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ANO XXV • Nº 98 • SETEMBRO DE 2022 ISSN 1517-6940

A NEUROSE PERMANENTE DA ECONOMIA


POR LEANDRO FARO
D I A S
P O R
A N O .

H Á A N O S .

O Grupo RBS está fazendo 65 anos.


Quando pensamos assim, em tantos anos, nem lembramos que tudo se passou e se passa de
instante em instante. Informamos fatos importantes do nosso Estado a cada segundo. Levamos
entretenimento aos gaúchos a cada minuto. Vibramos com as emoções do esporte a cada hora.
E contribuímos para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul dia a dia.

Todo o dia é uma vida.


Vamos seguir sempre ao lado dos gaúchos, 365 dias por ano com eles.
ISSN 1517-6940 CONSELHO EDITORIAL
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LUIZ CESAR FARO ADALBERTO CARDOSO MARCIA NEDER
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EDITOR EXECUTIVO EMIR SADER MÁRIO MACHADO
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Há quem diga que a arte vinculada à política não é arte, mas, sim, outra cate-
goria de expressão, inevitavelmente dirigida e enviesada. Seu propósito seria
eminentemente publicista; uma rédea à liberdade infinita de experimentação
da “obra de arte autêntica”. Insight Inteligência já publicou artigos em que essa
visão foi predominante. Mas há mil frames de luz entre o dito e o não dito. No
caso, o não visto. A arte muralista de Banksy e seu protesto visual desconstroem
a ideia de que a crítica direta, indutora, referencial, ideológica não constitui uma
“obra de arte autêntica”, e, sim, uma manifestação política. Como se além do
“fazer pensar” não houvesse uma estética avassaladora subjacente à mensagem
crítica do artista. Arte e politica, sem incômodo, andam lado a lado.

Insight Inteligência convida seus leitores a visitarem uma pequena mostra das
pinturas de Banksy e seus “ditos não ditos”. Nossos apoiadores, como sempre,
emolduram as imagens do artista.
RECADO
O resultado das eleições pode trazer uma
lufada de esperança, mas não altera a
convicção de uma herança dramática no
porvir. O país está escangalhado. O Estado,
disfuncional. Há demanda reprimida por
aumento do salário mínimo, correção da
remuneração dos funcionários públicos,
crescimento da renda do trabalhador em
geral. Teremos um PIB insuficiente, um
legado fiscal trágico, uma inflação resiliente,
um ciclo de juros altos, desemprego
estrutural... Talvez tenhamos que piorar para
melhorar. A via crucis está encomendada.
Não depende mais “Dele” ou “Daquele”.
Tristes trópicos estes em que o “futuro
demora muito ainda”. Rezemos.

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SETEMBRO 2022 13
ENTRE A GULA E A
CRISE: UM DIÁLOGO DA
PSICANÁLISE COM A
ECONOMIA
Leandro Faro
Os interesses do inconsciente
são inteiramente mercantis

16

VERDADES,
CONTRADIÇÕES E
MITOS NO “MONÓLOGO”
DE SAMUEL PESSÔA
José Luis Oreiro e
Luiz Fernando de Paula
O côncavo e o convexo da
teoria monetária

32 A CHINA COMO POTÊNCIA


MARÍTIMA: INTERFACES ENTRE
OCUPAÇÃO GEOGRÁFICA E
DESENVOLVIMENTO PACÍFICO
Jhonathan Edvar Mattos Mariano
A “novíssima” Rota da Seda

44
A INDEPENDÊNCIA
COMO REVOLUÇÃO
LIBERAL NO BRASIL
Christian Lynch
Yes, nós temos
liberalismo “PRETOS + PARDOS”:
UMA BREVE HISTÓRIA DAS
62 CLASSIFICAÇÕES RACIAIS,
MOVIMENTOS NEGROS E
INSTITUCIONALIZAÇÃO
SIMBÓLICA NO BRASIL
José Szwako e
Adrian Gurza Lavalle

SUMÁRIO
Controvérsia à flor da pele

76

14 SUMÁRIO
I N S I G H T

INTELIGÊNCIA
nº 98 | setembro 2022

A VIDA EM REDE
ESTILHAÇOS
E AS NOVAS SEM QUALQUER
INQUISIÇÕES CONEXÃO
Marcio Scheel
O pecador arde SALVE REGINA
na fogueira de Marcus Fabiano Gonçalves
algoritmos
Oh, pedaço de mim

104 88
O CASO BARTLEBY
Hermano Roberto Thiry
Cherques
Quatro vistas sobre
TEORIAS DA o mesmo ponto
CONSPIRAÇÃO:
NINGUÉM É IMUNE 92
A ELAS
Antonio Cezar ACONTECE, ACONTECE
Dominguez Fabiana Souza Lima
Você ainda vai Dona Flor e seus dois Ubaldos
acreditar em uma
95
120
O VERDADEIRO REALISMO
DA HUMANIDADE
Fersen Lambranho
Ode à perfeita imperfeição
humana

96
QUEM TEM MEDO DA
SUSTENTABILIDADE? O “SECRETÁRIO
DESAFIOS E BRASILEIRO”
POSSIBILIDADES Isabel Lustosa
PARA A AGENDA ESG Vale a pena abrir o envelope
Elizeu Santiago de Souza
Talvez essa conta nunca feche 100
136
SETEMBRO 2022 15
ENTRE
A GULA

16 SUPEREU
Leandro
Leandro Faro Faro

EA
Psicanalista Nononononon

CRISE
Um diálogo da psicanálise
com a economia

A ECONOMIA PSICANALÍTICA
Economia e psicanálise. Já numa primeira tentativa de relacio-
nar essas variáveis, um universo de possibilidades se descortina.
Nos meios psicanalíticos, não é nada incomum o recurso aos
termos: “economia libidinal”, “economia pulsional”, “economia
psíquica”. As inquietações de Freud o levaram a buscar, nas
analogias com a economia, um possível alicerce para sua metapsi-
cologia. E não apenas a economia de forma estrita, uma gama de
termos diretamente referenciados nela podem ser encontrados
ao longo da obra de Freud: fala-se de “investimento libidinal”,
“retorno pulsional”, “satisfação de necessidades”.

“Vivo atormentado por duas intenções: descobrir que forma


tomará a teoria do funcionamento psíquico se nela for introdu-
zido um método de abordagem quantitativo, uma espécie de
economia de força nervosa, e, em segundo lugar, extrair da
DAN BANNINO

psicopatologia tudo o que puder ser útil à psicologia normal.”


(FREUD, 1996a)

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Em consequência, o recurso à economia, É a dinâmica da circulação de crédito que vai


como forma de compreender a dinâmica e os dar os contornos da forma como organizamos
investimentos energéticos do psiquismo, ainda até mesmo os nossos sonhos. Não é que o
se mostra atual; tanto instrumentalizando a clínica inconsciente explique o capitalismo, como
quanto a serviço da análise social. As aproxima- mais tarde diriam os freudo-marxistas (ROBIN-
ções entre o modelo psicanalítico da dinâmica SON, 1971), mas, ao contrário, é o capitalismo
das pulsões e os modelos econômicos serão que elucida o inconsciente (JOHNSTON,
tão determinantes que transcenderão a obra 2022). Mais tarde, Lacan (1972) retoma o de-
freudiana e, ainda hoje, são tema recorrente entre bate, admitindo que os interesses do sujeito
os pesquisadores. (do inconsciente, não o indivíduo) são “intei-
No entanto, como bem lembrado por Lacan ramente mercantis”.
(2008), o modelo econômico de Freud não se
alicerçava tão bem nas ciências econômicas, O FECHAMENTO EM SI DA ECONOMIA
mas inicialmente, tinha maior referência na Dentre os economistas, ao contrário, não
termodinâmica. Afinal, noções como dispersão, é nada fácil encontrar algum bom trabalho so-
troca e acúmulo se referem, no contexto das bre as interfaces possíveis com a psicanálise.
primeiras elaborações freudianas, aos aspec- Porém, ao constatarmos a distância que as
tos energéticos da pulsão. Por isso, em um ciências econômicas têm das outras ciências
primeiro momento, correspondiam ao ramo da humanas hoje em dia, fica implícito que o
física de forma mais afinada do que as ciências desinteresse não é exclusividade da psicaná-
econômicas. lise, mas aponta para o isolamento teórico da
Pode ser que a economia não tenha, inicial- economia contemporânea.
mente, servido tão bem às pretensões de Freud Atualmente, no entanto, praticamente
de dar aos conceitos fundamentais da psicanálise todos os ramos do que chamamos de “huma-
um caráter universal. No entanto, o desenvolvi- nidades” têm tomado, tanto a economia como
mento do novo campo do saber acabou recon- o pensamento econômico, como objetos de
duzindo a psicanálise aos alicerces econômicos. estudo. Isto lança ainda mais evidências de um
Conforme dito por Adrian Johnston (2022), “o certo isolamento epistemológico atravessando
inconsciente descoberto em “A Interpretação as elaborações teóricas dos economistas,
dos Sonhos”1 nada mais é do que o “incons- que permanecem intocadas pelo crescente
ciente capitalista”, ou seja, Freud reconhece “o interesse dos outros campos de saber aos
entrelaçamento da satisfação inconsciente com problemas específicos de seu campo. E, pa-
a estrutura e a lógica do modo de produção ca- ralelamente, nos aponta para a relevância que
pitalista,” como fica evidente no trecho: tal tipo de diálogo pode ter para o desenvolvi-
mento das ciências econômicas, em especial
“Do mesmo modo, as outras variações da economia política. Mas não apenas ela,
possíveis na situação econômica que tomei afinal, para além do seu aspecto mais prag-
como analogia também encontram paralelo mático, amparado de forma sui generis pela
nos processos oníricos. O próprio empresário autoridade dos números, mesmo a economia
pode fazer uma pequena contribuição para o “mais dura” ainda é uma ciência humana e
capital; diversos empresários podem recor- social. Só isso já seria indício da relevância em
rer ao mesmo capitalista; vários capitalistas (r)estabelecer um diálogo com outros campos
podem reunir-se para fornecer ao empresário de saber, porém, em acréscimo:
o que é preciso. Do mesmo modo, encontra-
mos sonhos que são sustentados por mais
de um desejo onírico; e o mesmo se dá com
outras variações semelhantes que poderiam
ser facilmente enumeradas.” (FREUD, 2015)

18 SUPEREU
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Lacan

inconsciente
“Pode-se advogar que é válido, com maior ou menor prejuízo, relegar a outras disciplinas as
questões relativas à ontogênese das instituições sociais, às capacidades prático-cognitivas
e ao processo de subjetivação das pessoas; encerrar essas concepções em arquétipos e
agentes representativos convenientes e, sobre eles, construir o pensamento econômico
– esse recurso, inclusive, é especialmente considerável quando a intenção é manter um
determinado “rigor científico” na base da elaboração teórica. Entrementes, a aproxima-
ção entre a economia e outras disciplinas (como a filosofia, a psicologia, a sociologia, a
antropologia, a história, o direito etc.) significa, no mínimo, um ganho de relevância, além
de achegar o pensamento econômico das fronteiras de desenvolvimento intelectual das
demais humanidades”. (LEÃO & CARVALHO, 2008)

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Óbvio que uma abordagem matemática como alicerce si mesma. E quando tem conseguido esse nível de crítica,
fundamental de uma determinada ciência jamais deveria, ela se dá no plano do próprio paradigma de garantia de
por si, representar algum tipo de constrangimento. Ao desenvolvimento permanente do modelo de produção
contrário, mesmo os saberes considerados como “o núcleo capitalista; este, inquestionável.
duro” das ciências humanas, no caso, a história e a sociolo- Em outros termos, tanto as críticas aos modelos
gia, têm se beneficiado das abordagens quantitativas, e se concorrentes quanto as soluções encontradas para as
preocupado em fundamentar seus métodos estatísticos. eventuais crises do capital que se apresentam na história
Por que, então, a economia tem sido tão questionada? Teria se alicerçam em bases que, tipicamente, não são alvos
a ver com seu referencial matemático dedutivo? dos mais profundos debates. Sua posição hegemônica
Talvez a maior dificuldade da economia contemporâ- o isola das outras ciências irmãs, mas também das suas
nea seja ter se dedicado de tal maneira a sua função mais próprias áreas, dentro das próprias ciências econômicas:
pragmática (ou utilitarista), que não conseguiu, ao contrário os historiadores econômicos e os economistas políticos
de outros campos de saber, se voltar criticamente sobre também sofrem do “bloqueio”, ao procurar debater com

por que a economia tem sido tao questionada?

20 SUPEREU
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

a economia mainstream. Em suma, o debate isso, hegemônico. Ele se integra à dinâmica do


tem ocorrido, só tem tido dificuldades para poder e faz isso sob alegação de imparcialidade
transpor as barreiras que blindam a economia. científica, ao mesmo tempo em que sua posição
Observando as distinções entre a econo- diferenciada é mantida à custa de se ver reduzido
mia e outras ciências humanas, encontramos à função de tecnologia.
alguns possíveis nortes para a questão. Da
mesma forma que a história, a economia tem UM ROMBO NO MURO: O VALOR SUBJETIVO DOS
impossibilidades epistemológicas de abordar NÚMEROS
experimentalmente seu objeto, o que, em Critérios de valoração são tipicamente alçados
último grau, dificulta a viabilidade de se co- ao patamar de variáveis precisas e quantificáveis:
locar como uma ciência preditiva, pretensão “(…) valor, troca, distribuição, necessidades e
a muito abandonada pela historiografia. No desejos, consumo, trabalho, decisão, futuro,
que diz respeito à sociologia, a questão fica moeda… Todos esses elementos (…) passam
ainda mais complexa, pois as tensões entre por concepções ontológicas de processos de
as abordagens qualitativas e quantitativas significação individual e social” (OLIVEIRA, 2008).
ocorreram simultaneamente a outras tensões, Cada uma destas noções tem, nos mais diversos
na medida em que o campo sofria os impac- campos de saber, suas capacidades de quanti-
tos do deslocamento de seu olhar para as ficação questionadas, diante do intenso grau de
periferias do sistema. Ao menos no contexto subjetividade que atravessa cada uma. Em outros
latino-americano, a sociologia crítica acabou termos, os conceitos que sustentam os números
se tornando hegemônica, e as metodologias das ciências econômicas são antes fundamenta-
quantitativas, antes associadas a abordagens dos por valores subjetivos.
de forte teor positivista, foram sendo adapta- A dificuldade em assumir os fundamentos
das ao novo contexto. valorativos e conjunturais do seu campo de saber,
Em resumo, a maior distinção entre os ao transpô-los para o universo das variáveis eco-
saberes ocorre mais por conta dos atraves- nômicas, fica evidente na definição que tem sido
samentos da sua funcionalidade política e dada aos estudantes de economia, de cátedra, do
aplicabilidade para a manutenção da raciona- que seriam, enfim, as ciências econômicas:
lidade capitalista. A economia poderia, assim,
pairar sobre outros campos, na medida em “Como se sabe, a definição dominante de eco-
que abdica de uma perspectiva crítica para as- nomia é a de uma ciência de maximização das
sumir a função de garantir o desenvolvimento utilidades de uma dada população, dada uma
da máquina. De forma mais afinada, o ramo dotação de recursos escassa, pelo menos para
mais utilitarista, e que tem se prestado melhor que todas as utilidades possam ser atendidas.
à sustentação do status quo, tem sido, por Com um método matemático pelo qual são
determinados, ao mesmo tempo, o consumo,
a produção, a distribuição de rendimentos,
essa ciência é basicamente calcada no cálculo
diferencial e integral a partir de algumas cons-
tantes, como o tamanho da população, seus
gostos, a distribuição de recursos e a tecnolo-
gia. Dessa forma, chega-se a um resultado ló-
gico que depende dessas constantes e, nesse
sentido, o método é estático. Os resultados só
mudarão se os parâmetros utilizados muda-
rem; daí se ter uma transição de uma posição
estática para outra, e o método recebe com
propriedade o nome de estática comparativa.”
(LEÃO & CARVALHO, 2008)

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

o lugar de onde a psicanalise


Como evidência do descompasso da economia hege- De fato, é perceptível a importância do debate
mônica e os outros ramos das ciências econômicas, os ético para os primeiros liberais. Mesmo depois que
historiadores econômicos se alarmam diante da consta- a sustentação das primeiras teorias se deslocou das
tação de que as definições dadas a sua própria ciência, justificativas teológicas para bases lógicas e racionais,
e ainda mais preocupante, aos futuros economistas. Ou de tempos em tempos ressurge o apelo as conclu-
seja, as bases epistemológicas sobre as quais a economia sões éticas dos “pais do liberalismo” (SMITH, 1996).
se assenta, são não apenas idealistas como a-históricas: Alguns contemporâneos vão lamentar, inclusive, o
distanciamento entre o liberalismo ético dos primórdios
“Essa definição de economia é anti-histórica porque e sua metamorfose num liberalismo exclusivamente
não se leva em conta o que motivou os parâmetros a econômico. A mutação pela qual passou o pensamento
serem o que são. (…) Também não há uma explicação – “de ideologia à metaideologia” – seria um indicativo
para as mudanças entre uma posição estática e outra de um empobrecimento teórico e político. “Reduzido
pela própria forma como são construídas as equações. a se apresentar como o apogeu do processo histórico,
Mais importante: não há, aí, a noção de concorrência em tentativa desesperada de conter as forças sociais
entre as empresas e, por outro lado, o rendimento na que o ameaçam.” (BELLAMY, 1992)
margem de cada fator de produção; (…) de forma que Mesmo que, em tese, a transição para uma matriz
a teoria tem, em si, uma noção de justiça distributiva, estritamente econômica, tenha pretensamente “liber-
independentemente de não explicar a distribuição tado” as teorias econômicas das formulações éticas,
original de recursos.” (Ibid.) quando uma determinada doutrina ou pensamento é,
atualmente, pensada, debatida ou implementada, nor-
E, mesmo em seu isolamento, as diferentes correntes malmente é ancorada em um pressuposto psicológico
de pensamento econômico não têm se furtado em apon- acerca do ser humano. Isso sem contar com princípios
tar definições e direções, explícita ou implicitamente, de puramente morais, como, por exemplo, a noção de
forma reducionista ou sistemática, para os valores sociais bem, de satisfação e, por que não acrescentar?, de
e para os comportamentos individuais. Os economistas valor e de necessidade.
nunca se furtaram, a partir das suas próprias concepções
sobre o ser humano, em definir os valores sociais que A NEUROSE É CAPITALISTA?
determinam essas condutas. A partir daqui, podemos finalmente mensurar as
contribuições que o olhar da psicanálise pode dar para
“Lembre-se do ditado: O bom pagador é dono da a análise do econômico. Como campo de saber, car-
bolsa alheia. Aquele que é conhecido por pagar exata rega, tanto em sua metodologia clínica como em seu
e pontualmente na data prometida pode, a qualquer direcionamento epistemológico – ao mesmo tempo
momento e em qualquer ocasião, levantar todo o em diálogo e em desenvolvimento paralelo, com as
dinheiro de que seus amigos possam dispor. (...) ciências tradicionais – uma forma distinta de abordar
Além da industriosidade e da frugalidade, nada con- as questões acerca do social e da cultura: seu olhar
tribui mais para a subida de um jovem na vida que a sobre a subjetividade humana é essencialmente não
pontualidade e a justiça em todos os seus negócios; utilitarista e não naturalista.
por isso, nunca mantenha dinheiro emprestado, uma Em conclusão, o lugar de onde a psicanálise parte
hora sequer além do tempo prometido, para que o é diametralmente distinto do lugar de que parte a
desapontamento não feche para sempre, à bolsa economia mainstream. A importância subjetiva das
de teus amigos.” (FRANKLIN, Apud. WEBER, 1999) relações que o sujeito do inconsciente estabelece com

22 SUPEREU
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parte e distinto do lugar

que parte a economia mainstream


o outro, com os objetos, com a cultura, transcen- passar a usar da sua própria razão a fundadora
de as tentativas de reduzi-las a qualquer forma de do espírito racionalista moderno. Não é difícil
determinação. perceber o porquê: é na obediência às hierar-
A economia liberal, entretanto, tem se ali- quias sociais em que se fundamenta o ethos do
cerçado, desde seus primórdios, sob a alegação antigo regime, e por isso, o individualismo não
de uma pretensa racionalidade que garante as apenas representa a possibilidade de igualdade
motivações individuais. É por meio do exercício política como constitui evidência da própria irra-
da liberdade para perseguir suas ambições, que cionalidade do sistema que se pretende superar.
os indivíduos, coletivamente, produziriam o “bem
comum”; como um efeito obrigatório de seu pró- “Que, porém, um público se esclareça a si
prio desenvolvimento. A psicanálise, entretanto, mesmo é perfeitamente possível; mais que
ousou questionar esse alicerce de racionalidade e isso, se lhe for dada a liberdade, é quase ine-
propor – para além das alegorias da consciência de vitável. Pois, encontrar-se-ão sempre alguns
si, de autorresponsabilidade e de discernimento indivíduos capazes de pensamento próprio,
racional – que a emergência do inconsciente, em até entre os tutores estabelecidos da grande
uma dialética do gozo e do desejo, determina a massa, que, depois de terem sacudido de si
atuação dos atores sociais. mesmos o jugo da menoridade, espalharão em
redor de si o espírito de uma avaliação racional
“Qualquer espécie de personalismo em do próprio valor e da vocação de cada homem
psicanálise é propício a todas as confusões e em pensar por si mesmo.” (KANT, 1990)
desvios. Aquilo que se marca como sendo a
pessoa em outros registros, ditos morais, não O trecho destacado evidencia como, para
pode ser situado em outro nível, na perspecti- Kant, o individualismo está intimamente relacio-
va psicanalítica, senão o do sintoma. A pessoa nado com os ideais burgueses de liberdade e
começa ali onde o sujeito está ancorado de de igualdade, na qual a “fraternidade” adquire
maneira diferente da que lhes defini, ali onde contornos concorrenciais. A lógica da concorrên-
ele se situa de maneira muito mais ampla, cia da “fraternidade kantiana” já esboça o que
aquela que faz entrar em jogo o que sem Adam Smith (1996) chamará de “mão invisível do
dúvida se situa na origem do sujeito, isto é, o mercado”: o pensamento racional e autônomo,
gozo.” (LACAN, 2008) mesmo que de alguns poucos indivíduos, acabaria
por produzir, naturalmente, a disseminação do
Não foi, no entanto, um liberal quem me- “próprio valor e da vocação de cada homem em
lhor teorizou sobre a primazia do indivíduo, pensar por si mesmo.” Em uma espécie de “efei-
que se constituiria no principal fundamento de to dominó” em que a razão e o “bem comum”
praticamente todas as ciências econômicas se encontrariam entre as peças.
subjacentes, colocado em xeque pelas noções
de inconsciente, por Freud, e de sujeito, por
Lacan. Em sua obra “Resposta à Pergunta: Que
é iluminismo?” (1990), Immanuel Kant eleva o
individualismo liberal à base filosófica da razão.
Para o filósofo, é a possibilidade de o indivíduo

SETEMBRO 2022 23
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

“A existência do indivíduo e de sua liberdade de decisão Ou seja: não era em algum mundo idealizado em que
é um dos pressupostos fundamentais da esfera de imperaria a razão, e que o bem social poderia ser alcançado,
saber que conhecemos por ciência econômica. Desde mas uma outra idealização, em que cada um poderia ter a
seus primórdios, nas considerações de A. Smith, até os liberdade de exercer suas próprias ambições. Isto porque o
atuais e sofisticados modelos de inspiração neoclássica, indivíduo liberal é, por definição, “o ser moral independente,
o indivíduo se coloca como peça fundamental. Sem ele autônomo e, por conseguinte, essencialmente não social,
nem propensão à troca, nem preço de mercado girando portador dos nossos valores supremos, e que se encontra
em torno de preço natural, nem maximização sujeita a em primeiro lugar em nossa ideologia moderna do homem
restrições, nem preferências reveladas, nem propensão e da sociedade.” (DUMONT, 1985)
a consumir e a poupar, nem decisões de investimento, Não é difícil, por conta do alicerce subjetivo, e dos
nem demanda efetiva como ponto de oferta, nem an- aspectos idealistas que sustentam a racionalidade libe-
tecipação racional de medidas de política econômica, ral, entender a total falta de consenso, inclusive entre
nem progresso tecnológico, nem concorrência, nem economistas e historiadores econômicos, no que diz
crises... nem mercado.” (PAULANI, 2005) respeito a quais características o próprio capitalismo teria
de essencial. A crença em “uma continuidade histórica,
Mesmo entre aqueles que seguiam uma linha menos na qual os mesmos princípios gerais são suficientes
idealista, e por isso não elaboravam seus pensamentos a para compreender todos os ordenamentos econômicos”
partir da ideia de razão individual, acabavam rumando em (BELLAMY, 1992) chega ao cúmulo de que alguns econo-
direção a ideia de uma estrutura racional externa aos indiví- mistas liberais sequer sustentam a utilidade de se definir
duos, como a “mão invisível” de Smith, que conduziria ao sistemas econômicos diferentes, mesmo diante de con-
bem comum na medida em que os indivíduos fossem livres junturas históricas distintas. O único aparente consenso
para o exercício das suas paixões (HIRSCHMAN, 1979). reside na constatação da diferença entre o capitalismo e

24 SUPEREU
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Por quase
200 anos
o liberalismo
reinou incolume

os sistemas econômicos anteriores a ele. A única ruptura pelas relações do sujeito, do seu rol de identificações,
revolucionária foi a que fundou o próprio capitalismo como com os outros e com as instituições e, sobretudo, com
sistema econômico universal. o outro dos valores culturais e históricos que marcam a
Em termos gerais, podemos demarcar como carac- linguagem.
terística das ciências econômicas liberais mais ortodoxas Ou seja: até em sua concepção de patologia, a psica-
a tendência em negar as rupturas e defender a ideia de nálise demonstra uma perspectiva desnaturalizante, ao
continuidade. Quer entre os economistas mais tradicionais, retirar as neuroses, para as quais o método de tratamento
quer entre historiadores da economia mais submetidos fora criado, de uma perspectiva inicialmente orgânica e
ao pensamento hegemônico, a pretensão da economia depois individual, para uma ideia de evento traumático
enquanto ciência se estrutura sob a lógica de buscar uma essencialmente atravessado pelo social e, porém, mobili-
melhor alocação de recursos para a reprodução e incremen- zado por forças que transcendem a noção de consciência
to da riqueza. Ou seja: se alicerçam em uma certa episte- ou de razão.
mologia do equilíbrio, na qual os incrementos ou ajustes
das políticas econômicas ou buscam minimizar impactos, “É somente na medida do fora de sentido dos di-
prevenindo perdas, ou incrementar as possibilidades de tos – e não do sentido, como se costuma imaginar
aumento da riqueza. e como supõe toda a fenomenologia – que existo
Em oposto, a própria criação da psicanálise, no início do como pensamento. Meu pensamento não é regulável,
século XX, representou uma ambivalência que demarcaria acrescentemos ou não o infelizmente. Ele é regulado.
praticamente toda sua história. Ao mesmo tempo em que Em meu ato, não almejo exprimi-lo, mas causá-lo. (…)
seu modelo clínico, de caráter personalíssimo, foi alçado No entressenso – entendam isso, por mais obsceno
a paradigma de tratamento mental, promoveu a ideia de que possam imaginá-lo – está o ser do pensamento.”
que o sofrimento psíquico está intimamente atravessado (LACAN, 2008)

SETEMBRO 2022 25
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

a nocao de liberdade
o termo liberalismo suscita

É digno de nota, por isso, que por quase as consequências psíquicas dessa tão profunda
200 anos o liberalismo tenha reinado incólume introjeção dos valores liberais?
de tal forma que tenha passado a se confundir Não apenas o termo liberalismo suscita a
com a própria ideia de civilização. Seus valores noção de liberdade, como foi ela que inspirou
se tornaram tão profundamente internalizados seus primeiros teóricos: desde sua fundação,
que, ainda hoje, em um país periférico, mesmo seus defensores têm buscado evitar que ele
depois das duas grandes guerras, da Guerra seja compreendido como um certo pensamento,
Fria e do neocolonialismo, experienciamos doutrina ou ideologia sobre o capitalismo, para
a desconfortável sensação de que: “Dos transformar-se na própria natureza do sistema.
conservadores da nova direita aos socialistas Associando a si mesmo com a noção quintes-
democráticos, parece que agora somos todos sencial de liberdade e confundindo-se com as
liberais.” (BELLAMY, 1992) próprias ciências econômicas. Eis o que tem de
No entanto, no contexto europeu, já na virada mais doutrinário no que chamamos de doutrina
do século XIX para o XX o ethos liberal estava econômica:
de tal forma introjetado que “tem seus alicerces
confundidos com a própria formação do espírito “Tem sido este o longo processo histórico
da moderna Europa” (FIGUEIREDO, 2009). que levou o indivíduo a se sentir livre, a ter
Dentre os valores defendidos, havia a noção de plena consciência de si e de seu valor e a
que aquele tempo e aquele local representavam querer instaurar plenamente o regnum homi-
o auge da civilização e, portanto, seria sua mis- nis sobre a terra. As origens do Liberalismo
são incrementar seus fundamentos e espalhar coincidem, assim, com a própria formação
a “boa nova” por todo o mundo incivilizado. da “civilização moderna” (europeia), que se
Ideia que tem servido como legitimação moral constitui na vitória do imanentismo sobre o
para as políticas coloniais e, posteriormente, transcendentalismo, a liberdade sobre a reve-
imperialistas. lação, da razão sobre a autoridade, da ciência
A civilização, enfim, era um produto racional sobre o mito.” (BOBBIO et al., 2007, p. 695)
de um tempo longo de criação dos apetrechos
culturais capazes de ir cristalizando na história o De início, a solução encontrada foi alçar o
que se entendia já consolidado como “A Civi- termo a uma lógica transcendente: tomaram
lização”. Não são poucas as ocasiões em que a existência de uma liberdade superior e que
o capital manifesta com clareza sua natureza daria origem a todas as outras. E, apesar das
prosélita. divergências sobre a exata interpretação do
termo, era certo consenso a maximização de
O “SUPEREU” FREUDIANO E O liberdades coexistentes para todos os indivíduos
INCONSCIENTE MERCANTIL que compõem a sociedade. “O problema desta
É justamente aqui que a psicanálise freu- doutrina é o critério normativo e prático de como
diana mais pôde contribuir, ainda em seu início, decidir entre diferentes conjuntos de Liberdades
para uma análise crítica apurada do liberalismo. conflitantes, para atingir a maior Liberdade possí-
A noção psicanalítica de “supereu” é funda- vel dentro de um equilíbrio.” (BELLAMY, 1992).
mental para que possamos compreender em Não é preciso dizer que, mais uma vez, qualquer
que medida até mesmo as estruturas incons- avaliação sobre quais liberdade seriam “maio-
cientes podem ser “capitalistas”. Quais seriam res” do que outras é obrigatoriamente subjetiva.

26 SUPEREU
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O interessante, nesse casamento entre as noções de Em outras palavras, ele nos aponta para um agravamen-
civilização e de expansão da economia capitalista, é que to dos males da civilização, numa espécie de darwinismo
Freud, apesar de nunca ter se referido especificamente ao social às avessas, em que, como preço pelos incrementos
liberalismo, nem ter se proposto a uma análise crítica do culturais, científicos e tecnológicos, que tornaram a Europa
sistema de produção capitalista, vai se dedicar, em suas o centro e a referência do mundo civilizado, ápice do desen-
obras de “psicanálise social”, ao que chama de civilização. volvimento humano, tivéssemos ganhado, psiquicamente,
E somente em um pequeno recorte podemos perceber os a neurose, em sua mais grave e patológica manifestação,
valores liberais que aqui apontamos: e politicamente, o fascismo (FARO, 2021). Ideia que será
retomada em "Mal Estar na Civilização":
“Mas das grandes nações da raça branca, dominado-
ras do mundo, às quais coube a direção da humanida- “Se a cultura impõe tais sacrifícios não apenas à se-
de, que se sabia estarem ocupadas com os interesses xualidade, mas também ao pendor agressivo do homem,
mundiais, e cujas criações são os progressos técnicos compreendemos melhor por que para ele é difícil ser feliz
no domínio da natureza e os valores culturais, artís- nela. De fato, o homem primitivo estava em situação me-
ticos e científicos; destes povos esperava-se que lhor, pois não conhecia restrições ao instinto. Em compen-
saberiam resolver de outro modo as suas discórdias sação, era mínima a segurança de desfrutar essa felicidade
e os seus conflitos de interesses. Dentro de cada por muito tempo. O homem civilizado trocou um tanto de
uma dessas nações tinham-se prescrito ao indivíduo felicidade por um tanto de segurança.” (FREUD, 1974)
elevadas normas morais, às quais devia ajustar a sua
conduta, se pretendesse participar na comunidade Freud se preocupou, sobretudo, com o retorno das
cultural. (...) O Estado civilizado considerava estas pulsões mais violentas do ser humano, agravadas pela
normas morais como o fundamento da sua existência, pressão decorrente das repressões internalizadas. Para
saía abertamente em sua defesa se alguém ousava ele, uma censura tão violentamente “canibalizada” cor-
infringi-las e, inclusive, declarava como impraticável responderia a uma “panela de pressão”, que conduziria,
a sua sujeição ao exame do entendimento crítico.” obrigatoriamente, ou à revolução ou a soluções autoritárias.
(FREUD, 1915) Apesar de Freud ter, em mais de uma ocasião, rechaçado
a proposta de reação aos ditames da civilização sob a
O tom irônico do texto toma um sentido claro, na me- forma de uma revolução, o tema acabou reaproximando
dida em que o problema da “liberdade” adquire contornos o pai da psicanálise da ciência econômica. Porém, foi sob
históricos dramáticos. Aqui, o que vemos é a cristalização uma perspectiva considerada não apenas herética, mas
do impacto subjetivo causado em Freud pelos horrores da antagônica à economia mainstream, ou seja, o materialismo
Primeira Grande Guerra. Ao mesmo tempo em que, alar- de Karl Marx:
mado com a ascensão do discurso antissemita e de uma
forma reacionária e violenta de ser no mundo, demonstra “A força do marxismo está, evidentemente, não em sua
(profeticamente) sinais de preocupação diante desses visão da história, ou nas profecias do futuro baseadas
elementos, que mais tarde se fundirão, sob a forma do nela, mas sim na arguta indicação da influência decisiva
fascismo e do nazismo. que as circunstâncias econômicas dos homens têm
A percepção afinada, que subjaz o recurso à ironia de sobre as suas atitudes intelectuais, éticas e artísticas.
Freud, é que, entre os povos ditos “mais civilizados”, as Com isso foram descobertas numerosas correlações
repressões e inibições psíquicas, típicas das neuroses de e implicações, que anteriormente haviam sido quase
seu tempo, se tornavam cada vez mais internalizadas. totalmente negligenciadas.” (FREUD, 1996c)
Na medida em que “as amarras da culpa eram mais
apertadas”, as formas de coerção demandariam menos Ao avaliar o pensamento econômico de Marx, Freud
violência. Porém, os sintomas eram mais individualizados não sustenta a ideia de que “os motivos econômicos
e potencializados e, por consequência, mais patológicos. sejam os únicos que determinam o comportamento dos
A violência coerciva, que se tornara desnecessária pela seres humanos em sociedade.” (Ibid.) Porém, reconhece a
introjeção psíquica das regulações morais, é também importância da descoberta marxista, do quanto as relações
internalizada e se torna coerção interna. É o que Freud vai econômicas influem sobre aspectos tão aparentemente
conceituar como o “supereu”. distintos delas, a culminar na própria constituição dos

SETEMBRO 2022 27
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

valores subjetivos num determinado contexto histórico. interesses do sujeito. É o que Marx chama, na ocasião, de
Ou seja: mesmo que Freud não veja na teoria materialista economia.” Tanto para Marx como para Freud, a economia
algo digno de nota, o tratamento que Marx dá à economia só pode ser compreendida como uma desarmonia, um
é similar ao que Freud dá ao inconsciente: algo que escapa desajuste, um desencontro, pois é aí onde ela e o sujeito
tanto à consciência como ao controle das pessoas, e que, se assentam.
no entanto, tem tanta força que assume lugar de determi- Como tal, é fonte inexorável de sofrimento, não de
nação sobre a existência delas. Liberdade? Marx, Freud e bem-estar, de equilíbrio ou harmonia social, como sus-
Lacan responderiam em uníssono: não existe essa coisa tentado pela racionalidade liberal. O “qua plus-de-jouir”2
chamada liberdade. de Lacan, em particular, mostrou que o capitalismo não
Anos mais tarde, Lacan vai provocativamente alegar, a se organiza para trazer contentamento, realização, grati-
partir da mesma lógica, que foi Marx, e não Freud, o inven- ficação, satisfação ou algo semelhante, mesmo para os
tor do sintoma analítico: “o que a psicanálise nos permite próprios capitalistas”. (JOHNSTON, 2022) A própria ideia
conceber não é nada senão isto, que está sobre a via que de economia, para ambos, só pode ser entendida como
o marxismo abria, a saber, que o discurso é ligado aos “uma conta que não fecha”.

nao existe essa coisa chamada liberdade

28 SUPEREU
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

UM APETITE IRREFREÁVEL E INSACIÁVEL tido anterior do próprio dinheiro. Da mesma forma


Podemos dizer, analogicamente, que o indi- como o conceito de Marx é a variável fundamental
víduo autônomo, autocentrado, responsável e para a compreensão de porque “a conta não fecha”,
racional, como categoria conceitual, correspon- colocando em evidência a própria irracionalidade
de, sem grandes dificuldades, à demanda de do capital, o dinheiro deixa de ser uma forma de
estabilidade que o status quo exige das ciências adquirir os objetos para suprir as necessidades, e
econômicas. A descoberta do inconsciente, no se torna um fim em si mesmo, sempre a demandar
entanto, significou a desconfortável constatação por mais-valor:
de que o que funda o sujeito é oposto ao que
sustenta o indivíduo liberal. Estruturalmente “Aquele que perde cinco shillings, não perde ape-
dividido e essencialmente irracional, mesmo nas essa soma, mas também todas as vantagens
em suas motivações conscientes alegadamente que poderia obter investindo-a em negócios, e
amparadas na lógica, na justiça ou na razão. que durante o tempo em que um jovem se torna
um velho, se tornaria uma soma considerável.”
“Uma regra de pensamento que tem de se (WEBER, [1904/5]2007, grifo nosso)
assegurar do não pensamento como aquilo “Quando Jacob Fugger, falando com um sócio
que pode ser sua causa: é com isso que de negócios que havia se aposentado e que
nós nos confrontamos ao usar a ideia de tentava convencê-lo a fazer o mesmo, uma
inconsciente.” (LACAN, 2008) vez que já havia acumulado dinheiro suficiente
e que poderia deixar a chance para outros,
Tal como sugerido por Marx, o sujeito não rejeitou a ideia como pusilânime e respondeu
se funda na evolução histórica da consciência, que ‘ele (Fugger) pensava diferente e procurava
como propunha Hegel, mas no tensionamento ganhar dinheiro enquanto pudesse’.” (WEBER,
estrutural promovido pela alienação diante da [1904/5]2007)
situação concreta que determina sua própria
miséria, e que move a história, opondo as A irracionalidade estrutural dos argumentos dos
classes umas contra as outras. No capitalismo, recortes acima não passa desapercebida: a máxima
toda essa disrupção, que desde o surgimento sutil “sem causar grandes inconvenientes” acaba
da linguagem e da cultura já vinha marcando a dando lugar à força imperiosa da restrição ao usu-
história do sujeito, adquire contornos trágicos. fruto da própria riqueza, “durante o tempo em que
Pois o trabalho, que não é uma invenção capi- um jovem se torna um velho, se tornaria uma soma
talista, e que, por óbvio, sempre representou considerável”. Qual seria o motivo de não usufruir
uma questão para o ser humano, em outros da quantia enquanto jovem para que ela seja uma
momentos da história, nunca antes pôde ser “grande quantia” somente na velhice?
relegado ao status de mercadoria: Lacan (2008) nos aponta para uma possível
resposta: “Desde o momento em que o mercado
“Não se trata de o trabalho ser novo, mas de define como mercadoria um objeto qualquer do
ele ser comprado, de haver um mercado de trabalho humano, esse objeto carrega em si algo
trabalho. É isso que permite a Marx demons- da mais-valia”. Não é difícil perceber a relação que
trar o que há de inaugural em seu discurso, Lacan estabelece entre o conceito marxista e a
e que se chama mais-valia.” (Lacan, 2008) psicanálise. Para ele, a relação que existe entre
o mais-valor e o objeto mais-de-gozar, que Lacan
É a mais-valia (MARX, 1988) que vai dar entende como sua maior contribuição para a psica-
nova significação, a partir de Lacan, da relação nálise, também chamado de “objeto a”, não é uma
possível entre a psicanálise e a economia. Na analogia, como Freud tomou inicialmente pois “(…)
medida em que dinheiro se torna mercadoria, as referências e configurações econômicas são
que se torna mais dinheiro, ao mesmo tempo, mais propícias [agora] do que as que se ofereceram
ela funda a lógica do capital, que é a da transfor- a Freud (…). Mas, sim, uma homologia, ou seja:
mação de valor em mais-valor, e subverte o sen- “Trata-se, com efeito, da mesma coisa”.

SETEMBRO 2022 29
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

“Recorrerei a Marx, cujo dito tive muita dificuldade de repetição. Assim, nada é identificável dessa alguma
não introduzir mais cedo, importunado que sou por ele coisa que é o recurso ao gozo, ou seja, o traço que o
há muito tempo, num campo em que, no entanto, ele marca. Nada pode produzir-se aí sem que um objeto
fica perfeitamente em seu lugar. É de um nível homo- seja perdido.” (LACAN. 2008)
lógico calcado em Marx que partirei para introduzir hoje
o lugar em que temos de situar a função essencial do Dessa forma, se tomarmos a homologia proposta por
objeto a”. (Ibid.) Lacan e considerarmos que o mais-valor é semelhante a
esse gozo insaciável e mortífero, então, como consequên-
O argumento lacaniano é, sobretudo, lógico: o “objeto cia lógica, nos resta concluir que o capitalismo se estrutura
a” e a mais-valia, na medida em que oportunizam a fratura não no princípio do prazer, mas, sim, na lógica circular do
simbólica, fundam o sujeito. Dessa forma, o “objeto a” é mais-de-gozar. “(…) é só isso que faz o sistema funcionar…
justamente aquele que, por faltar, mobiliza o desejo. Há o mais-valor”. (LACAN, 1972).
algo que fica por não se incluir na estrutura simbólica, o que Tal qual as variáveis matemáticas das ciências econômi-
impede que a linguagem dê conta de definir a totalidade da cas, a mais-valia, enquanto excedente, é igualmente quantifi-
existência. “Algo que faz com que sigamos buscando seu cável e, como o gozo, potencialmente infinita. E se, de fato,
caminho – de deus, destino ou felicidade, – sem, contudo, é homóloga ao excedente de gozo, então a lógica capitalista
nunca encontrá-lo. Esse objeto de função lógica é o ‘objeto seria a mesma do gozo lacaniano, ou seja, uma busca ilusória
a’ ou mais-de-gozar.” (SILVA, 2015) Ao que não se deixa e permanente por uma satisfação impossível: “Não oferece
jamais ser dito pela linguagem, Lacan dá o nome de Real. nenhuma perspectiva de fim para a sua incompletude e
E o gozo é, de forma simplificada, a busca por suplementar insaciedade àqueles que perseguem esse excesso numérico
a impossibilidade de representar o real que a língua impõe sempre em expansão”. (SILVA, 2015) “Por isso o movimen-
sobre o sujeito: to do capital é insaciável” (MARX, 1988).
Apesar do gozo do capitalista não ser, sob qualquer
“(…) Lacan insiste que a lógica do comportamento pretexto, similar ao gozo do trabalhador, a insaciabilidade do
humano não pode ser totalmente explicada pela lógica mais-valor impõe a dinâmica do gozo a todos que estejam
utilitarista de maximização do prazer e afastamento do absorvidos pelo capital. Por isso, não obstante o capitalista
desprazer. Há atos cuja inteligibilidade exige a intro- gozar na condição de encarnação do capital, “portador
dução de um outro campo conceitual com sua lógica consciente desse movimento” (Ibid.), as imposições do
própria, um campo que desarticula distinções estritas mais-de-gozar lançam por terra a possibilidade de sustentar
entre prazer e desprazer por colocar o Eu sempre diante a velha imagem do capitalista hedonista, pleno de satis-
de certa dissolução de si que produz, ao mesmo tempo, fação e felicidades. Sem medida, só a insaciabilidade do
satisfação e terror. Indistinção entre satisfação e terror gozo, mesmo para o mais bem-sucedido self-made man.
que Lacan chama de ‘gozo’”. (SAFATLE, 2007)
“Não só os não capitalistas, não apenas os explorados
Só a partir da noção de que, em algum lugar, existe uma sob o capitalismo, não conseguem desfrutar dos exce-
possibilidade de gozo total, e que conduziria a uma espécie dentes deles extorquidos; não apenas os consumidores
de satisfação plena, que o sujeito tem possibilidade de do capitalismo são mantidos em um estado de desejo
buscar por satisfações substitutas, marcadas pela incom- constante formado por novos desejos sempre insatisfei-
pletude. O objeto não é uma incógnita, mas se remete a tos, de modo a mantê-los movendo-se incansavelmente
um “objet autre”, ou objeto outro (no sentido de “ainda ao longo da cadeia interminável de compra em compra,
não é este, é um outro”). Assim, é vivenciado pelo sujeito sem que nenhuma mercadoria comprada entregue a
como uma perda, e só por isso, pode se inserir na ordem satisfação anunciada. Mesmo os próprios capitalistas,
simbólica e no processo de socialização: incluindo-se os maiores, aqueles pertencentes à grande
burguesia, prostram-se e esgotam-se na busca inces-
“O sujeito, seja qual for a forma em que se produza em sante de um mais-valor cada vez maior (infinitamente
sua presença, não pode reunir-se em seu representante maior, em princípio).” (JOHNSTON, 2022)
de significante sem que se produza, na identidade, uma
perda, propriamente chamada de “objeto a”. É isso No entanto, o que se coloca na ordem de uma busca
que é designado pela teoria freudiana concernente à incessante pelo mais-valor, fica ainda mais grave quando

30 SUPEREU
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

incorporado à luta concreta pela satisfação das necessida- seu próprio sofrimento a sua incapacidade de consumir
des fundamentais. A tentativa de compreender uma rela- ainda mais. Contudo, mesmo uma eventual melhora nas
ção um pouco mais desalienada diante da gozo capitalista condições financeiras, que, via de regra, se mostra como
centrado no consumo de mercadorias, quando a busca é um aumento na capacidade de consumo, não aplaca a
pelas necessidades básicas, continua sendo um efeito da insatisfação e a ansiedade. (HUNT, 2005)
busca incessante do mais-de-gozar. O próprio sistema é Não importa se capitalista abastado ou trabalhador pau-
sustentado em uma busca descontente. perizado, o capitalismo nos torna a todos grandes glutões.
O atravessamento das ciências econômicas na formu- Quando estaremos, enfim, saciados?
lação do discurso capitalista, têm produzido, em escala
industrial, a crença de que toda e qualquer necessidade leandrofaro1@hotmail.com
ou demanda pode ser satisfeita pelo consumo. Na medi-
da em que é a lógica da concorrência, é mantenedora do
NOTAS DE RODAPÉ
consumo permanente, torna-se lógico que o sujeito passe
a considerar-se, também, permanentemente consumido, 1. Publicada em 1900, e considerada pelos psicanalistas como a obra fundadora
da psicanálise.
sob a forma do aumento global de patologias mentais.
Porém, de tal forma alienado, que toma como causa de 2. Mais-de-gozar.

BIBLIOGRAFIA

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SETEMBRO 2022 31
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

R
VE DADES,
CONTRADIÇÕES
E MITOS

32 TRÉPLICA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

NO “MONÓLOGO”
DE SAMUEL PESSÔA
Na edição 97 de Insight Inteligência foi publicado um artigo
José Luis Oreiro de Samuel Pessôa – intitulado “Monólogo com a faca entre os
Economista dentes” – fazendo uma crítica aos escritos de André Lara Re-
zende (doravante ALR) nos últimos anos. Pessôa faz dois tipos
de crítica a ALR. A primeira é de que as divergências que ALR
Luiz Fernando de Paula apresenta com respeito à teoria convencional já foram total-
Economista mente absorvidas pela “fronteira do conhecimento” da “teoria
convencional”. A segunda crítica é de que o entendimento de
ALR à determinação da taxa de juros real não só é incompatível
com a teoria tradicional, como é essencialmente equivocado. No
referido artigo, o professor faz um percurso inusitado: começa
elaborando uma razoável descrição da teoria pós-keynesiana,
do qual parece aceitar algumas ideias, para em seguida propor
uma síntese com a teoria convencional e, finalmente, defender
a abordagem convencional da teoria monetária.
Não é nosso objetivo neste artigo defender as posições
de ALR. Não temos procuração ou interesse para fazê-lo. Pre-
tendemos com este artigo, para usar a expressão inglesa “set
the record straight” (deixar as coisas em pratos limpos, numa
tradução livre), a discussão econômica feita no Brasil – a qual

SETEMBRO 2022 33
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

mais é do que a forma pela qual o cientista, no caso em


questão o economista, enxerga como o mundo funciona.
Existem diversas visões de mundo. Samuel Pessôa se

O termo
encaixa, salvo melhor juízo, naquilo que podemos chamar
de “princípio do individualismo metodológico”, ou seja,
“teoria de modo que a economia deve ser analisada do ponto de
vista das escolhas racionais dos indivíduos e como essas
convencional” decisões são coordenadas (ou em certos casos não) por
é vago e carece intermédio do sistema de preços de mercado.
de sentido A partir dessa visão de mundo pode-se construir uma
série de teorias ou “modelos” para explicar esse ou aquele
aspecto do funcionamento do sistema econômico. Esse
conjunto de modelos e teorias elaborados a partir desse
princípio metodológico é denominado “Teoria Neoclássica”
no meio acadêmico de economia.
Atualmente, o estado da arte ou a fronteira do conhe-
cimento da “Teoria Neoclássica” consiste no modelo de
cai constantemente em problemas como generalizações equilíbrio geral estocástico dinâmico (DSGE) no qual se
indevidas – e a construção de caricaturas das posições assume a existência de um agente representativo de todas
divergentes em debate, com o objetivo de fazer o leitor as famílias que existem e existirão na economia até o dia
acreditar que na economia existe uma única forma correta do Juízo Final, e que esse agente representativo é um ser
do ponto de vista científico de abordar um determinado onisciente capaz de definir uma lista completa de eventos
problema (a qual Samuel Pessôa chama de “Teoria Con- futuros ou “estados da natureza” que possam afetar os
vencional”) e que abordagens alternativas seriam, portanto, resultados de suas escolhas racionais feitas de hoje até o
não científicas. armagedon.
Nesse contexto, procuraremos aqui esclarecer quais Essa é uma economia na qual a moeda não é essencial,
afirmações de Samuel Pessôa no seu monólogo são ou seja, não é necessária para o entendimento do processo
corretas, quais são as mistificações a respeito da “con- de tomada de decisões dos agentes, haja vista que (i) a
fiança racional” (para usar uma variante do termo “peso existência de mercados contingentes completos (a ideia
do argumento” criado por Keynes no seu “Tratado sobre implícita nesses modelos de que existe um preço cotado
probabilidade” publicado em 1919) que os economistas hoje para um guarda-chuva que será entregue em Brasília
têm sobre certas proposições e, por fim, mas não menos no Natal de 2568, se chover) elimina a existência de incer-
importante, checar quais afirmações feitas por Samuel teza e, portanto, a demanda de moeda como estratégia
Pessôa naquele artigo divergem de posições que esse defensiva, face ao contexto de tomada de decisões sob
autor apresenta em outras publicações na grande mídia. incerteza (no sentido não probabilístico); (ii) a adição da
Para iniciar nossa argumentação, é necessário definir, moeda a esse tipo de modelo é sempre feita de forma ad
previamente, o termo “Teoria Convencional”, algo que Pes- hoc, por intermédio de “atalhos”, de maneira que a sua
sôa não faz em seu artigo, dando a entender implicitamente presença ou não no modelo não afeta a natureza da posição
que seria um conceito autoevidente e que, portanto, carece final de equilíbrio do sistema econômico.
de explicações adicionais. Toda e qualquer ciência começa
necessariamente pela definição adequada de termos e con-
ceitos para que haja clareza sobre as questões que serão
analisadas a partir de um determinado arcabouço teórico.
O termo “teoria convencional” é vago e carece de
sentido. Uma teoria científica é construída, primeiramen-
te, a partir daquilo que o economista austríaco Joseph
Schumpeter chamava de “visão de mundo”, que nada

34 TRÉPLICA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Nessa classe de modelos, a taxa de juros não é o “preço da


moeda”, mas sim o “preço da espera”; ou seja, quanto que o
agente representativo precisa ser recompensado em termos de
aumento do consumo no futuro para desistir de consumir hoje.
Em outras palavras, a taxa de juros expressa o preço do consu-
mo futuro em termos do consumo presente, refletindo assim a
impaciência intertemporal do agente representativo, sendo um
fenômeno não monetário. Bancos centrais não podem determinar
a taxa real de juros da economia, a qual é uma relação de troca
entre bens hoje e bens amanhã, mas apenas a taxa de juros
nominal ou, na expressão de Kaldor (1939), “a taxa própria de
juros da moeda”, a qual é definida como o retorno da moeda em
termos se si mesma, constituindo-se assim na relação de troca
entre moeda hoje e moeda amanhã.
Os mercados financeiros permitem ao agente representativo
fazer operações de arbitragem entre a taxa de juros real e a taxa de
juros monetária, alocando seus recursos entre “aplicações reais”
ou “aplicações monetárias”, a depender da relação entre as taxas
em consideração. Em equilíbrio, deve ser igualmente vantajoso

conhecimento da “Teoria Neoclássica” consiste no


modelo de equilíbrio geral estocástico dinâmico
Atualmente, o estado da arte ou a fronteira do

SETEMBRO 2022 35
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

só não se apoia na teoria quantitativa da moeda, como


Samuel PESSÔA afirma que a teoria convencional não

também aceita a endogeneidade da oferta de moeda

para o indivíduo “aplicar” em bens ou moeda, ou seja, as um elemento externo ao modelo que “fixe” ou ancore as
taxas próprias de juros dos bens e da moeda devem ser expectativas de inflação. Esse elemento externo é a meta
iguais entre si, quando medidas na mesma unidade. Aqui inflacionária que a autoridade monetária deve buscar atingir.
entra a “identidade de Fisher”. A taxa de juros da moeda Se a meta inflacionária for crível, então a taxa própria
medida em termos de bens será igual a taxa de juros própria de juros da moeda será igual a diferença entre a taxa real
da moeda menos a taxa esperada de desvalorização da de juros e a meta de inflação. Isso posto, no modelo neo-
moeda frente aos bens (que é a taxa esperada de inflação). clássico da fronteira do conhecimento, o Banco Central não
A taxa própria de juros dos bens – a taxa real de juros – é tem liberdade para fixar a taxa de juros em qualquer nível,
determinada, como vimos, pelas preferências intertempo- embora tenha as condições técnicas de fazê-lo, porque
rais do Agente Representativo. A taxa de juros da moeda está restrito pela obrigação institucional de obter a meta
em termos de bens será igual a diferença entre a taxa inflacionária. Quanto maior for a meta inflacionária maior
própria de juros da moeda em termos de si mesma menos terá que ser, ceteris paribus, a taxa própria de juros da
a taxa esperada de inflação. O Banco Central pode fixar a moeda para garantir a igualdade entre as taxas de retorno
taxa própria de juros da moeda no nível que desejar, mas das aplicações em bens e moeda.1
não pode alterar a taxa real de juros. Nesse contexto, a taxa Uma vez apresentada o que entendemos por “teoria
nominal de juros estará indeterminada, a não ser que exista convencional” passemos a análise dos argumentos de

36 TRÉPLICA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Pessôa. Ele afirma que a teoria convencional não só não


se apoia na teoria quantitativa da moeda, como também
aceita a endogeneidade da oferta de moeda. Essas afir-
mações são corretas. De fato, a teoria neoclássica no seu o
atual estado da arte admite a endogeneidade da oferta
de moeda (Woodford, 2003) e, ao fazê-lo, rejeita a teoria
governo
quantitativa da moeda, que se apoia explicitamente na nunca irá se
hipótese de moeda exógena. Pessôa também afirma que defrontar com
a teoria convencional aceita a tese cara a assim chamada uma restrição
Teoria Monetária Moderna de que o governo não possui financeira aos
uma restrição financeira.
seus gastos
Essa afirmação precisa ser contextualizada. Quando
o governo é introduzido nos modelos DSGE é definida a
assim chamada restrição orçamentária intertemporal do go-
verno, que estabelece que o fluxo de superávits primários
obtidos pelo governo de hoje até uma determinada data
futura, quando trazido para valor presente, tem que ser igual
ou maior do que o valor real da dívida pública hoje. Essa é
uma restrição de recursos reais, que impede o governo de
comprar bens e serviços de forma ilimitada, deixando uma
dívida positiva para o dia do armagedon. Em outras palavras,
a restrição orçamentária do governo estabelece que a dívida
do governo, em termos da capacidade de compra de bens
e serviços, não pode crescer para sempre. conflito entre a autoridade monetária e a autoridade fiscal,
Essa é uma restrição de natureza intertemporal, de quem prevalece é a autoridade fiscal, ou seja, a meta de
maneira que é per se compatível com a existência de inflação será ajustada para o nível necessário, no atendi-
déficits primários por um período indefinidamente longo mento da restrição orçamentária intertemporal do governo.
de tempo, desde que não seja infinito. Isso é o que a literatura neoclássica chama de dominância
Mas o que acontece se o agente representativo for um fiscal. Sendo assim, o governo nunca irá se defrontar com
político populista com tendências autoritárias que deseja uma restrição financeira aos seus gastos, e muito menos
se perpetuar no poder por intermédio da distribuição de declarar default sobre a dívida, ainda que possa ser ao
benesses para os seus eleitores? Nesse caso, o valor custo de uma inflação maior. Portanto, a afirmação de
presente do fluxo de resultados fiscais primários pode se Pessôa sobre a ausência de restrição financeira na teoria
tornar menor do que o valor real da dívida do governo no convencional também está correta.
tempo presente. Desse modo, para que a restrição orça- Nossas divergências com Samuel Pessôa começam
mentária do governo seja satisfeita, é necessário que a pela sua interpretação do princípio da demanda efetiva. Ele
inflação se acelere de maneira a reduzir o valor real da dívida corretamente coloca que o princípio da demanda efetiva
do governo no tempo presente. Daqui se segue que, com estabelece que uma relação de causalidade unidirecional
base na teoria convencional, é impossível que o governo do investimento para a poupança, ou seja, a poupança
declare moratória da dívida que ele mesmo emite, desde sempre se ajusta, por intermédio de algum mecanismo,
que esteja disposto a aceitar a taxa de inflação requerida ao volume de investimento decidido pelos empresários.
(mais elevada) para fazer o ajuste. O princípio da demanda efetiva foi originalmente formula-
Aqui pode ocorrer um conflito com a meta inflacionária. do por Keynes na sua “Teoria Geral” (1936) para o curto
Se a inflação necessária para fazer cumprir a restrição orça- prazo marshalliano, mas estendido para o longo prazo por
mentária do governo for maior do que a meta inflacionária, Kaldor (1956) e Bortis (1997). No curto prazo, a poupança
então o modelo estará, na linguagem matemática, sobre- se ajusta ao investimento por intermédio de mudanças no
determinado, ou seja, uma mesma variável (no caso a taxa nível de emprego dos recursos produtivos; ao passo que
de inflação) terá dois valores distintos. A forma natural de no longo prazo o ajuste se dá por intermédio de mudanças
resolver a sobredeterminação é assumir que no caso de na distribuição de renda entre salários e lucros (Kaldor) ou

SETEMBRO 2022 37
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

na relação entre a demanda autônoma e o nível de atividade produtiva


(Bortis). Nessas condições, a poupança nunca será um obstáculo para
dizer que seja uma situação neutra do ponto
desindustrialização brasileira, isso não quer
o aumento do investimento, o qual poderá ser restrito apenas pela
disposição dos bancos em conceder crédito, dada a sua capacidade
de criar poder de compra novo, a qual depende da sua maior ou menor
preferência pela liquidez. Em outras palavras, investimento requer
financiamento, que por sua vez não se confunde com poupança2 (esse
ponto é assinalado por Pessôa).
de vista da alocação de recursos

Qual a nossa divergência com Pessôa sobre o princípio da demanda


efetiva? No seu artigo ele afirma que:

“Todos os modelos empregados pelos Bancos Centrais mundo


Se o mercado produziu a

afora atende[m] ao princípio da demanda efetiva. A causalidade é


do investimento para a poupança. Não é necessária poupança prévia
para financiar o investimento.”

Os modelos usados pelos bancos centrais, exceto, mais recente-


mente, os modelos usados pelo Banco da Inglaterra,3 se baseiam em
alguma variante do modelo DSGE. Nesse modelo, a oferta de poupança
é infinitamente elástica ao nível da taxa real de juros de equilíbrio, o qual
é determinada pelas preferências intertemporais do agente representa-
tivo. Supondo que o investimento seja uma função inversa da taxa real
de juros, então os empresários irão investir até o ponto que o retorno
real dos seus projetos de investimento for igual à taxa real de juros.
Nesse contexto, um aumento da “propensão a poupar” por parte do

38 TRÉPLICA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

agente representativo – isto é, uma redução da sua taxa


de impaciência intertemporal – levará a um aumento do
investimento, invertendo assim a relação de causalidade
proposta pelo princípio da demanda efetiva. Portanto, é
um mito que a teoria convencional tenha incorporado o
princípio da demanda efetiva.
Samuel Pessôa deixa de lado o princípio da demanda QUANDO
efetiva e a teoria da preferência pela liquidez quando afirma indagado sobre
que as elevadas taxas de poupança no Japão e na China
a importância
– uma vez que a previdência pública tem benefícios muito
baixos, o que leva as pessoas a pouparem parte substancial
do processo de
da sua renda – resultam numa taxa neutra de juros baixa, desindustrialização,
que permite níveis elevados de dívida pública. Nenhuma Pessôa afirma que
referência se faz ao papel crucial dos bancos públicos “não é bom, nem
(inclusive bancos de desenvolvimento) no financiamento ruim, é o que o
de longo prazo na China, resolvendo a problemática da res- mercado produziu”
trição financeira do investimento, contribuindo assim para
as elevadíssimas taxas de investimento no país. Seguindo
a linha de argumentação de Pessôa, os países nórdicos
europeus, com seus sistemas públicos previdenciários
abrangentes, produziriam baixo estímulo à poupança indi-
vidual, resultando numa poupança agregada baixa e uma
taxa neutra de juros muito elevada! Aqui temos uma contradição clara com o que Samuel
Outro ponto que nos chamou atenção na argumenta- Pessôa afirma no monólogo com ALR e o que ele afirma
ção de Pessôa foi seu reconhecimento explícito de que na matéria do Valor Econômico. Retornos crescentes de
a indústria de transformação é o setor de atividade eco- escala é uma das possíveis causas de “falhas de mercado”,
nômica que está sujeito a retornos crescentes de escala. ou seja, situações nas quais o mercado produz uma aloca-
Acreditamos que ele não se deu conta das implicações ção ineficiente de recursos. Sendo assim, se o mercado
desse reconhecimento não apenas para o seu “monó- produziu a desindustrialização brasileira, isso não quer dizer
logo” com ALR, mas sobre as posições que o próprio que seja uma situação neutra do ponto de vista da alocação
economista tem assumido no debate público sobre o de recursos: o Estado poderia melhorar o bem-estar de toda
processo de desindustrialização do país. Se a indústria a população se tivesse adotado as medidas corretas para
de transformação estiver sujeita a retornos crescentes de deter o processo de desindustrialização precoce (ou seja,
escala, conforme é atestado por vasta evidência empírica de países que se desindustrializam antes de atingirem um
(Ros, 2013, pp. 193-196), então a indústria é o motor de nível de renda per capita elevado).
crescimento da economia no longo prazo (Thirwall, 2002, Contudo, nossa maior divergência com Pessôa se dá
cap. 3), de forma que a desindustrialização tem efeito ne- por conta da seguinte afirmação feita em seu “monólogo”:
gativo sobre o processo de desenvolvimento econômico.
Essa é a posição da escola novodesenvolvimentista ”O fato é que o modelo de determinação da taxa de
brasileira, da qual os autores deste artigo não só fazem juros que vigora hoje nos livros-textos representa uma
parte como contribuem para o seu aprimoramento teóri- síntese do pensamento neoclássico com a contribuição
co e empírico, chamando em particular atenção para os de Keynes.”
problemas causados pelo processo de desindustrialização
precoce, como está ocorrendo no Brasil. O problema é Aqui Samuel Pessôa parece querer recuperar um velho
que em matéria publicada no Valor Econômico em 25 de debate na história do pensamento econômico a respeito da
agosto de 2022, quando indagado sobre a importância equivalência entre a teoria dos fundos de empréstimos (a
do processo de desindustrialização, Pessôa afirma que fronteira do conhecimento da teoria neoclássica nos anos
1930) e a teoria da preferência pela liquidez.4 Essa contro-
“(...) não é bom, nem ruim, é o que o mercado produziu.” vérsia teve origem com Hicks (1939[1987]) para quem:

SETEMBRO 2022 39
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

“A taxa de juros é determinada pela oferta e procura de fundos de finan-


ciamento, ou é determinada pela oferta e procura do próprio dinheiro?
(...) Espero provar que não faz a menor diferença essa forma de apre-
sentar a questão ou se seguirmos os autores que adotam no presente
momento o ponto de vista contrário. Seguidas adequadamente, as
duas abordagens levam aos mesmos resultados (Hicks, 1987, p. 129).”

Samuel Pessôa faz uma pequena inovação com respeito à argumentação


de Hicks. Em vez de afirmar que ambas as teorias levam ao mesmo resul-
tado, diz que na teoria tradicional o juro médio da economia é determinado
pelo modelo dos fundos emprestáveis, ao passo que a preferência pela
liquidez determina os prêmios que títulos de dívida de diferentes maturida-
des pagam com relação ao juro médio ou básico da economia.
O primeiro problema com essa argumentação é que a estrutura dos
modelos DSGE não permite o aparecimento de preferência pela liquidez,
porque a liquidez só é um atributo desejável dos ativos financeiros numa
situação de incerteza, ou seja, onde os agentes econômicos não são capazes
de definir uma lista completa de estados da natureza que podem afetar o
resultado do seu processo de tomada de decisão. Nenhum modelo DSGE
pode ser construído em tais condições.
com base na premissa de que existe apenas uma forma
pessôa é que todo o seu artigo está estruturado
O grande problema da argumentação de Samuel

cientificamente correta de abordar o tema da


determinação da taxa de juros na economia

40 TRÉPLICA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

No capítulo 17 da TG, que aparentemente não foi do agrado


de Pessôa, Keynes apresenta um modelo mais sofisticado
no qual os agentes econômicos podem escolher entre
diversos ativos com base na sua taxa própria de juros, ou
seja, a taxa de retorno do ativo medido em termos de si
mesmo. A taxa própria de juros é uma medida do retorno
total do ativo, o qual inclui os rendimentos esperados pela

A moeda posse ou uso do ativo, o custo de carregamento do ativo e


a facilidade com a qual o mesmo pode ser convertido em
é um ativo sui meio de pagamento se e quando o seu proprietário assim
generis porque seu o deliberar (ou seja, o prêmio de liquidez).
rendimento esperado Dessa forma, teremos uma taxa própria de juros diferen-
te para cada ativo existente na economia. Para que as taxas
e seu custo de
próprias de juros possam ser comparadas, é necessário que
carregamento são se use um denominador comum, o qual iremos supor que
iguais a zero é a moeda. Nesse contexto, teremos que adicionar à taxa
própria de juros de cada ativo a valorização ou desvalori-
zação esperada desse ativo em termos de moeda. Feito
isso, o equilíbrio de portfólio implica a equalização das taxas
próprias de juros em termos de moeda.
A moeda é um ativo sui generis porque seu rendimento
Mas esse não é a nossa maior divergência com respeito esperado e seu custo de carregamento são iguais a zero.
à argumentação de Samuel Pessôa. O grande problema A valorização ou desvalorização esperada da moeda em
da argumentação é que todo o seu artigo está estruturado termos de si mesmo é também igual a zero. Sendo assim,
com base na premissa de que existe apenas uma forma parece irracional a manutenção de moeda, exceto para a
cientificamente correta de abordar o tema da determinação realização de pagamentos, tal como estabelecia a velha
da taxa de juros na economia. Discordamos totalmente e ultrapassada Teoria Quantitativa da Moeda. Contudo, a
disso. E vamos além. Iremos argumentar que a Teoria “visão de mundo” de Keynes é diferente da visão de mun-
da Preferência pela Liquidez é uma forma alternativa de do da Teoria Neoclássica. Se nela a liquidez é um atributo
determinação da taxa de juros, na qual é a taxa de juros pelo qual os agentes não estão dispostos a pagar, devido
própria da moeda que determina a taxa real de juros, ao a onisciência do Agente Representativo, para Keynes a
invés do contrário. liquidez é fundamental, pois a posse de ativos líquidos é
Keynes na sua “Teoria Geral” (TG) apresentou a de- uma espécie de seguro geral contra eventos não só ines-
terminação da taxa de juros em dois níveis de agregação perados, mas que sequer poderiam ser previstos. Como a
distintos. Nos capítulos 13 e 15 Keynes exibe um modelo liquidez é definida como o grau de conversibilidade de um
de escolha de portfólio no qual existem apenas dois ativos: ativo em meio de pagamento, então a moeda é o ativo que
moeda e títulos. Nesse contexto, a preferência pela liqui- possui, por definição, a maior liquidez possível em todo o
dez se reduz à demanda de moeda. Para simplificar ainda espectro de ativos.
mais sua argumentação, Keynes deixa de lado todos os
detalhes operacionais do processo de determinação da
oferta de moeda por intermédio da escolha de portfólio
dos bancos comerciais, os quais ele havia apresentado no
seu “Tratado sobre a Moeda” (1930), e supõe que a oferta
de moeda é exógena.
Trata-se de um modelo tipo “Ford T” cujo objetivo era
mostrar da maneira mais clara e direta possível que a taxa
de juros é determinada pela “preferência pela liquidez”, não
pela “impaciência intertemporal” dos agentes econômicos.

SETEMBRO 2022 41
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

da determinação da taxa de juros é uma síntese entre


pessôa parece se equivocar ao afirmar que a teoria

a teoria de Keynes e a teoria neoclássica

Mas de que forma é a taxa própria de juros da moeda que, num variado leque de casos possíveis, se passa
que regula ou determina as taxas de retorno de todos os quase o contrário, isto é, a eficiência marginal do dinhei-
demais ativos da economia? Antes de responder a essa ro é determinada por forças que lhe são parcialmente
pergunta temos que concordar com Pessôa que esse ponto apropriadas e os preços dos outros ativos se alinhem
não está adequadamente explicado por Keynes na sua pela taxa de juros.”
“Teoria Geral” (1936). Foi no debate com os economistas
neoclássicos da sua época, após a publicação da “Teoria Vimos anteriormente que a taxa própria de juros de um
Geral”, que Keynes deixou mais clara a natureza da sua ativo medido em termos de moeda inclui a valorização ou
teoria da determinação da taxa de juros. No artigo “A Teoria desvalorização esperada do ativo. No longo prazo o preço
da Taxa de Juros”, publicado em 1937, Keynes afirma que: esperado de um ativo reprodutível (por exemplo, máquinas
e equipamentos) deverá ser igual ao preço de oferta do
“Muito resumidamente, a teoria ortodoxa mantém equipamento de capital, o qual depende da produtividade
que as forças que determinam o valor comum da efi- do trabalho nas indústrias produtoras de equipamento de
ciência marginal dos vários ativos são independentes capital e da taxa monetária de salários. O preço de oferta
do dinheiro (...) e que os preços variarão até que a é, nessas condições, o preço para entrega futura do ativo.
eficiência marginal do dinheiro, isto é, a taxa de juros, Se o ativo em consideração puder ser transacionado em
se alinhe pelo valor comum da eficiência dos outros mercados secundários, ainda que pouco organizados e,
ativos, determinada por outras forças. A minha teoria, portanto, com baixa liquidez, então podemos definir um
em contrapartida, mantém que é um caso especial e preço para a entrega imediata do ativo. Se o preço para

42 TRÉPLICA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

entrega futura do ativo for menor do que o preço para en- NOTAS DE RODAPÉ
trega imediata, então haverá um estímulo para a produção
1. Aqui cabe um esclarecimento importante sobre a relação entre a taxa de
de unidades adicionais desse ativo; do contrário, não. juros e a taxa de inflação. No equilíbrio de longo prazo do modelo neoclássico,
Nesse contexto, o que acontece com a economia se a igualdade entre as taxas próprias de juros dos bens e da moeda exige
que a taxa real de retorno da moeda seja igual à taxa real de juros dos bens,
houver um aumento da percepção de incerteza que leve
determinada pala impaciência intertemporal do agente representativo. Isso
a um aumento da preferência pela liquidez dos agentes? significa que, quanto maior for a meta de inflação definida pela autoridade
O resultado imediato será um aumento da taxa própria de monetária, maior será a taxa própria de juros da moeda para que essa
condição de equilíbrio seja atingida. No curto prazo, contudo, devido à
juros da moeda, produzindo um desequilíbrio com relação a existência de custos de ajustamento de preços, a economia pode operar por
taxa própria de juros dos demais ativos. Para que o equilíbrio vários períodos em desequilíbrio. Nesse contexto, se estabelece uma relação
inversa entre a taxa de juros própria da moeda e a taxa de inflação: uma
seja restabelecido, é necessário que o preço para entrega elevação da taxa monetária de juros irá reduzir a taxa de inflação, até que seja
imediata dos demais ativos caia relativamente ao preço para atingida a meta inflacionária definida pelas autoridades monetárias. Dessa
forma, a relação de curto prazo entre taxa de juros e inflação é diferente da
entrega futura, o que no caso dos bens de capital corres- relação de longo prazo, algo que nem ALR nem Samuel Pessoa percebem
ponde ao seu preço de oferta. Como o preço do ativo de em suas análises.
capital para entrega futura está mais baixo do que o preço
2. Sobre uma discussão mais aprofundada da relação entre investimento-
do ativo de capital para entrega imediata, não há nenhum financiamento-poupança, ver Paula (2003).
estímulo para a produção de novas unidades de bens de
3. Após a crise financeira internacional de 2008, o Banco da Inglaterra
capital, o que gera uma retração do investimento. incorporou os modelos keynesianos de consistência entre estoques e fluxos
Dessa forma, uma variação da taxa própria de juros da baseados no trabalho seminal de Godley e Lavoie (2007), no seu arsenal de
modelos de previsão sobre o comportamento da economia no curto e no
moeda terá causado uma variação da taxa própria de juros médios prazo.
dos demais ativos. Trata-se de uma relação de causalidade
4. Sobre esse debate ver Oreiro (2001).
inversa a da “teoria convencional”. Logo, Samuel Pessôa
parece se equivocar ao afirmar que a teoria da determina-
ção da taxa de juros, tal como apresentada nos livros texto BIBLIOGRAFIA
de economia, é uma síntese entre a teoria de Keynes e a
Bortis, H. (1997). Institutions, Behaviour and Economic Theory. Cambridge:
teoria neoclássica. Cambridge University Press.
Concluindo, a diferença fundamental entre a teoria
Godley e Lavoie (2007). Monetary Economics: An integrated approach to
pós-keynesiana e a teoria neoclássica não se encontra no credit, money, income, production, and wealth. Londres: Palgrave Macmillan.
processo de criação da moeda, ou seja, na elasticidade Hicks (1939[1987]). Valor e Capital. São Paulo: Nova Cultural (Coleção Os
da oferta de moeda com relação à taxa de juros, dando Economistas).
ensejo a uma curva de oferta de moeda mais “vertical” ou Kaldor, N. (1939[1960]). “Keynes´s Theory of Own-Rates of Interest”, Essays
mais “horizontal”. Mas, sim, como procuramos mostrar on Economic Stability and Growth. Londres: Duckworth.

neste artigo, no papel da moeda (e ativos líquidos) para Kaldor, N. (1956). “Alternative Theories of Distribution”. Review of Economic
Studies, 23, 83-100.
o funcionamento da economia. Isso diz respeito à teoria
da preferência pela liquidez e sua relação com a tomada Keynes, J.M. (1936[2007]). The General Theory of Employment, Interest and
Money. London: Palgrave Macmillan.
de decisões sob condições de incerteza, que pode afetar
Keynes, J.M. (1937[1984]). “A teoria da taxa de juros”. In Szmrecsanyi, T.
abruptamente o estado de expectativas dos agentes, com (org). Keynes. São Paulo: Editora Ática.
implicações sobre as variáveis reais da economia (produto
Oreiro, J.L. (2001). “Taxa de Juros, Preferência pela Liquidez e Fundos
e emprego). É nesse sentido que Keynes disse que “a de Empréstimos: uma análise crítica das tentativas de demonstração da
moeda afeta motivos e decisões dos agentes”, ou seja, é equivalência entre as teorias dos fundos de empréstimos e de preferência
pela liquidez”. Revista de Economia Política, 21(2): 304-321.
moeda é não neutra, seja no curto quanto no longo prazo.
Paula, L.F. (2013). “Financiamento, Crescimento Econômico e Funcionalidade
do Sistema Financeiro: uma abordagem pós-keynesiana”. Estudos
Econômicos 43(2): 363-396.
José Luis Oreiro é professor do Departamento de Economia da
UnB e pesquisador do CNPq e coordenador do Structuralist De- Ros, J. (2013). Rethinking Economic Development, Growth and Institutions.
velopment Macroeconomics Research Group (SDM). Oxford: Oxford University Press.
joreirocosta@yahoo.com.br Thirwall, A.P. (2002). The Nature of Economic Growth: an alternative
framework for understanding the performance of nations. Cheltenham:
Luiz Fernando de Paula é professor de Economia do IE/UFRJ Edward Elgar.
e do IESP/UERJ e pesquisador do CNPq e da FAPERJ e vice-
-coordenador do Structuralist Development Macroeconomics Woodford (2003). Interest and Prices: Foundations of a Theory of Monetary
Policy. New Jersey: Princeton University Press.
Research Group (SDM).
lfpaula@iesp.uerj.br

SETEMBRO 2022 43
a
COMO
CHINA
potência
marítima interfaces
entre ocupação
geográfica e
desenvolvimento
pacífico
44 CINTURÃO
YUE MINJUN
Jhonathan Edvar Mattos Mariano
Jurista

A importância do território marítimo desempenha um


papel de destaque ao longo dos séculos. O panorama
em que estamos ambientados gira em torno do
metalismo e dos períodos das Grandes Navegações.
Tendo nesse momento uma etapa importante da
acumulação capitalista e no desenvolvimento das
grandes potências europeias, sejam as ibéricas entre
os séculos XII e XVII, ou na consolidação do Império
Britânico entre os séculos XVII e XX.

SETEMBRO 2022 45
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O
presente artigo trabalha a questão da expansão chinesa no plano internacional
por meio do aumento de sua presença marítima. A análise tomará como base
as reflexões do estrategista Alfred Mahan sobre no que consiste uma potência
marítima. Tanto no plano militar como comercial, o domínio ultramarino ao longo
dos séculos. A ascensão chinesa é legatária dos princípios de Bandung e da
sua própria ancestralidade civilizacional. Neste sentido, como a China concilia o
aumento de sua inserção marítima em consonância com sua base axiomática,
sobretudo com o princípio do desenvolvimento pacífico.

CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CONCEITO DE POTÊNCIA MARÍTIMA

O conceito de potência marítima em Alfred Mahan


A ocupação desse espaço contribuiu para a formação de uma série de teorias, seja no cam-
po militar ou no comércio. Na apresentação é possível depreender que este tema se ramifica
e traz à lume a necessidade de uma visão conglobante entre as esferas: militar, econômica,
tecnológica e política. São esses os elementos que tentarei abordar nas próximas páginas.

sua própria ancestralidade civilizacional


A ascensão chinesa é legatária dos princípios de Bandung e da

46 CINTURÃO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O teórico militar Alfred Mahan, estadunidense e Existe uma similaridade entre a trindade paradoxal de
oficial da Marinha americana, ao longo de sua vida Clausewitz, em que o sucesso de uma guerra dependeria
e obra formulou sobre o papel do poder marítimo na da relação entre forças armadas, povo e governo, sendo
construção das potências. A partir de uma análise do os dois primeiros subordinados à política, expressa no
Império Britânico entre 1660 e 1783. Mahan apresenta governo.
uma perspectiva histórica, na tentativa de entender a
participação da frota britânica no processo de inter- “Embora Clausewitz se referisse ao fenômeno da guer-
nacionalização e na acumulação que se desdobrara ra e Mahan aos aspectos políticos e econômicos para o
na industrialização da Inglaterra, bem como na sua desenvolvimento do poder marítimo, essas condições
influência global. apontadas por ambos os autores eram necessárias para
que atingissem os propósitos a que se destinavam.”2
“Ele tinha como objetivos centrais de sua teoria:
I – demonstrar a importância que o mar tinha para o Para entendermos sua concepção, Mahan levantava
desenvolvimento das nações; II – compreender os seis fatores que poderiam afetar o desenvolvimento do
princípios que governavam a guerra do mar desde poder marítimo:3 a) posição geográfica; b) conformação
a antiguidade; e III – despertar na classe política física; c) extensão territorial; d) tamanho da população; e)
dos EUA a centralidade das políticas navais para caráter da população; e f) o caráter do governo.
o seu desenvolvimento. Para isso utilizou como O caminho aberto pela proposta mahaniana não seguiu
métodos: a) o estudo da História como ferramenta; de forma incontestável, enfrentando críticas do britânico
b) a introspecção como início da sistematização Cobert, que por meio de uma atualização da teoria de
teórica; c) analogias entre a guerra terrestre e naval; Clausewitz sobre a guerra terrestre questiona o objetivo
e d) o exemplo da GB (pg. 227).”1 final da frota, o de eliminar a frota rival, segundo Mahan, e o
fato de ser o poder naval a força determinante para vitória.
A análise mahaniana foi considerada inovadora O autor soviético, almirante Sergey Gorshkov, vai além
por olhar para a guerra de forma historicizada, e não em suas críticas, mas incorpora a tese de Mahan sobre
como apenas um dado da realidade que demandava o poder marítimo como conceito que transcende a força
uma questão tática das forças militares. Dessa forma, naval (direcionada à guerra). Aproveitando-se da importân-
elenca três elementos que estruturaram a ascensão cia da frota em relações comerciais e desenvolvimento
do Império Britânico: tecnológico.
Pautando sua análise em acordo com o marxismo,
1. Em uma forte economia produtiva. Ele acreditava apesar de saber o papel da força e do uso da violência
na capacidade de produzir bens para troca para o na construção de uma potência, o autor joga luz no apro-
desenvolvimento do país; veitamento civil das tecnologias militares. Dessa forma,
2. No shipping – por meio do recurso que os navios o papel do poder marítimo seria o desenvolvimento das
mercantes forças produtivas nacionais, o aperfeiçoamento da indústria
proporcionariam ao realizarem o transporte de e a divisão dos frutos do excedente em favor do aumento
bens; e das condições de produção e das forças produtivas, ou
3. Na existência de colônias – que eram necessá- seja, o aumento da qualidade de vida e da produtividade
rias como pontos de troca de produtos e apoio e do trabalho.
bases para os navios (MAHAN, 1890; ALMEIDA, O efeito colateral desse processo é materializado no
2010b). desenvolvimento científico, o aumento do orçamento
das pesquisas, a qualificação e formação de uma de obra
mais qualificada tecnicamente e a garantia do suprimento
de insumos essenciais à vida, como é o caso da inclusão
de navios pesqueiros como parte essencial da estratégia
marítima soviética e a construção de portos quentes, ob-
jetivando a facilitação logística de distribuição e das linhas
de comunicação marítima. Esse raciocínio será abordado
mais à frente no presente artigo.

SETEMBRO 2022 47
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A atualização do conceito de poder marítimo no século centralidade a partir da década 1980 e que atualmente
XXI deve incluir novos elementos, na avaliação Sam Tangre- enfrenta outra grande crise, com a pandemia de Covid-19.
di, o poder marítimo, muito mais que poder naval (militar), É importante refletir sobre a crise do modelo de hiper-
ele compreende outros fatores, como ilustra a passagem globalização neoliberal e analisar os impactos da ascensão
em sequência: chinesa nesse contexto. Sugerimos que, por meio de
práticas alternativas ao modelo vigente, a China apresenta
“Ele compreende o conceito como algo mais am- uma nova perspectiva sobre a globalização, mais voltada
plo, abrangendo no mínimo quatro componentes: o à centralidade do papel do Estado e do planejamento nas
controle do comércio internacional, o controle e uso ações internacionais.5
dos recursos naturais, a operação das marinhas na É necessário entender que, apesar dos avanços tecno-
guerra e, em tempos de paz, uso das marinhas e do lógicos na era da globalização, o comércio marítimo ainda
poder econômico como instrumentos da diplomacia, responde por ampla maioria do comércio mundial, como
deterrência, e influência política. Diferentemente do aponta o relatório da agência da ONU para o comércio e
conceito de poder terrestre ou poder aéreo, que são desenvolvimento (UNCTAD, 2017)
genericamente compreendidos em termos militares,
o poder marítimo não pode nunca se separar de seus “With over 80 per cent of global trade by volume and
propósitos geoeconômicos.”4 more than 70 per cent of its value being carried on
board ships and handled by seaports worldwide, the
Desta sorte, serão trabalhadas nas próximas seções importance of maritime transport for trade and deve-
uma análise das diferentes dimensões do poder marítimo, lopment cannot be overemphasized. Recognizing the
quais sejam: i) o crescimento da presença chinesa pela via sector’s strategic function, the global policy framework
comercial; ii) os fundamentos da política externa chinesa; under the Addis Ababa Action Agenda and the 2030
iii) a construção de pontos de apoio e infraestrutura por Agenda for Sustainable Development underscores
intermédio da Iniciativa Cinturão e Rota; iv) o papel da the role of trade – and by extension, seaborne trade
modernização militar chinesa nesse processo. – as an engine for inclusive and sustainable growth
and development (UNCTAD REVIEW OF MARITIME
A globalização e o alargamento na presença marítima chinesa TRANSPORT, 2017 iii).”
As crises durante a década de 1990 e, principalmente,
a crise dos subprimes em 2008 nos Estados Unidos (EUA)
alertaram para um abalo do modelo de integração neolibe-
ral, abrindo espaço para novas concepções e discussões
sobre o papel do Estado na regulação político-econômica e
o processo de transnacionalização de capitais como motor
da equidade global.

E
sse contexto conduz a novas formulações insti-
tucionais que amparam e dão viabilidade para a
materialização dos interesses do bloco histórico
dirigente. Podemos destacar três fases dessa
reestruturação produtiva que resultaram em
novos processos e mecanismos de acumu-
lação: (i) a primeira crise da hiperglobalização,
da segunda metade do século XIX à Crise de 1929; (ii) o
modelo do fordismo-keynesianismo que emerge do de-
senvolvimentismo do New Deal a partir 1931 e inicia seu
colapso em 1973; (iii) a globalização neoliberal, que ganha

48 CINTURÃO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

As crises durante a década de 1990 e, principalmente, a crise dos subprimes em

2008 nos EUA alertaram para um abalo do modelo de integração neoliberal

SETEMBRO 2022 49
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A
o passo que o fordismo entrava em crise no Ocidente, a China apresentava desde o final
da década de 1970 uma taxa de crescimento média em 10%, a reorganização produtiva
advinda das políticas de Reforma e Abertura e as Quatro Modernizações – Agricultura; Co-
mércio e Indústria; Ciência e Tecnologia; e Militar – na era Deng, permitiram um processo
de acumulação baseado no incentivo ao consumo e ao investimento. O rompimento com
o sistema comunal proporcionou um incremento da mais-valia no campo, materializada
nas Township and Village Enterprises,6 enquanto a região costeira do país se abriu para
a recepção de investimentos estrangeiros diretos, mediante contratos de transferência tecnológica
nas Zona Econômicas Especiais, bem como a especialização produtiva dos trabalhadores chineses.
Entretanto, o sucesso chinês não pode ser explicado apenas pela abertura e inserção da China na
divisão internacional do trabalho. O principal motor desse processo de desenvolvimento é o Estado,
que por meio de suas instituições cria e sofistica mecanismos de planejamento econômico e suas
fases de acumulação:

comuns para além do aumento da sua influência no mercado global


A China propõe uma internacionalização produtiva com objetivos

50 CINTURÃO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

“Esse gradualismo é expresso pela combinação dos 6) o plano direciona primeiro à própria indústria e depois
seguintes processos conduzidos pelo Estado: 1) ao comércio internacional, não em sua forma tradicional,
dominância do Estado sobre o mercado; 2) que em mas como um bem público, planejado e conduzido pelo
retorno liberaliza o comércio para seu benefício, crian- Estado (JABBOUR; DANTAS, 2017, tradução nossa).”7
do oportunidades para aprofundar formas superiores
de divisão social do trabalho, e concomitantemente A China propõe uma internacionalização produtiva com
com o plano; 3) dedica energia à formação de um objetivos comuns para além do aumento da sua influência
mercado consumidor interno; 4) inicia a industrialização no mercado global, pautada na realização de investimentos
baseada no empreendedorismo campesino; 5) induz na construção de obras de infraestrutura em outros paí-
a competição extensiva entre pequenas, médias e ses. A dupla circulação chinesa, marcada pela interação8
grandes empresas e encoraja a educação para mitigar entre consumo interno e exportações, transita do binômio
os efeitos do próprio mercado sobre o corpo social; e investimento/consumo, fase necessária para fomento do
mercado de trabalho e do mercado consumidor – e neces-
sária para a estabilidade econômica chinesa em períodos
de turbulência –, para o binômio dos investimentos e das
exportações, que marca os anos 2000.

“For many analysts, regional strategies derive from


China’s global grand strategy, often called “peaceful
rise,” with emphasis on at least four dimensions:
political-diplomatic, security, commercial, and cultural.
For some analysts, this “peaceful rise” represents a
“pragmatic choice” (grifo nosso).”

AS ONDAS DE POLÍTICA EXTERNA CHINESA: PRINCÍPIOS HISTÓRICOS


E A ATUAÇÃO DA CHINA MODERNA

Princípios orientadores da política externa chinesa


A reconstrução da nação chinesa como síntese da
China antiga e da moderna, dialeticamente conduzida pelo
socialismo chinês9 (XI, 2016), contrapõe-se a um mundo de
expectativa cada vez mais fluida e uma diplomacia que, por
vezes, parece voluntarista e com uma visão curtoprazista.
Ao contrário, a China tem uma visão de tempo enquan-
to processos históricos complexos e de longa duração.
Nesse sentido é possível antecipar algumas posturas na
geopolítica, das quais ressalto a resistência ao uso militar
durante a resolução de conflitos, a primazia pelo consenso
e a não interferência. Tais princípios se materializam no
pensamento e história chineses na China moderna de Mao
Zedong a Xi Jinping (XI, 2016):

“China is a country in rapid transition, halfway on the


road from a poor, backward and isolated country with
a centrally planned economy to a rapidly developing,
outward-looking country with a (socialist) market eco-
nomy, integrating into the world economy and largely
working within the international system of multilateral
organizations.”10

SETEMBRO 2022 51
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

o
s princípios que foram desenhados em 1954, nos quais a China afirmou sua atuação
com outros países com base em cinco princípios idealizados por Zhou Enlai:11 (1) respeito
mútuo à soberania e à integridade nacional; (2) não agressão; (3) não intervenção nos
assuntos internos do país por parte de outro; (4) igualdade e benefícios recíprocos; (5)
coexistência pacífica entre os Estados com sistemas sociais e ideológicos diferentes.
Até hoje são esses os princípios que desenham a atuação da China.
O princípio da coexistência pacífica e da não intervenção são centrais no projeto de
expansão comercial chinesa e no seu reconhecimento como uma potência não beligerante. Existe
um aspecto bifronte na política chinesa, que se manifesta sobre duas expressões ou motes, o Sonho
Chinês e a Comunidade Humana de Futuro Compartilhado. Em que a primeira representa as preten-
sões chinesas no plano interno, sendo o retorno de uma China como potência global, a prosperidade
comum, o resgate da civilização chinesa como parte integrante de sua história e diplomacia cultural
e, por fim, a superação da humilhação colonial (1840-1912) a partir da construção de uma sociedade
socialista moderna em todos os aspectos.
A Comunidade Humana de Futuro Compartilhado, por outro lado, refere-se prioritariamente à
inserção da China no sistema internacional (SI). A ideia da construção de uma nação que tenha ca-
pacidade de se pôr como árbitro nas grandes questões mundiais, ao passo que defende a reforma
do SI para a implementação de um modelo, de fato, multipolar e contrário à hegemonia.

são centrais no projeto de expansão comercial chinesa


O princípio da coexistência pacífica e da não intervenção

52 CINTURÃO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

“The basic message of the Chinese rhetoric of har- E continua:


monic development is the need for different actors
to acknowledge not only the Chinese entitlement to “A coesão política sul-americana forjada nos
development, but also the fact that China is growing últimos anos para ganhar sustentação de longo
and this must be, harmonically, accepted by the Inter- prazo depende da integração da infraestrutura,
national System so as to assure an environment of da integração das cadeias produtivas, e de um
peace, development, and cooperation.”12 projeto político-econômico de desenvolvimento
compartilhado pelos Estados e atores políticos
Ainda nessa toada, defende a maior participação de relevantes dos diferentes países.”16
países do Sul Global na governança mundial e coordenação
política de todas as nações na resolução de conflitos que O crescimento chinês também exerce uma
ameacem a todos os países, a exemplo das crises atuais tração no desenvolvimento, ora questionando a
da Covid-19 e a questão da emergência climática. Esses hegemonia estadunidense nas Américas – bem
tópicos serão abordados nas páginas a seguir. como das democracias ocidentais na África –, ora
assumindo o protagonismo no crescimento eco-
Ascensão pacífica e desenvolvimento econômico: nômico na Ásia, sobretudo no Sudeste Asiático
a China no Conselho de Segurança da ONU no após 1998. Hoje, a região representa a maior
A atuação chinesa junto à Organização das Nações parte do crescimento econômico mundial e apre-
Unidas, completou em 2021 seus 50 anos. Esse tópico visa senta grandes taxas de inovação em tecnologias
traçar um breve histórico de sua trajetória no Conselho de de vanguarda, sendo necessária a reorganização
Segurança da ONU (CSNU). O reconhecimento da China na das cadeias produtivas na chamada Revolução 4.0.
ONU ocorreu após a visita de Henry Kissinger a Zhou Enlai,
chanceler chinês, em 1971. Por meio de uma resolução da “Sendo a Ásia-Pacífico a região do mundo
Albânia, a República Popular da China assume o assento com o crescimento mais rápido, com mais de
da República da China (Taiwan), incluindo a cadeira como 60% do PIB mundial, e possuindo metade do
membro permanente no CSNU. comércio mundial, muito impulsionado pela
Nos primeiros trinta anos como membro permanen- China, não admira que a administração Obama
te, a atuação chinesa foi discreta e pouco altiva; parte tenha considerado esta como pivô no quadro
disso devia-se ao apoio norte-americano e às tensões da sua diplomacia.”
sino-russas, bem como da situação pouco consolidada
do país no núcleo duro das decisões da ONU. Por outro A partir de seu ingresso é possível perceber
lado, a situação material nacional era ainda muito precá- diferentes ondas de atuação em quatro períodos:17
ria. A China representava mais de 1 bilhão de pessoas, i) 1971-1981; ii) 1982-1998; iii) 2000-2010; e v) 2010
pouco mais que um quarto da população mundial (~ até os dias de hoje. Essa presença chinesa pode
3.692.492.000), no entanto apenas cerca de 2% do PIB ser percebida por suas posições no Conselho de
global (US$ 96 bilhões).13 Segurança em operações de paz e participação em
As políticas de Reforma e Abertura no final da década operações de manutenção de paz em outros países:
de 1970, implementadas por Deng Xiaoping, conduziram
a uma taxa média de crescimento de 10% ao ano nas “Um dos melhores reflexos dessa transforma-
últimas quatro décadas. Hoje a China detém um PIB de ção é sua postura em relação às operações de
US$ 14,72 trilhões. O que garante uma força de negocia- paz, que é geralmente dividida em três fases
ção mais independente frente às demais nações do P-5.14 na literatura: a primeira, de abstenção (1971 a
1981); a segunda, de aproximação e flexibiliza-
“A ascensão chinesa adicionou um novo vetor de poder ção (1982 a 1998); e a terceira, de gradativa co-
no cenário sul-americano. (...), a China foi a principal operação (2000 a 2010) (HE, 2019; MATSUDA,
beneficiária do ponto de vista econômico. O intenso 2016; FANG; LI; SUN, 2018). Propomos ainda
crescimento chinês há décadas se projetava sobre a uma quarta fase, marcada por um engajamento
Ásia e crescentemente sobre a África provocando a ativo, de 2010 até o presente.”18
reorganização econômica dessas regiões.”15

SETEMBRO 2022 53
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Quando observamos o papel entre 1971 e 1981, temos “Em 2014, o livro branco de defesa do Exército de
como principal marca a abstenção chinesa no CSNU, parte Libertação do Povo (ELP) elencou diversas áreas que
por desconsiderar o espaço como imparcial ou capaz de dar receberiam maior atenção do governo chinês. Entre elas
respostas efetivas. No entanto, com o processo de Refor- estavam as operações de paz da ONU. Um dos trechos
ma e Abertura, urge a necessidade da China em se integrar do documento destacou que, com o fortalecimento e
nas organizações internacionais e no sistema internacional aperfeiçoamento do ELP, seria intensificada também
de forma mais ativa. Essa necessidade a levou, em 1982, sua participação em operações de paz e missões hu-
a começar a contribuir financeiramente para o orçamento manitárias. As forças armadas chinesas se dedicariam
da ONU para operações de paz. a “(...) assumir maiores obrigações e responsabilidades

d
internacionais, fornecendo bens públicos de segurança
De 1981 em diante, ocorreu uma maior par- e contribuindo mais para a paz mundial e o desenvolvi-
ticipação da representação chinesa a partir mento comum” (YAO, 2016, tradução nossa).”20
do conflito no Chipre, também na Namíbia,
Kuwait, entre outros. No entanto, como tra- No entanto, o que se pode inferir da participação chinesa
tamos no tópico anterior, um dos princípios no CSNU em conflitos recentes, refere-se a uma China
orientadores da política externa é não inter- como força estabilizadora e país que assumiu o vácuo
ferência em questões internas e o respeito deixado ao fim da Guerra Fria. Ao contrário da ex-URSS,
à soberania de outras nações como forma de ascensão os chineses ocupam uma posição de maior integração no
pacífica, o que levou a uma maior retração da parte chinesa. comércio e na governança global, sendo um agente fulcral
Na década de 1990, inicia-se um ciclo em que o envio de na agenda de reforma do sistema multilateral, inclusive do
missões diplomáticas a outros países como em momentos próprio Conselho de Segurança.
de transição de regime, como supervisor de processos
eleitorais entre outras ações, marca uma diplomacia mais
altiva, sobretudo com o fim do equilíbrio de forças ao final
da União Soviética.
Nos anos 2000-2010, o país se concentrou no treina-
mento, investimento e institucionalização de seu contin-
gente para missões de paz e peacekeeping, como pode-se
notar no trecho a seguir, o desafio em ser colocada como
um agente relevante na governança global:

“Já a fase que se inicia em 2000 foi marcada pela maior


cooperação da China em relação às operações de paz.
O período coincide também com a ampliação da par-
ticipação chinesa em outras estruturas de governança
global, tanto pela entrada em novas instituições, como
a Organização Mundial do Comércio (OMC) quanto por
uma participação mais proativa nas instituições das quais
já fazia parte (SHAMBAUGH, 2013). Segundo He (2019),
o maior engajamento chinês era reflexo do novo conceito
de “ascensão/desenvolvimento pacífico” que nortearia a
política externa da RPC no novo milênio. Por isso, a China
passou a prezar pela adequação às regras das instituições
internacionais e se mostrou disposta a compartilhar os
esforços referentes às operações de paz da ONU.”19

Por fim, uma última fase percebida é dos anos de 2010


até atualmente, um giro na geopolítica chinesa acarreta o
envio de tropas a operações de peacekeeping:

54 CINTURÃO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

“A China tem procurado desenvolver um novo mapa apenas três vezes seu poder de veto no CSNU, sempre de
diplomático e geopolítico sem a participação de forma isolada. A partir de 2007, com as mudanças advindas
Washington. A China não aceita um mundo apenas da Guerra ao Terror, que colocou os EUA em posição de
centrado num G2 (China-EUA), antes um modelo mul- “polícia do mundo”, ela iniciou uma atuação mais ligada à
tipolar de partilha de poder envolvendo uma diplomacia contenção da presença americana, seja diretamente com
transversal e multilateral. Assumindo-se como uma voz tropas, ou indiretamente com a venda de armas, como
importante dentro do G20, uma herança da Conferência foram os casos do Mianmar (2007), Zimbabwe (2008) e
de Bandung (...)”21 Síria (duas vezes em 2011 e uma em 2012); no entanto, a
China atuou nesses vetos em conjunto com a Rússia. Ainda
A questão militar ocupa relevante posição na constru- que tenha quase dobrado no quinquênio 2007-2012, o uso
ção de uma potência global, assim como a capacidade de do poder de veto ainda é muito inferior se comparado às
arbitrar conflitos está conectada com a força, ainda que demais potências do bloco permanente do CSNU:22
em estado de latência. Fato que explica a centralidade do
aperfeiçoamento científico e a modernização das Forças “Desde sua entrada no órgão, a China foi responsável
Armadas serem duas das quatro reformas elaboradas por por apenas oito vetos, metade dos vetos feitos pela
Deng Xiaoping para o reposicionamento global chinês. Essa França (16) no mesmo período, quase quatro vezes
questão será trabalhada na próxima seção, mas devem ter menos que os feitos pelo Reino Unido (29), quase dez
seu destaque na construção da segurança, soberania e vezes menos que o número de vetos dos Estados Uni-
afirmação chinesa no sistema internacional. dos (79) e cerca de doze vezes menos que o número
Entre os anos de 1972 e 2006, a China havia usado de vetos da Rússia (99).”23

A China tem procurado desenvolver um novo mapa


diplomático sem a participação de Washington

SETEMBRO 2022 55
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A ampliação dos vetos no CSNU está ligada a uma


maior projeção da presença chinesa no mundo, sobre-
tudo dado o crescimento econômico pós-reformas, uma
queda relativa de influência nas potências centrais e a
ascensão de potências emergentes, principalmente dos
países BRICS.

“A mudança de comportamento da China dentro do


Conselho de Segurança é resultado direto de uma
importante mudança de rumo na política externa do
governo de Pequim: a ênfase no multilateralismo construção de bens públicos

O financiamento chinês se traduz em investimentos produtivos, sobretudo na


como forma de aumento de seu protagonismo.
Esta nova orientação foi lentamente implementada
a partir de 2001, com o ingresso do país na Organi-
zação Mundial do Comércio (OMC) e, como citado
anteriormente, ampliada e anunciada como política
de Estado em 2005.”24

Essa ênfase vai ganhar novos contornos a partir da


transformação da doutrina da Ascensão Pacífica, ideali-
zada por Yan Xuetong, em 1998, mas tornada política de
Estado em 2005, durante a geração de Hu Jintao.

EXPANSÃO MARÍTIMA CHINESA: INTERAÇÕES ENTRE A INICIATIVA


DO CINTURÃO E ROTA E O FORTALECIMENTO MILITAR

A questão do Cinturão e Rota: comércio e infraestrutura


Em 2013, a China lançou um programa de investi-
mentos calculado em trilhão de dólares em obras de
infraestrutura em um plano de longo prazo: a Iniciativa
Cinturão e Rota (BRI). Inaugurando uma nova fase de
acumulação e internacionalização dos capitais chineses.
Entre 2013 e 2020 foram investidos mais de 755 bilhões
de dólares em países que se integraram ao BRI.
O cenário deixado pela Crise de 2008 é, em grande
parte, responsável pelo aumento da política de Investi-
mento Externo Direto (IED) nas décadas subsequentes.
Com a fragilização das economias centrais do capitalismo,
como as dos membros do G7, abriu-se uma janela de
oportunidade para os chineses frente à redução dos IED
vindos desses países.
A resposta chinesa à Crise de 2008 foi apostar em
investimento de cerca de 600 bilhões de dólares em
obras de infraestrutura. A criação do Asia Infrastructure
Investiment Bank (AIIB) e a coordenação de uma ação
conjunta de bancos de desenvolvimento e empresas
estatais (State Owned Enterprises, ou SOE) e grandes
empresas nacionais como forma de manter alta as taxas
de investimento, como podemos ver no trecho a seguir:

56 CINTURÃO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

“The maintenance of high investment rates and, con- chinesa nos seguintes pontos: i) o Estado como protago-
sequently, the anticipated increase in installed capacity nista no desenvolvimento econômico; ii) um modelo de
combined with the constitution of a modern financial sys- globalização pautada em investimentos produtivos; iii) as
tem ensures the national conditions for the construction relações de benefício mútuo – win-win; iv) a construção
of “dams against unfavorable historical tides” (Kissinger, de parcerias abrangentes de caráter regional e de longo
2011, p. 446), as seen in the country’s response to the prazo; e v) uma proposta de multilateralismo pautada na
first years of the global financial crisis with an infrastruc- dinâmica da cooperação, com destaque para o Sul Global.
ture investment of approximately US$ 600 billion.”25 A partir dessas considerações é possível depreender que
há o surgimento de outro modelo de governança global e
Os investimentos chineses na região vêm se avoluman- de globalização, que disputa a influência política e econô-
do na última década e têm se apresentado como modelo mica no Cone Sul com o modelo neoliberal, a qual possui
alternativo de globalização. O financiamento chinês se tra- reflexos na geopolítica da região.
duz em investimentos produtivos, sobretudo na construção Para além dos investimentos no Cone Sul – parte da
de bens públicos, no Cone Sul entre os períodos de 2015 a Rota da Seda Marítima –, a BRI se constitui a partir de seis
2019. Entre esses movimentos, podemos destacar a BRI corredores econômicos ao longo do globo, sendo eles:
lançada em 2013, que, atualmente, já é o maior projeto de 1. Novo Corredor Eurasiático ou Nova Ponte Terrestre
infraestrutura hoje em curso no âmbito global. da Eurásia: envolvendo ferrovia para a Europa via Cazaquis-

E
tão, Rússia, Bielorrússia e Polônia.
ssa política chinesa de investimentos em 2. Corredor Econômico China, Mongólia, Rússia: incluin-
infraestrutura no Cone Sul se faz por meio da do ligações ferroviárias e a estepe estrada – esta, ligação
Iniciativa Cinturão e Rota (BRI). O processo com a ponte de terra.
de construção de portos, aeroportos, estra- 3. Corredor Econômico da China, Ásia Central, Ásia
das, ferrovias e outras obras que tendem a Ocidental: ligação ao Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão,
ampliar a conectividade entre os países da Uzbequistão, Turcomenistão, Irã e Turquia.
região, permite um debate de fundo sobre o 4. Corredor Econômico da Península da China Indochi-
processo de globalização defendido pela China e evidencia na: Vietnã, Tailândia, Laos, Camboja, Mianmar e Malásia.
suas diferenças para o modelo ocidental, sobretudo após 5. Corredor Econômico China-Paquistão: A província de
a ascensão do paradigma neoliberal, representado pelos Xinjiang será a mais afetada. Esse importante projeto liga
Estados Unidos e aliados. a cidade de Kashgar (zona econômica livre) em áreas sem
Em breve síntese, a BRI iniciada na região tem sua litoral, Xinjiang, com o porto paquistanês de Gwadar, um
primeira assinatura em 2017 entre China e Panamá, após porto de águas profundas usado para fins militares.
o 2° Fórum China-CELAC (2018). A iniciativa conta com a 6. Corredor Econômico da China, Bangladesh, Índia,
participação de 19 dos 33 países signatários da CELAC. Mianmar: É provável que isso mude mais lentamente de-
Entre 2005 e 2018, a América Latina recebeu U$ 122 vido à desconfiança sobre questões de segurança entre a
bilhões em IED chineses, o que demonstra a elevação Índia e a China (relatório da OCDE).26
da sua presença na região. A China definiu 69 projetos
relacionados à BRI na América Latina, que totalizam U$ MODERNIZAÇÃO E FORTALECIMENTO MILITAR
56 bilhões, com a criação de 214.000 empregos na região. A presença militar não é um fato novo na história chi-
Nesse sentido é imperativa a análise dos impactos socio- nesa. Embora não haja grandes relatos de ondas expan-
econômicos dessa iniciativa. sionistas na China, existem períodos de grandes conflitos,
A proposta da BRI tem cinco objetivos estratégicos seja no processo de unificação – Período dos Estados
prioritários: i) coordenação de políticas; ii) conectividade Combatentes (471 a.C – 221 a.C ) ou nas duas Guerras do
de infraestrutura; iii) comércio desimpedido; iv) integração Ópio ao longo do século XIX.
financeira; e v) conectar pessoas. Em que pese os diversos
setores que a BRI tem destinado recursos, o objeto a ser “O que é cristalino, com efeito, é que a China identifica,
detalhado é a articulação das obras de infraestrutura no na sua ascensão econômica, geopolítica e militar, a recu-
desenvolvimento regional do Cone Sul. Nesse sentido, a peração do seu “século de humilhação” nas mãos das
Iniciativa Cinturão e Rota é entendida como sendo o pa- potências europeias e do Japão e a recuperação de seu
radigma da concepção de Economia Política Internacional “lugar devido” como centro do sistema internacional.

SETEMBRO 2022 57
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Esse objetivo de longo prazo parece estar presente na comercialização de bens com maior valor agregado e a tese
cultura estratégica chinesa, ainda que não pareça estar de Hu Jintao, a partir de 2006, de uma sociedade direcio-
corporificado em metas e objetivos claros e precisos.”27 nada pelo desenvolvimento científico de forma planificada
no Plano Quinquenal de 2006-2011.

O
A preocupação com um exército forte e com a defesa
da população de ameaças externas pode ser identificada período de Xi Jinping à frente da China tem
no confucionismo, que trabalhava a legitimidade de um go- como marca a exportação de bens públicos
vernante à frente do poder, construía-se a partir da conexão por meio da Iniciativa Cinturão e Rota, mas
entre “abundância de alimentos, poder militar suficiente e também um processo de modernização militar
confiança do povo”:28 e com um volumoso aumento do orçamento
das Forças Armadas. No entanto, esse pro-
“A China ainda não é uma superpotência militar e, cesso veio acompanhado da evolução dos
mesmo localmente, suas capacidades são mais de investimentos militares em outros países da região como
interdição do que de projeção de poder. Boa parte das explica o trecho a seguir:
elites militares estão mais preocupadas com a ordem
interna e com as inúmeras empresas geridas pelos “Todos os países da região aumentaram os seus gastos
militares do que com um projeto claro de construção militares em 2012: a China e a Índia (17%), países do Su-
de hegemonia militar mundial.”29 deste Asiático (13%), Coreia do Sul (11%) e o Vietnã e
as Filipinas adquiriram novos submarinos à Rússia…”31
E continua,
E continua,
“De forma coerente com essa ascensão econômica e
política, a China está reforçando imensamente a sua “...os chineses, devido aos fantasmas da história,
capacidade militar. Há vários anos, seu orçamento temem o rearmamento nipônico, um rival amparado
militar oficial cresce a níveis elevados – US$ 80 bilhões pelos EUA. É na Rússia que, de certa maneira, a China
em 2010 – e calcula-se que o seu orçamento real pode encontra um contrabalanço na relação entre america-
chegar a três vezes esse número. Mesmo mantendo-se nos e nipônicos. O estabelecimento de uma “parceria
em níveis moderados em relação ao PIB, o crescimento estratégica” com a Rússia (1997) e a posterior criação
é contínuo e tem permitido uma crescente profissio- da Associação de Cooperação de Xangai (ACX).”32
nalização e modernização das Forças Armadas (Davies
e Rothe, 2011).”30 Como forma de ampliar suas linhas de comunicação
e presença global, a China tem empreendido esforços na
Na China moderna, essa organização foi necessária nas construção de pontes diplomáticas no Caribe, no Oriente
rebeliões republicanas no começo do século, que culminou Médio, além de outras nas regiões do Oceano Índico e do
na derrubada da Dinastia Qing, na instauração da República Pacífico. Tanto em países com baixa influência estaduni-
da China com o Kuomintang, bem como nas duas guerras dense como em países nucleares na Ásia.
sino-japonesas.
Em continuidade, a guerra civil e a Revolução Comunista “Neste sentido, para além da cooperação sino-russa,
de 1949, instauram uma nova instituição no cenário político a diplomacia chinesa tem estabelecido contatos numa
chinês, o Exército de Libertação Popular (ELP). A partir do vasta rede de países considerados problemáticos para
período das reformas, Deng Xiaoping reposiciona o ELP, os interesses americanos, tais como Cuba, Venezuela,
dentro do processo de governança chinesa, transformando- Irã ou a Coreia do Norte. (...) Um destes contatos é o
-o em uma força modernizante e com um aumento de seu que se tem estabelecido entre a China e o Paquistão,
orçamento. uma das poucas alianças de Pequim que inclui apoios ao
Apesar da expansão do ELP e da subordinação das nível do nuclear, um fator desafiante ao relacionamento
Armadas ao Partido Comunista, a evolução do grau de dos Estados Unidos com a Índia.”
tecnologia dessas forças relaciona-se com o processo
de substituição dos bens comercializados, transitando da Dessa forma, é fato identificar os princípios de Alfred
exportação de commodities para um processo de maior Mahan na construção do poder marítimo chinês, tanto no

58 CINTURÃO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

sentido de criar linhas de comunicação marítimas como no do mundo, e qual das frentes exercerão o maior papel no
uso da capacidade comercial shipping, em sua dinâmica de desenvolvimento de seu poder marítimo.
acumulação e na criação de uma relação amistosa e voltado
ao desenvolvimento com nações próximas. CONCLUSÃO
No entanto, essa ascensão chinesa não se dá de forma A partir dessas análises é possível afirmar que a China
incontestável, tendo enfrentado uma ferrenha guerra co- tem se mostrado interessada na construção do seu poder
mercial no governo Trump, que até hoje apresenta reflexos marítimo. Muito mais que uma afirmação militar (poder na-
e marcas de continuidade na gestão atual. val), a política externa chinesa tem utilizado dos mares para
Não obstante a diplomacia chinesa, e por mais que isso corroborar seu status de potência comercial, em linha com
se apresente desejoso de uma ascensão pacífica, o cresci- seus princípios da não intervenção, da ascensão pacífica e
mento de seu poder bélico tem despertado a desconfiança voltando suas estruturas militares para o desenvolvimento
e temor de países da região e nas principais potências no científico.
mundo, com maior destaque para os EUA e Japão. Por meio do desenvolvimento tecnológico e da co-
operação mútua, a China vem construindo uma agenda
“O próprio crescimento do poder chinês, contudo, diversificada, que consolida o poder marítimo tanto pela
pode, num clássico “paradoxo da segurança”, acaba se modernização militar como pela construção de linhas de
tornando um problema para a sua hegemonia regional, comunicação marítimas.
necessária para pensar num futuro papel predominante Em último lugar, a mudança no comportamento comer-
em nível mundial. O temor da China está induzindo cial chinês a partir da BRI, torna o país uma exportadora
vários dos seus vizinhos – Índia, Japão, Austrália, os de bens públicos, sobretudo no campo da infraestrutura,
países da Associação de Nações do Sudeste Asiático para o aumento dos pontos de apoio ao longo do globo. A
(Asean) e outros – a se fortalecerem militarmente e a somatória desses esforços tem como resultado o aumento
se aproximarem uns dos outros e também dos Estados da presença chinesa nas dinâmicas de comércio e o papel
Unidos (Pumphrey, 2002; Bagchi, 2011).”33 chinês na globalização.

Cabe agora o papel de analisar com cautela quais O autor é mestrando em Relações Internacionais
serão os próximos passos da segunda maior economia jhonathanedvar@gmail.com

BIBLIOGRAFIA

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SETEMBRO 2022 59
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

NOTAS DE RODAPÉ

1. MARINHA DO BRASIL. ESCOLA DE GUERRA NAVAL. Nota de Aula. 17. PINOTTI, T. M.; BORELLI, P, C. Repensando o papel da China nas
Princípios de Estratégia Marítima: o Poder Marítimo em Ação, 2020. Nações Unidas: novas perspectivas para as Operações de Paz? 2019.

2. MARINHA DO BRASIL. ESCOLA DE GUERRA NAVAL. Nota de Aula. 18. PINOTTI, T. M.; BORELLI, P. C. Repensando o papel da China nas
Princípios de Estratégia Marítima: o Poder Marítimo em Ação, 2020. Nações Unidas: novas perspectivas para as Operações de Paz? 2019.

3. MARINHA DO BRASIL. ESCOLA DE GUERRA NAVAL. Nota de Aula. 19. VALENTE, Leonardo; ALBUQUERQUE, M. Da Discrição ao Ativismo:
Princípios de Estratégia Marítima: o Poder Marítimo em Ação, 2020. O Novo Papel da China no Conselho de Segurança da ONU. Contexto
Internacional (PUC-RJ. Impresso), v. 37, p. 693, 2015.
4. MARINHA DO BRASIL. ESCOLA DE GUERRA NAVAL. Nota de Aula.
Princípios de Estratégia Marítima: o Poder Marítimo em Ação, 2020. 20. PINOTTI, T. M.; BORELLI, P, C. Repensando o papel da China nas
Nações Unidas: novas perspectivas para as Operações de Paz? 2019.
5. RODRIK, Dani. The Globalization Paradox: Democracy and the Future of
the World Economy. Nova Iorque: W. W. Norton & Company. 2011. 21. PINOTTI, T. M.; BORELLI, P, C. Repensando o papel da China nas
Nações Unidas: novas perspectivas para as Operações de Paz? 2019.
6. JABBOUR, Elias Kalhil; DANTAS, Alexis. The political economy of reforms
and the present Chinese transition. Brazilian Journal of Political Economy, v. 22. VALENTE, Leonardo; ALBUQUERQUE, M. Da Discrição ao Ativismo:
37, n. 4 (149), p. 789-807, 2017. Acesso em 19 set. 2021. O Novo Papel da China no Conselho de Segurança da ONU. Contexto
Internacional (PUC-RJ. Impresso), v. 37, p. 693, 2015.
7. JABBOUR, Elias Kalhil; DANTAS, Alexis. The political economy of reforms
and the present Chinese transition. Brazilian Journal of Political Economy, v. 23. VALENTE, Leonardo; ALBUQUERQUE, M. Da Discrição ao Ativismo:
37, n. 4 (149), p. 789-807, 2017. Acesso em 19 set. 2021. O Novo Papel da China no Conselho de Segurança da ONU. Contexto
Internacional (PUC-RJ. Impresso), v. 37, p. 693, 2015.
8. ALTEMANI, H.; LESSA, Antonio Carlos. China rising strategies and tactics
of China’s growing presence in the world: a special issue of RBPI. Revista 24. VALENTE, Leonardo; ALBUQUERQUE, M. Da Discrição ao Ativismo:
Brasileira de Política Internacional, v. 57, p. 5-8, 2014. O Novo Papel da China no Conselho de Segurança da ONU. Contexto
Internacional (PUC-RJ. Impresso), v. 37, p. 693, 2015.
9. ALTEMANI, H.; LESSA, Antonio Carlos. China rising strategies and tactics
of China’s growing presence in the world: a special issue of RBPI. Revista 25. JABBOUR, Elias Kalhil; DANTAS, Alexis. The political economy of reforms
Brasileira de Política Internacional, v. 57, p. 5-8, 2014. and the present Chinese transition. Brazilian Journal of Political Economy, v.
37, n. 4 (149), p. 789-807, 2017. Acesso em 19 set. 2021.
10. MELISSEN, J.; D’HOOGHE, Ingrid. Editor. Public Diplomacy in the
People’s Republic of China. NY: Palgrave Macmillan, 2014, pp. 88-103. 26. TELIAS, Diego. Los foros China-CELAC y China-CEEC (17+1): una mirada
desde las teorías del regionalismo. Revista Tempo do Mundo, n. 24, 2020.
11.STAIANO, María Francesca; VADELL, Javier. China y Europa en la Disponível: http://dx.doi.org/10.38116/rtm24art8. Acesso em 21 set. 2021.
gobernanza global “Rivales sistémicos” os unidos en la construcción de una
“comunidad de futuro compartido”? 2020. Boletim Transiciones del Siglo. 27. BERTONHA, J. F, O Brasil, os BRICS e o Mundo no Século XXI, (Cap. VII).
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13. VALENTE, Leonardo; ALBUQUERQUE, M. Da Discrição ao Ativismo: Curitiba: Prismas, 2017.
O Novo Papel da China no Conselho de Segurança da ONU. Contexto 30. BERTONHA, J. F, O Brasil, os BRICS e o Mundo no Século XXI, (Cap. VII).
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14. VALENTE, Leonardo; ALBUQUERQUE, M. Da Discrição ao Ativismo: 31. SILVA, J. T. da, A Nova Projeção Marítima Chinesa e os jogos de Poder
O Novo Papel da China no Conselho de Segurança da ONU. Contexto na Ásia-Pacífico. Em CARMO, C. A. [et al]. Relações Internacionais: olhares
Internacional (PUC-RJ. Impresso), v. 37, p. 693, 2015. cruzados Brasília: FUNAG, 2013.

15. SILVA, J. T. da. A Nova Projeção Marítima Chinesa e os jogos de Poder 32. SILVA, J. T. da. A Nova Projeção Marítima Chinesa e os Jogos de Poder
na Ásia-Pacífico. Em CARMO, C. A. [et al]. Relações Internacionais: olhares na Ásia-Pacífico. Em CARMO, C. A. [et al]. Relações Internacionais: olhares
cruzados. Brasília: FUNAG, 2013. cruzados. Brasília: FUNAG, 2013.

16. SILVA, J. T. da. A. Nova Projeção Marítima Chinesa e os jogos de Poder 33. VALENTE, Leonardo; ALBUQUERQUE, M. Da Discrição ao Ativismo:
na Ásia-pacífico. Em CARMO, C. A. [et al]. Relações Internacionais: olhares O Novo Papel da China no Conselho de Segurança da ONU. Contexto
cruzados. Brasília: FUNAG, 2013. Internacional (PUC-RJ, Impresso), v. 37, p. 693, 2015.

60 CINTURÃO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

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SETEMBRO 2022 61
62 PAÇO
A
Independência
como
revolução
LIBERAL
no Brasil
Christian Lynch
Cientista político e jurista

Não é fácil tratar da Revolução Liberal no Brasil. mesmo depois. Reafirmadas ao tempo do salazarismo
Vários fatores concorrem para a dificuldade. A e do regime militar, elas rebaixam a importância do
historiografia geralmente se refere a ela de passagem liberalismo brasileiro pela sua alegada incapacidade
como a “revolução constitucionalista do Porto”, de conviver com uma realidade socioeconômica
explicada acima de tudo como uma reação portuguesa “antiliberal”, marcada pelo autoritarismo, pelo
contra a presença do rei no Brasil. Ao obrigar dom escravismo, pelo clientelismo e pelo patrimonialismo
João VI a voltar à Europa, essa revolução servira de herdados da colonização portuguesa.
estopim para a “verdadeira” revolução brasileira, que O liberalismo tende a ser sempre visto como
teria sido a da independência. Prevalecem na academia “falsificado” ou “irrealizado” (Faoro, 1992, 67); uma
interpretações tributárias dos radicais oitocentistas, para ideologia “fora do lugar” (Schwarz, 2000, p.25).
quem aqueles acontecimentos não teriam significação, Recentemente, debruçados sobre a passagem do
porque na prática a mentalidade absolutista e colonial absolutismo ilustrado do Antigo Regime para outro
teria continuado sob a monarquia constitucional e sistema, balizado por instituições políticas liberais,

SETEMBRO 2022 63
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A cronologia da
Revolução Brasileira é
ACIDENTADA
estudiosos da cultura política da independência e das
“revoluções atlânticas” têm desmentido em larga
medida aquelas interpretações (p. ex. Neves, 2003;
Feres, 2014). Mas ainda são poucos os estudos que
tratam especificamente da “revolução liberal brasileira”
como um processo com início, meio e fim (p. ex.,
Lynch, 2014). A própria expressão “revolução liberal
brasileira” parece sem sentido em um país cujos brasileiro em dois sentidos fundamentais: a) o conceito
próprios liberais repetem à exaustão nunca ter sido do Estado e da relação do povo com o Estado e b) o
“verdadeiramente” liberal. O difícil estado da arte obriga status da nobreza, do clero e dos órgãos intermediários,
a oferecer aqui, mesmo em breve resumo, uma visão como municípios e corporações.
nova da “revolução brasileira”, que tire da penumbra

E
o liberalismo, sem minimizar a independência. Em
outras palavras, na condição de ex-colônia de Portugal
na América, o caso do Brasil deve ser entendido pela
combinação da sua dupla dimensão revolucionária: a
constitucional e a nacional.

VISÃO GERAL
Empregarei a expressão “Revolução Brasileira”
para designar o processo histórico durante o qual o
Brasil aderiu ao liberalismo e se tornou um Estado
independente. Ele se inicia com a adesão da província
do Pará à revolução liberal portuguesa (1821) e termina mbora os liberais brasileiros
com o fim da última guerra separatista na província do deixassem de pé algumas instituições do Antigo
Rio Grande do Sul (1845). Ao longo desse período de Regime, como uma aristocracia titulada (exclusivamente
24 anos, ocorreram transformações políticas cruciais vitalícia e não hereditária) ou a religião católica como
em pelo menos quatro grandes aspectos: 1) atores religião oficial, eles mudaram a forma do Estado e
chamados “liberais” passaram a disputar e exercer o da sociedade pela afirmação de um ideal de uma
poder juntamente com antigos servidores da Coroa, comunidade livre e igualitária de cidadãos. Também
convertidos ao constitucionalismo; 2) envolveram-se promulgaram ao longo dos quinze anos seguintes uma
no processo de independência, entendido como um legislação que eliminou ou minou o Antigo Regime de
movimento destinado a promover a secessão do Brasil ordens sociais e instituições tradicionais, ainda que
no contexto do Império português; 3) fundaram uma preservada a escravidão de origem africana como força
monarquia constitucional especificamente brasileira, hegemônica de trabalho – como aliás em quase todas as
derrotadas as dissidências republicanas e separatistas; novas repúblicas americanas, salvo o Haiti. Ao contrário
4) promulgaram legislação que mudou o sistema político de Portugal e Espanha, porque os antigos absolutistas

64 PAÇO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

aderiram ao constitucionalismo juntamente com o deveria prevalecer: república ou monarquia, centralização


rei, no Brasil não houve um partido absolutista para ou federação. Houve vários momentos de violência,
combater. A independência liderada pelo príncipe, como golpes de estado (como em 1821, 1823 e 1831);
depois imperador dom Pedro I, também manteve a guerras de independência em algumas províncias (1822-
Igreja praticamente intocada no que diz respeito e 1825) e episódios de sangrenta guerra civil, algumas das
aos seus bens e aos de suas Ordens, graças à sua quais tendentes ao separatismo (1824, 1826 e 1834-
adesão ao constitucionalismo (situação que perdurou 1845).
República adentro).
Nem por isso a Revolução Brasileira deixou de se ACONTECIMENTOS
caracterizar por uma divisão aguda entre moderados e A cronologia da Revolução Brasileira, como todas,
radicais, em torno do modelo de Estado brasileiro que é acidentada. Ela começa como um eco ou extensão
da portuguesa de 1820, que derrubou o governo da
Regência e convocara uma assembleia constituinte. A
revolução chegou ao Brasil no início do ano seguinte,
com a deposição dos governadores nomeados pelo rei
nas províncias e a instalação de juntas provisórias de
governo que protestaram fidelidade às Cortes. No dia 26

SETEMBRO 2022 65
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

de fevereiro de 1821, as tropas portuguesas sublevadas assim atrair os luso-brasileiros para o seu projeto de um
no Rio de Janeiro diante da resistência do rei o obrigaram reino do Brasil constitucional, mas íntegro, contrário
a jurar fidelidade à futura Constituição e a embarcar de àquele desenhado pela maioria dos portugueses. A
volta a Lisboa semanas depois. Uma vez que quase disputa em torno da soberania brasileira travada entre
todas as províncias haviam organizado suas próprias dom Pedro e as Cortes culminaria a 7 de setembro
juntas, a Regência do príncipe Dom Pedro ficara na de 1822 com a proclamação formal da independência
prática restrita ao Rio de Janeiro. do antigo reino americano, seguida pela aclamação e
A ascensão de José Bonifácio de Andrada e Silva sagração de dom Pedro como imperador constitucional
ao cargo de primeiro-ministro organizou a resistência (Lima, 1997).
às tentativas das Cortes de esvaziar a Corte brasileira A guerra marcaria o ano de 1823, com tropas
em torno de um constitucionalismo moderado, que se portuguesas e brasileiras combatendo nas províncias do
contrapusesse ao radical. Ele explorou com habilidade as Norte. A transferência do contencioso relativo à forma
divergências entre deputados portugueses americanos de Estado para o seio da Constituinte brasileira, com a
em torno da forma de Estado (se confederada ou crescente hegemonia dos “liberais” favoráveis antes a
unitária) e do contencioso comercial (sistema liberdade uma “monarquia democrática” confederativa do que ao
de comércio ou de privilégios comerciais). Conseguiu “projeto imperial” unitário da Coroa, teve por desfecho

66 PAÇO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

a dissolução daquela assembleia em novembro. A 24 de dominavam o Senado, os moderados chegaram a uma


março de 1824 o Imperador outorgou como Constituição solução de compromisso, que tornou possível a reforma
um anteprojeto organizado pelos conselheiros da Coroa, constitucional. Entre diversas inovações relevantes,
previamente aprovado por quase todas as câmaras o Ato Adicional de 1834 consagrou uma forma de
municipais do Brasil. A resistência veio em Pernambuco Estado semifederal, concedendo às províncias o direito
na forma de uma rebelião republicana e separatista, logo de disporem de assembleias legislativas dotadas de
reprimida. As novas instituições legislativas só entrariam competências próprias (Coser, 2008). Esse foi o ponto
em funcionamento em maio de 1826, quando Portugal já culminante do projeto liberal de uma “monarquia
havia reconhecido a independência do Brasil. democrática”. Essa agenda “liberal” da revolução,
Perseguindo o projeto de uma “monarquia favorável à liberdade e à descentralização, se chocou,
democrática”, que cruzava demandas de porém, com aquela outra, “brasileira”, que exigia a
parlamentarismo britânico e descentralização à maneira construção do novo Estado pela autoridade e pela
estadunidense, a oposição liberal na Câmara dos centralização.
Deputados, liderada por Bernardo de Vasconcelos, Depois do Ato Adicional, a guerra civil estalou nas
Diogo Feijó e Evaristo da Veiga, moveu uma luta sem províncias do Pará, Maranhão, Bahia e Rio Grande do
trégua contra os conselheiros da Coroa, atacados como Sul, tendo as duas últimas se declarado repúblicas
membros de um “partido português”; “recolonizador” separadas. Os liberais do “partido moderado” então se
ou “absolutista”. Com abdicação de dom Pedro I em dividiram. Enquanto a ala esquerda (dita “do progresso”)
1831, os “liberais” de 1821 finalmente subiram ao poder sustentava o regente, senador Diogo Feijó, a ala direita
em nome do “partido brasileiro” para promover diversas do “partido liberal” (dita “do regresso”), chefiada por
reformas que, no seu entendimento, “completariam” a Bernardo de Vasconcelos, defendeu o recuo parcial
revolução da independência. das reformas, a fim de restabelecer a ordem pelo
Pressionados à esquerda pelos radicais e à direita fortalecimento do governo nacional (Carvalho, 1996,
pelos antigos conselheiros de dom Pedro, que p.231).
A preservação da unidade brasileira foi alcançada pelo
êxito dos “regressistas”, depois conservadores, que
derrotaram os revoltosos liberais em Minas Gerais e São
Paulo (1842) e os exércitos separatistas no Rio Grande
do Sul (1845). Assim, se o lado “liberal” da revolução se
conclui em torno de 1831-1834, o lado “brasileiro” só se
encerra entre 1837-1845.

OS MODERADOS
chegaram a uma solução de
compromisso, que tornou possível
a reforma constitucional
SETEMBRO 2022 67
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O LIBERALISMO
político emerge de fora e contra o
antigo Estado monárquico joanino

O BRASIL NO MUNDO
A Revolução brasileira ocorreu articulada com
grandes mudanças no contexto internacional e na
natureza do Estado luso-brasileiro no início do século preservação da monarquia como regime de governo, na
19. A transferência da capital do Império português para chave de um constitucionalismo moderado.
o Rio de Janeiro depois da invasão e da ocupação de O antigo projeto imperial luso-brasileiro resistiria
Portugal pelos exércitos franceses converteu a principal nas mãos dos conservadores do reinado de dom
colônia da monarquia em seu novo centro geopolítico. Pedro II, com a diferença de americanizado e tendo por
O projeto imperial luso-brasileiro alimentado pelo “colônias” seu próprio imenso território despovoado,
reformismo ilustrado revelava ânimo de permanência que deveriam ser objeto de civilização por um
na América e difundiu a civilização fundando faculdades, “autoimperialismo” (Lynch, 2021, p.399). Assim, a
instituições culturais e fábricas, promovendo a imigração Revolução Liberal coincidiu com o processo pelo qual
europeia, e a introdução de novos produtos e técnicas e o reino do Brasil, elevado havia pouco da condição de
cultivo. colônia, foi reconfigurado como um império americano
Esse projeto alicerçava-se em um imaginário imperial de grande porte, cujo Estado ainda precisava ser
que datava do século XVI, de acordo com o qual, por sua consolidado e não dispunha de recursos para povoar e
vastidão, o território do Brasil comportava vários “reinos” civilizar.
ou “impérios” (Lyra, 1994). Caso a sede do governo Reformas liberais poderiam ser – e eram
português para ele se transferisse, alegava-se, não só efetivamente – concebidas como parte desse processo
resolveria sua fraqueza crônica no cenário europeu, de adaptação nas décadas de 1820-1830 e, depois, de
como criaria o maior império do Ocidente. A experiência 1860-1880. O reconhecimento internacional do Brasil
de sediar a Corte ampliou o horizonte de expectativa dos como potência independente por Portugal ocorreria
colonos. A revolução liberal portuguesa em agosto de em decorrência da celebração de um tratado de 1825,
1820, inspirada pelo desejo de restabelecer Lisboa como intermediado pela Grã-Bretanha.
centro único do império português, obrigou a Corte do
Rio de Janeiro a lutar pela sobrevivência, batendo-se pela ORIGEM SOCIAL DOS “LIBERAIS” BRASILEIROS
defesa do reino do Brasil. Os “liberais” brasileiros foram recrutados entre
O processo culminou com a independência profissionais liberais, o baixo clero e proprietários de
proclamada pelo príncipe regente, tornado ao longo terra e de escravos. Improvisado para a guerra de
do processo o catalisador das aspirações gerais por independência contra Portugal, composto e comandado
emancipação política. Se, por um lado, o Brasil repetia por mercenários estrangeiros, o primeiro exército
a trajetória de independência percorrida pelas demais brasileiro não pôde servir de celeiro para os “liberais”.
colônias americanas, por outro, ele discrepou pela Ao contrário, formado por mercenários, portugueses

68 PAÇO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

naturalizados e brasileiros de baixa extração, o exército população, formada por negros livres e escravizados e
seria visto com desconfiança crônica pelos liberais, que indígenas apegados tradicionalmente à ideia, oriunda do
no poder tentariam substituí-los por uma guarda cívica Antigo Regime, de que só a Coroa poderia protegê-los da
(1831-1832). violência da “nobreza da terra”.
O liberalismo político emerge de fora e contra Embora transmudada em “sociedade civil” ou
o antigo Estado monárquico joanino, mobilizado “nação” pela Revolução brasileira, a “nobreza da terra”
principalmente pela antiga nobreza da terra e por setores continuava visceralmente dependente da mão de obra
urbanos incomodados com a expansão da burocracia escravizada para tocar a produção de suas propriedades
do Estado desde as últimas décadas do século XVIII. Os agrícolas. Era nessa condição que ela era criticada pelos
liberais mais engajados eram nativistas ou brasilienses funcionários ilustrados oriundos do Antigo Regime,
que pertenciam às elites agrárias das províncias e como José Bonifácio, Silva Lisboa (visconde de Cairu),
se sentiam excluídas do processo decisório, como Maciel da Costa (marquês de Queluz), Carneiro de
Gonçalves Ledo, Diogo Feijó, Carneiro da Cunha e Campos (marquês de Caravelas), cujo “projeto imperial”
Custódio Dias (Neves 2003, p.67). pressionava pela extinção do tráfico atlântico de
escravizados. Também havia liberais mais exaltados e

A
progressistas (“democratas”) junto a setores urbanos,
como Ezequiel dos Santos, Cipriano Barata e o Frei
Caneca, mas sua influência tendia a ser diminuta em
um país ainda maciçamente agrícola e escassamente
povoado.

AVENTURAS E DESVENTURAS DA “MONARQUIA DEMOCRÁTICA”


DOS LIBERAIS NATIVISTAS
Escritores e estadistas liberais viram seus esforços
como parte de uma mudança global e foram altamente
inspirados pelos eventos atuais no exterior. A Revolução
Revolução Brasileira foi uma Brasileira fez parte da onda revolucionária que, iniciada
“rebelião” do setor produtivo das províncias, apoiada na Espanha em 1820, atingiu rapidamente Portugal e
por profissionais liberais e comerciantes hostis aos daí a América. Uma vez que o modelo constitucional
atacadistas portugueses, contra o alto funcionalismo dos radicais perseguia o modelo de “monarquia
do Estado absoluto, percebido na América como uma republicana” da Constituição francesa de 1791, enquanto
nobreza que monopolizava os postos de governo. o dos moderados, a da Constituição da Inglaterra, os
Preferiam por isso uma “monarquia democrática”, liberais brasileiros foram sempre muito propensos a
nativista do ponto de vista patriota e orientada citar exemplos franceses e britânicos de organização
intelectualmente pelo modelo federativo norte- política. Mas as condições específicas do reino do
americano. Por isso, a dissolução da Constituinte e a Brasil impuseram também diferenças em relação ao
repressão da revolução republicana em Pernambuco liberalismo português.
(1824) cristalizaram nos liberais moderados e radicais a Em primeiro lugar, baseado no mito de uma “velha
percepção de que dom Pedro era antes um adversário constituição” medieval portuguesa, o constitucionalismo
do que um aliado no processo de liberalização da antigo teve pouca ou nenhuma repercussão no Brasil.
sociedade. Ninguém teve memória da breve participação de
Por outro lado, não prospera a lenda de que os representantes da colônia nas Cortes do século XVII.
conservadores que o apoiavam fossem defensores de Além disso, uma vez que a independência foi promovida
Portugal e do absolutismo, nem que fossem despidos em nome da soberania nacional brasileira, ela provocou
de popularidade. Os conselheiros da Coroa, chamados o rompimento dos vínculos políticos históricos com
coimbrãos ou luso-brasileiros (Carvalho, 1996, p.127; Portugal, apesar da preservação da monarquia. Embora a
Barman, 1989, p.40), tinham o apoio do alto clero, da dinastia brasileira fosse a de Bragança, pela Constituição
nobreza burocrática da Corte, dos grandes comerciantes dom Pedro I era considerado imperador constitucional na
das cidades marítimas e da parte mais humilde da qualidade de fundador do Império.

SETEMBRO 2022 69
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Além disso, embora as referências ao liberalismo suas próprias publicações e comícios e organizações
revolucionário francês e espanhol, como em Portugal, populares (Basile, 2004, p.44).
tenham sido constantes entre 1821-1824, ele foi A ameaça de desintegração do Brasil a partir de
corrigido e completado no Brasil pela influência 1835 resgataria, porém, os ideais de ordem e autoridade
do radicalismo norte-americano, à semelhança do do Primeiro Reinado. O projeto de uma “monarquia
que ocorrera na América hispânica, republicana e democrática” teve de se acomodar com o antigo
independente. Essa era uma dimensão importante “projeto imperial”, recauchutado pela nova geração
do vintismo brasileiro: o imaginário da América como conservadora. Prevaleceria por duas décadas (1840-
terra nova vocacionada para a liberdade, em oposição 1860) uma cultura política conservadora, que reivindicava
a uma Europa envelhecida, prisioneira do absolutismo um liberalismo compatível com a autoridade do Estado
e do feudalismo. Essa foi a razão pela qual os liberais (Mattos, 1994).
nativistas brasileiros rejeitaram como despótica a forma
de Estado unitária pretendida pelas Cortes de Lisboa. A DIMENSÃO INSTITUCIONAL
O que queriam era a autonomia provincial por meio de Duas dimensões marcaram a mudança liberal.
fórmulas assemelhadas ao federalismo, e a monarquia Em primeiro lugar, houve longos debates sobre uma
só valia a pena ser mantida caso se “americanizasse” constituição escrita para a monarquia. Os liberais
nesse mesmo sentido. nativistas de 1821-1823 desejavam uma Constituição
Com o fim da censura à imprensa, o primeiro ano da semelhante à portuguesa de 1822, que assegurasse
revolução foi bastante frenético em termos de debate a preeminência de uma assembleia representativa
público. Surgiu um número sem conta de jornais em unicameral sobre a Coroa e uma forma de Estado
todas as províncias, a maioria favorável às Cortes. confederada. A outorga da Constituição na esteira
O entusiasmo arrefeceu quando ficou claro que os da dissolução da Constituinte abriu espaço para um
deputados europeus recusariam uma forma de Estado papel maior da Coroa; uma segunda câmara vitalícia
confederativa. A maior parte das províncias se reuniu de senadores, eleitos pelas províncias e escolhidos
então em torno do projeto de Constituinte brasileira pelo imperador a partir de uma lista tríplice; e a forma
proposta por dom Pedro, para a qual transferiram suas unitária de Estado, na qual o governo nacional nomeava
esperanças. os presidentes de províncias, aconselhados por órgãos
Ocorre que o liberalismo do “partido realista” puramente deliberativos.
comandado por José Bonifácio era bem mais moderado, Os liberais modificaram esse modelo institucional,
adaptando ao constitucionalismo o “projeto imperial”, promovendo reformas descentralizadoras de inspiração
consagrando tanto uma forma unitária de Estado quanto americanista (Coser, 2008). Ao longo dos 15 primeiros
uma Coroa forte. A despeito de suas largas concessões anos da revolução, foram suprimidos foros eclesiásticos
em matéria de direitos, foi o “projeto imperial” que e militares e institutos como corporações, morgadios e
prevaleceu na Constituição de 1824. À medida que os capelas.
ministérios de dom Pedro I resistiam ou protelavam a Por outro lado, no conjunto, as “reformas liberais”
regulamentação dos dispositivos constitucionais que foram menos radicais do que as portuguesas. Isso se
liquidariam o poder da burocracia monárquica do Antigo deveu principalmente a cinco fatores: 1) independência
Regime, os nativistas passaram a acusá-los como e adesão ao constitucionalismo pela própria Coroa,
expressão de um “partido português”, absolutista e acompanhada pela Igreja; 2) inexistência de um partido
recolonizador. absolutista ou inimigo do regime constitucional, ou de
Quando o imperador abdicou em 1831 e o “partido algum príncipe que se pusesse à sua cabeça; 3) carência
liberal” assumiu o poder, os liberais criaram festividades de uma nobreza hereditária refratária à perda de seus
cívicas e monumentos que celebravam aquela data privilégios; 4) permanência da escravidão como principal
como a da conclusão do processo de independência. regime de trabalho; 5) considerável fraqueza do Estado
A esfera pública se ampliou e o paradigma do cidadão na regulação da vida socioeconômica de um país novo e
ativo foi difundido pelo espectro político. Jornais e de imensas proporções.
associações políticas se multiplicaram país afora. Os Os bens da Igreja e as ordens religiosas seguiram
realistas (“caramurus”), que se opunham às reformas intocadas; a antiga nobreza da terra, oriunda do Antigo
projetadas pelos “liberais”, também se engajaram com Regime, assumiu a condição de “Nação” ou “sociedade

70 PAÇO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

civil”; a divisão territorial do país em províncias devido à resistência dos liberais, que o atacavam
permaneceu inalterada, bem como suas subdivisões como inconstitucional. Prevaleceria uma solução
em municípios. As principais disputas políticas compromissória marcada por um sistema de governo
continuaram a girar em torno da conveniência da maior parlamentarista, mas tutelado pela Coroa, e uma forma
ou menor força da Coroa em relação ao Parlamento e de Estado descentralizada, mas de corte unionista
do governo nacional em relação às províncias. A reforma (Dohlnikoff, 2005).
administrativa unitarista, que teve lugar em Portugal e
outros países da Europa, retalhando as antigas divisões A POSIÇÃO DA RELIGIÃO E DA DINASTIA DIANTE DO LIBERALISMO
administrativas em departamentos e criando uma justiça Ao contrário do que ocorreu em Portugal e em
administrativa separada da comum, simplesmente não diversos países hispano-americanos, a Revolução
aconteceram no Brasil. Brasileira não teve dimensão antirreligiosa. Muitos dos
Criou-se em 1842 somente um embrião de “vintistas” mais conspícuos, como o Joaquim do Amor
justiça administrativa que, a despeito dos esforços Divino Caneca, José Martiniano de Alencar e Venâncio
conservadores, nunca se conseguiu desenvolver Henriques de Resende, eram padres que, bebendo no

SETEMBRO 2022 71
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

racionalismo iluminista de Rousseau, não percebiam que defendia a integridade do reino do Brasil e o
incompatibilidade o liberalismo e a condição clerical. O constitucionalismo radical que pretendia retalhá-lo para o
alto clero também aderiu ao constitucionalismo, porque recolonizar.
essa foi a posição da dinastia no Brasil. Bispos foram Na medida em que a oposição de dom Pedro às
eleitos deputados e depois senadores. Cortes fez da monarquia o elemento catalisador do

U
movimento da independência, entendida como reação
de legítima defesa contra a tentativa de recolonização,
a dinastia de Bragança por ele personificada foi
abrasileirada, passando a se identificar com a soberania
nacional (Sousa, 1972, p.307). A identificação
generalizada entre liberalismo e independência também
inviabilizava a defesa do absolutismo, que no Brasil
tornara-se sinônimo do antigo estatuto colonial. A adesão
da dinastia àquelas duas causas gêmeas obrigou toda a
burocracia civil, militar e eclesiástica oriunda do Antigo
Regime a acompanhá-la.
A localização americana do novo Império e a ausência
m dos personagens mais influentes de uma aristocracia feudal titulada também favorecia a
junto a dom Pedro na época era o Frei Francisco adesão da antiga nobreza da terra ao constitucionalismo,
Sampaio, que era maçom e pregador da Capela Imperial; de que ela se fizera aliás a principal interessada a fim
fundou um jornal defensor da monarquia moderada e de combater a burocracia monárquica e influenciar
elaborou um anteprojeto de Constituição. O principal o governo em nome da “nação” e do sistema
liberal da década de 1830 era ele mesmo um padre que, representativo. Os problemas para a dinastia dataram da
em uma eleição semelhante àquela de presidente dos dissolução da Constituinte, que deu início a um processo
Estados Unidos, acabou eleito regente do Império: Diogo progressivo de desassociação entre dom Pedro I e os
Antonio Feijó (Lynch, 2014, p.57). É verdade que sua brasileiros que reivindicavam a etiqueta de “liberais”.
oposição ao celibato clerical daria azo ao incidente mais A partir de então, o “liberalismo” passou a criticar
grave havido entre o Vaticano e os liberais. O liberalismo e atacar o “partido realista” com que o imperador
andava de mãos dadas com o regalismo e, incomodado governava como “partido português” e “partido
com as interferências de Roma na nomeação de bispos, absolutista”. A reconciliação dos liberais com a dinastia
Feijó ameaçou o papa com um cisma e a criação de uma de Bragança se daria somente com a abdicação de dom
igreja nacional (Sousa, 1972b, 238). Mas nada disso foi Pedro I em 1831, seguida pela elevação de dom Pedro
adiante. II – príncipe brasileiro cujo trono eles teriam graças à sua
A orientação regalista seguiria sob dom Pedro II, moderação salvado dos radicais republicanos. O Brasil
que respeitaria os bens da Igreja, mas não prestigiaria tinha enfim seu “imperador-cidadão” (Barman, 2012).
para além das formalidades oficiais, tendo inclusive
incentivado o esvaziamento dos mosteiros e conventos. A REVOLUÇÃO LIBERAL E A HISTORIOGRAFIA
O pouco caso da monarquia com a Igreja levaria na A Revolução Brasileira foi sempre reivindicada em
década de 1870 à emergência de uma “questão suas duas dimensões – a do constitucionalismo e a
religiosa” com Roma, mas novamente de poucas da independência – por todos os partidos do governo
consequências concretas. da Monarquia Constitucional. A adesão da dinastia de
O elemento dinástico também foi importante na Bragança com ambas impossibilitou a adesão a qualquer
Revolução Brasileira. Desde que dom João VI teve de causa que se lhes opusesse. Quanto à forma pela qual
reconhecer a soberania nacional luso-brasileira e retornar os partidos a interpretavam, ambas a consideravam já
a Portugal, os liberais brasileiros contaram com o apoio pela expressão “revolução brasileira”. Historiadores
do príncipe herdeiro dom Pedro, que permanecera conservadores como o visconde de Cairu, João Manuel
como regente no reino americano. A luta entre patriotas Pereira da Silva e Francisco Adolfo Varnhagen viam
brasileiros e as Cortes se traduziu ideologicamente a independência como resultado de uma reação de
em uma luta entre o constitucionalismo moderado legítima defesa do reino do Brasil contra a tentativa

72 PAÇO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

de recolonização das Cortes de Lisboa, no contexto Já historiadores liberais como o barão Francisco
de um processo lento e orgânico de diferenciação no Homem de Mello e Luís Francisco da Veiga viam a
contexto da comunidade imperial portuguesa, de que Revolução Brasileira como ato de afirmação de uma
o Império do Brasil seria o herdeiro. Eram partidários soberania da Nação americana contra o colonialismo
de uma monarquia constitucional, dotada de uma lusitano, que de posse de suas prerrogativas escolheu
legitimidade própria decorrente da tradição histórica e a monarquia constitucional com tanta liberdade como
de sua posição de primeira representante da vontade poderia ter escolhido a república. A revolução só teria se
nacional (a “unânime aclamação dos povos”). Essa completado com a abdicação de dom Pedro e a subida
visão justificava um constitucionalismo conservador ao trono de seu filho nascido no Brasil. Daí a conclusão
associado ao modelo político britânico, cujo governo de que “foi a 7 de abril de 1831, quando foi aclamado
misto, ao equilibrar monarquia, aristocracia e democracia, imperador do Brasil um príncipe brasileiro [i.e., dom
seria o único capaz de conciliar o imperativo de uma Pedro II], que foi proclamada a verdadeira e indisputável
liberdade compatível com a ordem. Seu adversário era independência deste Império” (Veiga, 1877, p.71). O
o constitucionalismo liberal identificado com o modelo Ato Adicional de 1834, por sua vez, havia conferido à
que cruzava a “monarquia republicana” da Constituição Constituição de 1824 o batismo de legitimidade nacional
francesa de 1791 com a Constituição estadunidense de que até então ela teria carecido. A “revolução”
de 1787. Era aos excessos desse modelo que os se impusera como fórmula política duas vezes: para
conservadores imputavam a instabilidade política proclamar a independência de Portugal e para obrigar
e o fracasso das experiências constitucionais das depois dom Pedro I a abdicar em favor de seu filho.
antigas metrópoles ibéricas e das repúblicas hispano- A dinastia seria assim “duas vezes revolucionária”,
americanas, que pareciam nas décadas de 1820-1830 reinando sempre por vontade da nação.
mergulhadas todas em um torvelinho de anarquia, guerra Já para os radicais – republicanos declarados ou
civil e desagregação territorial. encapotados –, a revolução teria sido um processo
burlado pela monarquia e/ou pelos seus cortesãos, que
“Por mais indispensáveis que sejam as revoluções; a teriam impedido de produzir todos os seus efeitos
por melhores intenções que as dirija; por mais libertários: “O partido liberal tem até hoje trilhado
sagrados que se manifestem os seus fins; quando uma senda errada e pouco segura: decepção sobre
não moderadas no seu princípio, e regularizadas decepção tem sido a sua vida” (Marinho, 1885, p.3). A
paulatina e razoavelmente na sua marcha, dissolução da Constituinte pelo primeiro Imperador era
assemelham-se a pedras lançadas do alto dos vista por Saldanha Marinho como um pecado original
rochedos, que se não podem conter na velocidade que maculara a existência do regime monárquico,
que levam, e nem parar onde se deseja”. cuja ilegitimidade se comunicaria a todos os seus atos
(Pereira da Silva, 1865 V, p.42) e descendentes. Assim, se a “revolução” para os

A REVOLUÇÃO
só teria se completado com a abdicação
de dom Pedro e a subida ao trono de seu
filho nascido no Brasil
SETEMBRO 2022 73
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

moderados só havia se completado quando da abdicação contraditório com o liberalismo (p. ex. Costa, 1999),
em 1831, para os radicais, ela havia sido uma farsa, que embora tenha durado também por muitas décadas em
exigia reformas de largo alcance para se tornar realidade. quase todas as repúblicas americanas. Essa crença
Se de fato aspiravam à instalação, no Brasil, de na existência de um liberalismo ou de democracia
um estado de verdadeira liberdade, democracia e “verdadeiros” que estariam ausentes no Brasil resiste
independência nacional, os liberais deveriam abandonar na opinião pública, mas também em uma academia
qualquer tentativa de contemporização com a monarquia, preocupada quase exclusivamente com a história social
rompendo com a ficção do constitucionalismo que e com o modo pelo qual ela poderia contribuir, ainda
ocultava a realidade do seu governo absoluto. Herdeiros hoje, para superar os males de uma “herança ibérica”
do radicalismo no século XX, os historiadores de classificada patrimonial, clientelista e autoritária.
esquerda e marxistas tenderam sempre o impacto
do liberalismo e exageraram todos os tipos de CONCLUSÃO
continuidades entre o Antigo Regime colonial e o novo A passagem do Antigo Regime para o liberalismo
Estado liberal, enfatizando especialmente a continuação foi menos traumática no Brasil do que em Portugal.
do escravismo como regime de trabalho, reputado Diversos fatores concorreram para reduzir as

74 PAÇO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

resistências. Destituído de um passado feudal, o e pura posse, sem recurso formal ao registro público,
ambiente americano era menos orientado pela tradição, e menos ainda a institutos legais como morgadios. A
tendendo o público a ver a grandeza do Brasil antes no menor capilaridade do Estado reduzia sua importância e
futuro do que em um passado colonial repudiado. A generalizava a informalidade.
nobreza titulada e hereditária brasileira se reduzia em A monarquia brasileira teve também de enfrentar o
1822 a um irrelevante punhado de fidalgos agraciados, processo de construção nacional, que favorecia arranjos
que faziam pouco por dom João. O grosso da nobreza concentradores de poder, contra as resistências dos
da terra, a despeito da mentalidade aristocrática, grandes proprietários. Era uma lógica cuja ação exigia o
vivia da exportação de produtos primários e sofria as inverso do liberalismo: a concentração de poder na capital
oscilações do mercado. Boa parte do clero tendia a ser nas mãos do príncipe. Por essa razão, prevaleceu até a
progressista, e de suas fileiras saíram vários dos liberais década de 1860 um constitucionalismo moderado, que
mais radicais. A transição para o constitucionalismo coibiu o excesso de liberdade em nome da consolidação
patrocinada pela própria Coroa, encabeçada pelo do novo Estado. Tudo somado, a Revolução Brasileira foi
príncipe legítimo, desmobilizou a eventual resistência mais suave ou menos traumática que a portuguesa, mas
de setores conservadores, como os altos prelados, os também mais epidérmica ou superficial. Não é descabido
oficiais do Exército e o alto funcionalismo, composto assim crer que o advento do liberalismo em 1821 tenha
principalmente por desembargadores. Os potenciais sido apenas o ponto de partida de uma longa “revolução
“absolutistas”, antes ilustrados do que reacionários, liberal”, que só começaria a revolver as raízes sociais do
aderiram a uma forma moderada de constitucionalismo. Antigo Regime na segunda metade do século, graças
Os bens da Igreja seguiram intocados, assim como a ao desenvolvimento das estruturas capitalistas no país
principal instituição social, que era a escravidão. Além (Holanda, 1936; Fernandes, 1975; Lynch, 2021).
disso, as instituições do Antigo Regime eram mais
débeis na América do que na Europa. As corporações O autor é professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos
sofriam a concorrência dos escravos. A imensidão de (IESP-UERJ)
terras desabitadas favorecia a ocupação por simples clynch@iesp.uerj.br

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SETEMBRO 2022 75
PRETOS

+PARDOS
76 CENSO
UM
AB
REV
José Szwako
E H ISTÓ Cientista social
R

Adrian Gurza Lavalle


IA DAS CLASSIFICA

Cientista político

São diversas as formas e estratégias pelas quais


redes, organizações e militantes de movimentos
ÇÕ

sociais conseguem transformar suas demandas em


ES

instituições e políticas públicas. Desde “Seeing like


IA
RA

IS
a social movement” (Szwako & Gurza Lavalle,
C

, MO
2019), temos insistido que a observação

VI
das formas nativas de classificação é um
ME caminho valioso para a compreensão
da transformação e institucionalização
NT

das categorias dos movimentos em


OS GROS

capacidades cognitivas estatais.


Naquele texto, utilizando-nos da
NE

metáfora visual de J. Scott (1998),


e aproximando-a de uma leitura
socioantropológica das formas
simbólicas (Durkheim & Mauss, 2009),
E INS

argumentamos que a institucionalização


simbólica lança luz sobre uma dimensão
TIT

pouco analisada na pesquisa sobre


U CI

movimentos sociais no Brasil: se as categorias


O

e sistemas classificatórios elaborados por


NAL

movimentos sociais em suas relações com outros


IZ

atores são constructos que ordenam moralmente o


A

mundo e prescrevem comportamentos adequados,


ÇÃ

demarcando o justo e o injusto, o correto e o


S O

incorreto, o produtivo e o improdutivo, o legítimo e


IM

o ilegítimo, então, sua incorporação como parte da


linguagem do Estado tem efeitos na produção de


L

políticas (Szwako & Gurza Lavalle, 2019).


ICA N
O BRASIL

SETEMBRO 2022 77
C
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Categorias não apenas são constructos sociais,


com sua própria história, mas são mediações
fundamentais na construção do mundo social
A traj
etór
ia d
(Durkheim e Mauss, 2009; Berger & Luckmann, ac
las
1994). As demandas de ativistas, redes de atores sif
civis e movimentos sociais não nascem prontas

ic

e munidas de prioridade, elas pressupõem a

or ã
identificação de problemas comuns e elaboração

acial o
de diagnósticos compartilhados que conferem

ficia
centralidade e “nome” a um problema, articulando-o
a uma compreensão do mundo. Assim, as

espelhada nos l
categorias articulam problemas, diagnósticos e visão
de mundo e sintetizam histórias de conflito que
tornaram possível essa compreensão compartilhada.
Ao mediar a percepção do mundo, o hierarquizam e
orientam a ação dos atores nele. ce ns
Neste brevíssimo comentário, queremos
os
ler, por meio das lentes da institucionalização
dem

simbólica, a variação histórica das categorias


ogr

(oficiais e movimentalistas) utilizadas para classificar


áfi
co

a população brasileira e as disputas associadas a


sb

essa variação, especificamente no que diz respeito


ras
ile

à posição social e à dimensão demográfica da


iro

população negra. Analogamente a outros casos,


sp
od

o histórico das formas pelas quais o Estado


ei

brasileiro classificou a multiplicidade de grupos


lum
ina

étnico-raciais partícipes da população carrega,


ra

desde fins do Império (cf. Loveman, 2009, 2014),


de

as expectativas ao redor dos projetos de nação. A


qu
daa

trajetória da classificação racial oficial espelhada


me

nos censos demográficos brasileiros pode iluminar


nt e

adequadamente os dilemas e tensões que, a cada


os

momento histórico, delimitam o imaginário nacional


dile

e os ideais (disputados e imaginados) de progresso,


mas

civilização ou, de meados do século XX até hoje, de


e ten

desenvolvimento.
No primeiro censo levado a cabo no Brasil, em
sões que

1872, conviveram duas formas de classificação,


uma propriamente racial e outra social-legal.
Enquanto o quesito “raça” dividia a população entre
delimitam o im

“pardos”, “pretos”, “brancos” e “caboclos”, era


o critério “condição civil” – deslindando os tipos
“livre”, “escravo” e “liberto” – que mais pesava nas
preocupações de organização e análise dos dados
a

daquele censo (Oliveira, 2003). Tal ênfase e escolha


gin

censitárias refletiam, em larga medida, as tensões


á rio na
cion
al

78 CENSO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

inerentes à “prioridade social, legal e cognitiva da


distinção, na sociedade brasileira, entre escravos e
livres” (Loveman, 2009, p. 467).
Já no advento da Primeira República, a
opção “mestiço” substitui no censo de 1890 o
elemento “pardo” na classificação racial oficial,
“assumindo o sentido atribuído pelo [projeto de]
branqueamento, qual seja, o de diluição do sangue
negro no cruzamento com os contingentes
migratórios” (Camargo, 2009, p. 369-370).
Paradoxalmente, na república de “homens livres”,
a extinção da hierarquização social pela condição
civil cedeu passo à racialização como processo
marcador da desigualdade e ao branqueamento
como o caminho para o progresso. Assim,
nessa trajetória, o censo posterior, de 1920,
excluiu de suas formas classificatórias o quesito
“raça”, sob argumentos de racionalidade
técnica e de limitação da capacidade de aferir
a “verdadeira raça” nacional – concordando,
porém, “tacitamente com o argumento do
branqueamento da população” (Camargo, 2009,
p. 379).
Interessantemente, os censos seguintes,
de 1940, 1950 e 1960, contando com um
aparelho estatal profissionalizado e dotado de
capacidades cognitivas cristalizadas no Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
passaram a classificar a população em “cor”, e
não mais em “raça”. Se no recenseamento de
1940 pergunta-se pela cor: “branca”, “preta”
ou “amarela”, os censos seguintes ampliaram
esse leque classificatório com a soma de uma
quarta opção “parda”. Institucionalizados e
autocompreendidos por seus realizadores qua
instrumentos de investigação social, e seguindo
os processos socioeconômicos a eles coevos, os
censos de 1950 e 1960 “deslocam o problema
da nacionalidade (...) cedendo crescente lugar às
migrações internas (campo-cidade) e à inserção
econômica dos migrantes, sobretudo de origem
rural, no contexto urbano-industrial” (Camargo,
2009, p. 382).

SETEMBRO 2022 79
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Essas mudanças e disputas classificatórias pelos


esquemas raciais oficiais permitem notar, ao menos,
duas questões. Os sumiços e retornos da categoria
“pardo” denotam não só como ela constitui um dilema
para nossas agências e políticas estatais (cf. Campos,
2013), mas também sua relativa força como fonte de
identificação, constituindo “verdadeiro enigma” (Daflon,
2017, p. 51-ss). Além disso, essa sorte de enigma e o
conjunto dos dados oficiais extraído dos recenseamentos
tiveram, a partir do final da década de 1970, tratamento
científico sui generis nas mãos de Carlos Hasenbalg e
Nelson do Valle Silva.
Ao contrário de gerações de pesquisas anteriores,
para as quais as dinâmicas de preconceito e discriminação
raciais eram resiliências do passado, esse par de autores,
juntos ou separadamente, entendia que “[a] raça, como
atributo social e historicamente elaborado, continua a
funcionar (...) na distribuição de pessoas na hierarquia
social (Hasenbalg, 1982, p. 89-90). É mais: baseados
em dados censitários, Hasenbalg e Silva chegaram
à conclusão de que “pretos” e “pardos” compõem,
em termos estatísticos, um grupo “um tanto quanto
homogêneo” (Silva, 1978, p. 215) relativamente às
desigualdades e chances de mobilidade, controladas as
variáveis como ocupação, renda e instrução.
Esse grupo estatístico foi por eles caracterizado
como população “não branca” – “constituída por pretos
e pardos, na denominação dos censos demográficos
e da PNAD”1 (Hasenbalg, 1982, p. 92). Colocando tal
operação cognitiva em ação, lançavam nova luz sobre as
desigualdades raciais e destacavam o “abismo” (Daflon,
2017, p. 67), em termos socioeconômicos,2 entre não
brancos e brancos. Essa classificação consagrou-se no
país, de modo que “praticamente todas as pesquisas
sobre raça e mobilidade social no Brasil mantiveram tal
estratégia metodológica, agregando ‘pretos’ e ‘pardos’
numa só categoria estatística” (Campos, 2013, p. 84).
Do ponto de vista das organizações e lideranças do
movimento negro, a cognição implicada na categoria
“não brancos” não passou incólume. A começar pelo
próprio Carlos Hasenbalg, que tinha ligação com parte
do movimento, em especial, com Lelia Gonzalez,
coorganizadora e também autora de “Lugar de Negro”
(Gonzalez & Hasenbalg, 1982). Com efeito, no léxico
discursivo das lideranças e campanhas do movimento,
a lógica interna à designação de “não brancos” passou
por dupla apropriação. Por um lado, a noção mesma de
“pardo” e sua força expressa nos índices de identificação
censitária foram objetos de denúncia. No contexto da

80 CENSO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

execução do censo de 1990, a campanha “Não deixe


sua cor passar em branco – Use o bom c/senso” criticava
a “ideologia do embranquecimento” implicada na
autodescrição “pardo”. Segundo a campanha, o contraste
entre os quase 40% “pardos” e os quase 6% “pretos”
da população brasileira recenseada em 1980 era fruto do
racismo e da “autonegação”.
Por outro lado, no contexto de aproximação entre
governo federal, universidade e partes do movimento negro,
em que ocorreram os debates sobre ações afirmativas na
segunda metade dos anos 1990, a moldura interpretativa de
alguns intelectuais negros sinonimizou “não brancos” ora
com a qualificação “negra” – “população negra”, “massa
De 1

negra” –, ora como “afrodescendentes”. “Cerca de 44% da


980

população”, diz Helio Santos (1997, p. 211), “é constituída


por ‘pretos’ e ‘pardos’. Tal contingente formidável atinge
até

mais de 65 milhões de afrodescendentes!”.3


hoje, o

Desse modo, mesmo tendo criticado a primeira parte


da equação “pardos + pretos”, o movimento negro se
esquema de classificaç

apropriou da categoria “não brancos” de forma a produzir,


na acurada definição de Rios, um nada desprezível
argumento demográfico no qual “o negro é maioria” (Rios,
2014, p. 174). Ou, por outra: o recurso movimentalista
à “maioria negra” herda a cognição e, nesse sentido,
depende da lógica categorial da noção sociológica “não
branco”.
ão

Do ponto de vista das formas estatais de categorização


rac

e hierarquização, de 1980 até hoje, o esquema de


ial

classificação racial oficial permaneceu relativamente estável,


ofi

ao mesmo tempo em que seus usos e os raciocínios


al p ci

que a eles subjazem mudaram parcialmente. Desde


e

1991, quando o quesito “cor ou raça” suplantou “cor”, o


rm an e

leque classificatório abrange cinco categorias: “branco”,


“indígena”, “pardo”, “preto” e “amarelo”.
ceu

À exceção do componente indígena, somado no pós-1988


rela

– e cuja sociogênese demandaria análise própria –, essas


t iv

categorias não mudaram desde o censo de 1980.


ame
n te

O movimento negro se apropriou da categoria


estáve

“não brancos” de forma a produzir um nada desprezível


argumento demográfico no qual “o negro é maioria”
l

Em certa medida, tal estabilidade e a permanência


da questão racial no maior recenseamento do país
dependeram da mobilização de bases e organizações
do movimento negro e de sua aliança com setores
da universidade brasileira, especificamente, com C.
Hasenbalg.4 Categorias relativamente estáveis,5 dizíamos,

SETEMBRO 2022 81
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

porém com usos oficiais alterados. O esquema através do


qual foram lidas essas categorias censitárias foi interpelado
por aquela lógica “pretos + pardos” e pelo correspondente
agrupamento estatístico “negros” (Cf. Campos, 2013).
Um dos usos inaugurais dessa forma de categorização
agrupada está em “Desigualdade racial no Brasil”
(Henriques, 2001).6 “Neste trabalho”, diz R. Henriques,
citando Hasenbalg e Silva, “quando nos referimos à
população negra ou afrodescendentes no Brasil, estamos
considerando o conjunto das populações parda e preta”
(2001, nota 4). Esse procedimento analítico vem desde
então permeando os diagnósticos e modelos de diversas
agências e gestores públicos,7 sobretudo, mas não
exclusivamente, a partir do IPEA: “Em 2007, a população
negra superou a população branca e, no Brasil, 49,8% da
população brasileira se identificava como sendo preta ou
parda” (Soares, 2008, p. 97).
Em 2
007
, 49
,8 %
da
po
pu
laç
ão
br
as
ile
ira
se
ide
tifin
cav
a co
mo s
endo preta ou pa
rda

82 CENSO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Essa revisão das equações e classificações raciais nos fala não apenas das
tentativas oficiais de apagamento de frações de nossa população, mas também
das formas de resistência, estratégias e alianças que estiveram na raiz da
legibilidade pública desses mesmos grupos

Esses exemplos poderiam ser multiplicados, engajados nesse combate em diferentes políticas públicas
mas o essencial é que ambos, militantes e gestores, (cf. Coelho e Gurza Lavalle, 2019).
compartilham da mesma lógica classificatória Essa brevíssima revisão das equações e classificações
estruturada pela noção acadêmica e sociologicamente raciais nos fala não apenas das tentativas oficiais de
denominada de “não brancos”, com efeitos discursivos apagamento de frações de nossa população, mas
muito similares – “[os] brasileiros afrodescendentes também das formas de resistência, estratégias e alianças
constituem a segunda maior nação negra do mundo” que estiveram na raiz da legibilidade pública desses
(Jaccoud & Beghin, 2002, p. 25). Circulando entre mesmos grupos. Tal como para os feminismos e outros
loci oficiais e movimentalistas de enunciação,8 a movimentos sociais, tem sido altamente produtiva a
força discursiva desse apelo demográfico e o modelo aproximação entre movimentos negros e partes da
analítico a ele subjacente afetam a circunscrição de academia brasileira, denotando a forma criativa pela qual
quem são e devem ser os grupos beneficiários das as e os ativistas se apropriam das lógicas e achados
políticas públicas justificadas com base, nesse caso, na sociológicos. Como resumiu acuradamente Sueli
categoria “negros”. Assim, “o modelo adotado pelos Carneiro,9 a complexificação interna à compreensão de
militantes negros e pelos pesquisadores do IPEA reduz quem seriam os “negros” no Brasil correspondeu a uma
as categorias a duas: ‘branca’ e ‘negra’, sendo que esta verdadeira engenharia institucional – e simbólica –, com
segunda congrega todos os classificados como ‘pretos’ resultados e ganhos nada desprezíveis em termos da
e ‘pardos’” (Campos, 2013, p. 87). orientação de políticas e dos atores por elas responsáveis.
Tal modelo e sua aplicação em políticas específicas De modo peculiar, no entanto, a soma “pretos +
não estiveram, é certo, livres de controvérsia. Esse pardos” como sinônimo de “negros” deixou de
procedimento foi acusado de criar discursivamente com ser alvo dos críticos das ações afirmativas no país,
um “passe de mágica metodológico” uma dicotomia e para se tornar alvo de crítica por parte das lideranças e
um grupo étnico inexistentes – a dicotomia branco/não intelectuais dos movimentos negros no país. Na medida
brancos e o grupo não brancos, respectivamente (cf. em que desconsidera os resultados contraditórios e
Fry, 2006) –, e de operar um genocídio racial estatístico perigosos para ambas, tanto para nossas formas de
(Carvalho, 2004). Do outro lado da controvérsia, o classificação racial como às políticas antirracistas, tal
raciocínio “pretos + pardos” e sua designação como estratégia colorista pode ser, como disse S. Carneiro,
“negros” tiveram defesa justificada estatística e um tiro no pé.
teoricamente: “pela uniformidade de características
socioeconômicas dos dois grupos” e por “fornecer uma José Szwako é professor do Instituto de Estudos Políticos
explicação para a origem comum das desigualdades dos e Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
pretos e dos pardos em relação aos brancos” (Osorio, (IESP-UERJ) e bolsista Prociência UERJ.
2003, p. 24). Por certo, institucionalizar essa forma de zeszwako@iesp.uerj.br
classificação nos esquemas que hierarquizam a ação do Adrian Gurza Lavalle é professor DCP/USP, pesquisador do
Estado não combate per se a discriminação racial, pois CEM e do CEBRAP.
Apoio do Cepid CEM, financiado pela Fapesp, processo nº 2013/07616 7.
os efeitos produtivos dessa institucionalização precisam Opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas são de
ser disputados. Ainda assim, certamente inscreve responsabilidade dos autores e não necessariamente refletem a visão da Fapesp.
noutro patamar de construção discursiva as condições gurzalavalleadrian@gmail.com
nas quais atuam os agentes públicos e atores sociais

SETEMBRO 2022 83
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

NOTAS DE RODAPÉ

1. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). 7. Em “Desigualdades raciais no Brasil: um balanço da intervenção
governamental”, lê-se que, “em 18 das 27 Unidades da Federação, os
2. O avanço das pesquisas sobre relações raciais e desigualdades mostrou negros são majoritários, isto é, mais de 50% das pessoas se declaram
que, apesar da adequação do grupo estatístico “não brancos” para iluminar pretas ou pardas” (Jaccoud & Beghin, 2002, p. 25). Também gestores do
desvantagens socioeconômicas, pretos e pardos não são homogêneos IBGE parecem ter se apropriado desse agrupamento estatístico; veja-se: “os
quanto a outros padrões de discriminação como, por exemplo, no mercado maiores índices sobre pobreza (...) pertencem aos segmentos negros (pardos
afetivo-marital, onde pretos são comparativa e sistematicamente mais e pretos) dessa população”, ou ainda “os contingentes populacionais negros
desprivilegiados que pardos. Ver Ribeiro (2017). (pretos e pardos)” (Nascimento & Fonseca, 2013, s/p).

3. Importante notar aí dois pontos. Primeiramente, as noções de 8. Tal como noutros exemplos, a circulação de ideias, argumentos e
“afrodescendente” e de “negro” não são intercambiáveis, pois designam categorias entre Estado e movimentos sociais se intensificou, ao final do
formas, temporalidades e tentativas distintas de designar um mesmo grupo último mandato FHC, defronte à Conferência de Durban (Alves 2002); no
étnico-racial. Além disso, muito mais que o termo “afrodescendente”, a contexto de preparo e participação em tal conferência, nota-se a intervenção
fabricação do qualificativo “negro”, como reconstrução estético-identitária da militante do movimento negro, “Edna Roland (...), [que] reflete e
do ideal positivado de negritude, a exemplo do “orgulho negro”, vem contempla o desenvolvimento verificado ao longo das consultas realizadas
sendo forjada por militantes e organizações do movimento negro desde anteriormente e se insere no quadro de um refinamento progressivo
meados dos anos 1970. A noção aqui escrutinada de “negro”, como fruto da terminologia e das categorias discursivas a serem mobilizadas para a
da operação cognitiva “pretos + partos”, não apaga esse histórico; para duas Conferência. (...) Assinalando que ‘50% da população brasileira é composta
análises ricas a esse respeito ver Rios (2014) e Rodrigues (2014). por negros’, [posicionou-se] a representante do Conselho das Comunidades
Negras de São Paulo” (Thomaz & Nascimento, 2003, p. 36).
4. Além da publicação já mencionada, Nelson do Valle Silva usa a expressão
“forte engajamento” para designar a relação entre Hasenbalg e o movimento 9. Cf. https://www.youtube.com/watch?v=2mmuyRXHHg0. Agradecemos
negro. Pista desse engajamento pode ser vista ainda na fala de Silva sobre igualmente a Luiz Augusto Campos por essa lembrança.
o episódio no qual Hasenbalg incentivou a militância para manter (como, de
fato, conseguiu manter) o quesito “raça” no censo de 1980. Há, no entanto,
outros casos nos quais a aliança entre movimentos sociais e academia
teve como efeito alterar os esquemas censitários, tal como se nota no
depoimento de Elza Berquó: “[o] Censo de 2010 incluiu a informação sobre
casais do mesmo sexo. Eu estava lutando para isso desde o Censo de 1991,
sem sucesso. Não foi trivial. Também hoje já não se usa mais o conceito
de ‘chefia do domicílio’. Trocou-se o ‘chefe’ pela ‘pessoa de referência’. Os
movimentos feministas não queriam que se falasse em chefia” (Barbosa et
al, 2013, p. 151). Agradecemos a Luiz Augusto Campos pela lembrança sobre
o depoimento de Silva, que pode ser visto em https://www.youtube.com/wat
ch?v=58rpWR0tsO8&feature=youtu.be&t=2h3m22s.

5. Com vistas a aprimorar seu sistema classificatório oficial, o IBGE realizou


em 2008 a Pesquisa das Características Étnico-raciais da População.
Contando com acadêmicos e lideranças do movimento negro na
confecção do questionário, essa pesquisa, por vias de autoclassificação
e heteroclassificação, ampliou o leque classificatório disponível para “cor
ou raça”, incluindo as categorias “morena” e “negra”. Ao mesmo tempo
em que a PCERP conclui que a categorização oficial atual dá conta da
complexidade das formas de autoclassificação na população, parte de
seus resultados reforça a posição enigmática da categoria “pardo”, dadas
e constatadas “uma predileção pela categoria negra em detrimento da
preta; e (...) a utilização da categoria parda [sic] em detrimento da morena”
(Nascimento e Fonseca, 2013, s/p).

6. Henriques (2001) é, de longe, o mais conhecido, citado e criticado (como


veremos) pelos opositores dos textos oficiais que se valem dessa forma
categorial agrupada. Antes dele, Soares (2000) usou outra categorização,
que, embora parecida, não teve repercussão em outras formas e fontes
estatais de produção de conhecimento; “optamos por agregar (...) segundo
as seguintes categorias: negro = {pardo, negro, indígena} e branco = {branco,
amarelo}” (Soares, 2000, nota 1).

84 CENSO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

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SETEMBRO 2022 85
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ESTI
LHA
ÇOS
SEM
QUALQUER
CONEXÃO
86
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Topázio, tumorações, badulaques, sensações, camafeus,


relicários, semáforos, ophtalmias, epifanias, chita, âmbar,
guache, croché, Maomé, vitrais, cetim, arlequim, marfim,
riscados, babados, nanquim, renda, prenda, John Cassavets,
medusa, Clermont-Ferrand, Yeats, flocos, trastes, carcinoma,
versos, plexos, nexos, analgésicos, distopia, antropofagia, credo,
cruzes, nudes, trás-os-montes, bondes, cárie, esmalte, cria,
corvos, frouxos, conta, gota, aço, caco.
Os autores constroem um mosaico sem rima, um perto tão
longe, turmalinas ao léu, desencontros e favos de mel, cio da
terra, leite de letras.
Nunca tão poucos esgrimiram palavras vizinhas, absurdos
sensatos, água e sal para os olhos, um mar de porcelana e coral,
um deleite para a leitura e livre pensar.
São cinco fragmentos na contramão, reinvenção do que está por
ser inventado. Deleitem-se.

SETEMBRO 2022 87
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

SALVE
REGINA
Marcus Fabiano Gonçalves
Jurista e escritor

88 NARRATIVA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

N No mundo luso-brasileiro, Aparecida é o culto mariano que só


encontra paralelos na adoração a Fátima, em Portugal, ou no Círio
de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém do Pará. Mas isso não
obstou que, em 16 de março 1978, o jovem iconoclasta Matheus
Cavalcanti, de 19 anos, quebrasse o vidro protetor e arrancasse a
imagem de Nossa Senhora da Imaculada Conceição Aparecida do
seu santuário em meio à escuridão provocada por uma queda de
luz. Corria a missa das 20 horas. E no assalto ao nicho de ouro, a
santa logo perdeu a coroa e a cabeça, destruindo praticamente
toda sua face esquerda. O rapaz foi perseguido pelas ruas, e o
corpo da escura imagem em terracota, levada por ele, encontrada
em 1717 por três pescadores do rio Paraíba do Sul, foi lançada
violentamente ao solo, estilhaçando-se em mais de 200 pedaços,
dos quais 165 do corpo e 35 da cabeça foram minuciosamente
recuperados por freiras e fiéis, embora lamente-se que alguns
vestígios tenham sido guardados por particulares como relíquias.
Contando então com 35 anos de idade, a artista plástica e
conservadora Maria Helena Chartuni, do Museu de Arte de São
Paulo, foi encarregada de ordenar os fragmentos e recompor
a integridade da estátua, trabalho que realizou com devoção,
um adesivo à base de epóxi e sob o paradigma da Pietá, de
Michelângelo, então há pouco restaurada no Vaticano. Com
pequenas mudanças no manto e no penteado, a fim de se
lhe reforçar a estrutura, a imaginária de traços coloniais estava
novamente hígida após exatos 33 dias de dedicado esforço. O
retorno triunfal da santa à sua Basílica ocorreu ainda no ano de
1978, em uma imensa procissão de São Paulo até Aparecida do
Norte que consternaria o Brasil inteiro: era um país todo, outra
vez, reunindo-se a partir de seus pedaços.

SETEMBRO 2022 89
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

110 anos antes, em 1868, a Princesa Isabel havia visitado


o santuário velho de Aparecida com seu esposo, o Conde
D’Eu, e ofertara à santa o seu célebre manto azul brocado
com 21 brilhantes representando as 20 províncias do
Império, somadas à capital. No ano 1884, Isabel retornava a
Aparecida para agradecer ao atendimento de uma promessa
feita, provavelmente sobre a gestação de seus herdeiros e
a proteção de seu marido que antes partira para a Guerra
do Paraguai. É então que Isabel oferece à imagem a coroa
em ouro de 24 quilates com 300 gramas, cravejada de
diamantes, uma réplica miniaturizada da sua própria, a
ser usada como futura Imperatriz do Brasil. Estava assim
completa a iconografia pela qual Nossa Senhora Aparecida
é por todos nós hoje conhecida, tudo de acordo com uma
autorização papal concedida definitivamente apenas em
1904. Conta-se também que a Princesa Isabel, pressentindo
o golpe republicano tramado por vingança contra a Lei Áurea,
teria deixado a Aparecida um bilhete “como Princesa da
terra que se curvava à Rainha dos céus” rogando à santa
que, caso não chegasse a subir ao trono, ela governasse
perpetuamente o Brasil desde os potentados celestes.
Quanto ao perpetrador do atentado à imagem de 1978,
nada se fez contra ele: Matheus Cavalcanti foi sempre
tratado como doente mental e sequer uma queixa fora
prestada às autoridades policiais. O poema abaixo, de
natureza agnóstica e pseudoanagógica, dediquei ao poeta
e ensaísta Wladimir Saldanha, pois tenho a certeza de que
uma leitura católica poderá ainda melhor se aproximar do
coração do seu enunciado. Creio que esse poema constará
em meu próximo livro, Hálux. Registro também que seus
versos foram escritos nos pré-pandêmico ano de 2018,
exatamente nos 40 anos de reconstrução da imagem de
Nossa Senhora Aparecida.

O autor é professor de Filosofia do Direito na Universidade


Federal Fluminense – UFF
marcusfabiano@terra.com.br

90 NARRATIVA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

(RE)APARECIDA

fiéis reverentes um mormaço


às mãos ambas cresta os beiços
apeiam da chalana e peregrinos
caem de joelhos
e na pegajosa lama ante à padroeira
do remanso
atestam as sotainas: uns imitam cilícios
deveras, eis a santa ao simular calvários
outros erguem círios
sob manto e coroa carregando ex-votos
sem tinta ou gesso
a terracota fita dando graças
onde haja de salve regina
encorajamento muitos choram
frente à figura
grãos em vagens reconstruída
pistilos guenzos: dos destroços.
rodeavam-na
viçosos e derruídos
jovens e avoengos

SETEMBRO 2022 91
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Hermano Roberto Thiry Cherques


Administrador

O CASO
BARTLEBY A RECUSA AO TRABALHO NA
PERSPECTIVA DE AGAMBEN, BORGES,
FOUCAULT E MELVILLE

92 CRÔNICA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

CONTEXTO
Escritório de advocacia em Wall Street.

AGENTES
O advogado, Bartleby, escriturário, os demais
empregados.

ANTECEDENTES
Sobrecarregado de clientes e processos, o escritório FECHO
se vê na necessidade de contratar de um novo Em consequência da polida recusa em se alimentar
escriturário copista. Ao anúncio, candidata-se Bartleby, (“eu preferia não”), Bartleby morre de inanição.
um jovem calmo, polido e com a experiência de haver
trabalhado no Departamento de Cartas Mortas, as cartas PONTOS DE VISTA
extraviadas dos Correios (Dead Letter Office). Agamben (Agamben, Giorgio (2007). Bartleby,
Contratado, Bartleby desempenha suas tarefas escrita da potência. Lisboa. Editora Assírio & Alvim),
com entusiasmo e dedicação, transcrevendo uma enxerga no escrivão o protótipo do trabalhador e do
grande quantidade de processos em tempo recorde. vivente espiritualmente apático. Aquele que prefere não
Produz tanto que desperta a inveja dos colegas e ganha preferir. A atitude de Bartleby correspondendo a uma
seguidos elogios do chefe. “decriação” [uma reversão da criatura].
Foucault (Foucault, Michel (1977). Vigiar e punir;
O CASO Petrópolis, Vozes & (2001). Le Foucault électronique;
Em um dia normal de trabalho, o advogado comete Dits et ecrits.) vê em Bartleby a recusa da disciplina, a
uma tarefa ao escriturário. À solicitação, Bartleby diz negação de ser um sujeito dominado. Bartleby seria o
educada e suavemente: “eu preferia não” (“I would epígono dos que escapam do dispositivo de poder nas
prefer not to”). Surpreso ante a resposta, o advogado, instituições que incide e anula o que há de humano no
que havia se tornado seu admirador, pergunta se ser humano.
estaria cansado, doente, pretendendo um aumento Jorge Luis Borges (Melville, Herman (1944).
ou com intenção de pedir demissão. A todos os “Bartleby”. Traducción y prólogo de J.L. Borges. Buenos
questionamentos Bartleby responde que, afirmando que Aires, Emecé Editores) vê Bartleby e sua situação como
somente “preferia não” realizar as suas tarefas habituais. precursores do Sr. K e das situações de Kafka, que nos
O advogado permite que ele permaneça no posto seus escritos demonstrou o absurdo do trabalho e da
enquanto faz tentativas insistentes para que volte a existência humana.
trabalhar. Um fim de semana, por acaso, o advogado Herman Melville (Melville, Herman (2008). Bartleby,
passa pelo escritório. Descobre, então, que Bartleby o Escriturário. Trad. Cássia Zanon. Porto Alegre.
estava morando lá. L&PM Pocket [EBook Kindle]), autor original do caso,
encerra o texto com a expressão: “Oh Bartleby! Oh
SEQUÊNCIA Humanidade!”. Possivelmente atribui a atitude do
Sem forças para expulsar o gentil e obstinado escrivão à recusa de ser um utensílio, um instrumento
escrivão, o advogado muda o escritório para outra de trabalhar. Salvo que é também possível que Melville
locação. Segue-se que os inquilinos do antigo escritório, atribua o fim suicida de Bartleby à característica
não conseguindo se livrar de Bartleby, chamam a polícia, debilidade espiritual da maioria dos seres humanos.
que o leva preso.
Sabedor da prisão de Bartleby, o advogado vai até O autor é doutor em Ciências de Engenharia de Produção
a detenção. Oferece-lhe ajuda, inclusive para pagar pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
a fiança. A tudo Bartleby responde “preferia não”. O hermano.thiry@gmail.com
advogado, então suborna o guarda para que este pelo
menos alimente decentemente o escrivão, e se vai.

SETEMBRO 2022 93
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ACONTECE,
ACONTECE
Fabiana Souza Lima
Escritora

94 CONTO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

UBALDO TEIXEIRA
Ubaldo Teixeira calçava os mesmos sapatos
há muitos anos. As solas finas permitiam sentir as
pedrinhas espetarem o pé. Trabalhava na Biblioteca,
devorando clássicos como quem é pago para o ócio.
Era ensimesmado. Guardava os romances para o
apreço de Flor.
Flor, submissa, só se despia autorizada. Nunca ousou
andar com ele pelas ruas. Aceitava o calvário por volúpias
inesperadas e pelo encantado mundo literário que FLOR FRAGOSO
aguçavam sua escuta. Flor ouve de um acidente com várias vítimas. Corre
Anos passam. Flor já se amargava. ao saguão dos velórios.
Ubaldo, distraído, não notava. As únicas marcas que Sobre o caixão, chora feito toalha torcida. Aturdida,
liturgicamente mantinha, peninteciado, eram as feridas perde perdão a Ubaldo. Relembra com dificuldade as
pelas solas furadas. obscenidades. Lamenta que já não o desejasse tanto
Flor era esposa de seu melhor amigo, Dr. Ubaldo e, que, ainda assim, ele sofresse pelo romance às
Fragoso. encondidas.
O amante da mulher do melhor amigo, Dr. Fragoso,
UBALDO FRAGOSO esse sim, de quem Flor se enojava.
Ubaldo Fragoso estudou Direito, conhecia a Lapa de Uma aliança lhe chega constrangida ao anelar direito:
cor e o Código Penal, de cola. Seria herdeiro de cartório. “Flor Fragoso”. “Estava no dedo do falecido”.
Na volta da capital, Ubaldo casou-se com a maior Foge, vingada, do velório errado. Corre, corre,
beldade da cidade. inundando o corredor das lágrimas ambíguas.
Dr. Fragoso não se feria pela rotina. Carimbava, Num passar de olhos, nota uma placa. “Ubaldo
falsificava testamentos, organizava tomos no cartório, Teixeira”. Não pode ser.
muitas horas por dia. Estratosfera segura. Nunca Salão vazio. Era ele mesmo. Morto no mesmo
permitiu que Flor trabalhasse, tamanho o medo de acidente.
que o cansaço lhe extinguisse a beleza. Sabia que Flor “– Já disse muito mais do que merecia ouvir. Farta
apreciava as Letras e Artes. Pedia histórias, salvo nas de você. O acidente poupou essa ferida.” Amém.
noites de intimidade. Em casa, Flor veste a calcinha mais transparente e
Quis herdeiros. Nunca chegaram. Flor tinha um corpete que mal cobre os seios. Solta os cabelos.
subterfúgios. O carinho de seu lençol de cetim sem as correntes da
Anos passam. bigamia. Orvalhou-se.
Notando Flor amargurada, inventou um cruzeiro à Já cansada, começa a subtrair da mente seus
Europa. Não há amor esmorecente que resista a Paris. recolhimentos, muitos dos quais ela nem conhecia.

fsouzalima@gmail.com

SETEMBRO 2022 95
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O
VERDA -

DEIRO
REALISMO
DA -
HUMA
NIDADE
Fersen Lambranho
Engenheiro

96 PROSA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

“Adoramos a perfeição, porque a não podemos


ter; repugná-la-íamos se a tivéssemos. O perfeito
é desumano, porque o humano é imperfeito.”

E
Fernando Pessoa

Estava numa mesa de jantar, na casa de amigos,


quando levantei o tema da minha admiração por uma
jovem parlamentar. Fui surpreendido pela reação negativa
ao meu comentário, vinda de mulheres à mesa.
Pensei: Como pode uma jovem de periferia, que
conseguiu vencer as limitações do seu meio, foi aceita por
Harvard e depois chegou ao Congresso Nacional, ser tão
mal avaliada por mulheres a quem deveria representar?
Fiquei chocado. Felizmente uma mulher, nascida
no seio de uma família muitíssimo rica, e que se dedica
franciscanamente, há décadas, a um projeto social de
educação, em uma das maiores favelas de São Paulo,
falou:
“Eu quero conhecê-la e vou lhe dar um livro chamado
‘Humanidade’, de Rutger Bregman.”
Naquele momento senti que estava diante de uma nova
descoberta – afinal, havia muita certeza e convicção na face
daquela jovem senhora.
Cresci com a percepção de que, na nossa civilização, o
futuro é sempre visto como distópico, reflexo da projeção
de que somos fadados à autodestruição. O exemplo que
costumo trazer vem da indústria do cinema. Não me
lembro de qualquer filme, de grande bilheteria, que fale
de um futuro brilhante. A começar por “Metropolis”, de
Fritz Lang, podemos citar “Blade Runner”, de Ridley Scott,
“Mad Max”, “Terminator” e outros, além de “Back to the
Future 2”, no qual o Biff é vitorioso.
O livro “Humanidade” busca demonstrar, através de
um conjunto de experiências e pesquisas, que a natureza
humana é generosa e colaborativa.

SETEMBRO 2022 97
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Um conceito que se torna claro quando se imagina


que um ser frágil, sem casca, sem pelos, sem garras,
cujo ciclo de amadurecimento é o mais longo dentre os
mamíferos, não teria como sobreviver na Natureza sem
uma capacidade ímpar de generosidade e solidariedade
entre os seus.
Rutger Bregman “nada contra a correnteza” ao
denunciar Maquiavel, Hobbes e Freud, entre outros, que
moldaram a cultura ocidental com a visão de que somos
predominantemente egoístas.
A mensagem de Bregman é importante e necessária
nos tempos atuais, quando vemos crescer um discurso
de intolerância travestido de liberdade de expressão; um
armamento exagerado da população, justificado pela
necessidade de defesa da propriedade e da integridade
física; e mentiras oficiais legitimadas pelo sagrado direito
da liberdade. Um tempo no qual alguns se esquecem
que a liberdade e o direito de um indivíduo terminam
onde começa o direito do próximo.
Em “Humanidade”, o leitor é estimulado a refletir
sobre a visão de David Hume (séc. XVIII), que acreditava
que a história tinha como principal função descortinar os
princípios constantes e universais da natureza humana.

98 PROSA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Rutger instiga o leitor a pensar por que, em


momentos de tamanha crueldade, vítimas foram
capazes, ao longo dos tempos, de manter a crença de
que as pessoas são fundamentalmente boas. Sabemos
de muitos exemplos disso na história de sobreviventes
do Holocausto.
Fica evidente, no livro, que existem razões maiores
para que sejamos capazes de, como dizia Spinoza (séc.
XVII), “rir e entender atitudes humanas, em vez de
chorar ou odiar”.
Na sua provocação maior, Rutger enfatiza que o Provavelmente está, no sentimento de
verdadeiro realismo é ser idealista, e questiona por “Humanidade”, a razão pela qual, nas favelas do
que o realismo virou, no mundo moderno, sinônimo de Brasil, a pandemia da Covid-19 não foi devastadora. Ao
cinismo. longo dos séculos, em todo o planeta, não nos faltam
A História da Humanidade é a prova de que existe exemplos de resiliência: nos alagados de Salvador, na
uma propensão imensa em fazermos o bem uns aos base do Kilimanjaro, nas montanhas do Himalaia, nas
outros. Se não fosse assim, não teríamos chegado profundezas do Vale do Javari, no massacre cultural
aonde estamos. do Tibet e em tantas outras situações extremas e de
O projeto humano deu certo. Se aplicarmos a curva extremismos.
de Moore, usada para a adoção de novas tecnologias, Cabe a cada um de nós ter a coragem de ser fiel à
à evolução da população do planeta, notamos que ela sua natureza, e confiar nos outros, como uma criança
se ajusta perfeitamente. Hoje já atingimos 7 bilhões de confia em outra criança.
seres humanos, e a inflexão exponencial ocorreu na Cabe a cada um de nós combater o perverso à luz do
virada do século XX. dia, através de nossa generosidade desavergonhada.
O preço de tal atitude é sermos taxados de ingênuos
e/ou de crédulos. Porém, o que temos a perder? O
prejuízo é sermos chamados de “humanos”?
O livro “Humanidade” reforça a minha crença, que
expus num artigo anterior, “O ódio que nos separa, e
a resposta que lhe cabe”, publicado em 29 de maio de
2022, no Brazil Journal:
“Devemos retribuir um xingamento apenas com
o desprezo silencioso, responder à notícia falsa do
WhatsApp com verdade e candura, ter paciência e
generosidade contra o cancelamento, lembrar da oração
de São Francisco ao nos depararmos com a raiva e,
contra um tapa no rosto, dar a outra face.”

O autor é chairman da GP Investimentos


Fersen.lambranho@gp.com.br

SETEMBRO 2022 99
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O
Isabel Lustosa
Historiadora e cientista política

“SECRETÁRIO
BRASILEIRO”

100 MISSIVA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

C Comprei meu “Secretário Brasileiro” com o Marco Antônio, lá do


sebo do seu Osmar, há muitos anos. Comprei-o mais por curiosidade do
que por conhecimento. Descobri nele uma leitura divertidíssima, um belo
documento de um tempo em que a comunicação se fazia basicamente
através de cartas. Escrevia-se sobre tudo e para tudo. Queixava-se um
amigo de que o outro lhe passara pela porta sem entrar, respondia o outro
dando explicações do porquê o fizera.
O livro, publicado pela Garnier, não traz a data de edição, mas lá pelo
meio, uma carta, a única datada, registra o dia 5 de março de 1888. E,
ao longo dos textos as referências ao voltarete, à Guarda Imperial, aos
governos das províncias, confirmam que o livro foi editado pela primeira
vez durante o Império. Numa das cartas, um marido que quer dar à esposa
"um presente capaz", encomenda a um comerciante um piano Pleyel, pois
não pode ele mesmo ir escolhê-lo na Corte. Em outra carta é um amigo
da Corte que escreve para a província enviando um pince-nez adquirido na
casa do Reis, por 30$000.
Experimenta um curioso sentimento o leitor do “Secretário Brasileiro”.
A vontade de saber como acabaram aquelas histórias: terá aquele que
enviou a carta cheia de sentimentos à mulher amada obtido o seu intento?
E o pobre desempregado, terá conseguido a colocação desejada? E a moça
fútil, vaidosa e namoradeira será que atendeu aos conselhos tão razoáveis
daquela carta cheia de conteúdo moral? Assim também o amigo que deu
para beber, será que aquela carta não teria caído como um raio de luz a
iluminar o novo amanhã de sua existência?

– Ah meu caro amigo, tu não podes imaginar o profundo desgosto


que tive ontem, quando um teu desafeiçoado me contou, com visíveis
mostras de satisfação mal encoberta por uma falsa piedade, que tinhas
sido encontrado deitado num banco do jardim da praça da Aclamação
em completo estado de embriaguez.”

SETEMBRO 2022 101


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

E, na cabeceira do leito do agonizante, ainda estava lá


o “Secretário Brasileiro". Das suas páginas o moribundo
copiaria estas linhas comoventes em que, com elegância
e sóbria distinção, apresenta aos seus entes queridos
Pois é assim o “Secretário Brasileiro”, provocando suas despedidas:
sensação parecida com a experimentada pelo leitor
ou espectador dos “Seis personagens a procura de “Vou morrer. A fatal moléstia que me persegue a
um autor”, de Pirandello. Desenrolam-se nas suas tanto tempo toca a seu termo. Dentro de dois ou três
páginas dramas angustiantes; paixões intensas; pleitos dias terei deixado este mundo. (...) Bem que fiz para
importantes; disputas de interesse. Só que falta ali não conservar a minha pobre existência, não por mim,
apenas o autor, faltam também os personagens. Ficam mas por saber que a cessação dela ia ser para
aqueles sentimentos perdidos no espaço, as palavras, a V. Mces. um terrível golpe. ”
transbordar de emoção, em busca de personagem.
O “Secretário Brasileiro” tem modelos de carta para Há que ter estilo, mesmo sendo um miserável a
todas as ocasiões. Seu autor, ou seus autores, pensaram morrer de fome como aquele que escreve pedindo
em todas as situações em que uma manifestação seria um auxílio e explica: “Eu e minha família estamos no
possível ou necessária. Escreve um marido à esposa maior estado de penúria que é possível imaginar-se.
apaixonada carta em que se despede dizendo: “Quando As nossas roupas estão quase em farrapos e há dias
receberes esta, já eu estarei muito longe de ti. Iludi-te, que nada arranjamos para comer”. Ou na prisão, onde
minha querida Laura; não é amanhã que vou fazer a se começará a carta dizendo “acabo de ser preso”; e
viagem: é daqui a duas horas”. A primeira impressão para espantar boatos de que se está arruinado: “A esta
que se tem é de que se trata de carta para marido que hora já te deve ter chegado aos ouvidos o boato de que
abandonou o lar. Ilude-se também o leitor, ele apenas estou arruinado”. Também os de má fama encontrarão
“receando que os transportes” de sua querida Laura no “Secretário Brasileiro” um poderoso aliado, com
“no momento da despedida” lhe “tirassem o ânimo” explicações razoáveis e ponderadas, capazes de dirimir
de afastar-se, partira para uma viagem de negócios dúvidas sobre a reputação mais enxovalhada:
deixando à cabeceira da amada a providencial carta que “Acho-me apenas defronte de acusações vagas:
copiara do “Secretário Brasileiro”. consta-me haverem-lhe dito que sou libertino, perdulário,
Sentinela avançada da boa escrita, o “Secretário bêbado e jogador”.
Brasileiro” acompanha o soldado ao campo de batalha
de onde ele escreve ao amigo distante:

“Daqui a poucas horas vai-se travar uma grande


batalha, em que devo tomar parte. Onde está o
homem está o perigo, e todos devem esperar
sempre a morte. (...) Demais, a batalha hoje deve ser
terrível, sanguinolenta. Não será, pois, para admirar
que seja esta carta a última que eu te escrevo; e
por isso não estranharás que te faça as minhas
despedidas.”

102 MISSIVA
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Palavras de conforto para os que sofrem como as


que dirá o amigo ao que se encontra na miséria: “Está
finalmente terminado o ano de 18..., que tão fatal lhe
foi (...) É próprio da humanidade o sofrer, mas todo o sem cuidados nas enfermidades, sem consolação nas
sofrimento tem limites”. Com bem menos habilidade, a desventuras, sem ter quem lhe feche os olhos com
meu ver, dirige-se à família católica que acaba de perder afeição e sentimento no último instante”.
filho recém-nascido: “Já não nos pode incomodar o O tom do “Secretário” é, principalmente, o da
receio de que um acidente o fizesse morrer pagão. Livre moderação e do bom-senso de classe média. Seus
da mácula do pecado original entrou ele para o grêmio da conselhos são recheados de uma filosofia simples,
nossa santa religião”. advogada da conformação com o destino, da
Há cartas para os implicantes, os que reclamam honestidade e do trabalho. Sustenta-se essa moral sadia
de tudo, os que polemizam com a imprensa. Cartas em ditos e expressões populares, coisas como “gastar
desaforadas para desafetos, para editores de jornal. vela com defunto ruim; Deus dá o frio conforme a roupa;
Divertidíssimas como a do pai que recusa pretendente antes pouco do que nada; o homem põe e Deus dispõe;
para a filha por considerá-lo indigno e promete tratá-lo a ociosidade é a mãe de todos os vícios” etc.
a bengaladas caso insista em seus propósitos. Cartas No prefácio, o “Secretário Brasileiro” exalta sua
cheias de subserviência para o chefe, onde, ao anunciar própria superioridade frente aos similares. Ela estaria
o nascimento do filho, o missivista dirá que nasceu mais no uso de imagens e expressões corriqueiras e locais,
um “criadinho para o vosso serviço” e cartas ousadas ao contrário dos outros livros de cartas, “que podem
como a dirigida ao colega demitido injustamente onde ser muito notáveis pela beleza do estilo e elevação do
ecoa um certo protesto social: “Injustiças desta ordem pensamento”, mas que contêm “fórmulas desusadas
estão se reproduzindo diariamente. O patronato tudo e modos de dizer arcaicos e que encenam modelos tais
vence e foi talvez em obediência a ele que o privaram do que atrairiam o ridículo sobre quem os seguisse entre
seu cargo”. nós”. Consciente de seu papel, o “Secretário Brasileiro”
Entusiasta da vida conjugal, como se apresenta, ao informa que se destina, principalmente àqueles que,
reportar-se ao solteirão empedernido que finalmente “pouco habituados a escrever, carecem de guia na sua
se casa, o “Secretário” dirá que “as vantagens da vida correspondência”.
de solteiro são todas fúteis e passageiras, quando não Lido com os olhos do Brasil de hoje, não deixa de
prejudiciais”. “As distrações constantes”, completa, provocar um sorriso quase comovido, o espírito ingênuo
“acabam por enfastiar e as noites mal dormidas, a par e bem-intencionado do “Secretário Brasileiro”. Em meio
de uma vida irregular, acabam por arruinar a saúde”. aos seus modelos de carta, aos pedidos de emprego,
“Ai daquele”, conclui com sabedoria o “Secretário de colocação no serviço público, filtra-se a realidade
Brasileiro”, “que levou o seu egoísmo a ponto de da política daqueles tempos (não muito diversa, nesse
não querer fundar família; acha-se no fim da vida, só, aspecto, da de hoje) onde prevaleciam o compadrio; a
relação quase obrigatória de vassalagem com o ministro;
com o chefe da repartição. Ao mesmo tempo, revela-
se uma sociedade de gente boa, amiga dos amigos,
solidária com os que sofrem, de gente boêmia, de
moças gaiteiras e de moças ponderadas, de rapazes
estroinas com tutores rigorosos, de comerciantes falidos
e de políticos pedindo voto. Folheando as páginas do
“Secretário Brasileiro" quase se pode ouvir o som da
polca dedilhada no piano Pleyel pela esposa do honrado
funcionário da agência dos Correios da província de X.

A autora é investigadora integrada ao Centro de


Humanidades (CHAM) da Faculdade de Ciências Humanas
da Universidade Nova de Lisboa
isabellustosa@gmail.com

SETEMBRO 2022 103


a vida
em rede E
SALMAN KHOSHROO

AS novas
inquisições
No livro “O Brasil é bom”, de André Sant’Anna, há um
Márcio Scheel conto cujo título, irônico e cínico a um só tempo, aponta
Linguista com perfeição para o espírito do tempo. Trata-se de “Co-
mentário na rede sobre tudo o que está acontecendo por
aí”. O conto, como é característico da literatura de André
Sant’Anna, começa por sabotar a própria ideia de narração,
afinal, seus contos não narram algo, ou seja, não elaboram
um enredo no qual a história, arquitetada como um aconte-
cimento decisivo, marcada por um conflito que se interpõe
à personagem e para o qual se busca um desfecho, seja
pela tentativa de resolução, seja pela consumação da
própria personagem, e a ação, que se manifesta como
a relação entre volição e ato, entre deliberação e gesto,
entre ideia e prática, são os elementos decisivos para o
entendimento do caráter das personagens e dos impasses
por elas vividos.

104 LINCHAMENTO
SETEMBRO 2022 105
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A ironia mordaz começa com a redução dos direitos


humanos, num gesto antropomórfico, a uma entidade
concreta, uma espécie de sujeito material, e não a um
conjunto de direitos e prescrições que existem para pro-
teger os homens de toda sorte de arbitrariedades que se
praticam contra a inviolabilidade da própria vida humana.
Antes, a maioria de seus contos assume a condição Daí a voz discursiva principiar seu arrazoado de cretinices
de um discurso, entendido como uma enunciação a partir com uma certeza só não mais contundente do que burra,
da qual o narrador, na voz da primeira pessoa, expõe sua ao apontar que “a culpa é toda dos direitos humanos, que
visão de mundo, suas ideologias, sua percepção e seus vem aqui se meter no Brasil e não cuida dos problemas
preconceitos acerca do assunto sobre o qual se propõe a deles mesmos, desses países que se acha. Porque lá todo
deblaterar – porque suas persona-
gens não debatem, não têm ideias,
não expõem argumentos, apenas
deblateraram, numa imprecação
permanente contra tudo que fuja
ao domínio de suas crenças, que
se desvelam como a afirmação de
uma profunda, embora soberba, es-
treiteza espiritual. Em “Comentário
na rede sobre tudo o que está acon-
tecendo por aí”, o sujeito discursi-
vo, como o título sugere, penetra
nos domínios da comunicação vir-
tual, da internet, da rede digital, para
revelar seu ponto de vista sobre um
determinado assunto, no caso, o
que ele supostamente pensa sobre
os direitos humanos, os valores e
princípios que eles protegem e as
garantias legais que eles pregam e
defendem. O que temos, então, é a
emergência do senso comum mais
tacanho, que, antes de pensar ou
compreender, afirma suas certezas
mais estúpidas.

106 LINCHAMENTO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

mundo faz o que quer, faz terrorismo, fuma drogas, anda


pelado com os seios de fora e até faz sexo com homens
do mesmo sexo”.1 Ao declarar que a culpa é “do” direitos
humanos, não temos um erro ou desvio gramatical, ao
contrário, a contração da preposição “de” mais o artigo
definido “o” deixa claro, desde o início, que os direitos
humanos surgem, no conto, metonimicamente encarnados
numa figura reconhecível, isto é, numa pessoa. Aquilo que
é da ordem do pensamento jurídico abstrato, de um corpo
de direitos e prescrições estabelecido e transnacionalmen-
te aceito, e das instituições que observam e defendem
esse mesmo pensamento e esse mesmo corpo jurídico,
transformam-se, por esse deslocamento de sentido, num
ser, isto é, a voz discursiva concebe os direitos humanos
como uma entidade ontologicamente determinada, que
ele pode culpar e contra a qual ele pode se voltar com
seus comentários obtusos, preconceituosos, ideológica e
politicamente reacionários.
Por isso mesmo, do começo ao fim, o “comentário” do
interlocutor figurará uma imprecação cada vez mais viru-
lenta contra esse ser materializado como o inimigo público
número um de um país cujos problemas só não podem ser
resolvidos pela violência de Estado, pela punição dura, pela O que temos é a
arbitrariedade pública, pela autoridade plena porque “o”
direitos humanos não permite. Assim, André Sant’Anna
emergência do
faz encarnar, na voz do sujeito do discurso, as aspirações senso comum
mais autoritárias e violentas de parte de nossa sociedade,
historicamente assinalada pelo pendor ao fascismo – essa mais tacanho,
forma de pensar o mundo baseada na ideia da repressão que, antes de
permanente ao outro, ao diferente, ao estranho, tornado
oposição, inimigo, e que não se quer ver como parte da pensar ou
própria síntese social.
Misturando opiniões sobre diferentes temas com ideias
compreender,
sem fundamento, valores com ressentimento, preconcei- afirma suas
tos com informações, notícias e fatos mal compreendidos
ou interpretados como verdades inequívocas; transubs-
certezas mais
tanciando o amor pelo país no ódio à diferença; afirmando estúpidas

SETEMBRO 2022 107


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ou reconhecido nos preconceitos e pendores autoritários


dessa voz, ao mesmo tempo em que ri, não sem certa
amargura, da toleima caricata de um sujeito cujas opiniões
ele acredita serem muito próprias, mas que, na verdade,
traduzem um ponto de vista médio. Esse ponto de vista
é marcado pela ignorância, pelo desconhecimento, pela
informação mal compreendida, pelos valores que não são
o desejo pela autoridade como saída para os problemas
valores, mas expressões do ódio ou do ressentimento
sociais, mormente o da violência, o sujeito do discurso,
pessoal, e que nem são opiniões singulares ou originais,
em “Comentário na rede...”, reivindica para si a imagem
posto que tomadas a um senso comum que pode ser
do cidadão de bem, essa fraude moralmente tosca, que
verificado, diariamente, nas caixas de comentários dos
circula pela vida social brasileira imbuída de um senso de
grandes veículos de imprensa digitais ou nas postagens
superioridade ética que só não é mais pusilânime do que
que circulam pelas redes sociais de diferentes cidadãos.
falacioso. Assumindo que é melhor do que os “bandidos”,
Esse efeito de estranhamento emerge da compreensão
os “drogados”, os “terroristas”, “os homens que fazem
de que se trata de uma voz ficcional, isto é, criada pelo
sexo com homens do mesmo sexo”, os “pedófilos”,
escritor, mas que, no entanto, ecoa, de forma incômoda e
os “estupradores” etc., e do que “o” direitos humanos,
perturbadora, uma outra voz, a do senso comum, que existe
tomado como o amigo dos meus inimigos, o sujeito do
de fato e que circula, cada vez mais livremente, no espaço
discurso sequer dissimula, do alto de sua orgulhosa burrice,
da comunicação digital e da vida conectada em rede.
que só entende a linguagem da violência. Linguagem esta
que tenta aplainar recorrendo, inclusive, a uma teologia de
segunda categoria, ao afirmar que “se matou, tem que
morrer, porque até a Bíblia disse que é olho por olho e dente
por dente”,2 mas o problema é que “o direitos humanos
é que não deixa”.
“O direitos humanos queria até que o Nardoni fosse
inocente no julgamento dele”.3 Como acontece em muitos
“se matou, tem que
morrer, porque
contos de André Sant’Anna, essa voz discursiva alinhava
preconceitos e ódios, desprezo e ressentimento, mora-
lismo tacanho e desejos, inclusive de natureza sexual,
mal reprimidos ou perversos, numa tessitura ideológica
até a Bíblia disse
que remete seu discurso a certo senso comum médio, que é olho por olho
a certas opiniões, partilhadas por muitos indivíduos, que,
antes da era da internet, ficavam circunscritas quase que e dente por dente”,
exclusivamente ao espaço da vida doméstica ou privada. mas o problema é
Com isso, seus contos implicam vozes que manifes-
tam, alegoricamente, uma visão de mundo eivada daque- que “o direitos
las nostalgias estúpidas4 de um passado alegadamente
melhor, no qual a autoridade de Estado era exercida com
humanos é que
brutalidade e, em razão disso, os bons cidadãos podiam
se sentir seguros e protegidos contra todos aqueles que,
não deixa”
tomados como inimigos, precisavam ser perseguidos,
julgados e definitivamente calados.
“Comentário na rede sobre tudo o que está aconte-
cendo por aí” opera, por meio da ironia e da mordacidade,
um efeito de profundo estranhamento: o bom leitor,
razoável, com alguma formação e uma visão de mundo
mais complexa e liberal, não se sente, claro, contemplado

108 LINCHAMENTO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O leitor razoável entende, de saída, que essa voz repre-


senta mais do que uma invenção irônica e, pelo recurso
da caricatura extrema, risivelmente patética, mas também
que essa invenção depende de um modelo concreto de
cidadão e das fantasias ressentidas, ignorantes, ridículas
e violentas que o movem e do qual a invenção ficcional é
francamente deduzida. Assim, André Sant’Anna apaga as
fronteiras seguras que o pacto ficcional ajudava a traçar
e que, outrora, nos permitiam distinguir, com alguma
nitidez, o que era da dimensão da fantasia e o que era do
estatuto do real. De certo modo, o conto funciona como
metonímia da própria dinâmica inerente à era da vida em
rede na qual nos encontramos presos: vida pública e vida
privada, opinião pessoal e conhecimento público, fantasias
particulares e bom senso social vão se tornando cada vez
mais indistintos, desregulados e perigosamente confusos.
E o mais espantoso: a mídia digital vai sendo confundida,
até por alguns estudiosos e especialistas, com a própria
esfera pública, essa dimensão da vida social caraterizada
por regulações, normas, preceitos e formas de organização
e circulação da informação e das ideias que impõem, so-
bre estas, deveres, sanções e responsabilidades a serem
observados.

A ESFERA DA ESTUPIDEZ
Os meios de comunicação digital ampliaram expo-
nencialmente o acesso e a quantidade de informação
disponíveis a qualquer cidadão minimamente conectado
em rede. Na segunda metade da década de 1990, quan-
do a internet começava a se popularizar pelo mundo, o
fenômeno da livre circulação da informação foi celebrado
por alguns filósofos e sociólogos, entre eles Pierre Lévy
e Manuel Castells, como o ponto de virada efetivamente
democrático de uma comunidade global forjada a partir
da ampla, fácil e irrestrita difusão do conhecimento. Esse
cenário nos levaria a uma sociedade mais bem formada,
mais atenta às necessidades e demandas públicas, mais
criativa ao lidar com as dificuldades e obstáculos que se
colocam diante da existência e da vida e mais tolerante em
relação ao outro e às diferenças que constituem nossas
visões de mundo, crenças, valores, ideias e formas de
habitar o mundo.

SETEMBRO 2022 109


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A era da informação eletrônica, representada pela inter-


net, fascina, também, por sua aparência de espaço público,
no qual se pode externar quaisquer opiniões e ser seduzido
tanto pela sugestão de ampla e irrestrita democratização
do pensamento quanto pela ideia de que se está sendo,
Poucas coisas de fato, ouvido. Nesse contexto, predomina a busca por

são mais falsas reconhecimento. Ou seja: uma miríade de pessoas que,


de outra forma, se sentiria alijada dos espaços públicos
ou questionáveis qualificados, nos quais os debates são regulados a priori,

do que essa e encontra, na comunicação em rede, um espaço aberto,


franco e disponível para veicular opiniões e repercuti-las
ideia de que se entre amigos, entre outros internautas, entre seguidores

está sendo ouvido,


ou entre determinados grupos com as mesmas inclinações
políticas, ideológicas, culturais, de gênero, sexo, etnia etc.

de que o Poucas coisas são mais falsas ou questionáveis do que


essa ideia de que se está sendo ouvido, de que o pensa-
pensamento, mento, na era virtual, é democrático e irrestrito, e de que

na era virtual, se é reconhecido livremente por suas opiniões, afinal, nem


Twitter, nem Facebook, nem Instagram, nem WhatsApp,
é democrático nem as caixas de comentário do G1 são mais do que apli-

e irrestrito cativos, meios de conectar os indivíduos e compartilhar até


mesmo informação. Estão muito longe de representar uma
verdadeira e qualificada esfera pública,7 como o jornalismo
profissional ou o pensamento acadêmico a representam,
por exemplo, pois que regulados, entre outras coisas, pela
responsabilidade jurídica em relação à verdade factual, no
Quase três décadas depois, a realidade é bem menos caso do jornalismo, ou pelo compromisso científico com a
otimista e a verdade bastante mais amarga: não só o co- verificabilidade dos dados e dos argumentos, no caso do
nhecimento médio das pessoas não aumentou significati- pensamento acadêmico.
vamente, como muitos estudos e pesquisas acadêmicas Prevalece, no mundo digital dos blogs anônimos, dos
têm demonstrado que a vida digital é responsável não só sites de procedência duvidosa, nas redes sociais, mormen-
por dar voz e reconhecimento a idiotas contumazes, como te no Brasil, com um marco civil da internet ainda muito
também desencadeia, ela mesma, um profundo e perigoso tímido e pouco efetivo, um estado quase que de completa
processo de idiotização.5 É nesse sentido, por exemplo, desregulação, beirando à anomia. Nesse estado, tudo pode
que o neurocientista Fabiano de Abreu Rodrigues afirma ser, escrito, externado em nome da liberdade de opinião, e
que “a internet é um mundo aberto ao facilitismo”,6 ou o usuário, não raro orgulhosamente abraçado à ignorância e
seja, um ambiente no qual predominam as respostas e as à estupidez que o movem, se comporta como o pequeno
recompensas mais imediatas e mais fáceis, caracterizadas e caprichoso Deus de um tribunal, onde o outro é, por
pelos “likes”. princípio, o culpado a ser julgado, combatido, difamado
Logo, quanto mais as pessoas se expõem a essa ou cancelado.
dinâmica da satisfação direta (os “likes” produzem o au-
mento da dopamina, esta gera uma sensação de prazer,
que passa a ser buscada cada vez mais, o que aumenta a
ansiedade, que amplia a produção de cortisol, que gera mais
ansiedade), menos se compreende ou se importa com o
fato de que o mundo, as coisas, as pessoas, a política e a
realidade em geral são mais complexos, contraditórios e
difíceis de assimilar do que a dinâmica imediatista da vida
digital sugere.

110 LINCHAMENTO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

No mesmo sentido, nenhum desses aplicativos e me- Criou-se, com isso, um mundo paralelo ao da vida real,
canismos de conexão são francamente livres na produção cotidiana, material, regulada por relações concretas de
de informação e conhecimento, já que o império dos al- sociabilidade, e ao dos meios qualificados de produção de
goritmos, que arquiteta esses aplicativos em particular e a informação e conhecimento. Esse mundo se parece com a
vida em rede de forma geral, faz com que eles se afastem esfera pública, que se comporta como a esfera pública, que
de um verdadeiro espírito democrático, pois que condi- é tão ou mais visível e reconhecível do que a esfera pública,
cionam o que os cidadãos veem e, consequentemente, mas que, na prática, configura-se como um mundo baseado
agenciam seus interesses, necessidades, opiniões e até na troca de informações enviesadas, de notícias falsas, de
mesmo vontades. As mídias digitais imediatizaram a co- mentiras fraudadas para se confundirem com verdades
municação e, em larga medida, sequestraram o imaginário científicas, históricas e culturais, de opiniões duvidosas,
contemporâneo, pautando a opinião por meio da lógica da de preconceitos manifestos como tais ou simplesmente
circulação irrestrita da notícia, do comentário, do “like” e resultantes da própria ignorância daqueles que os expres-
do compartilhamento em série. sam. Em formas de ação e comportamentos, denotam,
à esquerda ou à direita do espectro
político e ideológico, o mesmo mo-
ralismo orgulhoso que pensa a vida,
a realidade, o outro e suas formas de
ação e comportamento em termos
de valores, de crenças, de noções
de bem ou mal, certo ou errado,
politicamente correto ou incorreto,
que mal dissimulam o pendor ao
autoritarismo dos pontos de vista e
ao justiçamento das ideias.
Todos esses ingredientes são
usados como recurso para constran-
ger, coagir, ridicularizar, diminuir ou
inviabilizar o outro, isto é, aquele que
não partilha, por princípio ou mera
incompreensão, da mesma régua
moral do interlocutor ou, o que é
pior, do grupo, já que, quase sempre,
as novas inquisições virtuais depen-
dem da capacidade de mobilização
e pressão dos grupos que partilham
os mesmos valores, crenças, ideias
ou visões de mundo.

SETEMBRO 2022 111


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O mundo digital e a vida em rede dependem das afetos, que confirme nossas crenças, que nos mobilize em
conexões que se estabelecem entre os usuários e essas torno de um ideal de justiça que, quase sempre, se realiza
conexões, que também não estão livres da atuação dos de forma injusta, cínica e arbitrária.
algoritmos. Estes sugerem notícias, informações, páginas Nesse sentido, a internet, com seu facilitismo e a sua
mais apropriadas a cada perfil, produtos para consumo, imediatez, não só tem nos tornado mais idiotas, porque
propagandas etc., mas também pessoas que eventual bem menos preocupados com um debate público alicerça-
ou virtualmente conhecemos, porque fazem parte de um do em conhecimentos concretos, como mais distantes da
círculo de relações comum, ou outros usuários que possam construção de um conhecimento efetivamente mais pro-
nos interessar porque partilham das mesmas atividades, fundo sobre as coisas. Ou seja: além de idiotas, vamos nos
gostos, interesses ou inclinações políticas ou culturais que convertendo em criaturas espiritualmente mais estreitas
as nossas. Em resumo, os algoritmos atuam no sentido de e ignorantes em termos de pensamento crítico concreto
nos empurrar para uma vida virtual cada vez maior, já que e qualificado, fundado em argumentos que se derivam
o raciocínio de fundo é que, quanto mais seguidores ou de ideias e saberes reconhecíveis, como também tem
“amigos” temos, maior é o sucesso de nossas relações permitido que confundamos razão com afeto, saber com
e realizações, mas também cada vez mais centrada numa paixões, moralidade com política, justiça com revanche,
visão de mundo de grupo, organizada em função das si- debate com conflito, compreensão com convencimento.
militudes de ideias, da semelhança dos gostos e valores, A expressão máxima dessa idiotia coletiva, dessa toleima
nunca da diferença. geral, é o oportunismo com o qual parte de diferentes
Não é ocasional, então, que a vida em rede funcione grupos com diferentes inclinações ideológicas e em nome
como uma bolha, como sugerem alguns analistas e críti- de diferentes noções de liberdade de opinião, expressão,
cos do fenômeno, ou, para usar uma imagem muito mais ideia e ação, lançam mão da condição de inquisidores
apropriada, de Byung-Chul Han, como um enxame. Para para pôr em prática aquilo que se convencionou chamar
Byung-Chul Han, “embriagamo-nos hoje em dia da mídia de “cancelamento”.
digital, sem que possamos avaliar inteiramente as conse- Do ponto de vista da dinâmica da mídia digital, o can-
quências dessa embriaguez. Essa cegueira e a estupidez celamento consiste numa espécie de blitzkrieg moral,
simultânea a ela constituem a crise atual”.8 Mais do que que só é possível pelo comportamento de manada que
o fascínio de falar livremente e a sedução deslumbrada caracteriza os grupos ligados em rede. O objetivo destes
de ser aparentemente ouvido e reconhecido por nossas grupos é literalmente cancelar, com sucessivos comen-
supostas ideias, encontramos, no espaço das relações tários, ataques ou denúncias, aqueles que, por malícia
virtuais, da mídia digital, das redes sociais, das páginas e ou ignorância, expressam qualquer tipo de opinião que o
blogs pessoais, do Twitter ou do Facebook, uma causa a próprio grupo, legislador, juiz e carrasco da ação pública,
defender, um projeto pelo qual lutar, uma missão a qual se considera inadequada, inapropriada, incorreta, ofensiva ou
agarrar, algo que justifique nossa visão de mundo, que se ideologicamente condenável – sempre do ponto de vista
articule com nossos valores, que diga respeito aos nossos dos valores que irmanam os membros do próprio grupo.

112 LINCHAMENTO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

enclausurada nela mesma, se converte em petição de prin-


cípios, animada pela nobreza dos valores ou pela afirmada
distinção moral da própria causa. Isso elide o exercício do
Não é ocasional político, ou seja, do reconhecimento de que a vida pública

que a vida em é mais do que a soma dos indivíduos, mas a construção de


um nós, no qual todos possam se reconhecer, entendidas
rede funcione e preservadas conscientemente as diferenças. As redes

como uma bolha, sociais e a virtualidade do mundo digital contribuem para


que os indivíduos se isolem em si mesmos ou se reconhe-

como sugerem çam apenas nos grupos com os quais partilham as maiores
afinidades ideológicas. Isso é danoso para o político porque,
alguns analistas nas sociedades contemporâneas, fortemente agenciadas

e críticos do pela vida digital, “a política parece ter derrotado o político.


A política são estratégias coletivas ou táticas individuais,
fenômeno é o império dos ‘eles’ ou o reino dos ‘eus’. O político é a
afirmação da existência de um ‘nós’ (‘nós, o povo’), além
das comunidades de famílias ou amigos, das comunidades
regionais ou religiosas, além das identidades de gênero
ou origem, e aquém da comunidade humana em geral”.9

SINAIS TROCADOS
A prática do cancelamento, nesse sentido, se pretende
como uma forma justa de ação política, fundada em valores
Assim, valendo-se da pressão coletiva que podem exer- mais nobres ou mais altos do que aqueles praticados pelo
cer, ignoram o debate, a discussão, o benefício da dúvida, cancelado; porém, na verdade, não passa do conluio de
a tentativa de entendimento ou de resolução racional dos interesses, revoltas e ressentimentos individuais que se
conflitos e atuam motivados por uma revolta intestina, unem contra um inimigo a ser vencido. Não há nobreza ou
por uma paixão de justiceiros, por um sentido de correção justiça na ação do cancelamento, porque a atuação massiva
moral que nada tem de político, porque, quando o político do grupo impossibilita, de saída, que aquele que sofre a
se confunde com o moralismo, o que temos é o predomínio prática consiga ao menos se defender, explicar ou justificar.
dos valores individuais – ou que se acreditam virtualmente E ainda que ele tente, vai infalivelmente se debater contra
coletivos – sobre os interesses públicos. a acusação de que está apenas se justificando.
É de interesse público, por exemplo, que os indivíduos O cancelamento, por mais espantoso que possa pare-
sejam capazes de negociar e resolver conflitos por meio de cer a alguns, é uma ação muito mais visível entre indivíduos
uma atuação fundada na razão objetiva, no pensamento ló- de inclinação ideológica de esquerda do que de direita, entre
gico e orientado para o bem social, no reconhecimento das supostos liberais do que conservadores, entre libertários do
virtudes potenciais e dos benefícios comuns que residem que reacionários. Estes últimos sempre pensaram o mundo
ou subjazem a toda causa, por mais diferentes que sejam e forjaram suas opiniões a partir da bitola estreita de seus
os indivíduos em disputa ou querela. No entanto, o que a moralismos, suas crenças, suas práticas religiosas, seus
internet franqueia a muitos indivíduos é o deslumbre do valores tradicionais. Nunca se interessaram, de fato, por
poder na ponta dos dedos, a afirmação de que todos temos conhecer outros pontos de vista ou tentar compreender
o direito a ter opiniões e que cabe ao outro aceitá-las, o que outras ideias, outras perspectivas, outras visões de mundo.
significa, quase sempre, submeter-se, por mais estúpidas, Logo, parte da direita sempre foi reativa, preconcei-
virulentas, imbecis ou simplesmente voluntariosas que tuosa e moralista em relação à imagem do mundo no
sejam as opiniões. qual declaradamente diz querer viver. Então, a explicação
Com isso, em vez do debate de ideias, do esforço possível para que a prática do cancelamento – que em
intelectual por qualificar a discussão, inclusive no sentido nada se diferencia do linchamento público de reputações,
de buscar uma saída possível, viável e racional para os no qual parte da direita é especialista – seja mais visível
conflitos, a doxa, a opinião em si mesma, por si mesma e entre a esquerda reside, talvez, no fato de que, se ela

SETEMBRO 2022 113


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

tinha alguma superioridade em relação à direita mais ob-


tusa, era a de ser mais culta, de se preocupar mais com o
conhecimento qualificado, científico, filosófico, estético,
político, e, por consequência, estar mais apta ao debate e
menos suscetível ao ressentimento das paixões feridas.
Hoje, basta acompanharmos os termos nos quais se dão,
entre alguns, as discussões sobre lugar de fala, apropriação
cultural, quem pode e quem não pode falar em nome de
quais grupos sociais e de quais interesses coletivos, e o
que nós percebemos, imediatamente, é o empobrecimento
da formação, quando não a visível tacanhez e limitação
das ideias.
Outra explicação para isso é que, num cenário de
oposições políticas renhidas e violentas como este em
que vivemos nos últimos oito ou dez anos, a tendência é
que os ódios e ressentimentos coletivos se coadunem,
ainda mais num espaço propício a isso, como a internet, e
se transformem na sólida amálgama das dissenções e da
revolta de grupo. Vive-se, então, sobretudo na esfera das
redes sociais, o que François Dubet chama de “tempo das
paixões tristes”, porque, segundo o sociólogo francês, “o
espírito do tempo pactua com as paixões tristes.
Sob o pretexto de se desfazer do bom-mocismo e do
politicamente correto, pode-se acusar, denunciar, odiar os
poderosos e os fracos, os ricaços ou os paupérrimos, os
desempregados, os estrangeiros, os refugiados, os inte-
lectuais, os especialistas”, o que cria uma atmosfera na
qual “de maneira um pouco mais atenuada, desconfia-se
da democracia representativa, acusada de ser impotente,
corrompida, distante do povo, submissa aos lobbies [...].
Cóleras e acusações antes consideradas indignas têm
agora direito de cidadania. Elas invadem a internet”.10
Setores da esquerda e da direita, então, partilham o
mesmo irracionalismo, a mesma ignorância espiritual, a
mesma paixão pelo ódio que escolhe seus inimigos em
nome de um pathos moral que destrói o político como me-
canismo de construção ou melhoramento da vida comum,
racionalmente compreendida e socialmente partilhada de
acordo com os interesses e demandas de todos. Há, por
isso mesmo, um despedimento de qualquer tentativa
de compreensão: o outro, aquele que atenta contra os
valores do grupo, precisa ser imediatamente silenciado. A
própria ideia de compreensão, quando reivindicada, acaba
por ser duramente rechaçada, confundida com o discurso
da tolerância, da aceitação, da complacência, quando, na
verdade, chamar à compreensão significa tentar entender
as razões, motivos e circunstâncias que nos mobilizam ao
embate, tentando lançar luz ao conflito, não o interditar ou
dirimir. É um trabalho do entendimento, não da concórdia.

114 LINCHAMENTO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Assim, unem-se os piores dos mundos possíveis: a


internet e seu processo de idiotização permanente, no qual
o conhecimento se esvazia e tudo passa a ser da ordem da
opinião, por mais desqualificada que seja; a paixão triste,
travestida em causa ou missão pública (a alegada nobreza
da causa quase sempre justificando os métodos mais vis de Vive-se,
desqualificação do outro e do próprio debate); e o ressen-
timento individual, seja pelo motivo que for, não importa,
sobretudo na
mobilizado pelos diferentes indivíduos e seus grupos, dis- esfera das
simulando moralismo e ignorância em militância indignada.
A dinâmica das redes cria, então, o que Byung-Chul Han redes sociais,
chama de “sociedade da indignação”, na qual “as ondas o que
de indignação são eficientes em mobilizar e compactar a
atenção. Por causa de sua fluidez e volatilidade elas não François Dubet
são, porém, apropriadas para organizar o discurso público, a
esfera pública”,11 sendo que essas mobilizações da revolta
chama de
pela revolta, da indignação pela indignação “são incontro- “tempo das
láveis, incalculáveis, inconstantes, efêmeras e amorfas
demais”12 para representarem um verdadeiro discurso
paixões tristes”
público, uma esfera pública de fato. Por isso, toda compre-
ensão é alijada das redes, todo entendimento, em meio a
essas manifestações revoltadas, é expulso para a esfera
do que, jocosamente, chamam de “passação de pano”;
ou seja, entender, avaliar e compreender convertem-se, no
discurso da manada justiceira, em justificação.
A esses grupos não interessa a crítica especializada,
o comentário fundamentado, a busca conjunta e lógica
por soluções práticas, mas apenas o conflito, a guerra,
a dissenção permanente. Vivem do escândalo, ou seja, teorias da conspiração, ideologias autoritárias, reivindicam
daquilo que emerge no cenário público como espetáculo, a volta da ditadura etc.
porque “a sociedade da indignação é uma sociedade do No entanto, essa identificação é frágil, se não for com-
escândalo. Ela não tem contenance, não tem compostura. pletamente falsa, porque o linchamento de reputações, o
A desobediência, a histeria e a rebeldia – que são caracte- shitstorm, literalmente “tempestade de merda”, aquelas
rísticas das ondas de indignação – não permitem nenhuma grandes campanhas de ataque e difamação pública, que
comunicação discreta e factual, nenhum diálogo, nenhum servem perfeitamente bem aos interesses das extremas
discurso”.13 Uma sociedade, a virtual, sem língua, que direitas mundo afora, encontram no cancelamento seu
não os clichês de ordem, sem fala, que não o grito, sem correlato objetivo perfeito. A diferença, no caso, é que as
discurso, que não os dogmas que se autojustificam pela ondas de indignação da extrema esquerda ou de parte dos
alegada dignidade da causa. grupos liberais e progressistas que delas lançam mão em
Por isso mesmo, é tentador imaginar o sujeito discursi- suas campanhas vêm justificadas pelo discurso da superio-
vo do conto de André Sant’Anna – insano, comentando as ridade moral, da luta por direitos, da resistência ao fascismo,
maiores sandices nas redes, misturando diferentes precon- do combate ao ódio, ao preconceito, à discriminação, à
ceitos, distorcendo estupidamente os fatos, confundindo violência, às práticas tradicionais de marginalização social.
a realidade e uma imaginação fantasiosa torpe, com uma Justifica-se o gesto, inverte-se o sinal e dá-se um verniz
visão de mundo rasteira, típica da ralé espiritual – como a de integridade e justeza a uma prática que, como no caso
imagem caricata do cidadão de bem, da direita extremista, do shitstorm, consiste basicamente em julgar sem ouvir,
do reacionário de plantão. São aquelas figuras que, na vida acusar sem saber, punir sem compreender. É a interdição
em rede, disseminam notícias falsas, mentiras, discursos do diálogo pela via do moralismo convertido em pretensa
de ódio e discriminação, defendem movimentos antivacina, ação política. Quando a ação foge do controle e prejudica

SETEMBRO 2022 115


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

vidas concretas no mundo real, os mobilizados desapa- fala muda, da ideologia do ataque como melhor defesa, é
recem, calam-se e defendem a própria inocência com o uma vida marcada, sobretudo, pelo apelo ao respeito abso-
argumento da candura e da necessidade da causa. Tudo luto pela individualidade e pela subjetividade. Ou seja: tudo
até a próxima indignação, que fique claro. é da ordem do indivíduo – ainda que os indivíduos se en-
O problema é que não há inocentes nesse jogo, embo- contrem e momentaneamente se irmanem por uma causa
ra, de todas as formas, predomine o que Pascal Bruckner qualquer, quase sempre uma causa da hora, com potencial
chama de “a tentação da inocência”, ou seja, a inocência para inflamar a opinião pública, uma causa espetacular, que
como “essa doença do individualismo que consiste em dá visibilidade aos indivíduos – e da ordem do subjetivo,
querer escapar às consequências dos seus atos, essa das paixões particulares, das crenças pessoais, dos desejos
tentativa de gozar dos benefícios da liberdade sem sofrer íntimos, mesmo que, brevemente, esses encontrem coro
nenhum dos seus inconvenientes”.14 A vida em rede e a no enxame de outras subjetividades igualmente estreitas.
dinâmica dos embates vazios, das perseguições, do shits- Com isso, vivemos o primado do sujeito e seus afetos
torm, do linchamento de reputações, do cancelamento, da entendidos como maiores e mais importantes do que a
vida comum, a sociabilidade, a realidade pública e suas
demandas coletivas. As redes reforçam ainda mais essa
tendência ególatra ao individualismo que caracteriza as
sociedades de consumo há mais de meio século, mas
com um agravante: fragmentam ainda mais as vivências,
virtualizam totalmente as relações, desmobilizam e desarti-
culam os projetos públicos que deveriam buscar respostas
objetivas a problemas materialmente concretos e coletivos.
O ódio passa As lutas e guerras virtuais que o shitstorm e o cance-

a ser, não raro, lamento representam raramente saem do espaço seguro


da virtualidade para se encontrar com as necessidades
o único conselheiro diárias de milhões de cidadãos mundo afora. Indo além, em
muitos casos, os grupos que põem em movimento essas
nessas disputas dinâmicas comportam-se como se estivessem acima ou

fidagais e além desses mesmos cidadãos. O que é grave, porque eles


mesmos se colocam fora da esfera da cidadania.
“a expressão da No fundo dessas práticas, à direita e à esquerda,

cólera é ainda predomina a ilusão de que, ao atuar nas redes se está,


também, atuando no mundo. Do mesmo modo, essa
mais imediata atuação de grupos desorganizados que se encontram

porque todos
numa mesma virulência opinativa, numa mesma lingua-
gem vazia e feita de clichês, numa mesma fala feita de

estão sós diante acusações e julgamentos muitas vezes cegos, dissimula


que, por maior que seja o grupo, ele não é, de fato, a
de sua tela” soma de suas partes. Ao contrário, preserva o caráter de
mônada altamente individualizada daqueles que operam
no interior do enxame, isso porque, “a capacidade de
exprimir publicamente suas emoções e suas opiniões faz

116 LINCHAMENTO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

de cada um de nós um militante de sua própria causa, um interação”.16 Essa “política do ressentimento”, à direita e
quase-movimento social individual e solitário, já que não à esquerda, reflete-se também na realidade, desagregando
é mais necessário se associar aos outros e se organizar ainda mais a ideia de uma vida social comum, capaz de
para ter acesso ao espaço público”. Daí, “essa expressão abrigar os interesses de todos, uma vida social na qual
direta é, com frequência, invadida pelas paixões tristes, os conflitos podem ser negociados por um conjunto de
quando não há mediação nem filtros de resfriamento para discursos e práticas racionais.
as reações dos internautas”, e o resultado disso é que “a Compreender significa não só o esforço intelectual
partir de então, na ocorrência de cada notícia popular, cada para encontrar as melhores e mais adequadas ou justas
declaração política, cada experiência desagradável dentro explicações para os problemas mais complexos que habitar
do metrô, cada partida de futebol, todos podem dar livre o mundo e coexistir com o outro nos coloca, compreender
curso ao ódio, ao racismo, à denúncia, aos rumores, às também significa estar ou ficar incluído, abranger-se. É
teorias de conspiração”.15 esse esforço que deveria ser buscado e que a experiência
A inteligência, o conhecimento, as ideias intelectu- das redes sociais tem sabotado diariamente. Como afirma
almente fundamentadas e os argumentos qualificados, Hannah Arendt, “a compreensão, diferentemente da infor-
compreensivos, ausentam-se desses embates, deixando mação correta e do conhecimento científico, é um processo
mesmo de representar os melhores princípios e os melho- complexo que nunca gera resultados inequívocos. É uma
res instrumentos para uma reflexão comum que vise ao atividade interminável por meio da qual, com constante
entendimento e à superação dos conflitos. O ódio passa a mudança e variação, chegamos a um acordo e a uma con-
ser, não raro, o único conselheiro nessas disputas fidagais e ciliação com a realidade; isto é, tentamos sentir o mundo
“a expressão da cólera é ainda mais imediata porque todos como nossa casa”.17 Mais do que isso, compreender não
estão sós diante de sua tela, livres do constrangimento da significa perdoar ou esquecer, porque “a conciliação é

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

intrínseca à compreensão, o que deu origem ao popular que seja, não podem dirimir as injustiças e desigualdades
engano tout comprendre c’est tout pardonner (compreen- do real, sejam elas concretas ou quimeras fantasiosas,
der é perdoar). temos a terra sem lei da internet como o cenário de nossas
Mas há pouca relação entre ambos, e o perdão não é pequenas e diárias inquisições.
condição nem consequência da compreensão. Perdoar Se todos são impotentes para salvar o mundo, a so-
(com certeza, uma das maiores capacidades humanas e ciedade e a vida comum, então podemos nos lançar na
talvez a ação humana mais ousada, na medida em que cruzada moral contra a inação e a impotência, elegendo
tenta o aparentemente impossível, a saber, desfazer o que os inimigos, difamando e cancelando o diferente. E essa
foi feito, e consegue criar um novo começo quando tudo mesma terra sem lei possibilita que as injustiças e excessos
parecia ter chegado ao fim) é uma ação única e culmina cometidos em nome de uma causa reputada nobre e justa
num gesto único”, daí que, diferentemente do perdão, sejam rapidamente esquecidos e substituídos por novas
“compreender é infindável e, portanto, não pode gerar re- contendas, justas ou injustas, mais uma vez, não importa,
sultados definitivos. É a maneira especificamente humana num processo que elide ainda mais a compreensão, sem-
de viver, pois todo indivíduo precisa se sentir conciliado com pre lenta e difícil, pelo ataque ressentido e pela revanche
um mundo onde nasceu como estranho e onde sempre contra o mal.
permanece como estranho, na medida de sua singularidade Se o justiçamento erra o alvo e destrói uma vida, há
única”.18 Somos e seremos sempre um tanto estranhos ao sempre o benefício do esquecimento, que se dá por uma
mundo, a nós mesmos e ao outro, mas se prescindirmos nova onda de indignação, que apaga a anterior. E, como
do esforço de compreensão, que consiste justamente em escreveu Jorge Luis Borges, o “esquecimento é a única
ir de si mesmo para o mundo e para o outro, o que restaria, vingança e o único perdão”.
verdadeiramente, de nós?
No entanto, com o advento e a massificação da vida em O autor é professor da Universidade Estadual Paulista Júlio
rede, acabamos reféns de uma realidade nova, a digital, na de Mesquita Filho.
marcioscheel@uol.com.br
qual tudo, como no mundo sem Deus, de Dostoiévski, ou,
o que é pior, no mundo onde todos podem ser os deuses
de si mesmos e de suas pequenas causas, crenças e opi- BIBLIOGRAFIA
niões, é virtualmente permitido. Cada um, municiado com
suas certezas de ocasião, acredita, sinceramente, que tem A BÍBLIA SAGRADA: Antigo e Novo Testamentos. Tradução de João Ferreira
de Almeida. Edição rev. e atualizada no Brasil. Brasília: Sociedade Bíblia do
a justiça na ponta dos dedos, em face de si, iluminada na Brasil, 1969.
tela. Diante da virtualidade do outro, como virtualidade de si,
ARENDT, Hannah. “Compreensão e política (As dificuldades da compreensão)”.
a sensação que se tem é a de que tudo pode ser reduzido In: Compreender. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das
ao julgamento mais tosco, banal e violento, porque o outro, Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
em sua virtualidade, não existe mais do que eu mesmo em BRUCKNER, Pascal. A tentação da inocência. Tradução de Ana Maria Scherer.
minha virtualidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
Abandonamos o trabalho lento e coletivo de fabricar, por
DUBET, François. O tempo das paixões tristes. Tradução de Mauro Pinheiro.
meio da compreensão, os consensos necessários à vida São Paulo: Vestígio, 2020.
pública. E esquecemos que as fronteiras entre o virtual e o
HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital. Tradução de Lucas
real são mais tênues do que a indignação, a cólera e o res- Machado. Petrópolis: Vozes, 2018.
sentimento de ocasião nos fazem crer. Nessa atmosfera,
SANT’ANNA, André. O Brasil é bom. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
os mais broncos radicalismos ganham ares de reivindicação
justa e de ação revanchista, afinal, se a esfera pública, _____. Sexo e amizade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
as instituições, os governos, o sistema democrático, os WOLFF, Francis. Três utopias contemporâneas. Tradução de Mariana Echalar.
intelectuais, as universidades, o conhecimento, o que quer São Paulo: Editora Unesp, 2018.

118 LINCHAMENTO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

NOTAS DE RODAPÉ

1. 2014, p. 21. Tamires Vitorio, publicado pela Revista Época (11 de novembro de 2020). Ver,
também, os livros de Mark Bauerlein, “The dumbest generarion” (A geração
2. Aqui, a referência é ao livro bíblico Êxodo, do Antigo Testamento, mais es- mais idiota, 2008); “O culto do amador” (2009), “Vertigem digital” (2012) e “The
pecificamente ao capítulo 21, versículos 23 a 25, ‘Mas se houver morte, então Internet Is Not the Answer” (A internet não é a resposta, 2016), de Andrew
darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, queimadura por queimadura, Keen; “Sociofobia: Mudança política na era da utopia digital” (2017), de Cesar
ferida por ferida, golpe por golpe”. Trata-se do momento no qual Deus teria Rendueles; “Dez argumentos para você deletar suas contas nas redes sociais”
revelado a Moisés algumas das leis que deveriam ser ensinadas ao povo; no (2018), de Jaron Lanier.
caso, aquelas leis que se voltam para as formas de violência e suas punições.
A voz discursiva, no conto, omite convenientemente que, no Novo Testamen- 6. “Estamos ficando menos inteligentes por causa da internet?”, Revista Época,
to, Jesus surge para trazer consigo uma nova lei, que abole aquelas da antiga 11 de novembro de 2020.
tradição: “Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém,
vos digo que não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, 7. Francisco Bosco, em “A vítima tem sempre razão? Lutas identitárias e o
oferece-lhe também a outra; e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, novo espaço público brasileiro” (2017), um livro interessante e muito perti-
larga-lhe também a capa; e, se qualquer te obrigar a caminhar mil passos, vai nente para a compreensão desse espírito de época, é um dos estudiosos
com ele dois mil.” (Mateus 5:38,41). contemporâneos que pensam as redes sociais, a internet e o mundo virtual
como uma espécie de novo espaço público. Ele tem razão se pensarmos a
3. 2014, p. 21. Aqui, a voz discursiva refere-se à Alexandre Nardoni que, jun- questão estritamente do ponto de vista do debate público e da circulação de
tamente com sua esposa Anna Carolina Jatobá, foi condenado pelo homicídio ideias ou opiniões, mas há uma diferença importante entre a noção de espaço
da própria filha, Isabela Nardoni, de seu primeiro casamento. Desnecessário público e o conceito de esfera pública que reside no fato de que o primeiro
mencionar que a atuação dos grupos de direitos humanos em nenhum momento existe, também, na realidade, isto é, fora da internet: um bar, um parque,
manifestou-se pela defesa da inocência do casal; ao contrário, como se tratava uma praça, qualquer lugar público onde as pessoas possam se reunir opera
de um julgamento com ampla mobilização da mídia, os grupos de defesa dos como um espaço público, mas isso não os torna uma esfera pública, ou seja,
direitos humanos apenas atuaram no sentido de observar e garantir um julga- um lugar no qual a informação, a notícia, o conhecimento e a opinião são
mento realizado estritamente de acordo com os preceitos legais. regulados de antemão pelo veículo em função do qual ganham visibilidade e
pelos compromissos legais, éticos, discursivos, teóricos ou críticos que estão
4. Não é ocasional que seu conto “Rush”, publicado no livro “Sexo e amizade”, no fundamento desses mesmos veículos.
de 2017, figure a voz de um taxista, preso no engarrafamento, que discursa
para um passageiro ironicamente sem voz, enfileirando os piores e mais odiosos 8. 2018, p. 10.
clichês acerca das mulheres, dos motoristas, dos japoneses, dos playboys, em
resumo, de todos aqueles que, do seu ponto de vista, atrapalham seu trabalho 9. Wolff, 2018, p. 11.
e sua vida. Não os percebe como outros, do qual a afirmação de sua própria
subjetividade depende, nem como parte da vida social, nem como sujeitos com 10. 2020, p. 7.
os mesmos direitos que os dele, mas apenas como inimigos de seu desejo
mais básico: um trânsito e um mundo livre dessas figuras que se metem em 11. 2018, p. 21.
seu caminho. Mais uma vez, a voz discursiva figura justamente esse senso
comum médio, essa visão de mundo estreita e espiritualmente banguela, 12. 2018, p. 21
que acredita que a solução para os conflitos e desencontros públicos está no
restabelecimento de uma autoridade de Estado que apenas a ditadura podia e 13. 2018, p. 22.
pode representar: “Mulher no trânsito é um pobrema. Bom era no tempo da
ditadura. Eles não davam carteira pra qualquer um, não. Tinha que mostrar que 14. 1997, p. 16.
sabia dirigir mesmo.” (2007, p. 20).
15. Dubet, 2020, p. 85.
5. Impossível abordar, aqui, todos os estudos, pesquisas e notícias acerca
desse processo, portanto, ver: “A era da burrice”, artigo de Eduardo Szklarz 16. Dubet, 2020, p. 85.
e Bruno Garattoni, publicado na Revista Superinteressante (24 de setembro
de 2018); “Jaron Lanier, pioneiro da internet, quer que você largue as redes 17. 2008, p. 330.
sociais”, de Jaime Rubio Hancock, publicado no jornal El país (6 de setembro
de 2018); “Estamos ficando menos inteligentes por causa da internet?”, de 18. 2008, p. 330-331.

SETEMBRO 2022 119


TEO
RIAS DA
CONSPIRAÇÃO:
A E L A S
IMUNE
UÉ M É
NING
Antonio Cesar Dominguez
Administrador

Teorias da conspiração não são ideias marginais, escrupulosamente escondidas nos cantos escuros
da sociedade e da internet. Elas são política, econômica e socialmente relevantes para todos nós. Estão
interligadas com nosso cotidiano de inúmeras maneiras; estão por toda parte e, como outras ideias, têm
consequências. Quando pessoas acreditam em teorias da conspiração, podem agir conforme os preceitos
dessas. Numa democracia, elas podem levar a maioria do eleitorado a tomar decisões devastadoras, como
observamos atualmente no Brasil da família Bolsonaro. As crenças conspiracionistas podem, também,
estimular a abstenção eleitoral: aqueles que acreditam que o sistema de votação é manipulado por agentes
externos estarão menos dispostos a participar dele.1 Como constatamos atualmente no Brasil com o
famigerado “tratamento precoce”, as teorias da conspiração também influenciam as decisões médicas
de muitas pessoas, o que pode ser nocivo não só para elas, como também para os outros. Para alguns
adeptos, elas chegam a ser justificativa para ações violentas.2

120 HIPNOSE
CARL BEAZLEY

SETEMBRO 2022 121


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

COLETIVA
HISTERIA
As teorias da conspiração são
atemporais − quer na Roma antiga, na
Europa medieval ou na América do século
XX, elas sempre difundiram crenças e
incitaram ações. De quando em quando,
histeria coletiva, pânico, expurgos e
derramamento de sangue resultaram de
ideias conspiracionistas.3 No entanto,
este ensaio tem sua motivação na
atualidade, pois, no século XXI, as teorias
da conspiração atingiram proporções sem
precedentes. Doutrinas conspiracionistas
têm dominado o discurso de elites
políticas em muitas partes do mundo e
se tornado o leitmotiv de movimentos
políticos de massa.
Muitos dos desenvolvimentos
mais alarmantes na política mundial
estão diretamente associados
com crenças conspiracionistas.
Demonstrações recentes de populismo,
nacionalismo, xenofobia e racismo
têm sido acompanhadas por narrativas
conspiratórias.4 Muitos líderes mundiais
− Recep Erdogan, Viktor Orban, Donald
Trump, Nicolas Maduro, Jair Bolsonaro −
justificam o autoritarismo e a concentração
de poder com bodes expiatórios e
acusações de complôs. A internet, outrora
tida como instrumento da democracia,
tem sido utilizada para manipular setores
da população − quer por lucro, quer por
poder − com teorias da conspiração.

122 HIPNOSE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ALGUMAS
PESSOAS

CREEM EM DEZENAS
DE TEORIAS DA
CONSPIRAÇÃO
Há um sem-número de teses conspiratórias em que
as pessoas acreditam. Algumas creem em dezenas,
senão em centenas. Embora as pesquisas de opinião
perguntem apenas sobre algumas, números atuais
sugerem que nós todos − não importa de onde −
acreditamos em pelo menos uma. A título de ilustração,
de acordo com a pesquisa “A Cara da Democracia:
Política e Pandemia” de maio de 2021, metade dos
brasileiros crê que o novo coronavírus foi criado num
laboratório chinês, e quase seis em cada 10 brasileiros
acreditam que os hospitais inflam os números de
mortes por Covid-19.5
Quando se observam essas pesquisas mostrando
que grande parte das pessoas acredita em ideias
estapafúrdias, é natural perguntar-se se elas realmente
creem nessas narrativas − e, sim, eles acreditam.6
Nesse cenário, intelectuais públicos e comunicadores
científicos, como Atila Iamarino, Dráuzio Varella,
Miguel Nicolelis, entre outros, têm de defender
recorrentemente a ciência e a razão contra teorias da
conspiração populares, enchendo tonéis das danaides.
Os ambientes menos científicos também estão
repletos de narrativas conspiracionistas. O modelo
e a arquitetura das mídias sociais como Facebook e
Twitter não só favorecem a difusão dessas teses como
também propiciam ambientes virtuais de reunião de
adeptos.

SETEMBRO 2022 123


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

OCULTAS
Antes da popularização da internet, as pessoas
tinham muito mais dificuldade em encontrar grupos
com crenças, opiniões e atitudes semelhantes às
próprias. Com o advento dos fóruns de discussão on-
line, sobretudo os anônimos − p. ex., 4Chan, 1500Chan
e FavelaChan − e das redes sociais, tornou-se fácil
indivíduos com interpretações conspiracionistas dos

MAQUINAÇÕES
acontecimentos de grande repercussão confraternizar
com outros dotados das mesmas visões de mundo,
deixando-os mais confiantes na forma como pensam, na
medida em que verificam que muitos outros concordam
com eles, o que, a seu turno, acelera a difusão de teorias
da conspiração e a adesão a elas.
Nesse contexto, permanecem ainda muitos mitos
sobre as teorias da conspiração no debate público,
especialmente sobre seus adeptos. Crê-se que apenas
os outros acreditam em fantasias conspiratórias, que
esses crentes costumam ser indivíduos simplórios,
imunes a fatos e sem senso crítico, quando, de fato,
o pensamento conspiratório também viceja entre
elites, tanto econômica, intelectual quanto política.7
Podemos dizer a nós mesmos que apenas os ingênuos
e ignorantes acreditam em histórias fabricadas e em
pseudociências e supor que somos imunes à falsa lógica
dessas narrativas conspiracionistas.
Porém, indivíduos com acesso à educação e a
fontes diversificadas de informação não raro acreditam
em maquinações ocultas. Isso se deve ao fato de
que acreditar em teorias da conspiração é humano,
demasiado humano, parafraseando Nietzsche. Elas
têm utilidade cognitiva e psicológica, e nós tendemos
a aderir a elas − ou criar nossas próprias − em certas
circunstâncias e situações, como durante uma
pandemia.
Para arrefecer as tendências atuais, é mister
entender melhor o que são teorias da conspiração
e por que nós podemos vir a acreditar nelas. Nesse
sentido, devem-se desmistificá-las, deixando de tratá-las
como um fenômeno restrito às margens da sociedade.
Para tanto, primeiro expomos as suas principais
características e discutimos dois exemplos mais
recentes no contexto político brasileiro. Em seguida, com
base na literatura acadêmica sobre o tema, discorremos
sobre as principais razões que tornam as explicações
conspiracionistas mais atraentes a fim de qualificar
melhor o debate público sobre seus adeptos e frisar que
todos estamos sujeitos, em maior ou menor grau, aos
encantos das narrativas conspiratórias.

124 HIPNOSE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

MARXISMO CULTURAL E GLOBALISMO


Primeiro, deve-se dizer que conspirações existem e há muitos exemplos históricos
dessas. No caso brasileiro, podem-se citar, por exemplo, a conspiração entre a elite
cafeicultora e o Exército que levou ao fim da Monarquia em 1889 e as conjurações nos
bastidores do governo Vargas que fabricaram o Plano Cohen para justificar o golpe de Estado
de 1937. Há também a conspiração entre as elites e as Forças Armadas para, em 1964,
depor João Goulart e fechar o Congresso. Como sintetizado na formulação paradoxal de
Goldschälger e Lemaire, “conspirações existem, mas a Conspiração não” (tradução nossa).8
As teorias da conspiração têm geralmente em seu enredo um pequeno grupo de
indivíduos poderosos maquinando secretamente em benefício próprio, mas em detrimento
do bem comum. Envolvem um esforço concertado com vistas a cercear direitos, capturar
instituições (por exemplo, a burocracia estatal, a imprensa, as universidades) por meio
de fraudes, cooptação e operações de manipulação em larga escala. Além disso, as
narrativas conspiratórias servem de explicação de eventos ou circunstâncias passadas,
presentes ou futuras cuja causa principal foi uma conspiração. Na medida em que as
teses conspiracionistas pressupõem intenções e ações de pessoas poderosas, elas são
inerentemente políticas.9
Outro aspecto das teorias da conspiração é que expressam ansiedades originadas na
sensação de perda de controle, como numa ordem religiosa, política ou social. Fazem-no ao
explicar eventos sociais e políticos de amplo impacto e grande repercussão como resultantes
de ações orquestradas por agentes externos poderosos.
Ademais, as explicações conspiracionistas têm, por definição, mecanismos para inocular
seus adeptos contra potenciais refutações, entre os quais semear a desconfiança e o
descrédito contra fontes externas e oficiais. São concepções acusatórias que poderiam ser
verdadeiras ou falsas e que contradizem as evidências e conclusões advindas das autoridades
epistemológicas (por exemplo, cientistas, pesquisadores, especialistas), porque elas foram
cooptadas pelos conspiradores. Costumam ter um núcleo de verdades sobre o qual toda uma
confabulação é erigida com base em evidências distorcidas ou parciais e em fatos fabricados,
tirados de contexto ou inverificáveis, porque os conspiracionistas apagam ou escamoteiam
seus rastros.
As teorias da conspiração, desse modo, conseguem ser plausíveis, possíveis em tese,
ao mesmo tempo em que são “não falseáveis”, isto é, caso alguém apresente provas,
estas serão descartadas, pois fontes externas de informação estariam sob o jugo dos
conspiracionistas.10
Pela “lógica” subjacente a essas narrativas, tudo foi planejado, não há coincidências,
e as causas devem ser proporcionais às suas consequências. Dividem o mundo em
termos maniqueístas − entre conspiradores malévolos e vítimas inocentes. Afirmam que
a conspiração funciona secretamente, não se revelando, mesmo depois de atingidos seus
objetivos. O cientista político Michael Barkun resume três princípios presentes em quase
todas as teorias da conspiração: “nada acontece por acidente; nada é o que parece; e tudo
está conectado” (tradução nossa).11
Portanto, essas confabulações ignoram as noções de aleatoriedade, contingência,
infortúnio e fatalidade. Da perspectiva do crente, por exemplo, uma pandemia não poderia
ter sido resultado do fortuito contato de um humano com um animal silvestre. Um
acontecimento de tal magnitude só poderia ter sido resultado de um plano maléfico dos
comunistas chineses para colocar a economia mundial sob seu jugo ou dos “globalistas” para
controlar a população mundial.

SETEMBRO 2022 125


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

OS PROFISSIONAIS
DAS TEORIAS
DA CONSPIRAÇÃO
SÃO, EM GERAL,
BEM FORMADOS

Conexões causais necessárias − “autoevidentes” − e determinismos são importantes


para as teorias da conspiração. Assim, eventos notáveis ​​(assassinato de J. F. Kennedy, os
ataques do 11 de Setembro, a derrota de Donald Trump) ou catástrofes (crises econômicas,
pandemias) necessariamente não são − “não podem ser” − fruto do acaso. Com base
nas premissas de que nem o governo nem a mídia são confiáveis − daí, por exemplo,
os ataques do bolsonarismo contra a imprensa − “versões oficiais” não passam de
“cortinas de fumaça” criadas pelos conspiradores para esconder da população a “verdade
verdadeira”. Para não serem questionadas e para evitar que sejam refutadas, há um esforço
no sentido de desacreditar as instituições, os especialistas e as autoridades públicas.12

OS ATORES NO TEATRO DAS TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO


Os profissionais das teorias da conspiração são, em geral, bem formados. Eles
produzem e endossam publicamente alegações e narrativas conspiracionistas como
uma visão de mundo. Quer por convicção, quer por interesse econômico ou político, eles
oferecem ao público explicações alternativas e bem estruturadas − internamente coerentes
− para eventos sociais, econômicos ou políticos de grande repercussão. No Brasil,
sobressaiu-se nesse quesito o guru da extrema direita, Olavo de Carvalho. Ex-jornalista,
ex-líder de seita, ex-astrólogo e ex-alquimista, o autointitulado filósofo desempenhou papel
importante na importação para o Brasil de teorias da conspiração das mais variadas, como o
marxismo cultural e o globalismo.
Para se verificar como as teorias disseminadas por Olavo de Carvalho continham os
principais elementos definidores das teorias da conspiração, analisamos doravante as duas
teses defendidas pelo guru da extrema direita brasileira que mais se destacaram depois da
ascensão de Jair Messias Bolsonaro. Segundo preconizava Olavo de Carvalho, o marxismo
cultural foi concebido por filósofos e sociólogos do início do século passado da Escola de
Frankfurt, bem como pelo italiano Antonio Gramsci, para dominar o mundo, especialmente
pela cultura. Entre as principais estratégias está a dominação da linguagem por meio da
“ditadura do politicamente correto”.
Essa nova linguagem seria uma forma de inculcar a ideologia comunista nas mentes
das pessoas. No caso brasileiro, conforme o guru da extrema direita, por meio do
“marxismo cultural”, o processo democrático “foi substituído por um sistema de controle

126 HIPNOSE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

monopolístico não só do poder estatal como


da cultura e da mentalidade pública”, controle
esse “tão eficiente que já não é percebido
como tal”. Portanto, “[a] facção que domina o
governo controla também o sistema de ensino,
as universidades e instituições de cultura, o
meio editorial e artístico e a quase totalidade
dos órgãos de mídia”, e essa facção, é claro, é
uma “aliança indissolúvel” entre a esquerda e a
extrema esquerda.13
Em relação ao globalismo, segundo pregava
o ideólogo, trata-se de um plano − subsidiado
pela elite financeira − para aniquilar as soberanias
nacionais e implementar um governo mundial,
“um onipotente Leviatã”. Constitui-se de “um
processo revolucionário”, “o processo mais vasto
e ambicioso de todos”, que envolve “a mutação
radical não só das estruturas de poder, mas da
sociedade, da educação, da moral, e até das
reações mais íntimas da alma humana”.
Com base na discussão sobre a definição
de teorias da conspiração feita acima, não
surpreende que Olavo de Carvalho tenha
afirmado ser o globalismo um “poder onipresente
e invisível”. Nota-se, diante disso, a presença de
um grupo de poderosos (“elite financeira”), uma
grande operação de manipulação psicológica
em larga escala (“a mutação radical…”), bem
como o aspecto do ocultismo, pois os fatos se
desenrolam “à margem da atenção pública”,
identificável somente por “uma fração mínima e

VERDADE
VERDADEIRA inofensiva da população”, isto é, um seleto grupo
de clarividentes. Interessante notar que, em meio
a sua discussão sobre o globalismo, o guru não
se furta de dizer que “não se trata de nenhuma
‘teoria da conspiração’”.14

SETEMBRO 2022 127


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Essa teoria da conspiração ressurge mais intensamente com a eclosão da pandemia


de Covid-19. O novo coronavírus seria uma estratégia da ONU, da OMS e da China para
dominarem o mundo. Para os antiglobalistas, a pandemia, o isolamento social e o uso
de máscaras fazem parte de um plano para cercear as liberdades básicas individuais e
controlar as populações. Segundo o assessor especial da Presidência da República, Filipe
Martins, “Globalismo é a ideologia que preconiza a construção de um aparato burocrático
− de alcance global, centralizador e pouco transparente − capaz de controlar, gerir e guiar
os fluxos espontâneos da globalização de acordo com certos projetos de poder. Não
confunda uma coisa com a outra”.15
Na realidade, o globalismo refere-se à necessidade de fortalecerem-se o direito
internacional público e as organizações multilaterais a fim de estimular a cooperação
entre os países no enfrentamento de problemas de natureza global, que não podem ser
resolvidos pela vontade de um ou outro país localmente. Note-se o caso do aquecimento
global. As emissões de gases de efeito estufa de um país afetam todos os países. Se
um Estado decidisse conter suas emissões e outro Estado, aumentar suas emissões,
aquele ficaria em desvantagem para com esse. Além disso, a comunidade internacional
estaria arcando com as consequências climáticas produzidas por ações de um punhado
de países. Afinal, a atmosfera é comum a todas as nações.16

128 HIPNOSE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

PLANO OS CRENTES EM
CONSPIRAÇÕES SE
DESCREVEM COMO
BUSCADORES E
DEFENSORES DA
VERDADE

O problema com os teóricos da conspiração é que qualquer tentativa de


corrigir suas teorias apelando para alguma forma de evidência contrária é a própria
confirmação e da teoria da conspiração, vide o caso do globalismo segundo Olavo
de Carvalho. De qualquer forma, não se pode ignorar o fato de que essa função
tem contrapartida financeira, pois não raro eles obtêm renda significativa da venda
de livros, cursos e outros produtos relacionados. Os consumidores dessas teorias,
por sua vez, embora acreditem nelas, agem apenas como audiência passiva,
consumindo os conteúdos de mídia disponibilizados por esses ideólogos.17

POR QUE AS PESSOAS ACREDITAM EM TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO?


Algo corrente no debate público e até mesmo em algumas cátedras é a
suposição de que os adeptos das conspirações devem ser crédulos, cognitivamente
limitados, paranoicos, revoltados, incapazes de pensar analiticamente. Essas
pessoas deveriam, portanto, acreditar em tudo o que leem ou escutam, sem senso
crítico. No entanto, essa perspectiva é tão preconceituosa quanto equivocada. Elas
não aceitam irrefletidamente o que alguém lhes diz − pelo contrário. Os adeptos
adquirem maior propensão a recorrer a teorias da conspiração quando essas podem
ajudá-las a obter informações que julgam importantes, mas ausentes dos meios
tradicionais de comunicação, em vez de acreditar em qualquer explicação; com
efeito, buscam conhecimento específico.
Além disso, os crentes em conspirações muitas vezes se descrevem como
buscadores e defensores da verdade e céticos. Porém, são céticos quanto às
informações que recebem dos tradicionais meios de comunicação − mainstream
media − e quanto às versões oficiais dos acontecimentos e procuram seletivamente
fatos e respostas a perguntas que consideram cruciais. Os crentes podem talvez
apenas estar procurando nos lugares errados esses fatos e respostas. De qualquer
forma, os fatores cognitivos explicam parcialmente por que os seres humanos
acreditam em teorias da conspiração. Existem outros motivos importantes que
precisam ser considerados, como explicamos a seguir.18

SETEMBRO 2022 129


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

De acordo com os pesquisadores Douglas, Sutton e Cichocka,19 as teorias da conspiração


tornam-se mais atraentes por diferentes motivações psicológicas. Eles as dividem em três grupos:
i) epistêmicas (anseio por entendimento/compreensão precisa de certos acontecimentos e por
certeza/segurança subjetiva diante do improvável ou aleatório); ii) existenciais (necessidade de
sensação de controle e de segurança); iii) sociais (desejo de manter uma imagem positiva de si ou
do seu grupo social).
Nesse contexto, com base na literatura acadêmica, explicamos a seguir essas motivações
psicológicas a fim de desmistificar a presunção de que as pessoas aderem a teorias da conspiração
porque são ingênuas, doentes mentais ou pouco inteligentes.
Em relação às razões epistêmicas, seres humanos em geral anseiam por saber a verdade
e estarem certos dela, bem como são inerentemente curiosos, buscam continuamente novas
informações, novidades. Além disso, as pessoas são avessas a incertezas e requerem as causas
até de eventos aleatórios, acidentais, ou muito improváveis. Mais especificamente, elas costumam
fornecer explicações abrangentes, dotadas de coerência interna e irrefutáveis, que permitem aos
indivíduos manter suas crenças em situações aparentemente incertas e contraditórias.
Como referido anteriormente, as teorias da conspiração costumam ser resistentes a refutações,
porquanto se baseiam na premissa de que múltiplos atores agem concertadamente e ocultam suas
ações mediante a cooptação das instituições; consequentemente, aqueles que tentam demonstrar
a farsa estão a serviço dos conspiradores. Com essas características, as narrativas conspiracionistas
são capazes de proporcionar a segurança e a certeza de saber a verdade para quem delas necessita.
Ademais, ao caracterizarem as evidências contrárias como produzidas pelos conspiradores, elas
servem também para manter ou reforçar preconcepções, opiniões ou crenças há muito mantidas,
evitando, assim, desilusões muito intensas.20

FARSA
130 HIPNOSE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Os estudos têm, também, consistentemente vinculado outros fatores psicológicos


à aceitação de teorias da conspiração. Os pesquisadores Van Prooijen e Jostmann,21 por
exemplo, conseguiram identificar correlação entre sensação de incerteza e julgamento
moral de autoridades: quanto maior o sentimento de incerteza, maior a crença na
imoralidade de agentes poderosos e, portanto, na sua participação em conspirações.
Outros estudos,22 por sua vez, ligaram a necessidade de buscar padrões e significado
à aceitação de teorias da conspiração: pessoas com propensão a identificar padrões,
até mesmo na aleatoriedade (ilusão de padrão), são mais suscetíveis a explicações
conspiratórias. Outras pesquisas demonstraram correlação entre predisposição a extrair
conexões de causalidade implausíveis, mesmo quando há um padrão no estímulo dado
aos participantes.23 Outro estudo mostrou que pessoas religiosas ou que acreditam em
fenômenos para e supernaturais têm maior tendência a aceitar essas narrativas.24
Outro fator intensificador na aceitação de narrativas conspiratórias refere-se às
características do acontecimento em si: as pessoas ficam mais propensas a acreditar
em teorias da conspiração quando ocorrem eventos de larga escala e ampla repercussão
ou de muita importância.25 Pesquisadores argumentam que isso pode se dever ao viés
de proporcionalidade − a tendência a achar que as causas devem ser proporcionais aos

PESSOAS RELIGIOSAS OU QUE ACREDITAM


EM FENÔMENOS PARA E SUPERNATURAIS TÊM MAIOR
TENDÊNCIA A ACEITAR TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO

A
seus efeitos. Portanto, explicações simples acerca de um acontecimento de grandes
proporções podem não satisfazer tanto quanto aquelas mais elaboradas; afinal, como
uma pandemia viral poderia ter sido resultado do contato de um indivíduo com animais
silvestres?
Outra característica ligada à suscetibilidade a explicações conspiratórias é a
necessidade de “desfecho cognitivo” (cognitive closure), que se traduz na propensão a
formar com rapidez opiniões e julgamentos sobre qualquer assunto ou situação.26 Outras
pesquisas mostram que a tendência a projetar as crenças pessoais sobre os outros
também está ligada à aceitação de uma teoria da conspiração: se o próprio indivíduo
conspiraria se estivesse na mesma situação, então ela deve ser real.27 Por fim, outros
estudos identificaram ligação entre crenças conspiracionistas e baixos níveis de raciocínio
analítico; maior confiança na intuição do que na razão; alto nível de tédio; e maior
ignorância e menor inteligência.28 Não obstante, como mostramos até aqui, não somente:
há uma multitude de necessidades psicológicas que levam pessoas a aderir a teorias
cabalistas.
No que concerne às motivações existenciais, as pessoas tendem em geral a aderir
a teses conspiratórias quando se sentem inseguras e sem controle em dada situação.29
Ao poder identificar os responsáveis e obter a impressão de “saber o que está
acontecendo”, os indivíduos adquirem sensação de segurança e de controle, pois sentem
que têm alternativas, que têm como se proteger, quando pensam conhecer a origem do
perigo e quem são os conspiradores.30

SETEMBRO 2022 131


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Estudos de psicologia social têm também mostrado que indivíduos,


quando ansiosos ou desalentados, ou quando em situações indutoras de
ansiedade e de sensação de perda de controle sociopolítico − perda de
emprego, crises econômica, social, política e sanitária, como em pandemias
−, adquirem maior propensão a aderir a teorias da conspiração.31
Nesse contexto, verifica-se
que acreditar nessas teses não
significa que a pessoa é crédula AS TESES CONSPIRACIONISTAS
ou pouco inteligente, mas, sim,
utilizam-nas − inconscientemente
PERMITEM QUE AS PESSOAS SE SINTAM
− para suprir necessidades DE POSSE DE INFORMAÇÕES DE
cognitivas provocadas por GRANDE IMPORTÂNCIA E EXCLUSIVAS
fatores externos ou problemas
conjunturais, como forma de
mitigar insegurança, sensação

RENÇAS
de perda de controle, ansiedade, desalento e incertezas sobre o futuro.
As pessoas não acreditam em todas as explicações de teor conspiratório
que lhe são oferecidas, mas, sim, naquelas que lhe trarão a tranquilidade e
segurança que buscam.
Existem, também, variadas motivações sociais que aumentam a
suscetibilidade de um indivíduo ou grupo de indivíduos a teorias da
conspiração, incluindo a necessidade de manter uma imagem positiva de
si mesmo e dos grupos sociais a que pertence. Pesquisadores verificaram
que explicações conspiratórias servem a proteger ou mesmo melhorar a
autoimagem de indivíduos e grupos sociais ao oferecer bodes expiatórios,
como “as elites”, “o establishment”, “o sistema”, “os globalistas” etc.,
para atribuir a culpa ou responsabilização por fracassos ou desilusões.32
Pessoas ou grupos também anseiam por ser únicos,
autênticos, por sentirem-se especiais em comparação com os outros.
Não surpreendentemente, estudos identificaram que as teorias da
conspiração são particularmente atraentes para indivíduos e grupos
narcisistas (narcisismo coletivo).33
Argumenta-se que esses fenômenos ocorrem porque as teses
conspiracionistas permitem que as pessoas se sintam de posse de
informações de grande importância e exclusivas, acessíveis apenas a
poucos ou a escolhidos. A infame QAnon é exemplo eloquente dessas
evidências, na medida em que faz seus participantes crerem que são
os escolhidos, parte de um grupo exclusivo. Além disso, essa teoria da
conspiração serve também a justificar os fracassos da gestão Trump, bem
como explicar sua derrota eleitoral, protegendo a autoimagem dos seus
apoiadores apesar dos pesares.
Nesse sentido, estudos da ciência política também analisaram a relação
entre política e teorias da conspiração. As evidências sugerem que pessoas
do lado perdedor, em comparação ao lado vencedor, têm maior tendência a
consentir com teses conspiratórias. No quesito espectro ideológico, quando
esquerdistas aceitam teorias que demonizam os direitistas (e vice-versa),
estão aderindo a crenças condizentes com suas visões políticas, e, de fato,
há evidências de que as pessoas o fazem em ambas as extremidades do
espectro político.34

132 HIPNOSE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

BULAÇÕES
CONFA
Ademais, indivíduos em situação de impotência têm maior propensão a recorrer a
confabulações a fim de resguardar-se dos poderosos que estariam conspirando contra
eles. Grupos que se sentem vitimizados também tendem mais a aderir a narrativas
conspiracionistas.35 Grupos socialmente marginalizados, discriminados ou oprimidos, por
exemplo, têm maior tendência a acreditar em teorias da conspiração.36 As pessoas não
acreditam que grupos dominantes estejam conspirando contra elas simplesmente por
ingenuidade, ignorância ou estupidez. Muitas vezes, indivíduos ou grupos sociais estão
respondendo a ameaças reais, desigualdades e injustiças, bem como a acontecimentos
históricos de vitimização, como a escravidão. Eles adotam crenças que protegem a si e a
seus grupos, psicologicamente.
Portanto, é importante considerar os contextos político, social e histórico que tornam as
narrativas conspiracionistas mais atraentes e críveis do que as explicações convencionais
e não julgar seus adeptos como ingênuos ou pouco inteligentes. Grande parte da
sociedade alemã não acreditou na teoria da conspiração da “punhalada pelas costas” e da
conspiração internacional judaica porque eram ingênuos, ignorantes ou estúpidos. Era uma
das sociedades mais bem educadas do continente europeu. Havia, sim, uma conjuntura
propícia à adesão a narrativas conspiratórias: a desilusão da derrota militar na Primeira
Grande Guerra, o leonino Tratado de Versalhes e uma crise socioeconômica.

SETEMBRO 2022 133


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Como constatam Jowett and O’Donnel em conspiração. Ambas têm um núcleo de verdade, como
“Propaganda & Persuasion”, “[s]ocialmente, o a Escola de Frankfurt e o Globalismo (genuíno), sobre o
antissemitismo foi evocado para fornecer uma qual se constrói toda uma conspiração, são financiadas
justificativa para o fracasso alemão, bem como uma por um grupo de poderosos, cuja influência atinge todos
razão para esperar um futuro melhor ‘assim que o os níveis das sociedades e cujo poder é onipresente e
problema fosse resolvido’”.37 invisível para a esmagadora maioria.
Se os adeptos dessas
teorias estivessem
simplesmente sendo crédulos,
eles acreditariam em todas
OS AMBIENTES VIRTUAIS ENSEJAM QUE OS
as teorias da conspiração, e ADEPTOS DE TESES CONSPIRATÓRIAS, ANTES
não somente em algumas. ISOLADOS OU REUNIDOS EM PEQUENOS
Em suma, “[a]s pessoas não GRUPOS LOCAIS, ENCONTREM SEUS PARES
acreditam simplesmente MUNDO AFORA
em qualquer coisa − elas
acreditam no que querem
acreditar”.38
Por fim, tratamos talvez do maior mito sobre
CONSIDERAÇÕES FINAIS as teorias da conspiração: o de que seus adeptos
Em contraste com o senso comum, as teorias da são somente pessoas ingênuas, paranoicas ou
conspiração estão bastante disseminadas na sociedade intelectualmente limitadas. No entanto, como
e, com a ascensão das mídias sociais e um cenário mostramos neste ensaio, essas conclusões são
de pandemia, obtiveram ampla exposição na mídia e demasiado simplistas e incompletas, especialmente
tomaram proporções sem paralelo. Nesse sentido, os tendo em conta o quão difundidas são as narrativas
ambientes virtuais ensejam que os adeptos de teses conspiratórias na sociedade.
conspiratórias, antes isolados ou reunidos em pequenos Deveria ser difícil imaginar que milhões de
grupos locais, encontrem seus pares mundo afora, adeptos de versões conspiratórias sejam todos
reforçando suas preconcepções dos eventos de grande crédulos, desequilibrados ou estúpidos. Porém, como
repercussão. Para a surpresa de muitos, metade da examinamos, as pesquisas mais recentes, na maior
população brasileira acredita que o novo coronavírus foi parte levadas a cabo pela psicologia social, demonstram
criado por Pequim para aumentar seu controle sobre o que existem vários fatores que influenciam na
mundo. Sabemos que conspirações existem, mas não propensão a aceitar crenças conspiratórias.
a Conspiração, como sintetizaram os pesquisadores Dividindo em três grupos, discorremos sobre as
Goldschälger e Lemaire. motivações epistêmicas − anseio por saber a verdade
Nesse contexto, discorremos sobre o papel e estar certo dela −; as existenciais − necessidade de
dos teóricos da conspiração, agentes que, por sensação de controle e de segurança em momentos
convicção ou por dinheiro, elaboram ou difundem de grande convulsão econômica, social e política −; e
explicações conspiracionistas para acontecimentos as sociais − proteger a autoimagem positiva de si ou
de grande importância. No caso brasileiro, focamos do grupo social a que pertence. Conclui-se que, para
no grande responsável por escrever e defender desacelerar a atual ascensão das teorias da conspiração,
teses conspiratórias, o falecido Olavo de Carvalho, é mister desestigmatizar seus adeptos, considerando os
o ideólogo da extrema direita. Ele publicou livros e contextos econômico e social, bem como a situação em
inúmeros artigos defendendo conclusões conspiratórias, que eles se encontram. Afinal, as pessoas não tendem
mas sempre frisando que, embora pareçam, não a acreditar em qualquer versão, mas, sim, na versão em
são teorias da conspiração. Expusemos as mais que querem (inconscientemente) acreditar.
conhecidas desse autor − o marxismo cultural e o
globalismo − e demonstramos como elas contêm as O autor é professor e tradutor
principais características do que se define por teoria da acdomain2015@gmail.com

134 HIPNOSE
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

NOTAS DE RODAPÉ

1. JOLLEY, Daniel; DOUGLAS, Karen M. The social consequences of Connecting the dots: Illusory pattern perception predicts belief in conspiracies
conspiracism: Exposure to conspiracy theories decreases intentions to engage and the supernatural, European journal of social psychology, v. 48, n. 3, p.
in politics and to reduce one’s carbon footprint, British Journal of Psychology, 320–335, 2018.
v. 105, n. 1, p. 35–56, 2014.
23. VAN DER WAL, Reine C. et al. Suspicious binds: Conspiracy thinking
2. USCINSKI, Joseph E. (Org.). Conspiracy theories and the people who believe and tenuous perceptions of causal connections between co-occurring and
them, New York, NY: Oxford University Press, 2019; MARWICK, Alice; LEWIS, spuriously correlated events, European Journal of Social Psychology, v. 48, n.
Rebecca. Media Manipulation and Disinformation Online, p. 106, 2017. 7, p. 970–989, 2018.

3. USCINSKI, Joseph E (Org.). Conspiracy theories and the people who believe 24. Por exemplo: DRINKWATER, Ken; DAGNALL, Neil; PARKER, Andrew.
them. Reality testing, conspiracy theories, and paranormal beliefs, Journal of
Parapsychology, v. 76, n. 1, p. 57–77, 2012; DARWIN, Hannah; NEAVE, Nick;
4. PLENTA, Peter. Conspiracy theories as a political instrument: utilization of HOLMES, Joni. Belief in conspiracy theories. The role of paranormal belief,
anti-Soros narratives in Central Europe, Contemporary Politics, v. 26, n. 5, p. paranoid ideation and schizotypy, Personality and Individual Differences, v. 50,
512–530, 2020. n. 8, p. 1289–1293, 2011.

5. AVRITZER, Leonardo, A Cara da Democracia - Brasileiros se posicionam 25. LEMAN, Patrick J.; CINNIRELLA, Marco. A major event has a major cause:
à direita e acreditam em conspiração na pandemia, UOL Notícias, disponível Evidence for the role of heuristics in reasoning about conspiracy theories, Social
em: <https://noticias.uol.com.br/colunas/a-cara-da-democracia/2021/05/07/ Psychological Review, v. 9, n. 2, p. 18–28, 2007.
brasileiros-se-posicionam-a-direita-e-acreditam-em-conspiracao-na-pandemia.
htm>. acesso em: 30 jul. 2021. 26. MARCHLEWSKA, Marta; CICHOCKA, Aleksandra; KOSSOWSKA, Ma\
lgorzata. Addicted to answers: Need for cognitive closure and the endorsement
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7. KREKÓ, Péter. “The Stolen Transition” − Conspiracy Theories in Post- 27. DOUGLAS, Karen M.; SUTTON, Robbie M. Does it take one to know one?
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8. LEMAIRE, Jacques Charles; GOLDSCHLÄGER, Alain. Le complot judéo- 28. SWAMI, Viren et al. Analytic thinking reduces belief in conspiracy theories,
maçonnique, [s.l.: s.n.], 2005. Cognition, v. 133, n. 3, p. 572–585, 2014; STIEGER, Stefan et al, Girl in the
cellar: A repeated cross-sectional investigation of belief in conspiracy theories
9. USCINSKI, Joseph E. Conspiracy theories: a primer, Lanham: Rowman & about the kidnapping of Natascha Kampusch. Frontiers in Psychology, v. 4, p.
Littlefield, 2020. 297, 2013; MIKUŠKOVÁ, Eva Ballová. Conspiracy beliefs of future teachers,
Current Psychology, v. 37, n. 3, p. 692–701, 2018; BROTHERTON, Robert; ESER,
10. GREIFENEDER, Rainer et al. The psychology of fake news: Accepting, Silan. Bored to fears: Boredom proneness, paranoia, and conspiracy theories,
sharing, and correcting misinformation, [s.l.: s.n.], 2021; USCINSKI, Conspiracy Personality and Individual Differences, v. 80, p. 1–5, 2015; DOUGLAS, Karen
theories. M. et al. Someone is pulling the strings: Hypersensitive agency detection and
belief in conspiracy theories, Thinking & Reasoning, v. 22, n. 1, p. 57–77, 2016.
11. BARKUN, Michael. A culture of conspiracy: apocalyptic visions in
contemporary America, Berkeley, Calif: University of California Press, 2003, p. 29. TETLOCK, Philip E., Social functionalist frameworks for judgment and choice:
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n. 3, p. 451, 2002.
12. BARKUN. A culture of conspiracy; GILROY-WARE, Marcus, After the Fact?,
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(Org.), Conspiracy theories and the people who believe them. The role of perceived motive, Psychological Reports, v. 113, n. 1, p. 118–128,
2013; GOERTZEL, Ted, Belief in conspiracy theories, Political psychology, p.
13. DE CARVALHO, Olavo. O mínimo que você precisa saber para não ser um 731–742, 1994.
idiota, [s.l.]: Editora Record, 2013.
31. The Social Psychology of Gullibility, [s.l.]: Routledge, 2019.
14. Ibid.
32. CICHOCKA, Aleksandra et al. ”They will not control us”: Ingroup positivity
15. MARINS, Carolina. O que é globalismo e por que ele é tão mencionado and belief in intergroup conspiracies, British Journal of Psychology, v. 107, n.
durante a pandemia? UOL Notícias, disponível em: <https://noticias.uol.com. 3, p. 556–576, 2016.
br/confere/ultimas-noticias/2020/09/16/globalismo-pandemia-crise-internacional.
htm>. acesso em: 31 jul. 2021. 33. IMHOFF, Roland; LAMBERTY, Pia Karoline. Too special to be duped:
Need for uniqueness motivates conspiracy beliefs, European Journal of Social
16. KENNEDY, Paul. The parliament of man, [s.l.]: Vintage, 2007. Psychology, v. 47, n. 6, p. 724–734, 2017; LANTIAN, Anthony et al. “I Know
Things They Don’t Know!”, Social Psychology, v. 48, n. 3, p. 160–173, 2017.
17. DALKIR, Kimiz; KATZ, Rebecca (Orgs.). Navigating Fake News, Alternative
Facts, and Misinformation in a Post-Truth World: [s.l.]: IGI Global, 2020. 34. USCINSKI, Joseph E.; PARENT, Joseph M. American Conspiracy Theories,
[s.l.]: Oxford University Press, 2014.
18. The Social Psychology of Gullibility, [s.l.]: Routledge, 2019.
35. IMHOFF, Roland; BRUDER, Martin. Speaking (Un–)Truth to Power:
19. DOUGLAS, Karen M.; SUTTON, Robbie M.; CICHOCKA, Aleksandra. The Conspiracy Mentality as A Generalised Political Attitude, European Journal of
psychology of conspiracy theories, Current directions in psychological science, Personality, v. 28, n. 1, p. 25–43, 2014; MASHURI, Ali; ZADUQISTI, Esti. We
v. 26, n. 6, p. 538–542, 2017. believe in your conspiracy if we distrust you: the role of intergroup distrust in
structuring the effect of Islamic identification, competitive victimhood, and group
20. DOUGLAS, Karen M.; SUTTON, Robbie M.; CICHOCKA, Aleksandra. The incompatibility on belief in a conspiracy theory, Journal of Tropical Psychology,
psychology of conspiracy theories, Current directions in psychological science, v. 4, 2014.
v. 26, n. 6, p. 538–542, 2017.
36. SIMMONS, William Paul; PARSONS, Sharon. Beliefs in Conspiracy Theories
21. VAN PROOIJEN, Jan-Willem; JOSTMANN, Nils B. Belief in conspiracy Among African Americans: A Comparison of Elites and Masses*, Social Science
theories: The influence of uncertainty and perceived morality, European Journal Quarterly, v. 86, n. 3, p. 582–598, 2005.
of Social Psychology, v. 43, n. 1, p. 109–115, 2013.
37. JOWETT, Garth S.; O’DONNELL, Victoria. Propaganda & Persuasion, 6. ed.
22. WHITSON, Jennifer A.; GALINSKY, Adam D. Lacking control increases USA: Sage publications, 2014, p. 271.
illusory pattern perception, science, v. 322, n. 5898, p. 115–117, 2008; VAN
PROOIJEN, Jan-Willem; DOUGLAS, Karen M.; DE INOCENCIO, Clara. 38. The Social Psychology of Gullibility, p. 69.

SETEMBRO 2022 135


Quem
t em
medo da
sust en-
t abili-
dade?
Elizeu Santiago de Souza
Internacionalista e cientista político

136 DESEQUILÍBRIO
Desaf io s
e p o ssi-
b il id a d es
p ara a
ag e n da
ES G

O planeta vem dando sinais de esgotamento


há décadas. No ano 2000, diante da urgência
em conciliar crescimento econômico e
sustentabilidade, o então secretário geral
da ONU, Kofi Annan, lançou o Pacto Global
(United Nations Global Compact), a maior e
mais ambiciosa iniciativa de sustentabilidade
corporativa no mundo. A ideia era encorajar
empresas e mercados a adotarem políticas de
responsabilidade social e ambiental. Em grau
variado, essas questões já eram debatidas
desde os anos 1970 por governos nacionais e
organizações internacionais. O ex-secretário geral,
no entanto, acreditava que a mudança só seria
possível com a participação efetiva de iniciativa
privada e sociedade civil. E fazia sentido.
Em janeiro de 2004, ele convidou 55 CEOs
das principais instituições financeiras globais
para a produção de um relatório conjunto.
Em dezembro, em parceria com 20 dessas
corporações, publicou-se o relatório Who Cares
Win,1 uma bem-sucedida provocação para que os
atores do mercado financeiro desenvolvessem
diretrizes e integrassem os fatores sociais,
ambientais e de governança em suas análises e
decisões. Nascia para o mundo o acrônimo ESG
(do inglês, Environmental, Social and Governance)
ou ASG (do português, Ambiental, Social e
Governança), citada 116 vezes no documento.
Por trás do conceito, havia o diagnóstico de que:

SETEMBRO 2022 137


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

“[...] num mundo mais globalizado, interconectado e dos recursos naturais; o social, com preocupações
competitivo, a forma como as questões ambientais, relacionadas aos direitos humanos – a exemplo
sociais e de governança corporativa são gerenciadas da escravidão moderna, do trabalho infantil e da
é parte da qualidade geral da gestão das empresas, responsabilidade social diante das comunidades locais
necessária para competir com sucesso. As empresas –; e o de governança, com fatores diretamente ligados
que apresentam melhor desempenho nessas à qualidade da gestão empresarial, tais como práticas
questões podem aumentar o valor para o acionista, anticorrupção, transparência administrativa e direitos dos
por exemplo, gerenciando adequadamente os riscos, acionistas.
antecipando a ação regulatória ou acessando novos De lá para cá, a sigla ganhou notoriedade em todo o
mercados, ao mesmo tempo em que contribuem mundo, transformando-se no mais importante referencial
para o desenvolvimento sustentável das sociedades para a prática de negócios responsáveis. Em 2005, a
em que operam. Além disso, essas questões podem Iniciativa Financeira do Programa das Nações Unidas para
ter um forte impacto na reputação e nas marcas, o Meio Ambiente (UNEP/FI), uma parceria entre a ONU e
uma parte cada vez mais importante do valor da o mundo corporativo, produziu o Relatório Freshfield, um
empresa.”2 marco na integração de questões ambientais, sociais e
de governança no investimento institucional.3
Dito de outra forma, sob um olhar estratégico, a Em 2006, inspirados pelo Pacto Global, um
adoção de políticas ESG seria um ótimo negócio para grupo de cem investidores criaria o Principles for
empresas e vital à sustentabilidade mundial. Ao fim e Responsible Investment (PRI),4 iniciativa voluntária que
ao cabo, a destruição do capital natural e humano do visa à implementação de princípios de investimento
planeta inviabilizaria o próprio ciclo produtivo e, em última responsável.5 O objetivo da organização é o de
instância, a vida na Terra. Em conjunto, os três pilares “compreender as implicações do investimento sobre
complementariam a análise financeira tradicional. temas ambientais, sociais e de governança, além de
O fator ambiental lidaria com temas como as oferecer suporte para os signatários na integração desses
mudanças climáticas, o uso adequado e o esgotamento temas com suas decisões de investimento e propriedade

138 DESEQUILÍBRIO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

- a t u p er
oãç
de ativos”.6 Em conjunto, eles “oferecem um menu de
ações possíveis para incorporar questões ESG na prática
de investimentos”. Segundo o último relatório (2021),
mais de 4.800 organizações empresariais, cujos ativos
sob gestão superam a cifra de 120 trilhões de dólares,
haviam voluntariamente ingressado na iniciativa; entre
elas 123 empresas brasileiras.7 Já o Pacto Global, ponta
de lança da iniciativa, conta atualmente com mais de
16 mil participantes, distribuídos por 161 países.8
O crescente despertar global não deixa de ser o
reflexo do estado febril pelo qual atravessamos.
No mundo, mais de 600 milhões de pessoas vivem
em extrema pobreza. Só no Brasil, são 11 milhões.9
A fome é outro indicador alarmante. Estima-se que 828
milhões de pessoas tenham sofrido do mal em 2021,
entre os quais 33 milhões de brasileiros encontram-se
hoje em estado de vulnerabilidade alimentar, o
equivalente a 15% da população.10 São 14 milhões de
brasileiros a mais do que em 2020. A fila dos ossos é
uma realidade inaceitável para o segundo maior produtor
de alimentos do planeta. Para piorar, a desigualdade de
renda no mundo está aumentando. A digitalização da
economia global, somada aos impactos da emergência
climática, podem gerar excedentes cada vez maiores
de desempregados ao redor do mundo. E o relógio
está correndo.

SETEMBRO 2022 139


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Tendênc ia
ou
mod ismo?
Ao contrário de algumas críticas, a agenda ESG não parece
representar uma onda passageira, tampouco a ação política de
determinada corrente ideológica sobre outras. As suas origens
transcendem o tempo presente e a polarização dos nossos dias.
Ao menos desde os anos 1970, governos de múltiplas orientações
políticas e mercados de diversos tipos vêm se debruçando sobre os
desafios e as possibilidades da agenda de sustentabilidade.
Em 1971, o Pax World Fund, o primeiro fundo mútuo
socialmente responsável, era lançado nos Estados Unidos.
No ano seguinte, 113 países se reuniam em Estocolmo para
a primeira conferência global sobre meio ambiente, iniciativa
sucedida, no mesmo ano, pela criação do Programa das Nações
Unidas para o Meio Ambiente. No campo social, ondas maciças
de desinvestimento atingiriam a África do Sul nos anos 1980 em
protesto contra o apartheid.
A própria ideia de sustentabilidade não é nova. Em 1987, o hoje
célebre Relatório Brundtland (Our Common Futur) consolidava A a g e n da
ESG não
o conceito de desenvolvimento sustentável.11 Dois anos mais
tarde, em memória do trágico desastre ambiental causado pelo
derramamento de óleo do Exxon Valdez, criava-se os Princípios de
Valdez, um conjunto de propostas que visava mitigar o impacto
p a re ce
ambiental das atividades empresariais.
As iniciativas se avolumariam a partir da década de 1990. Já em
re p re se n t a r
1990, o Domini 400 Social Index, índice de ações composto por u m a o n da
empresas com altos padrões ambientais, sociais e de governança,
era lançado. Dois anos mais tarde, era realizada no Rio de Janeiro p a ssa g e ira
a Cúpula da Terra (Eco-92), a maior conferência da história até
então. No mesmo ano, nascia a Iniciativa Financeira do Programa
das Nações Unidas para o Meio Ambiente, a primeira organização
internacional a engajar o setor financeiro com os temas de
sustentabilidade. Em 1999, seria a vez do lançamento do índice de
sustentabilidade da Dow Jones. Em 2000, do Pacto Global;

140 DESEQUILÍBRIO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

em 2006, do já mencionado PRI. Em 2008, o Banco Mundial


emitia o seu primeiro título verde. Na América Latina, o Brasil seria
pioneiro, em 2005, com a criação do ISE B3, o primeiro índice de
sustentabilidade da América Latina e o quarto no mundo.12
Em 2015, um dos mais importantes passos seria dado. Reunidos
na ONU, 193 Estados-membros decidiram estabelecer 17 objetivos
de desenvolvimento sustentável (ODS) e 169 metas universais
a serem atingidos até 2030. Partindo de quatro pilares – social,
ambiental, econômico e institucional –, trata-se de “um apelo global à
ação para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima
e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de
paz e de prosperidade”.13
Além dos Estados, nos últimos anos, cidades e empresas,
voluntariamente, passaram a incorporar os 17 ODS em sua ação
cotidiana. Reside aqui uma constatação de fundo: a agenda
ambiental, social e de governança é de responsabilidade de todos.
Não estamos, portanto, presenciando um modismo. Trata-se
de uma tendência histórica ascendente, catapultada pela mudança
de percepção das novas gerações. Ao longo dos últimos 5 anos, a
busca na internet pelo termo ESG cresceu cinco vezes. Nos principais
mercados globais, mais de 90% das empresas do S&P 500 já
publicam relatórios ESG, assim como cerca de 70% das companhias
listadas no Russell 1000, respectivamente os principais índices de
ações nos Estados Unidos e Inglaterra.14
Segundo dados do Bank of America, 80% da geração Z – a
primeira nascida em um mundo online, a partir de 1995 –, prefere
investir e comprar de empresas alinhadas com as métricas ESG.15
Os números parecem corroborar estudos realizados pela McKinsey
no Brasil. Embora a principal variável a impactar as preferências de
consumo siga sendo o preço, os dados analisados indicam que 67%
dos consumidores brasileiros procuram comprar de companhias
consideradas éticas ou com propósito social; 85% se sentem
melhores comprando produtos sustentáveis. Especificamente na
geração Z, 84% dizem ter parado de consumir produtos de empresas
envolvidas em escândalos.16

SETEMBRO 2022 141


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A po lít i ca
do s
valore s e
a ética do
int ere s s e
Valores importam. Erradicar a fome, lutar contra bilionárias ao redor do mundo. Em 2018, o Facebook
o trabalho infantil ou adotar práticas anticorrupção também perderia bilhões em valor de mercado após a
são exemplos elementares de ações suportadas descoberta de que a consultoria Cambridge Analytica
pela agenda ESG. Consumidores e eleitores estão teria coletado e usado dados de até 87 milhões de
cada dia mais atentos ao impacto provocado por tais usuários sem o respectivo consentimento. A violação
pautas. Mas a adoção da agenda de sustentabilidade dos dados levou a gigante do Vale do Silício para o
representa, para além da importância da reflexão banco dos réus, em processo que se arrasta até os
ética, um imperativo pragmático. Em primeiro lugar, dias de hoje. A Cambridge Analytica declarou falência
através do gerenciamento de riscos diante dos em 2018. Para não ir tão longe, em 2019, a tragédia
fatores socioambientais; em segundo, enquanto uma do rompimento da barragem em Brumadinho é
estratégia empresarial que vise melhores retornos no evento que, sob qualquer ângulo, só deixou perdas e
longo prazo; em terceiro, na melhoria da imagem e na sofrimento.
construção de uma reputação positiva. Na esfera social, é crescente o impacto causado
Inúmeros são os casos de incidentes ambientais, por pautas identificadas como justas e inclusivas,
sociais ou de governança com forte impacto tais como o combate ao racismo e a promoção da
financeiro e reputacional negativo. Em 2015, o grupo diversidade. Temos assistido, nos últimos anos, a
Volkswagen foi acusado de fraudar testes de emissão diversos exemplos do chamado “ativismo de marca”.
de poluentes em seus carros. Conhecido como Entre ética e interesse, corporações tendem a
“Dieselgate”, o escândalo gerou forte e imediata alinhar valores corporativos com preocupações dos
queda nas ações, além de perda de mercado e multas consumidores.

142 DESEQUILÍBRIO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

E st u do s v ê m
a t e st a n do
a re la çã o
p o sit iv a e n t re
p e r f o r m a n ce
Lembremos, por exemplo, da repercussão em f in a n ce ira
e p rá t ica s
torno da morte de George Floyd, nos Estados Unidos,
e dos protestos globais liderados pelo movimento
Black Lives Matter. Não tardaria para que personalidades
e empresas ao redor do mundo fossem cobradas por
su st e n t á v e is
um posicionamento mais rigoroso diante do lamentável
episódio. Gigantes corporativas como Nike, Adidas,
McDonalds, Uber e P&G, entre críticas e acertos,
se posicionaram publicamente diante do tema.
Lembremos ainda que, após o episódio, ações de
fabricantes de armas tiveram expressivas altas na
bolsa norte-americana. financial and stakeholder- aspects can very well
Os exemplos nos mostram que é preciso levar supplement each other”.17 Em resumo, a publicação,
em conta riscos financeiros e não financeiros, assim composta por especialista da academia e do mercado,
como compreender que o investimento responsável conclui que “there has been a highly significant, positive,
complementa a análise fiduciária tradicional. Dito de robust, and bilateral ESG (environment, social and
outra forma, analistas e gerenciadores de negócios ao governance) – CFP (corporate financial performance)
olharem para um horizonte maior de tempo tenderão, correlation”18
cada vez mais, a incorporarem aspectos da agenda Caminhando nesta direção, em 2020, Larry Fink,
ESG em busca da otimização dos seus investimentos, CEO da BlackRock, emitiu a hoje famosa carta em que
seja minimizando eventuais problemas legais, seja afirmava que “risco climático é risco de investimento”.
gerenciando a relação risco e retorno. A lógica do longo A fala do líder da maior gestora de investimentos global
prazo aponta para o caminho da sustentabilidade. ecoou rapidamente em todos os cantos do mundo dos
Se o descuido com as variáveis ambientais, sociais e negócios. Em 2022, os investimentos sustentáveis
de governança possuem a capacidade de causar danos atingiram a marca de 4 trilhões de dólares, data que, em
reputacionais e financeiros inestimáveis, o inverso é uma nova carta, ele defenderia abertamente uma nova
igualmente verdadeiro. Diversos estudos vêm atestando forma de capitalismo.
a relação positiva entre performance financeira e práticas O capitalismo de stakeholders ou capitalismo
sustentáveis. sustentável é aquele que busca rentabilidade aliado
Uma análise de mais de 2.000 estudos acadêmicos à preocupação com governança ambiental, social e
sobre o tema, publicada em 2018, argumentou que corporativa. Trata-se, portanto, de levar em conta não
“Based on the wide body of literature available, our apenas os interesses do acionista, mas de todos aqueles
conclusion is clear that the business case for being a envolvidos direta ou indiretamente no processo, tais
good firm is undeniable. Firms and investors can feel como funcionários, clientes, fornecedores e comunidade.
encouraged that on first glance potentially competing De acordo com Fink, “Nós nos concentramos em
sustentabilidade não porque somos ambientalistas, mas
porque somos capitalistas e fiduciários para nossos
clientes”.19 Em suas palavras:

SETEMBRO 2022 143


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

“O capitalismo de stakeholders não se trata de


política. Não é uma agenda social ou ideológica.
Não é “justiça social”. É capitalismo, conduzido
por relacionamentos mutuamente benéficos entre
você e os funcionários, clientes, fornecedores e
comunidades nos quais sua empresa depende
para prosperar. Esse é o poder do capitalismo. No
mundo globalmente interconectado de hoje, uma
empresa deve criar valor e ser valorizada por sua
gama completa de stakeholders, a fim de oferecer
valor de longo prazo para seus acionistas. É por meio
de um capitalismo de stakeholders eficaz que o
capital é alocado de maneira eficiente, as empresas
obtêm lucratividade duradoura e o valor é criado e
mantido em longo prazo. Não se engane, a busca
justa pelo lucro ainda é o que anima os mercados;
e a rentabilidade de longo prazo é a medida pela
qual os mercados determinarão o sucesso da sua
empresa no fim das contas. Na base do capitalismo
está o processo de constante reinvenção – a forma
como as empresas devem evoluir continuamente à
medida que o mundo ao seu redor muda para não
correrem o risco de serem substituídas por novos
concorrentes.”20

Em janeiro de 2022, a BlackRock atingiu o valor


recorde de 10 trilhões de dólares em ativos sob gestão,
algo próximo a sete vezes o PIB do Brasil. A título de
recordação, no país, a companhia administra o nosso
maior ETF de ações (BOVA11), assim como o maior
ETF de ações brasileiras no exterior (EWZ). Protagonista
no mundo dos investimentos, ano após ano, a aposta
do gigante dos negócios é a de uma rápida e crescente
transição para a economia matriz ESG.
A visão de Larry Fink é a de que “Os próximos
1.000 unicórnios não serão mecanismos de busca
ou empresas de redes sociais”, mas sim inovadores
sustentáveis e escaláveis – startups que ajudam o
mundo a se descarbonizar e tornar a transição de energia
acessível para todos os consumidores.21 O argumento
do magnata faz sentido. As rápidas e profundas
transformações no meio-ambiente acenderam o sinal de
alerta. E o relógio está correndo.
A emergência climática é uma conta que cresce a
cada dia. Apenas em 2021, as seguradoras perderam
120 bilhões de dólares em catástrofes naturais,
número insignificante perto de um eventual cataclisma
anunciado por cientistas diante da demora.22 Em 2021,
a concentração de gases do efeito estufa na atmosfera

144 DESEQUILÍBRIO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

-remE
aicnêg
-ámilc
acit
bateu mais um assustador recorde histórico. Calor e seca fizeram
incêndios florestais se espalharem pela Europa; secas se alastraram pela
China; nos Estados Unidos, um ano atípico de furacões e nevascas. Para
piorar, seguimos assistindo ao derretimento das calotas polares e ao
aumento das tempestades tropicais.
Atualmente, o setor energético responde por cerca de 73% das
emissões de gases de efeito estufa em todo o mundo.23 Juntos, China
(27%) e Estados Unidos (12%) são hoje os dois maiores poluidores
globais, embora o último seja responsável por mais de 25% de todos os
gases poluentes emitidos desde a Revolução Industrial.24
Nos Estados Unidos, após meses de impasse, o Senado aprovou um
pacote de 437 bilhões de dólares em ações para o clima e programas de
iniciativa energética. Na China, há a promessa, assumida em 2020
na ONU, de neutralizar as emissões de gases estufas em até 40 anos.

SETEMBRO 2022 145


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Em 2021, 276 bilhões foram investidos no país em medidas de transição


energética.25 Diante da crescente ênfase do governo de Pequim em
políticas de combate à pobreza e fomento à energia renovável, estima-se
que, até 2025, cerca de 50% da matriz energética chinesa seja oriunda de
fontes renováveis. Hoje, o país é ainda majoritariamente dependente do
carvão e do gás.26
O gigante asiático possui ainda um mercado de capitais em expansão.
Apenas no último ano, os ativos ESG – com características chinesas,
diga-se de passagem – dobraram para cerca de 50 bilhões de dólares.
Entre os mais de 170 fundos, cerca de 15% investem em empresas de
carvão, de longe a maior fonte de emissão de gases de efeito estufa
do país.27 Não é incomum que tais fundos possuam investimentos em
setores como siderurgia, defesa, álcool e tabaco. Embora possuam algum
grau de preocupação com a agenda, as regras sobre questões ambientais
e sociais possuem ingerência direta do Partido Comunista Chinês.
Em um mundo forçosamente marcado pela urgência na
descarbonização da economia global, a aposta do mercado financeiro é a
de que haverá uma quantidade sem precedentes de capital à procura de
ideias e negócios promissores e sustentáveis. Nas palavras de Larry Fink,
um movimento de proporções tectônicas se acelera.

ESG e os
seus
críticos
Processos históricos são construções bidirecionais, não teleologias
inevitáveis. Por mais que apontem para uma determinada tendência, ora
avançam, ora recuam. Embora a sua adoção seja crescente, a agenda
ESG enfrenta desafios. A velocidade de implementação planetária
está diretamente condicionada pelas circunstâncias da geopolítica.
Contemporaneamente, duas variáveis ditam a sua dinâmica: a busca por
segurança energética e por segurança alimentar, ambas dependentes da
utilização de combustíveis fósseis.
No Velho Mundo, uma Europa de incertezas: Brexit, crise na Ucrânia e
inflação ascendente. No momento em que o bloco econômico entabulava
duras negociações de saída com o Reino Unido, a invasão russa ao

146 DESEQUILÍBRIO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

território ucraniano foi um balde de água fria. Para além da


destruição de vidas e de capital, ocasionou um perigoso
choque de oferta energética, ocasionada pela excessiva
dependência europeia do gás natural controlado por
Moscou.
De todo o gás utilizado na matriz alemã, 65% são de
origem russa. Esse número chega a espantosos 95%
na Hungria e 100% na República Tcheca.28 O inverno
bate à porta em um momento marcado pelo risco de
racionamento energético e retração econômica. Um
hipotético corte total no fornecimento do gás russo
poderia redundar em fechamento de indústrias, aumento
expressivo do desemprego e convulsões sociais.
Na iminência da catástrofe, a União Europeia anunciou
a ampliação do uso do carvão, medida lamentada por uns,
mas entendida como vital pela maioria. Antes, já havia
avançado com outra polêmica: a inclusão do gás e da
energia nuclear na taxonomia de atividades sustentáveis.
Aprovada por um Parlamento dividido, os críticos
temem que a medida abra caminho para o aumento dos
investimentos nessas áreas.29
A transição para a economia ESG está em curso. Mas
não será do dia para a noite que a secular dependência
global por combustíveis fósseis será eliminada. A
interdependência econômica, ao permitir a integração
de cadeias globais, de um lado estimula a produtividade
e a diminuição nos preços para o consumidor; mas do
outro, evidencia o risco da dependência estrangeira em
momentos de tensionamento da política internacional.
Os desafios impostos pela atual conjuntura
internacional são consideráveis. Some-se às dificuldades
sanitárias e econômicas pós-pandêmicas, o conflito na
Ucrânia e tensões entre China e Taiwan. Em um mundo
marcado por guerras e inflação, ondas de desglobalização
e movimentos de proteção nacional evidenciam os limites
e os desafios na aceleração de uma mudança global brusca
e imediata.
Do outro lado do Atlântico, políticos identificados com
a extrema-direita norte-americana acusam gestores de
fundos ESG de estarem politizando os investimentos.
Entre os negacionistas, circula o argumento de que a
agenda de sustentabilidade seria invenção do globalismo
das elites internacionais. Estados como o Texas e a Virgínia
Ocidental ameaçam penalizar ou mesmo impedir as
operações de gigantes como UBS e BlackRock.
Trata-se de mais um capítulo da guerra cultural cujo
exemplo mais notório foi a ascensão de Donald Trump e
os desentendimentos com Wall Street.

SETEMBRO 2022 147


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

lepap
- a l u g er
oirót
148 DESEQUILÍBRIO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Mundo afora, críticos vêm ainda apontando a Na ocasião, ela exortou os líderes globais a agirem como
dificuldade em se estabelecer metas e parâmetros verdadeiros estadistas, acima dos interesses políticos
consensualmente aceitos por empresas e governos, momentâneos.33
assim como a falta de padrões e taxonomia para A bem da verdade, em um primeiro olhar, as várias
investidores no mercado financeiro e para consumidores siglas de indicadores, instituições e metodologias
do varejo.30 A verdade é que, sem definições claras, de avaliação ESG (TBL, CSV, RSC, EoM, GRI, CDP,
empresas e gestores de ativos poderão construir IFRS, ISSB, SASB, ISE, DJSI etc.) fazem do tema
produtos e portfólios autodeclarados ESG da maneira uma verdadeira sopa de letrinhas indigesta. Uma das
que quiserem. Dito de outra forma, como medir, consequências é a dificuldade em engajar um público
controlar e gerenciar os critérios da agenda ESG nos mais amplo.
mais variados países e segmentos da economia? Mais do que isso. Qual deve ser o papel regulatório
É coerente o argumento de que, na ausência e a intensidade da participação do Estado? Para o bem
de informações confiáveis, mercados, governos e e para o mal, a ausência de regulação e fiscalização
sociedade terão dificuldades em precificar riscos e específica na maior parte dos países pode tornar a
oportunidades. Ciente dos desafios, representantes da agenda ESG um chamariz para o marketing barato
Comissão Europeia e do governo britânico anunciaram, e fraudulento. É o chamado greenwashing ou
no primeiro semestre de 2020, a intenção em se socialwashing, momento em que empresas exageram
desenvolverem padrões de relatórios não financeiros ou mentem sobre as suas práticas ambientais e sociais.
aceitos internacionalmente. Indo na mesma direção, em Pense, por exemplo, nos produtos falsamente vendidos
setembro de 2020, cinco instituições de abrangência como “superverdes” ou nos cosméticos incorretamente
internacional, líderes na estrutura e definição de padrões, anunciados como “não testados em animais”.
divulgaram uma visão compartilhada que inclui tanto a Em termos gerais, a “lavagem ou maquiagem verde”
contabilidade financeira tradicional quanto relatórios de e “social” é a tentativa de exibir-se mais verde ou
sustentabilidade de forma integrada.31 socialmente consciente do que o verificado na prática. A
A discussão chegou à cúpula internacional. Em ação visa impulsionar-se no mercado, valendo-se de um
novembro de 2021, na 26ª Conferência das Nações tema crescentemente popular entre as novas gerações.
Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-26), o Mais uma vez, a principal arma ao nosso dispor é
International Financial Reporting Standards Foundation a informação, seja através de portais e publicações
(IFRS), referência em normativas contábeis no mundo, especializada, seja através da verificação de selos e
anunciou a formação do International Sustainability outras certificações confiáveis.
Standards Board (ISSB). Trata-se de promissora iniciativa Por certo, a lista de desafios evidencia que há uma
em se criar parâmetros globais de sustentabilidade com longa estrada a ser construída diante de nós, na qual
foco nos mercados.32 A Conferência, a propósito, foi governos, empresas e sociedade civil pavimentarão
marcada por duro e emotivo apelo da rainha Elizabeth II. juntos o futuro da sustentabilidade.

SETEMBRO 2022 149


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O mundo
preci s a
d e uma
pot ên c ia
d oce
O mercado financeiro costuma se antecipar a 2021, 4 trilhões de dólares foram emitidos em títulos e
mudanças históricas. Ao longo da última década, um empréstimos ambientais e/ou sociais em todo mundo,
montante considerável de recursos vem sendo alocado entre os quais, apenas 1% na América Latina. Cerca de
em investimentos ESG. O mundo possuía em 2021 42% de todos os fundos de investimento na Europa são
cerca de 30 trilhões de dólares investidos em ativos com de natureza ESG; nos Estados Unidos, 33%. No Brasil,
algum grau de preocupação com os fatores ambiental, os números ainda não atingiram 5%, embora venham
social e de governança. Em 2022, esse montante subiu crescendo rapidamente nos últimos anos.35 Em 2019,
para 35 trilhões. Trata-se de valor equivalente a quase seis novos fundos de investimento sustentável foram
1,7 vez o PIB norte-americano ou a 24 vezes o brasileiro. criados; em 2020, esse número saltou para 85. Hoje,
A estimativa é a de que esse número atinja a cifra de 53 os ativos com selo ESG somam cerca de 84 bilhões.
trilhões de dólares em 2025.34 Estima-se que o mercado de operações sustentáveis de
No que pese os desafios geopolíticos de curto prazo, crédito possa chegar a 500 bilhões em cinco anos.36
o engajamento de investidores somado à emergência de Certa vez, o então ministro da cultura, Gilberto Gil, ao
novas gerações de consumidores amplificará ainda mais analisar a dimensão econômica da cultura nacional, disse
essa tendência de alta. Mais do que isso. Para dar conta ser o Brasil uma espécie de “potência doce” devido “à
dos desafios nos próximos anos, o cumprimento do sua diversidade étnica, à sua grande dimensão territorial,
Acordo de Paris e da Agenda 2030 demandará maciços ao seu protagonismo na Ibero-américa e à sua inserção
investimentos por parte de governos e da iniciativa mundial”. Ao olhar para a agenda da sustentabilidade
privada. Os números seguirão subindo. no plano global, a analogia parece irrepreensível. Os
Para o Brasil, a oportunidade de uma geração. Em próximos anos testemunharão as tentativas de, no

150 DESEQUILÍBRIO
-ami
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

meg

plano do concerto global, se avançar em importantes pelo esforço multilateral construtivo nos mais variados
discussões sobre metas, padrões e resultados a serem temas da agenda global, da segurança aos direitos
alcançados pelos países. humanos. E fazia sentido. É pouco provável que um país
Das grandes economias emergentes, o Brasil é destituído de grandes ativos de poder duro houvesse
caso raro de não envolvimento em guerras ou tensões logrado uma atuação internacional exitosa longe da
com os vizinhos. A bem da verdade, o país apresenta articulação multilateral. As nossas melhores tradições
um extraordinário portfólio. Seja para atrair capital e diplomáticas sempre apontaram para a prudência e
gerar renda, seja para liderar as discussões no plano o equilíbrio; o pragmatismo e a ampla capacidade de
diplomático, dispomos de elevada biodiversidade, interlocução.
inexistência de risco geopolítico, alta capacidade de A retomada do tradicional perfil diplomático
geração de energia e produção de alimentos. brasileiro, aliado à adoção institucionalizada de boas
Não faz muito tempo, ostentávamos nos principais práticas no plano doméstico, poderá elevar o país ao
fóruns internacionais melhora expressiva em indicadores protagonismo de uma das mais importantes e lucrativas
sociais acompanhados de crescimento econômico. discussões da história. O contrário também é verdade.
Falta, é verdade, melhorar a imagem da marca Brasil, Um posicionamento externo errático e conivente com
significativamente desgastada ao longo dos últimos anos a destruição da biodiversidade pátria não apenas nos
em decorrência de isolamento diplomático autoimposto isolará ainda mais, como incorrerá em sérios prejuízos
e de posicionamentos altamente questionáveis, entre políticos e comerciais. Seja como for, em tempos
eles a péssima performance ambiental do país. amargos de guerra e pandemia, o mundo precisa de uma
Ao longo do tempo, a nossa diplomacia se notabilizou potência doce.

SETEMBRO 2022 151


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O doce
se faz
a ma rg o
Existe uma dependência estrutural da economia
brasileira pela exportação de bens oriundos da
agropecuária e do extrativismo. E não há sinais de
que a reprimarização produtiva da maior economia
latino-americana esteja com os seus dias contados. Em
2021, dos 280 bilhões de dólares vendidos ao exterior,
três produtos monopolizaram a pauta: minérios (16%),
soja (14%) e petróleo (11%). Em 2022, os dados
agregados indicam o mesmo cenário. Entre janeiro
e agosto, foram quase 225 bilhões de dólares em
exportações, com primazia para a venda de soja (17%),
petróleo (10%) e minérios (9%).37
A concentração da produção de bens primários
encontra correspondência em outra crescente
dependência de natureza econômica: a China. Além de
principal compradora, é responsável pelo maior superávit
comercial do país. Em 2021, de cada 10 dólares na
conta brasileira, mais de três dólares vieram de Pequim.
Foram, no total, 87,9 bilhões em vendas contra 47,7
em compras. O saldo de mais de 40 bilhões de dólares
representou 65% do superávit global em nossas contas.
Em 2022, nada mudou. O gigante asiático segue na
frente em todas as estatísticas. A título de comparação,
foram 63,1 bilhões de dólares em vendas contra
24,5 para os Estados Unidos e 10,4 para a Argentina,
segundo e terceiro maiores compradores do Brasil
respectivamente.38

152 DESEQUILÍBRIO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Mas reside aqui uma fundamental diferença na Se a China, em nome da segurança alimentar e
natureza comercial das nossas principais relações. energética, exibe doses elevadas de pragmatismo, é
Enquanto as vendas para Estados Unidos e Mercosul pouco provável que os demais grandes players mundo
são compostas por produtos com valor de agregado, afora demonstrem a mesma flexibilidade. Reside aqui
majoritariamente proveniente da indústria de o perigoso precedente em transformar as relações
transformação, a quase totalidade das exportações para exteriores do país em um recorrente comício eleitoral.
a China provêm de produtos de baixo valor agregado. Importantes mercados como Estados Unidos e União
Entre janeiro e agosto de 2022, quatro itens perfaziam Europeia dão sinais de que a pauta ESG caminhará
mais de 86% de todas as vendas: soja (42%), minérios cada vez mais para o centro das decisões políticas
(20%), derivados de petróleo (16%) e carne (8,4%).39 Na e comerciais. Dito de outra forma, a nossa maior
atual divisão internacional do trabalho, o Brasil alimenta e natural potencialidade – a biodiversidade e a sua
e fornece energia ao crescimento chinês. A China, por sustentabilidade – poderá transformar-se em verdadeiro
outro lado, caminha a passos largos para se tornar a calcanhar de Aquiles.
maior potência econômica do globo. Por tabela, financia Não custa lembrar o recente isolamento diplomático
o crescimento da lavoura e da indústria extrativa. Mas brasileiro em decorrência da sua controversa política
até quando? ambiental. Até o momento, o acordo de livre comércio
Não há milagre econômico que dure para sempre. entre Mercosul e União Europeia, o maior já assinado
No Japão, ele não superou a crise de 1990; na Coreia, pelo Brasil, segue sem definição. Uma das razões
Indonésia e Tailândia, morreu com a crise de 1997. apontadas pelos interlocutores europeus para a sua não
Teme-se que a China esteja desacelerando o seu ratificação é a errática imagem de um país associado
crescimento. Duas das principais alavancas chinesas, os com a destruição da sua biodiversidade.
investimentos em infraestrutura e no setor imobiliário,
dão sinais de esgotamento. Some-se a tais fatos as
prolongadas secas e os sucessivos lockdowns causados
pelos novos casos de Covid-19. Não tardará para que
vejamos uma China dentro de taxas “normais” de
crescimento, cenário muito distante daquele marcado
por dois dígitos de robustez.
Paralelamente, o país vem atacando uma dupla
frente de trabalho. No plano doméstico, a busca
pela autossuficiência alimentar prevista no 14º Plano A t é o m o m e n t o,
o a co rdo de
Quinquenal. Trata-se de meta inatingível para uma
população de 1,4 bilhão de indivíduos e um território
pouco generoso em terras aráveis. A China seguirá
dependente dos mercados externos. Mas não tardará
liv re co m é rc io
para que o Brasil enfrente concorrência em seu maior
mercado consumidor. No plano externo, o governo de
e n t re M e rco su l
Pequim vem intensificando investimentos externos –
sobretudo em países africanos – para que a potência
e U n iã o
asiática não fique refém de poucos fornecedores. E u ro p e ia se g u e
A recente desinteligência diplomática brasileira
apenas reforçou a urgência chinesa em se diminuir se m de f in içã o
a dependência do seu maior vendedor de alimentos.
Diferentemente de um produto de alto valor agregado,
commodity é igual em qualquer lugar do mundo. A
nossa falta de inovação e competitividade não apenas
nos impede de gerar renda e empregos de qualidade,
como também nos deixa em situação de vulnerabilidade
externa. É preciso diversificar.

SETEMBRO 2022 153


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

s ar r e t
-egídni
san
Domesticamente, as bases políticas do 2019, os seus dois principais financiadores
agronegócio vêm apoiando a flexibilização das – Alemanha e Noruega – anunciaram o
políticas socioambientais. Mas o tiro pode muito congelamento nos repasses após o governo
em breve sair pela culatra. São crescentes brasileiro enfraquecer a legislação ambiental.
os riscos de barreiras socioambientais. Atualmente, 3,3 bilhões de reais seguem na caixa
Recentemente, em setembro de 2022, o do fundo sem serem alocados.41
Parlamento Europeu aprovou por ampla maioria Tão logo as ilegalidades em terras indígenas
– 453 votos favoráveis, 57 contrários e 123 e biomas brasileiros derem lugar à retomada
abstenções – uma resolução que autoriza o de uma política socioambiental responsável, o
bloco a aplicar sanções comerciais ou mesmo país tenderá a voltar à cena do protagonismo
proibir a entrada de produtos oriundos de zonas global. Ativos não nos faltam. Dono da maior
desmatadas. biodiversidade do planeta, 12% de toda a
Estima-se que a medida possa atingir 80% água doce do planeta encontra-se em território
do agronegócio brasileiro, equivalente a 14,5 brasileiro. Apenas 7,6% do Brasil é composto por
bilhões em exportações.40 Para entrar em vigor, lavouras.42 Some-se a tais fatos uma inigualável
a resolução precisará ser submetida à apreciação capacidade de produção energética e alimentar e
dos 27 Estados membros. A medida não deixa de uma matriz energética três vezes mais renovável
ser controversa. Juridicamente, ela até poderá ser do que a média mundial.43 O próximo encontro
questionada pelo Brasil na Organização Mundial está marcado. Agendada para novembro de 2022,
do Comércio. Mas marcará uma derrota simbólica o Egito sediará a próxima Conferência da ONU
no campo diplomático. sobre Mudanças Climáticas. Espremida entre as
Some-se à nossa deterioração imagética e às eleições brasileiras e a Copa do Mundo, para o
prováveis perdas comerciais, o estancamento do Brasil, a 27ª COP pode ser um novo início.
fluxo de investimentos para projetos associados
com a sustentabilidade. Curiosamente, um O autor é professor de Ciência Política e
dos mais importantes fundos de preservação Relações Internacionais do CEFET/RJ e diretor
ambiental no mundo fora criado em 2008 após de Ensino e Pesquisa do Arquivo Geral da
Cidade do Rio de Janeiro
proposta do Brasil durante a COP-12. Desde
elizeu.sousa@cefet-rj.br

154 DESEQUILÍBRIO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

NOTAS DE RODAPÉ
1. O relatório pode ser acessado na íntegra em https://www.ifc.org/wps/ 18. Idem, p. 3.
wcm/connect/de954acc-504f-4140-91dc-d46cf063b1ec/WhoCaresWins_2004.
pdf?MOD=AJPERES&CVID=jqeE.mD. Acesso em 04 de setembro de 2022. 19. As informações foram retiradas da carta de Larry Fink, de 2022, acessível em:
https://www.blackrock.com/br/2022-larry-fink-ceo-letter
2. Do original, em inglês: “The institutions endorsing this report are convinced that in
a more globalised, interconnected and competitive world the way that environmental, 20. Idem.
social and corporate governance issues are managed is part of companies’ overall
management quality needed to compete successfully. Companies that perform better 21. Idem.
with regard to these issues can increase shareholder value by, for example, properly
managing risks, anticipating regulatory action or accessing new markets, while at the 22. As informações foram fornecidas pela edição norte-americana da Bloomberg.
same time contributing to the sustainable development of the societies in which they Disponível em https://www.bloomberg.com/news/articles/2022-07-28/extreme-
operate. Moreover, these issues can have a strong impact on reputation and brands, weather-caused-65-billion-in-losses-in-the-first-half?leadSource=uverify%20wall
an increasingly important part of company value (2004, p. i)”.
23. Os dados foram citados por Cácia Pimentel e Rárisson Sampaio em https://oglobo.
3. O relatório Freshfield, oficialmente intitulado “A Legal Framework for the Integration globo.com/economia/esg/noticia/2022/09/artigo-os-desafios-da-transicao-energetica-
of Environmental, Social and Governance Issues into Institutional Investment e-da-transicao-justa-no-brasil.ghtml.
(Um enquadramento legal para a integração de questões ambientais, sociais e de
governança no investimento institucional)” pode ser acessado em https://www.unepfi. 24. Os dados são da AFP e d’O Globo. https://oglobo.globo.com/um-so-planeta/
org/fileadmin/documents/freshfields_legal_resp_20051123.pdf. noticia/2022/08/concentracao-de-gases-do-efeito-estufa-bateu-recorde-em-2021-diz-
agencia-dos-eua.ghtml.
4. Segundo informações oficiais da organização, “The PRI is truly independent.
It encourages investors to use responsible investment to enhance returns and 25. De acordo com dados disponíveis em https://www.cnnbrasil.com.br/business/
better manage risks, but does not operate for its own profit; it engages with global investimento-da-china-em-energias-renovaveis-barateou-produtos-do-setor-diz-
policymakers but is not associated with any government; it is supported by, but not part especialista/.
of, the United Nations”. Disponível em https://www.unpri.org/about-us/about-the-pri.
26. As informações foram consultadas em https://revistaforum.com.br/global/
5. Os seis princípios da instituição são: Principle 1: We will incorporate ESG issues chinaemfoco/2022/7/8/energia-renovavel-sera-dominante-na-china-ate-2025-119919.html.
into investment analysis and decision-making processes. Principle 2: We will be
active owners and incorporate ESG issues into our ownership policies and practices. 27. Os dados foram retirados de publicação da Bloomberg, disponível em https://
Principle 3: We will seek appropriate disclosure on ESG issues by the entities in www.bloomberg.com/news/articles/2022-09-06/china-s-esg-fund-investing-boom-
which we invest. Principle 4: We will promote acceptance and implementation of follows-xi-s-political-agenda.
the Principles within the investment industry. Principle 5: We will work together
to enhance our effectiveness in implementing the Principles. Principle 6: We will 28. De acordo com dados disponíveis em https://exame.com/mundo/inverno-
each report on our activities and progress towards implementing the Principles. chegando-europa-crise-energetica/.
Disponível em https://www.unpri.org/about-us/what-are-the-principles-for-
responsible-investment. 29. Sobre o tema e a sua repercussão, ver, por exemplo: https://www.bloomberg.
com/news/articles/2022-07-06/eu-slammed-over-gas-vote-as-bankers-warn-of-
6. Relatório Princípios para o Investimento Responsável, p. 4. Disponível em https:// new-greenwash-risks e https://www.reuters.com/business/sustainable-business/
www.unpri.org/download?ac=10969. eu-parliament-vote-green-gas-nuclear-rules-2022-07-06/.

7. The PRI 2022/2023 Work Programme, p. 2. Disponível em https://www.unpri.org/ 30. Existem variados tipos de indústrias, com características muito diversas entre se.
download?ac=16132. A SASB, por exemplo, apresenta padrões e indicadores para 77 tipos. Eles podem ser
consultados em: https://www.sasb.org/standards/download/?lang=en-us.
8. De acordo com dados consultados em 12 de setembro, disponíveis em https://
www.unglobalcompact.org. 31. De acordo com o Statement of Intent to Work Together Towards Comprehensive
Corporate Reporting. Disponível em https://29kjwb3armds2g3gi4lq2sx1-wpengine.
9. De acordo com o World Poverty Clock. Disponível, em tempo real, em https:// netdna-ssl.com/wp-content/uploads/Statement-of-Intent-to-Work-Together-Towards-
worldpoverty.io/headline. Comprehensive-Corporate-Reporting.pdf

10. Os dados são do relatório Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo 32. O discurso de Erkki Liikanen, Chair do IFRS Foundation Trustees pode ser acessado
2022, divulgado pela ONU. Para maiores informações, acessar https://news.un.org/ em https://www.ifrs.org/news-and-events/news/2021/11/global-sustainability-
pt/story/2022/07/1794722. disclosure-standards-for-the-financial-markets/.

11. O conceito, consagrado pelo documento, é o que se segue: “In essence, 33. O discurso da rainha Elizabeth II pode ser lido em https://www.royal.uk/queen’s-
sustainable development is a process of change in which the exploitation of resources, speech-cop26-evening-reception.
the direction of investments, the orientation of technological development; and
institutional change are all in harmony and enhance both current and future potential to 34. Os dados citados podem ser consultados em https://www.bloomberg.com/
meet human needs and aspirations”. Disponível em https://sustainabledevelopment. professional/blog/esg-assets-may-hit-53-trillion-by-2025-a-third-of-global-aum/ e https://
un.org/content/documents/5987our-common-future.pdf. conteudos.xpi.com.br/esg/esg-de-a-a-z-tudo-o-que-voce-precisa-saber-sobre-o-tema/.

12. De acordo com informações oficiais disponíveis em http://iseb3.com.br/o-que- 35. Segundo a publicação “O mercado de finanças sustentáveis
e-o-ise. no Brasil em 2022”. Disponível em https://labinovacaofinanceira.com/wp-content/
uploads/2022/03/FiBraS-Mercado-FinSustentaveis_2022.pdf.
13. As informações foram retiradas do site oficial, disponível em https://brasil.un.org/
pt-br/sdgs. 36. De acordo com Gustavo Pimentel, sócio da Sitawi. Disponível em https://
einvestidor.estadao.com.br/negocios/carta-larry-fink-blackrock-2022-esg-capitalismo
14. De acordo com dados fornecidos pela McKinsey & Company, disponíveis em
https://www.mckinsey.com/business-functions/sustainability/our-insights/does-esg- 37. Valores FOB, de acordo com dados do Ministério da Economia. Disponível em
really-matter-and-why. http://comexstat.mdic.gov.br/pt/comex-vis.

15. Os dados se referem a estudo realizado pelo Bank of America (disponível em 38. Idem.
https://www.bofaml.com/en-us/content/gen-z-defining-characteristics-understanding-
impact.html) e replicados em diversas outras publicações, tais como https://www. 39. Valores FOB, de acordo com dados do Ministério da Economia. Disponível em
terra.com.br/noticias/pesquisa-mostra-que-80-das-pessoas-nascidas-na-geracao-z- http://comexstat.mdic.gov.br/pt/comex-vis.
preferem-comprar-de-empresas-alinhadas-as-metricas-esg,6c7f4fce5f7cd0b2cf84a
a1fc0703f1a00iopydb.html. 40. De acordo com números publicados em https://valor.globo.com/brasil/
noticia/2022/09/15/regra-antidesmate-da-ue-poe-em-risco-80-da-venda-agricola.ghtml.
16. As informações podem ser encontradas no relatório de McKinsey & Company,
intitulado “Brazil 2020 Opportunity Tree”, 2020, p. 174. Ele se encontra acessível 41. Segundo informações publicadas em https://www.cartacapital.com.br/
em https://www.mckinsey.com/br/~/media/McKinsey/Locations/South%20 sustentabilidade/terra-arrasada/ e https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2022/09/
America/Brazil/Our%20Insights/Brazil%202020%20Opportunity%20Tree/ campanha-de-lula-quer-destravar-fundo-amazonia-e-impulsionar-agenda-do-meio-
McKinsey2020OpportunityTree.pdf. ambiente.shtml.

17. O referido trabalho acadêmico, “Digging deeper into the ESG-corporate 42. De acordo com dados da Embrapa, disponíveis em https://www.embrapa.br/
financial-performance-relationship”, pode ser acessado em https://download. busca-de-noticias/-/noticia/30972444/lavouras-sao-apenas-76-do-brasil-segundo-a-nasa.
dws.com/download?elib-assetguid=714aed4c2e83471787d1ca0f1b559006&
wt_eid=2156623951900953270&wt_t=1566240624353. As informações citadas 43. Dados disponíveis em https://www.alemdaenergia.engie.com.br/matriz-energetica-
podem ser encontradas na página 11. brasileira/.

SETEMBRO 2022 155


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A SAÍDA DE VINICIUS DE
MORAIS DO ITAMARATY
SEGUNDO PIO CORREIA, ENTÃO
SECRETÁRIO-GERAL (1966).

Meu discurso de posse causou alarme e consternação da pressa com o que se havia barbeado, e com a
em certos arraiais: "É muito simples", disse eu: expressão assustada, de olhos arregalados. Fi-lo
"Não gosto de diplomatas pederastas; não gosto de sentar, não na dura a cadeira colocada em frente
diplomatas vagabundos; não gosto de diplomatas à minha mesa de trabalho e que era conhecida
bêbados. Quem não se enquadrar em qualquer como "o banco dos réus", e sim no confortável sofá
dessas categorias nada tem a recear de mim, mesmo reservado aos visitantes de marca. Disse-lhe, com
por suas opiniões políticas. Todos os demais serão perfeita sinceridade, que eu era grande admirador da
julgados e tratados estritamente segundo seus sua obra, de seus versos repassados de tão delicados
méritos profissionais". de tão delicada sensibilidade, e tinha mesmo em
minha casa coleção completa dos discos de suas
Este é um momento de restabelecer a verdade gravações musicais. Expliquei-lhe, por outra parte,
sobre um fato que foi muito comentado ao tempo: porém, que a lei e o regulamento não permitiam que
o licenciamento do secretário Vinicius de Moraes. um funcionário público exercesse outra atividade
[...]. Minha atenção foi chamada para o fato de remunerada.
que o secretário Vinicius de Moraes desde mais
de ano e meio não punha os pés no Ministério do Assim sendo, eu dava-lhe a escolher entre duas
qual era funcionário, a não ser para receber os seus opções: ou ele rescindia o seu contrato com a boate
vencimentos, e isso mesmo não todos os meses, pois onde trabalhava e apresentava-se no dia seguinte
era um autêntico boêmio e aparentemente acima ao Itamaraty, onde lhe seria dada uma função, ou
desses sórdidos detalhes materiais. Fui informado, então ele poderia requerer, na forma do regulamento,
igualmente de que o mesmo funcionário produzia- licença sem vencimentos para tratar de interesses
se todas as noites em estabelecimento noturno particulares, licença essa que eu lhe concederia
de nome Zum-Zum, em um número de canto, imediatamente. Ele escolheu a segunda opção, e
acompanhado por um violão e por vários copos de continuou portanto a encantar todas as noites o
whisky nos quais aparentemente hauria inspiração público do Zum-Zum, mas já então em regra com o
para suas bonitas canções. regulamento. Separamos em ótimos termos, tão bons
que mais tarde, Tendo embaixador em Buenos Aires,
Convoquei, pois, o secretário Vinicius de Moraes ao e havendo sido instado por gentis senhoras portenhas
meu gabinete, marcando-lhe propositadamente, a realizar em um teatro da capital um espetáculo de
com um pouquinho de malícia, uma hora de matinal, caridade com música e canções brasileiras, convidei
à qual ele normalmente não costumava estar em Vinicius de Moraes a participar do espetáculo, e ele
circulação. Apresentou-se pontualissimamente, aceitou prontamente convite, alcançando, como era
corretissimamente vestido de traje escuro e gravata de esperar, o mais vivo êxito".
discreta — soube depois que desde mais de um
ano ele não havia usado paletó e gravata -, com a (Pio Correia, O mundo em que vivi. Rio de Janeiro,
face escanhoada na qual um corte testemunhava Expressão e Cultura, 1994, pp. 901-903).

156 PITACO

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