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globalizacao-melhor-artigo-de-dani-rodrik

Das cinzas da hiperglobalização pode surgir


uma globalização melhor
Dani Rodrik

“Nosso mundo do futuro não tem motivo para ser um em que a geopolítica se imponha a tudo e
os países (ou blocos regionais) reduzam suas interações econômicas. Se esse cenário distópico e
tornar realidade, não será por causa de forças sistêmicas fora de nosso controle. Assim como a
hiperglobalização, será porque não soubemos tomar as decisões corretas”, escreve Dani
Rodrik, economista turco e professor da Fundação Ford de Economia Política Internacional,
na Escola de Governo John F. Kennedy, da Universidade Harvard, em artigo publicado pelo
grupo editorial espanhol Política Exterior, 19-05-2022. A tradução é do Cepat.

Hoje, há consenso de que a era de hiperglobalização posterior aos anos 1990 chegou a
seu fim. A pandemia de Covid-19 e a guerra da Rússia contra a Ucrânia relegaram
os mercados globais a um nível secundário e, na melhor das hipóteses, a um papel de
apoio aos objetivos nacionais, em particular a saúde pública e a segurança nacional. Mas
todo o debate em torno da desglobalização não deveria nos cegar para a possibilidade
de que a crise atual possa, de fato, produzir uma globalização melhor.

A verdade é que a hiperglobalização já estava em retrocesso desde a crise financeira


global de 2007-08. A participação do comércio no PIB mundial começou a cair após
2007, quando a proporção das exportações em relação ao PIB da China caiu notáveis
16 pontos percentuais. As cadeias de valor globais pararam de se expandir. Os fluxos
internacionais de capital nunca recuperaram seus níveis anteriores a 2007. E nas
economias avançadas, os populistas abertamente hostis à globalização se tornaram
muito mais influentes.

A hiperglobalização começou a se fragmentar devido às suas próprias contradições. A


primeira foi a tensão entre os ganhos derivados da especialização e os derivados
da diversificação produtiva. O princípio da vantagem competitiva sustentava que os
países deveriam se especializar naquilo que produziam bem. Mas uma longa linha de
pensamento desenvolvimentista sugeria que, em vez disso, os governos deveriam
estimular suas economias a produzir o que os países mais ricos produziam. O resultado
foi um conflito entre as políticas intervencionistas dos países mais bem-sucedidos,
com destaque para a China, e os princípios “liberais” consagrados no sistema de
comércio mundial.
A segunda tensão é que a hiperglobalização exacerbou os problemas de distribuição
em muitas economias. O reverso inevitável dos ganhos derivados do comércio foi
a redistribuição da renda dos perdedores para os vencedores. E, conforme
a globalização se aprofundava, essa redistribuição crescia cada vez mais em relação aos
ganhos líquidos. Economistas e tecnocratas que menosprezavam a lógica central de suas
disciplinas acabaram minando a confiança pública nelas.

Em terceiro lugar, a hiperglobalização afetou negativamente a prestação de contas dos


servidores públicos a seus eleitores. Os chamados a reformular as regras
da globalização receberam como resposta que ela é imutável e irresistível, “o
equivalente a uma força da natureza, como o vento ou a água”, nas palavras do
presidente estadunidense Bill Clinton. Aos que questionavam o sistema então
predominante, o primeiro-ministro britânico Tony Blair respondia que “seria
equivalente a debater se o outono vem depois do verão”.

Quarto, a lógica de soma zero da segurança nacional e da concorrência geopolítica


demonstrou ser incompatível com a lógica de soma positiva da cooperação econômica
internacional. Com a ascensão da China como rival geopolítica dos Estados Unidos e a
invasão russa da Ucrânia, a concorrência estratégica se reafirmou sobre a economia.

Após o colapso da hiperglobalização, há uma ampla gama de cenários possíveis para a


economia mundial. O pior, que lembra os anos 1930, seria a retirada de países (ou
grupos de países) à autarquia. Uma possibilidade menos ruim, mas ainda pouco
desejável, é que a supremacia da geopolítica faça com que as guerras comerciais e
as sanções econômicas se tornem traços permanentes do comércio e
as finanças internacionais. O primeiro cenário parece improvável – a economia
mundial está mais interdependente do que nunca e os custos econômicos seriam
imensos –, mas não se pode descartar completamente o segundo.

No entanto, também é possível vislumbrar um bom cenário em que alcancemos


um equilíbrio melhor entre as prerrogativas do Estado-nação e as precondições de
uma economia aberta. Um reequilíbrio assim poderia possibilitar uma prosperidade
inclusiva dentro dos países, e paz e segurança no exterior.

O primeiro passo nessa direção é que as autoridades reparem os danos infligidos às


economias e sociedades pela hiperglobalização, juntamente com outras políticas de
priorização do mercado. Para isso, será necessário ressuscitar o espírito da
era Bretton Woods, quando a economia global servia aos objetivos econômicos e
sociais das nações, não o contrário. Sob a hiperglobalização, as autoridades inverteram
essa lógica, tornando a economia global o fim e as sociedades nacionais o meio. A
integração internacional levou, então, à desintegração interna.
Alguns poderiam ficar preocupados que a ênfase nos objetivos socioeconômicos
internos afete negativamente a abertura econômica. Na realidade, a prosperidade
comum torna as sociedades mais seguras e mais propensas a promover a abertura ao
mundo. Uma lição fundamental da teoria econômica é que o comércio beneficia um
país como um todo, mas apenas se paralelamente ocorre um processo distributivo. Ser
abertos beneficia aos países bem administrados e ordenados. Essa é também a lição do
sistema de Bretton Woods, sob o qual aumentaram significativamente o comércio e o
investimento de longo prazo.

Uma segunda precondição importante para o bom cenário é que os países não
transformem sua busca legítima de segurança nacional em agressão a outros. É
possível que a Rússia tenha tido preocupações razoáveis acerca da ampliação da OTAN,
mas sua guerra contra a Ucrânia é uma resposta completamente desproporcional, que
possivelmente a deixe menos segura e menos próspera a longo prazo.

Para as grandes potências, e os Estados Unidos em particular, isso significa reconhecer a


multipolaridade e abandonar sua busca pela supremacia mundial. Os Estados Unidos
tendem a ver seu domínio em assuntos internacionais como o estado natural das coisas.
Deste ponto de vista, os avanços tecnológicos e econômicos da China constituem uma
ameaça óbvia e inerente, motivo pelo qual a relação bilateral fica reduzida a um jogo
de soma zero.

Deixando de lado a questão de se os Estados Unidos podem realmente evitar a ascensão


relativa da China, essa maneira de ver as coisas é tanto perigosa como improdutiva. Por
um lado, exacerba o dilema da segurança: é provável que as medidas estadunidenses
destinadas a minar empresas chinesas como a Huawei façam com que a China se sinta
ameaçada e responda de maneira que confirmem os temores estadunidenses em relação
ao expansionismo chinês. Uma perspectiva de soma zero como essa também dificulta os
ganhos comuns da cooperação em áreas como as mudanças climáticas e
a saúde pública global, ao mesmo tempo em que assume que necessariamente
competição haverá concorrência em muitos outros âmbitos.

Em suma, nosso mundo do futuro não tem motivo para ser um em que a geopolítica se
imponha a tudo e os países (ou blocos regionais) reduzam suas interações econômicas.
Se esse cenário distópico se tornar realidade, não será por causa de forças sistêmicas
fora de nosso controle. Assim como a hiperglobalização, será porque não soubemos
tomar as decisões corretas.
Por que a globalização está ameaçada
Pandemia e guerra afetaram as cadeias globais de abastecimento, mas causas profundas são
outras. Entusiasmo empresarial que marcou o início do neoliberalismo parece esgotado. Vêm ai
uma época de concorrência, disputas e risco de guerras

OUTRASMÍDIAS

GEOPOLÍTICA & GUERRA


Por A Terra é Redonda

Publicado 04/05/2022 às 19:30

Atualizado 04/05/2022 às 19:31

Por Michael Roberts, no The next recession, publicado no A Terra é


Redonda (tradução: Eleutério F. S. Prado)

Além da inflação e da guerra, o que atrai o pensamento econômico atual é o aparente


fracasso do que a teoria econômica mainstream aprecia chamar de “globalização”. O que
ela quer dizer com esse termo? Refere-se à expansão livre do comércio e do fluxo de
capital através das fronteiras. Em 2000, o FMI identificou quatro aspectos básicos da
globalização: comércio e transações, movimentos de capitais e investimentos, migração
e circulação de pessoas e disseminação do conhecimento.

Todos esses componentes aparentemente se expandiram a partir do início da década de


1980 como parte da reversão neoliberal das políticas nacionais de macrogestão
anteriormente seguidas. Ditas keynesianos, elas eram adotadas por governos no
ambiente da ordem econômica mundial de Bretton Woods (isto é, sob a hegemonia dos
EUA). A nova regra agora era quebrar as barreiras tarifárias, cotas e outras restrições
comerciais, permitindo assim que as multinacionais negociassem “livremente” e
transferissem os seus investimentos no exterior, ou seja, para áreas de mão de obra
barata, com a finalidade de aumentar a lucratividade. Isso levaria à expansão global e ao
desenvolvimento harmonioso das forças produtivas e ao crescimento dos recursos do
mundo – pelo menos era o que se afirmava então.

Não havia nada de novo nesse fenômeno. Desde que o capitalismo se tornou o modo de
produção dominante nas principais economias, já em meados do século XIX, houve
períodos de aumento do comércio internacional e de exportação crescente de capital.
Em 1848, os autores do Manifesto Comunista notaram o aumento no nível de
interdependência nacional trazido pelo capitalismo e previram o caráter universal da
sociedade mundial moderna: “A burguesia, por meio da exploração do mercado mundial,
deu um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para grande
desgosto dos reacionários, ela tirou de debaixo dos pés da indústria o terreno nacional
em que estava assentada. Todas as antigas indústrias nacionais estabelecidas foram
destruídas ou estão sendo destruídas diariamente…. No lugar da antiga reclusão e
autossuficiência local e nacional, temos relações em todas as direções, interdependência
universal das nações”.

De fato, é possível distinguir períodos anteriores de “globalização”. Houve o período de


1850 a 1870 em que se viu o comércio e os investimentos se expandirem
acentuadamente na Europa e nos EUA (após a guerra civil), sob os auspícios da
hegemonia britânica. A depressão das décadas de 1870 a 1890 viu o fim dessa onda. Mas
outra onda de expansão global ocorreu na década de 1890 até a Primeira Guerra
Mundial, quando novas potências capitalistas usurparam a hegemonia britânica.
Nenhum poder então conseguiu estabelecer uma hegemonia de tal modo que essa onda
de globalização foi interrompida pela guerra mundial. A interrupção da globalização
continuou e se manteve desde a Grande Depressão da década de 1930 até a Segunda
Guerra Mundial.

Em seguida, houve uma nova onda de expansão global sob a hegemonia dos EUA, sob a
égide de Bretton Woods. Ela durou até a crise de lucratividade da década de 1970,
momento em que ocorreu quedas e retrações. De meados da década de 1980 até a
década de 1990 houve a maior expansão do comércio e do investimento transfronteiriço
na história do capitalismo. Os capitalismos americano e europeu abriram ainda mais as
suas asas, mas a China foi capaz de entrar nos mercados globais de manufatura e de
comércio.

De fato, de acordo com a Organização Mundial do Comércio, um indicador-chave da


“globalização”, a proporção das exportações mundiais em relação ao PIB mundial, ficou
praticamente inalterado entre 1870 e a Primeira Guerra Mundial; caiu depois quase
40% no período entre guerras; aumentou 50% de 1950-70; depois estagnou até a
década de 1990, decolando até a Grande Recessão de 2009; depois disso, na Longa
Depressão da década de 2010, esse indicador caiu cerca de 12%, um declínio não visto
desde a década de 1970.
A última onda de globalização começou a diminuir pouco antes do início dos anos 2000,
quando a lucratividade global passou a recuar, tal como mostra a figura abaixo.

Penn World Table 10.0,


cálculos do autor

Na década de 1990, o comércio mundial cresceu 6,2% ao ano, o investimento


transfronteiriço (IDE) aumentou 15,3% ao ano e o PIB global se elevou em 3,8% ao ano.
Mas, na longa depressão da década de 2010, o comércio cresceu apenas 2,7% ao ano,
mais lento do que o PIB em 3,1%, enquanto o IDE aumentou apenas 0,8% ao ano. Ora, é
isso o que mostra a figura em sequência.
Os fluxos de investimento transfronteiriços em ativos produtivos físicos também
pararam de crescer na década de 2010, enquanto o comércio global por meio das
“cadeia de valor” (ou seja, por meio de transferências internas de empresas
multinacionais) também se estabilizou.

Fonte: Organização Mundial


do Comércio

É claro que a crítica da economia política poderia ter previsto esse resultado da
globalização. A teoria da vantagem comparativa de David Ricardo sempre foi
comprovadamente falsa. Sob o capitalismo, com mercados sem restrições, as economias
mais eficientes tomarão parte do comércio das menos eficientes. Assim, os
desequilíbrios comerciais e de capital não tendem ao equilíbrio ao longo do tempo. Pelo
contrário, os países costumam ter enormes déficits e superávits comerciais por longos
períodos; experimentam crises cambiais recorrentes; os trabalhadores de um país
perdem os seus empregos dada a concorrência do exterior; novos setores mais
competitivos não costumam substituir os decadentes (ver Carchedi, Gugliermo –
Frontiers of Political Economy).

Não são as vantagens comparativas ou os custos que impulsionam os ganhos comerciais,


mas os custos absolutos (em outras palavras, a lucratividade relativa). Se os custos
trabalhistas chineses forem muito menores do que os custos trabalhistas das empresas
americanas, a China ganhará participação de mercado, mesmo que os Estados Unidos
tenham a chamada “vantagem comparativa” em design ou inovação. O que realmente
decide o crescimento de uma economia é o nível de produtividade e o custo da força de
trabalho.

Ao contrário da visão do mainstream em Economia, o capitalismo não pode se expandir


por meio de um desenvolvimento harmonioso e uniforme, estendendo-se para todo o
mundo. Pelo contrário, o capitalismo é um sistema atravessado por contradições
geradas pela lei do valor e pela motivação do lucro. Uma das contradições do capitalismo
é a lei do desenvolvimento desigual – algumas economias nacionais concorrentes se
saem melhor que outras. E quando as coisas ficam difíceis, os mais fortes começam a
comer os mais fracos. Como Marx disse nas Teorias de mais-valia: “os capitalistas são
como irmãos hostis que dividem entre si o saque do trabalho das pessoas que
trabalham”. Às vezes, esses irmãos se mostram fraternos e a globalização se expande
como no final do século XX; outras vezes, eles se afiguram hostis e a globalização diminui
– como no século XXI.

Para a teoria marxista, globalização vem a ser de fato a palavra de uso corrente e
dominante para se referir ao imperialismo. O século XX começou com o capitalismo
mundial cada vez mais dividido entre um bloco imperialista dominante e o resto. No
século XXI, o domínio do imperialismo permanece. E se, agora, as economias
imperialistas começam a lutar pela lucratividade e pelos mercados, então elas começam
a não cooperar, lançando as bases para a divisão, o conflito e a guerra.

Mesmo a teoria mainstream está agora ciente de que o livre comércio e o livre
movimento de capital, que se aceleraram globalmente nos últimos 30 anos, não levaram
ganhos para todos – exatamente ao contrário do que afirma a teoria da vantagem
comparativa e da livre concorrência. A globalização e o livre comércio não trouxeram
aumentos de renda para todos. Sob a livre circulação de capitais pertencentes às
transnacionais, assim como sob o livre comércio sem tarifas e restrições, os grandes
capitais mais eficientes triunfaram às custas dos mais fracos e ineficientes.

Em consequência, os trabalhadores desses últimos setores foram também atingidos. Em


vez de um desenvolvimento harmonioso e igualitário, a globalização aumentou a
desigualdade de riqueza e renda, tanto entre as nações quanto dentro delas. As
corporações transnacionais transferiram as suas atividades para áreas em que a mão de
obra era mais barata, adotaram novas tecnologias que exigem menos mão de obra na
luta pela lucratividade.

Esses resultados se devem em parte à globalização levada a efeito pelo capital


multinacional: fábricas e empregos foram transferidos para o que costumava ser
chamado de Terceiro Mundo. Mas também se devem em parte às políticas neoliberais
nas economias avançadas (isto é, redução do poder sindical e dos direitos trabalhistas;
precarização do trabalho e redução dos salários; privatização e redução dos serviços
públicos, pensões e benefícios sociais). Não se pode esquecer também a parte devida aos
colapsos ou quedas regulares e recorrentes na produção capitalista.

Eis que tudo isso levou a uma perda de renda familiar para um volume expressivo de
trabalhadores nos países desenvolvidos. Ora, essa perda nunca vai ser contrariada por
meio de uma “recuperação’, principalmente a partir de 2009. O mundo capitalista nunca
foi plano, mesmo no final do século XX – e certamente está bem montanhoso agora. A
grande recessão, a fraca recuperação durante a longa depressão, a pandemia de COVID e
agora o conflito Rússia-Ucrânia, tudo isso destruiu as cadeias de suprimentos globais,
bloqueou o comércio global e interrompeu os movimentos de capital.

Durante os anos 1990 e 2000, a teoria econômica dominante (com poucas exceções) se
alinhou com as teses liberais de David Ricardo; assim, os méritos imaculados da
globalização foram louvados. Apesar das tendências atuais, alguns especialistas
tradicionais ainda mantêm a visão de que a globalização retornará. Veja-se em sequência
o que disseram dois deles:

“Foi a inflação” – disse o primeiro – “que ajudou a criar um novo ambiente político em
meados do século XX e na década de 1970. À medida que os custos econômicos e
políticos da inflação se tornaram mais óbvios e mais prejudiciais, parecia mais atraente
procurar maneiras de acalmar as pressões inflacionárias. Com certeza, a cura da doença
inflacionária – a globalização e um governo mais eficaz – foi temporariamente
desconfortável. Mas levou o mundo a aproveitar oportunidades técnicas e geográficas
antes ignoradas ou negligenciadas. Há, em suma, um futuro pós-conflito para o qual
podemos olhar para frente com algum grau de esperança”.

“A minha crença” – disse o outro – “pode ser tomada como fé cega, contudo o fato é que
as últimas orações para a globalização foram feitas várias vezes nos últimos anos, mas,
em cada ocasião, ela se levantou do seu leito de morte parecendo, então, bastante
animada. As empresas têm sido engenhosas, apoiam-se na tecnologia para se
renovarem. Até mesmo os governos mais destrutivos têm se mostrado incapazes de
anulá-la”.

Claro, o comércio mundial e o investimento transfronteiriço não vão desaparecer; ao


contrário, continuarão a crescer (pelo menos um pouco) apesar das pandemias, guerras
e cadeias de suprimentos em colapso. Mas isso dificilmente é um argumento para dizer
que a onda de globalização anterior não acabou.

O argumento de fundo é que a crise de lucratividade e a inflação dos anos 1970 foi
seguida pela onda de globalização dos anos 1980 e 1990 e isso pode acontecer
novamente. Mas este não parece ser um cenário muito provável. A década de 2020 se
parece mais com o período que antecedeu a Primeira Guerra Mundial; veja-se que as
potências econômicas rivais (irmãos inimigos) estão lutando agora entre si para obter
uma parte maior dos lucros gerados globalmente.

Escrevendo no final da década de 1880, Engels previu, não a expansão global


harmoniosa como pensava o líder e teórico social-democrata alemão Karl Kautsky, mas
o aumento da rivalidade entre as potências econômicas concorrentes, o que resultaria
em uma nova guerra europeia: “as destruições da Guerra dos Trinta Anos (ocorrida no
século XVII) seriam comprimidas em três a quatro anos e estendidas por todo o
continente… com uma realocação irrecuperável de nosso sistema artificial de comércio,
indústria e crédito, sem um retorno à expansão global de 1850-70”.

Os keynesianos agora procuram retornar aos dias de Bretton Woods com suas taxas de
câmbio fixas, estímulos fiscais dos governos e tarifas gradualmente reduzidas. Afirmam
que isso levaria a um renascimento do “multilateralismo” e da cooperação global. Eis
que uma ordem mundial de paz e harmonia poderia ser aparentemente restaurada.
Mas esse prognóstico – veja-se bem – é apenas uma negação da história e da realidade
dos anos 2020. As organizações multilaterais do pós-guerra, como o FMI, o Banco
Mundial e a ONU, estavam todas sob a “orientação” do capitalismo norte-americano. Mas
agora a hegemonia dos EUA não se impõe mais de modo seguro; ademais, de modo mais
significativo, a alta lucratividade das principais economias pós-1945 não existe mais. Os
irmãos agora não são mais fraternos entre si, mas hostis. A atual tentativa dos EUA de
manter sua hegemonia é mais parecida com tentar colocar gatos em um mesmo saco.

É perfeitamente possível argumentar que a desglobalização diminui a eficiência das


empresas, diminui a concorrência e que isso não é bom para o capital. Sem qualquer
reversão prevista no rumo das coisas para acelerar o crescimento, um mundo
desglobalizado seria “muito inferior” aos últimos 30 anos em que prevaleceu uma
abertura do comércio mundial.

Um estudo recente da Organização Mundial do Comércio, baseado em medição do


impacto dinâmico da perda de comércio e da difusão de tecnologia, descobriu que “uma
divisão potencial do sistema de comércio global em dois blocos – um bloco centrado nos
EUA e outro centrado na China – reduziria o bem-estar global, por volta de 2040, em
comparação com uma linha de base, em cerca de 5%. As perdas seriam maiores (mais de
10%) nas regiões de baixa renda que costumam se beneficiar de repercussões positivas
dos avanços do comércio e da tecnologia”. De fato, o colapso da globalização pode se
transformar não apenas em uma batalha entre dois blocos, mas em uma mistura mais
complexa de unidades econômicas concorrentes.

De qualquer modo, a globalização só retornará eventualmente se e quando o capitalismo


ganhar um novo sopro de vida baseado em lucratividade crescente e sustentada. Parece
improvável que isso aconteça diante da perspectiva de uma nova crise nos próximos
anos – e talvez de mais guerra.

*Michael Roberts é economista. Autor, entre outros livros, de The Great Recession: a
Marxist View.

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