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A "desglobalização" está a verificar-se?


Prabhat Patnaik [*]

Hoje em dia muitos economistas falam num processo de


"desglobalização"; outros dizem que o regime neoliberal de
outrora já não existe. É claro que nada permanece igual para
sempre: como disse o filósofo grego Heráclito, "não se pode
entrar duas vezes no mesmo rio". Portanto, é inevitável alguma
mudança na ordem neoliberal com o passar do tempo. Mas a
verdadeira questão é: será que o quadro analítico utilizado
para a compreensão da realidade económica do mundo
contemporâneo, tendo em vista alterá-la, se tornou obsoleto e
necessita assim de uma revisão séria?

"Globalização", deve-se recordar, nunca significou que


diferentes países do mundo se juntassem voluntariamente a fim de estabelecer uma
ordem global que fosse mutuamente benéfica. Hoje, cerca de 50 países do mundo
são alvo de "sanções" de vários tipos; são impedidos à força de aceder a bens
essenciais – incluindo, em alguns casos, medicamentos que salvam vidas – do
mercado global. E este número não era muito inferior há uma década, quando a
"globalização" era universalmente reconhecida como estando em pleno andamento.

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"Globalização", portanto, sempre significou algo muito diferente do que lhe é


habitualmente atribuído. Significava o aparecimento de uma fase do capitalismo em
que o capital, incluindo sobretudo a finança, se havia tornado globalizado pela
abertura das economias ao seu movimento irrestrito. Ele havia, assim, contido a
capacidade do Estado-nação para intervir de maneiras que a finança não aprovasse.
E este capital globalizado beneficiara-se do apoio, nas suas operações globais acima
de tudo dos Estados metropolitanos – e, por falta de outras opções, de outros
Estados. Estes estados metropolitanos, nomeadamente os EUA, decidiam quais
países deveriam ser coagidos, com os demais caindo em linha.

Desse modo, a "globalização" representou a reimposição da hegemonia imperialista


ocidental sobre o mundo como um todo, excluindo os países socialistas, mas
incluindo países que haviam sido descolonizados em meados do século XX e haviam
adotado, ainda que promovendo o desenvolvimento capitalista, várias espécies de
estratégias dirigistas. Por outras palavras, a globalização significava a rutura de
qualquer autonomia relativa face ao imperialismo no terceiro mundo não socialista.
Como complemento à mobilidade sem restrições do capital, a "globalização"
significou também a circulação relativamente sem restrições de bens e serviços
através das fronteiras dos países (exceto, claro, os países que enfrentavam
"sanções").

O que aconteceu durante este período de "globalização" foi que surgiram novas
potências económicas, pelas quais as potências imperialistas ocidentais se sentiram
ameaçadas. Entre elas, a Rússia, que herdou a base de produção maciça construída

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pela União Soviética e que as potências ocidentais pensavam ter subjugado, até que
houve uma reafirmação da sua força após a saída de Boris Ieltsin do poder; e a
China, que, embora se relacionando com a "globalização" nos seus próprios termos e
não nos ditados pelas potências ocidentais, registou taxas de crescimento rápidas
devido, entre outros fatores, ao acesso ao mercado de que desfrutava no mundo
capitalista metropolitano.

Atualmente, a Rússia ficou sujeita a "sanções" após a guerra na Ucrânia; e o


comércio do mundo ocidental com a China diminuiu em certa medida, devido ao
esforço político deliberado desta última para o reduzir. Este esforço, no caso dos
EUA, foi motivado por vários fatores, desde a proteção do emprego interno (apesar
de uma grande parte das importações da China pelos EUA ser produzida por
investimento direto estrangeiro dos EUA) até um forte desejo de não ser demasiado
dependente da China; no caso de outros países metropolitanos, existe o fator
adicional da pressão dos EUA. No entanto, destes fatores, o desejo de não ficar
demasiado dependente da China tem sido o mais decisivo.

A preocupação dos EUA com o rápido crescimento das importações da China


começou na era de George Bush Jr., o qual tentou persuadir os chineses a valorizar a
taxa de câmbio do yuan em relação ao dólar; continuou durante Obama, que
penalizou as empresas americanas que deslocalizavam a produção para o
estrangeiro. Mas foi Donald Trump que impôs tarifas para proteger a produção
nacional contra as importações do estrangeiro. A China foi o principal alvo destas
tarifas.

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Dois exemplos sublinham a motivação predominantemente política por trás da


redução do comércio ocidental com a China. A União Europeia propôs uma regra
segundo a qual os painéis solares a utilizar para a descarbonização da Europa não
deveriam ser importados de qualquer país que detenha mais de 65% da quota de
mercado. Esta regra destina-se exclusivamente a excluir a China, a qual detém 85%
do mercado devido ao preço extremamente baixo dos painéis que fornece. Em suma,
a Europa está disposta a pagar um preço muito mais elevado pelos painéis solares
apenas para manter a China de fora, o que é uma decisão motivada inteiramente por
considerações geopolíticas.

Da mesma forma, a proibição da administração Biden às exportações de


semicondutores para a China, imposta contra a vontade das empresas dentro dos
próprios EUA, e que representa uma grande ameaça para as indústrias de alta
tecnologia na China, incluindo a tecnologia militar e a inteligência artificial, é motivada
exclusivamente por considerações geopolíticas: o puro desejo de manter a China
económica e tecnologicamente incapacitada. Por outras palavras, embora não haja
sanções explícitas contra a China neste momento, o que estamos a ver é uma
imposição implícita de sanções, quer como preparação para um momento futuro em
que haverá sanções explícitas, quer por puro desejo de paralisar a China.

Aquilo que é chamado de "desglobalização" refere-se, de facto, a toda esta nova


tendência das potências ocidentais para discriminar a China, ao seu desejo de não se
tornarem demasiado dependentes da China. O esforço consiste essencialmente em
diversificar as relações comerciais afastando-se da China para outros países, mesmo

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que essa diversificação se revele mais dispendiosa. O recente declínio na magnitude


do comércio dos EUA com a China é uma consequência disso. É como se a China
estivesse a ser acrescentada à lista de países que estão sujeitos a sanções
ocidentais.

Curiosamente, não se registou um declínio real dos parâmetros a nível


macroeconómico, como o rácio entre o total das importações mundiais e o PIB
mundial, que alguns economistas utilizaram como indicadores para medir a extensão
da "globalização". O que eles descobriram através de tais medidas foi um
abrandamento do progresso da "globalização", mas não a sua inversão.

No entanto, como mencionámos anteriormente, a "globalização", na nossa perceção,


não se refere tanto ao fenómeno de os países se tornarem mais dependentes uns
dos outros; refere-se essencialmente a uma relação de poder. Este poder é exercido
tanto através das "sanções" impostas contra países específicos como através da
atração de países para o vórtice da "globalização". O exercício deste poder é a marca
do imperialismo. As "sanções" são tanto um sintoma da crueldade do imperialismo
como a "globalização", que implica a hegemonia do capital globalizado. Por outras
palavras, a chamada "desglobalização" não é uma negação da "globalização", mas
um complemento desta.

O capital globalizado provém esmagadoramente das metrópoles e está enredado no


funcionamento dos Estados metropolitanos. A hegemonia do capital globalizado é,
portanto, ipso facto, a hegemonia dos Estados metropolitanos, exercida sobre os

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povos do mundo e especialmente sobre os povos do terceiro mundo. A


"globalização", a qual pode ter o apoio da grande burguesia do terceiro mundo e
mesmo dos segmentos superiores dos assalariados e das classes profissionais,
implica necessariamente a supressão dos trabalhadores, camponeses e pequenos
produtores do terceiro mundo.

A praxis para superar o seu cativeiro não é diferente hoje do que era há uma década.
Qualquer melhoria da condição do povo trabalhador exige a intervenção do Estado.
Para isto, o Estado tem de dispor de espaço para intervir sem se deixar prender pelo
medo da fuga de capitais. Mas enquanto o país continuar preso no vórtice dos fluxos
de capitais sem restrições, o Estado não pode adquirir essa margem de manobra. O
controlo dos fluxos de capitais torna-se, portanto, necessário para qualquer
intervenção progressiva do Estado.

Dito de modo diferente, uma melhoria da condição material do povo exige não só
uma mudança na natureza do Estado, nomeadamente, que este se baseie no apoio
dos trabalhadores e dos camponeses, mas também que se desligue do universo dos
fluxos de capital sem restrições. O apoio do povo trabalhador não é suficiente; o
controlo dos fluxos de capitais é também essencial para a prossecução de uma
política popular, embora tal controlo possa atrair "sanções" imperialistas.

Isto continua a ser tão verdadeiro hoje como era há uma década atrás. A chamada
"desglobalização" de que falam alguns economistas não faz a mínima diferença em
relação a esta necessidade absoluta de enfrentar a hegemonia do capital globalizado,

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atrás do qual se perfila a falange dos Estados metropolitanos.


04/Junho/2023

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2023/0604_pd/“de-


globalisation”-occurring. Tradução de JF.

Este artigo encontra-se em resistir.info

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