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Capítulo 13

A POLÍTICA EXTERNA DOS GOVERNOS COLLOR


(1990-1992) E ITAMAR FRANCO (1992-1994)

Ricardo Basílio Weber1

Introdução

O artigo expõe aspectos fundamentais da Política Externa


Brasileira (PEB) na sua relação com a conjuntura doméstica. Esta
dinâmica permite a compreensão das nossas relações externas, nos
períodos de 1990-1992 e de 1992-1994, correspondentes aos
governos de Fernando Collor de Mello e de Itamar Franco.
No quadriênio em tela houve relativa inflexão da PEB, pois
sofríamos do esgotamento do nosso modelo de desenvolvimento,
outrora produtor de grande crescimento econômico. No início dos
anos 1990, tentávamos emergir da chamada década perdida dos anos
1980, convivendo com baixos índices de crescimento, expressivo
endividamento externo e grandes índices de inflação. Essa
conjuntura ensejaria verdadeira reestruturação macroeconômica do
Estado brasileiro, envolvendo privatizações, saneamento das contas
públicas, abertura da economia e a criação do Plano Real, já no
governo Itamar Franco.
No entanto, a estratégia de estabilização e gestão
macroeconômica do Real já foi implementada a partir de um novo

1
Bacharel em Ciências Sociais – UERJ. Mestre em Ciência Política – UFF. Doutor
em Relações Internacionais – PUC/RJ. Pós-doutor em Ciência Política – UFF.
Doutorando em Direito, Negócios e Instituições - UFF. Foi professor de
graduação, pós-graduação e coordenador de cursos de graduação em Relações
Internacionais no IUPERJ/UCAM e no IBMEC-RJ. E-mail:
ricardobweber@gmail.com

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formato de inserção externa, refletindo a opção política pela
aderência aos postulados do Consenso de Washington, assim como
uma maior proximidade e alinhamento com os países centrais.
“A situação de extrema vulnerabilidade externa em que o
Brasil se encontrava no início da década de 90 fez com que o novo
governo percebesse os paradigmas tradicionais de nossa diplomacia,
que privilegiavam uma maior aproximação Sul-Sul (...) como os
responsáveis pelo retrocesso e pela perda de dinamismo político da
inserção internacional brasileira” (Arbilla, 1997: 60-63 APUD
VIEIRA, 2001:251). Assim, a situação de incerteza e desarticulação
política do Terceiro Mundo, com a consequente deslegitimação da
perspectiva do Sul foi enfrentada pelo governo brasileiro mediante
uma identificação estreita do país com os modelos econômicos e
políticos do mundo desenvolvido” (VIEIRA, 2001:251).
Os anos do governo Collor de Mello foram os primeiros de
uma transição de modelo econômico e de uma reformulação da nossa
inserção internacional. Anos conturbados na conjuntura política
doméstica, encerrada em sua primeira parte pelo Impeachment do
primeiro presidente eleito pelo voto popular (1992), após mais de 20
anos de regime militar. Até por conta dessa conjuntura, abriu-se a
possibilidade de que o presidente Fernando Collor (1990) exercesse
um estilo de gestão política marcado pelo personalismo e por uma
relativa desconsideração de setores da burocracia estatal
normalmente encarregados da gestão da PEB, particularmente o
Itamaraty. Fala-se em um presidencialismo personalista
(SANTANA, 2006) na literatura para conceituar o perfil de gestão
desse mandatário.

1. O Período Fernando Collor de Mello (1990-1992)

A política externa de Collor de Mello se defrontou com a


urgência de promover uma reformulação da inserção externa, a partir
da modernização da economia nacional, embalada por novas
instituições e novo processo político democrático, que vinham se
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consolidando e ganhando força desde a redemocratização (1985) e a
promulgação da nova Carta Magna (1988).
Uma característica central do processo democrático consiste
nas maiores possibilidades de participação e abertura políticos em
relação a sociedade civil, as organizações não governamentais e no
respeito aos direitos humanos. No entanto, havia também
condicionantes externos importantes, como a grande mudança da
ordem internacional bipolar que permitia antever das suas ruinas um
novo modus operandi da política internacional, cuja centralidade das
economias mais desenvolvidas na liderança das Relações
Internacionais não poderia ser ignorada. Segundo o Ministro da
Fazenda de Collor, Marcilio Marques Moreira, a adesão a um novo
modelo de inserção externa, oriunda de uma nova concepção
ideológica de desenvolvimento econômico se fez presente desde o
início:

“Em janeiro de 1990 o presidente eleito,


Fernando Collor de Mello, fez uma viagem aos
Estados Unidos. Ele foi com um programa
totalmente fechado que incluía contatos bastante
diversificados: esteve não só com o presidente
Bush e com Nicholas Brady, então secretário do
Tesouro, mas também com Michel Camdessus,
diretor-gerente do Fundo Monetário e com
Enrique Iglesias, presidente do BID (...). Os
temas foram aqueles que iriam compor a pauta
do que seria o discurso de posse: abertura
comercial, abertura da economia, negociação da
dívida externa. (...) O presidente Collor tinha
plena consciência do receituário das agências
multilaterais para a América Latina que ficou
conhecido como Consenso de Washington”
(MOREIRA, 2001, p. 225-31).

Sob esses condicionantes, a nova Constituição brasileira


(CRFB, 1988) já trazia, no seu artigo 4º, princípios que deveriam ser
observados na condução das Relações Internacionais do Brasil,

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todos refletindo em maior ou menor grau os compromissos que
caberia ao novo mandatário traduzir em prática política. Ressalte-se
a relevância do parágrafo único desse artigo, orientando o rumo da
PEB para a América Latina, ao asseverar: “a República Federativa
do Brasil buscara a integração econômica, política, social e cultural
dos povos da América Latina, visando a formação de uma
comunidade latino-americana de nações” (CRFB, 1988).
Nesse sentido, o governo Collor de Mello contribuiu muito
para a integração econômica regional, despendendo esforços de
cooperação com a América do Sul ao celebrar o acordo sobre gás
natural com a Bolívia (1991), pelo qual o Brasil construiria um
gasoduto e se comprometeria com a aquisição do gás boliviano2.
O governo levou adiante com prioridade as negociações
entabuladas pelos governos Sarney e Alfonsín, em meados dos anos
1980, resultando na celebração do Tratado de Assunção (1991) entre
Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina, originando o Mercado
Comum do Sul (MERCOSUL). Este processo de integração entre as
economias da América Latina buscava auferir ganhos da
competitividade dessas economias, explorando sua
complementaridade, frente ao novo cenário dos mercados
globalizados e ultracompetitivos.
A criação de blocos econômicos como o MERCOSUL
atendia aos interesses do Consenso de Washington, por atribuir ao
livre comercio a capacidade de conduzir os países ao
desenvolvimento econômico. Este deveria ser atingido primeiro,
como requisito para o desenvolvimento social. No entanto, para
ambos ocorrerem era necessária a adesão dos países envolvidos nos
processos de integração as instituições recomendadas no modelo
consensuado: capitalismo de livre mercado, operado por países com

2
O Gasbol saiu do papel em 1991, com a Carta de Intenção sobre o Processo de
Integração Energética, entre Petrobras, YfPB (estatal boliviana de petróleo) e o
Ministério de Energia e Hidrocarburetos, da Bolívia.

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regime político democrático liberal. E o que nos ensina Zarpelão
(2013):

“O Consenso de Washington possibilitou a


quebra das reservas de mercado nas economias
sul-americanas, causando uma euforia sem
precedentes do mercado. A expectativa era a de
que em longo prazo, os resultados seriam
bastante produtivos, mas para tanto, seria
necessário se passar por uma transição dolorosa
com desemprego, combate à inflação e recessão.
O país da América do Sul que ousasse se opor ao
Consenso de Washington seria chamado de
retrogrado. Estaria se opondo ao sentido
inevitável da história, ou seja, a democracia e ao
capitalismo” (ZARPELAO, 2013: 87).

Estrategicamente, caberia a política exterior consistir no


instrumento principal de estímulo a competitividade econômica,
otimizando o posicionamento do país em acesso a mercados, na
obtenção de linhas de crédito e no desenvolvimento da ciência e
tecnologia.
Desde o discurso de posse no Congresso Nacional (1990)
(DISCURSO DE POSSE, 2022), passando pelos discursos na
abertura da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas
(ONU) nos anos de 1990 e 1991, o presidente Collor se referiu a um
Brasil aberto ao mundo. Essa ideia se traduz na abertura ao mundo
como se vislumbrava aos olhos de muitos analistas dos anos 1990:
sempre em aliança com os países centrais, em prol do livre mercado
e na defesa da democracia, exemplarmente ilustrada em nossa
política externa pelas críticas dirigidas ao golpe de Estado de
Fujimori, no Peru (1992), ou aquela endereçada a tentativa de golpe
de Hugo Chavez contra Carlos Andres Peres, na Venezuela (1992)
(LAFER, 2018).
Essa nova forma de inserção externa demandava a alteração
do perfil do Estado brasileiro na economia, através da

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implementação de reformas econômicas neoliberais, que deveriam
trazer o Brasil, progressivamente, a condição de livre mercado.
Dentre essas reformas constavam a abertura comercial, a
liberalização e a desregulação dos investimentos, a repactuação da
dívida externa, assim como a privatização de muitas estatais.
O Brasil avançou nas tratativas sobre a propriedade
intelectual, que desgastava o seu relacionamento com os EUA no
âmbito do comercio internacional, reduzindo também suas tarifas
medias de importação, buscando construir sua reputação de apoio
aos livres mercados, dedicando-se com afinco as negociações da
Rodada do Uruguai do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (cuja
sigla em inglês é GATT), que perdurou de 1986 a 1994, a despeito
de todas as dificuldades decorrentes da sensibilidade do tema da
agricultura naquelas negociações (SANTANA, 2006; LAFER,
2018). Essa postura do Brasil de aparar as arestas, quando surgem
divergências com Washington, reflete o princípio da Ação Externa
Cooperativa, enquanto um dos princípios que caracterizam a
política externa do período Collor, segundo Cervo (2008).
A agenda de reformas, entretanto, foi atravessada pela
deflagração de um dos maiores escândalos da política nacional até
então, resultando da interrupção do governo do presidente Collor de
Mello, com a instauração do processo de impeachment. Na política
externa, a mudança veio por meio da substituição do chanceler
Francisco Rezek por Celso Lafer (1991). Ressalte-se que este
acadêmico, de fora da casa de Rio Branco, cultivava alinhamento
com os quadros diplomáticos no nosso serviço exterior, inobstante a
críticas pontuais ao estilo da instituição. Assim, sinalizava operar a
partir de uma dinâmica entre inovação e tradição, como vetor da
buscada sinergia entre as agendas doméstica e internacional.
Essa perspectiva de adequação dos princípios tradicionais da
PEB ao novo formato de inserção internacional permitiria a síntese
das características da atuação diplomática no período, a partir da
consagração de certos princípios, apoiados na dialética tradição vs.
inovação.
228
Segundo Cervo (2008: 26-31), um outro princípio seriam as
Parcerias Estratégicas, que representavam uma meta fundante da
nova política externa. Sobressai-se, aqui, a ênfase colocada sobre o
avanço do MERCOSUL, juntamente a maior proximidade cultivada
com a América Latina. Outro exemplo consiste na cooperação
energética com a Bolívia, para a construção do Gasbol.
Um princípio, tripartite, foi a combinação entre
Autodeterminação, Não intervenção e Solução Pacífica de
Controvérsias (CERVO, 2008). Princípios tradicionais da PEB, eles
não se alteraram, o que restou evidente pela postura brasileira diante
da invasão do Kuwait pelos Estados Unidos (EUA), após a guerra
entre esse último país e o Iraque (1990). Na ocasião, o Brasil
restringiu seu apoio a intervenções realizadas exclusivamente
mediante mandato da ONU, exigindo a retirada das tropas, uma vez
conquistado o objetivo da missão. Além disso, o país colaborou com
a Conferência de Paz do Oriente Médio de Madrid (1991)3, apoiando
a resolução da Assembleia Geral da ONU que revogou resolução
anterior de 1975, que identificava o sionismo a uma forma de
racismo (LAFER, 2018). Em ambos os casos, o princípio da
Independência de inserção internacional (CERVO, 2008), que
valoriza a autonomia da política externa também se manifestou
concretamente.
Para Cervo (2008), o Jurisdicismo consiste no princípio
referente ao respeito aos compromissos e tratados internacionais,
que permaneceu como base fundamental da PEB. Ilustrativa foi a
adesão do Brasil aos pactos de Direitos Civis e Políticos (1966) e ao
Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU (1966),
assim como o seu ingresso na Convenção Americana dos Direitos
Humanos, de 1969 (LAFER, 2018).

3
A Conferência de Madrid foi uma tentativa de um novo processo de paz, que
pusesse fim ao conflito árabe-israelense. Idealizada pela Espanha, em conjunto
com EUA e URSS, celebrada em Madrid de 30.10 – 01.11 de 1991.

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Já o multilateralismo normativo (CERVO, 2008) significa
o engajamento multilateral em prol da construção normativa e da
centralidade da obediência as normas internacionais. Evidências dele
figuram na prioridade da normatização de uma nova área das
Relações Internacionais, como no caso da Conferência Rio-92. O
compromisso do Brasil com as negociações da Rodada do Uruguai
do GATT (1986-1994) também acentua esse princípio.
Outro exemplo consistiu na parceria com a Argentina na
criação do sistema de contabilidade e controle de materiais
nucleares, levando a criação da Agência Brasileira Argentina de
Controle de Materiais Nucleares (ABACC4), bem como ao Acordo
Quadripartite para aplicação de salvaguardas nucleares 5 , firmado
juntamente a Argentina, ABACC e a Agência Internacional de
Energia Atômica (AIEA). Outra iniciativa foi o Rose Garden
Agreement 6 , celebrado entre MERCOSUL e EUA. No que diz
respeito a não proliferação, o Brasil apoiou a revisão do Tratado de
Tlatelolco7, assim como aderiu ao compromisso de Mendoza8, em
parceria com Chile e Argentina, que vedava uso, produção ou
transferências de armas químicas e biológicas.
O Realismo e pragmatismo (CERVO, 2008) alude a prática
tradicional da nossa diplomacia de tirar proveito das cisões e

4
A Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais
Nucleares foi criada em 18 de julho de 1991 para o uso exclusivamente pacífico
da energia nuclear.
5
Acordo entre a República Federativa do Brasil, a República Argentina, a Agência
brasileiro-argentina de contabilidade e controle de materiais nucleares (ABACC)
e a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) para aplicação de
salvaguardas.
6
O Rose Garden Agreement (1991) visava incrementar o fluxo de comércio e de
investimento entre os países do Mercosul e os Estados Unidos.
7
Tratado para a Proscrição das Armas Nucleares na América Latina e no Caribe,
concluído na Cidade do México, em 14.02.1967, assinado pelo Brasil em
09.05.1967.
8
Declaração Conjunta sobre a Proibição Completa de Armas Químicas e
Biológicas, setembro de 1991.

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desalinhamentos nas relações internacionais, fortalecendo, nesse
processo, seu poder de barganha.
Já o Desenvolvimento como vetor (CERVO, 2008), é
ilustrado pela potência e concretização da atração de investimentos
externos pelo Brasil. Nesse sentido, as reformas econômicas e o
compromisso do país com os mercados externos renderam frutos.
Conforme nos ensina Nascimento (2016):

“Em 1991 (...) A captação externa atingiu US$


11,6 bilhões (representando mais que o dobro do
ano anterior), com crescente participação dos
títulos de dívida direta e dos investimentos em
bolsas de valores. No período 1987-90, o
mercado de capitais recebeu, em média, 34% do
total dos investimentos em moeda, passando
para 55% em 1991 e 74% em 1992”
(NASCIMENTO, 2016:17).

Por fim, a Cordialidade (CERVO, 2008) no relacionamento


regional ou com países lindeiros, que aparece pela postura amistosa
e proatividade no estabelecimento de compromissos com vistas a
promover a cooperação técnica e comercial. Nesse caso, o
MERCOSUL e o Gasoduto Brasil-Bolívia (GASBOL) são exemplos
eloquentes.

1.1. A Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e


Desenvolvimento

A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e


Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro (1992) foi um marco
na nossa história diplomática. A primeira Conferência da ONU sobre
temas globais após o fim da Guerra Fria foi ilustrativa de uma nova
era na política internacional, plena de novas possibilidades de
cooperação. Afinal, os anos 1990 eram interpretados por alguns
(FUKUYAMA, 1992) como o advento da unipolaridade, sob a

231
liderança inconteste e definitiva dos grandes mercados capitalistas
ocidentais, particularmente dos EUA.
Grosso modo, a Conferência apaziguou a oposição
tradicional entre desenvolvimento econômico e preservação
ambiental, por meio do conceito de Desenvolvimento Sustentável.
Conceito salutar para a posição do Brasil na temática ambiental, pois
a responsabilidade pela conservação dos recursos ambientais recairia
sobre todos os países da comunidade internacional, devido a sua
nova natureza de bem indivisível. Conforme nos ensina Lafer
(2017):

“Em síntese, meio-ambiente sob a égide


heurística do conceito de desenvolvimento
sustentável consagrado na Rio-92 - que insere os
custos da sustentabilidade do meio ambiente nos
processos decisórios públicos e privados - é
indivisível. Não é equacionável no âmbito
territorial das soberanias. É transfronteiras.
Afeta a todos” (LAFER, 2017: A2).

Na ocasião, o Itamaraty deu mostras da sua expertise técnica,


retornando ao seu papel central na coordenação da política externa
brasileira. Segundo nosso chanceler, o Brasil passou a condição de
player expressivo, mediador das discussões entre grandes nações
(LAFER, 2018). Inaugurava-se nova era da PEB, tornando-nos
parceiros do mundo desenvolvido, entrementes preservando nossa
soberania decisória.
Outro legado consistiu na permeabilidade as demandas da
nascente sociedade civil global, que se organizava. Expressão dela
foi o Fórum Global, viabilizando a participação de ONGs,
paralelamente a Conferência intergovernamental. Demonstrava-se a
relevância do tema perante as populações do globo, que vocalizavam
preocupações acerca do futuro do planeta. Simultaneamente, o Brasil
emergia como pais que sediava o evento, ilustrando sua preocupação

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com essa agenda, enquanto Estado que ostenta a maior diversidade
biológica do planeta9.
Ficava caracterizada a transição da tradicional postura
defensiva brasileira para uma outra, tornada autônoma e
participativa. Como, em parte, conquista da PEB, restou o legado
dos principais documentos produzidos: a Declaração do Rio sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento e a Agenda 21. A Declaração
consiste no documento mais importante, trazendo os princípios
consagrados pela Conferência; enquanto a Agenda 21 consiste num
compromisso de concretização a posteriori, contendo programas de
ação a serem implementados. Foram também criadas a Convenção
sobre Diversidade Biológica, a Convenção Quadro sobre Mudanças
do Clima e a Declaração de Princípios sobre Florestas.

2. O período Itamar Franco (1992-1994)

Ao término da Presidência Collor, sua ação direta voltada


para um reposicionamento da política externa brasileira foi
interrompida. Inobstante, princípios e opções políticas foram
incorporados a nossa diplomacia, apresentando ressonância e
influência posteriores.
A presidência Itamar Franco trouxe o país de volta à
estabilidade política, após o impeachment. Não houve grandes
rupturas ou controvérsias, consistindo seu principal legado na
estabilização da economia pelo Plano Real. Apesar disso, o legado
fundamental foi político, pois a democracia brasileira precisava de
uma solução institucional que encerrasse o mandato presidencial,
conforme previsto na Constituição de 1988.
AMORIN (2011) observa que, não obstante a brevidade da
presidência Itamar Franco, muitos compromissos relevantes

9
O Brasil é o país com a maior biodiversidade: são mais de 116.000 espécies
animais e mais de 46.000 espécies vegetais, distribuídas em seis biomas terrestres
e três ecossistemas marinhos.

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ocorreram no seu governo. Ressalte-se a ratificação do Acordo de
Marraqueche, encerrando as longas negociações da Rodada do
Uruguai do GATT (1986-1994); o estabelecimento do Protocolo de
Ouro Preto, adensando o tecido institucional do MERCOSUL,
incluindo as negociações dobre a Tarifa Externa Comum (TEC); e o
início das negociações da Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa (CPLP), significando a retomada da política africana
pelo Brasil (AMORIN, 2011).
Sob Itamar, iniciamos parceria com a Venezuela,
compensando nossa predileção pela região do Prata. Além disso, o
Brasil se absteve em desfavor do interesse estadunidense na votação
de duas resoluções do Conselho de Segurança da ONU, sobre o
Haiti, preservando a independência de posicionamento do Brasil, em
favor do princípio da não intervenção.
O principal desafio da PEB consistiu em superar as
desconfianças do mercado quanto ao perfil nacionalista de Itamar. O
risco seria a quebra da confiança do mercado, em relação a
manutenção das mudanças na economia e na política externa
implementadas pelo governo anterior. No entanto, no momento
dramático da transição, não ocorreu alteração fundamental da
política externa. Segundo Hirst e Pinheiro (1995:06), observou-se:
“...uma readequação de estratégias vis-à-vis da comunidade
internacional, sem alteração significativa nos objetivos finais a
serem contemplados”.
Buscando manter compromissos e o rumo das mudanças, o
governo se notabilizou pela defesa do multilateralismo nas agendas
econômica e política internacionais, através de posturas especificas,
como a promoção da democratização do processo decisório: das
instituições de Bretton Woods, do regime de comercio do GATT e
da estrutura de governança da ONU. Outras políticas de destaque do
Brasil ocorreram nos temas de Direitos Humanos, Desarmamento e
Meio Ambiente (SANTANA, 2006). Dignas de nota foram a
participação em coalizões que defendiam a reforma das organizações
existentes, no sentido de maior inclusão e participação políticas,
234
como nos casos do Grupo de Cairns, do Grupo dos 77 (G-77) ou do
Grupo do Rio.
Uma marca desse governo consistiu na ênfase colocada nas
relações do Brasil com a América Latina, principalmente com a
América do Sul. O que estava em jogo pode ser compreendido pela
percepção de um dos seus protagonistas. Segundo o chanceler Celso
Amorim (2011), a questão mais candente de política externa desse
governo consistiu no processo de negociação em paralelo da TEC do
MERCOSUL, face as tentativas de iniciar negociações com os EUA,
em seguida ao acordo bilateral celebrado com o Mexico, que
terminaria conduzindo ao NAFTA.
Afinal, foi na conjuntura de ambas as negociações que Itamar
Franco apresentou a proposta de uma área de livre comercio de toda
a América do Sul, a ALCSA, contrapondo-se, informalmente, a
própria ALCA. Para Amorim (2011), a principal questão consistia
em manter a unidade do MERCOSUL ainda em formação, tendo,
para isso, que segurar o ímpeto dos argentinos Carlos Menem e
Domingo Cavallo, envoltos em negociações bilaterais com
Washington. Nesse sentido, a mera abertura formal daquelas
negociações poderia sepultar as perspectivas de construção do
MERCOSUL tal qual conhecemos. O desenlace desse dilema
ocorreu por iniciativa do presidente Itamar Franco, que:

escreveu aos seus colegas, afirmando que o


Brasil não se opunha em princípio a um acordo
com os EUA, mas, que era fundamental que uma
eventual negociação fosse conduzida de forma
conjunta. Só assim evitaríamos que o
MERCOSUL, que mal nascera, fosse diluído em
programas de integração (ou melhor dito, de
liberalização comercial) de alcance hemisférico.
(AMORIN, 2011:227).

A ênfase do Brasil sobre o processo de integração regional


do MERCOSUL, entretanto jamais consistiu em a política de

235
aproximação com os países centrais, como EUA, UE e Japão.
Simultaneamente, o Brasil buscava estreitar laços também com
grandes players futuros, como Índia, China e Rússia.
O principal objetivo da política externa do governo Itamar
Franco consistiu em construir e disseminar a nova identidade do
Brasil, como pais em desenvolvimento (SANTANA, 2006). Nesse
sentido, o país passaria a manifestar na sua atuação diplomática os
consensos ou preferências da sociedade civil, acerca da estabilidade
da nossa recentemente reinaugurada democracia e do processo
político em curso em nossas instituições, que deveriam promover o
desenvolvimento com justiça social.
O chanceler Celso Amorim (1993-1995) assumiu a pasta com
a saída de Fernando Henrique Cardoso (1992-1993). Na gestão
Cardoso, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) esteve voltado
prioritariamente para as negociações e avanço do engajamento da
sociedade civil, dos empresários e do mundo sindical, em torno do
processo de integração econômica do MERCOSUL, ao passo que o
próprio chanceler se envolvia bastante com o avanço da agenda do
processo interno das reformas política e econômica pelas quais
passava o Brasil.
A transição com Celso Amorin na chancelaria significou o
retorno ao tema do desenvolvimento na PEB. Pitorescamente, isso
ocorreu pela evocação de um passado glorioso (SANTANA, 2006).
Esse tema reapareceu com frequência nos comunicados do
Itamaraty, a partir da chamada diplomacia dos três elementos
(desenvolvimento, desarmamento e democracia). Claramente,
tratava-se aqui de uma clara referência a também chamada
diplomacia dos três elementos (desenvolvimento, desarmamento e
direitos humanos), celebrizada pela gestão de Araújo Castro (1963-
1964), a frente do MRE.

236
Considerações finais

O período 1990-1994 consistiu em momento singular e


bastante significativo da PEB, pois após longos anos de ditadura
militar, um governo eleito pelo voto popular teve que se haver com
o aggiornamento do Estado brasileiro, que precisava responder a
mudanças fundamentais de conjuntura: da ordem internacional, após
a queda do muro de Berlim; do modelo macroeconômico de
desenvolvimento prevalecente, que restava esgotado e da inserção
internacional do pais, que necessitava se adequar as mudanças da
ordem internacional e da nova economia de matriz neoliberal, cujas
reformas internas deveriam ser capazes de implementar.
Diante da complexidade desse quadro, o presente capítulo
buscou em poucas páginas selecionar alguns pontos principais para
embasar a reflexão dos leitores quanto ao que estava em jogo e qual
a avaliação das mudanças trazidas por esse quadriênio. Como vimos,
houve rupturas, mas também continuidades. Não resta dúvida,
entretanto, que muito da nossa política externa atual se originou do
jogo ganho ou perdido naquele tabuleiro. Grosso modo, poderíamos
questionar em que medida falamos de um ponto de partida para o
futuro ou, alternativamente, de um momento de ruptura mais ou
menos fundamental com o passado. Esperamos que o presente
capítulo embase a reflexão e inspire o debate.

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