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ATUALIDADES
Guerra comercial entre
Estados Unidos e China
ATUALIDADES Alessandra de Fatima Alves

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Guerra comercial entre Estados Unidos e China
A China é o terceiro maior país do mundo em extensão, superada apenas pela Rússia e pelo Canadá; possui
a maior população do mundo, com 1,39 bilhão de habitantes; produz o maior PIB do Planeta, quando levado em
conta a paridade do poder de compra (PPC), com US$ 21 trilhões. O país intensificou o seu processo de industria-
lização nos anos 1970 e, atualmente, tem a maior produção industrial do mundo. Com a crise de 2008, as autori-
dades chinesas perceberam que, para eles, era o fim do processo de acumulação extensiva capitalista e precisavam
entrar no estágio subsequente, que é o intensivo.
A atual disputa comercial entre China e Estados Unidos teve início em março de 2018, quando o presidente
estadunidense, Donald Trump, anunciou uma lista de tarifas sobre importações provenientes da China (totalizando
US$ 50 bilhões), baseando-se na Lei de Comércio de 1974 e citando um histórico chinês de “práticas comerciais
desleais“ e roubo de propriedade intelectual. Em retaliação à medida, o governo chinês impôs tarifas em mais de
128 produtos estadunidenses, incluindo a soja, o produto mais importante de exportação dos EUA para a China.

A seção 301 do Ato sobre Comércio e Tarifas de 1974 autoriza o escritório do representante comercial dos
EUA (USTR) a investigar e sancionar práticas comerciais consideradas “desleais” aos interesses estadunidenses.
Estas sanções, tanto de caráter tarifário como não tarifário, são estabelecidas de forma a impactar adversamente
as importações dos países que, de forma “injustificável” ou “não razoável”, restringirem as exportações dos EUA.
Em 1988, a lei ganhou uma emenda que criou três novas categorias: a Super 301, que requer que o USTR prepare
uma “lista negra“ de países de práticas “não razoáveis”, um cronograma para sua eliminação e um programa de
sanções a serem aplicadas; a Special 301, bastante semelhante a Super 301 e que se aplica à área de propriedade
intelectual; e a 301 de Telecomunicações, que visa a abrir mercados “fechados” nesta área. Entre as sanções dis-
poníveis na seção 301, está a possibilidade de suspensão, retirada ou não aplicabilidade de benefícios conferidos
por acordos multilaterais ou regionais, como o Nafta, OMC ou Alca.

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Durante a Rodada Uruguai do GATT, medidas tomadas sob o amparo da seção 301 pelos EUA eram
frequentemente justificadas com o argumento de que o sistema multilateral não tinha um mecanismo eficaz
de resolução de disputas. Este argumento foi utilizado para fins de propaganda, mesmo sendo os EUA o
país líder em não aceitação de laudos arbitrais adversos no GATT. Esta posição também motivou iniciativas
estadunidenses de melhoria da solução de controvérsias no âmbito do GATT, que foram endossadas pela
comunidade internacional, na esperança de que a maior juridicidade do sistema viesse a estabelecer a pri-
mazia do direito no comércio internacional.
Mesmo com o novo sistema de resolução de disputas bastante aperfeiçoado com a criação da OMC, os EUA
não abandonaram suas práticas unilaterais, ilegais frente ao direito internacional, de forma que, tecnicamente, os
EUA estão em violação fundamental aos tratados da Rodada Uruguai. De acordo com um estudo preparado pela
U.S. National Association of Manufacturers, somente no período de quatro anos entre 1993 e 1996, mais de 61
leis e atos administrativos diferentes autorizando sanções unilaterais foram promulgadas nos EUA, tendo como
alvo 35 países, entre eles Argentina, Brasil, Canadá e México, justamente as maiores economias da proposta Alca.

quando, em 2017, as exportações dos EUA para China


contabilizavam apenas US$ 130,37 bilhões de dólares,
enquanto as importações de produtos chineses soma-
vam US$ 505,6 bilhões, provocando um deficit de US$
375,23 bilhões para os EUA, desagradando o presiden-
te e os líderes do governo.
Lembremos também que a taxa de crescimen-
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ao lado do presidente da to potencial dos EUA caiu substancialmente no século
China, Xi Jinping, em novembro de 2017
XXI, queda essa que veio acompanhada de aumento
de desigualdade, conflitos étnicos, problemas migra-
A maioria dos analistas caracterizam as atuais
tórios e recessão estrutural nos chamados “cinturões
relações sino-americanas como sendo complexas e
da ferrugem”. Por tudo isso, o governo dos EUA ficou
multifacetadas. Os Estados Unidos e a República Po-
sob pressão para adotar medidas que pudessem rever-
pular da China normalmente não são nem aliados e
ter essa tendência de enfraquecimento do crescimen-
nem inimigos – o governo dos EUA e suas instituições
to econômico. Como a desaceleração do crescimento
militares não consideram a China como um adversá-
estadunidense ocorreu em um período quando houve
rio, mas sim um concorrente em algumas áreas e um
aumento da globalização e cada vez mais dependência
parceiro em outras, sendo descrito por líderes e aca-
econômica com outros países, particularmente com a
dêmicos como a relação bilateral mais importante do
China, fatores externos podem ser comumente vistos
mundo no século XXI.
como as principais causas desses problemas. Junta-
mente com o rápido crescimento econômico da China,
Antecedentes bem como de outros países emergentes, a globalização
serve como uma importante justificativa para mudan-
É importante entender que os motivos para ças na política econômica e comercial dos EUA em re-
essa disputa comercial estão profundamente enrai- lação à China.
zados na transformação do cenário econômico global A China já ultrapassou os EUA em investimento e
em relação a uma relativa mudança de poder entre as poupança e o valor agregado de bens industriais e ma-
principais economias, quando vemos a queda no cres- nufaturados, além de seu poder de compra. Com base
cimento dos EUA e a ascensão econômica da China. nas tendências atuais, pode passar os EUA, em termos
Além disso, o comércio entre os dois países também de tamanho geral da economia (medido pela taxa de
passa por um grande desequilíbrio, principalmente câmbio do mercado), em aproximadamente 10 anos.

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Deficit comercial dos EUA com a China (1993-2017)

Fonte: Census Bureau, U.S. Trade in Goods by Country <www. census.gov/foreign-trade/balance/index.html>.

O cenário institucional específico da economia chinesa pode ser facilmente interpretado como um dos prin-
cipais fatores que causam o desequilíbrio comercial e outros problemas enfrentados pela economia dos EUA, que
têm amplas críticas ao sistema econômico chinês: considera suas práticas desleais à competitividade internacional;
argumenta que o país asiático não respeita as regras da OMC, danificando o sistema global de comércio; e preju-
dica o crescimento de novas indústrias nos EUA e na Europa.
Um exemplo de crítica é o da política industrial adotada pela China – o projeto Made in China 2025 –, que,
na visão dos EUA, tem como objetivo retirar de cena os “líderes industriais globais”, particularmente as empresas
estadunidenses. Desta forma, a China poderia alcançar a dominância do mercado global.

Made in China 2025, também chamado de China Manufactured 2025, é um plano chinês para atualizar,
consolidar e equilibrar a indústria manufatureira da China, transformando-a em uma potência global capaz de
influenciar padrões globais, cadeias de suprimentos e impulsionar a inovação global, com base na ideia de que o
mundo está passando por uma quarta revolução industrial. Esta estratégia nacional foi anunciada pelo Conselho
de Estado da China, em maio de 2015.
O plano diretor industrial da China visa a transformar o país em uma superpotência industrial nas próximas
décadas. O objetivo do programa, criado pelo primeiro-ministro Li Keqiang em 2015, é que a China se torne a
nação industrial dominante no mundo em dez setores-chave de alta tecnologia:
1. tecnologia da informação avançada;
2. máquinas-ferramentas de controle digital e robótica;
3. aviões; equipamentos oceânicos e navegação;
4. equipamentos de transporte ferroviário;
5. automóveis utilizando nova energia;
6. equipamentos de energia elétrica;
7. equipamentos agrícolas;
8. biofarmacêuticos; e
9. equipamentos médicos.

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Para alcançar esses objetivos, o país tem criado e continuará criando, ao lado de grandes empresas, parques
tecnológicos, incubadoras e startups. Outra aposta são os chamados “centros de excelência”, áreas na China que
oferecem diversos incentivos fiscais e financeiros às empresas que buscam se estabelecer no local.
Em maio de 2017, o governo chinês lançou o voo inaugural de um avião que já estava em desenvolvimento
desde 2008: o C919. Esta é a primeira aeronave comercial de grande porte fabricada na China, e é considerada o
primeiro passo para transformar o gigante asiático em um país produtor de alta tecnologia. O C919 tenta disputar
o mercado atualmente dominado pela Airbus e pela Boeing.
O modelo é o símbolo do plano governamental chinês, e tem capacidade para transportar entre 158 e 168
passageiros. Além disso, é capaz de fazer viagens de até 5.550 quilômetros e, ainda, emite 12% a menos de
dióxido de carbono que seus concorrentes – o estadunidense B737 (Boeing) e o europeu A320 (Airbus).

Não é muito difícil imaginar as consequências que esse plano trará para a produção e o intercâmbio
comercial global. Atualmente, as companhias industriais do mundo inteiro começaram a preocupar-se, já que
a política de autossuficiência em tecnologia de ponta dará às empresas chinesas uma vantagem no mercado
nacional, bem como no resto do mundo.
Adaptado de: <www.chinalinktrading.com/blog/plano-made-china-2025>. Acesso em: 14 out. 2019.

No relatório da investigação, baseado na seção 301 do Ato de Comércio, os EUA alegam que a China utiliza
quatro táticas não competitivas para adquirir tecnologia.
1. Impõe restrições para empresas estrangeiras de países rivais, em benefício de seus parceiros, e aumenta a
burocracia na licença administrativa. A China também implementa uma estratégia que exige que investido-
res estrangeiros forneçam tecnologia de ponta, em troca da entrada no mercado chinês.
2. Exige processos burocráticos para emissão de licença para empresas estabelecerem operações no país. Isso,
segundo os EUA, desobedece às regras da OMC.
3. Retira investimentos estrangeiros no setor de alta tecnologia dirigida por meio de intervenção estatal.
4. Invade as redes comerciais de computadores estadunidenses, assim como rouba propriedade intelectual
dos EUA. Segundo os EUA, o governo da China apoia e também é responsável pela invasão não autorizada
em redes estadunidenses e, desse modo, consegue acesso a uma gama de informações comerciais valiosas
sobre negócios, em que se incluem segredos comerciais e dados técnicos.

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O desenvolvimento da disputa comercial
Ao longo das eleições de 2016, Donald Trump causaram danos significativos nos interesses econômi-
defendeu a renegociação de acordos comerciais dos cos chineses.
EUA, afirmando que taxaria as importações chinesas Em 22 de março de 2018, Trump assinou um
em 45%. Depois de eleito, prometeu renegociar acor- memorando anunciando os resultados da investigação
dos bilaterais de comércio justos, que tragam empre- da Seção 301 sobre a China e instruindo o Represen-
gos e a indústria de volta para o país, mostrando-se tante de Comércio dos Estados Unidos (USTR) a apli-
particularmente preocupado com as relações econômi- car tarifas de US$ 50 bilhões em produtos chineses.
cas entre China e EUA. Em abril do mesmo ano, o Ministério do Comércio da
Entretanto, além de não implementar essas China, em retaliação, impôs tarifas sobre 128 produtos
medidas imediatamente após assumir a Presidência, a estadunidenses, incluindo sucatas de alumínio, aviões,
liberação de relatórios, em 2017, por parte do Escritó- automóveis, produtos suínos e, principalmente, a soja,
rio do Representante de Comércio dos EUA, relatando além de frutas, nozes e tubos de aço. Dias depois, o
uma “nova abordagem” para a política de comércio USTR publicou uma lista das mais de 1,3 mil categorias
estadunidense, sinalizou uma mudança na direção da de importações chinesas nas quais planejava impor ta-
política comercial dos EUA, colocando a China como o xas, incluindo peças de aeronaves, baterias, televisores
alvo mais importante. O presidente chinês Xi Jinping de tela plana, dispositivos médicos, satélites e armas.
realizou uma visita a Trump, no início de 2017, e foi Mais uma vez, em resposta à medida estadunidense a
anunciado o início de um período de negociações que China sobretaxou 106 importações de 14 categorias
duraria cem dias, sob uma nova plataforma de diálogo, em mais 25%, incluindo aviões, automóveis e soja, que
com o objetivo de reduzir o desequilíbrio do comér- são as principais exportações agrícolas dos EUA para o
cio bilateral. Contudo, a primeira rodada de diálogos país, totalizando US$ 50 bilhões.
não obteve os resultados esperados. A relação entre Em declaração no Twitter, Trump negou que a
os dois países ficou ainda mais instável em agosto de disputa fosse uma guerra comercial. O secretário de
2017, quando o Departamento de Comércio dos Esta- Comércio dos EUA, Wilbur Ross, declarou que as tari-
dos Unidos lançou uma investigação contra a China, fas chinesas planejadas representavam apenas 0,3%
sob a seção 301 da Lei de Comércio de 1974. Era o do produto interno bruto estadunidense, enquanto a
início das disputas comerciais planejadas. O Departa- secretária de imprensa, Sarah Huckabee Sanders, afir-
mou que as mudanças causariam “sofrimento a curto
mento de Comércio reforçou sua posição em classificar
prazo“, mas trariam “sucesso a longo prazo“.
a China como não sendo uma economia de mercado,
o que legitima para com a Organização Mundial do
Comércio a adoção de medidas comerciais especiais.
Essas ações demonstram uma mudança de princípios,
da defesa do comércio livre para uma ideia de comér-
cio “justo”, justificando posicionamentos unilaterais e
medidas protecionistas.
Em 22 de janeiro de 2018, a Casa Branca im-
plementou as primeiras medidas protecionistas via ta-
rifas sobre importações, impondo tarifas de 50% sobre
todas as máquinas de lavar e de 30% sobre todos os Container com produtos chineses, em terminal de Boston, Massachusetts
painéis solares importados. Em 8 de março do mes-
mo ano, anunciou tarifas de 25% sobre o aço e 10% Em maio de 2018, 41 membros da OMC emi-
sobre o alumínio. Apesar de não serem direcionadas tiram um comunicado explicitando preocupação com
especificamente a importações provenientes da China, o aumento das tensões comerciais e do protecionis-

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mo, endossando seu apoio ao sistema multilateral As novas taxas, resposta de Pequim à decisão
regulado pela OMC. O comunicado faz um apelo aos de Washington de aumentar seus impostos sobre os
Estados-membros para que não tomem medidas pro- 300 bilhões de dólares de produtos chineses, entrarão
tecionistas e evitem a escalada das tensões comerciais em vigor em duas etapas, em 1° de setembro e 15 de
iniciadas por Trump, as quais podem colocar em risco dezembro. São as mesmas datas em que está previsto
todo o sistema multilateral e prejudicar o comércio glo- o início das taxas estadunidenses.
bal. OMC, FMI e Banco Mundial emitiram um apelo Com essa nova rodada de sanções, Pequim
urgente pelo comércio internacional, enfatizando que, penaliza praticamente tudo o que importa dos EUA.
diante do cenário de conflitos comerciais e da onda Entre os produtos taxados, o petróleo entra pela
de protecionismo atual, é necessário fortalecer rapi- primeira vez, alguns tipos de aviões menores e nu-
damente a OMC, agilizando as reformas do sistema merosos produtos alimentícios, como diversas frutas
multilateral que estão sendo discutidas desde 2000. secas, porco congelado, vários tipos de peixe, marisco
Alguns pontos já foram apresentados, como aprovei- congelado, carne de boi e mel. Além disso, desvalori-
tar a força única da organização para propor acordos zou fortemente sua moeda, o iuan, e foi acusada de
plurilaterais (participa quem quiser), em vez de aguar- manipulação cambial.
dar acordos multilaterais que necessitam de consenso, Os protestos do setor empresarial dos Estados
algo que vem se mostrando impossível desde a Rodada Unidos, entretanto, são ouvidos com contundência
Doha, em função do grande número de membros da cada vez maior. A Câmara de Comércio dos EUA re-
organização e das tantas disparidades de interesses. cusou de imediato a ordem de Trump de abandonar
Entretanto, o confronto entre os dois países a China, onde as empresas estadunidenses possuem
permanece e chegou, em agosto de 2019, a um novo importantes investimentos.
nível, quando Donald Trump “ordenou” às empresas Os últimos desdobramentos não indicam uma
estadunidenses que fechem seus negócios no gigan- solução rápida para o conflito. Trump afirmou no co-
te asiático e procurem uma alternativa à fabricação meço que não está pronto para finalizar um acordo
de seus produtos. A disputa entre as duas potências comercial com a China e apontou que pode cancelar
ocorre às vésperas da reunião do G7 e leva o debate as próximas reuniões marcadas com o governo do país
sobre o protecionismo ao epicentro da reunião. A me- asiático. A declaração foi feita poucos dias depois de
dida provocou um novo terremoto nas bolsas e entre uma piora na relação entre os dois países, com Trump
a comunidade empresarial estadunidense, porque no- rompendo a trégua acertada, após o encontro no G20
tícias sobre a guerra comercial costumam influenciar o com o presidente da China.
mercado financeiro. Quando o cenário piora com novas O comércio é a guerra moderna mais eficaz, di-
ameaças e quebras de acordo, por exemplo, a tendên- ferentemente da velha guerra armada. A busca pelo
cia é que investidores busquem alternativas mais segu- equilíbrio no comércio global é fundamental para evi-
ras para seu dinheiro, fazendo com que os índices das tar um conflito que pode gerar tensões mundiais bas-
bolsas em todo o mundo recuem. tante perigosas e prejudiciais para todos os países.

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