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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ANO XIX • Nº 75 • OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2016 ISSN 1517-6940

à procura de

HOBBeS

outubro • Novembro • dezembro 2016 1


junto
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

é bem
melhor.

Acreditamos no poder
da interação. Sabemos que
as trocas geram mudanças
positivas que nos motivam,
levam mais longe e fazem
bem. É por isso que a gente
se dedica tanto a ampliar
as possibilidades de conexão
entre as pessoas. Porque
coisas incríveis acontecem
quando a gente interage.

oi.com.br
2
Wladimir Llyich Ulyanov, um século depois – 1917/2017 –,

recado
por algum determinismo histórico mágico aporta por estas
plagas e mostra-se incapaz de entender a disfuncionalidade
do caso brasileiro.

De norte a sul, noite e dia, as energias são distópicas, o


estado é de anomia, o rentismo corrói a Nação, a população
sofre de anedonia e o país carece de lideranças, não
criminalizadas, de preferência. Não estão presentes as
condições históricas revolucionárias, apesar do desemprego
ser alto e a miséria rondar o país. O marxismo é impotente
porque lhe fogem as características intrínsecas de dono
único da verdade. E a verdade é o que as pessoas acham
que é verdade. Existem as manifestações de protesto, sim,
contudo, não são orgânicas. A ideologia não está presente
no discurso do povo, que comparece em dimensão reduzida
aos quebra-quebras ou aos confrontos entre grupos do
funcionalismo do Estado – policiais, bombeiros, professores,
petroleiros e tantos outros. Todos se comportam como
lobos comendo lobos. O povo está em algum outro lugar.
Os sindicatos se apequenaram – alguns poucos operários
ainda laboram nas fábricas. E os militares? Estes repetem
que estão cumprindo sua função de zelar pela Constituição
do país. Em prudente distanciamento, entretanto, parecem
cerrar os olhos para a desconstitucionalização em marcha.
Lenin, perplexo, pergunta a si próprio: o que fazer? Naquele
estranho paraíso reverso, entre o estado de agonia cívica
e a loucura desmedida, compreendeu que a verdade
revolucionária é elástica. E a atitude revolucionária na
circunstância é o mais radical ato legítimo da democracia.

“Diretas já” são os nossos mais sinceros votos para 2017.


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Conselho EDITORIAL Décio Clemente


ISSN 1517-6940
Alexandre Falcão Edson Vaz Musa
DIRETOR
LUIZ CESAR FARO
Antônio Dias Leite Júnior Eduardo Karrer
Coriolano Gatto Eliezer Batista
EDITOR
C H R I S T I A N E D W A R D C Y R I L LY N C H Edson Nunes Eloí Calage
Emir Sader Eugênio Staub
EDITOR EXECUTIVO
claudio fernandez João Sayad Gilvan Couceiro D’amorim
Joaquim Falcão Hélio Portocarrero
PROJETO GRÁFICO
ANTÔNIO CALEGARI José Luís Fiori Henrique Luz
Lucia Hippolito Henrique Neves
PRODUÇÃO GRÁFICA
RUY SARAIVA Luiz Cesar Telles Faro Jacques Berliner

ARTE
Luiz Orenstein João Luiz Mascolo
PAULA BARRENNE DE ARTAGÃO Luiz Roberto Cunha João Paulo Dos Reis Velloso

REVISÃO Marco Antonio Bologna Joel Korn


geraldo rodrigues pereira Mário Machado Jorge Oscar De Mello Flôres =
REDAÇÃO E PUBLICIDADE Mário Possas José Luiz Bulhões Pedreira =
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ser encontrados na home page da publicação: Conselho consultivo Márcio Kaiser
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César Maia Roberto Paulo Cezar De Andrade
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Daniel Dantas Sérgio Ribeiro Da Costa Werlang
BRICS Policy Center Centro de Estudos e Pesquisas - BRICS

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votou de novo.
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Para mais informações, acesse: www.nextel.com.br.
Uma receita para os atuais tempos: silêncio e solidão. Sugere-
se ao leitor diluir-se em meio à amplitude, deixando-se levar
pelos tons empoeirados dos fotogramas de James Kerwin.
Insight Inteligência convida a todos para que observem, na obra
do artista, a transição da aparência através do tempo. Nossos
patrocinadores, como sempre, acompanham o ensaio.
O que nos resta de Leviatã?
Anna Cecilia Faro Bonan
Naquela mesa está faltando ele

20

gerson:
A esquerda
ESPECIAL: Jaguaribe em está viva –
O Brasil construção E passa
superior Angélica Lovatto muito bem
Uma leitura da política
de Hélio brasileira em dois tempos
Os neurônios já tiveram
maior importância
Jaguaribe no futebol
51
49 34
Cadernos para
todos os tempos
Cristina Buarque de
Hollanda Excomunhões
A encruzilhada entre o atraso
e o progresso – Cartas do
Divino Ódio
69 A fé não perdoa

usina de altos 90
estudos
Hélio Jaguaribe
Lições sem prazo de
validade

81

sumário
16 SUMÁRIO
I N S I G H T

INTELIGÊNCIA
nº 75 outubro/novembro/dezembro 2016

ciência política
1966-1970 –
o desenvolvimento
em pauta
Christian Edward Cyril Lynch
Nos tempos da ditadura
envergonhada

106

Crianças suelto sobre


desinvestidas governo temer,
Pedro Cattapan elefantíase e
Pais descomprometidos e risco moral
professores frustrados Antonio Carlos Porto
Gonçalves
98 Quando o tamanho faz
diferença

122

Soy loco por


ti, America – A
insustentável
leveza de ser
bolivariano
Dawisson Belém
Lopes
Direita, volver? Um barril de petróleo
pronto para explodir
Cristiane Batista
Steven Ross
Gasto social? Depende
132
da ideologia

124
outubro • Novembro • dezembro 2016 17
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Le o que nos
resta de

atã? vi

20 Calamidade
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Anna Cecilia Faro Bonan


advogada

D
izem por aí que vivemos em um tempo-es- de praxe, para alguns é a centelha da promessa revo-
paço de aceleração histórica, capaz de re- lucionária e para outros é o perigo iminente de caos e
colorir e/ou redesenhar as instituições po- desordem. Mais uma vez, no curso da história, se re-
líticas no xadrez da sociedade. Não é uma força e escancara a constante tensão alojada no âma-
situação particular aos brasileiros, o caldo borbulha go das teorias de Estado, isto é, a relação conflituosa
em um fenômeno global. As primeiras décadas do sécu- entre o Estado e seus governados, imbróglio paralelo à
lo XXI estão marcadas por processos de crise do mer- tensão constitucional entre poder constituído e poder
cado e das instituições democráticas e levantes popu- constituinte. A busca por (re)legitimar o Estado peran-
lares.1 Mas o tom de otimismo caiu. É tempo de velhas te a insurgência popular costuma encontrar na última
angústias travestirem-se de roupas novas (de másca- o seu próprio fundamento, e, renutrido pelo medo, faz
ras pretas a blusas da seleção de futebol) e saírem a valer a força. Essa é uma resposta óbvia, não por isso
passear, escandalizando os olhos apavorados. Como é menos alarmante.

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

No Brasil as chamadas “jornadas de junho” de 2013


explodiram pelas ruas do país, e abriram alas (não em
uma relação simplista de causa e efeito, mas complexa
e própria do devir histórico e das disputas por hegemo-
nia) para um tal “gigante adormecido” sedento por de-
capitar a então presidente. O Legislativo em conluio com pública se esconde em seus grandiosos jantares12 (ex-
o Judiciário levantou cartão vermelho para o chefe do travagância que nos recorda o Baile da Ilha Fiscal que
Executivo e o reserva foi para o jogo (dando um replay marcou o fim do Império) tratando de evitar ao máximo
na história paraguaia).2 A promessa de estabilidade não as vaias de seus governados. Ao povo (as multidões, a
se cumpriu com o duvidoso impedimento sem crime de massa, como prefiram, esse conjunto ipse de indivíduos
responsabilidade, o rondó institucional3 se aprofundou, que ainda merece ser mais bem compreendido), só res-
e o tecido social esgaçado ampliou o momento de en- ta a indignação, e ao Estado, a tentativa de se manter ile-
tropia nacional. Protestos se espalharam por todas as so. Há cheiro de violência no ar, e talvez possamos com-
ruas do país, liderados por setores da esquerda, da di- preender o que nos resta de Leviatã.
reita e setores “autônomos”, a mídia corporativa incita
os protestos4, agentes da segurança pública invadem a A BATALHA DE BEHEMOTH E LEVIATÃ
assembleia legislativa no falido estado do Rio de Janei- O Livro de Jó, do Antigo Testamento bíblico (XL-XLI),
ro,5 a PMERJ dispara contra manifestantes de dentro de resgata duas figuras monstruosas da mitologia judai-
uma igreja, adentrada sem autorização, escolas e uni- ca: Behemoth e Leviatã. O primeiro é descrito como uma
versidades estão ocupadas,6 políticos são depostos e/ criatura terrestre impressionante, domada apenas pela
ou presos,7 o Ministério Público Federal empurra um pa- força divina do Criador (o que é sinalizado por represen-
cote de medidas para ampliar a autoridade e autonomia tações pictóricas ao figurar com um aro nas narinas),
do complexo jurídico-investigativo, a despeito de direi- de lombo e ventre fortes, com os nervos dos músculos
tos civis e políticos consagrados constitucionalmente, e tecidos, ossos resistentes como bronze, membros como
recebe o troco no Congresso,8 juízes se manifestam na barras de ferro, uma cauda que se move como um ce-
“República de Curitiba” contra projeto de lei sobre abu- dro e testículos poderosos. O segundo é representado
so de autoridade,9 Ministros do Judiciário batem boca como uma criatura aquática assustadora, que solta fu-
em audiência pública,10 um ministro isolado no Supremo maça pelas narinas, lampejos de luz pelo sopro e fogo
Tribunal Federal pede a cabeça do presidente do Senado, pela boca, de força descomunal e porte gracioso, indo-
que, não só descumpre a ordem judicial imposta como mável, de peito duro como pedra e carne rígida, com fi-
reverte a decisão no colegiado em prol de uma “agenda leiras de escudos firmemente unidos nas costas e den-
senatorial” bastante impopular,11 e o presidente da Re- tes temíveis, resistente às armas mortais: Nada na ter-
ra se equipara a ele: criatura destemida! Com desdém
olha todos os altivos; reina soberano sobre todos os or-
gulhosos” (Livro de Jó, XLI, 33-34). Ambas as figuras fo-
ram consagradas na ciência política pelo filósofo inglês
Thomas Hobbes nas obras Leviatã ou Matéria, Forma e
Poder de um Estado Eclesiástico e Civil e Behemoth, ou
O Longo Parlamento, a primeira amplamente mais co-
nhecida e debatida que a segunda. Voltaremos a essas
figuras mais à frente.

22 Calamidade
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Hobbes foi um filósofo “maldito”.13 Inimigo da Igre-


ja por seu suposto ateísmo e heresia, recebeu alcunhas
desgostosas, foi perseguido, foi menosprezado pelos pró-
prios monarquistas absolutistas por não defender a lei
divina, mas resistiu, e se impôs na história como um di-
visor de águas para compreender as bases teóricas do
Estado Moderno, em especial pelo posterior a Bodin, re- sagrar direitos universais.17 Pela sua intensa inovação
forço do conceito de soberania. Alguns se espantam em e constante provocação fica difícil encontrar um chão
saber que sua obra fora muito usada pelos radicais de sociológico para o autor.18
sua época,14 isto porque é costumeiro recortar as teo- Hobbes continua maldito para alguns. Só de falar em
rias dos seus contextos históricos, porém toda leitura seu nome parece que se invoca no imaginário coletivo a
é contexto, e é preciso trazê-lo à tona, ainda que para a figura temida de Leviatã, não mais como o demônio bí-
apropriação em outro tempo-espaço. Comumente clas- blico, mas sim como a metafórica figura do monarca gi-
sificado como um jusnaturalista, terminou por favorecer gante, formado por cidadãos (outrora livres) “enclausu-
um juspositivismo,15 e, apesar de seu empirismo (no res- rados” no seu corpo, sustendo a espada na mão direita
gate da philosophia prima), elaborou uma solução meta- e o cetro na mão esquerda, conforme a capa do livro de
física (o contrato social), consagrando-se entre os con- sua obra. Hobbes, assim, se converteu em si mesmo em
tratualistas.16 Para alguns, como Leo Strauss e McPher- um monstro assustador, apesar de que a história apon-
son, é considerado o precursor do liberalismo por con- ta que era muito mais um filósofo assustado.

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primeiro de todos que fugiram”,22 se exilando na França.


E a terceira logo após de publicar a obra Leviatã, perío-
do próximo à decapitação de Carlos I, o fim da Guerra
Civil Inglesa, e a instauração do Protetorado de Oliver
Cromwell. Ao que tudo indica, o medo manteve Hobbes
ileso, morreu aos 91 anos, quando a expectativa de vida
beirava os 45. E o medo que tanto perseguia Hobbes foi
alavancado como uma paixão elementar no centro de
Em sua autobiografia, Hobbes afirmou que “ao nascer, sua teoria política, não era só dele, era, segundo o pró-
sua mãe teria dado à luz a gêmeos: Hobbes e o medo”,19 prio, de todos os seres humanos, imperando assim no
já que ela teria entrado em trabalho de parto prematuro, estado de natureza (o “medo recíproco”).
apavorada com a notícia de que a Armada Espanhola Hobbes sempre retorna a esse estado primitivo. O
(a “Invencível”) estaria prestes a atacar a Inglaterra. A motivo vem narrado no prefácio da segunda edição do
debilidade confessa do autor é descrita na obra Do as- De Cive, na qual o autor explica seu “método”, que assim
sassinato considerado como uma das Belas-Artes, de como Aristóteles em A Política apontava a necessidade
Thomas de Quincey, que, tratando de um tema bastante de compreender a sociedade (o Estado para o primei-
hobbesiano (a morte brutal) zomba do constante medo de ro e a polis para o segundo) a partir das partes que as
Hobbes, a seu ver exagerado, de ser assassinado, con- compõem, e para tanto a melhor forma seria “desmon-
tando a seguinte anedota: “Um clérigo encontra Hobbes tá-la como um relógio”.23 No entanto, segundo as leituras
por casualidade e com ele segue a Buxton, lá, apesar do hobbesianas tradicionais, o prefácio abrira uma gran-
desconforto inicial, os personagens se entrosam ao lon- de polêmica,24 já que a despeito de um ponto de partida
go dos dias e vão à casa de banhos juntos. Cerca de uma semelhante, Hobbes iria ser um dos primeiros, ao lado
hora depois, já secos e vestidos, sentam-se para jantar de Espinosa,25 a contradizer a base aristotélica da socie-
no local, quando são interrompidos por um barulho de dade, na qual o homem é, por natureza, um ser político
uma briga entre os tipos mais grosseiros ali presentes. (zoon politikon) e a polis é, por conseguinte um fenômeno
Hobbes perdeu a calma, se mostrou muito receoso e natural.26 Para o filósofo inglês, no estado de natureza, os
contou uma ou duas vezes a maneira como Sexto Ros- homens são livres e iguais – leis naturais – e, apesar de
cio havia sido morto depois de jantar, perto dos Banhos racionais, agem motivados por seus apetites e desejos,
de Palatino, e se despediu o quanto antes como se cor- por vezes antissociais (proposição que Freud resgata-
rera algum perigo”.20 ria na formulação de seu conceito de “pulsões”),27 confi-
Segundo o relato zombeteiro e descrente de Tho- gurando o que Hobbes chama de a guerra de todos con-
mas de Quincey, Hobbes afirmava ter corrido perigo de tra todos (bellum omnium contra omnes), um estado de
vida ao menos três vezes. A primeira em maio de 1640, conflito e tensão constante que se propicia para o caos.
período em que se iniciava a Rebelião Inglesa (The Great De acordo com a teoria posta em foco, uma das cau-
Rebelion) e que também data a dedicatória de seu pro- sas principais da guerra seria o fato de que as coisas
tetor, o conde Willian de Devoncheire, no primeiro tex- se constituem em objeto de desejo (usualmente os bens
to filosófico de Hobbes, Os Elementos da Lei, Natural e e riquezas, a propriedade), pois “se dois homens dese-
Política.21 no qual defendia o Rei contra o Parlamento. A jam a mesma coisa, ao mesmo tempo em que é impos-
segunda em novembro daquele mesmo ano, quando se sível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimi-
reuniu o Longo Parlamento (hostil ao governo autoritá- gos”,28 por conseguinte, cria-se uma desconfiança ge-
rio do rei), e Hobbes, em suas próprias palavras, “foi o ral, na qual impulsiona os seres a agirem por antecipa-

24 Calamidade
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mão esquerda o cetro). Leviatã é o Deus Mortal, dono da


força e da lei. E quem é Behemoth, esse demônio oposto
presente também nas escrituras judaicas? Ao que tudo
indica em Behemoth ou o Longo Parlamento é que a me-
táfora aqui representa a guerra civil, a insurgência dos
rebeldes, a explosão da desordem e do caos. Hobbes ao
propor a analogia a essas duas figuras mitológicas está
ção para neutralizar o perigo, sendo a melhor defesa, o também as colocando em antítese, e explicitando uma
ataque, a conquista, o que culmina na generalização da das maiores tensões da teoria do Estado: a contrapo-
guerra. Apesar de que, em Hobbes, essa condição não sição das forças legítimas do Estado e da insurgência.
está ligada ao argumento da escassez, vez que os dese- Essa é, pois, a batalha de Leviatã e Behemoth.
jos não sucumbem à razão e à necessidade, podemos Daqui podemos seguir com uma leitura não usual
vislumbrar que ele é muito mais convincente na fórmu- de Hobbes, rechaçando a ideia de que o autor descre-
la “farinha pouca, meu pirão primeiro”. veria um estado de natureza apolítico. Ora, Hobbes des-
Hobbes percebera que ao resgatar o homo lupus taca um estado de natureza onde o antagonismo é a re-
(homem lobo) dos antigos escritos de Plautus29 pronun- gra, e não seria justamente o conflito o constitutivo de
ciara uma tese demasiado ousada. Contrariava a ver- uma política?34 Como seria possível que os seres so-
são mais aceita, no período, enquanto concepção de ciais, dependentes da sociabilidade para o desenvolvi-
mundo – encampada posteriormente na figura antitéti- mento das suas capacidades (veja o caso dos humanos
ca do “bom selvagem” de Rousseau – de que o amor e o ferais!), não vivessem em alguma espécie de socieda-
afeto estivessem enraizados na natureza humana,30 e, de, ainda que primitiva, com algum grau de política35,36?
ora, quem perdesse a “humanidade” não poderia pas- Como seria possível que esses seres pudessem se co-
sar de uma besta. municar e chegar a um acordo consentido para a cria-
Renato Janine Ribeiro aponta que por isso, ao apre- ção do Estado? O estado de natureza hobbesiano talvez
sentar a ideia, Hobbes tenha recorrido a um recurso raro não seja um estado primitivo sem sociedade, mas sim
em sua obra – que afirma com veemência a distância do uma profunda análise subjetiva de um estado que im-
interlocutor – de introduzir o leitor em seu discurso:31 pulsionou os seres no processo de ruptura e recriação
“Que opinião tem ele [o leitor] de seus compatriotas, ao de uma sociedade.
viajar armado; de seus concidadãos, ao fechar suas por- Retornemos aos motivos da guerra em Hobbes. O
tas; e de seus filhos e servidores, quando tranca seus primeiro, como explicitamos, é a competição pelo objeto
cofres?”.32 Veja bem, Hobbes sabia o quão desafiadora de desejo, o que leva o homem a perseguir e atacar ten-
era sua proposta e o peso que lhe cabia, por isso seu do em vista o lucro. O exemplo dado é o do desprovido
texto carregava uma permanente ironia.33 que cobiça o bem do industrioso dono ou proprietário.
Conforme seu enredo: os concidadãos, motivados Veja bem, no estado de natureza hobbesiano pode haver
pelo medo, acordam em estabelecer a paz e invocar o Le- propriedade, ou quase-propriedade, de modo que não
viatã – a analogia demoníaca que extraiu de Jó. E quem é um estado datado no tempo no qual os seres primiti-
é Leviatã? É o Estado de poder absoluto, uno, indivisível. vos selvagens apenas caçavam e colhiam na natureza.
Olhe mais uma vez para o frontispício de Leviatã! A ico- O segundo é a desconfiança geral, isto é, o medo, o que
nografia revela que é o Estado soberano, formado por desencadeia a tentativa de manter a segurança, em es-
seus súditos, concentrador da violência (na mão direi- pecial da vida, da liberdade e da propriedade. O tercei-
ta a espada) e da produção e da aplicação das leis (na ro é a glória, ou seja, a busca incessante pela boa repu-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

tação. Note que esses três valores são na verdade um ta por Sheldon Wolin, como uma “possibilidade sempre
prelúdio dos ideais aristocráticos; seriam eles a anun- presente, inerente a toda sociedade política organizada
ciação de um período pré-moderno, protoburguês. Não (...) uma ameaça onipresente que, como macabra acom-
que Hobbes estivesse levantando uma defesa ao que vi- panhante, seguia a sociedade em cada etapa de seu
ria ser a burguesia,37 porém percebeu tais ideais, pro- trajeto”.39 Behemoth está sempre à espreita de Leviatã,
venientes das relações materiais no convívio humano e por isso o primeiro é, por prudência, considerado nas
– levando em consideração uma perspectiva mais ma- estratégias de uso do poder do segundo.
terialista –, e propôs que os mesmos exigiriam uma de- Se analisarmos o estado de natureza hobbesiano
terminada forma de organização da sociedade: o Esta- apenas como uma fantasmagórica lembrança da fragili-
do. Estado esse que se transformou ao longo do tempo, dade das ordens políticas (pré) estabelecidas e como um
mas se manteve de pé. permanente risco de retorno à instabilidade dos confli-
Se adotamos essa releitura, podemos desprender tos violentos generalizados (e tivemos muitos exemplos
que o estado de natureza hobbesiano não está neces- na história para recordar), pode ser possível fazer uma
sariamente localizado em um tempo cronológico ante- releitura contemporânea menos anacrônica. O exer-
rior a sociedade civil, e talvez se mantenha vivo, alojado cício imaginário de Hobbes é evidentemente inspirado
na paradoxal estrutura burguesa do Estado: nem com- no contexto de crise e caos em que o autor escreve: a
petição, nem desconfiança, nem glória precisam ser ex- guerra civil, o conflito religioso e a revolução política.40
tirpados, estes são na verdade fundamentais ao homem Assim deve ser compreendido como uma ficção teóri-
lobo, que busca lucro, segurança e reputação, e são os ca, porém que “comunicava aos homens do século XVII
catalisadores da organização e manutenção pela força um significado vivido, e nada fictício”.41 Hobbes afirma:
do Estado para se alcançar a paz. Nesse sentido o es-
tado de natureza de que agora se trata nada mais é do
que a sociedade desses homens sem a estrutura do po-
der comum do Estado ou, como diz Christopher Hill, é a
sociedade burguesa “sem a polícia”.38 E essa, foi descri-

26
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Se no tempo, como no espaço, houvesse graus de alto e a escatologia judaica no fim dos tempos, “Gabriel será
baixo, acredito firmemente que o mais alto de todos os chamado para matar o Leviatã, mas não logrará fazê-lo,
tempos seria o que transcorreu de 1640 a 1660. Pois então Deus ordenará que o Behemoth entre na batalha,
quem nele se postasse, como na Montanha do Diabo para tal luta resultará na morte dos dois monstros”.43 É pos-
olhar o mundo e observar as ações dos homens, especial- sível dar um novo olhar à leitura hobbesiana invocando
mente na Inglaterra, poderia descortinar um panorama tal mitologia, recordando de Walter Benjamin ao expli-
de todas as espécies de injustiças e de todas as espécies car a fonte instauradora de direito da violência da guer-
de loucura que o mundo possa tolerar, e de como foram ra: o vencedor ao declarar e sancionar a paz (no sentido
produzidas pela hipocrisia e vaidade (self-conceit), sen- correlato de guerra) exige o reconhecimento de novas
do aquela dobrada iniquidade e esta dupla loucura. (HO- relações de “direito”.44 Na violenta batalha messiânica
BBES. T. Behemoth. Dialógo I, p. 1) de Behemoth (a guerra civil) e Leviatã (o Estado), o pri-
meiro vence o segundo, porém ambos morrem. Como o
Pois era dessa espécie de Montanha do Diabo que poder sempre existe – pois todo vácuo é de alguma for-
Hobbes mirava o mundo. Hobbes propõe os enunciados ma ocupado – e não seremos arrebatados, se dá uma
de sua filosofia política a partir de um episódio dramáti- nova articulação desse poder, o (re)nascimento de al-
co de crise, tentando definir condições necessárias para gum monstro “leviatânico”, que não diminuirá esforços
o estabelecimento da ordem política – o que, diga-se de (aqui empregado no maior sentido da força) para evitar
passagem, não é incomum na filosofia política –, pois de que um novo Behemoth venha abalar as estruturas de
certa forma, era portador de alguma esperança.42 Alguns poder estabelecidas, inclusive em um “autogolpe” para
“hobbistas” consideram a teoria hobbesiana até mesmo se proteger. Nada que possa nos lembrar mais da Revo-
messiânica. Na introdução ao leitor do Leviatã o autor lução Francesa e o golpe de 18 de Brumário.
cita duas paixões: esperar, temer. O medo de Hobbes se
conecta à esperança, e é carregando essa ambiguidade DOS DESCAMINHOS DA VIOLÊNCIA CONTEMPORÂNEA:
que estrutura sua proposta de um Leviatã. ALGUMAS FACETAS LEVIATÂNICAS
Em uma leitura rápida poderíamos desprender que Chamar inadvertidamente o Estado hoje de Leviatã
na filosofia hobbesiana o Leviatã seria a figura respon- – e há de se perguntar se de fato houve algum Leviatã
sável por aniquilar Behemoth, isto porque é o Estado ab- na América Latina – é um tanto quanto anacrônico, no
soluto que se impõe violentamente perante a guerra civil entanto é possível notar algumas facetas “leviatânicas”
para o estabelecimento da paz. Porém, segundo afirma no exercício do poder pelo nosso Estado contemporâ-
neo. A figura do nosso Estado poderia invocar mais um
outro ser da mitologia judaica, a figura de Asmodeus,
um demônio possuidor de três cabeças, uma de homem,
uma de touro e uma de carneiro, representando assim
a consagração dos três poderes.
Por outro lado, é possível hoje visualizar outros en-
tes de poder, não estatais, em nossa sociedade. Atilio
Borón chama, por exemplo, as grandes transnacionais
de “Novos Leviatãs”, que teriam com a crise do capita-
lismo e a reforma neoliberal iniciada na década de 80
(e implementada no Brasil na década de 90), usurpado
o poder do Estado:

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

“... os Leviatãs agora são muitos, e não só um, como queria


o filósofo político. E, mais importante ainda, esses Levia-
tãs são privados, são as grandes empresas que, nas últi-
mas décadas, garantiram seu predomínio nos mercados
mundiais até limites inimagináveis faz poucos anos. Como
sabemos, o poderio que hoje caracteriza os megaconglo-
merados da economia mundial – gigantescas burocracias
Esse Estado, formalmente democrático, é delimita-
privadas que não prestam conta a ninguém nem a nada
do pelo constitucionalismo, que consagra as liberdades
– não tem precedentes na história”. (BORON, 1999:38).45
individuais e os direitos sociais em uma Carta Magna.
Sobre esse prisma Asmodeus é um tanto mais frágil que
Ao lado desses “Novos Leviatãs” não poderíamos dei-
Leviatã, pois, na teoria, é obrigado a cumprir as leis. Isto
xar de colocar a grande mídia corporativa, que exerce um
é dizer, a Constituição dá uma direção ao Estado, para
poder achincalhador para obter seus interesses, através
que o mesmo aja a fim de garantir direitos e, por outro
do controle da informação, ademais imperam dentro da
lado, serve para reduzir a possibilidade de arbitrarie-
produção de opiniões e subjetividades, possuindo enor-
dades do mesmo, criando instrumentos próprios para
me influências nos movimentos dos cidadãos. Pois é bem
tanto: a constituição escrita, as declarações de direitos,
provável que se Hobbes estivesse hoje olhando para a
a legalização da oposição, o controle de constitucionali-
nossa situação buscasse submeter o poder da mídia ao
dade, a imobilidade e independências dos juízes, a rigi-
Estado com tanta ênfase como fez com a Igreja. A pro-
dez constitucional, etc. Veja bem, quanta confiança fora
posição de secularização peculiar de Hobbes, que gira
depositada nos intérpretes da Constituição, na casta to-
em torno da própria teologia política, e busca não só li-
gada! Sofremos hoje a consequência dessas resoluções.
mitar o poder espiritual ao reino de Deus, mas disponi-
Na prática vemos que, sendo o próprio Estado quem faz,
bilizar a Igreja como arma do Estado. Hobbes não era
aplica e fiscaliza o cumprimento das leis, a Constituição
ingênuo quanto ao poder de manejo das consciências
abre brechas para que o Estado a tome de assalto, o que
que a Igreja possuía, e o quanto elas eram essenciais
explica o fato de hoje o pensamento progressista ter que
para ameaçar o Estado na forma da rebeldia. A Igreja
pautar a defesa da legalidade.
possuía um especial poder em introduzir uma opinião
A engenharia jurídica do constitucionalismo deslo-
– mais no sentido de doxa – inconsciente nos cidadãos,
ca a relação de violência entre o Estado e seus (“não”)
uma convicção que lhe rege as ações, sem mesmo sa-
representados para a relação tensa entre duas formas
ber por quê.46 Pois parece se assemelhar muito com o
de exercício do poder popular, o poder constituído e o
poder dos grandes conglomerados da mídia. Havendo
poder constituinte. O que vale: o poder constituído pro-
hoje tantas figuras “leviatânicas”, é normal que essas,
nunciado pela boca do próprio Estado (à mercê de sua
por vezes, disputem poder entre/sobre si. Porém con-
interpretação) ou o poder constituinte, a potência der-
sideremos apenas a figura desse novo Estado “leviatâ-
radeira das insatisfações populares? Hobbes teria dito
nico” aqui invocado como Asmodeus.
que o primeiro, pois a justiça é o respeito ao pacto de-
terminado, à soberania do Estado. A teoria constitucio-
nal liberal clássica também responde que a primeira
propositura é a correta, pois o poder constituinte, en-

28 Calamidade
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

quanto núcleo essencial da democracia, seria absorvi- Eis que estamos diante da faceta mais leviatânica de
do pela Constituição, encerrando em si sua expansão.47 nosso Estado, a concentração da violência, no caso jus-
Porém a teoria crítica trabalha na contramão. A aber- positivada, nas mãos do poder estatal, essa externada
tura teórica que dá ao poder constituinte a possibilida- constantemente, em especial pelo poder punitivo do Es-
de de direito de resistência ou de desobediência civil é tado. A violência fora do direito é então reprimida, mas
grande. Assim como Behemoth está sempre à espreita, não necessariamente ilegítima, nem mesmo em Hobbes.
o poder constituinte sempre o acompanha. É imprescin- Diremos isso porque Hobbes não exige que o homem
divelmente por isso que Benjamin assinala que devemos abra mão do direito de resistir à força que ameaça sua
considerar que vida,49 mas estabelece que se esse direito de resistir for
contrário as leis soberanas é melhor que o súdito corra
“o interesse de monopolizar a violência com relação aos do Leviatã,50 pois o poder soberano deve reprimir tudo
indivíduos não se explicaria pela intenção de garantir os aquilo que o desafie a fim de manter a estabilidade, isto
fins de direito, mas, isso sim, pela intenção de garantir o é, o cidadão que recupera essa liberdade contra as leis
próprio direito; de que a violência quando não se encon- do Estado está então fora do corpo político dele e pode
tra nas mãos do direito estabelecido, qualquer que seja ser perseguido pelo Deus Mortal.
esse, o ameaça perigosamente, não em razão dos fins Por outro lado, o poder soberano, uno e indivisível do
que ela quer alcançar, mas por sua mera existência fora povo é mais uma vez levado pela figura da representati-
do direito.” (BENJAMIN, 2011:127).48 vidade no Estado, entretanto esse o exerce em três fun-

outubro • Novembro • dezembro 2016 29


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ções, que costumeiramente são chamadas de três po- do conceito de anomia poderia trazer à tona Durkheim,
deres, é a tripartição dos poderes políticos proposta por mas também poderia invocar Hobbes. Isto porque, mui-
Montesquieu. Apesar de repetirmos o mantra consagra- to antes de escrever Leviatã, Hobbes se debruçou na
do pelos norte-americanos51 do checks and balances, es- realização de uma tradução meticulosa da história da
tes sempre se constituíram muito mais como uma fricção Guerra do Peloponeso de Tucídides, o que mostra a in-
mútua entre as três cabeças desse Estado.52 Talvez por clinação de Hobbes para compreender o mundo a par-
buscar reduzir ao máximo os atritos no exercício do po- tir das guerras. Conforme aponta Carlo Ginzburg a den-
der do Estado, Hobbes tenha defendido um modelo mais sa análise de Tucídides se abre com a palavra anomia,
centralizado, a monarquia absoluta – e não parlamentar. que designa a ausência de lei, ou melhor, a dissolução
Trazendo para o nosso contexto específico, aquele de toda lei diante do desencadeamento da peste,54 um
apresentado do prólogo, sobre esse atrito intenso que episódio fático que poderia ter inspirado inicialmente
hoje vivemos, que parece ser para além de um mero Hobbes ao exercício imaginário do estado de nature-
atrito, mas uma crise institucional, Wanderley Guilher- za. O autor ressalta um dado importante, Hobbes teria
me dos Santos escreveu: expressado a sua própria interpretação na tradução,
pois no lugar de traduzir que “O medo dos deuses ou as
O Executivo desconfia do Judiciário, que despreza o Le- leis humanas já não representavam um freio” traduzi-
gislativo, que ignora o povo, que detesta o Executivo. Em ra “Neither the fear of the gods, nor laws of men awed
condições normais, esse tipo de rondó institucional não any man”, ou seja: nem o temor dos deuses nem as leis
é raro, de duração temporal limitada, sem provocar da- dos homens incutiam sujeição.55 O que indica é que Ho-
nos importantes à comunidade. Com o ato falho consti- bbes já sinalizava que haveria sempre uma relação en-
tucional do impedimento da presidente Dilma Rousseff, tre o medo e seu resultado, a sujeição. Mais uma vez ve-
contudo, o rondó nacional mergulhou a ordem jurídica e mos o medo ser levado para o centro da política hobbe-
política na clandestinidade, não obstante a aparente nor- siana, pois é esse medo de incute a sujeição ao Leviatã:
malidade das rotinas operacionais. Todos os figurantes “Esta é a fundação daquele grande Leviatã, ou melhor,
continuam em serviço, mas o que antes era exercício de para falar com mais reverência, daquele Deus mortal
funções converteu-se em artifício de representação. O a quem, abaixo do Deus imortal, somos devedores de
Executivo presume que governa, mas tiraniza, o Judici- nossa paz e defesa”.56 O conhecido dramaturgo revolu-
ário imagina que julga quando, apesar da linguagem ar- cionário, Bertolt Brecht, afirmou que “nada é mais pa-
cana, distribui sentenças arbitrárias, e o Legislativo se recido com um fascista do que um burguês assustado”,
agita em decisões de pantomima clássica. A anomia ab- pois o medo movimenta na burguesia essa dialética en-
sorveu a democracia brasileira. (...) O maligno da anomia tre amor e ódio à tirania.
consiste em que as ações dos personagens produzem
graves conse­quências no mundo verdadeiro, parte de-
las irrevogáveis.53

A anomia tomou conta de cima a baixo, vez que nos-


so Estado, em tese, deveria respeitar a própria ordem
instituída, e uma das graves consequências irrevogá-
veis a ser gerada é a generalização da violência. O uso

30 Calamidade
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O filósofo incendiário Slavo Zizek chama a atenção O poema não voa de asa-delta
para a importância do medo nas políticas atuais: não mora na Barra
não frequenta o Maksoud.
Hoje a variante predominante da política é a biopolítica Pra falar a verdade, o poema não voa:
pós-política – impressionante exemplo de jargão teórico anda a pé
que, no entanto, podemos decifrar com facilidade: a “pós- e acaba de ser expulso da fazenda Itupu
-política” é uma política que afirma deixar para trás os pela polícia.
velhos combates ideológicos para se centrar, por outro Come mal dorme mal cheira a suor,
lado, na gestão e administração especializadas, enquanto parece demais com o povo:
a “biopolítica” designa como seu objetivo principal a regu- é assaltante?
lação da segurança e do bem-estar das vidas humanas é posseiro?
(...) O que significa que, com a administração especializa- é vagabundo?
da, despolitizada e socialmente objetiva e com a coorde- frequentemente o detêm para averiguações
nação dos interesses como nível zero da política, a úni- às vezes o espancam
ca maneira de introduzir paixão nesse campo e de mobi- às vezes o matam
lizar ativamente as pessoas é através do medo, um ele- às vezes o resgatam
mento constituinte fundamental da subjetividade de hoje.
da merda
por um dia
(...) Uma (pós-)política dessa natureza assenta-se sempre
e o fazem sorrir diante das câmeras da TV
na manipulação de um ochlos ou de uma multidão para-
de banho tomado.
noica: é a união assustadora de pessoas aterrorizadas.
O poema se vende
(ZIZEK, 2014:45-46).57
se corrompe
confia no governo
É esse medo constante que alimenta os Estados
desconfia
leviatânicos. E é esse mesmo medo que abre possibilidades
de repente se zanga
para que o Estado se imponha a si mesmo para se salvar,
e quebra trezentos ônibus nas ruas de Salvador.
o que faz lembrar a assertiva “A Revolução (sic) se le-
O poema é confuso
gitima a si mesma” no primeiro Ato Constitucional de
mas tem o rosto da história brasileira:
abril de 1964, uma revolução do próprio poder esta-
tisnado de sol
tal, contra um suposto grupo revolucionário. Isto não
cavado de aflições
é um palpite, esperemos sinceramente que nossos ca-
e no fundo do olhar, no mais fundo,
minhos sejam outros. Separando as opiniões do cida-
detrás de todo o amargor,
dão da grandeza do poeta que nos deixou, e acordan-
guarda um lampejo
do que o conhecimento existe apenas em lampejos,58 o
um diamante
que findamos com um dos mais belos poemas de Fer- duro como um homem
reira Gullar, O lampejo: e é isso que obriga o exército a se manter de prontidão.

A autora é Mestranda em Direito Constitucional na Universidade Fe-


deral Fluminense, integrante do Laboratório de Estudos Interdisci-
plinares em Direito Constitucional Latino-Americano e avaliadora da
Revista de Direito dos Monitores da Universidade Federal Fluminense
acbonan@gmail.com

outubro • Novembro • dezembro 2016 31


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

notas de rodapé

1. A título de exemplo: Nos Estados Unidos, o crash financeiro de 2008, os http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/11/ministros-travam-discus-


“99%” que ocuparam Wall Street em 2011, a onda populista conservado- sao-aspera-durante-sessao-do-stf.html
ra nas ruas para eleger Trump, e agora as manifestações contra o pre-
sidente recém-eleito. O repique da crise financeira na Europa em 2010 11. BENITES, Afonso. Supremo salva Renan Calheiros e preserva pauta de
também incendiou as insurgências. A mobilização popular grega ocupou Temer no Senado. El País: Brasília: 08/12/2016. Disponível em http://bra-
os espaços públicos para garantir a resistência às cominações de arro- sil.elpais.com/brasil/2016/12/07/politica/1481129460_534947.html
cho da União Europeia, mas não logrou tirar a Grécia do buraco. Na Espa-
nha, o movimento do 15M, ou “os indignados”, fundou o partido Podemos 12. Os valores desembolsados pelos jantares de Temer não foram de-
e saiu vitorioso nas urnas, sob a forma de um “municipalismo horizontal clarados oficialmente, diferentes notícias foram divulgadas, levando em
e constituinte”, mas nas eleições de 2016 cavaram uma espécie de crise consideração as mais conservadoras, os valores orbitam entre os R$ 35
política e saíram enfraquecidos. Na chamada Primavera Árabe, cidades mil e R$ 100 mil.
da África do Norte e do Oriente Médio, foram cenário de disputas inten-
sas e mesmo sangrentas entre a insurgência popular e os setores que 13. VASCONCELLOS, Bruno Motta de. Leviathan nu:por uma leitura não
apoiavam a restauração violenta de ditaduras. logocêntrica do conceito de soberania na obra de Thomas Hobbes, com
aplicações para regimes democráticos. Abril de 2014. Fls. 290. Disser-
2. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A Anomia Anuncia A Tirania: Rima tação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Direito da PUC-Rio,
Sem Solução. Segunda Opinião: insight.net: 30/11/2016. Disponível em: Rio de Janeiro: 2014.
http://insightnet.com.br/segundaopiniao/
14. “[é] verdade que o livro atraiu uma grande quantidade de comentários
3. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A Idade Média Nacional. Segunda hostis durante a segunda metade do Século XVII, mas a razão para isto
Opinião: insight.net: 16/09/2016. Disponível em: http://insightnet.com. não era o fato de que os argumentos de Leviathan fossem muito absur-
br/segundaopiniao/ dos para serem levados a sério. Na realidade, em vários casos, os críticos
de Leviathan eram mais impelidos a atacar o livro, precisamente, porque
4. Antes a favor do impeachment de Dilma, agora pela bandeira “contra ele era lido e utilizado por vários indivíduos e grupos” (tradução livre de
corrupção”, que coloca o governo de Temer na mira. Publicações como PARKIN, 2007b, p. 441). In VACONCELLOS, Bruno de Motta. Op. Cit., p. 12
o Der Spiegel (Alemanha), The Economist (Inglaterra), El País (Espanha),
Público (Portugal), The Guardian (Inglaterra) e Página 12 (Argentina) vêm 15. BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 6 ed. Brasília: UnB, 1992.
apontando o papel da grande mídia brasileira nessa crise. Nesse sentido,
Glenn Greenwald, Andrew Fishman e David Miranda declararam na maté- 16. Contestados pela teoria crítica, em especial marxista, na concepção
ria “O Brasil Está Sendo Engolido Pela Corrupção — E Por Uma Perigosa do materialismo histórico-dialético. Segundo a perspectiva marxistas, o
Subversão Da Democracia”, do The Intercept, que: “Para se ter uma no- contrato social, enquanto alegoria transcendental, findava por apagar
ção do quão central é o papel da grande mídia na incitação dos protes- processos históricos de conflitos.
tos: considere o papel da Fox News na promoção dos protestos do Tea
Party. Agora, imagine o que esses protestos seriam se não fosse ape- 17. VASCONCELLOS, Bruno de Motta. Op. cit., p. 46.
nas a Fox, mas também a ABC, NBC, CBS, a revista Time, o New York Ti-
mes e o Huffington Post, todos apoiando o movimento do Tea Party. Isso 18. RIBEIRO, Renato Janine. A Marca do Leviatã – Linguagem e Poder em
é o que está acontecendo no Brasil”. Disponível em https://theintercept. Hobbes. 2ª Edição, Prefácio. Ateliê Editorial: São Paulo, 2003.
com/2016/03/18/brazil-is-engulfed-by-ruling-class-corruption-and-a-
-dangerous-subversion-of-democracy/ 19. “Atque metum tantum concepit tunc mea mater,/ Ut pareret geminos,
meque metumque simul.” “T. Hobbes Malmesburiensis vita, scripta anno
5. Imagens podem ser vistas em MAIA, Gustavo. Policiais do RJ invadem MDCLXXII”. In: GIZBURG, Carlo. Medo, Reverência e Terror – Quatro Ensaios
ALERJ em protestos contra corte do Estado. Notícias Uol: Rio de Janeiro: de iconografia política. Tradução Federico Carotti, Joana Angélica D’Ávila
08/11/2016. Disponível em http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas- Melo e Júlio Castañon Guimarães. Editora Companhia das Letras: 2014
-noticias/2016/11/08/vai-virar-um-inferno-agentes-de-seguranca-do-
-rj-protestam-contra-cortes.htm 20. DE QUINCEY, Thomas. Del asesinato considerado como una de las Be-
llas Artes. Ediciones LEA, 2015. p. 25-27.
6. Em outubro desse ano foram computadas 1.154 instituições de ensino
ocupadas. Ver o mapa das ocupações em ABRANTES, Talita. O mapa das 21. Ibidem.
ocupações de escolas e faculdades contra Temer. Exame.com: Brasil em
27/10/2016. Disponível em http://exame.abril.com.br/brasil/o-mapa- 22. HOBBES, Thomas. Considerations upon the Reputation – English Works,
-das-ocupacoes-de-escolas-e-faculdades-contra-temer/ v. IV, pág. 414. In RIBEIRO, Renato Janine. Ao leitor sem medo – Hobbes
escrevendo contra o seu tempo. 2ª Ed. Editora UFMG: 2004
7. Vale lembrar a prisão de Eduardo Cunha e as recentes escandalosas
prisões dos ex-governadores Sérgio Cabral e Anthony Garotinho. 23. GIZBURG, Carlo. Op. Cit. p. 12.

8. Sobre o tema recomendo: PRADO, Geraldo. O fascismo avança. Justifi- 24. Ibidem.
cando: 12/12/2016. Disponível em http://justificando.com/2016/12/05/o-
-fascismo-avanca/ 25. RIBEIRO, Renato Janine. Thomas Hobbes, ou A Paz contra o Clero. In
Filosofia política moderna. De Hobbes a Marx – BORON, Atilio A. CLACSO,
9. Notícia Paraná 247: http://www.brasil247.com/pt/247/parana247/246431/ Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales; DCP-FFLCH, Departamen-
Ju%C3%ADzes-protestam-contra-projeto-que-altera-lei-de-abuso-de- to de Ciências Políticas, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Huma-
-autoridade.htm nas, USP, Universidade de São Paulo: 2006.

10. OLIVEIRA, Mariana, e RAMALHO, Renan. Ministros travam discussão 26. Recentemente, a pesquisa que culminou com a obra já citada Leviathan
áspera durante sessão do STF. G1: Brasília: 16/11/2016. Disponível em nu. Por uma leitura não logocêntrica do conceito de soberania na obra

32 Calamidade
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

de Thomas Hobbes, com aplicações para regimes democráticos, de Bru- “De esp’rança outra vez prenhe e seu par gêmeo, o medo
no Motta de Vasconcellos (já citado neste ensaio), trouxe uma reflexão um Muito indaguei de ti, como e onde estavas, e do
tanto pessoal, porém bastante provocativa e bem fundamentada, na qual Meu mesmo anseio de sabê-lo a quem assim cedo”
rechaça a tese de que há alguma natureza humana categórica, em espe- (Tradução: Eugênio Gardinalle Filho).
cial maligna, a ser domada pelo Estado convencionado na teoria hobbe-
siana e traz um Hobbes muito mais palatável aos tempos contemporâneos. 43. Tradução Livre de Leviathan And Behemoth. Jewish Encyclopedia.
Disponível em http://www.jewishencyclopedia.com/articles/9841-levia-
27. RIBEIRO, Renato Janine, 2006. Op. Cit. than-and-behemoth

28. HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado 44. BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas
Eclesiástico e Civil. Cap. XIII. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Cidades; Ed. 34, 2011, p. 130-131.
Beatriz Nizza da Silva (1999).
45. BORÓN, Atilio. Os “novos Leviatãs” e a pólis democrática: neoliberalis-
29. Lupus est homo homini, non homo, quom qualis sit non novit: Um ho- mo, decomposição estatal e decadência da democracia na América La-
mem é um lobo para um homem, não um homem, quando desconhece o tina. IN: Pós-neoliberalismo II: que Estado para que democracia? Sader,
caráter do outro. Tradução livre de PLAUTUS, 2006, p. 52. Essa máxima Emir e Gentili, Pablo(orgs.). Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
fora contraposta por Séneca, que apresentou a sentença Homo, sacra
res homini: Um homem é algo sagrado para o homem. Tradução Livre de 46. RIBEIRO, Renato Janine, 2006. Op. cit.
SÉNECA, Lucio Anneo. Cartas Filosóficas (Epístolas Morales a Lucilio).
ePUB v1.2: 22/10/2011. 47. NEGRI, Antonio. O poder constituinte – ensaio sobre as alternativas
da modernidade. Tradução Adriano Pilatti. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
30. VASCONCELLOS, Bruno de Motta. Op. cit.
48. Op. cit.
31. RIBEIRO, Renato Janine. 2006. Op. cit.
49. HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado
32. HOBBES, Thomas. (1999) Op. cit. Eclesiástico e Civil. Cap. XIV. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria
Beatriz Nizza da Silva (1999).
33. Bruno de Motta Vasconcelos propõe que é dessa ironia que se extrai
uma consideração valiosa, a de que ao passo que Hobbes dá elementos 50. “Hobbes e Dylan: um som para o Leviatã: Oh God said to Abraham, “Kill me
para construir uma autoridade absoluta, carrega em si elementos que a son”/ Abe says, “Man, you must be puttin’ me on”/ God say, “No.” Abe say,
desmontam uma ideia de autoridade, não só a partir de seu discurso de- “What?”/ God say, “You can do what you want Abe, but/ The next time you see
molidor da autoridade do clero como através de seu método. me comin’ you better run” (DYLAN, 1965). É Dylan, mas poderia ser Hobbes.
De fato, suficiente seria acrescentar a God o epíteto Mortal – redundando,
34. MOUFFE, Chantal. The democratic paradox. Verso, London, 2000. pois, em Mortal God – para fazer com que as palavras do cantor de folk-ro-
ck acabassem por se tornar uma sentença do filósofo.Diria tal Deus Mor-
35. VASCONCELLOS, Bruno de Motta. Op. Cit. tal a um seu Súdito: “há o direito por mim posto. Caso tu não o sigas, é me-
lhor que corras”. In LAURINDO, Marcel Mangili. O Leviatã desafiado: há um
36. “o primeiro tratamento sistemático do antagonismo como o Real da direito de resistência em Hobbes?, 2012 Disponível em http://www.oab-sc.
política corre por conta de quem com mais energia tentará depois erguer org.br/artigos/leviata-desafiado-ha-direito-resistencia-em-hobbes/218
as mais altas muralhas contra a ameaça terrível que tal antagonismo
sempre renovado suscita no mundo social”. In RINESI, Eduardo. Hobbes 51. A lembrar do caso Marbury x Madison, em 1803, quando o Justice
e o antagonismo como real da política. São Paulo: Lua Nova, no. 51, 2000. Marshal afirmou ser competência constitucional do Poder Judiciário de-
clarar a inconstitucionalidade dos atos do Congresso, anulando-os, sem-
37. E aqui discordo com a tese de McPherson. Hobbes de fato não apre- pre que as leis não se harmonizassem com a Carta Magna. No entanto,
ciava os comerciantes, em parte porque esses incentivavam a guerra ci- vale ressaltar que foi na Inglaterra que se criou os instrumentos do im-
vil, muitas vezes com recursos, e chegou a enunciar seu desprezo aos peachment e do veto.
“os vícios lucrativos dos homens do comércio e artesanato, tais como
a dissimulação, a mentira, o engodo, a hipocrisia ou outras coisas des- 52. GARGARELLA, Roberto. Capítulo VI. En nombre de la Constitución. El
caridosas”. (HOBBES, T. Behemoth ou o longo parlamento. Belo Horizon- legado federalista dos siglos después. In La filosofía política moderna.
te: UFMG, 2001:59). De Hobbes a Marx BORON, Atilio. CLACSO, Consejo Latinoamericano de
Ciencias Sociales, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. 2000.
38. Hill, Christopher. 1990 (1958) Puritanism and Revolution (Harmond-
sworth: Penguin) p. 271 53. SANTOS, 2016. Op. cit.

39. Wolin, Sheldon. Política y perspectiva. Continuidad y cambio en el 54. Op. cit. p. 13.
pensamiento político occidental. Buenos Aires: Amorrortu, 1973, p. 282.
55. Ibidem.
40. RINESI, Eduardo. Op. cit.
56. HOBBES, Cf. Leviathan, cap. 17, p. 227
41. Wolin, 1973. Op. cit.
57. ZIZEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. Tradução Miguel Ser-
42. Ricardo Janine Ribeiro propõe em Ao Leitor Sem Medo (Op. cit.) uma ras Pereira. 1° Ed – São Paulo: Boitempo, 2014.
leitura de que Hobbes poderia ter se autoproclamado portador da espe-
rança, ao afirmar em sua biografia ser gêmeo do medo, resgatando o poe- 58. BENJAMIN, Walter. Passagens. Trad. de Irene Aron. Belo Horizonte:
ma de John Dunne, dedicado a “T. W.”: Editora da UFMG, 2006. P. 499

outubro • Novembro • dezembro 2016 33


GERSON
A ESQUERDA
ESTÁ VIVA
& PASSA MUITO BEM

DEPOIMENTO A LUIZ CESAR FARO


E CLAUDIO FERNANDEZ

34 Canhota
outubro • Novembro • dezembro 2016 35
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Os mestres do mestre
Eu não me considero tão inteligente assim. Eu acho, do. O Masopust, mais esperto, foi atrasando a passada
sim, que sou um privilegiado. Tá certo? Graças a Deus para deixar a jogada para mim. Se sobrar alguma coisa,
eu pedi e abusei do pedido. Eu fui carimbado. O sujeito ele pega. Se não sobrar nada, ele também não passa por
diz assim: “Eu vou ser advogado”. Vai. Estuda e vai ser bobalhão, como eu passaria. Quando me aproximei, ele
advogado. “Eu vou ser engenheiro... professor”. Estuda pressentiu que eu estava chegando. O que que ele fez?
e vai ser. Agora, ele diz “Eu vou ser jogador de futebol...”. Dominou a bola no peito. Quando ela caiu, ele deu um
Não basta!. “Eu vou ser pintor...” Não basta! Isso é dom. A bate pronto, me encobriu, dominou mais pra frente no-
pessoa traz e vai aperfeiçoando. Eu, repito, fui um privi- vamente no peito e foi embora com ela. E eu fiquei com
legiado dentro do futebol porque tive três mestres: Didi, uma vergonha. E para voltar para o meu campo? O Didi
Zizinho e Jair da Rosa Pinto. Ninguém teve o melhor do só olhou para mim com quem diz: “Não avisei?” Nunca
futebol brasileiro. Ninguém. Eu ainda joguei ao lado do mais eu fui afoito numa jogada. Essa juventude que está
Didi, quase no final da carreira dele. Não joguei com Zizi- aí hoje não sabe isso porque não tem com quem apren-
nho nem com Jair da Rosa Pinto. Mas vi jogar e conver- der. O Didi também me dizia o seguinte: “Por que você vai
sava muito com eles. Eu perguntava a eles: “Como é que buscar o cara lá na intermediaria dele? Para ele te dri-
eu faço? Por que é assim? Por que não é assim?” Então blar e você ter que vir correndo atrás dele? Marcador
ao pouquinho que eu sabia eu ia acrescentando o mui- que corre atrás não está bem colocado. “Então, ele não
to que eles sabiam e fui guardando aquilo tudo. E botava tem que vir pra esse gol? Ele não tem que fazer gol aqui?
dentro do campo para funcionar. Lembro de um episó- Tem. “Ele vai ter de passar por aqui para fazer gol. Ele
dio durante uma excursão do Botafogo em El Salvador. não pode sair do estádio”. Quando ele passar, eu estou

O sujeito diz assim: “Eu vou ser advogado”. Vai. Estuda e vai ser.
Agora, ele diz “Eu vou ser jogador de futebol...”. Não basta! Isso é dom.

O Didi estava se despedindo do futebol. Em uma partida aqui. Quer dizer, são teorias, né? Na teoria, tudo parece
enfrentamos o checo Masopust, um brilhante jogador de inteligente. É preciso aplicá-las na prática.
meio do campo. Antes do jogo, o Didi virou pra mim e falou  
assim: “Você conhece o cara?” Eu respondi: “Eu conhe- Ourivesaria
ço de nome, né? Já vi várias vezes jogar, mas...” No que Pelo tanto que eu conversava com Didi, Zizinho e
o mestre Didi emendou: “É velho para caramba, mas de Jair da Rosa Pinto, eu procurei trazer um misto de cada
uma inteligência fora do comum. Então, deixa ele jogar. um para o meu jogo. Todos os três ajudaram a burilar o
Ele faz lá o dele e nós vamos fazer o nosso aqui porque meu estilo. Às vezes, terminava o primeiro tempo de uma
ele também com a idade que tem não vai marcar a gen- partida e um deles, vejam só que privilégio, vinha no ves-
te. Principalmente você”. À época, eu tinha 23 anos. Ele tiário conversar comigo. Conversar é modo de falar, tá
queria menos; eu, jovem, queria mais. Numa bela hora, o certo? “Xi, tá ficando maluco? Tá desaprendendo ou o
goleiro jogou a bola para o Masopust no meio do campo. quê? Tá errado isso, cara. Não vai por aqui pela direita.
O Didi, rapidamente, falou: “Vamos embora. Vamos tomar Fica aqui no meio. Você prestou atenção no cara ali? O
essa bola. “Tá bom”. O Didi foi de um lado e eu do outro. cara tá saindo dali e indo pela direita. É ali que você tem
Só que eu fui mais afoito, por ser mais jovem, mais rápi- que ir. Ficou burro?” Um deles quase sempre estava por

36 Canhota
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

perto. Nós éramos muito amigos. O Zizinho, por exem- do. “Clodoaldo, não tô conseguindo jogar cara, tá cer-
plo, já era amigo do meu pai. Eles jogaram juntos lá em to? Então, faz uma coisa. Vai você e me deixa aqui. Você
Niterói. Quer dizer, então eu tenho uma certa influência faz o meu e eu faço o seu. Quando ele (Montero Casti-
deles e é aquilo que eu fui carimbado. Entre os treina- llo) perceber que já não sou eu o principal, ele vai com
dores, eu destaco o Fleitas Solich, técnico do Flamen- você. E aí, quando você sentir que ele tá, você traz ele,
go quando eu era menino. Teve ainda o Modesto Bria, o aí eu vou. E, então, vamos saber aonde ele vai... Se ele
Newton Canegal, que foram meus treinadores no juvenil fica comigo ou contigo. Isso é problema dele, não nos-
do Flamengo. Mas talvez o mais inteligente dos técnicos so”. E o treinador do Uruguai começou a gritar no ban-
com quem trabalhei tenha sido o Zagallo. Ele já trazia a co que o cara não era mais eu, era o Clodoaldo. Ele não
inteligência tática que demonstrava como jogador. De-
pois, como treinador, ele costumava montar esquemas
com um punhado de variações.
 
Tática vs. técnica
Não tenho dúvidas de que o futebol de antigamente
era muito mais cerebral do que o de hoje. Atualmente, fa-
la-se muito em tática, esquema, o treinador ganhou uma
importância que não tinha etc. e tal. Mas a tática não é a
inteligência do jogo. A inteligência é e sempre será o jo-
gador. A tática é complemento. Ela até pode neutralizar
o craque, mas é muito mais fácil o craque, com o seu ta-
lento, desmontar a tática. Então, o esquema tem de ser
criado de acordo com o jogador. Às vezes, o técnico tem
um atleta talentoso, mas lento. E outro mais ou menos,
tá certo, mas rápido. Então, a missão dele é unir as duas
coisas e fazer os dois jogares, com o cérebro de um e as
pernas do outro. Então, eu vou correr menos e ele vai
correr talvez menos do que ele está acostumado, por-
que a bola vai chegar aonde tem que chegar. Só aqueles
metros pra encontrar a bola e fazer o gol. Ou não. Então,
uma coisa completa a outra, dentro de um esquema tá-
tico. Mas o esquema tático só funciona se eu, o jogador,
funcionar. Do contrário, esquece. Por exemplo: na Copa
do Mundo de 70 , tinha o Montero Castillo, do Uruguai,
que me marcava e não me deixava jogar. E eu fazia parte
de uma engrenagem. Eu escutava o treinador uruguaio
gritar. “Pega o Gerson, não deixa jogar.” E eu realmente
não estava jogando. E eu tinha de jogar porque eu tinha
um pedaço, uma fração daquele esquema que dependia
de mim. Outro jogador não podia fazer por mim, porque
já tinha o dele. Aí, lá pelas tantas eu falei com o Clodoal-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

era bobo. Ele começou, percebeu e mudou a marcação. Se o jogador, no gramado, acha que está com dificulda-
E o Clodoaldo começou a arrastá-lo com ele. E aí, de re- de, cabe a ele encontrar a solução. Agora, hoje também
pente, eu ia e o cara tinha que mudar e me acompanhar. tem uma coisa: é 50 a 50. 50% dos jogadores têm a tá-
Ficamos nisso durante um bom tempo. Numa dessas, ele tica e os outros 50% não têm talento. Então, esses 50%
não foi. O Clodoaldo foi. E fez o gol. Tostão abriu, ele en- que não são talentosos se aproveitam da tática para en-
trou aqui pela esquerda, onde eu tinha que entrar, mas cobrir suas deficiências, porque técnica eles não têm.
eu não podia porque eu estava marcado. Tostão meteu
a bola para o Clodoaldo e ele empatou o jogo. Quer di- As feras do Zagallo
zer, isso tudo não foi administrado pelo treinador. O Za- A seleção de 70 era um time de técnica, mas, aci-
gallo era fantástico, tinha um esquema montado, mas a ma de tudo, de muita inteligência. A gente pensava e fa-
gente estava sentindo o que acontecia dentro do campo. lava muito no campo. Eu, Carlos Alberto, Félix, Brito, Pia-
zza... Tinha sempre alguém pra falar. Bom...aí, então eu
tô vendo assim... assim... assim. E a defesa? A defesa é
isso... isso... isso. É melhor assim? É. Então, faz. E o meio
do campo? O meio do campo tá assim... assim... assim...
Vamos fazer, então, assim. Assim é melhor? É melhor. E
o ataque? O ataque tá desesperado lá na frente, cara!
O meio do campo não chega! Não, o meio do campo não
chega porque a defesa começa a gritar para a gente não
ir. Porque senão vai ficar um espaço muito grande. Tá
certo? Eu só posso ir se a defesa me acompanhar. En-
tão, foi o ataque, foi o meio de campo, vai a defesa. Vol-
tou a defesa, voltou o meio de campo, voltou o ataque.
Nosso ataque marcava o meio do campo deles. O nosso
meio do campo marcava o ataque deles. O ataque tinha
que vir para buscar a bola e nossa defesa sobrava. Fi-
cava tudo completo.
 
Treino é jogo e jogo é treino
Eu treinava muito para fazer os lançamentos. Eu
não fazia de orelhada. Eu pegava uma barreira de sal-
to e botava na meia lua da grande área. E ficava aqui na
intermediária. Eu tinha que meter a bola aí dentro. É di-
fícil, mas eu conseguia. Ok, mas aquilo era imóvel né? E
o atacante, não. Quer dizer. Um pouquinho mais pra cá
no lançamento. Um pouquinho mais pra lá, eu tava den-
tro do contexto. Tá certo? Então eu treinava pra fazer
isso. Antes do jogo, antes do treino, depois do treino. Eu
treinava, para... não digo isso naturalmente, porque nin-
guém fez isso, chegar a perfeição. Mas eu treinava pra
acertar todas. Eu, por exemplo, entrava no campo. Aí

38 Canhota
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

pintava um lançamento. Eu lançava, errei. Segundo lan- é que alguém vai dizer que o Garrincha não jogava hoje,
çamento pintava, peguei, meti a bola, errei. “Olha, aqui. que o Pelé não jogava hoje, que Zito, Dino Sani, Clodoal-
Pode parar, hein! Acabou o lançamento”. Não, eu não do, Falcão, Zico... Eu vou citar 80 mil, que não aceitariam
vou porque aí eu começo a ficar nervoso. O cara come- jogar com esses mambembes que têm por aí hoje. Para
ça a reclamar com toda razão que é minha responsabi- com isso... Em 66, nós formamos quatro seleções. Ne-
lidade a bola chegar lá e ela não está chegando e aqui- nhuma delas deu certo, mas por outros fatores. Não foi
lo... adrenalina lá em cima. Não vou chegar. Então, pa- por falta de grande jogador. Isso era o que mais havia.
rei. Bola em campo. Vamos pro jogo. Jogo normal. Daqui  
a pouco, o lançamento. Vi, pum, lancei. Acertei! Acertei O jogador do século XXI
outro! Galera, voltei! Não adianta, cara. Senão você fica Hoje basta ao jogador dar duas trombadas para virar
desesperado. Muitos dizem que nós do passado não jo- ídolo e ser chamado de craque. É brincadeira? A perda
garíamos no futebol de hoje. E eu respondo: é verda- da qualidade técnica é maior no Brasil do que no mundo.

Muitos dizem que nós do passado não jogaríamos no futebol de


hoje. E eu respondo: é verdade. Não jogaríamos de vergonha

de. Não jogaríamos de vergonha. O jogador hoje corre Mas o problema é global. Não há mais um Beckenbauer,
três dias seguidos e o que ele produz? Na minha épo- Masopust, Gento, Di Stéfano, Puskás, Evaristo. A técni-
ca, tirava-se exame de sangue pra saber se tinha sífi- ca e a inteligência do jogo se perdem quando o futebol
lis, qualquer infecção. Hoje, se tirarem uma gota do ló- começa a imprimir muito condicionamento físico. Ainda
bulo da minha orelha, vão saber da minha vida 50 anos que eu ache que o preparo físico chegou exatamente
para trás, 50 anos para frente. Pô, o DNA é de anteon- pra abafar um pouco a falta de técnica. Os técnicos dos
tem pra cá, cara. Tá certo? Então, é diferente. A discus- grandes jogadores foram parando. E os que vieram, vie-
são é essa. Antigamente, eram 80% de condição técnica ram com pouca técnica. Então, tinha que imprimir mais
e 20% de física. Hoje inverteu: 80% físico, 20% cérebro. condicionamento físico para o jogador aguentar o ritmo
Pega os jogadores técnicos de ontem e bota no preparo da partida, com a pouca técnica que tinha. E some-se a
físico atual. Sabe o que iria acontecer? Esses atletas de isso a decadência do trabalho de base. A formação do
hoje não carregariam o material sujo de treino – ouviu jogador hoje é muito ruim. Além disso, na grande maio-
bem? –, de treino da galera passada. É a pura verdade. ria dos times, o juvenil joga de uma maneira e o profis-
Você tem que discutir isso. Vou discutir física. Então, se sional de outra. Quando o atleta sobe e não tem uma se-
é para discutir físico, eu digo mais: a seleção de 70 foi a quência de jogos, como é que ele vai se adaptar no novo
mais bem preparada fisicamente. Tática e tecnicamen- esquema. Não há uma identidade tática e um conceito de
te, então, nem se fala. Nós fomos para o México 40 dias jogo entre as diferentes categorias de um mesmo clu-
antes da Copa. Fizemos uma intensa preparação, com be. Eu, por exemplo, comecei no Canto do Rio. E lá havia
diversas inovações para a época. Botaram uma máqui- ótimos treinadores na base, como o Carango, que jogou
na com um monte de fios. Quando o Brito começou a fa- no clube. Depois eu vim com.... com 17 anos, eu vim para
zer os exames, a gente pensou que ele ia explodir aque- o Flamengo. Aí tinha, como eu já falei, o Modesto Bria,
la geringonça. Ele era um touro e, ao mesmo tempo, um o Jayme e o Canegal. E o que eles faziam? Procuravam
bom jogador. Então, é preciso discernir as coisas. Como montar o time à semelhança do profissional para que o

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

garoto, quando subisse, já tivesse uma formação para É...dinheiro, plano de saúde, comida, tudo isso. Tá cer-
entrar na equipe principal sem estranhar o esquema. O to? Assina aqui e tal...E esse que a senhora tem na bar-
Fleitas Solich, que era o técnico do profissional, assis- riga aí? É homem ou mulher? Ah, não sei vamos ver. Se
tia ao treino e às partidas dos juvenis na arquibancada. for homem, ele já começa a bancar porque, de repente,
Quando acabava o primeiro tempo, ela descia no vestiá- pode ser mais um. É interessante isso. E, no fundo, ele
rio, chamava o treinador e conversava sobre o esque- tirou uma família de uma situação complicada. Porque
ma: “Ó, manda o Gerson fazer isso... isso....isso. Man- o moleque sabe jogar. Mas amanhã ele já não está mais
da o Beiruth fazer aquilo...” Sabe por quê? Ele começa- aqui. Ele já está fora. E o bom jogador, quer dizer, e esse
va a administrar a base para chegar no final do ano, no talento você só vai ver amanhã pela telinha, porque ele
funil e ele tirar uns três ou quatro para o profissional. não está aqui. Antigamente os talentos ficavam aqui. Eu
Quando a gente via, já estava no time de cima. E adap- olhava, eu jogava contra eles, eu pedia autógrafo. Eu ia
tado ao esquema do profissional. E se o treinador pre- para o jogo, para o Maracanã pra vê-los. E hoje, a gente
cisar de um jogador assim ou assado no meio da tem- vê quem? Os garotos da base vão aprender com quem?
porada, ele já sabe como garoto joga. E o garoto já sabe Com o perna de pau que ficou por aqui?
como o time joga.  
  O ovo da serpente
O mercador  O grande problema do futebol está na base, onde,
Antigamente não tinha empresário que bancava. aliás, também está ou estaria a solução. O que aconte-
Há o empresário e o empresário que banca. É diferen- ce... Eu sou diretor ou presidente do clube. Eu contrato
te. Então, o que acontece? O moleque subiu da base, tá o treinador, certo? Aí ele é campeão. Eu o chamo na mi-
certo? O moleque subiu e aí já tem empresário. E, cla- nha sala. “Senta aí. Foi campeão?” Foi. Parabéns. Quan-
ro, ele começa a forçar a barra porque tem um percen- tos jogadores você vai dar pra cima? Pode ser infan-
tual em cima do garoto. Aí, ele vai para tal lugar. Ama- til, juvenil, juniores? Quanto? Ah, não tem nenhum? Tá
nhã é para lá. Depois de manhã já não é mais lá, é aqui. aqui. Pode passar no RH, pode ir embora.” Esse treina-
Todos os que foram estão voltando. Ou por velhice ou dor não foi campeão. O título do técnico da base não é
porque o negócio tem que girar. E ainda tem um detalhe ganhar o campeonato; é formar bons jogadores para
importante: esse moleque joga bem. Quem é esse mole- o clube. “Quantos jogadores você passou para o time
que aí? Ué, esse moleque é filho de não sei quem. A mãe do cima? “Eu passei Antonio e Pedro, dois craques”. “Tá

É muito mais fácil pegar o inteligente e faze-lo marcar do que pegar


o botinudo e ensiná-lo a jogar

dele de vez em quando vem aí. Onde ele mora? Mora ali certo. Tá aqui. Está renovado seu contrato.” Assim deve-
na comunidade, ali na favela. Aí terminou o jogo, o em- ria ser. Esse deveria ser o foco das categorias de base.
presário vai lá na família. Pum. Vamos lá na sua casa. Eu e o Nilton Santos fizemos isso no Botafogo, no tem-
Onde você mora? Chega lá. A mãe tá grávida. Tá certo? po em que cuidamos dos juvenis. Quer ver outro absur-
Aí o que ele faz? Esse moleque... tal... A senhora mora aí? do? O garoto vai fazer um teste. Qualquer clube. Chega
Aqui, a senhora assina esse papel aqui. A senhora vai lá, chuteira de baixo do braço e... pá! R$ 40,00 pra fazer
morar aqui nesse apartamento. Vai ter tanto. Tá certo? três treinos. Então, o Pelé não ia poder fazer teste em lu-

40 Canhota
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Você, você, você. Pode sair. Fica lá. Você, você, você, pra
lá.” Daqui a pouco a gente tinha um time, mais ou menos
arrumado. Já tem um time ali. E pedíamos para o garoto
não aprovado voltar na próxima semana. Às vezes, ele
está inibido, não bota aquilo que sabe pra fora. E nós di-
zíamos: “Pode voltar, hein! Não tá dispensado, não.” As
pessoas não têm ideia do que é uma peneira no futebol e
as condições em que alguns garotos chegam lá. Muitos
chegam ali com fome, sem nada para comer. Nós os co-
locávamos no restaurante. Os médicos do clube davam
remédios e vitaminas. Eu dizia: “Bota lá no restaurante
para comer porque ele vai morrer aqui. Se ele fizer um
treino, de repente, querendo aparecer, dá um pipoco e
ele morre.” E é verdade. Depois a coisa não andou. Eu e
o Nilton acabamos saindo do Botafogo. Eu não tenho pa-
ciência para aturar dirigente de futebol. 
 
Era uma vez o camisa 10
Voltou a dizer: tudo passa pela categoria de base.
Quer mais um exemplo? A falta do camisa 10 no futebol
brasileiro. Eu estou cansado de dizer isso, cara! É mui-
to mais fácil pegar o inteligente e fazê-lo marcar do que
pegar o botinudo e ensiná-lo a jogar. Ora, um treinador
da base, se tiver um camisa 10 que sabe tudo de bola,
é obrigação dele deixá-lo no time. Não precisa marcar.
Deixa ele cercar no meio de campo. Já compensa algu-
ma coisa, tá certo? Chega e diz para ele: “Agora, eu que-
ro que você jogue. A hora que a bola bater no teu pé,
gar nenhum porque era vendedor de amendoim na es- você tem que estar atento a tudo.” Só que hoje o joga-
tação. Sabe? Manel não ia poder, porque era largado lá dor de meio de campo só sabe ficar nessa luta. Dá car-
naquela fábrica de Pau Grande. Tá certo? Ronaldo fenô- rinho, dá trombada, dá pontapé, dá cabeçada, e pum...
meno, teve que pedir dinheiro emprestado, atravessar a e pá... Quando a bola chega no pé, o sujeito se assusta
linha do trem a pé pra entrar em São Cristóvão pra trei- com ela. “Pô, o que eu vou fazer com esse negócio aqui?
nar. Como é que ele vai pagar R$ 40,00? Onde ele tem R$ Eu tava tão alegre, dando uma trombada num, trombada
40,00? Onde é que a gente tinha R$ 40,00? Isso até me noutro. Você me deu a bola e tirou minha alegria, cara...”
emociona... (NR. Gerson chora). Então, o que eu e o Nil- Porque a alegria dele é essa; é dar paulada no meio de
ton fazíamos no Botafogo? Botava lá no jornal. Segun- campo. Entendeu? Antigamente, nós tínhamos o perfume
da-feira, por exemplo, portão aberto. Chuteira debaixo de que a bola gostava. Então, ela estava sempre perto da
do braço. Pronto. Aí duzentos caras. “Lateral direita, aí gente. Tá certo? A gente sempre a tratou bem. Por isso,
quem é?” “Eu, eu, eu...” Pra cá. “Quarto zagueiro... Be- ela queria ficar com a gente. Agora, olha para esses jo-
que Central... Um time aqui. Time contra time, vamos lá. gadores de meio de campo de hoje? A bola quer correr

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

deles. Tem medo deles. Claro, pô! Ele vai dar bico nela, gar falando! O futebol é falado... É discutido.. É argumen-
vai arranhá-la toda... Então, é por isso que eu repito: não tado. E você não é dono da verdade. A sua verdade pode
pode anular o bom jogador pedindo para ele se matar na ser boa para você e ruim pra mim. Tem que ser bom pra
marcação. Ele pode cercar, ajudar, mas o técnico quer nós dois. Nós estamos no mesmo lugar. Então se você
que ele vire um cabeça de bagre. Não dá! Eu mesmo tive marca mais, eu te ajudo. Eu não sei marcar. Eu te ajudo.
esse problema na decisão do Carioca de 1962. O Flavio Eu cerco. Em compensação, quando eu tiver apertado,
Costa, excelente treinador por sinal, achou, não sei por você vem me ajudar. E em campo, eu era assim mesmo:
que cargas d’água, de me colocar junto com o Jordan “Isso. Vem para cá. Vai pra lá. Ué? O que você veio fa-
pra marcar o Garrincha. E botou o Nelsinho, que estava zer aqui? Você veio aqui me atrapalhar. Se eu for aí, vou
chegando do Madureira, para armar o jogo. O Nelsinho te atrapalhar. Então, você faz o teu pedaço e eu faço o
não era mais armador do que eu. E eu não era mais mar-
cador que ele. Naquela época eu era o único do Flamen-
go na seleção brasileira. Eu argumentei isso com Flavio.
“Flavio, o Nelsinho marca mais. Eu posso até chegar pra
ajudar. Ô, Flavio eu não sou tapa buraco. Eu sou o úni-
co aqui dentro que tá na Seleção Brasileira. E não vou
pro jogo. Então, você bota o Joel para jogar pela ponta-
-esquerda e acabou o problema”. O Flavio tirou o Joel,
ele ficou pau da vida, pegou a mala dele e deixou a con-
centração. Acabei jogando na ponta. Aí o que acontece?
Fui mais um “João” do Manel, como ele chamava todos
os marcadores dele. Três a zero Botafogo, dois gols do
Manel e um gol contra do Vanderlei num cruzamento
dele. Num dos gols, ele driblou a mim e ao Jordan e jo-
gou nós dois pelo meio dos fotógrafos e tudo. Eu ainda
botei o Dida na cara do gol duas vezes, mas não deu. Foi
meu último jogo pelo Flamengo. A morte dos pontas ma-
tou os meias e a morte dos meias matou os pontas. Um
se alimentava do outro. Todos perderam, tanto o arma-
dor quanto os ponteiros. Os pontas jogavam muito mais
do que marcavam. Hoje, os jogadores de lado de campo
mais marcam do que apoiam. Então, o armador perdeu
a possibilidade do lançamento. Também virou um marca-
dor. Para quem o cara do meio de campo joga agora se
não tem mais para quem lançar? Ou ele faz aquele jogo
curtinho ou dá um bico para frente e dane-se quem es-
tiver por lá. Que se vire. Não é mais aquela coisa pen-
sada, orquestrada, embelezada. Não tem mais aquilo.
 
O regente
Eu jogava falando. Mas é claro que eu tinha que jo-

42 Canhota
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

meu. E eu tenho que botar aí. E você tem que botar no tática com que ia entrar em campo. A gente sabia que a
gol. Se eu não botar aí, você reclama de mim. Se você Itália marcava homem a homem. A defesa marcou du-
vier aqui, eu vou reclamar de você, cara! Por que quem é rante toda a Copa. Então, aquilo vinha marcando. Nin-
que vai ficar lá no lançamento? Tu quer me arrebentar? guém faz uma Copa do Mundo inteira marcando homem
Quer me tirar o pão de cada dia? Só isso que eu sei fazer, a homem, chega na final e troca o esquema. Eles não se-
pô!”. Era assim, por exemplo, eu, Jairzinho e Roberto. Vi- riam malucos a esse ponto. Bom...então vamos saber se
nham até o meio do campo. Eram velozes e inteligentes eles estão marcando. A gente tem que saber. Então, Jair-
e fortes. Não tinham medo de porra nenhuma. Eles iam zinho e Rivelino... Rivelino fazia o meio do campo. Aquilo
pra dentro. Tá certo? Aí ,se ele chegasse muito aqui: “Ô, ali ficava aberto. Isso era esquema tático. Ficava aber-

Na Copa de 70, todo mundo daquele time gostava de discutir o


esquema de jogo antes, durante e depois da partida

vocês estão me sufocando, cara! Vocês estão matando to. Everaldo não apoiava tanto quanto Carlos Alberto.
meu jogo.” O Terto, no São Paulo, era diferente. A gente Tá certo? Então, aquele lugar ali era do Tostão. Tá cer-
não podia cansá-lo. Era o primeiro lançamento, tal...aí, to? Então, você vê com o gol do Uruguai. Como eu disse,
tu mata o cara. Mas todos eles sabiam que não precisa- o Tostão abriu, Clodoaldo entrou aqui e recebeu o pas-
vam olhar pra mim. Eu olhava pro quarto zagueiro, por- se. Aquilo ali era um lugar vazio pra ser ocupado com
que quando o quarto zagueiro saía, abria um buraco lá qualquer um, menos pelo Everaldo, que ele não sabia
atrás e é lá que a bola ia. “E você vai entrar na diagonal entrar. De vez em quando, se ele quisesse se aventurar,
ou do meio? Romper pelo meio? Então, não precisa olhar era problema dele. Ele até teve um jogo que ele se aven-
pra mim. Tá certo? E eu não preciso olhar pra você. Eu turou, tropeçou com o zagueiro e ele veio gritando “Eu
tô te vendo.”. Hoje, não. A minha visão lateral está ruim. não sei fazer isso. Eu não sei fazer isso!” Ele sabia mar-
Mas, antigamente, olhando só para frente, eu sabia quem car. Então, para gente era melhor. O Marco Antônio, tec-
estava em cada lateral. E, se não for muita audácia, eu nicamente, era mil vezes melhor. Só que o Carlos Alberto
sabia quem estava atrás de mim também, tá certo? En- apoiava muito. O Brito, às vezes, saía. O Piazza, que era
tão, o que acontece? Não precisa olhar pra mim, nem eu meio de campo, tinha o instinto de sair. Então, o Everaldo
para o ponta. Eu estou de olho no quarto zagueiro. Ele ajudava a compor a zaga. Normalmente saía o Clodoal-
que me interessa. O meu jogador, não. do. Aí, vinha o Rivelino ou outro jogador, isso já era trei-
  nado exaustivamente. Por isso, foi o time mais inteligen-
Uma seleção cerebral te em que eu joguei. Bem... Tinha o Botafogo de 67 e 68...
Na Copa de 70, todo mundo daquele time gostava de Aí é brabo comparar... Mas, voltando a 70, todo mundo
discutir o esquema de jogo, de pensar o jogo, antes – tá sabia seu lugar e sua função. O Rivellino entrou, Jairzi-
certo? –, durante e depois da partida. Claro, tinha uns nho saiu. O lateral entrou com Rivelino pela esquerda e
que se interessavam mais e outros menos. É normal. Às o Facchetti acompanhou o Jair. Então, aqui, estão acom-
vezes, o argumento de um não era dentro da tática de panhando. Troca tudo de novo. Aí vai entrar a outra va-
jogo, mas da movimentação individual dele. Ok. Está óti- riação do esquema. Qual é a outra variação? O Rivelino
mo! “Tô saindo daqui, tô entrando ali, mas não tô vendo entra, Tostão vai pra lá para a esquerda, Pelé cai mais
espaço”. A movimentação, por exemplo: a gente sabia da um pouquinho do meio para a direita, tá certo? Jairzi-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

formada na excursão à Europa e às Américas, em 19. A


base estava toda ali e se consolidou durante as Elimina-
tórias, em 69. Em 70, tivemos três meses para treinar.
Então, só pelo olhar, a gente sabia o que o outro queria.
Sabia onde tinha o erro e onde tinha o acerto. Isso tudo
estava pautado há dois anos. Então, pelo talento dos jo-
gadores, não há nada igual à seleção de 58. Mas a de
70 tinha um conjunto incomparável.
 
Coisas de Deus 
Vi, na maioria das vezes de dentro do campo, lan-
ces absolutamente geniais, algumas das jogadas mais
inteligentes e inesquecíveis do futebol. Uma delas foi o
drible de corpo do Pelé sobre o Mazurkiewicz, goleiro
do Uruguai, na Copa de 70. O Pelé foi muito, virou de-
mais, entrou muito em diagonal, e pensou que o gol es-
tava “aqui”, mas não estava. Ele teve que contorcer mui-
to o corpo para chutar e calculou mal a direção. Outro
lance genial: Brasil e União Soviética, em 1958. O Mané
driblou quatro russos, em fila. Essa é do caramba! Ou-
tro lance do Pelé, contra a Checoslováquia na Copa de
70. Eu tô vendo o Pelé e ele sabe que eu tô vendo. E aí ele
começou a entrar. O Everaldo tá aqui, pela esquerda, tá
certo? E eu apressei o Everaldo porque eu estou vendo
o Pelé entrar e percebo que a defesa do adversário vai
marcar a entrada do nosso lateral. E se eu perder tem-
po, o Pelé entra em impedimento. Tá certo? E se espe-
rar um pouco para eu lançar, não vai aonde ele quer. E
eu sou obrigado a botar onde ele quer.... Esse é o pro-
blema. E eu sei onde ele quer... E ele sabe onde eu tenho
nho entra aqui, na meia e abriu a lateral toda pro Car- que botar... E eu tô apressando o Everaldo... Aí, eu dou
los Alberto. Então, quando ele fez gol na decisão não é do uma rápida olhada para o Pelé e é o que basta: ele sabe
nada. Até a final, ele já tinha passado, passou ali umas que é hora de correr. Eu meti a bola, ele subiu botou no
duzentas e tantas vezes. A gente movimentava o esque- peito, deu aquela troca na passada e bateu assim que
ma tático e interferia no esquema da Itália ao nosso bel ela caiu no gramado.
prazer. “Vai pra cá, tira, sai, bota mais para a direita por-  
que vai entrar um aqui.” É o que eu falo dos esquemas O GEnio inexplicável 
dentro do esquema. E tudo era discutido por todos. O Eu não sei explicar a inteligência do Pelé. Não con-
Brasil de 58 e o de 70 foram as duas maiores seleções. sigo. Vamos pegar esse lance contra a Checoslováquia.
Tecnicamente, a de 58 era melhor, pelos jogadores que Até a hora do domínio da bola no peito, eu vou. Até a pá-
tinha. A de 70 primava pelo entrosamento. A seleção foi gina dois. Mas na página três eu já não consigo mais.

44 Canhota
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Matar aquela bola no peito é até fácil para quem sabe. eu vi. Lembro também do Falcão e do Reinaldo. Zizinho e
O problema é botar a bola no chão e trocar de pé como Jair da Rosa Pinto eram fabulosos. Dino Sani sempre foi
ele trocou. Quando ele botou aqui no peito, a passada brilhante. O Zito era excelente, mas acho que só foi titu-
dele era uma. Para chutar é outra. Isso tudo com uma lar da seleção em 58 porque jogava no Santos. O Dino
coordenação fora do comum. Se um centroavante ten- Sani era extraordinário e merecia ter jogado. Tostão foi
ta fazer isso hoje é capaz de tropeçar e cair de cara no outro jogador fantástico, com uma leitura do jogo sem
chão. Aí vem a final contra a Itália. E fazemos um lance igual. Era muito cerebral. Os jornalistas até diziam que
muito parecido, quase igual. Só que, em vez de matar a ele jogava sem a bola. Aí ele respondia: “Pô, como é que
bola no peito, ele ajeita de cabeça para o Jair. Depois da vou jogar sem a bola, cara?” “Sem a bola, eu não jogo”
partida, aquela festa toda no vestiário e tal, eu não me Outros jogadores muito inteligentes foram Dirceu Lopes
contive. Tinha que pedir uma explicação a ele. Eu preci- e Ademir da Guia. Entre os estrangeiros, sempre admi-
sava entender. Será que eu calibrei errado o lançamen- rei muito o Puskás e o Di Stéfano. Uma vez, quando jo-
to? “Olha aqui. No outro jogo, você matou no peito, tro- guei um torneio na Espanha, conversei longamente com
cou de pé e fez o gol. Agora, mesma jogada, a bola pas- o Di Stéfano, à época treinador. Nós estávamos treinan-
sa igual por cima da cabeça do zagueiro e você arruma do e o time dele chegou. Ele ficou vendo o treinamento.
para o Jair em vez de bater. Só pra eu entender. A mes- Quando terminou, fui falar com ele. “E aí, Mestre?” E ele
ma jogada, pô. Por que você mudou?”. Aí, ele falou: “O za- perguntou: “E o seu time?” Meu time tem esse, tem aque-
gueiro tava um pouquinho mais junto de mim do que no le ali, são bons jogadores, completa aqui tal...” Então, ele
outro jogo. Então, eu preferi o Jairzinho de cabeça.” Pô, disse: “Fica 10 minutos aí pra ver o meu. Você vai cho-
era uma diferença de milímetros. Pelo menos lá de onde rar.” Aí entrou a equipe dele e começou o treino. Ele che-
eu estava, do meio de campo. Mas o cara ali enxergou gou perto de mim e disse: “Ô, Gerson, eles não passavam
outra coisa. E mudou tudo. E você quer que eu explique nem na porta do time quando eu jogava. Nem na porta.”
isso como? Não dá, cara!  
  De doer os olhos
A arte de ser canhoto É muito difícil assistir ao futebol de hoje, especial-
O canhoto é mais inteligente do que o destro por- mente no Brasil. E não estou dizendo isso por mim. Estou
que ele está sempre na contramão. O direito do cérebro dizendo pelas novas gerações, pelo meu neto. O meu pai
é responsável pelo entendimento e pela interpretação. me pegava e me levava no campo. Eu vi a Copa do Mun-
Então, o canhoto tem de ser mais rápido do que o enten- do. Eu tinha 9 anos e estava no Maracanã. Vi Brasil e Es-

Eu não sei explicar a inteligencia do Pelé. Até a página dois, eu vou.


Mas na página trEs eu já não consigo mais

dimento. Um belo dia, quando minha mãe estava grávida, panha. Lembro como se fosse hoje. O Maracanã ainda
ela virou para o meu pai e disse assim: “Ô, Clóvis, ele está estava em construção. Tinha uma tábua de madeira que
chutando.” No que meu pai respondeu: “Deolinda, não é a gente precisava atravessar. Veio um cara me buscar
chutando. É lançando.” Entre destros e canhotos, não im- na metade, meu pai botou na outra metade pra eu pas-
porta a perna, tenho os meus preferidos. Naturalmente, sar para o lado de lá. Hoje, o garoto que é Fluminense,
o Didi foi um dos maiores e mais cerebrais jogadores que Botafogo, Vasco e Flamengo vai ver quem? O menino fla-

outubro • Novembro • dezembro 2016 45


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

menguista vai ao Maracanã. Ai chega lá tem o Guerre- anos que torce para o Fluminense. Ele vai para a torcida.
ro, que dá de canela, chuta para cima, só sabe dar car- E eu tenho de dizer para ele: “Cuidado, pô!”. Antigamente
rinho, dá trombada, é expulso... Porque ele é uma mer- não tinha briga. Hoje, o cara vai armado para o estádio.
da. Desculpe. Mas não tem outra palavra para dizer. Tá Estou dizendo tudo isso porque esses fatores todos ti-
certo? Aí você vê o Diego. Porra, esse cara tá aí perdi- ram o garoto do estádio. E aí a criança de hoje não tem
do no meio desse emaranhado de coisa ruim. O medo é a doutrina que eu tive, por exemplo. Aí o que aconte-
esse. Eu, por exemplo, vou repetir. Meu pai me levou pra ce? A garotada vai ter a camisa do Barcelona, mas não
ver Espanha e Brasil no Maracanã. Tenho um neto de 20 vai ter do seu time. Então, eu tenho que chorar. Eu cho-
ro, cara! Na Rádio Tupi, como comentarista, eu preciso
eleger o craque do jogo. E o Diguinho e o Márcio Araújo
estão no meio. O que eu faço? Dos times mais recentes,
no Brasil, deu gosto de ver o Santos de Neymar e Gan-
so. No último Brasileiro, o Botafogo fez umas coisinhas,
um jogo aqui, outro acolá.
 
País do futebol?
Não tenho dúvidas de que o Brasil ficou para trás.
Hoje, o futebol europeu é melhor do que o nosso. É corri-
do, ok, mas técnico. Naturalmente, eles carregam e con-
centram os melhores jogadores do mundo. Os poucos
craques que existem estão lá. E nós aqui? A nossa mo-
lecada? Ou vai para lá ou vai ficar nesse marasmo aqui.
Vai ser mais um no bolo do nosso futebol. Por isso, a Eu-
ropa subiu. Aliás, não é só a Europa, não. O Japão subiu.
A China está subindo e comprando vários jogadores. Há
os árabes, alguns donos de clubes na Europa, que não
sabem onde botar tanto dinheiro e levam jogadores do
mundo todo. Para eles, é festa. Por isso, eu sou muito
pessimista com o nosso futebol. Com a qualidade dos
nossos jogadores e com a própria organização. Você vê
como funciona no Rio de Janeiro. Um time é campeão da
Taça Guanabara; o outro, da Taça Rio. Pensa que é cam-
peão? Não. Não é. Eles têm que jogar um contra o outro.
Que campeão é esse? Aí, o que foi campeão e perde para
o outro campeão, não é mais campeão... Dá para enten-
der um negócio desses? Pô, o cara é campeão e tem que
rasgar a faixa? Esse é o nosso futebol, tá certo?

46 Canhota
Coca-Cola Brasil devolve
para o meio ambiente
o dobro de água que
usa em suas fábricas.
Este é o resultado do apoio a programas de restauração e conservação de bacias
hidrográficas somado à eficiência e reúso nas fábricas. Ainda há muito a ser feito,
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especial
o brasil superior
de hélio jaguaribe
O
presente dossiê de Insight Inteligência
pretende oferecer aos leitores um modesto
aperçu do pensamento e da carreira do
nosso primeiro “cientista político”, pai da ideologia
do nacional-desenvolvimentismo e dos mais
notáveis intelectuais dos últimos 60 anos de vida
política brasileira. O artigo de Angélica Lovatto dá
uma pala da carreira e do pensamento político
de Jaguaribe num verdadeiro vol d’oiseau que
consegue ser tão panorâmico quanto exato. O
segundo artigo, de Cristina Buarque de Holanda,
se concentra sobre o projeto desenvolvimentista
de Jaguaribe formulado no começo da década de
1950 nos Cadernos do Nosso Tempo. O terceiro
e último artigo é do próprio Jaguaribe e oferece
um valioso testemunho da empreitada heroica de
construção daquela verdadeira usina promotora
do desenvolvimento que foi o ISEB durante o
governo Juscelino. Boa leitura!

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

50
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Jaguaribe
em
construção
por angélica lovatto
Cientista social

O cientista político Hélio Jaguaribe tem presença cial”, em que defendia a necessidade de um aperfeiçoa-
marcante no pensamento brasileiro desde sua juven- mento da democracia brasileira após tempos ditatoriais,
tude, quando já atuava no IBF – Instituto Brasileiro de que transitou sensivelmente de sua concepção de esta-
Filosofia, em São Paulo. Carioca de nascimento, o autor do neobismarckiano, forte e autoritário, para uma pro-
viria a ser o principal articulador no Rio de Janeiro de posta social-democrata, nos anos 1980, e em especial
dois institutos nacionais de pesquisa que deixaram sua no contexto do processo constituinte iniciado em 1986 e
marca nos anos 1950: o IBESP – Instituto Brasileiro de que resultou na Constituição promulgada em 1988. Por
Economia, Sociologia e Política (1954-55) e o ISEB – Ins- isso, defendo aqui a hipótese de que o autor realiza uma
tituto Superior de Estudos Brasileiros (1955-64). O ideá- leitura da política brasileira em dois tempos, mas articu-
rio produzido por Jaguaribe dos anos 1950 até os anos lados coerentemente, quando identificados no conjunto
1970, versaram do nacional-desenvolvimentismo ao es- de sua trajetória intelectual.
tado neobismarckiano, passando pela caracterização
do golpe militar de 1964 como um “colonial-fascismo”. Trajetória inicial
A partir do final dos anos 1960 e início dos anos 1970, e Nascido em 1923, o autor carioca escreveu inicial-
tendo vivido um período de seus estudos fora do país, o mente – no final dos anos 1940 – no Jornal do Comér-
autor passa a dedicar-se – em meio ao contexto do pro- cio, a convite de Augusto Frederico Schmidt que, à épo-
cesso de anistia de 1979 – a um projeto teórico-político ca, abria espaço para um conjunto de jovens intelec-
que denominou de “Brasil, 2000: para um novo pacto so- tuais. Tratava-se de uma coluna na Quinta Página do

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

jornal, que passou a ser coordenada por Jaguaribe. A as Ciências Sociais que vinha perseguindo desde a colu-
ideia era produzir uma página cultural. Em artigo mais na produzida no Jornal do Comércio. Publicou, em mar-
recente, Jaguaribe afirmou que esta iniciativa foi a gê- ço de 1950, nos Anais desse primeiro congresso, o ar-
nese do que viria a ser, mais tarde, o ISEB (Cf. Jaguari- tigo “Ideias para a filosofia no Brasil” (Jaguaribe, 1950).
be, 2005). Isso porque ele e o grupo de intelectuais por Jaguaribe fez parte da chamada seção carioca do IBF,
ele coordenado – Oscar Lorenzo Fernandez, Israel Kla- que passou a publicar a Revista Brasileira de Filosofia.
bin, Jorge Serpa Filho e Cândido Mendes – usavam o Não demoraria muito para um conjunto de intelec-
espaço da Quinta Página para expor o resultado de es- tuais paulistas e cariocas formarem o chamado “Gru-
tudos que encontrassem uma formulação epistemoló- po de Itatiaia”, com reuniões na divisa dos dois estados,
gica sobretudo para as Ciências Sociais, que superas- nos idos de 1952. Desde então, este grupo já era arti-
se o dilema positivismo-marxismo. Segundo Jaguaribe, culado pela influência do cientista político carioca, que
havia ali um começo daquilo que viria a se tornar uma havia se desligado do IBF, em 1951, percebendo a ten-
orientação do ISEB: “a vontade de compreender a cor- dência integralista de vários de seus membros, que se
relação entre uma visão geral da cultura universal e a contrapunha à afirmação industrializante por ele defen-
problemática brasileira em sua especificidade” (Jagua- dida. Nesse sentido, o próprio Hélio Jaguaribe se colo-
ribe, 2005, p.31). cava como um “empresário schumpeteriano”,1 ao exer-
Não por acaso, esse caminho e preocupação ini- cer o cargo de diretor da Empresa Siderúrgica Ferro e
ciais de sua trajetória intelectual, levou Hélio Jaguaribe Aço, em Vitória, Espírito Santo.
a participar do Primeiro Congresso Brasileiro de Filoso- Desse conjunto de preocupações filosóficas, é vi-
fia, em São Paulo, em 1950, e também à sua filiação ao sível a influência exercida por Ortega y Gasset sobre a
IBF (fundado em 1949). Em sua atuação no IBF, o autor produção teórica de Jaguaribe. A máxima orteguiana
parecia encontrar a continuidade do espaço para o de- “eu sou eu e minha circunstância”, aliada às leituras do
senvolvimento daquela formulação epistemológica para livro de Karl Jaspers, Origen y meta de la historia,2 vai
perpassar toda a proposta teórico-política do autor, nos
desdobramentos, propostas e leituras elaborados pelo
“Grupo de Itatiaia”: a caracterização da circunstância
brasileira no que se convencionou chamar à época de
“nosso tempo”. Os intelectuais que se reuniam em Itatiaia
fundaram, mais tarde, o IBESP, que publicou a Revista
Cadernos do Nosso Tempo.3 O financiamento da revis-
ta ficou por conta de Hélio Jaguaribe, e o próprio insti-
tuto só conseguia se sustentar a partir da contribuição
de seus próprios membros. A evolução para um insti-
tuto financiado inteiramente pelo Estado, ideia acalen-
tada desde o início do projeto, só ocorreria quando da
formação do ISEB.
Mas, segundo Jaguaribe (Cf. 2005, pp.32-33), o gru-
po de São Paulo tinha preocupações de caráter mais fi-
losófico e o do Rio de Janeiro era mais inclinado para as
Ciências Sociais, com interesse na aplicação de suas ca-
tegorias à realidade brasileira, no sentido de uma pro-

52 tributo
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

dução teórica no ISEB. No primeiro, “A crise brasileira”,


de 1953, foram expostas as circunstâncias e diretrizes
programáticas gerais para a crise do país. Em “A crise
do nosso tempo e do Brasil”, de 1954, voltou a tratar da
questão brasileira, só que desta vez – como o título indica
– de maneira a situá-la no contexto da crise mais ampla
denominada pelo autor de “crise do nosso tempo”. Mas o
texto mais importante desse período foi “Para uma polí-
tica nacional de desenvolvimento”, de 1956. Tratava-se
de um texto denso, onde Jaguaribe expunha, pela primei-
ra vez de modo mais sistemático, um programa de ação
para a burguesia brasileira no sentido de orientá-la para
uma intervenção concreta nos destinos da industriali-
zação e da chamada modernização do país.
A crise gerada pelo suicídio de Vargas, quase colo-
cou tudo a perder. Mas antes mesmo da posse de Jusce-
posta prática. Começou a haver cisões de ordem ideo- lino Kubitscheck, o instituto ganhou contornos estatais,
lógica e de interesses entre os dois grupos e prevaleceu e passou a denominar-se Instituto Superior de Estudos
a corrente do Rio. A partir de 1953, o grupo de intelec- Brasileiros. Ao contrário do IBESP, desde sua criação
tuais liderados por Jaguaribe se fortaleceu, publican- em 1955, com sede no Rio de Janeiro, o ISEB foi conce-
do suas propostas nacional-desenvolvimentistas para bido em uma perspectiva nacional, com a infraestrutu-
o Brasil. Hélio Jaguaribe buscou apoio, então, ainda du- ra necessária para uma proposta de tal porte. Com um
rante a gestão de Getúlio Vargas, para a criação de um estatuto bem mais definido, a proposta isebiana tinha
instituto de pesquisas que assessorasse o governo. Es- tudo para superar o IBESP, na expectativa de corrigir
ses intelectuais viam como urgente não só a elaboração suas limitações, projetando (e aplicando) uma proposta
– o que já faziam no IBESP – mas fundamentalmente a nacional-desenvolvimentista para o Brasil. Segundo Ja-
implementação de tal projeto nacionalista e desenvolvi- guaribe (2005, p.33), a ideia de criar o ISEB como insti-
mentista pelos agentes de Estado. Atuavam na defesa tuição diretamente ligada ao Estado era um tanto dife-
de uma postura de intelectuais públicos que formavam rente daquilo que acabou sendo efetivado. Quando ele
– numa clara influência de Karl Mannheim – uma inte- entregou o projeto, nos idos de 1953-54, de um institu-
lligentsia brasileira a serviço da construção da nação, to de estudos políticos ao então ministro da Educação,
tema candente naqueles anos 1950. Antonio Balbino, ainda durante o mandato de Vargas, a
Sobre os tempos de Jaguaribe no IBESP, é impor- ideia era mais ampla e previa duas coisas: em primei-
tante ressaltar dois aspectos: 1) ali já estava presente ro lugar, algo semelhante ao Collège de France ou, num
o núcleo de intelectuais que viria a compor mais tarde o exemplo mais latino-americano, El Colégio de México; o
ISEB: Cândido Mendes, Álvaro Vieira Pinto, Nelson Wer- segundo aspecto era a criação de uma grande editora
neck Sodré, Alberto Guerreiro Ramos e Roland Corbi- para publicar a produção ali realizada, como por exem-
sier; 2) e o fato de que, como secretário-geral do IBESP, plo a Presses Universitaires de France, que permitisse
Jaguaribe dirigiu a publicação dos Cadernos do Nosso ao intelectual brasileiro “um apropriado instrumento de
Tempo, onde publicou três textos de fundamental impor- difusão de ideias e o acesso a livros de alta cultura, tra-
tância para os desdobramentos de sua posterior pro- zidos para o português” (Jaguaribe, 2005 p.34).

outubro • Novembro • dezembro 2016 53


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ro Vieira Pinto); Departamento de Sociologia (Guerreiro


Ramos) e Departamento de Economia (Evaldo Correa
Lima). A direção oficial do ISEB não foi ocupada por Hé-
lio Jaguaribe em função da posição que ainda ocupava
na Empresa Siderúrgica Ferro e Aço, mas ficou a cargo
do amigo Roland Corbisier, um dos poucos paulistas do
Grupo de Itatiaia que ficaram no instituto.

A proposta isebiana do autor


Os diferentes intelectuais do ISEB4 que se propu-
nham a compor uma intelligentsia brasileira não tinham
uma visão homogênea sobre o nacionalismo, embora
preservassem muitos pontos em comum. Jaguaribe ti-
nha uma posição peculiar entre eles, porque aceitava
de uma forma bastante singular a presença de capitais
estrangeiros no desenvolvimento industrial do Brasil.
Naquele momento histórico, o nacionalismo apare-
Porém, esse audacioso – e caro – projeto não foi cia sob diversas formas e correntes. No caso de Jagua-
aprovado pelo Estado brasileiro. Não puderam ser cria- ribe, a defesa foi de um nacionalismo de fins, que pudes-
das duas instâncias institucionais, ficando-se apenas se construir uma autonomia no processo de desenvolvi-
com um modelo de instituto de pesquisas que desen- mento brasileiro, por meio da utilização dos capitais es-
volvesse um “esforço editorial” apoiado pelo Ministério trangeiros presentes em nossa economia, bem como na
da Educação. Jaguaribe ressalva que, por muito pouco, constituição de um estado funcional em substituição a
nem isso seria alcançado. Mas contribuiu para o projeto um estado cartorial. A polêmica tese do autor, vista no
não ruir totalmente, o fato de o ministro da Educação do debate da época como uma espécie de “entreguismo”,
governo Café Filho, Cândido Mota Filho, ser um homem foi objeto de debates acalorados e dividiu opiniões, cau-
ilustrado e um “intelectual interessado nesses proble- sando rupturas praticamente irreversíveis no quadro da
mas que decidiu, por minha iniciativa e com o apoio de intelectualidade brasileira do pré-1964.
Hélio [de Burgos] Cabal, dar continuidade àquele proje- Defendo aqui a originalidade do pensamento jagua-
to” e que “dadas as condições da época, compreendeu ribeano, que desde os anos 1950 – diferentemente da
que ela deveria se dar em escala muito mais modesta, maioria dos autores de sua geração – advogou que o
ou seja, apenas uma instituição – e não duas [sem a edi- Brasil não tinha condições de apostar no caminho clás-
tora], como tinha sido proposto incialmente”. (Jaguari- sico da revolução burguesa, já que suas possibilidades
be, 2005, p.34). de desenvolvimento estariam mais afeitas ao caso prus-
Com isso, a ideia de publicar uma revista foi aban- siano, na unificação de 1871. Para o autor, é na políti-
donada, dando lugar à publicação de livros, financiados ca – assim como no estado – que estaria a chave para
pelo Ministério da Educação, elaborados a partir de cur- a resolução do conjunto de estrangulamentos da socie-
sos e estudos desenvolvidos a partir de cada Departa- dade brasileira, por intermédio da constituição de con-
mento isebiano, a saber: Departamento de Política, sob dições institucionais do desenvolvimento. Essa é a sín-
a incumbência de Jaguaribe; Departamento de Histó- tese de sua proposta nacionalista.
ria (Cândido Mendes); Departamento de Filosofia (Álva- Para chegar a essa tese, a produção teórica do au-

54 tributo
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

tor caminhou de uma preocupação voltada à reflexão fi- A última e polêmica publicação de Jaguaribe no ISEB
losófica para o estabelecimento dos parâmetros de uma foi O nacionalismo na atualidade brasileira, que moti-
intervenção prática na realidade brasileira. Para Jagua- vou, inclusive, a saída do autor desse instituto. A polê-
ribe, esses dois momentos não estão desligados, mas, ao mica girou em torno do monopólio estatal do petróleo
contrário, as reflexões sobre a necessidade de produ- e o choque entre as diversas posições nacionalistas. O
ção filosófica, notadamente do nascimento de uma filo- problema central era a participação – ou não – do ca-
sofia brasileira, estão diretamente relacionadas com a pital estrangeiro na economia nacional. Nesse texto, Ja-
estruturação de um programa para a concretização do guaribe analisa o que chamava de “inconsistências” do
desenvolvimento, o que exigiria a constituição de uma nacionalismo no Brasil. O livro estava dividido em duas
ideologia nacional autêntica e representativa. Numa pa- partes: uma que tratava dos problemas teóricos e ou-
lavra: da articulação desses dois planos é que seria pos- tra que tratava dos problemas concretos. Na primeira,
sível o nascimento de uma proposta nacionalista para o o autor procurava elucidar o sentido do nacionalismo
Brasil. (Cf. Jaguaribe:1957 e 1958b). brasileiro, tratando de uma maneira sucinta os proble-
Nos textos isebianos de Hélio Jaguaribe estava pre-
sente toda uma preocupação com a possibilidade de um
desenvolvimento autônomo do capitalismo no Brasil e
com o papel desempenhado pela burguesia brasileira
nesse processo. São desse período as obras: A filosofia
no Brasil, (Cf. Jaguarbe:1957), Condições institucionais
do desenvolvimento (Cf. Jaguaribe:1958a) e O naciona-
lismo na atualidade brasileira (Cf. Jaguaribe:1958b), li-
vro mais importante desta fase.
A filosofia no Brasil é um ensaio escrito em 1952 e
reeditado pelo ISEB em 1957.5 Na apresentação do en-
saio foi ressaltada a plena atualidade do texto, o que jus-
tificaria sua reedição, pois nele, Hélio Jaguaribe, ao ca-
racterizar a produção filosófica brasileira – investigan-
do o que caracteriza como falta de originalidade e au-
tenticidade em relação aos problemas culturais – tra-
çava um histórico das correntes filosóficas e suas in-
fluências no Brasil.
Condições institucionais do desenvolvimento é um
conjunto de duas conferências pronunciadas no Clube
de Engenharia, em São Paulo, em junho de 1957 (publi-
cadas em 1958), intituladas: “Análise da política nacio-
nal” e “Condições institucionais do desenvolvimento”, que
dá nome ao livro. Jaguaribe expunha as condições em
que o processo histórico brasileiro havia se desenvol-
vido, caracterizando suas diversas fases. Aparece cla-
ramente sua concepção sobre o Estado, as classes so-
ciais, o desenvolvimento, o nacionalismo etc.

outubro • Novembro • dezembro 2016 55


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

mas teóricos sobre o tema; na segunda, dedicava-se à dental, que demandaria, por sua vez, a construção de
análise de questões específicas como petróleo, capitais uma ideologia nacional. Aqui se localiza o centro de sua
estrangeiros e política exterior. proposta, haja vista que a eficácia histórica dessa ideo-
O ISEB foi extinto em abril de 1964,6 em função do logia, seria a objetivação do nacionalismo enquanto pro-
golpe de estado, mas a permanência de Jaguaribe se en- grama de desenvolvimento para o país.
cerrou anos antes, em abril de 1959. Sua saída foi fruto O conteúdo dessa nova ideologia – surgida a par-
de uma crise interna que atingiu o instituto e teve como tir da crise do cristianismo – foi, segundo o autor, a de-
protagonistas, além de Jaguaribe, o sociólogo Guerrei- mocracia burguesa e a economia capitalista. Sendo
ro Ramos, em torno da polêmica questão do monopólio assim, seriam esses os moldes ocidentais nos quais o
estatal do petróleo e da Petrobrás que, naquele momen- Brasil precisaria trabalhar e se ajustar. Caso contrá-
to, era um debate que mobilizava o país fervorosamente. rio, suas possibilidades de desenvolvimento estariam
Jaguaribe defendia que a Petrobrás podia fazer uso de comprometidas.
capitais estrangeiros, como por exemplo a Shell. Quando A proposta nacionalista de Hélio Jaguaribe para o
o golpe de 1964 seguiu seu curso, Jaguaribe manifes- Brasil pressupunha que todas as classes sociais par-
tou sua reprovação por meio do texto “Brasil: estabilida- ticipassem do processo de instauração do desenvolvi-
de social pelo colonial-fascismo?” (Cf. Jaguaribe:1968). mento, porém a direção caberia a apenas uma classe:
a burguesia industrial. Trabalhando seus conceitos a
Formação do pensamento político partir da dualidade estrutural que contrapõe o moder-
O nascimento da filosofia brasileira e o programa no ao arcaico – como grande parte dos pensadores da
para o desenvolvimento do país articulam-se no discur- época – o autor propõe a modernização do país, que
so de Jaguaribe para assegurar a ultrapassagem do es- seria tarefa de todos os setores da sociedade brasilei-
tágio de subdesenvolvimento. O atraso brasileiro esta- ra reunidos por intermédio de seus interesses situa-
ria ligado à ausência de uma cultura brasileira autên- cionais de classe. O que haveria de fato seria uma luta
tica. Nesse sentido, a filosofia – concebida como auto- interna entre os setores arcaicos – leia-se sem inte-
consciência da cultura – seria a base sobre a qual nas- resse na industrialização – e setores modernos den-
ceria uma nova cultura no país. O Brasil teria, portanto, tro de cada classe. Em função disso, o autor defen-
que perseguir a conquista de sua inserção nesta cultu- de mais a necessidade da luta dentro de cada classe,
ra ocidental, sem assimilar acriticamente o que viesse como meio para fazer valer a vitória da modernização,
dela, mas construindo sua própria originalidade cultu- do que a luta entre as classes, uma vez que em está-
ral de acordo com aqueles parâmetros. gios de subdesenvolvimento, como o do caso brasilei-
Segundo o autor, esse fato não teria ocorrido e o ro, as classes sociais encontrar-se-iam unidas pelo
Brasil, ainda no século XX, se via diante de dois fenôme- mesmo interesse – o do desenvolvimento. Jaguaribe,
nos bastante comprometedores para sua ocidentaliza- portanto, atribui um caráter universal ao desenvolvi-
ção. O país, portanto, estaria paralisado entre dois ex- mento, sem questionar em momento algum a quem os
tremos: a assimilação acrítica de outras culturas, que interesses de tal industrialização, nos termos por ele
resultava numa alienação cultural; e a valorização ex- defendidos, corresponde.
cessiva de suas raízes culturais mais primitivas, a des- A tese central defendida pelo autor era a de que o
peito de com isso estar preservando sua originalidade Brasil precisaria de uma reforma política, através da
– o nativismo primário. A mediação perseguida por Ja- substituição de um estado cartorial por um estado fun-
guaribe teria que se pautar pela construção de novas cional. O estado cartorial era a expressão de um des-
crenças, vale dizer, de uma nova cultura de caráter oci- compasso entre quem dominava a economia e quem di-

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rigia politicamente o país, reproduzindo tão somente Quando, mais tarde, precisamente em 1962, no pri-
uma política de clientela, reiteradora do atraso brasi- meiro texto publicado após sua saída do ISEB, em 1959,
leiro. Esse estado, que abrigava todos os setores arcai- Jaguaribe retoma e desdobra as diretrizes do Estado
cos da sociedade e era controlado pelos representantes funcional, e passa a denominá-lo de estado neobismar-
mais tradicionais da burguesia, encontrava-se em opo- ckiano. Seria um tipo de Estado que, em função do atra-
sição aos setores modernos que viam seus projetos de so brasileiro – e para sua superação – teria que ser
industrialização obstaculizados e inviabilizados. A cons- forte e autoritário, planejador e intervencionista. Mas
tituição de um estado funcional implementado através isto não significava que devesse ser despótico ou ilegí-
de uma política ideológica – vale dizer, de uma ideologia timo. À burguesia industrial caberia o papel de direção,
nacional – seriam os instrumentos institucionais dota- uma vez que, definida pelo autor como classe mais au-
dos de eficácia e objetividade para a promoção do defi- têntica e representativa dos interesses da industriali-
nitivo desenvolvimento do país. zação, seria a única que poderia levar a cabo a consti-
O nacionalismo de Jaguaribe pode ser sintetizado tuição desse tipo de Estado, o que lhe conferiria uma de
como o esforço de construir o instrumental necessário suas mais importantes características: a legitimidade.
para orientar uma intervenção prática da burguesia in- (Cf. Jaguaribe:1958a)
dustrial na realidade brasileira, transformando o esta- Com essa proposta, Jaguaribe pretendia garantir
do cartorial, superando os estrangulamentos políticos o desenvolvimento capitalista e evitar qualquer possi-
que caracterizavam o país, ultrapassando os polos ar- bilidade de uma alternativa socialista, haja vista o mo-
caicos e atrasados da sociabilidade do país e trazendo mento de guerra fria que o mundo então atravessava.
à tona a modernidade, por intermédio da instauração O combate de Jaguaribe ao socialismo tinha como ar-
da industrialização e, com isso, o definitivo desenvolvi- gumento o fato deste supostamente não fazer parte da
mento brasileiro. cultura mais autêntica produzida até então pela huma-

Leitura e propostas para o Brasil nos anos 1950-64


Além de captar o atraso brasileiro, não escapa à
análise de Jaguaribe a crise em que se encontravam,
naquela altura do século XX, as instituições democráti-
co-burguesas, chamando a atenção para o fato de que
a crise brasileira estaria inserida numa crise maior, a
crise do nosso tempo. O “nosso tempo” estaria marca-
do, em meio à guerra fria, tanto pelas limitações do so-
cialismo do bloco soviético, quanto pela falência do libe-
ralismo. Jaguaribe, que deixava bem claro não querer o
socialismo no Brasil, passa a defender a instauração do
“capitalismo possível nas condições do nosso tempo e do
nosso país” (Jaguaribe, 1954:16). Ele adota uma espécie
de posição intermediária ou terceira via de desenvolvi-
mento: nem o liberalismo puro e simples, nem o socia-
lismo, mas uma socialização do capitalismo. Este é um
dos principais aspectos do nacionalismo presentes no
pensamento político de Hélio Jaguaribe.

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

nidade, a cultura ocidental. Tal possibilidade represen-


taria um “perigo” cada vez maior na medida em que o
socialismo, no seu entender, teria contrariado as pre-
visões de Marx, instaurando-se nos polos mais atrasa-
dos, onde havia se verificado uma rápida superação do
atraso. Isto teria seduzido alguns países, que acabaram
por pagar um preço alto demais, com o surgimento de
governos despóticos, ilegítimos e cerceadores da liber-
dade individual, como os do bloco soviético.
O que Jaguaribe chamou de socialização do capita-
lismo seria uma forma de distribuir as riquezas produ-
zidas pelo sistema capitalista de produção, sem ter que
optar pela socialização de um modelo oposto ao capita-
lismo, no caso, o socialismo. Desse modo, não se sairia
do circuito ocidental, seria implementado o capitalismo
possível no país e não se correria o risco de o Brasil en-
tregar-se ao bloco soviético. O Brasil tinha que encon- esclarecimento junto às demais classes no movimento
trar um caminho próprio e original – dentro da cultura de união de todos os interesses situacionais de classe.
ocidental – o que não descartava o capitalismo, nem a É interessante observar como o autor apontava uma
influência dos Estados Unidos no Brasil. Porém, para Ja- das características fundamentais da burguesia no Bra-
guaribe tampouco poderia o país se entregar de modo sil, que é sua incompletude de classe. Ao mesmo tem-
inconteste ao satelitismo norte-americano, pois isso só po que reconhecia com realismo esta questão, nutria
reiteraria sua condição colonial. Um país que quisesse a ilusão de que a burguesia teria condições de supe-
construir sua própria nacionalidade não poderia deixar rar esta debilidade. Reconhecia também como não era
de realizar uma política externa conveniente ao contex- possível a constituição de um Estado liberal-democrá-
to da guerra fria, mas com o cuidado de não perder sua tico no Brasil, propondo como único meio de superar o
própria identidade e garantir sua autonomia. atraso brasileiro, um Estado forte e autoritário. Jagua-
No entanto, para que toda esta proposta nacionalista ribe capturava questões essenciais do caso brasileiro,
de Jaguaribe pudesse se efetivar, dependeria da interven- mas sua perspectiva teórico-política o limitava, no sen-
ção decisiva da burguesia industrial. Por isso, o grande tido de estabelecer as bases de uma superação efetiva.
problema residia na criação das condições para que ela O autor procurava nos processos europeus de consti-
assumisse seu papel, do qual parecia não ter consciência tuição das nacionalidades um referencial para o caso
ou não apresentava capacidade para realizar. Jaguari- brasileiro. Bismarck – e, consequentemente a unifica-
be reconhecia que a própria burguesia industrial tinha ção alemã – seria o modelo compatível para se pensar
dificuldade de implementar os esforços que dela depen- as possibilidades do desenvolvimento brasileiro, uma
diam para a modernização e o desenvolvimento econô- vez que a Alemanha também tinha sido um país marca-
mico. Reconhecia que a primeira classe que precisava do pelo atraso na afirmação de sua nacionalidade e de-
ser “educada” pela política ideológica era a própria bur- senvolvimento industrial.
guesia. Daí a função dos intelectuais do ISEB de formu- Inspirado por tal perspectiva, embora assumisse a
lar essa política ideológica, na qual Jaguaribe tanto se impossibilidade de a burguesia industrial brasileira ser
empenhava. Depois disso é que a burguesia realizaria o democrática dentro das condições do atraso brasileiro

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– diga-se de passagem, com um forte senso de realida- Fora do contexto isebiano, no entanto, é importan-
de para a época – o limite da perspectiva de Jaguaribe te acentuar que o pensamento de Jaguaribe apresen-
era revelado quando analisava as condições do Brasil tava diferenças nada desprezíveis em relação ao pen-
na segunda metade do século XX, sem as distinções sin- samento conservador em geral que precisam aqui, no
gulares que o diferenciavam das condições vividas pela mínimo, ser pontuadas.
Alemanha no final do século XIX. O bismarckismo do es- O fator preponderante da identificação de Jaguari-
tado alemão havia realizado a unificação nacional num be como conservador dava-se em torno da identificação
momento anterior às disputas imperialistas, alcançan- – correta, é bem verdade – de sua perspectiva de classe
do, inclusive – na sequência – uma posição de país im- burguesa, mas principalmente em torno de sua propos-
perialista dentro do capitalismo mundial. ta de um Estado neobismarckiano, forte e autoritário.
Por isso, defendo a hipótese de que a ilusão de Ja- Porém, quando o golpe de 1964 instaura um esta-
guaribe foi acreditar que a reprodução do bismarckis- do autocrático – forte e autoritário – as possíveis seme-
mo no Brasil, através da montagem de um estado neo- lhanças do governo militar com a proposta elaborada por
bismarckiano poderia nos colocar dentro do capitalismo Jaguaribe são prontamente descartadas pelo autor, na
mundial; no mínimo, numa posição autônoma e indepen- medida em que a burguesia teria ficado fora do exercí-
dente, quando isso já não era mais possível dentro do cio político e, com isso, tinham sido perdidas as possibi-
estágio em que as lutas imperialistas se encontravam. lidades de tornar esse estado legítimo. O que acabou se
Entretanto, mesmo em meio a essa ilusão, o que é notá- instaurando em 1964 – defende o autor – teria sido um
vel no discurso de Jaguaribe é o fato de ter conseguido estado de caráter colonial-fascista, ilegítimo, que inter-
romper, sem cair no erro também muito comum daque- rompera a construção do Estado ideal para a ultrapas-
la época – tanto do pensamento conservador, como do sagem do subdesenvolvimento brasileiro.
próprio pensamento de esquerda – com a identificação O colonial-fascismo (Cf. Jaguaribe:1968) do go-
automática entre os processos revolucionários burgue- verno militar teria impedido o autêntico nacionalismo e
ses da França e da Inglaterra, no tocante à transição de mantido o país na qualidade de “colônia”. A crítica feita
um inexistente “feudalismo” brasileiro.7 pelo autor naquele momento vinha do fato de que o co-
lonial-fascismo estaria se entregando demasiadamen-
A leitura política sobre o golpe de 1964 te ao satelitismo norte-americano, abandonando a per-
De acordo com o conteúdo de seu nacionalismo, seguição de uma autonomia nas relações externas con-
Jaguaribe era identificado – nos anos 1950 no ISEB – venientes ao país.
como “entreguista”, pois, envolvido no contexto do gover- Por mais que Jaguaribe pregasse a utilização do ca-
no Kubitschek – cuja política de desenvolvimento con- pital estrangeiro na superação do subdesenvolvimento
tribuiu para acentuar o caráter dependente do capita- – que, inclusive, poderia implicar forte presença de ca-
lismo brasileiro –, o ISEB não poderia escapar às duas pitais norte-americanos – defendia, por outro lado, que
ilusões nacionalistas básicas que se confrontavam nes- as relações diplomáticas brasileiras deveriam se pau-
se período. Se houve, portanto, alguma homogeneidade tar pela neutralidade, inclusive com a retomada das re-
no ISEB foi apenas na crença mais geral – acalentada lações com o bloco soviético. Todavia, isso deveria se
pela quase totalidade de seus pensadores – da possi- realizar com cuidado, para que os Estados Unidos não
bilidade da constituição de um capitalismo nacional au- ficassem temerosos de que o Brasil intencionasse “mu-
tônomo. A forma de atingi-lo – através ou contra o ca- dar de lado”.
pital “metropolitano” – é que os dividia entre nacionalis- A tensão – para não dizer o paradoxo – do discurso
tas e “entreguistas”. jaguaribeano é sempre esta: a ilusão da autonomia na-

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cional, sem deixar de estar sob a influência norte-ame- Estabilidade Social pelo Colonial-Fascismo?” – escrito em
ricana no contexto da guerra fria, representante, afinal, janeiro de 1967, e publicado em 1968, na coletânea Bra-
mais autêntico da cultura ocidental. sil: Tempos Modernos,9 coordenada por Celso Furtado.
Mas se as teses de Jaguaribe forem comparadas No retorno ao Brasil em 1969, Jaguaribe ingres-
com a doutrina de segurança nacional, produzida pela sou no Conjunto Universitário Cândido Mendes, onde
Escola Superior de Guerra – ESG – isto é, do setor que ocupou a cadeira de Ciência Política e se tornou diretor
abrigava os ideólogos do golpe de 1964, encontrare- de Assuntos Internacionais. Em 1970, foi publicado, no
mos distinções qualitativas importantes. Mais uma México, seu texto “Dependência e autonomia na Améri-
vez, é em O nacionalismo na atualidade brasileira que ca Latina”, dentro da coletânea La Dependencia Políti-
o autor – na parte dedicada à política exterior que se- co-Económica de América Latina, que reúne textos de
ria conveniente ao Brasil – rebate, sem anunciar dire- vários autores. Este texto de Jaguaribe foi publicado no
tamente, cada uma das teses pregadas pela ESG, cen- Brasil em 1976.
tradas no alinhamento incondicional do Brasil aos Es- A partir de 1971 foi publicada em Nova York uma sé-
tados Unidos. Aliás, a este respeito, é bastante perspi- rie de estudos desenvolvidos por Hélio Jaguaribe sobre
caz a afirmação de Tancredo Neves em entrevista ao a América Latina, cujo título em inglês era Political De-
CPDOC de que o ISEB, na verdade, foi criado como uma velopment: an Inquiry in Social and Political Theory and
alternativa à ESG.8 a Latin American Case Study. Na Argentina, uma parte
Defendo aqui que, apesar de pregar um Estado for- desse estudo foi publicada em 1972 sob o título de Socie-
te e autoritário, quando denomina o regime de 1964 de dad, cambio y sistema político. No Brasil essa pesquisa
colonial-fascismo, o autor estava lhe atribuindo um ca- foi publicada em três momentos: em 1975, com os títu-
ráter negativo e não de concordância. No entanto, fica los de Sociedade, Mudança e Política e Desenvolvimen-
claro que o descontentamento do autor com esse colo- to Político; e, em 1976, Crises e Alternativas da Améri-
nial-fascismo vinha menos do fato de ser autoritário, do ca Latina. Note-se que os três textos expressam um mo-
que por não comportar a presença da burguesia indus- mento em que as preocupações de Jaguaribe se voltam
trial na direção política direta, ainda que esta participas- principalmente para os problemas latino-americanos.
se como coadjuvante do processo econômico. Em 1974, Jaguaribe publicou no Brasil um texto onde
aborda as mesmas preocupações da série de estudos
tempos difíceis acima referida, só que privilegiando a questão brasilei-
A exemplo de outros intelectuais brasileiros, depois ra, Brasil, Crise e Alternativas. Esse livro foi polêmico.
do golpe de 1964, Jaguaribe permaneceu no exterior, onde É nele que Jaguaribe relativiza bastante sua visão so-
ficou até 1969. Esteve em Harvard, como professor visi- bre o golpe militar, inicialmente caracterizado como um
tante (até 1966), e em Stanford (1967). Em 1968 foi para “colonial fascismo”, mas analisado agora com os resul-
o México e permaneceu em El Colégio de México (mode- tados de dez anos – industrializantes – de desenvolvi-
lo que havia proposto adotar para o ISEB, anos antes). mento do chamado “milagre econômico”.
Voltou aos Estados Unidos, onde ficou até 1969, traba- De novo, o paradoxo que marca o discurso jagua-
lhando no MIT – Massachusetts Institute of Tecnology. ribeano: sua negação inicial do golpe e, na sequência, o
Durante esse período em que esteve fora, foi publi- contentamento com seus resultados industrializantes,
cado no Brasil seu estudo Problemas do Desenvolvimen- acabam por fazê-lo justificar até mesmo a ilegitimidade
to Latino-Americano (1967), em que aparece sua posição do regime, antes condenada. Esta aprovação se devia ao
inicial em face ao golpe de 1964, que seria apresentada fato de a ditadura militar ter afastado o perigo da con-
de modo mais sistemático no artigo – já referido “Brasil: vulsão social que se desenhava no pré-1964, que esta-

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ria marcado principalmente pelo populismo do governo gime militar recebeu uma ênfase muito maior do autor
João Goulart que, segundo o autor, alimentava falsas ex- (Cf. Jaguaribe:1974).
pectativas nas massas com sua demagogia. Mesmo assim, é somente nesse momento, e não
Por todas essas nuances, não se pode afirmar que antes, que o autor começa a se deparar com a necessi-
Jaguaribe fosse um democrata convicto, ainda que seu dade de propor de fato a autorreforma do regime, pois
discurso revelasse que medidas autocráticas eram ape- está preocupado com a proletarização das classes mé-
nas transitórias e necessárias, dada a urgência da su- dias que os resultados do esgotamento do “milagre” tra-
peração do atraso brasileiro. A conquista da verdadeira ziam. A situação de desemprego crescente deixava Ja-
democracia, só seria possível depois da concretização guaribe temeroso de que o binômio classes médias + mi-
do desenvolvimento nacional. Além disso, dois outros ele- séria, viesse a repor um estado de rebelião. Ele insistia
mentos afastavam o discurso de Jaguaribe de um perfil na urgência do processo de autorreforma, pois, do con-
democrático: em primeiro lugar, a defesa da ilegalida- trário, o questionamento do regime poderia gerar nova
de do Partido Comunista, no momento em que o desen- convulsão social. Todavia, essa, diferentemente do que
volvimento já estivesse assegurado – isto é, em tese, no havia ocorrido no pré-1964, era agora apenas potencial
momento em que fosse possível um abandono de medi- e, portanto, poderia e deveria ser controlada e evitada.
das autocráticas para a adoção da democracia. A jus- Essa defesa de autorreforma do regime não era in-
tificativa era de que, antes disso, esse partido serviria diferente a alguns dos principais mentores do golpe de
como um contrapeso interno ao satelitismo americano 1964. A própria ditadura começava a sentir os sinais
(Cf. Jaguaribe:1958b). Em segundo, a frágil e insuficien- da necessidade de “distensão”, dez anos depois. Porém,
te condenação à tortura contra as forças de oposição Jaguaribe se diferenciava quanto ao prazo para reali-
promovida pelos militares durante a ditadura. Apesar zá-la. Ele queria a imediata autorreforma, enquanto a
desta ressalva em relação ao procedimento da ditadu- ditadura estava preocupada com uma “transição lenta,
ra, o regozijo com os resultados industrializantes do re- segura e gradual”.
Jaguaribe, na verdade, via nesse momento (1974)
a oportunidade para voltar a defender com toda ênfase
sua proposta nacional-desenvolvimentista para o país.
Para ele, o regime militar não teria resolvido várias coi-
sas: deixou de implementar o autêntico nacionalismo,
utilizou o capital estrangeiro sem adquirir independên-
cia tecnológica, não absorveu as classes médias e não
chamou a burguesia a governar. Apesar de sempre re-
conhecer como positivo o papel dos militares em 1964
como “guardiães” da ordem, Jaguaribe questionava al-
guns resultados do regime, uma vez que pouco ou quase
nada identificava-se com a proposta de terceira via por
ele resumida como socialização do capitalismo.
Nessa medida, não estaria superada a crise brasi-
leira. Na verdade, o que o autor voltava a reclamar era
que a burguesia industrial finalmente assumisse seu
papel de direção no desenvolvimento do país, repondo
– dessa forma – a ilusão essencial de seu discurso, que

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acreditava que essa fração de classe ainda tinha uma Ainda em 1985, na coletânea Raízes e Perspectivas do
missão civilizatória a desempenhar. Brasil (1985), contribuiu com o artigo “Raízes do Brasil
e a transição para a sociedade de massas”.
democracia: o “segundo tempo” de sua leitura Em 1986, Jaguaribe lançou um conjunto de estudos
da política brasileira feitos entre o final da década de 1970 e início da déca-
Desde sua volta ao Brasil, o autor desenvolveu es- da de 1980, sob o título de Novo Cenário Internacional
tudos por meio do Conjunto Universitário Cândido Men- (1986), onde é analisada a problemática Norte-Sul, e, no
des e em 1979 tornou-se decano do Instituto de Estudos seu contexto, os problemas da América Latina. O conjun-
Políticos e Sociais (IEPS). Este instituto havia se vincu- to desses estudos havia sido publicado um ano antes, no
lado ao Conjunto Universitário Cândido Mendes, à PUC México. Também publicou Sociedade e Política (1986) e
do Rio de Janeiro e à Universidade de Brasília. Em 1978, Sociedade e Cultura (1986).
dentro da série de estudos A Crise da Ordem Mundial Mas os anos de 1985/1986 serão marcados pela
(1978), Jaguaribe publicou “A América Latina no Siste- implantação da chamada “Nova República” e o término
ma Internacional” e, no ano seguinte, Introdução ao De- “oficial” dos governos militares, após a derrotada Cam-
senvolvimento Social (1979).10 panha pelas Diretas-Já, em 1984. É nesse cenário que
A partir de 1985, suas publicações se voltam mais será publicada a pesquisa que teve Hélio Jaguaribe como
especificamente para o Brasil. Nesse ano publicou So- diretor geral, denominada Brasil, 2000: para um novo
ciedade e Política – um estudo sobre a atualidade bra- pacto social (1986). Na verdade, esse estudo foi conce-
sileira (1985), além de ser coordenador e coautor de bido com a intenção de ser um referencial para a atua-
pesquisa na publicação Brasil, Sociedade Democráti- ção do então governo José Sarney.
ca (1985). Porém, suas atenções não deixavam de es- É nesse período que avalio o “segundo tempo” das re-
tar voltadas para a problemática latino-americana.11 flexões do ideário jaguaribeano, em relação à retomada

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de tempos democráticos no Brasil. Desde 1986, Jagua- mocracia brasileira, no período pós-anistia de 1979. Essa
ribe tinha começado a se interessar mais de perto pela leitura do autor exerceu influência sobre a realidade bra-
social-democracia, tendo inclusive se filiado ao PSDB – sileira, na medida em que coordenou – como expusemos
Partido da Social-Democracia Brasileira, que se originou no item precedente – um conjunto de projetos que pro-
da cisão do PMDB – Partido do Movimento Democráti- punham um novo pacto social para o país, especialmente
co Brasileiro, quando do início da Constituinte de 1986, a partir da chamada “Nova República”. Sua proposta ga-
que culminou na promulgação da Constituição de 1988. nha contornos claros em torno da social-democracia. O
Aqui, portanto, toda uma gama de pesquisas sobre autor atualiza e modifica a configuração do que entende
os novos tempos democráticos virá à tona. A publica- ser a democracia no Brasil, chegando inclusive a ocupar
ção de A Proposta Social-Democrata (1989), organiza- um posto direto na burocracia de Estado, já referido, na
da por Jaguaribe, é o resultado de um seminário sobre pasta de Ciência e Tecnologia do governo Collor.
a social-democracia, realizado pelo IEPS, em 1987. Em Como já mencionei na introdução a este artigo, de-
1989, também com a preocupação de apresentar estu- fendo que uma obra do calibre daquela produzida por
dos e propostas para a realidade brasileira, Jaguaribe Hélio Jaguaribe ocupa um importante lugar no pensa-
organizou a coletânea Brasil: Reforma ou Caos (1989) mento político brasileiro e merece uma pesquisa por-
e lançou o livro Alternativas do Brasil (1989). menorizada e completa de seu ideário intelectual, que
Mas não parou por aí. Note-se que Hélio Jaguari- abranja a totalidade de seus estudos, em especial, sobre
be nunca esteve desligado de um instituto de pesquisas. o Brasil.13 A relevância da obra de Jaguaribe foi reco-
Sempre pautou sua produção teórica em torno de obje- nhecida pela Academia Brasileira de Letras, onde atual-
tivos ligados à constituição de um grupo de intelectuais mente é o nono ocupante da cadeira número 11, eleito
que, reunidos, procurassem discutir e elaborar propos- em 3 de março de 2005.14
tas para a realidade brasileira. No entanto, foi em 1992 Daí a hipótese que defendo no estudo em andamen-
(segundo e último ano do mandato de Fernando Collor to e que, no presente artigo, adianto na forma de algu-
de Melo) que Hélio Jaguaribe teve, pela primeira vez, mas aproximações ao que seria o “segundo tempo” de
uma participação direta no governo do país, ocupando seu ideário: o cientista político Hélio Jaguaribe, especial-
o cargo de secretário de Ciência e Tecnologia. Quando mente no período em que desenvolveu pesquisas no IE-
Jaguaribe preparava-se para apresentar os resulta- PES (a partir de 1979), produziu um conjunto de estu-
dos de seu novo estudo para o país, na linha do que ha- dos que exerceu influência sobre os caminhos do Estado
via feito para o governo Sarney, estoura o processo de brasileiro, cujo foco era o desenvolvimento do país em
impeachment contra Collor, “abortando” assim as pre- tempos de abertura democrática, que resultou no Pro-
tensões “institucionais”, por assim dizer, do intelectual jeto Brasil 2000 – para um novo pacto social. Defendo
carioca, pelo menos do ponto de vista daquela situação que no período pós-1979, os estudos de Jaguaribe ca-
particular do processo histórico brasileiro. minharam no sentido do abandono de sua defesa ante-
Depois do impeachment de 1992, Hélio Jaguaribe rior de um estado neobismarckiano – forte e autoritário,
não se dedicou mais à elaboração de propostas gover- mas legítimo – para o Brasil (elaborado nos tempos do
namentais, voltando sua produção teórica para um ca- ISEB), e passaram a fazer a defesa de um estado demo-
ráter mais filosófico e/ou histórico.12 crático, com um governo conduzido pela burguesia in-
dustrial, de caráter desenvolvimentista, porém nos pa-
O ideário jaguaribeano nos estudos da democracia brasileira râmetros da dependência associada, herdada do mode-
O pensamento político de Hélio Jaguaribe passa por lo econômico desenvolvido durante os anos da ditadura,
significativas adaptações, em seus estudos sobre a de- especialmente o período 1968-73.

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A título de exemplo desses estudos democráticos, derno e os estratos superiores da população urbana”
convém destacar o livro Introdução ao desenvolvimen- e deixado à margem do processo “as grandes massas,
to social (publicado em 1979, escrito em 1978). Elabora- rurais e urbanas, dos trabalhadores não qualificados”.
do em tempos de debate intenso sobre a necessidade de (JAGUARIBE, 1986, p.51).
abertura política, o livro trata do que Jaguaribe chama Observe-se a avaliação do autor sobre a transição
de problemas da sociedade não repressiva, preparando do regime militar, que prepara a avaliação que fará da
as novas reflexões num país em processo de abertura eleição de Tancredo Neves, no momento mesmo em que
democrática. Faz um breve estudo comparativo e críti- está sendo definido o que ele chama de “o projeto Tancre-
co, no estilo que já trazia desde o ISEB, das perspectivas do”. (Cf. JAGUARIBE, 1986, pp.35-43) Em seguida, passa
liberal e marxista. Sempre ligado a algum instituto, esse a discutir “a problemática atual” – momento da derro-
estudo tinha sido encomendado a Jaguaribe pela Agência ta das Diretas-Já – onde conceitua a democracia bra-
Canadense para a Cooperação Internacional, em convê- sileira, indicando seus problemas estruturais a médio
nio com o Conjunto Universitário Cândido Mendes. Como e longo prazos e os cenários alternativos. (Cf. JAGUARI-
diretor do projeto, buscava-se a análise da situação so- BE, 1986, p.51). Para essa avaliação era imprescindível
cial brasileira, incluindo os dados sobre a marginalida- a referência ao processo que viria a definir a convoca-
de no país e a atuação do setor público na área social. ção da Assembleia Nacional Constituinte, “convocada
Outro exemplo significativo encontra-se em Socie- para [19]85 ou, o que seria pior, para [19]86,” que ten-
dade e política: um estudo sobre a atualidade brasileira deria “a ser decisiva, não apenas, como já mencionado,
(produzido em 1985, publicado em 1986), na coleção da por sua composição e tendências políticas, mas também
Jorge Zahar Editor, “Brasil, os anos de autoritarismo”. É pela orientação que adote, em matéria institucional”, ca-
um estudo importante para a definição do conceito de minhando entre “o atual presidencialismo e várias pos-
democracia que o autor trabalha nesse momento histó- síveis formas de parlamentarismo, bem como as dispo-
rico. Após apresentar os conceitos de populismo e au- sições que estabeleçam sobre o regime econômico e so-
toritarismo, Jaguaribe avalia as características do pro- cial e as relativas às Forças Armadas, se revestem de
cesso de transição da crise do regime militar: “Iniciado
na década de 50, sob o impulso da democracia populis-
ta de Vargas e de Kubitschek, o processo de desenvolvi-
mento e de industrialização” teria adquirido, sob os re-
gimes militares, “as características de uma moderniza-
ção conservadora”, orientando-se “predominantemen-
te, para o atendimento das demandas de consumo dos
estratos superiores do país e para a exportação”. (JA-
GUARIBE, 1986, pp.50-51).
Jaguaribe avalia que, em contrapartida aos seus
êxitos, “a modernização conservadora acentuou extre-
mamente o processo de concentração da renda e, em
termos relativos, o desamparo dos trabalhadores ru-
rais, notadamente no Nordeste”, considerando o cam-
po industrial e a área de exportação. Com isso, teria se
acentuado “o desequilíbrio interno do processo de mo-
dernização”, pois teria privilegiado “o empresariado mo-

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vel perante o Congresso e, por intermédio deste, peran-


te a opinião pública, a chefia do governo e os encargos
da mudança econômico-social”. (JAGUARIBE, 1986, p.67)
Observe-se que Jaguaribe faz uma ressalva para
o devido funcionamento institucional do parlamentaris-
mo, desde que se assegure uma boa estrutura partidá-
ria que, com certeza, ainda estava para ser construí-
da. Mas como seria o caminho para essa superação do
presidencialismo? Ele formula uma proposta, defenden-
do que “um presidente da República, eleito por majori-
tária eleição direta e munido das atribuições de um Po-
der Moderador”, (grifos meus), asseguraria “a estabi-
lidade das instituições” e promoveria “em situações de
crise, mudanças de emergência na chefia do governo”,
que seriam feitas “dissolvendo o Congresso e convocan-
do novas eleições, sem que cada crise política gerasse
transcendente importância. (JAGUARIBE, 1986, pp.66-67) um golpe de Estado e demolisse as instituições”. Parece
Cabe aqui uma importante referência: a atribuição ambiciosa uma propositura de tal monta, num país que
ao papel das Forças Armadas neste momento de tran- mal saía de sua tradição antidemocrática e, ainda, mi-
sição democrática. Para Jaguaribe, o novo papel – em litar. Daí sua defesa de mudanças também nas Forças
tempos democráticos – estaria associado a uma supera- Armadas: “Considerações da mesma sorte são exigi-
ção do presidencialismo, em favor do parlamentarismo. das pela posição e funções atuais das Forças Armadas”,
Ele justifica historicamente, argumentando que haveria porque “ao se lhes atribuir, também por herança da Pri-
“fortes indícios de que o presidencialismo monárquico, meira República, a dupla responsabilidade de zelar pela
herdado da Primeira República, não se ajusta mais às segurança externa e pela segurança interna do país, se
novas exigências da sociedade brasileira”, pois em ace- lhes conferiu um poder excessivo”, que as converteria
lerado desenvolvimento, o Brasil necessitaria “trans- em “implícitas tutoras da Nação, em condições incompa-
formar, com correspondente celeridade, suas estrutu- tíveis com um maduro regime democrático”. E arremata:
ras econômico-sociais”. (Idem, p.67). No típico discurso “o país necessita, imperiosa e urgentemente, de diferen-
pós-regime militar, o autor também argumenta que “a ciar sua segurança externa, naturalmente a cargo das
crescente complexidade da sociedade brasileira exige Forças Armadas, de sua segurança interna, que tem de
instituições estáveis e previsíveis, que permitam e favo- ser promovida por agências totalmente subordinadas ao
reçam planos de longo prazo”. (Idem). Daí sua defesa do poder civil”. Aqui, em meu entender, encontra-se o nú-
parlamentarismo: “Ocorre, assim, que dificilmente um cleo mais forte da mudança de posição dos estudos de-
mesmo magistrado, como acontece no presente regime mocráticos (em tempos de construção democrática) de
presidencial, poderá dar andamento a essas discordan- Hélio Jaguaribe, ao defender que “essa diferenciação é
tes exigências”, pois “uma apropriada parlamentariza- adotada em todas as democracias avançadas, onde as
ção das instituições brasileiras – assegurando-se, para Forças Armadas têm exclusiva responsabilidade exter-
tal, os necessários requisitos prévios, notadamente no na” (Jaguaribe, 1986, pp.67-68, grifos meus)
que se refere a uma boa estrutura partidária – torna- É para o rumo de uma “democracia avançada” que
ria possível confiar a um primeiro-ministro, responsá- os estudos de Jaguaribe no período vão se basear e ca-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

racterizar o processo de mudança que ele defende para De lá para cá, neste atual e ainda mais frágil momento
o Estado brasileiro, mas sem deixar de conferir à estru- da democracia brasileira, seria possível continuar sus-
tura econômica a importância imperiosa de reconfigurar tentando a defesa do parlamentarismo, nos moldes de-
a democracia brasileira. Daí sua defesa do parlamenta- fendidos por Hélio Jaguaribe? Não foi por isso que este
rismo, que aparecerá nesta e em outras obras até a ma- artigo foi concebido, mas pode ser por isso que valha a
turação do Projeto Brasil 2000, apresentado ao gover- pena continuar estudando os grandes autores que mar-
no Sarney – transitado da eleição de Tancredo Neves caram o pensamento político brasileiro.
– e, posteriormente, as propostas de Jaguaribe para o
A autora é professora do Departamento de Ciências Políticas e Eco-
que denominou de Brasil: reforma ou caos, dado que o
nômicas da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Projeto Brasil 2000, acabou não sendo implementado. angel.lovatto@gmail.com

NOTAS DE RODAPÉ

1. Definição derivada do estudo de Joseph Schumpeter (1997), Teo- a organização desse volume. Há também uma edição promovida con-
ria do desenvolvimento econômico, o “empresário schumpeteriano” juntamente pelo México, Espanha e Argentina, através da Siglo Vein-
é considerado o agente fundamental do processo de desenvolvimen- tiuno Editores, ainda em 1968, na coletânea Brasil Hoy.
to econômico. Jaguaribe incorporou essa tendência industrializante
– que ele defendia que a burguesia brasileira adotasse – em sua pró- 10. Em 1982, Jaguaribe organizou a coletânea, publicada em Buenos
pria atuação profissional. Aires, La Política Internacional dos Años 80: Una Perspectiva Latino-
-Americana, o que lhe confere renome internacional pelo alcance atin-
2. Tradução espanhola do original alemão Von Ursprung und Ziel der gido por seus estudos sobre a América Latina. Este reconhecimento
Geschichte, cuja resenha feita por Jaguaribe foi publicada nas pági- foi confirmado em 1983, quando recebeu o grau de Doutor Honoris
nas da Revista Brasileira de Filosofia, do IBF. Causa em Filosofia (PhD h.c.) pela Universidade Johannes Gutenberg,
de Mainz (RFA), por sua contribuição às Ciências Sociais e aos estu-
3. Uma análise sobre essa revista do IBESP pode ser buscada em SCH- dos Latino-Americanos.
WARTZMAN (1981) e HOLLANDA (2012).
11. Neste mesmo ano, publicou estudo produzido no IEPS, que se de-
4. Para maiores detalhes sobre o tema, consultar SODRÉ (1978), TOLE- nomina Reflexões sobre o Atlântico Sul: América Latina e Brasil ante
DO (1982); FRANCO (1978); PAIVA (1980), ORTIZ (1985); ABREU (1975) a desarticulação do sistema interamericano (1985).
e LOVATTO (2010).
12. O primeiro resultado foi a publicação de Transcendência e Mun-
5. Seus escritos filosóficos anteriores, já mencionados, foram publi- do na Virada do Século (1993), que reúne autores de diferentes vi-
cados pelo IBF (Cf. Jaguaribe:1950 e 1951). sões sobre o assunto. O artigo de Jaguaribe dá nome à coletânea. Nos
anos seguintes, Hélio Jaguaribe dedicou-se a um projeto de estudos
6. A história do ISEB é conhecida por possuir pelo menos duas fases históricos bastante ousado, financiado pela UNESCO, e publicado, em
distintas: a primeira, que coincidiu com o período do Governo Jusceli- dois grossos volumes, a partir de 2001, denominado Um estudo crí-
no Kubitscheck, e que ainda tem a grande influência de Hélio Jaguari- tico da história (2001).
be, portanto de 1955 até 1959; a segunda (1960-64) que acompanhou o
período das Reformas de Base do Governo João Goulart, sob direção de 13. Embora seja um autor estudado parcialmente em obras específi-
Álvaro Vieira Pinto, que coordenou uma coleção de 28 volumes chama- cas sobre o pensamento brasileiro, não houve ainda, no entanto, a pu-
da Cadernos do Povo Brasileiro, editada de 1962 a 1964. Esta Coleção blicação de um estudo sistemático que apresente e articule os resul-
completa do ISEB foi objeto da tese de doutorado de LOVATTO (2010b). tados da totalidade da obra de Hélio Jaguaribe, mas encontra-se em
andamento no projeto de pesquisa “O pensamento político de Hélio Ja-
7. Aqui adoto as referências teóricas de Prado Junior (1966, 1983), guaribe: dos tempos isebianos ao Projeto Brasil, 2000” (1950-2010)”,
Coutinho (1989) e Mazzeo (2015), que relativizam a conhecida tese de que desenvolvo no Pós-doutorado em Ciência Política do IESP/UERJ.
que o Brasil precisava realizar uma revolução democrático-burgue-
sa nos moldes clássicos do capitalismo para superar o feudalismo. 14. Por ocasião dos 75 anos do autor, e sem a pretensão de ser um
estudo pormenorizado sobre a obra de Hélio Jaguaribe, foi lançado
8. “Na verdade, o ISEB foi criado para não ter a Escola Superior de em 2000, pela Editora Paz e Terra, um livro-homenagem intitulado Es-
Guerra, não é?” (Neves, 1984:86). tudos em homenagem a Hélio Jaguaribe, organizado por Alberto Ve-
nancio Filho, Israel Klabin e Vicente Barretto, em que escreve um gru-
9. Os trabalhos que o compõem - que, entre outros, incluem artigos po de amigos, admiradores e discípulos. O livro segue a proposta do
de Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Antonio Calla- que em alemão se chama um Festschrift, uma reunião de ensaios de
do, Francisco Weffort - haviam sido originalmente publicados pela Re- homenagem que vão da reminiscência pessoal aos estudos sobre a
vista Les Temps Modernes, editada por Jean Paul Sartre que, no seu obra do homenageado ou sobre temas nele desenvolvidos ou que lhe
interesse pelos problemas do Terceiro Mundo, pediu a Celso Furtado são afins. (Cf. VENACIO FILHO et ali).

66 tributo
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

cadernos para todos


os tempos
por Cristina Buarque
de Hollanda
Cientista política

Na literatura sobre os caminhos de institucionali- da curta vida do IBESP. Foram cinco números publica-
zação das Ciências Sociais no Brasil, muito se disse – e dos entre os anos de 1953 e 1956 por um corpo enxuto
disputou – sobre o Instituto Superior de Estudos Bra- de conselheiros-autores orquestrados por Jaguaribe.
sileiros (ISEB) e suas interpretações e imaginações de Entre eles, Candido Antonio Mendes de Almeida, Guer-
realidade nos tempos que antecederam o golpe de 1964. reiro Ramos, Heitor Lima Rocha, Ignacio Rangel, Nelson
À sombra de sua memória, vultuosa, permaneceu o Ins- Werneck Sodré, Osacar Lourenzo Fernandez e Roland
tituto Brasileiro de Estudos Sociais e Políticos (IBESP) – Corbisier. As nuances e até mesmo as diferenças mais
ainda aquém da fórmula pública imaginada por Hélio Ja- significativas de perspectiva entre esses homens não
guaribe e realizada pelo ISEB, mas já vivamente orienta- ofuscaram a afinidade nos diagnósticos e prognósticos
do pelo idioma político do nacional-desenvolvimentismo. sobre o “nosso tempo” e o Brasil. Diante de um mundo di-
Neste artigo, dedico-me ao protagonismo de Jagua- vidido pela disputa ideológica entre capitalismo e socia-
ribe nessa cena pouco comentada, apoiada no seu vo- lismo e de uma sociedade refém de elites que extraíam
luntarismo político e financeiro e ainda sem esteios no
governo. Mais especificamente, observo a experiência 1. Os cinco números do Cadernos do Nosso Tempo estão disponíveis em edi-
ção facsimilar no número 4 da Revista Estudos Políticos (www.revistaestudos-
editorial do Cadernos do Nosso Tempo,1 principal legado politicos.com)

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vantagens do atraso, convergiam em torno dos objeti- ga a identificar um sentido “radicalmente novo” nesta
vos de ativação do nacionalismo e do desenvolvimento responsabilidade autoatribuída pelos intelectuais reu-
como meios de transformação social essencial e supe- nidos no ISEB: “pela primeira vez”, um grupo de intelec-
ração de infortúnios. tuais “se propõe a assumir uma liderança política nacio-
Em ambiente amalgamado por um projeto coletivo, nal por seus próprios meios”. Supondo-se habilitados a
não prevaleceu nos Cadernos um princípio forte de au- enxergar o país acima do horizonte de classes, eles re-
toria: foram muitos os artigos e editoriais sem assinatu- conheceriam em si próprios “um papel muito mais im-
ra. A maior parte deles, contudo, sabe-se e presume-se, portante” do que aquele que Karl Manheim “havia pre-
eram de Jaguaribe. Se e quando não foram, poderiam tendido para sua intelligentsia”. (Schwartzman, s.d.: 4, 6).
ter sido, tal foi a aproximação de estilo e ideias, consa- Nos Cadernos, a busca de entendimento sobre o esta-
grada por seu crivo editorial. do da arte da sociedade e da política confunde-se com
De todo modo, a leitura dos Cadernos revela auto- a imaginação de meios e fins da sua transformação. A
res engajados que atribuíam a si próprios e a extratos via nacionalista afirma-se como boa ideologia, alterna-
progressistas – ou potencialmente progressistas – da tiva autêntica à querela entre comunismo e capitalismo.
sociedade um papel-chave na condução da política na- Para tratar do percurso intelectual de Jaguaribe
cional por bons rumos. A superação do atraso não vi- nesse contexto editorial, organizo este artigo em três
ria, afinal, de um movimento espontâneo das populações partes. A primeira delas é dedicada a sua compreensão
subjugadas. Se deixada a si própria nas condições que sobre a situação política do Brasil, amalgamada a nar-
então se verificavam, a sociedade brasileira, cindida em rativas sobre o passado e receitas de futuro. Jaguaribe
interesses antagônicos, tenderia a reproduzir indefinida- apresenta a seus leitores uma espécie de tempo encru-
mente as condições do seu infortúnio. Era preciso pre- zilhada, que reúne as possibilidades de progresso e tam-
ver operadores da transformação. Schwartzman che- bém de seu perfeito avesso, o aprofundamento do atra-
so. A experiência de um ou outro caminho dependeria
de uma economia delicada entre as circunstâncias que
escapam ao domínio da vontade e a ação oportuna dos
operadores da política. A segunda parte é dedicada ao
diagnóstico sobre o que seriam três obstáculos ao inte-
resse nacional: o vício internacionalista (de comunistas
e udenistas), o conservadorismo da classe média con-
servadora e o populismo ademarista. Por fim, a tercei-
ra e última parte tem por objeto a reflexão de Jaguaribe
sobre os ecos políticos do suicídio de Getúlio Vargas, to-
mado como uma espécie de evento potencialmente ace-
lerador de consciências sobre a condição nacional. Sem
considerar méritos ou deméritos de seu governo, Ja-
guaribe interpreta a reação ao reacionarismo dos opo-
sitores de Vargas como sinal de vitalidade de segmentos
da sociedade que, até então, desconheciam o interesse
nacional. Cogita e almeja uma metamorfose política do
getulismo: do personalismo a ideologia e nacionalismo.
Um passo na direção do progresso.

70 tributo
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

última edição da revista, Jaguaribe narra a história do


Brasil em três etapas. A primeira delas, do colonialismo,
pautou-se em economia de produção escravocrata e
sobreviveu até meados do século XIX. Nele, a comunidade
nacional se organizou a serviço da metrópole e teve
seu desenvolvimento animado por impulsos externos.
Como uma “peça da economia europeia”, o país então
experimentou a forma limite da dependência (Jaguaribe,
Cadernos 5:70). Destituída de movimento e impregnada
de um sentido estático, a vida nacional fora esvaziada
de política.
Abolido o tráfico de escravos, o Brasil teria ingressado
em fase semicolonialista, intermediária entre o colonialismo
original e a autonomia econômica-social. Nela, o país
combinava legados da situação anterior, como a forte
vinculação da produção a demandas externas de consumo,
e novidades que apontavam em direção à superação da
condição de dependência. Entre elas, a formação de uma
reserva nacional de mão de obra. O período em questão
estende-se até a crise do café em 1930, que combinou
Diagnóstico da crise nacional: paradigmas o auge da política de acumulação dos excedentes não
histórico e sociológico exportados de café ao colapso da economia mundial
Parte significativa do esforço de Jaguaribe nos Ca- em 1929.
dernos está voltada para os contornos históricos e so- Os anos 30 teriam inaugurado, por fim, a passagem
ciológicos da crise política nacional. Já na primeira edi- para um momento mais avançado da transição em direção
ção do periódico, em A Crise Brasileira, Jaguaribe narra à autonomia nacional. Eles representam a terceira fase
a permanência do vício espoliador da Colônia na expe- da cronologia proposta por Jaguaribe, que constitui o
riência política em curso. Ele teria sobrevivido à “expan- cenário de observação dos Cadernos de um modo geral.
são da economia urbana, ao crecimento demográfico e No novo tempo, cidades e indústrias retroalimentam-se.
à industrialização”. O povo não teria alcançado, segundo A expansão do mercado interno associada ao fenômeno
ele, “espírito de iniciativa” e a circulação de elites seguia da urbanização seria, ao mesmo tempo, origem e efeito
a ritmo lento, apesar do golpe ao clientelismo represen- da nova realidade industrial no país, impulsionada pela
tado pelo ingresso das massas na política, com o Esta- longa permanência de Vargas na presidência da Repú-
do Novo de Getúlio Vargas. Refém de “crenças arcaicas” blica e pelos desdobramentos da Segunda Guerra Mun-
e esvaziado de “autênticos estímulos para uma reação dial na economia nacional: a necessidade de substitui-
original”, o pensamento brasileiro seguiria “desabituado ção das importações. O contraste com a situação ante-
de reflexão própria” (Jaguaribe, Cadernos 1: 128-129). rior de dependência era notável.
Não era possível esperar autonomia de um povo inerte, A despeito disso, persistiam entraves ao pleno de-
refém da circunstância política. senvolvimento, vinculados ao regime semicolonialista. O
Em linha com esta perspectiva, em Para Uma Políti- progresso observado era tímido, se comparado a suas
ca Nacional de Desenvolvimento, publicado na quinta e potencialidades. A indústria nacional ainda dependia da

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

No novo paradigma, as “velhas oligarquias latifún-


dio-mercantis” deviam converter-se em “classe de mo-
dernos agricultores e de eficientes homens de negócio”.
Para tanto, no lugar de explorarem a escassez e benefi-
ciarem-se da “sub-remuneração do trabalho”, deveriam
ser capazes de produzir “lucro técnico, auferido median-
te a crescente redução dos custos, através da adoção
de processos tecnológicos mais avançados e de formas
mais eficientes de organização do trabalho” (Jaguaribe,
Cadernos 5:126).
Na prática, para Jaguaribe e os ibespianos, a
experiência estática desses grupos, imunes à modernização,
contrastou com a vitalidade potencial – e escassamente
manifesta – da burguesia industrial, do operariado ur-
bano e dos setores progressistas da classe média. Em-
bora associados à virada recente em direção a um mo-
delo econômico autônomo, esses segmentos progres-
importação de bens de produção e matérias-primas. sistas não teriam alcançado consciência de sua posi-
Além disso, o país encontrava-se em “estágio rudimen- ção estratégica no processo social em curso. Junto aos
tar” na produção de energia, apresentava “tendência re- trabalhadores e aos técnicos e administradores de clas-
gressiva dos transportes ferroviário e marítimo” (Autor se média, a fração moderna da burguesia faria jus ao
não identificado, Cadernos 5:85) e, por fim, estava abati- protagonismo da cena política, mas ocupava de fato um
do por um processo inflacionário alarmante, resultado lugar coadjuvante, ofuscada pelo espectro anacrônico
da insuficiência da oferta de gêneros em relação à pro- do agrarismo irrefletido. Apenas a inflexão nacionalis-
cura – isto é, da impossibilidade da produção nacional ta poderia corrigir esse equívoco e ajustar o desempe-
atender à demanda do mercado nacional em franca ex- nho real desses setores a suas potencialidades. Tendo
pansão. O progresso inaugurado em 30 poderia estan- em vista um forte sentido de convergência e coesão na
car ou mesmo retroagir. No panorama sociológico em política, esta metamorfose não se faria em detrimento
evidência, a possibilidade do retrocesso era represen- das classes com aspecto e atuação passadistas. Dife-
tada pelos segmentos da sociedade que extraíam bene- rentemente do paradigma colonial e seus princípios de
fícios do atraso, isto é, pelos latifundiários, pela burgue- espoliação e dependência, a virada em direção ao pro-
sia comercial e pela classe média parasitária, alocada gresso, harmonizada pelo interesse nacional, teria fun-
em postos públicos e desinteressada na eficiência do Es- damento integrador. Todos os segmentos da sociedade
tado. Associados a um modelo anacrônico, baseado na teriam lugar nela.
exportação de matéria-prima e na importação de bens Nas intervenções de Jaguaribe, o contraste entre as
manufaturados, eram um legado vicioso em sociedade leituras sobre passado e presente, de um lado, e a pro-
que transitava para condição industrial. Estes setores jeção de futuro, de outro, é bem ilustrado pelas imagens
fixaram vínculos com o modelo da dependência e proje- de divisão e unidade. Na sua perspectiva, a consolida-
tavam o passado no futuro. A condição de sintonia com ção do moderno não está contida na simples inversão
a vida moderna era, portanto, a transformação do ho- de protagonismos. Era preciso transitar de um regime
rizonte econômico. de oposição das diferenças para outro de complemen-

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taridade entre elas. O sentido de conflito figura apenas urbanização, ainda em tempos do Império, elas se aco-
no curto prazo, como motor de superação do equívoco modaram em profissões liberais e também em quadros
divisionista. A imaginação de futuro não acolhe interes- militares e burocráticos do Estado. Ali teriam firmado o
ses contrapostos. Integração e unidade compõem a ima- “clientelismo eleitoral” como solução de compromisso
ginação sociológica e política de Jaguaribe. com os latifundiários (Jaguaribe, Cadernos 1:124). No
editorial O Golpe de Agosto, da terceira edição dos Ca-
Os lastros do atraso: moralismo, internacionalismo dernos, Jaguaribe acusa o “parasitismo burocrático”
e populismo da classe média e também sua incompreensão sobre o
Estancada entre o atraso e o progresso, a nação po- benefício particular e geral de alteração da estrutura
deria rumar em direção a um ou outro destino. Nos Ca- econômico-social do país. A inconsciência sobre seu lu-
dernos, o otimismo de futuro é alternado com a investi- gar potencial a teria tornado “caudatária da burguesia
gação sobre os obstáculos ao progresso. Nesta seção, mercantil”, aliada aos interesses retrógrados da classe
dedico-me ao diagnóstico de Jaguaribe sobre três las- agrária (Jaguaribe, Cadernos 3:6).
tros (ou ismos) do atraso que perturbam o bom curso Em artigo da segunda edição, O moralismo e a alie-
do interesse nacional: o moralismo, o internacionalis- nação das classes médias, Jaguaribe antecipa esta pers-
mo e o populismo. pectiva e identifica o moralismo como principal instru-
O primeiro deles – o moralismo – tem uma origem mento de ação política da UDN, criada contra o legado
social bem delimitada: as classes médias. Nascidas da de Vargas à época da reabertura democrática. Segun-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

do ele, a partir da lente moral, “tudo depende de os ho-


mens que dirigem os acontecimentos serem considera-
dos bons ou maus”. Nesta perspectiva, a vontade indivi-
dual é tida como “fundamento único do ser”, soberana,
indiferente e imune a todo condicionamento exterior (Ja-
guaribe, Cadernos 2:152).
A “campanha moralista” teria como estrutura mo-
tivacional de fato o interesse mal compreendido da bur-
guesia mercantil sobre sua classe. O setor da burgue-
sia vinculado às trocas comerciais, inebriado por avalia-
ções imediatistas, de curto alcance, teria envolvido tam-
bém a pequena burguesia num movimento oposicionis-
ta superficial, descolado da compreensão abrangente
do seu verdadeiro interesse. Ainda segundo o autor, “o
moralismo reveste os sintomas da aparência de causa”
e não contribui para uma reflexão consistente sobre as
origens dos problemas nacionais. O moralismo teria a
alienação como contraface necessária. E, como conse-
quência, a reiteração de uma consciência equívoca so-
bre o interesse nacional.
Para o autor, a burguesia mercantil teria se coloca-
do, como classe, contra o governo e teria levado adiante
uma “estratégia de neutralização e desmoralização” que
culminou no golpe branco dos coronéis e estaria cami-
nhando para a deposição de Vargas (Jaguaribe, Cader-
nos 2:154). Objetivos de classe, realistas e imediatos,
eram investidos de feição universalista.
Ao generalizar a “teoria da corrupção do Estado”,
o segmento mercantil liderava a demanda pela suspen-
são dos controles estatais sob a aparência de oportuna Além dos setores médios udenistas, o “frisson
reivindicação moralista. Os operadores do moralismo, moralista” também teria movido comunistas empenhados
segundo Jaguaribe, desconheciam ou negligenciavam na crítica a Vargas. Fora dos quadros formais dos
as raízes da corrupção no país, associadas ao subde- partidos, o PCB teria pretendido “capitalizar em seu favor
senvolvimento, às práticas de clientelismo e à espolia- a agitação levada a efeito pela oposição moralista ao
ção econômica. De modo conveniente a seus propósitos governo”. Interessado em fragilizar o governo, o partido
de curto termo, produziam crítica superficial à política teria instruído seus comandados a “denunciarem os
e passavam ao largo das “causas e condições da inau- escândalos e a corrupção administrativos”. Em seguida,
tenticidade do governo” (Jaguaribe, Cadernos 2:159). teria se lançado em “aliança tácita” com a “imprensa
Atingiam o objeto da sua crítica – o governo – por um popular e os órgãos da oposição moralista”, apesar da
ângulo inoportuno e desviavam a compreensão da polí- “mútua hostilidade em matéria de política internacional”
tica do seu bom curso. (Jaguaribe, Cadernos 2:132).

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Alheia às bases de reprodução do atraso, a retórica notável expressão que o político havia alcançado no con-
moralista despolitizava e simplificava a insatisfação: o texto paulista, associando votos urbano e rural. Segun-
protagonismo da cena pública deslocava-se para a von- do o intelectual carioca, o sucesso eleitoral de Ademar
tade e a ação individuais e, com tal, corroborava a insen- de Barros não dependia da mediação de chefes locais,
sibilidade para a observação das condições mais amplas tal como o esquema clássico que atendia aos interesses
de reprodução do infortúnio social. Jaguaribe produziu dos chefes estaduais do PSD. Embora o político também
valiosa – e quiçá pioneira – reação ao moralismo como se beneficiasse dos recursos típicos da política de clien-
teoria da política. tela, sua influência sobre o eleitorado rural de base era
Mas o surto moralista não esgotava o equívoco polí- direta. Por meio de “ideologia primária e infusa” e “ver-
tico capitaneado pela classe média. Entre os partidários borragia pseudossocial” (Jaguaribe, Cadernos 2:141),
da UDN, o entusiasmo desmedido pelos Estados Unidos seduzia o eleitor do campo e também da cidade, o que
e por seus universos político e cultural também colidia incluía proletariado e setores da pequena burguesia.
com o interesse nacional. E no vício internacionalista – Em sintonia com o propósito de consolidar o capitalismo
que constitui o segundo lastro do atraso na narrativa de mercantil, o ademarismo seria retrógrado, lesivo ao in-
Jaguaribe – os udenistas vinham acompanhados dos co- teresse nacional. Por sua face popular, era confundido
munistas. No artigo Três Etapas do Comunismo Brasi- com fenômenos políticos de esquerda, leitura apres-
leiro, de autoria presumida de Jaguaribe, acusa-se, en- sada que chegou a inspirar apoio dos comunistas. Na
tre os líderes do PC brasileiro, a aversão por “qualquer contramão deste equívoco, Jaguaribe afirma não exis-
teoria autêntica ou qualquer atividade autêntica do pen- tirem laços necessários entre a composição social de
samento”. Marcado pelo “estreito empirismo”, combina- um grupo político e sua filiação ideológica. A influência
ção de “praticismo e ignorância teórica”, o partido teria marxista no imaginário político seria responsável pela
cerceado até mesmo a extraordinária capacidade polí- associação indevida entre progressismo e povo, reacio-
tica de Carlos Prestes, capturado pelas mediações da narismo e elites.
Comissão Executiva do Comitê Nacional. O líder político
teria saído da prisão física para a “clausura intelectual”
(Jaguaribe, Cadernos 2:133). Haveria entre os comu-
nistas brasileiros baixa “vitalidade intelectual” e “cons-
ciência dos seus próprios problemas”. A subserviência
do partido às “conveniências estratégicas e táticas da
URSS” significaria perigosa oscilação entre linhas polí-
ticas tão diversas quanto o “terrorismo anarquista” e o
“franco oportunismo de direita”. A menos que suas “de-
ficiências” fossem “sanadas”, o partido seguiria produ-
zindo “pesado ônus para as forças que lutam de manei-
ra autônoma pelo desenvolvimento nacional” (Jaguari-
be, Cadernos 2:135).
Por fim, além do moralismo e das manifestações
várias do internacionalismo, Jaguaribe se dedica ao ter-
ceiro lastro de e inconsciência nacional: o populismo. No
artigo Que é o ademarismo?, o tema foi abordado a par-
tir da crítica a Ademar de Barros, ainda sob impacto da

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Essa leitura rudimentar apagaria as distinções es- outro cenário, prejudicial ao desenvolvimento econômi-
senciais entre grupos de esquerda, vinculados à cons- co e social do país, é o de intervenção do Exército com
ciência e vontade de superação das estruturas de do- apoio do segmento superior da classe média, dos latifun-
minação, e movimentos de massa, “expressão confusa diários remanescentes e do extrato da “burguesia mer-
e primária de aspirações instintivas” perfeitamente in- cantil contrário ao ademarismo” em razão da suposição
tegrada às relações de exploração em curso. De acordo equívoca de seu alinhamento “de esquerda” (Jaguaribe,
com o autor, “a massa é conglomerado multitudinário de Cadernos 2:145). Mais uma vez, observa-se, na taxono-
indivíduos, é o produto final da espoliação de classe” (Ja- mia de Jaguaribe, a polarização entre forças progres-
guaribe, Cadernos 2:142). Como tal, é facilmente instru- sistas e retrógradas, respectivamente alinhadas e de-
mentalizada: não pode ser sujeito da política, mas apenas salinhadas com o interesse nacional.
objeto a serviço de interesses de poder. Distingue-se es- Sem desvios demofóbicos, Jaguaribe atenta para
sencialmente do proletariado por faltar-lhe consciência uma condição frágil do povo, incapaz de autonomia po-
de classe. Nesta perspectiva, as pessoas que sofreram lítica. A crítica, contudo, não é dirigida apenas aos bai-
o fenômeno de massificação da política representariam xos extratos sociais urbano e rural, presas fáceis das
um tipo psicossocial, o homem-massa. Esse fenômeno estratégias retóricas e de ação do populismo. Ela se di-
seria resultado da combinação de três condições: a in- rige de forma mais contundente aos setores em con-
consciência de segmentos expressivos da sociedade a dições de maior esclarecimento político que chegam a
respeito do lugar inferior que ocupam na estrutura de aderir a ele com entusiasmo, inebriados, genuinamente
dominação social, a ineficiência da classe dirigente e, ou não, por uma suposta essência popular.
por fim, a existência de um líder carismático.
Na genealogia nacional do populismo, o autor cha- Vargas e o varguismo: a pedagogia do suicídio
ma atenção para a correlação significativa entre a for- A época das edições dos Cadernos viveu convul-
mações urbanas e a massificação. A partir dos anos sionada pelas ameaças do golpe. A relativa normalida-
30, mas sobretudo depois de 1939, o recrutamento de
camponeses para compor os quadros da indústria em
formação lançou nas cidades um exército de trabalha-
dores com baixas possibilidades de alcançar consciên-
cia de sua condição de classe. Este desenho original da
cena industrial urbana acomodou-se sem grande ten-
são a um processo de sindicalização iniciado pelo Esta-
do, esvaziado de iniciativa popular. Quinze anos depois,
em meio a sinais esparsos de amadurecimento cívico,
os homens da cidade seguiam vulneráveis a movimen-
tos como o ademarismo.
Ao imaginar o futuro da nação, o autor concebe
dois cenários possíveis. O primeiro deles, positivo, é o
de formação de uma “ampla frente nacional democráti-
ca de esquerda”, constituída pela burguesia industrial,
pelos “setores esclarecidos da classe média e pela par-
cela politizada do proletariado”, capaz de contornar os
desvios do interesse primordial, o interesse nacional. O

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

de da cena institucional conviveu com a incerteza sobre dera os prós e contras de sua ação política e, ainda, em
o futuro político próximo. Os intelectuais do IBESP de- alguns momentos, chega a identificar na sua direção da
dicaram-se, entre outros temas, à ideia de uma política política um importante impulso para a condição moderna.
vivida em suspenso, com baixa institucionalidade e alta A inflexão na interpretação do intelectual carioca
imprevisibilidade. Nesta cena, a expectativa do golpe fi- sobre o getulismo aconteceu na altura do suicídio do
gurava tragicamente no horizonte da política, mas não líder político, evento que teria repercutido “profunda
esgotava suas possibilidades. O tom mais geral dos Ca- e subitamente nas massas operárias”. Para Jaguaribe
dernos aponta para a existência de sinais ainda tímidos em O Golpe de Agosto, a carta-testamento teria opera-
– embora potentes – de renovação nacional pela esta- do uma “iluminação emocional na consciência do pro-
bilização da democracia. letariado, fazendo-o compreender que o móvel real da
Curiosamente, o artigo sobre ademarismo não luta contra Vargas e do golpe que o havia deposto era
menciona Getúlio Vargas, protagonista da política na- o interesse de classe das forças reacionárias e antina-
cional marcado pelo estigma do populismo. Em mais um cionais” (Jaguaribe, Cadernos 3:19). A brusca e inespe-
artigo de autoria presumida de Jaguaribe, a fala sobre rada saída de cena do personagem que estava no cen-
Vargas é ambígua, como seria ambígua sua política, os- tro do debate público, teria tido o efeito de um amadu-
cilante entre “tendências de autodeterminação do país” recimento por choque. Na nova condição, o getulismo
e articulação com “grupos internacionais” que se bene- converte-se numa “pré-ideologia” potencial. Entenda-
ficiam da “exportação de gêneros alimentícios e maté- -se por isso sua capacidade de atender, “nas condições
rias-primas em troca de produtos acabados e semiaca- concretas do Brasil, aos interesses dialeticamente so-
bados” (Jaguaribe, Cadernos 3:49). Embora tenda a um lidários do proletariado, da intelligentsia técnica e da
tom crítico contra Vargas, notando, por exemplo, o que burguesia industrial”, ajustando-se ao interesse nacio-
seriam práticas de “maquiavelismo psicológico” e “indi- nal, embora sem “fundamentação teórica” (Autor não
gência ideológica” com os trabalhadores, Jaguaribe pon- identificado, Cadernos 3:20).

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A hipótese ensaiada era que o conteúdo da política Dois percursos possíveis, de ruptura ou permanência,
varguista se separava do seu suporte físico, humano, anunciavam-se como possibilidade para o getulismo:
e passava a constituir um modo de fazer política, seguir em trajetória virtuosa como alternativa à “atual
despersonalizado. O “getulismo ideológico” nasce do “ge- alienação” da burguesia industrial e da intelligentsia
tulismo histórico” e carrega a possibilidade de transmu- técnica, ainda sob a esfera de influência dos interesses
tar-se em ideologia do desenvolvimentismo nacionalis- latifúndio-mercantis, ou “confundir-se com uma das muitas
ta (Jaguaribe, Cadernos 5:5). O suicídio libertou o getu- versões do populismo demagógico, de tipo ademaresco,
lismo de Getúlio e instituiu sua conversão potencial em conduzindo o país para uma solução primária e brutal”
ideologia do desenvolvimento nacional. A perspectiva de (Autor não identificado, Cadernos 3:22). Mais uma vez,
Jaguaribe faz transparecer certa pedagogia pública do as forças do atraso constituem ameaça ao progresso,
suicídio, isto é, a suposição de que a tragédia pessoal forma por excelência do verdadeiro interesse nacional.
de Vargas amadureceu e fez precipitar, entre as clas-
ses dominadas, uma consciência mais fiel à configura- Notas finais
ção de fato das forças sociais. Ao longo das intervenções de Jaguaribe nos Cader-
A experiência do varguismo extrapolava, portanto, a nos, prevalece o sentido de um tempo encruzilhada, vivido
consideração do personagem e constituía-se como for- em suspenso, sem sinais evidentes de desfecho. Embora
ça da política que dava sinais de autonomização em re- as forças do atraso em curso tivessem perdido a vitali-
lação à sua origem. Em março de 1956, os colaborado- dade de outros tempos, ainda configuravam o ambien-
res dos Cadernos tinham a expectativa de uma inflexão te político a seu modo. Não havia clareza sobre o futuro.
próxima na cena pública. Embora cogitassem um des- Além do entrave econômico, o progresso também
dobramento político positivo do legado de Vargas, gra- esbarrava na democracia incipiente. A sensação de imi-
ve incerteza pairava sobre seu destino. nência do golpe seria, por si só, uma forma de golpe, um

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ruído no andamento regular da política. Os sentidos de operar eficazmente”. (Jaguaribe, Cadernos 2:2). A teoria
cooperação e equilíbrio, imprescindíveis para o desen- da ideologia presente nos Cadernos supõe atos de inte-
volvimento nacional, só poderiam se instalar num am- ligência e vontade como móveis da ação, mas também
biente de permanência. A indefinição e a ameaça ten- atenta às “condições objetivas de possibilidade”. Trata-
diam a estancar o processo político num compasso de -se de um idealismo que se quer afinado com as “reais
espera agônico. possibilidades” de desenvolvimento social. Os operado-
Para Hélio Jaguaribe, seria tempo de superar o Es- res da ideologia – bem como as pessoas em geral – não
tado Cartorial, impregnado de “funcionalidade aparente” dispõem de “liberdade incondicionada” mas tampouco
e de fato destinado à “política de clientela”, e alcançar a são objeto de um “processo natural”, definido a priori
forma moderna do Estado Serviço, comprometido com (Jaguaribe, Cadernos 2:2).
a “prestação de serviço público”. Embora a “maquinaria Consideradas as condições específicas do desenvolvimento
cartorial” já tivesse se confrontado com “novas forças no país, a maior presença do Estado na política e na
e novas relações sociais”, que “escaparam às possibili- economia não constituía ameaça socialista, mas medi-
dades de manipulação por via meramente clientelística”, da oportuna. Afinal, deixadas a si próprias, em estado
não chegou a ser desmontada e ainda experimentava pe- ainda imaturo de desenvolvimento das consciências,
rigosa sobrevida política (Cadernos 5:136). as forças progressistas poderiam sucumbir ao lega-
Na sua perspectiva, a iniciativa do progresso não do cartorialista e deixar imprimir no futuro as marcas
se esgota, contudo, nos quadros do Estado: o princípio do passado. O triunfo do interesse nacional resultaria,
móvel do progresso distribui-se, entre política e sociologia, portanto, da delicada simbiose entre consciência social
entre vontade e contingência. Em A crise do nosso tem- e direção política.
po e do Brasil, Jaguaribe afirma a pertinência da “auto-
A autora é professora adjunta do Instituto de Estudos Sociais e Polí-
consciência histórica” do século XIX, pautado na supo- ticos (IESP)-UERJ
sição de que “é preciso compreender o mundo para nele cristinabuarque@iesp.uerj.br

BIBLIOGRAFIA

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

usinas de
altos estudos
por hélio jaguaribe

A leitura de uma tese de doutoramento sobre o ção da coisa pública. Eu tinha 30 anos e o Brasil também.
ISEB, recém-publicada sob forma de livro (Caio Navar- Nada permite melhor aquilatar, retrospectivamente, o
ro de Toledo, ISEB: Fábrica de ideologias, São Paulo, Ed. que significa essa coincidência entre a emergência de
Ática 1977), me reinseriu subitamente na atmosfera in- uma geração e a de uma fase criativa e aberta da vida
telectual e sociopolítica do Brasil da década de 1950. nacional do que a experiência que, neste mesmo país,
Década extraordinária da decolagem para o desenvol- nos dá a década de 1970, ora se aproximando, exaurida
vimento, da tomada de consciência de nossa problemá- de seu término. Década de velhos, e não de moços, cer-
tica econômico-social, da mobilização das massas, da rada em vez de aberta, retrógada, autoritária e estéril.
democracia populista. Década da grande fase madura Como é compreensível, em tal quadro, o ressentimen-
e fecunda de Getulio Vargas e da incontível criatividade to geral da juventude, o radicalismo compensatório de
de Juscelino Kubitschek. E também década da inocência muitos e o oportunismo cínico de alguns.
e das ilusões sobre as terríveis dificuldades sociopolíti- O IBESP (Instituto Brasileiro de Economia, Sociolo-
cas do desenvolvimento. gia e Política), fundado em 1952, nasceu do propósito
Essa década, ademais, para mim, foi a de meus 30 de se dar certa estabilidade e institucionalidade a um
anos e dessa fascinante experiência que consiste no fato, grupo de discussão que reunia, mensalmente, alguns
historicamente não frequente, de uma geração emergen- jovens intelectuais cariocas e paulistas. As reuniões se
te ver abrir-se diante de si uma nova fase de sua socie- faziam, por acordo do Ministério da Agricultura, na sede
dade, que a convoca para grande práxis da configura- do Parque Nacional de Itatiaia, que fica a meio caminho

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nos do Nosso Tempo. Eram participantes ativos no Ins-


tituto, Cândido Mendes, Everardo Moreira Lima, Ewal-
do Correa Lima, Guerreiro Ramos, Heitor Lima Rocha,
Ignácio Rangel, José Ribeiro de Lira, Juvenal Osório Go-
mes , Moacir Félix de Oliveira, Oscar Lourenzo Fernan-
dez, Ottolmy Strauch, Roland Corbisier, Rômulo Almeida
e eu próprio, que fui seu secretário-geral.
O IBESP era um centro de discussões sobre os pro-
blemas do Brasil e do nosso tempo. “Os problemas do
nosso tempo, na perspectiva do Brasil; os problemas
do Brasil, na perspectiva do nosso tempo” era o bonito
lema da revista, de que chegaram a ser publicados cin-
co números, entre 1953 e 1956.
A inviabilidade prática de sustentar-se um centro
de estudos a partir das contribuições financeiras dos
próprios membros levou o grupo do IBESP, a partir de
fins de 1953, a cogitar uma solução que assegurasse
um módico financiamento público para os trabalhos do
Instituto. A oportunidade para tal se ofereceu quando
Gilson Amado, designado chefe de gabinete de Antônio
Balbino, no Ministério da Educação, aceitou a sugestão
de se criar, no Ministério, um centro de altos estudos, a
entre o Rio e São Paulo. O grupo paulista era composto, exemplo do College de France, ou, no âmbito latino-ame-
predominantemente, por homens interessados em Filo- ricano, do Colégio de México. Os planos para tal princi-
sofia, como, entre outros, Angelo Arruda, Roland Cor- piaram a ser traçados a partir do início de 1954, com
bisier e essa grande cabeça filosófica que foi Vicente minha ativa participação.
Ferreira da Silva. Os cariocas eram mais voltados para O golpe de 24 de agosto interrompeu, entre tantas
as Ciências Sociais. No curso do tempo, entretanto, evi- outras importantes iniciativas, esse projeto do centro
denciou-se marcada diferenciação ideológica entre os de altos estudos. Neste caso, entretanto, o destino foi
dois grupos, os paulistas em posições autoritárias de favorável à ideia. Apesar de as tendências do Governo
direita e os cariocas em posições democráticas de es- Café Filho serem tão diferentes das do segundo Gover-
querda. Quando se constituiu o IBESP, do grupo paulis- no Vargas, o novo ministro da Educação Candido Motta
ta apenas Roland Corbisier, que se afastara completa- Filho gostou do projeto que encontrou em adiantado es-
mente de suas iniciais convicções integralistas, veio a tágio de preparação em seu Ministério e resolveu dar-
ingressar no Instituto. -lhe execução. Preferiu apenas, dadas às circunstâncias
O IBESP, sustentado pelas contribuições dos pró- do momento, reduzir as proporções dos planos da ad-
prios sócios, todos em começo de carreira, com dinhei- ministração precedente, especializando o novo centro
ro curto, recebia também, graças a Anísio Teixeira e a no estudo dos problemas brasileiros. E assim surgiu em
Almir de Castro, algum apoio do Ministério da Educa- 1955, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB.
ção, que lhe facultava instalações para suas reuniões, O ISEB dispunha, então, de uma dotação anual de 6
e uma modesta contribuição para sua revista, Cader- mil contos. A verba não era suficiente para atender às

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necessidades do Instituto e assegurar uma remunera-


ção mensal a todos os professores. Convencionaram, en-
tão, os fundadores do ISEB, que não receberiam nenhu-
ma remuneração aqueles que já dispusessem de outras
fontes de renda: Candido Mendes e eu, que vivíamos de
nossa prática de advogados, Ewaldo Correia Lima, que
era economista da Confederação da Indústria, e Álva-
ro Vieira Pinto, que já tinha salário de professor, como
catedrático da Universidade do Brasil. Com isto foi pos-
sível, nos primeiros anos do ISEB, reservar importante
parte dos recursos para a publicação de livros e a rea-
lização de pesquisas.
O IBESP se propunha a um estudo interdisciplinar,
no âmbito das ciências sociais dos problemas fundamen-
tais do nosso tempo e do Brasil. Que significam o mundo
contemporâneo e, nele, a civilização ocidental, conside-
rados numa ampla perspectiva histórico-sociológica?
Quais são os problemas fundamentais do Brasil e de que
forma se correlacionam com os do nosso tempo? Como

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equacionar os problemas brasileiros, nas condições do


nosso tempo, numa perspectiva humanista e social e, ao
mesmo tempo, ajustado aos requisitos científico-tec-
nológicos do presente estágio da revolução industrial?
Para enfrentar essa problemática, o grupo do IBESP,
depois do período preparatório das discussões de Ita-
tiaia, chegou a um consenso básico que – na minha vi-
são do mesmo – se pode enunciar mediante as três se-
guintes posições teóricas:
a) Epistemologicamente: realismo perspectivístico
e crítico – partir da suposição da realidade do mundo
(negação de todas as formas de idealismo), mas reco-
nhecer que a realidade é condicionada pela perspecti-
va do sujeito cognoscente (negação de todos os positi-
vismos) e que as relações humanas são inerentemente
carregadas dos valores e da intencionalidade da cons-
ciência (criticismo).
b) Sociologicamente: Intento superatório, no plano
das ciências sociais, do marxismo e do positivismo: (I)
do marxismo, pela contestação da tese do materialis-
mo histórico – o econômico não determina necessaria-
mente as demais dimensões da sociedade – e, mais res-
tritamente, da tese do valor trabalho; (II) do positivismo,
pela contestação do entendimento do “fato social” como
coisa, em vez de como evento relacional e pela contesta-
ção da fundamentação da ordenação social no consen-
so valorativo, com ignorância do conflito e da coerção.
c) Politicamente: sustentação da possibilidade de
determinação, de forma científica e crítica, de critérios
que permitam a avaliação do maior ou menor grau de
validez social das formulações ideológicas, dada uma
determinada situação histórico-social.
O ISEB constituiu, em seus primeiros anos (1955-
58), uma continuação das atividades do IBESP, dentro de
condições de trabalho muito mais favoráveis e no âmbi-
to de uma perspectiva mais restritiva, concentrada na
problemática brasileira e tratada de forma mais prag-
mática, visando ao estudo de políticas implementáveis.
Dentro dessas condições o ISEB produziu uma obra
de extraordinária importância no quadro do pensamen-
to econômico, social e político brasileiro.

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Escapa à consciência dos jovens pesquisadores levantamento e na análise dos dados, com uma perspec-
de hoje, que já encontraram, em nosso país, um siste- tiva crítica, tanto nas implicações do status quo social
ma acadêmico razoavelmente estável e competente – e quanto das alternativas utópicas ao mesmo, tudo isso
facilidades institucionalizadas de estudo no exterior – o orientado por um profundo sentido do que é socialmen-
que era o pensamento brasileiro em princípios da déca- te relevante e urgente, na realidade brasileira.
da de 1950 e o que eram então nossas Universidades. Dentro dessa ótica, considero que a contribuição
Ante a autocomplacência com que alguns jovens douto- de Guerreiro Ramos para uma sociologia crítica da rea-
rados de nossa década contemplam o seu próprio mun- lidade brasileira e do pensamento sociológico brasilei-
do acadêmico – com a inevitável emergência dos males ro se revestiu da maior importância e conserva gran-
do academicismo – é necessário recordar que 20 anos de atualidade. Mantenho juízos equivalentes com rela-
atrás nossas universidades ainda eram, basicamente, ção à contribuição de Álvaro Vieira Pinto para uma fi-
simples centros de formação de profissionais liberais. losofia histórico-sociológica de Cândido Mendes, para
Foi das Faculdades de Direito que surgiram, por notável a sociologia da história e a compreensão histórico-so-
esforço autodidático, os críticos do regime literojurídi- cial do colonialismo, de Ignácio Rangel, para um enten-
co que predominava em nosso pensamento e que torna- dimento sociológico da economia brasileira. A grande
ram possível a nova Universidade brasileira. O IBESP e obra econômico-histórica de Celso Furtado, embora se
o ISEB, embora de forma não linear, estão na origem da tendo realizado predominantemente depois de sua fase
formação da nova ciência social brasileira e da impor- isebiana, nela teve dois importantes momentos, com
tância que ocupa no quadro internacional. seus delineamentos gerais da economia brasileira e da
Hoje, uma Universidade como a USP, por exemplo, Operação Nordeste.
se orgulha de uma ampla equipe de PhDs. No tempo do
IBESP e primeiros anos do ISEB um dos raros intelec-
tuais válidos, em São Paulo, no campo das Ciências So-
ciais, era o mestre Florestan Fernandes, a cujo profícuo
labor se deve, além de sua importante obra científica, a
formação de uma plêiade de brilhantes sociólogos, como
Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Francisco
Weffort, cujos alunos, por sua vez, estão começando a
ingressar nas fileiras acadêmicas. O mesmo ocorre no
campo do marxismo. O marxismo sofisticado que, feliz-
mente, passou a prevalecer nos meios universitários e
intelectuais contrasta, singularmente, com as formula-
ções mecânico-ortodoxas de há vinte anos, comandadas
pelo velho PC. Delas só escapava na história econômica
mestre Caio Prado Júnior, com sua importante obra de
análise de nossa economia colonial.
As limitadas dimensões deste artigo me impedem
qualquer intento de apreciação mais detalhada da obra
do ISEB. Restringir-me-ei, por isso, a mencionar o que
nela, de um modo geral, me parece mais importante. Tra-
ta-se, a meu ver, da combinação de rigor científico, no

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

São também relevantes as pesquisas históricas de de que continue a considerá-los válidos, que são traba-
Nelson Werneck Sodré, em sua fase isebiana: os estu- lhos de juventude. Trabalhos de juventude foram tam-
dos sobre as classes sociais no Brasil, sobre o Tratado bém os de Cândido Mendes, que na época tinha menos
de Methuen, sobre a ideologia do colonialismo e as raí- de 30 anos, e os de Guerreiro Ramos e Celso Furtado,
zes históricas do nacionalismo brasileiro. Assim como ambos, então, em sua terceira década. Por outra parte,
há que destacar, entre os isebianos da última fase, a no que se refere a minha principal obra daquela época,
obra de Wanderley Guilherme dos Santos e seu reequa- O Nacionalismo na Atualidade Brasileira (hoje esgota-
cionamento das relações de classe, na ótica da crise do da), considero que sua plena apreciação crítica requer
populismo. Considero, finalmente, que a atuação de Ro- que se leve em conta as amplas e detalhadas precisões
land Corbisier durante os primeiros anos do ISEB, sua teóricas que foram trazidas, a muitas das posições que
devoção ao Instituto, seus estudos pedagógicos, e seus defendo naquele livro, por dois livros posteriores – De-
notáveis dotes didáticos, na difusão dos trabalhos e do senvolvimento Econômico e Desenvolvimento Político, de
pensamento isebianos, constituíram um fator decisivo 1962 (de que há nova edição da Paz e Terra) e Political
para o êxito da iniciativa. Development, alentado tratado originalmente publicado
Dos meus próprios trabalhos, no período isebiano em um só volume em Nova York, em 1973 e cuja versão
– cuja avaliação crítica, evidentemente não me cabe fa- em português foi recentemente publicada, em três vo-
zer – direi apenas, inicialmente, e sem embargo do fato lumes, pela Editora Perspectiva, de São Paulo.

86 tributo
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

É bastante ampla a obra inicial do ISEB. Quase toda


a produção do Instituto se fez nesse período, antes que
(a partir de 1959 e, mais ainda, de 1962), sob o fascínio
do próprio êxito, se deixasse arrastar da análise po-
lítica para a militância política. Por outro lado o ISEB,
precisamente em sua primeira fase, era um centro de
problematização onde, deliberadamente, se procurava
assegurar o diálogo entre uma linha predominante de
ideias e diversas outras linhas, mantendo-se um cons-
tante ambiente crítico dentro do Instituto. Daí serem di-
versas as tendências que se manifestavam no ISEB, em
que coexistia, por exemplo, o existencialismo fenome-
nológico de Roland Corbisier com o marxismo hegelia-
no de Vieira Pinto.
A despeito da diversidade de tendências e pessoas,
formou-se, no ISEB da primeira fase, o que se poderia
designar de uma linha central ou predominante de ideias.
Já referi, precedentemente, os principais pressupostos
teóricos dessa linha. Mencionarei, agora, muito sucin-
tamente, suas teses políticas mais características, que
marcaram profundamente a opinião pública brasileira
da década de 50. Creio se possam sumariar essas ideias
nas seguintes quatro principais teses: a despeito de seus vínculos com o capitalismo interna-
1) A identificação e a explicitação da ideologia na- cional, dispunha de condições para uma atuação sufi-
cional-desenvolvimentista e a tese de que, naquela fase cientemente autônoma para assegurar o atendimento
histórico-social do país, tal ideologia era a de maior va- dos interesses nacionais, sempre que operando com o
lidade social, por atender – ainda que diferencialmen- total apoio e dentro das diretrizes do Estado nacional.
te – aos interesses fundamentais dos setores progres- Essas teses, cuja proposição já vinha dos tempos
sistas da burguesia, da classe média e do proletariado. do IBESP, ao mesmo tempo em que influíram, sensivel-
2) A tese de que a direção sociopolítica do proces- mente, na formulação das políticas do segundo Governo
so do desenvolvimento nacional recaia, naquela fase do Vargas e do Governo Kubitschek, manifestavam também
país, no setor industrial da burguesia nacional, no qua- ideias correntes da época. A aliança PSD-PTB, em últi-
dro do Estado nacional e da democracia populista, com ma análise, exprimia tal ponto de vista e refletia a ado-
apoio na aliança dos setores progressistas das demais ção do mesmo pelas bases urbanas daqueles partidos.
classes sociais. A crise do populismo e as tendências que vieram,
3) A tese de que as contradições entre as classes subsequentemente, a prevalecer no Brasil, modificaram
sociais aliadas no bloco progressista (ou nacional-de- profundamente as opções políticas do país e o curso dos
senvolvimentista) importavam menos, naquela fase do acontecimentos. O capital estrangeiro, do papel comple-
país, do que as contradições entre aquele bloco é a coli- mentar que jogava no segundo Governo Vargas e no Go-
gação latifúndio-mercantilista das forças reacionárias. verno Kubitschek (injustificadamente considerado, por
4) A tese de que a burguesia industrial brasileira, certa linha de críticos, como iniciador da internaciona-

outubro • Novembro • dezembro 2016 87


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

mesmo país, com o mesmo êxito, esse tipo de esfor-


ço, depois da Segunda Guerra Mundial, a despeito da
ocupação americana, reduzindo, deliberadamente, a
percentagens irrelevantes a participação do capital
estrangeiro em sua economia.
Minha segunda observação se refere à burgue-
sia nacional brasileira, hoje tão pouco nacional, mas
que se desenvolveu, notadamente a partir de 1930, e,
mais aceleradamente, na década de 1950, como uma
burguesia nacional basicamente autônoma. O problema
das burguesias nacionais periféricas (que ademais são
pouco frequentes e sempre débeis) não consiste em
que não possam existir (pois delas há vários exemplos)
e sim em que não podem exercer autonomamente seu
papel dirigente. Foram, historicamente, e são cada vez
mais tributárias do Estado. E, como não desempenham
um papel hegemônico e sim um papel dominante-diri-
lização de nossa economia) passou a exercer um papel gente, só podem dispor do necessário apoio do Estado
central, notadamente através das transnacionais. em aliança como outras classes ou setores de classe.
Seguindo o curso dos eventos, certa linha da teo- No caso brasileiro a crise do populismo na década de
ria da dependência, na continuação da teoria de Lênin 1960, importou na ruptura da aliança populista e jo-
sobre o imperialismo, difundiu a noção de que não pode gou nossa burguesia, em defesa de seus interesses
haver burguesia nacional – nem capitalismo nacional – de classe, em formas dependentes de vinculação com
nos países periféricos. Suscitou-se, assim, nos últimos o capitalismo internacional. De burguesia nacional se
anos, uma ampla controvérsia em torno das teses do converteu em burguesia satélite.
ISEB precedentemente enunciadas. Minha terceira consideração é a de que, enquan-
As limitadas dimensões deste artigo não permitem to persistirem condições históricas que, por um lado,
uma análise crítica dessa controvérsia. Restringir-me- permitam o desenvolvimento autônomo de certos
-ei, por isso, a três brevíssimas considerações. centros periféricos da órbita ocidental, e, por outro,
A primeira consiste na reafirmação da possibi- mantenham a burguesia periférica com classe do-
lidade e da efetiva ocorrência histórica de burgue- minante-dirigente, o nacional-desenvolvimentismo
sias nacionais – e de capitalismos nacionais – em (ainda que com muito maior intervenção do Estado e
países periféricos. A Alemanha de meados do sécu- maior peso relativo das classes aliadas) continuará
lo 19, periférica no âmbito de um sistema capitalis- sendo a linha programática mais apta a reunir for-
ta sob a hegemonia britânica, desenvolveu, por uma ças progressistas, em um país como o Brasil. Creio
opção em última análise política, a decisão de cons- que há evidentes indícios, neste momento em que se
tituir-se em um sistema nacional-capitalista próprio acumulam condições para uma nova modificação do
e logrou realizar seus objetivos sob a direção de Bis- quadro sociopolítico brasileiro, de que os princípios
marck. O Japão Meiji, periférico em relação às po- da democracia social e do nacionalismo se estão tor-
tências industriais do Ocidente, empreendeu um es- nando, rapidamente, os polos de congregação das
forço semelhante, com igual êxito. Reiterou aquele novas tendências políticas.

88 tributo
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Concluo estas reflexões voltando ao estudo de Caio de uma só ideologia, o nacional-desenvolvimentismo.


de Toledo, que as suscitou. Trata-se também, como é Pela originalidade e fluidez com que tratou seus temas,
usual para dissertações doutorais, de um trabalho de foi menos fábrica do que fonte. Algo de diametralmente
juventude. Nele se encontram sistematizadas as críti- oposto à divulgação mecânica e sectária de ideologias
cas às teses do ISEB a que precedentemente me referi pré-fabricadas, de esquerda ou de direita, que naquele
e cujas formulações iniciais vêm de trabalhos anteriores tempo, como hoje, é prática fácil, com muitos adeptos.
de Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Francisco Na verdade, os esforços empreendidos pelo ISEB, no
Weffort, ou de autores tributários da teoria leniniana do plano teórico, de superar as camisas de força do mar-
imperialismo, como André Gunder Frank, Theotônio dos xismo ortodoxo e do neopositivismo, ademais de have-
Santos e Ruy Mauro Marini. rem assinalado um desempenho bastante invulgar, por
Todo esforço crítico é importante. E são particular- parte de um grupo de jovens intelectuais brasileiros,
mente importantes as críticas bem articuladas, funda- continuam sendo uma exigência teórica do nosso tem-
das em pressupostos teóricos mais amplos, como ocor- po. Não creio, francamente, que o marxismo anti-huma-
re no caso do estudo do Caio de Toledo e a subjacente in- nista e positivístico de Althusser seja uma resposta às
fluência que nele exerce a versão althusseriana do mar- dificuldades teóricas das Ciências Sociais.
xismo. Em contrapartida, entretanto, a excessiva rigidez No plano do pensamento aplicado tampouco creio,
dogmática da perspectiva althusseriana privou Caio de como já o mencionei, que o nacionalismo seja algo que
Toledo da possiblidade de se dar conta da grande origi- nada mais tenha a ver com a realidade brasileira. Na
nalidade de pensamento do ISEB, como procurei mos- verdade este país continua dispondo – embora não por
trá-lo neste artigo. prazo indefinido – da possibilidade de uma opção pró-
Fábrica de ideologias, o ISEB? O plural, desde logo, pria e basicamente autônoma, ante os satelitismos ame-
é incorreto. O ISEB se dedicou à análise e à discussão ricano e soviético.
É interessante observar que os aspectos da obra
do ISEB, que procurei brevemente destacar neste ar-
tigo e que escaparam à análise de Caio de Toledo, fo-
ram lucidamente assinalados por Michel Debrun, em
estudo publicado em Sociologie du Travail, Nº 3/1964
(págs. 232-257) e Nº 4/1964 (págs. 351-380). Este es-
tudo, escrito meses após a deposição do Governo Gou-
lart, e que escapou à atenção de Caio de Toledo, depois
de salientar a grande importância e originalidade do
pensamento do ISEB, conclui – em concordância com
minhas observações precedentes, assinalando que o
nacionalismo, repudiado a partir de 1964 pelos novos
dirigentes do país continuaria sendo uma futura opção
válida – que o país teria tendência a retornar quando
ocorresse sua redemocratização.

O texto foi publicado no Jornal do Brasil em 25 de setembro de 1977, com


o título original de “20 anos: Breves reflexões sobre o IBESP e o ISEB”

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Cartas do Divino Ódio

Excom u
90 Expurgo
unhões
LEON TOLSTOI

Decreto do
Santo Sinodo
Trecho de carta escrita pelo Padre João
de Kronstadt EM 1901

“Que amarrem uma pedra no teu pescoço e com ela tu sejas


jogado nas profundezas do mar. Não deve haver lugar na
Terra para ti. A Igreja não o reconhece como seu membro
e não pode reconhecê-lo enquanto ele não se arrepender.
Leva da Terra esse cadáver fedorento que, com sua soberba,
desonra a Terra toda. Amém.”

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

MARTINHO LUTERO

Exsurge Domine
Trecho da carta do papa Leão X, em 1520

“Agora, um novo Porfírio se levanta, que, como o outro do passado,


cheio de erros, assediou os santos apóstolos, e agora ataca os santos
pontífices, nossos predecessores. Ele os reprova por violação a vosso
ensinamento, em vez de implorá-los, e não tem pudor de atacá-los, de
lamentá-los, e quando se desespera de sua causa, de rebaixar-se
aos insultos. Ele é como os hereges cuja última defesa, como disse
Jerônimo, é pôr-se a vomitar veneno de serpente com sua língua,
quando veem que suas causas estão para ser condenadas, e explodem
em insultos quando se veem vencidos. Embora tenhais dito que
deveria haver heresias para testar a fé, ainda assim eles devem ser
destruídos no próprio berço por vossa intercessão e ajuda, e, assim,
não crescerão nem se tornarão fortes como vossos lobos.“

92 Expurgo
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

BARUCH ESPINOZA

Cherém dos
Senhores do
Mahamad
Trecho da sentença do Conselho da Sinagoga
Portuguesa de Amsterdã, em 1656

“Com a sentença dos Anjos e dos Santos, com o consentimento do Deus Bendito
e com o consentimento de toda esta Congregação, diante destes santos Livros, nós
heremizamos, expulsamos, amaldiçoamos e esconjuramos Baruch de Spinoza ...
Maldito seja de dia e maldito seja de noite, maldito seja em seu deitar, maldito seja em
seu levantar, maldito seja em seu sair, e maldito seja em seu entrar ... E que Adonai
(Soberano Senhor) apague o seu nome de sob os céus, e que Adonai o afaste, para
sua desgraça, de todas as tribos de Israel, com todas as maldições do firmamento
escritas no Livro desta Lei. E vós, os dedicados a Adonai, que Deus vos conserve
todos vivos. Advertindo que ninguém lhe pode falar pela boca nem por escrito nem
conceder-lhe nenhum favor, nem debaixo do mesmo teto estar com ele, nem a uma
distância de menos de quatro côvados, nem ler Papel algum feito ou escrito por ele. ...
Nós heremizamos, expulsamos, amaldiçoamos e esconjuramos Baruch de Spinoza.
Maldito seja de dia e maldito seja de noite, maldito seja em seu deitar, maldito seja em
seu levantar, maldito seja em seu sair, e maldito seja em seu entrar.”

outubro • Novembro • dezembro 2016 93


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

GALILEU GALILEI

Processo do Santo Ofício


Trecho da sentença do Cardeal Bellarmino, em 1615

“E por isso que veio ao conhecimento da Sagrada Congregação que, com


respeito ao movimento da Terra e à imobilidade do Sol, que Nicolau
Copérnico em sua obra sobre as revoluções dos globos celestes, e Diogo de
Zúñica em sua obra sobre Jé, ensinaram, já se tem espalhado e foi aceita
por muitas pessoas, como se conclui da carta de um Padre Carmelita
cujo título é “Carta do Pe. Mestre P. A. Foscarini, Carmelita, sobre
a opinião dos pitagorianos e de Copérnico...”, impressa em Nápoles por
Lazzaro Scariggi, em 1615, na qual a Congregação, a fim de que esta
opinião não mais se difunda daqui por diante, em detrimento da verdade
católica, é de aviso que se suspendam as duas obras de Copérnico e Diogo
de Zúñica até que sejam corrigidas, de proibir inteiramente o livro do
Pe. Foscarini, e de proibir igualmente todos os livros que ensinam a
mesma doutrina, como pelo presente decreto ela os proíbe, todas e cada um,
os condena e os suspende. Porém, a fim de que teu grave e pernicioso erro
e tua desobediência não fiquem absolutamente impunidos, a fim de que tu
sejas para o futuro mais reservado e que tu sirvas de exemplo aos outros,
para que eles evitem estas espécies de faltas, nós ordenamos que o livro
dos “Diálogos” de Galileu Galilei seja proibido por um decreto público; nós
te condenamos à prisão ordinária deste Santo Ofício, pelo tempo que nós
determinaremos à nossa discrição e, a título de penitência salutar, nós te
impomos recitar durante três anos, uma vez por semana, os sete salmos
penitenciários, reservando-nos a faculdade de moderar, mudar, exonerar
todas ou parte das penas e penitências supraditas.”

94 Expurgo
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

GIORDANO BRUNO

Condenação à
Morte na Fogueira
Trecho da sentença do papa Clemente VIII, em 1600

“Aquele Bruno era nolano, do reino de Nápoles, da ordem


Dominicana; aos dezoito anos duvidava do dogma da
transubstanciação (que, certamente, repugna à razão, como te ensina
o teu Crisóstomo), além de negá-la veementemente, e, logo em seguida,
havia começado a pôr em dúvida a virgindade da Beata Maria (a qual
Crisóstomo considera sempre mais pura de que todos os querubins e
serafins). Ora, se Lutero é igual a Bruno, qual tratamento pensas que
devemos dispensar àquele? Certamente deve ser confiado a Vulcano,
o deus claudicante, para que seja queimado com lenha maldita.”

outubro • Novembro • dezembro 2016 95


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

COMUNISMO ATEU

Divinis Redemptoris
TRECHO DA CARTA DO PAPA PIO XI, EM 1937

“Depois da miserável queda de Adão, como consequência dessa mácula


hereditária, começou a travar-se o duro combate da virtude contra os estímulos
dos vícios; e jamais cessou aquele antigo e astuto tentador de enganar a sociedade
com promessas falazes. É por isso que, pelos séculos afora, as perturbações se
têm sucedido umas às outras até à revolução dos nossos dias, a qual ou já surge
furiosa ou pavorosamente ameaçada atear-se em todo o universo e parece
ultrapassar em violência e amplitude todas as perseguições que a Igreja tem
padecido; a tal ponto que povos inteiros correm perigo de recair em barbárie,
muito mais horrorosa do que aquela em que jazia a maior parte do mundo antes da
vinda do divino Redentor. Vós, sem dúvida, Veneráveis Irmãos, já percebestes
de que perigo ameaçador falamos: é do comunismo, denominado bolchevista e
ateu, que se propõe como fim peculiar revolucionar radicalmente a ordem social e
subverter os próprios fundamentos da civilização cristã.”

96 Expurgo
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Maçons

Bula In Eminenti
Apostolatus Specula
Trecho da carta do papa Clemente XII em 1738

“Deste modo, Nós ordenamos precisamente, em virtude da santa obediência,


que todos os fiéis de qualquer estado, grau, condição, ordem, dignidade ou
preeminência, seja esta clerical ou laica, secular ou regular, mesmo aqueles
que têm direito a menção específica e individual, sob qualquer pretexto ou por
qualquer motivo, devam ousar ou presumir o ingresso, propagar ou apoiar estas
sociedades dos citados Liberi Muratori ou Franco-maçons, ou de qualquer
outra forma como sejam chamados, recebê-los em suas casas ou habitações
ou escondê-los, associar-se a eles, juntar-se a eles, estar presente com eles
ou dar-lhes permissão para se reunirem em outros locais, para auxiliá-los de
qualquer forma, dar-lhes, de forma alguma, aconselhamento, apoio ou incentivo,
quer abertamente ou em segredo, direta ou indiretamente, sobre os seus
próprios ou através de terceiros; nem a exortar outros ou dizer a outros, incitar
ou persuadir a serem inscritos em tais sociedades ou a serem contados entre
o seu número, ou apresentar ou a ajudá-los de qualquer forma; devem todos
(os fiéis) permanecerem totalmente à parte de tais Sociedades, Companhias,
Assembleias, Reuniões, Congregações ou Convenções, sob pena de
excomunhão para todas as pessoas acima mencionadas, apoiadas por qualquer
manifestação, ou qualquer declaração necessária, e a partir da qual ninguém
poderá obter o benefício da absolvição, mesmo na hora da morte, salvo através
de Nós mesmos ou o Pontífice Romano da época.”

outubro • Novembro • dezembro 2016 97


98 Nota zero
C R I A N Ç A S

DESINVESTIDAS
Pedro Cattapan
Psicólogo

E
m dezembro de 2006 a prefeitura da cidade do
Rio de Janeiro instituiu a Rede de Proteção do
Educando (RPE), no âmbito da Secretaria de Edu-
cação do município. A rede era composta inicialmente
de psicólogos e assistentes sociais. Entre os primeiros,
encontrava-se o autor. O projeto pretendia repensar as
práticas das escolas municipais, buscando compreen-
der os tipos de subjetividades produzidas ou reproduzi-
das por tais instituições, no que respeita aos seus alu-
nos, professores e demais personagens. Dispensável
lembrar que, tendo em vista a desigualdade gritante que
caracteriza a realidade de um município como o Rio de
Janeiro, os problemas encontrados variaram muito de

outubro • Novembro • dezembro 2016 99


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

escola para escola. Entretanto, foi possível identificar lhos muito distantes uns dos outros; em segundo lugar,
problemas comuns; e é sobre estes que gostaria de me demonstrar como os profissionais das escolas munici-
debruçar. Minha experiência procedeu de um contato pais do Rio de Janeiro reagem a essa nova modalidade
constante com as famílias do alunato municipal de re- de vida familiar.
giões muito pobres, como as favelas da Ilha do Gover- Em sua conferência de encerramento da jornada
nador, da região da Maré e de Bonsucesso. Como psicó- Sexualidades, do Espaço Brasileiro de Estudos Psica-
logo, passei assim a ter acesso a uma população nova à nalíticos, em 2005, Joel Birman propôs prestar atenção
escuta clínica, cujo material recolhi ao longo de quatro em um fenômeno corrente por ele denominado “dese-
anos. Quanto à organização familiar dessa população, a rotização da infância”. Segundo Michel Foucault (1974-
maioria delas é formada por famílias compostas apenas 1975, 1976) e Phillipe Ariès (1973), a sexualização da in-
por mãe e filhos. Os pais estão ausentes, seja por terem fância foi uma característica da modernidade, formada
sido vítimas da violência urbana, seja por não terem tem- pela constituição da família nuclear; pela investigação
po ou desejo de participar da criação de seus filhos. Por e a tentativa de impedimento da masturbação; da ideali-
outro lado, as mães trabalham quase sempre por todo o zação da mãe como figura que dá amor e carinho; pelos
dia, dando pouca atenção aos filhos quando retornam à cuidados para com o pequeno ser humano que, confor-
casa, por estarem exaustas. Este artigo visa dar um de- me a lógica da biopolítica do século XIX, representava o
poimento sobre essa experiência, bastante profícua, e futuro da nação em termos de mão de obra, ganho eco-
julgá-la do ponto de vista da política pública por ela re- nômico e cultural. A criança era a garantia de continui-
presentada. Gostaria de discutir, em primeiro lugar, os dade de uma cultura e, por isso mesmo, objeto de inves-
efeitos psíquicos dessa nova organização de pais e fi- timento de toda a sociedade. Enfim, é neste contexto que

100 Nota zero


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

se institui a “Sua Majestade, O Bebê” freudiana (FREUD, interesse em descobrir de que modo as mudanças im-
1914c). Nele, formava-se o caráter do homem, vincula- pactaram junto à população pobre, que tem filhos mais
do à sua experiência emocional e expresso “pela lealda- cedo e em maior número. Muitas das famílias que a com-
de e o compromisso mútuo, pela busca de metas a lon- põem não têm condições econômicas, tempo, nem co-
go prazo, ou pela prática de adiar a satisfação em tro- nhecimento para transmitir aos seus rebentos aqueles
ca de um fim futuro [...] Caráter são os traços pessoais cuidados idealizados pela classe média como “uma boa
a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais bus- criação”. Para agravar o quadro, os pais pertencentes a
camos que os outros nos valorizem” (SENNETT, 1999, p. esse segmento social investem pouco na educação dos
10). O caráter expressava o referencial a partir do qual filhos. Alguns estão cansados demais, quando retornam
o eu moderno se formava, submetidos a interditos de- do trabalho; outros, ao contrário, são adolescentes, ou
correntes de determinados valores, que bloqueavam desempregados endêmicos que veem a prole como uma
as pulsões dominadas pelo “princípio do prazer”. O ho- dificuldade adicional em suas vidas. Se este é o quadro
mem moderno sentia a necessidade de impedir a satis- das crianças no lar, na escola elas tampouco encontram
fação instantânea de suas pulsões em nome de sua sub- muito acolhimento. O investimento afetivo dos adultos
missão a uma sociedade disciplinar, que lhe prometia a sobre tais crianças se torna assim mínimo, senão nulo,
normalidade de uma vida burguesa (FOUCAULT, 1974- com consequências por toda a sua vida ulterior. Tam-
1975). Seus filhos recebiam os investimentos propor- bém o Estado, figura outrora sentida como parental na
cionais, encarados como sua continuidade narcísica, comunidade, parece igualmente despreocupada de sua
um artifício para eternizar-se em uma época que já co- “prole”. As consequências desse investimento se refle-
meçava a duvidar da existência da vida pós-morte até tem, correlatamente, naquilo que Sennett denomina “a
então garantida pela religião. O contrário desse homem corrosão do caráter”, decorrente das transformações
disciplinado era o perverso – que realizava os desejos subjetivas devidas à ascensão do chamado capitalismo
e moções pulsionais, apenas fantasiados pelos neuróti- flexível, que pede aos trabalhadores agilidade, abertu-
cos bem-comportados e, deste modo, experimentando- ra às mudanças, riscos e, acima de tudo, independên-
-o apenas em negativo (FREUD, 1905d). Por fim, o cará- cia. Trata-se de um novo homem para quem a interiori-
ter desse homem moderno supõe uma continuidade de dade deixa de interessar na medida em que passa a ava-
determinados traços com os quais seu eu se identifica e liar sua vida em termos de uma performance na qual a
deseja tanto manter como ser por eles identificado. A re- vontade de satisfazer seus próprios desejos careceria
tenção e a construção de uma história de si são de fun- de prevalecer sobre as antigas amarras sociais. É nes-
damental importância para modelar e avaliar o próprio se contexto que o caráter se corrói, na medida em que o
caráter em termos de autorrespeito e a autovalorização. acúmulo de informação e experiência se tornam desim-
portantes, sendo o imperativo do curto prazo que rege

M
as essa não é, já de algumas décadas para cá, nossas condutas. O caráter frágil é contemporâneo da
a realidade das sociedades modernas. No que vontade de ser sempre flexível e inquebrantável.
diz respeito ao lugar ocupado pela criança, en-
tende Birman que o custo emocional, financeiro e físico Uma sociedade corroída
de sua criação passou a ser percebido como bastante O ponto forte do argumento de Sennett está em rela-
elevado, com o qual muitos adultos não estão mais dis- cionar a transformação do caráter à transformação da
postos a arcar. É sabido que, como consequência, a fim organização do trabalho. Na primeira metade do século
de preservar seu status socioeconômico, a classe mé- XX houve grandes embates entre a classe trabalhado-
dia passou a ter menos filhos. Não há, porém, idêntico ra e o patronato. Como resultado, as relações de traba-

outubro • Novembro • dezembro 2016 101


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

lho se reestruturaram de maneira a satisfazer algumas crescente frustração ou depressão psíquica da socie-
necessidades dos mais desfavorecidos, a fim de evitar dade. O desejo não se projeta mais no tempo construído
ações mais radicais. Essa dinâmica de origem ao Esta- pelas fantasias e sonhos, como pensava Freud (FREUD,
do de Bem-Estar Social, cuja legislação trabalhista, sin- 1908e [1907]); ele se projeta compulsivamente no pon-
dicatos fortes e instituições assistenciais incentivavam tual e instantâneo do presente imediato. Como Jurandir
as empresas a criarem um ambiente de trabalho estável, Freire Costa demonstra (2004), a prevalência do tem-
marcado por ganhos recíprocos: o empregado ganha- po instantâneo e o abandono da história ou da tradição
ria uma vida mais segura; o empregador, uma produção como valor social junto às classes dominantes atingem
menos sujeita a greves, revoltas e perda de funcionários por efeito reflexo as classes dominadas, que invariavel-
(SENNETT, op. cit.; HOBSBAWM, 2005). Era um quadro mente têm como referência moral e estética o topo da
que permitia ao trabalhador pensar a longo prazo, pro- pirâmide. O lugar social central ora ocupado por duas
jetar uma história de vida e, por sua vez, ao patrão, in- práticas que valorizam o agora em detrimento do pas-
vestir bastante na melhoria de seus funcionários, tendo sado – a moda e a ciência positivista – representa um
por retorno maior produtividade. Produzia-se frequen- sinal de mudança na temporalidade, responsável pela
temente um laço efetivo entre os companheiros de tra- substituição da autoridade (figura que se constrói no
balho, de um lado, fosse entre os próprios empregados longo prazo) e pela celebridade instantânea como figu-
e a empresa, fosse entre empregados e seus subordina- ra de referência social. Trata-se de uma “moral do es-
dos. Mas a desconstrução desse Estado do Bem-Estar petáculo”, na qual se amalgamam o culto à própria per-
Social no último terço do século XX criou uma realidade formance, a rejeição pela história e o apagamento das
de estruturação de classes completamente diferente. Os relações de longo prazo.
sindicatos se enfraqueceram e há cada vez mais traba-
lhadores submetidos a situações de trabalho destituído Alunos performáticos, pais distantes e professores
de vínculo empregatício formal, nas quais contratações desesperançosos
e demissões são feitas à vontade discricionária da parte É o novo tipo subjetivo acima referido que se insi-
mais forte. Diante da crença de inexistência de trabalho nua no alunato das escolas municipais do Rio de Janei-
para todos, em um ambiente de instabilidade e insegu- ro. Em meu trabalho, deparei-me com crianças e ado-
rança, muitos se submetem a condições antes julgadas lescentes referidos à moral do espetáculo, cujo tempo é
inaceitáveis, em busca de remuneração, status social imediatista, cuja interioridade é pobre e cujas relações
ou estabilidade emocional e financeira. afetivas são efêmeras e incertas, porque seus pais não
as investem eroticamente, como faziam os neuróticos

D
o ponto de vista da constituição das subjetivi- freudianos. Entretanto, do outro lado, deparei-me com
dades, a valorização capitalista da rapidez, do professores e direções de escola cuja expectativa era a
curto prazo e da imediaticidade, o desprezo pela de lidarem com crianças produzidas a partir do padrão
espera e a consequente intolerância aos desprazeres e antigo de relações de trabalho. O resultado desse desen-
ao conflito interno transformaram a relação do homem contro é o de uma relação de hostilidade entre os pro-
com o tempo. Formam-se subjetividades sempre insatis- fessores e as famílias das crianças. A escola acusa a fa-
feitas quanto ao seu próprio eu, sempre abaixo de suas mília de não amar os filhos e vê-la como um “depósito de
expectativas de gozo imediato, intenso e frequente, bem crianças”. Os familiares, por seu turno, respondem dis-
como de adaptabilidade a quaisquer circunstâncias. A por de pouco tempo para cuidar dos filhos, sentindo-se
aceleração e a expansão do capitalismo são, assim, pa- culpados pela miséria em que vivem e pelo mal desem-
ralelas à aceleração e a expansão de um processo de penho escolar das crianças. Não raro, a família devol-

102 Nota zero


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ve as ofensas à escola e nunca mais retornam. Trata-se melancolia (FREUD, 1917e [1915]). Ali, o pai da psicanáli-
de um conflito de difícil resolução, na medida em que os se demonstra que o que caracteriza a situação psíquica
dois lados estão certos e, por isso mesmo, se magoam do melancólico, em oposição àquele que experimenta o
ainda mais com as ofensas que escutam. Obviamente, a luto, é que o melancólico não consegue elaborar a per-
culpabilização das famílias não resolve o problema da da de um objeto, reinvestindo o mundo exterior. Como
produção de subjetividades deprimidas, que corrói os os melancólicos, a perda do objeto de amor do profes-
caracteres. Por que, então, os professores hostilizam a sor – no caso a criança moderna, erotizada e discipli-
família de seus alunos? nada – faz com que ele não valorize sua própria ima-
Minha hipótese – e essa é minha verdadeira contri- gem, construída como a daquele professor moderno da
buição com este artigo – é que eles o fazem na medida criança moderna, erotizada, dócil e útil. Na sua falta, o
em que também desinvestem estas crianças, tornadas professor se deprime, aguardando um ideal de criança
“casos perdidos” por terem vindo “de onde vieram”. Se que não vem jamais. O resultado é a frustração do do-
as transformações do novo capitalismo afetam todos, é cente diante da conduta indisciplinada de crianças que
óbvio que os professores não são exceção. Quando eles não o reconhecem como figura de autoridade: “Eu não
se dão conta de que a criança erotizada, o futuro da na- virei professor para isso!”. Na ausência do aluno ideali-
ção, não comparece mais às salas de aula, eles perdem zado, o que ele vê diante dele, o real, é mero dejeto que
o interesse pelas crianças reais que ali estão, repetin- lhe provoca ou rejeição ou desesperança melancólica.
do o desinvestimento. Sua reação é análoga à da figura Quando perguntei a uma professora por que puxava a
do melancólico apresentada por Freud no artigo Luto e orelha de um aluno que “não parava quieto”, ela me res-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

pondeu: “Este menino não é nada para mim! Você não é profissão. Se o psicólogo decide agir numa escola, ele
nada, ouviu, menino? Nada!”. Uma vez que os alunos não deve compreender que suas ações podem ter três con-
correspondiam ao seu ideal de boa educação enquanto sequências: 1) serão absorvidas; 2) serão rejeitadas; 3)
aluno, ela também, professora, podia abandonar o seu provocarão transformações na escola. É a terceira op-
padrão exigível de conduta, descarregando sobre ela a ção o que deve procurar este profissional. No entanto,
sua violência. A melancolia e a desesperança dos pro- se ele agir como um mero entrevistador de famílias que
fessores participam de maneira pungente na constru- visa a descobrir qual o problema de um determinado alu-
ção desse quadro, realimentando-o. O que fazer, então? no, individualizando-o como um quadro patológico, con-
tribuirá para manter uma situação na qual família e a
E o que deveria fazer a RPE? escola desinvestem na criança. Da mesma forma, se o
Algumas diretrizes de ação se impõem logo à pri- psicólogo se torna um acusador das práticas perversas
meira vista. As instituições encarregadas dessa tare- dos parentes e professores, sua ação se tornará inócua
fa incutem, nos docentes, expectativas de encontrarem na medida em que perderá a confiança dos dois lados. A
crianças que não existem mais. Daí a necessidade de atitude acusatória é pouco construtiva e transformado-
reformulação de currículos e métodos dos cursos nor- ra porque prepara o terreno para uma atitude reativa
mais superiores e as licenciaturas. Outra possibilidade do acusado. É igualmente improdutivo que o psicólogo
é levar a cabo aquilo que a RPE buscou fazer desde o iní- responsabilize “o sistema” perante familiares e docen-
cio: a prática da análise institucional nas escolas muni- tes, uma vez que tal discurso exime a responsabilida-
cipais do Rio de Janeiro (MINAYO-GOMEZ & BARROS DE de dos envolvidos e deposita a expectativa de ação nas
BARROS, 2002; ROCHA, 2002 e ROCHA & AGUIAR, 2003). mãos de terceiros estranhos e inatingíveis.
Chamo aqui de análise institucional a possibilidade de,

Q
com a ajuda de psicólogos e assistentes sociais, levar a ual seria, então, a estratégia mais adequada?
escola a repensar suas práticas e construir estratégias É certamente aquela que, por meio de uma mi-
capazes de alcançar seus fins institucionais: instruir, cropolítica, de ganhos incrementais, seja ca-
educar, promover a criatividade e a transformação so- paz motivar profissionais e famílias a reverem suas po-
cial. Infelizmente, há inúmeras resistências ao trabalho sições enrijecidas. No caso dos primeiros, cumpre que
de análise institucional. Em primeiro lugar, dos profis- os professores abdiquem de suas idealizações e reco-
sionais da própria instituição, habituados à sua rotina nheçam seus alunos como eles são; no que se refere
que não desejam reformular. Em segundo lugar, do alu- aos segundos, que revejam o raciocínio segundo o qual
nato já identificado com personagens como “o indisci- o trabalho é prioritário em relação ao tempo investido
plinado”, “o queridinho da professora”, “o estúpido”, “o em seus filhos. Baseado em minha experiência, declino
zero à esquerda”, cultivando seus ganhos secundários. três estratégias que se revelaram bem-sucedidas. Em
Em terceiro lugar, das famílias, para quem o processo primeiro lugar, entrevistas às famílias, acompanhadas
educacional lhes é tarefa estranha e depositam na es- sempre do professor ou do coordenador pedagógico, de
cola toda a responsabilidade. Em quarto lugar, do sis- modo a intervir sobre ambas as posições e abrir cami-
tema administrativo-burocrático da rede de educação nho a uma terceira via menos conflagrada e mais preo-
do município, pouco envolvido com o trabalho de ponta. cupada com a criança cuja subjetividade desafia o tipo
Por fim, há resistência do próprio profissional da Rede de educação que lhes querem dar. Em segundo lugar, le-
de Proteção ao Educando, seja ele psicólogo ou assisten- var os professores à comunidade onde residem as fa-
te social. Para se trabalhar na RPE o profissional devia mílias, pondo-o em contato com a realidade que o bair-
se separar de um referencial estrito sobre o que é sua ro pobre e a favela lhe impõem. A medida os induzirá a

104 Nota zero


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

compreender melhor as circunstâncias das famílias, e o melhor posto de saúde em matéria de atendimento
estas últimas, a melhor compreender aquelas de quem infantil etc.). Trata-se aí de estabelecer entre as partes
ensina. A situação permite-lhes ainda estreitar os laços, uma parceria que favoreça o investimento na criança. O
de modo a pensar juntos os possíveis meios de trans- desinvestimento da infância é um problema grave para
formar a vida do aluno. Em terceiro lugar, cumpre ten- o qual tenho chamado a atenção dos pais, professores,
tar trazer as famílias à escola, não somente para ouvi- e, agora, também, do leitor.
rem reclamações, instruções ou discussões a respeito
do desempenho ou conduta do filho, mas também para
O autor é chefe do Departamento de Psicologia da Universidade Fede-
trocar ideias com os docentes, em circunstâncias mais
ral Fluminense (UFF-RO)
variadas (decidir em que esporte colocar os filhos, qual pedrocattapan@hotmail.com

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outubro • Novembro • dezembro 2016 105


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

CIÊNCIA POLÍTICA
1966-1970

O
DESENVOLVIMENTO
EM PAUTA

106 gênese
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Christian
Edward Cyril Lynch
Jurista e cientista político

outubro • Novembro • dezembro 2016 107


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O
objetivo deste artigo é inves- retrospectivo, um jornalista político reconhecimento da condição peri-
tigar os primeiros anos da contemporâneo consagrou como a férica do Brasil e de sua especifici-
Ciência Política brasileira, da “ditadura envergonhada” (Gaspa- dade no contexto latino-americano,
ao tempo de sua institucio- ri, 2002). O caráter indefinido do pe- aqueles intelectuais quiseram rom-
nalização universitária. Como ríodo que vai de 1966 a 1969 ajuda a per a dependência com a Europa e
fontes, examinei os artigos publica- compreender o contexto intelectual os Estados Unidos para teorizar de
dos durante a primeira década da do final da década, ainda orientado modo menos dependente os proble-
Revista DADOS (1966-1976), publi- em grande medida pelo repertório mas nacionais. Reunindo o que ha-
cada pelo antigo IUPERJ, atual IESP- do período imediatamente anterior. via de mais notável da intelligentsia
-UERJ, de modo ininterrupto desde É neste cenário político e intelectual brasileira, o ISEB se destacara como
sua fundação. Trata-se da mais an- que a Revista DADOS começa a ser a principal arena de discussão dos
tiga e prestigiosa revista de ciências publicada pelo antigo IUPERJ com temas nacionais, buscando formu-
sociais do Brasil, e por isso mesmo, uma renovação da tradição do pen- lar uma orientação política global de
um bom primeiro caminho para um samento social e político brasileiro índole nacionalista capaz de promo-
primeiro levantamento sobre os te- pela via da especialização empírica, ver o desenvolvimento do Brasil (To-
mas e protagonistas da primeira fase conforme os padrões universitários ledo, 1997). No intuito de reatar com
da “nova” ciência política brasileira, norte-americanos. aquele pensamento, Cândido Mendes
quando do processo de institucio- – ele próprio um ex-isebiano – cha-
nalização dos cursos homônimos. A A Revista DADOS no Contexto de mou para integrar o IUPERJ o próprio
Revista DADOS começou a circular Fundação do Antigo IUPERJ Hélio Jaguaribe, intelectual respon-
no período cinzento que começou A fundação da Revista DADOS sável pela elaboração da ideologia
com o golpe militar de 31 de março em 1966 e o seu perfil como periódi- nacional-desenvolvimentista e fun-
(1964) e terminou com a decretação co são indissociáveis do contexto de dador do Instituto Brasileiro de Eco-
do Ato Institucional nº 5 (1968), mar- criação do antigo Instituto Universi- nomia, Sociologia e Política (IBESP),
cado por certa indefinição sobre as tário de Pesquisas do Rio de Janei- que havia sido o primeiro núcleo do
possibilidades de eventual retorno à ro (IUPERJ, atual IESP-UERJ), no ano ISEB. Outros três pesquisadores con-
democracia ou de endurecimento do anterior. O instituto funcionava nas vidados por Cândido Mendes para o
regime, de um lado, e de adoção de dependências do edifício do antigo IUPERJ também haviam pertencido
modelos econômicos de austeridade Convento do Carmo, na Praça Quin- aos quadros do extinto instituto, em-
ou desenvolvimento, de outro. A des- ze de Novembro 101, no centro do bora em sua última fase: Wanderley
peito de seu caráter excepcional, o Rio de Janeiro, como as demais ins- Guilherme dos Santos, Carlos Es-
governo militar de Castelo Branco e, talações da Sociedade Brasileira de tevam Martins e Cesar Guimarães.
depois, de Costa e Silva ainda não era Instrução (SBI). Seu fundador, Cân- Formados em Filosofia na antiga Fa-
percebido pelo conjunto da socieda- dido Mendes de Almeida, pretendia culdade Nacional de Filosofia (FNFi),
de como um regime autoritário com alcançar dois objetivos. os dois tinham sido assistentes do
ânimo de permanência, o que acon- O primeiro era que o novo cen- último diretor do ISEB, Álvaro Viei-
teceria apenas com a decretação do tro ocupasse o vazio deixado na cena ra Pinto. Era em torno desse núcleo
Ato Institucional nº 5, em dezembro de intelectual do país desde a extinção inicial, a que se juntava ele mesmo,
1968, e da primeira emenda à Cons- do antigo Instituto Superior de Es- que Cândido Mendes esperava que
tituição de 1967, em 1969. Era a épo- tudos Brasileiros (ISEB) por ocasião o novo centro desse seguimento à
ca em que, com certo anacronismo do golpe militar de 1964. Partindo do tradição “do nosso pensamento so-

108 gênese
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

cial”, completando “o diagnóstico e a


teoria dos grandes configuradores
desta sociedade” (Almeida, 1966:4).
Se o primeiro objetivo de Men-
des se vinculava, assim, à tradição
da “velha ciência política brasilei-
ra”, o segundo deles tinha o propó-
sito inverso. Por meio de dotações
orçamentárias generosas e bolsas
de estudo de mestrado e doutora-
do nos Estados Unidos, a Fundação
Ford tencionava apoiar no Brasil a
criação de institutos comprometidos
com a produção de uma ciência polí- suma, o IUPERJ idealizado por Cân- senbalg e Edmundo Campos Coelho,
tica empiricamente orientada e já ti- dido Mendes serviria de ponte entre dela participando Eli Diniz, Maria Re-
nha celebrado convênio com a Uni- a antiga e nova Ciência Política bra- gina Soares de Lima, Fernando Cos-
versidade Federal de Minas Gerais sileira: daria sequência à tradição ta); Empresários brasileiros e filan-
(DCP-UFMG). Assim, a fim de tornar isebiana de uma intelligentsia preo- tropia (Vilma Figueiredo e Ana Lúcia
o IUPERJ um parceiro atraente para cupada com os destinos e o desen- Malan); Estruturas subnacionais e
um convênio daquele tipo, era preciso volvimento nacionais, incorporando, mobilização política no Brasil (Bolí-
que o novo centro também estivesse porém, teorias e métodos próprios var Lamounier e Lúcia Maria Gaspar
comprometido com uma ciência so- da Ciência Social norte-americana, Gomes); Aspirações dos estudantes
cial empiricamente orientada (Reis, empiricamente orientada. secundários da Guanabara (Sonia Ca-
1993). Para tanto, Cândido Mendes margo, Flora Abreu Henrique da Cos-

E
recrutou também jovens treinados em m seus primeiros quatro anos, ta, Louk de la Rive Box, Maria Isabel
teoria, técnicas de survey e métodos o IUPERJ funcionou nas de- Valladão); Elites artísticas e comuni-
quantitativos. Esses jovens compu- pendências da própria Socie- cação de massa (Paulo Thiago Paes
seram a parte mais expressiva da- dade Brasileira de Instrução de Oliveira); Carreira de advogado
quilo que, neste artigo, denominarei (SBI). Seus professores ofe- no Brasil (Bolívar Lamounier, Lúcia
“a nova geração”. No Rio de Janeiro, reciam dois cursos de pós-gradua- Maria Gaspar Gomes e Olavo Brasil
foram convocados bacharéis e licen- ção lato sensu em Ciência Política e de Lima Jr); Populações faveladas
ciados em Ciências Sociais formados Desenvolvimento, com turmas de 15 do Rio de Janeiro (Renato Boschi e
pela Pontifícia Universidade Católica alunos selecionados em prova que Rose Ingrid Goldschmitdt). Das vin-
(PUC), como Aspásia Camargo e Ana exigia conhecimentos gerais de So- te conferências proferidas por pro-
Lúcia Malan. De Minas Gerais vieram ciologia e Ciência Política, instituições fessores de diversas universidades
pesquisadores e futuros professo- políticas brasileiras, noções básicas estrangeiras, especialmente norte-
res como Bolívar Lamounier, Rena- de estatística e metodologia, e inglês. -americanas – Princeton, MIT, Van-
to Boschi, Amaury de Souza, Olavo As pesquisas em curso espelhavam derbilt, Columbia, Harvard – pratica-
Brasil de Lima Jr. e Edmundo Cam- também a temática do desenvolvi- mente todas se ocupavam igualmen-
pos, a maioria dos quais graduada mento. Eram elas: Elites e desen- te do desenvolvimento, versando so-
em Sociologia e Política na UFMG. Em volvimento (dirigida por Carlos Ha- bre a modernização política, o papel

outubro • Novembro • dezembro 2016 109


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

dos militares, tipologias de poder mo- Paulo (USP) como Fernando Henri- blica que marcara as atividades do
derno e tradicional, papéis e tipos de que Cardoso, Maria Sylvia de Car- ISEB, DADOS reatava o fio dos Ca-
elites políticas, planejamento econô- valho Franco e Leôncio Martins Ro- dernos do Nosso Tempo, antiga re-
mico. Os convidados internacionais drigues; politólogos da UFMG, como vista do IBESP, depois ISEB, que en-
de Cândido Mendes eram todos no- Antônio Octavio Cintra; economistas tre 1953 e 1956 divulgara o ideário
mes consagrados, como Edgar Mo- da UFRJ e do IPEA, como Maria da nacional-desenvolvimentista de inte-
rin, Gunnar Myrdal, Alex Inkelles e Conceição Tavares, Edmar Bacha, lectuais como Guerreiro Ramos, Iná-
Karl Deutsch. Josef Barat, Frederico Machado de cio Rangel, Hermes Lima e Oscar Lo-
Nesse contexto institucional a Amorim. Publicavam-se igualmente renzo Fernandes, além dos próprios
Revista DADOS começou a ser pu- cronologias, resenhas de livros e bi- Hélio Jaguaribe e Cândido Mendes.
blicada. Editada por César Guima- bliografias, que serviam de subsídios Segundo o fundador do IUPERJ e de
rães e Bolívar Lamounier em seus às pesquisas em curso. A partir do DADOS, Cadernos do Nosso Tempo
primeiros anos, sua redação fun- segundo número, a revista começa “havia sido responsável, mais do que
cionava também nas dependências a publicar uma seção denominada qualquer outra, pelo maior número
da SBI. A revista veiculava a produ- “Notas de pesquisa”, destinada à di- de hipóteses criadoras que conver-
ção dos professores e pesquisado- vulgação de trabalhos preliminares teram o nosso contínuo social à sua
res do instituto, na forma de artigos, que pudessem interessar a outros peculiaridade e deu início a um legíti-
notas de pesquisas e resenhas, noti- pesquisadores. mo esforço de compreensão da rea-
ciando seus cursos, suas palestras lidade brasileira” (Almeida, 1966a:4).
e pesquisas em andamento. Dos 40 Veículo da Transição entre a Velha e A revista do IBESP defendera “o es-
artigos publicados no primeiro pe- a Nova Ciência Política Brasileira clarecimento ideológico das forças
ríodo (1966-1969), 25 eram da la- Do ponto de vista intelectual, a progressistas – burguesia indus-
vra de pesquisadores seus, como linha editorial refletia logicamen- trial, proletariado e setores técnicos
Cândido Mendes, Hélio Jaguaribe, te o desejo de Cândido Mendes de da classe média – e arregimentação
Wanderley Guilherme dos Santos, dar continuidade à tradição do pen- política destas forças” (Schwartz-
Carlos Estevam Martins, Bolívar La- samento político brasileiro. Se o IU- man, 1971:4). Também DADOS, por-
mounier, Alaor Passos, Carlos Ha- PERJ retomava o tipo de reflexão pú- tanto, deveria fazer a ponte entre a
senbalg, Simon Schwartzman, Aspá-
sia Camargo e Lúcia Maria Gaspar
Gomes. A revista dispunha de uma
seção de resenhas de livros, cujos
autores também eram todos iuper-
jianos. O campeão de resenhas era
Bolívar Lamounier, responsável por
um terço delas, seguido por Amaury
de Souza e Edmundo Campos. Os au-
tores externos à casa que publica-
vam artigos a convite eram sumi-
dades como Torcuato de Tella, Sh-
muel Eisenstadt e Albert Hirschman,
sociólogos da Universidade de São

110 gênese
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

velha e a nova Ciência Política bra- zação internacional da intelectualida- Sua preocupação principal era com
sileira. E foi, também, o que ela pro- de para pressionar as potências em o destino da antiga intelligentsia na-
curou fazer. torno de uma ordem global voltada cional-desenvolvimentista a que ele
para a paz e o desenvolvimento; só pertencera, substituída, segundo ele,

N
o que diz respeito à tradição uma intelligentsia concebida à manei- por uma elite de poder de natureza
nacional-desenvolvimentis- ra de Mannheim disporia “de meios e tecnocrática, formada pela Escola
ta, que desde a introdução de autoridade para superar as leal- Superior de Guerra:
do pensamento da CEPAL dades paroquiais vinculadas a gru-
dera clara prevalência à pos e países interessados em jogos Em seguida à perda do momento
discussão econômica, a revista ten- de hegemonia, em benefício de uma canônico dos anos 50, e à crise que
dia a dedicar pelo menos um artigo visão integrada do mundo”; eram os lhe sucedeu, assumiria o comando
por número à economia política. No intelectuais que representavam, “no do país um regime de elite de poder,
primeiro (1966), Maria da Conceição mundo científico-tecnológico em que que suprimia a reflexão social com
Tavares retomava o tema clássico do vivemos, a unidade espiritual dos ho- seu jogo autônomo, e fazia já do go-
papel da substituição das importa- mens, acima dos conflitos de interes- verno a realização de uma ideologia
ções no processo de industrialização ses, de ideologias e de religiões” (Ja- prévia, homogênea e altamente aca-
da América Latina; no número 2/3 guaribe, 1966:158). De modo similar, bada. O governo da Escola Superior
(1967), Fernando Amorim defendia Torcuato de Tella lamentava a falta de Guerra, em 64, teria como seu
um desenvolvimento que conciliasse de uma intelligentsia latino-america- primeiro ato que fechar o ISEB, em
a proteção do emprego do trabalha- na autônoma e progressista, sólida e um ato de uma efetiva evicção da-
dor com a modernização tecnológi- prestigiosa, composta de “professo- quele ator da inteligência brasilei-
ca; no número 4 (1968), Josef Barat res, pesquisadores, artistas, escri- ra emergente da própria memória
descrevia as características prin- tores, jornalistas de certo nível, téc- social do país (Almeida, 1968:101).
cipais do processo de planejamento nicos de alto gabarito, especialistas
na Índia, na expectativa de contri- e assessores científicos de vários Se esta era a orientação da ge-
buir “para elucidar as deficiências do tipos” (Tella, 1966:44). Apenas a sua ração da “velha ciência política” nas
nosso próprio planejamento” (Barat, organização em seis ou sete países páginas da DADOS, algo diversa era
1968:134). O quinto número (1968) da região, na forma de dez ou doze aquela seguida pelos representan-
trazia artigos de Albert Hirschman organizações similares à CEPAL, po- tes da “nova”. Embora os temas so-
sobre a economia política da indus- deria dar direção intelectual ao seu bre os quais se debruçavam também
trialização latino-americana e de Ed- processo de desenvolvimento. Ao lon- se originassem da palheta elaborada
mar Bacha sobre a política cafeeira go do governo Castelo Branco, Cân- na década de 1950, ocupada com o
do país nos quinze anos anteriores. dido Mendes também se dedicou à desenvolvimento, a nova geração de
Por suas vezes, intelectuais con- redação de análises de conjuntura autores encarava suas atividades e
sagrados na década anterior pros- no intuito de “contribuir para o estu- seu papel na sociedade de modo di-
seguiam seus exercícios de análise do dos paradigmas concernentes ao verso dos bacharéis humanistas dos
teórica da conjuntura política, típicos regime emergente no Brasil a partir Cadernos do Nosso Tempo. Os autores
dos Cadernos do Nosso Tempo, des- da crise do desenvolvimento espontâ- da nova geração encontravam-se em
tacando as possibilidades e limites de neo, acelerada no início dos anos 60 processo de formação pós-gradua-
ação da intelligentsia a que perten- e rematada com o movimento militar da em centros internacionais como
ciam. Jaguaribe apostava na organi- de abril de 1964” (Almeida, 1969:57). a FLACSO, em Santiago do Chile, ou

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

universidades estadunidenses como o rigor científico às antigas preocu- tração: (I) a teoria da agressão de
o MIT, Stanford, Califórnia e Michi- pações isebianas relativas à neces- Johan Galtung a necessidade de se
gan. Estavam mais preocupados com sidade de uma teoria social adaptada fundar teoricamente a Ciência So-
a definição de seu lugar em uma so- ao Brasil, tese de que Guerreiro Ra- cial brasileira em princípios de de-
ciedade na qual o conhecimento po- mos se fizera o principal arauto. Em monstração causal, baseados, não
lítico ainda era predominantemente Construção de teoria na ciência so- na filosofia tradicional, mas “no pla-
tarefa de bacharéis e jornalistas, ou cial brasileira, Carlos Estevam (dou- no das matemáticas”, que seria en-
de colegas de academia cujo traba- torando na Universidade de Essex) tão “o campo principal onde uma
lho julgavam pouco rigoroso. Viam- deplorava a inexistência, em nossa discussão explícita da teoria da de-
-se como uma intelectualidade de subdesenvolvida Ciência Social, “de monstração tem sido levada a efei-
novo tipo: especialistas cuja função um corpo teórico previamente cons- to” (Santos, 1967a:135).
primária não era a de produzir inter- tituído capaz de exercer as funções

A
pretações sobre a realidade global, mínimas que se esperam de toda e s eventuais veleidades de
mas conhecimento político rigorosa- qualquer teoria. (...). A carência de in- uma teorização social mais
mente científico, assim considerado tegração teórica que prevalece nas ou menos livre arrefeceram
em virtude do domínio de teorias e Ciências Sociais no Brasil faz com depois de começadas as pós-
técnicas de pesquisa adquiridas ao que os próprios investigadores que -graduações no exterior. Al-
longo de uma formação técnica. Se- se beneficiam de marcada orienta- guns artigos são expressivos do modo
ria nessa qualidade que eles pode- ção empírica se encontrem em situa- por que alguns autores reagiram ao
riam um dia virem a exercer funções ção de não terem como se conduzir contato com a Ciência Política esta-
de intelectualidade pública (como de no processo de deduzir hipóteses a dunidense. Em O “approach” funcio-
fato viria a acontecer com alguns de- serem submetidas ao teste da expe- nal em Sociologia Política, Bolívar La-
les quando começou a se desenhar riência” (Martins, 1966, 1:87). Sinto- mounier (doutorando na Universidade
a abertura do regime militar). Os no- mática era a apresentação feita por da Califórnia) apresentava uma de-
vos cientistas ou sociólogos políticos Bolívar Lamounier do quinto núme- fesa moderada da abordagem fun-
procuraram, portanto, distinguir seu ro da revista, dedicado ao tema da cionalista de Almond e Coleman. Ela
trabalho pela atualidade de seu ri- “sociedade tradicional no Brasil”. Se, não lhe parecia tão defeituosa quan-
gor teórico-metodológico. Quase to- por um lado, aquele assunto cons- to acreditavam seus críticos; as acu-
dos os artigos por eles assinados na tituía “uma linha mestra no desen- sações de conservadorismo lhe pa-
DADOS partiam da insuficiência dos volvimento da Sociologia e da Ciên- reciam impróprias do ponto de vista
modelos teóricos dos países desen- cia Política no Brasil”, por outro, ela epistemológico; e, embora reconhe-
volvidos para explicar o que se pas- encontrava-se ainda subdesenvolvi- cesse seus limites explicativos, des-
sa no Brasil, entendido no contexto da do ponto de vista da qualidade da tacava sua força heurística e classi-
da América Latina. reflexão. A causa era dupla: “inércia ficatória (Lamounier, 1966:83). O tí-
Do ponto de vista teórico, alguns metodológica” e inexistência de “es- tulo do artigo falava em “Sociologia
artigos da nova geração transpare- forços de sistematização – teórica, Política”, o que sugere que a expres-
ciam preocupação com a frouxidão terminológica e empírica” (Lamou- são “Ciência Política” ainda não lhe
reinante. Particularmente sensíveis nier, 1968d). Wanderley Guilherme parecia em voga. Menos comportado,
eram Wanderley Guilherme e Carlos dos Santos (doutorando na Univer- Wanderley Guilherme parecia sub-
Estevam, que faziam a ponte da velha sidade de Stanford) sublinhava em verter as expectativas que deveriam
geração para a nova, incorporando Estudos sobre a teoria da demons- nortear as relações entre alunos la-

112 gênese
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

tino-americanos e mestres estaduni- sos. Ao comentar a segunda edição vaga e conceitos imprecisos; por não
denses, demonstrando certa irreve- de O caráter nacional brasileiro, de distinguir de modo adequado as di-
rência pela autoridade dos grandes Dante Moreira Leite, Bolívar critica- versas variáveis analíticas e por não
nomes da Ciência Política. Em Nota va a falta de “unidade conceitual, or- equilibrar as partes empírica e teó-
sobre conflito internacional, Wan- denação mais adequada dos assun- rica da obra. Mas advertia: “Não fa-
derley criticava as inconsistências tos, melhor organização do texto (...). zemos tal crítica por mero ritualis-
de Sorokin em Social and cultural Falta-lhe, sobretudo, profundidade” mo metodológico. É que, se o autor
dynamics, chamando a atenção do (Lamounier, 1969:153). Nancy Ales- está buscando evidência sistemá-
leitor para a necessidade de se “en- sio criticava severamente Processos tica, a parte substantiva exige um
contrar uma formulação teórica no e implicações do desenvolvimento, comprometimento mais sério com
interior da qual as proposições de coletânea organizada por Costa Pin- as regras do jogo explicativo” (Cin-
Sorokin fossem consistentes” (San- to, pela “má estruturação formal da tra, 1970:194). Autores da nova ge-
tos, 1968:166). Em Teoria política e obra; não há uma exposição clara e ração, como Gláucio Soares, também
prospectos democráticos, era a vez sintética das finalidades e conteúdo se queixavam de explicações basea-
de MacPherson ser fustigado pe- do livro, como das relações existen- das exclusivamente em esquemas de
las fraquezas de sua teoria do indi- tes entre a primeira e segunda par- luta entre classes sociais e grupos de
vidualismo possessivo: a finalidade tes”. Os trabalhos da coletânea eram interesse, que ignoravam a dimensão
do governo não seria apenas pro- puramente descritivos, ultrapassa- propriamente política da vida comu-
duzir funções compatíveis, e sim a dos e desprovidos de problematiza- nitária. Em outras palavras, rejeita-
de controlar a divisão do trabalho ção teórica (Alessio, 1970b:203). An- vam o marxismo, cujas premissas e
(Santos, 1969). tônio Octavio Cintra (doutorando no suposições eram sistematicamente
Mas a busca pelo rigor cien- MIT) não poupou nem mesmo o papa desmentidas pelos dados empíricos:
tífico não se limitava ao plano teó- da sociologia do desenvolvimento da
rico, estendendo-se igualmente ao época, Shmuel Eisenstadt, de quem Ao contrário da tendência à pola-
metodológico. As resenhas publica- ele e seus colegas eram confessos rização de classe visualizada por
das pela nova geração atacavam os admiradores. Em resenha a The po- Marx, existe uma clara tendência
colegas cujos trabalhos lhes pare- litical systems of empires, Cintra o em direção ao crescimento, tanto
ciam metodologicamente defeituo- criticava por empregar linguagem em termos absolutos como relati-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

vos, das ocupações não manuais questões emergentes do processo ro Ramos em livros como A Redução
que são características da classe de descolonização. A centralidade do Sociológica. Numerosos membros da
média. (...). Ao contrário das predi- papel exercido pela industrialização nova geração haviam se pós-gradua-
ções marxistas, a classe média não no contexto específico da América do na FLACSO e militavam em órgãos
desapareceu e os grupos ocupacio- Latina, sugerida por Roberto Simon- como o Instituto de Planificação Lati-
nais mais altos não decresceram sen nas décadas anteriores, foi con- no-Americana de Sociologia (ILPES)
em tamanho. (Soares, 1969:93-94) firmada por Celso Furtado, que divul- e o Centro para o Desenvolvimento
gou no começo da década de 1950 Econômico e Social da América La-
a sociologia do desenvolvimento o pensamento econômico da CEPAL.  tina (DESAL). Nelas, assimilaram as
na América Latina O primeiro contato da inteligên- técnicas de pesquisa social divulga-
Do ponto e vista mais substan- cia brasileira com as teorias da mo- das na academia estadunidense, sem
tivo, o tema que por excelência ocu- dernização ou do desenvolvimento perderem a consciência de que era
pava os pesquisadores que publi- produzidas pela Ciência Política dos o conjunto do subcontinente que, na
cavam na DADOS continuava a ser Estados Unidos foi travado já no con- condição de região periférica do ca-
aquele referente ao desenvolvimen- texto de elaboração de uma “nova pitalismo, partilhava de uma mesma
to, no contexto mais amplo da Amé- ciência política” brasileira, nos últi- história. Foi o reconhecimento da es-
rica Latina. Até a década de 1950, a mos anos da década de 1960. O im- pecificidade do desenvolvimento lati-
Ciência Social dos países europeus pacto foi suavizado devido à media- no-americano que levava os autores
ou norte-americanos se ocupara de ção da Faculdade Latino-Americana da nova geração à condenação das
modo residual da periferia, reduzida de Ciências Sociais (FLACSO), sediada teorias da modernização elaboradas
em sua maior parte à condição de co- no Chile e que, de alguma forma, re- no contexto do “desenvolvimentismo
lônia. Com o avanço do processo de plicava no campo da Sociologia polí- clássico”, economicista, etnocêntri-
descolonização, a coisa mudou de fi- tica o esforço desenvolvido pela CE- co e teleológico, na década de 1950,
gura. No Brasil, o problema do atraso PAL no sentido de adaptar a produ- por W. W. Rostow, Seymour Lipset e
pautara a agenda intelectual de sua ção intelectual dos países cêntricos Edward Shils (Badie, 1994).
“velha ciência política”, pensado por ao contexto e às necessidades dos Para Carlos Hasenbalg (mestre
autores como Joaquim Nabuco, Al- países da América Latina, de forma pela FLACSO), os modelos univer-
berto Torres e Oliveira Vianna sem- análoga ao preconizado por Guerrei- salistas de desenvolvimento supu-
pre em termos de existência de um
centro (de civilização ou modernida-
de) e de uma periferia (bárbara ou re-
tardada). Foi a partir dessa herança
que os isebianos passaram a refle-
tir sobre os problemas do desenvol-
vimento. Fizeram-no recorrendo, no
plano externo, à Filosofia existencia-
lista de Ortega y Gasset, que pensava
a questão da modernização na peri-
feria em uma chave culturalista; e à
Sociologia francesa de Georges Ba-
landier, que se debruçava sobre as

114 gênese
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

nham a existência, nos países peri-


féricos, de “equivalentes funcionais
da burguesia industrial europeia
da fase inicial de constituição do
sistema industrial capitalista” (Ha-
senbalg, 1968:6), perdendo de vis-
ta “a multiplicidade com que a rea-
lidade histórica se nos apresenta e
que dificilmente se enquadra den-
tro dos limites estreitos de um mo-
delo simplificado de variáveis e me- pareciam úteis para compreender acadêmicos e nas pautas dos con-
canismos universais”. Nascidos sob os impasses do desenvolvimento gressos profissionais, este é dos li-
a égide da expansão capitalista eu- reinantes no país depois de 1964. vros que, como poucos outros, dão
ropeia, os países da América Lati- à disciplina as grandes dimensões

O
na não poderiam ser considerados sociólogo do desenvolvimen- e amplas perspectivas que ela deve
“estruturas sociais onde, como se to cuja obra atraía a admi- ter. (Cintra, 1970:188)
fossem sistemas fechados e isola- ração de muitos dos novos
dos, estar-se-iam replicando os pro- autores era o já referido Sh- Era à sombra da árvore webe-
cessos de diferenciação estrutural muel Eisenstadt, professor riana de Eisenstadt, portanto, que
já ocorridos nos países capitalistas da Universidade Hebraica de Jeru- professores como Peter Heintz, Jo-
de ‘desenvolvimento originário’” (Ha- salém. Reivindicando a reflexão de han Galtung e Rúben Katzman orga-
senbalg, 1968:20). Gláucio Soares tipo histórico e culturalista de ma- nizavam na FLACSO um modelo so-
(doutor em Sociologia pela Univer- triz weberiana, Eisenstadt rejeita- ciológico do desenvolvimento volta-
sidade de Washington – Saint-Lou- va as teorias econométricas da mo- do para a compreensão, na América
is) ia pelo mesmo caminho: “Dados dernização. Em sua resenha de The Latina, das relações entre moderni-
empíricos desautorizam a conclu- political systems of empires, Antô- zação econômica, mobilização social,
são de que existe um único proces- nio Octavio Cintra exprimia com de- reação das classes dominantes e do
so de desenvolvimento econômico, safogo a sua admiração pelo autor: seu impacto sobre as instituições po-
que deva ser seguido por todas as líticas, de modo a gerar um quadro
sociedades que aspiram ao desen- Não podemos esconder nossa admi- de instabilidade e indecisão política.
volvimento, independentemente das ração pelo trabalho de Eisenstadt. Sustentava-se que, diversamente do
circunstâncias históricas” (Soares, Quão longe estamos dos esquemi- que se passara nos países cêntricos,
1967:35-36). Das teorias da moder- nhas familiares do tipo ‘moderno- havia na região uma assincronia en-
nização, portanto, os autores da DA- -tradicional’, ‘western-non western tre os ritmos de expansão das diver-
DOS apropriaram-se de umas pou- political systems’, tão comuns na li- sas esferas sociais (Cintra, 1968:169).
cas categorias, como a de mobili- teratura de desenvolvimento políti- Com a intensificação da integração
zação, elaborada por Karl Deustch co. Ao invés de confinar a discipli- e das comunicações, emergira uma
para explicar o processo de desen- na ‘desenvolvimento político’ ao mo- situação de elevação do nível de as-
volvimento político; a de cultura po- desto escopo que lhe caracterizou pirações gerais que desaguara em
lítica, criada por Gabriel Almond, e o aparecimento como campo for- um processo de mobilização social
a de crise, de Lucien Pye, que lhes malmente tratado nos currículos voltado para a sua satisfação. Mas

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

esta seria uma demanda incapaz de golpe militar e à implantação de um O que no fundo os autores dedi-
ser satisfeita no estágio tecnológico regime tecnocrático voltado para a cados à Sociologia do desenvolvimen-
das sociedades da região. A deman- desmobilização das massas. Ao per- to queriam saber era se o bloqueio
da represada criara um potencial re- quirir as razões de ter a classe mé- da participação política pelo regime
volucionário, cuja tensão se tentava dia apoiado o golpe, Antônio Octavio militar não poderia levar a demanda
absorver por meio de mecanismos Cintra lançava em Educação e pro- represada a explodir e resvalar para
simbólicos, como as ideologias nacio- testo político: estudo preliminar de uma revolução geral de tipo cubano.
nalistas-desenvolvimentistas, e me- uma hipótese à tese de que, nos paí- Em Transição e tensão nos Estados
canismos estruturais, como a expan- ses subdesenvolvidos, haveria uma brasileiros (1968), Alaor Passos su-
são desmesurada de uma burocracia “excessiva vinculação da educação geria que “o processo de transição
clientelística (Lamounier, 1968b:150). formal com status superior, em ge- tal como tem se operado no Brasil
Os brasileiros dedicados à Sociolo- ral de elite”, o que a tornava um fa- está dando lugar a uma tendência
gia do desenvolvimento, como Alaor tor de resistência e não de propen- estrutural explosiva que se desen-
Passos (que fizera seu mestrado na são à mudança (Cintra, 1968a:169). volve num modelo de tipo hidráuli-
FLACSO), exprimiam em seus artigos Em Exposição aos meios de comu- co fechado” (Passos, 1968:30). Em
o desejo de contribuírem para a vali- nicação de massa no Rio de Janei- A nova industrialização e o sistema
dação desse modelo teórico voltado ro: um estudo preliminar, Amaury de político brasileiro (1967) e Desenvol-
especificamente para a compreensão Souza dizia-se convencido de que a vimento econômico e estrutura de
sociológica do desenvolvimento lati- influência da mídia num quadro de classe (1969), Gláucio Soares afir-
no-americano (Passos, 1968:57-58). desenvolvimento marcado pela de- mava que a industrialização latino-
sigualdade social seguiria padrões -americana, geograficamente sele-

E
xpressivos dessa orientação diversos daqueles informados pela tiva, provocando migrações das re-
teórica da FLACSO, os traba- literatura estadunidense, inglesa e giões mais atrasadas para as mais
lhos publicados na DADOS francesa, desfavorecendo a trans- prósperas, não criava uma classe
problematizavam o desenvol- formação: média ampla como aquela dos paí-
vimento brasileiro no quadro ses do Atlântico Norte. A elevada taxa
de “tensão estrutural” enfrentado pelo Pesquisas de audiência nos Esta- de desemprego ou de subemprego,
país, caracterizado pela assunção do dos Unidos e na Europa têm repe- somada ao trancamento do sistema
poder por elites tecnocráticas volta- tidamente confirmado a proposição partidário, poderia levar os insatis-
das para o bloqueio da participação de que exposição à comunicação de feitos a engrossarem as fileiras do
política emergente. Em Explorações massa varia positivamente com fa- Partido Comunista, favorecendo uma
sobre a teoria da liderança e elites tores socioeconômicos (...). A análi- saída revolucionária (Soares, 1967
tecnocráticas e Ideologia conserva- se dessas relações em um contex- e 1969). Em Política local e tensões
dora e mudanças estruturais (1968), to caracterizado por uma forte de- estruturais no Brasil: teste prelimi-
Bolívar Lamounier sugeria que o gol- sigualdade social pode nos revelar nar de uma hipótese (1968), Bolívar
pe de 1964 havia sido uma resposta mais sobre os efeitos inibidores que Lamounier afirmava que o quadro de
à falência das técnicas de conciliação os fatores socioeconômicos exercem fechamento do sistema político pelo
empregadas tradicionalmente pelas sobre os usos dos vários meios do regime tecnocrático convertia indi-
elites políticas. A mobilização das mas- que análises semelhantes realiza- víduos frustrados da classe média
sas desencadeada pelo desenvolvi- das em contextos sociais mais ho- e antigos intelectuais públicos de-
mento as teria levado ao extremo do mogêneos. (Souza, 1968:146) sempregados em potenciais líderes

116 gênese
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

revolucionários (Lamounier, 1968b). contexto de desilusão posterior a da menor à maior racionalidade de


Também Antonio Octavio Cintra, em 1964, os pesquisadores que publica- orientação capitalista dos empresá-
Educação e protesto político: estudo vam na DADOS já não eram otimistas. rios” (Figueiredo & Malan, 1969:143).
preliminar de uma hipótese, acredi- Em Empresários e Desenvolvimento As referências empregadas pelas
tava que, aliviadas por um regime de Econômico, Carlos Hasenbalg sus- autoras para tratar da cultura polí-
educação superior de tipo aristocrá- tentava que, nos países latino-ame- tica que guiaria a ação dos empre-
tico, que cooptava os insatisfeitos, ricanos, haveria uma “marcada au- sários eram Almond e Verba, como
as tensões estruturais da socieda- sência de um setor empresarial com formuladores da teoria geral, e Sér-
de brasileira poderiam ressurgir condições hegemônicas para impor gio Buarque e Nestor Duarte, no que
quando ele se revelasse “um atalho seu projeto de organização social ao tocava ao Brasil.
enganoso em propiciar as posições resto da sociedade, a partir do mo- A preocupação do impacto do
cobiçadas na estrutura social” (Cin- mento em que toma força o proces- desenvolvimento desigual da socie-
tra, 1968a: 171). so de industrialização” (Hasenbalg, dade brasileira sobre a cultura polí-
1968:29). Por isso, a industrializa- tica, refletida na distribuição de pre-

S
ob o amplo guarda-chuva ção não trazia grandes mudanças ferências partidárias dos eleitores,
da Sociologia do desenvol- na condução política, que continua- que interessara a geração anterior
vimento, alguns dos autores ria por mais algum tempo nas mãos de analistas políticos, também era
que publicavam na DADOS das velhas oligarquias rurais. Refe- retomada. Em Partidos Políticos em
dedicavam-se ao estudo do renciadas pelos trabalhos de Fer- Belo Horizonte: um estudo do eleito-
papel de seus atores, especialmen- nando Henrique Cardoso e Luciano rado, Antonio Octavio Cintra publica-
te os empresários: “A Sociologia do Martins, Vera Figueiredo e Ana Lúcia va os resultados de uma pesquisa
desenvolvimento vem mostrando a Malan queriam inferir dados sobre realizada no âmbito do DCP-UFMG,
relevância, cada vez maior, de estu- empresários brasileiros e sua par- resultantes do desejo de submeter
dos referentes aos atores ou prota- ticipação no processo de desenvol- à validação empírica as hipóteses de
gonistas do desenvolvimento. Dentro vimento estabelecendo “um contínuo Guerreiro Ramos, Orlando de Carva-
desta perspectiva, tem sido frequen-
te a preocupação dos autores com o
papel desempenhado pelos empre-
sários” (Figueiredo & Malan, 1969,
6:143). Este era outro assunto que
aparecera originalmente nos artigos
publicados por Hélio Jaguaribe nos
Cadernos do Nosso Tempo e desde
então não saíra da agenda. Nos es-
quemas explicativos de Jaguaribe, a
burguesia industrial brasileira apa-
recia como uma vanguarda política
que hasteava a bandeira nacionalista
da modernização para lutar contra
o atraso representado pela grande
propriedade rural exportadora. No

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

lho e outros autores da “velha ciên- dispunham de um eleitorado relati- tura política, ao qual se poderia re-
cia política”, segundo as quais “a ur- vamente estruturado em linhas ideo- correr para aferir o modo por que ela
banização e industrialização do país lógicas e eram percebidos como en- reagia ao processo de modernização.
levariam, em grau crescente, à maior tidades distintas, não simplesmente Era o que fazia Bolívar em Ideologia
representatividade dos partidos polí- intercambiáveis uns com os outros”. conservadora e mudanças estrutu-
ticos com relação às classes sociais Isso não significava, porém, que hou- rais, no qual pretendia “descrever
e aos interesses dos novos grupos vesse uma vinculação orgânica en- alguns aspectos da cultura política
funcionais” (Cintra, 1968b:84). A pes- tre o eleitorado e os partidos, para tradicionalmente dominante no país,
quisa sobre o sistema partidário des- além do plano meramente psicoló- buscando ao mesmo tempo sugerir
mantelado pelo AI-2 concluía que, de gico, nem lhe parecia que este qua- alguns mecanismos de mudança ao
fato, “os partidos eram significativos dro mudaria “na presente situação nível da estrutura sociopolítica” (La-
para considerável massa da popula- de contenção da participação políti- mounier, 1968b:5). Ele queria anali-
ção (ainda que não a maioria), e en- ca e da vida partidária, com o que a sar a consciência conservadora bra-
raizavam-se na estrutura de classes, opção pela democracia representa- sileira, segundo a qual as práticas
tiva como forma política mais dese- políticas brasileiras seriam marca-
jada torna-se cada vez mais inviável das pela cordialidade e pela conci-
para os diversos grupos do espectro liação. Essa ideologia “basicamente
político” (Cintra, 1968b:112). benevolente e paternalista, relutante
A nova geração também medita- em admitir a possibilidade do confli-
va sobre as mudanças ocorridas no to em torno de objetivos últimos” (La-
plano da cultura política em um qua- mounier, 1968b:14), desenvolvido à
dro de transição de uma sociedade época da Conciliação (1853-1860),
tradicional para outra, de mobiliza- teria sido uma resposta ao potencial
ção das massas. Também aqui havia destrutivo dos conflitos do período
continuidade temática entre os arti- regencial, funcionando desde então
gos de DADOS e aqueles dos Cader- como um mecanismo amortecedor.
nos do Nosso Tempo. A ambição de “A ênfase brasileira na ‘democracia
uma “nova ciência política” não po- racial’, por exemplo, tinha por finali-
deria deixar de suscitar a questão dade manter as diferenças inter-ra-
relativa ao lugar da “velha” – a que ciais inteiramente fora da arena po-
se aludia como pensamento social lítica, como conflito apenas latente”;
ou pensamento político brasileiro – da mesma forma, o sistema político
no novo estado de coisas. Ao contrá- se habituara a antecipar problemas
rio do que acontecera na Sociologia para evitar a tensão política que re-
paulista, os novos cientistas políticos sultaria de sua acumulação (Lamou-
entenderam que o estudo do pensa- nier, 1968b:16). Na medida em que o
mento político brasileiro lhes pode- processo de transformação e mobi-
ria ser útil de duas formas. lização social tenderia a diversificar
A primeira passava por encará- os grupos potencialmente recrutá-
-la como um repositório de materiais veis pela elite, reduzindo sua unida-
ideológicos expressivos da nossa cul- de e estabilidade, Bolívar indagava

118 gênese
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

se aquela ideologia não perdera efi- tos, 1967b:190-191). E arriscava: do pensamento político do Estado
cácia política. A hipótese ajudava a “Dificilmente haverá, entre as teo- Novo” (Figueiredo, 1968:222).
explicar a saída violenta do conflito rias contemporâneas, alguma boa
representada pelo recurso ao golpe hipótese sobre política no Brasil que Conclusão
de março de 1964. não tenha sido desenvolvida durante A primeira década de DADOS
A segunda utilidade possível da a década de 30” (Santos, 1970:156). subdivide-se em dois períodos. Até
“velha ciência política” para os no- dezembro de 1968 o regime autori-

N
vos autores da DADOS era como re- a mesma seara caminhava tário não parecia definitivamente as-
positório de hipóteses para fins de Aspásia Camargo Alcânta- sentado ou irreversível, e o IUPERJ
verificação empírica. Era ao que se ra em A teoria política de não dispunha de um programa de
propunha Wanderley Guilherme em Azevedo Amaral, que apre- pós-graduação. A nova geração co-
A imaginação político-social brasi- sentava o autor de Ensaios meçava seus cursos de mestrado ou
leira (1967) e Raízes da imaginação Brasileiros como o mais perfeito pre- doutorado nos Estados Unidos, e as
política brasileira (1970). Ele per- decessor do pensamento isebiano. fronteiras entre Sociologia Política ou
cebera na maioria esmagadora das Amaral teria esboçado “os elemen- Ciência Política eram fluidas. Ainda
análises efetuadas pela literatura so- tos fundamentais que definem o de- que em contexto novo e dinâmica re-
bre o golpe de 1964 um padrão dico- sequilíbrio crônico ao subdesenvol- formulada, o debate acadêmico con-
tômico de explicação da luta política, vimento, em consonância com as teo- tinuava a ser pautado pela temática
cuja origem era-lhe muito anterior e rias sociológicas e econômicas mo- do desenvolvimento latino-america-
cujas origens não poderiam ser co- dernas, que apenas se difundiram e no. Por isso, ainda que já não fossem
nhecidas sem recurso à história do incorporaram às Ciências Sociais a apresentados na forma de uma “inter-
nosso pensamento político. Ainda partir da década de 50” (Alcântara, pretação total”, nem comungassem
que eventualmente não houvesse 1967:222). A interpretação de Aze- do otimismo dos antigos ibespianos,
contribuído para “o progresso das vedo Amaral da crise de 1930 “em os assuntos de que se ocupavam os
Ciências Sociais”, o estudo da imagi- nada difere das mais modernas in- autores da DADOS em seus primei-
nação política brasileira lhe parecia terpretações referentes ao conteúdo ros três anos eram os mesmos dos
indispensável para “o conhecimento e às origens do subdesenvolvimento autores dos artigos dos Cadernos do
dos processos políticos brasileiros” hoje correntemente utilizadas” (Al- Nosso Tempo, de que deveria ser a
(Santos, 1970:147). Depois de con- cântara, 1967:196). Então estudan- sucessora. Economistas como Maria
cluir que o pensamento brasileiro te de Ciências Sociais da Universida- da Conceição Tavares, Josef Barat,
era fecundo, mas quase desconhe- de Federal Fluminense e estagiário Fernando Machado de Amorim e Ed-
cido, porque inexplorado, Wanderley do IUPERJ, Marcus Figueiredo tam- mar Bacha escreviam sobre substi-
propunha retomar em bases mais bém contribuía para a pesquisa de tuição de importações, modernização
rigorosas e sistemáticas a orienta- Wanderley apresentando em Cultu- tecnológica, planejamento e a políti-
ção adotada no ISEB por Guerreiro ra política: revista teórica do Estado ca cafeeira. Intelectuais como Hélio
Ramos. Aquele pensamento deveria Novo um levantamento bibliográfico Jaguaribe e Cândido Mendes faziam
ser investigado não só pelo seu “va- daquela revista, na forma de “resu- análises da conjuntura destacando
lor extraordinário” enquanto teoria, mos comentados dos trabalhos pu- as possibilidades e os limites de ação
mas porque formara “o solo ideoló- blicados em Cultura política que, de política da intelligentsia. Sociólogos
gico de que, consciente ou incons- uma forma ou de outra, contribuí- como Gláucio Soares, Alaor Passos
cientemente, partimos todos” (San- ram para a formação e explicitação e Vilmar Faria estudavam os impac-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

tos do desenvolvimento sobre o sis- nifesta a certa altura por Guerreiro


tema político e a sociedade. Carlos Ramos, de que todo o pensamento
Hasenbalg e Vilma Figueiredo inves- social e político brasileiro tornava-
tigavam o papel desempenhado pelo -se rapidamente obsoleto como ins-
empresariado no processo do de- trumento de interpelação do novo
senvolvimento. Wanderley Guilher- Brasil que emergia, o que justifica-
me dos Santos, Bolívar Lamounier, va a elaboração de uma ideologia
Aspásia Camargo e Marcus Figuei- nacional-desenvolvimentista (Lyn-
redo voltavam-se para a história do ch, 2015:43). As facções elitistas e
pensamento político brasileiro para clientelistas responsáveis pela na-
entender a natureza de nossa cul- tureza cartorial de nossas institui-
tura política. Antônio Octávio Cintra ções político-administrativas cede-
escrevia sobre eleições e compor- riam lugar a um sistema partidário
tamento eleitoral para entender a ideologicamente coerente e orgâni-
articulação entre ideologia, partido co no bojo de um eficiente Estado de
e enraizamento social. Era clara a serviços. O colapso do regime liberal
continuidade temática dos estudos democrático, a privação da antiga in- nômeno social, desmentindo o Mar-
realizados pela Sociologia do desen- telligentsia de seu papel de porta-voz xismo e a Sociologia paulista. A So-
volvimento com aqueles que, antes dos anseios nacionais e sua substi- ciologia Política de vocação históri-
de 1964, se referiam às condições e tuição por uma elite tecnocrática a ca relançada por Simon Schwartz-
possibilidades de realização da cha- partir de 1964 criou um cenário po- man, baseada na tese da autonomia
mada “revolução brasileira”. lítico e intelectual muito diferente. A do Estado em relação à sociedade,
ideologia nacional-desenvolvimen- desencadearia uma cascata de pu-

M
as também havia mudan- tista fora substituída por uma socio- blicações relativas às possíveis cau-
ças visíveis nos termos do logia do desenvolvimento ancorada sas do déficit democrático da socie-
debate. Em torno de 1954- na ideia de dependência; a falência dade brasileira. Ocorre o contrário
1956, a ideologia do nacio- de versão espontânea da moderni- do que imaginara Guerreiro Ramos
nal-desenvolvimento funda- zação levara à sua sustentação ar- em 1955; a persistência das velhas
ra-se na crença de que o acelerado tificial pelo alto; criticava-se a cren- mazelas provando a atualidade da
progresso econômico traria consi- ça anterior de que a industrialização tradição do pensamento político bra-
go, de modo mais ou menos automá- bastaria para resolver as mazelas sileiro anterior à institucionalização
tico, o progresso social e político do sociais e políticas; duvidava-se do (Oliveira Viana, Nestor Duarte, Ray-
país. Acreditava-se que a industria- nacionalismo dos empresários. Um mundo Faoro) e a necessidade de que
lização promovida pelo pacto de em- filtro mais cético ou pessimista per- a nova geração também recorresse
presários nacionalistas com traba- meava todas as análises. a ela. Por força da especialização em
lhadores e burocracia progressista Depois do AI-5, nova ciência po- marcha, emergia uma ciência políti-
desencadearia uma “revolução” que lítica sofreria uma inflexão decisiva. ca menos dependente da discussão
repercutiria de modo virtuoso sobre O sucesso de um modelo de desen- do desenvolvimento. Wanderley Gui-
todos os aspectos da vida nacional. volvimento econômico, mas tecno- lherme dos Santos entendia ser pre-
A hipertrofia do horizonte de expec- crático demonstraria a primazia do ciso volver a Ciência Política para os
tativas levava à crença mesma, ma- político como chave explicativa do fe- mecanismos decisórios do regime

120 gênese
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

militar, burocráticos e empresariais, Gurvitch e Balandier, era substituída dro teórico e temático que, organiza-
mas também para a análise de suas de alto a baixo por outra, quase toda do em torno do tema do desenvolvi-
políticas públicas. Verificava-se tam- norte-americana, de Ciência Social mento, orientava desde a década de
bém uma renovação drástica da bi- empiricamente orientada: Gabriel 1950 a Ciência Política brasileira.
bliografia. A antiga livraria france- Almond, Sidney Verba, David Easton,
sa de Filosofia existencialista, com Karl Deutsch, David Apter, Samuel O autor é professor do Instituto de Estudos
Sociais e Políticos da Universidade do Esta-
suas tintas germânicas e marxistas, Huntignton, Shmuel Eisenstadt e Rei-
do do Rio de Janeiro (IESP-UERJ)
e de Sociologia Política, à maneira de nhart Bendix. Desarmava-se o qua- clynch@iesp.uerj.br

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outubro • Novembro • dezembro 2016 121


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

suelto sobre governo temer,


elefantíase e risco moral
ANTONIO CARLOS PORTO GONÇALVES
ECONOMISTA

A
política econômica do governo brasileiro é prati
- (i) SIM parcialmente
camente a mesma desde o início do 2º mandato
(ii) NÃO mesmo
de Dilma. Após o impeachment, pouco mudou:
(iii) SIM parcialmente
continuam os juros altos, os esforços de controle
Porque SIM parcialmente às perguntas (i) e
e redução do défict público e a liberação dos (iii)?
preços Com a queda de inflação que vem ocorrendo,
administrados. Dilma cometeu grandes erros o Banco
econô- Central poderá reduzir bastante a taxa SELIC
micos no primeiro mandato, e a mudança de (esta é a
política razão do parcialmente nas respostas SIM). Mas
econômica que promoveu, no início de 2015 continua
, talvez a sendo fundamental manter o equilíbrio orçam
contragosto, não a ajudou em popularidade; até entário
porque, dos governos municipais, estaduais e federal.
na campanha eleitoral, ela repetiu muitas vezes Se não
que só ocorrer, haverá uma crescente suspeição, pelo
seriam necessários pequenos ajustes na econ público
omia, no investidor, de um eventual não pagamento da
seu 2º mandato. dívida
pública, e os juros da economia dificilmente
O governo Temer, que a sucedeu, enfrenta no poderão
mo- cair. Além do mais, orçamentos públicos falsificado
mento bastante impopularidade e rejeição. Talve s, ou
z de- fortemente deficitários, levam eventualmente
vido à sua origem duvidosa, em termos da legiti ao não
midade pagamento de algum grupo. Que grupo exata
do impeachment; ou à suspeição sobre o financiam mente?
ento Ninguém sabe ao certo, ou seja, é a incerteza; todo
eleitoral da chapa Dilma-Temer; ou às ligações, s vão
que vem e se sentir em risco, preocupados.
sendo estabelecidas, de membros do governo
com a Um outro aspecto da atual política econômica
Lava-Jato; ou ainda devido à política econômica é a
adotada. liberação dos preços administrados. Precisa conti
De qualquer modo, Temer parece procurar resol nuar,
ver as pois o controle para baixo de preços, em parti
suas dificuldades de apoio popular com uma cular na
acelera- área de energia, foi um grave equívoco de
ção das medidas econômicas e adoção de outra Dilma 1º
s mais, mandato. A combinação usada, de controlar os
visando obter uma melhora mais rápida da econ preços
omia. da energia (para combater a inflação) e expa
A respeito destes assuntos, algumas pergunta ndir a
s im- oferta monetária e reduzir os juros (para prop
portantes surgem naturalmente: iciar o
crescimento da economia) é um equívoco extra
(i) A política econômica atual é adequada? ordiná-
rio. Pois a maior quantidade de dinheiro no bolso
(ii) O governo conseguirá recuperar a economia das
bra- pessoas, inclusive porque pagavam menos pela
sileira a curto ou, pelo menos, a médio prazo? energia,
fez com que demandassem mais serviços, mais
(iii) Na eventualidade de uma saída de Temer antes bens
de consumo, etc. Logo, todos os preços come
de 2018, um novo governo, deverá, ou talvez çaram a
mesmo aumentar, menos os da energia. E o setor queb
precisará, adotar uma política econômica simil rou. A
ar? política gerou, portanto, inflação, baixo inves
As minhas respostas a estas perguntas são: timento
e crescimento, o perfeito oposto da intenção origin
al.

122 Inquebrável
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

o
dores arredios: não compram, e preferem ficar com
Na minha opinião, se fosse perguntado a um eco-
dinheiro, bem líquidos. E não adianta baixar os juros,
nomista competente como se poderia travar um país,
pois como Keynes descreveu, provavelmente estamos
impedir que cresça economicamente, uma excelente
ou vamos entrar em uma “armadilha de liquidez”. Tal
resposta seria baixar compulsoriamente os preços da
a situação ocorreu recentemente no Japão, nos EUA e na
energia. Tal política alcançaria o objetivo, pois levari
Europa: mesmo com os juros reais, e mesmo nominais,
às empresas do setor a não investir, ou a se endividar
negativos, a economia destes países mal reagia.
pesadamente para fazê-lo. E a ameaça de escassez de
Como sair desta armadilha?
energia levaria à forte redução geral dos investimentos
Em primeiro lugar, reduzir ao máximo as causas da
privados na economia. Bingo, travou o país! a
incerteza (políticas e econômicas). A população precis
Enfim, exceto pela baixa dos juros acompanhando
se convencer de que, não obstante o vai e vem da polí-
a menor inflação, não há muito como modificar a atual
a, tica, vai-se adotar continuamente medidas econômicas
política econômica do governo. E porque esta polític -
adequadas, no sentido de serem consistentes e condu
sendo adequada, não teria um efeito forte e imediato de e à
zentes à estabilidade das organizações, dos preços
recuperação da economia brasileira? Por que um NÃO
segurança dos investidores.
mesmo como resposta à pergunta (ii)?
Em segundo lugar, estudando e pesquisando para
A crise brasileira recente tem algumas características
a aumentar o conhecimento econômico sobre como lidar
semelhantes as da crise nos Estados Unidos e na Europ
e com as dificuldades sérias das organizações “too big
a partir de 2008. Grandes organizações empresariais
to fail”. E lidar significa tanto no sentido de prevenir,
governamentais praticamente “quebraram” – nos EUA
o que implica em regulação, quanto no de remediar.
aconteceu com o sistema financeiro e imobiliário, e com
a Quem estuda cuidadosamente os relatos das autorida-
várias empresas industriais de grande porte; na Europ
des americanas, durante o auge da crise de 2008, fica
aconteceu também com os bancos e algumas empresas
espantado com as confissões sinceras de se sentirem
grandes, além de governos nacionais, sobretudo do Sul
“perdidos numa noite escura”.
da Europa. No Brasil, a maior empresa, a Petrobras, foi
s O atual conhecimento econômico e a regulação ju-
seriamente afetada; houve e há dificuldades em outra
rídica para lidar com os “too big to fail” é escasso: não
empresas importantes de vários setores (inclusive cons-
há normas ou recomendações, confiáveis e testadas,
trução de infraestrutura); e alguns governos estaduais
sobre o que fazer, por exemplo, com grandes empre-
se declaram falidos.
sas ou governo estaduais falidos. Há certamente muita
Tal maciça desorganização econômica costuma ser a
ideologia: acusações da esquerda, de que o sistem
chamada de choque de oferta negativo. As grandes or-
empresarial não regulado pelo governo é instável; e da
ganizações, privadas e governamentais, “too big to fail” s,
s, direita, pondo o dedo nos erros, às vezes catastrófico
costumam ser os carros-chefes de importantes setore
da regulação. Mas ideologia não é conhecimento, e este
ou mesmo da economia como um todo. Este tipo de
e é o que está faltando.
crise afeta diretamente a produção de bens e serviços
Enfim, não creio que o atual governo, ou outro
afeta também o ânimo das pessoas, a sua sensação de
subtituto, consiga sair facilmente da armadilha em que
segurança, as suas expectativas. E este efeito costuma
estamos metidos. Há que ter muita paciência, todos nós.
ser duradouro (provavelmente vários anos).
É uma situação difícil.
De fato, há no Brasil de hoje uma generalizada
incerteza, uma dificuldade de prever, de avaliar. Não
o
é apenas uma questão de maior risco do país, medid
pelas agencias ranqueadoras. É uma insegurança mi- O autor é professor da Fundação Getulio Vargas
i- antonio.porto@fgv.br
croeconômica que torna os consumidores e os invest

outubro • Novembro • dezembro 2016 123


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Volver?
124 Pesos e medidas
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Direita

Cristiane Batista
Cientista política

Steven Ross
Estatístico

outubro • Novembro • dezembro 2016 125


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O impeachment da presidente Dilma Rousseff, do


PT, culminou com a posse definitiva do seu vice, Michel
Temer, do PMDB, no mês de agosto de 2016. Após 12
anos de governo petista, cuja agenda de políticas cen-
trou em programas sociais, vide Mais Médicos, na área
da saúde, e Prouni e Pronatec, na área da educação, as
primeiras ações do novo governo, apoiado pelo PSDB e
DEM, subverteram aquelas chanceladas pelo crivo elei-
toral e reduziram os investimentos em programas sociais.
Propostas como reforma da previdência, que propõe igualar
a idade mínima para aposentadoria de homens e mulheres,
reforma trabalhista, que amplia a jornada de trabalho, refor-
ma no ensino médio, que extingue a obrigatoriedade de ofer-
tas de algumas disciplinas, como sociologia e filosofia, cortes de
bolsas e vagas nas universidades e, finalmente, a PEC 241, que
limita os gastos públicos, inclusive os sociais, representam a reti-
rada do foco das classes menos favorecidas da agenda de gover-
no. A justificativa é estabilizar o crescimento da despesa primária
como instrumento para conter a expansão da dívida pública e, con-
sequentemente, a inflação e, assim, tirar o país da crise econômica.
A PEC 241, em tramitação no Congresso Nacional, já tendo sido
aprovada com ampla maioria em primeiro turno na Câmara dos De-
putados, fixa limite individualizado para as despesas primárias, aí in-
cluídas saúde e educação. Segundo o texto, o limite de gasto de um de-
terminado ano será o valor do ano anterior corrigido pela inflação. Ou
seja, para o exercício de 2018, o governo poderá gastar o que foi gasto
no exercício de 2017 corrigido pela variação do Índice Nacional de Pre-
ços ao Consumidor Amplo (IPCA). Nos exercícios posteriores, o limite será
o gasto do ano imediatamente anterior corrigido pela variação do IPCA.
Dada à variação da economia, que afeta os indicadores de inflação, os re-
sultados práticos dessa medida ainda serão conhecidos. O presente ensaio
propõe a discussão sobre a importância de fatores de natureza política, como
linha ideológica do governo e apoio legislativo, nas prioridades de políticas pú-
blicas. Ou seja, como uma variação no viés ideológico de um governo, no caso,
da esquerda para a direita, acarreta em mudanças práticas na agenda gover-
nativa, de mais gastos sociais para menos gastos.
A literatura de ciência política permite distinguir, grosso modo, esquerda e
direita com base em suas prioridades de políticas públicas. Partidos de esquer-
da, considerados pro-welfare, teriam suas atenções voltadas para a produção
de políticas de promoção de bem-estar social, como saúde, educação e geração
de emprego e renda, enquanto partidos de direita, classificados como anti-wel-

126 Pesos e medidas


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

fare, seriam mais preocupados com políticas de redução


da inflação. Estudos mais específicos votados para a Amé-
rica Latina dão conta de que tal distinção ideológica não
se aplica aos partidos da região, mais clientelistas e menos
programáticos. Contudo, o presente ensaio confronta tal li-
teratura e mostra que a ideologia dos governos, quer fede-
ral, quer estadual, importam na produção de políticas públi-
cas. Mais especificamente, governos de inclinação de esquer-
da tendem a ampliar os gastos em saúde e educação quando
comparados a governos de direita, sobretudo quando contam
com apoio legislativo.
Em estudo anterior, aplicado a 14 países da América Latina (Ba-
tista, 2008), a teoria segundo a qual inexiste distinção ideológica en-
tre partidos políticos na região por conta de fatores históricos e ins-
titucionais foi contestada. As análises estatísticas desenvolvidas na-
quele trabalho mostram que existe diferença programática entre go-
vernos de esquerda e de direita e que essa diferença é claramente per-
cebida na análise do gasto social. Ou seja, há uma variação significativa
do gasto em saúde e educação nos países latino-americanos, e os prin-
cipais determinantes dessa variação atendem a características domésti-
cas, como a ideologia do governo federal e seu apoio legislativo, e sofrem
menos influência de fatores de natureza econômica. Em outras palavras,
mostra que governos de esquerda com maioria legislativa gastam mais, ce-
teris paribus, na área social do que os demais governos. Mais do que isso,
dada à fragmentação de alguns sistemas partidários latino-americanos, as
relações entre o Executivo e o Legislativo alteram os resultados de políticas
governamentais. Por exemplo, os dados revelam que o gasto social aumenta em
governos de esquerda majoritários, mas diminui em governos de esquerda mi-
noritários. O fato de esses governos não contarem com uma maioria legislativa
compromete a execução de um dos principais itens de sua agenda programática.
A modificação no mapa político latino-americano nos anos 2000, quando se
observam eleições de candidatos de inclinação de esquerda, vide Chávez e Madu-
ro na Venezuela, o casal Kirchner na Argentina, Vazquez e Mojica no Uruguai, Mora-
les na Bolívia, Bachelet no Chile, Correa no Equador e Lula e Dilma no Brasil, motiva-
ram a replicação do mesmo estudo para o período mais recente. Neste caso, optou-
-se pela análise do gasto em saúde e educação nos estados brasileiros, que também
teve seu mapa político alterado com a chegada do PT ao poder central.

Gasto social nos estados brasileiros


O exame dos gastos sociais no Brasil por estado desde o início da democratização re-
vela aumento expressivo em seus níveis a partir dos anos 2000 em todas as unidades da
federação, reflexo das regulamentações posteriores à Constituição de 1988. Não obstan-
outubro • Novembro • dezembro 2016 127
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

te, o mesmo conjunto de dados que indica a elevação geral dos gastos em educação e saú-
de permite detectar variação entre os estados ao longo do tempo. Testes para identifi-
car os fatores políticos explicativos dessa variação, como ideologia dos governos
estaduais e seu alinhamento com as Assembleias Legislativas e o governo fe-
deral, para o período 2002-2013, foram realizados por nós. O argumen-
to que defendemos é que o gasto social é função do posicionamento
ideológico dos atores que os governam, ou seja, governadores
posicionados à esquerda do espectro ideológico tendem a
gastar mais na área social, em saúde e educação, do que
governadores posicionados à direita do espectro.
Para construir a variável ideologia do governo estadual, foi
desenvolvida uma pesquisa de survey cujas informações foram
coletadas mediante o desenvolvimento de um questionário enviado a
cientistas políticos, sociólogos, juristas e jornalistas ligados à área po-
lítica em todos os estados da federação brasileira. Neste questionário, os
entrevistados classificaram ideologicamente os mandatos dos governadores
dos seus respectivos estados nas eleições de 1986, 1990, 1994, 1998, 2002, 2006
e 2010 em esquerda (1), centro-esquerda (2), centro (3), centro-direita (4) e direita
(5), com base na plataforma eleitoral dos governadores, e não apenas valendo-se do
seu partido como observação. A informação colhida foi posteriormente ponderada e utili-
zada na construção de um índice ideológico que compõe esta análise. Neste caso, os gover-
nos classificados como de centro-esquerda e centro-direita foram incluídos nas categorias es-
querda e direita, respectivamente, agrupando os governos estaduais em esquerda, centro e direita.
A classificação da ideologia dos governos estaduais tendo como base não só o partido do governador,
mas também a orientação das políticas públicas adotadas pelo seu governo é mais eficiente e se aproxima
mais da precisão do que a classificação ideológica com base apenas nos partidos de tais governadores.
São duas as outras variáveis explicativas de natureza políticas. A primeira delas leva em conta se os
partidos da coligação eleitoral que elegeu o governador compõem a maioria das cadeiras na Assembleia
Legislativa (Maiolegcoal). A segunda considera se o partido do governador pertence à coalizão de apoio
do presidente da República (Apoiopres). No primeiro caso, a lógica deriva do argumento de que governos
com maioria legislativa têm mais facilidade em implementar sua agenda de políticas do que governos divi-
didos. No segundo caso, o argumento, já apontado em diferentes trabalhos (vide Blanco, 2001), é que es-
tados controlados por partidos alinhados ideologicamente com o governo federal recebem maiores re-
passes. Se isso é verdade, incluímos a variável no modelo vislumbrando que, se receberem maiores re-
passes, podem gastar mais.
Com relação às características gerais de nossas variáveis dependentes, quais sejam, a despesa por
unidade da federação/ano em saúde e educação de 2002 a 2013, para que fosse possível comparar va-
lores em períodos diferentes, precisamos retirar o efeito da inflação ao longo do período, ou seja, trans-
formar valores nominais em valores reais de 2013. Isso foi feito utilizando-se o Índice de Preços ao Con-
sumidor Amplo (IPCA/IBGE). Somente a partir dessa padronização seria possível afirmar que os gastos
aumentaram ou diminuíram ao longo do tempo. Em seguida, todos os indicadores de gastos foram dividi-

128 Pesos e medidas


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

dos pela população do estado no ano específico, por exemplo, a despesa em educação
em 2005 (em reais de 2013) de São Paulo foi dividida pela estimativa da popula-
ção de São Paulo em 2005. Desse modo, transformamos em per capita todos
os indicadores de gastos utilizados neste trabalho.
Para fins de testar a hipótese do impacto da política sobre as des-
pesas em saúde e educação nos 27 estados brasileiros em cada
ano (unidade de análise sendo o par estado/ano) no período
compreendido entre 2002 e 2013, foi construída uma
base de dados inicialmente composta por 324 regis-
tros. No entanto, durante a construção dos modelos dois
cuidados foram tomados. O primeiro deles refere-se ao Dis-
trito Federal. Por ser a capital federal, apresenta um compor-
tamento atípico em relação às demais unidades da federação, ou
seja, assume responsabilidades de gastos equivalentes a dos muni-
cípios. O segundo cuidado refere-se ao ano de 2002, que apresenta um
índice de inflação, medida pelo IPCA, de 12,53, valor bastante superior aos
dos outros anos do estudo, conforme pode ser observado na tabela 1.
Por estes dois motivos, verificou-se que o modelo melhora consideravelmen-
te quando se descarta o ano de 2002 e o Distrito Federal da base de dados. Após a
realização desses dois ajustes, a versão final da base de dados resultou em 286 ob-
servações. As tabelas 2 e 3 apresentam as informações relevantes, a saber: média, desvio
padrão, valores mínimos e máximos das variáveis dependentes. Percebe-se que a variação
do gasto em saúde é menor do que a verificada em educação (desvio padrão de 168,19 contra
média de 336,57 em saúde, contra média de 448,75 e desvio de 241,17 em educação).
Em seguida, estimamos modelos básicos de análise que verificam, simultaneamente, a influência
de variáveis políticas (governo de esquerda, maioria legislativa e apoio presidencial), socioeconômicas
(taxa de urbanização) e demográficas, como forma de controle (população idosa, população pré-escolar
– 0 a 4 anos – e população em idade escolar), sobre os gastos sociais nos estados brasileiros entre 2003
e 2013. Para a variável dependente, gasto social (GS) foram utilizados dois indicadores separadamente:
gasto em saúde e gasto em educação, ponderados pelo IPCA. Sendo assim, o modelo foi estimado duas ve-
zes, um para cada indicador de gasto social. Os modelos de nosso teste estão no quadro 1.
As informações consolidadas das variáveis socioeconômicas e demográficas, que constam da base
de dados final deste trabalho, são oriundas de quatro fontes diferentes: 1) Tesouro Nacional;1 2) Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE);2 3) IPEADATA, base de dados do Instituto de Política Econômi-
ca Aplicada;3 e 4) DATASUS, base de dados do Ministério da Saúde.4 Por sua vez, as informações consoli-
dadas das variáveis políticas que constam da base de dados final são oriundas de duas fontes: 1) Tribunal
Superior Eleitora (TSE);5 e 2) Survey aplicado a cientistas políticos, sociólogos, juristas e jornalistas liga-
dos à área política, conforme descrito em parágrafos anteriores.
Os sinais esperados para os coeficientes das variáveis explicativas para a análise dos estados en-
contram-se no quadro 2.
A metodologia adotada foi a da análise econométrica de painel, ou também chamada análise longitu-

outubro • Novembro • dezembro 2016 129


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Tabela 1 dinal. Esse tipo de análise permite considerar concomitan-


Inflação por estado: 2002-2013 temente a dimensão espaço (estado) e a dimensão tempo
(ano). Nesse estudo, as principais hipóteses de trabalho fo-
Data Inflação - IPCA (% a.a.) - IBGE/SNIPC

2002 12,53
ram confirmadas: o gasto social – em saúde e educação –
2003 9,30 nos estados brasileiros é função do posicionamento ideo-
2004 7,60 lógico dos atores que os governam. Mais do que isso, go-
2005 5,69
vernadores posicionados à esquerda do espectro ideoló-
2006 3,14
gico gastam mais em saúde e educação do que governa-
2007 4,46
2008 5,90 dores posicionados à direita do espectro, ainda que a for-
2009 4,31 ça explicativa do modelo estatístico da segunda área seja
2010 5,91 menor. Os resultados seguem na tabela 4.
2011 6,50
Com relação às demais variáveis de controle, vemos
2012 5,84
2013 5,91
que o gasto social é função da maioria legislativa dos go-
vernos, ainda que em sentido inverso ao previsto, indican-
Fonte: IBGE/SNIPC
do que, quando os partidos da coligação eleitoral que ele-
geu o governador compõem a maioria das cadeiras na As-
Tabela 2
sembleia Legislativa, o gasto em saúde e educação é me-
Gasto em Saúde per Capita nos Estados Brasileiros:
nor. Para esse resultado, qualquer explicação seria preci-
2003-2013 (em reais de 2013)
pitada, cabendo um estudo mais aprofundado dessa rela-
Esquerda ção específica. Contudo, uma hipótese plausível é o efeito
total
Não Sim austeridade da base aliada. Já na análise do impacto do
Média 325,25 357,95 336,57
apoio presidencial sobre os gastos sociais, ou seja, quan-
Desvio Padrão 153,93 191,27 168,19
Mínimo 49,00 88,00 49,00 do o partido do governador pertence à coalizão de apoio
Máximo 923,00 890,00 923,00 do presidente da República, vimos que a variável corres-
Fontes: Tesouro Nacional (gasto empenhado em saúde pondente (Apoiopres) foi a única que não apresentou sig-
2002-2013) e IPEAdata (Estimativas das populações residentes
2002-2013 e Inflação - IPCA - (% a.a.))
nificância estatística a nenhum nível. A lógica desse teste
deriva do argumento de que estados controlados por par-
tidos alinhados ideologicamente com o governo federal re-
Tabela 3
cebem maiores repasses e, em tese, podem gastar mais.
Gasto em Educação per Capita nos Estados
Brasileiros: 2003-2013 (em reais de 2013) O que se pretende com o presente ensaio? De forma
esquemática, mostrar que a discussão da relação entre
Esquerda
total ideologia e políticas públicas continua muito viva e pode
Não Sim
ser percebida na comparação das atenções dos governos
Média 445,10 455,65 448,75
Desvio Padrão 209,94 292,28 241,17
Lula/Dilma e Temer às áreas sociais. Vale ressaltar que o
Mínimo 135,00 122,00 122,00 impacto da linha programática dos partidos políticos ou
Máximo 1.236,00 1.197,00 1.236,00 dos governos sobre as políticas adotadas não é um con-
Fontes: Tesouro Nacional (gasto empenhado em saúde senso na literatura de ciência política. Existem trabalhos
2002-2013) e IPEAdata (Estimativas das populações residentes
2002-2013 e Inflação - IPCA - (% a.a.)) que, inclusive, mostram pouca relevância na relação (vide
Sátyro, 2008). O que importa é chamar atenção para o fato
de as análises estatísticas indicarem mais ou menos rele-
vância dependendo dos indicadores de gastos seleciona-

130 Pesos e medidas


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

dos, agregado, desagregado, em relação ao gasto públi- quadro 1

co total ou em relação ao PIB, por exemplo. Ou seja, algum modelos - saúde e educação

impacto a ideologia dos governos exerce sobre os gastos


Modelo 1 – Saúde Modelo 2 – Educação
sociais, sobretudo quando há apoio legislativo, e isso pode Gasto Saúde per Capitait = b0 Gasto per Capitait = b0
ser comprovado nos testes apresentados neste ensaio. Vale + b1Esqit + b1Esqit
agora ampliar a análise para os anos vindouros e verificar + b2Maiolegcoalit + b2Maiolegcoalit
+ b3Apoiopresit + b3Apoiopresit
se os resultados confirmam o que já foi sinalizado para o
+ b4Popidosait + b4Popidadeescolarit
caso da América Latina e Brasil, ressalvados os períodos
+ b5Pop0a4anosit + b5Popurbit
das análises anteriores. + b6Popurbit + b6Anoit
+ b7Anoit + b7UFit
+ b8UFit +ἐ
+ἐ

quadro 2
Sinais dos Coeficientes das Variáveis Explicativas

VARIÁVEL EXPLICATIVA SINAL ESPERADO


Esq +
Maiolegcoal +
Apoiopres +
Popidosa +
A autora é diretora da Escola de Ciência Política da Universidade Fe- Popidescol +
deral do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
Poprescol +
cristiane.batista@unirio.br
Popurb +
O autor é professor adjunto do Departamento de Matemática e Esta-
tística da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
steven.ross@uniriotec.br
Tabela 4

notas de rodapé Análise de Variância dos Gastos em Saúde e Educação


nos Estados Brasileiros: 2003-2013
1. http://www.tesouro.fazenda.gov.br/
2. http://www.ibge.gov.br/home/ Saúde Educação
3. http://www.ipeadata.gov.br/ Fonte de
variação Estatística Estatística
4. http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php P-Valor P-Valor
5. http://www.tse.jus.br/ de teste - F de teste - F
(Intercepto) 6.236,282 <,0001 7095,192 <,0001
BIBLIOGRAFIA Esquerda 21,604 <,0001 3,225 0,0737
PopUrbana 193,626 <,0001 365,385 <,0001
BATISTA, C., 2008. Partidos Políticos, Ideologia e Política Social na América Ano 601,501 <,0001 93,619 <,0001
Latina: 1980-1999. Dados. Rio de Janeiro, v. 51 (3), pp. 633-672. Maiolegcoal -12,063 0,0006 -39,327 <,0001
BLANCO, F., 2001. O Comportamento Fiscal dos Estados Brasileiros e seus Apoiopres 0,07 0,7913 22,771 <,0001
Determinantes Políticos. Rio de Janeiro: IPEA. Popidescolar - - 50,307 <,0001
SÁTYRO, N., 2008. Política e Instituições e a Dinâmica das Políticas Sociais Popidosa -169,943 <,0001 - -
nos Estados Brasileiros: uma análise após a redemocratização. Tese de Pop
Doutorado. Rio de Janeiro: IUPERJ. -102,515 <,0001 - -
0 a 4 anos

Agradecimentos especiais às alunas Mariani Ferri de Holanda, Meizer


Oliveira e Maria Carolina Penteado, que colaboraram como bolsistas de
Iniciação Científica da UNIRIO.

outubro • Novembro • dezembro 2016 131


132 cC
onar
aracas
Dawisson Belém Lopes
Cientista político

A insustentável leveza
de ser bolivariano

outubro • Novembro • dezembro 2016 133


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ANO XIX • Nº 75 • OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2016 ISSN 1517-6940

à procura de

HOBBeS

outubro • Novembro • dezembro 2016 1


junto
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

é bem
melhor.

Acreditamos no poder
da interação. Sabemos que
as trocas geram mudanças
positivas que nos motivam,
levam mais longe e fazem
bem. É por isso que a gente
se dedica tanto a ampliar
as possibilidades de conexão
entre as pessoas. Porque
coisas incríveis acontecem
quando a gente interage.

oi.com.br
2
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Cheguei cedo ao local onde as- Apita o árbitro. Começa a partida. nhos compensava a falta de um pla-
sistiria à partida. Encontrava-me de- O entusiasmo da torcida brasileira no tático e o baixo estoque de talento.
vidamente fardado com o agasalho media-se em mais de uma centena Nos primeiros lances do jogo, avis-
amarelo gema de ovo da Confedera- de decibéis. Os donos da casa, sa- tou-se o paraíso. Cada par de olhos
ção Brasileira de Futebol – item que bedores de suas responsabilidades vidrados na tela já podia imaginar a
me fora presenteado, vejam bem, cívicas, foram com tudo para o ata- vitória épica, a que se seguiria a sa-
muito antes de tornar-se anátema que, com lançamentos longos e muita gração final, no estádio do Maraca-
para as esquerdas do mundo. Pou- correria. A disposição dos amareli- nã, templo maior do futebol. Afinal,
co a pouco, o público foi tomando os aquele era o nosso destino. Faltava
assentos da praça de alimentação. pouco, muito pouco para o Olimpo.
Estava eu em um mall, desses bem Mas a Alemanha – ah, a Alemanha!
americanizados, situado em região – era tinhosa. Tratou de botar água
outrora elegante de Caracas, capi- na fervura. Controlou os ânimos. Im-
tal da República Bolivariana da Ve-
nezuela. Um telão com centenas de
polegadas conectava-me a Belo Ho-
rizonte, minha cidade natal, em cujo
estádio Magalhães Pinto, o popular
Mineirão, se passaria a peleja entre
Brasil e Alemanha pela semifinal da
Copa do Mundo de 2014. Um tanto in-
genuamente, pensei por um momen-
to estar na Guadalajara de 1970, ci-
dade-sede da Copa do México – abri-
go acolhedor daquela que, para mui-
tos, foi a melhor equipe de futebol de
todos os tempos. Num arroubo ver-
bal, o finado historiador Eric Hobs-
bawm chegou a registrar que o es-
crete de Pelé & Tostão elevara o lu-
dopédio à condição de arte. Exagero
ou não, o Brasil e os brasileiros, re-
zava a cartilha, eram amados pelos
anfitriões mexicanos. Diante de tal
pano de fundo, fazia sentido apostar
que o uniforme “canarinho” serviria
como uma espécie de laissez-passer
diplomático. Era a credencial para
desfrutar de uma gloriosa hospita-
lidade no país caribenho.
Tudo pronto para rolar a bola.

134 Caracas
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

pôs implacavelmente o seu ritmo. rialismo ianque – e, por extensão, dores, burocratas de alto escalão,
Veio tocando a bola de pé em pé, da ao subimperialismo brasuca – qua- lideranças da sociedade civil. A jul-
maneira mais envolvente, com a ve- se todos os problemas imagináveis, gar pela quilometragem a cumprir e
locidade e a precisão de um modelo inclusive a pobreza da América La- pela densidade da agenda, aquilo era
automotivo fabricado em Munique. tina. De um jeito ou de outro, pouco praticamente uma versão atualiza-
Não tardou para a casa cair. Conta- importava: naquela noite, eu e meu da, e só um pouco menos glamoro-
vam-se onze minutos no relógio do nacionalismo narcísico voltaríamos sa, do filme Diários de Motocicleta.
Sr. Marco Antônio Rodríguez quan- abalados para o hotel. Assim que pus os pés no aero-
do aconteceu o fatídico escanteio. O Os sinais de que minha tempora- porto internacional Simón Bolívar,
roteiro já é bem conhecido: cruza- da na Venezuela não seria fácil esta- construído na fantasmagórica mu-
mento de Toni Kroos, defesa vacilan- vam patentes desde o princípio. Eu só nicipalidade de Maiquetía, distan-
te, Thomas Müller desmarcado, gol. não soube reconhecê-los de pronto. te 30 quilômetros da capital fede-
Gol da Alemanha. Estava no país com o objetivo de co- ral, eu me deparei com um estra-
letar dados para uma investigação nho esvaziamento de pátio. Se não

A
nticlímax? Muito antes pelo acadêmica, patrocinada por órgãos me havia equivocado na contagem,
contrário. Naquele memorá- de fomento à ciência dos governos as aeronaves estacionadas na pista
vel 8 de julho, mais pungen- federal e estadual mineiro, acerca e nos hangares não ultrapassavam
temente até do que os gols dos padrões de produção da política uma dezena. Uma dúzia, com muito
marcados pelos alemães – que não exterior na América Latina. Já havia boa vontade. Era meio-dia e o termi-
foram poucos –, tombou o mito da passado, anteriormente, por Argenti- nal estava às moscas, com poucos e
bem-querença ao Brasil na América na, Chile e Peru. Depois de palmilhar mal-humorados funcionários a fazer
Latina: a cada tento que o arqueiro a República Bolivariana, eu rumaria o controle da imigração. Tudo isso
Júlio César sofria, explodia de ale- para Colômbia e México, regressando decorria da “crise aérea” vivida à
gria a praça do shopping center. Os ao Brasil ao fim de quase um mês de época, fruto de uma retaliação con-
comensais caraquenhos, que não périplo. Além de fundamentação do- certada das companhias de aviação
apresentavam evidentes traços fe- cumental, interessavam-me as pes- à política governamental de confis-
notípicos germânicos, celebravam soas. Meu plano de ação, elaborado car parte das suas receitas. Segun-
o “Mineiratzen” como se não hou- com antecedência de quase um ano, do cálculos da Asociación de Líneas
vesse amanhã. Diante da brutal re- previa numerosas entrevistas com Aéreas de Venezuela, em junho de
versão de expectativas, cogitei dife- diplomatas, professores, pesquisa- 2014, o governo já acumulava dívi-
rentes hipóteses, que iam da psica- das de 3,4 bilhões de dólares com as
nálise barata (“enfim um uso apro- empresas. O boicote, com sensível
priado para a quase pornográfica redução dos voos operados para e
expressão Schadenfreude”) à so- desde Caracas, era negado veemen-
ciologia sem fundamento empírico temente pela Presidência da Repúbli-
(“extravasam porque ressentidos ca, que alegava haver mera revisão
com o desemprego, a instabilidade das rotas, com o remanejamento do
política, a criminalidade urbana...”).
Lembrei-me até de uma corrente teó-
rica, hoje tornada obsoleta na ciên-
cia política, a qual atribuía ao impe-

outubro • Novembro • dezembro 2016 135


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

pessoal. O dado objetivo, porém, era ca antes havia estado em enrasca-


que a Venezuela havia perdido recen- da de tal natureza. Tentei barganhar
temente a conectividade direta com com o chauffeur de praça. O melhor
sete destinos: Toronto, San José da que obtive, depois de alguma acroba-
Costa Rica, Milão, Valência, Nova York, cia verbal e muita autocomiseração,
Dallas e San Juan de Porto Rico. Uma foi um eventual abatimento da conta
das companhias que suspenderam para 650 bolívares – a contragosto
atividades, a Air Canada, emitira co- ouvi falar de certo descolamento en- e sob protestos.
municado oficial em março daquele tre a cotação oficial e a paralela do

O
ano, alegando “incapacidade de ga- bolívar. Sabia que o governo andava lhava ao redor e tudo o que
rantir a segurança das suas opera- às voltas com uma política monetá- via era o aeroporto desértico,
ções”, em virtude dos distúrbios ci- ria malsucedida. A meta de resistir meia dúzia de taxistas ociosos,
vis. A mala que despachei em Lima, à desvalorização imposta pelo mer- quatro ou cinco carregado-
meu porto prévio, foi a última a des- cado internacional, apreciando arti- res de mala em uma charla anima-
pontar na esteira, o que só aconte- ficialmente a moeda local frente ao da e, mais ao fundo, alguns militares
ceu alguns minutos depois de todas dólar, ao euro, ao real, ao peso co- e seus fuzis. Das duas, uma: ou me
as outras terem sido recolhidas pelos lombiano, não parecia surtir efeito. deixava extorquir e pagava logo os
passageiros do voo. Nem sei quanto Ao trocar a minha platita no aero- 700 bolívares (no câmbio oficial), ou
tempo permaneci em agônica espe- porto, eu perderia, como de praxe, inventava outra maneira de cruzar
ra, mas não foi pouco. Nesse inter- algum valor aquisitivo. No pasa nada, a metrópole venezuelana. Acadêmi-
valo, ninguém para me informar na- aquilo era parte do pacote, elaborei co profissional, não possuía exata-
dica de nada – apenas os militares mentalmente. Peguei no balcão um mente os dotes de um atleta fundis-
e seus imponentes fuzis, bloquean- punhado de notas e moedas e segui ta. Uma caminhada não iria funcio-
do as passagens de uma sala a ou- confiante para a área dos táxis, louco nar. Teria de entregar os meus par-
tra do aeroporto, acompanhados de para chegar à hospedaria. Nem con- cos recursos ao taxista e sobreviver
cães farejadores. Já tinha, àquela al- feri quanto dinheiro tinha em mãos. a uma semana naquela cidade, a um
tura, a convicção de que minha ba- Uns trezentos, trezentos e cinquen- custo de vida comparável ao de zo-
gagem houvera sido extraviada ou, ta bolívares. Seria mais do que su- nas devastadas por guerras civis?
quem sabe, retida para averiguação. ficiente, pensei. Todavia... Qual não Tal como num Show de Truman, eu
Felizmente, não seria o caso. Ao que foi a minha surpresa? Ao chegar ao era observado, literalmente, por to-
tudo indica, ela apenas recebera um lado de fora, na rua em frente ao ae- dos os que estavam no aeroporto. A
“cuidado especial” por parte da se- roporto, li numa placa grande, visível certa altura, sentei-me sobre a mala,
gurança aeroportuária. ao longe, que a corrida de Maique- já contabilizando perdas materiais.
Admitido no país pelas autorida- tía até a região central de Caracas Tudo somado, dividido, multiplicado
des competentes, fui trocar dinhei- me custaria obscenos 700 bolívares. e subtraído, talvez desse para ban-
ro para sobreviver pelas próximas Pela taxa de conversão do governo, car a estada sem pedir arrego à fa-
horas, até que conseguisse me ins- aproximadamente 200 USD. Por uma mília no Brasil. Iam os anéis, fica-
talar e chegar ao centro comercial corrida de 30 km?!? Não batia. Não vam os dedos, certo? Ok, eu já esta-
de Caracas. Saquei cem dólares da cabia. Não podia ser. O valor tabe- va resignado. Levantei-me e come-
minha carteira e dirigi-me ao câm- lado era impraticável. Acostumado cei a marchar para o patíbulo, digo,
bio do aeroporto. Algum tempo antes, a viajar pelo mundo livre S/A, nun- para a banquinha de câmbio. Aden-

136 Caracas
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

trei novamente a área coberta do Si- pela sorte. Os guardas estavam pró- tica de las calles, 100 dólares pa-
món Bolívar. Nada me deteria. A não ximos e podiam ver o que se passa- gavam 10 mil bolívares. Estupefato,
ser um jovenzinho magricela, pós- va. A sensação era a de quem nego- perguntei novamente a meu corre-
adolescente, quase adulto, vestindo ciava um baseado em praça pública. tor cambial: “Tem certeza da taxa?
camiseta branca e jeans surrados, Pedi discrição. Disse que seríamos É 1 para 100 mesmo?” Ao que veio
que, saído sabe-se lá de onde, gritou presos. Ele deu generosa gargalha- a resposta consagradora: “Se tiver
um estridente “amigo”, acercou-se de da e retorquiu com uma pérola de euros, posso chegar até 120.” Sem
mim, tocando-me levemente a espal- sarcasmo: “Se preferir, posso levá- nenhuma convicção, arranquei do
da, como quem guiasse um cego, e -lo ao meu escritório.” A mensagem bolso uma cédula de 100 euros, fi-
disparou: “quanto você quer?” Assus- era clara: minha ingenuidade havia lha única, dessas que a gente guar-
tado, sem saber o que dizer, emude- ultrapassado os limites do aceitável. da para a eventualidade que nunca
ci e encarei o rapaz. Ao que ele, arti- A rigor, existia um negociante chega. Se o cara me entupisse de no-
culada e didaticamente, prosseguiu: de moeda dentro de cada venezuela- tas falsas, paciência. Eu não estava
“amigo, mirá: aqui é como na Argen- no ao meu redor: primeiramente, os em condições de resistir, de bancar o
tina. Não se usa casa de câmbio ja- cambistas-cambistas, sob a super- consumidor consciente. Com os bol-
mais! Quanto você tem para trocar? visão oficial. Mas os taxistas, esses sos internos do paletó recheados de
Juan [um dos carregadores de ma- também eram cambistas ocasionais. maços de mil bolívares, fiz a traves-
las], venha cá...” Os carregadores de mala, idem. Os sia de táxi do aeroporto Simón Bolí-
Sim, o universo voltava a sor- vendedores de balas, os garotos de var até Caracas. Não sem antes pre-
rir para mim. Mas não sem uma pi- recado, o rapaz que fazia a manuten- senciar o início de um pugilato pelo
tada de tensão. Afinal, os militares ção dos banheiros. Talvez até os mili- “direito” de me conduzir. Ora: depois
permaneciam ali ao lado, com seus cos. Vá saber. Fato é que todos aque- daquele câmbio clandestino, além de
vistosos fuzis, espreitando o hori- les exemplares traficavam moeda. contraventor, tornara-me aparente-
zonte, como convém a guardiães da E, naturalmente, o tecido social não mente um nouveau riche desejável.
revolução bolivariana. E fazer câm- admitia delações. Estavam irmana- Superada a desinteligência entre os
bio paralelo, convenhamos, é ilegal dos na inobservância à lei. Um alívio colegas motoristas, iniciamos o pas-
em qualquer quadrante do planeta. para mim, por suposto. Na matemá- seio de quarenta e poucos minutos.
Desrespeitar as regras estipuladas Um verdadeiro banquete para os
pelo governo, bem debaixo das bar- olhos de um cientista social.
bas dos milicos, sei não, era ousa- Simón Bolívar, El Libertador, as-
dia demais para alguém com temor sumiu desde muito jovem o protago-
à vida. Rapidamente, o tal Juan, ami- nismo nos esforços pela indepen-
go do “amigo”, trouxe-me bolos e bo- dência venezuelana, concretizada
los de cédulas bolivarianas. Era ridí- em 1811 – embora não de maneira
culo aquele volume de dinheiro! Temi inconteste ou pacífica, como os en-
frentamentos com a Espanha mos-
trariam. Rico fazendeiro de cacau,
ele não acreditava em um projeto
espanhol que pudesse levar a Vene-
zuela a superar a condição de colônia
de exploração, de eterna provedora

outubro • Novembro • dezembro 2016 137


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

de recursos primários à metrópole. as convulsões domésticas marca- independência, o poder seria man-
O mesmo raciocínio aplicava-se ao va, portanto, o cerne do pensamento tido nas mãos de uma pequena eli-
prognóstico, então realista, de Na- bolivariano de raiz. Seria necessário te letrada, visto que o critério para
poleão Bonaparte vencer as guerras corrigir excessos em nome da esta- participar do sufrágio (universaliza-
que movia pela Europa e colonizar, bilidade e da autoridade constituída. do, na Venezuela, para os homens,
por vias tortas, a América espanho- Tanto assim que, quando foi redator somente em 1853) era a alfabetiza-
la. Inspirado na saga dos federalis- da Constituição da Bolívia, nela inse- ção, precondição das mais exigen-
tas estadunidenses, o objetivo origi- riu um dispositivo que previa, para o tes numa sociedade agrária. O es-
nal de Bolívar consistiu na geração presidente, as prerrogativas da vita- cravismo seria abolido lentamente
de condições propícias ao autogo- liciedade e a capacidade de nomear – restando indícios de que, por volta
verno venezuelano – ou, numa cha- o próprio sucessor. Ou seja: o presi- de 1830, existissem ainda 45 mil es-
ve contemporânea, a algo próximo dente seria o equivalente funcional cravos na região. Como provocava o
daquilo a que se tem chamado, em de um monarca, ainda que não os- professor Malcolm Deas, da Univer-
linguagem pomposa, de “autodeter- tentasse título nobiliárquico. A con- sidade de Oxford, seria grande ana-
minação dos povos latino-america- centração de poderes nas mãos do cronismo imaginar que algum líder
nos”. Ao contrário do que as versões Poder Executivo contrariava o libe- latino-americano da independência
bolivarianas correntes podem dar a ralismo de Montesquieu e de Jeffer- tivesse trabalhado por uma ordem
entender, Bolívar não era exatamen- son. No entanto, desde uma mirada rural igualitária. De fato, o raciocí-
te um antiamericanista. Demons- histórica, a hipertrofia da Presidên- nio faz sentido: o movimento de li-
trava respeito – quando não admi- cia da República – defendida, às es- bertações nacionais latino-america-
ração – pela trajetória política dos câncaras, por Bolívar – ajuda a en- nas foi, antes de tudo, um processo
Estados Unidos da América. Rotu- tender uma série de fatos e tendên- conduzido pelo alto, em nada fazen-
lou os Pais Fundadores de “visioná- cias, relativamente à emergência e do lembrar as revoluções de massa
rios benevolentes” com seus “expe- à cristalização do modelo bolivaria- – sobretudo, a soviética e a chine-
rimentos fantásticos”. Deixaria cla- no do século XXI. sa – do século XX. À luz do exposto,
ra a sua inclinação por um governo Em referência à organização da o bolivarianismo do século XXI pa-
unitário e centralizador, ao rejeitar, sociedade, a historiografia não re- rece, isto sim, subverter as concep-
para a Venezuela, o modelo federati- gistra impulso mais consistente de ções que, alegadamente, lhe teriam
vo. Isso porque, na sua visão, as for- Simón Bolívar pelo igualitarismo es- dado origem.
ças desagregadoras ainda atuavam trito entre os cidadãos, pelo estabe- Tão logo cumprida a profecia
muito fortemente no território, e as lecimento de uma ordem socialista, bolivariana da libertação, a Repúbli-
províncias grão-colombianas, consti- comunista ou assemelhada. Após a ca da Grã-Colômbia desmembrou-
tutivas do novo Estado independente, -se em três unidades político-terri-
não se haviam integrado em um pro- toriais: Equador, Nova Granada (Co-
jeto político efetivamente nacional. A lômbia) e Venezuela. Três repúblicas
mescla de republicanismo liberal oi- que tinham muitas características
tocentista com o desejo de reprimir em comum, mas que também apre-
sentavam as suas particularidades.
Eram majoritariamente formadas por
pequenos povoados, racialmente di-
versificados e pouco coesos. Nisso,

138 Caracas
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Equador, Nova Granada e Venezue- venezuelanos exportados, em valor, o café continuou a ser, até o início do
la apenas refletiam o padrão da co- em meados dos anos 1830. Note-se, século XX, o arrimo da economia de
lonização espanhola. Porém, no re- contudo, que a Venezuela não conse- exportação. Outro aspecto relevan-
ferente à economia, as diferenças guiria, por todo o século XIX, encon- te é que esse cultivo do café serviu
eram sensíveis. A Venezuela mos- trar um produto básico para expor- como impulso para a libertação efe-
trar-se-ia, desde o começo, a mais tação contínua. Tampouco era país tiva de escravos – que, frequente-
dinâmica entre as três repúblicas. atraente para investimentos estran- mente, se evadiam das fazendas, em
O motor para a atividade econômi- geiros, dado o seu insulamento do busca dos riscos e das oportunida-
ca era o cacau, de qualidade supe- mundo. Mesmo com todas as dificul- des do trabalho livre e assalariado.
rior, transformado em produto de dades acarretadas pelas flutuações Tudo guiava a uma maior dinamiza-
exportação para o México e a Euro- de preço no mercado internacional, ção da atividade econômica. No en-
pa. Ao cacau somava-se a cultura do tanto, a dificuldade de auferir recei-
café, desenvolvida a partir do século tas também levava os governos da
XVIII, líder na relação dos produtos região a desenvolver técnicas mais
eficientes de tributação da popula-
ção. Além disso, boa parte das recei-
tas provindas da taxação revertia-se
para a “militarização” – sob a som-
bra de terem de travar uma even-
tual guerra de reconquista contra
a Espanha. Embora as informações
a respeito da economia venezuelana
do século XIX sejam truncadas e in-
cipientes, estima-se que, por volta de
1870, o país contasse com popula-
ção de aproximadamente 2 milhões
de habitantes (o dobro da registra-
da ao tempo da sua independência),
tendo ingressado no seu segundo
grande ciclo de exportação de café.
A gênese da indústria petrolífe-
ra venezuelana remete a 1878, ano
da fundação da Compañía de Petró-
leo del Táchira. A primeira concessão
do governo para exploração estran-
geira é feita, em 1883, a uma empre-
sa americana – a New York and Ber-

outubro • Novembro • dezembro 2016 139


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

múdez Company. A partir de então, o


petróleo torna-se moeda das transa-
ções políticas na Venezuela. Conces-
sões eram feitas com base nas rela-
ções personalistas mantidas com o
presidente da ocasião. No entanto,
é só com o fim da Primeira Guerra latino-americana. O autocrático pre-
Mundial que o petróleo começa a fi- sidente permaneceria no comando
gurar como produto de exportação do Estado de 1908 até 1935, ano de
com alguma relevância no mercado sua morte. Contribuíram a relativa
internacional. Em 1926, o líquido ne- estabilidade propiciada pelo setor
gro já era a principal commodity da petrolífero e as boas relações cul-
pauta de exportações do país. Logo tivadas pelo ditador com investido-
em 1928, a Venezuela tornara-se a res estrangeiros – principalmente,
segunda maior produtora mundial ingleses e estadunidenses.
de petróleo, respondendo por 8% da modernizou-se a sociedade. Ou seja: A década de 1930 significou,
produção mundial, além de sagrar-se por volta de 1930, estava, finalmen- para a Venezuela, crescimento na
a maior exportadora do mundo, em te, pronto o alicerce da Venezuela renda nacional da ordem de 6% ao
toneladas do óleo. Como é razoável moderna. ano. Aumentou também, de forma
supor, após o advento da indústria A “Crise de 1929”, devastadora considerável, o volume de importa-
do petróleo, os vínculos da Venezue- para a maioria dos países da América ções e de exportações feitas pelo país,
la com a economia mundial são ro- Latina, não surtiu efeitos apreciáveis aprofundando-se a inserção mun-
bustecidos, e as relações bilaterais sobre a Venezuela. O petróleo havia dial. Os dados agregados da econo-
com os Estados Unidos da América se incumbido de fazer blindagem à mia venezuelana obscureciam, po-
passam a constituir pedra de toque economia, de modo que, no ano de rém, a falência maciça dos cultores
da política externa venezuelana. Ao 1932, o volume de exportações do de café e de cacau, bem como dos
contrário de Equador e Colômbia, país era rigorosamente o mesmo re- criadores de gado, duramente afe-
a terra de Bolívar conseguia atrair gistrado em 1928. A queda nos pre- tados pelas oscilações do mercado
para si a atenção das potências da ços das commodities, no ciclo de de- internacional após o crack da Bolsa
época. Em 1928, o somatório de im- pressão econômica, foi amplamente de Nova York. A tendência seria agra-
portações e exportações correspon- compensada pelo rápido crescimen- vada com a eclosão, em 1939, da Se-
dia a mais de 120% do PIB nacional. to das exportações, ocorrido na se- gunda Guerra Mundial, e a diminui-
Rapidamente, a economia extrover- gunda metade dos anos 1920. Além ção de demanda que se seguiu. Em
teu-se por completo, reorientando- disso, a Venezuela soube aproveitar- 1940, embora a Venezuela detivesse
-se para o comércio exterior. Há que -se da condição de ser o país produ- a sexta maior economia da América
citar, como efeito colateral da “mar- tor de petróleo com custos mais bai- Latina, a participação da indústria na
cha do petróleo”, a urbanização ace- xos em todo o continente americano. renda nacional não passava de 14%.
lerada por que passou o país, o que Na política, o aspecto notável do pe- A enorme receptividade internacio-
minou a economia agrícola e fez ex- ríodo foi a manutenção de Juan Vi- nal ao petróleo havia, ironicamente,
pandir as classes médias e o prole- cente Gómez no poder, a despeito da desarranjado a matriz produtiva do
tariado. Burocratizou-se o Estado e turbulência generalizada na política país – fenômeno que a literatura uni-

140 Caracas
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versitária batizou de “doença holan- de Punto Fijo, formalizado em 1958. uma sombra pálida dos anos de apo-
desa”, em alusão ao análogo ocorri- De acordo com o Pacto, os líderes geu, com azulejos quebrados e vaza-
do, no século XVII, com as tulipas dos dos três maiores partidos venezue- mentos por todos os lados. O serviço
Países Baixos. lanos – AD, COPEI e URD (União Re- do hotel, esse era irremediavelmen-
A concentração de recursos publicana Democrática) – compro- te precário. Conjugavam-se robe de
nas mãos do Estado – a um só tem- metiam-se a aceitar os resultados seda no guarda-roupa e mobília de
po, empresário e aparato do fisca- das eleições, a formar um governo de madeira nobre com ausência de co-
lismo – produzia sobre os cidadãos unidade nacional e a acionar meca- nexão wireless e o contingenciamento
a impressão de que todo desenvol- nismos de consulta recíproca sobre do papel higiênico no banheiro (per-
vimento social passava, necessaria- os temas políticos mais palpitantes. dão pelo clichê, mas os efeitos da es-
mente, por ações governamentais, Garantias adicionais também foram cassez desse bem de consumo não
encetadas de cima para baixo. Ape- concedidas à Igreja, aos militares e durável são realmente desconcer-
sar de o presidente Rómulo Betan- à indústria nacional. tantes). Do quarto, a vista era par-
court ter empreendido políticas para ticularmente privilegiada. Como me

O
o desenvolvimento industrial no ime- hotel em que me hospedei es- puseram em um dos últimos andares
diato pós-Guerra, um novo governo tava no distrito de Las Mer- da torre, que, construída sobre uma
ditatorial, de Marcos Pérez Jiménez, cedes, zona de lazer e entre- colina, dava visão panorâmica para
estancaria, em boa medida, o referi- tenimento que fazia lembrar, a cidade, as grandes janelas trans-
do processo. A deposição de Rómulo remotamente, o centro de São Paulo. lúcidas permitiam identificar ao lon-
Gallegos, aos oito meses do exercício Era um cinco estrelas, fundado em ge os enfrentamentos entre milícias
presidencial, representou o aborto 1953, mas as suas diárias, arrema- a favor e contra o regime socialista.
de uma experiência de governo de- tadas via Booking.com, tinham pre- Na base do pau e da pedra, os gru-
mocrático até então inédita na Ve- ço de albergue da juventude. Apesar pos digladiavam-se, seja nas ave-
nezuela. A década seguinte, sob Pé- de tradicional, fora recentemente en- nidas do centro da cidade, seja nas
rez Jiménez, não veria traço de de- campado por uma cadeia americana, ruelas dos barrios. A fumaça bran-
mocracia no país. Por outro lado, os situando-se, em termos estilísticos, ca e o estampido das bombas logo se
anos 1940 também simbolizaram, do a meio caminho entre o relicário e a tornaram parte do meu dia a dia. En-
ponto de vista da política institucio- boutique. A habitação standard era quanto isso, no saguão amplo e sun-
nal, a consolidação da centralização grande e luxuosa, indiciando que o tuoso, ainda que pouco povoado, um
administrativa do Estado, ou o “últi- estabelecimento já vivera dias me- belo piano de cauda era executado
mo suspiro” do caudilhismo. A inten- lhores. A sua piscina, de arquitetura automaticamente, alternando trilhas
sa polarização político-partidária do arrojada, noutros tempos o refúgio clássicas e contemporâneas, alheio
início dos anos 1950, contrapondo, de diplomatas estrangeiros que se a tudo. Quando percebi pela primei-
de um lado, a Ação Democrática (AD), encontravam em Caracas, era hoje ra vez a sua existência, tocava “Sen-
nacionalista e anticlerical, e, de ou- timental Journey”, de Frank Sinatra.
tro, o Comitê de Ação Política Eleito- Tratava-se da representação musical
ral Independente (COPEI), conser- mais pronta e acabada da esquizo-
vador e católico, desaguou em uma frenia social que permeava Caracas.
clássica solução de compromisso, As décadas compreendidas entre
a qual geraria efeitos duradouros 1950 e 1980 mostraram-se cruciais
para a política venezuelana: o Pacto para a formação da Venezuela con-

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temporânea. Mais do que isso: proje- democracia). Doravante, sob o signo mia e da política, duros golpes para
taram, por um instante, a sombra de da moderação e o Texto Constitucio- a Venezuela. O esgotamento do key-
uma “Grande Venezuela” para o futu- nal de 1961, AD e COPEI fariam ci- nesianismo econômico no mundo, e
ro. Economicamente, o desempenho vilizada alternância no poder, esta- do Estado de bem-estar social na Eu-
do país foi impressionante. O produ- belecendo, a despeito da aparente ropa, desencadeou uma crise de li-
to interno bruto expandiu a uma taxa improbabilidade, um regime demo- quidez mundial que, em pouco tem-
média anual de 4,4%. No rastro dos crático competitivo, no coração de po, levou os países da América Lati-
“anos dourados” do século XX, a Ve- uma das regiões menos democrá- na, um após o outro, à bancarrota –
nezuela foi, efetivamente, “reboca- ticas do planeta, durante o período a começar pelo México, em 1982. O
da” pelo crescimento econômico dos da Guerra Fria. exemplo venezuelano tem um com-
mercados desenvolvidos, com ênfa- Entretanto, o gigante tinha pés ponente dramático: o subdesenvol-
se para os Estados Unidos, a Europa de barro. Os anos 1980 significa- vimento do seu setor industrial – o
e o Japão. A pujança da atividade in- ram, da dupla perspectiva da econo- qual, em 1980, respondia por menos
dustrial daqueles países fazia neces- de 19% da renda nacional. A histó-
sário o incremento nas importações rica falta de investimento na indús-
do petróleo, o que içava a Venezuela tria não petrolífera acarretava altos
a uma posição privilegiada no con- coeficientes de importação, princi-
texto do Terceiro Mundo. Haja vista palmente dos bens de consumo. De
que, enquanto a maior parte dos Es-
tados do seu entorno entrava em re-
cessão em 1973, diante do primeiro
Choque do Petróleo, o país registrou
aumento sem precedente nos gan-
hos procedentes das exportações
– que subiram de US$ 3,1 bilhões,
em 1972, para US$ 11,3 bilhões, em
1974. Politicamente, o Pacto de Punto
Fijo funcionou como um tipo de mar-
co constitucional. Inaugurou um re-
gime de cooperação partidária, que
resistiria por quatro décadas – mais
precisamente, até a ascensão ao po-
der de Hugo Chávez Frías, em 1999.
Até 1958, a Venezuela conhecera 25
constituições, alternando ditaduras
estáveis e instáveis; e oito anos de go-
verno civil (dos quais apenas três em

142 Caracas
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

1981 a 1990, a renda bruta vene- do entre o presidente Carlos Andrés As classes mais altas não os tole-
zuelana cresceu a 0,6% ao ano, de- Pérez e o Fundo Monetário Interna- ram. Associa-se o Brasil ao descala-
nunciando, se nada mais, a falta de cional. Críticos venezuelanos, na aca- bro que a capital – e o país como um
dinamismo econômico. De resto, a demia e na imprensa, fazendo eco à todo – vivencia”. Bem ou mal, era uma
deterioração dos termos de troca insatisfação popular, passam a tra- hipótese inovadora sobre a gratuita
no comércio internacional conduziu tar o regime democrático ali insta- hostilidade à seleção brasileira de
a Venezuela ao endividamento inter- lado por “partidocracia”, sugerindo futebol, detectada por mim em 2014.
nacional e à necessidade premente o insulamento do povo em relação Os modelos analíticos da ciência po-
de reformas institucionais. Em feve- ao processo decisório. O paradig- lítica costumam apontar a relativa
reiro de 1989, um levante popular – ma do Punto Fijo não se sustentaria apatia dos eleitores sobre temas de
conhecido como “Caracazo” – termi- no médio prazo. Aspectos demográ- diplomacia e política externa. Em re-
naria em derramamento de sangue, ficos também ajudavam a entender o gra, o mundo lá fora, para um cida-
após o aumento dos preços das ta- desmoronamento do projeto “Grande dão comum, conta muito pouco. Na
rifas de transporte público, acorda- Venezuela”. Entre 1930 e 1990, a po- América Latina, em particular, qua-
pulação do país cresceu quase sete se ninguém vota com base em pla-
vezes, enquanto a da América Lati- taforma política de relações inter-
na quadruplicou. Isso se explica tan- nacionais. É importante, entretanto,
to pelas altas taxas de fecundidade notar a relatividade dessa conexão,
quanto pelas imigrações – legais e já que, em determinados contextos
ilegais – que, sob a miragem do el- e circunstâncias específicas, como
dorado petrolífero, aconteceram em a escassez alimentar ou as guer-
larga escala. Acrescente-se a rápi- ras, a mencionada apatia pode ser
da e desordenada urbanização da substituída pelo engajamento ferino.
sociedade venezuelana. No interva- Se o presidente Fulano de Tal é res-
lo de meio século, a população nas ponsabilizado pela má condução de
cidades saltou de 14 para 83%, con- uma estratégia de defesa nacional,
centrando-se, sobretudo, em Cara- da qual resultem mortes banais, ele
cas. Em face do que se expõe, não será severamente punido nas urnas.
surpreende que o PIB per capita ve- Ora: se o motivo intuído pelo colega
nezuelano, em 1992, tenha regredi- pesquisador era, de fato, o que ex-
do ao patamar de 1963. plicava o antibrasilismo nos estratos
No ano passado, em um evento
acadêmico realizado em Porto Rico,
dividi mesa com um painelista vene-
zuelano. Feitas as nossas apresen-
tações, puxei assunto e ele, recepti-
vo e simpático, retribuiu. Contei-lhe
brevemente a minha experiência em
Caracas e, em especial, o episódio do
7 a 1. Rápido no gatilho, ele disparou:
“É o apoio que vocês dão ao regime.

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

superiores da população de Caracas, te americano, George W. Bush. Não


a percepção prevalecente poderia saberia dizer se Lênin ou Mussolini
ser a de que os venezuelanos esti- teriam sido mais cultuados em sua
vessem em meio a uma verdadeira própria aldeia do que Hugo Chávez.
guerra. Ou, no mais eufemístico dos Seja como for, a adoração ao herói
registros, em conflito civil de consi- permanecia intensa. Nas zonas cara-
derável gravidade. quenhas mais sofisticadas, sobres-
A posição da diplomacia brasilei- saía o que o sociólogo Thorstein Ve-
ra sobre a Venezuela alterou-se sig- blen chamou de “padrão de consumo
nificativamente ao longo dos últimos conspícuo”: misses pré-fabricadas e
20 anos. Enquanto FHC manteve re- seus garbosos acompanhantes des-
lações protocolares com o regime de as linhas gerais do relacionamen- filando imperturbáveis, em carros
Caracas, Lula da Silva aproximou-se to diplomático durante o seu termo SUV importados, blindados, com tra-
fraternalmente de Chávez, fazendo presidencial; se não era exatamen- ção nas quatro rodas – e movidos a
da aliança com a nação caribenha te amiga dos seus homólogos Hugo óleo barato, subvencionado pelo Es-
uma das pontas de lança da política e Nicolás, ao menos parecia cordial tado. Corrado Gini e seu coeficiente
externa de Brasília. A estratégia, co- com os venezuelanos. Desde a chega- de concentração de renda enviavam
nhecida como “paymastering”, con- da ao poder de Temer, porém, o que saludos. Enquanto isso, as longuíssi-
sistia em o país mais rico e podero- era riso, fez-se pranto, e das mãos mas filas nos supermercados, para a
so – Brasil – arcar com a maior cota espalmadas, fez-se o espanto. aquisição de gêneros básicos, pertur-
das despesas relativas à integração bavam e desvelavam. As prateleiras

c
regional, haurindo daí o direito de li- ircular pela região central de das vendas não tinham reposição de
derar os mais pobres e frágeis nos Caracas era um exercício pe- estoque. A sensação de impotência
arredores. A polêmica, fartamente dagógico acerca de contras- era estranha: ter o dinheiro no bol-
alimentada pelos meios de impren- tes sociais. Nos bairros mais so e, sistematicamente, não encon-
sa em 2015, de que o metrô de Ca- pobres, o suporte ao regime boliva- trar o produto disponível em lugar
racas fora reformado com verba do riano aparentava ser maciço. Não algum. Nesse diapasão, até um lan-
BNDES, banco desenvolvimentista se nega que a petropolítica chavis- che no McDonald’s ganhava contor-
mantido pelo contribuinte brasilei- ta logrou traduzir-se em efetiva as- nos aventureiros. Não era incomum
ro, insere-se em tal dinâmica de po- sistência social aos carentes e vul- ter de contentar-me com um sanduí-
lítica externa. O referencial históri- neráveis. Donde a hegemonia obtida che do cardápio em que dois ou três
co exitoso desse tipo de prática é a nos últimos ciclos eleitorais. Uma re- dos seus ingredientes constitutivos
Alemanha Ocidental, que, depois da ferência marcante para o transeunte estivessem “em falta”. Ok, vida que
queda do Muro de Berlim, em 1989, é a street art saudosista, com vivas segue, nunca gostei mesmo de pi-
reunificou-se, absorvendo para si os representações do falecido Coronel. cles. Para comprar uma garrafinha
custos do atraso econômico do lado Numa delas, sob o mote da revolução, de meio litro d’água, ou eu encarava
oriental e, por conseguinte, tornou-se via-se um Chávez altivo e jovial, om- de duas a três horas de pé, à espe-
a locomotiva da União Europeia. Dil- breado por Bolívar e Che Guevara. ra da fatura, ou desembolsava uma
ma, apesar de menos calorosa com Noutra, o Comandante era retratado fábula pelo artigo de subsistência
o bolivarianismo do que o seu ante- como um boxeador, que golpeava com em algum restaurante de luxo. Uma
cessor e correligionário, conservou um direto no estômago o presiden- cerveja, então, era utopia. Fiscais ar-

144 Caracas
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mados faziam a segurança dos co- propaganda infantilizante sobre o Römer – derrotado por Hugo Chá-
mércios, impedindo os saques. O im- país, ao mais desbragado putschis- vez, artífice da primeira tentativa de
pulso inicial, diante da configuração mo da oposição, bem expresso pelo golpe. As linhas do bolivarianismo do
dantesca, era sacar o telefone e fo- editorial que incitava sem cerimô- século XXI haviam sido tramadas.
tografar – o que, depois de hesitar nia a guerra civil e a invasão popu- Chávez é o responsável pela ins-
por um instante, julguei indigno. Por lar do Palácio Miraflores. Em Cara- tauração de um novo regime políti-
mais que quisesse registrar, disse- cas, o meio-termo não tinha vez. Os co no país. Uma nova Constituição
minar, denunciar o drama da clas- anos 1990 abriram a “caixa de Pan- é fabricada, passando a vigorar em
se trabalhadora – que já é um se- dora” da política venezuelana. Sob o 1999. Novas leis eleitorais são apro-
gredo de polichinelo a esta altura –, pretexto do fracasso da partidocra- vadas, oficiais corruptos são julgados
não cabia agir como se aqueles ho- cia em atender satisfatoriamente às e condenados, o sindicalismo nacio-
mens e mulheres fossem bichinhos demandas populares, dois golpes de nal é democratizado. Não obstante,
exóticos da fauna nativa. Uma dose Estado foram tentados em 1992. Em a tradicional matriz democrática li-
de empatia não faz mal a ninguém. meio ao que significava, para a Amé- beral – que inspirou, em certa medi-
Noblesse oblige. rica Latina, o advento de uma era de da, o libertador Bolívar – é gradati-
Em minha estação de trabalho amplas reformas estruturais, Car- vamente substituída por um modelo
improvisada – uma mesinha lateral los Andrés Pérez falhou em implan- baseado na ideia de soberania popu-
do hall de entrada do hotel – recebia tar a sua agenda reformista e, como lar, na vontade das massas. O presi-
colegas venezuelanos, conversava decorrência, sofreu o impedimento dente recém-eleito soube desvenci-
demoradamente, trocava presentes, constitucional, tendo de deixar o pos- lhar-se de parcela considerável das
experimentava drinks, recebia con- to. O sistema de partidos venezuela- travas institucionais que constran-
selhos turísticos. Um dos professo- no começou a ruir: AD e COPEI, que giam seu exercício de poder, mesmo
res com quem tratei, Carlos Antonio dominavam a cena política desde que, para tanto, houvesse de proce-
Romero, titular da Universidade Cen- 1973, perderam a presidência para der com algumas quebras constitu-
tral da Venezuela, fez-me gentileza Rafael Caldera, candidato indepen- cionais. Fê-lo em duas etapas: elimi-
adicional: trouxe-me exemplares de dente, nas eleições de 1993. Na se- nando os velhos atores, em condição
cinco diferentes diários de Caracas. quência, em 1998, AD e COPEI não de fazer frente ao presidente; e ga-
Queria manter-me atualizado, a par lançaram sequer candidatura pró- rantindo a lealdade dos novos jogado-
da situação. Inadvertidamente, pro- pria, decidindo apoiar outro candi- res. Inicialmente, foi convocada uma
vou um ponto que talvez nem fosse dato independente, Henrique Salas Assembleia Nacional Constituinte, o
sua intenção: a existência de liber- que suprimiu, no curto prazo, algu-
dade de imprensa por aquelas ban- mas das amarras ao Poder Executi-
das. O arco de tendências editoriais vo: extinguiu-se a Corte Suprema de
ia do oficialismo do Partido Socialista Justiça, criando-se, em contraparti-
Unido de Venezuela (PSUV), com sua da, o Tribunal Supremo; nomeou-se
um novo conselho eleitoral; apon-
tou-se um novo controlador geral da
República – todos propensos a co-
laborar com o regime chavista. Pa-
ralelamente, a Assembleia Nacional
Constituinte designou um Comitê Le-

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reforma agrária e outra sobre hi- tos. Chávez retornaria à presidência,


drocarbonetos, sem a devida consul- fortalecido, ficando como saldo um
ta democrática. Parcela expressiva país ainda mais dividido.
da imprensa e as altas patentes do

E
Exército mobilizam-se contra Chá- m 2006, o presidente venezue-
vez. Em meados de 2002, o suporte lano era reeleito democratica-
gislativo Nacional, que assumiu, pro- popular ao presidente despencou, mente para um novo termo de
visoriamente, o lugar dos parlamen- passando de aproximadamente 2/3 seis anos de duração, conta-
tares eleitos, até que novas eleições para 1/3 do eleitorado. Sobreveio o dos a partir de janeiro de 2007. Pelo
pudessem ser realizadas. Apenas em inevitável: em abril daquele ano, uma que se afirmara no discurso da vitó-
agosto de 2000, uma nova legislatu- conspiração militar-empresarial-sin- ria, a “transição” havia acabado. Isso
ra, democraticamente eleita, assumiu dical tentaria tomar o poder na mar- queria dizer, fundamentalmente, ain-
os assentos no parlamento, tornado ra. Liderada por Pedro Carmona Es- da maior autonomia do chefe do Exe-
unicameral. Chávez reelegeu-se à tanga, uma junta anunciou a disso- cutivo para agir de ofício, no cumpri-
presidência com 57% dos votos vá- lução da Assembleia Nacional e da mento das promessas de campanha.
lidos, contando com o apoio osten- Suprema Corte, o repúdio à Consti- Chávez governaria com mãos de fer-
sivo de pelo menos 99 dos 165 con- tuição de 1999 e a prisão imediata ro, rumo à revolução. Dentre as me-
gressistas eleitos – os quais passa- dos governadores chavistas. Só que didas concretizadas, destacam-se a
ram, em novembro de 2000, uma lei o contragolpe veio rápido: incapazes não renovação da concessão para
que concedia amplos poderes para de fazer Chávez renunciar, os usur- funcionamento da RCTV – emisso-
o presidente expedir decretos sobre padores tiveram de haver-se com ra de TV que deu guarida aos gol-
um variado leque de assuntos. Pou- os protestos pró-Chávez que toma- pistas de 2002 –, a estatização de
cos governadores permaneceram na ram as ruas da Venezuela. Instân- companhias dos setores de energia
oposição política; e os que decidiram cias democráticas latino-america- e telecomunicações, e a aprovação,
arcar com os custos, tiveram a sua nas condenaram com veemência a em referendo, da emenda que lima-
capacidade de governar minada. O tentativa de golpe. Passados alguns va da constituição o limite ao núme-
resumo da ópera: entre dezembro de dias, os articuladores da deposição ro de reeleições presidenciais. O fato
1998 e agosto de 2000, Hugo Chávez viram-se sem alternativa. Haviam-se novo, que reorientou todo o curso
conseguiu remover ou enfraquecer esgotado seus recursos e argumen- da história venezuelana recente, foi
todos os seus freios e contrapesos o adoecimento do líder. Um tumor
institucionais. maligno, revelado em 2011, levaria
Já no fim de 2001, depois do ali- Chávez a diversas visitas a Havana,
jamento de determinados setores so- para fins de tratamento médico. Com
ciais do processo decisório nacio- a remissão do câncer, a situação po-
nal, Hugo Chávez passa a ser alvo lítica nacional deteriora-se profunda
de campanhas de descrédito. Líde- e aceleradamente. A oposição, capi-
res empresariais declaravam que o taneada por Henrique Capriles, ga-
presidente havia abusado dos pode- nharia terreno, a ponto de ameaçar
res delegados pela Assembleia Na- a longa hegemonia do PSUV. Ainda
cional Constituinte, o que incluía a que tenha sido reeleito em outubro
aprovação de duas leis, uma sobre de 2012, o Coronel não tomaria pos-

146 Caracas
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se do seu quarto mandato presiden- de 1,5% dos votos válidos. A polari- e seus red caps em diferentes ângu-
cial, em função da piora do quadro zação política atingia o paroxismo. los. Em um dos lances mais pitores-
clínico. Seu ministro de relações ex- Uma das vantagens inesperadas cos que presenciei, o presidente da
teriores, tornado vice-presidente da da privação de internet no meu hotel República em pessoa oferecia car-
República, o sindicalista Nicolás Ma- em Caracas – pois, para completar ros zero quilômetro aos para-atle-
duro, credenciava-se como herdei- o cenário, o roaming internacional tas que competiram nos Jogos Pan-
ro natural do chavismo. Não tardou do telefone também não funcionava -Americanos Juvenis. Um deles, sen-
para que, em março de 2013, aos 58 – foi a redescoberta de um velho há- tado em sua cadeira de rodas, pediu
anos de idade, Chávez finalmente su- bito: zapear a televisão. Além da en- a palavra e, chorando copiosamente,
cumbisse ao imperador de todos os xurrada de enlatados gringos, algo agradeceu ao líder nacional por le-
males. Rei morto, rei posto: ato con- tão compreensível quanto previsí- var adiante os ideais chavistas. O que
tínuo, elegeu-se Maduro presidente, vel, o hóspede podia deliciar-se com deveria parecer um gesto de genero-
numa disputa em que a diferença en- a programação da rede pública ve- sidade e desprendimento, eu tomava
tre os dois contendores foi de menos nezuelana, cuja grade exibia Nicolás como cesarismo canastrão. Minha
referência óbvia, uma vez mais, era
a Copa de 1970, quando o indefectí-
vel Paulo Maluf, então prefeito da ci-
dade de São Paulo, presenteou cada
um dos campeões mundiais de fute-
bol com um fusca novinho. Contra-
riando o título do documentário, pos-
so afiançar-lhes que, na Venezuela,
a revolução bolivariana é televisio-
nada o dia inteiro. Todos os dias da
semana. Sem intervalos comerciais.
Depois de alguns dias coletando
informações para a minha pesquisa,
chegava a hora de partir. A missão
havia sido parcialmente cumprida. A
próxima paragem seria a capital da
Colômbia. Num trecho que geralmen-
te seria feito em menos de três ho-
ras, por voo direto, eu levaria doze.
Em função da crise aérea (crise? que
crise?), o agente de viagens desdo-
brou-se para encontrar-me uma co-
nexão em Santiago do Chile, fazendo-
-me percorrer nada menos que 9,2
mil quilômetros, em vez dos costu-
meiros 4,8 mil. Isso para não mencio-
nar a antecedência recomendada de

outubro • Novembro • dezembro 2016 147


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seis horas para chegar a Maiquetía esmo uma folha do passaporte. Pre-
e não perder o embarque. As filas de guiçosa e desdenhosamente.
passageiros no Simón Bolívar tinham Entendi que melhor teria sido a
extensões de sumir de vista. Além do admoestação verbal dos militares, de
time dos chiques & famosos, trajando cicatrização rápida, aos efeitos psico-
echarpes de seda e chapéus vitoria- lógicos tardios do 7 a 1. Como fosse
nos, sob um calor incapacitante de uma epifania, na iminência de aden-
35 graus, outro perfil recorrente no trar o avião, eu me dei conta de que
aeroporto era o de retirantes. Gente aquela treta era, sim, comigo. Tendo
que tentaria a sorte em Madri, Paris testemunhado de perto o “socialismo
ou... na vizinha Bogotá. Depois de en- minho até o raio-x, não me livrei da do século XXI”, não cabia mais no re-
frentar duas ou três dessas filas in- garrafinha d’água que trazia comigo. pertório o silêncio obsequioso. Tam-
termináveis, quando eu finalmente Pura distração. Pus a mochila sobre pouco usar de meias palavras para
me livraria da mala que empurrava a esteira e... Só depois me lembrei da- caracterizar o que se passava. No-
para cima e para baixo, eis que me quele maldito líquido! Tarde demais. tem bem: não se trata de explorar o
inventam o pagamento compulsório “O bicho vai pegar”, pensei. Projetei tema pela surrada angulação polí-
de uma “taxa de impacto ambiental um esporro monumental, desses que tico-partidária brasileira, ou de re-
para turistas” – ou não me seria per- deixam a gente sem o rumo de casa. verberar o discurso nórdico e irre-
mitido deixar Caracas. Caraca! Como Humilhação à vista. E ainda havia os mediavelmente etnocêntrico. Essa é
já havia dilapidado toda a minha for- cães farejadores! E os fuzis!!! Boba- a isca fácil, que gera mais calor do
tuna bolivariana, tive novamente de gem. Obviamente, eu estava enxer- que luz. Depois de tomar o pulso ve-
trocar dinheiro, com base na cota- gando monstros inexpugnáveis onde nezuelano por alguns dias, eu aban-
ção do dia da agência oficial de cor- só havia moinhos de vento: eles se- donei definitivamente o tom blasé, a
retagem, dado que não se aceitava quer notaram a água no interior de postura meio-intelectual-meio-de-es-
sequer cartão de crédito no guichê minha mochila; se a viram, nem de- querda, condescendente e até amis-
de cobrança. Mais uma lição para to- ram bola. O detector de metais em tosa em relação ao experimento po-
mar nota: a extorsão governamental Maiquetía era uma peneira: até as lítico dos filhos da Grã-Colômbia. Se-
podia ter várias formas – e nomes. moedas que eu guardava no bolso nhoras e senhores, o sonho acabou
de trás da calça passaram ilesas. Su- – e é preciso dizê-lo. A revolução bo-

Q
uitada minha dívida ambien- perada a penúltima etapa do trajeto, livariana fracassou rotundamente. O
tal com a República Bolivaria- alcancei o birô de emigração. Estava país é um barril de pólvora prestes a
na da Venezuela, submeti-me a um carimbo de completar o circui- explodir. Ou não – o que talvez seja
à checagem de segurança. to de provações aeroportuárias, ini- ainda mais massacrante, pois o co-
Com os fuzis pendurados sobre os ciado umas cinco horas antes, e po- zimento em fogo brando vai degene-
ombros, os militares ordenavam um der voar para o alto e avante. O fun- rando tudo e todos. E o Brasil, como
tanto rispidamente que objetos avul- cionário do controle de passaporte ensinara o constrangedor evento da
sos dos passageiros fossem coloca- abriu o meu documento, olhou para praça de alimentação, tem lá o seu
dos dentro dos bolsos dos casacos. a minha cara, balançou a cabeça e quinhão no latifúndio.
Mal dos pecados, apesar de carta- disse: “Brasil? Brasilero? Qué ver-
O autor é professor de ciência política da Uni-
zes demandarem repetidamente que güenza... Los brasileños están todos versidade Federal de Minas Gerais
líquidos fossem descartados no ca- llorando ahora mismo...” Carimbou a dawisson@gmail.com

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