 de
outubro, o Ministro sugeriu a criação do pluralismo sindical como tema da pau-
ta a ser discutida. Com isso, provocou a desconfiança de Luiz Antônio de
Medeiros: “o meu temor é que o governo queira discutir o pluralismo sindical
para debilitar os sindicatos”... “eu estou com um pé atrás com a proposta do
pluralismo sindical” (O Estado de S. Paulo, 04/09/1996, p. B-3).
O governo FHC, ao formular as suas propostas de modificação do
sistema de relações de trabalho, tocava em questões polêmicas em torno das
quais não havia consenso nem no interior de uma mesma central sindical. Desde
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o início o governo vinha acenando com o que chamava de “modernização” do


sistema, com ênfase na livre negociação e o afastamento do Estado das negoci-
ações: “A política do governo na área trabalhista visa maior eficiência e igual-
dade no mercado de trabalho e a modernização das relações de trabalho. Quere-
mos transformar o modelo autoritário em vigor por outro de autocomposição e
de menor interferência do Estado” (O Estado de S. Paulo, 14/01/1996, p. D-2)2.
Mas, enquanto não conseguia aprovar as suas propostas, o governo
foi criando atritos, especialmente nas comissões tripartites, na medida em que
tomava iniciativas que contrariavam as expectativas e os interesses de empre-
sários e sindicalistas. Assim, no começo de dezembro de 1996, Vicente Paulo
da Silva e João Vaccari Neto, presidente e secretário geral da CUT, respecti-
vamente, anunciavam seu afastamento do Conselho Nacional do Trabalho,
alegando que nunca foram consultados para nada. Para Vaccari Neto, “o go-
verno renunciou à Convenção 158 da OIT, inventou os projetos sobre contra-
to temporário de trabalho, lei de greve, uso do FGTS em privatizações e uma
série de outros assuntos sem ao menos informar a comissão. Esse governo faz
propaganda de suas comissões tripartites, mas tem uma prática imperial” (O
Estado de S. Paulo, 16/12/1996, p. B-5).
Especificamente com relação à Convenção 158, o governo elaborara
uma proposta alterando o artigo 7o, inciso 1o da Constituição, substituindo a multa
de 40% sobre o total dos depósitos do FGTS, no caso de demissão, por uma
indenização correspondente a um salário por ano trabalhado na empresa e mais
uma multa, incidindo sobre a indenização3. Com esse projeto de lei complementar,
o governo tomou a iniciativa de rejeitar, formalmente, a convenção 158, que era
vista, por sindicalistas e juristas, como mais favorável aos trabalhadores, pois
criava obstáculos para a demissão sem motivo. E, principalmente, a convenção
obrigava as empresas a negociarem com os sindicatos e o poder público no caso de
demissões em massa. A proposta do governo, entretanto, estabelecia que as de-
2
Krein (1999, p. 18) missões coletivas ou individuais podiam ser classificadas como imotivadas ou
chama a atenção para
essa mudança no pa-
com motivo. E o motivo tanto podia ser por necessidade econômica, quanto neces-
pel do Estado nas re- sidade tecnológica, criando, como destaca o professor Otávio Magano, “uma nova
lações de trabalho, concepção do conceito de demissão que não é por justa causa”. Na observação
considerando que isso
expressa a abdicação desse mesmo jurista, as empresas poderiam mais facilmente despedir funcionári-
de seu papel de pro- os, alegando “que a atuação do trabalhador é incompatível com as suas necessida-
tetor do trabalhador e des ou por questões econômicas, tecnológicas ou estruturais” (O Estado de S.
o fortalecimento de
um processo de regu- Paulo, 13/11/1996, p. B-1). É justamente esse o aspecto que preocupava sindica-
lação via mecanismos listas da CUT e da Força Sindical. Para Medeiros, o projeto facilitaria as demis-
de mercado.
3
Para o Ministro Paulo
sões e dificultaria o controle das razões alegadas pelas empresas que, sem dúvida,
Paiva (cf. O Estado de iriam apelar para motivos econômicos e tecnológicos. Na mesma linha, Vicentinho
S. Paulo, 29/12/1996, acrescentava que o projeto significaria mais um exemplo de precarização do tra-
p. B5), o projeto situa-
se entre o regime de balho e um ataque aos direitos dos trabalhadores. Do lado dos empresários as
estabilidade do traba- críticas eram um pouco diferentes, destacando alguns aspectos importantes. O
lhador, que existia no diretor do Sindicato Nacional da Indústria de Máquina acentuava que o projeto
Brasil até 1966, e as
atuais regras regidas oneraria as dispensas dos trabalhadores mais antigos das empresas, estimulando,
pela Convenção 158. por outro lado, a dispensa dos trabalhadores mais jovens, aumentando assim a
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rotatividade nessa faixa etária.


As dificuldades do governo com as comissões tripartites se expressa-
va, também, com o afastamento de juristas e empresários. Na Comissão Perma-
nente de Direito Social, o jurista Arnaldo Sussekind renunciou, em 21/11/1996,
alegando que nem ele, nem os cinco juristas que compõem a comissão, foram
ouvidos em relação ao contrato temporário e sobre a desistência do Brasil em
adotar a Convenção 158 da OIT. Em 10/12/1996, o empresário Paulo Roberto
Henrique, presidente do Sindicato da Indústria de Construção Civil de Minas
Gerais e representante da CNI no Conselho Curador do FGTS, afastou-se do
conselho, irritado com a atuação do governo no órgão. As alegações foram de
que o presidente FHC, através de medida provisória de janeiro de 1996, mudara
a composição do conselho, ampliando a participação do governo de cinco para
seis representantes, mas mantendo a representação de empresários e trabalha-
dores em três membros cada. Com isso, em caso de empate, o voto qualificado
caberia ao governo. Além disso, ao pedir vistas do programa Pró-Moradia, to-
cado com recursos do FGTS, na ordem de dois milhões de reais, foi-lhe concedi-
do o prazo de apenas quatro dias úteis para o trabalho. Considerou isso uma
“manobra” do governo para evitar a fiscalização de empresários e trabalhadores
e “coação”, já que, mesmo sem análise, o conselho teria de manifestar-se sobre
o programa dentro de uma semana. Confirmando essa alegação de que empresá-
rios e trabalhadores não dispunham de tempo para analisar e sugerir mudanças
nas propostas do governo, o representante da CUT no mesmo Conselho recla-
mava da utilização do FGTS do trabalhador em ações de privatização, afirman-
do que a idéia foi apresentada em outubro pelo governo e logo em seguida envi-
ada para o Congresso, impedindo a discussão.
Como se vê, o governo usava o discurso da livre iniciativa na nego-
ciação entre empresários e trabalhadores, ao mesmo tempo em que procurava
impor um novo modelo de relações de trabalho, atropelando a discussão e
frustando as expectativas dos sindicalistas, especialmente os da CUT, que
finalmente se dispunham a participar.
Do ponto de vista social, entretanto, o grande momento para os
movimentos populares ocorreu em abril de 1997, com a marcha do Movimen-
to dos Sem-Terra (MST) até Brasília que culminou com uma grande manifes-
tação na Esplanada dos Ministérios. Este foi, na verdade, o primeiro protesto
de grande magnitude contra o governo de Fernando Henrique Cardoso. De
certa forma, passada a euforia dos dois primeiros anos do Plano Real, os Sem-
Terra simbolizaram com seu movimento a vontade de setores variados da po-
pulação brasileira que externavam seu descontentamento frente à situação
econômica e social em que mergulhara o País.

Mudanças no sistema de relações de trabalho: algumas características do


período 95-98

O sindicalismo viveu, no final dos 70 e durante os 80, um período


de grande atividade, tanto no que tange à organização quanto no tocante às
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MARTINS, Heloísa de Souza & RODRIGUES, Iram Jácome. O sindicalismo brasileiro na segunda metade dos anos 90. Tempo
Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 155-182, out. 1999 (editado em fev. 2000).

demandas mais propriamente sindicais. As reivindicações sindicais tinham,


como aspecto central, a luta pela reposição salarial em decorrência da inflação
alta. Quando, no entanto, olha-se à distância, observa-se uma mudança radi-
cal da ação sindical na década de 90, especialmente no que diz respeito às
demandas do sindicalismo. Em função das transformações que ocorreram na
economia, na política e, em alguma medida, na sociedade, a agenda sindical se
voltou para o interior da empresa, discutindo mais diretamente questões rela-
cionadas com a problemática do trabalho, sejam as vinculadas à organização
e gestão do trabalho, sejam aquelas ligadas à remuneração variável, como a
Participação nos Lucros e Resultados, por exemplo.
Para Sílvia Portella, “o novo cenário, que se estende desde 1995 até
os dias de hoje vem provocando uma mudança profunda no mundo do trabalho
e no próprio perfil de atuação sindical. Essas mudanças, porém, têm se dado
muito mais pela flexibilização de acordos coletivos que por mudanças
legislativas” (Portella de Castro, 1999, p. 20). Ainda para esta autora, as condi-
ções para uma mudança nas relações de trabalho, nos moldes propostos pela
Central Única dos Trabalhadores (sindicato independente e com um aspecto
social e de negociação mais forte), por exemplo, teria tido mais possibilidade de
se concretizar nos anos 80 e, talvez, início dos 90. Período em que “o País ainda
vivia uma transição de modelos, não havia o nível de desemprego atual, não
havia se instalado a descentralização econômica e produtiva e o processo de
reestruturação que trouxe consigo a descentralização das negociações coletivas
e, em função disso, era maior o poder dos sindicatos, principalmente da CUT.
Com a consolidação do novo modelo desregulador essas propostas não têm
lugar e os sindicatos não têm força para impor ao governo e ao segmento empre-
sarial um processo negociado” (Portella de Castro, 1999, p. 20).
Para uma caracterização mais geral do período referente ao primei-
ro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso no que tange às relações
de trabalho, a palavra que expressaria com mais propriedade essa interação é
flexibilização. Segundo Krein (1999, p. 13) “flexibilizar as relações do traba-
lho significa deixar a cargo das forças do mercado a regulação do processo de
contratação, demissão e custo da força de trabalho”. Entendida como parte do
processo de racionalização produtiva, a flexibilização viria, no entendimento
de empresários e do governo, resolver o problema do desemprego na medida
em que poderia contribuir para a redução do custo do trabalho.
Um dos maiores defensores da flexibilização do mercado de traba-
lho, José Pastore, sintetiza de modo preciso o interesse na redução do que
denomina de rigidez dos sistemas de relações de trabalho: “o impacto dos
custos do trabalho na produção e no emprego depende muito da produtividade
dos trabalhadores e da flexibilidade dos sistemas de contratação e remunera-
ção. O baixo nível educacional, a mão-de-obra pouco qualificada e o excesso
de rigidez dos referidos sistemas, tendem a elevar extraordinariamente o custo
do trabalho e, portanto, comprometer a produção, a competitividade e o em-
prego” (Pastore, 1994, p. 148). Apontando os encargos sociais, vinculados à
folha de pagamento, como um dos responsáveis pelo custo do trabalho, esse
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MARTINS, Heloísa de Souza & RODRIGUES, Iram Jácome. O sindicalismo brasileiro na segunda metade dos anos 90. Tempo
Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 155-182, out. 1999 (editado em fev. 2000).

autor defende a sua diminuição, através da desregulamentação do mercado de


trabalho como condição para se alcançar um nível mais alto de emprego e
uma melhor remuneração para os trabalhadores.
Na realidade, como aponta Portella de Castro “já nos anos 70 o
mercado de trabalho brasileiro era bastante flexível, tendência essa que o
sindicalismo tentou reverter na Constituinte de 1988. Em parte esses objeti-
vos foram alcançados pois o novo texto constitucional fortaleceu a proteção
laboral ao constitucionalizar uma série de direitos antes previstos apenas em
lei ordinária, tais como: limitação da jornada de trabalho, férias, licença ma-
ternidade, contrato de trabalho, aposentadoria por tempo de serviço, estabili-
dade dos servidores públicos, etc. A jornada de trabalho foi reduzida de 48
para 44 horas semanais para todos e foi adotada a jornada diária de seis horas
para os que trabalham em turno contínuo. Ao mesmo tempo, porém, a Cons-
tituição permitiu a extensão ou redução temporária da jornada de trabalho,
com possível redução temporária dos salários mediante acordo com o sindi-
cato” (Portella de Castro, 1999, p. 3) (grifo da autora)4.
Será exatamente o programa de reformas da Constituição de 1988
que definirá o caráter assumido pelo governo FHC, especialmente na sua rela-
ção com o movimento sindical (cf. Krein, 1999, p. 14). E, como acentua este
mesmo autor, as iniciativas de desregulamentação e flexibilização das rela-
ções de trabalho ganharam maior impulso quando, em virtude do processo de
abertura comercial, as pressões empresariais para a redução dos custos do
trabalho aumentaram e conforme o desemprego crescia.
Ainda que algumas dessas iniciativas partissem do governo, atra-
vés do envio de projetos de lei ao Congresso e da edição de medidas provisó-
rias, sindicatos, trabalhadores e entidades empresariais também contribuíram
para a negociação em torno da flexibilização do trabalho.
Uma dessas experiências diz respeito ao trabalho temporário. Au-
torizada pela lei 6.019, de janeiro de 1974, a contratação de trabalhadores
temporários, inicialmente prevista apenas para as “atividades meio” e depois
estendida para as “atividades fins”, teve o seu prazo ampliado de 45 para 90
dias. Foi precisamente no sentido de conter a precarização e insegurança re-
sultante desse tipo de trabalho que os trabalhadores se mobilizaram durante a
Constituinte. Contudo, projeto elaborado em 1992 veio propor o aumento do
prazo para até seis meses, com o objetivo de facilitar a contratação de traba-
lhadores através de empresas locadoras de mão-de-obra. Contraditoriamente,
entretanto, a dilatação do prazo do contrato de trabalho temporário não impli-
caria na redução do desemprego. Dados referentes ao ano de 1996 mostram
que o número de empregados temporários tinha sido reduzido em cerca de
4
25% com relação a 1994, passando de 2 milhões para 1,5 milhões (cf. O Para Pastore, entretan-
to, a incorporação dos
Estado de S. Paulo, 07/07/1996, p. B-1). Segundo empresários ligados ao direitos sociais que
setor, o trabalho temporário só vai bem quando a economia cresce e as empre- estavam na CLT na
sas necessitam ampliar a produção e as vendas. Em período de crise, o traba- Constituição de 1988
aumentou a rigidez do
lhador temporário é o primeiro a ser despedido. sistema de remunera-
Mas, será no sentido de resolver o desemprego e com o objetivo de ção e contratação.
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redução dos custos do trabalho que outro projeto, propondo o contrato de traba-
lho por tempo determinado, passará a centralizar as atenções do governo, em-
presários e sindicalistas. Desde o início do primeiro mandato, o governo FHC
vinha defendendo essa idéia. Em várias entrevistas o Ministro Paulo Paiva se
referia ao interesse do governo em estimular o contrato de trabalho por tempo
determinado, considerando-o fundamental para a redução dos custos e para a
formalização do mercado de trabalho, estimulando a criação de emprego e me-
lhorando a proteção ao trabalhador (cf. O Estado de S. Paulo, 14/01/1996, p. D-
2; 22/02/1996, p. B-1; 28/04/1996, p. B-7; 29/12/1996, p. B-5).
Uma das notícias informava que, por trás da iniciativa do Ministro,
estava o interesse em solucionar o impasse criado com o acordo assinado pelo
presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo com oito entidades
patronais e que fora considerado ilegal pela Justiça do Trabalho. O acordo
permitia a contratação temporária com menos encargos sociais e admitia mu-
danças nos direitos dos empregados. A Procuradoria Regional do Trabalho
entrou com medida cautelar no Tribunal Regional do Trabalho, que concedeu
liminar imediatamente, cancelando cinco cláusulas e obrigando as empresas a
contratarem segundo as normas da CLT. Enquanto os juristas apontavam a
ilegalidade do acordo, o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, Paulo Pe-
reira da Silva, via-o como “o melhor caminho para criar postos [de trabalho]
nesse momento” (O Estado de S. Paulo, 22/02/1996, p. B-3). Na mesma li-
nha, o presidente da Metalúrgica Aliança, a primeira empresa a contratar 35
trabalhadores segundo as normas do acordo5, enfatizava a sua importância
para o debate sobre as relações entre o capital e o trabalho. Entretanto, em
termos da redução dos custos do trabalho, a previsão deste mesmo empresário
era de uma diminuição de 15% nos encargos sociais.
De fato, o acordo favoreceu a discussão em torno da questão, acirrando
posições até mesmo no interior da Força Sindical e do Sindicato dos Metalúrgicos
de São Paulo. Dos 45 sindicatos de metalúrgicos filiados àquela central, no estado
de São Paulo, apenas o de São Caetano do Sul apoiou o contrato flexível. Houve,
também, divergências no nível nacional, com 34 dirigentes de todo o país man-
dando cartas de desfiliação, liderados pelo secretário-geral da Força Sindical,
Enilson Simões de Moura, o Alemão. Com isso, a Central ficou sem presidentes
em nove estados: Amazonas, Alagoas, Ceará, Pernambuco, Maranhão, Pará, Rio
5
Quando a empresa ofe- Grande do Norte, Espírito Santo e Minas Gerais.
receu 85 vagas de au-
xiliar de produção, Os dados mais contraditórios, entretanto, são fornecidos pelos traba-
dentro das novas re- lhadores. Em pesquisa realizada pelo InformEstado 72,2% dos metalúrgicos
gras, mais de mil pes-
soas se candidataram.
entrevistados, na base de São Paulo, eram contrários a qualquer alteração nos
Eram pessoas desem- direitos trabalhistas adquiridos. Entretanto, 47,4% deles aceitariam um empre-
pregadas e dispostas a go sem registro em carteira e sem alguns encargos sociais, enquanto 47,8% não
aceitar um contrato de
trabalho sem muitas aceitariam. Outros dados da mesma pesquisa evidenciam a dificuldade do tra-
garantias. Segundo balhador em assumir uma posição mais definida com relação ao acordo, especi-
uma delas “é melhor o almente quando colocados diante da possibilidade efetiva do desemprego: 47,4%
pingado que o seco” (O
Estado de S. Paulo, 18/ declaravam-se contra o acordo e 45,0% a favor; 71,3% achavam que as demis-
02/1996, p. B-3). sões não parariam; 54,5% que o acordo aumentaria o número de empregos e
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43,5% que a diminuição dos encargos e impostos trabalhistas das empresas


seria a melhor opção para combater o desemprego (cf. O Estado de S. Paulo, 18/
02/1996, p. B-3). Pode-se concluir, portanto, que se por um lado, os trabalhado-
res concordavam com a redução dos encargos sociais, na esperança de garantir
mais empregos, por outro lado, não queriam que seus benefícios legais fossem
alterados. Mas, diante do desemprego, os trabalhadores optam pela manutenção
do emprego, mesmo com o sacrifício dos direitos e benefícios adquiridos.
Entrevistas realizadas com desempregados no Largo Treze, em Santo
Amaro, revelavam que eles não conheciam o acordo firmado pelo Sindicato
dos Metalúrgicos. Quando informados, colocavam-se contra o acordo, mas
caso fossem convocados para um serviço temporário com o não recolhimento
de todos os encargos, aceitariam. Um fresador de 41 anos, desempregado há
seis meses, reconhecia que “acabaria aceitando por falta de outra opção, em-
bora não concorde com essa política”. Outro metalúrgico, desempregado há
sete meses, aceitaria trabalhar sob as condições acordadas pelo sindicato “mas
depois não terei dúvidas em recorrer à Justiça para receber o que é meu direi-
to”. (O Estado de S. Paulo, 18/02/1996, p. B-3).
É justamente essa incerteza quanto a viabilidade legal do acordo que
caracteriza a rejeição do mesmo por parte de empresários ligados à FIESP. Os
motivos alegados iam desde a desconfiança com relação ao entusiasmo do Mi-
nistro Paulo Paiva, à consideração de que a redução dos custos das contratações
não contribuiria para aumentar a oferta de empregos. O presidente da entidade,
na época, Carlos Eduardo Moreira Ferreira, cautelosamente lembrava aos em-
presários que o acordo não tinha base legal e poderia trazer prejuízos aos em-
presários que, deixando de pagar algumas contribuições, teriam que pagá-las
em dobro, posteriormente (cf. O Estado de S. Paulo, 18/02/1996, p. B-3).
Foi no contexto desse debate que o projeto de contrato de trabalho por
tempo determinado começou a ser discutido. Em sua primeira versão, esse tipo de
contrato era destinado exclusivamente a trabalhadores de determinadas faixas
etárias: jovens, que estavam entrando no mercado e aqueles entre 40 e 45 anos que
perdiam o emprego. Enviado pelo governo, no início de 1997 ao Congresso Na-
cional, em março já havia sido aprovado pela Câmara e estava na pauta do Sena-
do. Permitindo a adoção de trabalho temporário em até 20% do quadro de pessoal
em cada empresa, o projeto exigia que a admissão de novos empregados não po-
deria acarretar a demissão dos antigos e garantia a redução dos encargos sociais.
Introduzia-se, portanto, diferenças com o contrato de trabalho temporário, estabe-
lecido pela lei de 1974. Por esta, o contrato seria feito através de uma empresa
fornecedora de mão-de-obra, seria válido por três meses, podendo ser renovado
por uma vez e ser usado para a substituição de funcionários.
O debate em torno dessa proposta mobilizou trabalhadores, sindica-
listas, empresários, técnicos e membros do governo. Comecemos pelas opiniões
de um técnico que, na discussão, tem assumido os interesses dos empresários.
José Pastore, por exemplo, considerava o projeto muito complexo, pois exigiria
um longo ritual de negociação com os sindicatos, no sentido de estabelecer um
acordo ou convenção coletiva. Além disso, a empresa deveria comprovar ao
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sindicato, periodicamente, durante a vigência do contrato, que os trabalhadores


eram, de fato, adicionais e não substitutos. A questão que colocava é se valeria
a pena enfrentar toda essa burocracia para obter apenas uma redução de 22%
nos encargos sociais, especialmente no caso das micros e pequenas empresas
(cf. O Estado de S. Paulo, 28/05/1996, p. A-2). Já Márcio Pochmann, analisan-
do o conjunto de medidas governamentais, entre as quais o projeto em questão,
considerava que elas representavam a precarização das condições e das relações
de trabalho. Tratava-se, para ele, da “liquidação gradual e silenciosa do estatuto
do trabalho”, com o “abandono das políticas ativas de regulação do mercado de
trabalho e do fortalecimento da democratização das relações do trabalho” (O
Estado de S. Paulo, 22/09/1997, p. B-2).
No campo sindical, do lado da CUT, as críticas ao projeto revela-
vam a descrença na possibilidade de criação de empregos e acentuavam o
caráter de precarização do trabalho, criando um trabalhador de “segunda cate-
goria”. A posição da Força Sindical era de defesa do projeto, acreditando que
só na sua base de São Paulo seriam criados cerca de 30 mil empregos no
primeiro ano de vigência do contrato. E, ainda que em sua maioria, os empre-
sários fossem favoráveis à proposta, Fernando Tadeu Perez, da Volkswagen,
apresentava restrições a ela: “Não é um projeto aplicável. É uma idéia tímida
diante da necessidade de redução de custos com a mão-de-obra no País, e ao
mesmo tempo ingênua: não se pode pagar de uma forma um contingente de
empregados e criar nova estrutura de remuneração para outra faixa de empre-
gados” (O Estado de S. Paulo, 10/03/1997, p. B-4).
Finalmente aprovado como lei no 9.601, no início de 1998, o con-
trato de trabalho por tempo determinado prevê admissão por até dois anos,
com redução nos encargos sociais, nas seguintes proporções: 50% nas contri-
buições do Incra, salário educação, seguro acidente de trabalho e sistema S6 e
de 75% no FGTS, que cai de 8% para 2% do salário do empregado. Foram
mantidas as exigências de que o contrato crie novas vagas e que seja estabele-
cido por meio de negociação coletiva com o sindicato da categoria. O traba-
lhador perde alguns direitos trabalhistas, como depósitos menores no FGTS,
e fica sem direito à multa rescisória de 40% sobre esses depósitos no fim do
contrato e ao aviso prévio. Foram estabelecidos limites para a contratação,
que variam de acordo com a média de funcionários da empresa nos seis meses
anteriores à publicação da lei (22/01/1998). O empregador com mais de 49
funcionários pode contratar mais 50% do total. Quem emprega entre 50 e 199
pode admitir mais 35% e para as empresas com mais de 199 empregados o
limite é de 20%. E, finalmente, a nova lei cria o banco de horas.
A CUT manteve a sua oposição a esse tipo de contrato de trabalho,
recusando a negociação dentro dele, tendo entrado com um pedido de
inconstitucionalidade da lei junto ao Supremo Tribunal Federal.
6
O sistema S compre- As expectativas da Força Sindical quanto à criação de novos empre-
ende as contribuições gos, entretanto, pareciam não se confirmar. Três meses após a aprovação da lei,
ao Sesi, Senac, Sest,
Senai, Senac, Senat e o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo afirmava que já ti-
Sebrae. nham fechado trinta e dois acordos, metade deles com empresas de pequeno
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porte, as mais beneficiadas com a nova medida. Em termos de geração de em-


pregos, o resultado ainda era modesto: cerca de 1.500 (cf. Folha de S. Paulo, 05/
04/1998, p. Tudo-2). Após oito meses da vigência dessa Lei, a própria Força
Sindical reconhecia que não tinham sido criados mais que 2.600 novos empre-
gos (cf. Krein, 1999, p. 20). Quanto à redução dos custos para os empresários,
os cálculos estabeleciam uma redução de 12% a 18%, dependendo da duração
do vínculo empregatício (cf. Folha de S. Paulo, 05/04/1998, p. Tudo-2).
Pesquisa realizada pelo Sebrae com 407 pequenas e microempresas
da Grande São Paulo, permite-nos avaliar a receptividade da nova lei. Segun-
do os dados, 89% delas têm pouca ou nenhuma informação sobre o contrato
por tempo determinado, mas 17% delas já tinham decidido usar esse instru-
mento7. Os setores mais inclinados a usar a nova lei eram o de serviços (18%),
e o do comércio (17%), com uma menor adesão do setor industrial (13%).
Apenas 3% desses pequenos e micro empresários se dispunham a usar o ban-
co de horas, que parecia atrair mais as médias e grandes empresas. Na pers-
pectiva das empresas entrevistadas, a nova lei permitiria a redução dos custos
(42%), maior facilidade para demitir (33%), maior facilidade para contratar
(30%), maior rotatividade da mão-de-obra (30%) e menor informalidade (16%).
Apesar de atrativa, entretanto, a lei era vista com desconfiança por esses em-
presários, principalmente devido aos custos da negociação com os sindicatos.
Segundo um deles, seria preciso contratar um consultor pois “colocar um
amador (o empresário) para negociar com um especialista (o sindicalista) não
pode dar certo”. Para ele, os sindicatos são “especialistas na negociação, fa-
zendo isso 90% do tempo e o empresário dedica seu tempo a fabricar e a
vender”. O temor maior, entretanto, decorria da possível inconstitucionalidade
da lei, alegada pela CUT (cf. O Estado de S. Paulo, 19/04/1998, p. B-10).
De fato, empresários, advogados e até sindicalistas alertavam para
o fato de que a maioria dos acordos fechados entre trabalhadores e empresas
visando a manutenção de empregos era ilegal. Segundo o diretor de RH da
Volkswagen “quase todos os acordos considerados importantes para manter
empregos no Brasil, se observados com rigor legal, apresentam problemas”.
Para ele, “todos os esforços do governo para trazer investimentos e manter a
economia estável são o alicerce de uma luta contra o desemprego, mas somos
obrigados a notar que na área do trabalho há certa falta de coordenação polí-
tica” (O Estado de S. Paulo, 22/02/1998, p. B-1).
Apesar da existência de diversos projetos de mudança da legisla-
ção trabalhista e sindical e da própria CLT, elaborados pelas centrais sindi-
cais, pelo Ministério do Trabalho e a CNI, a lentidão no encaminhamento
dessas propostas fazia com que se pensasse na falta de disposição política por 7
Segundo o Sebrae, se
parte do governo. Na realidade, o governo FHC evitava intervir nas relações 17% dessas empresas
utilizassem esse tipo
de trabalho, esperando que empresários e trabalhadores negociassem “livre- de contrato no país
mente” as suas pendências. Facilitava, com isso, o estabelecimento de acor- todo, isso significaria
dos passíveis de contestação jurídica. O presidente Fernando Henrique enten- a criação de 100 mil
postos de trabalho, a
dia que qualquer intermediação do governo seria um “retrocesso”, expressan- metade deles só na
do uma atitude populista, característica de uma época ultrapassada: “Desde Grande São Paulo.
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MARTINS, Heloísa de Souza & RODRIGUES, Iram Jácome. O sindicalismo brasileiro na segunda metade dos anos 90. Tempo
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que eu me entendo, os sindicatos sempre lutaram por negociações livres e


estão fazendo agora. Eles têm seus sindicatos, suas centrais. Acho que seria
um retrocesso pedir agora que o governo se meta naquilo que é próprio deles”
(Folha de S. Paulo, 10/12/1997, p. 2-5). Mesmo alardeando a intenção de
reformular o sistema de relações de trabalho, o governo relutava em intervir
mais diretamente, como se, de fato, estivesse ausente do processo. Na prática,
entretanto, a livre negociação era limitada pelo quadro econômico de recessão
e desemprego e pelas medidas governamentais que deslocavam para o interior
da empresa o processo de negociação, dificultando a participação das entida-
des sindicais (cf. Krein, 1999, p. 17).
Como apontamos anteriormente, a lei no 9.601 regulamentava, tam-
bém, o banco de horas. Este aparece como um tema de fundamental importân-
cia na relação capital/trabalho, no período analisado, na medida em que repre-
sentou uma flexibilização sem precedentes da jornada de trabalho.
Em pesquisa recente, a partir do estudo de vinte casos de negocia-
ção, observou-se que a ampla maioria dos acordos em que ocorreram conces-
sões dos trabalhadores em troca da manutenção do emprego, estava presente
o instituto do banco de horas e, por extensão, o fim das horas-extras. Pressio-
nados pelas dificuldades no mercado de trabalho, os sindicatos se vêem obri-
gados a abrir mão de conquistas anteriores, para preservar empregos. Dos
vinte casos examinados, nada menos que onze tiveram como objetivo explíci-
to a flexibilização via banco de horas. E, em razão disso, em 80% dos casos,
os acordos estipulavam o fim e/ou diminuição drástica das horas-extras8.
A flexibilização da jornada, acompanhada do banco de horas e da
significativa diminuição das horas-extras, representa uma enorme concessão
dos trabalhadores e, aparentemente, uma significativa redução nos custos do
trabalho para a empresa. Em outras palavras, na medida em que a hora extraor-
dinária significa, em média, um incremento de 1/3 da renda dos trabalhadores
industriais, pode estar havendo uma redução neste mesmo valor da renda de
grande parte da população trabalhadora no Brasil. Enfim, o banco de horas tem
funcionado, nestes casos, como um instrumento importante, no ajuste que as
empresas estão fazendo na atual conjuntura. E, de outra parte, representa uma
concessão muito importante que os trabalhadores e, também, os sindicatos têm
feito em troca da preservação do emprego (cf. Zylbertajn & Rodrigues, 1999).
O tema da flexibilização das relações de trabalho e, em particular,
da jornada de trabalho não é, no entanto, de todo pacífico no interior do movi-
mento sindical. Há forte resistência a esse processo, principalmente nas ten-
dências da esquerda socialista no interior do sindicalismo da Central Única
8
Segundo levantamento dos Trabalhadores (CUT). Até mesmo no interior do mesmo grupo político, a
da CNI, o banco de ho- Articulação Sindical, a questão do banco de horas, por exemplo, é motivo de
ras aparecia em doze
convenções, três acor- discordância. Antônio Carlos Spis, líder dos Petroleiros, dizia que, em 1997,
dos e um acordo em a Petrobrás tentara colocar algo semelhante ao banco de horas no acordo cole-
dissídio, fechados no tivo, mas que os sindicalistas tinham conseguido impedir jogando “pesado”.
início do ano de 1998
(cf. Folha de S. Paulo, A objeção ao banco de horas, para este dirigente, devia-se ao fato de que com
27/09/1998, p. 2:1). ele “acaba a vida pessoal do funcionário. Ele não tem mais feriados com a
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MARTINS, Heloísa de Souza & RODRIGUES, Iram Jácome. O sindicalismo brasileiro na segunda metade dos anos 90. Tempo
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família. Trabalha quando a empresa quer, folga quando a empresa quer”. Além
disso, o banco de horas significa acabar com o pagamento adicional de 100%
do salário sobre as horas extras, pois, de acordo com a nova lei, para cada
hora trabalhada a mais, a empresa deve dar a folga de uma hora. Para Spis,
“na CUT somos contra hora-extra. Mas, se ela é inevitável, queremos receber
em dinheiro”. (Folha de S. Paulo, 27/09/1998, p. 2-11).
A posição favorável ao banco de horas dentro dessa mesma corrente
é expressa por Luiz Marinho, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São
Bernardo do Campo. Segundo este sindicalista, os metalúrgicos do ABC foram
os pioneiros no Brasil na implantação do banco de horas, com experiências
realizadas desde 1995. Paralelamente à conquista da redução da jornada de tra-
balho – importante reivindicação sindical desde a década de 80 – os trabalhado-
res viram o avanço das propostas de flexibilização. Entretanto, na Ford, apesar
da criação do banco de horas, dois mil trabalhadores foram demitidos. Mas, na
avaliação do sindicato, a flexibilização conseguiu manter o emprego de 800
trabalhadores, na mesma empresa. Para Marinho, “o banco de horas não é re-
médio para todos os males” (Folha de S. Paulo, 27/09/1998, p. 2-1).
Nos dias 10 e 11 de outubro de 1998, contando “com a presença de
95 participantes, representando 43 entidades sindicais e instâncias da CUT de
15 Estados da Federação”, a Secretaria de Política Sindical da CUT Nacional
organizou um seminário onde foi tratada a questão da flexibilização da jorna-
da de trabalho e, em particular, “as conseqüências do banco de horas nas rela-
ções de trabalho”. Neste Encontro foram analisadas as seguintes experiências
de implementação de bancos de horas: radialistas de São Paulo, metalúrgicos
do ABC paulista, metalúrgicos do Rio Grande do Sul, trabalhadores em trans-
porte, petroleiros e metalúrgicos de Campinas.
A seguir, apresentamos algumas conclusões do seminário:
1. “O mecanismo conhecido como ‘banco de horas’ – nome dado à
flexibilização da jornada de trabalho – faz parte de uma ofensiva mais geral
de desregulamentação das relações de trabalho visando reduzir o ‘custo do
trabalho’, que hoje se desenvolve em escala mundial em nome da necessidade
de ‘competitividade das empresas’ num mercado ‘globalizado’; 2. Para o
empresariado, a implantação do ‘banco de horas’ ou jornada flexível, visa
essencialmente reduzir os custos da força de trabalho em função da competi-
ção no mercado, buscando adaptar a jornada às oscilações da produção e da
demanda. Vem daí uma crescente pressão patronal para incluir em conven-
ções e acordos coletivos a flexibilização da jornada de trabalho. Para os tra-
balhadores – além do fator de desorganização de sua vida provocada pela
jornada ‘flexível’ (folgas imprevistas, trabalho aos sábados e domingos,
sobrejornada etc.) – deixa-se de pagar horas extras efetivamente trabalhadas
(para além da jornada legal ou da jornada estabelecida por convenção ou acordo
coletivo) que passam a ser compensadas por folgas distribuídas ao longo do
tempo; 3. Tal como proposto pelo governo, em recente Medida Provisória
(MP 17/09/98), o ‘banco de horas’, com o período de compensação por fol-
gas estendido para 12 meses, configura-se como um fator de geração de de-
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semprego, pois com a sobrejornada barata se incentiva a não geração de no-


vos empregos e se abre a possibilidade de um ainda maior enxugamento da
força de trabalho empregada” (CUT, 1999, p. 2).
É importante frisar que, segundo as conclusões do encontro, “fo-
ram registradas diferentes posições sobre a proposta de ‘banco de horas’ com
redução da jornada semanal média”. Vale dizer, há divergências com relação a
esta questão. No entanto, os participantes reconheceram que o banco de horas
não seria um instrumento para a geração de empregos e que não poderia ser
visto como “garantia” contra demissões.
Apesar das críticas de setores ponderáveis do sindicalismo-CUT ao
instituto do banco de horas, é necessário observar que a mudança no prazo de 4
para 12 meses se deve, principalmente, à experiência dos metalúrgicos do ABC.
São dois padrões de ação sindical que, em alguma medida, têm produzido resul-
tados distintos no tocante ao sistema de relações de trabalho no Brasil. De um
lado, os metalúrgicos de São Paulo, representados pela Força Sindical que pres-
sionaram o governo no sentido de implementação do contrato temporário, entre
outros aspectos e, de outro, os metalúrgicos do ABC que, de alguma forma,
estão na origem da mudança do prazo no que tange ao banco de horas.
São estratégias diferenciadas “que produziram impactos também
distintos no Sistema de Relações de Trabalho brasileiro: enquanto o ABC
produziu um tipo de flexibilização que incorpora [aparentemente] mais ga-
nhos para os trabalhadores e impõe mais limites à ação das empresas, São
Paulo produziu um tipo de flexibilização que dá bem mais liberdade às em-
presas” (Carvalho Neto, 1999, p. 359).
No caso da CUT, a defesa da redução da jornada de trabalho caracte-
rizou, como já dissemos, a sua ação sindical desde a década de 80. Com o avan-
ço das outras alternativas de flexibilização de trabalho e com o crescimento do
desemprego, a central afirmou a sua preferência por essa estratégia. Assim, em
1997, cinco dias após a recusa do presidente Fernando Henrique de aderir a um
abaixo assinado favorável à diminuição da semana de trabalho, Vicente Paulo
da Silva entregou ao presidente da República uma proposta de redução da jor-
nada de trabalho de 44 para 40 horas semanais, sem redução salarial. A propos-
ta previa a criação de 3,6 milhões de empregos e estabelecia reduções anuais: 38
horas no ano 2.000; 36 horas em 2.003 até chegar a 32 horas em 2.008.
Contrastando com essa posição, a Força Sindical aceitava a redu-
ção da jornada com redução salarial. Um exemplo disso foi o protocolo de
intenções assinado entre essa central e três sindicatos patronais: Sindicato
Nacional da Indústria de Trefilação e Laminação de Metais Ferrosos, Sindica-
to da Indústria de Artefatos de Metais Não Ferrosos e o Sindicato da Indústria
de Refrigeração, Aquecimento e Tratamento de Ar. De acordo com o protoco-
lo, com oito cláusulas, a semana de trabalho seria de 30 horas (com redução
de 31%), com uma redução salarial correspondente a 10%. Com essa propos-
ta, esperava-se uma redução de 7,18% dos encargos sociais, corte de 10,04%
nos resultados das empresas e renúncia fiscal de 37,36%. Obviamente, o pro-
tocolo deveria ser aprovado pelo Governo, mas o presidente do Sindicato dos
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Metalúrgicos de São Paulo, Paulo Pereira da Silva, iria propor ao presidente


Fernando Henrique que, ao invés de optar por um projeto de lei, transformas-
se a sugestão em medida provisória ou decreto, para uma tramitação mais
rápida (cf. O Estado de S. Paulo, 17/05/1997, p. B-5).
A negociação com os empresários em torno dessa proposta, que
durou sessenta dias e foi totalmente sigilosa, teve início após visita de FHC à
sede da Força Sindical. Lá, o presidente teria dito que o Brasil tinha condições
de reduzir a jornada de trabalho para criar empregos (cf. O Estado de S. Paulo
16/05/1997, p. B-12). Os argumentos que sustentavam a proposta iam exata-
mente nessa direção, acenando com a criação, só na indústria, de 4,42 milhões
de empregos, ou seja “47% mais que a oferta atual”. E mais: se a semana
fosse adotada por todos os setores da economia (indústria, comércio, serviços
e construção civil) isso significaria a criação de cerca de 15 milhões de empre-
gos. E, segundo Nildo Massini, presidente do Sindicato Nacional da Indústria
de Trefilação, essa seria a única maneira de criar emprego, pois a redução de
48 horas para 44 horas, na realidade, teria implicado na redução de empregos
e aumento de horas-extras (cf. O Estado de S. Paulo, 17/05/1997, p. B-5).
Mas essa não foi a única iniciativa da Força Sindical. No final do
mesmo ano há notícia sobre negociação entre o Sindipeças, a CUT e a Força
Sindical para a redução da jornada de trabalho e do salário. Inicialmente, as
duas centrais foram contra a proposta dos empresários por considerarem a
redução de 25% nos salários muito alta. A Força Sindical, em princípio, apoi-
aria a proposta se a redução fosse menor, mas a CUT defendia a adoção do
banco de horas, que permitiria a instituição da jornada flexível, mas sem a
redução salarial (cf. Folha de S. Paulo, 29/11/1997, p. 2-9).
Na realidade, essa negociação, e as que se seguiram, expressava a
tentativa de enfrentar as conseqüências de mais um pacote fiscal do governo.
No setor automotivo, as previsões de demissão, alterações nos programas de
investimento, de redução de jornada de trabalho e determinação de férias co-
letivas, ameaçavam as já frágeis relações trabalhistas. O setor de autopeças,
um dos mais atingidos pela abertura econômica, que já previa, antes do au-
mento dos juros, a demissão de 5.000 a 8.000 trabalhadores, vinha pressio-
nando as entidades sindicais para um acordo, visando a redução dos custos do
setor (cf. Folha de S. Paulo, 29/11/1997, p. 2-9).
Enquanto a CUT permanecia firme na proposta do banco de horas e
da reedição da câmara setorial do regime automotivo, a Força Sindical negocia-
va em torno dos percentuais de redução da jornada e do salário, além do período
de estabilidade no emprego e a garantia do nível de emprego no setor. Finalmen-
te, em 09/12/1997 é fechado o acordo que previa a redução da jornada em até
25% e, a de salários, em até 10%. Segundo as estimativas, o acordo envolveria
360 empresas e 140 mil metalúrgicos e o Sindipeças previa a adesão de 70%
das empresas filiadas. Entretanto, cerca de 50 mil trabalhadores em 170 empre-
sas de autopeças ligadas à CUT estavam fora do acordo (cf. Folha de S. Paulo,
10/12/1997, p. 2-1; 2-4). Esta central, mantendo a sua posição, considerava que
a redução salarial “é o cúmulo da humilhação” (Folha de S. Paulo, 06/12/1997,
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p. 2-7). Na avaliação de Vicentinho, o acordo provocaria mais desemprego, pois


ganhando menos, o trabalhador compra menos e isso provocaria queda na pro-
dução (cf. Folha de S. Paulo, 10/12/1997, p. 2-4).
O presidente Fernando Henrique considerou como “positivo” o tra-
balho da Força Sindical, negociando a redução de salários em vez de demis-
sões, mas não considerava essa a melhor solução (cf. Folha de S. Paulo, 10/
12/1997, p. 2-5). Já o seu Ministro do Trabalho, Paulo Paiva, considerou o
acordo “competente”, recomendando-o para outros setores, pois “ou reduz
custos ou reduz emprego. Eu prefiro reduzir custos a reduzir emprego”. Além
do mais, para ele, “acordo não fragiliza sindicato. Pelo contrário, fortalece
sindicato” (Folha de S. Paulo, 10/12/1997, p. 2-6).
No mesmo período em que a Força Sindical negociava com o Sin-
dipeças, a CUT estava envolvida em uma negociação com a Volkswagen, ten-
tando preservar o emprego dos trabalhadores. Com o objetivo de reduzir 20%
da produção e dos custos, a partir de janeiro de 1998, a empresa propusera a
diminuição, na mesma proporção, na jornada de trabalho e nos salários, em
todas as suas unidades. Entretanto, o foco do reajuste seria na fábrica de São
Bernardo do Campo, onde trabalhavam cerca de 22 mil funcionários. Caso a
meta proposta não fosse alcançada, a empresa ameaçava com a demissão de
10 mil trabalhadores. Mas, em assembléia na porta da fábrica, estes rejeita-
ram a redução salarial. O Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo fez,
então, uma proposta ampliando o banco de horas (os funcionários trabalhari-
am quatro dias durante três meses e seis dias com a retomada da economia) e
os trabalhadores abririam mão do adicional de 50% nas horas repostas, como
constava do acordo coletivo. A empresa, contudo, rejeita a proposta (cf. Folha
de S. Paulo, 04/12/1997, p. 2-11; 13/12/1997, p. 2-6).
Diante do impasse e após doze horas de negociação, no dia 17 a empre-
sa deixou de lado a sua ameaça de demissão e propôs um programa de demissões
voluntárias, esperando atingir cerca de 3 mil funcionários em todo o país. As ne-
gociações, entretanto, deveriam continuar e a empresa não descartava o corte nos
benefícios, como assistência médica, transporte e alimentação, e a terceirização de
alguns setores (cf. Folha de S. Paulo, 18/12/1997, p. 2-10; 2-11).
Outro aspecto que causou um impacto significativo nesse proces-
so, mais geral, de flexibilização, foi a Medida Provisória da Participação dos
Trabalhadores nos Lucros e Resultados, editada em 29 de dezembro de 1994,
ou seja, nos últimos dias do Governo Itamar e, colocada em prática, de fato, já
no Governo Fernando Henrique.
Como observa Hélio Zylberstajn (1998, p. 1), a MP da PLR introdu-
ziu algumas inovações significativas no âmbito das relações capital/trabalho no
Brasil. Em primeiro lugar, desvinculou a “PLR da remuneração e [explicitou] a
não incidência de encargos sociais e trabalhistas. Com isso, consolidou as bases
legais para a prática da remuneração condicionada no Brasil. Em segundo, a
MP, na verdade, desregulamentou a matéria, ao regulamentá-la. Há total liber-
dade para a escolha de resultados e critérios e para o desenho dos programas de
PLR (...) Terceiro, a MP remete a definição da PLR inteiramente para a negoci-
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Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 155-182, out. 1999 (editado em fev. 2000).

ação. Dessa forma, a MP cria, pela primeira vez entre nós, a obrigação de nego-
ciar. A PLR tem que ser negociada, não pode ser implantada unilateralmente
pela empresa. E mais: essa negociação deve ter a participação do sindicato dos
trabalhadores. Portanto, a MP da PLR trouxe a negociação coletiva para o âm-
bito da empresa, trouxe a negociação direta”.
Reeditada inúmeras vezes9, a MP significou um grande impacto
no processo de negociação coletiva, transferindo para o interior das empre-
sas o processo de negociação e contribuindo para a ampliação da remunera-
ção variável, na medida em que vincula a remuneração ao desempenho da
empresa. Essa flexibilização salarial é apontada, por alguns, como uma for-
ma de relativizar a rigidez salarial, permitindo que ajustes salariais sejam
feitos sem sacrificar os empregos (cf. Zylberstajn, 1999, p. 12). Para os
empresários, ela pode representar uma redução nos custos e, para os traba-
lhadores, algum ganho de remuneração. Mas os seus resultados ainda são
pouco expressivos no conjunto da economia.
Acompanhando a penetração da PLR, através de algumas pesquisas
realizadas, podemos perceber a luta das entidades sindicais para terem reconhe-
cidos os seus direitos à participação nas negociações realizadas. Especialmente
a CUT, que sempre foi favorável ao estabelecimento de uma política salarial e
ao contrato coletivo de trabalho, vinha questionando, na justiça, acordos estabe-
lecidos sem a participação dos sindicatos. Considerando esses acordos desfavo-
ráveis aos trabalhadores, essa central denunciava o estabelecimento de metas
impossíveis de serem atingidas, com ameaças à saúde do trabalhador, as dificul-
dades de terem informações sobre os resultados das empresas e, principalmente,
a ausência da representação sindical durante a negociação.
Vejamos, agora, os resultados de algumas pesquisas realizadas por
empresas de consultoria sobre a penetração da PLR. A Mercer MW Ltda. fez uma
pesquisa com 172 grandes empresas, que empregavam 594.172 pessoas e verifi-
cou que 32% adotavam o programa. Em pesquisa realizada anteriormente, em
maio de 1995, apenas 15% dessas empresas tinham o programa. Para o diretor de
outra empresa, Sérgio Amad Costa, da Trevisan Auditores e Consultores, o núme-
ro de adesões era ainda muito pequeno, pois apenas 1% de cerca de quatro milhões
de empresas tinham aderido ao programa. A explicação para esse baixo índice
estaria no temor dos empresários de que a distribuição dos lucros se transformasse
em um direito adquirido, na medida em que a Medida Provisória não oferecia total
segurança para as empresas (cf. Zylberstajn, 1999, p. 12).
Tanto a pesquisa da Mercer, quanto a da GDK & Associados, con-
firmavam aquilo que os sindicatos vinham denunciando: a sua exclusão do
processo de negociação. Na pesquisa desta última empresa, das 42 empresas
9
envolvidas, dois terços instituíram o programa sem o sindicato, se bem que Desde a sua versão ini-
cial até março de 1999,
em muitas delas tivessem ocorrido eleições diretas de funcionários (cf. O Es- a medida provisória
tado de S. Paulo, 09/06/1996, p. B-1). foi reeditada 55 ve-
Uma outra pesquisa, realizada pela Confederação Nacional dos zes, apresentando su-
cessivas reformula-
Metalúrgicos, da CUT, verificou que apenas 25% dos acordos da PLR tive- ções (cf. Zylberstajn,
ram participação direta do sindicato, que 35% deles resultaram de negociação 1999, p. 11).
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das empresas com comissões de trabalhadores eleitos democraticamente e que


em 40%, as empresas estabeleceram os valores e metas sem negociação com
os funcionários e os sindicatos. Informavam, ainda, que 70% dos acordos
feitos no país foram com empresas do setor metalúrgico (cf. O Estado de S.
Paulo, 31/07/1997, p. B-5).
Em uma outra pesquisa, realizada pelo programa Mediar10, em uma
amostra de 566 empresas, 52% tinham programas de PLR e dessas, 63% per-
tenciam aos setores metalúrgico e químico (cf. Zylberstajn, 1999, p. 12).
Algumas conclusões podem ser tiradas dessas pesquisas: a PLR
tem sido implantada nas médias e grandes empresas; a representação sindical
é mais freqüente nas empresas do setor metalúrgico, onde os sindicatos são
mais fortes; os funcionários não dispõem de informações sobre os resultados
das empresas; há uma redução do ganho fixo e crescimento da remuneração
variável, aumentando, assim, a parcela de risco. Uma das principais conse-
qüências dessa flexibilização salarial expressa-se na diminuição do número
de reajustes fora da data base da categoria. Pesquisa realizada pela empresa
de consultoria Artur Andersen mostrava que, em março de 1995, 36% de um
grupo de 77 empresas concederam antecipação salarial para seus emprega-
dos. Em março de 1996, a porcentagem caiu para apenas 2,6%.
Evidencia-se, portanto, uma mudança na política salarial das em-
presas. A mesma empresa Artur Andersen realiza uma pesquisa, a Termôme-
tro Empresarial, que fornece dados significativos a esse respeito. Assim, en-
quanto em 1994, das 127 grandes empresas investigadas, apenas 4% deram
reajuste anual inferior à inflação do período, em 1995, esse número subiu
para 19% (cf. O Estado de S. Paulo, 09/06/1996, p. B-1). A pauta de reivindi-
cações sindicais também se alterou, com o tema do reajuste salarial cedendo
lugar ao da PLR e aos relativos às vantagens indiretas, tais como segurança
do trabalho, alimentação subsidiada, seguro saúde, etc.
Enfim, a questão da PLR se transformou em um tema fundamental
para as relações capital/trabalho no período estudado. E há, hoje, um proces-
so de generalização dessa prática nas empresas. Só em São Caetano do Sul e
em São José dos Campos, os 22 mil empregados da General Motors recebe-
ram, no início de 1999, 26 milhões de reais, pois cada um deles recebeu R$
1,2 mil. Na capital, 80 mil metalúrgicos tiveram participação nos lucros, rece-
bendo, em média, R$ 450,00, ou seja, metade do salário médio da categoria
(cf. O Estado de S. Paulo, 26/01/1999, p. B-3). De certa forma, isto represen-
ta ganhos políticos para o sindicato, nas categorias onde a sua presença nas
negociações tem sido garantida.
Em outras palavras, o processo de flexibilização das relações de
10
O Programa MEDIAR trabalho não é tão-somente uma postura deliberada do governo no período
– Informações para a
Mediação Estratégica
estudado mas, em certo sentido, representa uma discussão que está presente
entre Trabalho e Ca- nas empresas, na relação cotidiana entre capital e trabalho. Não é por acaso
pital, pertence à FIPE que o estudo de Carvalho Neto (1999, p. 346) englobando cinco categorias
– Fundação Instituto
de Pesquisas Econô- distintas – metalúrgicos de Betim, do ABC e de São Paulo, além dos químicos
micas da USP. do ABC e de São Paulo e mais bancários e trabalhadores em telecomunica-
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MARTINS, Heloísa de Souza & RODRIGUES, Iram Jácome. O sindicalismo brasileiro na segunda metade dos anos 90. Tempo
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ções – registrou conforme Quadros I e II, abaixo, a percepção de trabalhado-


res e empresários sobre aqueles temas que são considerados mais importantes
da agenda sindical. Para os trabalhadores, a PLR aparece com destaque, 100%,
mas a flexibilização da jornada também aparece com quase 20%. Para os
empresários, a questão da PLR também alcança o mesmo nível de aceitação
(100%); já a flexibilização da jornada tem índice próximo de 60%.

ITENS %
Participação nos lucros e resultados 100,00
Qualificação/Formação Profissional 21,74
Participação do sindicato quando da introdução de inovações 17,39 I. Temas acordados entre
tecnológicas e organizacionais sindicato e empresas a
partir de 1993, conside-
Redução da jornada semanal média de trabalho 17,39
rados os mais importan-
(sem redução de salário) tes pelos representantes
Flexibilização da jornada 17,39 dos trabalhadores
Fonte: Carvalho Neto,
Não houve ganhos advindos do processo negocial no período 8,69 1999, p. 346 (entrevistas
Condições de trabalho 4,35 com 25 representantes
dos trabalhadores dos
Obs.: A soma da freqüência relativa é superior a 100% por terem sido dadas mais de uma resposta. sete setores pesquisados).

No segundo semestre de 1998, o Executivo enviou o chamado Paco-


te Contra o Desemprego, com o objetivo de melhorar a situação do emprego no II. Temas acordados entre
País, a partir da flexibilização do contrato de trabalho. Faziam parte deste con- sindicato e empresas a
partir de 1993, considera-
dos os mais importantes
ITENS % segundos os empresários
Fonte: Carvalho Neto,
Participação nos lucros e resultados 100 1999, p. 346 (entrevistas
Flexibilização da jornada 57,14 com 14 representantes
dos empresários dos sete
Obs.: A soma da freqüência relativa é superior a 100% por terem sido dadas mais de uma resposta. setores pesquisados).

junto de medidas, entre outros: o contrato de trabalho por tempo parcial (jor-
nadas semanais de, no máximo, 25 horas), “que no mesmo período foi instituí-
do através de Medida Provisória” e a suspensão temporária do contrato de 11
Em dezembro de 1998,
trabalho. Neste caso, “de acordo com a proposta, a ser também aprovada no alguns dias antes do
Congresso Nacional, os trabalhadores poderão ter seu vínculo empregatício Natal, 2.800 trabalha-
suspenso por, no máximo, 5 (cinco) meses, durante os quais receberão uma dores (cerca de 41%
do total) da Ford de
bolsa equivalente ao valor do seguro-desemprego e participarão de programas São Bernardo do Cam-
de requalificação profissional. Ao término do período, a empresa poderá reinserí- po foram demitidos
los na produção, ou realmente demití-los. Se a demissão se efetivar a remunera- por carta, sem que isso
fosse discutido com o
ção paga durante a suspensão temporária será descontada do seguro-desempre- Sindicato dos Meta-
go a que o trabalhador teria direito” (Portella de Castro, 1999, p. 21)11. lúrgicos do ABC e com
a Comissão de Fábri-
Cabe registrar, no período referente ao primeiro mandato do ca. Sob a orientação do
governo Fernando Henrique, algumas das iniciativas que foram tomadas Sindicato, os demiti-
com relação às relações de trabalho, seja por meio de Projeto de Lei, seja dos ocuparam os seus
lugares na fábrica, for-
pela via de Medida Provisória. çando a negociação

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O Quadro III, a seguir, baseado no estudo de Krein, já citado ante-


riormente, mostra algumas dessas medidas.

Tema Iniciativas
PLR – Participação nos Lucros e • Focaliza a negociação na empresa;
Resultados • Abre a possibilidade da remuneração variável;
• Retira o foco da mobilização por salário real/produtividade;
com a empresa. Após
várias reuniões entre • Introduz os temas da agenda da empresa na negociação;
a empresa, o sindica- • É uma alternativa ao fim da política salarial, ao possibilitar
to e a comissão, foi algum ganho de remuneração sem reajuste nos salários.
aberto um programa
de demissão voluntá- Salário Mínimo: sem índice de reajuste • O salário mínimo, a partir de abril de 97, não tem um índi-
ce de reajuste previsto em lei. O seu reajuste dependerá da vonta-
ria que obteve, até 12
de fevereiro, a adesão de política do presidente.
de 882 trabalhadores. Trabalho temporário Portaria 2 (29/06/96) • Amplia a possibilidade de utilização da lei (6.019/74) de
Finalmente foi insti- contrato temporário, generalizando o contrato de trabalho precário.
tuído o programa de
suspensão temporária Trabalho por tempo determinado (Lei • A essência da lei está em desvincular o contrato por prazo
do contrato de traba- 9.061/98) determinado da natureza dos serviços prestados;
lho de 1.918 funcioná- • Muda os critérios de rescisão e reduz as contribuições;
rios, até 31 de maio e • Cria o banco de horas.
depois com prorroga-
ção por mais cinco Ultratividade dos acordos e convenções • Altera a Lei 8.534/92, que previa a validade dos acordos e
meses (cf. DIEESE, MP 1.620/98 convenções até que eles não fossem negociados entre sindicatos
1999, p. 20-21). de trabalhadores e empresários.
Trabalho em tempo parcial (menos de 25 • Jornada de até 25 horas semanais;
horas semanais) – MP 1709/98 • O salário e os demais direitos trabalhistas serão determina-
dos em conformidade com a duração da jornada trabalhada;
• Não prevê a participação do sindicato na negociação.

Banco de Horas – MP 1709/98 • Ampliação, de 4 meses para um ano, do prazo de compen-


sação das jornadas semanais extraordinárias de trabalho, através
de acordo ou convenção coletiva.

Suspensão do Contrato de trabalho – MP • Suspensão do contrato de trabalho, por um período de 2 a 5


III. Algumas medidas 1726/98 meses, vinculada a um processo de qualificação ou (re)qualificação
do período 95-98 profissional do trabalhador;
Fonte: Krein, 1999, p. • Negociação com o sindicato;
19 e 22, Quadros III e
• O trabalhador, caso seja demitido após o término da sus-
IV. Para os propósitos
pensão do contrato, tem direito de receber as verbas rescisórias e
deste artigo foi feita
uma multa de um salário.
uma reelaboração de
ambos os quadros de Cláusula da garantia de emprego com a • A medida propõe que seja negociada, via acordo ou conven-
Krein, tentando situar redução do FGTS de 8% para 2% ção coletiva, a redução do Fundo de Garantia por Tempo de Servi-
aqueles aspectos que ço (FGTS) de 8% para 2%, em troca da garantia de emprego e da
consideramos mais preservação de postos de trabalho por um prazo determinado.
significativos do
período (95-98). A Medida sobre a fiscalização do Trabalho • Substituição da multa de advertência
medida Provisória da Trabalho Rural: contrato coletivo de safra • É o contrato por tempo determinado na agricultura.
PLR está incluída,
apesar de ter sido Reformulação da Organização Sindical • Fim da unicidade e, portanto, fim do monopólio de repre-
editada no final de (Proposta da Emenda Constitucional – sentação sindical;
dezembro de 1994 alteração do artigo 8º da CF/88) • Fim do imposto sindical (contribuição sindical obrigatória);
pois, sua efetivação se • Liberdade de criação de novos sindicatos, inclusive por
dá a partir de 95, empresa;
período inicial do
• Desconto em folha da contribuição sindical dos representa-
governo Fernando
dos, o seu valor será fixado em assembléia.
Henrique Cardoso.

180
MARTINS, Heloísa de Souza & RODRIGUES, Iram Jácome. O sindicalismo brasileiro na segunda metade dos anos 90. Tempo
Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 155-182, out. 1999 (editado em fev. 2000).

Em resumo, ainda que o governo Fernando Henrique tenha tido


uma relação extremamente tensa e, por vezes, difícil com o movimento sindi-
cal nesta segunda metade dos anos 90, podemos concluir que o sistema de
relações de trabalho brasileiro tem sofrido mudanças. Isso pode ser observa-
do mais detidamente onde o sindicalismo é mais forte. E, em alguma medida,
parte dessas mudanças estariam ampliando o escopo da negociação direta entre
patrões e empregados. Esse processo não é um movimento homogêneo nem
único. Tem características multifacetadas, mas está em andamento. Isso signi-
fica dizer que teremos um sistema democrático de relações de trabalho, em
contraposição ao velho edifício corporativista que ainda teima em se manter
de pé? Essa é uma outra questão de difícil resposta... Enfim, só a história dirá.

Recebido para publicação em outubro/1999

MARTINS, Heloísa de Souza & RODRIGUES, Iram Jácome. The Brazilian syndicalism in the second
half of the 90’s. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 155-182, Oct. 1999 (edited Feb.
2000).

ABSTRACT: This text discusses the relationships between capital and work UNITERMS:
during the first mandate of the President Fernando Henrique Cardoso (1995- syndicalism,
work,
1998). If this period has brought the stability of the currency and the end of the
work relationships,
inflation, on the other hand it has raised the rates of unemployment. Therefore, syndical strategy,
the theme of unemployment has become the central matter in the agenda of FHC government.
the syndicates. This article tries to answer the following indagations: 1. Which
is the specificity of the relationships between capital and work in this period? 2.
Which is the treatment given for the work matter in the last year? 3. What is the
relationship between government and the syndicates?

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MARTINS, Heloísa de Souza & RODRIGUES, Iram Jácome. O sindicalismo brasileiro na segunda metade dos anos 90. Tempo
Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 155-182, out. 1999 (editado em fev. 2000).

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182
COHN, Amélia. Social;
Tempo As políticasRev.
sociais no governo
Sociol. USP,FHC. Tempo Social;
S. Paulo, 11(2):Rev. Sociol. USP,
183-197, out. S. DOSSIÊ
Paulo, 11(2): 183-197,
1999 out. 1999FHC
(editado em fev. 2000). (editado em fev. 2000). o
1 GOVERNO

As políticas sociais no
governo FHC
AMÉLIA COHN

“Não tenho registro de nascimento e nunca


consegui tirar título eleitoral.
Então não existo”1

RESUMO: O presente artigo busca fazer um balanço analítico do conjunto das UNITERMOS:
políticas sociais que vêm sendo implementadas desde 1995. Não se trata de políticas sociais,
políticas públicas,
um balanço dos gastos efetuados na área social, dos recursos efetivamente combate à pobreza.
apropriados pelos setores mais pobres da população. O objetivo aqui é averi-
guar em que grau se observa neste período uma efetiva mudança na forma de o
governo tratar da questão social. Reconhecem-se avanços efetuados, porém
constata-se a permanência do mesmo tipo de articulação entre política econô-
mica e política social, entre política social e representação das demandas dos
grupos não organizados da sociedade, favorecendo a ênfase na dimensão téc-
nica da conformação dos programas sociais, e sobretudo avalia-se a timidez do
governo em efetivamente enfrentar a equação pobreza-desigualdade.

ma das possibilidades de se abarcar tema de tamanha complexidade e

U amplitude consistiria na alternativa mais imediata de se optar por


traçar um panorama e fazer um balanço das políticas e programas
sociais que vêm sendo implementados desde 1994 pelo Governo FHC.
Mas se optar por esse caminho significaria ter a tarefa facilitada pe-
los inegáveis avanços ocorridos desde então no que diz respeito à atualização
dos dados disponíveis bem como à notável facilidade de acesso às informações
coletadas e sistematizadas pelos órgãos governamentais, por outro lado signifi-
caria também abdicar de enfrentar o desafio para as políticas sociais contido na Professora do Departa-
mento de Medicina Pre-
declaração acima, suscitada pela lucidez do desespero. ventiva da FM - USP

183
COHN, Amélia. As políticas sociais no governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 183-197, out. 1999
(editado em fev. 2000).

Optar por essa alternativa significaria, ainda, restringir os limites da


análise aos aspectos meramente financeiros (no que diz respeito ao montante de
investimentos governamentais do nível federal na área social) e administrativos
(descentralização, eficácia, racionalização dos gastos e das ações, dentre ou-
tros) da gestão social desse período. Além, é claro, de se estar meramente siste-
matizando os dados acessíveis nos sites dos distintos órgãos governamentais
(em particular, do IBGE, do IPEA, e dos Ministérios envolvidos).
Dessa forma, talvez o desafio maior ao se enfrentar esse tema resi-
da, exatamente, em se buscar apreender o locus que as políticas sociais assu-
miram nesses anos recentes frente à questão de pobreza, das desigualdades
sociais, e da construção (ou não) dos direitos sociais da ótica da cidadania.

Política econômica e política social: a difícil equação

Quando se analisa o conjunto das iniciativas governamentais na


área social a partir de 1994, chama de imediato a atenção tanto sua diversida-
de em termos de áreas de ação – só o Comunidade Solidária, embora não se
declare governo, desenvolve atualmente 16 programas setoriais – como o seu
traço pouco ousado, talvez mesmo tímido e convencional.
Assim, o exame do organograma dos distintos programas e políti-
cas sociais desse período mais recente, mostra um avanço em termos formais
quanto ao seu número e seu leque de atuação, o que faz com que o governo
brasileiro venha, por exemplo, cumprindo os compromissos assumidos no
que diz respeito à agenda social implementada pela ONU2.
Mas evidencia-se também que essa ausência de inovação e timidez
no modo de se enfrentar a questão social no Brasil continua sendo determinada
pelo traço característico do país, herança da era desenvolvimentista que se afir-
ma atualmente buscar superar, de contrapor política econômica à política social.
Vale dizer, continua ainda prevalecendo o ditame absoluto da economia sobre as
formas de o país gerir a questão da pobreza e das desigualdades sociais. Tanto
assim é que no último Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD o Bra-
sil é rebaixado da posição 68 para a 79, provocando um amplo debate sobre
1
Declaração de uma mudanças no cálculo do IDH, que neste caso estariam prejudicando nossa situa-
sertaneja nordestina ção em termos do ranking mundial (cf. PNUD, 1999).
ao verificar que seu É perceptível, portanto, uma contradição de base entre a política de
nome não constava da
lista dos incluídos ajuste e de estabilização econômica adotada pelo governo e a possibilidade de
nas frentes de traba- se promover políticas sociais com impacto efetivo sobre o desenvolvimento
lho contra a seca, fe-
vereiro de 1999. social no país.
2
Cf. a respeito, dentre De fato, a gestão econômica governamental produziu um quadro de
outros, Lindgren Al- recessão econômica e rebateu sobre a questão social de modo dramático, haja
ves (1995), Stiftung
(1995) e ainda os re- visto o aumento da taxa de desemprego no país.
latórios anuais do Este modelo econômico gera não só desemprego como reduz o im-
Observatório da Ci-
dadania, editado pelo pacto dos programas governamentais de criação de oportunidades de emprego e
Ibase, Rio de Janeiro. renda ( PRONAF - Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Fa-
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COHN, Amélia. As políticas sociais no governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 183-197, out. 1999
(editado em fev. 2000).

miliar; PROGER - Programa de Geração de Emprego e Renda; PLANFOR -


Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador; dentre outros). Ou ainda, gera
permanente pressão para cortes de recursos destinados à área social, ditada pelo
compromisso junto às agências multilaterais, de equilíbrio do déficit fiscal.
O modelo de ajuste estrutural em vigor, além de ter as conseqüênci-
as mencionadas, vem promovendo a desarticulação de importantes ramos in-
dustriais, associada a reformas gerenciais e do processo produtivo por parte
das empresas privadas, visando a diminuição do “custo Brasil”.
Em termos concretos, isso vem se traduzindo num processo de
flexibilização das relações de trabalho e de deterioração dos postos de traba-
lho (cf. Oliveira, 1998). Embora o processo tenha tido início já nos anos 80,
foi na presente década que adquiriu suas características mais perversas de
destituição dos direitos trabalhistas historicamente conquistados pelos traba-
lhadores brasileiros.
Coerente e articuladamente com esses processos, na área social vêm
sendo propostas reformas não só dos programas sociais, mas também do sis-
tema de proteção social, implantando novo padrão de regulação social não
mais via trabalho, mas via renda. É o caso das propostas governamentais de
reforma da previdência social, que desvinculam o acesso dos cidadãos a de-
terminados benefícios e serviços de sua inserção no mercado de trabalho (for-
mal ou informal), sem no entanto desvincular esse acesso da sua capacidade
contributiva, tomando-se neste caso o cidadão em termos individuais.
Com essa reforma, a previdência social, após ter sido alçada ao
estatuto de seguridade social em 1988, retrocede por iniciativa do governo à
concepção de seguro social, uma vez que passa a vincular o acesso diferenci-
ado ao valor dos benefícios segundo a capacidade de poupança individual de
cada um durante sua vida útil.
Dadas no entanto as características estruturais e atuais do mercado
de trabalho brasileiro, onde somente menos da metade da PEO encontra-se no
mercado formal de trabalho, a implementação de um sistema de seguro social
segundo o qual o direito ao benefício está vinculado ao tempo de contribuição
do segurado, e não mais ao tempo de trabalho. Isto significará a imposição de
uma nova seletividade da clientela assegurada, uma vez que às novas institui-
ções de seguro social – sejam elas públicas estatais ou privadas – só interes-
sará ter como cliente aquele segmento de trabalhadores com uma maior e mais
estável capacidade contributiva, independentemente de sua inserção no mer-
cado de trabalho. Dessa forma, esse novo sistema aponta exatamente no sen-
tido de favorecer o segmento de trabalhadores mais qualificados. Registre-se,
aqui, que Chile, Argentina e México já passaram ou estão passando por pro-
cessos de reforma do sistema de proteção social bastante semelhantes, e que
embora não estejamos seguindo estritamente nenhum desses modelos, o custo
social e financeiro da transição de um regime de seguro social para outro se-
rão equivalentes, isto é, altos (cf. Soares, 1999; Laurell, 1998; Vergara, 1994).
O que essas outras experiências latino-americanas apresentam em
185
COHN, Amélia. As políticas sociais no governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 183-197, out. 1999
(editado em fev. 2000).

comum, e este é o rumo que também está sendo traçado pelo Brasil, é consti-
tuir-se paralelamente, no outro extremo desse sistema de proteção social de
caráter diretamente contributivo, um conjunto de políticas sociais de caráter
não contributivo, voltado para o atendimento de direitos sociais de cunho uni-
versal, e financiado portanto com recursos fiscais. Neste caso, essas políticas
sempre esbarram e são extremamente vulneráveis à imposição dos limites
cada vez mais estreitos ditados pelo compromisso do governo brasileiro com
agências internacionais de contenção da dívida pública.
De 1994 para cá, a tendência é exatamente a de se conformar no
país um sistema dual de proteção social, entendendo-se por sistema de pro-
teção social todo o conjunto de políticas sociais (aí incluída a previdência
social), com distintas lógicas na sua articulação com a dinâmica macro-
econômica. De um lado, o subsistema de proteção social relativo aos benefí-
cios sociais securitários – e, portanto, contributivos; de outro, o subsistema
relativo aos benefícios sociais assistenciais – e portanto, redistributivos, fi-
nanciado com recursos do orçamento fiscal.
Redefine-se assim, na atualidade, a articulação entre políticas econô-
micas e políticas sociais. O primeiro daqueles subsistemas, o que diz respeito aos
direitos contributivos, vincula-se às diretrizes macroeconômicas enquanto instru-
mento para a criação de poupança interna para se alavancar a taxa de investimento
da economia; e o segundo deles, de caráter não contributivo, fica à mercê da dispo-
nibilidade – sempre escassa – de recursos orçamentários da União.
Neste ponto deve-se registrar que, no caso dos direitos não contributivos,
o potencial redistributivo das políticas a eles vinculadas, na sua essência, é maior
se e sempre quando se tratarem de políticas universais e financiadas com recursos
orçamentários provenientes da contribuição fiscal. No caso brasileiro, no entanto,
não é isso que vem se verificando: essas políticas, exatamente por se contraporem
mais diretamente aos ditames da lógica macroeconômica em vigor de diminuição
do déficit público, acabam por ter seus recursos cortados, e em conseqüência sua
população-alvo restringida aos segmentos mais pobres da sociedade. É a conheci-
da focalização das políticas sociais, que se traduz, como testemunha nossa larga
experiência histórica, em políticas de cunho clientelista, de caráter imediatista e,
portanto, em políticas de governos e não em políticas de Estado.
Começa-se assim a deslindar o pleno significado do desabafo – ou
grito de desespero – da autora da epígrafe: diante de uma seca brutal, prevista
com anos de antecipação pelos especialistas da área, numa região cronicamente
vitimada pela aridez, ao invés de se tomarem medidas de caráter estrutural na
resolução de uma das principais causas da pobreza na área, lança-se um progra-
ma – mais um dentre tantos outros similares adotados no passado remoto e
recente – de frentes de trabalho. Uma vez mais, improvisam-se medidas de emer-
gência para um problema que é estrutural. E nesse sentido, de fato, ao não ter a
nossa interlocutora título de eleitor, vê-se desprovida até mesmo dessa moeda
de negociação tradicional e comum da nossa cultura política.
Mas, nesse ponto, deve-se tomar uma dupla cautela: a primeira consiste
186
COHN, Amélia. As políticas sociais no governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 183-197, out. 1999
(editado em fev. 2000).

em não satanizar o nível local ou mesmo regional, exatamente porque o clientelismo


é um traço ainda persistente de nossa cultura política que vai do sertão ao planalto,
passando por nossos parques industriais os mais modernos; a segunda delas consiste
em ter claro que exatamente por decorrência dessas culturas e práticas políticas, as
políticas sociais no país, como já demonstrado inúmeras vezes, acabam por reprodu-
zir, ao invés de compensar, as nossas desigualdades sociais.
E isso porque essas políticas, mesmo quando definidas como univer-
sais e de caráter não contributivo, tendem tão somente para a universalidade de
um patamar básico de acesso a determinados serviços sociais, gerando
seletividade nos níveis mais complexos dessas mesmas redes de serviços, com-
prometendo assim a garantia da eqüidade de acesso aos mesmos. São os casos
típicos de dois setores estratégicos na área social: o da saúde – com o PAB (Piso
de Atenção Básica), os PACS (Programas de Agentes Comunitários de Saúde) e
o PSF (Programa de Saúde da Família) –, e o da educação – neste caso bastando
verificar as desigualdades regionais de cobertura do nosso sistema de ensino
básico, bem como a taxa de escolarização bruta do ensino superior por região da
população na faixa etária correspondente (cf. Castro, 1999).
No entanto, desde 1994 o governo vem definindo a agenda do debate
público no que diz respeito às políticas sociais em torno de alguns eixos centrais, e
que tampouco neste ponto demonstram capacidade de inovação na forma de se en-
frentar a questão social no Brasil. Cabe ressaltar, aqui, que não só a articulação entre
políticas econômicas e políticas sociais (em que pese aumentar a diversidade e a
complexidade destas) continua obedecendo à mesma lógica da era desenvolvimentista,
como se aprofunda a concepção da existência de um alto grau de autonomia existen-
te entre as dimensões sociais e políticas em nossa sociedade: passa-se a conceber a
vida social, cada vez mais, como uma série de “problemas sociais” a serem enfrenta-
dos de forma isolada e desarticulada entre si. Reproduz-se assim, uma vez mais, a
concepção segmentada da questão social e, em decorrência, a formulação e
implementação de políticas sociais setorializadas sem um projeto para a sociedade
que as articule e imprima um sentido político ao seu conjunto. Em outras palavras,
ao invés de se enfrentar a pobreza de uma ótica estrutural, vale dizer, da ótica da sua
superação, a concepção oficial é de aliviar a pobreza dos “grupos socialmente
mais vulneráveis” (República Federativa do Brasil, 1995).

O social e o político: outra difícil equação

Essa mesma autonomia que se estabelece entre o econômico e o


político na concepção que inspira as políticas sociais desde 1994 (embora, é
bom que se registre, aí não tem início, mas tão somente se aprofunda), tam-
bém ocorre entre o social e o político. Reduz-se, assim, a questão social à
questão da pobreza, e as políticas sociais à questão da parca disponibilidade
de recursos orçamentários para o setor, no geral associada a uma concepção
dos serviços públicos estatais como perdulários, dada sua própria natureza. É
o que vem se traduzindo em afirmações dos nossos governantes tais como “o
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COHN, Amélia. As políticas sociais no governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 183-197, out. 1999
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Brasil não gasta pouco com a área social, ao contrário, gasta muito e mal”.
Esta concepção de que as entidades públicas estatais desperdiçam
recursos tem servido de justificativa para a busca de racionalização dos gas-
tos sociais dentro de uma ótica demasiado estreita. Esta racionalização vem se
desdobrando na fixação de três parâmetros principais para as políticas so-
ciais: focalização, descentralização e novas formas de parcerias entre Estado,
Mercado e Sociedade.
Daí decorrem as propostas em debate na agenda pública, uma vez mais
por iniciativa do Executivo, e os programas que vêm sendo implementados na
área social, e que giram em torno da reforma do Estado. Tema sem dúvida polêmi-
co, que vem alimentando vigorosos debates sobre o papel do Estado e a questão
social, e que se desdobra em duas dimensões: uma de caráter mais estrutural, e que
diz respeito ao papel do Estado no campo das políticas sociais; e outra, enfatizando
a dimensão burocrático-administrativa do Estado, e que diz respeito às novas for-
mas de gerenciamento dos equipamentos sociais público-estatais.
Em ambas as dimensões há a opacidade na relação entre o social e
o político no enfrentamento da questão social, produto por sua vez do que
vem sendo denominado de “opacidade social” como traço das realidades so-
ciais atuais (cf. Fitoussi & Rosanvallon, 1996). Na primeira delas, de caráter
mais estrutural, o que está em jogo é a questão da amplitude das áreas de
responsabilidade de atuação do Estado no campo social. Neste caso, focali-
zação, descentralização e parcerias ganham um significado específico no de-
bate que vem sendo travado. Este debate diz respeito exatamente às compe-
tências do Estado diante das novas formas de regulação social vigentes em
nossa sociedade, e que cada vez mais se distanciam do fator trabalho, mas que
tampouco podem ter como parâmetro o padrão vigente nas sociedades ditas
avançadas (cf. Offe, 1984; Santos, 1999; Oliveira, 1999).
Neste caso, a defesa da focalização das políticas sociais reside numa
constatação dos limites estruturais do próprio Estado. Mas não só no sentido clássi-
co já apontado por Offe. No caso brasileiro, a insuficiência de recursos para cobrir
as necessidades sociais, respeitando os direitos universais dos cidadãos, se agrava e
reafirma não só pela crise fiscal do Estado, como do próprio modelo antes prevale-
cente de Estado desenvolvimentista (cf. Sallum Jr., 1994; 1996). Diante disso, e
reforçado por inúmeros diagnósticos e avaliações de programas e políticas sociais
implementadas e que registram evidentes distorções entre o público-alvo original-
mente definido e aquele efetivamente atingido, erige-se o postulado da ineficiência
intrínseca do Estado na área social e a exigência de se buscar novos modelos de
solidariedade social que permitam ao Estado ver-se aliviado de tamanha responsabi-
lidade de ser o provedor dos direitos sociais básicos dos cidadãos brasileiros.
No âmbito das políticas sociais, a tradução imediata desse ideário
está manifesta num processo social de naturalização da pobreza. Não só ela é
inevitável, como combatê-la eficazmente significa enfatizar a manutenção de
políticas econômicas de estabilização fiscal (o social se transmudando assim
em econômico). Em decorrência, os parcos recursos que o modelo econômico
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COHN, Amélia. As políticas sociais no governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 183-197, out. 1999
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vigente permite disponibilizar para a área social devem ser dirigidos para os
segmentos mais pobres da população, ou no jargão das agências multilaterais,
para os “grupos socialmente mais vulneráveis”.
Isso vem redundando na definição das políticas sociais voltadas para
o combate à pobreza, e não para a superação da pobreza, o que tem duas conse-
qüências imediatas: a distância cada vez maior entre as instâncias política e
social, fazendo com que a questão social da pobreza se traduza em diagnósticos
de natureza técnica equacionados pelos limites da possibilidade econômico-fi-
nanceira do Estado; e a segmentação no interior da própria área social em polí-
ticas não só focalizadas em termos de determinados grupos sociais a que são
dirigidas, como focalizadas no interior dos próprios setores a que estão vincula-
das. Educação e saúde, por exemplo, tratam isoladamente o mesmo desafio,
comum a ambas: a universalização do acesso a um patamar básico de serviços.
Outra conseqüência diz respeito à conformação de um sistema dual de
proteção social, não mais referido à inserção ou não no mercado formal de traba-
lho, mas a níveis de renda traduzidos em graus distintos de capacidade contributiva
dos diferentes segmentos sociais, e que agora dizem respeito aos passíveis de
serem incluídos pelo processo de globalização, e aqueles definitivamente excluí-
dos desse processo, ou na afirmação de Fiori (1995), os “não globalizáveis” no
modelo econômico por ele definido como de “novíssima dependência”. Com isso,
encontram-se, de um lado, políticas de universalização de um patamar básico de
acesso a determinados níveis de serviços sociais, financiadas com recursos orça-
mentários e, de outro, um sistema privado, no geral continuando a ser subsidiado
pelo Estado (através, por exemplo, do instrumento da renúncia fiscal) e destinado
aos segmentos sociais de maior poder econômico.
Não só vão então se forjando novos modelos de solidariedade so-
cial – a cada um segundo sua capacidade própria de poupança durante seu
período ativo, e para os pobres um sistema estatal básico – como consolida-se
a concepção da responsabilidade do Estado no campo social como a respon-
sabilidade pelos mais pobres. A conseqüência imediata desse processo, em
termos da sedimentação do divórcio que sela entre as demandas sociais e sua
possibilidade de representação política, é um sistema igualmente dual e desi-
gual de formulação de demandas políticas na área social: o dos inseridos e os
dos não inseridos; ou dos organizados e dos não organizados; ou ainda, da-
queles segmentos capazes de construírem sua própria identidade social no
interior de um quadro de carências, e aqueles que não o são.
Diante dessa complexidade do quadro de demandas sociais, e seu
espelho na política, torna-se possível a concepção de que políticas sociais são
políticas de combate à pobreza – e portanto nada de muito novo com relação
ao passado recente – que tampouco transformam-se em campos estruturadores
de novas práticas sociais. Os próprios canais de participação social e de con-
trole público, previstos constitucionalmente, e mesmo quando incentivados
pelo governo, uma vez mais reforçam essa dicotomia entre os excluídos e os
incluídos: quem fala e defende os interesses de nossa sertaneja, que não pre-
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COHN, Amélia. As políticas sociais no governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 183-197, out. 1999
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enche nem as exigências da tradição clientelista de nossas políticas sociais,


mas tampouco preenche os mínimos requisitos burocrático-administrativos
(mesmo nesse esforço de busca de uma nova racionalidade dos serviços pú-
blicos estatais) para se credenciar junto aos órgãos públicos como cidadã – e
não carente – portadora de determinadas necessidades e direitos sociais?
Noutros termos, o conjunto de políticas sociais em curso desde 1994,
em que pese o cenário inovador, depois de décadas, de estabilidade econômica
em que ocorrem, não traz consigo o esforço necessário e urgente para se lograr
superar a fragmentação das análises – e sua conseqüência na própria formula-
ção e implementação dessas políticas – sobre o desenvolvimento social brasilei-
ro, e que insiste ainda em prevalecer. E continua dominando do ponto de vista da
dicotomia, como se viu anteriormente, entre desenvolvimento econômico e de-
senvolvimento social, quanto da segmentação das políticas e programas sociais.
Ao prevalecerem tais perspectivas, prejudica-se o próprio debate
sobre a construção de um pacto de solidariedade social que permita a formu-
lação e implementação de políticas socioeconômicas redistributivas. Em con-
seqüência, as políticas sociais acabam sendo condenadas aos limites estreitos
do “alívio da pobreza”, e portanto sempre fadadas ao insucesso, uma vez que
se constituem em políticas e programas destinados exatamente ao combate a
determinadas carências a que estão submetidos determinados grupos sociais,
produtos, por sua vez, da desigualdade gerada pelo próprio mercado e pelas
políticas macroeconômicas.
Quanto à descentralização das políticas sociais nesse período mais
recente, a literatura é vasta e diversificada (cf. Elias, 1997; Arretche, 1998;
Almeida, 1995). Mas não obstante essa diversidade, por sinal respaldada na
própria diversidade de experiências setoriais de descentralização de políticas
sociais, nela percebe-se a existência de um consenso sobre o fato de esse proces-
so vir possibilitando um leque rico de experiências locais inovadoras e criativas
para dar conta do enfrentamento da pobreza. Por outro lado, parte dessa literatu-
ra registra a contradição que vem marcando esse processo de descentralização
quanto aos interesses dos níveis central e local. Neste caso, o que tem se aponta-
do é que, em consonância com o modelo econômico adotado, para o nível cen-
tral a descentralização significa a possibilidade do exercício de maior controle
sobre o dispêndio de recursos na área social, contribuindo portanto para a redu-
ção do déficit público. Em contrapartida, os municípios acabam sendo pressio-
nados a dar conta da demanda local sobre os seus equipamentos sociais.
E se a relação entre as esferas de governo a partir do novo pacto
federativo instituído pela Constituição de 1988 vem sendo marcada por um
maior grau de autonomia (caso típico dos municípios, alçados à condição de
ente federado) (cf. Abrucio, 1994; 1998), a transferência dos recursos ligados
a programas sociais, não vinculados constitucionalmente ao orçamento fiscal,
e o próprio sistema de convênios que prevalece entre as esferas de governo
para tal fim acabam por se revelar um ponto de estrangulamento para o desen-
volvimento das políticas sociais. Isto porque assim elas continuam dependen-
190
COHN, Amélia. As políticas sociais no governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 183-197, out. 1999
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tes de fontes de recursos instáveis, passíveis de freqüentes e comuns contingen-


ciamentos por parte do governo central.
Por outro lado, do ponto de vista político, a descentralização também é
defendida como mecanismo de se lograr uma maior democratização do Estado, e
conseqüentemente uma maior racionalidade das políticas estatais, embora nestes
casos não fique clara a relação entre ambos os fatores. Isso porque aqueles que
defendem a descentralização da ótica de constituir um mecanismo que imprime
maior racionalidade ao Estado (em qualquer de suas esferas de governo) enfatizam
a dimensão econômica mas também a possibilidade que a maior aproximação
“física” entre Estado e cidadãos traz de este adaptar com maior eficiência os servi-
ços sociais às reais necessidades da população. Mas aqueles que defendem a descen-
tralização como meio do exercício do controle público sobre o Estado, e portanto
de democratização da gestão local, assim enfatizando mais a dimensão política do
que econômica desse processo, imprimem um outro significado à racionalidade:
não mais respondendo somente às necessidades reais da população, mas sobretu-
do às suas demandas, isto é, às necessidades sociais tal como percebidas pelos
distintos grupos sociais, que as traduzem assim em demandas políticas.
Não obstante, aqui uma vez mais se verifica a complexidade da
realidade brasileira, não só pela sua heterogeneidade regional, mas pela sua
desigualdade social: os espaços institucionais de participação na formulação
e controle de implementação das políticas sociais – os distintos Conselhos
Nacionais, Estaduais e Municipais setoriais – tendem a ser ocupados exata-
mente por representantes dos setores organizados (e portanto pelos incluídos)
de nossa sociedade, dificultando a presença da representação dos interesses
particulares desses setores articulados aos interesses gerais e universais, vale
dizer, dos direitos sociais básicos. E, da mesma forma que no texto constituci-
onal não está clara a distinção das competências de cada esfera de governo
nas distintas áreas sociais, tampouco está claramente estabelecida, e juridica-
mente resolvida, a natureza deliberativa desses Conselhos, que enquanto tal a
rigor deveriam definir as políticas a serem executadas pelos Ministros e Se-
cretários (estaduais e municipais), ao mesmo tempo que estes acabam por
acumular e centralizar o poder, uma vez que no geral dirigem a pasta na qual
estão alocados, e os respectivos conselho e fundo setorial, tendo portanto enor-
me poder e peso na definição das agendas públicas locais, e conseqüentemen-
te na configuração do que venham a ser as demandas sociais.
Não obstante, não resta dúvida que esses espaços institucionais de
participação social vêm favorecendo, desde 1989, a emergência de novos ato-
res sociais, multiplicando-se, assim, a possibilidade de construção de novas
identidades sociais. Esse processo, no entanto, senão contraditório, é parado-
xal, uma vez que a maior parte dessas distintas experiências de descentrali-
zação, várias delas incentivadas pelo governo central a partir de 1994, vêm
apontando a iniciativa do Executivo (isto é, dos governos) como decisiva na
implementação dessas formas de participação social.
Quanto ao terceiro parâmetro apontado – novas formas de parceria
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entre Estado/Sociedade/Mercado – ele vem se revelando bastante mais com-


plexo, embora apresente uma perigosa homogeneidade no que diz respeito à
sua participação na definição do que venha a ser, nestes tempos, a responsabi-
lidade pública do Estado (anteriormente referido como Estado provedor) e os
equipamentos públicos estatais (referido como Estado produtor). Em primei-
ro lugar, na realidade brasileira não há tradição de a sociedade substituir o
Estado na produção de serviços sociais básicos, a não ser em casos tão espe-
cíficos que se configuram como exceção (como o cuidado aos portadores do
HIV/AIDS e de deficiências físicas, por exemplo). Nesse sentido, experiên-
cias de co-gestão e de participação nos colegiados formados pelos Conselhos
apontam para uma relação de externalidade entre a sociedade e o Estado: o
diagnóstico dos problemas setoriais existentes é comum a ambos, mas a res-
ponsabilidade é do outro – no caso, do Estado.
Em segundo lugar, as parcerias do Estado com o Mercado, aqui
entendido como o setor privado produtor de serviços, ainda são esparsas e, na
grande maioria das vezes, dependentes de subsídios fiscais, e portanto dificil-
mente se configuram como uma ação autônoma, e menos ainda se traduzem
em formas inovadoras e mais racionais (e portanto menos dispendiosas) de
gestão dos recursos públicos.
A terceira forma, a mais estimulada pelo governo central, diz respei-
to as novas formas de gestão dos equipamentos públicos estatais, como é o caso
das propostas de gestão através de organizações sociais. O objetivo, aqui, é
imprimir maior racionalidade aos serviços públicos estatais, uma vez que
caudatárias do propósito de reforma administrativa do Estado, necessária dado
que lhe é agregado como atributo natural a irracionalidade, o desperdício, a
impunidade. Mas é também nesse quesito que se concentram os defensores da
necessidade da reforma do Estado, entendida como a redução do seu tamanho
acompanhada da delegação para o mercado da responsabilidade pela produção
dos serviços sociais (cf. Pereira, 1998).
Estabelece-se, a partir daí, na agenda pública, uma comunhão artifi-
cial entre reforma administrativa do Estado e reforma do Estado, que passam a
ser tidas como sinônimos, deslocando-se uma vez mais a questão social para o
espaço do questionamento sobre capacidade técnico-burocrático-administrati-
va do aparato estatal, sobrepondo-se o cálculo da racionalidade econômica so-
bre a dimensão política de contratos sociais anteriormente estabelecidos, sobre-
tudo no caso dos direitos contributivos, bem como sobre a dimensão das neces-
sidades sociais básicas institucionalizadas como universais, e também se confi-
gurando como expectativa de implementação desses direitos. As demandas so-
ciais pulverizam-se, portanto, entre os setores sociais mais organizados e os não
organizados, distanciando-se a relação entre o social e o político. As conseqüên-
cias imediatas, no âmbito das políticas sociais, vêm sendo duas. De um lado, a
questão social não édefinida como uma questão da política, é bem verdade que
felizmente nem tampouco como questão de polícia, mas de cálculo econômico
entre o “possível” e o “necessário”, reduzindo-se assim a esfera pública e, con-
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seqüentemente, a questão social sendo progressivamente expulsa da esfera polí-


tica. De outro lado, em função de se imprimir maior racionalidade às políticas
sociais, passa a imperar o raciocínio do custo/efetividade no interior dos setores
públicos estatais, como se eles fossem idênticos ao mercado.
Essa vem sendo, a nosso ver, o que poderia ser denominado de “se-
gunda geração de privatização dos serviços sociais”, em analogia com o que
vem sendo intitulado de “segunda geração de reforma do Estado” (Oszlack,
1999) e que consiste não mais em os recursos públicos comprarem serviços
produzidos pelo setor privado, mas exatamente em se transplantar para o inte-
rior do setor público estatal critérios e práticas de seletividade próprias do
mercado. À guisa de ilustração: no geral essas novas formas de gestão dos
equipamentos estatais contam com uma receita fixa garantida (o mecanismo
intitulado de captação) tendo sua margem de lucratividade, ou de superavit,
definida pela contenção das despesas. Para que essa contenção não se traduza
simplesmente em corte de determinados serviços e ações mais onerosos, seria
necessária a garantia de efetivos mecanismos de controle público que impe-
dissem que os equipamentos assim gerenciados praticassem a seletividade do
acesso da clientela a níveis mais sofisticados de atendimento de suas necessi-
dades e demandas3. Constituem exemplos típicos desse fenômeno, resguarda-
das as devidas diferenças, as experiências do Hospital das Clínicas de São
Paulo, destinando parcela de seus leitos públicos estatais à demanda privada,
e a desastrosa experiência, de iniciativa municipal na última gestão Maluf, do
Plano de Assistência à Saúde em São Paulo (1993-1997).
Na realidade, o que vem ocorrendo, ditado pela primazia da urgência
econômica sobre a social, e possibilitado pela extrema fragmentação social de-
rivada do o modelo econômico adotado, é que essa comunhão artificial que se
estabelece entre reforma administrativa e reforma do Estado, cuja expressão
mais acabada são as novas experiências de gestão através de organizações so-
ciais, cooperativas de trabalho, autogestão, dentre outros, torna-se sinônimo da
implementação da racionalidade própria do setor privado na gestão do setor
público estatal, fazendo com que este atue sob a mesma lógica de custo/efetividade
que comanda o setor privado. Eficiência – produzir mais com menor custo –
traduz-se em efetividade – produzir com menor custo gerando maior impacto,
comprometendo-se, assim, a essência da responsabilidade do Estado, que con-
3
siste exatamente em implementar políticas sociais efetivamente redistributivas. Note-se, aqui, que o
mesmo instrumento
Com isso, vem se agravando o traço histórico de nossas políticas sociais, de captação vem sen-
reprodutoras das desigualdades sociais, tal como demonstrado no documento do adotado pelo go-
verno como critério de
brasileiro elaborado para a Cúpula de Desenvolvimento Social, em 1995. repasse de recursos
Não se trata, aqui, de invalidar ou mesmo questionar os programas que para estados e muni-
visam estender o acesso da população aos serviços básicos – sejam eles de saúde cípios, como é o caso
do Piso de Assistência
ou de educação, dentre outros –, mas sim de apontar para o fato de que eles não Básico (PAB), por
eximem a responsabilidade do Estado – nos níveis federal, estadual e municipal, exemplo, e que vem
sendo implementado
cada um na abrangência de sua competência – de articular a esses programas pelo Ministério da
políticas sociais de médio e longo prazos voltadas para a superação da pobreza. Saúde.
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Por outro lado, tampouco se deve cair apressadamente na armadilha simplista de


que as restrições que vêm ocorrendo, seja através da desinstitucionalização de
direitos sociais historicamente conquistados, seja através de sucessivos cortes de
recursos para a área social, são fruto direto do processo de globalização, e não
também do modelo de ajuste econômico que vem sendo adotado desde 1995.
Na atual conjuntura, em que a crise econômica se torna mais aguda, e a
recessão se faz presente, é exatamente a área social aquela que se revela, nova-
mente, mais vulnerável às restrições orçamentárias. E esses cortes – que vêm ocor-
rendo com assustadora freqüência sobretudo a partir da maxidesvalorização do
real, em janeiro do corrente ano – se fundamentam tanto na circunstância objetiva
de que são exatamente esses os recursos sobre os quais o governo tem controle
enquanto despesas do Orçamento da União (sob a rubrica “Outras Despesas de
Custeio e de Capital”), como, sobretudo, na circunstância política igualmente ob-
jetiva de que esses cortes atingem, no geral, exatamente aqueles setores sociais
com menor capacidade de fazer valer seus direitos e suas demandas.

Pobreza e desigualdade: a equação evitada

No debate público recente, a “bandeira” da pobreza tem sido dispu-


tada por diferentes forças políticas. A disputa, afinal, é sobre quem, muito
mais que quais setores, foi vanguarda na defesa dos interesses dos pobres
propondo programas e políticas sociais focalizados para esse segmento. No
entanto, cabe sublinhar que enquanto a pobreza é disputada, o mesmo não
ocorre com a desigualdade, uma vez que esta implica necessariamente em
mecanismos diretos ou indiretos de redistribuição de renda.
E, se continuar a prevalecer essa forma de atuação das elites políticas
– dos mais diferentes matizes político-ideológicos – as políticas e programas
sociais no país estarão condenados aos limites estreitos da concepção de políti-
cas para o alívio da pobreza, ao invés de estarem voltados para a superação da
pobreza. Fato este tanto mais grave porque as reformas estruturais da década de
90 promovidas na América Latina aumentaram as desigualdades sociais na re-
gião, em particular no Brasil. Este é o país da região que apresenta as maiores
disparidades regionais e os maiores índices de concentração de renda: enquanto
a renda per capita anual média do Estado do Piauí é idêntica à do Haiti, e 76%
dos brasileiros têm um nível de renda inferior à média anual per capita brasilei-
ra, que é de US$ 4,800, 10% das famílias brasileiras apropriam-se de 12,5% da
renda nacional, enquanto os 40% das famílias mais pobres se apropriam de
apenas 11,8% da renda total (cf. Cepal, 1998; IBGE, PNAD, 1995).
É exatamente a partir da constatação desse quadro, que mostra a per-
sistência da brutal concentração de renda no país, bem como da lógica perversa
que persiste na implementação de medidas de combate à pobreza, que ganha
importância enfatizar, no diagnóstico que embasa as propostas dessas políticas
e, portanto sua formulação, a perspectiva da sua qualidade. Entende-se aqui por
qualidade das políticas sociais menos a sua dimensão da relação custo/efetividade,
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COHN, Amélia. As políticas sociais no governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 183-197, out. 1999
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tão em voga, e mais o seu conteúdo enquanto instrumento de construção da


cidadania e da autonomia desses sujeitos, população-alvo das políticas sociais,
ao se buscar satisfazer determinadas necessidades básicas exatamente desses
segmentos mais pobres da população.
Mas isso implica a necessidade de reconstruir a esfera pública, sujei-
ta nesta década a um processo de crescente privatização e destruição, como
analisa Oliveira (1999), e que tem origem exatamente na atual crise do contrato 4
Isso implica, por exem-
social, e de seus critérios de inclusão e de exclusão, como aponta Santos (1999), plo, não confundir bru-
“gerando uma crescente fragmentação da sociedade, dividida em múltiplos tais distorções existen-
apartheids, polarizada ao longo de eixos econômicos, sociais, políticos e cultu- tes no sistema brasilei-
ro de previdência social
rais. Não só perde sentido a luta pelo bem comum como também parece perder com simples privilégi-
sentido a luta por definições alternativas de bem comum” (Oliveira, p. 91). os, negando-se assim o
próprio processo histó-
O que se buscou apontar aqui, no caso específico das políticas so- rico de construção des-
ciais que vêm sendo implementadas sobretudo a partir da segunda metade se sistema. Ou no ou-
desta década, é exatamente o seu traço tradicional, e nesse sentido tímido, tro extremo, partindo-
se de um diagnóstico
que vem redundando seja num processo de destruição da esfera pública, e/ou da crise financeira atu-
de sua privatização, seja num processo de sua substituição pela esfera priva- al da previdência social
propor-se como solu-
da, o que alerta para a necessidade de que essa tendência seja confrontada ção técnica para saná-
com propostas de construção de um projeto para nossa sociedade que impri- la as seguintes alterna-
ma a qualidade de promoção da cidadania às nossas políticas sociais, e não de tivas polares: ou inves-
tir no passado (isto é,
reprodução da subalternidade, como vem ocorrendo até o momento. manter as garantias
Nesse sentido, talvez o que os debates e embates políticos que vêm previdenciárias dos
idosos), ou no Brasil do
se travando em torno delas estejam exatamente indicando é a necessidade de futuro (isto é, investir
uma profunda reforma do Estado, de sua democratização, de torná-lo um Es- nos mais jovens), a par-
tado forte e democrático que efetivamente inclua os cidadãos, como aponta tir da reformulação dos
direitos previdenciá-
Lechner (1993), para o que se torna condição necessária o respeito a contratos rios visando o seu equi-
sociais preexistentes, apontando assim para a garantia da previsibilidade de líbrio contábil futuro,
em detrimento do res-
determinados padrões de proteção social anteriormente firmados4. Isso por- peito aos contratos
que, nesse ponto, a democracia não se distancia do mercado: ambos exigem existentes, dada a im-
para a sua sustentação a previsibilidade e, portanto, a segurança da perma- possibilidade de “cai-
xa” do sistema atual.
nência de determinadas regras do jogo. E talvez aí se reponha a tensão, já Embora não seja con-
apontada por vários autores, entre capitalismo e democracia. senso, uma vez que há
técnicos e especialistas
do governo que assu-
mem os atuais gastos
previdenciários como
gastos não passíveis de
Recebido para publicação em setembro/1999 compressão, sintomati-
camente esta vem sen-
do uma das propostas
defendidas junto ao go-
verno para a reforma de
nosso sistema previ-
denciário. IPEA/UFF
(1999), especialmente
Neri, M. – “Capital
Enhancing poverty
alleviation policies in
Brazil”.

195
COHN, Amélia. As políticas sociais no governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 183-197, out. 1999
(editado em fev. 2000).

COHN, Amélia. Social Policies in FHC government. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2):
183-197, Oct. 1999 (edited Feb. 2000).

UNITERMS: ABSTRACT: The aim of this article is to analyses the set of social policies,
social policies, which have been implemented since 1995. This is not a study of the money
public policies,
spent neither on the social area nor of the budget effectively appropriated by
fighting poverty.
the poorest members of the population. The objective of this paper is to check
to which degree the government has made an effective change in the way it
deals with the social problem. It is true that some advances were made, but
there is still the same kind of articulation between economical policy and social
policy, between social policy and representation of the demands of non organized
groups, putting an emphasis on the technical dimension of social programs of
the framework. Above all, this article evaluates the timidity of the government in
effective facing the poverty-inequality equation.

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198
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Tempo Social; Maria Helena & COSTA,USP,
Rev. Sociol. OlavoS.Viana. Entre11(2):
Paulo, o público e o privado
199-217, - a1999
out. DOSSIÊ
saúde hoje no Brasil. FHC
Tempo Social;
Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 199-217,
(editadoout.em
1999 (editado
fev. 2000). em fev. 2000). o
1 GOVERNO

Entre o público e o privado


a saúde hoje no Brasil
MARIA HELENA OLIVA AUGUSTO

OLAVO VIANA COSTA

RESUMO: O artigo analisa a política governamental de saúde, no período 1995- UNITERMOS:


1998, focalizando as principais decisões relativas à organização e financiamen- políticas
governamentais,
to do Sistema Único de Saúde (SUS). São apontadas e discutidas, entre outras política de saúde,
decisões do governo federal no setor saúde: a regulamentação dos critérios de serviços de saúde.
transferência de recursos federais para estados e municípios, com a conse-
qüente definição de modalidades de gestão local do sistema de saúde; a estra-
tégia de reorganização da atenção básica à saude, via incentivos especiais ao
Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e ao Programa de Saúde
da Família (PSF); a instituição da Contribuição Provisória sobre Movimentação
Financeira (CPMF) como fonte específica de recursos para ações de saúde; e a
regulamentação dos seguros e planos privados de assistência à saúde.

cuidado com a saúde faz parte das atribuições governamentais desde

O o momento em que o Estado brasileiro se constituiu. Ao longo do


tempo, porém, alteraram-se não só a forma como se dá a intervenção
estatal no âmbito da saúde, mas também o que se considera como
promoção pública da saúde pública ou coletiva. Num primeiro
momento, sua intervenção fez-se expressar exclusivamente por meio de medi-
das de saneamento básico, da prescrição de normas de higiene, e do controle
das endemias que marcaram profundamente (e ainda o fazem, de maneira sig-
Professora do Depar-
nificativa) a situação sanitária do país. Era mínima a interferência estatal no tamento de Sociologia
atendimento médico individualizado, situação completamente diversa da atu- da FFLCH - USP
al, que se caracteriza pela generalização desse tipo de cuidado. Analista de projetos
Contemporaneamente, contudo, alterou-se o conteúdo da agenda da Fundação SEADE

199
OLIVA-AUGUSTO, Maria Helena & COSTA, Olavo Viana. Entre o público e o privado - a saúde hoje no Brasil. Tempo Social;
Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 199-217, out. 1999 (editado em fev. 2000).

nacional da saúde pública, que passou a incluir, além dos itens referentes às
doenças infecto-contagiosas, também as enfermidades crônico-degenerativas,
as mortes por causas externas e os problemas ambientais, derivados do pro-
cesso de “modernização” social (cf. Monteiro et alii, 1995). Ao mesmo tem-
po, os recursos e cuidados oficiais dirigidos às atividades mais estritamente
vinculadas a essa finalidade, isto é, aquelas tradicionalmente encaradas como
responsabilidade estatal exclusiva, têm sido mais escassos e rarefeitos.
Este artigo tem por objetivo analisar a atuação governamental sobre
a saúde, visando perceber qual o sentido assumido pela intervenção pública
nessa área, no período 1995-19981, quais são os elementos em que converge e
em que pontos se diferencia de gestões anteriores e, principalmente, se tem con-
corrido para uma transformação substantiva no que se refere a algumas caracte-
rísticas históricas da atenção pública no setor, no Brasil. Concretamente, esses
quatro anos devem ser vistos naquilo que apresentam de continuidade em rela-
ção às dinâmicas em vigência anteriormente e, ao mesmo tempo, identificados
no que se refere às inovações que introduzem nesse mesmo percurso2.
Considerado desse modo, o ponto de partida da reflexão, sem dúvi-
da, situa-se uma década atrás, no momento de institucionalização de algumas
conquistas derivadas de um amplo movimento de luta que, constatando a pre-
cariedade da atenção pública à saúde no Brasil, apontou para a necessidade
do reconhecimento do acesso à saúde como direito social universal. Por isso,
de início, focalizam-se as decisões relativas à implementação do Sistema Úni-
1
Durante esse período, co de Saúde (SUS), cuja expectativa era consubstanciar o dispositivo da Cons-
o Ministério da Saúde tituição federal de 1988 que define a saúde como dever do Estado e prevê a
teve quatro ocupantes:
Adib Jatene (de 01/01/ integração das ações e serviços públicos do setor segundo os princípios de
1995 a 07/11/1996); descentralização, atendimento integral e participação da comunidade.
José Carlos Seixas (in- Em seguida, discutem-se os diversos aspectos que compõem esse
terino) (de 07/11/1996
a 13/12/1996); Carlos quadro para tentar evidenciar se, nos últimos anos, têm emergido formas es-
César Albuquerque pecíficas e distintivas da gestão pública nessa área. Isto porque as reformas
(de 13/12/1996 a 31/
03/1998); e José Serra
relativas à saúde, embora orientadas pela necessidade de contenção dos cus-
(desde 31/03/1998). tos de assistência médica e pela busca de maior eficiência, têm se caracteriza-
2
O que se deseja desta- do pela descentralização de atividades para estados e municípios, pela trans-
car é que a análise de
um tema, quando refe- ferência de responsabilidades para o setor privado e pelo “aumento da partici-
rida a um período es- pação financeira do usuário no custeio dos serviços que utiliza, sejam estes
pecífico, não se pode públicos ou privados” (Almeida, 1999b, p. 268).
fazer de forma pontu-
al. É necessário que Dessa forma, visando explicitar problemas cotidianos e crônicos da questão
esse período seja to- saúde no país, serão descritos alguns aspectos gerais relativos à organização e finan-
mado como parte de ciamento do SUS e apresentados os elementos que podem ser destacados no período
um processo mais am-
plo. Se, de certa forma, de interesse. De um lado, a busca por financiamento dessas atividades, com especial
esse fato condiciona e destaque para a defesa da instituição do CPMF como fonte específica de recursos
delimita o campo das
alternativas possíveis,
para ações de saúde e o tipo de uso que lhe foi posteriormente atribuído; de outro, a
não se deve, no entan- redefinição das modalidades de gestão, o acento dado à ação municipal e os incenti-
to, deixar de conside- vos dirigidos ao Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e Programa
rar o espectro de virtu-
alidades que pode fa- de Saúde da Família (PSF); e, por fim, os aspectos controversos da regulamentação
zer emergir. dos seguros e planos privados de assistência à saúde.
200
OLIVA-AUGUSTO, Maria Helena & COSTA, Olavo Viana. Entre o público e o privado - a saúde hoje no Brasil. Tempo Social;
Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 199-217, out. 1999 (editado em fev. 2000).

Organização do SUS

O Sistema Único de Saúde (SUS), previsto na Constituição federal de


1988, explicita projeto resultante de um longo processo de gestação. De fato, tra-
ta-se de proposta em curso desde meados dos anos 70, objeto de demanda intensa
por parte de setores organizados dos profissionais da área e de grupos preocupa-
dos com a situação social do país. Buscava superar a difícil situação em que se
encontrava o sistema público de saúde que, priorizando a assistência médica e o
hospital, em detrimento da prevenção e promoção à saúde, excluía desse atendi-
mento os não contribuintes da Previdência Social e, ao mesmo tempo, concorria
para a privatização de recursos públicos (cf. Inojosa, Araújo & Martins, 1996a).
O que se propunha, então, era: a extensão do direito à saúde a to-
dos, mesmo os que não estivessem regularmente vinculados ao mercado for-
mal de trabalho e o reconhecimento de que a área abrangida era de responsa-
bilidade pública, além da ampliação do significado desses conceitos. Tratava-
se de marcar que a conquista da saúde não se restringe à submissão a atos
curativos isolados, mas, pelo contrário, supõe um conjunto de cuidados que
não se limitam ao âmbito específico das práticas médicas, incidindo, de fato,
sobre o conjunto de situações de vida da população atingida.
As resistências à implantação do SUS, de caráter político e econô-
mico, têm estado presentes desde o momento de sua inserção no texto consti-
tucional. A Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, conhecida como Lei
Orgânica da Saúde, regula as ações e serviços de saúde executados, em todo o
território nacional, por pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou pri-
vado, isolada ou conjuntamente. As dificuldades e as disputas ocorridas no
processo de sua aprovação deixaram muito claro que o percurso até a efetivação
da prerrogativa assegurada constitucionalmente está longe de seu término e
que a batalha a ser travada não é fácil.
O SUS integra as ações e serviços de saúde prestados por órgãos e
instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administração direta e
indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, inclusive aquelas que atu-
am nas áreas de controle de qualidade, pesquisa e produção de insumos, medica-
mentos e equipamentos de diagnóstico e terapêutica. Sua direção é exercida, no
âmbito da União, pelo Ministério da Saúde e, no âmbito dos estados e municípios,
pelas respectivas secretarias de saúde ou órgãos equivalentes. A participação da
iniciativa privada, por meio de profissionais liberais, legalmente habilitados, e de
pessoas jurídicas de direito privado, é formalizada mediante contrato ou convênio
regido pelas normas de direito público e estabelecido, preferencialmente, com en-
tidades filantrópicas e instituições sem fins lucrativos.
Financiado com recursos do orçamento da seguridade social, o SUS
tem por finalidade a prestação de serviços de assistência médica, em nível
ambulatorial e hospitalar, devendo também desenvolver ações rotineiras de vigi-
lância sanitária e epidemiológica. No desempenho dessas funções, as instituições
próprias, contratadas ou conveniadas devem observar, entre outros, os princípios
de: universalidade de acesso aos serviços, em todos os níveis de assistência;
201
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integralidade da assistência, com ações preventivas e curativas, individuais e cole-


tivas, exigidas para cada caso; igualdade da assistência, sem preconceitos ou pri-
vilégios de qualquer espécie; divulgação de informações quanto ao potencial dos
serviços e à sua utilização pela população; uso de critérios epidemiológicos para o
estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática;
conjugação de recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União,
dos estados e dos municípios; ênfase na municipalização dos serviços e na sua
organização segundo critérios de regionalização e hierarquização; e capacidade de
resolução técnica dos serviços, em todos os níveis de assistência.
Durante a tramitação da Lei Orgânica da Saúde no Congresso Nacio-
nal, o texto que a originou foi objeto de intenso debate parlamentar, uma vez que
apresentava pontos polêmicos e controversos, alguns ainda não superados, tor-
nando evidente a existência de pontos de vista distintos e até antagônicos na
apreciação dos caminhos a serem percorridos na gestão pública da saúde. De-
vem-se destacar, entre esses pontos, a transferência do INAMPS para o Minis-
tério da Saúde, com a conseqüente extinção dos seus escritórios regionais; a
discussão sobre o caráter consultivo ou deliberativo das instâncias colegiadas
de gestão do SUS em cada esfera de governo, em especial a Conferência e o
Conselho de Saúde; a participação da iniciativa privada no âmbito do SUS, que
havia sido definida no texto constitucional como devendo ter caráter comple-
mentar; a descentralização das ações e serviços de saúde, direta ou indiretamen-
te executados pelo governo federal; a definição das fontes de financiamento e
dos critérios e mecanismos de transferência de recursos do governo federal para
os estados e municípios; e a política de recursos humanos para o setor. Vários
dispositivos referentes a esses temas foram vetados pelo então presidente da
república, Fernando Collor de Melo, mas acordo intermediado pelo Ministro da
Saúde do novo governo, o ex-deputado Alcenir Guerra, possibilitou a aprova-
ção de lei complementar: a Lei no 8.142, de 28/12/1990, que dispõe sobre a
participação da comunidade na gestão do SUS e sobre as transferências
intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde (cf. Cordeiro, 1991).
A participação do Ministério da Saúde é crucial nesse processo. A
destinação de recursos federais ao SUS baseia-se na receita estimada do orça-
mento da seguridade social, conforme proposta por ele elaborada, com a partici-
pação dos órgãos de previdência e assistência social, tendo em vista as metas e
prioridades estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias da União. Aprovado
o orçamento, os recursos são creditados ao Fundo Nacional de Saúde, sob sua
administração, cabendo ao Conselho Nacional de Saúde fiscalizar o uso que
lhes é dado. Esse órgão colegiado, atuante na formulação de estratégias e no
controle da execução da política de saúde, inclusive nos aspectos econômicos e
financeiros, tem caráter permanente e deliberativo e é composto por represen-
tantes do governo, prestadores de serviços, profissionais de saúde e usuários.
Além disso, na administração do Fundo Nacional de Saúde, com-
pete ao Ministério da Saúde estabelecer os critérios, aprovar a programação e
acompanhar a aplicação dos recursos repassados a estados e municípios, ca-
bendo-lhe também adotar as punições previstas em lei para os casos de mal-
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OLIVA-AUGUSTO, Maria Helena & COSTA, Olavo Viana. Entre o público e o privado - a saúde hoje no Brasil. Tempo Social;
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versação, desvio ou não aplicação dos recursos. Por sua vez, para receber os
recursos, além de constituir o fundo de saúde, os estados e municípios devem
criar conselhos e elaborar planos de saúde, apresentar relatórios de gestão e
assegurar a existência de contrapartida de recursos para a saúde no respectivo
orçamento. Desse modo, os três níveis de governo devem atuar conjuntamen-
te na administração da saúde pública.
Entretanto, foram muitas as dificuldades observadas na definição
das regras para o repasse regular e automático de recursos do governo federal
para estados e municípios. Este só foi implementado a partir de 1994, com a
entrada em vigor da segunda Norma Operacional Básica do SUS – a chamada
NOB/93, anexa à Portaria do Ministério da Saúde no 545, de 20/05/1993. Até
então, vigoravam as disposições constantes da primeira Norma Operacional –
a chamada NOB/91, anexa à Resolução da Presidência do Inamps no 258, de
07/01/1991 –, que estendiam aos órgãos públicos a mesma sistemática de
pagamento por produção tradicionalmente aplicada nos contratos firmados
com a iniciativa privada, transformando estados e municípios em meros ven-
dedores de serviços de saúde para a União (cf. Scotti, 1997).
Expedida na administração de Jamil Haddad à frente do Ministério
da Saúde, durante o governo de Itamar Franco, a NOB/93 estabeleceu um
novo padrão de relação intergovernamental na área da saúde (Barreto Júnior,
1999), detalhando responsabilidades, requisitos e prerrogativas para a habili-
tação de estados e municípios à condição de gestor local do SUS, sob três
modalidades distintas: gestão incipiente, gestão parcial e gestão semi-plena.
No modelo de gestão incipiente, o município assumia a responsabili-
dade sobre a contratação e autorização do cadastramento de prestadores; a progra-
mação e a autorização da quantidade de internações hospitalares e procedimentos
ambulatoriais a serem prestados por unidade; o controle e a avaliação dos serviços
ambulatoriais e hospitalares públicos e privados com ou sem fins lucrativos; o
gerenciamento das unidades ambulatoriais públicas existentes no município; a
incorporação à rede de serviços das ações básicas de saúde – nutrição, educação,
vigilância epidemiológica e sanitária; e o desenvolvimento de ações de vigilância
de ambientes e processos de trabalho e de assistência e reabilitação do acidentado
de trabalho e do portador de doença ocasionada pelo trabalho.
No modelo de gestão parcial, além de assumir as atribuições da
gestão incipiente, o município passava a receber mensalmente recursos finan-
ceiros correspondentes à diferença entre o teto financeiro e o pagamento efe-
tuado diretamente pela esfera federal às unidades hospitalares e ambulatoriais,
públicas ou privadas, existentes em seu território.
No modelo de gestão semiplena, além das atribuições dos modelos
anteriores, o município assumia a completa responsabilidade sobre a gestão
da prestação de serviços (planejamento, cadastramento, contratação, controle
e pagamento de prestadores ambulatoriais e hospitalares, públicos e priva-
dos); o gerenciamento da rede pública, exceto unidades de referência sob ges-
tão estadual; e o recebimento mensal da totalidade dos recursos financeiros
para custeio correspondentes aos tetos ambulatoriais e hospitalares.
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A implementação do SUS funcionou, nesses termos, até dezembro


de 1997. Informações referentes a janeiro de 1997 dão conta de que 3.127 ou
58% dos então 5.407 municípios brasileiros estavam habilitados a uma des-
sas modalidades de gestão local do SUS, embora apenas 144 ou 5% na condi-
ção de gestão semi-plena (cf. Arretche, 1998).
No início de 1998,
1. Municípios habilitados Ano foi implementada uma nova
às condições de gestão Condição de gestão 1994 1995 1996
local do SUS previstas Norma Operacional Básica, em
Incipiente 1.836 2.131 2.369
pela NOB/93
Parcial 537 612 619
substituição à NOB/93: a cha-
Brasil - 1994, 1995 e 1996
Fonte: YUNES, 1999: 66. Semiplena 24 56 137 mada NOB/96, anexa à Por-
taria do Ministério da Saúde
no 2.203, de 5 de novembro de 1996, editada na administração de Carlos César
Albuquerque à frente do Ministério da Saúde, durante o primeiro governo de
Fernando Henrique Cardoso. Segundo Almeida, a NOB/96 significa “uma
inflexão importante na reforma da saúde”(Almeida, 1999b, p. 279), já que
sustenta a necessidade da retomada e fortalecimento do papel dos estados na
coordenação e condução dos sistemas estaduais de saúde, mais inclusivos,
revertendo a ênfase municipalista anterior. Da mesma forma, dá ênfase a uma
reorganização do sistema, centrada na atenção básica e nos programas seleti-
vos, cuja implementação “tende a fortalecer a focalização preconizada pelos
organismos financeiros internacionais” (Almeida, 1999b, p. 279).
Com a implementação da NOB/96, passaram a vigorar apenas duas
modalidades de gestão local do SUS – gestão plena da atenção básica e gestão
plena do sistema de saúde. No modelo da gestão plena da atenção básica, os
municípios respondem integralmente pela assistência ambulatorial e pela rea-
lização das ações básicas de vigilância sanitária e epidemiológica, gerenciando
todas as unidades básicas de saúde públicas localizadas em sua jurisdição,
inclusive aquelas pertencentes ao Estado e à União. Além disso, comprome-
tem-se com a garantia da referência intermunicipal, suprindo a oferta de equi-
pamentos e atendimentos inexistentes no município junto a outras cidades.
Finalmente, responsabilizam-se também pela autorização de internações hos-
pitalares e pela avaliação da assistência básica.
Já os municípios que assumirem o modelo da gestão plena do sis-
tema municipal, por sua vez, passam a responder integralmente pelas ações e
serviços do SUS, cabendo-lhes a gerência de todas as unidades de saúde exis-
tentes em seu território, inclusive aqueles mantidos por pessoa física ou jurí-
dica de direito privado. Devem ainda se responsabilizar pela gestão da assis-
tência hospitalar e básica, pela execução das ações de vigilância sanitária e
epidemiológica, pelo controle, avaliação e auditoria dos serviços no municí-
pio, pela operação do sistema de informações tanto ambulatoriais como hos-
pitalares, pela garantia da referência intermunicipal e pela administração da
oferta de procedimentos de alta complexidade tecnológica.
Informações do Ministério da Saúde, incluídas na proposta de go-
verno de Fernando Henrique Cardoso, divulgada durante a campanha eleito-
ral que o reelegeria à Presidência da República, davam conta de que 4.885 ou
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OLIVA-AUGUSTO, Maria Helena & COSTA, Olavo Viana. Entre o público e o privado - a saúde hoje no Brasil. Tempo Social;
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89% dos 5.507 municípios existentes em 1998 estavam habilitados à gestão 2. Municípios habilitados
às condições de gestão
local do SUS, sendo 431 ou 8% na condição de gestão plena do sistema de local do SUS previstas
saúde (cf. Cardoso, 1998). pela NOB/96
A regulamentação da trans- Ano Brasil - 1998 e 2002
Fonte: Yunes, 1999, p. 66
ferência de recursos do governo federal Condição de gestão 1998(1) 2002(2)
e Cardoso, 1998, p. 166
Atenção básica 4.553 5.507
para estados e municípios, nos termos Notas: (1) Outubro de
Sistema municipal 449 1.500 1998 e (2) Previsão
da legislação orgânica do setor, requi-
sito indispensável para a implementação do SUS, é um fato muito recente
para assegurar a realização dos objetivos de disciplinamento da demanda por
serviços de saúde preconizados pelo movimento de reforma sanitária há mais
de 20 anos. Basta lembrar que, ainda hoje, dez anos depois da instituição do
SUS, mais de 50% das despesas do governo federal com saúde se destinam ao
pagamento de consultas, exames e internações em estabelecimentos próprios 3
Os donos de hospitais
ou contratados pela seguridade social (cf. Campino et alii, 1998). opunham-se contun-
dentemente, entre ou-
No debate sobre a questão, criticam-se o enfraquecimento e a perda tras coisas, aos valores
de funções das secretarias estaduais de saúde, em decorrência do processo de de retribuição que a
tabela do Ministério da
descentralização do SUS. Ao romper com o equilíbrio federativo, esse pro- Saúde conferia aos pro-
cesso caracterizar-se-ia pela concentração do financiamento e do poder cedimentos médicos
normativo na União e pela devolução de responsabilidades executivas direta- das instituições conve-
niadas, discordância,
mente aos municípios (cf. Mendes, 1998). aliás, que era consen-
sual. Eram as seguin-
Financiamento do SUS (A questão da CPMF) tes as remunerações
previstas para os atos
médicos, desde julho
Desde o início do período governamental em análise, ao lado das difi- de 1994: consulta mé-
dica: R$ 2,04; exame
culdades de obtenção de recursos para a atuação do Ministério da Saúde, o atendi- clínico: R$ 0,54; con-
mento público no setor tem sido objeto de intensas críticas, oriundas dos meios de sulta médica de pré-
comunicação, dos próprios profissionais de saúde e dos empresários atuantes na natal: R$ 2,86; psico-
diagnóstico: R$ 2,19;
área3. Por isso, antes mesmo de assumir a pasta e durante os quase dois anos em hemodiálise (sessão):
que o comandou, o Ministro Adib Jatene preocupou-se em encontrar mecanismos R$ 73,50; terapia em
cardiologia: R$ 8,94;
que possibilitassem a implementação das atividades sob sua responsabilidade. tratamento de Aids em
No orçamento de 1995, as verbas previstas para a Saúde, mesmo hospital/dia: R$ 12,56;
muito superiores às do ano anterior (R$ 13,9 bilhões sobre, aproximadamente, tomografia de osso em
dois planos: R$ 14,94;
R$ 6,5 bilhões), não eram suficientes para cobrir as necessidades da área, na- cesariana: R$ 35,00
quele ano, considerando o Ministério ser necessária a agregação de recursos (cf. Araújo & Martins,
adicionais da ordem de R$ 5,9 bilhões. Além disso, havia dívidas herdadas do 1995b, p. 17).
4
Tratava-se de contri-
governo anterior. Chegou a ser aventada a possibilidade de criação de um im- buição nos moldes do
posto para financiar o sistema público de saúde, o que, ao lado de aumentar o antigo Imposto Provi-
montante de seus recursos, diminuiria sua dependência em relação à Seguridade sório sobre Movi-
mentação Financeira,
Social (O Estado de S. Paulo, 29/12/1999; Folha de S. Paulo 29/12/1994). IPMF, que previa a co-
Considerando a necessidade de haver uma fonte de financiamento brança de alíquota de
0,25% sobre cada mo-
estável e segura para o SUS, foi encaminhada ao Congresso Nacional emenda vimentação financei-
constitucional, criando a Contribuição sobre a Movimentação Financeira – CMF4, ra. O potencial de re-
objeto de muitas controvérsias, interna e externamente ao governo, uma vez que ceita da CMF era esti-
mado em R$ 6 bilhões
existiam pontos de vista bastante divergentes sobre a oportunidade da medida, anuais (cf. Araújo &
seu caráter provisório ou definitivo, sobre o seu alcance, tempo de implantação Martins, 1995a).
205
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e vinculação exclusiva à saúde (cf. Araújo & Martins, 1995a).


O projeto que criava o CMF foi enviado ao Congresso, no final do
mês de julho de 1995. A emenda constitucional que criava a CPMF foi pro-
mulgada no dia 15 de agosto de 1996 e o projeto de regulamentação foi envi-
ado ao Congresso no dia 26 do mesmo mês (cf. Araújo & Martins, 1995a).
Apesar das divergências e da demora verificada no processo de sua aprova-
ção, a proposta de orçamento de 1996, para o Ministério da Saúde, incluía
recursos advindos da CPMF (cf. Inojosa, Araújo & Martins, 1996b).
Idealizada como recurso adicional e provisório, enquanto não se fizes-
se a reforma tributária e, nesta, eventualmente se aprovasse a vinculação de parte
do orçamento da seguridade social para a saúde, a CPMF tornou-se um recurso
substitutivo das fontes de que dispunha o setor, particularmente a Contribuição
para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e a Contribuição sobre o
Lucro Líquido (CSLL). Em 1995, o Ministério da Saúde recebeu 58% da arreca-
3. Recursos Alocados ao
Ministério da Saúde, por dação da Cofins, mas essa proporção caiu para 24%, em 1998. No caso da arreca-
Fonte de Receita dação da CSLL, a redução da parcela destinada ao Ministério da Saúde foi ainda
Brasil - 1994 a 1998
Fonte: CAMPINO et alii,
mais expressiva, passando de 83% para 27% no mesmo período (Jatene, 1999).
1998. Recursos Alocados – em milhões de reais (1)
Notas: (1) Valores
Fonte de Receita 1994 1995 1996 1997 1998 (2)
inflacionados mês a mês
para dezembro de 1997. Valor % Valor % Valor % Valor % Valor %
(2) Previsão. Total 12.730 100 18.271 100 15.885 100 19.036 100 19.501 100
(3) Contribuição sobre o
CSLL (3) 1.639 13 3.684 20 3.290 21 3.675 19 1.808 9
Lucro Líquido.
(4) Contribuição para o Cofins (4) 4.929 26 4.885 25
Financiamento da CPMF (5) 4.362 34 8.968 49 6.746 43 5.290 28 6.615 34
Seguridade Social. FSE (6) 4.691 37 2.180 12 2.800 18 3.706 19 2.349 12
(5) Fundo Social de
Outras 2.036 16 3.439 19 3.020 19 1.436 8 3.844 20
Emergência.

5
Publicação da FIOCRUZ Atualmente, o Congresso Nacional discute proposta de emenda cons-
apresenta outros núme- titucional que obriga União, Estados e municípios a investirem um percentual
ros, afrimando textual-
mente: “A proposta ini-
fixo do orçamento em saúde. Por essa proposta, já aprovada na Câmara Fede-
cial elevava o orçamen- ral, em primeira votação, em cinco anos, estados e municípios teriam de apli-
to do Ministério da Saú- car, respectivamente, 12% e 15% de seu orçamento com a saúde. A União,
de no ano 2000 para R$
25,8 bilhões (R$ 6,2 bi- por sua vez, seria obrigada a investir no setor 64% do que arrecadar com três
lhões a mais do que em impostos: a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins);
99). Pelo texto final- a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) – que se
mente aprovado, na Lei
de Diretrizes Orça- tornaria permanente; e a Contribuição sobre o Lucro Líquido (CSLL). Com
mentárias (LDO) de isso, o gasto público com a saúde no Brasil aumentaria de R$ 28,5 bilhões,
2000 a saúde deverá re- em 1998, para R$ 39 bilhões, em 2003, o que representaria cerca de R$ 245
ceber no mínimo R$
22,5 bilhões. Para isso, per capita (Folha de S. Paulo, 21/09/1999)5.
o Governo Federal de- Por essa proposta, já aprovada na Câmara Federal, em primeira
verá apresentar nova
versão da LDO ao Con-
votação, a União deverá gastar com a saúde, em 2000, os mesmos valores
gresso ou apresentar empenhados em 1999, com um acréscimo de, no mínimo, 5%. A partir de
uma emenda modifi- 2001, deverá destinar à saúde o mesmo valor gasto no ano anterior, acrescido
cando o orçamento da
saúde” (Súmula Radis, da variação do PIB nominal. Quanto aos estados, a partir do ano 2000, terão
1999, p. 1-8). de gastar com a saúde um mínimo de 7% dos impostos arrecadados, chegando
206
OLIVA-AUGUSTO, Maria Helena & COSTA, Olavo Viana. Entre o público e o privado - a saúde hoje no Brasil. Tempo Social;
Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 199-217, out. 1999 (editado em fev. 2000).

a 12%, em 2004. Finalmente, os municípios também terão de gastar em 2000


um mínimo de 7% de sua arrecadação, elevando-o para 15%, em cinco anos. 6
Dentre as iniciativas
A Súmula, da ENSP/FIOCRUZ dá outros números; diz, textual- que serviram de refe-
rência para a modela-
mente: “A proposta inicial elevava o orçamento do Ministério da Saúde no gem do PACS, o Pro-
ano 2000 para R$ 25,8 bilhões (R$ 6,2 bilhões a mais do que em 99). Pelo grama de Agentes de
texto finalmente aprovado, na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2000 Saúde (PAS), desde
1987 em execução no
a saúde deverá receber no mínimo R$ 22,5 bilhões. Para isso, o Governo Ceará, foi a mais bem
Federal deverá apresentar nova versão da LDO ao Congresso ou apresentar sucedida. Originaria-
mente, compunha um
uma emenda modificando o orçamento da saúde” (Súmula Radis, 1999, p. 1) programa emergencial
Entretanto, no caso da aprovação desse projeto, mesmo com o au- de geração de empre-
mento do orçamento destinado à saúde, mantêm-se duas importantes ques- go em áreas atingidas
pela seca, que articu-
tões: de um lado, é necessário definir quem será(ao) o(s) responsável(eis) e lava ações de âmbito
como serão definidas as áreas de destinação dos recursos obtidos; de outro, municipal e estadual.
não está claro como será estabelecido o controle sobre os fundos gerados, que Enfatizava ações de
promoção da saúde e
garanta sua aplicação de acordo com as prioridades estabelecidas. prevenção de doenças,
operando com agentes
de saúde selecionados
Reorganização do modelo assistencial via incentivos à atenção básica e contratados pelo go-
verno do estado e com
À medida que os recursos destinados à saúde continuam escassos, o enfermeiros contrata-
dos pelos municípios.
governo federal tem tentado utilizá-los de forma mais eficiente, de maneira que, 7
Compete aos agentes
ao mesmo tempo, propiciem um melhor atendimento aos usuários do sistema. comunitários de saúde,
entre outras, as seguin-
Com esse objetivo, nos últimos anos, o Ministério da Saúde tem dado priorida- tes atribuições: cadas-
de a duas experiências que coordena: o Programa de Agentes Comunitários de trar todas as famílias
Saúde – PACS e o Programa de Saúde da Família – PSF, para os quais a NOB/ residentes na área terri-
torial sob sua respon-
96 prevê a concessão de incentivos financeiros especiais, consistentes em acrés- sabilidade; visitar pelo
cimos percentuais que podem representar de 30% a 80% do valor global das menos uma vez por
transferências de recursos do governo federal para a implementação de ações de mês as famílias cadas-
tradas, pesando e me-
atenção básica de saúde em estados e municípios (cf. Scotti, 1997). dindo as crianças me-
O PACS teve início em 1991, em municípios da região Nordeste nores de dois anos e
verificar seu cartão de
com altas taxas de mortalidade infantil, motivado por experiências bem suce- vacinas; verificar a pre-
didas de atenção básica à saúde com o concurso de agentes comunitários – sença de crianças em
moradores especialmente treinados para orientar as famílias da vizinhança idade escolar que este-
jam fora da escola; ori-
acerca de questões de higiene, alimentação e prevenção de doenças. Nesse entar as famílias em re-
mesmo ano, devido a um surto de cólera, o programa foi estendido, em caráter lação ao uso do soro de
emergencial, à região Norte6. reidratação oral e à
adoção de medidas de
Segundo Cartilha divulgada na homepage do Ministério da Saúde, prevenção das diar-
o PACS visa “contribuir para a construção de um modelo assistencial cuja réias; dar orientações
ênfase se encontra nas ações preventivas e de promoção da saúde”. Seu obje- para evitar infecções
respiratórias agudas
tivo geral é melhorar a capacidade da população de cuidar da saúde, transmi- que possam evoluir
tindo-lhe informações e conhecimentos, e contribuir para a construção e con- para pneumonias; in-
centivar o aleitamento
solidação de sistemas locais de saúde, tomando as famílias como foco de sua materno; identificar as
ação e contando com a atuação preventiva dos agentes comunitários para a gestantes, orientando-
organização da demanda7. Após sete anos de existência, o programa está pre- as e encaminhando-as
para a realização do
sente em todas as Unidades da Federação, tendo atingido, em maio de 1998, exame pré-natal; orien-
49,6% de 5.507 municípios brasileiros. tar e encaminhar as
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1994 1995 1996 1997 1998


N % N % N % N % N %
Brasil
Número de ACS 29.098 100 34.546 100 44.532 100 54.934 100 88.961 100
População
16.003.900 19.000.300 24.492.600 30.213.700 48.928.550
coberta (1)
Norte
Número de ACS 5.267 18 4.901 14 6.346 14 6.836 12 12.234 14
População
2.896.850 2.695.550 3.490.300 3.759.800 6.728.700
coberta (1)
Nordeste

4. Número de Agentes Número de ACS 23.532 81 28.354 82 35.418 80 40.449 74 54.655 61


Comunitários de Saúde e População
População Coberta pelo 12.942.600 15.594.700 19.479.900 22.246.950 30.060.250
coberta (1)
PACS
Centro-Oeste
Brasil e Grandes Regiões
- 1994 a 1998 Número de ACS 299 1 905 3 1.404 3 3.779 7 7.347 8
Fonte: Ministério da População
Saúde - home page na 164.450 497.750 772.200 2.078.450 4.040.850
coberta (1)
Internet.
Nota: (1) Estimativa Sul
calculada a partir da Número de ACS 0 0 386 1 1.364 3 3.280 6 6.780 8
suposição de que cada População
ACS atende, em média, a 0 212.300 750.200 1.804.000 3.729.000
coberta (1)
550 pessoas.

Para trabalhar como agentes comunitários de saúde, os candidatos


gestantes para a vaci- devem saber ler e escrever, ter pelo menos 18 anos de idade, residir na comu-
nação antitetânica,
como forma de preve- nidade há pelo menos dois anos e dispor de tempo para cumprir oito horas de
nir o tétano do recém- trabalho por dia. Todos passam por um processo seletivo (prova e entrevista)
nascido; orientar as e recebem treinamento para o desempenho de suas funções. Não há padrão
mulheres em idade fér-
til em relação aos ris- quanto ao grau de escolaridade exigido, ocorrendo variações até mesmo den-
cos de câncer da mama tro de um mesmo município. Quanto ao salário do agente comunitário, não
e do colo uterino e deve ser menor que um salário mínimo.
encaminhá-las para
exame de controle; dar A tabela de remuneração do Sistema de Informação Ambulatorial do
orientação acerca de SUS incluiu, em 1993, códigos de procedimentos que contemplavam especifica-
planejamento familiar;
orientar quanto às for-
mente as atividades executadas por agentes comunitários de saúde e enfermeiros
mas de prevenção das vinculados ao PACS. A entrada em vigor desse novo mecanismo de financiamen-
doenças sexualmente to, a partir de março de 1994, regularizou o fluxo da transferência de recursos
transmissíveis e Aids;
dar assistência aos do- federais para a execução do programa, o que impulsionou a sua expansão.
entes que estiverem em Em 1994, quando um programa similar já estava em execução em
tratamento médico; e Niterói, o Ministério da Saúde lançou o Programa de Saúde da Família (PSF),
atentar para problemas
que afetam o meio am- em resposta a uma demanda levada pelo Conselho Nacional de Secretários
biente, como coleta de Municipais de Saúde (CONASEMS). O novo programa completava a
lixo, abastecimento de
água e esgoto sanitário,
institucionalização dessas experiências locais, agregando-lhe um novo perso-
propondo possíveis so- nagem: o médico (cf. Viana & Dal Poz, 1998).
luções a serem discu- O PSF reúne agentes comunitários, enfermeiros e médicos generalistas,
tidas e implementadas
com a participação da em equipes de trabalho voltadas para a reorganização das unidades básicas de
comunidade. saúde segundo os preceitos de vigilância epidemiológica e atendimento integral

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à saúde da família8, de tal forma que essas unidades passem a funcionar como
porta de entrada do sistema de saúde, disciplinando e intermediando o acesso
da população às unidades de maior complexidade tecnológica existentes em
âmbito local ou regional. Além disso, deve também observar os princípios de
integralidade e hierarquização (atenção integral e referência e contra-referência
para os diversos níveis do sistema quando os problemas identificados na aten-
ção básica assim o exigirem), de territorialização e adscrição de clientela (terri- 8
Para cumprir esses pre-
tório de abrangência e população residente na área previamente definida). ceitos, a unidade bási-
ca de saúde deve: ter
Seu objetivo maior é a reorganização da prática assistencial em no- uma área territorial
vas bases e critérios, em substituição ao modelo tradicional de assistência, previamente delimita-
centrado no hospital e orientado para a cura de doença. Assim, o PSF deve da sob sua responsabi-
lidade; trabalhar sob o
enfatizar práticas não convencionais de assistência, recorrendo à prevenção sistema de adscrição de
como forma de antecipar-se à demanda por serviços de saúde. A implantação famílias, o que pressu-
põe organizar e manter
do programa requer: cadastramento das famílias; implantação do Sistema de permanentemente atu-
Informação de Atenção Básica (SIAB); realização do diagnóstico da comuni- alizado um cadastro
dade; programação e planejamento do trabalho com base no diagnóstico; de- com os endereços de
todas as famílias ali
senvolvimento do trabalho com ações voltadas aos indivíduos, aos grupos residentes; organizar e
familiares, nos espaços do domicílio, da comunidade, da unidade de saúde ou manter uma equipe
no acompanhamento aos serviços de referência. mínima de profissio-

1994 1995 1996 1997 1998


N % N % N % N % N %
Brasil
Número de equipes 328 100 724 100 847 100 1.623 100 3.147 100
População
1.131.600 2.497.800 2.922.150 5.599.350 10.857.150
coberta (1)
Norte
Número de equipes 7 2 12 2 12 1 12 1 172 5
População
24.150 41.400 41.400 41.400 593.400
coberta (1)
Nordeste
Número de equipes 181 55 396 55 444 52 547 1.190 38
População
624.450 1.366.200 1.531.800 1.887.150 4.105.500
coberta (1)
Centro-Oeste
5. Número de Equipes de
Número de equipes 5 2 5 1 6 1 144 325 10 Saúde da Família e
População população Coberta pelo
17.250 17.250 20.700 496.800 1.121.250 PSF
coberta (1)
Brasil e Grandes Regiões
Sudeste
- 1994 a 1998
Número de equipes 60 18 164 23 227 27 695 1.105 35 Fonte: Ministério da
População Saúde - home page na
207.000 565.800 783.150 2.397.750 3.812.250 Internet.
coberta (1)
Nota: (1) Estimativa
Sul calculada a partir da
Número de equipes 75 23 147 20 158 19 225 355 11 suposição de que cada
População equipe de saúde da
258.750 507.150 545.100 776.250 1.224.750 família atende, em média,
coberta(1)
a 3.450 pessoas.

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Informações divulgadas pelo Ministério da Saúde revelam que, além


de reduzir a importância relativa das internações hospitalares no total das
despesas realizadas pelo SUS, o PACS e o PSF provocam, a curto prazo,
mudanças sensíveis nas condições de vida da população, sobretudo nos muni-
cípios menos populosos, para os quais há registros de diminuição das taxas de
mortalidade materna e infantil e dos índices de incidência e prevalência de
nais de saúde, compos- doenças evitáveis por ações preventivas e curativas rotineiramente realizadas
ta de médico genera- nas unidades básicas de saúde da família. Entretanto, de acordo com o relató-
lista ou médico de fa-
mília, enfermeiro, au- rio final de pesquisa de avaliação (cf. NEPP, 1999) 9, há um obstáculo impor-
xiliar de enfermagem e tante para a implementação desses programas que, por extensão, atinge a es-
cinco a seis agentes co- tratégia de reorganização das unidades básicas do SUS segundo os preceitos
munitários de saúde;
prestar assistência inte- de vigilância epidemiológica e atendimento integral à saúde da família: a po-
gral às famílias ads- pulação procura, de forma crescente, os serviços de maior complexidade
tritas, por meio de tecnológica, dificilmente encontráveis nas unidades básicas de saúde; em vir-
ações de promoção,
prevenção, diagnóstico tude disso, um número cada vez maior de usuários potenciais do SUS passa a
precoce, tratamento e procurar atendimento em hospitais e prontos-socorros.
reabilitação; definir
prioridades de atendi-
Nos municípios mais populosos, sobretudo aqueles que dispõem
mento a partir da iden- de uma ampla infra-estrutura de atendimento hospitalar mantida pela iniciati-
tificação dos proble- va privada, o problema é tão grave que os gestores e executores do PACS e do
mas de saúde e doença
que afligem a popula- PSF receiam que as unidades básicas de saúde da família possam vir a se
ção residente na área transformar simplesmente em unidades de pronto-atendimento (NEPP, 1999).
territorial sob sua res- Aliás, no debate sustentado sobre o SUS, levanta-se a possibilidade de que,
ponsabilidade; inte-
grar-se à rede de servi- em sua implementação, o reforço dado a programas, como o PACS e o PSF,
ços de saúde do muni- revele uma de suas características mais indesejáveis, qual seja, a de ser um
cípio, de forma a garan-
tir o atendimento a pa-
“SUS para pobres”, já que se refere ao atendimento médico-assistencial da
cientes cujas patologi- população sem acesso a outro tipo de atenção (cf. Teixeira, 1999).
as exijam tratamento
médico-hospitalar es-
pecializado; e promo- Regulamentação dos seguros e planos de assistência à saúde privados
ver ações conjuntas
para a resolução de ou-
tros problemas da co-
Outra questão importante na agenda política do governo federal para
munidade. o setor diz respeito à regulamentação dos planos e seguros de saúde – a chama-
9
Pesquisa de campo re- da medicina suplementar. Estima-se que pouco mais de 40 milhões de brasilei-
alizada com gestores,
executores e benefi- ros sejam hoje usuários de planos ou seguros de saúde, o que representaria cerca
ciários do PACS e do de 25% de cobertura em todo o território nacional, desigualmente distribuídos
PSF, no âmbito de um nos diferentes estados. Entre 9 e 10 milhões estariam filiados a planos indivi-
projeto nacional, des-
tinado à avaliação do duais e os demais 30 milhões, a planos empresariais. Os dados, contudo, são
processo de imple- pouco confiáveis e, por isso, uma das prioridades do Ministério da Saúde para o
mentação e dos princi- exercício de 1999 era conhecer exatamente o número de brasileiros que possu-
pais resultados de pro-
gramas sociais prio- em planos ou seguros de saúde (cf. Almeida, 1999b; Rehem, 1999).
ritários do governo fe- Pesquisa domiciliar, realizada na Região Metropolitana de São Pau-
deral. Financiado pela
Casa Civil da Presi-
lo, em 1998, apontou que cerca de 45% da população da maior e mais rica
dência da República, metrópole do país era coberta por alguma modalidade de assistência privada à
com recursos da Orga- saúde por pagamento antecipado, contra 40% em 1990, ano de realização do
nização das Nações
Unidas para Educa- primeiro levantamento de campo. Ainda que a cobertura dos planos ou segu-
ção, Ciência e Cultu- ros de saúde tenha se estabilizado no período, os planos ou seguros
210
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intermediados pelas empresas empregadoras, que predominavam em 1990,


têm dado lugar aos planos ou seguros firmados diretamente entre os
beneficiários e os prestadores de serviços (cf. SEADE, 1999).
Resultado de
Possui Convênio ou Plano de Saúde?
um longo e conflituoso Total Não Sim
6. Distribuição dos
Indivíduos, segundo
processo de debate parla- Tipo de Convênio ou Plano de Saúde
Condição de Posse e Tipo
mentar, ainda em curso, a Total Particular De empresa de Convênio ou Plano de
o
Lei n 9.656, de 3 de ju- ou sindicato Saúde
1990 100,0 56,7 43,3 Em porcentagem
nho de 1998, cria normas, 100,0 19,7 Região Metropolitana de
73,0
procedimentos e padrões 1994 100,0 56,0 44,0 São Paulo - 1990, 1994
a serem observados pelas e 1998
100,0 34,9 62,3
Fonte: Fundação Seade.
pessoas jurídicas de direi- 1998 100,0 55,2 44,8
Pesquisa de Condições de
to privado que operam 100,0 53,8 45,1 Vida - PCV.
planos ou seguros priva-
dos de assistência à saúde10. Logo em seguida, no dia 4, o Presidente da República ra, esse projeto visou
baixou a Medida Provisória (MP) no 1.665, que criou o Conselho Nacional de testar uma metodo-
logia de avaliação de
Saúde Suplementar (Consu)11 para regulamentar a lei nos pontos que ficaram em programas sociais, de-
aberto. No dia 4 de novembro do mesmo ano, esse órgão detalhou os principais senvolvida pelo Nú-
aspectos da Lei, por meio de resoluções (cf. Consumidor S.A., 1999, p. 8). cleo de Estudos de
Políticas Públicas da
Dentre os dispositivos da nova legislação já regulamentados12, des- Universidade de Cam-
tacam-se os seguintes: pinas, tendo abrangido
nove estados – São
• atendimento a doenças congênitas ou preexistentes (as operado- Paulo, Rio de Janeiro,
ras não podem mais deixar de tratá-las, já que consta, do contrato assinado Espírito Santo, Minas
pelo consumidor, formulário preenchido com orientação médica em que de- Gerais, Paraná, Santa
Catarina, Pernam-
clara ser ou não portador dessas patologias); buco, Alagoas e Pará
• cobertura para Aids e câncer (obrigatória, nos limites do tipo de –, envolvendo vinte
plano adquirido, mesmo que essas doenças sejam consideradas preexistentes); municípios brasileiros
(cf. NEPP, 1999).
• ingresso dos idosos (foram legalizados os aumentos por mudan- 10
Desde a década de 80,
ças de idade, que prejudicam especialmente os mais velhos, e estabelecidas os consumidores recla-
sete faixas etárias – de 0 a 17 anos; 18 a 29 anos; 30 a 39 anos; 40 a 49 anos; mavam no Procon dos
abusos cometidos pelas
50 a 59 anos; 60 a 69 anos; e mais de 70 anos –, cuja passagem propicia o empresas privadas de
aumento de mensalidade, ainda que este seja proibido no caso de pessoas assistência médica.
Vários projetos de lei
maiores de 60 anos que contribuíram durante 10 anos. O valor da mensalida- sobre o tema tramita-
de da última faixa etária não pode superar seis vezes o valor da primeira); ram no Congresso Na-
• deficientes físicos (a lei assegura que ninguém pode ser impedido cional, a partir de 1993.
Durante o processo de
de participar de um plano ou seguro de saúde por ser portador de qualquer discussão, o IDEC, os
tipo de deficiência, mas determina que o atendimento será feito nos limites do Procons, entidades de
plano ou seguro adquirido); usuários e de profissi-
onais de saúde mani-
• transtornos psiquiátricos (a lei prevê o atendimento a portadores de festaram-se publica-
transtornos mentais, inclusive nos casos de intoxicação ou abstinência provoca- mente e conseguiram
introduzir algumas de
dos por alcoolismo ou outras formas de dependência química, inclusive lesões suas reivindicações,
decorrentes de tentativa de suicídio, já que expressam transtornos psíquicos); entre elas: o impedi-
• internações (não há mais limite no número de diárias em casos de mento de que as em-
presas vetem o ingres-
internação, inclusive em UTI); so, em seus planos, de
• transplantes (os planos hospitalares e de referência cobrirão trans- consumidores com ida-
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OLIVA-AUGUSTO, Maria Helena & COSTA, Olavo Viana. Entre o público e o privado - a saúde hoje no Brasil. Tempo Social;
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plantes de rim e córnea e os gastos com procedimentos vinculados à cirurgia,


incluindo despesas assistenciais com doadores vivos, medicamentos usados
na internação, acompanhamento clínico no pós-operatório, despesas com cap-
tação, transporte e preservação dos órgãos);
• troca de hospital credenciado (a operadora passa a ter de comuni-
car ao consumidor e ao Ministério da Saúde 30 dias antes de substituir um
de avançada ou portan- prestador de serviço hospitalar de sua rede credenciada ou referenciada);
do deficiências; o esta- • garantia de manutenção de cobertura em caso de inadimplência de
belecimento de limites
mais rígidos para o até 60 dias e das condições contratuais de planos empresariais para aposenta-
descredenciamento de dos e demitidos; e
hospitais, laboratórios • fiscalização pelo poder público (todas as operadoras serão fiscali-
e clínicas; a proibição
de carências por atra- zadas pelo Ministério da Saúde e pela Superintendência de Seguros Privados
sos no pagamento; a (Susep), autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda, com punições que
exigência de clareza
nos termos do contra-
vão desde advertências, multa de até R$ 50 mil, suspensão das atividades, até
to; a proibição de ca- o cancelamento da autorização de funcionamento).
rências abusivas; a Na visão dos dirigentes da Associação Brasileira de Medicina de
proibição de limite de
prazo e de valor máxi- Grupo (Abramge) (cf. Almeida, 1999a), que congrega cerca de 1.500 empresas
mo de internação hos- de medicina de grupo, responsáveis pela cobertura de aproximadamente 18 mi-
pitalar; a proibição de lhões de pessoas em todo o país, a regulamentação dos planos e seguros de
rescisão unilateral de
contrato pela empresa saúde põe em risco o setor privado, ao tentar criar um paraíso de benefícios sem
(cf. Consumidor S.A., atentar para os custos decorrentes das obrigações impostas às operadoras, aci-
1999, p. 8).
11
O Conselho de Saúde
ma relacionadas. Em sua opinião, essas normas são exeqüíveis para as empre-
Complementar (Consu) sas de grande porte (mais de 50 mil beneficiários), que se concentram nas me-
é integrado pelos Mi- trópoles e nas grandes cidades do interior, sobretudo na Região Sudeste.
nistros de Estado da
Saúde, da Fazenda e da O mesmo não ocorreria para as empresas de pequeno porte (até 10 mil
Justiça, pelo presiden- beneficiários), que representam mais de 60% daquelas filiadas à associação. Es-
te da Superintendência palhadas pelo interior e pelas periferias das grandes cidades, essas empresas
de Seguros Privados
(Susep) e pelos secre- credenciam pequenos hospitais e santas casas, comercializando planos de saúde
tários de Assistência à relativamente baratos, porque restritos em termos de cobertura – cobrem necessi-
Saúde e de Políticas de
Saúde do Ministério
dades corriqueiras de seus contratantes, como uma apendicite, uma fratura de bra-
da Saúde, a partir de ço, um parto. Com as novas regras, afirmam os dirigentes da associação, essas
propostas encaminha- pequenas empresas tendem a desaparecer, e não há garantia de que venham a ser
das pela Câmara de
Saúde Suplementar substituídas por empresas maiores, pois estas comercializam planos mais caros e
(CSS), que não tem di- mais abrangentes quanto à cobertura, dada a maior disponibilidade de recursos
reito a voto e reúne re- materiais e humanos nos grandes centros urbanos e metropolitanos do país.
presentantes de opera-
doras, entidades de Somam-se aos problemas acima mencionados as exigências de consti-
defesa do consumidor, tuição de capital e garantia de solvência, manutenção e equilíbrio econômico-
hospitais, médicos, financeiro, com auditoria externa, adequação e controles atuariais para dimensionar
dentistas, entidades fi-
lantrópicas, Ministé- custos, provisões e garantias. Os dirigentes da Abramge acreditam que essas nor-
rio Público e órgãos do mas são exigíveis apenas para as seguradoras, que são empresas com característi-
governo.
12
Na ótica das entida-
cas bem diferentes das empresas de medicina de grupo e das cooperativas médi-
des de defesa dos di- cas, pois funcionam como instituições financeiras que reembolsam despesas, sem
reitos do consumidor, ter a obrigação de prestar serviços de saúde aos beneficiários.
este foi pouco ouvido
no processo de regu- Além disso, questionam a constitucionalidade do dispositivo que
lamentação da lei (cf. implica a alteração dos contratos celebrados antes da vigência da nova lei, por
212
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atingir o ato jurídico perfeito e o direito adquirido. Concluem ser intenção clara
do governo federal querer se eximir de suas obrigações constitucionais, transfe-
rindo-as ao cidadão usuário, que teria de arcar com o ônus da manutenção de um
plano de saúde cuja carga superaria a capacidade operacional e financeira da
maioria das empresas de medicina de grupo em atividade no Brasil.
Para os dirigentes da Federação Nacional das Empresas de Seguros
Privados e de Capitalização (Fenaseg) (cf. Pereira Filho, 1999), responsáveis
pela cobertura de aproximadamente 5 milhões de pessoas em todo o território
nacional, a regulamentação dos planos e seguros privados de assistência à saúde
tem a qualidade evidente de garantir os direitos do consumidor, considerando a
situação anterior quando – à exceção das empresas de seguro saúde, regulamen-
tadas por legislação específica do setor de seguros, que data da década de 60 –
era comum a comercialização de produtos por operadoras sem capacidade de
atendimento nem reservas financeiras para honrar os termos do contrato. Nesse
caso – dos chamados planos de saúde do tipo “aspirina e copo d’água” (Serra,
1999) – o único caminho era recorrer aos órgãos de defesa do consumidor, que
ficaram notabilizados pelas ações impetradas contra essas operadoras.
Ao contrário dos dirigentes da Abramge, os da Fenaseg questionam
mais o processo da regulamentação da Lei no 9.656 pelo Poder Executivo, por
meio de sucessivas Medidas Provisórias, que alteraram a lógica subjacente à sua
elaboração, do que o seu conteúdo, já que este foi longamente discutido no Con-
gresso Nacional, com a participação de representantes de consumidores, empresas
médicas, associações profissionais, hospitais, etc. A lei teria levado em conta os
seguintes princípios: garantia de direitos ao consumidor, inclusive o de ser ampla-
mente informado sobre as condições do contrato; oferecimento obrigatório de um
contrato de referência, com coberturas de todas as doenças, sem prejuízo da esco-
lha pelo consumidor de contratos diferenciados, compatíveis com suas necessida-
des e condições pessoais; criação de obrigações para as operadoras no tocante aos
produtos oferecidos e quanto à fiscalização de sua situação econômico-financeira,
com vistas a assegurar o cumprimento futuro dos compromissos assumidos.
Para os dirigentes da Fenaseg, esses princípios harmonizavam-se per-
feitamente com o regime instituído pela Constituição que, ao dispor que a assis-
Consumidor S.A.,
tência à saúde é livre à iniciativa privada, deslocaria o foco da intervenção do 1998b, p. 23; 1999,
poder público para outras finalidades, tais como: preservar a liquidez e a solvência p. 13). Embora a lei
das operadoras; fiscalizar o cumprimento das obrigações por elas assumidas con- tenha sido ampla ao
proibir a exclusão de
tratualmente; assegurar a transparência e clareza das informações ao consumidor, atendimento de doen-
escoimando dos contratos as cláusulas abusivas; e promover a concorrência, evi- ças de alta complexi-
dade, a Medida Pro-
tando o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados. visória que acompa-
As Medidas Provisórias que alteraram profundamente a Lei no 9.656/ nhou a sanção presi-
98, porém, tiveram o efeito de colocar a regulamentação do segmento sob dencial possibilita ao
Consu diminuir a am-
outra ótica, mais afeita a ações e serviços públicos de saúde, impondo exigên- plitude das cober-
cias que acreditam não serem aplicáveis às operadoras de planos e seguros de turas, representando
saúde: a obrigatoriedade de aceitar todos os proponentes no seguro saúde; a uma redução do que
foi estabelecido na
substituição do conceito inicial do plano de referência com cobertura de todas própria lei (Consumi-
as lesões ou doenças, que deixou de ser de oferecimento obrigatório para ser dor S.A., 1998a, p. 2).
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OLIVA-AUGUSTO, Maria Helena & COSTA, Olavo Viana. Entre o público e o privado - a saúde hoje no Brasil. Tempo Social;
Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 199-217, out. 1999 (editado em fev. 2000).

uma das quatro únicas modalidades admitidas; a interferência na elaboração


dos produtos, com fixação de faixas etárias predeterminadas, devendo a mai-
or não exceder um determinado múltiplo da menor faixa; a tentativa de obri-
gar os consumidores a substituir os contratos anteriormente firmados, de me-
nor custo e que atendem às suas necessidades, por novos contratos de cober-
tura amplificada, obviamente mais caros.
O Ministério da Saúde tem procurado minimizar as críticas dos
dirigentes tanto das empresas de medicina de grupo como das seguradoras,
estimando em menos de 5% o impacto das disposições da nova legislação
sobre as mensalidades dos planos e seguros privados de assistência à saúde
(cf. Serra, 1999). Não obstante, trava uma luta de bastidores com a Susep pela
primazia nas deliberações referentes à regulamentação dos planos e seguros
privados de assistência à saúde, em que parece buscar o apoio da Abramge13.
Seja como for, é indiscutível o fato de que a regulamentação dos planos e
seguros de saúde põe em xeque a suposta autonomia de financiamento do
setor privado de assistência médica supletiva, um dos pilares da univer-
salização excludente (cf. Favaret Filho & Oliveira, 1989), que possibilitou o
pluralismo característico do atual sistema de saúde no Brasil.

Considerações finais

Se, historicamente, as políticas sociais envolvendo a área de saúde pú-


blica no Brasil têm sido objeto de críticas acerbas, atualmente é muito maior a
dificuldade de análise do tema. Isto porque, ao reconhecimento da precariedade da
assistência oferecida, tanto no que se refere ao saneamento quanto ao que diz
respeito à atenção médica, somam-se a alteração dos critérios de avaliação do
estado de saúde da população, em razão das mudanças – econômicas, sociais,
13
A busca desse apoio políticas e culturais – vividas pelo país, e o próprio reposicionamento do papel e
fica evidente nas duas funções do Estado, no relativo às dimensões ditas “sociais” da vida coletiva.
últimas Medidas Pro-
visórias editadas pelo
Quanto ao primeiro aspecto, é visível a ampliação do quadro refe-
governo federal: a que rente ao que se pode conceituar como saúde, o que incide sobre o que se de-
desobriga a alteração vem considerar patologias. Afinal, além dos cuidados relativos às enfermida-
dos contratos celebra-
dos antes da vigência des originadas da pobreza, como as doenças infecciosas e nutricionais, a pre-
da Lei no 9.656 (Mais venção dos riscos ambientais e as informações sobre práticas de vida mais
uma vez os planos de saudáveis passaram a fazer parte da agenda pública relativa à área (cf. Monteiro
saúde. Folha de S.
Paulo, 08/09/1999); e et alii, 1995, p. 353).
a que a transfere a res- Com relação ao segundo aspecto, contrariando tendência observada
ponsabilidade de re- desde os anos 70, quando o Estado detinha o quase monopólio das atividades de
gular e fiscalizar os
aspectos econômico- atenção à saúde e sua ação mediadora propiciava o lucro privado (Augusto, 1986),
financeiros dos planos o que se verifica atualmente é, em termos relativos, a retirada progressiva dos
e seguros de saúde da
Susep para o Ministé-
órgãos públicos de um setor tradicionalmente reconhecido como de sua responsa-
rio da Saúde (Minis- bilidade. De fato, com a ampliação dos planos e seguros de saúde, o setor privado
tério da Saúde terá está cada vez mais presente nos cuidados relativos a essa esfera de atuação, à
maior controle sobre
plano. Folha de S. medida que escasseiam os recursos públicos e se ampliam as áreas e os gastos a
Paulo, 28/09/1999). ela relativas. Esse último traço também acentua o caráter “individualizante” da
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OLIVA-AUGUSTO, Maria Helena & COSTA, Olavo Viana. Entre o público e o privado - a saúde hoje no Brasil. Tempo Social;
Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 199-217, out. 1999 (editado em fev. 2000).

intervenção estatal no setor (cf. Augusto & Costa, 1987, p. 59-61), que acaba
atribuindo ao usuário a responsabilidade quase total pelo cuidado com sua saúde.
Trata-se, sem dúvida, de uma situação paradoxal, pois o Estado
tampouco busca ampliar as possibilidades de consumo de serviços médicos para
além das necessidades mínimas da população assistida. Assim, não obstante de-
vam ser reconhecidos os esforços governamentais no sentido de dar maior eficiên-
cia ao uso dos recursos públicos – regulamentando sua aplicação, incentivando o
processo de descentralização e buscando o estabelecimento de um fluxo racional
para o atendimento ministrado –, não há como deixar de assinalar o fato de que,
exatamente no momento em que o texto constitucional a consagrou como direito
legítimo do cidadão, a saúde foi convertida em simples mercadoria e a luta pela
efetivação desse direito foi reduzida a um mero ato de consumo.

Recebido para publicação em dezembro/1999

OLIVA-AUGUSTO, Maria Helena & COSTA, Olavo Viana. Between public and private - health in Brazil
today. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, 11(2): 199-217, 1999 (editado em fev. 2000).

ABSTRACT: The article analyses the Government Health Policy, in the 1995-1998 UNITERMS:
period, focusing the main decisions related to the SUS (Single Health System) government policy,
health policy,
organization and financing. It points out and discusses some among several fede-
health services.
ral government decisions: the regulation of the federal resources transference criteria
to states and municipalities and the resulting definition of the different kinds of
local health system administration; the basic health care reorganization strategy
via special incentives to the PACS (Health Community Agents Program) and to the
PSF (Family Health Program); the establishment of the CPMF (Temporary
Contribution on Financial Transactions) as an specific source of health services;
the regulation of private health care plans and insurance.

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OLIVA-AUGUSTO, Maria Helena & COSTA, Olavo Viana. Entre o público e o privado - a saúde hoje no Brasil. Tempo Social;
Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 199-217, out. 1999 (editado em fev. 2000).

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ARRUDA,
Tempo MariaSocial;
Arminda do Nascimento.
Rev. Sociol. AUSP,
nova S.
política de Pós-Graduação
Paulo, out. 1999 Social; Rev.DOSSIÊ
no Brasil.Tempo
11(2): 219-229, Sociol. USP, S.FHC
Paulo,
11(2): 219-229, out. 1999 (editado (editado
em fev. 2000).
em fev. 2000). o
1 GOVERNO

A nova política de
Pós-Graduação no Brasil
MARIA ARMINDA DO NASCIMENTO ARRUDA

RESUMO: O artigo trata da política de avaliação da Pós-Graduação no Brasil UNITERMOS:


construída em 1998. Aponta para as diferenças em relação à sistemática ante- Pós-Graduação,
avaliação,
rior e retira as implicações resultantes do novo modelo. Chama a atenção para Universidade.
o caráter funcional da avaliação, para os seus desdobramentos no âmbito da
produção intelectual, da formação dos estudantes e dos princípios que passa-
ram a nortear os estudos pós-graduados.

H
á bem pouco tempo, durante a apreciação dos últimos relatórios da
Pós-Graduação em Sociologia, tomamos conhecimento da intenção,
expressa no conjunto de objetivos pertinentes a um determinado
curso, de se perseguir posição mais elevada na grade conceitual
construída no processo de avaliação anterior. Sem considerar o caráter possi-
velmente singelo encerrado na formulação, impôs-se, inescapavelmente, a indaga-
ção sobre o propósito contido em manifestações dessa natureza, exprimindo cer-
tos significados atribuídos à formação pós-graduada que pressupõe direcionar
esforços intelectuais e institucionais de vulto. Toda uma concepção de vida acadê-
mica cristalizava-se nesse evento de aparência desimportante. A centralidade ad-
quirida pela avaliação de desempenho da pós-graduação no Brasil explicitava-se
de modo inconteste. Consolidavam-se e rotinizavam-se os procedimentos
avaliativos e as regras e formas, atualmente assumidas, de legitimação do trabalho
acadêmico. Finalmente, invertiam-se os princípios explícitos da avaliação, com-
prometidos em aquilatar as dimensões de qualidade assumidas pela pós-gradua- Professora do Depar-
tamento de Sociologia
ção no país, das quais o conceito é resultado. O exame desse conjunto de questões da FFLCH - USP

219
ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A nova política de Pós-Graduação no Brasil. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S.
Paulo, 11(2): 219-229, out. 1999 (editado em fev. 2000).

exige refletir sobre o Sistema de Avaliação em vigência no momento, seus desdo-


bramentos, o modo de sua articulação com a Instituição Universitária.
É consensual, no seio da comunidade acadêmica, o reconhecimento
de que a avaliação dos Programas, levada a cabo pelo CAPES em 1998, impli-
cou profundas transformações, hauridas em concepções renovadas. A sistema-
tização dos processos avaliativos aprofundou-se, visível na articulação reforça-
da das diversas partes que compõem o complexo de meios utilizados no trans-
curso das atividades inerentes a essa prática. As mudanças implementadas ad-
quiriram características particulares, apesar do Sistema de Avaliação ter sido
continuamente reformulado desde a sua criação em 1976, uma vez que se altera-
va substantivamente os preceitos norteadores do próprio modelo. A questão de
fundo brotava do reconhecimento, segundo a CAPES, da inadequação da forma
anterior diante dos novos problemas criados pela sociedade contemporânea, pela
diversificação e expansão da pós-graduação entre nós. “Em início de 1998, o
reconhecimento de que se fechava mais um importante ciclo da pós-graduação
no país e de que era chegado o momento de serem antepostos a esse nível de
ensino novos desafios que fossem coerentes com a rápida evolução da ciência e
tecnologia na atualidade e com a realidade da sociedade brasileira, levou a CA-
PES a promover alterações no modelo de avaliação que vinha sendo até então
adotado” (Relatório de Atividades da CAPES em 1998, 1999, p. 60). Ao pre-
tender a sincronia da pós-graduação e dos modelos de avaliação com as trans-
formações engendradas na dinâmica do mundo atual, a agência assume papel
indutor e racionalizador apontando para a relevância da avaliação no
enquadramento desse estágio de formação. “Ao estabelecer as metas e requisi-
tos de qualidade que nortearam o desenvolvimento desse nível de ensino, o Sis-
tema de Avaliação patrocinado pela CAPES assegurou bases sólidas ao proces-
so de expansão e consolidação da pós-graduação nacional e contribuiu para a
criação de condições essenciais para que se efetivassem grandes avanços no
campo da pesquisa científica e tecnológica no país” (Relatório de Atividades
da CAPES em 1998, 1999, p. 60). A regulamentação das ações estendidas à
pós-graduação foi capaz de patrocinar, segundo o documento, alterações quali-
tativas e, na seqüência, fertilizar o campo da pesquisa, cujo incremento resultou
no estágio de institucionalização atualmente existente.
E, de fato, quando se examina o chamado Sistema de Pós-Graduação
no Brasil, do qual a avaliação é componente fundamental, percebe-se, ao longo
dos anos, a persistente tendência adaptativa dos cursos às normas formuladas
pelas agências financiadoras, cuja continuidade acabou por provocar um movi-
mento de fuga de certas atribuições das Universidades que migraram em direção
às organizações de fomento. É possível afirmar que, em larga medida, as ativida-
des de pesquisa são pré-formadas, no sentido exclusivo de que as condições para
o seu desenvolvimento encontram-se instituídas. A respeito dessa questão parece
não restar dúvidas sobre a adesão da comunidade acadêmica brasileira às diferen-
tes formas de avaliação, passando a se constituir em modos de reconhecimento.
“O elemento central dos sistemas de reputação é o desenvolvimento de padrões de
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ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A nova política de Pós-Graduação no Brasil.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 219-229, out. 1999 (editado em fev. 2000).

avaliação que controlarão resultados de pesquisas através de publicações, con-


gressos e seminários, além de outras formas de avaliação efetuadas por pares
reputados. Esse componente da dependência funcional se relaciona diretamente
com a dependência estratégica, de tal forma que o desenvolvimento desse padrão
em comum tornará possível o convencimento de outros cientistas acerca da impor-
tância dos resultados obtidos” (Beato F., 1998, p. 528)1.
A aceitação das mais diversas modalidades de avaliação expandiu-se
e enraizou-se no âmbito da academia, construindo o que a antropóloga Marilyn
Strathern denominou de “cultura da avaliação”. “A cultura da avaliação é a
avaliação intensificada” (Strathern, 1999, p. 19). Se a concordância com os pre-
ceitos gerais da avaliação já está bastante arraigada, revelando a presença de
uma cultura difundida entre os acadêmicos, a novidade lastreou-se na formula-
ção de princípios e objetivos definidos, na existência de procedimentos eficazes
obtidos por intermédio dos meios técnicos utilizados, na introdução de um pro-
cesso contínuo de acompanhamento, no controle dos resultados, na perspectiva
de construir padrões homogêneos de aferição de desempenho. Aprimorou-se,
em suma, o Sistema de Avaliação que adquiriu o caráter de política para a pós-
graduação, criando um constructo bastante integrado e submetido a regras ex-
plícitas, composto por atribuições e competências definidas. O Sistema de Ava- 1
Em pesquisa realizada
liação é, hoje, um complexo de meios que se combinam de forma a obter resul- em 5 departamentos
da UFMG, Claudio
tados esperados, atingidos quando da execução de medidas adequadas. A Beato obteve os se-
racionalidade de cunho funcional é a característica que fundamenta o atual per- guintes resultados no
aspecto rejeição aos
fil da avaliação. “Tal organização funcional de uma série de atos estará, por padrões de avaliação
outro lado, em suas melhores condições quando, para atingir o objetivo, coorde- interpares: os físicos e
na os meios mais eficientemente” (Mannheim, 1962, p. 63). os demógrafos são
unânimes em aceitá-
No âmbito desses princípios ordenadores que pressupõem a articula- la; 2,7% dos químicos
ção de meios apropriados tendo em vista um fim dotado de certa previsibilidade, a rejeitam; 9,1% dos
economistas e cientis-
percebe-se que o Sistema de Avaliação institui um campo organizado das diferen- tas políticos a recu-
tes atividades no nível pós-graduado, sendo necessário minimizar o imprevisto2. sam; 13% dos soció-
Por essa razão, é correto aproximar a atual estrutura do Sistema de Avaliação à logos rejeitaram-na.
Os índices tendem a
noção de instituição formulada por Castoriadis, “A instituição é uma rede simbó- se ampliar nas carrei-
lica, socialmente sancionada, onde se combinam em proporções e em relações ras mais humanís-
ticas, porém as ex-
variáveis um componente funcional e um componente imaginário” (Castoriadis, pressões da rejeição
1986, p. 159). Pode-se afirmar, tendo em vista as considerações acima, que a são significativamen-
avaliação é hoje amplamente agasalhada pela comunidade científica, o que a tor- te baixas (cf. Beato F.,
p. 529-530).
nou um procedimento corrente, permitindo identificá-la com a concepção de insti- 2
Para Mannheim, en-
tuição. De outro lado, o componente imaginário, isto é, que pode escapar ao puro quanto o conserva-
tismo histórico “reco-
ordenamento, está contido em expressões que admitem a “heterogeneidade de nhece a existência de
estágios de desenvolvimento entre as diferentes áreas” (Relatório de Atividades um campo não-orga-
da CAPES em 1998, 1999, p. 63) e, fundamentalmente, no reconhecimento da nizado e imprevisível
que constitui a políti-
avaliação como forma de aquilatar o nível dos estudos pós-graduados. ca”, a mentalidade ad-
O componente imaginário do sistema se nutre, finalmente, da partici- ministrativa identifica
ciência à administra-
pação de membros da comunidade acadêmica, tanto daqueles que representam as ção (cf. Mannheim,
diversas áreas do conhecimento e dos que participam das comissões avaliadoras, 1968, p. 145).

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ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A nova política de Pós-Graduação no Brasil. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S.
Paulo, 11(2): 219-229, out. 1999 (editado em fev. 2000).

quanto daqueles que compõem Conselho Técnico Consultivo – CTC – responsá-


vel pela formulação da política da CAPES, órgão composto por membros eleitos
pelos seus colegas, bem como dos gestores, explicitando-se a prática de “execu-
ção desse processo a cargo de pares acadêmicos escolhidos criteriosamente” (Re-
latório de Atividades da CAPES em 1998, 1999, p. 61). Caberia acrescentar, por
representantes indicados pelos programas e associações científicas da sua especi-
alidade, o que reforça as estruturas de legitimação e de reconhecimento. Quer
dizer, as expressões mais puramente interessadas subjacentes às formas de esco-
lhas estão subsumidas pela manifestação do desinteresse e pela idéia da excelên-
cia, componentes inextricáveis da lógica de funcionamento do que Bourdieu deno-
minou de “campo da produção erudita” (Bourdieu, 1974, p. 176). A questão,
portanto, que alimenta a legitimidade da avaliação apóia-se no entendimento que
o processo é ajuizado pelos pares, cujo critério de escolha reside na possibilidade
de controle da comunidade universitária3.
Segundo essa lógica, a formulação das normas que nortearam o
novo ciclo de avaliação, implantado em 1998, resultou da colaboração entre a
Universidade, amplamente concebida, e a própria Agência. “Desde o início
desta década, eram cada vez mais evidentes os indicadores da necessidade de
mudança da concepção do modelo de avaliação. A partir de 1995, a CAPES
buscou estruturar-se melhor para fazer frente a essas dificuldades, desencade-
ando providências voltadas para análise da situação da pós-graduação nacio-
nal e do Sistema de Avaliação, além de também investir no suporte operacional
desse sistema. Várias iniciativas prepararam o terreno para a reformulação do
módulo de avaliação, destacando-se as seguintes:
• aprimoramento do sistema de coleta e tratamento dos dados e dos
indicadores que fundamentam o processo de avaliação; o projeto desenvolvi-
do pela COPPE/UFRJ permitiu a definição de indicadores mais precisos da
produtividade dos programas, a partir de uma melhor exploração do conjunto
dos dados coletados;
• complementação da avaliação realizada em 1996 com uma série
de reuniões e visitas a programas; foram visitados programas responsáveis
por cursos com conceitos C, D ou E e cursos em reestruturação (CR) e realiza-
das reuniões com representantes de área e consultores para a discussão dos
critérios adotados e dos relatórios elaborados pelas comissões;
• promoção de um seminário nacional para a discussão e consolida-
ção de propostas referentes à política de desenvolvimento da pós-graduação;
os debates foram orientados por especialistas convidados sobre onze temas
3
A escolha do represen- definidos por uma comissão;
tante de área, como se • análise do Sistema de Avaliação por uma comissão internacional de
sabe, é efetuada pelo especialistas: a apresentação de um relatório com sugestões relativas ao aprimora-
Presidente da CA-
PES, a partir de uma mento do sistema foi importante para fundamentar as propostas de reformulação;
lista de eleitos pela • formação de uma comissão especial para a definição da proposta
comunidade e após o
exame dos curricula inicial do IV Plano Nacional de Pós-Graduação. Foram discutidos, nesta opor-
dos mais votados. tunidade, aspectos relativos à reformulação da avaliação;
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ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A nova política de Pós-Graduação no Brasil.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 219-229, out. 1999 (editado em fev. 2000).

• intensificação das reuniões dos colegiados superiores da CAPES


– Conselho Superior; Conselho Técnico Científico e Diretoria Colegiada; es-
tas reuniões foram centradas na discussão dos subsídios que resultaram nas
iniciativas anteriormente descritas e na tomadas das decisões cabíveis” (Rela-
tório de Atividades da CAPES em 1998, 1999, p. 62).
No plano das iniciativas que antecederam a reformulação das diretrizes
da avaliação, percebe-se que as redefinições passaram por discussões que envol-
veram pessoas originárias da Universidade, compondo comissões e definindo te-
mas. No que diz respeito aos meios implementados, nota-se a efetivação de dili-
gências no âmbito operacional, por intermédio do “aprimoramento do sistema de
coleta e tratamento de dados e dos indicadores”, além da “definição dos indicado-
res mais precisos da produtividade dos programas”. Isto é, intensificou-se a efici-
ência dos instrumentos de aferição tendo em vista o dimensionamento da produti-
vidade, ambos os procedimentos ligados à racionalização do conjunto. Concomi-
tantemente, reforça-se a idéia de programa que pressupõe articular coerente e
integradamente um projeto de formação a partir de um plano pré-estabelecido,
pressupondo uma seqüência prevista de etapas a serem cumpridas. Na seqüência,
o “aprimoramento do sistema” envolveu o consórcio com especialistas estrangei-
ros, revelando a intenção de constituir um modelo de pós-graduação bastante iden-
tificado com os seus congêneres do exterior. Explicitamente, orientou-se as novas
concepções em direção a um estilo de formação pós-graduada que não se distanci-
asse do existente fora do Brasil, especialmente do americano. Finalmente, refor-
çou-se o papel dos colegiados superiores da CAPES, em evidente sinalização da
construção de uma política para a pós-graduação.
A reformulação da sistemática de avaliação ancorou-se, então, na cons-
trução de um diagnóstico, apoiado em seis pontos fundamentais: 1) – incapaci-
dade da escala conceitual existente em refletir o real padrão de qualidade (79%
dos cursos de mestrado e 90% dos de doutorado obtiveram, na avaliação de
1996, conceitos A e B, os mais altos da escala); 2) inexistência de uniformidade
de parâmetros de avaliação adotados entre as diversas áreas; 3) avaliação em
separado dos cursos de mestrado e de doutorado, pois quando uma instituição
possui os dois níveis de formulação, distorce a análise do desempenho. O pro-
grama deve ser o núcleo central da pós-graduação; 4) os cursos em situação
excepcional, tais como os novos, em reestruturação, ou sem conceito, não ti-
nham seus diplomas validados; 5) o mestrado é superdimensionado, ocorrendo
rigidez na seqüência entre esse nível e o doutorado; o sistema orientava-se ex-
clusivamente para a formação acadêmica; não acontecia ordinariamente a
integração entre pós-graduação e graduação; os programas não buscavam solu-
ções inovadoras, principalmente no que diz respeito ao mestrado; 6) o processo
de avaliação encontrava-se desconectado da recomendação dos programas no-
vos (cf. Relatório de Atividades da CAPES em 1998, 1999, p. 63).
Tendo como referência esse diagnóstico, o modelo de avaliação
construído e implementado em 1998 combinou mudanças internas nas instânci-
as decisórias da CAPES à adoção de novos parâmetros, que passaram a balizar
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ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A nova política de Pós-Graduação no Brasil. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S.
Paulo, 11(2): 219-229, out. 1999 (editado em fev. 2000).

o julgamento do desempenho da pós-graduação. Em primeiro lugar, extingue-se


o Grupo Técnico Consultivo que tem as suas atribuições transferidas para o
CTC que passa a coordenar, acompanhar e referendar todo o processo de avali-
ação. Do ponto de vista do funcionamento do sistema, essa medida significa que
ao Conselho Técnico Científico atribui-se o papel de centralizar as decisões
finais, como as referentes aos conceitos, uma vez que a divulgação dos mesmos
passa, necessariamente, pela aprovação desse órgão dos resultados apresenta-
dos pelas comissões. Essa mudança alterou significantemente a natureza dos
procedimentos, pois, até 1996, os conceitos finais eram de exclusiva competên-
cia dos comitês. A introdução da nova escala conceitual de 1 a 7 (em substitui-
ção à escala A a E), significou a inclusão de gradações que alteraram as formas
assentadas de identificação das hierarquias. A “mudança na escala da avalia-
ção, que passou a ser numérica, de 1 a 7 – sendo 7 o seu ápice, 5 a nota máxima
admitida para programas que ofereçam apenas mestrado e 3, a nota correspon-
dente ao padrão mínimo de qualidade requerido para serem validados, pelo Mi-
nistério da Educação e do Desporto, os diplomas expedidos pelos programas;
adoção, como referência, dos padrões internacionais de qualidade relativos a
cada área – correspondendo a nota 5 ao anteriormente estabelecido como “Perfil
para um Curso A” e as notas 6 e 7, a padrões internacionais de excelência,
atribuídos a programas com nível de desempenho nitidamente diferenciado dos
demais” (Relatório de Atividades da CAPES em 1998, 1999, p. 64).
Efetivamente, o CTC referendou, logo após o resultado fixado pelas
comissões os conceitos que chegavam até o nível 5 e submeteu a uma aprecia-
ção pormenorizada as notas 6 e 7 levando, muitas vezes, à revisão das resolu-
ções anteriormente firmadas pelas comissões das áreas (cf. Relatório de Ativi-
dades CAPES em 1998, 1999, p. 65-66). A homologação dos conceitos finais
realizada pelo CTC apoiou-se na concepção de uniformizar os critérios entre as
diversas áreas, constituindo princípios comuns a todo o sistema. Reforçou-se,
desse modo, os laços entre as diversas partes que compõem o conjunto, ao mes-
mo tempo que se pretendeu criar um quadro tendencialmente homogêneo da
pós-graduação. Em termos mais específicos, essas iniciativas apontam para a
existência de concepções universalistas de cientificidade e de construção de pro-
cedimentos de pesquisa guiados por perspectivas que aspiram aproximar todas
as áreas, cujo ideário lastreia-se na adoção de padrões internacionais. Encontra-
se em curso a chamada Avaliação Internacional, dirigida aos programas concei-
tuados nos níveis 6 e 7, que não alterará ou conferirá notas, mas deverá aquilatar
a presteza do entendimento das comissões do que seja nível de excelência, trans-
formando-se em guia para futuros julgamentos.
Do conjunto de programas avaliados (1.298), apenas 23 (1,77%)
obtiveram conceito 7 e 103 (7,94%) conseguiram a nota 6 (cf. Relatório de
Atividades CAPES em 1998, 1999, p. 68). Diferentemente do período anteri-
or no qual 79% dos mestrados e 90% dos doutorados localizavam-se nos dois
graus superiores da escala, a avaliação levada a efeito em 1998 apresentou um
quadro completamente diverso, exibindo o vigor das mudanças efetuadas. Com-
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ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A nova política de Pós-Graduação no Brasil.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 219-229, out. 1999 (editado em fev. 2000).

plementarmente, a limitação do mestrado em atingir os níveis 6 e 7 revela a


orientação subjacente ao modelo, isto é, o doutorado é o objetivo da pós-
graduação e a titulação de mestres deverá ser modificada, em nome de uma
formação mais breve e de qualificação ágil. A regulamentação do Mestrado
Profissionalizante, cujo desenho definitivo encontra-se ainda em discussão,
revela nova modalidade de entendimento desse nível de titulação (Portaria nº
80, de 16/12/1998. Infocapes, 1998, p. 61-62).
No curso das transformações introduzidas estreitaram-se os laços entre
avaliação e fomento, “devendo ser devidamente considerado na fundamentação
das decisões sobre os investimentos na pós-graduação o conjunto de informações
e indicadores fornecidos pelo acompanhamento e avaliação dos programas e não
apenas as notas a eles atribuídas” (cf. Relatório de Atividades CAPES em 1998,
1999, p. 64). Efetivamente, o critério de concessão das bolsas de mestrado e de
doutorado aos programas tem se baseado no tempo médio de titulação obtido, isto
é, “o fluxo dos alunos compatível com as referências fixadas para a área, a produ-
tividade docente e discente... “ (cf. Relatório de Atividades CAPES em 1998,
1999, p. 64). Como o tempo de titulação tornou-se parâmetro fundamental à atri-
buição das bolsas, não só na CAPES, como também no CNPq e circunscreveu o
limite de vigência dessa modalidade de financiamento a exemplo da FAPESP, o
efeito na área de Humanidades implica a reformulação da agenda de investigação,
como se pode depreender da pesquisa realizada na produção das teses em Ciências
Sociais. “Por ora, constata-se apenas que na coleção de teses investigadas há uma
clara preferência pelo exame de questões tópicas, em detrimento tanto das grandes
versões interpretativas do Brasil, quanto das análises da tradição disciplinar, po-
dendo-se afirmar que a via de especialização temática predomina, flagrantemente,
sobre a obediência a recortes clássicos da disciplina, e que o personagem ideal-
típico do “especialista” vem deslocando a caracterização do cientista social como
um intelectual de tipo mannheimiano” (Werneck Vianna et alii, 1998, p. 473-
474). Complementarmente, o financiamento da Pós-Graduação estimulou o pro-
cesso de institucionalização, democratizou o acesso a esse nível de formação, mas
provocou, como se vê, alterações substantivas na natureza dos estudos desenvol-
vidos no campo das Ciências Humanas (cf. Werneck Vianna et alii, 1998, p. 473).
Nessa linha de raciocínio, os autores apontam o risco do insulamento da Universi-
dade, “particularmente a área de Humanas, a via de especialização do saber vai
desconhecer um caminho de ligação com os eventuais destinatários da sua produ-
ção, correndo o risco de girar em torno de si mesma, do qual muitos profissionais
têm tentado escapar pela exposição da sua agenda de pesquisa na esfera pública”
(Werneck Vianna et alii, 1998, p. 454). E aqui estaria ocorrendo a produção de
efeitos não esperados, apesar do documento da pós-graduação sublinhar a relação
entre conhecimento e realidade concreta, entre reflexão e articulação de problemas
com vistas a construir modos de intervenção específicos a cada domínio. Ou, se-
gundo Marilena Chauí, a Universidade teria se transformado em organização so-
cial caracterizada por “operações definidas como estratégias balizadas pelas idéias
de eficácia e de sucesso no emprego de determinados meios para alcançar o obje-
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Paulo, 11(2): 219-229, out. 1999 (editado em fev. 2000).

tivo particular que a define” (Chauí, 1998, p. 27). Ou, ainda, nas palavras de Irene
Cardoso, o modo de “representação da universidade como organização não está
apenas nela circunscrita, mas tem os traços de outras formas organizacionais tam-
bém contemporâneas, correspondendo a um “imaginário social nas sociedades
ocidentais contemporâneas (Lefort, citado em Cardoso, 1999, p. 52) para o qual
as “marcas do real tornam-se as da organização – signos de uma racionalização
em si do social – e as marcas de sua própria identidade lhe são fornecidas em
função de um suposto saber que a organização deteria sobre ele” (Lefort, citado
em Cardoso, 1999, p. 52).
Nesse enquadramento, na avaliação centrada nos Programas, “é a
instituição como tal que está em escrutínio” (Strathern, 1999, p. 20). A agência
financiadora concede um empenho materializado em recursos outorgados sob a
forma de bolsas e outras modalidades de financiamento. O desempenho é a
resposta esperada, expresso em produtividade, parâmetro de dimensionamento
da eficácia4. Daí deriva a concepção de contínuo aperfeiçoamento, ligado à ca-
pacidade de melhorar, responder a estímulos, corrigir o curso, aprimorar o pro-
cesso de cumprimento das metas pretendidas. “Aperfeiçoamento é um termo
bastante indefinido, porque descreve tanto o esforço como os resultados”
(Strathern, 1999, p. 17). Nesse diapasão, ficam nubladas as diferenças entre
articulação de meios tendo em vista a obtenção de um fim desejado, podendo
provocar o aparecimento da indistinção entre ambos, como aquela aludida no
início deste texto. Em situações desse tipo, o círculo se fecha, levando, efetiva-
mente, à desconexão entre a produção intelectual e os problemas sociais can-
dentes, construindo um universo não apenas auto-referenciado, mas, sobretudo,
esterilizado pela vivência de uma situação ritualística.
A questão da produtividade, nesses termos, teria que ultrapassar as
medições e ser capaz de estabelecer formas de dimensionar contribuições intelec-
tuais no plano qualitativo. O “Projeto Qualis”, implantado pela CAPES, com o
objetivo de classificar os veículos de divulgação dos trabalhos publicados, segun-
do a abrangência-local, nacional, internacional – e o nível A, B, C – representou a
tentativa de aproximação das expressões qualitativas. O trabalho incomensurável
realizado pelas comissões nesse setor, embora incompleto, expressou a busca de
ultrapassagem da pura quantidade. Não obstante, há ainda aspectos efetivamente
de substância qualitativa que escaparam à consideração. A pergunta que se põe,
no entanto, diz respeito à real condição de se efetuar apreciações pertinentes nesse
plano, quando se considera as dimensões atuais da Pós-Graduação no Brasil. Evi-
dentemente, a implementação de procedimentos dessa natureza, caso seja factível,
viria a alterar o Sistema de Avaliação ora vigente, por meio da agregação de novos
4
A CAPES concedeu, critérios. Se a Pós-Graduação é hoje extensa e volumosa, conhecemos pouco so-
em 1998, 12.721 bol- bre a densidade que assumiu ao longo desses anos.
sas de mestrado e de
doutorado aos Progra- No caso das Ciências Humanas, cujo processo de formação é
mas de Pós-Gradua- inescapavelmente longo, a percepção da contribuição efetiva deve absorver os
ção e investiu 392 mi-
lhões de reais nessa modos inerentes à construção desse saber. “As áreas são diferentes porque é diver-
modalidade de apoio. sa a natureza dos conhecimentos que o homem construiu ao longo da História. Há
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ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A nova política de Pós-Graduação no Brasil.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 219-229, out. 1999 (editado em fev. 2000).

áreas em que o conhecimento é universal em sentido estrito, já que não operam


com fenômenos históricos, não dizem respeito a determinadas formações sociais,
a certo período histórico a uma língua ou uma literatura específicas” (Fiorin, 1998,
p. 28). Mesmo no âmbito das chamadas “Ciências Duras” as interpretações são
redirecionadas em função das questões abrangentes e até de problemas mais par-
ticulares. O livro instigante de Londa Schiebinger revela como a participação das
mulheres no campo da ciência construiu novas indagações (cf. Schiebinger, 1999).
Bruno Latour rejeita a noção singular de ciência, afirmando a perspectiva plural,
adequada à apreensão de um conhecimento in fieri (cf. Latour, 1999).
Nessa medida, reconhecendo que a avaliação jamais reproduz uma
situação apaziguada, uma vez que as dissensões ocupam todos os órgãos e ins-
tituições envolvidos e se manifestam em conflitos disseminados, a questão não
se esgota nela própria e pressupõe considerar as transformações que perpassam
a Universidade, alterando suas formas de reconhecimento, mudando a própria
concepção da formação e o sentido da atividade acadêmica. Ainda que o siste-
ma de avaliação de desempenho constitui-se em “ponto de inflexão” (cf. Cardo-
so, 1999) na história da Universidade, talvez se pudesse agregar outros motivos
que colaboram na mudança dos antigos padrões. Na linha da pura exemplificação,
lembro como a pulverização temática, ocorrida no campo das Ciências Huma-
nas, não se explica exclusivamente em função da contração do tempo para a
realização dos trabalhos no nível da pós-graduação, mas, concomitantemente,
resulta de um tipo de pensamento que rejeitou interpretações e objetos
abrangentes; a indústria cultural tem forte papel na legitimação do trabalho inte-
lectual, basta lembrar o significado da media no processo de promoção da
Nouvelle Histoire que se impôs como dominante; a própria ampliação do mun-
do acadêmico carreou, incontornavelmente, outras expectativas que adentraram
o seu universo; a utilização dos meios de informação na realização dos traba-
lhos de pesquisa tem se constituído em procedimento dominante, constrangen-
do os ainda refratários a sua utilização, colocando-se de forma imperiosa.
Nessa linha de raciocínio, as questões atuais parecem desbordar o
problema da avaliação de desempenho. A cultura da avaliação, segundo Mary
Strathern, abeberou-se do antigo significado da idéia de aperfeiçoamento, antes
referido “a renda extraída da terra”, que passou a ser identificado com o “aper-
feiçoamento do espírito” (Strathern, 1999, p. 18). Ao mesmo tempo, a “habili-
dade acadêmica estava então tradicionalmente associada à explicitação do que
estava implícito. Articulado como “reflexividade”, agora este mesmo processo
de explicitação volta-se aos produtores do conhecimento: espera-se que olhem
para dentro e descubram o que eles (ou a sua disciplina) projetaram nos seus
objetos de conhecimento” (Strathern, 1999, p. 24-25). Daí, a autora afirmar que
a avaliação “não é uma atividade estranha ao ensino superior” (Strathern, 1999,
p. 30). A avaliação contínua atualmente implementada e a auto-avaliação como
um dos seus objetivos (cf. Relatório das Atividades da CAPES em 1998, 1999,
p. 67) inscrevem-se nos escaninhos da vida universitária, até como fruto da
constituição das suas regras específicas de reconhecimento. “Pode-se medir o
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ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A nova política de Pós-Graduação no Brasil. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S.
Paulo, 11(2): 219-229, out. 1999 (editado em fev. 2000).

grau de autonomia de um campo de produção erudita com base no poder que


dispõe para definir as normas da sua produção, os critérios de avaliação dos
seus produtos e, portanto, para retraduzir e reinterpretar todas as determinações
externas de acordo com seus princípios próprios” (Bourdieu, 1974, p. 106).
Segunda essa postura, é correto admitir que o Sistema de Avaliação,
hoje difundido em todas as partes, delimitou a atividade intelectual e científica,
concorrendo com os critérios de julgamentos inerentes ao campo. Cabe indagar,
no entanto, sobre a existência efetiva da construção de regras próprias à produção
erudita em países como o Brasil, no qual a vida intelectual sofreu constrangimen-
tos ao longo da sua história. De qualquer modo, a realidade da constituição da
Universidade no país e do seu desenvolvimento tensionam a incorporação de pa-
drões universalistas do saber. O nosso dilema ultrapassaria, então, a avaliação de
desempenho, construindo problemas que apontam para outras interrogações.

Recebido para publicação em setembro/1999

ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento.The new policy of Post-Graduation in Brazil. Tempo Social;
Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 219-229, Oct. 1999 (edited Feb. 2000).

UNITERMS: ABSTRACT: This article deals with the policy of evaluation of the post-graduation
new policy, in Brazil built in 1998. It points the differences in the previous systematic and
post-graduation,
comes up with the resulting implications of the new model. It also calls the
evaluation system,
culture, attention to the functional feature of the evaluation, to its development in the
University. ambit of the intellectual production, of the formation of the students and of the
principles which outlined the post-graduation studies.

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ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A nova política de Pós-Graduação no Brasil.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 219-229, out. 1999 (editado em fev. 2000).

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ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A nova política de Pós-Graduação no Brasil. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S.
Paulo, 11(2): 219-229, out. 1999 (editado em fev. 2000).

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DURHAM,
Tempo Eunice Ribeiro. Rev.
Social; A educação no USP,
Sociol. GovernoS.dePaulo,
Fernando Henrique
11(2): Cardoso.
231-254, 1999Social; Rev. DOSSIÊ
Tempo
out. FHC
Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado (editado
em fev. 2000).
em fev. 2000). o
1 GOVERNO

A educação no Governo de
Fernando Henrique Cardoso
EUNICE RIBEIRO DURHAM

RESUMO: O presente trabalho apresenta a evolução do sistema educacional UNITERMOS:


durante o governo Fernando Henrique Cardoso, no contexto das transforma- educação,
governo FHC.
ções ocorridas na última década. Os dados demonstram o nítido progresso
ocorrido na educação básica; o artigo analisa as políticas educacionais
implementadas e as transformações ocorridas no sistema neste período. Parte
especial é dedicada ao ensino superior, na qual se mostra a permanência da
crise que afeta as instituições públicas, particularmente as federais, e os avan-
ços registrados nos processos de avaliação do sistema.

Considerações gerais

á alguns parâmetros que precisam ser observados quando se trata

H de avaliar a evolução do sistema educacional num período bastante


curto e recente, isto é, os últimos 5 anos, que correspondem à gestão
do Presidente Fernando Henrique.
Em primeiro lugar, é preciso, freqüentemente, observar as modifica-
ções recentes dentro de um período mais extenso. A evolução de um sistema
não depende apenas de políticas educacionais tópicas, mas obedece a forças
sociais mais amplas e complexas que se manifestam a médio e longo prazo.
Devemos também considerar que uma avaliação ampla deve levar
em conta os diferentes níveis de ensino, uma vez que eles não se transformam
no mesmo ritmo e, muitas vezes, sequer na mesma direção.
Professora do Depar-
Finalmente, precisamos reconhecer que o sistema educacional brasilei- tamento de Antropolo-
ro é extremamente descentralizado e, por isso mesmo, a atuação da União é limi- gia da FFLCH - USP
231
DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).

tada. De fato, a organização política da nação, estabelecida pela Constituição de


1988, é muito original. Somos, simultaneamente, uma federação de Estados e de
Municípios. No que diz respeito à educação, tanto a União quanto Estados e Mu-
nicípios são autônomos no estabelecimento e gestão de seus próprios sistemas de
ensino. Disto resulta um conjunto de cerca de 5.500 sistemas municipais, 27 esta-
duais (incluindo o Distrito Federal) e um federal, todos independentes entre si. A
Constituição também consagra uma longa tradição educacional brasileira: o ensi-
no básico, isto é, o infantil, o fundamental e o médio, não são de responsabilidade
direta da União, mas dos Estados e Municípios. Cabe à União prestar assistência
técnica e financeira a esses sistemas, coordenar as políticas e manter a sua própria
rede que inclui as Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) e escolas técni-
cas. Além disso, é responsabilidade do Governo Federal o controle das institui-
ções privadas de ensino superior. Em virtude desta descentralização extremada, a
evolução do sistema, tanto em seus aspectos positivos quanto negativos, não pode
ser atribuída exclusivamente ao Governo Federal, mas depende muito de outras
instâncias do poder público. Disto resulta também uma excessiva heterogeneidade
regional e local na oferta e na qualidade da educação básica.
A tarefa de coordenação deste sistema fragmentado, que o Governo Fe-
deral tenta exercer, depende de três instrumentos básicos. Em primeiro lugar, a legis-
lação. Em segundo, o estímulo à ação de Estados e Municípios, através de auxílio
financeiro e técnico. O terceiro instrumento permeia os demais – consiste na cons-
tante interlocução com os secretários estaduais e municipais de educação, através
das organizações que os congregam: o Conselho dos Secretários Estaduais de Edu-
cação (CONSED) e a União dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME).
Dentro desses limites, a política educacional do Governo Fernando
Henrique Cardoso se distinguiu pelo fato de se fundamentar num diagnóstico
prévio e compreensivo da situação e dos principais problemas do sistema edu-
cacional. O diagnóstico permitiu o estabelecimento de prioridades e a defini-
ção dos instrumentos de atuação a serem utilizados.
O projeto do Plano Nacional da Educação, apresentado pelo Presi-
dente ao Congresso, expressa bastante bem essas prioridades:
“A primeira consiste na garantia de oferta de Ensino Fundamental
obrigatório de oito séries, assegurando o ingresso e a permanência de todas as
crianças de 7 a 14 anos na escola”.
“Esta prioridade se desdobra em três outras:
• o esforço para assegurar que todas as crianças concluam as oito
séries do ensino fundamental, adquirindo a formação escolar mínima para o
exercício da cidadania, para o usufruto do patrimônio cultural da sociedade
moderna e para a empregabilidade;
• a adequação do processo pedagógico às necessidades e carências
da população escolar;
• a promoção de formação inicial e continuada de professores em
conformidade com as necessidades do ensino”.
“A segunda prioridade consiste no resgate da dívida social acumula-
da, garantindo a educação fundamental a todos que não tiveram acesso a ela na
232
DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).

idade adequada ou que não lograram concluí-la. Essa meta incorpora, de forma
ampliada, a determinação constitucional de erradicação do analfabetismo, en-
tendendo que a alfabetização deve ser interpretada no seu sentido amplo, isto é,
como domínio de instrumentos básicos da cultura letrada, das operações mate-
máticas elementares, da evolução histórica da sociedade humana, da diversida-
de do espaço físico e político mundial e da constituição da sociedade brasileira.
Envolve ainda a formação do cidadão responsável e consciente de seus direitos.
Essa prioridade está incorporada na questão da Educação de Jovens e Adultos,
que merece uma atenção especial neste Plano Nacional de Educação...”.
“A terceira prioridade reside na ampliação do acesso aos níveis edu-
cacionais anteriores e posteriores ao Ensino Fundamental, envolvendo, desta
forma, a Educação Infantil, o Ensino Médio e a Educação Superior”.
“Por acesso não se deve entender apenas a garantia de vagas nas
redes de ensino, mas a oportunidade de uma formação adequada aos interes-
ses e necessidades das diferentes faixas etárias, assim como, nos níveis mais
elevados, às necessidades da própria sociedade complexa. Incluem-se, nesta
concepção, tanto as demandas do mercado de trabalho como as necessidades
de formação de lideranças científicas e tecnológicas, artísticas e culturais,
políticas e intelectuais, empresariais e sindicais” (Durham, 1997, Introdução).
Colocou-se também como prioridade, por constituir instrumento
indispensável para a gestão do sistema educacional, o desenvolvimento e aper-
feiçoamento de sistemas de informações e de avaliação em todos os níveis e
modalidades do ensino.
Permeando tudo isto, coloca-se a questão do montante e da distri-
buição dos recursos para a educação.
Temas mais específicos foram também incluídos na política de atu-
ação do Governo Federal, tais como educação indígena, a educação especial e
formação para a o trabalho.
Para atender as prioridades, a política se orientou no sentido de
definir as principais áreas de atuação, organizadas em programas:
• ampliação do acesso para garantir a democratização do ensino;
• formação de professores, associada a uma política salarial e a pla-
nos de carreira de forma a assegurar a melhoria da qualidade do ensino;
• utilização de novas tecnologias educacionais para suprir deficiên-
cias na formação dos professores e para enriquecer o currículo escolar; 1
Utilizamos sempre as
• racionalização na gestão dos sistemas escolares; estatísticas mais re-
• priorização de investimentos para as áreas onde se concentram os centes. Contudo, como
maiores déficits educacionais. elas se encontram em
fontes diversas, nem
Analisaremos mais adiante as políticas e os programas. Antes, en- sempre estão organi-
tretanto, convém apresentar os números que fornecem dados objetivos para zadas do mesmo modo
nem englobam os mes-
avaliar a evolução do sistema1. mos anos. Foi por isso
Quando se examinam esses dados, verifica-se que houve uma evo- impossível uniformizar
lução muito positiva no que se refere à educação básica e, mais especialmente, as tabelas que elabora-
mos, tanto em termos
ao ensino fundamental. O ensino superior é, entretanto, uma área onde se de intervalos de tempo
acumulam problemas. como de variáveis.
233
DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).

Analisaremos separadamente o Ensino Básico e o Ensino Superior. Den-


tro dos limites de um artigo, precisamos nos restringir ao ensino regular abando-
nando as demais modalidades como educação técnica, educação indígena e educa-
ção especial. Faremos apenas uma ligeira menção à educação de jovens e adultos.

Ensino Básico

Ensino Público x Ensino Privado


No nível do ensino básico, o que se nota é uma constante diminuição da
participação do setor privado e ampliação do atendimento público. Esta tendência
não se iniciou no atual governo, mas continuou nesta gestão e não há, nem nas
estatísticas, nem nas políticas, nenhuma indicação de privatização crescente do
sistema. O contrário é verdadeiro. As tabelas seguintes indicam a evolução da
1. Educação Infantil participação relativa do setor privado nos três níveis do ensino básico.
Matrícula Inicial na Pré-
escola Total Geral Particular
Total e Porcentagem no Ano Nº Nº %
ensino particular Brasil – 1987 (1) 3.296.010 1.121.781 34,0
1987-1997 1988 3.375.834 1.041.294 30,8
Fonte: MEC/INEP/SEEC 1991 3.628.285 1.029.465 28,4
(1)
Incluindo 2.147 4.196.419
1993 1.018.299 24,3
matrículas não discrimi-
1996 4.270.376 1.019.487 23,9
nadas por dependência
administrativa 1997 4.292.208 987.432 23,0

Total Geral Particular


2. Ensino Fundamental Ano Nº Nº %
Matrícula Inicial 1975 19.549.249 2.522.099 12,9
Total e Porcentagem no 1980 22.598.254 2.898.074 12,8
Ensino Particular Brasil – 1985 (1) 24.769.359 2.989.266 12,1
1975-1997 1989 27.557.542 3.442.984 12,5
Fonte: MEC/INEP/SEEC
(1)
1991 29.203.724 3.618.012 12,4
4.441 matrículas sem
1996 33.131.270 3.707.897 11,2
informação de dependên-
cia administrativa 1997 34.229.388 3.663.747 10,7

Total Geral Particular


Ano Nº Nº %
1971 1.119.421 487.048 43,5
1975 1.935.903 877.036 45,3
1980 2.189.182 1.310.921 46,5
3. Ensino Médio 1985 3.016.138 1.004.228 33,3
Matricula Inicial 1989 3.477.859 1.056.469 30,4
Total e Porcentagem no
1991 3.770.230 1.017.612 27,0
Ensino Particular Brasil –
1971-1997 1996 5.739.077 1.176.519 20,5
Fonte: MEC/INEP/SEEC 1997 6.405.057 1.267.065 19,8

As tabelas indicam também um crescimento muito positivo das ma-


trículas nos três níveis do ensino básico, o que mostra o sucesso das políticas
de democratização do acesso à escola.
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DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).

A Pré-Escola
A pré-escola é uma instituição importante no sistema educacional. Para
as crianças de famílias pouco escolarizadas, como é o caso de grande parte da
população brasileira, facilita a integração na cultura escolar e a aquisição de com-
petências sociais e intelectuais que o ambiente familiar nem sempre provê.
Tratando-se, entretanto, de um nível de ensino que é de responsabilidade
dos municípios, é uma área de difícil atuação do Governo Federal, dada sua extrema
fragmentação. Programas de incentivo e apoio precisam ser conveniados indepen-
dentemente com mais de 5.500 sistemas autônomos. Por isso, o Governo Central
tende a um atendimento seletivo, organizado em torno de alguns projetos de alto
interesse social. A política tende portanto a ser mais fragmentada e menos eficaz.
Em 1996, isto é, logo após o início do Governo Fernando Henrique, a
taxa de Matrícula Bruta, calculada em função da Contagem da População realiza-
da naquele ano, indicava um percentual de 45,64% da faixa etária de 4 a 6 anos
atendida na pré-escola. Isto constituía um aumento muito significativo em relação
a 1991, quando o Censo Populacional indicava uma Taxa Bruta de 35,38%.
A Tabela 4, que utiliza os Ano Matrículas
Censos Educacionais, mostra a evo- 1991 3.628.285
4. Evolução da matrícula
lução da matrícula nesta década. 1996 4.270.376
inicial na Pré-Escola
O dado preocupante diz 1997 4.292.208
Brasil – 1991-1998
1998 4.111.120 Fonte: MEC/INEP/SEEC
respeito ao ligeiro declínio da matrí-
cula que se observa em 1998, após toda uma década de contínua expansão. A
razão provável deste declínio reside na relação entre o Fundo de Desenvolvimento
do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, o qual analisaremos mais
adiante, e a distorção série-idade. Há realmente uma tendência no Brasil, especial-
mente nas regiões mais pobres, de matricular na pré-escola crianças com mais de
6 anos, que não tiveram acesso a esse nível de ensino, como forma de facilitar o
trabalho posterior de alfabetização. Com a criação do FUNDEF, que aumenta os
recursos dos municípios para a educação em função do número de alunos matricu-
lados no ensino fundamental, a tendência dos municípios foi a de transferir para
esse nível de ensino todas as crianças de 7 anos ou mesmo menos. O enorme
aumento da matrícula que se verificou no ensino fundamental no mesmo ano jus-
tifica esta hipótese. Trata-se, provavelmente, antes de um ajuste entre os diferentes
níveis do que de um decréscimo de atendimento à população.
Por outro lado, parece existir hoje, em função mesma do FUNDEF,
uma tendência das prefeituras a privilegiar o ensino fundamental em detri-
mento da pré-escola. Se esta tendência se confirmar, haverá necessidade de
uma política para reverter esta distorção. Entretanto, os dados preliminares
do Censo Escolar de 1999, recém publicado, demonstram um novo cresci-
mento das matrículas que, dos 4.111.120 de 1998, passaram para 4.230.243
neste ano. A hipótese do ajuste parece assim ser a mais provável.
Se o Governo Federal não desenvolveu um programa específico
para o aumento das matrículas na pré-escola, tomou entretanto uma iniciativa
importante que foi a elaboração de Referências Curriculares para este nível de

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DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).

ensino, o que deve contribuir muito para a diminuição da improvisação que é


comum nos estabelecimentos que atendem esta faixa etária.
Ensino Fundamental
O ensino fundamental, que constituiu a prioridade deste governo, é
aquele no qual se nota o maior desenvolvimento. Todos os indicadores educacio-
nais referentes a este nível de ensino demonstram uma evolução muito positiva.
A Tabela 5 apresenta um panorama temporal mais amplo dentro do
qual se localizam as transformações recentes. Verifica-se, por esta tabela, que
o crescimento bruto foi contínuo e o percentual de crescimento manteve-se
elevado desde a década de 70.
Ano Total % de crescimento
1970 15.895 -
5. Evolução da matrícula 1980 22.598 42,2
no Ensino Fundamental 1991 29.204 29,2
Brasil – 1970-1998
1998 35.488 21,5
(em mil)
Fonte: MEC/INEP/SEEC Crescimento Total 123,3

A diminuição da taxa de crescimento é natural pois, à medida que


diminui o número de crianças fora da escola, menor se torna o número daquelas
que deve ser absorvido. Além disto, o declínio da taxa de crescimento da popu-
lação contribui para uma desaceleração do aumento do número de matrículas.
O Governo atual atuou de modo muito vigoroso nesta área, tanto
através de campanhas, como mobilizando e prestando auxílio financeiro a
Estados e Municípios para ampliar as vagas existentes. A mobilização inclui
o ativo recrutamento das crianças que estavam fora da escola.
Vejamos agora o que significa isto em termos de atendimento da
faixa etária de 7 a 14 anos, que se expressa através das taxas de escolarização,
explicitando a evolução ocorrida no último governo.
6. Ensino Fundamental – Ano Bruta (%) Líquida (%)
Taxa de escolarização 1970 81 67
bruta e líquida 1980 98 80
Brasil – 1970-1998 1991 106 86
Fonte: MEC/INEP/SEEC. 1994 111 89
* Taxas calculadas sobre
1996* 116 91
estimativas da população
de respectiva faixa etária 1997* 119 93
no ano considerado. 1998* 122 95

Calculando-se os decimais para 1998, verifica-se que, no Brasil, 95,8%


das crianças de 7 a 14 anos estão matriculadas no ensino fundamental. Para se
avaliar o atendimento desta faixa etária, deve-se acrescentar a este percentual as
crianças de 7 anos que ainda estão na pré-escola. Podemos considerar que há
ainda um outro pequeno percentual de crianças de 7 a 8 anos, que ingressarão
tardiamente. Isto significa que a universalização do ensino fundamental está
quase concluída. Por outro lado, a taxa bruta, isto é, o número de alunos matri-
culados no ensino fundamental em relação ao número de crianças da faixa etária
de 7 a 14 anos, que é de 138%, indica que as crianças ingressam tardiamente e,
em função da repetência, tendem a permanecerem nesse nível de ensino um
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DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).

tempo maior do que os 8 anos. De fato, 23,6% das crianças matriculadas no


ensino fundamental são maiores de 14 anos. O aumento da taxa bruta, por outro
lado, parece indicar que está havendo um retorno à escola por parte dos jovens
que haviam abandonado sem concluir o curso.
Isto é confirmado pela Tabela 7, onde se discrimina a matrícula no
ensino fundamental por faixa etária.
Matrícula por faixa etária e localização
Unidade de Total Menos de De 7 a 14 anos De 15 a 19 anos Mais de
Federação 7 anos 19 anos
No % No % No % No % No %
Brasil 35.792.554 100,0 449.279 1,3 26.870.018 75,1 7.097.448 19,8 1.375.809 3,8
Norte 3.207.880 100,0 36.561 1,1 2.377.59 74,1 664.080 20,7 130.185 4,1
Nordeste 12.210.131 100,0 182.830 1,5 8.407.429 68,9 2.918.530 23,9 701.342 5,7 7. Matrícula no Ensino
Fundamental por faixa
Sudeste 13.249.814 100,0 71.441 5,4 10.431.785 78,7 2.369.062 17,9 377.526 2,8
etária
Sul 4.558.892 100,0 117.483 2,6 3.777.447 82,9 614.192 13,5 49.770 1,1
Brasil e regiões – 1998
Centro-Oeste 2.565.837 100,0 40.964 1,6 1.876.303 73,1 116.986 20,7 116.986 4,6 Fonte: MEC/INEP/SEEC

A enorme taxa de repetência que estes dados indicam tem caracteri-


zado o ensino brasileiro desde seus primórdios e demonstra uma ação
discriminadora da escola em relação às crianças com maiores dificuldades de
aprendizagem e de adaptação ao sistema escolar (que tendem a ser as mais po-
bres). Demonstra também a ausência de um ensino adequado à realidade cultu-
ral dessas crianças. De fato, as maiores distorções série-idade ocorrem justa-
mente nas regiões caracterizadas pelas maiores deficiências educacionais.
A diminuição da taxa de repetência foi objeto de uma ação explícita do
Governo Federal, em colaboração com os Estados, desde o início desta gestão.
De fato, houve, no
Ano Promoção Repetência Evasão
período deste governo, um 8. Ensino Fundamental
1981 58% 36% 6%
progresso acentuado na redu- 1985 58% 36% 6% Taxas agregadas de
ção das taxas de repetência e transição
1990 60% 34% 6%
Brasil – 1981-2000
no aumento correspondente 1995* 65% 31% 4%
Fonte: MEC/INEP/SEEC.
das taxas de aprovação, con- 1998* 67% 29% 4% * Dados estimados.
forme mostra a Tabela 8.
A análise da Tabela 9 permite, por outro lado, explicitar um dos proble-
9. Taxa de escolarização
mas mais graves do sistema educacional brasileiro, que reside na desigualdade
líquida no Ensino
regional. A Tabela 9 indica com mais clareza a magnitude desta desigualdade. Fundamental
A diminuição da Brasil e regiões – 1996-1997
1996 1997 Fonte: MEC/INEP/SEEC.
desigualdade regional cons- Brasil 90,5 93,0 IBGE – Contagem da
titui, de fato, uma política ex- Norte 86,1 89,3 População – 1996
plícita deste governo, imple- Nordeste 84,3 89,1 Dados estimados por
Carlos Américo Pacheco
mentada através do Projeto Sudeste 94,7 95,9
(NESUR/IE/UNICAMP) e
Sul 94,7 96,1
Nordeste e do FUNDES- José Marcos Cunha
Centro-Oeste 94,6 94,4 (NEPO/UNICAMP).
COLA (que mencionaremos
posteriormente) e de toda uma série de diferenciação de incentivos nos progra-
mas regulares, orientados no sentido de privilegiar as regiões com maiores déficits 2
Para uma análise mais
educacionais. De fato, os Censos Educacionais indicam, nos últimos dois anos, detalhada desta ques-
um visível progresso nas taxas de escolarização dessas regiões2. tão cf. Castro, 1998.

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DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).

Analfabetismo e taxa de escolarização da população


A democratização do acesso ao ensino fundamental está associada a
dois outros indicadores para os quais, entretanto, os dados mais recentes, retirados
dos Censos Populacionais e da Contagem da População, não cobrem o período do
atual Governo, mas referem-se apenas aos anos de 1991 e 1996. Trata-se da taxa
de analfabetismo e da taxa de escolaridade média da população. Embora os dados
sejam mais antigos, e não cubram o período aqui considerado, eles são fundamen-
10. Pessoas analfabetas
na população de 15 anos tais para uma compreensão mais ampla da situação educacional.
ou mais/Números
Ano Número Absoluto Percentual
absolutos e distribuição
percentual 1920 11.401.715 64,9%
Brasil – 1920-1996 1940 13.269.381 56,0%
Fonte: Censos Demo- 1950 15.272.632 50,5%
gráficos IBGE: 1920, 1960 15.964.852 39,6%
1940, 1950, 1960, 1970, 1970 18.146.977 33,6%
1980, 1991.
1980 18.651.762 25,4%
PNAD (IBGE) 1996 e
Contagem Populacional 1991 19.233.239 20,1%
1996. 1996 15.560.260 14,7%

Apesar do número absoluto e relativo de analfabetos ser ainda mui-


to elevado, o declínio tem sido bastante rápido nesta última década, e vem se
acelerando. Em 1996, pela primeira vez na história brasileira, houve não ape-
nas uma redução no percentual mas, inclusive, uma diminuição do número
absoluto de analfabetos. Além do mais, o problema está hoje localizado nas
faixas etárias mais elevadas, que são mais dificilmente atingidas e nas locali-
dades mais pobres do Norte e Nordeste. Por isso mesmo a política de redução
do analfabetismo precisa ser diferenciada e localizada. Uma iniciativa nesta
direção é a do Programa Comunidade Solidária, cuja atuação vem se concen-
trando nos municípios mais pobres do país de maior incidência de analfabe-
tismo. Além da atuação do Programa Comunidade Solidária que está subordi-
nado à Presidência da República, o MEC agiu nesta área através de parcerias
com governos Municipais, Estaduais, e ONGs, fornecendo material didático,
11. Taxa de Analfabetismo financiamento e treinamento para alfabetizadores.
na faixa etária de 15 anos
ou mais por grupos de Taxa de Analfabetismo (%)
idade 15 anos ou 15 a 19 20 a 24 25 a 29 30 a 39 40 a 49 50 ou mais
Brasil – 1970-1996 Ano menos anos anos anos anos anos anos
Fonte: IBGE – PNAD 1970 33,6 24,3 26,5 29,9 32,9 38,5 48,4
1996. 1980 25,4 16,5 15,6 18,0 24,0 30,8 43,9
Exclusive a população
1991 20,1 12,1 12,2 12,7 15,3 23,8 38,3
rural de Rondônia, Acre,
1995 15,6 6,8 7,5 9,3 11,0 16,7 32,7
Amazonas, Roraima, Pará
e Amapá em 1995 e 1996. 1996 14,7 6,0 7,1 8,1 10,2 15,5 31,5

O declínio do analfabetismo, logicamente, está fortemente associado


à expansão da escolaridade obrigatória. De fato, o analfabetismo dificilmente se
resolve através de campanhas, como tantas que já tivemos. A solução depende
muito mais de estancar a produção de novos analfabetos. Os países que hoje
possuem elevadas taxas de alfabetização já haviam universalizado o acesso à
educação primária de 4 anos já no início do século. Nós, só agora estamos che-
238
DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).

gando perto disso. Convém lembrar que, em 1970, a taxa líquida de escolarização
era de apenas 67%, conforme já mostramos na Tabela 6.
Os dados referentes ao número médio de anos de estudo confirmam
12. Número Médio de
um crescimento significativo da taxa de escolarização. anos de estudos por
Os dados da Tabela 12 mostram não só a evolução positiva, mas regiões
também confirmam a persistência da desigualdade regional. Brasil – 1960-1996
Fonte: Relatório Sobre o
1960 1970 1980 1990 1995 1996
Desenvolvimento Humano
Regiões no Brasil, 1996; PNUD/
Norte/Centro-Oeste 2,7 - 4,0 - - - IPEA, 1996.
Centro-Oeste - - - - 5,7 6,0 Dados de 1995 e 1996
Norte - - - - 5,5 5,8 calculados pelo MEC/
1,1 1,3 2,2 3,3 4,1 4,4 INEP/SEEC com base na
Nordeste
PNAD de 1995 e 1996
Sudeste 2,7 3,2 4,4 5,7 6,2 6,6
Exclusive a população
Sul 2,4 2,7 3,9 5,1 6,0 6,3 rural da Região Norte

A desigualdade regional é efetivamente muito importante e se ma-


nifesta de forma consistente em todos os indicadores.
Ensino Médio
Conviria agora analisar sumariamente o que ocorreu no ensino mé-
dio: foi uma verdadeira explosão de matrículas. O percentual de aumento de
matrículas que ocorreu entre 1994 e 1999 foi de 57,3%.
Por outro lado, como se Ano Total
pode verificar na Tabela 14, a taxa 1994* 4.936.211
de escolarização líquida ainda é mui- 1995* 5.374.831
to baixa no Brasil – apenas 32,6% 1996 5.739.077 13. Matrícula Inicial
1997 6.405.057 Brasil
– quando, em países desenvolvidos, 1994-1999
1998 6.968.531
fica ao redor de 80 ou 90%. O pro- 1999** 7.767.091
Fonte: INEP/MEC
* dados estimados
blema reside na questão da repe- Tx. Cresc. 94/99 57,3% ** dados preliminares
tência, que promove a retenção dos
jovens dessa faixa etária no ensino fundamental. De fato, como mostramos na
Tabela 7, 23,6% dos matriculados no ensino fundamental têm mais de 14
anos de idade e 20,7% têm entre 14 e 19 anos. Pode-se portanto, deduzir que
o atendimento dos jovens desta faixa etária está perto de 52%.
Taxa de escolarização líquida Taxa de escolarização bruta
Ano (15 a 17 anos) (15 a 17 anos) 1997
1994 22,7 51,6 14. Ensino Médio
1995 23,5 53,5 Taxas de escolarização
1996 24,4 55,3 líquida e bruta (%)
Brasil
1998 30,8 68,1
1994-1999
1999 32,6 74,8 Fonte: MEC/INEP/SEEC.
De fato, desde a década passada até a grande expansão que ocorreu
nos últimos três anos, o número de vagas no ensino médio foi sempre superior
ao número de egressos do ensino fundamental. Isto demonstra que a amplia-
ção do atendimento no ensino médio esteve sempre limitada pelas deficiênci-
as do nível anterior. O aumento da taxa líquida de escolarização no nível mé-
dio não pode ser realizada sem a regularização do fluxo nas séries anteriores,
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DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).

o que demonstra o acerto da política de priorizar o ensino fundamental.


A capacidade de atendimento do sistema é elevada e a melhoria do
fluxo do ensino fundamental permitirá a continuidade da aceleração do aten-
dimento no ensino médio, sem que isto signifique, necessariamente, um au-
mento correspondente do número de matrículas no conjunto do sistema.
Verifica-se entretanto, na Tabela 15, que não houve, no ensino mé-
dio, a mesma melhoria de fluxo que ocorreu no ensino fundamental: a taxa de
repetência vem aumentando, embora tenha diminuído um pouco a evasão.
Entretanto, pode-se considerar que a melhoria do fluxo é quase impossível de
ser atingida quando a expansão das matrículas é muito elevada.
15. Ensino Médio Ano Promoção (%) Repetência (%) Evasão (%)
Taxas agregadas de 1985 60 31 9,0
transição
1990 60 32 8,0
Brasil
1995 61 34 5,0
1985-1998
Fonte: MEC/INEP/SEEC. 1998 60 36 4,0

Outro dado muito importante diz respeito à enorme distorção série-


idade que se manifesta no ensino médio, bem maior que a do ensino funda-
mental, conforme se verifica na Tabela 16, na qual se nota também, mais uma
vez, a desigualdade regional.
Brasil e Série %
regiões Total 1a 2a 3a 4a
(habilitações)
Brasil 53,9 56,4 52,8 51,3 49,6
16. Taxa de Distorção Norte 73,2 75,6 71,9 70,0 75,3
série-idade no Ensino Nordeste 69,5 72,3 68,4 66,0 58,1
Médio Sudeste 48,4 49,7 48,0 47,1 46,5
Brasil e regiões
Sul 39,1 41,6 36,6 36,2 47,8
1998 em %
Centro-Oeste 57,7 60,8 55,9 53,9 64,8
Fonte: MEC/INEP/SEEC.

Há aspectos negativos e positivos nesta distorção. O negativo é ób-


vio: demonstra o ingresso tardio e o longo número de anos necessários para
completar o 1o grau, em virtude da repetência. Mas há também um lado positi-
vo, especialmente quando se verifica um aumento na idade média dos alunos,
que já apontamos no caso do ensino fundamental: é a tendência de muitos jo-
vens e mesmo adultos, que haviam abandonado os estudos após o ensino funda-
mental, de retornarem aos estudos. Nestes casos, a exigência crescente de quali-
ficação no mercado de trabalho provavelmente pressiona nesta direção, o que
promoverá a elevação do nível médio de escolarização da população.
Qualificação de professores
Se bem que tenha havido progressos inegáveis na ampliação do aces-
so e regularização do fluxo escolar, as avaliações referentes ao nível de profici-
ência dos alunos (SAEB) são preocupantes, pois indicam a permanência de de-
sempenhos muito insatisfatórios, especialmente, em Matemática (cf. SAEB,
1997). Por outro lado, esta mesma avaliação mostra uma associação bastante
elevada entre desempenho dos alunos e nível de escolarização do docente.
Estes dados apontam para problemas de qualidade do ensino que
240
DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).

remetem àquela que talvez seja a questão mais importante do sistema educa-
cional brasileiro hoje: a qualificação dos professores. Neste item também se
registrou uma evolução positiva durante o governo Fernando Henrique, mas o
problema continua sendo muito sério.
Os dados indicam um aumento do nível de escolarização dos do-
centes. Está havendo, portanto, algum progresso. Entretanto, pesquisas quali-
tativas mostram que a preparação dos professores, mesmo os que possuem o
ensino superior, não é ainda adequada às necessidades de aprendizagem dos
alunos. É preciso, portanto, melhorar a qualidade da formação inicial e conti-
nuada dos docentes brasileiros.
Vejamos, em primeiro lugar, os dados referentes ao nível de qualifi-
cação docente, em sua evolução recente. 17. Pré-escola
Função docente por grau
Valor Absoluto (%) Cresc. de formação Brasil
1991 1996 1998 1991 1996 1998 (%) 1991-1998
1o grau incompleto 9.734 16.198 23.115 5,8 7,4 8,9 137,5 Fonte: MEC/INEP/SEEC.
1o grau completo 21.851 19.069 22.720 13,1 8,7 8,8 4,0 O mesmo docente pode
2o grau completo 106.843 144.189 167.421 64 65,7 64,8 56,7 atuar em mais de um
nível/modalidade de
3o grau completo 28.489 40.061 45.285 17,1 18,2 17,5 59,0
ensino e em mais de um
Total 166.917 219.517 258.541 100 100 100 54,9 estabelecimento.

No total = 1o Grau 1o Grau 2o Grau 3o grau


Ano 100% incompleto completo completo completo
1975 896.652 12,1 13,2 46,2 28,5 18. Ensino Fundamental
1980 884.257 12,8 9,9 43,7 33,5 Número de funções
1985 1.040.553 8,3 6,1 45,1 40,5 docentes e percentual por
grau de formação Brasil e
1991 1.295.965 5,6 5,2 48,2 41,0
Regiões
1996 1.388.247 4,6 4,4 47,2 43,8 1975-1998
1998 1.460.455 3,1 3,8 45,1 46,1 Fonte: MEC/INEP/SEEC

Ano Número Percentual com formação superior


1975 130.070 64,8 19. Ensino Médio:
1980 198.087 75,1 Número de funções
docentes e percentual por
1988 230.639 83,6
grau de formação Brasil e
1996 326.827 86,4
regiões – 1997
1998 365.874 89,3 Fonte: MEC/INEP/SEEC

Verifica-se facilmente que houve uma evolução muito positiva no que


diz respeito aos docentes do ensino fundamental e médio, cuja qualificação vem
sendo incentivada pelo governo federal. No ensino médio, o aumento da qualifica-
ção nos dois anos entre 1996 e 1998 é, em termos percentuais, equivalente ao que
ocorreu no período de oito anos entre 1988 e 1996. No ensino fundamental é um
pouco menor, mas mesmo assim há nitidamente uma aceleração. Para os 5 anos
entre 1991 e 1996, houve um aumento de 2,8 no percentual dos docentes com
nível superior; para os dois anos seguintes, esse crescimento foi de 2,9.
Os problemas, com uma indicação de involução da qualificação, se
manifestam na pré-escola, a qual, sendo de responsabilidade exclusiva dos
municípios, compõe um sistema extremamente fragmentado e, por isso mes-
mo, de difícil atuação para o Governo Central como dissemos anteriormente.
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DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).

Administrar um programa que atinja todos os municípios, o que pressupõe


negociações independentes em cada um deles, é quase inviável administrati-
vamente. A correção deste problema exige uma solução inovadora, que não
dependa de negociação município por município, mas se dirija aos docentes,
diretamente. Por outro lado, o surpreendente aumento de “docentes” sem pri-
mário completo pode indicar uma ampliação de um quadro auxiliar de
atendentes, à semelhança do que ocorre nas creches.
No caso da formação dos professores, como vimos, não basta au-
mentar o grau de qualificação. É preciso também propor e implementar uma
profunda reforma nos programas de formação inicial e continuada.
No que diz respeito à formação inicial, isto está sendo feito, em
decorrência da LDB, com as iniciativas de regulamentar os Institutos Superi-
ores de Educação e os Cursos Normais Superiores. Estão sendo também ulti-
madas, nas Comissões de Especialistas da SESu/MEC as propostas de Dire-
trizes Curriculares para as licenciaturas, as quais podem promover uma pro-
funda reformulação desses cursos. No caso da formação continuada em servi-
ço, foi formulado um novo programa, os Parâmetros em Ação, que tem como
objetivo orientar os professores na utilização dos novos Parâmetros
Curriculares, o qual está sendo muito bem recebido.

Os Programas Federais para o Ensino Básico e avaliação geral da evolu-


ção do sistema

Se bem que, como já indicamos no início deste artigo, nem toda


evolução positiva ou negativa possa ser imputada integralmente ao Governo
Federal, é muito difícil que se obtenham resultados positivos integrados para
o conjunto do sistema e para as diferentes regiões do país, como ocorreu, sem
uma ação vigorosa e bem orientada por parte do Governo Federal.
Nos limites deste artigo, podemos apenas indicar as principais.
Uma das políticas implementadas já no início do governo foi a de alte-
rar a legislação no sentido de definir mais claramente as responsabilidades de cada
instância do governo, o que foi feito através de emendas constitucionais e da LDB.
A importância desta política é clara. Não se pode articular um sistema se as dife-
rentes instâncias do Poder Público têm total autonomia no que diz respeito ao
nível de ensino que oferecem e ao percentual da faixa etária que atendem.
Com a reforma, a educação infantil passou a ser de responsabilidade
exclusiva dos municípios e a oferta do ensino médio coube aos Estados. O ensino
fundamental, entretanto, continuou sendo de responsabilidade conjunta dessas duas
instâncias. Para garantir a distribuição eqüitativa da responsabilidade pelo ensino
fundamental e assegurar o cumprimento da injunção constitucional da oferta obri-
gatória desse nível de ensino para toda a população, foi elaborada uma emenda
constitucional específica, a que criou o Fundo de Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF). O FUNDEF articulou,
para o ensino fundamental, as responsabilidades de Estados e Municípios, assim
como a ação supletiva e redistributiva da União. Em cada Estado, 15% dos recur-
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DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).

sos de impostos decorrentes de transferências de uma para outra instância do Po-


der Público formam um fundo que é distribuído entre Estados e Municípios de
acordo como o número de crianças matriculadas em uma ou outra rede de ensino
do nível fundamental. Cabe ressaltar que além dos recursos transferidos, Estados
e Municípios dispõem de outros 10% para aplicarem nos níveis de ensino de sua
exclusiva responsabilidade. Os impostos locais não são incorporados ao Fundo,
mas mantém-se a obrigação da aplicação de 15% do seu valor no ensino funda-
mental e 10% nos demais níveis. Desta forma, os municípios que se empenham
em melhorar sua arrecadação não são prejudicados.
Quando o per capita aluno calculado pelos recursos do Fundo for infe-
rior a R$ 315,00, a União complementará os recursos de modo a alcançar esse
limite. Define-se assim, de modo claro, a ação supletiva e redistributiva da União.
Nessa sistemática, pode-se facilmente verificar que o mínimo de
R$ 315,00 só se aplica a municípios que não arrecadam nenhum imposto
local, mas dependem integralmente de transferência do governo federal e es-
tadual. Em todos os demais Municípios e todos os Estados, os recursos para a
manutenção do ensino fundamental excederam este mínimo. O impacto do
Fundo no sentido de diminuir as desigualdades do sistema é enorme.
O Fundo também promove outros resultados positivos. Ao estabelecer
que 60% dos recursos distribuídos pelo Fundo precisam ser aplicados no pagamento
dos docentes em atividade, ele promove um substancial aumento salarial, o que já
ficou patente no 1º ano de sua vigência, mas deverá ser sentido plenamente a longo
prazo. Pela sistemática do Fundo, o salário médio de uma função docente (quatro
horas de trabalho na escola) não pode ser inferior a R$ 315,00 por mês. Se isso pode
parecer pouco para São Paulo (cujo per capita aluno e, portanto, cujas médias sala-
riais são muito mais elevadas), R$ 315,00 reais por mês por meio período de traba-
lho constitui um salário bastante bom para os municípios mais pobres, que são os
únicos nos quais os recursos disponíveis se restringem ao Fundo.
O impacto mais imediato do Fundo foi, entretanto, o aumento das
matrículas no ensino fundamental, especialmente no sistema municipal. Uma
vez que se garantiram recursos per capita, os dirigentes educacionais foram
estimulados a aumentar a sua rede de ensino3.
A segunda política de grande alcance e impacto social consistiu na con-
tinuidade e aperfeiçoamento do Projeto Nordeste, iniciado em 1994. O Projeto
reúne recursos de um vultoso empréstimo do Banco Mundial, acrescido da
contrapartida nacional equivalente, aplicado exclusivamente na melhoria do ensi-
no fundamental na região Nordeste, a que apresenta os piores índices educacionais
do país. Os recursos do Projeto foram aplicados na reforma e ampliação das esco-
las, em material pedagógico e na formação de professores. A melhoria dos indica-
dores educacionais do Nordeste que ocorreu nesses últimos 5 anos, deveu muito a
essa nova fonte de recursos. Em 1998 o Projeto Nordeste foi ampliado para aten-
der também as regiões Norte e Centro-Oeste, com a nova denominação de
FUNDESCOLA. Foi também substancialmente reformulado para melhorar a sua
eficácia, atuando de forma mais direta e mais integrada com estados e municípios.
O Ministério investiu, além disso, também na superação dos obstácu-
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DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).

los econômicos que afastam da escola as crianças das famílias de menor renda. O
Programa da Merenda Escolar foi ampliado, regularizado e fortalecido, e constitui
hoje um dos programas mais amplos e bem sucedidos de suplementação alimentar
existentes nos países em desenvolvimento. O fornecimento de livros didáticos
gratuitos a todas as crianças da 1a à 4a séries logrou, pela 1a vez, distribuir os
livros antes do período letivo. Esse mesmo Programa foi ampliado para atender
também às crianças da 5a à 8a série e criou-se um sistema de avaliação da qualida-
de do livro didático que deve contribuir muito para a qualidade do ensino.
Um Programa de grande significado social, o da Bolsa-Escola, não
foi de iniciativa do Governo Federal, mas da administração Cristóvão Buarque,
do Distrito Federal. Em 1997, reconhecendo a importância deste programa, o
Governo Federal passou a apoiar, com recursos próprios, programas seme-
lhantes nos municípios mais pobres. É preciso reconhecer, entretanto, que o
Projeto dificilmente pode ser universalizado, dado seu custo elevado. Mesmo
no Distrito Federal, o programa só foi possível porquê todo sistema de ensino
básico é pesadamente subsidiado pelo Governo Central.
No que tange à qualidade de ensino, os recursos para a formação de
professores foram ampliados, especialmente para o Nordeste, onde as defici-
ências são maiores. Além disso, o Programa TV-Escola distribuiu televisões
e vídeos para todos os estabelecimentos escolares de mais de 100 alunos e
organizou a transmissão regular de programas educativos destinados tanto a
ampliar o conhecimento dos professores como a enriquecer e facilitar, através
de novas tecnologias educacionais, o trabalho em sala de aula.
Deve-se ainda mencionar, neste mesmo sentido, a articulação entre
Governo Central e Governos Estaduais na implementação de Classes de Acelera-
ção. Seu objetivo é regularizar o fluxo escolar e reduzir a defasagem série idade, a
qual é responsável pela diminuição da auto-estima dos alunos e pela evasão esco-
lar. Iniciado há pouco mais de dois anos, as Classes de Aceleração já atendiam, em
1998, 1.189.998 alunos, com concentração bastante alta na Região Nordeste.
Finalmente, é importante mencionar um Programa que não tem re-
cebido atenção suficiente: o do Dinheiro na Escola. Consiste na distribuição
de pequenos fundos que são repassados diretamente aos estabelecimentos es-
colares e são por eles utilizados para suprir necessidades menores tais como
pequenos reparos, pintura, aquisição de material didático. Este programa,
freqüentemente suplementado pelos Estados e Municípios, aumenta substan-
cialmente a autonomia das escolas, além de promover a democratização da
gestão por exigir de um Conselho Escolar constituído por docentes e pais, que
se responsabilize pela gestão dos recursos.
Dentro dos limites deste artigo, uma enumeração e descrição das demais
iniciativas é impossível. Mas é necessário mencionar, mesmo que de passagem, o
sucesso de outros programas como os da Educação Indígena, da Educação para
Portadores de Necessidades Especiais, assim como a iniciativa de elaboração e pu-
blicação dos Parâmetros Curriculares para o Ensino Fundamental e Pré-escola.
No que diz respeito ao Ensino Médio é preciso mencionar a ampla
reforma curricular em curso, associada à reorganização de todo o ensino técni-
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DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).

co, que era necessária, mas cujos resultados ainda não podem ser avaliados.
O que se pode verificar desta exposição sumária é que muito do su-
cesso da política educacional deste Governo deveu-se a uma articulação de pro-
gramas distintos no sentido de atingir os problemas mais graves e o
monitoramento dos resultados através de pesquisas e dos Censos Escolares.
Os problemas maiores ainda não foram resolvidos, nem podem sê-lo a
curto prazo, mas estão sendo enfrentados diretamente e se referem à desigualdade
regional, à qualificação dos professores, à regularização do fluxo escolar, à quali-
dade do ensino de forma geral, e ao ensino supletivo para jovens e adultos que não
completaram a escolaridade obrigatória de 8 séries. Aliás esta última área foi uma
das de pior desempenho, em termos quantitativos, de todo o sistema educacional
e, face a seu alto interesse social, precisaria ser reformulada em regime de priorida-
de. A atuação do Programa da Comunidade Solidária vem obtendo resultados
positivos, mas seria necessário ampliar a cooperação do Ministério com ONGs,
empresas, sindicatos e secretarias de educação. A ação recente de junção de esfor-
ços do MEC e do Ministério do Trabalho, alimentada com recursos do FAT, pode
representar a superação das deficiências que ocorrem nesta área.
Apesar do saldo positivo, há sinais preocupantes neste novo perío-
do presidencial, que se iniciou este ano. A crise fiscal do Estado vem amea-
çando o financiamento de programas que podem ser considerados essenciais
para a continuidade do processo de melhoria do ensino, especialmente o
FUNDESCOLA, a Bolsa-Escola e aqueles voltados para Jovens e Adultos.
Particularmente grave é a dificuldade que vêm ocorrendo para o aumento do
referencial de R$ 315,00 do FUNDEF, como está previsto na legislação.
Apesar destas dificuldades recentes, o saldo do primeiro período
do Governo Fernando Henrique foi muito positivo no que diz respeito ao
ensino fundamental.

Ensino Superior

No que diz respeito ao ensino superior há aspectos favoráveis e desfa-


voráveis na evolução do sistema e nas políticas desenvolvidas para este setor.
Expansão e participação do setor privado
Em termos da sociedade, o problema maior a ser resolvido diz
respeito à extensão do sistema. A taxa bruta de matrículas no ensino su-
perior, calculada em relação à faixa etária de 20 a 24 anos, que é de 12%,
não pode deixar de ser considerada extremamente baixa, não só em com- 3
Para uma avaliação
paração com os países desenvolvidos, mas inclusive em relação a países dos resultados do
de renda per capita bem menor do que a brasileira. Assim, a taxa bruta FUNDEF, inclusive
em termos de aumen-
brasileira, compara-se muito desfavoravelmente com a da Argentina, de tos salariais, consultar
39% (1994); Chile, 27% (1994) e mesmo da Bolívia, de 22% (1994). A Educação Brasileira:
deficiência da oferta de ensino superior fica ainda mais patente quando Síntese das Avaliações.
MEC/INEP, 1999. Cf.
comparada com as taxas brutas da Inglaterra, 48%, França, 50%, para também Censo do Pro-
não falar dos Estados Unidos, onde ultrapassa 80%. fessor 97.
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DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).

O problema é de natureza estrutural e não recente. De fato, após a grande


expansão dos anos 60 e 70, o sistema praticamente se estagnou na década seguinte.
Um crescimento moderado começou na década de 90, como mostra a Tabela 20.
Ano Total Federal Estadual Municipal Particular
1985 1.367.609 326.522 146.816 83.342 810.929
20. Evolução da 1986 1.377.286 316.715 109.252 66.265 885.054
Matrícula no Ensino 1990 1.540.080 308.867 194.417 75.341 961.455
Superior Brasileiro 1995 1.759.703 367.531 239.215 93.794 1.059.163
Total e por Dependência
1998 2.085.120 426.187 268.724 123.695 1.266.514
Administrativa
Dados retirados de Taxa de crescimento
51,4 34,7 145,9 86,6 43,1
Castro, 1998. 80/98 (%)

Os dados indicam um fator importante, que é a evolução mais a


longo prazo da relação entre setor público e privado, face a qual é necessário
avaliar o período mais recente.
Nota-se, de imediato, que o desenvolvimento máximo do setor pri-
vado ocorreu em 1980, quando atingiu mais de 64% das matrículas. Esta par-
ticipação diminuiu durante a década de 80, quando o setor privado chegou a
declinar não só em termos relativos, mas absolutos: de 885.054 matrículas em
1980, caiu para 840.564 em 1986, passando a se recuperar desde então, sem
entretanto lograr a mesma participação relativa anterior.
A Tabela 21 deixa isto mais claro.
Ano Total de Matrículas % Particular
1960 95.691 44,0
21. Matrículas no Ensino 1970 425.487 50,5
Superior 1980 1.377.286 64,3
Total e percentual no
1990 1.540.080 62,4
ensino particular
1960 – 1998 1995 1.759.703 60,1
Fonte: MEC/INEP/SEEC 1998 2.085.120 60,7

Não se pode portanto dizer que tenha ocorrido, nestas últimas dé-
cadas, uma privatização de ensino superior.
O problema no que tange ao Governo Federal, é que este crescimento
do setor público que ocorreu a partir de 1990 se deveu à criação de diversas
instituições estaduais, ao passo que a matrícula nas IFES aumentou muito pou-
co, apenas 34,7%, apresentando, em todo o período, um crescimento inferior às
demais dependências administrativas e à média nacional, que é de 51,4%.
Não houve entretanto uma privatização do ensino superior federal
durante o Governo Fernando Henrique. O aumento da participação do setor
privado nos últimos 5 anos é muito pequeno, passando de 60,1% em 1995 a
60,7% em 1998 e não se deve a uma estagnação ou diminuição de crescimen-
to do sistema federal. De fato, o crescimento nas IFES, que foi em média de
8.681 matrículas por ano entre 1990 e 1994, subiu para uma média de 17.164
matrículas por ano entre 1995 e 1998, isto é, praticamente dobrou. O proble-
ma é que, dada a tradicional atribuição da responsabilidade pelo ensino supe-
rior ao Governo Federal, o crescimento durante esta gestão não é de molde a
sustentar a necessária ampliação do sistema.
A questão do crescimento é complexa. A estagnação da década de 80
246
DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).

só se explica como decorrência do estrangulamento do ensino médio o qual, por


sua vez, estava associado às baixas taxas de conclusão do ensino fundamental.
A relação entre número de egressos do ensino médio e número de
vagas no ensino superior é apresentada na tabela seguinte.
Verifica-se facil- 22. Relação entre
Relação Concluintes 2o Grau
mente que a oferta de vagas Ano e vagas no Ensino Superior
concluintes do Ensino
no ensino superior é bastan- Médio e vagas no Ensino
1995 1,5
Superior
te grande face à demanda 1997 1,9 Fonte: MEC/INEP/SEEC
potencial e foi ainda maior
no início desta década, quando chegou a 1,3. No Estado de São Paulo, o nú-
mero de egressos do ensino médio era inferior ao número de vagas existentes
no ensino superior. Desde a década de 80 o sistema tem operado com vagas
ociosas, tanto no setor privado como no público.
Uma pressão maior sobre as vagas só começa a ocorrer agora e é
conseqüência da desobstrução do gargalo do 1o Grau e conseqüente amplia-
ção do 2o Grau. Isso deve nos levar a concluir, inclusive, que a política segui-
da foi correta: o crescimento do 3o Grau dependia, de fato, da melhoria das
condições de fluxo nos níveis anteriores.
Se, em virtude dessas razões, a pressão pela expansão do sistema não foi
crítica no passado recente, ela começa a se fazer sentir agora e tende a aumentar.
Para atender esta demanda, o setor privado começa a se expandir com
grande vigor. Para manter o necessário equilíbrio entre setor público e privado, o
crescimento do primeiro precisa ser objeto de uma política muito definida.
Entretanto, a expansão do setor público esbarra com uma crise de
financiamento que atinge tanto o setor estadual quanto federal e a qual não
pode ser facilmente resolvida.
A crise de financiamento do setor público
É necessário reconhecer que a crise do financiamento é antiga, tem
raízes estruturais profundas e não pode ser simplesmente imputada a um
pretenso neo-liberalismo deste governo.
Simon Schwartzman já chamara atenção para esta questão em 1995
e os trabalhos que o NUPES vem realizando desde 1989 indicaram claramen-
te o esgotamento do modelo de financiamento do ensino superior público.
Os trabalhos comparativos realizados entre 1990 e 1995 indicaram
também que o mesmo problema se manifestava na Argentina, no Chile, na Co-
lômbia e no México (cf. Brunner, 1990, 1991, 1996; Schwartzman, 1988, 1991;
Balan et alii, 1993). Os países da OECD estavam vivendo esta mesma crise
desde o início dos anos 80 (cf. Cerych, 1986; Acherman & Brons, 1989).
É difícil para a comunidade universitária compreender que a forma
atual de financiamento ameaça tornar o sistema inviável. Sem uma profunda
reforma de todo o sistema e uma diferenciação das instituições, será simples-
mente impossível realizar a expansão necessária no ritmo desejável.
Embora o nível salarial dos docentes seja bastante baixo, o custo da
manutenção do sistema é excessivamente elevado, mesmo quando não se com-
247
DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).

puta o gasto com inativos. Isto aponta para uma irracionalidade na estrutura
de gastos que precisa ser corrigida.
A demonstração do custo excessivo do sistema pode ser facilmente
comprovada quando se fazem comparações internacionais. Os dados de 1994
são os mais comparáveis, porquanto as informações internacionais estão refe-
ridas a esse ano.
Como se verifica na Tabela 23, o gasto por aluno nos estabelecimen-
tos públicos federais é superior àquela observada na média nos países de OECD.
Procura-se, no Brasil, justificar este custo relativo excessivamente alto, pelo
fato da inclusão nos gastos das universidades, das despesas realizadas com os
hospitais. Entretanto, os hospitais universitários recebem recursos do SUS que
não são computados nos cálculos referentes ao financiamento efetuado pelo MEC.
Do mesmo modo, não se pode racionalizar em termos do custo da pesquisa, pois
esta conta tanto no Brasil como nos demais países considerados, com recursos
extra-orçamentários fornecidos pelas agências de fomento.
Países Gasto por Aluno
Usamos dados anteriores
Canadá 12.350 a este governo. Estimativas do MEC
Estados Unidos 11.800 para 1998 melhoram o quadro. De
Japão 11.850 acordo com esses, o custo-aluno, sem
Reino Unido 10.370
inativos, seria de R$ 8.922,00. É pre-
Brasil* 9.450
23. Gasto por Aluno em ciso reconhecer que, com um gasto-
Instituições Públicas de Holanda 8.720
Ensino Superior Diversos Suécia 7.120 aluno de quase R$ 9.000,00 há con-
Países Bélgica 6.850 dições de manter as universidades em
1994 em US$ Alemanha 6.550 níveis muito mais satisfatórios de re-
Fonte: OECD. Education França 6.020
at a Glance muneração e investimento em infra-
Itália 5.850
MEC-SPP. 1995
Espanha 3.770 estrutura do que acontece hoje. O
* Excluído o custo dos
inativos e pensionistas. Média OECD 5.900 problema localiza-se na estrutura do
sistema de financiamento, nas
distorções da política de pessoal e na irracionalidade dos orçamentos.
O gasto é também muito elevado quando se considerava o percentual
de gastos públicos nos diferentes níveis de ensino em relação ao número de
24. Matrículas versus alunos atendidos. Não há dados recentes sobre este problema, pois dependem
Percentual dos Gastos
Públicos com Educação
de pesquisas. O MEC fez este levantamento em, 1996, com dados de 1995.
no Ano de 1995 Os resultados deste trabalho revelam as distorções da estrutura de financia-
Todos os níveis de mento. Embora tenha havido alterações dos valores em dólares, a estrutura
Governo (R$ mil)
Fonte: Censo Escolar permanece a mesma e é esta que precisa ser alterada. Não o foi ainda e isto
SEEC/INEP/MEC e IPEA/ constitui uma omissão deste Governo.
DIPOS/MPO.
1
As matrículas incluem Matrículas Gastos
todas as modalidades de Níveis de Ensino No % No %
ensino. Educação Infantil 4.396.287 10,8 1.760.837 5,5
2
Distribuição dos gastos Ensino Fundamental 30.946.818 76,3 19.278.117 59,8
segundo metodologia Ensino Médio 4.434.645 10,9 2.998.398 9,3
adotada para o projeto
Ensino Superior 755.726 1,9 8.213.505 25,5
piloto WEI da OECD/
UNESCO. Todos os níveis 40.533.476 100 32.250856 100

É impossível deixar de reconhecer a iniqüidade de um sistema no


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DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).

25. Número de alunos por


qual se gasta, com 756.000 alunos do ensino superior, a metade do total que é
professor em Instituições
despendido com os 31 milhões dos estudantes do ensino fundamental. Públicas de Ensino Superior
Uma das causas fundamentais do custo excessivo reside na baixa Diversos Países – 1994
Fonte:Brasil: MEC/INEP/
relação professor-aluno e funcionário aluno. SEEC; Países da OECD:
Educação 1a a 6a – Ensino Ensino Ensino Education at a Glance/1997.
1
Dados do Brasil se referem
Países Infantil Fundamental Médio* Superior
ao ano de 1996;
Brasil 21,7 30,2 35,4 9,4 2
Dados dos países da OECD
Canadá 21,4 17,0 19,4 17,3 se referem ao ano de 1995
México 24,5 28,8 18,1 9,6 3
Número de docentes
Estados Unidos 21,5 17,2 16,5 14,4 corresponde ao número de
França 24,6 19,4 13,1 19,0 docentes-equivalente a tempo
Itália 12,3 10,6 9,9 29,1 integral, conforme a
metodologia adotada pelos
Espanha 19,1 16,4 14,5 21,3
países da OECD.
Turquia 15,5 27,9 23,7 21,5 * Ensino Médio inclui 7a e 8a
Média OECD 18,0 18,2 14,4 14,4 Séries do Ensino Fundamental.

Também neste caso, as estimativas recentes do MEC, para 1998,


não revelam uma alteração positiva, pois a relação aluno por professor, para
as IFES, é de 8,6.
Não há dados comparáveis para a relação funcionário aluno ou fun-
cionário docente, mas sabe-se que, enquanto nos demais países o número da-
queles é sempre inferior ao destes, no Brasil ocorre o contrário. A raiz do
problema parece residir no uso inadequado de pessoal e na excessiva unifica-
ção no número de vagas.
A correção deste problema estrutural reside, claramente, na expan-
são do número de alunos e na redução do número de funcionários. Mantendo-
se o número atual de docentes, diminuindo o número de funcionários e expan-
dindo a matrícula, o custo aluno se reduziria substancialmente e seria possí-
vel, inclusive, uma pequena melhoria do nível salarial.
É preciso muita coragem para promover uma reforma que reestruture
este sistema, porque a comunidade acadêmica tem se recusado a reconhecer a
natureza estrutural do problema e tende a se limitar a reivindicar um aumento
de verbas, sem propor, ela própria, outra alternativa.
Entre 1992 e 1994 a restrição do financiamento foi aliviada, no
caso das instituições Federais de Ensino Superior (IFES), por um subterfúgio:
o Ministério da Educação fazia adiantamentos da folha de pagamento que as
universidades federais aplicaram no mercado financeiro. Os recursos assim
obtidos eram incorporados como renda própria e aliviavam as pressões sobre
os orçamentos de custeio e capital. Com o fim da inflação, esta saída se esgo-
tou e a crise, já claramente visível em 1991, não só voltou a se manifestar
como foi agravada pela ampliação das aposentadorias precoces estimuladas
pela Constituição de 1988 e pelo Regime Jurídico Único. Neste sistema ab-
surdo, os professores recebiam aumento de salário por ocasião da aposenta-
doria, o que criou enormes distorções no sistema salarial.
Tentativas de reforma de ensino superior federal
A solução apresentada na gestão Goldenberg e retomada no início da
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DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).

gestão do atual Ministro consistia em rever todo o sistema de financiamento


através de um conjunto integrado de medidas que incluía: uma sub-vinculação
de recursos federais para a educação, que seria destinado ao financiamento das
IFES, garantindo o investimento público no ensino superior; um orçamento glo-
bal que, associado à autonomia administrativa, estimulasse uma racionalização
da gestão; e um sistema de distribuição de recursos através de indicadores que
contemplassem o número de alunos, a existência de pós-graduação e de pesqui-
sa, a qualificação do corpo docente, isto é, promovesse uma associação entre
custos e benefícios sociais e das próprias universidades.
Uma reforma como esta só seria viável através de emenda constitucio-
nal, a qual, apresentada pelo então Ministro Goldenberg, foi retirada, sem apreci-
ação pelo Congresso, após a sua saída do Governo. Outra, apresentada pelo Mi-
nistro Paulo Renato, em 1996, acabou também sendo retirada de pauta por impos-
sibilidade de acordo com o Congresso e por objeções que partiram da área econô-
mica, tradicionalmente contrária à vinculação de recursos do orçamento.
Novo projeto, apresentado recentemente (1999), que não depende de
emenda Constitucional, não oferece garantias suficientes quanto à continuidade e
regularidade do fluxo de recurso, além de não conseguir impor o orçamento global
e assegurar um mecanismo transparente de distribuição de fundos entre as IFES.
É impossível expandir o sistema no modelo atual, porque o custo
relativo é muito alto. Para que o sistema volte a crescer para atender a demanda
que se está acumulando é necessário não só a reforma das atuais universidades
que associam ensino e pesquisa, como criar novas modalidades de curso e novos
tipos de instituições, como fizeram todos os países desenvolvidos. Mesmo nos
Estados Unidos, a elevadíssima taxa líquida de matrículas no ensino superior se
deve ao grande número de community colleges, muitos dos quais oferecem cur-
sos de 2 anos. França e Alemanha também diferenciam seus sistemas de modo a
absorver a demanda de massa. A outra alternativa seria muito pior – a universi-
dade pública de massa, como ocorreu na Argentina e no México, com graves
prejuízos tanto para a pesquisa como para a qualidade do ensino4. Não se trata
portanto de privatizar as universidades públicas, que são essenciais para a ma-
nutenção e elevação do nível de ensino e o desenvolvimento da pesquisa. Não se
trata também, pelas mesmas razões, de massificá-las, transformando-as em es-
calões de 3o grau. Mas há que se pensar e flexibilizar o sistema para democrati-
zar o acesso ao ensino superior público.
De fato, a paralisação da ação do governo no processo de autono-
mia impediu que se realizasse a reforma necessária do sistema e agravou a
crise que vem se manifestando desde o início da década.
A avaliação do ensino superior
Se o Governo Federal pode ser criticado por não ter realizado ainda
a reforma necessária no sistema de ensino superior público, houve iniciativas
muito importantes na área da avaliação, que constitui um dos fundamentos
para a futura reforma.
O Exame Nacional de Cursos é uma delas e constitui hoje um instrumen-
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DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).

to insubstituível para monitorar a qualidade do sistema privado. Como se previa


desde o início, ela também demonstrou a melhor qualidade do ensino no setor públi-
co, o que constitui um elemento importante para a defesa da escola pública.
A Tabela 26 indica os resultados do ENC por dependência admi-
nistrativa, onde isto fica confirmado.
Federal Estadual Municipal Privada Total
Conceito No % No % No % No % No %
A 49 28,5 24 25,0 2 4,3 25 4,9 100 12,2
B 47 27,3 27 28,1 4 8,7 72 14,2 150 18,2
C 49 28,5 26 27,1 26 56,5 217 42,7 318 38,7
D 8 4,7 11 11,5 8 17,4 126 24,8 153 18,6 26. Conceitos por
Dependência Adminis-
E 19 11,0 7 7,3 6 13,0 66 13,0 98 11,9
trativa – 1997
SC 0 0,0 1 1,0 0 0,0 2 0,4 3 0,4 Fonte: MEC/INEP/DAES/
Total 172 100,0 96 100,0 46 100,0 508 100,0 822 100,0 1997.

O “Provão” foi complementado por avaliações feitas por comis-


sões de especialistas através de visitas in loco. Apesar da necessidade de cor-
reções de imperfeições do sistema, um imenso passo foi dado no sentido de se
colocar a questão da qualidade do ensino como elemento de política pública.
O aperfeiçoamento da avaliação ocorreu também na área de autoriza-
ção e reconhecimento de cursos e de credenciamento e recredenciamento de insti-
tuições, que afeta quase que exclusivamente o setor privado. O sistema de Comis-
sões de Especialistas e de consultores ad-hoc montado pela SESu, CAPES, deu
uma nova seriedade ao monitoramento da expansão do setor privado.
Não é possível, nas dimensões deste trabalho, analisar todas as políti-
cas e seus resultados. Mas dois progressos devem ser mencionados: a expansão da
pós-graduação e a elevação da qualificação acadêmica dos docentes de ensino
superior, a qual também demonstra a qualidade diferencial do setor público.
Mestrado Doutorado
Ano Cursos Alunado Titulados Cursos Alunado Titulados
1994 1.119 40.027 7.550 564 17.361 2.031
1995 1.159 43.121 8.982 616 19.492 2.497 27. Evolução da Pós-
graduação
1996 1.172 44.240 10.265 625 21.672 2.950
1994-1998
1997 1.124 46.266 11.991 674 22.330 3.635
Cursos e Alunado
1998 1.315 724 Fonte: MEC/CAPES

Total 28. Número de Funções


Grau de formação Total geral Pública Privada Docentes em Exercício,
Sem Pós-graduação 33.370 14.905 18.465 por Natureza e Depen-
Especialização 53.990 19.261 34.729 dência Administrativa,
segundo o Grau de
Mestrado 36.954 21.974 14.980
Formação
Doutorado 24.006 18.526 5.480
Brasil – 1996
Total 148.320 74.666 73.654 Fonte: MEC/INEP/SEEC

O sistema de informações estatísticas e de avaliação


Para o sistema educacional no seu conjunto é necessário reconhecer
o sucesso e a importância da política que promoveu uma imensa transforma-
ção, modernização de melhoria de qualidade das estatísticas educacionais e
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DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).

do sistema de avaliação.
Antes deste governo, o Censo Escolar e o Censo do Ensino Supe-
rior eram publicados com três ou quatro anos de atraso. Hoje são publicados
no mesmo ano em que foram realizados, o que ocorre em muito poucos países
do mundo. Além disso, não só a metodologia estatística hoje utilizada é muito
mais sofisticada e confiável, como os resultados têm sido acompanhados de
pesquisas paralelas, contratadas com pessoal das universidades, que verifi-
cam e analisam os resultados. O esforço do Governo Federal no sentido de
informatizar e qualificar o pessoal das secretarias estaduais de educação cons-
titui um dos fatores que permitiu o avanço registrado nesta área, uma vez que
todo o processo se realiza em cooperação com os Estados.
O sistema de Avaliação do Ensino Básico (SAEB) foi reformulado, e
iniciou-se a avaliação do ensino médio, além do Exame de Final de Curso (SAEB).
Formulou-se o sistema de avaliação de cursos por Comissões de Especialistas.
Foi realizado, em 1997, o primeiro Censo do Professor, o qual, for-
neceu informações preciosas sobre nível de qualificação, características só-
cio-econômicas e nível salarial dos docentes.
O progresso nesta área foi enorme e a divulgação dos resultados de
todos esses processos tem tido impactos imediatos no conjunto do sistema.

Observações finais e pessoais

No âmbito deste trabalho, uma análise mais sofisticada e detalhada é


impossível. Optei por utilizar boa parte do espaço com a apresentação de dados
objetivos, de modo a permitir ao leitor tirar suas próprias conclusões. Para os
leitores paulistas, entretanto, é necessária uma observação especial quanto a
uma omissão deste trabalho. Utilizamos as estatísticas publicadas e não o Ban-
co de Dados do Ministério. Por isso mesmo, os dados referentes ao setor públi-
co paulista estão englobados no conjunto dos estabelecimentos estaduais, o qual
é extremamente heterogêneo. Não ficou claro, portanto, que a qualidade do en-
sino superior público paulista, em todos os indicadores, é superior ao do sistema
federal, nem foi possível analisar o custo relativo deste sistema.
Sabemos que a total objetividade não é uma característica das análises
sociais. Todos os autores possuem perspectivas próprias, que orientam seu julga-
mento. O meu também não é totalmente isento. Creio, portanto, ser importante
esclarecer que fiz parte da equipe do Ministério da Educação desde o início deste
governo até o início de 1997. A partir de então, faço parte do Conselho Nacional
4
Para uma análise mais de Educação. Acredito, entretanto, que a congruência entre as análises que realizei
detalhada das questões antes deste governo, enquanto fazia parte da oposição, a minha linha de atuação
de custo e da necessi-
dade da reforma, cf. no Ministério e as considerações que aqui apresento, evidencia que houve objeti-
Durham (1993; 1998). vidade nas apreciações da evolução recente do sistema educacional brasileiro.

Recebido para publicação em outubro/1999


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DURHAM, Eunice Ribeiro. A educação no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
11(2): 231-254, out. 1999 (editado em fev. 2000).

DURHAM, Eunice Ribeiro. Education in the government of Fernando Henrique Cardoso. Tempo
Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 231-254, Oct. 1999 (edited Feb. 2000).

ABSTRACT: This work presents the evolution of the educational system during
UNITERMS:
the government of Fernando Henrique Cardoso, in the context of the education,
transformations occurred in the last decade. The data demonstrates a clear FHC government.
progress in elementary education and the article analyses the implemented
educational policy and the transformation, which occurred in the system during
this time. A special part is dedicated to College, and it is demonstrated the
existence of a crisis which affects the public institutions, mainly the Federal
ones. It also shows the headway in the process of evaluation of the system.

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