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A EVOLUÇÃO DO DIREITO

EMPRESARIAL E ÜBRIGACIONAL
Os 18 ANos oo Cóo1co C1v1L
OBRIGAÇÕES E CONTRATOS

VOLUME 2

QUARTIER LATIN
20 .,!ft/Y.,
"A QyARTIER LATIN teve o mérito de dar início a uma nova fase, na apresentação COORDENAÇÃO
gráfica dos livros jurídicos, quebrando a frieza das capas neutras e trocando-as por
edições artísticas. Seu pioneirismo impactou de tal forma o setor, que inúmeras HENRIQUE BARBOSA
Editoras seguiram seu modelo." JORGE CESA FERREIRA DA SILVA

IvEs GANDRA DA SILVA MARTINS

"Entre os vários méritos da EDITORA QyARTIER LATIN, sobreleva, para mim,


o de que suas escolhas editoriais levam em conta muito mais a contribuição
científica para o Direito do que, propriamente, o lucro empresarial, quase
A EVOLUÇÃO DO DIREITO
transformado em uma espécie de mantra da sociedade contemporânea. Se a EMPRESARIAL E ÜBRIGACIONAL
publicação de manuais, cursos e quejandos cumpre função corriqueira do apren-
dizado jurídico, não devemos nos olvidar de que são as monografias acadêmicas Os 18 ANos oo Cóo1co C1v1L
- conquanto na contramão dos resultados puramente mercadológicos - que
impedem a petrificação do pensamento jurídico, impulsionando-o à criação OBRIGAÇÕES E CONTRATOS
de uma sociedade mais igualitária e sólida e menos argentária e líquida, como
tem se revelado, infelizmente, a nossa."
NEWTON DE LuccA VOLUME2

ALINE DE MIRANDA VALVERDE TERRA JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO


ANDERSON SCHREIBER JOSÉ ALVES RIBEIRO JR.
ANTONIO PEDRO GARCIA DE SOUZA JOSÉ ROBERTO DE CASTRO NEVES
C,10 BRANDÃO JUDITH MARTINS-COSTA
CARLOS folSON DO RÊGO MONTEIRO FILHO LEONARDO DE FARIA BERALDO
CARLOS NELSON KoNDER Lu1s RENATO FERREIRA DA SILVA
CHRISTIAN SAHB BATISTA LOPES MARIA CAROLINA BICHARA
DANIEL KALANSKY MARLON T OMAZmE
Eu LoR1A MILENA DONATO ÜLIVA
ERIK FREDERICO ÜIOLI NELSON ROSENVALD
FELIPE HANSZ/v\ANN pABLO W ALDEMAR RENTERIA
FRANCISCO PAULO DE CRESCENZO MARINO RAFAEL PETEFFI DA SILVA
GERSON Luiz CARLOS BRANCO RAFAEL SETOGUTI J. PEREIRA
G10VANA BENml RICARDO MAFRA
GISELA SAMPAIO DA CRUZ GUEDES SERGIO BOTREL
GUILHERME LlRNEIRO MONTEIRO NITSCHKE TULA WESENDONCK
GUSTAVO BIRENBAUM VITOR BUTRUCE
GUSTAVO TEPEDINO VÉRA MARIA JACOB DE FRADERA
Editora Quartier Latindo Brasil JORGE CESA FERREIRA DA SILVA

Empresa Brasileira, fundada em 20 de Novembro de 2001


Rua General Flores, 508 - CEP 01129-010
Bom Retiro - São Paulo Editora Quartier Latindo Brasil
Vendas: Telefone/Whatsapp: +55 11 9 94311922 São Paulo, primavera de 2021
Email: Quartierlatin@Globo.com quartierlatin@quartierlatin.art. br
www.quartierlatin.art. br
HENRIQUE BARBOSA;JORGE CESAFERREIRADA SILVA (COORDS.).
SUMÁRIO
A Evolução do Direito Empresarial e Obrigacional
Os 18 Anos do Código Civil - Obrigações e Contratos - Vol 2 Prefácio ........................................................................................... 21
São Paulo: Qyartier Latin, 2021. Apresentação .................................................................................. 23
ISBN 978-65-5575..:110-9
1. Direito Privado. 2. Direito Civil. 3. Direito das Obrigações. 4. Contratos.
5. Código Civil de 2002. 6. Contratos Empresariais. 7. Interpretação. 8. Invalidades. Parte 1
9. Revisão Contratual. I. Título Contratos Empresariais, 25
Editor
Vinícius Vieira
I. Qyalificação e disciplina do contrato
preliminar no Código Civil Brasileiro, 27
Produção editorial Gustavo Tepedino e Carlos Nelson Konder
José Ubiratan Ferraz Bueno 1. Introdução .............................................................................................. 27
2. Referências ao contrato preliminar anteriores ao Código Civil ............... 28
Diagramação 3. O contrato preliminar no Código Civil: primeiras interpretações
Antonio Marcos Cavalheiro e suas críticas ......................................................................................... 31
4. Perspectivas atuais para a interpretação do contrato preliminar:
Revisão gramatical a exequibilidade do contrato preliminar lacunoso .................................. 36
Studio Qyartier 5. Considerações finais ................................................................................ 3 9
Referências ................................................................................................. 40
Capa
Rafael Nicolau
II. Princípios do design contratual: uma nova semântica
para as disputas relativas aos contratos empresariais, 43
Vitor Butruce
EDITORA QUARTIER LATINDO BRASIL 1. A teoria do design contratual .................................................................. 45
Rua General Flores, 508 2. As principais variáveis que impactam sobre o design contratual ............. 45
Bom Retiro - São Paulo 2.1. O gerenciamento dos custos de transação ............................................ 48
2.2. O impacto da incerteza: o risco do oportunismo e a especificidade
CEP 01129-010
do ativo como condicionantes dos mecanismos contratuais ................... 50
Telefone!Wbatsapp: +55 11 9 94311922 2.3. A repercussão do ambiente institucional e do sistema adversaria!
Email: quartierlatin@globo.com de disputa sobre o design contratual ...................................................... 52
2.4. O primeiro axioma da teoria do design contratual: os agentes tendem
a buscar a melhor maneira de resolver seus problemas ao menor custo ....... 56
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, 3. O método do design contratual ................................................................... 58
especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos.
3.1. A mescla entre regras precisas e conceitos indeterminados .................. 58
Vedada a memoriz~ção e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta
obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características 3.1.1. A escolha dos parâmetros contratuais ("choice ofproxy'') ........................ 60
gráfic_as.da obra e à sua editoração_-~ violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 1 34 e parágrafos 3.1.2. Os motivos e os efeitos da escolha entre regras precisas ou
do Cod1go Penal), com pena de pnsao e multa, busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a no da Lei
9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais). conceitos indeterminados: as tarefas delegadas ao julgador ................... 62
3.2. A escolha entre enforcement mediante mecanismos 2.1. Fiança à primeira demanda x garantia autônoma ·
juridicamente exigíveis ou mecanismos informais desprovidos à primeira demanda ............................................................................. 137
de exigibilidade jurídica ......................................................................... 64 3. Execução da garantia ............................................................................ 138
3.3. O segundo axioma da teoria do design contratual: agentes 3.1. Os pressupostos para execução da garantia ........................................ 139
sofisticados tendem a preferir a aplicação ortodoxa dos 3.2. Hipóteses em que se permite ao garantidor recusar o
mecanismos previstos nos contratos ...................................................... 69 cumprimento da garantia ..................................................................... 139
4. As potenciais contribuições da teoria do design contratual 3.3. O descumprimento do contrato de garantia e as exceções literais ...... 140
para a dogmática: uma nova semântica para as disputas 3.4. Dolo, fraude e abuso de direito manifestos por parte do beneficiário ....... 141
contratuais empresariais ......................................................................... 73 Conclusões ............................................................................................... 143
4.1. A compreensão dos elementos da intenção contratual: os Referências ...................................................................................... •.. •••. •. 144
meios estruturais e os fins contratuais .................................................... 73
4.2. As expectativas de constrição do espaço de discricionariedade V. Contingências Ocultas em Contratos de M&A:
do julgador............................................................................................. 76 Vícios Redibitórios, Evicção e Declarações e Garantias, 147
4.3. Pautas para o estudo das disputas contratuais à luz da teoria do
Caio Brandão, Felipe Hanszmann e Ricardo Mafra
design contratual ................................................................................... 81
1. Introdução ............................................................................................ 147
5. Conclusão ............................................................................................... 85
2. Passivos ocultos e o preço de aquisição ................................................. 148
3. Alocação de responsabilidade entre as partes pelos passivos ocultos ..... 151
III. Dever de informar versus ônus de 3.1. Alocação pela lei: o régramento dos vícios do objeto no
autoinformação na fase pré-contratual, 89 Código Civil ........................................................................................ 152
Giovana Benetti 3.1.1. Vícios redibitórios ........................................................................... 152
Introdução .................................................................................................. 89 3.1.2. Evicção ............................................................................................ 158
I. Dever de informar e ônus de autoinformação: conceito e alcance ........... 92 3.2. Alocação da responsabilidade entre as partes pelo próprio contrato ...... 160
(i) Conceito e elementos do dever de informar ........................................... 93 3.2.1. Cláusula de declarações e garantias ................................................. 160
(ii) Distinções: dever de conhecer e ônus de autoinformação ................... 100 3.2.2. Cláusula de Indenização ................................................................. 165
II. Dever de informar e ônus de autoinformação: limites .......................... 104 4. Conclusão ............................................................................................. 169
(i) O alcance do ônus de autoinformação ................................................. 107
(ii) O alcance do dever de informar .......................................................... 113 VI. Breves Apontamentos sobre as
Conclusões ............................................................................................... 120 Cláusulas MAC nos Contratos de M&A, 171
Sérgio Botrel
IV. As Garantias Autônomas à Primeira Demanda, 123 1 Introducão .......................................................................... •· •··· ••······· •·· 171
Antonio Pedro Garcia de Souza 2: Utilização das cláusulas MAC ............................................................... 172
A problemática ......................................................................................... 123 3. Estratégias de redação das cláusulas MAC ............................................ 174
Introdução: as garantias especiais das obrigações e a 4. Acionamento da cláusula MAC. ............................................................ 177
sua natureza acessória .......................................................................... 123 5. Considerações finais .............................................................................. 180
1. Generalidades da garantia autônoma .................................................... 125
1.1. Estrutura ............................................................................................ 127 VII. Contratos Aleatórios e Alocação de Risco em
1.2. A autonomia e os seus efeitos ............................................................ 128
Operações de Securitização de Recebíveis Futuros, 181
1.3. A cláusula "à primeira demanda" ........................................................ 129
Erik Frederico Oioli eJosé Alves Ribeiro ]1:
1.4. Espécies de garantias autônomas ....................................................... 131
1. Introdução ............................................................................................ 181
1.5. Validade da garantia autônoma no direito brasileiro .......................... 133
2. Securitização de Recebíveis ................................................................... 182
2. Distinção da fiança ............................................................................... 135
3. Securitização de recebíveis de existência futura
Parte2
(future jlow securitization) .................................................................... 184
4. Contratos aleatórios: álea e alocação de risco ........................................ 187 Invalidades, 225
5. Contratos aleatórios e securitização de recebíveis futuros ..................... 189
6. Conclusão ............................................................................................. 192 I. Efeitos Obrigacionais da Invalidade: O Caso
Bibliografia ........... ,................................................................................... 193 dos Contratos Viciados por Ato de Corrupção, 227
Judith Martins-Costa
VIII. Opções e Condições no Código Civil Introdução ................................................................................................ 227
de 1916 e no Código Civil de 2002, 195 I. Os efeitos do nulo ............................... •·•······•••···•••····································· 231
José Alexandre Tavares Guerreiro (i) A invalidade do contrato, o dever de restituir e o seu fundamento:
0 princípio da conservação estática do patrimônio .................................. 231
I. Condições pactuadas de modo expresso e objetivo .............................. 195
II. O Código Civil de 2002 e o Código Civil de 1916 ............................ 197 (ii) A noção jurídica d e patrunoruo· • · ........................................................ •······ 239
III. O comportamento do devedor ......................................................... 199 · · ....................................................................... . 242
II. Do montante a rest:Itllll'
A. Vedação das condições puramente potestativas .................................. 199 (i) O conteúdo de dever de restituir: seu caráter objetivo e a ..
B. Impedimento maliciosamente criado à verificação da condição ......... 200 relevância do brocardo in pari causa turpitudinis cessat repetztw ............ 242
IV. Causas de suspensão da eficácia: internas e externas ......................... 204 (ii) A restitllição em contratos bilaterais ....................................................... 250
V. Condições potestativas ....................................................................... 204 Conclusão ................................................................................................. 255

IX. Alienação Fiduciária de Ações: II. Notas sobre a fraude contra credores, 257
Qµestões Controversas, 207 Milena Donato Oliva e Pablo Wàldemar Renteria
1. Introdução: patrimônio como garantia geral dos credores .................... 257
Eli Loria e Daniel Kalansky
2. Pressupostos da fraude contra credores ................................................. 260
1. Introdução ............................................................................................ 207
2.1. Prejuízo à garantia patrimonial_. ......................................................... 2~~
2. Aspectos Gerais .................................................................................... 208
2.2. Configuração do eventus damm ........................................................... 2
3. O direito de voto, o direito à participação nos lucros e o direito
de preferência para subscrição de novas ações em caso de aumento 2.3. A ciência da fraude ............................................. ••••••••···••·••••••·••••·•········· 266
3. Legitimidade para a impugnação do ato fraudulento ............................ 267
de capital da companhia ...................................................................... 211
4. A proteção ao devedor insolvente ......................................................... 269
3.1. Direito de voto ................................................................................... 211
3.2. Dividendos e direito de preferência para subscrição de novas
5. Efeitos da fraude contra credores .......................................................... 271
6. Conclusão ............................................................................................. 274
ações em caso de aumento de capital da companhia ............................ 213
7. Referências bibliográficas ...................................................................... 276
4. A excussão da garantia .......................................................................... 213
4.1. O credor deve notificar o devedor? .................................................... 216
4.2. A venda das ações pode ser realizada a qualquer preço? ..................... 218
4.3. As procurações ou cláusulas mandato geralmente outorgadas
Parte3
em favor do credor são válidas e permitem que o credor realize
a excussão da garantia e alienação das ações a terceiros? ...................... 219 Função Social do Contrato, 279
5. O registro de transferência nos livros da companhia ............................. 220
6. Conclusão ............................................................................................. 223 I. A Função Social do Contrato no Código Civil: 18 anos
de vigência e a interpretação jurisprudencial do STJ, 281
Gerson Luiz Carlos Branco
Introdução ................................................................................................ 281
I. Evolução Doutrinária da Função Social dos Contratos ......................... 281
II. A Função Social dos Contratos na Jurisprudência do II.1.1. Lacunas típicas ............................................................................... 374
Superior Tribunal de Justiça ................................................................ 291 II.1.2. Lacunas atípicas .................................................................... :........ 379
a) Funcionalidade social do contrato como limite ao exercício II.2. Organizando o Método: a intenção comum das partes ..................... 385
de posições jurídicas subjetivas ............................................................ 292 Conclusões ............................................................................................... 392
b) Interpretação extensiva (teleológica e, portanto, funcional)
dos deveres con.tratuais ........................................................................ 295 II. A Interpretação Contratual e sua Sistemática no Código
c) Hipótese de alargamento da noção de parte: eficácia do contrato Civil de 2002 após o Advento da Lei 13.874/2019, 397
em benefício de terceiro - eficácia externa do contrato ........................ 297
Luís Renato Ferreira da Silva
d) Função social do contrato associada a políticas públicas ....................... 299 L Introdução e conteúdo deste artigo ....................................................... 397
e) Tipicidade e funcionalidade social do contrato ..................................... 300 II. Natureza e estrutura dos dispositivos legais de interpretação no Código
Conclusão ................................................................................................. 302 Civil: o artigo 112, primeira parte, como pressuposto normativo ............... 399
Referências Bibliográficas ......................................................................... 303 III. Os princípios e as regras da interpretação no Código Civil:
o artigo 112, segunda parte, e o artigo 113 .......................................... 403
II. Os 18 Anos da Função Social do Contrato, 307 IV. Conclusões .......................................................................................... 413
Leonardo de Faria Bera/do
1. Recordando esse espinhoso tema .......................................................... 307 III. Interpretação dos Contratos, 417
2. O ~· 42~ do Código Civil após a alteração trazida pela Vera Maria Jacob de Fradera
Lei de Liberdade Econômica .............................................................. 313 Introdução ................................................................................................ 417
3. O papel da doutrina nos últimos dez anos ............................................ 319 1ª Parte: As diretrizes para a interpretação do contrato dispostas
4. A jurisprudência do STJ na última década ............................................ 336 nos Códigos Civis brasileiros de 1916 e 2002 e na recente reforma
5. Considerações finais .............................................................................. 346 introduzida pela Lei da Liberdade Econômica, Lei 13.874/2019 ........ 420
Referências bibliográficas .. .. .............................................................. 349 A. Os textos constantes das regras relativas à interpretação do
contrato decorrentes do Código Civil de 1916 e do Código
Comercial de 1850 .............................................................................. 420
B. As normas relativas à interpretação contratual no Código Civil
Parte4 de 2002: a proximidade com uma noção mais comercialista e
Interpretação contratual, 351 menos civilista da relação contratual .................................................... 422
6.1. A boa-fé como critério interpretativo dos contratos no Código
I. Colmatação de Lacunas Contratuais: insuficiências Civil de 2002 e no BGB, no § 157 ...................................................... 423
do Código Civil, deficiências da Lei da Liberdade 6.2. Os Usos como recurso interpretativo dos contratos ........................... 427
6.3. As práticas das partes ......................................................................... 428
Econômica e o trabalho de doutrina, 353
6.4. A interpretação do contrato segundo a reforma do art. 113,
Guilherme Carneiro Monteiro Nitschke introduzida pela Lei 13.874/2019, Lei da Liberdade Econômica ........ 430
Considerações Introdutórias ..................................................................... 353 2ª Parte: A interpretação e integração dos contratos à luz de novos
Parte I. O Direito Positivo em Matéria de Interpretação Contratual: Códigos Civis: a influência dos instrumentos internacionais
entre a "diretriz da tradição" e os "discursos de economistas" ............... 355 sobre os legisladores nacionais e a importância do papel do
I.1. Insuficiências do Código Civil ........................................................... 356 direito comparado nestas atualizações ................................................. 433
I.2. Deficiências da Lei da Liberdade Econômica .................................... 363 A. Uma inovação operada no Code no referente ao tradicional
Parte II. O "Fio de Ariadne" da Doutrina: o modelo jurídico da standard do bom pai de família ........................................................... 433
colmatação de lacunas contratuais ....................................................... 373 B. A influência da CISG nos Códigos Civis recentes e o recurso
II.1. Distinguindo e Conceituando: lacunosidade contratual e ao direito comparado pelos legisladores nacionais e aplicadores
previsão legal ......... ........ ......... ........ ..........··········································· 3 74 desses textos ......................................................................................... 436
Conclusão ................................................................................................. 438 3. Cláusula Rebus Sic Stantibus .................................................................. 505
Referências ............................................................................................... 439 3.1. Teoria da Imprevisão .......................................................................... 505
3.2. Teoria da quebra da base objetiva do negócio .................................... 506
3.3. Teoria da onerosidade excessiva superveniente ................................... 507
Parte5 4. Autonomia privada e critérios de revisão contratual ............................. 507
Revisão Contratual, 443 5. A revisão dos contratos nos artigos 4 78 e 4 79 do Código Civil .... •·• ... •• 510
5.1. Aplicação aos contratos de execução prolongada ............................... 510
5.2. Fatos extraordinários .......................................................................... 511
I. Construindo um dever de renegociar no Direito brasileiro, 445 5.3. Fatos imprevisíveis ............................................................................. 512
Anderson Schreiber 5.4. Onerosidade excessiva ........................................................................ 51!
1. A economia do desequihbrio ..................................................................... 445 5.5. Extrema vantagem para outra parte ................................................... 51
2. Comportamento dos contratantes diante do desequihbrio 5.6. Não cobertura pelos riscos do negócio ............................................... 515
e o silêncio do legislador brasileiro ...................................................... 449 5.7. Ausência de adimplemento ................................................................ 517
3. Dimensão comportamental do desequilíbrio contratual na 5.8. Ausência de mora da parte lesada ...................................................... 517
experiência jurídica estrangeira e internacional .................................... 455 5.9. Revisão ou resolução do contrato ....................................................... 518
4. Construção de um dever de renegociar no direito brasileiro ................. 464 6. Revisão dos Contratos Unilaterais (CC - art. 480) ............................... 519
5. Conclusão ............................................................................................. 4 73 7. Revisão contratual no artigo 317 do CC ............................................... 521
8. Regimes especiais de revisão contratual por fatos supervenientes ......... 522

~~!
II. Revisão contratual fundada em excessiva
onerosidade superveniente: competência exclusiva ~e7e~~:~~:!~.:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
do credor e limites da atuação do juiz, 475
Francisco Paulo De Crescenzo Marino IV. Os institutos de revisão contratual do
1. A lógica do jogo de poderes (extintivo e modificativo) no sistema Código Civil de 2002 e o acordo de sócios, 527
do art. 478 do Código Civil ................................................................. 475 Rafael Setoguti J Pereira
2. O art. 317 do Código Civil diz respeito a obrigações pecuniárias ......... 478 I. Considerações Preliminares ................................................................... 527
3. O princípio da conservação e seus limites ............................................. 481 II. Os institutos de revisão contratual com base na alteração
4. Isonomia entre credor e devedor ........................................................... 484 superveniente das circunstâncias do Código Civil de 2002 ..................... 529
5. Rever não é menos do que resolver. Insustentabilidade do II.A. Requisitos de aplicação ......................................................................... 537
argumento a maiore ad minus ................................................................ 486 II.E. Efeitos ............................................................................... ··············· 542
6. Exceção a confirmar a regra: o regime de certos contratos típicos ......... 487 III. A revisão do acordo de sócios e questões problemáticas ..................... 544
7. "Revisão excepcional e limitada". A legitimidade exclusiva do III.A. A plurilateralidade dos acordos de sócios ................................... ••. • 546
credor é corroborada pela Lei da Liberdade Econômica ..................... 492 III.E. A parassocialidade dos acordos de sócios ............................................ 550
8. Nulidade da oferta de revisão "genérica" e recusa do poder III.C. Resolução ou revisão do acordo de sócios ....................................... 552
revisiona! do juiz .................................................................................. 493 IV. Conclusão ........................................................................................... 554
9. Os limites da intervenção judicial no processo revisiona!: Bibliografia ............................................................................................... 555
o controle da equidade da oferta .......................................................... 497

III. Revisão Contratual no Código Civil, 503


Marlon Tomazette
1. Introdução ............................................................................................ 503
2. Equihbrio Contratual X Força obrigatória dos contratos ...................... 503
Conclusão ................................................................................................. 438 3. Cláusula Rebus Sic Stantibus .................................................................. 505
Referências ............................................................................................... 439 3 1 Teoria da Imprevisão .......................................................................... 505
3:2: Teoria da quebra da base objetiva do negócio .................................... 506
3.3. Teoria da onerosidade excessiva superveniente ................................... 507
Parte5 4. Autonomia privada e critérios de revisão contratual ............................. 507
Revisão Contratual, 443 5. A revisão dos contratos nos artigos 478 e 479 do Código Civil ............ 510
5.1. Aplicação aos contratos de execução prolongada ............................... 510
5.2. Fatos extraordinários .......................................................................... 511
I. Construindo um dever de renegociar no Direito brasileiro, 445 5.3. Fatos imprevisíveis ............................................................................. 512
Anderson Schreiber 5.4. Onerosidade excessiva ........................................................................ 513
1. A economia do desequiHbrio ..................................................................... 445 5.5. Extrema vantagem para outra parte ................................................... 514
2. Comportamento dos contratantes diante do desequilfbrio 5.6. Não cobertura pelos riscos do negócio ............................................... 515
e o silêncio do legislador brasileiro ...................................................... 449 5.7.Ausência de adimplemento ................................................................ 517
3. Dimensão comportamental do desequiHbrio contratual na 5.8. Ausência de mora da parte lesada ...................................................... 517
experiência jurídica estrangeira e internacional .................................... 455 5.9. Revisão ou resolução do contrato ....................................................... 518
4. Construção de um dever de renegociar no direito brasileiro ................. 464 6. Revisão dos Contratos Unilaterais (CC - art. 480) ............................... 519
5. Conclusão ............................................................................................. 473 7. Revisão contratual no artigo 317 do CC ............................................... 521
8. Regimes especiais de revisão contratual por fatos supervenientes ......... 522
II. Revisão contratual fundada em excessiva 9. Conclusão ..................... :....................................................................... 523
onerosidade superveniente: competência exclusiva Referências ............................................................................ •·················· 524
do credor e limites da atuação do juiz, 475
Francisco Paulo De Crescenzo Marino IV. Os institutos de revisão contratual do
1. A lógica do jogo de poderes (extintivo e modificativo) no sistema Código Civil de 2002 e o acordo de sócios, 527
do art. 478 do Código Civil ................................................................. 475 Rafael Setoguti J Pereira
2. O art. 317 do Código Civil diz respeito a obrigações pecuniárias ......... 478 I. Considerações Preliminares ................................................................... 527
3. O princípio da conservação e seus limites ............................................. 481 II. Os institutos de revisão contratual com base na alteração
4. Isonomia entre credor e devedor ........................................................... 484 superveniente das circunstâncias do Código Civil de 2002 ..................... 529
5. Rever não é menos do que resolver. Insustentabilidade do II.A. Requisitos de aplicação ......................................................................... 537
argumento a maiore ad minus ................................................................ 486 II.B. Efeitos ............................................................................ •················· 542
6. Exceção a confirmar a regra: o regime de certos contratos típicos ......... 487 III. A revisão do acordo de sócios e questões problemáticas ..................... 544
7. "Revisão excepcional e limitada". A legitimidade exclusiva do III.A. A plurilateralidade dos acordos de sócios ....................................... 546
credor é corroborada pela Lei da Liberdade Econômica ..................... 492 III.E. A parassocialidade dos acordos de sócios ............................................ 550
8. Nulidade da oferta de revisão "genérica" e recusa do poder III.C. Resolução ou revisão do acordo de sócios ....................................... 552
revisiona! do juiz .................................................................................. 493 IV. Conclusão ................................................................................... ········ 554
9. Os limites da intervenção judicial no processo revisiona!: Bibliografia ............................................................................................... 555
o controle da equidade da oferta .......................................................... 497

UI. Revisão Contratual no Código Civil, 503


Marlon Tomazette
1. Introdução ............................................................................................ 503
2. Equiliôrio Contratual X Força obrigatória dos contratos ...................... 503
Parte6 2. A impossibilidade temporária no ordenamento brasileiro .......... :·········· 630
Frustração das obrigações e seus efeitos, 559 3. A imputabilidade do impedimento temporário .................................... 636
4. A impossibilidade temporária poderá ser originária? ............................ 638
I. Ainda sobre a taxa legal de juros no Código Civil de 2002, 561 5. Casuística determinação dos efeitos gerados pelo
impedimento temporário ..................................................................... 640
Christian Sahb Batista Lopes
6. O caráter temporário de uma impossibilidade à luz dos interesses do credor ..... 643
1. Introdução ................................................................................................. 561
7. O caráter temporário de uma impossibilidade à luz dos
2. A controvérsia em torno da taxa legal de juros ...................................... 562
interesses do devedor .......................................................................... • 64 7
3. A natureza da Taxa Selic ....................................................................... 566
8. A irreversibilidade da impossibilidade definitiva ................................... 650
4. Análise dos argumentos contrários à aplicação da Taxa Selic ................ 569
9. Conclusão ............................................................................................. 651
4.1. A aplicação da Taxa Selic às obrigações tributárias seria ilegal ........... 569
4.2. Ausência de segurança jurídica .......................................................... 570
4.3. Capitalização da Taxa Selice suposto limite constitucional ............... 572
4.4. A Taxa Selic seria hfbrida, composta de juros e correção monetária ......... 572
Parte 7
5. O julgamento do REsp nº 1.081.149/RS ............................................. 580
6. Conclusão ............................................................................................. 582 Responsabilidade Civil, 653
Referências bibliográficas ......................................................................... 583
I. Insuficiência do recurso às perdas e danos em caso
II. A cláusula penal e a quadratura do círculo: as funções de violação a direito de preferência: necessidade
da cláusula penal depois do novo Código Civil brasileiro, 585 de ampliação de sua "eficácia real", 655
jorge Cesa Ferreira da Silva Gustavo Birenbaum
I. O sentido da doutrina ........................................................................... 588 1. Colocação do problema ......................................................................... 655
II. Uma visão da jurisprudência ................................................................ 594 2. Aspectos dogmáticos do instituto - um resumo .................................... 656
III. À guisa de conclusão: o status e o futuro da quadratura do 3. Violação ao direito de preferência e os remédios à disposição de seu titular .... 660
círculo nas funções da cláusula penal ................................................... 601 4. Perdas e danos: dificuldades e insuficiências ............................................. 663
5. Em defesa da ampliação das hipóteses de eficácia externa .................... 668
III. Cláusula Resolutiva Expressa: Referências Bibliográficas ......................................................................... 6 77
Função, Estrutura e Operatividade, 605
Aline de Miranda Valverde Terra II. Responsabilidade Pré-Contratual, 679
1. Introdução ............................................................................................ 605 josé Roberto de Castro Neves
2. Cláusula resolutiva expressa: função e estrutura .................................... 606 1. Introdução ................................................................................................. 679
3. Distinção de figuras afins ...................................................................... 611 2. O fundamento legal .............................................................................. 681
3.1. Cláusula resolutiva expressa x condição resolutiva ............................. 611 3. Os elementos de sua constituição .......................................................... 683
3.2. Cláusula resolutiva expressa x cláusula resolutiva tácita ...................... 616 3.1. A existência de negociações sérias ...................................................... 683
4. A operatividade da cláusula resolutiva expressa: resolução 3.2. A tutela da confiança ......................................................................... 685
extrajudicial por declaração receptícia do credor. ................................. 618 3.3. O rompimento imotivado .................................................................. 687
5. Notas conclusivas .................................................................................. 625 4. A indenização ............................................................................................ 688
5. O comportamento da jurisprudência ........................................................ 689
Iv. Impossibilidade temporária da prestação: entre atrasos 6. Conclusão ............................................................................................. 692
e incertezas quanto ao cumprimento da prestação pactuada, 627 Referências ............................................................................................... 693
Gisela Sampaio da Cruz Guedes e Maria Carolina Bichara
1. Introdução ............................................................................................ 627
III. Cláusula Geral do Risco da Atividade: a maioridade do CAPÍTULOS DO VOLUME 1
parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, 695 DIREITO DE EMPRESA
Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho e Nelson Rosenvald
1. Introdução ............................................................................................ 695
2. Teoria objetiva e a construção da cláusula geral no Código Civil de 2002 ... 699 Filosofia do Direito Privado
3. ~nda a questão: risco proveito ou risco criado;:, .................................... 709 CLÁUDIO MICHELON
"The Public, the Private, and the Law"
4. A guisa de conclusão: risco criado pela particular potencialidade
lesiva da atividade ................................................................................ 714
Direito Societário e Empresa
UJIS FELIPE SPINELLI, RODRIGO TELLECHEA &
N. Responsabilidade civil pela perda de uma chance JOÃO PEDRO SCALZILLI
no Brasil: principais requisitos e a consolidação "Direito Societário: Fundamentos"
de um modelo jurídico contemporâneo, 723
Refael Petejfi da Silva EDUARDOSECCHIMUNHOZ
Introdução ................................................................................................ 723 ''A Importância da Sociedade Personificada, com Responsabilidade
Limitada e Autonomia Patrimonial para o Desenvolvimento
I. Principais Condições de aplicação ......................................................... 728
Econômico: o Ocaso de um Truísmo"
1. Chances sérias e reais ............................................................................ 728
2. A consideração da álea que afeta a chance perdida na concessão ARNOLDO WALD
da indenização-quantificação de danos ................................................ 734 "Uma nova visão da empresa e do seu regime jurídico
3. Perda definitiva da vantagem esperada -A diferenciação da perda (Do Código Civil ao Projeto de Código Comercial)"
de uma chance da simples criação de um risco .................................... 73 7
II. O transplante do modelo, e as suas vicissitudes .................................... 739 ERASMO VALLADÃO AZEVEDO E NOVAES FRANÇA
1. Aceitação da teoria da perda de uma chance na jurisprudência brasileira ...... 740 ''A Distinção entre Sociedades Simples e Empresárias"
2. As vicissitudes do transplante: os julgados e suas idiossincrasias ........... 741
Conclusão ................................................................................................. 744 GABRIEL DE ORLEANS E BRAGANÇA &MARCELO SACRAMONE
Bibliografia ............................................................................................... 744 "O empresário no Código Civil: um conceito superado"

ANDRÉANTUNESSOARESDECAMARGO
V. A aplicabilidade do Art. 931 do Código Civil "Código Civil de 2002 e a Governança Corporativa"
nos 18 anos do Código Civil, 747
Tufa Wésendonck VIVIANE MULLER PRADO & EZEQUIEL FAJRELDINES DOS SANTOS
Introdução ................................................................................................ 747 "Grupo de empresas no STJ: Conceito e Consequências"
A. A delimitação da incidência do Art. 931 do Código Civil ................... 751
GUILHERME SETOGUTI J. PEREIRA & THIAGO SADDI TANNOUS
B. A interpretação e aplicação do Art. 931 pela jurisprudência nos 18 anos
"Capital Social nas Sociedades Cooperativas"
do CCB - como tem sido e como pode ser a incidência do dispositivo ........ 761
1) Incidência do Art. 931 como fundamento da responsabilidade
pelo fato do produto para fora das relações de consumo ...................... 763 Sociedade Limitada
2) Incidência do Art. 931 como fundamento da responsabilidade HENRIQUE BARBOSA
pelos danos derivados dos riscos do desenvolvimento .......................... 771 "Um Retrato da Sociedade Limitada aos 18 Anos do Código Civil"
3) Incidência do Art. 931 como fundamento do exercício do
MOACYR LOBATO DE CAMPOS FILHO
d'1re1to
· de regresso ................................................................................ 775
"Liberdade para as Limitadas: Qyotas Preferenciais sem Direito de Voto"
Conclusão ................................................................................................. 778
Referências ............................................................................................... 781
PEDRO PAULO CRISTÓFARO Desconsideração da personalidade jurídica e Teoria da Aparência
"Limitada. Regime Jurídico. Aplicação Subsidiária das ANDRE LUIZ SANTA CRUZ RAMOS &
Normas que Regem as Sociedades Simples e das Constantes CARLOS AUGUSTO MOTTA MURRER
da Lei das Sociedades Anônimas. Legalidade da Designação ''A Desconsideração da Personalidade Jurídica no Código Civil:
de Sócio Pessoa Jurídica como Gerente" as Evoluções Empreendidas pela Lei da Liberdade Econômica"

ALFREDO DE ASSIS GONÇALVES NETO FABIO ULHOA COELHO


"Q,llotas Preferenciais" "Novos Contornos da Desconsideração da Personalidade Jurídica no Direito Brasileiro"

LUIZ DANIEL HAJ MUSSI IVO WAISBERG


''Anotações sobre a Suspensão do Exercício "Notas sobre a Desconsideração de Personalidade Jurídica no
de Direitos do Sócio na Sociedade Limitada" Código Civil com o Advento da Lei da Liberdade Econômica.
A Reconstrução da Personalidade Jurídica"
MAURICIO MOREIRA MENEZES
"Reuniões e Assembleias de Sócios Semipresenciais e Digitais" MARIANA PARGENDLER
''Apontamentos sobre a Desconsideração Regulatória da
Personalidade Jurídica ( Veil Peeking): Função e Critérios"
Empresas e Sociedades unipessoais
MARCELO ANDRADE FERES OTAVIO LUIZ RODRIGUES JUNIOR & RODRIGO XAVIER LEONARDO
''A Tardia Disciplina da Limitada de Sócio Único no Código Civil: ''A Desconsideração da Pessoa Jurídica e os 18 Anos do Código Civil"
Alguns Antecedentes e Algumas Impressões Iniciais"
LAURA AMARAL PATELLA &
PABLO GONCALVES ARRUDA & SAULO BICHARA MENDONÇA MARIANA MARTINS-COSTA FERREIRA
''A Necessária Distinção entre Sócios Q,llotistas e os Meramente Investidores "O Regime de Excesso de Poderes dos Administradores
ante ao Projeto que Propõe Regular as Q,llotas Preferenciais" de Sociedades Personificadas no Código Civil"

Extinção do vínculo societário MARCELO VIEIRA VON ADAMEK &ANDRÉ NUNES CONTI
ANA FRAZÃO &ÃNGELO PRATA DE CARVALHO "Teoria da Aparência: Críticas à sua Irrefletida Aplicação em
''A Dissolução Parcial de Sociedade, o Dever de Cooperação entre l'vlatéria de Representação Voluntária"
Sócios e a Contenção ao Oportunismo Excessivo"
Direito de Empresa e Crise Econômica
PEDRO WEHRS DO VALE FERNANDES FRANCISCO SATIRO DE SOUZAJR &
"Reflexões Sobre o Direito de Retirada nas Sociedades Limitadas: INAÊ SIQUEIRA DE OLIVEIRA
Regime Jurídico Aplicável, Limites ao seu Exercício e Alternativas "Efeitos da Recuperação Judicial e da Falência do Devedor no
Contratuais com Vistas à Preservação da Empresa" Seguro Garantia e no Seguro Garantia Judicial"

NATÁLIA CRISTINA CHAVES & HENRY COLOMBI MÁRCIO SOUZA GUIMARÃES


"Expulsão Extrajudicial de Sócio Minoritário de Sociedade Limitada: "O Empresário Rural e o Direito das Empresas em Dificuldade"
Comentários ao art. 1.085 do Código Civil"
FELIPE FERNANDES RIBEIRO MAIA
UINIE CAlVIINHA & ANDRESSA PIRES "Previsibilidade e Risco nos Contratos Empresariais: Reflexões Sobre Hermenêutica
"Problemas e Atecnias nos Desfazimentos de Vínculos Societários" (Art. 421-A do CC/02) e a Recuperação Judicial do Produtor Rural"
PREFÁCIO - 21

PREFÁCIO

Os juristas Henrique Barbosa e Jorge Cesa Ferreira da Silva prestam


inestimável serviço ao Direito Brasileiro quando coordenam esta obra
coletiva em que autorizados doutrinadores discorrem sobre temas atuais
de Direito de Empresa, Societário, Obrigações e Contratos. Comemora-
-se assim os 18 anos da Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que ins-
tituiu o Código Civil em vigor.
O projeto do Código Civil vigente, elaborado por uma comissão de
juristas coordenados por Miguel Reale, foi encaminhado pelo Governo
ao Congresso Nacional em 1975, onde teve longa e atenta tramitação.
Enfim, em 10 de janeiro de 2002 foi publicada a Lei 10.406, que insti-
tuiu o novo Código Civil Brasileiro a entrar em vigor um ano após sua
publicação, ou seja, em 11 de janeiro de 2003, revogando os vetustos
Código Comercial de 1850 e Código Civil de 1916.
Não é tarefa fácil elaborar códigos para sociedades em processo de
profunda e célere transformação como a nossa; é algo comparável a dis-
correr sobre geologia em pleno terremoto, como comentou um partici-
pante de um seminário sobre as transformações da empresa no mundo
moderno.
Essa é a tarefa dos juristas de hoje: traduzir, mediante legislação,
jurisprudência e doutrina, a realidade jurídica algo tumultuada, mas ex-
tremamente inovativa que emana da sociedade em que vivemos. Difícil
tarefa, que não se contenta com a simples exegese, preguiçosa e satisfei-
ta, do texto legal em vigor, mas exige permanente consideração da rea-
lidade em constante processo de mutação, na qual vivemos.
É o que se propõem os eminentes autores que colaboram na obra
em comentário, pelo que se vaticina muito sucesso, assegurado pela pro-
fundidade com que escolheram e abordaram os temas examinados.
Não se encerrem estas linhas sem ressaltar o justo elogio ao Código
Civil de 2002 que fazem os autores desta obra; não com palavras pro-
tocolares, mas através de comentários inteligentes e profundos a alguns
dentre os pontos do Código, nos quais brilha o fogo da inovação mo-
dernizadora, conformando o texto codificado à realidade social subja-
cente, sem desapego à boa doutrina.

CARLOS AUGUSTO DA SILVEIRA LOBO


APRESENTAÇÃO - 23

APRESENTAÇÃO

Uma sociedade que pretenda se fazer mais justa e economicamen-


te mais desenvolvida pressupõe um Direito dotado de legitimidade, se-
gurança, operatividade e, sobretudo, que respeite as particulares relações
entre tradição e novidade. Na construção desse Direito, cabe à doutri-
na não só o papel de sistematizar o material jurídico, atribuindo-lhe as
necessárias coerência e clareza, mas também o de apontar, nesse mesmo
material, as eventuais inconsistências, lacunas e contradições existentes
e o modo de resolvê-las. Nesse trabalho, as leis - e, entre elas, especial-
mente os códigos exercem papel fundamental.
Em janeiro de 2003 entrou em vigor o atual Código Civil brasilei-
ro, fruto de um anteprojeto gestado ainda em fins da década de 1960, ao
qual se atribuiu a missão de unificar, no plano legislativo, o regramen-
to das obrigações civis e comerciais, bem como o de congregar, sob o
manto de uma mesma parte geral, tanto a atividade obrigacional quan-
to empresarial. Paradoxalmente, o Código Civil foi tradicional e inova-
dor e, buscando evitar dúvidas de aplicação (tanto que repetiu diversos
textos antigos), abriu espaço a uma série de novas questões. Qyal não é,
em um tal panorama, o labor necessário da doutrina!
E é exatamente sobre uma parcela desse trabalho que se volta este
livro: a revisão dos primeiros 18 anos de vigência do Código Civil, a
maioridade efetiva do Código, no âmbito do Direito das Obrigações e
do Direito da Empresa.
Sem perder a necessária perspectiva evolutiva, os estudos que se se-
guem tiveram como mote o olhar focado nesses últimos 18 anos, seja
por meio de avaliações sobre o desenvolvimento de certos temas ao lon-
go desse período, seja por meio de análise de temas ainda não versados,
pouco versados ou, ainda que versados, não na devida conta. Muitos dos
autores que aceitaram o desafio se dedicaram a objetos já conhecidos de
seus estudos prévios, tendo revisitado temas de seus doutorados, mestra-
dos ou trabalhos de pesquisa já realizados. Outros optaram por se dedi-
car a temas novos, tendo como pano de fundo a matriz do Código Civil.
O primeiro volume deste livro se volta ao Direito de Empresa,
ocupando-se do Direito Societário em seus aspectos básicos, das socie-
dades limitadas, das sociedades unipessoais, da extinção do vínculo so-
cietário e da desconsideração da pessoa jurídica, além da relação entre
Direito de Empresa e crise econômica. O segundo volume se dedica ao
24 - APRESENTAÇÃO

Direito das Obrigações, em especial aos contratos e à responsabilidade


civil. Nele, analisam-se alguns específicos contratos empresariais, causas
de invalidades, a função social do contrato e a interpretação contratual
e sua revisão, efeitos do inadimplemento e a reparação de danos. Antes
disso, a obra se inicia por uma visão de perspectiva e de sentido, na filo-
sofia do Direito Privado, por meio de trabalho ainda inédito no Brasil e
que, desde a sua publicação em um dos mais renomados periódicos eu-
ropeus, vem recebendo especial reconhecimento e atenção.
A importância dos textos é atestada não só pelos seus respectivos te-
mas, mas sobretudo por seus autores, que unem o rigor do exercício acadê-
mico à sólida atuação prática. Não por acaso, os textos realizam reflexões
sobre o Direito a partir da atuação diária com o Direito. A esses autores
- os principais responsáveis pelo resultado atingido - cabe nosso especial
agradecimento. A um deles a homenagem deve ser expressa. O Professor
Carlos Augusto da Silveira Lobo, exemplo de advogado privatista, conhe-
cedor invulgar da empresa ao contrato, agradecemos por aceitar a função
de prefaciar a obra, não sem antes analisar a sua estrutura e fazer pontuais
e valiosíssimas considerações. É uma honra para nós, organizadores, con-
tar com a abertura de nome tão capaz quanto representativo. Parte 1
Esse livro começou a ser pensado a partir de uma conversa ines-
perada, da qual se sucederam outras tantas, sobre temas, possíveis es- CONTRATOS EMPRESARIAIS
truturas, autores. Ao longo do processo de organização, a pandemia nos
furtou o convívio e impôs alguns atrasos, mas não diminuiu o entusias-
mo pelo projeto e o orgulho pelo resultado.
Ficamos especialmente felizes com a possibilidade de, passados os
primeiros 18 anos do Código Civil, podermos oferecer à comunidade ju-
rídica um conjunto de estudos que, em um momento de tanta turbulência,
seja capaz de auxiliar concretamente na tarefa doutrinária de oferecer le-
gitimidade, segurança e operatividade ao ordenamento privado brasileiro.
Qy.e isso se reflita, como esperamos, em uma sociedade mais justa
e economicamente mais desenvolvida.

Entre Belo Horizonte e Porto Alegre, setembro de 2021.

HENRIQUE CUNHA BARBOSA

JORGE CESA FERREIRA DA SILVA


GUSTAVO TEPEDINO E ÚRLOS NELSON KONDER - 27

L QUALIFICAÇÃO E DISCIPLINA DO CONTRATO


PRELIMINAR NO CóDIGO CIVIL BRASllEIR0 1

Gustavo Tepedino2

Carlos Nelson Konder3

1. INTRODUÇÃO
A trajetória do contrato preliminar no ordenamento brasileiro re-
vela a consolidação de sua relevância prática e a expansão dos espaços e
formas de sua atuação. De modo geral, trata-se de figura que permite às
partes conciliar a certeza do vínculo com a necessidade de adiamento de
sua concretização, viabilizando medidas preparatórias como a obtenção
de documentos (certidões, procurações,licenças), o parcelamento de pre-
ço, o adiamento do pagamento de tributos e a realização de diligências
preventivas (due diligence). 4 Enseja também oportunidade para a própria
conclusão da prestação a· ser cumprida, quando ainda indisponível no
momento de sua celebração, como nos casos de coisa futura ou alheia. 5
Entretanto, a contribuição prática mais significativa do contrato
preliminar encontra-se na segurança conferida às partes em processos
de negociação especialmente complexos, que demandam prolongamento
de medidas e investimentos voltados à alocação e mitigação de riscos an-
tes da assinatura do instrumento definitivo. Trata-se de instituto repre-
sentativo de operações negociais cuja complexidade não atinge somente
os bens objeto de prestação, mas também os interesses das partes cuja
compatibilização por vezes reclama o prolongamento das negociações.
Nessa direção, os dezoito anos de vigência do Código Civil atual
constituem ocasião particularmente oportuna para revisitar esse instru-
mento negocial, cujas origens antecedem o codificador e que, a despeito
de sua consagração legislativa, tem sua função ainda não inteiramen-
Os autores agradecem à mestranda Danielle Tavares Peçanha, da Faculdade de Direito da UERJ,
pela gentil revisão do texto.
2 Professortitularde Direito Civil e ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ).
3 Professor associado de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ). Professor do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Doutore mestre em direito civil pela UERJ. Especialista em direito
civil pela Universidade de Camerino (Itália). Advogado.
4 Luiza Lourenço Bianchinni, Contrato preliminar: conteúdo mínimo e execução, Porto Alegre:
Arquipélago, 2017, p. 221.
5 Marie Julie de Almeida Costa, Direito das obrigações, g. ed, Coimbra: Almedina, 2005, p. 345.
28 - QUALIFICAÇÃO E DISCIPLINA DO CONTRATO PRELIMINAR NO CóDIGO Civil BRASILEIRO GUSTAVO TEPEDINO E CARLOS NELSON KONDER - 29

te compreendida. Cumpre refletir sobre as possibilidades interpretati- iter negocial que envolve negócios como a cessão de poder de contro-
vas e, especialmente, sobre o espectro de incidência do dado normativo, le empresarial. Foi nesta seara que se firmou o precedente jurispruden-
cuja exata identificação se mostra crucial para a segurança das relações cial que viria a nortear os debates subsequentes, consistente no chamado
contratuais. 6 "caso Disco", julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 1979. 10 No
caso, por meio do instrumento intitulado "contrato preliminar para a
2. REFERÊNCIAS AO CONTRATO PRELIMINAR ANTERIORES AO compra e venda de ações", os acionistas majoritários da Distribuidora
Córneo C1v1L de Comestíveis Disco S.A. se comprometiam a transferir a totalidade
A relevante função prática desempenhada pelo contrato preliminar das ações que detinham (equivalente a 97% do total) a Supermercados
impôs sua admissão no ordenamento jurídico brasileiro antes mesmo de Pão de Açúcar S.A., entre setembro e outubro de 1974, pelo valor de
sua previsão expressa no Código Civil. No âmbito do direito imobiliá- quarenta milhões de cruzeiros. Entretanto, o instrumento continha ele-
rio, em que a transferência de direitos reais demanda maior formalidade, mentos que, à época, geraram resistência quanto à sua exigibilidade, tais
a indisponibilidade imediata da totalidade dos recursos e a ausência da como a condicionalidade na redação das cláusulas ("se a compra e ven-
documentação necessária para a lavratura da escritura pública e trans- da das referidas ações vier a ser aperfeiçoada, o pagamento do preço
crição no registro suscitaram a necessidade de proteção dos adquirentes será... "), as previsões de acordos futuros sobre fiança e aluguéis de imó-
que, por vezes, se limitavam a firmar negócios informais precedentes ao veis de proprietários, a referência geral a que o contrato definitivo seria
definitivo.Tal circunstância prática motivou a promulgação do Decreto- futuramente aperfeiçoado, e, especialmente, a cláusula que determinava
Lei n. 58, de 1937, cujo âmbito de alcance, originalmente restrito aos que o preço final das ações deveria resultar da apuração da efetiva situa-
loteamentos populares, foi ampliado pela legislação posterior em razão ção líquida da sociedade, levando em conta o valor de seu sistema ope-
de sua importância e conveniência. 7 Contrapunha-se, assim, ao regime racional e do seu estoque. 11
previsto no artigo 1.088 do Código Civil de 1916, que autorizava o ar- Não assinado o contrato definitivo, Disco ajuizou ação consignató-
rependimento de qualquer das partes antes de firmar-se o instrumento ria, para a devolução dos dez milhões de cruzeiros já transferidos como
público, com o ressarcimento de perdas e danos: ao afastar a execução sinal, constante de nota promissória por ele emitida, enquanto Pão de
específica, a norma ensejava comportamentos oportunistas, conferindo açúcar, em ação conexa, pretendeu a adjudicação compulsória das ações.
ao contratante com maior poder econômico relativa liberdade para des- Sucedeu-se intensa disputa judicial12 sobre a existência de contrato pre-
cumprir os compromissos quando surgissem oportunidades mais conve- liminar entre as partes e sua exequibilidade: enquanto a sentença julgou
nientes. 8 A anterioridade da regulação da promessa de compra e venda procedente a ação consignatória e improcedente a adjudicatória, o re-
de imóvel frente ao regime geral do contrato preliminar e suas peculia- sultado se inverteu em grau de apelação, fixando-se por maioria o pra-
ridades geram ainda hoje debate sobre sua autonomia conceitual. 9 zo de trinta dias para que as partes celebrassem o contrato definitivo,
Além do mercado imobiliário, as operações societárias já demanda- sob pena de multa. A decisão foi novamente alterada, mais uma vez por
vam a utilização de contratos preliminares, tendo em vista o complexo maioria, no julgamento dos Embargos Infringentes, que, sob a relato-
ria do Des. Ebert Chamoun, condenou os acionistas a, em trinta dias,
6 Referindo-se à legislação portuguesa dos contratos preliminares, afirma João de Matos transferir a titularidade das ações ao Pão de Açúcar. Enfim, no STF, a
Antunes Varela: "E a inabilidade do legislador a única responsável pelo embrenhado de
opiniões e contra-opiniões que se têm incrustado sobre os textos castigados dum instituto cuja decisão foi guiada por histórico voto do relator, Ministro Moreira Alves,
importância prática merecia outro tratamento" (João de Matos Antunes Varela, Das obrigações que a despeito de mapear a existência de posições doutrinárias mais
em geral, vol.1, 10. ed., Coimbra: Almedina, 2000, p. 315).
7 Gustavo Tepedino, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho e Pablo Rentería, Fundamentos do
Direito Civil, vol. 4: Direitos reais, Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 379-380. 10 STF, 2ª T., RE. 88.716, Rei. Min. Moreira Alves, julg. 11.9.1979.
8 André Brandão Nery Costa, Contrato preliminar: função, objeto e execução específica, Rio de 11 André Brandão Nery Costa. Contrato preliminar: função, objeto e execução específica, Rio de
Janeiro: GZ, 2011, p. 15. Janeiro: GZ, 2011, p. 125-155.
9 Sobre o debate, v. Hamid Charaf Bdine Júnior, Compromisso de compra e venda em face do 12 Para uma análise minuciosa das decisões v. Wanderley Fernandes, Formação de contrato
código civil de 2002: contrato preliminar e adjudicação compulsória, Revista dos tribunais, vol. preliminar suscetível de adjudicação compulsória, Revista de direita mercantil, industrial,
843, São Paulo: jan.-mar. 2006, p. 58-84. econômico efinanceiro, n. 77, São Paulo: jan-mar./1990, p. 76-132.
GUSTAVO TEPEDINO E CARLOS NELSON KONDER - 31
30 - QUALIFICAÇÃO E DISCIPLINA DO CONTRATO PRELIMINAR NO CóDIGO CiVJL BRASILEIRO

progressistas sobre o tema, entendeu que, com base nos artigos 191 do 3. Ü CONTRATO PRELIMINAR NO CóDIGO CIVIL: PRIMEIRAS

Código Comercial (referente à compra e venda mercantil definitiva) 13 e INTERPRETAÇÕES E SUAS CRÍTICAS
639 do Código de Processo Civil então vigente 14, o ordenamento brasi- As demandas colocadas pela realidade prática das operações nego-
leiro exigia acordo sobre todos os elementos do contrato definitivo para ciais levou à positivação da regulação do contrato preliminar no Código
que o preliminar pudesse ser executado de modo forçado. Restou ven- Civil de 2002. Com efeito, sua incorporação legislativa pode ser associada
cido o Ministro Leitão de Abreu, que reputou serem determináveis os à sistemática de fundo do projeto de Código, que, ao lado das diretrizes
elementos faltantes. de eticidade e socialidade, foi guiado pela "operabilidade", consistente
À época, diversas críticas foram desferidas contra a decisão, inclu- em priorizar a enunciação dos institutos de modo a facilitar sua exequi-
sive por pareceristas que se manifestaram no processo. Sob perspectiva bilidade, isto é, sua realização em concreto. 20 Sua positivação pode ser
funcional, destacou-se que o negócio detinha objetivo e conteúdo de- atribuída, ainda, ao processo pelo qual paulatinamente se passou a admi-
terminados e até pormenorizados 15 e visava, na realidade, à cessão de tir e ampliar o espaço da execução forçada nas obrigações de fazer, com
controle empresarial, a demandar especial incidência do princípio da referência expressa aos antecedentes da promessa de compra e venda de
boa-fé0, bem como a necessidade de que a qualificação seja pautada por imóvel e da legislação processual. 21
exigência de maior concreção16 • Também contrastava com a perspecti- A partir da controvérsia endereçada pelo julgamento do caso Disco,
va progressista trazida pelo então já vigente Código de Processo Civil 0
artigo 462 do Código Civil de 2002 inaugurou a seção relativa ao con-
de 1973, cujo artigo 639 admitia expressamente que, ante o descum- trato preliminar determinando que, exceto quanto à forma, ele deve conter
primento da promessa de contratar, a sentença produzisse os efeitos do todos os requisitos essenç:iais ao contrato a ser celebrado. Apartaram-
contrato a ser firmado, se isso fosse possível e não excluído pelo título. 17 se, assim, elementos essenciais substanciais e formais: enquanto os pri-
Anotou-se na ocasião tratar-se de dispositivo em que se reconhecia que meiros são exigidos para o preliminar, os segundos lhe são dispensáveis,
o interesse do credor não se dirigia à atividade do devedor em si mesma, ainda que o definitivo em questão seja contrato solene. Isso já permitiu,
mas ao seu resultado, daí a possibilidade de obtenção do benefício espe- de plano, que se reconhecesse que para o contrato preliminar não será
cífico visado, em lugar de mera vantagem substitutiva. 18 Não obstante, exigida qualquer formalidade, ainda que esta condicione a validade do
a decisão do STF, com sua abordagem estrutural e subsuntiva, exerceu contrato a que as partes se obrigam a celebrar no futuro. Por exemplo,
papel determinante na intepretação dada aos contratos preliminares no no caso de contrato definitivo de compra e venda que exija instrumen-
período subsequente. 19 to público, o contrato preliminar poderá ser celebrado por instrumento
particular e, ainda assim, ser passível de execução forçada. Trata-se de
exceção tradicionalmente reconhecida ao chamado "princípio da equi-
paração", segundo o qual se aplicariam ao contrato preliminar as regras
13 CCom/1850, art. 191. "O contracto de compra e venda mercantil he perfeito e acabado logo pertinentes ao definitivo. 22
que o comprador e o vendedor se accordão na cousa, no preço e nas condições ...".
14 CPC/1973, art. 639. "Se aquele que se comprometeu a concluir um contrato não cumprir a Entretanto, o debate prosseguiu acerca de quais elementos subs-
obrigação, a outra parte, sendo isso possível e não excluído pelo título, poderá obter uma tanciais devem estar definidos no contrato preliminar, devendo-se iden-
sentença que produza o mesmo efeito do contrato a ser firmado".
15 Waldírio Bulgarelli, Pré-contrato de venda de ações, Problemas de direito empresarial moderno, tificar, a partir da codificação, os elementos essenciais a que se refere o
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 294.
16 AlcidesTomasettijr.,Execuçãodecontratopreliminar, Tese de doutorado, São Paulo: Faculdade
dispositivo legal. A persistir a limitadora linha interpretativa construída
de direito da USP, 1981, p. 251. pelo julgamento do caso Disco, todos os elementos substanciais do con-
17 CP~/19~3, art. 639. "Se aquele que se comprometeu a concluir um contrato não cumprir a
obngaçao, a outra parte, sendo isso possível e não excluído pelo título, poderá obter uma trato definitivo seriam indispensáveis para a caracterização de contrato
sentença que produza o mesmo efeito do contrato a ser firmado".
18 · José Carlos Barbosa Moreira, O novo processo civil brasileiro (1975), 25. ed., Rio de Janeiro: Miguel Reale, O projeto de código civil: situação atual e seus problemasfundamentais, São Paulo:
Forense, 2007, p. 223. 20
Saraiva, 1986, p. 11.
19 Antonio dos Reis Júnior, O problema da execução do contrato preliminar: esboço de Renan Lotufo, Código cMI comentado, vol. 3, São Paulo: Saraiva, 2016, p. 113-114.
sistematização em perspectiva civil-constitucional. Civilistica.com, a. 6, n. 1. Rio de Janeiro, 21
22
Ma rio Julio de Almeida Costa, Direito das obrigações, 9. ed, Coimbra: AI medi na, 2005, p. 352.
2017, p. 21.
32 - QUALIFICAÇÃO E DISCIPLINA DO CONTRATO PRELIMINAR NO Córneo Civil BRASILEIRO GUSTAVO TEPEDINO E CARLOS NELSON KONDER - 33

preliminar. A manutenção dessa perspectiva levaria à inutilidade práti- resultava em invasão excessiva à liberdade de contratar, sob o aforismo
ca do contrato preliminar, cuja aplicação se restringiria às hipóteses em nemo precise adfactum cogi potest.
que o contrato, integralmente avençado, aguardasse tão somente a pre- Hoje, todavia, essa resistência se encontra superada, ante a prevalên-
sença do tabelião para a lavratura da escritura pública. cia no direito civil e no direito processual, da execução específica como
Diante de relações econômicas cada vez mais complexas e dinâ- fo:ma de atendimento à função da relação obrigacional. Tal movimen-
micas, que transbordam os tipos contratuais predispostos pelo ordena- to, como observado, sempre serviu de norte à consagração e difusão dos
mento e demandam regulamentos de interesses mais sofisticados para contratos preliminares, sendo reputado "incomparavelmente mais aber-
atender aos objetivos pretendidos pelos contratantes, as negociações a to às necessidades do nosso tempo". 24 Com efeito, se no passado a inad-
serem levadas a cabo pelas partes tornam-se cada mais extensas, com- missibilidade da execução específica afigurava-se critério distintivo das
preendendo numerosos aspectos relevantes. Nesses casos, mantendo-se obrigações de fazer frente às obrigações de dar, o direito civil contem-
o entendimento tradicional, jamais se configuraria contrato preliminar porâneo busca garantir que a prestação, desde ~u~ ainda útil ao_ cred~r,
em relações econômicas complexas, pois os negócios preparatórios se- seja executada especificamente, em favor da efetividade da relaçao obn-
riam incapazes de regular todos os aspectos necessários à concreta rela- gacional. Tutela-se desse modo, mais do que a posição do credor, o in-
25
ção. N está perspectiva, o contrato preliminar assumiria cada vez menos teresse jurídico subjacente ao vínculo obrigacional.
importância, inapto a conter a integralidade dos elementos que com- Nessa perspectiva, a codificação consolidou a possibilidade de,
põem o conteúdo das relações jurídicas complexas, por vezes inseridos inadimplido o contrato preliminar, exigir-se a celebração do definitivo
no momento mesmo da celebração do contrato definitivo. (CC, art. 463).26 Vale dizer, esgotado o prazo para esse fim estabelecido,
Difundiu-se em doutrina, após a codificação, perspectiva interme- poderá o juiz, a pedido do credor, suprir a vontade do devedor inadim-
diária pela qual se estabeleceria subdivisão interna aos contratos preli- plente e conferir caráter definitivo ao preliminar (CC, art. 464).27 A lin-
minares, no que tange aos seus efeitos: enquanto a execução específica, guagem dos dispositivos reconhece na decisão judicial ato de suprimento
na esteira do julgamento do caso Disco, estaria restrita àqueles contratos de vontade e de requalificação do contrato preliminar, convertido for-
em que se fizessem presentes todos os elementos do contrato definitivo, malmente em contrato definitivo, indicativa de decisão de caráter essen-
seriam também admitidos contratos preliminares nos quais não constas- cialmente constitutivo, em detrimento dos dispositivos processuais que,
sem todos os elementos do definitivo, mas a inexecução destes se resol- ao preverem que a decisão produza os efeitos da declaração não emitida,
veria somente em perdas e danos, nos termos do artigo 465 do Código abriram controvérsia sobre eventual caráter condenatório ou executivo
Civil.23 Embora atenuado o rigor formal da posição adotada pelo STF, da decisão, como se já se tratasse da execução forçada do próprio con-
essa construção ainda se ressente da resistência histórica à execução es- trato cuja celebração se prometera. 28
pecífica, reputando-se que a execução forçada da obrigação de contratar
24 João de Matos Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. I, 10. ed., Coimbra: Almedina,
2000, p. 336. ,. . - -
25 Gustavo Tepedino, Inadimplemento contratual e tutela espec1f1ca das obngaçoes, Soluçoes
23 CC/2002, art. 465. "Se o estipulante não der execução ao contrato preliminar, poderá a outra práticas, vai. 2, São Paulo: Revista dos tribunais, 2011, p. 133-148. _ . . .
parte considerá-lo desfeito, e pedir perdas e danos". Para Antonio Junqueira de Azevedo, a CC/2002, art. 463. "Concluído o contrato preliminar, com observanc1a do disposto no artigo
execução forçada estaria restrita aos pactos em que haja a presença de todos os requisitos antecedente e desde que dele não conste cláusula de arrependimento, qualquer das partes
essenciais do definitivo, comumente denominados contratos preliminares fortes ou completos, terá o direito' de exigir a celebração do definitivo, assinando prazo à outra para que o efetive."
em oposição aos contratos preliminares em que o grau de indeterminação dos elementos 27 CC/2002, art. 464. "Esgotado o prazo, poderá o juiz, a pedido do interessado, suprira vontade
necessários ao definitivo fosse maior (ditos fracos ou mínimos), cujo inadimplemento geraria da parte inadimplente, conferindo caráter definitivo ao contrato preliminar, salvo se a isto se
ao credor apenas o direito à indenização (O regime jurídico do contrato preliminar no direito opuser a natureza da obrigação".
brasileiro. Classificação do contrato preliminar conforme o grau de previsão do conteúdo do CPC/2015, art. 501: "Na ação que tenha por objeto a emissão de declaração de vontade, a
contrato definitivo; eficácia forte e eficácia fraca. Distinção entre requisitos para a configuração sentença que julgar procedente o pedido, uma vez transitada em julgado, produzirá todos
do contrato preliminar e pressupostos de admissibilidade para a execução específica, Novos os efeitos da declaração não emitida". Sob a vigência da legislação processual anterior, que
estudos de direito privado, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 252-269). Em linha similar, Alcides ia na mesma linha da atual, como já destacado, afirmava Pontes de Miranda que o contrato
Tomasetti Jr., Execução de contrata preliminar, Tese, Faculdade de Direito da USP, 1982, e Fábio preliminar com todos os pressupostos de va~idade do contrato definit_ivo "dá ao juiz~ pod:r
Konder Comparato, Reflexões sobre as promessas de cessão de controle societário, Revista de assinar prazo ao devedor para executar, nao o que prometeu, que foi contratar, porem mais
forense, n. 266, São Paulo: abr.-mai./1979, p. 22. do que isso, o próprio contrato prometido" (Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, vol.
34 - QUALIFICAÇÃO E DISCIPLINA DO CONTRATO PRELIMINAR NO Córneo CIVIL BRASILEIRO
GUSTAVO TEPEDINO E CARLOS NELSON KONDER - 35

As únicas ressalvas colocadas pelo Código de 2002 à exequibilidade


forçada do preliminar dizem respeito às hipóteses em que isso é inviabi- rência do caráter de publicidade conferido à avença através doregistro. 33
lizado pela "natureza da obrigação" ou quando há previsão de direito de Dessa forma, ausente o registro e transmitido a terceiro o bem objeto do
arrefendimento. A rigor, afasta-se a possibilidade de execução específi- contrato definitivo, restaria igualmente inviabilizada a execução especí-
ca diante de exercício legítimo de direito de arrependimento, estabele- fica do contrato preliminar, que se resolveria em perdas e danos.
cido por lei ou previsto contratualmente, pois nesses casos há ato lícito O segundo preceito, disposto no artigo 466 do Código Civil, re-
e não inadimplemento do contrato preliminar, no que se costuma refe~ fere-se ao contrato preliminar unilateral. 34 Com efeito, ao lado do con-
rir por contrato preliminar retratável. 29 trato preliminar bilateral, em que há obrigações recíprocas de contratar,
São empecilhos relativos à "natureza da obrigação" casos como aque- permitindo-se, consequentemente, a ambas as partes exigir da outra a
les que demandam manifestação de terceiro (p. ex., autorização conju- celebração do contrato definitivo, é possível que apenas uma das partes
gal), a satisfação de prestação infungível e, para certos autores, contratos submeta-se à obrigação de contratar, autorizando-se somente à outra o
preliminares de doação, que seriam insuscetíveis de execução forçada em direito de exigir a celebração do definitivo.
razão de fundarem-se em ato de liberalidade. 3°Cogita-se, ainda, da im- Essa estrutura negocial gera a uma das partes posição de proemi-
possibilidade de execução específica em razão da natureza da obrigação nência, atribuindo-se lhe a faculdade de (escolher em) celebrar (ou não)
quando preceder contrato definitivo de natureza real (depósito, comoda- o definitivo, restando a outra parte submetida à sua escolha. Diante disso,
to). Isto porque, mesmo para aqueles que admitem contrato preliminar questiona-se em doutrina a distinção entre o contrato preliminar unila-
de contrato real, o suprimento da vontade pelo juiz seria insuficiente a teral e a figura da opção, comum no meio societário. Enquanto alguns
c~nstituir o negócio final sem a efetiva transmissão do bem. 31 A previ- autores equiparam as figuras 35 , outros preferem identificar no contrato
sao legal dessa exceção relativa à natureza da obrigação, de modo geral, preliminar unilateral a constituição de direito subjetivo à celebração do
~or~obora a interpretação de que a execução específica do contrato pre- definitivo, sujeito, portanto, no caso de violação, a prazo prescricional,
limmar, quando houver interesse em fazê-la, é a regra. enquanto a opção franquearia ao beneficiado verdadeiro direito potes-
Merecem destaque ainda dois dispositivos trazidos pela codificação tativo à constituição da relação jurídica que decorreria do definitivo, a
civil. O primeiro, inserto no parágrafo único do artigo 463, é referente ser exercido no prazo decadencial previsto. 36
ao registro do contrato preliminar. 32 A despeito da redação sintética e A codificação silenciou quanto a essa controvérsia, limitando-se a
da localização atécnica do enunciado normativo, o registro, naturalmen- facultar ao devedor, caso não haja previsão de prazo para que lhe seja
te, não deve ser interpretado como requisito de validade para os contra- exigida a celebração do definitivo, impor ao credor prazo razoável para
tos preliminares. Trata-se, como sói acontecer, de ônus que recai sobre que ele se manifeste sobre a intenção ou não de fazê-lo. O dispositivo
os promitentes-contratantes para dar oponibilidade erga omnes aos efei- legal determina que, findo esse prazo, perderá o credor o direito à cele-
tos ~~ pacto. O registro é necessário, portanto, somente para assegurar a bração do contrato definitivo, sem, contudo, especificar a natureza desse
eficacia do avençado perante terceiros, no caso que estes pretendam, por direito ou do prazo para exercê-lo. Destaque-se, todavia, que o deba-
exemplo, obter a prestação objeto do contrato definitivo, como decor- te perdeu parte de sua intensidade, justamente, em razão da consagra-
ção da execução específica do contrato preliminar como regra geral, que

XXXVIII'. 2. ed., Rio de Janeiro: Borsoi, 1962, p. 378). Sobre a controvérsia acerca da natureza 33 Nesse sentido, o enunciado n. 30 da I Jornada de Direito Civil - CEJ/CJF: "A disposição do
da ref~nda sent_ença, cf. Alex~ndre Freitas Câmara, Lições de direito processual civil, vol. 2, 15 . parágrafo único do art. 463 do novo Código Civil deve ser interpretada como fator de eficácia
ed., Rto de Janeiro: LumenJuns, 2008, p. 247 e ss .. perante terceiros".
29 Rafael VillarGagliardi, Contratos preliminares, in Renan Lo tufo e Giovanni Ettore Nanni (coord ) 34 CC/2002, art. 466. "Se a promessa de contrato for unilateral, o credor, sob pena de ficar a
Teoria geral das contratos, São Paulo: Atlas, 2011, p. 555. ·' mesma sem efeito, deverá manifestar-se no prazo nela previsto, ou, inexistindo este, no que
30 Gustavo Tepedino'. Carlos Nelson Kondere Paula Greco Bandeira, Fundamentos do Direito Civil, lhe for razoavelmente assinado pelo devedor".
vol. ;i: Ca?trotas, Rto de Janeiro: Forense, 2020, p. 102. 35 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, vol.111, atualizado por Caitlin Mulholland,
31 Mar~o Ju~to de Almeid~ ~ost~, Direito das obr~g~ções, 9. e~, Coimbra: Almedina, 2005, p. 385 . Rio de Janeiro: Forense, 2014 (1963), 18. ed., p. 75; Luís Díez-Picaso, Fundamentos dei derecho
32 CC/-ºº-, art. 463, par urnco: O contrato preltmmar devera ser levado ao registro competente". civil patrimonial, 6. ed., Pamplona: Thomson-Civitas, 2007, p. 412-413.
Pietro Perlingieri, Manuale di diritto civile, 5. ed., Napoli: ESI, 2005, p. 402.
36 - QUALIFICAÇÃO E DISCIPLINA DO CONTRATO PRELIMINAR NO CóDIGO Civil BRASILEIRO GUSTAVO TEPEDINO E ÚRLOS NELSON KONDER - 37

38
permite o suprimento judicial da vontade que a contraparte tiver se re- que plasmam) o interesse concreto e os efeitos e~senciais do negócio.
cusado a manifestar. Se a avaliação da legitimidade da função perseguida pelo contrato pau-
ta-se não pelos efeitos tipicamente atribuídos àquela estrutura negocial,
4. PERSPECTIVAS ATUAIS PARA A INTERPRETAÇÃO DO
mas pelos efeitos essenciais àquele negócio concretamente fumado, tam-
CONTRATO PRELIMINAR: A EXEQUIBILIDADE DO CONTRATO bém a avaliação acerca da suficiência dos elementos presentes no contra-
PRELIMINAR LACUNOSO to preliminar frente ao definitivo deve pautar-se pelo exame do contrato
A trajetória percorrida pelo contrato preliminar no ordenamento concretamente almejado, e não pela essencialidade dos efeitos persegui-
brasileiro, cuja consagração adveio da regulação expressa pelo Código dos pelo modelo típico a que se aproxima.
Civil de 2002, demonstra o reconhecimento de sua importância práti- Especialmente no âmbito de negócios jurídicos complexos, mostra-
ca. Ao final das negociações, o contrato preliminar sacramenta o con- -se inevitável o espaço de tempo para negociação acerca do seu conteúdo
senso alcançado quanto aos elementos substanciais essenciais, enquanto e, portanto, improvável a sua definição integral na ocasião da assinatura
permite que outros elementos integrantes do conteúdo do negócio - os do preliminar, sob a perspectiva dos próprios interesses dos contratan-
quais, posto relevantes, não são essenciais à sua validade - sejam delibe- tes. Nesses casos, o contrato preliminar se destina a desempenhar fun-
radamente deixados para a execução do contrato. ção vinculativa para os contratantes, conferindo-lhes certeza quanto à
Nesta esteira, o contrato preliminar deve conter o conteúdo míni- conclusão do negócio e, ao mesmo tempo, atribui-lhes flexibilidade para
mo capaz de produzir os efeitos essenciais que qualificam o futuro ne- negociação dos elementos faltantes que integrarão o negócio futuro.
gócio, permitindo ao intérprete identificar o consenso que autoriza a A incerteza quanto a eventuais lacunas ou incompletudes, presen-
vinculação imediata das partes à celebração do contrato definitivo. Em tes com frequência no contrato preliminar, longe de traduzir defeito
contrapartida, embora presentes todos os elementos substanciais essen- ou insubsistência da vontade declarada, revela alocação de risco para as
ciais, não se poderia exigir, para a qualificação do contrato preliminar, o partes que, em nome da conservação dos negócios, se comprometem a
exaurimento de todo o conteúdo do contrato prometido. Do contrário, deflagrar, cumpridas obrigações reciprocamente assumidas e condições
como acima anotado, tornar-se-ia ocioso o contrato preliminar, recor- precedentes, a celebração do contrato, ainda que incompleto. Justifica-
rendo as partes diretamente ao contrato definitivo. se, nesse cenário, a estipulação do preliminar, com a presença de todos
Com efeito, seja a visão tradicional de que o contrato preliminar que os elementos essenciais de validade, enquanto parte do seu conteúdo é
não contém todos os elementos substanciais do definitivo não produz deixada para futura gestão, em boa-fé, pelos contratantes.
qualquer efeito, seja aquela que o reputa "fraco" e, portanto, insuscetível O contexto de complexidade dá ensejo à admissão de práticas ne-
de execução forçada, resolúvel em perdas e danos, ambas acabam por gociais em que as partes voluntariamente deixam abertos certos pontos,
mitigar a sua relevante função prática, como instrumento para a execu- ou seja, celebram-se contratos que são ~nculantes a despeito de lacunas
ção específica das obrigações - efeito primordial perseguido pelo codi- intencionalmente assumidas por elas. E o caso, tipicamente, dos cha-
ficador. A exequibilidade do contrato preliminar depende de avaliação mados contratos incompletos, nos quais "um ou alguns de seus elemen-
efetivamente funcional. 37 tos se encontram 'em branco', sujeitos à determinação futura, a partir de
Sob essa perspectiva funcional, a essencialidade dos elementos deve critérios :fixados de antemão pelos contratantes". 39 Sob o mesmo fun-
ser referida ao contrato concreto, e não ao modelo típico abstrato a que damento, portanto, reputa-se legítima a prática de as partes celebrarem
eventualmente se refere, uma vez que, na causa (ou função prático social) contrato preliminar com elementos indefinidos, que serão especificados
do contrato, identifica-se a confluência entre (as circunstâncias fáticas pelas negociações futuras ou, na falta de acordo superveniente, pelos
critérios jurídicos de integração contratual, sem prejuízo à sua execução

37 Gustavo Tepedino, Editorial-A execução específica de contratos preliminares, Revista Brasileira 38 Pietro Perlingieri, Manuale di diritto civile, 5ª ed. Napoli: ESI, 2005, p. 370.
de Direito Civil- RBDCivil, vol. 18, Belo Horizonte, out./dez. 2018, p. 11-13. 39 Paula Greco Bandeira, Contrato incompleto, São Paulo: Atlas, 2015, p. 50.
38 - QUALIFICAÇÃO E DISCIPLINA DO CONTRATO PRELIMINAR NO Córneo CIVIL BRASILEIRO
GUSTAVO TEPEDINO E CARLOS NELSON KONDER - 39

específica. Compreende-se, assim, a necessidade de contratos prelimi-


ção e integração dos negócios. 42 O rec~~so aos chama~os usos e costumes
nares em negócios de elevada complexidade, afigurando-se, por vezes,
contribui para a compreensão das legitimas expectativas e para a prote-
como mecanismo estratégico em contratações nas quais boa parte do
ção da confiança incutida a cada p_arte, perm~tindo assi1:1 percepção mais
conteúdo contratual é deliberadamente postergada para negociações e
ajustes futuros. clara do significado dos atos praticados no iter formativo do contrato.
Em síntese, a qualificação do contrato preliminar subordina-se à
Relevante papel interpretativo desempenha, nessa seara, a análise
análise funcional do processo de tratativas, associada à declaração con-
das tratativas, cuja interpretação funcional permite compreender mais
sensual de vontade (integrada também pelas práticas contratuais ante-
adequadamente o objetivo e os riscos assumidos pelas partes ao fumarem
riores das partes e do respectivo setor da economia) quanto à presença
acordos que antecedem a celebração do negócio definitivo. Com efeito,
dos elementos essenciais, estabelecidos no caso concreto, para a assun-
essa perspectiva se coaduna com o reconhecimento de que o contrato
ção da obrigação de contratar. Dessa forma, ainda que alguns elementos
preliminar pode cumprir papel decisivo no processo mais amplo de for-
do conteúdo contratual estejam pendentes de definição, o juiz poderá
mação progressiva do contrato. 40 Nesses cenários, em que o conteúdo do
"suprir a vontade da parte inadimplente", tal qual autoriza o art. 464, do
contrato definitivo se estabelece gradualmente ao longo das negociações,
Código Civil, de modo a tornar efetiva a contratação. Tal orientação per-
o contrato preliminar representa instrumento para que o agente se vin-
mite dar efetividade aos contratos preliminares, nos termos pretendidos
cule efetivamente às principais obrigações contratuais, ao mesmo tem-
pelo codificador, a partir de análise funcional e s_istemática que _supe:"e o
po em que negocia os demais termos do futuro negócio. 41
formalismo e prestigie o valor econômico e social da autonomia pnva-
Em especial, é possível verificar como a realidade prática foi proficua da na legalidade constitucional.
no sentido de criar figuras intermediárias voltadas a estabelecer marcos
negociais nesse processo paulatino de formação do contrato definitivo, 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
que podem compreender desde negócios bilaterais preparatórios que não No processo de paulatina ampliação do âmbito e das formas de atu-
chegam a constituir contratos preliminares, atuando de forma similar a ação do contrato preliminar, adquire destaque a positivação do instituto
propostas, até atos unilaterais que já franqueiam a opção de contratar. pelo Código Civil, consagrando-se sua admissibilidade no ordenamento
Nesse sentido, parece mais conveniente substituir a tradicional divisão jurídico brasileiro. Entretanto, mesmo após seu advento, pode-se obser-
dos contratos preliminares em fortes ou fracos, que se baseia nos ele- var relativa resistência doutrinária à sua exequibilidade forçada, possivel-
mentos que o estruturam, por gradação funcional, que se paute no grau mente legatária da interpretação judicial mais conservadora que se fez
de vinculação que as partes emprestaram, naquelas circunstâncias, a es- sentir durante o século XX nos âmbitos em que o contrato preliminar
ses negócios intermediários. ainda não era objeto de legislação específica.
Deve-se atentar ainda para o papel desempenhado pelas práticas Nesse sentido, tanto a interpretação que priva de qualquer efeito o
contratuais anteriores das partes, que tenham eventualmente mantido e contrato preliminar quando destituído de todos os elementos substan-
sirvam para elucidar o significado de suas condutas, e pelos usos daquele ciais do definitivo, difundida no período anterior ao Código de 2002,
setor da economia, que se constituem em normas prescritivas, servindo a como aquela posição intermediária, generalizada a partir de sua vigência,
padronizar condutas e, assim, contribuir para a qualificação, interpreta- que reputa tais contratos válidos, mas insuscetíveis de execução força-
40 Luiza Lourenço Bianchinni, Contrata preliminar: conteúdo mínima e execução, Porto Alegre: da, acabam por frustrar o decisivo papel a que ele se presta. Aos contra-
Arquipélago, 2017, p. 16. Sobre a distinção entre contrato preliminar, acordos provisórios tos preliminares cumpre igualmente estender a prioridade da execução
e contratos preparatórios, v. Carlos Augusto da Silveira Lobo, Contrato preliminar, in
Gustavo Tepedino e Luiz Edson Fachin (coord.), O direito e a tempo: embates jurídicas e utopias específica reconhecida aos demais contratos, como forma de privilegiar
contemparaneas - estudas em homenagem ao professor Ricarda Pereira Lira, Rio de Janeiro:
Renovar, 2008, p. 316.
41 Sobre o tema, Gustavo Tepedino, Atividade sem negócio jurídico fundante e a formação
progressiva dos contratos. Revista trimestral de direita civil, n. 11, vai. 44, Rio de Janeiro, 2011,
pp. 19-30. 42 Sobre o tema, Giovana Cunha Comiran, Os usas comerciais: daformação das tipas à interpretação
e integração das contratas, São Paulo: Quartier Latin, 2019.
GUSTAVO TEPEDINO E CARLOS NELSON KONDER - 41
40 - QUALIFICAÇÃO E DISCIPLINA DO CONTRATO PRELIMINAR NO CóDIGO CIVIL 8RASILEIRQ

Gustavo Tepedino, Inadimplemento contratual e tutela específica das obrigações,


não somente a situação jurídica do credor, mas principalmente o inte-
Soluções práticas, vol. 2, São Paulo: Revista dos tribunais, 2011, p. 133-148.
resse merecedor de tutela a que ela atende.
Gustavo Tepedino, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho e Pablo Rentería,
Assim sendo, a análise funcional das negociações preliminares, a de- Fundamentos do Direito Civil, vol. 5: Direitos reais, Rio de Janeiro: Forense, 2020.
claração consensual materializada no instrumento subscrito pelas par- Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder e Paula Greco Bandeira, Fundamentos do
tes, as práticas contratuais anteriores das partes e do respectivo setor da Direito Civil, vol. 3: Contratos, Rio de Janeiro: Forense, 2020.
economia e a presença dos elementos essenciais, avaliados no caso con- Hamid CharafBdine Júnior, Compromisso de compra e venda em face do código civil
creto e não em abstrato, constituem-se em aspectos centrais para a qua- de 2002: contrato preliminar e adjudicação compulsória, Revista dos tribunais, vol.
843, São Paulo: jan.-mar. 2006, p. 58-84.
lificação do contrato preliminar e para a configuração da obrigação de
José Carlos Barbosa Moreira, O novo processo civil brasileiro (1975), 25. ed., Rio de
contratar, suscetível de execução específica.
Janeiro: Forense, 2007.
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Antonio dos Reis Júnior, O problema da execução do contrato preliminar: esboço de
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sistematização em perspectiva civil-constitucional. Civilistica.com, a. 6, n. 1. Rio
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11-13.
ViTOR BuTRUCE - 43

1L PRINCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL:


UMA NOVA SEMÂNTICA PARA AS DISPUTAS RELATIVAS
AOS CONTRATOS EMPRESARIAIS

Vitor Butruce1

Ao se aproximar de dezoito anos de vigência, o Código Civil de


2002 já deixou de ser uma novidade para tornar-se uma realidade. Se os
debates a respeito de suas inovações ainda não foram completamente
superados, ao menos o uso constante de princípios jurídicos ou cláusu-
las gerais não representa mais um tabu; questiona-se o grau de concre-
tude destas ou o modo de incidência daqueles, mas a experiência jurídica
brasileira os tem como elementos naturais do seu repertório.
Nesse período, seguindo entendimentos que já vinham se forman-
do à luz do Código de Defesa do Consumidor e apoiados por movi-
mentos doutrinários, os tribunais brasileiros se tornaram mais abertos
a intervir no conteúdo dos contratos privados - revisando cláusulas, fi-
xando deveres de conduta, erigindo pressupostos não previstos em lei
para o exercício de direitos e limitando esse exercício em situações con-
cretas. Agregou-se ainda a premissa de que os contratos devem ser con-
servados, na medida do possível, em homenagem à vontade manifestada
pelas partes ao realizá-los. Goste-se ou não desse resultado, a cultura ju-
rídica brasileira passou a conferir margem considerável para intervenção
do julgador no momento de efetivar direitos de consequências gravosas,
inclusive em disputas empresariais.
Movimentos como esses geram certo nível de ceticismo - o que
no Direito costuma resultar em sentimento de insegurança jurídica. E
não seria exagero dizer que alguns dispositivos acrescentados ao Código
. Civil pela Lei nº 13.874/2019 representam espécie de reação ao sen-
timento nutrido em alguns círculos de que haveria excesso de inter-
venção judicial em matéria de contratos privados. O parágrafo único
acrescentado ao art. 421 pórtico do regime geral dos contratos - é
por demais simbólico nesse sentido: "[n]as relações contratuais priva-

Doutor em Direito Comercial (USP}. Mestre em Direito Civil (UERJ}. Professor de Direito
Comercial no lbmec (RJ} e na UERJ. Sócio do BMA- Barbosa Müssnich Aragão.
44 - PRINCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL: UMA NOVA SEMÂNTICA PARA AS DISPUTAS RELATIVAS AOS .••
VnoR BUTRUCE - 45

das, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionali- Este texto tem, portanto, dois propósitos: sintetizar as contribui-
dade da revisão contratual".
ções dessa teoria e realçar seu po_tencial para serv~ como :fi~ condutor
Não se pretende aqui discutir a conveniência ou o apuro técnico de uma nova semântica para as disputas contratuais no Brasil.
das alterações promovidas pela Lei nº 13.874. Diante do seu histórico
legislativo, parte-se do diagnóstico de que se procurou diminuir o sen- 1. A TEORIA DO DESIGN CONTRATUAL

timento de insegurança derivado do uso desmedido de princípios me- Pode-se atribuir a gênese do que se convencionou denominar teoria
diante a criação de um novo princípio - o da "intervenção mínima". E do design contratual ("theory ofcontract design")5 a um conjunto de estu-
esse princípio ainda não fazia parte do repertório da cultura jurídica bra- diosos da teoria jurídica dos contratos, com destaque para trabalhos de
sileira, devendo ser desenvolvido mediante o debate acadêmico e a aná- Robert Scott e George Triantis 6 , que esclarecem como toda a dinâmica
lise de sua aplicação em decisões judiciais. de uma operação econômica pode ser impactada por escolhas (a) sobre o
Essa tarefa não pode se desenvolver exclusivamente a partir de es- uso de mecanismos de enforcement juridicamente exigíveis ou desprovi-
forços interpretativos do novo texto legal ou de embates teóricos calca- dos dessa exigibilidade, (b) sobre os parâmetros do conteúdo contratual
dos na dogmática - pois ainda faltam mais subsídios capazes de descrever
que exclusivamente por uma das partes, tendem a regular operações empresariais complexas,
adequadamente a dinâmica de certas operações, sobretudo algumas con- como no caso dos contratos de franquia.
tratações empresariais relevantes. Na síntese de Rodrigo Octávio Broglia 5 Adapta-se a expressão theory ofcontract design ao português como "teoria do design contratual",
tanto em homenagem ao nome original do marco teórico c?mo pelo fato ~e ~ te~m~ "?esig~" já
Mendes, o jurista deve "observar diretamente como a praxis desenvolve ter sido incorporado ao vernáculo, em linha com o que indicam noss?~ pr~n_c1pa1s -~1c1ona~1stas
(como é o caso de FERREIRA, Aurélio Buarque de_ Hol~nda. Novo D1oonano Aurel~o da Lmgua
suas estratégias de enfrentamento dos problemas que reclamam decisão Portuguesa. 3ª ed. Curitiba: Positivo, 2004, p. 650). Ecurioso notar que os text?s qu<;, mc?r~?ram
pelo direito", para que possa "exercer seu potencial de gerar consequên- a teoria não chegam a justificara origem da nomenclatura, ou a_ escolha do vocabulo ~es1gn . Mas
George Triantis deixou pistas a respeito duran~e even~o ocor_:1do em 2_4-;i.2015 em Sao Paulo, ao
cias produtivas para a dogmática"2, em vez de se fechar numa busca de suscitar que a expressão se inspira em perspe~t1vas da movaçao tecnolo~1c~.Seg~ndo o professor
sua reconstrução pela própria dogmática. de Stanford, o papel do design no desenvolvimento de novas ~ecnolog1as e f~nc1on_al: ~azer com
que um produto consiga atender às necessidades do consumidor- o que ex!~e rac1oc1~ar sobre
essas necessidades, montaras engrenagens adequadas, estabelecer um prot~t1p? e testa-lo, nu_m
Nesse contexto, a proposta deste trabalho é buscar na cultura inspi- processo interativo. Traçando o paralelo com a r~alidade contratual, George Tnan~1sprocura entao
radora da práxis contratual contemporânea brasileira subsídios capazes demonstrar que a elaboração de contratos tambem guarda essas l'.1esmas caractenst1cas-donde se
captura a ideia do design como a busca por moldara es!rutura do m~trumento com os ol~os postos
de esmiuçar a lógica por trás da liturgia da confecção dos instrumentos no seu aspecto funcional, visando a atender aos objetivos e ne~ess1da_des das partes. A mte~ra d~
que cristalizam operações empresariais complexas3• Analisa-se, então, participação de George Triantis no evento "Contract Enforcement m Brazil: Challenges andSubstJtutes
está disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=nQJ4pT1kBTQ&_t=2827s>, ª:essado em
o que estudiosos norte-americanos convencionaram denominar design 18.10.2020. A nomenclatura também foi adotada por Analluza Bravo Bohvar, em artigo no qual
passa em revista a essência dos escritos de Robert Scott e George Triantis sobre a teoria (A teor!a
contratual - movimento inspirado em diagnósticos da Nova Economia do "design" contratual: sua aplicabilidade face às regras de interpretação do contrato no Brasil.
Institucional que, vistos em conjunto, permitem a formulação de uma Revista de Direito Empresarial, São Paulo, v. 18, set. 2016). . .
6 Ambos os autores, individualmente ou em coautoria, produziram textos fundamentais sobre
teoria, cuja essência é demonstrar como a antevisão dos cenários de con- o assunto. Destacam-se entre eles o introdutório "lncompletecontracts and the theory ofcontract
flito guia as escolhas que os agentes econômicos fazem ao moldar seus design", publicado no Case Westem Reserve Law Review, vai. 56, nº 1, set./dez,- 2005, p._188-201,
que serviu de ensaio para o definitivo "Anticipating litigot(on in 7ontract des,g~", ~ubh:ª?º no
contratos4 • The Yale LawJoumal, vol. 115, nº 4, jan. 2006, p. 814-879. Nao sena exagero atribuir ao ultimo o
epíteto de texto seminal sobre a matéria, o que justifica as re_ferências constantes a seu respeito
2 nas próximas linhas. A teoria do design contratual tem sido subsequentemente retomada
MENDES, Rodrigo Octávio Broglia.Arbitragem, lex mercatoria e direito estatal: uma análise dos
conflitos ortogonais no direito transnacional. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 23. por outros textos, muitos deles também contando com autori? ou coautoria de Robert_ Scott
3 Este trabalho representa, em grande parte, uma síntese de trechos integrantes dos capítulos 2 ou George Triantis, e passou a receber adesão e desenvolvimento de outros estu?1osos.
Relacionam-se aqui alguns desses textos: KRAUS, Jody; SCOTT, Robert. Contract design and
e 7 da Tese de Doutorado defendida pelo autor em 2019 perante o Departamento de Direito
Comercial da Faculdade de Direito da USP, sob o título O design da ruptura dos contratos the structure of contractual intent. New York University Law Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out.
empresariais de prazo determinado. 2009, p. 1023-1104; CHOI, Albert; TRIANTIS, George. Strategic vagueness in contract design:
4 Para os fins deste trabalho, concentra-se no exame de contratos que envolvem investimentos the case of corporate acquisitions. The Yale Law Journal, New Haven, v. 119, n. 5, mar. 2010, p.
848-924; GILSON, Ronald J.; SABEL, Charles F.; SCOTT, Robert. Contract and innovation: the
de gra?de porte - aquisi~ões de parti~ipação societária, grandes projetos de engenharia,
par~enas para desenvolvimento de at1v1dades complexas em longo prazo, prestações de limited role of generalist courts in the evolution of novel contractual forms. New York Unwers,ty
serviços de alto val?ragregado,jointventures contratuais, entre outros. Negócios que costumam Law Review, Nova Iorque, v. 88, n. 1, abr. 2013, p. 170-215; GILSON, Ronald J.; SABEL, Charles
F.; SCOTT, Robert. Text and context: contract interpretation as contract design. Cornell Law
se estruturar me?1~nte rodadas de negociaç~es e instrumentos extensos, elaborados por
assessores especializados - ou que, quando cristalizados em documentos preparados quase Review, vol. 100, 2014, p. 23-98; e SCOTT, Robert. Contract design and the shading problem.
Marquette Law Review, Milwaukee, v. 99, n. 1, 2015, p. 1-38.
V1mR BurnucE - 47
46 - PRINCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL: UMA NOVA SEMÂNTICA PARA AS DISPUTAS RELATIVAS AOS ...

todas, seria necessário incorrer em custos também altos para fiscalizar


e (c) sobre o grau de detalhamento da redação das suas cláusulas. Mais
a ocorrência das hipóteses antevistas e, uma vez implementadas, aplicar
do que isso, demonstra-se que essas escolhas também podem represen-
tar estratégias de gerenciamento dos custos da operação inclusive os as consequências acordadas.
custos d_e eventuais disputas a seu respeito. Trata-se de perspectiva que Isso faz com que a práxis busque maneiras de gerenciar essa incom-
pressupoe uma compreensão estruturada sobre como funciona O pro- pletude. E esse gerenciamento, que perpassa todo o corpo contratual,
cesso de enfarcement dos contratos 7 • requer "o uso de várias combinações de normas jurídicas ou relacionais,
bem como de regras e standards, para otimizar os contratos à luz da in-
_Numa ten:ativa de síntese, pode-se dizer que o design contratual 9
certeza sobre o futuro e das dificuldades para produzir provas" •
consiste no conJunto de escolhas efetuadas para moldar os contratos de
mane~a ~ncional, adotando-se meios estruturais que visam a atender 2. As PRINCIPAIS VARIÁVEIS QUE IMPACTAM SOBRE O DESIGN
ª?s obJe~vos e necessidades dos agentes, o que pressupõe antever cená- CONTRATUAL
r~os de disputas e traçar alternativas de modo estratégico, com os propó- A teoria do design contratual se dedica a analisar como o impacto
sito~ de tornar os investimentos em custos de transação mais eficientes da incerteza sobre operações contratuais é administrado pelos agentes
e evitar comportamentos oportunistas. econômicos - e, a bem dizer, pelos seus assessores jurídicos, responsáveis
Essa noção parte do pressuposto jurídico de que praticamente to- por redigir os instrumentos que documentam e guiam essas operações.
dos os contratos são i~co:11p!etos - por ser quase impossível aos agentes Observa-se que, durante as negociações, esses atores agem sob circuns-
antever todas as contmgencias futuras, todos os riscos incidentes sobre tâncias descritas pelo que se convencionou denominar Nova Economia
as operações, todos ~s ~enários alternativos e, por fim, chegar a consen- Institucional10 , que divergem do conhecimento que subjaz ao paradigma
11
so sobre as consequencias dessas contingências, desses riscos desses ce- jurídico clássico sobre a formação da vontade contratual •
, . s. Raramente há tempo para por à mesa todas essas questões
nar10s ' e os
custos para tanto seriam elevados; e, mesmo se fosse possível discu;i-las

7 ~COTT, Robert; TRIANTIS, George. lncomplete contracts and the theory of contract design
aseWesternReserveLawReview,Cleveland
d"f ld d d ' v.56 ' n· 1' set/dez
· · 200 5 , p · 13 7- Reg,s
· t ra-seaqura··
9 KRAUS,Jody; SCOTT, Robert. Contractdesign and thestructure ofcontractual intent.NewYork
' rcu a e e s_e capturar por completo a carga semântica do termo enforcementao traduzi-lo
pa_ra o portu?ues. Embora sua acepção mais evidente (e utilizada entre estudiosos brasileiros) University Law Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p. 1102; no original: "The chal/enges
~eJ? ~ capacrda~e- d_e_ buscar o cumprimenta forçada de uma regra mediante instrumentos ofcontract design thus require parties to use various combinations oflegal and re/ational norms, as
1und1cos (sua ex1g1b1bdade, sua eFetividade) we/1 as contractual rufes and standards, to optimize their contract in light of uncertainty about lhe
·1 1 :!' ' o uso do termo no ·,ngle·s por vezes conta com
~utr ezas ~u ~ u trapassam e~sa esf~ra. Por isso, a tradução de eiifarcementpode variar ao longo future and the difficulties ofproof'.
es~e tr~ a 1 o, optando-se mclusrve em alguns momentos por mantera expressão no ori inal 10 Refere-se à Nova Economia Institucional ("New lnstitutional Economics") como um campo
em m?les, quando a carga semântica do texto reproduzido ou da ideia a ser transmitida a~sim interdisciplinar do conhecimento que avalia o funcionamento da realidade econômica
sugerir. incorporando influxos jurídicos, da sociologia, da teoria política e da antropologia,
8 N?t~-se que a ace_pç?o de i~completude contratual difere no vocabulário de economistas reconhecedor de que as empresas não representam somente centros de produção de riquezas,
e JU~rsta:. Para os Juristas, a mco~p_letude deriva da impossibilidade de descrever todas as mas também formas de organização - dependentes, portanto, de um conjunto de elementos
âbngaçoesde an_te~ert?dos o~ cenanos para contingências futuras, em razão das premências para tanto, como as instituições, os contratos, as formas de governança, os direitos de
~ terr:pºd ~s lrmrtaçoes da linguagem ou dos custos para obteras informações necessárias propriedade e a compreensão de como se dão as relações no mercado, donde se destacam os
- on_ e_ env_am problemas relativos ao modo de preenchimento de lacunas Na visão custos de transação. Atribui-se sua gênese a Ronald Coase, a partir da publicação do seu clássico
econor:irca, a ,~completude_ vai ~lém: ~reocupa-se com a incapacidade de estabelecer de "The nature ofthefirm", de 1937 (The nature of the firm. Economica, Londres, v. 4, issue 16, nov.
an~mao o con1unto de obngaçoes mais eficiente para todos os cenários futuros (SCOTT 1937).Já o termo Nova Economia Institucional se atribui a OliverWilliamson, empregado para
~ ert; TRIANTIS, George. lncomplete contracts and the theory of contract design Cas; destacaras diferenças de métodos e propósitos entre as novas ideias das correntes inspiradas
_estlfrn Reserve LawR_eview, Cleveland, v. 56, n. 1, set./dez. 2005, p. 190). Isto é: se O co~trato na contribuição de Coase e as teorias que a precederam (cf. WILLIAMSON, Oliver. /vlarkets
nao e capaz d~ an~ec!par_ º. resultado ótimo para cada cenário vindouro, forçando as artes and hierarchies: analysis and antitrust implications. Nova Iorque: The Free Pr~ss, 1975, p. 1-19).
?cumprr obnga~a.? mef1c1:nt: ou a renegociar seus termos, isso resulta numa contrftação Para uma análise geral da Nova Economia Institucional, cf. BROUSSEAU, Eric; GLACHANT,
~ncomp ;ta_ na ~,sao econo~rca. Disso derivam outras preocupações, como O risco do Jean-Michel (ed.).New lnstitutional Economics: a guidebook. Cambridge: Cambridge University
hald-up - isto e, a oportunidade que o agente tem de se aproveitar da posição favorável Press, 2008.
em_ que se encontra, de ~od.? a _exi_gir condutas num cenário de renegociação ue não lhe 11 A dogmática clássica do direito contratual se formou sob o paradigma do sujeito de direito
sena ~ado_f~zer se a contm encra tivesse sido contemplada num instrumento q~e revisse abstrato, dotado de autonomia plena e capaz de agir munido de todas as informações
9
soluçao ef~c,ente. O tema e explorado no c_ontexto da contratação de grandes o~ras or necessárias para tomar decisões conscientes e racionais. Esse sujeito não existe na realidade,
CARMO, Lre Uema do. Contratos de construçao de grandes obras. São Paulo· Almed· p
p. 191-194. · ma, 2019, todavia.
48 - PRINCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL: UMA NOVA SEMÂNTICA PARA AS DISPUTAS RELATIVAS AOS •••
VITOR 8UTRUCE - 49

2.1. Ü GERENCIAMENTO DOS CUSTOS DE TRANSAÇÃO Os recursos investidos no momento ex ante, empreendido_s dura~~
A primeira variável com que os agentes lidam é a consciência de que tativas contratuais, são designados ''front-end transactwn costs ,
te as tr a . •, d" d
contratar implica custos de transação 12 : custos para desenvolver o projeto, ao pass O que os custos incidentes no .momento " posterior, Ja . iante » a
conhecer a contraparte, engajar assessores responsáveis pelas negocia- · ~ ci·a materializada ' se denornmam back-end transactwn
contmgen . , costsd
16
17
ções, controlar o desempenho do empreendimento, efetuar o desinves- ou "back-end enfarcement costs" • Numa adaptação aproximada, a luz a
timento, litigar e assim por diante. Os agentes desejam diminuir esses função que pretendem cumprir, pode-se tra~á-los como ~s custos de ne-
custos tanto quanto possível, de modo a extrair da operação econômica gociação de uma operação e os custos de sua zmplementaçao ( ou custos da
resultado eficiente 13 • disputa a seu respeito, quando for o caso). .
Os agentes também atuam conhecedores de sua racionalidade li- Os Jront-end transaction costs sintetizam o conj~nt? d~ custos_den-
mitada - isto é, a percepção de que não é possível (ou economicamente w d oS da necessidade de especificar ex ante as contmgencias relativas "
a
viável) ter todas as informações necessárias para definir a conduta a to- possíveis cenários futuros. Oliver Williarns~n os descreve corno aque-
mar perante qualquer contingência que possa surgir14 • Isso se dá sobre- les [custos] incorridos para minutar e negoci3: acordos, [que ~o~~~ v~-
tudo em razão dos custos necessários para obter essas informações antes ·ar] de acordo com o design do bem ou serviço a ser produzido . Sao
ou verificar a ocorrência dos fatos depois. n
investimentos · fu turas, "a d e-
relativos a prever possíveis contingências
terminar obrigações a serem executadas de modo eficiente para cad~
Diante dessas variáveis, a essência dos raciocínios que presidem o
contingência, à barganha sobre a partilha do e~cede~te co1=_tratual e a
design contratual envolve gerenciar escolhas entre incorrer em custos na
minuta de uma redação do contrato que comumque a mtençao das par-
etapa inicial da contratação (ao longo da redação dos instrumentos) ou
tes para os tn"bunais· »19 . ·
postergá-los para o momento futuro (durante a execução do contrato
ou diante de uma controvérsia concreta). Importa, pois, a diferença en- Por sua vez, os back-end enfarcement costs representam os ~ustos de-
tre os custos de transação ex ante ou ex post15 • correntes da implementação das medidas contratualmen,t~ pre:71sta~, bem
corno das controvérsias que surgem quando o contrato e madim~lido ou
se torna desinteressante para urna das partes. Começam, a bem dizer, pe-
12 Na expressão clássica (e sempre reproduzida) de Kenneth Arrow, os custos de transação, que
não se confundem com os custos de produção, representam os "costs ofrunning the economic los custos de comprovação (ou custos de verificação) das condutas contr~tu-
system" (The organization of economic activity: issues pertinent to the choice of market versus
non-market allocation. ln: The anolysis ond evaluation ojpublicexpenditure: the PPB System. US
almente esperadas (os "verijication costs" 2º) - como os custos envolvi_dos
Congress, Joint Economic Committee, Washington D. C., mai. 1969, p. 48). na fiscalização de urna obra, no monitoramento contínuo de 11:°: projeto
13 Na síntese de OliverWilliamson, "theeconomic institutions ofcopitalism have the main purpose and
effect ofeconomizing on tronsaction costs" (The economic institutions ojcapitalism: firms, markets de longo prazo, na auditoria periódica dos documentos gerenciais de um
and relational contracting. Nova Iorque: The Free Press, 1985, p. 17). concessionário ou no acompanhamento do desempenho de um franque-
14 Atribui-se o conceito de bounded rotionality a Herbert Simon, sintetizado na frase, repetida
pelas fontes que lhe sucederam, de que, no mundo real, os agentes se comportam de modo ado, por exemplo. Perpassam também os custos da disputa que venha se a
"intendedly rotional, buton91boundedly so" (Administrotive behavior: a study of decision-making
processes in administrative organizations. 4ª ed. Nova Iorque: The Free Press, 1997, p. 88,
A nomenclatura é adotada (e os conceitos, detalhados) por SCOTT, Robert; TRIANTI~, George.
grifos do original). Embora se tenha convencionado a tradução "racionalidade limitada" para o
Anticipating litigation in contractdesign. The Yale Lawjournal, New Haven, v. 115, n. 4, Jan. 2006,
português, a essência da expressão pretende indicar que, como regra, os agentes econômicos
atuam de modo racional, mas sua racionalidade fica condicionada, confinada, em razão do
kR1;Gs~l;ciy; SCOTT, Robert. Contract design and the structure of contractual intent. New York
grau de informação acessível e das premências do tempo que incidem sobre cada processo
de tomada de decisão. University Law Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 200~, P: 102~. .
18 WILLIAMSON Oliver. The economic institutions of coptta!tsm: f1rms, markets and relat1onal
15 A divisão dos custos de transação em custos ex dnte e custos ex post se deve em grande parte à
contracting. N~va Iorque: The Free Press, 1985, p. 388. No original: "The ex ante costs are t_hose
contribuição de Oliver Williamson, que assim os descreve: "Transaction costs ofex ante and ex
incurred in drafting and negatiating agreements. They vary with the design ofthe goad ar serl'tce to
post types are usefully distinguished. Thefirst are the costs ojdrofting, negotiating, and safeguarding
an ogreement. This can be dane with a greatdeal ofcore, in which cose a complex documentis drofted be produced". . · h Yí / L
19 SCOTT, Robert; TRIANTIS, George. Anticipating litiga~o~ m contra:t. des1,?n. T. e .ª e ,ªw
in which numerous contingencies are recognized, and appropriate adaptations by the parties are
}ournal, New Haven, v. 115, n. 4, jan. 2006, p. 823, t~a?uçao hvr~._No on~mal: Thepart,es m1 est
stipulated and agreed to in advance. Orthe document con be very incomplete, the gaps to befilled in
in joreseeing possible juture contingencies, determmmg the efj,ctem abltgattons that sho~ld be
by the parties as the contingencies arise. Rother, therefore, than contemplate ali conceivable bridge
enforced in each contingency, bargaining ?~er the share of:fe controctmg surplus, and droftmg the
crossings in advance, which is a veryambitious undertaking, onlyactual bridge-crossing choices are
controct /anguage that communicates thetr mtent to courts.. . . .
addressed as events unjo/d" (The economic institutions ofcopitolism: firms, markets and relational
contracting. Nova Iorque: The Free Press, 1985, p. 20). 20 WILLIAMSON, Oliver. The economic institutions of copttaltsm: f1rms, markets and relat1onal
contracting. Nova Iorque: The Free Press, 1985, p. 388.
50 - PRINCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL: UMA NOVA SEMÂNTICA p
ARA AS DISPUTAS RELATIVAS AOS ..•
V1TOR BUTRUCE - 51

instalar entre as partes21, notadamente aqueles relacionados à instaura -


da demanda (custas judiciais, taxas de administração de d' çao Nesse contexto, os agentes precisam lidar não só com a incerteza
arbitrais h , · d proce 1mentos sobre a ocorrência de determinado fato e sua condição de demonstrá-lo,
- ' onorar10s a vocatícios) e à sua produção probatória (o ue en-
volve na~ :ºmente os custos diretos com peritos ou assistentes t!nicos mas também - e talvez sobretudo - com a incerteza acerca de potencial
~~s tdam em o tempo e os esforços empreendidos pelas equipes geren~ comportamento oportunista da contraparte 26 . Também devem considerar
c1ais as empresas22 ' que precisam

senvo v1mento da disput


, -
·


se d esligar d e suas tarefas diárias
recupler~r documentos, produzir relatórios, instruir e acompanhar
a em conjunto com seus assessores jurídicos).
e
op:~ outros efeitos da incerteza sobre o momento ex post, como o impacto da
sua manutenção ao longo de uma disputa e mesmo o risco de erro no
julgamento dos seus pleitos27 .
E, en~ao, esse conj~nto de escolhas no gerenciamento dos custos Os agentes são ainda cientes de que os riscos jurídicos e econômi-
de ~ransaçaodque corporifica o design contratual, influenciado pelo grau cos de suas operações variam significativamente a depender do grau de
d e mcerteza a operação23. especfftcidade do ativo a que se referem28 • Operações triviais, envolvendo
objetos ou atividades de fácil reposição, tendem a exigir menos proteções
2.2. Ü IMPACTO DA INCERTEZA: O RISCO DO OPORTUNISMO E do que aquelas relativas a bens ou empreendimentos complexos, escas-
A ESPECIFICIDADE DO ATIVO COMO CONDICIONANTES DOS sos ou que exigem investimentos mais robustos e duradouros, de difí-
MECANISMOS CONTRATUAIS cil realocação - o que força as partes a manter relações mais próximas
Sabedores de que a incompletude dá di _ do que as necessárias para quem busca serviços ou produtos no merca-
• margem para scussoes fu- do indistintamente29 •
tur~~' ~eJ~ para pre~n~her uma lacuna, renegociar aspectos contingentes
ou inmir controversia~, e que os espaços dessa zona cinzenta tendem Esse ambiente exige a busca dos mecanismos de governança adequa-
a aumentar q~anto maior for a incerteza a que se submetem os con- dos para cada tipo de investimento30 - variando a escolha dos agentes
~ratates precisam se cercar de cautelas e alternativas para lhe; ajudar a entre recorrer ao sistema de preços no mercado (buscando suas necessida-
reso ver os problemas"24 que lhes esperam à frente. des mediante contratos descontínuos), às estruturas hierárquicas (optando
pela integração vertical, incorporando suas necessidades em seu processo
. A!sim, para além do momento em que se incorre nos custos de ne-
gociaçao ou nos custos de implementação o que o ~ . produtivo interno) ou, no meio do caminho, às chamadas formas híbridas
, · d! · · d • ' s separa na essencia
e a z77:;,u~nc:a a z_ncerteza sobre a decisão dos agentes: afinal os de contratação (isto é, mediante relações contratuais de longo prazo) 31 .
ex ante sao mcorndos num ambiente em que a . 1 ~ dcustos 26 WILLIAMSON, Oliver. The ecanomic institutions of capitalism: firms, markets and relational
f ,. imp ementaçao o fato contracting. Nova Iorque: The Free Press, 1985, p. 32.
con mgente e mc~rta; já os custos ex post surgem diante do fato consu- 27 Exemplifica-se: ao engajar-se numa construção lastreada em projeto incipiente, o empreiteiro
mado, pesando a mcerteza sobre a capacidade da parte de d , deve considerar a ocasião de permanecer anos em estado de incerteza sobre os destinos de
-lo para O julgador2s. emonstra- litígio que possa ser necessário para apreciar eventuais pleitos de custos extras. Precisa avaliar
também o risco de ser vencido ao final do litígio, ainda que munido de documentos que
considere satisfatórios. A respeito de como a incerteza e o risco de erro impactam sobre os
agentes econômicos, cf. SCOTT, Robert; TRIANTIS, George. Anticipating litigation in contract
21 "Back-end enfarcement casts include the ex ected if/' . . ,,
design. The Yale Law Journal, New Haven, v. 115, n. 4, jan. 2006, p. 831-834.
George. lncomplete contracts and the th c?ts a ,t,gatton (SCOTT, Robert; TRIANTIS 28 WILLIAMSON, Oliver. The economic institutions of capitalism: firms, markets and relational
Review, Cleveland v. 56 n l set /dez , eory o 6c)ontract design. Case !Vestem Reserve Lau; contracting. Nova Iorque: The Free Press, 1985, p. 55.
22 MAC ' ' . ' · · - 00 5, P· 19 29 SCOTT, Robert; TRIANTIS, George. lncomplete contracts and the theory of contract design .
. AULAY, Stewart. Non-contractual relations in. b . . . .
Saoolog,ca/ Review, v. 28, n. l, fev./1963, p. 64-65. usmess. a prehmmary study. American Case Western Reserve Law Review, Cleveland, v. 56, n. 1, set./dez. 2005, p. 189.
23 30 WILLIAMSON, Oliver. Themechanismsofgovemance. NewYork: Oxford University Press, 1996,
KRAUS,Jody; SCOTT, Robert. Contractdesi n and h st
University Low Review. Nova Iorque 8 g t e ructure of contractual intent. New York p.7.
WILLIAMSON OI' Th , _v.. 4, _n. 4, out. 2009, p. 1070. 31 Na síntese de OliverWilliamson, as operações que a teoria econômica convencionou denominar
. ' ,ver. ,, e econom,c mst,tutions oifca 1·1 /' . f'
contractmg. Nova Iorque: The Free Press 1 8 ª ':fl!·
P ,r~s, markets and relational formas hibridas são aquelas relações contratuais, normalmente de longo prazo, em que as partes
m nontrivia/ degree increasing lhe deyre 'if9 5, p. 60· No ongmal: l,Vheneverassets are speci'k mantêm autonomia, mas o negócio é mediado por mecanismos de contratação elásticos, a
• . '
dev,se a machmery ta 'wark thin s out' . ', e o uncertamty makes ·1
1 · . '.I' ponto de exigir adaptações para efetuara realinhamento entre os agentes e restaurara eficiência
more tmperatwe that the parties
sequentia/ adaptations wi/1 incre'f!se in nu--:,;ce co;_tractua/ gaps wi/1 be /arger and the occasionsfor quando perturbados por distúrbios inesperados (Comparative economic organization: the
SCOTT, Robert; TRIANTIS, George Antf;tn /mprtan~eas'.hedegreeofuncertaintyincreases". analysis of discrete structural alternatives. Administrative Science Quarterly, [s. 1.], v. 36, n. 2,
Jouma/, New Haven, v. 115, n. 4, jan. ~006, :.~~;~ ,t1gat1on m contract design. The Yale Law jun. 1991, p. 217-272). No original:"[...] hybrid modes ofcontracting are supported by neoc/assica/
contract /aw. The parties to such contracts maintain autonomy, but the contract is mediated by an
e/astic cantracting mechanism. [... ] More generally, /ong-term, incomplete contracts require specia/
VITOR 8UTRUCE - 53
52 - PRINCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL: UMA NOVA SEMÂNTICA PARA AS DISPUTAS RE:ATIVAS AOS •.•

e dos seus resultados pela realidade contenciosa) .é tal que


Essa conjunção de fatores também conduz os agentes a procurar como o test • h ·d d d ·
uma série de medidas para proteger suas posições; afinal, parte-se das chega ao ponto de fazer parte do repertório con ~ci o a a vocacia
·al· nunca se sabe exatamente por qual motivo ou quando uma
premissas de que o planejamento das operações é necessariamente in- empresan • ·d
- ode gerar uma disputa mas é razoavelmente sabi o como essa
completo (por conta da racionalidade limitada); que os compromissos operaçao p '.
firmados de parte a parte podem se frustrar (em razão do oportunismo); disputa vai se envolver, o seu roteiro. . .
e que a perspectiva de manutenção da relação pode ser relevante (diante Eis O porquê de as negociações contratuais e?~olverem especial
do grau de especificidade dos investimentos). atenção (e até mesmo certo grau de tensão) na defimçao dos pontos so-
Essas medidas se estruturam à luz do conjunto de circunstâncias à bre as patologias contratuais: pois é nesse momento em que se definem
disposição dos agentes: o grau de informação a que têm acesso no mo- as regras do jogo que não se sabe quandoA vai ser jo~ado, n~m mesmo se
mento da contratação, a relevância do investimento que se está a fazer, vais· erJ·ogado·, mas se define como deve se-lo. Em. smtese, ,as partes
. de- ,
o grau de confiança na contraparte, sua dependência econômica com em antever eventual litígio futuro, e em particular quem e mais prova-
V ~
relação àquele negócio ou àquela contraparte e, não menos importante, vel de ser futuramente acionado e por o que .
sua capacidade de demonstrar a ocorrência dos fatos relevantes no fu- Por isso sintetizam Robert Scott e George Triantis, "a perspecti-
turo, em caso de desentendimento. Esse último aspecto, em particular, '
va do litígio efetivamente . co~~ratual"34 , _sen do pape_1
influencia o design
exige dos agentes considerar as feições do sistema adversarial de solu- dos redatores ''prever O jogo pelo qual as partes litiga~ as ,d~sputas con
ção de disputas. tratuais e trabalhar em retrospectiva para alcançar o design otimo das suas
-
contrataçoes ex ante"35 .
2.3. A REPERCUSSÃO DO AMBIENTE INSTITUCIONAL E DO SISTEMA
Mas prever salvaguardas contratuais ~ã~ é sufic~ente - P?i~ 0 Pª=
ADVERSARIAL DE DISPUTA SOBRE O DESIGN CONTRATUAL
ceita tudo e nem tudo funciona na pratica. Por isso, a praxis tam
Diante dos custos de transação e do grau de incerteza à frente, os pe1 a ' b. . . . l
b emconsidera na sua atuação a relevância do am zente
, . mstztuczona
. . em
agentes vislumbram os principais riscos da operação planejada e se de- que as operações se inserem. Não basta apenas negociar ~ minutar ins-
dicam ao exercício das perguntas difíceis. E se der errado? E se eu mudar trumentos detalhados e compreensíveis; é preciso saber ~te que pont~ ~s
de ideia? E se a contraparte descumprir? E se a contraparte tentar se apro- obrigações integrantes de uma operação podem ser efetiva~ente e~gi-
priar dos investimentos que eu efetuar nessa operação, de maneira oportunis- das em caso de inadimplemento, ou se as escolhas de alocaçao ~e r:sc~s
ta? Como eu saio desse contrato? Na síntese de Tina L. Stark, "the question e responsabilidades tendem a ser respeitadas caso alguma contmgen~ia
is, what if?"32 • relevante se materialize. Isso significa compreender o modo de fu~c10-
Esse exercício, no mais das vezes estimulado e acompanhado pe- namento dos tribunais, 0 custo da judicialização, as regras sobre o~us
los assessores jurídicos, envolve a compreensão dos diferentes cenários da prova e O grau de maturidade dos intérpretes jurídicos sobre o tipo
possíveis, das proteções jurídicas recomendáveis, dos riscos que se pre- contratual adotado, entre outros fatores.
tende ou não assumir e das portas de saída desejadas.
Fixadas essas pautas, os redatores se dedicam ao jogo complexo de SCOTT Robert· TRIANTIS, George. Anticipating litigation in contractdesign. The Y_ole Lowl?d,urn~}.,
33 ' ' · 6 3 7 3 No original: "On the one hond, the porlles musll ent1;y
minutar instrumentos contratuais aceitáveis por todas as partes - cada Ne:e~a~~!~~ ;;~~Í;Íi!;
1::r~t;~Jil;agen~'s incentives toshirkand the prtncip?~'s incentives to moke
qual procurando antecipar movimentos possíveis da contraparte e posi- i:~::~~i:~ch~~;::h1::::;;::::;;t::;:/Ju:~; ::i~;~~~~~:::i~h;;/!t~~~n~~~;:%~:~~::y
cionar suas proteções jurídicas. O grau de repetição dessa liturgia (bem to be suing andforwhat". . d · Th Yí / Low
SCOTT Robert· TRIANTIS, George. Anticipating litigation m contract es1g~; .. e ? ed
34 ' ' · oo6 p 82> Nooriginal:"[ ...]theprospecto1 lttJgatJon oes
adaptive mechanisms to effect realignment and restore efficiency when beset by unanticipated Journal, New Haven, v. 115, n. 4, Jan. 2 , · -·

disturbances"). São contratações complexas, exemplificadas por contratos de fornecimento in Jact influence contract design". f d ·
SCOTT Robert· TRIANTIS, George. lncomplete contracts and the theory o ~ontr~c~ ~.s:,rj
de longo prazo,joint ventures, franquias, parcerias para serviços de alto valor agregado, entre
outros.
35 \M R' rve Law Review Cleveland v. 56, n. 1, set./dez. 2005, p. 195. o ongma · ···
~~s;ig;;~e;;in r:predicting the gam~ in which parties li~gate disputes over theircontroct and work
32 STARK, Tina L. Drafting contracts: how and why lawyers do what they do. 2ª ed. Nova Iorque:
Wolters Kluwer Law & Business, 2014, p. 197. backward to the optimal design ofthe1r ex ante contract •
VJTOR 8UTRUCE - 55
54 - PRINCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL: UMA NOVA SEMÂNTICA PARA AS DISPUTAS RELATIVAS AOS ..•

Nessa tarefa, assume especial destaque a capacidade das partes de atividades portuárias, podendo acarretar red~ção ~e re~eitas por vezes
observar e demonstrar os parâmetros e condutas combinados, e os cus- mais impactante do que os investimentos de mvest1gaçao.
tos a tanto associados. Sob O ponto de vista da operação :conômica, é n~tural que as partes
Na síntese de Alan Schwartz, um fato é observável quando "vale a negociem a distribuição ou o compartilhamento do nsco ~e haver c_on-
pena para as partes conhecê-lo, mas os custos de prová-lo perante ter- dições adversas do subsolo. O draguista pode contingenciar esse nsco
ceiros excedem os ganhos"; por sua vez, um fato é demonstrável"quan- no preço a ser proposto, assumindo-o integralmente, po_r exemplo - ~a-
do ele tanto é observável como vale a pena prová-lo a terceiros"36 • Essa do com que o dono da obra arque com preço potencialmente maior,
zen d d" -
capacidade de observar ou demonstrar os parâmetros negociados é um e acabe pagando mais do que o necessário n~ caso e_as con _içoes se-
dos aspectos principais a guiar a decisão dos agentes sobre quanto pre- rem compatíveis com as previstas. Na falta de mformaçoes preci~as sobre
ferem postergar para o momento ex post- isto é, quais custos deixar de as condições do solo, o mercado também costuma a~otar s~l~çao_ alte:-
incorrer na fase negocial e relegar para a hipótese de a contingência se nativa, tida como mais eficiente, mediante a denommada differing site
materializar no futuro. conditions cfause"38 , pela qual o dono da obra se obriga a revisar o preço
Assim, antes de decidir quanto deixar para o eventual cenário pos- caso se implemente o risco de as condições serem distintas.
terior, os agentes devem avaliar o benefício econômico esperado a partir Ainda assim, definido quem arca com o risco das condições _di;~r-
dos ganhos que lhes seriam assegurados com a opção de não antecipar sas (e até que medida), persiste a dificuldade em mensurar os cnten~s
a definição de certos parâmetros no momento ex ante e não ter a con- de revisão do preço. Numa situação como essa, portanto, as partes nao
tingência materializada37 • Isso não significa que as partes estão impe- devem negociar apenas a distribuição dos riscos, mas ta~bém o detalha-
didas de contratar quando não lhes é possível observar ou demonstrar mento e a distribuição dos custos relativos a eventual disputa. As partes
uma conduta; mas essas dificuldades devem ser consideradas no mo- podem optar, por exempl?, em negociar_ detalhadament~ ~ registrar no
mento da contratação, pois fazem parte da equação global da operação texto contratual como deve ser o procedimento para revisao do preço -
negociada. O uso de um exemplo auxilia a perceber como funciona esse quais são os métodos de investigaç~o a posterior~ a_ceitáveis, quem_ deve
gerenciamento. ser O especialista escolhido para verificar as condiçoes_ do so:o, quais ~e-
Imagine-se a contratação de serviços de dragagem para aprofun- vem ser os parâmetros de ajuste de preço etc. Uma discussao a respeito
damento de um porto. Pelas características dessa atividade, o grau de implica tempo e custos de transação ex ante significati_vos. Mas as partes
incerteza sobre as condições do leito marítimo pode variar significati- também podem deslocar esses custos para fase posterior, adotando ape-
vamente, e a maneira mais recomendável para diminuí-la é efetuar son- nas standards genéricos de conduta no instrumento contratual - como o
dagens diretas na área a ser dragada - procedimento que pode se tornar compromisso de que devem efetuar a revisão do preço s~ o subso~o for
economicamente inviável para o dono da obra se levar à interrupção das "razoavelmente mais resistente", por exemplo, para torna-lo condizen-
te com os esforços adicionais incorridos pelo draguista. Nessa hip~tese,
36 SCHWARTZ, Alan. Relational contract in the courts: an analysis of incomplete agreements. as partes poupam custos ex ante, mas, na ausência de ac~rdo anteci~ado
The/ournal o/Legal Studies, Chicago, v. 21, n. 2, jun. 1992, p. 279 (tradução livre). No original, e
com o contexto na íntegra: "There is a standard distinction in ecanomic cantract theory between sobre os parâmetros geológicos, probatórios ou financerros para guia_r o
information thatparties can observeand information that is verifiable bya third party. The distinction procedimento de revisão, os potenciais custos ex post tende_m a ser maio-
is drawn because the casts ofproving to a third party that a particular state ofthe world existed ar a
particularaction was taken can exceed thegains. Forexample, an employersometimes knows whether res, caso o risco de condições diversas se implemente - p01s o escopo da
an employee shirked, but the costs ofproving shirking to an arbitrator ora caurt are relatively high.
As a conseq_uence, when the cantmct prevents dismissal exceptforcause, the employer's beststrategy controvérsia passa a envolver não apenas o esforço adicional efetivo do ~ra-
often 1s to !tm1t d1scharge to egregwusly bad performance but routinely to take shirking into account guista, já que os próprios parâmetros de revisão também devem ser debatidos.
in ~onnectia_n with sa_larY_ or promotion. ln this context, shirking is observable but se/dom verifiable.
Bnefl:Y p~t, mforn:,atwn 1s observable w~en '.tis wort~whileforthe parties to know it, but the costs of
provmg 1t to a th1rd party exceed the gams; mformatton is verifiable when it is bath abservable and
warth proving to autsiders".
37 SCOTT, Robert; TRIANTIS, George. Anticipating litigation in contract design. The Yale Law 8 CHU,Jeffrey M. Oifferingsite conditions: whose riskare they?. The Construction Lmvyer, Chicago,
3
Jaurnal, New Haven, v. 115, n. 4, jan. 2006, p. 824. abr. 2000, p. 5.
VJTOR BUTRUCE - 57
56 - PRINCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL: UMA NOVA SEMÂNTICA PARA AS DISPUTAS RELATIVAS AOS .••

Além disso, ao decidir sobre esses aspectos, os contratantes devem custos de transação ("maximize the incentive bangfor the contracting-cost
considerar as dificuldades a enfrentar caso seja necessário provar a um buck"42 ).
tribunal que as condições enfrentadas foram diferentes das previstas. Por outras palavras: se o propósito dos_ ag~ntes fosse sim~lesmente
Isso porque nesse tipo de atividade, como notam os especialistas, "en- reduzir custos de negociação, a solução sena simples - bastaria rechear
quanto a dragagem prossegue, a evidência de que materiais mais duros, os contratos de termos vagos, alternativa que transfere para o mome~-
mais resistentes etc. estão sendo escavados está, na realidade, ao mesmo to futuro riscos que, se implementados, embutem custos que lhes sao
tempo sendo destruída" 39 • Portanto, é mesmo esperado que a tarefa de inerentes. Mas os agentes podem evitar alguns desses custos ao deta-
produzir prova relativa às exatas condições e características do material lhar certas regras relevantes durante as negociações. Trata-se, portanto,
dragado apresente alguma dificuldade prática, de maneira que o julga- ar alocar os investimentos adequados_ nos momentos •ex ante ou
d e b us C A

dor "terá que ter a mente aberta e considerar que os recursos que estão à ex post conforme os elementos à disposição dos agentes e as circunstan-
disposição do empreiteiro, para efeitos de prova de se estar lidando com cias de cada contratação.
diferentes materiais, podem ser muito limitados"4º. Portanto, no plano ideal, e diante do que expõe a teoria econômi-
Por esse exemplo, vê-se que o impacto da incerteza sobre determi- ca os agentes tendem a investir em custos de transação de modo a que
nada operação exige um conjunto de escolhas: quem deve arcar com o 0
'esultado da soma entre os custos de negociação e os custos esperados
r implementar o contrato seja inferior ao bene f'ic10
para · obti.do com os
risco das condições adversas, qual procedimento deve ser aceitável para
conduzir a revisão, quem tem o ônus de provar as condições adversas e incentivos produzidos pela contratação, a ponto de reforçar a segurança
43
quais são os recursos materiais disponíveis para fazer essa prova. jurídica e promover a eficiência da operação • •

Diante desse quadro, fruto da observação empírica, a teona do de-


2.4. Ü PRIMEIRO AXIOMA DA TEORIA DO DESIGN CONTRATUAL:
sign contratual extrai uma espécie de primei_ro axioma: o d~ que os agen-
OS AGENTES TENDEM A BUSCAR A MELHOR MANEIRA DE RESOLVER
t eS "são motivados a selecionar aqueles mecanismos contratuais que
~A tendem a
.
SEUS PROBLEMAS AO MENOR CUSTO atingir os seus objetivos da melhorforma possível,,ª~ menor custo . _ parti~
À luz desse cenário, a teoria do design contratual destaca como as desse axioma, os estudiosos notam como a praxis das contrataçoes em
estruturas adotadas pelos redatores no grau de detalhamento ou na con- presariais adota um método para efetuar o design contratual. ,
catenação dos diferentes mecanismos contratuais representam escolhas Talvez não haja elementos suficientes para apontar se esse meto~o
sobre efetuar ou postergar custos de transação - por outras palavras, es- é compreendido de modo estruturado pelos praxistas, mas a observaçao
tratégias de gerenciamento dos custos da disputa. empírica permite constatá-lo e descrevê-lo. Se e~~regado de mod~ cons-
Essas escolhas não têm necessariamente o objetivo precípuo de di- ciente ou fruto da intuição da arte da advo~acia, importa menos, o q~~
minuir os custos de negociação, mas de tornar os investimentos em custos importa é perceber que, de fato, esse método existe e pode ser demonstrado •
de transação mais eficientes. A bem dizer, o objetivo dos agentes é selecio- Vide trecho na íntegra: "The objective ofcontracting porfies is to maximizethe incentive bangf_or
42 O
nar a combinação adequada de mecanismos capaz de otimizar os custos their contracting-cost buck. They should incur contracting costs, therefore, os /ong as the resultmg
increase in the sum of (a) the transaction casts of writing the c?ntact and (b! the e~pecte,1 costs of
totais da contratação (considerados os front-end e os back-end transac- enforcementare less than the marginal incentivegain (in motivatmg more effioent r~/Jance) (SCOTT,
tion costs) 41 • Replicando a força de expressão de Robert Scott e George Robert; TRIANTIS, George. lncomplete contracts and the theory of contract design. Case Western
Reserve Law Review, Cleveland, v. 56, n. 1, set./dez. 2_0_05, _P· 1~6). .
Triantis, o propósito é fazer valer ao máximo cada centavo investido em SCOTT, Robert; TRIANTIS, George. Anticipating ht1gat1on m contract design. The Yale Law
43
Journal, New Haven, v. 115, n. 4, jan. 2006, p. 823. . Yí k
KRAUS,Jody; SCOTT, Robert. Contractdesign and thestructure ofcontr~c~ual 1~tent._New _ar
44 Universit LawReview. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p.10~8. No ongmal: ThefirSlaxiom
39 IMBRECHTS, Luc.Aspectos particulares de contratos de dragagem e aterros. ln: SILVA, Leonardo ofour th{ory ofcontract desig? is tha~ con'.rac_ting porfies are mo:,ivated to select those contractmg
Toledo {coord.). Direito e infraestrutura. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 171.
40 IMBRECHTS, Luc.Aspectos particulares de contratos de dragagem e aterros. ln: SILVA, Leonardo mechanisms that will best ach,eve the1r obJectives at the least cost • .
Os limites deste trabalho dificultam o uso reitera;fo de exe~p(os demonstrat1~os. Para ~':1
Toledo {coord.). Direito e infraestrutura. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 171. 45 a rofundamento do tema, com a reprodução de clausulas autenticas re~resen_tat!vas da prax1s
41 KRAUS,Jody; SCOTT, Robert. Contractdesign and thestructure ofcontractual intent. New York b~asileira contemporânea, extraídas de documentos publicamente d1sponive1s, remete-se
University Law Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p. 1031, nota 15.
VITOR BuTRUCE - 59
58 - PRINCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL: UMA NOVA SEMÂNTICA PARA AS DISPUTAS RELA"l_"IVAS AOS •••

preenchido futuramente, com os olhos postos nos objetivos das partes


3, Ü MÉTODO DO DESIGN CONTRATUAL
ao contratar.
Pode-se dizer que o método do design contratual consiste em dois A principal vantagem do uso de regras precisas nos contratos é que,
raci~cínios _complementares no planejamento das operações e na con- quando adotam indicadores de fácil demonstração, tendem a reduzir os
fecçao dos mstrumentos contratuais46 • custos da disputa - pois se retira do julgador a tarefa de selecionar os
? primeirofaciocínio se concentra na definição dos parâmetros para critérios de performance esperados à luz do contrato. Isto é: ao se dedi-
exai:nmar a compatibilidade entre as condutas esperadas e as condutas carem a redigir regra precisa, "as partes estão aumentando seus investi-
r~alizadas, est~tur~ndo-os 1:1ediante cláusulas que mesclam regras pre- mentos em custos de negociação, mas, ao reduzir o escopo dos tribunais
50
cisas ou conceitos mdetermmados 47 • Já o segundo envolve definir se 0 em caso de litígio, a tendência é reduzir os custos da disputa" • Além
erifo_rce7:1~nt das condutas esperadas deve ser promovido por instrumen- disso, imagina-se que os agentes sabem melhor do que os tribunais quais
tos 3undicos de tutela, ou se deve ficar limitado a alternativas informais são seus objetivos e, portanto, eles podem especificar os parâmetros mais
desprovidas de exigibilidade jurídica48 • aptos a criar os incentivos adequados.
3,1. A MESCIA ENTRE REGRAS PRECISAS E CONCEITOS Por sua vez, a desvantagem dessa estrutura normativa é nem sem-
pre ser capaz de capturar na íntegra o objetivo pretendido pelas partes.
INDETERMINADOS
Diante de uma margem ampla de possibilidades, é inevitável que uma
A observação da práxis permite constatar que as escolhas do design cláusula detalhada carregue mais ou menos conteúdo semântico do que
51
contr_atu~ costu11:am ocorrer mediante a mescla entre regras precisas e originariamente se pretendia dizer, "não importa o quão sofi.sticada" .
conceitos indeterminados na descrição dos parâmetros contratuais. Essa é Além disso, ao optar por regras precisas, as partes exploram as informa-
uma tarefa em ?1"ande_ parte conduzida pelos redatores, responsáveis por ções de que têm conhecimento no momento da formação do contrato,
esco1:1er_ os me10s mais adequados para atingir os objetivos dos agentes mas abrem mão das vantagens informacionais que um tribunal pode ter
economicos, ad~tand~ as ferra~entas normativas pertinentes para cada ao analisar a relação já na sua fase de execução.
momento específico, a luz dos diferentes efeitos que tendem a produzir
Por isso, em vez de redigir regras precisas a todo tempo, as partes
no contexto litigioso.
podem adotar conceitos indeterminados para "delegar a um tribunal a
, Qyando redigidas de modo preciso, as regras são contundentes49 • tarefa de completar o contrato ex pos/'52 • De fato, a prática das contrata-
E ~ que se faz, por exemplo, ao descrever em detalhes as qualidades do ções empresariais incorpora o uso de conceitos indeterminados, como
ob3eto da prestação ou ao definir metas numéricas para a performan- obrigações de envidar "melhores esforços", autorizações que não podem
ce esperada. Por sua vez, cláusulas com conceitos indeterminados, ado- ser recusadas "de modo irrazoável" ou cláusulas que atribuem efeitos a
tando standards genéricos, permitem que seu conteúdo semântico seja
50
"With a precise rule, the parties are increasing their investment in front-end transaction costs, but by
reducing the role ofthe court in litigation, back-end enforcementcosts will decline" (KRAUS, Jody;
a BUTRUCE, Vítor:~ design da ruptura dos contratos empresariais de prazo determinado. Tese SCOTT, Robert. Contract design and the structure of contractual intent. New York University
(Doutorado ~m D1re1to Comercial) - Fa~ulda~e de Direito, USP, São Paulo, 2012, passim. Low Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p. 1071).
Faz-se asegu1~um desdobramento a part1rdasmtesedeJody Kraus e Robert Scott: "Sophisticoted KRAUS,Jody; SCOTT, Robert. Contract design and the structure of contractual intent. New York
~ctors engage in ex ~nte determinations oftheir means ofenforcement, choosing whetherenforcement 51
University Law Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p. 1072, nota 184. Na íntegra, e no
ts to_be legal orrelattonal andwhetherlegal enforcementshould relyon rufes ar standards" (Contract original: "Theadvantage ofcontractual rules is thatthe parties themselves knowbetterthon thecourts
design and the structure of contractual intent. New York University Law Review. Nova Iorque v what theirobjectives are and presumablycan specify a proxy that best enhances contractual incentives.
84, n. 4, out. 2009, p. 1026). ' · Moreover, bymaking proofofthe price term trivial, a rule reduces the expected costs ofadjudicotion.
47 KR~US,_Jody; SCO_TT, Robert. Contract design and the structure of contractual intent. New York The chiefdisadvantage ofa rule is that it might not achieve the objective the parties intended. Like a/l
Untversttr Lm~ Re!'lf;W· ~ova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p. 1028-1029. rules, a precise price term, no matterhow sophisticated, is likely to be over- or under-inclusive o vera
48 Ess~s do'.s ~~c10c1nios sao pautados pelas variáveis indicadas no item anterior: (a) 0 interesse e large range ofpossiblefuture circumstances".
a d1sponibil1~ade dos agen~es em investirem custos de transação, (b) a influência da incerteza "Since the parties cannotforesee a/l contingencies, theycan use vague contractterms to delega te to a
sobrde o destino da operaçao e (c) as condições de provar os fatos necessários para exigir as 52
court the task ofcompleting the contract ex post" (KRAUS, Jody; SCOTT, Robert. Contract design
con utas esperadas. and the structure of contractual intent. New York University Law Review. Nova Iorque, v. 84, n.
49 "A precise rui~ is 'noisy"', dizem J~dy Kraus e Robert Scott (Contract design and the structure of 4, out. 2009, p. 1071).
contractual mtent. New York Untversity Law Review. Nova Iorque v 84 n 4 out 2009 ,p.1071.)
, • 1 • , •
VITOR 8UTRUCE - 61
60 - PRJNCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL: UMA NOVA SEMÂNTICA PARA AS DISPUTAS RELATIVAS AOS •••

inexecuções "graves" de obrigações "relevantes". Disposições desse fei- negociar os termos gerais da contratação, as parte~ podem optar por d~-
talhar ao máximo as feições da peça a ser fornecida: seu peso, suas di-
tio tendem a exigir menos esforços de negociação, sendo muitas vezes
mensões, sua composição química, sua resistência, e assim por diante.
o resultado de soluções de compromisso para superação de impasses. O
Ao fazê-lo, incorrem em custos de negociação, pois o fabricante deve se
contrapeso dessa escolha é o fato de que ela aumenta os potenciais cus-
certificar de que é capaz de manter a entrega daquelas peças, com aque-
tos de uma disputa, pois os litigantes passam a ter abertura para intro-
duzir mais elementos probatórios para robustecer as posições jurídicas las propriedades, o que o força a vislumb:ar _os esforços neces~~ios para
fazer frente à demanda e, por consequencia, barganhar posiçoes con-
contrapostas - afinal, é preciso convencer o julgador se um standard im-
tratuais compatíveis com sua capacidade de investimento. A seu turno,
preciso foi ou não observado.
a montadora se encontra no dever de se assegurar de que aquelas peças,
Nesse contexto, como a advocacia empresarial é cunhada pelo senso
com aquelas propriedades, satisfazem suas necessidades para montagem
prático, os redatores mesclam termos vagos e precisos, bem como meca- do seu produto - com o que também deve vislumbrar os esforços neces-
nismos capazes de modular os riscos e os custos da disputa eventual, no sários para absorver aqueles insumos e produzir adequadamente, e tam-
propósito de alcançar contratações pretensamente eficientes53 •
bém barganhar posições contratuais pertinentes a esse cenário.
J.1.1. A ESCOLHA DOS PARÂMETROS CONTRATUAIS ("CHOICE OF PROXY') Mas nada impede que as partes optem por descrição mais genérica,
Ao efetuar essa mescla, os contratantes tendem a procurar um equi- mediante a adoção de critérios indeterminados, pelos quais o fabricante
hôrio entre efetuar investimentos nas tratativas ou postergar custos para se obriga a fornecer peças "compatíveis com o padrão de mercado", de
a fase de implementação do contrato ou de eventual litígio, num geren- "alta qualidade" ou "em padrão não inferior àquelas peças utilizadas pe-
ciamento que busca antever (e, com isso, gerenciar) custos relativos ao los concorrentes da montadora". Essa alternativa envolve menos custos
cumprimento forçado dos contratos por meio do sistema adversaria! de de negociação, pois as partes se abstêm da barganha envolvida no deta-
disputa54 • lhamento do objeto da prestação.
A escolha entre regras precisas ou conceitos indeterminados é par- Note-se que essa escolha vai além da mera fixação de qual é opa-
ticularmente relevante na definição de quais são os critérios qualitativos râmetro em si, pois ela também reflete quem deve ser o definidor desses
ou as questões de fato relevantes que devem servir de parâmetros para parâmetros (o ''proxy chooser' 57 ): as próprias partes, o julgador convoca-
af~rição posterior do objeto contratado ou da conduta exigível para o do para dirimir eventual litígio ou um terceiro independente, sem fim-
ac10namento de um mecanismo contratual - o que os autores denomi- ção jurisdicional58 •
nam de "choice efproxf55 • Veja-se: no exemplo em que as partes detalham as características das
Pense-se, por exemplo, num contrato de fornecimento de peças de peças, são elas - as partes - quem define as balizas: o peso, as dimensões,
um fabricante para uma montadora de equipamentos industriais 56 • Ao a composição química etc. Já ao adotar parâmetros gerais ("padrão de
mercado", "padrão adotado pelos concorrentes"), elas transferem para o
53 A bem dizer, a mescla _en~re termo~ vagos e precisos não é desconhecida da técnica legislativa julgador a tarefa de especificar essas balizas em concreto - julgado~ es~e
de ';1~do_geral. Os propnos estudiosos proponentes da teoria do design contratual assumem
o debito intelectual de sua proposta aos trabafhos daqueles que analisaram as escolhas entre que deve considerar as diferentes visões de parte a parte acerca dos mdi-
regras e standards gerais na produção de leis e regulamentações administrativas (SCOTT Robert· cadores pertinentes durante a instrução probatória59 • Os agentes também
TRIANTIS, ~eorge. Anticipating litigation in contract design. The Yale LawJournal, Ne~ Haven:
v. 115, n. 4, Jan. 2006, p. 820). SCOTT, Robert; TRIANTIS, George. Anticipating litigation in contract design. The Yale Law
54 SCOTT, Robert; TRIANTIS, George. Anticipating litigation in contract design. The Yale Law 57
Journol, New Haven, v. 115, n. 4, jan. 2006, p. 841-844.
Journal, New Haven, v. 115, n. 4, jan. 2006, p. 818. ÉO caso, por exemplo, da indicação de peritos, da fi~ura do terceiro arbitrador ou _da eleição
55 SCOTT, Robert; TRIANTIS, George. Anticipating litigation in contract design. The Yale Law 58 de um dispute board. A respeito, cf. MARIN?, Francisco f'.aul~ De Crescenzo. Ar~1tramento,
Journal, New Haven, v. 115, n. 4, jan. 2006, p. 839. arbitragem e dispute boards: o papel do terc:1ro na determinaçao do preç? em opçao de venda
56 O fornecimento consiste em tipo contratual que, diferentemente das relações episódicas de ações. Revista Brasileira de Arbitragem, Sa? Paulo, an~ XIV, n: 54, abr./Jun. ~0_17. .
de compra e venda_, costuma envolver relação duradoura, muitas vezes firmada por prazo Isso porque a dinâmica do sistema adversa~1al de_s?luçao de d1spu!a em matena em~resanal
dete_rm1_nado, mediante ~ontratos-quadro nos quais os parceiros definem os parãmetros 59 não costuma requerer comprovação cabal e indub1tavel sobre os p~rametros contratuais. ~orno
qua_hta~1~os sobre o m~tenal a serfor_necido, variando se as remessas devem ser efetuadas por sintetiza Cândido Rangel Dinamarca, no Brasil se opera num sistema em que se considera
penod1c1dade determinada ou mediante ordens de compras específicas por demanda.
V1mR BurnucE - 63
62 - PRINCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL: UMA NOVA SEMÂNTICA PARA AS DISPUTAS RELATIVAS AOS •••

Essas escolhas ( como qualquer escolha negocial) trazem efeitos


podem de antemão delegar a um terceiro a incumbência de fixá-las: um naturais. Um deles é que, ao indicar parâmetros precisos, os redatores
perito de confiança de ambas, um laudo de uma instituição respeitada, transmitem para o julgador uma mensagem: a de fixar-lhe uma tarefa es-
63
ou o certificado de uma entidade de classe podem ser previamente defi- pecífica e, por consequência, "restringir a margem de _disc~icionarie~ade"
nidos como suficientes para tanto. Podem ainda apontar uma informa- no caso de disputa. Por sua vez, ao optar por conceitos mdetermmados,
ção independente ou uma meta de desempenho objetiva, não controlada os agentes na prática delegam duas tarefas p_ara_ o julgador: a tarefa ~e
pelas partes, como critério para o acionamento de efeitos contratuais 60 • definir em tese o parâmetro contratual a ser atmgido e a tarefa de definir
Ao longo da redação do instrumento contratual, essas escolhas são em concreto se a ocorrência desse parâmetro foi demonstrada (ou afasta-
64
guiadas pelo grau de informação a que as partes têm acesso - e pelas da) de modo satisfatório pela parte a quem incumbe fazê-lo .
vantagens informacionais de uma parte perante a outra - no momento Assim, "se o parâmetro é determinado pelo con:rato, as tartes in-
da contratação, em comparação com as informações que se imaginam correm em custos de negociação flront-end (transactzon) costs] ; por sua
disponíveis no futuro, seja às partes ou a terceiros, diante de uma con- vez, "se as partes acordam no uso de um termo vago (um standard), elas
tingência materializada61 • aceitam incorrer em custos que se esperam mais altos para o eriforcement,
65
J.1.2. ÜS MOTIVOS E 05 EFEITOS DA ESCOLHA ENTRE REGRAS PRECISAS OU em contrapartida a custos de negociação mais baixos" •
CONCEITOS INDETERMINADOS: AS TAREFAS DELEGADAS AO JULGADOR Logo, quando se opta pelo uso de conceitos indeter1:1-inados, os
custos da disputa tendem a ser maiores não só pela necessidade de se
Do que se observa da práxis, pode-se dizer que os agentes tendem
efetuar a produção probatória, mas porq~e o p_=-óprio esc~po do debat:
a escolher cláusulas com regras precisas quando acreditam que é pos-
adversarial aumenta, agregando-lhe uma seleçao [de parametros] que e
sível (ou importante) confiar nas informações que têm à disposição no 66
geralmente considerada como uma questão de direito para o julgador" •
momento da formação do contrato para se protegerem contra os efeitos
negativos de contingências futuras; de outra parte, eles tendem a recor- Isto é: diante de instrumento no qual a revisão do preço de uma
rer a conceitos indeterminados quando o modo específico de satisfação obra depende de ser encontrado material "razoavelmente ~ais r~si:te~-
da obrigação tende a ser mais discutível, quando o consenso sobre regra te", 0 primeiro passo do julgador é saber qual grau de maior res1stencia
específica é difícil ou quando sua definição depende de fatores que só se deve ser suficiente em tese para atingir esse parâmetro; num segundo mo-
conhecem depois do fechamento do contrato62 • mento, o julgador deve perquirir se esse parâmetro foi atingido no ca:o
concreto. A situação é diversa se o contrato de antemão fixar que a revi-
"cumprido o onus probondi quando a instrução processual houver chegado à demonstração são de preço é cabível se o material encontrado for 15% ~ais re~is~ente
razoável da existência doJato, sem os extremos da exigência de uma certeza absoluta que muito
dificilmente se atingirá". Nesse contexto, os ônus da persuasão e da prova são distribuídos por
do que o analisado para fins de orçamento; espera-se que isso elimme a
regras legais, cujo regime geral não contempla tarifação de provas, e cujo objetivo principal questão jurídica prévia.
é o atingimento do convencimento motivado do julgador - admitidas inclusive variações às
regras legais mediante o que se convencionou denominar distribuição dinâmica do ônus da
prova. Assim, conclui o processualista: "A certeza, em termos absolutos, não é requisito para
julgar. Basta que, segundo o juízo comum do homo medius, a probabilidade seja tão grande structure of contractual intent. New York University Law Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out.
que os riscos de erro se mostrem suportáveis" (Instituições de Direito Processual Civil. São Paulo: 2009, p. 1072). ,F,
Malheiros, 2004. v. Ili, p. 81-82). ''.4 precise rule [... ] restricts the court's discretion more severely and thus reduces ex post en; or~ement
60 Éo que ocorre, por exemplo, na indústria do esporte, em que contratos de patrocínio costumam costs" {KRAUS, Jody; SCOTT, Robert. Contract design and the structure of contractual mtent.
envolver bônus em razão da conquista de títulos coletivos ou de premiações individuais New York Unil'ersity Law Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p. 1071).
concedidas por terceiros. SCOTT, Robert; TRIANTIS, George. Anticipating litigation in contract design. The Yale Law
61 "The parties choose betweenfront-and back-endproxy determination bycomparing the informational Journal, New Haven, v.115, n. 4, jan. 2006, p. 851. .
advontoge the porfies may have at the time of contracting ogainst the hindsight advantoge of SCOTT, Robert; TRIANTIS, George. Anticipating litigatio,~ in contract_ design. The Yale Law}ournal,
determining proxies in laterlitigotion" {SCOTT, Robert; TRIANTIS, George. Anticipating litigation New Haven, v. 115 , n. 4, jan. 2006, p. 838. No original: lf the proxy 1s determmed bycontroct, the
i!1 c~ntract design. The Yole LawJournal, New Haven, v. 115, n. 4, jan. 2006, p. 819). parties incurJront-end (tronsaction) costs. lfth: parties agree to a vague term (sta,?dard), they accept
Ea smtese deJody Kraus e Robert Scott: "ltfol/ows thatporties wil/ choose o precise term when they higher expected back-end (enforcement) costs m return Jar /oiver[ront-end costs •.
believe thattailoring to theirprivote information is more importantthan hedgingogainst the possible 66 SCOTT Robert· TRIANTIS, George. Anticipating litigation m contract design. The Yale Law
negative effects offuture contingencies on contract performance. Alternatively, when contractual }ournal, New H~ven, v. 115, n. 4, jan. 2006, p. 837. No original: ''.4lthoug_h there arefactu?l bas,~s
obligations are highly contingent on the realized state ofthe wor/d and less dependent on the porties' Jorchoosing among proxies, the selection is genera//y regarded as a quest1on oflaivfor the 1udge •
privote informotion, porties wi/1 be more inc/ined to use vogue standards" {Contract design and the
64 - PRINCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL: UMA NOVA SEMÂNTICA PARA AS DISPUTAS RELATIVAS AOS ••• V1TOR BUTRUCE - 65

Todas essas medidas e técnicas redacionais representam, em maior partes :firmado acordo detalhados, cuidadosamente planejados, indican-
ou menor medida, estratégias de antecipação ou postergação dos custos do o que deve acontecer (se, por exemplo, o fornecedor não entregar a
de uma disputa potencial - ou seja, estratégias de gerenciamento dos cus- matéria-prima em tempo), é normal que o departamento de compras
tos de transação. Isto é: os custos de eventual disputa não são elementos do cliente não inicie o diálogo se referindo às cláusulas contratuais, bus-
estranhos a um contrato; a bem dizer, "os custos de litigar são o produto cando solução para o problema "aparentemente como se nunca houves-
endógeno das estratégias das partes"67 • se sido celebrado um contrato" 71 •
Nota-se, em especial, que a aceitação de certa margem de riscos
J.2. A ESCOLHA ENTRE ENFORCEMENT MEDIANTE MECANISMOS
nas contratações por vezes decorre da crença dos agentes de que ques-
JURIDICAMENTE EXIGÍVEIS OU MECANISMOS INFORMAIS
tões reputacionais, ou mesmo a intensidade do relacionamento entre os
DESPROVIDOS DE EXIGIBILIDADE JURÍDICA executivos de parte a parte, pode ser suficiente para evitar a eclosão do
As escolhas que corporificam o design não se limitam ao grau de conflito em caso de contingências 72 • O exame da práxis permite visuali-
detalhamento dos parâmetros inseridos no texto contratual. Elas tam- zar que o processo de negociação entre empresas costuma envolver, em
bém envolvem saber se o enfarcement das condutas esperadas deve ocorrer certas doses, algumas escolhas por mecanismos de enfarcement infor-
mediante instrumentos juridicamente exigíveis ou se deve :ficar limitado mais, sem exigibilidade jurídica. Um exemplo ajusta a ilustrar a hipótese.
a alternativas informais desprovidas dessa exigibilidade. Imagine-se que a siderúrgica Alfa Siderurgia esteja em negociações
A análise da atividade empresarial indica que o grau de complexi- para celebrar contrato para adquirir insumos da Beta Mineração, uma
dade das operações - e as inconveniências de se recorrer à via litigiosa - mineradora. Adicione-se ao contexto das negociações a necessidade ur-
por vezes fazem com que os agentes busquem resolver suas divergências gente de a Alfa Siderurgia começar a receber esses insumos, por estar
sem o recurso a instrumentos jurídicos contenciosos. Afinal, a observân- obrigada a fornecer chapas de aço para sua principal cliente, Delta Peças,
cia da realidade mostra que grande parte das controvérsias se resolvefora uma fabricante de peças industriais. Acrescente-se ao exemplo, contudo,
dos tribunais, mediante mecanismos que independem da tutela judicial a circunstância de a Beta Mineração ser uma joint venture societária sob
ou arbitral - aspecto negligenciado pela doutrina jurídica tradicional68 controle compartilhado entre o grupo nacional Beta e o grupo estran-
e que a teoria econômica traz à tona69 • geiro Gama - e que, por força dos acordos societários entre os grupos,
A bem dizer, disputas são frequentemente resolvidas no ambiente qualquer contrato de fornecimento a ser :firmado pela Beta Mineração
corporativo sem qualquer apoio nos contratos escritos ou nos mecanis- deve ser previamente aprovado pelo grupo Gama. Suponha-se ainda que
mos e sanções neles previstos. Diante de alguma dissonância em relações o grupo Gama tenha dúvidas sobre a pertinência de a Beta Mineração
empresariais, há uma espécie de "hesitação em falar de direitos contra- celebrar esse contrato, por divergências sobre a adequação do preço ne-
tuais ou ameaçar processar [nas suas] negociações" 70 • Mesmo tendo as gociado, e que não esteja disposto a aprovar a contratação dentro da ur-
gência esperada pela Alfa Siderurgia. Por fim, adote-se a premissa de
67 · SCOTT, Robert; TRIANTIS, George. lncomplete contracts and the theory of contract design.
Case Western Reserve Law Review, Cleveland, v. 56, n. 1, set./dez. 2005, p. 198. No original:"[...] que os executivos da Beta Mineração consideram essencial o fechamen-
although the cost ofenforcement is an importantfoctorin contract design, economic contract theory
treats it as exogenous. But, infoct, litigotion costs ore the endogenous praduct ofthe strategies ofthe 71 MACAULAY, Stewart. Non-contractual relations in business: a preliminary study. Americon
porfies within the rufes imposed by the laws ofevidence and civil procedure". Sociologico!Review, v. 28, n.1, fev./1963, p. 56. Eis o trecho na íntegra, e no seu contexto: "Disputes
68 Trata-se da advertência acerca do equívoco de se imaginar um centralismo jurídico que exija orefrequently settled without reference to the contract or potential oractual legal sanctions. There is
que as disputas sejam sempre resolvidas mediante instrumentos juridicamente exigíveis. o hesitancy to speak oflegal rights or to threoten to sue in these negotiations. Even where the porties
A expressão e o diagnóstico - são de Marc Galanter, em texto influente, seguidas vezes have o detailed ond corefully plonned ogreement which indicotes what is to happen if, soy, the seller
reproduzido pelos estudiosos da Nova Economia Institucional e do acesso à justiça (Justice foils to deliveron time, often they will never refer to the ogreement but will negotiate o solution when
in many rooms: court, priva te ordering, and indigenous law. The}ournol ofLegal Pluralism ond the prab!em o rises opporently os ifthere hod never been ony original contract".
Unofficial Low, v. 13, n. 19, 1981, p. 1-47). 72 Robert Scott chega a designar contratos em que disposições com esse perfil tomam maior
69 WILLIAMSON, Oliver. The economic institutions of copitolism: firms, markets and relational proporção como "selfenforcing agreements" - isto é, contratos quase autoexecutáveis, cuja
contracting. Nova Iorque: The Free Press, 1985, p. 20-21. exigibilidade se lastreia mais em aspectos relacionais, reputacionais e numa expectativa de
70 MACAULAY, Stewart. Non-contractual relations in business: a preliminary study. Americon reciprocidade do que propriamente na sua condição de cumprimento ou observância forçados
Sociologicol Review, v. 28, n. 1, fev./1963, p. 55. A íntegra do trecho original se encontra na nota mediante instrumentos processuais (SCOTT, Robert. A theory of self-enforcing indefinite
seguinte. agreements. Columbia LawReview, Nova Iorque, v.103, n. 7, nov. 2003, p. 1646).
66 - PRINCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL: UMA NOVA SEMÂNTICA PARA AS DISPUTAS RELATIVAS AOS ..•
V1TOR BUTRUCE - 67

to rápido do contrato, por vislumbrarem no estreitamento das relações a convencer o grupo Gama a aprovar o contrato. Sob essas caracterís-
com a Alfa Siderurgia aspecto estratégico não só para a Beta Mineração, ~cas, 0 que se vê é a solução de um problema com base na intensidade
mas para outros empreendimentos do grupo. do relacionamento entre as partes.
Num cenário com esse feitio, os negociadores do potencial contrato Situações como essa não são incomuns; fazem parte do repertório
entre Alfa Siderurgia e Beta Mineração podem contar com diferentes sobre negociações entre empresas (inclusive de grande porte) mundo
estruturas para lidar com a situação. Uma delas, indesejada por ambos afora73 • Elas apenas não são tão visíveis a boa parte dos juristas porque
os blocos, é não fechar o negócio enquanto o grupo Gama não o aprovar nem sempre dão margem a processos - e "é importante lembrar que as
com o que a Alfa Siderurgia passaria a encetar negociações com con- disputas jurídicas somen:e su~Pem_ quando os ~o~~s ~nform,~is de en-
correntes da Beta Mineração, dada a premência do tempo. Outra pos- farcement deixam de func10nar ; assim, os casos ~ud1c~alizados oferece.=11
sibilidade é fumar contrato preliminar, no qual Beta Mineração e Alfa pouco material para demonstrar o poder da rec1proc1dade, da reputaçao
Siderurgia adiantam os pontos essenciais que devem integrar o contra- e de outros mecanismos informais capazes de implementar acordos en-
to de fornecimento, inclusive o preço, ficando a conclusão do contrato tre partes comerciais que nunca chegam a litígio" 74 .
definitivo na dependência de o grupo Gama o aprovar. Uma terceira al- A propósito, segundo Jody Kraus e Robert Scott, estudos experi-
ternativa, entre outras, é fumar contrato de fornecimento sob condição mentais sugerem que esse enfarcement informal, quando bem-sucedi-
de a Beta Mineração obter a aprovação do grupo Gama. do, pode ser mais eficiente do que o juridicamente exigível. Isso porque
No entanto, em razão dos acordos societários fumados entre os gru- basta à parte observar a conduta da contraparte, ao passo que os meca-
pos Beta e Gama, quaisquer das alternativas suscitadas estariam sujeitas nismos de tutela jurídica dependem de se incorrer nos custos da dispu-
a fragilidades - para a Alfa Siderurgia, em razão de nada se garantir ao ta - como despesas com advogados, com a propositura do litígio e com
seu favor e por não receber os insumos no curto prazo; para os executivos a produção da prova necessária para demonstrar o desatendimento dos
da Beta Mineração, pelo risco de se considerar que teriam atuado fora parâmetros contratados 75 • Em especial, o enfarcement informal tende a
dos limites dos seus poderes. Portanto, sopesados os riscos e os benefícios ser mais eficiente porque ele permite que as partes façam promessas do-
dessas possibilidades, é possível que as partes entendam não fazer senti- tadas de credibilidade sobre questões "que podem ser observadas, mas
do investir em custos de transação para avançar nos sentidos cogitados. que não podem ser comprovadas, alcançando com isso objetivos contra-
Mas é possível que os executivos do grupo Beta utilizem sua re- tuais que não podem ser alcançados mediante os mecanismos de tutela
putação e o seu desejo de fumar outras parcerias com a Alfa Siderurgia jurídicà'76 • Eis porque, em certas circunstâncias, arranjos relacionais des-
para convencê-la a não buscar seus insumos com concorrentes da Beta Jody Kraus e Robert Scott apontam, por exemplo, como na liturgia da negociação de operações
73
Mineração e garar;tir que fariam todas as gestões para obter a aprovação de fusões e aquisições é comum se recorrer à reputação dos advogados como instrumento
de solução de problemas, dada a proximidade e a expectativa de respeitabilidade entre
do grupo Gama. E também possível que a diretoria da Alfa Siderurgia os advogados mais proeminentes das grandes bancas (Contract design and the structure
tenha motivos para acreditar nesse compromisso seja pelo histórico of contractual intent. New York University Law Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p.
1056; no original: "[s]ince attorneys in mergerand acquisition deals are drawn from homogeneaus
de negociações anteriores entre as empresas, seja por conhecer a ascen- communities, their respective commitments are credible and they can 'lend' their reputations to
enhance the credibility oftheir principais' commitments").
são e o poder de barganha do controlador do grupo Beta sobre o grupo 74 KRAUS, Jody; SCOTT, Robert. Contract design and the structure of contractual intent. New York
Gama. E é ainda plausível que, como demonstração de confiança, a Beta University Law Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p. 1059, nota 141. No original: "lt is
important to keep in mind thatlegal disputes onlyarise when the informal modes ofenforcement have
Mineração comece a fornecer minério para a Alfa Siderurgia sem con- broken down. Litigated coses, therefore, offer little evidence ofthe power ofreciprocity, reputation,
and other informal mechanisms in enforcing the agreements between commercial porfies that never
trato assinado, havendo apenas um acordo verbal entre os executivos das reach litigation". _
empresas de que o produto fornecido somente deve ser pago uma vez 75 KRAUS,Jody; SCOTT, Robert. Contract design and the structure of contractual intent. New York
University Law Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p. 1056.
fechado o contrato que depende da aprovação da Gama. Uma iniciativa 76 KRAUS,Jody; SCOTT, Robert. Contract design and the structure of contractual intent. New York
dessa natureza pode ser suficiente para permitir que a Alfa Siderurgia University Law Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p. 1056. No original: "Less obvious
but perhaps even more significant is the fact that relational enforcement is better. lt permits porfies
não procure concorrentes da Beta Mineração e que o grupo Beta consi- to make credible promises regarding observable but nonverifiable measures ofperformance, thus
achieving contractual objectives that may not be possible with legal enforcement".
68 - PRINCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL: UMA NOVA SEMÂNTICA PARA AS DISPUTAS RELATIVAS AOS ..• VITOR 8UTRUCE - 69

providos de exigibilidade jurídica "podem fornecer os melhores meios à Assim, sendo informal a solução prevista para o problema, o meio
disposição para regular a relação contratual e para gerar o cumprimento de eriforcement deve ser igualmente baseado no relacionamento: a frus-
de compromissos com natureza de promessa juridicamente inexigível" 77 • tração da expectativa da Alfa Siderurgia há de ser considerada na perda
Mas e se não der certo? O que fazer se o grupo Beta não conseguir das possibilidades de novos negócios para o grupo Beta; seu controlador
convencer o grupo Gama a aprovar o contrato de fornecimento? Tendo pode passar a ter reputação de desleal, ou de subordinado a um grupo es-
as partes avançado por meio informal, sem qualquer obrigação juridica- trangeiro, algo que lhe incomodaria, e assim por diante. Há de se com-
mente exigível, quais remédios estariam à disposição da Alfa Siderurgia preender que soluções informais também podem falhar - e que, sendo
para a continuidade do fornecimento? Qyal seria o mecanismo de en- 0 caso, as partes que negociaram alternativa sem tutela jurídica "deve-

farcement desse compromisso feito pelos executivos do grupo Beta? riam aceitar o seu fracasso e não buscar o cumprimento forçado pela via
As respostas podem causar estranheza a alguns: em linha de princí- litigiosa" 81 que evitaram ao negociar.
pio, a teoria do design contratual propõe que nenhum remédio jurídico A partir desse diagnóstico, pode-se dizer que o segundo raciocínio
deve ser cabível, pois nessas circunstâncias as partes optam ex ante por não do método empregado no design contratual envolve saber "quais partes
recorrer a obrigações exigíveis 78 • Se a opção é por uma solução informal, [dos] contratos devem ser juridicamente exigíveis e quais partes devem
então a tutela jurídica forçada "não deve estar disponível como esteio" 79 • ser implementadas com base no relacionamento. Para tanto, [os agen-
tes] seccionam seus contratos mediante componentes que são juridica-
Essa distinção entre obrigações juridicamente exigíveis e obriga-
mente exigíveis e componentes que são juridicamente inexigíveis; estes
ções desprovidas de exigibilidade não é estranha à dogmática. Para além
últimos não são incluídos no documento escrito" 82 • Ao fazê-lo, as partes
da classificação estrutural que diferencia as obrigações entre civis e na-
se expõem ao risco de eventualmente não terem mecanismos juridica-
turais, o fenômeno é descrito por Antonio Junqueira de Azevedo, que
ressalta a ausência de natureza negocial dos acordos de cavalheiros - pois mente exigíveis à disposição no caso de se frustrar expectativa contra-
"[o] 'molde', em que o acordo é versado, é, por escolha das partes, justa- tual protegida somente por mecanismos informais 83 •
mente, um molde não-jurídico" 80 • 3.3. Ü SEGUNDO AXIOMA DA TEORIA DO DESIGN CONTRATUAL:
77 KRAUS,Jody; SCOTT, Robert. Contractdesign and the structure ofcontractual intent. New York AGENTES SOFISTICADOS TENDEM A PREFERIR A APLICAÇÃO
University Law Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p. 1056.
78 Para facilitar a adequação do exemplo, fixa-se a premissa de que os executivos do grupo Beta ORTODOXA DOS MECANISMOS PREVISTOS NOS CONTRATOS
não agiram de modo ilegítimo ao combinar o compromisso informal com os executivos da Alfa
Siderurgia, tendo envidado esforços autênticos para convencer o grupo Gama a concordar com Diante desse quadro, uma conclusão se torna inevitável: para que os
a contratação; afasta-se do exemplo a possibilidade de se estar diante de responsabilidade
pelo rompimento abusivo das trata tivas. agentes possam adotar as escolhas de investimento em custos de tran-
79 KRAUS,Jody; SCOTT, Robert. Contract design and the structure of contractual intent. New York sação que consideram mais eficientes, é preciso que suas opções sejam
University Law Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p. 1059. No original, e no contexto: "As
longas the porfies understaadthat[a] condition was to be enforced informally, then legal enforcement respeitadas no caso de o litígio antevisto se tornar realidade ao longo da
should not be available as a backstop".
80 Vale reproduzir a íntegra do que diz Antonio Junqueira de Azevedo sobre a qualificação dos execução do contrato. Do contrário, não faz sentido investir em cláusu-
acordos de cavalheiros (ou gentlemen's agreements): "Parece claro que não se trata de negócio las detalhadas ou estratégias para acionamento de mecanismos contra-
jurídico. Há, porém, declaração de vontade; há vontade de obter efeitos; mas esse tipo de acordo
não é destinado a produzir diretamente efeitos jurídicos. O 'molde', em que o acordo é versado, é,
por escolha das partes, justamente, um molde não-jurídico. Não há declaração negocial.[ ...] 81 KRAUS, Jody; SCOTT, Robert. Contract design and the structure of contractual intent. New
Os gentlemen's agreements são interessantes do ponto de vista teórico, porque põem graves York University Law Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p. 1059. O trecho é retirado da
dificuldades às definições do negócio jurídico baseadas na vontade. Se a vontade exigida é, seguinte frase, no original: ''Afterall, selfenforcing mechanisms occosionally break down, anel, in
como dizem alguns, a de obter efeitos práticos, as partes querem esses efeitos e assim declaram the event they do, parties who negotiated legally nonenforceable mechanisms should accept their
querer; logo, haveria negócio jurídico. Se a vontade é de obter efeitos jurídicos, tem-se que failure and not seek the legal enforcement they eschewed in the original agreement".
sustentar que o caso é de negócio jurídico em que as partes escolhem, como efeito jurídico, 82 KRAUS, Jody; SCOTT, Robert. Contract design and the structure of contractual intent. New
que o negócio não tenha efeito jurídico (e, então, fica sem explicação por que o fizeram). Um York University Law Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p. 1078. No original: "the porfies
acordo de cavalheiros pode ter efeitos jurídicos indiretos; por exemplo, para interpretação must decide which portions of their agreement are to be legally enforceable and which portions
de um negócio jurídico ou, mesmo, como ato ilícito de prática de concorrência desleal. É, should be enforced relationally. To do this, they partition their agreement into legally enforceable
pois, um ato jurídico em sentido estrito, do tipo declaração de intenção" (Negócio jurídico e and unenforceable components; the latter are not included in the written document".
declaração negocial: noções gerais e formação da declaração negocial. Tese (Titularidade no 83 KRAUS, Jody; SCOTT, Robert. Contract design and the structure of contractual intent. New York
Departamento de Direito Civil)- Faculdade de Direito, USP, São Paulo, 1986, p. 41-42). University Law Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p. 1101.
70 - PRINCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL: UMA NOVA SEMÂNTICA PARA AS DISPUTAS RELATIVAS AOS ••. V1TOR 8UTRUCE - 71

tuais se, uma vez judicializada uma controvérsia, as cláusulas pertinentes Também merece destaque o levantamento realizado por Lisa
podem ser modificadas, limitadas ou afastadas num exercício de discri- Bernstein na década de 90, concentrado em agentes econômicos do se-
cionariedade ampla do julgador. tor de grãos e alimentos, pelo qual se confirmou que os atores desse se-
Para reforçar essa conclusão, os estudiosos do design contratual se tor manejam os métodos de resolver suas disputas conforme mecanismos
apoiam em pesquisas empíricas com o propósito de extrair uma espé- de enforcement juridicamente vinculantes ou baseados nos seus relacio-
cie de segundo axioma da teoria: o de que partes sofisticadas envolvidas namentos87. Percebeu-se que aqueles agentes se encontravam dispostos
em contratos empresariais tendem a preferir regime de aplicação dos a :flexibilizar as regras contratuais no caso de se implementarem contin-
contratos de modo ortodoxo, em linha com as escolhas estratégicas efe- gências indesejadas, mas desde que pudessem contar com a rigidez da-
tuadas no momento da confecção do instrumento, exceto se o próprio quelas regras nos momentos patológicos, na impossibilidade de diálogo,
instrumento apontar em sentido contrário (como é o caso, por exemplo, sem que os julgadores fizessem maiores sindicâncias de mérito a seu res-
da adoção de conceitos indeterminados, que conferem maior discricio- peito ou procurassem recontextualizá-las à luz do comportamento entre
nariedade ao julgador)84 • as partes durante a execução contratual88 •
Diferentes estudos têm demostrado, já há décadas, que empresas Sob essas premissas, pode-se dizer que a realidade empresarial de-
nem sempre lançam mão de mecanismos juridicamente exigíveis para seja poder lidar com dois conjuntos de posturas no caso de surgirem in-
resolver divergências com parceiros quando as contingências se imple- satisfações em determinada operação econômica: primeiro, um conjunto
mentam - e isso mesmo diante de contratos escritos detalhados. Opta-se implícito de regras.flexíveis para que os problemas se resolvam informalmente;
inicialmente por medidas não juridicamente vinculantes, como destacam perante desentendimentos mais sensíveis, não conseguindo as empresas
trabalhos derivados das provocações extraídas mediante estudo empí- solucionarem os problemas mediante diálogo, os contratos são retirados
rico conduzido por Stewart Macaulay, que assim sintetiza: "o contrato dos arquivos e passam a pautar uma nova fase de interlocução, pauta-
muitas vezes cumpre papel importante nos negócios, mas outros fatores da num conjunto de regras expressas juridicamente vinculantes. Com isso,
também são significativos" 85 • mudam também os interlocutores, deixando de ser gerentes de negócios
A esse respeito, Stewart Macaulay aponta que a invocação dos con- e passando a ser seus departamentos jurídicos ou advogados externos.
tratos ou a instalação de procedimento contencioso no mais das vezes
são indesejadas pelas empresas, por todos os incômodos e custos que executivos operacionais, de linha de frente, não terem obtido sucesso à sua própria maneira.
Dos relatos extraídos da sua pesquisa, conduzida há mais de 50 anos, leem-se pérolas que
produzem. Confia-se, de modo geral, que outras esferas sejam capazes se destacam pela contundência, mas que talvez não deixem de ser atuais, como o relato de
e talvez mais adequadas para solucionar questões controvertidas, com empresário que vaticina: "You con settle onydispute ifyou keep the !owyers and accountants ou/ of
it. They just do not understand the give-and-take needed in business" (ibidem, p. 61).
ênfase para aspectos reputacionais, como as perspectivas de manutenção 87 BERNSTEIN, Lisa. Merchant law in a merchantcourt: rethinkingthe Code's search forimmanent
de negócios no futuro e as expectativas de reciprocidade86 • business norms. University afPennsylvonia Law Review, Pensilvânia, v. 144, 1996, p. 1797-1798.
88 BERNSTEIN, Lisa. Merchant law in a merchant court: rethinkingthe Code'ssearch forimmanent
business norms. University ofPennsylvania Low Review, Pensilvânia, v. 144, 1996, p. 1787-1788.
84 A conclusão é de KRAUS,Jody; SCOTT, Robert. Contractdesign and the structure ofcontractual Outra pesquisa, divulgada em 2009 porTheodore Eisenberg e Geoffrey ~iller, se prop_ô: a
intent. New York University Low Review, Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p. 1062 e, na sequência, avaliar como se dava a distribuicão dos estados norte-americanos entre as clausulas de ele1çao
p. 1103. de lei aplicável e de foro nos c~ntratos celebrados por companhias abertas. Analisados mais
85 Refere-se ao seu obrigatório MACAULAY, Stewart. Non-contractual relations in business: a de 2 mil contratos, a contraposição entre os dois estados em que há maior concentração da
preliminary study. Americon Sociologicol Review, v. 28, n. 1, fev./1963, p. 55-67; no original, à atividade econômica chamou a atenção dos estudiosos. Nova Iorque, o primeiro em atividade
p. 67, diz o autor: "Contract, then, often ploys on importont role in business, but otherfoctors ore econômica, era também o destinatário de 46% das cláusulas de escolha de lei e 41% das cláusulas
significont". de eleição de foro. Já a Califórnia, segundo estado com maior atividade econômica, tinha
86 "Businessmen often prefertorelyon 'a man's word'ina briefletter, a handshake, or'common honesty sua lei recepcionada por menos de 8% dos contratos. O estudo ilustra a forte preferência de
and decency' - even when the transaction involves exposure to serious risks" (MACAULAY, Stewart. partes sofisticadas, caso das companhias abertas americanas, pela jurisdição e pelas leis de
Non-contractual relations in business: a preliminary study.American Sociological Review, v. 28, Nova Iorque para reger seus contratos - conhecidas, aquela, pela rigidez com que lida com
n. 1, fev./1963, p. 58). Na realidade de muitas empresas, inclusive, a adoção da via litigiosa e a as oportunidades procedimentais de se produzir prova circunstancial acerca dos contratos; e
entrega da problema para o departamento jurídico e seus consultores externos parece ser o estas, pela pouca margem de abertura para revisão contratual e prestígio ao jogo de barganha
último recurso desejado -e isso não é de hoje. Nas entrevistas que Stewart Macaulay conduziu realizado entre as partes (EISENBERG, Theodore; MILLER, Geoffrey P. The flight to New York:
com os interlocutores jurídicos de empresas instaladas no Wisconsin, todos informaram que an empirical study of choice of law and choice of forum clauses in publicly-held companies'
somente eram chamados a participar do processo de solução de disputas com clientes após os contracts. Cardozo Lmv Review, v. 30, n. 4, mar. 2009, p. 1475-1512).
72 - PRINCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL: UMA NOVA SEMÂNTICA PARA AS DISPUTAS RELATIVAS AOS ••. VnoR BUTRUCE - 73

Não é incomum que a primeira reação das partes seja a busca por Eis o segundo axioma da teoria do design contratual, portanto: par-
soluções de consenso, mediante o agendamento de reuniões e o debate tes integrantes de contratações sofisticadas esperam do julgador o respeito
de alternativas possíveis, sobretudo em operações de longo prazo. Nesse às escolhas dos próprios agentes e o exercício do seu mister no espa-
estágio, a análise do texto contratual assume importância notável, pois ço de discricionariedade que lhe tiver sido conferido pelo instrumento
o cenário de negociação pressupõe conhecer os pontos fortes e as fragi- contratual92 - pois a perspectiva de intervenção do julgador prejudica a
lidades que o agente pode ter que enfrentar no caso de os mecanismos aptidão das partes de escolherem os meios contratuais mais adequados
contratuais serem acionados o que pode envolver a busca pela sua exe- para resolver seus problemas 93 •
cução específica, pela cobrança das indenizações cabíveis, pela sua ruptu-
4. As POTENCIAIS CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DODESIGN
ra ou pela sua revisão forçada, entre outros caminhos possíveis. E nessa
CONTRATUAL PARA A DOGMÁTICA: UMA NOVA SEMÂNTICA
fase é normal que se perceba certo grau de dissonância entre a manei-
ra como a operação contratual foi planejada e como ela foi efetivamente PARA AS DISPUTAS CONTRATUAIS EMPRESARIAIS
executada, o que amplifica o grau de incerteza do diagnóstico jurídico a Assumindo como verdadeiros os axiomas do design contratual e re-
respeito do porvir89 • conhecendo o seu método como uma realidade empírica, é preciso refle-
Não por acaso, aquilo que se designa pré-litígio no jargão é marca- tir sobre como essa contribuição teórica pode repercutir juridicamente
do pela mudança de tom nas comunicações entre as partes. Conversas no campo dos contratos- e, sobretudo, sobre quais podem ser suas con-
telefônicas ou reuniões entre gerentes se substituem por e-mails mais sequências dogmáticas. Propõem-se aqui ao menos duas.
extensos, menções a cláusulas, cartas formais e, finalmente, notificações
4.1. A COMPREENSÃO DOS ELEMENTOS DA INTENÇÃO CONTRATUAL:
extrajudiciais. Essa mudança de tom, perceptível pela advocacia empre-
OS MEIOS ESTRUTURAIS E OS FINS CONTRATUAIS
sarial, sinaliza a preparação das partes para o litígio futuro. Nesse mo-
mento, todo o conjunto de regras combinado ao longo das negociações A primeira contribuição que a teoria do design contratual pode ofe-
passa a ganhar vida90 • recer à dogmática do direito privado brasileiro é auxiliar na identificação
Assim, pode-se dizer que, durante a execução do contrato, as par- dos elementos que integram o conceito de intenção contratual.
tes desejam manter certo nível de cooperação e alinhamento, com vis- Um dos pilares do regime contratual brasileiro é o art.112 do Código
tas a preservar a relação - adotando comportamentos que justificam, por Civil, segundo o qual "[n]as declarações de vontade se atenderá mais à
exemplo, o não-exercício de faculdades previstas no texto contratual, ou intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem''. A
até mesmo certa falta de preocupação em acompanhar o atingimento partir desse texto, pode-se dizer que a cultura jurídica brasileira reconhe-
de marcos ou a observância das pautas definidas no instrumento.Já no ce que o ponto fundamental de atenção nos negócios jurídicos é a pri-
momento patológico, em que a cooperação não tem mais o potencial de mazia da intenção consubstanciada na declaração. Postos em contraposição
solucionar a disputa, os agentes passam a ter o interesse em adotar os o sentido literal e a intenção, esta deve prevalecer em caso de conflito -
mecanismos contratuais conforme documentalmente previstos 91 • não uma "vontade interior, não exteriorizada e, portanto, insuscetível de
ser averiguada de modo minimamente seguro" 94 , e sim a "intenção que
89 O tema é objeto de outro estudo relevante de MACAULAY, Stewart. The real deal and the paper
deal: empirical pictures ofrelationships, complexity and the urge fortransparentsimple rules. encontra apoio na declaração" 95 •
A:fodern Law Review, v. 6, n. 1, jan./2006, p. 44-79.
90 Einteressante notar que o conhecimento da práxis a respeito desse modus operandi por vezes 92 "[ ...] sophisticated commercia/ porfies wou/d[ ... ]prefera regime that strictlyenforcesformal contract
serve como indutor das escolhas tomadas no momento em que se deve decidir sobre investir terms absent an express invitationforjudicial intervention" (KRAUS, Jody; SCOTT, Robert. Contract
no grau de detalhamento da redação contratual - e também no momento de se avaliar ex post design and the structure of contractual intent. New York Unii,ersity Law Rei,iew. Nova Iorque, v.
a medida a tomar. Seja por limitações de tempo, de custos de negociação ou de custos de 84, n. 4, out. 2009, p. 1101).
implementação, por vezes certas matérias são tratadas de modo superficial nos instrumentos 93 KRAUS,Jody; SCOTT, Robert. Contract design and the structure of contractual intent. New York
contratuais, mediante conceitos indeterminados, na esperança dos agentes de que a margem Unii,ersity Law Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p. 1074.
de incerteza futura sobre o seu preenchimento sirva como estímulo à busca pela solução 94 MARINO, Francisco Paulo De Crescenzo. Interpretação do negócio jurídico. São Paulo: Saraiva,
consensual e no consequente desestímulo ao enfrentamento contencioso. 2011, p. 164.
91 BERNSTEIN, Lisa. Merchant law in a merchantcourt: rethinkingthe Code's search forimmanent 95 MARINO, Francisco Paulo De Crescenzo. Interpretação do negócio jurídico. São Paulo: Saraiva,
business norms. Universityof Pennsy/vania Law Review, Pensilvãnia, v.144, 1996, p. 1798. 2011, p. 259.
74- PRINCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL: UMA NOVA SEMÂNTICA PARA AS DISPUTAS RE':"TIVAS AOS ••• V1TOR BurRUCE - 75

Surge, então, a tarefa de compreender em que consiste essa intenção. Antonio Junqueira de Azevedo, é notável: "[s]omente o fim concreto dá
, ul · · "10?-.
0 entendimento das c1aus as negociais
De modo geral, a doutrina brasileira repete o "lugar-comum segundo o
qual o intérprete deve buscar a vontade das partes ou o sentido por elas Pouco se explora, todavia, a composição da intenção contratual, as
efetivamente atribuído ao negócio" 96 • Indo além, Francisco Marino in- mensagens comunicativas que os meios utilizados pelas partes para
dica que essa intenção deve resultar do sentido que o intérprete conclui moldar o negócio transmitem a seu respeito. Dedica-se pouca aten-
tenham as partes "atribuído à declaração negocial, após o exame da li- ção à estrutura do que vem a ser a in_tenção c~nt~atual. Mas a estrutu~a
teralidade da linguagem, do contexto verbal e de todas as circunstâncias da intenção também é relevante, pois, como mdica o mesmo Antonio
relevantes, tendo em vista o ponto de relevância hermenêutica peculiar Junqueira de Azevedo, a vontade que se deve buscar é "a intenção que
ao negócio jurídico em questão" 97 • No campo dos contratos, sobretudo resulta da declaração" 1º3 , que dela se pode extrair. E só se extrai resultado
aqueles de natureza empresarial, diz-se que o ponto de relevância her- de algum objeto a partir da compreensão dos seus elementos integrantes.
menêutica que se fixa a partir do critério prevalecente no art. 112 reside Eis uma relevante contribuição oferecida por Jody Kraus e Robert
na vontade comum das partes 98 • Passa-se a chamá-la intenção contratual,
Scott, portanto, para quem os axiomas da teoria do design contratual
pelo bem da síntese.
permitem notar que a estrutura da intenção contratual contempla dois
Não é raro ver opiniões indicando a necessidade de se atentar para elementos: "os meios estruturais planejados pelas partes e os fins contra-
os fins buscados pelas partes na investigação dessa vontade comum99 tuais. por e1as pretend"d
i os "104 .
entendendo-se como fim "o resultado que, hipoteticamente, o negócio ju- Com base nisso, chama-se a atenção para o fato de que os fins não
rídico atingiria, se todos os efeitos, dele decorrentes, se concretizassem"100 •
são os únicos elementos que compõem a intenção contratual: ela tam-
Esse fim contratual, então, consistiria nos objetivos práticos comparti- bém é formada pelos meios que as partes escolhem para reger a relação
lhados entre as partes, derivados dos efeitos desejados ao celebrarem o
(os "contractual means" 1º5), consistentes no conjunto de mecanismos que
negócio. Pode-se descrevê-lo como um "elemento do conteúdo negocial
adotam como instrumentos para atingir aqueles fins (cláusulas, condições,
global, que tanto pode ser parte do conteúdo expresso, quanto, o que é
direitos, obrigações, ônus etc.) 106 • De modo a contribuir para a constru-
mais frequente, permanecer implícito" 101 • Sua relevância, nas palavras de
ção de uma semântica a respeito do assunto, aqui se designam esses ele-
96 MARINO, Francisco Paulo De Crescenzo. lnterpretaçãa da negócio jurídica. São Paulo: Saraiva,
2011, p. 164, afirmando ser esse lugar-comum "insuficiente", para em seguida reforçar a crítica:
mentos como meios estruturais107 •
"Há que se atentar, todavia, ao fato de que a fórmula da 'vontade comum' dos contratantes
traduz uma simplificação muitas vezes enganosa" (p. 167).
97 MARINO, Francisco Paulo De Crescenzo. lnterpretaçãa do negócio jurídica. São Paulo: Saraiva,
2011, p. 174. 102 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio jurídica e declaração negocial: no~õ~s ge~a!s e
98 Com inspiração em Emílio Betti, Francisco Marino destaca a importância de se fixar o ponto formação da declaração negocial. Tese {Titularidade no Departamento de D1re1to Civil)
de relevância hermenêutica que o intérprete deve buscar para o exercício de seu mister - ou Faculdade de Direito, USP, São Paulo, 1986, p. 225.
seja, uma vez que "somente atitudes exteriormente reconhecíveis no mundo social podem 103 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio jurídica: existência, validade e eficácia. 4ª ed. São
ser objeto de interpretação", e que nem todas essas atitudes são reconhecíveis por qualquer Paulo: Saraiva, 2002, p. 100.
pessoa, o intérprete precisa entender em qual ponto deve fixar a orientação da sua atividade 104 No original, os autores se referem à distinção que efetuaram "between two kinds ofcantractual
interpretativa; e esse ponto varia conforme a estrutura de cada negócio jurídico. Dois exemplos intent: the parties' intended cantractual means and their intended contr?ctual ends" (KRAUS'. Jody;
ajudam a iluminar o comentário: nos testamentos, o objeto de atenção do intérprete deve SCOTT, Robert. Contract design and the structure of contractual mtent. New York Unwers1ty
ser a vontade do testador; já nos contratos bilaterais, como regra, especialmente quando LawReview. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p.1070). .
formados mediante processo de negociação intensa, não se pode apontar um declarante em 105 KRAUS,Jody; SCOTT, Robert. Contractdesign and the structure of contractual mtent. New York
detrimento do outro como referência para o intérprete, de modo que o ponto de relevância University Law Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p. 1026. .
hermenêutica deve ser a intenção comum declarada, demonstrável à luz do conjunto de 106 KRAUS, Jody; SCOTT, Robert. Contract design and the structure of contractual mtent. New
circunstâncias envolvidas na sua produção. Sobre o item, cf. MARINO, Francisco Paulo De York University Law Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p. 1101; na íntegra: "Contractual
Crescenzo. Interpretação do negócio jurídica. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 144-145. means are the mechanisms by which cammercial porfies create cantracts designed to best achieve
99 Por todos, veja-se MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratada de Direito Privado. São their intended ends".
Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, t. XXXVIII, p. 181. 107 Opta-se pela expressão "meios estruturais" como modo de evitar confusão terminológica com
100 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio jurídica e declaração negocial: noções gerais e o conceito de meios interpretativos, que são os recursos à disposição do intérprete para conduzir
formação da declaração negocial. Tese (Titularidade no Departamento de Direito Civil) - sua tarefa; Francisco Marino esclarece que "[o]s meios para a interpretação da declaração
Faculdade de Direito, USP, São Paulo, 1986, p. 107. negocial ou das declarações negociais co~stitu_tivas do ne~ócio jurídico s~o: sentid,o li_te~a,\
101 MARINO, Francisco Paulo De Crescenzo. Interpretação do negócio jurídica. São Paulo: Saraiva, da linguagem, contexto verbal e contexto s1tuac10nal (tambem chamado de c1rcunstanc1as )
2011, p. 119. (Interpretação do negócio jurídica. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 102).
76 - PRINCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL: UMA NOVA SEMÂNTICA PARA AS DISPUTAS R~LATIVAS AOS •.• VITOR 8UTRUCE - 77

4.2. As EXPECTATIVAS DE CONSTRIÇÃO DO ESPAÇO DE foi demonstrado no caso concreto, o que consiste numa segunda tarefa.
DISCRICIONARIEDADE DO JULGADOR Consequentemente, ao escolherem termos genéricos para regular pos-
sível contingência, as partes transmitem uma espécie de delegação de
Importa notar que os meios estruturais podem traduzir mensagens
discricionariedade ao julgador para preencher o conteúdo contratual ex
relevantes para o intérprete dedicado a analisar as disputas que surgirem
post- economizando e~ custos de negoci~ção e tendencialmen:e au-
no contexto de uma operação econômica.
mentando os custos da disputa, mas aproveitando o fato de que o Julga-
Isso porque, como se viu, ao alternar entre regras precisas ou con- dor pode ter informações que não estav51m disponí~eis para as partes ;1º
ceitos indeterminados, as partes tentam alocar os custos entre a fase ex momento da formação do contrato 109 • E o que se da, por exemplo, alem
ante ou ex post de modo a reduzir os custos de transação totais da opera-- da previsão de obrigações de melhores esforços, (a) q~ando se e~tab:-
ção econômica. De igual modo, quando decidem que todos os aspectos lece que o preço unitário dos elementos da obra consiste em estimati-
dos seus contratos devem ser juridicamente exigíveis, suscetíveis ao en- va, que pode ser alterado se o empreiteiro verificar que _as condições do
forcement litigioso, ou que alguns devem se limitar ao enforcement infor- solo são significativamente diferentes das que lhe foram mformadas pelo
mal, elas assumem riscos e efetuam escolhas por meios estruturais que, contratante; (6) quando se prevê que a operação pode ser encerrada se
na sua ótica, visam a otimizar os custos de contratação.
0 prestador de serviços cometer alguma infração grave, que prejudique
Disso se pode tomar como premissa jurídica que, quando as partes 0 andamento dos trabalhos do contratante; ou (c) quando se ajusta que
decidem regular algum aspecto da operação com base em regras preci- 0 fornecedor somente pode encerrar o contrato de distribuição se de-
sas, elas procuram reduzir a necessidade de o intérprete ter atuação cria- monstrar que o distribuidor não foi capaz de aumentar de modo satisfa-
tiva ou discricionária no momento de tutelar as pretensões de parte a tório o alcance regional do produto.
108
parte : é o que se dá, por exemplo, (a) ao se fixar um preço global para Em casos tais, poupam-se os esforços de delimitar ex ante o que
uma obra, não sujeito a revisão, somente podendo ser atualizado mone- seriam condições significativamente diferentes, infrações graves ou aumen-
tariamente com base em índice de reajuste determinado e periodicida- to satisfatório. E, uma vez instaurado o litígio, os fatos podem ser de tal
de específica; (b) quando se combina que o contrato pode ser extinto, modo evidentes que o preenchimento abstrato e concreto do standard
independentemente da propositura de ação, no caso de o prestador de pelo julgador não lhe exija maiores esforços: basta pensar, no exemplo
serviços sofrer mais de três multas por falhas de performance, em mon- das infrações graves, em situação na qual o operador de uma sonda de
tante superior a 15% do preço, dentro de um período de 180 dias; ou (c) perfuração causa acidente ambiental de grandes proporções por negli-
quando se ajusta que o fornecedor de um produto pode se desligar do gência comprovada.
contrato a qualquer tempo, independentemente de justa causa, e mes-
Essas estratégias, contudo, dependem de um aspecto essencial: é
mo havendo prazo determinado, desde que mediante o pagamento de
preciso que os agentes possam confiar nas estimativas e escolhas que
um valor determinado ao distribuidor.
eles mesmos fazem sobre a probabilidade de certos eventos ocorrerem
De outra parte, quando os agentes acordam sobre certos pontos - independentemente do que venha a se implementar no cenário fu-
com base em conceitos indeterminados, como nas obrigações de envidar turo, e cujas circunstâncias serão conhecidas pelo julgador já diante da
melhores esforços, eventual decisão em cenário litigioso sobre o preen- contingência materializada110.A teoria do design contratual demonstra,
chimento desse parâmetro exige do julgador que, em primeiro plano, se então, que os termos adotados pelas partes costumam consistir em esco-
lhe dê um significado teórico, para verificar em seguida se o parâmetro lhas dos meios estruturais considerados mais adequados para atingir os
108 A co:iclusão é de Jody Kraus e Robert Scott, cuja relevância justifica a transcrição do trecho
original: "when the parties agree to precise terms, such as the obligation to poyforofixed quantity 109 Inspira-se, uma vez mais, nas conclusões de Jody Kraus e Robert Scott (Contract design and
ofgoods ata price determined bya specified índex, the parties reduce the needfora court to interpret the structure of contractual intent. New York University Law Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out.
the terms ofthe contract. Precise terms reduce legal obligations to bright-line rufes that specify the 2009, p. 1030). .
content ofthe obligation ex ante" (Contract design and the structure of contractual intent. New 110 KRAUS,Jody; SCOTT, Robert. Contract design and the structure of contractual mtent. New York
York University Law Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p. 1030). University Low Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p. 1031.
VITOR 8UTRUCE - 79
78 - PRINCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL: UMA NOVA SEMÂNTICA PARA AS DISPUTAS RELATIVAS AOS •••

fins contratuais 111 , e que essas escolhas devem ser respeitadas pelo jul- utivos (e assessores jurídicos) que nem sempre são os mesmos que
exec . d 11s
gador chamado a dirimir os cenários de disputa. mpanham a execução do projeto contrata o .
aco d. ·
Isso porque, como se disse, os agentes incorrem em custos de ne- Assim, além de cumprir a função de instigar as partes_ a iscutir ?
instrumento também serve como meio de comum-
gociação ex ante ao escolherem regras precisas, e esses custos somente programa contratual , O - d
se justificam se os agentes puderem se beneficiar das vantagens infor- - ntre públicos distintos: os negociadores da operaçao, os re atores
caçao e d · · d
macionais de que lançaram mão durante a fase das tratativas, que ten- do documento, os executores do empreendimento, os a m:m~tr_a ores
de negócio - e em caso de disputa, os assessores JUndicos de
dem a lhes economizar custos da disputa, e se puderem implementar as d o mo d elo , • • · d
estratégias que anteviram. No exemplo do preço fixo da obra atrelado a arte a parte e os futuros julgadores. E essa função comu~i~ativa exige o
índice de reajuste determinado, se o tribunal chamado a analisar a ade- fulgador elevado grau de respeito àquelas escolhas estrategicas, por_ta~to.
rência desse índice aos fins contratuais adotar discricionariedade para - E - 0 só O grau de detalhamento dos parâmetros contratuais im-
na , • d
substitui-lo (por entender que não reflete adequadamente a variação dos ara O design. Mesmo aspectos aparentemente acessonos, aque-
port a P . . d- d
les que a teoria jurídica considera eleme~zt~s a_cidentais, te:=1 o. con ao ~
A

custos do setor, por hipótese), essa postura faz com que os custos de ne-
gociação investidos na fase ex ante se tornem inócuos; afinal, ela leva ao roduzir efeitos significativos sobre a dmamica (e a eficien~ia) da ope
mesmo resultado de uma cláusula redigida de modo genérico, que sujeite p - mo um todo. Basta pensar nas diferentes alternativas sobre o
raçao co 1 - · · , ·
o reajuste do preço a índice "que reflita de modo adequado as variações tratamento do dever de indenizar naquela mesma re açao imagmana
dos custos do setor", em vez de condicionar o reajuste a índice determi- suscitada entre fabricante e montadora, e como elas repercutem num
nado. Mas se o objetivo das partes fosse se aproveitar dessa vantagem cenário de disputa. ·
informacional do julgador (sua capacidade de verificar o estado de fato Pois em contratações dessa natureza as partes podem optar por fixar
da execução contratual), elas poderiam ter escolhido a cláusula genérica uma cláusula penal compensatória, liquidando anteci~adamente os danos
e atribuir essa margem de discricionariedade para o momento ex post1 12 • devidos, por exemplo, se O fabricante entregar pe ~s inadequadas; pode~
Essa perspectiva também pressupõe que o julgador resista à ten-
7
fixar uma cláusula penal de caráter não compensatorw, ressalvando a possi
tação de corrigir escolhas equivocadas dos agentes econômicos. Como bilidade de a montadora cobrar os danos suplementares que demonstrar;
bem pontuamJody Kraus e Robert Scott, "o mero fato de partes comer- podem incorporar a regra geral, derivada da!ei, ~e que somente os pre-
ciais moldarem uma regra ex ante ruim não justifica a postura do julgador juízos direta e imediatamente derivados do inadimplemento de:'e1:1 ser
de reescrever uma cláusula precisa ex posl' 113 • É a mesma advertência de indenizados na exata extensão do dano produzido; ou podem limitar a
Paula Forgioni, para quem "o empresário não é considerado pelo sistema responsabilidade do fabricante a um montante de~ermi~ado dos danos
de direito comercial como um tolo irresponsável e o direito não pode ter provados, mediante cláusula limitativa do dever de inde1~tz~r._ .
a função de corrigir os 'erros' eventualmente praticados" 114 • Cada um desses cenários pressupõe uma estrutura JUr:dica di~eren-
Essas constatações são particularmente relevantes ao se rememo- te e gera um conjunto diferente de incentivos e_ desincentivos, ~anando
rar que, ao corporificar os termos de uma operação econômica, o instru- conforme as feições do potencial litígio a se vislumbrar e as mfo~m~-
mento contratual costuma ser negociado e redigido por um conjunto de ções disponíveis no momento da contratação. Por exempl~: a aus~nc:a
de cláusula penal compensatória desloca para a parte ~~e_ti~er mais di-
111 KRAUS,Jody; SCOTT, Robert. Contract design and the structure of contractual intent. New York ficuldade para provar suas posições não só o ?nu~ da iniciativa con~~n-
University Law Review. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p. 1046.
112 KRAUS, Jody; SCOTT, Robert. Contract design and the structure of contractual intent. New York ciosa, mas também O impacto dos efeitos do mad1mplemento. Isto e. se
University LawReview. Nova Iorque, v. 84, n. 4, out. 2009, p. 1073.
113 No odginal, "the mereJoel that commercial parties design an ex ante rufe badly does not justify
judicial action to rewrite a precise contract term ex post" (KRAUS, Jody; SCOTT, Robert. Contract
O mesmo pode ser dito a respeito do planejamento inserido nas mi~dutas-padrão_de ºf e~aç~e~

114
design and the structure of contractual intent. New York University Law Review. Nova Iorque, v.
84, n. 4, out. 2009, p. 1073, nota 185).
FORGIONI, Paula. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação. São Paulo: Revista dos
115 •
d~:rir~~~;~:
1 a escala como nas franquias, guardadas as devi as proporçoes. m o
~~ft~~!:Sn~:c:~~ratual re~ulte substancialme_n_te de rr_iinuta f?rneci da p_orum~
1
funcão vai além de reger aquela relação esp<;c1f1ca'..po1s permite o p aneiam:;a~ão atomizada.
Tribunais, 2015, p. 151. problemas para todo um modelo de negocio, e nao somente para uma op .
V1TOR 8LJTRUCE - 81
80 - PRINCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL: UMA NOVA SEMÂNTICA PARA AS DISPUTAS REI..I\TIVAS AOS •••

for fácil para a montadora provar os prejuízos sofridos em razão das pe- 4.3. PAUTAS PARA O ESTUDO DAS DISPUTAS CONTRATUAIS À LUZ DA

ças defeituosas, ela pode recusar o recebimento do material e suspender TEORIA DO DESIGN CONTRATUAL
os pagamentos, colocando o fabricante na posição de refutar a prova ou Se a teoria do design contratual pode sugerir essas duas consequ-
justificar o inadimplemento; sendo dificil para a montadora demonstrar ências dogmáticas a percepção dos elementos da intençã~ contratual
seus prejuízos, ela arca não somente com o ônus da iniciativa litigiosa (os meios estruturais e os fins) e a compreensão d~ ~ue os me10s estrutu-
para buscar indenização, mas também com o risco de não ser indenizada rais escolhidos incrustam expectativas de constriçao ou alargamento do
adequadamente.Já a fixação de cláusula penal compensatória, a depender espaco de discricionariedade do julgador-, elas podem se espalhar_r~r
do seu valor, pode servir como incentivo ao cumprimento (se o custo do todo, 0 campo jurídico de estudo dos con~atos. Tomando de emprestl-
adimplemento for menor do que a multa a se pagar) ou ao inadimple- mo as palavras de Oliver Williamson, "é rmportante que se estudem as
mento (se o fabricante for capaz de redirecionar os investimentos que · ·
contratações na sua inteireza "116 .
faria para cumprir o contrato para atender outro cliente que lhe permi- Assim, abre-se campo fértil de pesquisa para que aumente a_apro-
ta obter resultado superior ao valor da multa). ximação entre teoria e prática, pautando, entre outros pontos ~e _inves-
Disso se vê que, muito além de um exercício de detalhamento da ti ação a análise sobre como os mecanismos adotados pela pr~s para
vontade das partes, o tratamento de todo o conteúdo contratual repercu- ; mai; variados temas podem representar estratégias de gerenciame1::_to
0
te de modo significativo sobre a dinâmica de uma operação: a depender dos custos da disputa e cumprir papel de alocação dos ônus da persuasao,
dessas escolhas, o design contratual pode ser capaz de ir além de modu-
d a prova e da iniciativa litigiosa
117 : destacam-se regras sobre a forma-
. . d • d" 1 -
lar custos e criar incentivos; ele aloca riscos e atribui ônus, consideran- ção dos contratos, interpretação contratual, os ~feitos Ao i~a imp emen
do-se a maneira como tende a funcionar uma disputa efetiva, podendo to, responsabilidade por danos, alteração de crrcunstan~ias e a rup~~a
inclusive definir quem tende a estar na posição de dar o primeiro passo contratual11s. Alguns pontos específicos podem ser suscitados desde F·
e ter de tomar a iniciativa contenciosa. Se a estrutura das cláusulas traz em si incrustadas dir~tivas sob~e
Assim, extrai-se das contribuições da teoria do design contratu- a intenção das partes, sobretudo o espaço de discricionanedade d~1-
al que, se a intenção contratual se compõe por meios estruturais e fins xado para O intérprete, há de se ente~~er_ que existe_ uma ex~ectativa
contratuais, o grau de discricionariedade do julgador, no momento de da práxis de certa contenção no exerc1c10 mterpretat1vo pelo Julgad~r,
dirimir as controvérsias, deve ser pautado pelas escolhas estratégicas das diretamente relacionado ao grau de precisão dos termos contratuais.
partes em adotar meios estruturais juridicamente exigíveis ou despro- Por consequência, há de se ter cuidado ªº, b~scar elementos e~terno~
vidos dessa exigibilidade, regras precisas ou conceitos indeterminados. e padrões de conduta que não são compat1ve1s,c~m o_te~to do mstru
Por outras palavras: é dever do intérprete respeitar as escolhas es- mbém deve-se evitar maiores exerc1c10s cnat1vos no exame
men to e, ta , - 1
tratégicas firmadas pelas partes ao longo do design contratual, pois re- de regras precisas - sobretudo quando as partes optam por nao ançar
presentam decisões que vão além da mera transposição da vontade em
texto; representam opções sobre o gerenciamento dos custos de transa- 116
WILLIAMSON, Oliver. The economic institutions ojcapita/ism:_fi:ms, markets and r~lation~~

ção; representam - por que não dizer? - a intenção que agentes econômi-
·
~,~~~;~~;!~ N~~: 0
1 e· The Free Press, 1985, p. 35. No ongmal, e no contexto integra:
~~1~v~rnance are linked, porfies to a contract should not expect to hav~ th~,r
cake (/ow pric~ and eat it too (no safeguard). More generally, it is importanthto st~<j[ contra~t~ng m
cos sqftsticados consubstanciam na declaração negocial. Trata-se, portanto, de its entiret . Both the ex ante terms and the manner in which contracts are t ~r~aJ te~ execu e v~ry
uma questão de observância do ponto de relevância hermenêutica fixado with the inJestmentcharacteristics and the associatedgovernance structures w1thm wh1ch transacllon
a partir do critério eleito pelo art. 112 do Código Civil. c:;ed~mbefs~ft;·é uma vez mais de Robert Scott e George Triantis (lncomplete contracts and
117 é
the ~~~:ry of co~tract design. ase Western Reserve Law Review, Cleveland, v. 56, n. 1, set./dez.

~º~J~ pã~~~- ers ectiva do design contratual no estudo dos mecanismos de ruptura do~
contraias emtresa~iais é objeto de trabalho anterior do autor, p~r~ o qual se r~mete ~ov:m~nte.
BUTRUCE Vitor o design da ruptura dos contratos empresana,s de prazo etermma .º· ese
(Doutorado em Direito Comercial)- Faculdade de Direito, USP, São Paulo, 2012,pass,m.
VITOR BUTRUCE - 83
82 - PRINCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL: UMA NOVA SEMÂNTICA PARA AS DISPUTAS RE[flTIVAS AOS .••

mão de termos vagos para guiar situações com potencial contingen- camente exigíveis ou desprovidos dessa exigibilidade, mas não só: uma
te, escolhendo, ao contrário, redigir cláusulas de pressupostos de fácil vez eclodida certa contingência, os agentes também podem optar por
atendimento ou mesmo submetidas a mera observância procedimen- resolvê-la mediante instrumentos informais, baseados no relacionamen-
tal, e ainda mais quando se opta por cláusulas cujo exercício indepen- to, sem que acionar os efeitos contratuais previstos nos instrumentos.
de de motivação 119 • E é habitual que assim o seja: pode não soar cooperativo o fornecedor
que a todo tempo cobra multa moratória de seu principal cliente por
Essa atenção aos meios estruturais como parâmetro de constrição
pequenos atrasos causados por dificuldades de sua equipe de compras;
da discricionariedade do julgador parece especialmente relevante na aná-
tal como é comum o dono da obra relevar dificuldades enfrentadas pelo
lise de três argumentos recorrentes na realidade contenciosa brasileira:
empreiteiro e optar por continuar efetuando pagamentos, mesmo sem
(a) a ocorrência de adimplemento substancial para impedir o manejo dos
que seus eventos autorizadores não tenham sido preenchidos por com-
remédios contra o inadimplemento, (b) a aferição de comportamento con-
pleto, na iniciativa de demonstrar confiança na contraparte e evitar gar-
traditório como circunstância impeditiva de invocar mecanismos contra-
galos no fluxo financeiro do empreendimento.
tualmente previstos e (c) a limitação ao exercício de certos mecanismos
como instrumento de pressão econômica por abusividade. Visto sob essa ótica, o não uso de faculdades derivadas dos instru-
mentos contratuais não significa necessariamente seu abandono, mas
. Tem sido comum se deparar com casos em que julgadores se veem
por vezes a escolha de investir em preservar a relação dentro de quadro
diant: d~sses 3:gumentos - todos lastreados na boa-fé - como suporte
de cooperação. Assim, o comportamento tolerante em face de alguns
para 3ustificar intervenção nos efeitos do contrato, por vezes em senti-
inadimplementos contratuais pode não significar tolerância eterna. Os
do contrário ao conteúdo das cláusulas. E a aplicação desmedida desses
interesses contratuais e econômicos podem se alterar, como pode a parte
argumentos pode por em risco a utilidade do design contratual e a sua
tolerante perder a confiança no parceiro comercial após reiteradas faltas.
capacidade de alocar custos de modo eficiente.
Dito isso, deve-se avaliar com parcimônia o risco de, nos contratos em-
A considerar os axiomas que embasam a teoria do design contra- presariais, adotar-se perspectiva pela qual a tolerância para cooperação
tual, ~ode-se cogitar que o exame do interesse do credor para aferição possa resultar no dever de tolerar outros inadimplementos futuros - o
do ad1mplemento substancial deva envolver o respeito à escolha estra- que traria a mecanismos de enforcement informal carga vinculante inde-
~égica de que participou ao adotar os meios estruturais plasmados no sejada. Isso há de repercutir na aplicação dos institutos derivados da te-
instrumento. Qier-se com isso dizer que parece recomendável evitar a oria da proibição do comportamento contraditório (venire contrafactum
aplicação desmedida da teoria do adimplemento substancial, ao menos proprium, suppressio, surrectio).
em linha de princípio, naquelas situações em que as partes têm o cuida-
Todavia, é interessante notar que a teoria do design contratual não
do de metrificar em detalhes os parâmetros de performance durante a
propõe o apego cego às escolhas estratégicas do momento ex ante, tam-
fase negocial (a "choice ofproxy"). Por sua vez, parece haver espaço maior
pouco advoga que se impeça qualquer espécie de controle substancial dos
para atuação discricionária (e o correspondente exame da substância do
atos praticados por agentes sofisticados em relações empresariais. Não
~um?rimento imperfeito) naquelas situações em que a obrigação cujo
se deseja, afinal, que mecanismos previstos com os olhos postos em con-
inadimplemento se invoca está lastreada em cláusula com conceitos in-
ferir segurança e previsibilidade sejam adotados para a prática de com-
determinados, recorrendo a standards como "descumprimento relevan-
portamento desleal. Assim é que RoNALD G1LSON, CHARLES SABEL e
te", "obrigação material", "infração grave" ou afins.
RoBERT ScoTT esclarecem que, a bem dizer, o design contratual tem
Além disso, um dos raciocínios em que se baseia o design contra- dois propósitos: (a) fornecer instruções claras para os tribunais sobre a
tual é a escolha ex ante a respeito de mecanismos de enfarcement juridi- mescla adequada entre a atividade constrita de observar o atendimento
119 Como sugerem Robert Scott~ George Triantis, "[... ] the courts are wise to interpret the absence de parâmetros precisos, e a discricionariedade mais ampla para preen-
of v~gue stan~ar~s in _commercwl controcts as instructions from the parties to abstain Jrom proxy
chotce and to _ltm,t the,rconstruction to the precise terms ofthe controct" (Anticipating litigation in cher standards genéricos; e (b) "à luz dessas instruções, convocar os tri-
contract design. The Yale Low Journal, New Haven, v. 115, n. 4, jan. 2006, p. 84 4).
84 - PRINCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL: UMA NOVA SEMÂNTICA PARA AS DISPUTAS RELATIVAS AOS ••• V1TOR 8UTRUCE - 85

bunais a manter o seu papel histórico de atuar como supervisor contra fim econômico e social, ou em contrariedade a padrões de conduta so-
comportamentos oportunistas" 12º. cialmente perceptíveis, fazendo-o em cenário de manifesta deslealdade.
Nessa mesma linha, cumpre avaliar de que modo a teoria do de- Também nesse quesito a teoria do design contratual parece trazer
sign contratual pode colaborar para o exame sobre eventual abusivida- subsídios interessantes. Ao apontar para a relevância de se compreender
de do exercício de certos mecanismos contratuais como meio de pressão ue a escolha por certos meios estruturais deve ser considerada como
em relações empresariais - ou, melhor dizendo, sob que parâmetros essa ~dicativo da intenção contratual sobre o grau de discricionariedade do
abusividade deve ser aferida. Trata-se de fenômeno ainda pouco estuda- julgador, a depender· das circunstâncias co?cretas, a previsão de certos
do no Brasil, por alguns designado coação econômica ou economic duress, mecanismos, ainda que gravosos, pode ser mterpretada como a escolha
e que consiste numa vedação à pressão econômica, que se pode descre- de se permitir que o agente possa, de forma legítima, exercer pressã_o so-
ver como a ameaça, feita por uma das partes, de "quebrar o contrato, a bre a contraparte para obter seus interesses - notadamente ao ac10nar
não ser que a outra parte ceda, ou exercer pressão a fim de que a outra mecanismos destinados a promover soluções eficientes para impasses.
parte não tenha alternativa a não ser concordar com uma modificação Ressalte-se, por fim, que as leituras propostas sobre a delimitação
contratual"121 • Esse argumento, inspirado em tese de matriz anglo-ame- dos espaços de constrição do julgador não têm a pretensão de advogar
ricana, pode tanto servir como lastro para pleitear a anulação de negó- que o exercício de mecanismos contratuais. esteja imune de ~ontrole a
cio jurídico por coação como para promover o controle do exercício de posteriori. Sugeri-lo seria não só uma ingenmdade, mas uma leitura con-
direitos, sob a ótica do comportamento abusivo. trária ao texto expresso de diversos dispositivos legais, com destaque para
Sobretudo em relações estabelecidas entre partes sofisticadas, não 0 art. 187 do Código Civil. O que a teoria do design contratual pare-
chega a ser incomum, vez ou outra, certo grau de combatividade nas es- ce propor, em síntese, é assumir as premissas de que (a) os pressupostos
tratégias negociais. Conforme anota JumTH MARTINs-CosTA, "entre para exercer os mecanismos contratuais devem ser aqueles contratual-
os 'grandes contratantes' é a própria economia que se serve de meios de mente previstos, à luz dos procedimentos ajustados p~a t_a~to, a_serem
pressão sobre o devedor" 122 • Desse modo, a licitude do exercício de cada avaliados com respeito aos espaços delimitados de discnc10nariedade
disposição contratual deve ser apreciada tendo em vista "o tipo de rela- que a intenção contratual delega ao intérpret~; e_ que (~) _º int~rp~e:e
ção obrigacional na qual inserida, a qualidade dos sujeitos envolvidos e deve evitar raciocínios que resultem em conferir vinculatividade Jundi-
a fanção que aífor concretamente chamada a desempenha/' 123 • O ponto a se ca a comportamentos praticados pelo agent~ e~quanto p~ocura m~nt~r
fixar, em linha com o art. 187 do Código Civil, é saber se, em cada caso sua relação com a contraparte, o que pode dilmr o conteudo e prejudi-
concreto, ao disparar determinado mecanismo, o agente o faz de modo car o exercício dos mecanismos pertinentes quando o diálogo entre as
disfuncional, excedendo manifestamente os limites impostos pelo seu partes não for mais possível ou desejável.
120 GILSON, RonaldJ.; SABEL, Charles F.; SCOTT, Robert. Textandcontext: contractinterpretation
as contract design. Comell Law Review, vol. 100, 2014, p. 55.
5. CONCLUSÃO
121 MEDINA,José Miguel Garcia. Coação econômica. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 902, dez. Inspirado nas contribuições da teoria do design contratual, o esfor-
2010., versão eletrônica, p. 8. Também sobre o assunto, FRANTZ, Laura Coradini. Possibilidade
de aplicação do economic duress no Direito brasileiro. Tese (Doutorado em Direito Privado) - ço empreendido neste trabalho procura demonstrar aspecto nem sempre
Faculdade de Direito, UFRGS, Porto Alegre, 2012, passim.
122 MARTINS-COSTA, Judith. Do inadimplemento das obrigações. ln: TEIXEIRA, Sálvio de destacado pelo discurso jurídico brasileiro: a existência de men~sa~ens
Figueiredo (coord.). Comentários ao novo Cádigo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. V. t. li, incorporadas nos meios estruturais adotados por agentes :c~n?micos
p.420-421. Esses comentários foram redigidos pela professora gaúcha à luz do regime jurídico
da cláusula penal, mas parecem aplicáveis ao que aqui se analisa. A autora ainda conclui: "[o] sofisticados ao moldarem, sob a batuta dos seus assessores Jundicos, os
'fazer pressão', no entanto, está sujeito aos limites da licitude, não se admitindo, numa ordem instrumentos que corporificam contratos empresariais complexos.
econômica normativamente regulada, que o poderio econômico prevaleça sem freios, a
ponto de se concluir que a 'natureza do mercado' seja não apenas dominante, mas, por igual, Essas mensagens (que se direcionam, sobretudo, aos intérpretes
absolutamente determinante" (p. 421).
123 MARTINS-COSTA, Judith. Do inadimplemento das obrigações. ln: TEIXEIRA, Sálvio de chamados a analisar os conflitos que possam surgir na execução dessas
Figueiredo (coord.). Comentários ao novo Cádigo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. V. t. li,
p. 420-421. operações) derivam de um conjunto de escolhas efetuadas para moldar
86 - PRINCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL: UMA NOVA SEMÂNTICA PARA AS DISPUTAS REJ.A_TIVAS AOS ••. V1TOR 8UTRUCE - 87

os contratos de maneira funcional, adotando-se meios estruturais que pectiva para preencher o conteúdo semântico do_ c~ncei~o. de intenção
visam a atender aos objetivos e necessidades dos agentes, o que pressu- consubstanciada na declaração que o art. 112 do Cod1go Civil fixa como
põe antever cenários de disputas e traçar alternativas de modo estratégi- principal critério interpretativo dos negócios jurídicos.
co, com os propósitos de tornar os investimentos em custos de transação
Também com apoio na teoria do design contratual, pode-se obser-
mais eficientes e evitar comportamentos oportunistas - conjunto de es-
var que, quando as partes decidem regular algum aspecto da operação
colhas esse que corporifica o design contratual.
com base em regras precisas, elas procuram reduzir a necessidade de o
Pode-se sintetizar, então, que a teoria do design contratual propõe intérprete ter atuação criativa ou discricionária quando chamado a tu-
duas espécies de axiomas: (a) os agentes econômicos são motivados a telar suas pretensões; quando acordam certos pontos com base em con-
selecionar os mecanismos contratuais que tendem a atingir seus objeti- ceitos indeterminados, a seu turno, as partes transmitem uma espécie de
vos da melhor forma possível, ao menor custo; e (b) partes sofisticadas, delegação de discricionariedade ao julgador para preencher o conteúdo
em contratações complexas, tendem a preferir que os contratos estejam contratual. A teoria do design contratual demonstra, então, que os ter-
sujeitos a um regime de julgamento que aplique o direito positivo de mos adotados pelas partes costumam consistir em escolhas dos meios
modo ortodoxo, sem maiores espaços de discricionariedade para o jul- estruturais considerados mais adequados para atingir os fins contratu-
gador, exceto se elas mesmas - as partes - indicarem em sentido con- ais, e que essas escolhas devem ser respeitadas pelo julgador chamado a
trário no momento da contratação. dirimir os cenários de disputa.
Desses dois axiomas deriva um método, que se desdobra em dois Em síntese, "a questão crucial da teoria do design contratual", con-
raciocínios: (a) definir se os parâmetros para o exame de compatibilidade forme proposta por Robert Scott e George Triantis, consiste em saber
entre as condutas esperadas e as condutas realizadas devem se estruturar qual é o grau de discricionariedade que se deve deixar para o momento
mediante cláusulas contendo regras precisas ou conceitos indetermina- futuro 124 • Em última análise, a pergunta suscita o desafio de definir como
dos, alternando entre escolhas em investir em custos de negociação ex lidar com o inevitável espaço de intervenção do julgador nos contratos
ante para alguns aspectos (os front-end transaction costs) e em postergar - que, nas últimas décadas, se expandiu mediante o recurso aós princí-
os custos para o momento ex post para outros (os back-end enforcement pios contratuais que se consolidaram na cultura jurídica brasileira e às
costs); e (b) definir se o enforcementdas condutas esperadas deve ser pro- cláusulas gerais previstas no Código Civil.
movido por instrumentos juridicamente vinculantes de tutela, ou se deve
Diante desse desafio, a Lei nº 13.874 parece ter feito uma escolha:
ficar limitado a alternativas informais, desprovidas de exigibilidade ju-
eleger um novo princípio para servir como uma espécie de neutraliza-
rídica. Esses raciocínios perpassam todo o conteúdo de cada contrato,
dor dos demais - o princípio da intervenção mínima125 •
inclusive suas dimensões implícitas, e devem guiar o estudo de todas as
manifestações jurídicas do fenômeno contratual: sua formação, sua in- Este trabalho sugere traçar caminho distinto. Sem prejuízo das dis-
terpretação, suas regras sobre responsabilidade civil, a alteração das cir- cussões sobre o modo de aplicação dos princípios e cláusulas gerais às
cunstâncias e sua ruptura. operações empresariais - e sendo necessário atribuir conteúdo normati-
vo ao recém-criado princípio da intervenção mínima-, entende-se que
A teoria do design contratual permite ainda notar que a estrutu-
o momento exige atenção a mais na maneira como a práxis desenvolve
ra da intenção contratual contempla dois elementos: os meios estrutu-
suas estratégias para gerenciamento dos conflitos contratuais.
rais planejados pelas partes e os fins contratuais por elas pretendidos. Os
meios estruturais consistem no conjunto de mecanismos que as partes
adotam como instrumentos para atingir aqueles fins (cláusulas, condi- "How much discretion should be left to the bock-end enforcement process?", perguntam os autores
124
ções, direitos, obrigações, ônus etc.), ao passo que os fins consistem no (SCOTT, Robert; TRIANTIS, George. Anticipating litigation in contract design. The Yale Law
Journal, New Haven, v. 115, n. 4, jan. 2006, p. 66).
resultado que as partes desejam atingir com o negócio mediante a pro- 125 Não deixa de ser curioso notar que se buscou solucionar um problema mediante fonte
dução dos seus efeitos essenciais. Este trabalho sugere adotar essa pers- semelhante à que o criou: diminuir o sentimento de insegurança derivado do uso desmedido
de princípios mediante a criação de um novo princípio.
88 - PRINCÍPIOS DO DESIGN CONTRATUAL: UMA NOVA SEMÂNTICA PARA AS DISPUTAS RELATIVAS AOS •..
GIOVANA BENITTI - 89

Em suma, entende-se que os esforços devem se direcionar ao estu-


do do design dos Amecanism~s _sobre os quais ocorrem os principais em- 111. DEVER DE INFORMAR VERSUS ÔNUS DE
bates contemporaneos na at1v1dade contenciosa empresarial brasileira.
AUTOINFORMAÇÃO NA FASE PRÉ-CONTRATUAL
T~ve_z ~e fe~ceba que uma reforma legislativa, ou mesmo uma revisão
pn~c1p10log1ca, não tendem a ser os caminhos mais propensos a pro- Giovana Benetti1- 2
duzir os resultados mais frutíferos. A reforma necessária acredita-se é
a da postura do intérprete. ' '
INTRODUÇÃO
A entrada em vigor do Código Civil, em 11 de janeiro de 2003,
marcou a passagem de um diploma antes fundado no individualismo
e no formalismo para outro permeado pelo sentido socializante e mais
atento às mutações sociais3• Diferentemente do Código de 1916 - ape-
gado à influência das escolas da Exegese e dos Pandectistas -, o atual
reconhece o papel dos valores éticos e sociais na concreção jurídica, pro-
movendo um "ordenamento constituído por normas abertas, suscetíveis
de permanente atualização" 4 •
Dentre tais normas abertas, Miguel Reale - Presidente da Comissão
Revisora e Elaboradora do Código Civil de 2002 - apontava a boa-fé
como o cerne da diretriz da eticidade, caracterizando-a pela "sincerida-
de e probidade" dos que interagem no mundo jurídico, "em virtude do
que se pode esperar que será cumprido e pactuado sem distorções ou
tergiversações, máxime se dolosas, tendo-se sempre em vista o adimple-
mento do fim visado ou declarado como tal pelas partes"5 • Conectado
ao problema da tensão entre, de um lado, a "sinceridade e a probidade"
e, de outro, as "distorções ou tergiversações" que, por vezes, se verificam
nas relações entre as partes, está o tema do presente ensaio.
O dever de informar (e os seus desdobramentos) ganhou diferen-
tes contornos por ocasião do Código Civil de 2002, pois tal diploma
passou a contemplar a referência à boa-fé objetiva como cláusula ge-
ral, podendo esta ser chamada a atuar em sua função nomogenética6
A autora agradece o honroso convite formulado por Jorge Cesa Ferreira da Silva e Henrique
Barbosa para participar da presente obra. A autora também agradece Matheus Sousa Ramalho
pela leitura prévia, bem como Giordano Loureiro pelas sugestões e pela colaboração com a
complementação da pesquisa.
2 Doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Especialista em Processo Civil pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora Convidada em cursos de Graduação
e Pós-Graduação. Advogada.
3 REALE, Miguel. História da Novo Código Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p.
46.
4 REALE, Miguel. História do Nava Código Civil, cit., p. 46.
s REALE, Miguel. Um artigo-chave do Código Civil. ln: REALE, Miguel. Estudos preliminares do
Código Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 77.
6 MARTINS-COSTA,Judith.A Boa-Fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação. 2ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2018, § 19, p. 238: "[ ... ] em seu papel jurisgênico ou nomogenético, a boa-fé é
90 - ÜEVER DE INFORMAR VERSUS ÔNUS DE AUTOINFORMAÇÃO NA FASE PRÉ-CONTRATUAL GiOVANA BENITTI - 91

como f_?nte de deveres, dentre os quais está justamente o dever de in- planos econômico, social, político e cultural, a ponto de ser denomina-
formar'. Passou-se, assim, de um cenário em que se questionava se ha- da "sociedade da informação" 11- 12 •
via o "dever de falar" quando este não fosse imposto por lei, para outro Apesar de receber a etiqueta de "sociedade da informação", um de
em que se reconhece a boa-fé objetiva como uma das possíveis fontes seus traços característicos é o corriqueiro desnível informativo entre as
ao dever de informar8•
partes, o que se deve a diferentes fatores, tais como a rapidez com que
Neste sentido, Judith Martins-Costa afirma ser "incontroverso surgem inovações tecnológicas, a crescente complexidade entre opera-
º, r~conhecime~to de um padrão comportamental fundado no prin- ções e até mesmo o excesso de informações acessadas ou fornecidas a
cip10 da boa-fe a que estão adstritos todos os negociadores na fase uma das partes. Com efeito, quando se está "hiperinformado", também
formativa de um contrato", o que impõe a observância de deveres in- há dificuldade de discernimento perante a informação recebida, pois se
formativos9. Também se aponta a elasticidade do conceito de boa-fé estará "paradoxalmente desinformado pelo excesso, e não pela ausência'' 13 •
objetiva como a base para a relevância jurídica do dever pré-contra- Neste contexto, é preciso situar o problema do dever de informar na
tual de informação 1º.
fase pré-contratual a fim de identificar (a) se havia desnível informativo
.. Reflexões d?utrinárias como essas e pronunciamentos jurispruden- entre as partes durante as negociações; (b) se havia o dever de informar
c1ais a este respeito marcaram a evolução da temática do dever de infor- de uma parte a outra; (e) se restou preenchido o ônus de autoinformação
mar a partir da alteração legislativa experimentada com o Código Civil a cargo da contraparte; (d) o quê e quanto deveria ser informado; e (e) se
de 2002. Passados quase 18 anos de sua entrada em vigor, pode-se dizer a informação transmitida atendeu à sua finalidade, pois de nada adian-
que º. assunto vem _ocupando posição de destaque no debate jurídico, ta fornecer uma série de dados que levem à desinformação pelo excesso.
especialmente em vista das características da sociedade atual, marcada Para endereçar esses tópicos, o presente ensaio 14 divide-se em duas
por alterações tecnológicas sem precedentes e pelo impacto destas nos partes. Na primeira, serão abordados o conceito e os elementos do dever
de informar, contrastando-o com o dever de conhecer e o ônus de autoin-
formação. Na segunda, serão analisados os limites do dever de informar e
do ônus de autoinformação. Finalmente, serão apresentadas as conclusões.
font: ~e deveres jurídic?s alocados na relação obrigacional independentemente de expressa
prev1sao legal ou negocial".
7 MARTINS-COSTA,Judith.A Boa-Fé no Direito Pri,,ado. cit., § 20, 1, p. 239· § 60 p. i- § 6 11 O tema da 'sociedade da informação' foi objeto do Guia da Organização para a Cooperação
578 e ss. ' ' 4 ' 57 , 3, P· e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 2005, dada sua relevância e atualidade. Segundo
8 o referido Guia, não há dúvida de que as tecnologias da informação e da comunicação pro-
"'.1~R:INS-CO_STA, Judit~. C?s regimes d_o dolo civil no Direto brasileiro: dolo antecedente,
vH_:10 informativo p~rom,ssao e por comissão, dolo acidental e dever de indenizar. Revista dos moveram profundas mudanças econômicas e sociais desde a última década. Ressalta-se que
Tnbunats, vol. 923. Sao Paulo, ano 101, set./2012, p.131. Vide, ainda, Humberto TheodoroJúnior se vive em um período de alterações tecnológicas sem precedentes, tanto em termos de
para quem: da lea:da?e contratual "decorre um recíproco dever de informacão a respeito d~ extensão quanto de velocidade. As transformações derivadas da tecnologia permeiam cada
q~alque~c1rcunsta~c1a relevante_Pª:ª o ne~óci?, ~e forma q~e nenhuma das partes pode reter aspecto da vida - econômico, social, político e cultural. Vide: OECD (2011), OECD Guide to
so para s1ª0 con~ec1ment? de tais c1rcunstanc1as . (Comentarias ao Novo Código Civil. Vol. Ili. Measuring the lnformation Society 2011, OECD Publishing. Disponível em: <http://dx.doi.
Tomo 1. 4 ed. Rio de Janeiro, Forense, 2008, p. 142). org/10.1787/10.1787/9789264113541-en>. Último acesso em: 20.09.2020.
9 "'.1~R:1NS-CO~TA, Judith. Os regimes do dolo civil no Direto brasileiro: dolo antecedente 12 Sobre o tema da informação, vide, ainda, Manuel Castells: a revolução tecnológica atual
"originou-se e difundiu-se, não por acaso, em um período histórico da reestruturação global
vicio 1~for~at1vo por omissã~ e po~ comissão, dolo acidental e dever de indenizar, cit., p. '.
133 do capitalismo, para o qual foi uma ferramenta básica. Portanto, a nova sociedade emergente
Tamb_e~ L~1s Poças r:~salta a ~unçao do~,deveres pré-contratuais de informação decorrentes
desse processo de transformação é capitalista e também informacional, embora apresente va-
do pnnc1p10 _da boa-fe no,~ent1do de que sem~ s~a observância não seria realizável O princípio
riação histórica considerável nos diferentes países, conforme sua história, cultura, instituições
da aut?nom,a da vontade (O deverdedec!aroçao micia! do risco no contrato de seguro. Coimbra:
e relação específica com o capitalismo global e a tecnologia informacional";"[... ] o novo sistema
Almedma, 2 o13, P· :04-205) eJ?sep Llobet I Aguado que afirma ser a boa-fé objetiva o funda- de comunicação transforma radicalmente o espaço e o tempo, as dimensões fundamentais da
mento do dever de informar pre-contratual ([ ...] "la obligación precontractual de información
vida humana.". (A Sociedade em Rede. ln: A Era da Informação. Economia, Sociedade e Cultura.
reposa_s_obre el fundamento que suministra la buena fe objetiva" (E! deberde infomoción en lo
formocw~ de los co~tratos. Madri: Marcial Pons, 1996, p. 40). Vol.1. 5ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 397-39.
10 13 MARTINS-COSTA,Judith. Prefácio a Cachapuz, Maria Cláudia Mércio. Intimidade e vida privada
GRISI, G1_u~epp'.;. Lobb!tgo ~reco~tro,tt~ale di informazione. Nápoles: Jovene Editore, ., p. no Novo Código Civil brasileiro: uma releitura orientada do discurso jurídico. ln: MARTINS-
1990
81._ No_ ongmal: li con~etto el~st1co d1 buona fede -assunto nel suo significato oggettivo _ e COSTA, Judith (Org.). Modelos de Direito Privado. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 41-42
~umd1, a~la base dei r'.conosc,ment? della ril:~anza giuridica dei dovere precontrattuale dÍ 14 Este ensaio corresponde, em parte, ao Capítulo 7 do nosso BENETTI, Giovana. Dolo no Direito
mformaz,one, anche la d ove manch, una spec1f1ca ed esplicita previsione legislativa[...]". Civil: uma análise da omissão de informações. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 219-262.
G10VANA BENETTI - 93
92 - ÜEVER DE INFORMAR VERSUS ÓNUS DE AUTOINFORMAÇÃO NA FASE PRÉ-CONTRATUAL

19
modo informado, atendendo a um interesse de proteção • Não. obstante
Cumprindo com os deveres informativos ao leitor, dois esclareci-
importante papel assumido pelo dever de informar, é necessário ~s~l_a-
mentos fazem-se necessários desde logo: (a) não se discorrerá sobre a 0
recer não se tratar de algo ilimitado nem aplicável sem qualquer cnteno.
violação culposa ou dolosa ao dever de informar pré-contratual nem so-
bre as suas consequências 15; (b) ao longo da exposição, será empregada Precisar qualitativa e quantitativamente as informações efetivam~n~
uma grande variedade de exemplos a fim de ilustrar problemas concre- te disponíveis (e as que poderiam estar disponíveis) às parte_s constitui
tos suscitados pela matéria. Considerando que o ambiente das operações verdadeiro desafio, pois pode haver, de um lado, o dever de mformar a
societárias é marcado por certo desnível informacional16, diversas serão cargo de um contratante, e, de outro, o ônu_s da c?ntrap~rte _de obter as
as alusões a casos envolvendo as tensões entre o comprador e o vende- informações de seu interesse. Cabe, então, mvestigar, primeiramente,,º
dor das participações societárias, sem prejuízo de serem mencionados que se entende por dever de informar e quais são os elementos necessa-
outros tipos de contratos. rios para a sua configuração.
1. ÜEVER DE INFORMAR E ÔNUS DE AUTOINFORMAÇÃO: (1) CONCEITO E ELEMENTOS DO DEVER DE INFORMAR
CONCEITO E ALCANCE "Informação" é definida, em sentido estrito, como a exposição de
20
As partes contratantes são, a princípio, reputadas como iguais, sendo uma situação de fato sobre pessoas, coisas, ou qualquer outr~ r~l~ção •
a regra a de que cada contratante deve buscar as informações por si mes- As principais qualidades da informação são a certeza e a ob3etividade,
mo. Pode, todavia, surgir um desnível elucidativo gerador de desigual- estando ausente a sugestão de conduta futura21 • Já em sentido amplo,
dade entre os contraentes, o que pode levar ao surgimento do dever de abrange o conselho e a recomendação22 , os quais compreendem propos-
23
o :figurante mais bem informado fornecer dados ao menos informado 17 • ta ou sugestão de conduta a ser adotada •
Na fase pré-contratual, a boa-fé cria o dever de colaboração entre A informação difere do conselho e da recomendação ao se restrin-
os potenciais contraentes relativamente a bem informar a contraparte a gir à comunicação de fatos objetivos. Na p_rática, por~m, a dis~inção en-
respeito do conteúdo do contrato 18 • Nessa fase de formação do víncu- tre tais conceitos mostra-se pouco operac10nal, em vista da dificuldade
lo, os deveres informativos servem para que o consentimento se dê de de se estabelecerem os exatos limites de cada um. Assim, costuma-se
empregar o termo informação em sen~ido ampl~, abr~nge~do o c_onse-
lho e a recomendação. Para o que ora importa, e preciso situar a infor-
15 Para um exame aprofundado do tema, em especial acerca do dolo, permite-se remeter a:
BENETTI, Giovana. Dolo no Direito Civil: uma análise da omissão de informações. cit. mação devida na fase pré-contratual.
Enquanto oven~edor~~nhe~e "como ninguém o verdadeiro estado e valor do objeto negocial";
o c_o_mpra~or, nao tera ª. mais das vezes outra informação sobre a empresa que pretende ad-
qui~irsenao aquel~ que circula ~o m~rca?o ou aquela que obteve do próprio vendedor, o qual,
muito ~?mpre;ns1velmente, n~o de1~a_ra decerto de exaltar as respectivas potencialidades e
rentabilidades (ANTUNES, Jose Engrac1a. A Empresa como Objecto de Negócios. "Asset Deals" MARTINS-COSTA,Judith.A Boa:féno Direito Privado. Critérios para a sua Aplicação, cit., P· 5,:19·
versus "Share Deals". Revisto do Ordem dos Advogados, ano 68, vol.11/111, 2008, p. 752-754). 19 SINDE MONTEIRO, Jorge. Responsabilidade por Informações, Conselhos e Recomendaçoes.
17 FRADERA, Vera. Informarou não informar, eis a questão! ln: FRADERA, Vera; MARTINS-COSTA 20
J~dith. ~Orgs.) Estu~os de Dir~ito Privado e Processual Civil. Em homenagem a Clovis do Couto~ Coimbra: Almedina, 1989, p. 15. . _
SILVA, Eva Sónia Moreira da. Da Responsabilidade Pré-Contratual por vwlaçao dos deveres de
S1!v~. Sao ~aul~: Editor~ ~ev1st~ d?s T:ibun_ais, 2014, ~- 236. Em sentido semelhante, para Eva 21
So~1a da Silva, e necessana a ex1stenc1a de interesse digno de proteção, o que ocorre quando Informação, cit., p. 68, _ d -
SIN DE MONTEIRO, Jorge Ferreira. Responsabi/idad: por lnform?ço_es: Conselhos e Recomen açoes,
estiver present:' no caso, a desigu_aldade de informação dos contraentes e a especial necessi- 22
cit., p. 18. Igualmente por esta razão: seria poss~vel,_ em princ1p10, conceder-lhes o mesmo
d~de de pro teça o da par_te _menos informada ou, pelo menos, cognoscível pela parte obrigada
tratamento jurídico, segundo Jorge Sinde Monteiro (idem, p. 172· _
a informar (SILVA, Eva Sorna Moreira da. Da Responsabilidade Pré-Contratual por Violação dos SIN DE MONTEIRO, Jorge Ferreira. Responsabilida~e por 1~.(orr;iaçoe::, Consel~os e Recomen~aç_oes,
Deveres de Informação. Coimbra: Almedina, 2003, p.121-145). 23 cit., p. . Na doutrina francesa, difere-se entre C,~~sed : rense1gn~ment, sen~o este u!t1mo
Segundo Antonio !unqueira d~ A~ev~do, "a norma da boa-fé cria três deveres principais: o 15
considerado como a informação no 'estado bruto ( Devo1r,un_ rense1gnem~~t,_ c e,;t devo1r une
de lealdade, consistente, aqui, principalmente num dever de confidencialidade isto é de information à l'état brut, alors que «le conseil a pourbutd onenter une dec1s1on ). (LEYSSAC,
mant~r o sigilo das informações obtidas, e dois, de colaboração, que são, basica~ente, ~ de e. Lucas. L'obligation de renseignements dans les contrats. ln: LASSOUARN, Yvon ; LE~~RD,
bem informar o candidato a contratante sobre o conteúdo do contrato e o de não abusar ou Paul (Eds.). L'information en droit privé. Paris: LGD~, 1978, p. 306). Contudo, a exp_ressao r;en_-
até_ mesmo, de se pr_e~cupar com a outra parte (dever de proteção)[...]". (Responsabilidad~ seignement' também é utilizada em sentido genérico para abranger outras modalidades ( ,:i1s
~re-contr_atual no Cod1go ~e I?efesa do Consumidor: estudo comparativo com a responsabi- en garde', 'cansei/', etc.) (SINDE MONTEIRO, Jorge Fer~eira. Responsabilidade por lnformaçoes,
lidade pre-contratual no Direito Comum. ln: Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo:
Conselhos e Recomendações, cit., p. 17, notas de rodape 17 e 18).
Saraiva, 2004, p. 173-183).
GIOVANA 8ENITTI - 95

94 - ÜEVER DE INFORMAR VERSUS ÔNUS DE AUTOINFORMAÇÃO NA FASE PRÉ-CONTRATUAL

seguro em que, ao interessado na obtenção de cobertura para seu auto-


Diferentemente da fase em que se tem o móvel, se impõe o dever de informar, com veracidade, as circunstâncias
deveres de prestação24 (dar, f:azer e nao
_ f:azer) oscontrato
quais e ddele emanamd relevantes para o cálculo do prêmio no momento da cotação do seguro,
pe- 1oddevedor,
, enseiam
J
responsabili"d d ' 'se escumpri
a e contratual2s na f: d f; os como o ano de fabricação do veículo, a idade e o perfil dos condutores.
çao o vmculo não há relação de crédito - '. . ase e orma-
q~e nao sig~rfica ~ ausência
Tendo em vista que o dever de informar pré-contratual volta-se a
de deveres impostos aos negociad Al?
~:~~;~:e~~n~ngo::~~::~;der;t:~te::~,~ ;:t::~:;;,:mt~~~'.
erem se aproximado para fu , 1
possibilitar o consentimento informado, sendo os bens jurídicos
32
tegidos a higidez da manifestação negocial e a con:fiança , costuma-se
apontar dois elementos para a sua configuração: um material e um moral.
pro-

contrato, haveria deveres especiais de font 1 ~ar poss1ve


p_reservação da integridade da esfera jurílc:g;1_vol~1os a proteção,_à O elemento material seria um fato pertinente, suscetível de causar, no
c1pantes da negociação26 • rrai·s d everes especiais visa
a cow1ança credor da informação, a reação de que, se tivesse conhecimento 33 daquele
1.; ' 1dosd parti-
.
resses de proteção sendo m a tute a e mte- dado específico, teria adotado um comportamento diferente . O moral,
proteção27_2s Ele ' 'codnsequentemente, denominados deveres de por vezes de difícil definição, consistiria no conhecimento ou na ignorân-
. s compreen em por exempl0 0 . ilO
dos obtidos na negociaça~o· .nfi' _ , sig a respeito de da- cia ilegítima do devedor sobre a importância da informação e da relevân- 34
' a 1 ormaçao de dados d
contradição desleal29_ corretos; ave ação à cia que esta apresenta para a contraparte (i.e., o credor da informação) •
Cumpre, assim, detalhar essas noções.
O dever de informar3º pré-contratual seria ali:fi
como dever de proteção31 . Pode-s e pensar na hipotese
. 9:u cado, portanto, O elemento material expresso no fato pertinente compreende o "fato
do contrato de
relaci.onado ao objeto das obrigações derivadas do contrato, útil para o
35
24 "Os dev_er;s de prestação" são, segundo Judith M . "
prestaçao e só_se_manifestam diante de relacão d art,_ns_-Costa, correlativos a interesses de contratante e cuja revelação não seja ilícita'' • O fato pertinente relacio-
de prestar e o ?1re1to de crédito (MARTINS-CÓSTAeJ crJ_d,to, na qu?I se ~orrelacionam o dever na, por conseguinte, a informação que deveria ser transmitida e o con-
pa~a a sua Aph~ação, cít., p. 220). Tais deveres subd_ u_~th.A Baaje~a Direita Privada. Critérios
ce em denominação diferenciada na doutrina Pa ,v, em~se em diferentes espécies, que re-
compreendem deveres principais ou rimá . . raa re~enda autora, os deveres de prestação
deve_res secundários ou acidentais (q~e esPºs (que fer~am a 'alma da relação obrigacional')·
deveres de informar pretendem proteger os valores da outra parte contra prejuízos pelo fato
adrr:utem subdivisões, como deveres secun~~ :m re açao de acessoriedade aos principais~
autonoma); e deveres anexos ou instrume t~1os, meram:nte acessórios ou com prestação de começar um contato negocial.".
32 MARTINS-COSTA, Judith.A Boafé no Direita Privada. Critérios para a sua Aplicação, cit., § 63,
~2?-222). Gustavo Haical distingue os d n ais (d:v~r~s ligados a 'como prestar') (idem p
ult1mos em (i) direitos e deveres secundár~~eres pnmano: dos secundários, dividindo e;te~ p.580.
33 FABRE-MAGNAN, Muriel. De /'abligatian d'!nformotion dons /es cantrats. Essai d'une théorie.
se subdividem em deveres de resta ão a / com presta~ao autônoma (os quais, por sua vez
Paris: LGDJ, 1992, p. 132. No original: "L'élément matériel de l'obligation d'information peut
e?: prestação autônoma coeristent~s co~ ~n~masu:eda_ne~ do dever primário de prestaçã;
sonos da prestação principal (O inad' 1 p estaçao pnnc,pal) e (ii) direitos e deveres aces- être dêfini com me étant tout élémentsusceptible d'entrainerchez le créancierune réaction, en
ce sens que si ce dernier avait connu l'information, il aurait agi différemment c'est-à-dire, par
lateral_advindo da boa-fé obj~tiva. Rev'.r;)td~m;~o p~lo descumprimento exclusivo de dever exemple, qu'il aurait refusé de conclure le contratou encore aurait pu prendre ses dispositions
RTOnline). s n unms, vol. 900, out./2010, p. 45.Acesso pela
pour en obtenir une correcte exécution".
25 MARTINS-COSTA,Judith ABaafénaD' . . 34 FABRE-MAGNAN, Muriel. De /'abligation d'!nformation dons les contrais. Essai d'une théorie,
MARTINS-COSTA, Judith:A Baafé no D~:~~~';:;~~:~- Cr!t~r!os para a sua Aplicação, cit., p. 402.
26
~8~ e_p. 418. Abe~tas as negociações, aí estão compre. C~-~noJ para a ~ua Aplicação, cit., p. 383- cit., p. 216. No original: "L'élément moral consiste au minimum en la connaissance ou en
l'ignorance illégitime- d'une part, de l'importance de l'information pourson cocontractant et,
a e, ou por meio do princípio da boa-fé ue des en , os :vere: ,mediatamente derivados
d'autre part, de cette information elle-même". Éimportante deixar claro que a autora diferencia
comportamentos no tráfico jurídico a de'cq· - dempenhana, alem da função corretora de entre o elemento moral do dever de informar e o elemento moral da violacão de tal dever.
MA_RTINS-COSTA,Judith.A Boojén;Dir ·t r~~aod ess:s_d:veres especiais (idem, ibidem). Neste ponto, está sendo abordado o elemento moral que constitui o dever,de informar. No
Os interesses de proteção voltam se e, o nva o._CntenosparaasuaAplicação cit p '23
original:"[...] il semble fondamental de faire la distinction [...] entre, d'une part, l'élément moral
alcançando, inclusive, os deveres de :t:s:~fr<?_te~ao_ da in_tegridade pe~soal e p~trl~~~ial:
de l'obligation d'information, qui sert à déterminer dans quelles hypothêses il y a obligation
(CARNEIRO DA FRADA, Manuel A. Contrata ~çao a integnda?e nopenodo in cantrahendo.
994, p. 103 e 114). e everesde protecçao. Coimbra: Coimbra Editora d'information et, d'autre part, l'élément moral de la violation de l'obligation d'information,
1 qui sert à déterminer dans quelles hypothêses il pourra y avior une sanction, l'existence d'une
MARTINS-COSTA,Judith.ABaajénoDi . . . . . , obligation d'information étantacquise" (idem, p. 186-187).Ademais, a autora distingue, dentro
A_ locução 'dever de informar' foi ob·et;e1t0Pn!'?da. Cntenos para a sua Aplicação, cit., . 8 .
do elemento classificado como moral, entre o elemento psicológico e o elemento intencional,
~,vel contradictia in terminis: ao pass~ qut; anal!:~ pior Vera Fradera, que identifica unfa ~o~-
sendo que este último embora esteja contido no dolo nem sempre estará presente (idem, p.
se pode exigir do sujeito em uma rela ãoº voca u o 1eve,;. remete a algo obrigatório" e ue
cunho :.spontâneo" originada na maio~a d~ontratual, a inf?rmaçãa evoca uma atitudeqde 215).
35 FABRE-MAGNAN, Muriel. De /'ab/igation d'!nfarmotion dons /es cantrats. Essai d'une théorie,
a locuçao "obr_igação de infor~ar" significari: vtzes: em uma ',~daga_ção ?irigida a alguém. Já cit., p. 216. No original: "L'élément matériel de l'obligation d'information est unfait pertinent,
contrat?, mediante o qual o sujeito assivo ob;i ecrncam_ente, a ob~1gaçao, integrante de um
determinado assunto" FRADERA Vp I f gou-sea informar o titular desse direito sob c'est-à-dire un fait qui se rapporte à l'objet des obligations nées du contrat, utile pour le co-
'd · , era. n ormarou não i e . , re contractant et dont la révélation n'est pas illicite".
senti os~melhante, FABIAN, Christo . n,ormar,_e,s a questão!, cit., . 2 .
31 Em
dos Tnbuna,s, 200 p . "Na fas ~h. Odeverde1nformarnoD1reitocivil.São Paulo·PRe~~ta
2, . 122 . e pre-contratual só pode haver deveres de prote.ção. Os
GiOVANA 8ENITTI - 97
96 - ÜEVER DE INFORMAR VERSUS ÔNUS DE AUTOINFORMAÇÃO NA FASE PRÉ-CONTRATUAL

trato em questão, imaginando-se que, se transmitida, poderia ter sido sociedade cujas quotas foram transferidas e a declaração negocial. ~ssim,
evitado o prejuízo sofrido pelo credor3 6 • caso comprador tivesse recebido informações acuradas a respeito do
O
potencial de produção, poderia ter celebrado o contrato em outros te~-
()_µando, porém, a informação, ainda que suscetível de interessar ao
caso versa sobre um dado pertinente e útil ao comprador, p01s,
contratante, não apresenta qualquer relação com as obrigações derivadas
do contrato 37, não há o dever de informar a contraparte. Não se impõe 0
mos.
º d ·
se este tivesse conhecimento do real potencial de produção, po ena ter
adotado comportamento diferente.
dever de fornecer "informações frívolas ou não relacionadas ao obieto do
, • "38 T O exame da utilidade da informação deve levar em conta o interesse
negoc10 . rata-se, no entanto, de um critério demasiado amplo 39J, sendo
necessário complementá-lo com o critério da utilidade da informação. do contratante, no caso específico, em receber as informações ~elev~ntes
ara decidir sobre a contratação e para que os termos contratuais reflitam
O fato qualificado como útil é aquele que interessa ao contratante
~ quanto foi negociado. Para se deter1:1i~ar quais .sã~ essas i~formações
e lhe permite, ao esclarecer suas decisões, poder modificar seu
relevantes, importarão elementos subjetivos e obJ~t:v?s par.t~culares do
comportamento40 • A utilidade da informação, segundo Muriel Fabre-
caso aí também estando compreendidos, como cnteno auxiliar, os usos
Magnan, deve ser apreendida em sentido amplo, não implicando exigir
com~ente verificados em dado setor ou as práticas adotadas pelas partes.
que esta seja substancial ou determinante41 • Assim, caso a informação
não interesse para o contratante, no sentido de que não contribuirá para Pense-se, por exemplo, em caso envolvendo a aquisiç~o de quot~s
a tomada de uma decisão oportuna, não haveria o dever de informar42 • sociais de um frigorífico para fins de ilustrar o que podena ser c~nsi-
derada como uma informação útil para o credor a ponto de modificar
Exemplificativamente, em julgado do Tribunal de Justiça de São
a sua decisão sobre celebrar ou não o contrato. Os alienantes omitiram
Paulo, considerou-se como violadora da boa-fé objetiva a conduta de
circunstâncias essenciais sobre o péssimo estado em que se encontrava o
vendedores de quotas de sociedade proprietária de usina asfáltica que in-
frigorífico e sobre as providências necessárias para atendi~ento das exi-
formaram potencial de produção superior àquele compatível com o ma-
gências sanitárias. Após a conclusã~ do con:rat?, os ~scais const~taram
quinário instalado43 • Entendeu-se haver descompasso entre os ativos da
diversas irregularidades, todas preexistentes a alie~aç~o, e de_termmaram
F~BRE-MAGNA~,_ Muriel. De !'ob!igotion d'!nformation dons les contrats. Essai d'une théorie a adocão de medidas saneadoras, cujo custo eqmvalia praticamente ao
c:_t-, p. 135._No ?nginal: "[ ...] le fait pertinentseraità notre sens «le rapportqui doit existerentr~ 0

preço pago pelo adquirente. Considerou-se que o próprio fim ~o negó-


1 inf~ri:n_at1?n _a transmettre :t le contrat considéré» ou, plus précisément, «la relation don't
on venf1e I ex1stence ou le defaut en supposant transmise l'information et en se demandant si cio (i.e., realização de abate e comercialização dos produtos) foi frustra-
cette transmission supposée peut permettre d'éviter le préjudice subi parle créancier»". 44
37 FABRE-MAGNAN, Muriel. De !'ob!igotion d'!nformotion dons les contrats. Essai d'une théorie do, de modo a ensejar a anulação do contrato •
cit., p. 135. No original:"[... ] li se peut en effet qu'une partie ne soit pas tenue de fournir à so~
cocontractant une information qui, serait-elle susceptible de l'intéresser n'a aucun lien avec
l'objet des obligations nées du contrat". '
GR~Z~~NA~ Giacomo. A c_láusulo de Declarações e Garantias em Alienação de Participação do Código Civil vigente, não foi observada pelos apelados, pois,_ ao ser celebrado o con_tr~to
Sooetona. Sao Paulo: Quartler Latin, 2019, p. 268. 422
em relevo, comprometeram-se à transferência da posse de uma usina d 7asfalto em cond 1çoes
39 FABRE-MAGNAN, Muriel. De l'obligotion d'!nformotion dons lescontrots. Essai d'une théorie cit diversas daquelas concretas. Porterindicado estara usina en:i pleno func1o~amento, ~em como
p. 137; "li _seraittrop longde ~air~ la liste, pourchaque contrat, des informations qui ont un,lie~ ter o potencial para uma produção superior àquela compat1vel co~ o_equ1pamento instalado,
avec I obJet du contrat et qu1 do1vent donc être transmises par l'un des contractants à l'autre". apelados violaram a boa-fé que lhes em exi.?ida". O j~lgado foi citado eor BUS~HINEL_LI,
FABRE-MAGNAN, Muriel. De l'obligation d'!nformation dons les contrats. Essai d'une théorie 05
Gabriel Saad Kik. Compro e Vendo de Part1cipoçoes Sooetonos de Controle. Sao Paulo. Quart1er
cf.t., f?· 139. No original: "~_n fait pertine,~t es_t un fait utile pourle cocontractant, un fait pouvan~
1 interesser, en ce sens qu li permetde I eclairerdansses décisions et, le cas échéant, de modifier Latin, 2018, p. 331. - d d D. ·t
TJSP. Apelação Cível nº 0007092-28.2006.8.26.0581. 1ª Camara Reserva a e ire~ o
son comportement". 44 Empresarial. Rei. Des. Francisco Loureiro. Julgado em 30.10.2012. Os autor 7s, ~a apel_açao,
41 F~BRE-MAGNA~,_ Muriel. De l'obligation d'!nformotion dons les contrats. Essai d'une théorie, alegam ser sua pretensão a anulação por erro substancial e não pordol_o. No acordao, ~nali~~-se
ot., p. 139. No onginal: "[...] exigerque l'information soit utile pour le cocontractant ne signifie caso na perspectiva do erro e da omissão dolos~ s_obre o verdadeiro estado do fngor:f1co~
nullement qu'elle doive être substantielle, ni même déterminante". 0Houve embargos de declaração, os quais foram re1e1tad_os !TJSP. Embar?os de Declaraça? n
42 FABRE-MAG~~N, ':'.'uri:'-f;e l'obligo_tion d?nforri:,ation dons les contrats. Essai d'une théorie, cit., -?8 ?006 8 ,6 81. a Câmara Reservada de Direito Empresanal. Rei. Des. Francisco
p. 140. N_o onginal: [... ] li_ n est pas necessa1re d'1mposer une obligation d'information lorsque 0007092 - --
Loureiro. Julgado · ·- ·.05 . 13). Vale destacar o seguinte
em . trecho: "Esta· ~v,·denoa_
· d o nos au t os
la conn~1ssanc~ d<; c~tte information n'~ a_ucun intérêt pour le cocontractant, en ce sens qu'elle 22 01 201
que couso do negócio, realização de abate e comerciolizofão de eeç?s bovinos e sumo_s, fo, f~us-
ne servira pas a lu1 faire prendre une dec1sion opportune". O
trado pelo existência de defeitos de variada natureza. Pelos ctrcunst?noos _dos autos, os reus sab,_am
43 TJSP. Ap. 0185809-45.2009.8.26.0100. 1ª Câmara Reserva de Direito Empresarial. Rei. Des. perfeitamente que os autores, caso não realizassem profundas e d1sp_endwsas reforr::as, podenam
F~rtes Barbosa. J. em _11.09.2014: "A c?nduta dos apelados foi maliciosa, ostenta relevância e
ser autuados e tera frigorifico interditado, mas se calaram e os mantweram em erro •
nao podeserdescons1derada.A boa-fe objetiva, consagrada em cláusula geral inserta no artigo
G10VANA 8ENITTI - 99
98 - DEVER DE INFORMAR VERSUS ÔNUS DE AUTOINFORMAÇÃO NA FASE PRÉ-CONTRATUAL

Outros exemplos podem ser encontrados no âmbito de contratos à outra parte instruí-lo se, por si próprio, ~udess~ obter a inform~ç~o de
de compra e venda de participações societárias: apontam-se como in- modo menos custoso48 • Diversamente, sena qualificada como legitima a
formações essenciais eventuais causas de invalidade ou ineficácia con- a ignorância se não tivesse como conhecer a informação por seus pró-
su 1 , . 50 1 - '
· meios 49 ou se fosse titular de confiança egitima em re açao a con-
tratual e circunstâncias suscetíveis de frustrar o fim contratual, como o pnos . e 51
vencimento próximo de uma autorização para o funcionamento da em- trap arte e , assim , pudesse razoavelmente
. esperar que
_ esta o miormasse. .
presa45; iminente resolução de um contrato da sociedade-alvo com seu Por exemplo, preenche o ônus de autoinformaça_o o comprador qu~ m-
principal cliente; dados de faturamento futuro que claramente não se- daga O vendedor sobre o cumprimento, pela :ociedad~~alvo, da leg1~la-
rão atingidos com o novo parque fabril da sociedade-alvo 46 . çao
- trabalhista e obtém resposta positiva; realiza due dilzgence trabalhista
. d . · _
Não basta que o fato seja pertinente e útil. Para o surgimento do e, a Partir da documentação oferecida pelo vendedor ,no ata 1. oom vir
dever de informar pré-contratual, deve restar preenchido o elemento mo- tual, constata não haver irregularidades; e, apenas apos assum~ o co~-
ral, o qual é conectado ao possível conhecimento da informação. Dito trole, vem a descobrir que, em uma das fábricas, havia trabalho infantil.
de outro modo: deve-se averiguar se o desconhecimento da informação Partindo do conceito, dos elementos e da finalidade do dever de in-
pelo credor é legítimo a ponto de justificar a imposição à contraparte formar pré-contratual, já se pode alcançar algumas conclusões prév~as.
do dever de informar. Ademais, é preciso avaliar se é legítimo o desco- Constatada a desigualdade informativa entre as partes, o dever de in-
nhecimento da informação pelo devedor, que o invoca para se escusar formar surgirá, quando ( i) o devedor conhecer a inform~~ão (~~ q~ando
de transmiti-la. devesse conhecê-la); (ii) a revelação da informação for lícita; (u) a ~nfor-
Do lado do devedor da iriformação, a ignorância seria ilegítima quan- macão for relevante e útil para o credor; (iii) a parte credora da mfor-
do deveria conhecer a importância da informação para a outra parte, bem mação a ignorar, pois se tiver conhecimento sobr~ esta, não_há falar em
como seu conteúdo. Assim, teria de buscar as informações necessárias, dever de informar; (iv) se esta ignorância for legítima, ou seja, se a par:e
tanto quanto possível, para instruir o outro contratante47 • Por exemplo, se credora cumpriu com seu ônus de autoinformação, adotando as m_ed1-
as partes estão negociando contrato de compra e venda de participações das que se encontravam razoavelmente a seu alcance par: consegu~ os
societárias e o comprador pede, ao elaborar uma lista de questionamen- dados pertinentes e, mesmo assim, não os obteve; ou se nao for poss1vel
tos, dados atualizados sobre o andamento do processo de licenciamen- conseguir a informação ou, ainda, se a relação entre as partes for dotada
to ambiental, o vendedor deve buscar essas informações junto ao órgão de especial confiança, podendo o menos informado razoavelmente es-
ambiental a fim de transmiti-las ao comprador. Nessa hipótese, a inér- perar receber as informações da contraparte.
cia do vendedor não lhe socorrerá, pois a sua ignorância sobre a situa-
ção atual do processo de licenciamento é ilegítima.
FABRE-MAGNAN, Muriel. Del'ob/igotion d'Jnformotion d~nslescontr_at5,. ~s_sai d'un~ théorie,_cit.,
Do lado do credor da itiformação, a ignorância ilegítima seria assimi- · · ai·"[ ] est assimilée à la connaissance, 1 1gnorance 1lleg1t1me de I mformat1on.
p. 197. No ongm . ... . , d' blº . d'º f t"
II y a ignorance illégitime de l'information et - partant- il n y a pas o 1gat1on_ m or°:~-:?~
lada a seu conhecimento da informação, no sentido de que não caberia lorsque le prétendu créancier, même s'il ne connaissait pas l'i~formation, ava1t la poss1 1 1te
de la connaitre à un coút moindre que pour son cocontractant . . ,. . . .
45 GREZZANA, Giacomo. A Cláusula de Declarações e Garantias em Alienação de Participação Esclarece Muriel Fabre-Magnan que "le príncipe reste q~e cha~un_ do1t P:endre I m1tiat1ve de
49 s'informer sur ce qui l'intéresse: il convient de déroger a ce pnnc1pe un19uem~nt !orsque le
Societário. cit., p. 270.
46 GREZZANA, Giacomo. A Cláusula de Declarações e Garantias em Alienação de Participação contractant ne peut découvrir par lui-même tous les éléments pouvant avmr une mc1dence sur
Societário. cit., p. 270. son consentement ou surl'exécution du contrai" (Del'obligation d'Jnformat,on donslescontrats.
47 FABRE-MAGNAN, Muriel. De/'obligotion d'Jnformotion donslescontrats. Essai d'une théorie, cit., Essai d'une théorie, cit., p. 197-198). . . ,. . . I'
p. 190. No original: "II est alors nécessaire, pour qu'il y ait obligation d'information pesant sur Para Muriel Fabre-Magnan, "[ ...] les deux parties ont un égal acces a I mformat1on, mais une
50 d'elle a une confiance légitime en son cocontractant et peut raisonnablement pen ser, c_ompte
une personne, que ceife-d ait connu l'importance de l'information pour son cocontractant.
Mais cette connaissance est insuffisante, é elle seule, à imposer au débiteur une obligation tenu de certaines circonstances, que l'autre prendra l'initiative de l'informer. Une_ obhgat1on
d'information: il faut en outre que ce dernier connaisse cette information", e, ainda, "[ ... ] d'information peut alors peser sur son cocontractant" (De /'obligation d'JnformatJOn dons les
certains arrêts ont estimé que !'une des parties qui arguait de son ignorance de l'information controts. Essai d'une théorie, cit., p. 198). . , . . .
pour en conclure qu'elle ne pouvait être tenue à aucune obligation d'information pour en FABRE-MAGNAN, Muriel.Del'obligation d'lnf~rma:ion dansle!contr_ots._~ssa1 d une, t~~one, ot.,
51 . : "L'ignorance de l'information parle creanc1er appara1t par:1cul!_erement_leg1t1m~ dans
conclure qu'elle ne pouvait être tenue à aucune obligation d'information, aurait dú en réalité 197
«s'informer pour informer». Cette solution revenait, en réalité, à décider que l'ignorance du ~eux hypothéses: d'une pa_rt, lors~~~ le c:éancier ne peut co?,na1tre I mformat1on et, d autre
contenu de l'information étaitillégitime" (idem, p.192). pari, lorsqu'il fait une conf1ance leg1t1me a son cocontractant .
100 - ÜEVER DE INFORMAR VERSUS ÓNUS DE AUTOINFORMAÇÃO NA FASE PRÉ-CONTRATUAL
GtOVANA BENITTI -101

Apesar de não ser possível determinar, de forma exaustiva e em abs-


· _.cormar sobre as qualidades técnicas e sobre
d eve se uw ( • a dmelhor forma
h
trato, todas as hipóteses em que o dever de informar se impõe, as noções
de dever de conhecer e de ônus de autoinformação contribuem na bus- de utilização de um novo produto recém importado z.e., e:'e c~n. e:er
ca dessas respostas, na medida em que colocam em evidência o papel da alidades substanciais de sua prestação), a fim de que as mst1tmçoes
as qu d ·· - t, mo
diligência a cargo de cada parte. Cabe, então, minudenciar essas figuras. hospitalares possam avaliar as -~ant~gens e sua aqms1çao e a e mes
os riscos envolvidos em sua utilizaçao.
(11) DISTINÇÕES: DEVER DE CONHECER E ÔNUS DE AUTOINFORMAÇÃO Com efeito quando se está diante da contratação com um profis-
Diretamente conectados ao problema da configuração do dever de filOn, é razoáv;l supor que este conhece (ou. deveria
. al ~ conhecer) certas
uma parte informar a outra estão os conceitos do "dever de se informar informações relacionadas à sua área de expert1se . .
para informar" - ou dever de conhecer52 - e do ônus de autoinformação. Lucas Leyssac cita o exemplo de um comprador qualifica_do como
Inicie-se pelo 'dever de se informar'. rofissional e que acredita na sinceridade do vendedor ao ser mfor~a-
O 'dever de se informar' incide sobre o devedor da informação, que pd0 d aminhão obieto do contrato não sofreu transformaçoes.
e que o c J • - 1 · ' -
deverá se informar para cumprir com seu dever. Trata-se de "dever para Conforme O autor, apesar de ignorar certas mformaç~es re ativas a m~
53
com o alter" • Não se trata de ônus de autoinformação, pois a contra- do Caminhão O comprador, em razão de sua qualidade de profiss10-
caal deveria buscar
' informações a respeito. rr d · h" , d
J.O avia, na 1potese e sere
m
parte pode reclamar o seu descumprimento. Qyando há o dever de co-
nhecer, o devedor não pode se escudar em sua ignorância para fugir ao :n~anosas as informações prestadas pelo vendedor, espontanea~en:e
dever de informar a contraparte. ou tendo este empregado manobras, desaparec~ria o_ dever de o propno
O dever de conhecer54 resta configurado, para Muriel Fabre- comprador buscar as informações pertinentess,_ss, diz ele.
Magnan, somente quando (i) se tratar de um profissional ou (ii) quan- · O juízo sobre quais informações um p:ofission~ deve conhec~r
do, diante de contratante não profissional, a informação for relativa às comporta O escalonamento em graus59 • Se as informaçoes forem cons1-
qualidades substanciais do objeto de sua própria prestação 55•
56 FABRE MAGNAN Muriel De/'obligation d'!nformation dons/escontrats. Essai ?'un~ ttéorie'. cit.,
Para bem compreender o dever de conhecer, propõe-se o seguinte -
p. 192-193. No origina
'. · I·. ;[•··.] les professionnels
,, sont censés connaitre certames m ormat1ons
exemplo: o fornecedor de produtos voltados à higienização hospitalar que relevent de leur competence · . · lité de professio-
57 "L'acquéreur ignorait certes la productio~ de la marque env1sagee, m_as s:t(ouna le vendeur a fait
52 POÇAS, Luis. O dever de declaração inicial do risco no contrato de segura, cit., p. 175, nota de rodapé ~~l~~~!f::!~:~~~e~:~ii~~t!~:t;~:r~:?~~~~~~ft~r~:~~f :;;~~:;f ~~~:~;i;deendiii~!~~~~
nº 595: "O ónus de se informar assume uma dupla faceta, incidindo, quer sobre o obrigado
ao dever de informação (que deverá informar-se para poder cumprir esse dever - dever de
conhecer), quer sobre o credor daquele dever (que só será credor na medida em que tenha
le fournissaitspontanément. Parconsequent on ne peu rep
l'acquéreur, qui étaitfon~é à croire en la sincérité ~u
manoeuvres auds,ens
::~t~=~:
anc1etnd, aº~s ~: :re:~~~gq:',tv:~t l~autre pariie
0
f . ue des
E; sc~:::~ ~~~~~:ra~':a~t, il ne
razoavelmente cumprido o ónus de se informar)[...]". pourra trouver argumen . de se )renseigner". (LEYSSAC,
53 MARTINS-COSTA,Judith.A Boa-fé no Direito Privado. Critérios para a sua Aplicação, cit., p. 539. c L L'obligation de renseignements dans les contrats, ot., P· 3:9 · . , •
54 Muriel Fabre-Magnan prefere denominar esta hipótese de 'obrigação' (obligotion des'injormer 58 D~v~::!ter.em mente, porém, que "quem recebe uma info'.1:1açao nao deve ac:1ta- 1a se~::':
pour informer), e não como 'dever', utilizando, porém, a expressão dever para "devoir de como boa" (SINDE MONTEIRO, Jorge Ferreira. Responsab1!1dade pdo~!nformars:,, f~:SRTINS-
s'informer". Isso porque "devoir de s'informer" indica um limite aplicável à obrigação que a enda ões, cit., . 2 4). Isso não significa estabelece rum dever e. nao:con_ 1ar
contraparte tem de informar, não consistindo em vínculo jurídico entre as partes (Del'obligotion
d'information dons les contrats. Essai d'une théorie, cit., p. 6: "[... ] un tel devo ir n'est nullement
Rceocºs;A Judith A s!aJé
' ·
7 no Direito Prh,ado. Critérios para a sua Aphc':,çaof, ot., P· 541 ):
' bTd
11 d d m recebe a informaçao az sua ava 11açao e
m!s ª
constitutif d'un lien de droit entre les parties: il indique simplement une limite apportee à observância da autorr~sponsa ª e _e ~e de exigibilidade e d'e possibilidade para
sopesa os riscos envolvidos na contrataçao. grau - , , -excluída
l'obligation d'information qui aurait pu peser sur le cocontractant".). Parece-nos, assim, que realizar uma reverificação variará c_onforme o caso, nao devenf:~d~ori;~ :::::do conhe~i-

~~~~~n;~: ~o~~~~:~~rae~%~~t~~~'~ioªr~:~~=!je~:~i~;~:~~~~~~:~~~-n~~1~:)~ ~:~:~~::~!~


"devoir de s'informer" equivaleria à referida classificação como ônus de se informar em con- 59
sideração aos próprios interesses.

~~~~e; i~~:; :f~m::;os ~~~eretos e ~bs[ratos, considerando-


55 FABRE-MAGNAN, Muriel. De l'obligation d'!nfarmation dons les contrats. Essai d'une théorie, 0
cit., p. 216. No original: "L'ignorance de l'information est illégitime ou, en d'autres termes, il y (De l'ob/i~ation d'!~fo~m_atJon

::::ª;;s~~~~~,r;c~~~~n~~ ~;~~pç~od:~~~;)!~~~~s:i~;/~~:~:~:ii~ ~a~o:~i,fJa~ee~:~~~=


a obligation de s'informer pour informer, uniquement dans deux cas: d'une part pour les pro-
fessionnels et, d'autre part, pourtous les contractants en ce qui concerne les qualitéssubstan- 1 0
tielles de l'objet de leur propre prestation. Cette obligation de s'infomer pour informerest une que d1spoe as m ormaçoes, a informa ão ue um profissional médio no ramo
obligation de moyens". A autora sustenta que, via de regra, não há o dever de um contratante pode ser obtida'. por exemplo, e, d~ out~~ de raciocí~io ~oncreto com o abstrato é proposta
informar a contraparte a respeito da prestação desta. Ela apresenta três exceções: quando há pode ri~ e deve~1a conhecer.~ c~1u~~çdireito do consumidor e da identificação de critérios
dolo, contrato de mandato ou lesão. (idem, p. 167-179). por}~d1th a_Martms-c;_osdta
aux1hares concreçao ondo/;r v ~eºinformar (A Boa-fé no Direito Privado. Critérios para a sua
Aplicação, cit., p. 306 e 540-541).
GIOVANA BENITTI -103
102 - 0 EVER DE INFORMAR VERSUS ÓNUS DE AUTOINFORMAÇÃO NA FASE PRÉ-CONTRATUAL

deradas exigíveis e se concluir pelo dever de conhecê-las haverá então possibilidade de o agente poder escolher se decide atuar e~ de_termi-
' '
o dever de o profissional empregar esforços razoáveis para se informar,
' nado sentido ou não. Contudo, terá de suportar as consequencias que
o que, sendo descumprido, resultará em violação a dever profissional6º. lhe resultarem desfavoráveis 66 , que podem ser a não obtenção de uma
vantagem, a não satisfação do interesse ou a não realização do direi-
Passando ao ônus de autoinformação, entende-se que o compor-
tamento do credor da informação auxilia a medir o grau da informação to pretendido.
que o outro figurante deve fornecer, pois, para ser considerado como cre- Analisando o tema na perspectiva do intercâmbio de informações
dor, não cabe simplesmente invocar sua ignorância: esta tem de ser le- na fase pré-contratual, o dever de informar é impos;o no interesse alheio
gítima61, como adiantado. (i.e., do credor da informação) e o ônus do credor: voltado par_a a tute-
O ônus de autoinformação corresponde à "manifestação do dever la de interesse próprio. O ato imposto ao deved~r e volta~o a~ mter:sse
geral de diligência para com os próprios interesses, que a todos incumbe"62 . do credor mas o ato do credor (i.e., a busca da mformaçao dispomvel)
Então, se estiverem a seu alcance, o credor tem o dever de buscar infor- seria volt;do primordialmente ao próprio interesse. O devedor não po-
mações? Qy.ais seriam as consequências derivadas de sua inércia? deria, portanto, impor ao credor o seu cumprimento.
Clóvis do Couto e Silva já alertava para a imprecisão de se considerarem O que importa saber é: se era possível buscar a informação_ e o cre-
"deveres para consigo mesmo". Destacava não serem propriamente deveres, dor adota postura negligente, sofrerá com as desvantag:ns advm_das de
mas ônus, pois "dever é sempre dever para com alguém" .63 Se um dever res- sua escolha, pois, caso tivesse observado o ônus de automformaçao, po-
tar violado, o ofensor terá de arcar com as consequências daí derivadas, re- deria ter evitado a perda de melhor posição jurídica ou a ocorrência de
parando os danos causados à esfera jurídica do lesado.Ao contrário, o ônus desvantagem. De todo modo, o não cumprimento do ô_nus não consu?~-
jurídico relaciona-se aos interesses do próprio agente: não há necessidade tancia ato ilicito,já que não há um dever de conduta imposto ao sujei-
de adotar certa conduta, pois o resultado propiciado pelo ônus é facultati- to vinculado ao ônus 67 .
vo. Se alguém pretender obter um resultado, terá de agir de determinado Apesar de o devedor não poder exigir a adoção_ ~e certa co.ndut~
modo, como o demandante em ação judicial, que tem o ônus de provar os da contraparte, pois, como referido, o resultado propiciado pel~ onus e
fatos alegados se objetivar receber tutela favorável a seu direito 64 . Contudo, facultativo o credor arcará com as consequências desfavoráveis resul-
se não se desincumbir da prova, a consequência repercutirá em sua esfe- tantes de s~a escolha em não buscar as informações que estavam dispo-
ra jurídica, podendo, por exemplo, ser julgada improcedente a demanda. níveis. Assim, o comprador de determinado produto que não pesquiso_u
Para que não restem dúvidas: não há, correlatamente, um direito preços em diferentes lojas previamente à contratação e a~abou o adqm-
subjetivo da contraparte e, portanto, uma pretensão 65 . Isso implica a rindo por um valor superior Qustamente por não ter venficado que, em
outro local, estava mais barato) só pode imputar a si mesmo a respon-
60 Os "?everes !utoinformacionais profissionais" podem decorrer de "normas de boa prática,
escritas ou nao, sendo pressuposto para bem atender ao cliente/paciente" (MARTINS-COSTA, sabilidade pelo seu prejuízo.
Judith.A Boofé no Direito Privado. Critérios para a sua Aplicação, cit., p. 540).
61 GHESTIN, Jacques (Coord.). Traité de Droit Civil. La formation du controt. Tome 1. Le contrat, le Ônus de autoinformação e dever de conhecer encontram limite nos
consentement. Paris: LGDJ, 2013, p. 1411.
62 M,:'RTINS-COSTA,Judith.A Boaféno Direito Privado. Critérios para a sua Aplicação, cit., p. 539. esforços razoáveis das partes, seja para fornecer a informação, seja para
Lu1s Poças também atenta para as duas facetas do "ónus de se informar" (O deverdedecloroção buscá-la68 • Este é precisamente o ponto a carecer de exame na Segunda
inicial do risco no contrato de seguro, cit., p. 175).
Todas as citações deste parágrafo estão em COUTO E SILVA, Clóvis do. A Obrigação como Parte: até onde vai o dever de informar e as suas diferentes facetas?
Processo. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2006., p. 98.
MENEZES CORDEIRO, António Manuel. Tratado de Direito Civil Português. Vol.1. Tomo 1. 3ª ed.
Coimbra: Almedina, 2005, p. 358. O autor explana que a construção citada neste parágrafo
tem de ser revista (conforme p. 359). SAN MARTÍN, Ulian Cecília Neira. Dei "deber" de[ acreedordeevitaro mitiga~el do~o, cit., p- 51:
66
"la carga vendría a constituir la subordinación _de un i~te~és a favor ~e otro _mteres dei i:11smo
65 MARTINS-C?STA, Ju_dith: ~ Boafé no f!ir;/to Privado. Critérios para a sua Aplicação, cit., p.
sujeto, ysería éste quien, en base a una valoracion econom1ca de sus ~1ver~?s mtereses en iuego,
55!5-55~-Ass1m ta~bem_ L1han San Martin: ~uando se trata de un deber la norma jurídica mira
ai mteres de un suieto diverso de aquela qu1en ella va dirigida; en cambio, cuando se trata de decide si actuaro no. En esta segunda hipótesis, [...] incurre en una s1tuac1on desfavorable para
una carga, la norma mira un interés dei mismo sujeto a quien ella va dirigida". (Dei "deber" de[ el mismo". 1 ·; 8
acreedordeevitaromitigarel dano. Tese de Doutorado. Orientador: Prof. Dr. Sandro Schipani. GRAU, Eros Roberto. ônus, Dever e Obrigação. Revista1~s :ribunais, vo . 55~, ma__i. 19 2, P· 57-
67 MARTINS-COSTA,Judith.A Boa-fé no Direito Privado. Cntenos para asuaAphcaçao, CJt., P· 54º·
Curso de Direito. Università degli Studi di Roma "Tor Verga ta". Roma, 2010, p. 50-51). 68
104 - ÜEVER DE INFORMAR VERSUS ÔNUS DE AUTOINFORMAÇÃO NA FASE PRÉ-CONTRATUAL
G,ovANA BENmt -105

li. ÜEVER DE INFORMAR E ÔNUS DE AUTOINFORMAÇÃO: LIMITES venda de participações societárias, por meio da qual o comprador pre-
Na fase formativa do contrato, a informação é devida de modo a tendia transformar a companhia-alvo em sua sede de operações no mer-
tutelar a con:fi.an~a e_ preserv~r a integridade da esfera jurídica dos figu- cado europeu de seguros.
:antes da: neg?ciaçoes, mas isso não significa existir um dever geral de As Partes celebraram, então, um share andpurchase agreement ("SPA:')
mformaçao pre-contratual no sentido de ser necessário informar O ou- voltado à alienação da totalidade das ações de uma companhia sediada em
tro fi~rante sobre toda e qualquer circunstância por este desconhecida Luxemburgo que atuava no ramo de seguros. Alguns anos depois, dire-
e relativa ao negócio 69-7°_
tores sêniors da companhia-alvo e funcionários foram presos em virtude
Como menc!onado na Primeira Parte, o dever de informar pré-con- de conexões com investigações criminais relativas à suspeita de lavagem
tratual pode surgir quando se estiver diante de desnível informativo en- de dinheiro e problemas tributários anteriores à aquisição pelo compra-
tre ~s fi~rantes e exi~tirem _determinados fatores subjetivos e objetivos dor. Essas investigações eram conduzidas por autoridade fiscal francesa.
que JUSt~querr_i a sua 1mpos1ção por se tratar de aspectos relevantes que Diante disso, o comprador instaurou um procedimento arbitral re-
possam, m_clus1ve: le~ar a contraparte a afastar-se do projeto negocial. querendo a anulação do SPA sob o fundamento do dolo, buscando a
Se forem c~cunstancias importantes a ponto de influenciar a decisão de reparação de perdas e danos. Também alegou a violação do dever de in-
firmar ou nao o contrato, pode incidir o dever de informarn. formar pré-contratual pelos vendedores. Segundo o comprador, os ven-
. ,Para esta~elecer a medida do dever de informar pré-contratual _ dedores teriam apresentado informações distorcidas (mirspresentations)
isto e, o conteudo e a extensão da informação devida - 0 exame há d e ocultado aspectos fáticos relevantes (material facts), inclusive o risco
Pau t ad o pe1a mtens1
. "d d d ' e ser
a e e seus elementos constitutivos, tanto O material de vir a enfrentar acusações criminais, com o intuito de induzi-lo a ce-
q~anto o ~or~,, a~tes ref~ridos. Logo, deve-se questionar até que ponto lebrar o contrato.
a mfo:"maçao e util e pertmente, e a ignorância, legítima. Esses aspectos Ademais, o comprador afumou que duas auditorias realizadas pe-
todavia, nem sempre são facilmente identificáveis na situação concreta~ los vendedores cujos resultados haviam identificado riscos de lavagem
Para exemplificar as dificuldades que podem ser encontradas, refe- de dinheiro vinculado ao negócio não foram reveladas, nem mesmo as
re-se o c_a~o IC~ nº 11.961 72, que envolve uma operação de compra e informações encontradas nas auditorias. Igualmente, não teriam sido di-
69 vulgados questionamentos elaborados por autoridade francesa e inves-
;~; ~fo~~~~o;:;r~::e;!~v;;~::;ir:1:~~~~~i1~;.~~:;;tido (Do Responsabilidade Pré-Contratual
70 tigação iniciada antes da conclusão do SPA. Finalmente, o comprador
~:!~1;~~=~~~;~~f;;~aªr:x~:~ê~r~~ç~enue~e~=;~~gnei~~~/;:°Jo~~~~~fa~!~c~~~~t~i:l~~5
,, ques ao ap~nas como u~a remissão à noção de boa-fé, por demasiado incer~a N • • .
J~ defendia a imposição aos vendedores do dever de informar em atenção

~~}c:~~r~~;~;~~~~~~i~~~~~~t~~tf1f
à boa-fé objetiva, mesmo em relação a dados disponíveis publicamente.
i\;~~;~_e:i~~ªl1:v~l~t~~~r~:fcéunrt::!:;~Ei: Os vendedores, por sua vez, sustentaram não ter sido comprovada a
toire à l'aide d 1 1 · d b une remise en quest1on leurforce obliga-
L L' bl" ~ ª sdeu e not_ion e onne foi, trop floue et trop incertaine. [... ]". (LEYSSAC e ocorrência de dolo, especialmente no sentido de que o comprador ape-
ucas. o 1gat1on e rense1gnements dans les contrats cit ) N · • ' ·
brasileiro, Paulo Lôbo explicita· "O dever de. e . ' ., P· 3 20 · a perspectiva do d1reito
• m,ormarmcorporou-se ao d" ·t d b · - nas teria celebrado o SPA em virtude de manobra ou omissão atribuível
con:o dever geral de conduta" (Direito Civil. Parte Geral 3ª ed São p 1 . ~rei ? as o ngaçoes
~;:~r~0
i~:o~~:~,~:~sa~anvoe~Íi~e~:~~:ec~~~i~~J~~~,~ento _brasilet~
2
~~_ci~~;~~~~l~id e~~~
deveres singulares de informar são tão am los e de;al~=~ta area, os d1re1to_s a informação e os
aos vendedores. Além disso, o comprador, sendo experiente, sabia que
se tratava de um negócio ojfshore sendo a evasão fiscal parte dele. No to-
pré-contratual um dever geral de informar~' (O deve d . ,J?s que os'.;~ c_onJunto forma na fase cante às auditorias, destacou que o comprador, se desejasse, poderia ter
71 N r h . r e 10ormor no u1re1to civil c"t 16 )

ve~~:i~~~o ~:~e1:~:~,d~:::~:0u:J1e::~:~~~:~:~:~i~:~;;pu:~t~i:~~~i~a~e~nív~l-it{f~ r_~~tivo descoberto as informações por meio de questionamentos, Por fim, argu-
podem frustrar o fim do contrato . _ c1rcuns anc1as que
são" desde que esta,, e que, por isso, sao de especial significado para a sua deci- mentavam não existir o dever de agirem como um "advisor to the buyd',
, possaesperarasuacomunicaç- f ·d d
dominantes do tráfico", podendo tal expectativa ta~ºb~: ~oenci;;;;~ d: ~~o~ as conce~ções não cabendo informar dados publicamente disponíveis.
travadaentreaspartesouserimpostaporlei (SILVA E S, . M . d açao de confiança
Pré-Contratual por Violação dos Deveres de tnÍormoçii va ·torna )o reira a. Do Responsabilidade
72 lnternational Court of Arbitration ofthe lnternationºa'lcC,h.,ap. 7b9 · fC
11 61 F" 1A d m er o ommerce - ICC ca (Ed.). Yeorbook Commerciol Arbitrotion 2009, vai. XXXIV, Kluwer Law lnternational, 2009, p.
9 ·, ma war • Buyer (Non-European country) v. Sellers. ln: VAN DEN BERG, AÍber~~an~
32-76.
GIOVANA 8ENITTI -107

106 - DEVER OE INFORMAR VERSUS ÔNUS DE AUTOINFORMAÇÃO NA FASE PRÉ-CONTRATUAL

não deverem as informações de conhecimento público ser repassadas pe-


O Tribunal Arbitral distinguiu entre os "riscos gerais" (general risks) los vendedores, especialmente quando os contratantes são profissionais.
ou "riscos da indústria" (industry risks) ligados às atividades do setor; e
O caso ICC nº 11.961 serve muito bem ao propósito de ilustrar que
os "riscos específicos" (specifi,c risks) ligados à atividade da companhia-al-
a delimitação do objeto do dever de informar perpassa pela tensão en-
vo. Dentre os "riscos gerais", estavam as medidas adotadas pela França
tre dever e ônus. O ponto sensível está em identificar quando há efeti-
com vistas a dificultar o investimento de residentes franceses em pro-
vamente o interesse a ser informado; quando é viável ao credor obter as
dutos securitários oferecidos por companhias effihore de Luxemburgo.
informações por si próprio; quem deve fornecer a informação; e o que
Ao analisar os relatórios de auditoria não informados pelos vendedo-
res, a fim de verificar se os dados neles contidos deveriam ter sido reve- precisamente deve ser informado. D~ o ace~o d~ Tribunal ~bitral ao
perquirir quais seriam os riscos gera~s e quais senam os e:pec~cos, as-
~ados, o Tribunal considerou que um deles apresentava informações de
sentando que, em relação a estes últimos, o comprador nao tena como
mteresse do comprador a respeito de riscos identificados e que pode-
obter as informações, a menos se fossem repassadas pelos vendedores.
riam afetar a companhia-alvo.
Qy.ando se está diante de um caso concreto, deve-se indagar, por-
Ao distinguir entre informações passíveis de conhecimento pelo
tanto: qual é o alcance do ônus do credor de buscar informações? E do
comprador e aquelas que o comprador não tinha condições de, por si
mesmo, obter, os árbitros afastaram o dever de os vendedores informa- dever de informar a cargo do devedor?
rem sobre os elevados riscos da prática de fraudes e de lavagem de di- (1) Ü ALCANCE DO ÔNUS DE AUTOINFORMAÇÃO
nheiro em companhias seguradoras sediadas em paraísos :fiscais, como
O preenchimento do ônus de autoinformação pelo pretenso credor
Luxemburgo. Contudo, a partir do momento em que os vendedores to-
é um fator a ser considerado para aferir a existência de violação ao de-
maram conhecimento de que a companhia era alvo de investigações de
ver de informar, uma vez que, se este tiver conhecimento a respeito de
autoridades :fiscais e realizaram auditorias cujos resultados confirmaram
determinado aspecto, não nascerá o dever de a contraparte informá-lo.
as irregularidades apontadas, não poderiam ter deixado de informar o
O ônus de autoinformação também variará a depender das circunstân-
comprador a este respeito. Isso porque, nem mesmo se o comprador pro-
cias fáticas, podendo alcançar nível bastante reduzido em certos casos,
cedesse com toda a diligência necessária, desincumbindo-se do seu ônus
de autoinformação, poderia ter obtido acesso a tais informações especí- como nas relações de consumo.
ficas sobre a companhia-alvo. O comportamento esperado do credor da informação compreen-
de a adoção de atos que estiverem razoavelmente a seu alcance, a fim de
Os árbitros decidiram, então, ter a atuação dos vendedores im-
obter informações úteis (e a custos razoáveis) para sua tomada de deci-
portado em culp~ in contrahendo, ao violar o seu dever de informar pré-
são. Tal comportamento há de ser pautado pela diligência ordinária para
-contratu~, relativamente a dados relevantes sobre os riscos especificas da
a aquisição das informações necessárias e pela atenção devida, agindo o
companhia-alvo. Os vendedores deveriam ter informado que a autori- 73
credor com o cuidado que as circunstâncias requererem • Essa assertiva
dade :financeira francesa havia requerido diversas informações sobre de-
não resolve, porém, o problema de saber o que se poderia entender por
pósitos feitos à companhia-alvo e sobre práticas adotadas por corretores
da companhia. Mesmo não sabendo, à época das negociações, se haveria agir conforme a diligência ordinária.
investigação criminal no futuro, os vendedores deveriam ter informado A doutrina diverge sobre como examinar a diligência a ser obser-
o comprador sobre esses pedidos formulados pela autoridade francesa. vada. De um lado, defende-se que o exame deve ser feito em abstrato e,
Foram rechaçadas, portanto, as alegações do comprador com base em de outro, em concreto.
dolo, pois os árbitros consideraram não haver evidências da intenção de
os vendedores utilizarem as omissões e as distorções para fazer com que GRISI, Giuseppe. L'Obb/igo Precontrattuole di lnjormazione. cit., p. 84. Na ~ota de rodapé n~
o comprador celebrasse o SPA. Além disso, o Tribunal arbitral entendeu 73 80, o autor explica: "Si puà pari are di un onere di informa~si, che spetta a c1asc~na_delle p~rtl
soddisfare, con la dovuta attenzione e con la cura che le c1rcostanze concrete rich1edono .
GiüVANA 8ENITTI -109
108 - ÜEVER DE INFOR/v1AR VERSUS ÔNUS DE AUTOINFORMAÇÃO NA FASE PRÉ-CONTRATUAL

Segundo Jacques Ghestin, a doutrina dominante considera que a


Josep Llobet I Aguado sustenta a apreciação in abstracto, em virtu-
de da segurança no tráfico jurídico. Um exame concreto levaria a "uma inaptidão pessoal da vítima para se informar deve advir de um exame
79
grande insegurança para quem tivesse o azar de contratar com pessoas concreto, havendo ainda nuances na jurisprudência •
ignorantes". Assim, as incapacidades particulares não poderiam ser in- Embora se referindo à averiguação da intensidade do dever de in-
vocadas para atenuar a 'diligência tipo', mas as qualidades particulares formar (e não, especificamente, do ônus de autoinformação), Judith
(como o fato de ser um profissional) poderiam levar ao incremento no Martins-Costa propõe exame que combine padrões e elementos ~on-
grau de diligência 74 • cretos. Observa que os "parâmetros da razoabilidade [são] estabelecidos
Patrice Jourdain sustenta que a análise da diligência devida é feita in abstracto, por via de standards tais como o do 'administrador diligen-
em abstrato, mas com a consideração de elementos externos e internos te' ou o da 'pessoa razoável"'. Esse "tipo abstrato de referência é, larga-
80
que sejam objetiváveis e perceptíveis externamente. O caráter ilegítimo mente individualizado em matéria de deveres informativos" • Ou seja,
da ignorância, por exemplo, implicaria a referência ao "comportamento devem ser confrontados os eventos concretos com o padrão ideal indi-
de um indivíduo-padrão" 75 • Contudo, o tipo abstrato que representa a cado pelos standards.
pessoa razoável é "largamente individualizado", podendo ser levadas em Pode-se pensar que seria diligente para com os seus próprios inte-
conta características psíquicas, questões econômicas, qualificação profis- resses o credor que, por exemplo, visitasse o imóvel que está planejando
sional, etc76 • Por exemplo, o tratamento variará caso o credor da informa- adquirir a fim de verificar suas condições, solicitand~ ~a~íc:11a a~alizada
ção seja um leigo ou alguém com competência técnica (initié). Apesar de e certidões negativas do imóvel e de seu atual propnetar10; mspec10nasse
o leigo também ter o ônus de realizar investigações e buscar informações, 0
automóvel usado a ser adquirido para verificar se corresponde ao ano
o nível de diligência exigível não é o mesmo de alguém com qualifica- e à marca anunciada; solicitasse informações sobre a regularidade das li-
ções técnicas 77 .Ademais, negócios tendo como objeto coisas usadas, pe- cenças para a operação do restaurante a ser adquirido; fizesse questi~na-
rigosas ou complexas levam ao incremento na diligência a ser observada mentos sobre os termos do negócio e avaliasse as informações recebidas.
pelo credor da informação, ao passo que relações de confiança e aquelas Diferentemente, há de ser considerado descuidado o comprador - ad-
travadas entre profissional e consumidor contribuiriam para atenuá-la78 • quirente de quotas de sociedade empresári_a _e qualificado ~orno c_omer-
ciante que já atuava no mesmo ramo da atividade da refenda sociedade
74 LLO8ET I AGUADO, Josep. E! Deberde lnformoción en la Formación de las Contratas, cit., p. 115- - que não procura "checar dentre todos os órgãos públicos e fiscaliza-
116. Trecho entre aspas no original: "una gran inseguridad para aquellos que tuviesen la mala
suerte de contratar com gente ignorante". dores a viabilidade do projeto" 81 • Também seria considerado negligente
75 JOURDAIN, Patrice Le Devoir de «se» Renseigner. Recuei! Dallaz Sirey, Chronique XXV, 1983,
0
credor que, podendo ter acesso a informações publicamente disponí-
p. 142. No original: "L'appréciation de la diligence due est, on s'en est apercu, nécessairement
abs;~aite. Le ca~acte_re apparent du vice ou de la charge inexcusable de l'erreur ou illégitime veis não as consulta antes de celebrar o contrato.
de 11gnorance, 1mphque une reference au comportement d'un individu type [...]".
JOURDAIN, Patrice Le Devoirde «se» Renseigner, cit., p. 142: "[...] le type abstrait de référence
' Qµando, porém, o credor adota conduta para suprir (ou atenua~) a
que répresente la personne raisonable est tres largement individualisé. Sont prises em consi- deficiência informativa e, ainda assim, não consegue obter todas as in-
dération non seulement toutes les circonstances externes, mais encare celles qui, internes à
l'individu, sont objectivables et extérieurment perceptibles (particularités physiques, données formações para o fim a que se destinam, considera-se que sua ignorância
économiques, qualification professionnelle ... )". O autor refere hipóteses excepcionais em que
se admitiria a consideração de habilidades (aptitudes) particulares, quais sejam o conhecimento pode ser invocada, pois não se origina de comportamento descuidado ou
do vício ou da informação; e a competência que, independentemente da qualificação profis-
sional, deve permitir ao credor instruir a si mesmo ("connaissance du vice ou de l'information;
.compétence qui, indépendamment de la qualification professionnelle, doi permettre au
demandeurde s'instruire parlui-même"). Quanto à última hipótese, considera, contudo, que
a apreciação do dever de informar permaneceria abstrato.
77 JOURDAIN, Patrice Le Devo ir de «se» Renseigner, cit., p. 141-142. En matiere commerciale, les usages autorisent em effet tres souvent une vérification rap_i,?e
78 JOURDAIN, Patrice Le Devoirde «se» Renseigner, cit., p. 143. O autor cita também as condições et superficielle de la conformité du produit dont la nature interdit um examen approfond1 .
de aprovação (les canditians de l'agrément) da mercadoria entregue dentre as circunstâncias 9 GHESTIN, Jacques (Coord.). Traité de Droit Civil. Laformotton du contra!, CJt., f:>· 14~5. .
que atenuam a diligência devida, pois os usos comerciais autorizam, com frequência, uma 78o MARTINS-COSTA,Judith.A Boajéno Direito Privado. Criterios para asuaAphcaçao, c'.t., f:>· 541.
verificação rápida e superficial da conformidade do produto quando sua natureza impede um 31 TJSP. Ap. 0341976- 02.2009.8.26.0000. 8ª Câmara de Direito Privado. Rei. Des. R1be1ro da
exame aprofundado (idem, ibidem). No original: "Au nombre des circonstances qui restreignent
la diligence due parle créancierfigurent les conditions de l'agrément de la marchandise livree. Silva.]. em 05.09.2012.
11 O - ÜEVER DE INFORMAR VERSUS ÕNUS DE AUTO INFORMAÇÃO NA FASE PRÉ-CONTRATUAL
GiOVANA BENITTI -111

82
negligente . Os esforços da parte a quem couber a observância do ônus
se limitam ao que for razoável83 . lações de confiança em virtude da qualidade das partes envolvidas 88 .
re . . suponha uma le aldad e partic
Muito embora a relação familiar . ul ar89 , vis-
.
Deve-se avaliar tanto as possibilidades que estavam ao alcance do to que os laços afetivos e de proximidade ensejam confiança recíproca
credor como os obstáculos que poderiam tornar legítima sua ignorância, entre membros da familia 90 , o nível de con:-0-ança pode ser atenuado se
configurando-se, pois, como limites ao ônus de autoinformação. houver uma situação de intriga familiar 91 . E intuitivo dizer que o grau
A possibilidade de o credor buscar as informações depende da na- de confianca em uma relação travada entre duas pessoas casadas (ainda
tureza do contrato (v.g., o comprador que alega não ter sido informado que não sejam parentes) é maior do que quando estiverem divorciadas 92 •
de _um vício deve prov~r que adotou diligência particular ao adquirir um Ainda na perspectiva de obstáculos à obtenção de informações,
objeto usado); da qualidade defeituosa ou do defeito do objeto do con-
pode-se pensar na situação do adquirente de participaç~e~ socie~árias
trato; das circ~nstâncias em que foi possível examinar tal objeto (v.g.,
que, naturalmente, tem interesse em conhece~ a_ comp~siçao patr_imo-
em uma locaçao para temporada, não se pode reprovar o locatário por
nial da sociedade (a universalidade de bens, direitos, ativos e passivos),
não ter, por si mesmo, inspecionado a situação do local)84-85.
bem como informações sobre a rentabilidade futura 93-94 . Para tanto, terá
Os ~bstácul~s que poderiam legitimar a ignorância do credor po- de se basear em documentos contábeis, relatórios de auditoria e apre-
dem ser ligados (t) ao objeto da informação ou (ii) à confiança legítima sentações para avaliar, além das ações ou quotas, o patrimônio societá-
~o credor. Em relação ao primeiro aspecto (i), as barreiras podem de- rio95. É comum a realização de auditoria, a qual costuma ser limitada à
nvar do fato de a outra parte deter a coisa objeto do contrato, pois esta análise das informações disponibilizadas, sendo principalmente voltada
última teria uma situação muito favorável por conhecer a coisa, ou po- ao exame de documentos; sem a avaliação física de todos os estabele-
dem decorrer da dificuldade para se informar sobre a pessoa do outro cimentos, seja em razão do tempo que demoraria, seja p~los custos en-
figurante (por exemplo, quando uma agência de publicidade contrata volvidos.96 Logo, por mais completa que a auditoria seja9', o comprador
um profissional para atuar como modelo, cabe a este último informar se
já prestou serviços concernentes a um produto da mesma natureza para 88 Exemplos baseados em Josep Llobet I Aguado, que elenca, ainda, as 'relações de negócios' (E/
um anunciante concorrente) 86 . deber de información en laformación de los contratos, ot., P: 116). _
89 GHESTIN, Jacques (Coord.). Traité de Droit Civil._ La formotwn d~ contrai, ot., p. 1427. _
. No t~cante ao segundo aspecto (ii), a confiança do credor pode de- 90 LLOBET I AGUADO,Josep. E! deberde informacion en laformaoon 1e los contratos, ot.,_,P· 11;-118.
91 Há, todavia, quem chegue a dizer que "confiança alguma nasce do s1~ple~ parentesco . Isso sena
nvar do tipo de contrato concluído, da qualidade das partes ou das in- "tão notório" a ponto de "o Cinema italiano [ter lançado] o conhecido filme_Parente Serpente,
formações fornecidas pela outra parte87 . A relação entre profissional e de um humor caústico sobre a falta de confiança que se deve ter nas relaçoes de parentesco.
Golpes aplicados por parentes fazem parte do cotidiano, como é fato notório". Os !rec~os
leigo (v.g., médico-paciente; advogado-cliente) e as travadas em am- constam do acórdão do TJSP da lavra do Desembargador Silveira Pauli lo (TJSP. Apelaçao Civel
nº 9049856-14.1999.8.26.oooo. 11ª Câmara(Extinto1ºTAC). Rei. Des. Silveira Paulilo.Julgado
biente familiar ou de proximidade (e até de amizade) são exemplos de em 18.11.2004). - "[ ]
92 GHESTIN, Jacques (Coord.). Traité de Droit Civil. Laf_ormation du contrat,,,ot., p. 1428: ... un
82 pacte entre époux divorcés ne se situe plus sous le s1gn_e d':_ la conf1~n_ce . _ , ,
STIGLl!Z, Ru_bén 5. L? C?bligación Precontractual y Contractual de lnformación. EI Deber de
Conse10. Revista de D1re1ta do Consumidor; vol. 22, 1997, item 15. 93 BUSCHINELLI Gabriel Saad Kik. Compra e Venda de Parllopaçoes Sooetonas de Controle, ot., p. -7:·
MARTINS-COSTA, Judith. A Boajé no Direito Privado. Critérios para a sua Aplicação cit p 94 Em relacão à 'rentabilidade futura, o vendedor poderá fazer projeções a respeito do c~esc1-
51?= :'[---) o dever de se inform_ar t_em como limite - co~o, de resto, todo e qualquer d~ve/ d~ mento cÍo negócio e dos lucros, contudo, entende-se que a avaliação acerca da oportunidade
d1hgenc1a - os «esforços razoave1s» da parte a quem e cometido o dever (ou o ônus jurídico) comercial e dos riscos cabe ao comprador. .
da autoinformação". 95 BUSCHINELLI, Gabriel Saad Kik. Compra e Venda de Participações Societárias de Controle, ot., p.
GHESTIN, Jacques (Coord.). :raité d~ D_~oit Civil. Laformation du contrat, cit., p. 1414-1415. 266,269 e 273. . . _ . -. d 1 ·
ParaJo?e~ Llobet 1~g_uado, a 1mposs1b1!1dade de o credor obter a informação pode ser objetiva 96 BUSCHINELLI, Gabriel Saad Kik. Compra e Venda de Part1opaçoes Sooetanas e Contra e, C/1., p.
ou s~bJet1va. A º?Jet1va ~ompreende~1a os casos em que a contraparte não pôde verificar as 285. _ . . - - 1 - d
q_ual!dades da C01sa, a nao ser p~r m':.'º de um exame superficial, ou em que a complexidade 97 Por mais corriqueira que seja a realizaçao de aud1tonas previamente a cone usao o contra-
tecrnca de um bem ou a espec1ahzaçao de um serviço impediriam a compreensão dos dados· to, a complexidade do negócio (que depende de_ fatores como o tarr:ianho d~ empres~ se
ou 9u~ndo ape_nas uma das partes estivesse próxima da fonte da informação.A impossibilidad~ grande ou pequena; a quantidade de contratos firmados; o_ grau de mtern~c1onahzaçao), o
sub1_et1va estaria conectadaª.º estado de inferioridade de um dos contratantes, em razão de nível de organização das informações (em te_rmos de _quantidade e de qualidade dos dados
sua '?ade o~ de alguma debilidade ou incapacidade. Seria, portanto, uma impossibilidade disponibilizados) e a amplitude com que sera conduzida (pode corr:ipreend:r,_ por exemp~o,
relativa, e nao absoluta. (E/ Debe:1e lnformación en la Formación de/os Contratos, cit., p. 2- ). aspectos de direito do trabalho; societário; :ontrat~al;_responsab1hdade civil; regulatono;
GHESTJN, Jacques (Coord.). Tra~t~ de Drait Civil. Laformation du contrat, cit., p. 1424-1426. 115
11
ambiental; tributário etc.) são exemplos de circu_n~tanc1as q~e alt_era~ seu_ ~s~ºP?· C?ada_ a
GHESTIN, Jacques (Coord.). Trai te de Droit Civil. Laformation du contrat, cit., p. 1 26 e . variação na amplitude e na profundidade da analise procedida, e muito d1f1cil a m?_1caçao
4 55
de um denominador comum como representativo do padrão de comportamento diligente,
GiOVANA 8ENITTI - 113
112 - DEVER DE INFORMAR VERSUS ÔNUS DE AUTOJNFOR!v\AÇÃO NA FASE PRÉ-CONTRATUAL

Considerando o exposto, o alcance do ônus de autoinformação pode


não alcançará conhecimento sobre a sociedade em nível equivalente ao
ser sintetizado da seguinte forma: ao credor cabe o emprego de esfor-
do vendedor, que estava à frente dos negócios.
ços razoáveis para a obtenção de informações que considerar úteis para
Neste ce_nário, por -~ais que o comprador adote, por vezes, uma a contratação, sendo afastado o ônus, quando configurada a impossibili-
postura pr~at1va na reqms1ç_ão de informações, há aspectos que poderão dade (ou a extrema dificuldade) de se informar. Na medida em que agir
ficar exclmdos de ~ua apreciaç~o. Consequentemente, o dever de infor- para buscar as informações, ainda que não consiga obtê-las, terá se de-
mar do vendedor remanescena em relação a fatos de fundamental re-
sincumbido de seu ônus.
levância, ain~a que não questionados diretamente pelo comprador"9S_
Pode haver situações em que o comprador nem mesmo poderia formu- (11) Ü ALCANCE DO DEVER DE INFORMAR
1:11" o questionamento ao vendedor: se houver algum risco extraordiná- Na perspectiva do devedor da informação, o limite é determina-
no que um ,cor_nprado~ ~ormal, usando da diligência que lhe é exigível do pela conjugação de três aspectos: (i) a utilidade da informação para
nos seus propnos negocios, não poderia prever99 , como teria condições a contraparte; (ii) o conhecimento efetivo pelo devedor a respeito desta
de formular perguntas a esse respeito 1ºº? informação (ou se deveria ter conhecimento); e (iii) o desconhecimen-
Di~e~ente há de ser a solução para a situação em que O adquirente to da informação pelo credor. Os aspectos referidos nos itens "ii" e "iii"
das ~art1c1pa?ões societárias já estava, de algum modo, inserido no dia- já foram desenvolvidos acima, cabendo agora aprofundar o que se deve
-a-dia da s~c1edade antes d~ a~uisição (porque é ou foi sócio ou já traba- entender por informação útil ao credor.
lhou na socieda1e). Nesta hi?otese, costuma-se atribuir a este adquirente Para se tentar identificar em que consiste a informação útil à toma-
u_m_ acentuado onus de automformação 101 .A título de exemplo,já se de- da de decisão do credor, elencam-se alguns parâmetros divididos confor-
c1dm que o adquirente detentor de 1/3 das quotas "[n]ão ingressando na me o objeto sobre o qual recai a informação 103 : (i) o conteúdo contratual;
so~iedade desconhecida, mas apenas aumentando sua participação societária, (ii) oportunidade ou vantagem decorrente do contrato; (iii) defeitos do
nao pode [. .J alegar desconhecimento da situação da empresa e erro na bem; e (iv) dado notório ou de domínio público.
celebração do negócio''lº2 • Discute-se se o dever de informar, quando incidente, recairia sobre
esperável do comprador que busca informações (BUSCHINELLI Gabriel s ad K"k c o conteúdo do contrato e se, neste contexto, estaria abrangida determi-
"enda
v, - soCJetanas
d e part ,opaçoes
· · · · • de Controle, cit., p. 288). , a 1 • ompra e

:~:.CHINELLI, Gabriel Saad Kik. Compra e Venda de Participações Societárias de Controle, cit., p.
nada informação sobre a prestação da contraparte.
98
Para Antonio Junqueira de Azevedo, o dever de informar, na fase
99 ML_t';)~TEICR~ PblRES, c atar_ina. Aquisições de Empresas e Participações Acionistas. Problemas e
1 1g1os. OJm ra: A1medma, 2019, p. 43. pré-contratual, estaria limitado ao conteúdo do contrato, especialmente
100 l~~eressa~te a este re~pe(to ~ ~iferenciação entre shal/ow secrets e deep secrets: "Em reconhe-
~1 ho estu o] _sobr~ ~ d1stn_bu'.çao de conhecimento entre os contratantes, a autora [Kim Lane
em relação às qualidades essenciais do bem 104 • Nessa linha, Luís Poças
c eppe 1e 1den_t1~1~a dois tipos de informação que podem ser detidas or uma arte· os inclui, dentre as matérias objeto do dever de informar, o esclarecimento
segredosdsup:rf1C1a1s e os segred~s ocultos (shal/aw secrets e deep secretsl. Nos pri~eiro.s a
parte po _e na? conhecer_ o conteudo da informação buscada, mas sabe ao menos ue e;sa sobre o conteúdo do contrato, nos casos em que as cláusulas sejam pre-
mforma_çao existe po~enc1almen_te. (... ) Nos segundos, ao contrário, a parte se uer s~ eita e 105
~em te~a com.? suspeitar que tal mform~ção exi?e, como se, no caso do termo de ajusta~ento
dispostas por uma das partes •
e c?n uta, nao ho~vesse qu_alquerrazao para imaginar que o produto ofereça riscos ao con- Com efeito, entende-se ser razoável a incidência do dever de in-
~um1d~r. q~alqubermformaçao pode apresentar-se no formato deshal/awou deepsecret:tudo
d e pen f~ra desa. e~se? cas~ concreto propiciava meios para o pretenso credor da informacão formar sobre o conteúdo do contrato, na medida em que seja uma in-
escon 1ar a ex1stenc1a da ,~formação ou não. A diferença de tratamento entre os shal(ow formação essencial, isto é, ligada aos termos das prestações respectivas
secrets e os deeps secrets esta em que a parte que não tem a informação ode solicitá-la se se
trat~: de sh_allo; sec~et, podendo o potencial devedor da informação ale:ar que a contraparte e sirva a propiciar uma decisão esclarecida. Tal dever abrange as infor-
ac~i -º~ o ns~o e ce ebraro negócio na ignorância da informação se esta não uestioná-la ou
~oh~;.ta-la.Ja parabos deep secrets, a parte que alega ser credora da informaç~ pode melhor 103 Sabe-se que são inúmeras e diversas as situações em que há a incidência do dever de informar,
JUst1 1~a_r que aca o_u celebrando o negócio sem a informação, pois sequer tinha condicões sendo praticamente inviável sua listagem prévia. Todavia, procedeu-se a um esforço para reunir
de solicitar
· esclarecimentos
AI" - sobre o ponto. (GREZZANA , G"iacomo •A ctausu
· Ia de oecIaraçaes
, -
critérios normalmente levados em consideração pela doutrina.
e earanhas em . 1enaçao de Pa_rticipação Societária. cit.,, p. 252-253 ). 104 AZEVEDO, Antonio Junqueira. Responsabilidade pré-contratual no Código de Defesa do
101 GR~Zt~~NA_, G1acomo. A Clausula de Declarações e Garantias em Alienaçãa de Participação
Sooe ana, ot., p. 257. Consumidor, cit., p. 180.
105 POÇAS, Luis. O dever de declaração inicial do risco no contrato de seguro, cit., p. 173.
102 TJSP.Ap.072-485-4/9.14ª Câmara de Direito Privado. Rei. Des. Cunha Cintra · J · em 0 5.02.1999.
GIOVANA BENITTI - 115
114 - DEVER DE INFORMAR VERSUS ÔNUS DE AUTO INFORMAÇÃO NA FASE PRÉ-CONTRATUAL

Na segunda, o figurante melhor informado aproxima-se da outra


mações que poderiam ensejar a diminuição do valor ou da utilidade do
parte e a induz a contratar por valor inferior ao real. O indiví~uo que de-
bem a ponto de os termos do contrato terem sido outros se a parte me-
tém informações as oculta e leva o outro figurante a conclmr o contra-
nos informada os conhecesse. ~anta aos dados que acrescem o valor
to. Tal hipótese seria passível de reprovação pelo ordenamento jurídico.
do bem, torna-se necessária mais uma etapa no raciocínio, antes de se
alcançar uma conclusão: se esses dados forem relativos à prestação da Discorda-se de Muriel Fabre-Magnan em relação à conclusão ta-
contraparte, haveria o dever de informar? xativa alcançada para a primeira situação. É certo que o 'contrata~te ra-
zoável' deve buscar informações sobre a própria prestação, os nscos e
_ Jorge S~nde Monteiro ressalta caber a cada parte avaliar "a oportu-
mdade e o nsco da escolha do parceiro contratual 'certo' e do objeto da as vantagens envolvidos na contratação. É sabido também esperarem
prestação mais apropriado aos seus interesses" 1º6 • as partes ter lucro com o negócio fumado e a obtenção de i_nform_ações
está diretamente ligada a este ânimo, porém, não se deve mcent1var o
A respeito do dever de informar sobre a prestação da contraparte, 0
aproveitamento de debilidades da contraparte, q~e_, po~ vezes, pode não
Drqft Common Frame ofReference (DCFR) registra ser justo esperar que
conseguir acessar as informações mesmo com a utilizaçao de esforços ra-
o contratante forneça informações sobre a própria prestação, mas é mais
zoáveis. Assim, a depender das circunstâncias concretas, mostra-se pos-
improvável que se exija a dação de informações acerca da prestação da
sível a imposição do dever de informar, quando a falta da informação
outra parte, especialmente se o contratante informado teve de despen-
der considerável investimento para estar em tal condição 1º7 • repercutir negativamente na esfera da contraparte.
De modo geral, pode-se concluir que as partes têm o ônus de se
Muriel Fabre-Magnan defende que o dever de informar não abran-
informar sobre a própria prestação. Fixar um parâmetro a respeito da
ge, via de regra, a dação de informações à contraparte a respeito da pres-
necessidade ou não de um figurante informar o outro sobre dados da
tação desta, exceto se o caso envolver dolo, contrato de mandato ou
- rns . p ara a autora, o fi gurante que d escobre mformação
. prestação a seu cargo demandaria, ao mesmo tempo, a listagem d_e di-
1esao sobre a coi-
versas situações especiais (como a existência de manobras, de relaçao de
.sa de outrem, na maioria das situações, empregou esforços e, por isso,
poderia se beneficiar de seu uso e, se lhe fossem retirados os beneficias confiança entre as partes, de relação empresarial, da posição de consu-
haveria desincentivo à busca de informações 109 • '
midor assumida por um contratante etc.), o que reduziria a sua precisão.

Há que se diferenciar, segundo a autora, duas situações 11 º. Na pri- Passando ao segundo grupo, indaga-se se, dentre as informações
meira, não seria juridicamente condenável a parte que toma conhecimen- úteis e esperadas por uma pessoa razoável, estariam as oportunidades
to de uma oferta que contém todos (ou quase todos) os seus elementos envolvidas na contratação.
essenciais e, por informações por ela obtidas, considera o negócio van- Para Antonio Junqueira de Azevedo, não haveria dever de informar
tajoso para si, não as revelando para a contraparte. Aqui não haveria o sobre a oportunidade ou vantagem do contrato. Não caberia informar,
dever de informar sobre a prestação da contraparte. por exemplo, se a mercadoria em breve ficará mais barata ou se há no
mercado outra superior pelo mesmo preço, pois quanto a estes aspecto~
106 SINDE MONTEIRO,Jorge Ferreira. Responsabilidade par Informações, Conselhos e Recomendações, seria aplicável a máxima caveat emptor111 • Como bem salientado pelo
ot., p.357.
107 BAR, Christian von; CLIVE, Eric; SCH U LTE-NÕLKE, Hans (Eds.). Principies, Definitians and Madel
autor, "[a]dmitir dever de informar também sobre a oportunidade ou a
Rulesoflaw. Draft Com_mon Fra,me_ofR_efer~nce (DCFR). Vol.1. Munique: Sellier, 2009, p. 494.
108 FABRE-MAGNAN, Mune!. De I ob!tgatwn d 1nformat1an dons les contrats. Essai d'une théorie,
º:·, p. 155 ~ ss. Co~ectado a e:1e entendimento está o de que o erro sobre a própria prestação
nao podena ense1ara anulaça? do contrato, segundo a autora (idem, p.157). Luís Poças elenca,
de~tre _os exemr:Jos que estanam fora dos limites do dever de informar, "as circunstâncias re- AZEVEDO, Antonio Junqueira. Responsabilidade pré-contratual no Código de Defesa do
lativas a prestaçao da contraparte" (O dever de declaração inicial do risco no contrato de segura 111
Consumidor, cit., p. 180. Outra passagem também ilustra o_pensamento do_a~tor: ''.[ ... ] [n]as
cit., p. 174). ' tratativas de contratos, é preciso, porém, observar que os 1!1teresses contranos exigem das
109 f"."BRE-MAGNAN, Muriel. De l'obligation d' informatian dons les contrats. Essai d'une théorie, partes alguma cautela, diante das afirmações ~o a_dversário. _E conhecida a regra cavea! empt~;
C/t., p. 157-158. do direito inglês; também, segundo Trabucch1, nao se deve ir ao mercado desprevenido[ ... ] •
110 FABRE-MAGNAN, Muriel. De l'obligation d'information dons les contrats. Essai d'une théorie
cit., p. 168. ' (idem, p. 186).
GIOVANA BENETTI - 117
116 - DEVER DE INFORMAR VERSUS ÔNUS DE AUTOINFORMAÇÃO NA FASE PRÉ-CONTRATUAL

vantagem desses contratos [de aquisição de bens] é querer transformar circunstâncias e da dificuldade de obtenção de tais informações, surja o
o fornecedor em assistente social" 112 • dever de informar.
Não se trata, porém, de entendimento unânime. Há quem defenda O terceiro grupo de informações qualificadas como úteis e que ?º-
ser cabível o dever de informar sobre a conveniência do contrato, obser- deriam ser objeto do dever de informar estão as relacionadas a defeitos
vados certos aspectos, como a existência de circunstâncias negativas, isto no bem, como vício redibitório e evicção.
é, as que impediriam a satisfação dos interesses buscados por uma das Para Rubén S. Stiglitz, o devedor da informação deveria realizar
partes por meio da conclusão do futuro contrato, bem como uma situ- "todos os atos que sejam necessários a fim de evitar qualquer circuns-
. . d · »117
ação de forte desequiHbrio entre as partes 113- 114 • tância que obste ao credor o exercício dos seu;.direi:os_ e, ~ar~ntia . •
Entende-se que a informação sobre as condições do mercado e de Assim, cumpriria ao devedor informar sobre a situaç~o Jundica (a evic-
outras circunstâncias externas que importem para o juízo sobre a opor- ção) e sobre as qualidades materiais da coisa (os vícios ocultos), ~xce-
tunidade do negócio estaria, a princípio, na esfera do ônus de cada parte to se O credor devesse conhecer a informação quando da conclusao 118 do
de cuidar de seus interesses. Não caberia falar na imposição do dever de contrato ou se, por sua profissão, também deveria conhecer os vícios •
uma parte informar a outra a respeito 115 • Esta situação difere da proble- Patrice Jourdain, na perspectiva do Direito francês, elenca, igualmen-
mática anterior, pois não se trata de uma informação específica e deter- te, como dever do garantidor o fornecimento de informações à co~tra-
minante, com influência direta na composição da prestação de um dos parte sobre ônus ou problemas suscetívei~ de impactar no g~zo_ pacifico
figurantes, mas da avaliação do bem ou do serviço em comparação com da coisa. Explica não ser devida a garantia se a causa da ev1cçao ou do
119
outros no mercado - informação que, via de regra - poderia ser busca- vício era (ou deveria ser) conhecida pelo outro contratante . Até mes-
da por ambas as partes116 • Não se descarta, porém, que, a depender das mo um leigo não poderia invocar a garantia se os defeitos eram eviden-
120
tes e reconhecíveis por alguém usando diligência média •
No Direito brasileiro, o outorgado pode enjeitar a coisa recebida
112 AZEVED_O, An'.onio Junqueira. R:sponsa_bilidade pré-contratual no Código de Defesa do
Consum~dor, Clf., ~- 173-183. Tambem Ruben S. Stiglitz afasta o dever de informar a respeito da em razão de contrato comutativo, caso esta tenha defeitos ocultos que a
oport~rndade derivada ~o contrato:"[... ] el acreed~r-~ la información no p_uede pretender que tornem imprópria ao uso a que se destina, ou pleitear o abati:11ento em
el obhgado a ella se sust1tuya en la toma de la dec1s1on sobre la oporturndad y conveniencia
en la celebración dei contrato". (La Obligación Precontractual y Contractual de lnformación. seu valor. Ademais, o outorgante (ou, alienante, segundo o artigo 447 do
113
EI Deber de Consejo, cit., item 9).
GRISI, _Gi~s:PP~- L'Obbligo Pr~controttuole di tnformazione, cit., p. 112-113. Grisi sustenta que, Código Civil121 ) responde pela evicção, isto é, a garantia de ~ue ~ a~qui-
Pª~ª-ª ~~c1denc1~ do deve~ d; mfo_rmar, deveriam e~tar present_es i_gualmente os requisitos de rente terá a reposição de seu patrimônio se, por causa antenor a aliena-
ex1g1b1hdade da mformaçao, aval~ando-se, em particular, a ausenc1a de culpa do figurante que
desconhece os dados e o aproveitamento de tal inferioridade pela parte melhor informada ção, perder o direito sobre a coisa adquirida em decorrê~cia, via ~e r:gr~,
(idem, p. 124-125). de sentença judicial122 • O fundamento da evicção consiste na existencia
114 P~olo Gallo, com ap_oio no Código Europeu dos Contratos de autoria de Giuseppe Gandolfi, tam-
bem def:nde o cab1~e_nto do dev_erde informar sobre a conveniência do contrato (Asimmetrie
lnformat1ve 7Dov;n_d1 lnfor'!1az1one. Rivtsta di Diritto Civile, Anno LIii, n. 5, set.-out./2007, p.
674). ~ refendo Cod1go preve o dever de informar, durante as trata tivas, sobre circunstâncias STIGLITZ, Rubén s. La Obligación Precontractual y Contractual de lnf~rmación: EI Deber_ de
que seiam ou devam ser conhecidas e permitam a avaliação da validade e da conveniência 117 Consejo, cit., itens 13 e 19. No original: "todos los actos que sean necesanos a l_o~ fines de evitar
do contrato (Confira-se a versão italiana do Código, Artigo 7: "Nel corso delle trattative ogni cualquer hecho que obste a que el acreedor ejercite sus derechos de garanti~- -
parte ha il dovere di informare l'altra di ogni circostanza di fatto e di diritto, di cui sia o debba STIGLITZ, Rubén s. La Ob/igación Precontroctual y Controctual de lnformaoon. EI Deber de
essere a conoscenza, che consenta a quest'ultima di rendersi conto deli a validità e convenienza 118
dei contralto" (destacou-se). Consejo, cit., itens 18 e 19. . _
119 JOURDAIN, Patrice. Le Devoir de «se» Rense1g~er, Ctt., p- 140. ,, • .
115 Saliente-se que aqui não se está tratando da hipótese em que a parte detentora de informações JOURDAIN Patrice Le Devoir de «se» Rense1gner, ot., p. 141: Meme profane, 11 ne peut
as oculta dolosamente. 120 rétendre être garanti lorsqu'il [... ] pour des ~éfauts éviden~s décelables pa~ toute personne
116 Muriel Fabre-Magnan, apesar de indicar a possibilidade de o dever de informar recair sobre ~oyennement diligente". O Código Civil frances ~fast~, ~o artigo 164:: a garantia pe,lo vendedor
aspectos extrín~ecos ao contrato, considera que estes muito frequentemente poderiam ser no caso de O adquirente poder conhecer o defeito (v!CJº ap~ren!e): ,,Le vendeurn est pas tenu
bus~ados com igualdade 7n_t~e a~ P?rtes: "[... ] il n'est pas en théorie nécessaire que 1'infor- des vices apparents et dont l'acheteur a pu se convamcre lu1-meme • . _
mat1on porte sur une quahte mtrinseque de la chose objet du contrat, même si en pratique, Código Civil brasileiro, Artigo 447: "No~ ~o~tratos oneroso~, o alienante resp?n?e P,ela ev1cçao.
1~ plu_s s_o~_vent, da~s l'hypothese o_u l'info~mation est extrinseque au contrat, il y a égalité 121
Subsiste esta garantia ainda que a aqu1s1çao se tenh? ~eahzad_o _em h_a~ta publica -
d acces a I informat1on pour les parttes et, des lors, disparition de l'obligation d'information". MIRANDA, Custodio da Piedade Ubaldino. Comentanosoo Codtgo Ctvtl. Doscontrotosem geral
(FABRE-MAGNAN, Muriel. De l'ab/igation d'information dons lescontrots. Essai d'une théorie, cit., 122
(Arts. 421-480). Vol. V. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 259 e 261.
p.294).
118 - ÜEVER DE INFORMAR VERSUS ÔNUS DE AUTOJNFORMAÇÃO NA FASE PRÉ-CONTRATUAL
GiOVANA BENITTI - 119

de vício jurídico sobre o objeto do negócio, tratando-se de 'privação de


direito', e não somente 'privação da coisa'123 • A doutrina processualista brasileira, de modo geral, não concei-
tua fatos públicos 131 e acaba tratando-os como sinônimo de fato no-
Neste contexto, mostra-se razoável considerar que os defeitos im-
tório. De qualquer forma, considera-se que os fatos notórios têm sua
p~r~am_ em circunstâncias negativas a respeito do objeto negociado,
notoriedade atrelada à circulação da informação em dado local, daí
d1mmmndo o valor do bem e, se fossem conhecidos pelo credor da in-
advindo sua publicidade, ao passo que aos fatos públicos é a lei que
formação, impactariam seu interesse em adquiri-lo 124 • Cabe, portanto,
confere a publicidade132 • Por exemplo, a escritura de compra e venda de
ao d:~edor informar a seu respeito, salvo se os vícios forem aparentes e
de facil constatação. dado imóvel, posteriormente levada a registro no Registro de Imóveis,
reflete ter sido celebrado na presença de tabelião e consistirá em dado
Passando para o último parâmetro, importa saber se o fato notó- público, porém, não necessariamente de conhecimento notório.
rio ou de domínio público deve ou não ser objeto do dever de informar.
Entende-se não haver, a princípio, o dever de informar fato notó-
Notórios são os fatos que podem ser "facilmente e com seguran- rio ou de domínio público passíveis de acesso a qualquer dos contra-
125
ça [ ... ] conhecíve[isJ" , fazem parte da cultura normal de determina- tantes, salvo se for imposto por lei (como o aviso sobre os malefícios do
126
do grupo social e têm conhecimento comum na região e na época em cigarro ) 133 • Mesmo diante da falha do devedor em informar a contra-
127
q~e o~orrera~ • São os f~tos cujo conhecimento público e valor jurí- parte, poder-se-ia cogitar do conhecimento do lesado, admitindo-se, po-
dico sao extraidos de sua difusão em determinado meio 128•
rém, prova em contrário.
Igualmente se conceituam como notórios aqueles fatos sabidos ou Considerados os quatro grupos de parâmetros descritos, chega-se a

(Art. 3:~,
conhecidos por todos e, por conta disso, dispensam ser comprovados 129
I, do Código de Processo Civil). Ainda, há quem entenda
ser noto~io um acontecimento histórico que seja lembrado por "aque-
algumas conclusões, sendo a principal a de que o dever de informar pré-
-contratual não apresenta conteúdo ilimitado. A informação útil para a
decisão sobre a contratação e que, portanto, uma pessoa razoável con-
les que vivem no tempo em que o conflito deve ser solucionado"1Jo_ São sideraria como objeto do dever de informar compreende - frise-se, não
ex~1=_1-plos de fatos notórios: o suicídio do presidente Getúlio Vargas; as exaustivamente: o conteúdo do contrato, isto é, informações essenciais
pnsoes levadas a cabo por meio da "Operação Lava Jato"; a eleição de ligadas aos termos das prestações respectivas, que impactem a utilidade
Donald Trump nos Estados Unidos, etc.
ou o valor do bem ou do serviço; e a informação sobre defeitos do bem
(vício oculto e evicção). Qy.anto ao objeto da informação abranger da-
dos relativos à prestação da contraparte, entende-se que os figurantes
123
ASSI~, ~rak~n_de; A~~RADE, Ron_aldo Alves de; PESSOA ALVES, Francisco Glauber. Comentários têm o ônus de se informar sobre a própria prestação e, a princípio, não
ao Cod,g_o Cwil Bro~J!e,ro: Vol V. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 359 e 370.
124 GRISI, G1useppe. L Obbltgo Precontrattuole di lnformozione, cit., p. 105-106. haveria o dever de informar o outro figurante sobre a prestação deste,
125
ALVIM, Ar_r~da; ALVI":', _Ed~ard_o Arruda; ASSIS, Araken de; Andrade. Comentários ao código de
pr~cesso cw'.l: coment?rios a Lei 9.613/98 com as alterações da Lei 12. 683/12. 2ª ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 738. Ressalve-se Nelson Palaia, para quem, fatos públicos são aqueles, cujo "aconteciment_o t~ve
126 131
Palaia, Nelson.{! foto_notário. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 110. presença pública"; no fato publicado, o "ac~nt~ci'.;1ento, apes?r. de nao ter presença publica,
127
MARINOf'!I,_ Lwz Guilher~e; AR~NHART, Sério Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de seu conhecimento, foi levado ou tornado publico (O fota na tono, ctt., p. 24). .
Pr~cesso <:wtl comentado. 3 ed. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 48 e 88; Vidigal, 132 Por exemplo, reconhecendo comprovar o doc~rr:ento público os '.ª~os desenv_olv1dos na
7 4
Lu1s ~ul_alio de Bueno. F~to Notório. ln: Limongi França, Rubens (Coord.). Enciclopédia Saraiva presença de tabelião ou servidor (art. 405 do C~d1g? de Proc~sso C:vil); determinando aos
do D1re1to. "'.oi. XXX:'1. Sao Paulo: Saraiva, 1977-, p. 350. administradores de companhia aberta a comunicaçao de deliberaçao ou de f~to releva~te
128
CORNU, ~era~d ~dir.). _Voc~bul~ire juridiq~e. Paris: Presses Universitaires de France, 8 , p. ocorrido nos negócios (art. 157, § 4° da Lei 6.404/1976); assegurando~ aces~o a mfor~aç':es
19
619-620 (_ S~ d_1t d un fa1t qu1 esta la conna1ssance publique du milieu qu'il concerne et qui7tire de entes públicos, relativamente à "parcela dos rec_ursos públicos rece?1dos e,_asua des_tmaçao'.
sa valeu~1~rid1que (ou s_a force probante) desa diffusion dans ce milieu"). E, mais vagamente, sem prejuízo das prestações de contas a que esteJam legalmente obrigadas , por meio da Lei
'.ª~ºnotaria vem conceituado, na mesma obra, como sinônimo de "public, manifeste" (ide
1b1dem). m, nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação), etc. . . . .
129 133 Giuseppe Grisi refere não ser exigível a informação se estiverem domm10 publico ou pude_r ser
P_LÁCIDO _E S!LVA, Oscar Joseph de. Vocabulário jurídica conciso. Atualizado por Nagib Slaibi
Filho e Glauc1a ~arva!ho. 2ª ed. Rio de Janeiro: 2010, p. 354.
?'
adquirida por meio do emprego de diligência no~mal (L 'Obblígo Precontr?ttuale l~farmaz,one,
130 cít., p. 125). Judith Martins-Costa entende nessa linha, ressalva_ndo'..pore'.11, a h!potese em que
MARINOf'!I,_ Luiz Guilherme; ARENHART, Sério Cruz; MITJDIERO, Daniel. Novo Código de o dever de informar seja imposto por lei (Um aspecto da ?bngaç_ao_ de 1~~en1za_r: ~atas para
Processo CIVIi comentado, cít., p. 488.
uma sistematizacão dos deveres pré-negociais de proteçao no d1re1to c1v1I brasileiro. Revista
das Tribunais, VoÍ. 867, jan/2008. Acesso pela RTOnline).
120 - ÜEVER DE INFORMAR VERSUS ÔNUS DE AUTOINFORMAÇÃO NA FASE PRÉ-CONTRATUAL
G10VANA BENITTI - 121

porém, uma série de variá_veis concretas pode impactar O surgimento ou


(ii) na perspectiva do devedor, é preciso averiguar se ele detinha
afastamento do dever de mformar nesta hipótese.
ou deveria ter conhecimento sobre a informação pertinente e
Relativamente ao dever de informar sobre a oportunidade decor- útil aos interesses do credor;
rente do contrato, afastou-se, a princípio, o dever a este respeito pois se
(iii) na perspectiva do credor, a avaliação do preenchimento do
tra~a de juízo atribuível a cada uma d~s partes, dependendo da ~ompa-
ônus de autoinformação perpassa pelo exame do nível de di-
raçao com dados de mercado, aos quais ambas poderiam ter acesso para
ligência envolvido, que comporta diferentes graus, para o tipo
p_roceder à avaliação da: ~antagens e desvantagens envolvidas no negó-
de informação e para os meios à sua disposição para que, com
ci~. Por fi~, o fato notono ou o de domínio público, a princípio, tam-
esforços razoáveis, buscasse as informações no caso concreto;
bem estariam excluídos, pois são acessíveis a ambas as partes a quem
competiria conhecê-los. ' (iv) se o credor esforçou-se para acessar os dados e, ainda assim,
não foi possível obtê-los, terá se desincumbido de seu ônus.
Cabe rememorar que os parâmetros elencados ao longo do texto
Resta afastado o ônus quando configurada a impossibilidade
devem s~r confro~tados_ com o exame concreto e atento à variação no
(ou a extrema dificuldade) de se informar;
grau da mformaçao devi~a de acordo com as circunstâncias específicas
do caso. Por exemplo, as mformações úteis, a princípio, serão mais am- (iv) diversamente, concluindo-se pela ignorância ilegítima do cre-
plas na negociação de um contrato de prestação de serviços envolvendo dor, não há dever de informar.
uma pesso~ i~osa e ~nferma_do que em um contrato fumado entre par- Nessa interação entre o dever de informar e o ônus de autoinfor-
tes empresarias. Assim, as circunstâncias concretas determinarão O in- mação também vale notar que há diferentes graus, pois quanto maior o
cremento ou a atenuação no nível da informação devida, modulando 0 ônus de uma parte de se informar - em razão, por exemplo, dos conhe-
alcance do dever de informar. cimentos obtidos por meio de sua profissão (v.g., um fazendeiro deve
conhecer dados relativos à raça de gado que costuma adquirir)-, menor
CONCLUSÕES
(ou até inexistente) será o dever da contraparte de prestar informações
~uito se evoluiu em matéria de dever de informar, desde a entrada relevantes e úteis - seguindo no exemplo do fazendeiro, pode-se pen-
em vigor do Código Civil de 2002, especialmente em virtude do papel sar na desnecessidade de a contraparte informar-lhe acerca das carac-
desempenhado pela ~oa-fé objetiva como fonte desse dever na fase pré- terísticas gerais da raça de gado, como o tamanho médio dos animais,
-contratual. Volta~o a proteção dos legítimos interesses da outra parte e a progressiva aquisição de peso de um novilho, a idade mais apropria-
da co1=_fiança sus~i~a~a ~º. contexto das negociações preparatórias à ce- da para o abate, etc.
leb~açao do negoc10 JUndico, o dever de informar há de ser examinado De todo modo, independentemente da intensidade dessa interação,
conJuntamente com o ônus de autoinformação. não se pode perder de vista que, além de prestar informações verazes e
. Estabelecer as fronteiras entre o dever de informar e O ônus de au- completas quando devido, aos figurantes cabe o dever de não transmitir
toinformação não é uma tarefa fácil, especialmente em razão das nuances informações falsas com vistas a induzir a contraparte em erro. Mesmo
das situações concretas, a demandar uma infinidade de soluções. Como quando não haja o dever de informar determinada circunstância, isso qão
parte do esforço de se construir critérios para auxiliar na busca de uma confere à parte o direito a mentir ao outro figurante ou a prestar-lhe uma
resposta para a tensão entre essas figuras, tem-se que: informação "pela metade", objetivando provocar o engano da contrapar-
(i) o dever de informar supõe o desnível de informação entre as te. Ao assim agir, a discussão sobre a tensão entre o dever de informar
partes, bem como o conhecimento - ou o dever de conhecer e o ônus de autoinformação pode acabar cedendo lugar à controvérsia
~ de uma informação relevante pelo devedor; a relevância da acerca da ocorrência ou não de dolo na relação entre as partes, o que
i~fo~maç~o. para a contraparte; e, por parte do credor, a igno- acrescenta contornos diferentes ao caso e pode levar a distintas soluções.
rancia legitima daquela informação;
ANTONIO PEDRO GARCIA DE SOUZA - 123

IV. As GARANTIAS AUTÔNOMAS À PRIMEIRA DEMANDA


Antonio Pedro Garcia de Souza1

A PROBLEMÁTICA
A garantia autônoma à primeira demanda constitui modalidade re-
cente de garantia fidejussória, atípica, desenvolvida pela praxe mercan-
til para superar os inconvenientes do vínculo acessório que marcam as
garantias especiais das obrigações no Código Civil.
Ao convencionarem uma garantia autônoma para determinada
obrigação contratual, as partes buscam afastar o regime jurídico aplicá-
vel à fiança para criar outro mais efetivo, embora sem a corresponden-
te previsão legal.
Apesar da sua crescente difusão no mercado brasileiro, a garantia
autônoma é ainda pouco examinada pela doutrina e jurisprudência. Nas
breves linhas a seguir, delinearemos o conceito e a função da garantia au-
tônoma, os efeitos da inserção da cláusula à primeira demanda e o seu tra-
tamento no direito brasileiro à luz de certas disposições do Código Civil.
INTRODUÇÃO: AS GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES E A
SUA NATUREZA ACESSÓRIA
Em parcela significativa dos negócios comerciais celebrados hoje,
sobretudo aqueles que organizam operações complexas, as partes esta-
belecem momentos distintos para o cumprimento das suas respectivas
prestações.
O hiato temporal entre as obrigações pode ocorrer tanto em contra-
tos de trato imediato, como sucessivo ou complexo, sejam eles de conces-
são de crédito, financiamento, empreitada, prestação de serviços, locação
de bens, equipamentos, licença de marca, tecnologia, entre muitos outros.
Como é comum na dinâmica desses negócios, as partes alternam-se
entre posições credoras e devedoras ao longo da execução contratual. A
despeito disso, imputa-se um risco maior, traduzido numa exposição pa-
trimonial, àquele que satisfaz suas obrigações primeiro para então rece-
ber a contraprestação remanescente por último. Só depois de adimplida

Advogado. Mestre em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São


Paulo (USP). Doutorando em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo (USP). Professor convidado dos cursos de pós-graduação em Direito Societário,
Mercado de Capitais e Processo Societário na Fundação Getúlio Vargas (FGV).
124 - As GARANTIAS AUTÔNOMAS À PRIMEIRA ÜEMANDA ANTONIO PEDRO GARCIA DE SOUZA - 125

a obrigação final, a comutatividade e o sinalagma obrigacional, conce- gação principal resvalarão para a obrigação de garantia, obstando sua
bidos no contrato, se reequilibram e aperfeiçoam. execução. Assim, se a parte devedora disputar a validade da obrigação
Justamente para minorar ou neutralizar os riscos de inadimplemen- principal, tal questionamento se estenderá à obrigação de garantia. Se a
to e a exposição patrimonial da posição credora, associados ao intervalo parte devedora suscitar qualquer defesa relacionada à obrigação princi-
temporal entre as prestações, afigura-se comum a estipulação de garan- pal, a obrigação de garantia restará igualmente contestada.
tias especiais. Por aumentarem as salvaguardas da parte credora contra Em termos práticos, o devedor da obrigação de garantia, seja ele o
o inadimplemento obrigacional, as garantias funcionam como fator de devedor principal ou terceiro, poderá obstar o cumprimento da obriga-
viabilidade e redução de risco dos negócios comerciais, além de dimi- ção, opondo todas as defesas relacionadas ao contrato principal, se assim
nuição de juros nas operações de crédito. 2 o fizer o devedor principal. O credor, então, para excutir ou executar a
As garantias especiais das obrigações previstas no Código Civil di- garantia que lhe foi outorgada, real ou fidejussória, terá que aguardar a
videm-se em duas grandes categorias: reais e fidejussórias. 3 Na primeira, resolução da disputa relacionada à obrigação principal.
atribui-se ao credor um direito real sobre determinado bem do deve- Os entraves relativos à execução da garantia por conta de sua na-
dor ou de terceiro, como garantia da prestação. Na segunda, vincula-se tureza acessória, longe de revelarem cogitação puramente acadêmica,
o patrimônio de um terceiro, estranho à relação obrigacional, ao cum- criam uma série de inconvenientes à parte credora. Afinal, a execução
primento da dívida. 4 da garantia pressupõe o inadimplemento da obrigação principal e essa
As garantias reais encontram sua vulnerabilidade financeira na po- circunstância raramente ocorre de modo incontestado pela parte deve-
tencial depreciação do bem gravado, enquanto as garantias fidejussórias dora. O litígio envolvendo obrigações garantidas é, portanto, provável.
encontram sua fragilidade na possível diminuição patrimonial do tercei- Em razão disso, a satisfação da obrigação principal, pela execução
ro, vinculado à satisfação do crédito. Se bem contemplados esses riscos, da garantia, torna-se demorada e custosa, agravando a exposição do cre-
no entanto, as garantias tenderão, sejam elas reais ou pessoais, a aumen- dor. Do ponto de vista financeiro, essa característica prejudica o recebi-
tar a proteção do credor, reduzir o fator de risco da operação e, por con- mento imediato dos valores objeto da garantia, impedindo a satisfação
sequência, diminuir o custo financeiro do negócio. imediata do crédito, pois a condiciona à determinação judicial nesse sen-
Em termos jurídicos, todavia, ambas as modalidades de garantia tido. A garantia perde, nesse contexto, sua função de liquidez ao credor.
guardam um inconveniente sob a perspectiva do credor, segundo o re- Exatamente para suprir os inconvenientes associados ao vínculo
gramento previsto no Código Civil: sua natureza acessória em relação à acessório da garantia, popularizou-se, primeiro no comércio internacional
obrigação principal (acessoriedade}. 5 e depois em contratos domésticos, a garantia hoje conhecida como ga-
Por conta de sua relação de acessoriedade com a obrigação princi- rantia autônoma, modalidade de garantia fidejussória. Sua execução busca
pal, a obrigação de garantia sofrerá as consequências jurídicas imputadas precisamente desprender-se das disputas relativas à obrigação principal.
à obr\gaç_ão principal a qual visa garantir (acessorium sequitur principale).
1. GENERALIDADES DA GARANTIA AUTÔNOMA
Isso significa que eventuais controvérsias jurídicas relacionadas à obri-
Conquanto os primeiros registros da garantia autônoma remontem
2
MENEZES LEITA0, Luis ManuelTelles de. Garantias das Obrigações. 2ª ed. Coimbra:Almedina, aos estudos do autor germânico RuDOLF STAMLER, publicados em 1886,
2008, p. 100. THEODORO JUNIOR, Humberto. Cédula de Crédito Bancário. ln. Revista de
Direito Bancárjo. nº 22, 2003, p. 671. foi o cenário pós-guerra que difundiu seu uso, quando intensificaram-se
3 MENEZES LEITAO, Luis Manuel Telles de, ob. cit., p. 15. Há também diversos outros institutos
que sã? co~siderad~s garantias_ indiretas, que vinculam um terceiro ao cumprimento da dívida, as operações transnacionais. 6 Naquele ambiente, havia imensuráveis ris-
°:ª~ nao sao. exc~us1vamente_ figuras de garantias. São exemplos, a assunção cumulativa de
d1v1da E; asohdaned~de passiva (arts. 299 e 264 do Código Civil). MARTINEZ, Pedro Romano. 6 Antonio Menezes Cordeiro explica que a tradição da Alemanha em lidar com obrigações
Garantias de cumprimento. Coimbra: Almedina, 5ªed., 2006, p. 254/256. abstratas e obrigações independentes propiciou o surgimento deste instituto naquele país,
4 NOR?NHA, F:rnan~o. D_ireitos das Obrigações. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 190/191 embora enfatize que agarantia autônoma não é uma obrigação abstrata. (MENEZES CORDEIRO,
5 Referimo-nos as obnga5oes em geral, excluindo-se as cambiais, as quais, a exemplo do aval, Antonio. Manual de Direito Bancário, Almedina, 2006, p. 638). ALMEIDA COSTA, Maria Júlio;
possuem natureza autonoma. _E'?1pregaremos o ~onceito "acessoriedade", cunhado pelos PINTO MONTEIRO, Antonio. Garantias Bancarias- Contrato de Garantia à Primeira Solicitação.
autores portugueses, para aludir a natureza acesso ria das garantias. ln: Coletanea de Jurisprudência. Ano XI, 1986, p. 18. Aconstrução do autor germânico, de
ANTONIO PEDRO GARCIA DE SouZA - 127
126 - As GARANTIAS AUTÔNOMAS À PRIMEIRA ÜEMANDA

vezes, denominam-na também de garantia bancária, mas inexiste restri-


cos políticos e receio de calotes, porque os contratantes internacionais, 12
ção para que que seja prestada por outras instituições.
situados em continentes distintos, mantinham relações comerciais espo-
rádicas e distantes com empresas locais. A garantia autônoma prestada A despeito de sua autonomia, a obrigação do garantidor, por se tratar
por um banco de renome apresentou-se como solução viável para eli- de uma obrigação de garantia, afigura-se de "segunda ordem'' em relação
minar os riscos políticos, sociais e econômicos de inadimplemento das à obrigação do devedor garantido. 13 O garantidor apenas será acionado a
vultosas contratações transnacionais. 7 cumprir sua obrigação após o descumprimento da obrigação do devedor.
Não se trata de obrigação subsidiária, na qual se busca executar, primeiro,
O contrato de garantia autônoma pode ser definido como aquele
o devedor/garantido, para depois se executar o garantidor. Não há para o
pelo qual o garantidor obriga-se a pagar ao beneficiário "certa quantia
garante um beneficio de ordem, mas a obrigação de garantia para tornar-se
em dinheiro, no caso de alegada inexecução ou má execucão de deter-
exigível pressupõe o descumprimento da obrigação principal pelo devedor.
minado contrato, sem poder invocar em seu benefício qu~squer meios
de defesa relacionados a esse contrato. "8 Seu objetivo é assegurar ao be- A função de garantia, ademais, traz repercussões para a sua autono-
neficiário da garantia o resultado financeiro da prestação inadimplida. 9 mia em relação ao contrato-base, como se verá adiante, porquanto, in-
dependentemente do seu grau de independência, ela guardará alguma
De maneira geral, os contratos de garantia autônoma contêm pre-
visão que torna exigível a garantia mediante simples interpelação do vinculação com a obrigação principal.
garantidor pelo credor. Por isso, muitas vezes, denominam-se esses con- 1.1. ESTRUTURA
tratos como contrato de garantia à primeira demanda ou demandguarantee
Assim como muitas das garantias pessoais, a garantia autônoma
agreement, associando indistintamente a autonomia e a automatização
estabelece uma relação triangular (ressalvadas as relações paralelas, em
do pagamento. 10 Tratam-se, contudo, de qualidades distintas. A inserção
regra pactuadas nas obrigações de contragarantia). 14 Sob a ótica da obri-
da cláusula de pagamento da garantia à primeira demanda pelo benefici-
gação de garantia, tem-se (1) a relação entre o garantido e o benefici-
ário conjuga-se com a autonomia da garantia, mas é possível estabelecer
ário; (2) o garantido e o garantidor; e (3) o beneficiário e o garantidor,
a garantia autônoma sem cláusula à primeira demanda, como também é
consoante ilustra a figura abaixo:
possível estipular garantia acessória com cláusula à primeira demanda.11
Comumente, a garantia autônoma é prestada por bancos, daí porque, por Beneficiário

acordo com GALVÃO;E_LLES, baseava-se numa categoria geral de "contratosdegorantio", na qual


destac,~va, como espec1e, os contratos independentes e autônomos de garantias, entendidos 1 3
c?m~ acordos tendente_s o ossegurorde'.erminodo res~lta~a ou a 05,sumir a responsabilidade pelo
nsco 1~erente a d~termmado emp~;end1mento, sen:i /J!/açoo e::.pecífica com certa obrigação cujo
cumpnn:e~to se_ visasse assegurar. (TELLES, lnocenc10 Galvao. Garantia Bancaria Autonoma.
ln: O ~1re1to. Lisboa: Cosmos, ano 120, 1991, p. 281)
7 Posten_ormente, com o boom d~ petról:º: a garantia autônoma consolidou-se, porque permitia
aos pa~ses produt~re~ de petroleo,_ ex1g1r dos agentes econômicos estrangeiros garantias de
cumpr!mentos estave1s, seguras e celeres. (JARDIM, Monica. A Garantia Autónoma. Coimbra:
Almedma, 2002, p. 19) Garantido Garantidor
8 TELLES, Inocêncio Galvão. Garantia Bancaria Autonoma. ln: O Direito. Lisboa: Cosmos, ano
120, 1991, p. 283 2
9 Veja:se ri:iais definições da garantia autônoma em ANTUNES VARELA, João de Matos, Das
Obngaçoes em Geral, Vol.11, 7ª edição, Ed. AI medi na, 2009, p. 515 12
Por exemplo, a doutrina portuguesa aventa a prestação da garantia autônoma por parte de uma
10 K~MEL~AJER DE CARLUCCI, Aida R. Las Garantias a Primera Demanda. ln: Revista dos companhia de seguros. Ver ATAÍDE, Daniel Medina.A Garantia autônoma e a fiança: distinções
Tnbuna1s, ano 85, 1996, p. 14/15. WALD, Arnoldo. A Garantia a Primeira Demanda no Direito e divergências. ln. Garantias das obrigações. Coimbra: Almedina, 2007, p. 182
Comparado. ln: Revista de Direito Mercantil, p. 5. SVARCA, lnga. First Demand Bank SIQUEIRA RIBEIRO, Antonio. Garantia Bancária Autônoma à Primeira Solicitação: Algumas
Guarantees, p. 14. Questões. ln: Estudos em homenagem a Inocêncio Galvão Telles, Almedina, 2002,p. 340/341.
11 CO_STA GOMES, ~anuelJanuario. A chamada "fiança ao primeiro pedido". ln: Garantias, Vol.l, COSTA GOMES, ManuelJanuario. Assunção Fidejussória de Divida, Ed. AI medi na, 2000, p 59.
Coimbra: Almedma, 2004, p. 141 TELLES, Inocêncio Galvão, ob. cit., p. 30
14
ANTONIO PEDRO GARCIA DE SOUZA - 129
128 - As GARANTIAS AuTôNOMAS À PRIMEIRA DEMANDA

O credor passa a ter um "novo devedor", que responde, numa pers- to-base, mesmo aquelas atinentes, por exemplo, (i) à invalidade do con-
pectiva econômica, pela mesma dívida. Esses dois "devedores" encon- trato-base, (ii) invalidade da obrigação garantia, (iii) impossibilidade
tram-se adstritos ao mesmo crédito. 15 superveniente de cumprimento do contrato-base, (iv) a direito de com-
pensação ou de retenção, entre outras, salvo prova manifesta a seu favor
-Sob o ponto de vista jurídico, surge nova relação obrigacional, para-
lela àquela subjacente ao contrato principal. Haverá, ao lado do devedor (cf. seção 3 abaixo). 19
primário, um segundo devedor, secundário (critério jurídico-cronológico), Não obstante, é possível regular a extensão da autonomia, permi-
cuja prestação não se confunde com a do primário. 16 Qyanto ao crédito, o tindo-se ao garantidor invocar determinadas defesas, exceções ou justi-
primeiro será primário, ao passo que o segundo será crédito de garantia.17 ficativas, bem delimitadas, relacionadas ao contrato-base para obstar a
satisfação da garantia. O grau de autonomia da garantia será delimitado
1.2. A AUTONOMIA E OS SEUS EFEITOS a partir da admissão de defesas relacionadas ao contrato-base. À medida
A característica essencial da garantia estabelecida entre o beneficiá- em que mais defesas relacionadas à obrigação principal sejam admissí-
rio, credor do contrato-base, e o garantidor é a sua autonomia em relação veis, menor será a autonomia da garantia e vice-versa.
ao contrato-base. Por meio dela, rompe-se o vínculo acessório que mar- 11
1.3. A CLÁUSULA À PRIMEIRA DEMANDA"
ca as obrigações de garantia no Código Civil (excetuadas as cambiais). 18
Apesar das facilidades criadas pela garantia autônoma em favor do
A autonomia da obrigação de garantia impede o garantidor de se
beneficiário, subsiste, todavia, um potencial e significativo entrave à sua
valer das defesas fundadas na relação principal, oponíveis pelo devedor-
execução: o ônus de provar os pressupostos de exequibilidade da garan-
-garantido, para obstar o cumprimento da garantia. Se interpelado a
tia, pois nem sempre serão de fácil aferição. 20 Basta pensar nos contratos
cumpri-la, o garantidor não poderá invocar defesas relativas ao contra-
de empreitada de grande porte, repletos de obrigações de parte a parte,
15 COSTA GOMES, Manue!Januario. Assunção Fidejussória de Divida. 1 ª ed. Coimbra: Almedina, em que a execução da garantia, por vezes, poderá depender da compro-
2000. p.58. .
16 !bid., p. 61. A depender do caso (solidariedade, assunção cumulativa de dívida, etc.), as distin- vação de um fator técnico.
ções entre o devedor primário e secundário serão quase imperceptíveis, mas nenhuma dessas
relações confundem-se. Nessas condições, mesmo a autonomia da garantia é insuficiente para
17 Expressão utilizada por COSTA GOMES, Assunção Fidejussória de Divida. 1ª ed. Coimbra: impedir disputas entre as partes referentes aos pressupostos de exequi-
Almedina, 2000. p. 58
18 A acessoriedad~ representa vínculo de dependência qualificada entres as obrigações. Para bilidade da garantia. Com isso, o beneficiário se verá obrigado a recor-
MANUELJANUARIO DA COSTA GOMES, o direito plenamente acessório é o direito conforme
o outro. Do lado passivo, diz o autor: "uma obrigação plenamente acessória é uma obrigação rer à via judicial ou arbitral e a incorrer nos custos, na demora e demais
conforme a outra. O âmago da acessoriedade nas garantias pessoais, segundo o autor, encontra- contratempos inerentes ao processo judicial ou arbitral, a fim de buscar
-s_e_ na invo<;abilidade das exceções ~erivadas da obrigação principal e a extensão da responsa-
b1hdade. Citando MEDI CUS, o refendo autor explica a acessoriedade referindo-se à existência o cumprimento forçado da garantia. Somente com o desfecho favorável
de um "direito determinante" ou "dirigente" em contraposição a um direto apoiado ou dirigido.
COSTA GOMES, Ma~uelJanuario.Assunção Fidejussóriade Divida. 1ª ed. Coimbra: Almedina,
do litígio ou a obtenção de tutela antecipatória, poderá ele executá-la.
2000. p. 108. CALVAO DA SILVA, detalhando o instituto da acessoriedade, define-o em três A demora no desfecho do litígio acaba por favorecer o devedor, minan-
planos: (a) dependência genética; (b) dependência funcional; e (c) dependência extintiva. Pela
dependência genética, entende o autor que a obrigação acessória não é válida se não for a do a eficiência da garantia.
obrigação principal.Já a dependência funcional se dá quando o sujeito passivo da obrigação
acessória pode opor os meios de defesas relativos ao sujeito passivo da obrigação principal Já para a instituição garantidora, o litígio travado entre as partes,
para obstar o cumprimento da obrigação. Por fim, a dependência extintiva leva à extinção da ao menos na esfera extrajudicial, imputa-lhe a delicada incumbência de
obrigação acessória se extinta a obrigação principal. SILVA,João Cal vão da. Garantias Acessórias
e Garantias Autônomas. ln: Estudos de Direito Comercial. Coimbra: Almedina, 1966, p. 331/361. examinar as razões das partes e decidir se paga ou não a garantia. Ao re-
Orlando Gomes, entre nós, ao explicar a fiança como negócio acessório expõe que "A garantia
pessoal prestada c~m a fiança pressupõe, logicamente, outro contrato, de cuja existência e vestir-se dessa função, o garantidor deve agir com estrita independên-
validade depende. E, portanto, um vínculo que se contrai em função de outro. Trata-se, desse
modo, de um contrato acessório." (GOMES, Orlando. Contratos. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense,
1984, p. 493). Acessoriedade significa, portanto, que a existência, validade e o conteúdo da
obrigação principal condicionam a existência, validade e conteúdo da obrigação de garantia. 19 CORTEZ, Francisco. A Garantia Bancaria Autônoma-alguns problemas. 1992, policop. e ROA,
Se a primeira se extinguir ou for considerada inválida, a segunda sofrerá os mesmos efeitos. p.532.
Em suma, a obrigação, quando acessória, subordina-se, à relação principal, seguindo a mesma 20 ALMEIDA COSTA, MarioJúlio; PINTO MONTEIRO, Antonio. Garantias Bancarias-Contrato de
Garantia à Primeira Solicitação. ln: Coletaneadejurisprudência(parecer). Ano XI, 1986, p. 19.
sorte desta.
130 - As GARANTIAS AUTÔNOMAS À PRIMEIRA DEMANDA ANTONIO PEDRO GARCIA DE SOUZA -131

eia e zelo, sob pena de sofrer as consequências do inadimplemento do Em suma, a garantia autônoma munida da cláusula à primeira de-
contrato de garantia ou do pagamento indevido, a depender do caso. 21 manda alcança o apogeu de sua autonomia, 25 tornando a garantia mais
Justamente para remediar esses embaraços, introduziu-se nos con- segura, expedita e eficaz para o beneficiário e mais operacional para o ga-
tratos de garantia autônoma a cláusula de pagamento à primeira de- rantidor. Em termos de segurança financeira ao credor, a cláusula equi-
manda (ou "à primeira solicitação" ou "on .first demand"). Em suma, essa para-se ao depósito de dinheiro em conta garantia (escrow account), por
cláusula permite ao beneficiário exigir do garantidor o pagamento da ser prestada, a rigor, por instituição altamente capitalizada (financeira
garantia imediatamente, mediante simples interpelação do garantidor. 22 ou seguradora), dispensando, todavia, os seus inconvenientes, pois os re-
Assegura-se ao credor o resultado econômico estipulado no contrato, cursos permanecem sob movimentação livre pelo período da garantia.
mediante interpelação do garantidor, independentemente das discus- Já em relação ao garantidor, a cláusula retira-lhe da posição de ár-
sões concernentes à obrigação principal. 23 bitro/juiz, permitindo pagar a garantia de "olhos fechados", para rece-
A lógica dessa disposição é a de facilitar, tanto quanto possível, o ber, depois, de "olhos fechados" do devedor, sem qualquer envolvimento
recebimento da garantia. Por isso, em regra, estipula-se no contrato de na relação entre o credor/beneficiário e o devedor/garantido. 26 Com ela,
garantia que a simples interpelação do garantidor torna imediatamente permite-se ao beneficiário a satisfação integral da sua pretensão, pela
exigível a garantia.A própria interpelação do garantidor constitui a con- simples interpelação do garante.
dição para que a garantia se torne devida. Em alguns contratos, atribui- Apesar dessas facilidades, cumpre registrar que a cláusula à primeira
-se ao beneficiário o ônus de instruir a comunicação ao garantidor com demanda não altera o caráter de segundo grau da garantia. Mesmo com
a prova documental de que a garantia se tornou exigível (por exemplo, a cláusula à primeira demanda, a garantia torna-se exequível somente
a prévia notificação do devedor ou o implemento de determinado ter- após o descumprimento da obrigação garantida. Esta sistemática per-
mo ou condição do contrato principal). Seja como for, a exigência de tence à sua gênese como obrigação de garantia. Eventual interpelação
prova documental pode dar azo a questionamentos, subvertendo o ime- do credor antes do descumprimento do devedor será considerada abu-
diatismo próprio desse mecanismo. Por isso, é preferível à parte credo- siva (cf. item 3.4 infra).
ra estipular que a simples interpelação do garantidor obriga o imediato
pagamento da garantia. 1.4. ESPÉCIES DE GARANTIAS AUTÔNOMAS
A cláusula à primeira demanda aumenta a exigibilidade da tradicio- As garantias autônomas podem revestir-se de diversos tipos e for-
nal estrutura de garantia autônoma, porque elimina qualquer pressupos- mas, com funções variadas. Elas serão tão diversificadas quanto as obri-
to adicional para a execução da garantia. Por consequência, ela reduz a gações contratuais que visam a garantir. Suas formas mais usuais são as
litigância entre garantidor, devedor e beneficiário acerca da ocorrência seguintes27 :
dos pressupostos para a execução da garantia e todos os custos e riscos Bid Bonds: nesta modalidade, a garantia destina-se a assegurar a
a ela inerentes. 24 A cláusula à primeira demanda introduz a ratio solve et manutenção e a firmeza de uma oferta feita em um processo de concor-
repete: paga-se primeiro, discute-se depois. rência. Objetiva-se com ela assegurar que o ganhador do procedimento
de concorrência honrará a proposta apresentada. Por meio dela, o or-
ganizador do procedimento protege-se contra o risco de o proponente
21 ALMEIDA COSTA, Maria Júlio; PINTO MONTEIRO, Antonio. ob. cit., p. 20, informam que "o descumprir a proposta e assim incorrer em custos financeiros e tempo-
princípio fundamental que deve pautar-se o banco é o de uma estrita neutralidade em face dos rais, eventualmente convocando o segundo colocado. Essa modalida-
litígios ou controvérsias gerados em volta da relação comercial base, como é salientado pela
jurisprudência de todos os países em maior ou menor intensidade." de de garantia afigura-se comum em procedimentos licitatórios. Na sua
22 CORTEZ, Francisco. A Garantia Bancaria Autônoma-alguns problemas. 1992, policop. e ROA,
p.536.
23 COSTA GOMES, Manuel Januário da. Estudos de Direito das Garantias, vai. I, Coimbra: 25 Jbid., p. 537/538
26 CORTEZ, Francisco, ob. cit., p. 538 . . .
Almedina, p. 159 e Gabriel leal Figueiredo. Contrato de Fiança. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 73 MARTINEZ, Pedro Romano. ob. cit., p.130/131. PESTANA DEVASCONCELLOS, L. Miguel. D1re1to
24 JARDIM, Manica. ob. cit.p. 195. 27
das Garantias. Coimbra: Almedina, 2010, p. 127/128.
132 - As GARANTIAS AUTÔNOMAS À PRIMEIRA ÜEMANDA ANTONIO PEDRO GARCIA DE SOUZA - 133

sistemática, ela funciona como um meio para compelir o proponente a noma à primeira demanda é figura corrente nos negócios comei;ciais. Sua
honrar sua oferta, sujeitando-o à execução da garantia, caso não honre validade é reconhecida em razão do princípio da liberdade contratual. 32
sua proposta no processo competitivo. Nos Estados Unidos da América e no Canadá, as instituições de
Performance Bonds: são tradicionalmente conhecidas como garan- crédito e as que exercem funções similares não podem emitir garan-
tias de resultado. Por meio dela, o garantidor visa assegurar o resultado tias de cumprimento de obrigação a terceiro, seja ela acessória ou autô-
econômico correspondente ao cumprimento da obrigação garantida. 28 noma. 33 Essa proibição, entretanto, não impediu bancos americanos de
Esta modalidade é frequentemente utilizada nos contratos de emprei- prestarem garantias autônomas, por meio de instrumentos de pagamento
tada de grande porte. Em geral, o valor da garantia representa uma pe- denominados stand-by letters of credit, pagáveis assim que demandados.
quena porcentagem do preço global do contrato.
Repayment Bonds: são comuns nos contratos de adiantamento de "Lo gorontie outonome est l'engogement por leque{ le goront s'oblige, en considérotion d'une obli-
gotion souscrite porun tiers, à verserune som me soità premiêre demande, soitsuivont des modolités
recursos. Nesses casos, afigura-se usual a constituição de garantia, por convenues.
meio da qual o garantidor obriga-se a reembolsar as quantias despendi- Le goront n'est pos tenu en cos d'obus ou defraude manifestes du bénéficioire ou de co{[usion de
celui-ci ovec {e donneur d'ordre.
das pelo beneficiário, caso o devedor descumpra a obrigação de restituí- Le goront ne peut opposer oucune exception tenont à l'obligotion gorontie.
-las. Pode-se convencionar a redução proporcional da garantia, conforme Soufconvention contraire, cette sâreté ne suit pos l'obligotion gorontie."
No passado, maiores dúvidas a respeito da validade dessa modalidade de garantia foram
a restituição progressiva do crédito concedido. Nessa condição, o ga- 32
suscitadas na Itália, França e Portugal, onde parcela relevante da doutrina entende que a
rante exerce função assecuratória, em vez de indenizatória como ocor- causalidade do negócio jurídico constitui elemento de validade da obrigação. Nesses orde-
namentos, parte da doutrina e jurisprudência entendia tratar-se de negócio jurídico abstrato
re noutras espécies. sem previsão legal, motivo pelo qual a figura seria inadmissível. Para essa corrente, a renúncia
às oponibilidades derivadas do contrato-base se associaria à abstração do negócio jurídico.
Há também diversas outras modalidades utilizadas no comércio Não obstante, posteriormente, a doutrina e jurisprudência desses países desenvolveu-se para
internacional: retention money bond, payment guarantee e maintenance considerá-la um negócio jurídico causal, por exercera função de garantia, reconhecendo-lhe a
validade. A esse respeito, cite-se, em especial, o ilustre civilista português, Manueljanuário da
guarantee2 9• Costa Gomes, que distingue "autonomia" de "abstração", concluindo pela validade da garantia
autônoma por vislumbrar nela a função de garantia como causa: "Tem sido entendido, o nosso
ver bem, que, tal como ofiança, o garantia bancorio autônomo é um negocio couso/porque viso uma
1.5. VALIDADE DA GARANTIA AUTÔNOMA NO DIREITO BRASILEIRO Junção de garantia, que esta objectivodo no respectivo contrato; o garantia em couso é sucedâneo
de um depósito em dinheiro ou valor nos mãos do devedor; o que não equivale o uma legitimação de
Diante da sua crescente popularidade, a garantia autônoma à primeira uma qualquer arbitro rio utilização de garantia pelo credor." (Assunção Fidejussória de Divida,
demanda veio a ser regulamentada por algumas instituições internacio- ob. cit., p. 72). Nesta mesma linha, ALMEIDA COSTA, MarioJúlio; PINTO MONTEIRO, Antonio
sustentam que o fato de se abstrair, neste negócio, as vicissitudes do contrato base, significa
nais. 30 Em diversos países da Europa, apesar de atípica, 31 a garantia autô- apenas que a garantia é autônoma, o que não significaria ser desprovida de causa. (Garantias
Boncorios-Controtode Garantia à Primeiro Solicitação. ln: Coletanea de Jurisprudência. Ano XI,
1986, p. 21)
Na Grã Bretanha e nos Estados Unidos da América os tribunais qualificam esse negócio jurídico
28 CORREIA, A. Ferrer. Notas para o Estudo do Contrato de Garantia Bancaria. ln: Revista Brasileira como abstrato e válido, diante do princípio da liberdade contratual. (HOROWITZ, Deborah.
de Direito Comparado. Rio de Janeiro: ed., 1991, p. 2/3. Letters ofCreditand Demand Guarantees, defencesto payment. 1ª ed. NewYork: Oxford, 2010
29 Nas garantias de retenção (retention money bond), assegura-se ao exportador o pagamento e SVARCA, lnga. ob. cit.). No Brasil, ARNOLDO WALD, examinando doutrina e jurisprudência
integral do preço acordado, mesmo em hipóteses de retenção parcial pelo adquirente. Já a comparada, entendeu que a garantia autônoma à primeira solicitação é um título abstrato. No
garantia de pagamento (poyment guorontee) assegura ao exportador o recebimento do preço entendimento do autor, a autonomia da garantia só se explica com o rompimento da causali-
dos bens e serviços exportados. A garantia de manutenção (mointenonceguorontee) visa função dade, dissociando-a do contrato principal (WALD, Arnoldo. A Garantia a Primeira Demanda
análoga às performance bonds. (MENEZES LEITAO, Luís Manuel. Garantias das Obrigações, Ed. no Direito Comparado. ln: Revista de Direito Mercantil, São Paulo, 1992, n. 66, p. 6)
Almedina, 2008, p. 142). Para maiores discussões, confira-se: COSTA GOMES, Manueljanuário,Assunção Fidejussória
30 Por exemplo, "Convenção das Nações Unidas sobre garantias independentes e as letras de de Divida, ob. cit., p. 57/58; CORTEZ, Francisco, A Garantia Bancaria Autônoma - alguns pro-
Crédito stand-by" e as "Regras Uniformes da Câmara de Comércio Internacional para as ga- blemas. 1992, policop. e ROA, p. 569/584; LESGUILLONS, Henry. As Garantias Bancárias nos
rantias 'on demand"'. Contratos Internacionais, São Paulo, Saraiva, 1985; TELLES, Inocêncio Galvão. Garantia Bancaria
31 Em 2006, a garantia autônoma à primeira demanda ganhou autonomia legal no direito Francês, Autônoma. ln: Coletânea de Jurisprudência. Lisboa, ano VIII, 1983, p. 33; ALMEIDA COSTA,
através do Ato Legislativo 2006-346, de 23.03.2006, que a introduziu ao art. 2.321 do Código Maria Júlio; PINTO MONTEIRO, Antonio. ob. cit., p. 18; ANTUNES VARELA, João de Matos, ob.
Civil, conforme comenta, com felicitação, André Prüm, Professor Titular Decano da Faculdade cit.,p. 516
de Direito, Economia e Finanças da Universidade de Luxemburgo (PRUM, Andre.AAutonomio 33 Tal restrição decorre da conhecidano-guorontyrule, afirmada pela primeira vez no caso Tolmon
Legal dos Garantias o Primeiro Demando. ln: Revista de Direito Bancário e do Mercado de v. RochesterCity Bonk, no qual o tribunal asseverou: "The defendont is o bonking, not on insuronce
Capitais. Rio de Janeiro: ano 10, n. 35, jan./mar., 2007, p. 163/165). compony, ond hos no Power to insure the collection ojbod debts,jor ony premium, greot or small."
Eis a redação do art. 2.321 do Code Civil: JARDIM, Manica, ob. cit., pp.22/23.
134 - As GARANTIAS AuTôNOMAS A PRIMEIRA DEMANDA ANTONIO PEDRO GARCIA DE SouZA-135

Essa figura exerce a mesma função da garantia autônoma à primeira 2. DISTINÇÃO DA FIANÇA
demanda sob outra nomenclatura.
Se, no plano teórico, a fiança e a garantia autônoma constituem
No Brasil, o seu uso acentuou-se nos últimos anos, sobretudo para
figuras distintas, em termos práticos sua diferenciação ne~ sempr~ é
garantir contratos de infraestrutura de grande porte. Embora atípica, essa
óbvia. A redação do contrato, muitas vezes confusa ou amb1gua, deixa
modalidade de garantia é válida, encontrando fundamento nos arts. 421
margens a interpretações dúbias. A figura do garantidor também não
e 425 do Código Civil, que consagram a liberdade contratual e permi-
ajuda a resolver o deslinde, porque em ambos os tipos, ao menos nos
tem a livre formulação de contratos atípicos. Por não constituir garantia
negócios comerciais, o garantidor geralmente é uma instituição finan-
real, ela não se submete ao princípio da taxatividade (numerus clausus). 34
ceira ou seguradora.
Já a execução da garantia estará sujeita a um controle de legalida- A fiança é a forma mais tradicional de garantia fidejussória, bastante
de, podendo ser obstada em determinadas circunstâncias excepcionais,
difundida na prática comercial. Constitui garantia típica no direito bra-
como se tratará na seção 3 irifra, relacionadas ao descumprimento do
sileiro, regulamentada nos arts. 818 a 839 do Código Civil. O contra-
próprio contrato de garantia ou à eventual e manifesta conduta fraudu-
to de fiança, segundo o art. 818 do Código Civil, é o contrato pelo qual
lenta, dolosa ou abusiva por parte do beneficiário.
"uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo
Desde a promulgação do Código Civil, a jurisprudência nacional devedor, caso este não a cumpra". A fiança, assim como a garantia autô-
tem se pronunciando favoravelmente à validade dessa espécie de garan- noma, assegura o cumprimento da obrigação e revolve a uma estrutura
tia e da cláusula à primeira demanda, com base na liberdade contratual, triangular entre credor, devedor e fiador. 36
· · d o sua execuçao
prest:J.gian - pe1o cre d or. ½
No contrato de fiança, o fiador obriga-se a responder pelo cum-
34 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. Vol.1, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 291. GOMES, primento da obrigação principal, prometendo pagar se o devedor não o
Orlando. Direitos Reais. 19ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 23. COSTA GOMES, fizer. 37 O fiador, assim, responde por dívida alheia, não própria. 38 A obri-
Manuel Januário. Garantias. Vol. l, Coimbra: AI medi na, 2004, p.159 e PEREIRA DA SILVA, Caio
Mário. Instituições de Direito Civil- Direitos Reais. v. 5. 20ª edição. Rio de Janeiro: Forense, gação do fiador depende da existência e do conteúdo da obrigação do
2009, p.23
Sobre esse ponto, precisamente, já se manifestaram os Tribunais do Rio de Janeiro e de São
devedor principal, subordinando-se inteiramente a esta.
35
Paulo, os quais afirmaram que a validade_ da garantia autônoma à prime!ra :.olicitaçã? decorreri!
da liberdade contratual. Colaciona-se interessante passagem do acordao profendo pela 16
Câmara Cível do TJRJ: primeira demanda, até mesmo como fórmula para_ fugir de uma de_mand_a, ,,e os entraves di-
"As referidas disposições contratuais deixam claro que, apesar da nomenclatura conferida ao gamos, temporais, próprios de_ uma li~e desenvolvida per_ante os tr!b_una1s. (TJSP, Agravo de
contrato, não estão preenchidos os requisitos para a aplicação dos dispositivos atine~t~s a Instrumento n. 1254799, 25ª Camara Civel, Des. Rei. Amonm Cantuana, J - 19.05.09).
fiança pura e simples, como contrato acessório, tratando-se, er1; ~erdade de_co_ntrato at1p1co, Posteriormente, entre 2014 e 2020, os tribunais brasileiros novamente se depararam com
firmando entre duas partes, igualmente capazes, no pleno exerc1c10 de seus d1re1tos, q~.e c?nta controvérsias relacionadas à validade da garantia autônoma à primeira demanda, tendo, to-
com a chancela do art. 425 do Código Civil de 2002, não se aplicando, por consequencta, a dos eles, prestigiado a livre pactuação das partes. Nesse sentido: TJRJ, Agravo?e i_nstru~ent?
jurisprudência invocada acerca da "carta de fiança", uma vez que o pacto efetivado não tem n. 0068504-63.2017.8.19.oooo, 13ª Câmara Cível, Rei. Des. Gabriel de Oltvetra Zeftro, J.
essa natureza especifica. 28.02.18; TJSP, Agravo de Instrumento n. 221681_6-78.2019.8.26.0000, 2~ Câ~ara Reservada
Com efeito, o apelante livre e espontaneamente convencionou que a obrigação de n?tituir a de Direito Empresarial, Rei. Des. Araldo Telles, J· 10.08.20; TJSP, Apelaçao C'.vel n. 0043991-
importância antecipada, dependeria de condição suspensiva, simplesmente_ potestat1va, q~al 10.2002.8.26.0405, 25ª Câmara de Direito Privado, Rei. Des. Edgard Rosa, J· 31.07.14; TJRS,
seja, ade que a apelada a notificasse, caso considerasse que houve descumpnmento de "quais- Apelação Cível nº 0072653-63.2018.8.21.7000, 17ª Câmara Cível, Rei. De;. ~iovanni C~nt(, j.
quer dos termos avençados na subempreitada para com o CCO (afiançada (sic))", plenamente 25.10.18; TJSP, Embargos de declaração nº 1065839-58.201'}-~-26.0100, 34 a C~mara de D'.re~to
valida, nos termos do art. 122, do Código Civil de 2002." (TJRJ, Apelação n. 2007.001.15509, Privado, Rei. Des. Cristina Zucchi, j.25.04.18. Apenas nesse ultimo caso, a34 Camara de D1re1~0
16ª Câmara Cível, Des. Mauro Dickstein, J - 07.08.07) Privado de São Paulo, embora tenha determinado a consignação do valor objeto da garantia
autônoma em juízo pelo garantidor, impediu o seu levantamento em sede de cogn~ção:un:iária
Na ocasião, o Desembargador Relator esclareceu que a garantia autônoma à pri~eira de-
pelo beneficiário por reputar presentes indícios de inadimplemento da obrigaçao prmctpal.
manda não submete o devedor à condição puramente potestativa. Consoante explicou o e.
Desembargador, embora a garantia torne-se exigível à primeira demanda, para a interpelação Até o momento, o STJ não se pronunciou sobre essa matéria, mas se espera uma manifestação
do garante afigura-se imprescindível o descumprime_nto do de~e~or,_ o que fugiria ao contr?le favorável da Corte, porquanto reconheceu ampla validade ao crédito documentário, ~emelhan-
do credor/beneficiário. Noutras palavras, tratar-se-ta de condtçao simplesmente potestat1va te à garantia autônoma. (STJ, REsp 885.674/RJ, Rei. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma,
que envolve distinção das condições causais. j. 07.02.08)
36 JARDIM, Manica. ob.cit., p. 179.
Em sentido semelhante, o Tribunal de São Paulo também reconheceu a validade deste tipo de
37 CASTRO NEVES,José Roberto. Direito das Obrigações. 1ª ed. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2009,
garantia, com base no princípio da liberdade contratual:
"Malgrado a falta de previsão legal a respeito, admito diante da ampl~ lib~rdade de contra_ta~, p.289. . · d
FREITAS GOMES, Luiz Roldão de. Da Assunção de Divida e Sua Estrutura Negocial. Rio e
que as partes, caso assim quisessem, poderiam ter contratado esta clausula de garantia a Janeiro: Líber Jris Ltda., 1982, p. 158.
ANTONIO PEDRO GARCIA DE SOUZA - 137
136 - As GARANTIAS AUTÔNOMAS À PRIMEIRA ÜEMANDA

O vínculo acessório com a obrigação principal é característica essen- a garantia como sendo uma fiança. Evident:mente, não se trat~ de um
cial e distintiva da :fiança. 39 Diversas regras do Código Civil, que delimi- critério único e isolado, devendo ele ser exammado com as demais regras
tam o regime da acessoriedade da fiança (arts. 823,824 e 837), confirmam que moldam o regime de acessoriedade inerente ao contrato de fiança.
essa assertiva: (i) as obrigações nulas não são suscetíveis de fiança, salvo Havendo dúvida acerca do contrato de garantia celebrado, se de
se a nulidade resultar apenas da incapacidade pessoal do devedor; (ii) garantia autônoma ou fiança, deve presumir-se tratar de fiança, por ser
40
a fiança não pode ser contraída em condições mais onerosas do que a menos gravosa para o prestador da garantia (in dubio pro.ftdeiussione).
obrigação principal ou superar o seu valor; e (iii) o fiador pode opor ao
2.1. FIANÇA À PRIMEIRA DEMANDA X GARANTIA AUTÔNOMA À
credor as exceções extintivas da obrigação que competem ao devedor.
Por sua vez, a garantia autônoma assegura a ocorrência de certo re- PRIMEIRA DEMANDA
sultado. O garantidor assume o risco da não ocorrência desse resultado, Frequentemente, associa-se a cláusula à primeira solicitação. com a
responsabilizando-se por ele. Sua obrigação possui sempre natureza in- garantia autônoma. 41 Trata-se, contudo, como se viu, de q~alidades di-
denizatória ou assecuratória. Enquanto a obrigação do garantidor con- versas. A primeira diz respeito à exequibilidade da garantia, enquanto
figura-se autônoma, independente da obrigação do devedor, a do fiador a segunda diz respeito à sua independência. Comumente, estipula-se a
é acessória desta. O garantidor, ao contrário do fiador, responde por dí- garantia autônoma com cláusula à primeira demanda. Mas esta cláusula
vida própria. não se mostra elemento essencial da garantia.
Além disso, a obrigação do fiador é a mesma que a do devedor, tra- Segundo MonicaJardim, as primeiras distinções entre garantia au-
duzindo-se no cumprimento dela. Daí porque a obrigação do fiador tem tônoma e cláusula à primeira solicitação surgiram quando uma corrente
como elemento essencial a acessoriedade, ao contrário da obrigação do jurisprudencial na Alemanha admitiu a inclusão da cláusula "auf erstes
42
garantidor na garantia autônoma. É por isso também que o fiador pode Anfarden" (à primeira demanda) na :fiança.
valer-se das exceções oponíveis pelo devedor principal, ao passo que o Embora a análise da validade da fiança ao primeiro pedido no di-
garante na garantia autônoma não. reito brasileiro não constitua objeto deste trabalho, o exame perfunctó-
Ademais, como se disse, justamente porque o garantidor obriga- rio desse mecanismo parece válido. 43 Na doutrina comparada, tende-se
-se por dívida própria, salvo convenção contratual expressa, ele não se a admiti-la, 44 mas a questão não é inteiramente pacífica. De um lado,
sub-roga nos direitos do devedor no caso de execução da garantia. Tem entende-se que a fiança ao primeiro pedido importa na sistemática sol-
contra ele, a rigor, apenas o direito de regresso. Já o fiador, consoante COSTA GOMES, Manueljanuario.A chamada "fiança ao primeiro pedido". ln: Garantias, Vol.l,
dispõe o art. 831 do Código Civil, sub-roga-se nos direitos do devedor Coimbra: Almedina, 2004, p. 163. , .
Arnoldo Wald: "A garantia bancária à primeira demanda, tambem denominada garant1_a a
. .
41
principal, podendo, além disso, reclamar-lhe a dívida paga, exatamente primeira solicitação, garantia autônoma ou independente(.. J"(Alguns aspectos da gara~t~a a
primeira demanda no direito comparado, ab cit., p. 11). GALVAO TELLES escreveu a propos1to:
porque paga dívida alheia. "a finalidade prática da garantia a_utônoma, ~ qu~ es'.a gar~n~ia é_prest~da por um ~anco, e'.°
termo de funcionamento automatico, logo a primeira sohc1taçao do interessado. (Garantia
Delimitar a fronteira entre essas duas :figuras, no caso concreto, pos- Bancária Autónoma, ab. cit.,p. 20) _
sui grande relevância prática, na medida em que seus regimes jurídicos 42 Em tradução livre, a referida doutrinadora cita decisão do BGH de 2.5.79,_Pª;~ ilustrar esse
ponto: "se bem que a cláusula [à primeira salicitaçãaj deva sercansi~erada u:7: ind10~ da p~es;nça
são inteiramente diversos. Tudo dependerá de uma interpretação cui- de um contrata autônoma de garantia(...), essa cláusula deve, todov10, permitir excluir a ex1stenc10
de uma fiança(..), sobretudo quando da texto da contrato se deduz clara_mente que a promitente
dadosa e precisa da convenção das partes. Em regra, o critério divisor queria prestar umafiança e não um? garantia ~utônom?." (JARDIM_, Momca. º?· ot., P_P· 187(19~)
entre elas é a possibilidade de o garantidor invocar as defesas extinti- 43
Gabriel Figueiredo em monografia sobre a fiança, afirma o seguin_te a respeito da f1anç_a a pri-
meira solicitação: "No Brasil, a fiança à primeirasolicitação ainda nao teve um desenvolvimento
vas da obrigação principal, que competem ao devedor, conforme pre- que permitisse a consolidaçã? d~ pos_i5ô~s d?utrinárias ou juri~pru_denciais. Contudo, ~os
visto no art. 837 do Código Civil. A renúncia a essa regra transformará países da Europa Ocidental, o mst1tuto Jª foi obJeto de amplas c?g1taço:s, tendo-se c?nclu1do
por sua validade." (LEAL DE FIGUEIREDO, Gabriel. Contrato de Fiança. Sao Paulo: Saraiva, 2010,
ou distinguirá a fiança de uma garantia autônoma, ainda que se designe
44
Ei:rf DE FIGUEIREDO, Gabriel. Contrato de Fiança. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 74 e COSTA
GOMES, Manueljanuario. A chamada "fiança ao primeiro pedido". ln: Garantias, Vol.l, Coimbra:
39 COSTA GOMES, ManuelJanuario.Assunção Fidejussóriade Divida. 1ª ed. Coimbra: Almedina,
2000. p. 115. Ver também CASTRO NEVES,José Roberto. ob. cit., p. 290 Almedina, 2004
ANTONIO PEDRO GARCIA DE SOUZA - 139
138 - As GARANTIAS AUTÓNOMAS À PRIMEIRA DEMANDA

ve et repete e coloca o fiador em condições mais onerosas do que a do 3.1. ÜS PRESSUPOSTOS PARA EXECUÇÃO DA GARANTIA
devedor45 • De outro lado, sustenta-se que a dita cláusula apenas reforça, Se se tratar de garantia autônoma simples, o beneficiário, para re-
mas não agrava a obrigação do fiador. alizar a interpelação, deverá fazer a prova do seu d~reito e com~rovar os
A fiança à primeira demanda continua sendo acessória. Por isso, o pressupostos que lhe permitam executar a garantia. O garantidor, por
fiador paga a dívida sob reserva de a posteriori verificar a regularidade seu turno, deve examiná-los diligentemente. Por outro lado, contendo
do pagamento fundada na relação do contrato-base. Embora a dinâmi- contrato a cláusula "à primeira demanda", confere-se direito potesta-
0
ca possa se assemelhar à da garantia autônoma à primeira demanda, po- tivo ao beneficiário, invertendo-se o ônus da prova em desfavor do ga-
dendo sua distinção mostrar-se sem finalidade prática no caso concreto, rantidor para impedir a execução da garantia. Recebida a notificação do
a fiança não é independente da relação base. 46 credor-beneficiário, o garantidor tem o dever de informar o devedor da
Portanto, estar-se-á diante de uma garantia autônoma ao primeiro interpelação recebida.
pedido quando a relação garantidor-beneficiário mostrar-se desvincu- Verificada a ocorrência dos pressupostos ao exercício da garantia e/
lada do contrato-base, pela renúncia do garante às defesas oriundas do ou regularidade dos documentos apresentados, o garant_idor tem a obri-
contrato-base em face do credor, beneficiário da garantia. Em contraste, gação de pagar ao beneficiário a soma objeto da garantia.
estar-se-á diante de uma fiança à primeira demanda, quando não hou- 3.2. HIPÓTESES EM QUE SE PERMITE AO GARANTIDOR RECUSAR O
ver essa desvinculação da relação base.
CUMPRIMENTO DA GARANTIA
3. EXECUÇÃO DA GARANTIA A independência estrutural e funcional da garantia ª~:ô~oma à
A execução da garantia é o momento mais sensível de toda a rela- primeira demanda pode servir a abusos por parte ~os_bene~cianos,_ t?r-
ção jurídica entre o garantidor e o beneficiário. Com o início da execu- nando a garantia disfuncional. Conquanto seu ob3etivo se3a permiti~ a
ção da garantia, surgem alguns deveres para o garantidor. A relação que, fácil execução, se verificada a prática de ilícito na execução da ?ª~antia,
num primeiro momento era secundária, assume a ponta. Geralmente, 0
garantidor pode excepcionalmente recusar o pagamento. O drrei~o d,o
convenciona-se no contrato de garantia a sua execução por notificação credor-beneficiário, embora potestativo, deve ceder em prol de pnnci-
47
escrita ao garantidor, solicitando-lhe o pagamento da quantia fixada. pios basilares da ordem jurídica.
Nesse momento, avultam alguns deveres importantes para o garan- As defesas admitidas pelo garantidor para se opor ao cumprimento
tidor, pois ele agirá à conta e no interesse do devedor e postulará dele o da garantia autônoma à primeira demand~ são basta~t~ li~itada~, a fi~ de
reembolso da soma paga a título de garantia. Do mesmo modo, se de não se subverter o racional dessa garantia. Seu ob3etivo e desvincula-la,
forma equivocada descumprir o pagamento, poderá suportar encargos tanto quanto possível, da relação base. Para se recusar ao cumprimento
moratórias por isso. Portanto, o mais comum e importante dos deveres da garantia, em regra, o garantidor pode invocar apenas as ~xceções de-
que recai sobre o garantidor é o de informar o devedor acerca da inter- correntes da sua relacão com o beneficiário, devendo o motivo da recu-
pelação. Outros deveres dependerão da modalidade e dos termos espe- sa ser, ademais, corr;borado por prova formal manifesta.
cíficos da garantia ajustada. O garantidor, como se disse, não é juiz ou árbitro, tendo se com-
prometido a pagar a garantia, no mais das vezes, à primeira de~nanda.
Portanto a discussão acerca da validade da excussão da garantia deve
Tendo em vista que o art. 823 do Código Civil proíbe o fiador de assumirfiança em condições
' .
ocorrer após o seu pagamento, não antes. 48 As exceções restringem-se
45
mais onerosas do que o devedor principal, questiona-se a validade da inserção de cláusula à
primeira solicitação no contrato de fiança, que condicionaria a fiança a termos mais onerosos do
que a própria obrigação. Afinal, o fiador se submeteria ao regime do solve et repete. CARVALHO SILVA, João Calvao. Garantias Acessórias e Garantias Autonomas. ln: Estudos de Direito
~OS S0NTOS a es~~ respeito diz o seg_uinte: "... todavia, não pode a obrigação do fiador, quan- 47
Comercial. Coimbra: Almedina, 1966, p. 342. . .
tia te, d1e, loca cand1t1one, moda, ser mais onerosa do que a do devedorprincipal.."(Código Civil o STJ, no REsp 885.674/RJ, Rei. Ministra Nancy Andrig~i,_Terceira :urma, J. 07.02.?8, exami-
Interpretado. 10ª ed. Vai. XIX. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1981, p. 447 nando hipótese análoga relativa ao crédito documentaria se manifestou no sentido de que
COSTA GOMES, Manuel Januario. A chamada "fiança ao primeiro pedido".ob. cit., p. 180.
ANTONIO PEDRO GARCIA DE SOUZA - 141
140 - As GARANTIAS AUTÔNOMAS À PRIMEIRA DEMANDA

às seguintes categorias: (i) descumprimento do contrato de garantia; e recusar o cumprimento da garantia. Verificada a presença de uma dessas
(ii) dolo, fraude ou abuso de direito manifestos por parte do beneficiário. condutas, segundo Calvão da Silva51 , imputa-se ao "garante conhecedor
da situação o dever de bloquear ou paralisar a garantia e recusar o paga-
3.3. Ü DESCUMPRIMENTO DO CONTRATO DE GARANTIA E AS mento para evitar uma iniqüidade (fraus omia corrumpit)".
EXCEÇÕES LITERAIS A noção de fraude na garantia autônoma advém dos sistemas ju-
As exceções literais são aquelas que podem ser opostas pelo garan- rídicos do common Law, nos quais se confeccionou a figura da ''fraude
te quando o beneficiário não fizer a solicitação de cumprimento da ga- in the transaction". Nesses sistemas, desconhece-se a figura do "abuso de
rantia nos termos ajustados no contrato. Terá ele violado seus termos, direito". Calvão da Silva equipara a objeção de fraude nos países de tra-
incorrendo em error in procedendo. São exemplos de violação ao contrato dição do common law à exceptio doli, na qual se visl~n:1bra o comp~rt~-
de garantia: (i) a falta de apresentação pelo beneficiário de uma decla- mento doloso, do uso (objetivamente) anormal do direito ou da ausencia
ração, documento ou outro requisito expresso constante do contrato de manifesta do direito do beneficiário. 52 Entre nós, Arnoldo Wald, após
garantia;49 e (ii) a falta de indicação, pelo beneficiário, dos fundamen- exame panorâmico da doutrina e legislação comparada, também con-
53
tos que ensejam a execução da garantia, quando este constituir exigên- clui que a garantia não pode ser exigida nesses casos.
cia expressa do contrato de garantia. 50 A discussão envolvendo dolo, fraude e abuso de direito manifestos
As exceções literais são, geralmente, de fácil verificação por consta- é, por sua própria natureza, mais complexa do que aquela relativa às ex-
rem, de forma objetiva e expressa, do contrato de garantia. Sua incidência, ceções literais. A dificuldade nessas hipóteses se dá porque elas recla-
todavia, tende a ser menos frequente, porque na maior parte das vezes mam O exame do contrato-base e da relação entre o credor e o devedor
a interpelação em si, sem a exigência de requisitos adicionais, constitui de modo casuístico. 54
a única condição para a execução da garantia. Pode ocorrer, entretanto, Haverá fraude, dolo ou abuso de direito por parte do beneficiário
de o beneficiário não respeitar algum requisito especial para a interpela- quando pretender executar a garantia, embora saiba não preench:;1" _as
ção do devedor. Essa circunstância impõe ao garante o dever de recusar condições para tanto. São exemplos as hipóteses em que o beneficiano,
o cumprimento da garantia, por ter descumprido o contrato de garantia. para executar a garantia: (i) afirmar falsamente ter havido o inadim-
Por vezes, condiciona-se a execução da garantia à notificação prévia plemento do devedor; (ii) fraudar qualquer prova documental para ~e-
do devedor, pelo beneficiário, conferindo-lhe prazo dilatório para sanar :8.agrar o vencimento da garantia; (iii) for evidentemente o responsa~el
seu adimplemento. Só após o decurso do prazo e desde que não sanada direto pelo inadimplemento do devedor; (iv) buscar executar a garantia,
a falta, será lícita a execução da garantia. embora o negócio principal tenha sido resolvido com a sua prévia anu-
Em suma, se os termos para execução do contrato de garantia não fo- ência; (v) buscar executar a garantia na hipótese em que o devedor ma-
rem atendidos pelo beneficiário, o garantidor poderá recusar o pagamento. nifestamente cumpriu sua obrigação contratual.
SILVA, João Calvão. Garantias Acessórias e Garantias Autonomas. ln: Estudos de Direito
3.4. DOLO, FRAUDE E ABUSO DE DIREITO MANIFESTOS POR PARTE DO
Comercial. Coimbra: Almedina, 1966, p. 343. .
SILVA, João Calvão. ob. cit., 344. Segundo o José Simõe~ Patrício, na_~le?1anh_a"ex1ste fraude
BENEFICIÁRIO
manifesta quando o recurso à garantia viola de forma ev1dent~ ?.e~u,'.hbno de mteresse_s e!ec-
tivado pela operação comercial entre o mandante e.º benef1c1ano. (PATRICIO, Jose S'.moes:
Doutrina e jurisprudência estrangeira, avançando no exame das res- Preliminares Sobre a Garantia On FirstDemand. ln: Revistada Ordem dos Advogados. Coimbra.
trições à execução da garantia, estabelecem que os casos de dolo, fraude ano 43, 1983, p. 711) . . f - · "f
53
o referido autorrespaldou-se no direito comparado, sobretudo, no d1re1to ran~es para 1ust1 1-
e abuso de direito manifestos pelo beneficiário autorizam o garantidor a carseu entendimento. (WALD, Arnoldo.A Garantia a Primeira Demanda na D1re1to Comparado.
ob. cit. p. 11) ,F · d d
Nesse sentido, colaciona-se o alerta de DEBORAH HOROWITZ:"Thekeyas?ecto; a~ !n epe~ en;
não se pode instaurar verdadeira investigação para se apurar a inexistência dos requisitos 54 payment undertaking is that it is 'conditioned only by the terms ofthe document m wh,ch ltls c_ontome_d •
necessários para o pagamento da garantia. Jfthe undertaking were interlinked with the underlying contract, there wou/d be no pr?tect,on agamst
49 BRANCO, Manuel Castelo. A Garantia BancariaAutonoma no Âmbito das Garantias Especiais defences arising under that contract (.. .)." HOROWITZ, Deborah. Letters of Cred1t and Demand
das Obrigações. ln. ROA 1993, p. 79
Guarantees, defences to payment. 1ª ed. New York: Oxford, 2010.
50 CASTELO BRANCO, Manuel, ob. cit., p. 79
ANTONIO PEDRO GARCIA DE SOUZA - 143
142 - As GARANTIAS AUTÔNOMAS À PRIMEIRA ÜEMANDA

Embora tais hipóteses passem pelo exame da relação e do contrato recusa. Ademais, todo meio de prova lícito é suficiente para formar a
entre o devedor/garantido e o credor/beneficiário,mesmo no caso de uma convicção do garantidor.
garantia autônoma o contrato-base não pode ser ignorado, porquanto a Por isso, entendemos ser desnecessário o trânsito em julgado para
pretensão do beneficiário tem origem naquela relação. A despeito desse se verificar a ocorrência de fraude, dolo ou abuso do beneficiário. No en-
tipo de garantia encontrar sua validade e funcionalidade no âmbito da tanto, essa comprovação deve se dar por meio seguro, preciso e imediato.
autonomia da vontade e da liberdade contratual, há princípios cogentes A compreensão de uma dessas circunstâncias deve ocorrer diretamente
no ordenamento jurídico que vedam condutas dolosas, abusivas e frau- a partir do exame das provas apresentadas, tal como na verificação das
dulentas, qualificando-as como ato ilícito, e que não podem ser grossei- exceções literais. Se não estiverem suficientemente provadas, o garan-
ramente transgredidos por tais mecanismos jurídicos. 55 tidor deverá pagar a garantia. Reserva-se para depois do pagamento da
Portanto, não estando o beneficiário objetiva ou sabidamente no di- garantia, a dilação probatória e eventual investigação dos pressupostos
57
reito de executar a garantia, se vier a interpelar o garantidor, este poderá para sua execução, exatamente por conta da sistemática solve et repete.
rec~~ar-~e a cum~rir ~ garantia. Embora autônoma e pagável à primeira Ademais, não se pode credenciar qualquer tipo de prova a obstaculizar o
solicitaçao, a obrigaçao de garantia é de segunda ordem, como se disse cumprimento de uma garantia autônoma à primeira demanda, sob pena
acionável apenas após o descumprimento do devedor. ' de se desnaturar a finalidade para qual foi criada: assegurar segurança
e celeridade na satisfação dos interesses do credor. Daí porque, a nosso
Em todo caso, essas circunstâncias devem ser comprovadas de plano, 58
ver, a prova deve ser documental, de aferição objetiva.
m_o~trarem-se ~nequí~ocas em decorrência de prova manifesta. Qy.alquer
d~:'1da_a r:spe1t~ ~briga o garante a pagar a garantia. A dilação proba- CONCLUSÕES
tona nao e permitida. Se, porventura, se exigir a produção de mais pro- Conquanto o Código Civil tenha estabelecido um regime acessó-
vas, deve o garante pagar a garantia para depois procurar reavê-la se for rio às garantias especiais das obrigações, a prática comercial, para su-
o caso. Esses requisitos são tidos pela jurisprudência e doutrina com- perar seus inconvenientes, desenvolveu a garantia autônoma à primeira
parada com muito rigor para não se transformar a garantia autônoma
demanda, modalidade atípica de garantia pessoal.
numa fiança.
A garantia autônoma, em regra comparável à fiança, afasta os co-
. O sentido da prova manifesta, por seu turno, não é pacífico na dou- mandos contidos nos arts. 823,824 e 837, a fim de gozar de independên-
trina. Por um lado, algumas vozes defendem que ele se verifica apenas
cia e maior efetividade. Ela encontra sua validade nos arts. 421 e 425 do
quando a questão fática controvertida resultar de sentenca transitada
Código Civil, que consagram a liberdade de contratar e admitem con-
e:11 julgado. Somente o trânsito em julgado traria a segur;nça necessá-
venções contratuais atípicas no direito brasileiro, consoante vem se pro-
ria par~ _s~ rep_utar a ocorrência de fraude, dolo ou abuso por parte do nunciando a jurisprudência. Sua convenção não importa em condição
beneficiario. Ja a corrente mais permissiva defende a possibilidade de puramente potestativa em desfavor do devedor, pois a execução da ga-
se comprovar tais hipóteses por qualquer meio legalmente admissível. 56
rantia pressupõe o inadimplemento da obrigação garantida pelo devedor.
Parece-nos que a exigência do trânsito em julgado para evidenciar Embora os idealizadores do Código Civil não tenham previsto as
a ocorrência de fraude, dolo ou abuso de direito por parte do benefici-
garantias autônomas de modo expresso, admitiram aberturas em seu sis-
ário, quando da execução da garantia, acabaria por inviabilizar a recusa
tema, contidas nos arts. 421 e 425, para que ele pudesse acompanhar a
do garantidor. Afinal, enquanto ele dispõe de prazo exíguo para justi-
dinâmica empresarial, tal como é exemplo a assimilação das garantias
ficar a recusa do pagamento, o processo para se averiguar a ocorrência
autônomas à primeira demanda.
dessas circunstâncias é demorado, extrapolando em muito o prazo para
57 V. STJ, REsp 885.674/RJ, Rei. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 07.02.08.
55 ALMEIDA COSTA, Mario Julio, PINTO MONTEIRO, ob. cit., p. 20. JARDIM, Manica ob c·1t
p.296 ' . ., 58 GALVÃO TELLES refere se à comprovação da má-fé por prova. (Garantia Bancária Autónoma,
56 JARDIM, Manica. ob. cit., p 292 ob. cit., p. 32)
ANTONIO PEDRO GARCIA DE SOUZA -145
144 - As GARANTIAS AUTÔNOMAS À PRIMEIRA ÜEMANDA

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ÚIO BRANDÃO, FELIPE HANSZMANN E RICARDO MAFRA - 147

V. CONTINGÊNCIAS OCULTAS EM CONTRATOS


DE M&A: Vícios REornnóR1os, IEv1cçÃo E
DECLARAÇÕES E GARANTIAS

Caio Brandão 1

Felipe Hanszmann2

Ricardo Ma:fra3

1. INTRODUÇÃO
A responsabilidade por passivos ocultos em negócios de alienação
de participação societária - ou "M&A", para utilizar a expressão usual-
mente utilizada na prática empresarial4 - é tema sujeito a intenso deba-
te na doutrina e nos tribunais, além de ser um ponto negocial relevante
nos negócios de aquisição e venda de participações societárias.
Em grande número de casos, as partes conduzem processo destina-
do principalmente a levantar os passivos da sociedade-alvo, as chama-
das due diligences ou auditorias. A partir das descobertas feitas, as partes
alocam os riscos associados aos passivos identificados por meio de de-
clarações e obrigações dispostas nos contratos definitivos ou por meio
de ajustes no preço de aquisição.
Advogado de Vieira Rezende Advogados e graduado em Direito pela Pontifícia Universidade
Católica (PUC RIO). E-mail: caiobtleite@gmail.com
2 Sócio de Vieira Rezende Advogados. Membro da área técnica flutuante do Comitê de
Aquisições e Fusões - CAF. Mestre em Corporate and Securities Law pela London School of
Economics and Political Science - LSE. Professor convidado na FGV Direito Rio em matérias
relacionadas a takeover regulation, acesso a capital e Fusões & Aquisições. Professor coorde-
nador do Laboratório de Assistência Jurídica a Novas Tecnologias - LAJUNT na FGV Direito
Rio. Cofundador do Nós8, plataforma de legal knowledge sharing para empreendedores
inovadores.
3 Advogado de Vieira Rezende Advogados. Graduado pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Mestre e doutorando pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e mestre pela
UCLA School of Law.
4 "Tradução da expressão do mercado anglo-saxão mergers and acquisitions (M&A) a nomen-
clatura fusões e aquisições identifica o conjunto de medidas de crescimento externo ou com-
partilhado de uma corporação, que se concretiza por meio da 'combinação de negócios' e de
reorganizações societárias. Estão inseridas na terminologia sob análise não somente compras
de ativos empresariais e participações societárias, e a união de duas ou mais sociedades para
a formação de uma terceira, mas também a formação de grupos societários, a constituição de
sociedades de propósito específico (SPE), a contratação de sociedade em conta de participa-
ção (SCP), a formação de consórcios, a cisão, a incorporação de sociedades ou de ações etc.
Enfim, o modelo jurídico escolhido pelas partes pode variar consideravelmente, pois o que
caracteriza uma operação de fusão e aquisição é a sua finalidade: servir de instrumento de
implementação da estratégia de crescimento externo ou compartilhado." (BOTREL, Sérgio.
Fusões & aquisições. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 21.)
148 - CONTINGÊNCIAS OcuLTAS EM CONTRATOS DE M&A: Vícios Rrnm11óR1os, Ev1cÇÃo_ E••• CAIO BRANDÃO, FELIPE HANSV-\ANN E RICARDO MAFRA - 149

Ocorre que certos passivos, por não terem se materializado no mo- meio do método do fluxo de caixa descontado, que calcula o valor pre-
mento da análise ou por serem desconhecidos, não constam das de- sente do volume de entradas e saídas futuras da sociedade, aplicando-se
monstrações :financeiras e podem não ser identificados pelas partes. Por uma taxa de desconto 6 •
consequência, não são refletidos no preço de aquisição ou no contrato Esse método busca calcular o valor da sociedade-alvo de acordo
definitivo. A depender do valor do passivo, a sua materialização poste- com suas perspectivas de rentabilidade ao longo do tempo, partindo-se
rior pode frustrar as expectativas e objetivos que o adquirente possuía da premissa de que o valor da empresa está diretamente relacionado ao
no momento da compra, além da perda :financeira imediata. fluxo de caixa gerado pela atividade.
As regras e ferramentas jurídicas que tratam dos passivos ocultos Seja qual for o método utilizado pelo comprador para determinar
em negócios onerosos no direito brasileiro não foram pensadas para ope- o preço de aquisição da participação societária que está sendo negocia-
rações complexas de alienação de participações societárias, ocasionando da, a identificação de passivos da sociedade-alvo é essencial para garan-
um certo grau de insegurança jurídica no tratamento dos contratos que tir a adequada precificação do bem a ser adquirido. Daí a importância
formalizam estas transações. do processo de auditoria.
Dessa forma, o presente trabalho abordará, de forma não exaustiva, Este processo é conduzido por advogados e consultores :financeiros,
os principais institutos presentes no ordenamento pátrio que tratam so- consistindo na revisão e análise de diversas informações e documentos
bre o tema, assim como as ferramentas jurídicas mais utilizadas e acei- a respeito da sociedade-alvo e sua empresa7, dentre outros, com o ob-
tas pela jurisprudência como forma de mitigação de responsabilidades. jetivo principal de verificar a viabilidade da operação e mensurar even-
tuais contingências capazes de impactar economicamente o ativo-alvo 8 •
2. pASSIVOS OCULTOS E O PREÇO DE AQUISIÇÃO
Ou seja, o processo de auditoria possui o objetivo principal de reduzir a
Em uma operação de M&A, a maior parte das discussões, contra- assimetria informacional entre o comprador e vendedor, levantando in-
tos e responsabilidades alocadas se refletem diretamente em um aspec- formações que possivelmente possam vir a impactar no preço acordado 9•
to central: o preço.
6 "( ... ) fluxo de caixa descontado se baseia na teoria de que o valor de um negócio depende
Geralmente, o passo inicial para a definição desse montante ocorre a dos benefícios futuros que ela irá produzir, descontados para um valor presente, através da
partir da avaliação da participação a ser adquirida, isto é, o "Equity Value" utilização de uma taxa de desconto apropriada, a qual reflita os riscos inerentes aos fluxos
estimados" (PLENTZ, O.J.Avaliação da empresaAracruz Celulose com foco no método do fluxo de
para o comprador, que normalmente é calculado pelo "Enterprise Value" caixa descontado. 2008. 72 f. Tese (Doutorado em Administração) - Escola de Administração,
menos o endividamento líquido, de maneira que o valor das contingên- Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. Disponível em: <https://lume.
ufrgs.br/bitstream/handle/hand-le/10183/000685577.pdf;jsessionid=324EB6A1CC1821D482
cias e passivos. Enquanto a definição do "Enterprise Value"baseia-se, em 69A875FoED43D9?sequence=16826>. Acesso em 02 de agosto de 2020).
7 De acordo com a doutrina, a due diligence pode ser conceituada como "um procedimento
geral, sobre uma avaliação da capacidade da empresa de gerar receitas e sistemático de revisão e análise de informações e documentos, visando a verificação - sob
lucros no futuro, o endividamento engloba todas as dívidas da empresa, um escopo predefinido - da situação de sociedades, estabelecimentos, fundo de comércio
ou de parte significativa dos ativos que a compõem" (ROCHA, Dinir Salvador Rios da. Visão
incluindo não apenas contratos de mútuo, mas também todas as demais Geral da Due Diligence: Breves Aspectos Teóricos e Práticos. ln: ROCHA, D inir Salvador Rios
da; QUATTRINI, Larissa Teixeira (Org.). Fusões, Aquisições, Reorganizações Societárias e Due
contas a pagar (fornecedores, multas, processos, etc). Consequentemente, Diligence. São Paulo: Saraiva, Série GVLAW, 2012. p. 49). O processo de due diligence tam-
dentro desse critério de formação de preço, qualquer alteração no endi- bém já foi definido como o "procedimento de coleta de informações e de revisão e análise
de documentos, com a função de averiguar a situação jurídica e econômica das sociedades
vidamento líquido teria o condão de impactar o preço pago. envolvidas no negócio" (WALD, Arnoldo; DE MORAES, Luiza Rangel; WAISBERG, Ivo. Fusões,
Incorporações e Aquisições Aspectos Societários, Contratuais e Regulatórios. ln: WARDE
De fato, existem diversas metodologias de formação de preço5 , sen- JR, Walfrido (Coord.). Fusão, Cisão, Incorporações e Temas Correlatos. São Paulo: Quartier Latin,
do que, muitas vezes, o preço justo de um valor mobiliário é avaliado por 2009.p.53).
8 Busca-se, assim, "obter a melhor compreensão possível do negócio a ser adquirido ou combi-
nado; aumentar a possibilidade de uma escolha acertada; possibilitar ajustes no preço; realizar
5 A título de exemplo, o artigo 4°, §4°, da Lei nº 6.404/1976, ao falar sobre a precificação de oferta uma avaliação dos riscos da operação e do negócio; e reduzir a exposição do cedente a even-
pública de aquisição porfechamento de capital, cita a avaliação a partir"de patrimônio líquido tuais reclamações do cessionário, em caso de venda de ativos empresariais ou participações
contábil, de patrimônio líquido avaliado a preço de mercado, de fluxo de caixa descontado, societárias" (BOTREL, Sérgio. Fusães e Aquisições. 3° Edição. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 219).
de comparação por múltiplos, de cotação das ações no mercado de valores mobiliários, ou 9 "Esse procedimento investigativo, identificado como due diligence, tem como principais
com base em outro critério aceito pela Comissão de Valores Mobiliários". objetivos obter a melhor compreensão possível do negócio a ser adquirido ou 'combinado';
150 - CONTINGÊNCIAS ÜCULTAS EM CONTRATOS DE M&A: ViCIOS REDIBITÓRIOS, EVICÇÃO_E ••• CAIO BRANDÃO, FELIPE HANSZMANN E RICARDO MAFRA - 151

Para que os esforços e diligência empregados pelo comprador na Os passivos conhecidos são levados em consideração na formação
realização de longo e custoso processo de auditoria possam vir a lograr do preço de aquisição, representando um valor de desconto no preço fei-
os objetivos pretendidos, é fundamental que ambas as partes adotem to pelo comprador. Os passivos ocultos, no entanto, pela sua própria na-
uma postura adequada, de um lado, solicitando apenas as informações tureza, não são escriturados e, por consequência, não são considerados
e documentos necessários para conhecer a realidade do ativo, e do ou- na avaliação da empresa, podendo, a depender do seu valor, frustrar as
tro, atendendo às solicitações e apresentando as informações de forma expectativas do comprador em função da queda no faturamento, neces-
clara e precisa10 • sidade de aportes extraordinários e não planejados de capital, contrata-
É importante mencionar que esse processo também protege o ven- ção de operações de endividamento, dentre outros.
dedor, pois reduz as chances de anulação da operação, possíveis indeni- Dessa forma, torna-se fundamental analisar o tratamento dado
zações e pleitos de redução de preço em função de alegações de vícios pelo ordenamento jurídico brasileiro aos passivos ocultos, assim como
de consentimento e objeto, além de configurar um indicativo de boa-fé as formas de alocação de responsabilidade entre as partes com relação
durante as negociações. a estas obrigações.
O resultado da due diligence, além de impactar diretamente no pre-
3. ALOCAÇÃO DE RESPONSABILIDADE ENTRE AS PARTES PELOS
ço de compra, orienta os termos e condições que os contratos definiti-
PASSIVOS OCULTOS
vos deverão prever a fim de mitigar os riscos detectados, estabelecendo
cláusulas de indenização, declarações e garantias e outros instrumentos Os contratos de compra e venda de participação societária podem
que serão abordados nos próximos capítulos. ser atípicos. Muito embora o negócio principal envolva uma compra e
Não obstante, em alguns casos, nem todos os passivos da socie- venda, em geral as partes estabelecem uma série de pactos acessórios e
dade-alvo são identificados durante a investigação do comprador, seja diretamente ligados às prestações principais das partes. Assim, em fun-
porque a parte vendedora não tinha conhecimento do passivo, seja por- ção de sua atipicidade ou, ao menos, seu caráter de atipicidade mista13,
que o omitiu. Essa ocultação é denominada como "Passivo Oculto", estes contratos não sofrem a incidência de normas cogentes específicas
isto é, "aquele que os dados da escrituração não revelam, independen- e garantem grande espaço à autonomia da vontade das partes. Assim, as
temente dos motivos que possam existir", podendo ser "decorrente de obrigações assumidas possuem como fonte primordial o exercício livre
débitos oriundos de rescisões de contratos de trabalho, de condenação da vontade (essentialia negotii).
judicial por indenizações, de multas pelo descumprimento de obriga- Nesse contexto, as partes são livres para alocar as suas respon-
ções fiscais ou administrativas" 11 • Nos tribunais, o passivo oculta já foi sabilidades com relação aos riscos detectados e declarados, inclusive
definido como "despesas e obrigações de sociedades que não são efeti- quanto a passivos desconhecidos e ocultos, atribuindo de quem será
vamente lançadas em seus registros, porquanto, a despeito de existen- a responsabilidade de arcar com possíveis custos e se haverá o direi-
tes, são desconhecidas" 12 • to de indenização.
No entanto, o Código Civil também estabelece normas a respei-
to da existência de vícios ocultos de bens que sejam objeto de contratos
aumentar a possibilidade de uma escolha acertada; possibilitar ajustes no preço; realizar uma
avaliação dos riscos da operação e do negócio; e reduzir a exposição do vendedor a eventuais onerosos, sendo necessário examinar como estas regras legais se relacio-
reclamações do comprador, em caso de venda de ativos empresariais ou participações socie- nam com as disposições contratuais livremente negociadas pelas partes
tárias" (BOETREL, Sérgio. Fusões & aquisições. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 57).
10 Esse padrão de conduta se encontra dentro da boa-fé objetiva que orienta as relações jurídicas ou o eventual silêncio do contrato.
e será melhor abordado nos próximos capítulos.
11 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direita de empresa: ComentáriosaasArtigos 966 a 1.195 do
Código Cívil. sª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 633. 13 Segundo Orlando Gomes, contrato atípico misto seria aquele que "resulta da combinação de
12 Apelação nº 1.0024.06.999294-9/001. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (MG). elementos de diferentes contratos, formando nova espécie contratual não esquematizada na
Rei. Des. Dídimo Inocêncio.Julgado em 18 de abril de 2007. lei" (GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p.104).
152 - CONTINGÊNCIAS ÜCULTAS EM CONTRATOS DE M&A: Vícios REDIBITÓRIOS, EVICÇÃO ~--· CAIO BRANDÃO, FELIPE HANSZMANN E RICARDO MAFRA - 153

3.1. ALOCAÇÃO PELA LEI: O REGRAMENTO DOS VÍCIOS DO OBJETO NO Apesar de o fundamento dos vícios redibitórios ser alvo de discus-
Córneo Ctv1L são na doutrina, entende-se que sua origem decorre do chamado prin-
cípio da garantia, o qual prevê que o comprador tem o direito de receber
Existem diversos institutos jurídicos que, no caso concreto, podem
exatamente aquilo que foi acordado 18 •
embasar a responsabilidade de uma das partes por passivos ocultos em
operações de aquisição de participação societária, como os vícios de con- A partir dos dispositivos legais aplicáveis, é possível verificar que a
sentimento (e.g. dolo e erro) e os vícios do objeto (e.g. vícios redibitórios aplicação desse instituto pode ser cogitado quando estão presente os se-
e evicção). Por razão de corte metodológico, o presente trabalho abor- guintes requisitos: (i) contrato comutativo 19 ; (ii) defeitos necessariamente
dará apenas os vícios do objeto. ocultos e desconhecidos pelo comprador'º; (iii) vícios já existentes na épo-
ca da operação; e (iv) redução econômica ou perda do bem adquirido 21 •
3.1.1. Vícios REDIBITÓRIOS
Primeiramente, o contrato a ser celebrado deve ser comutativo, o
Os vícios redibitórios podem ser conceituados como um defeito que significa que as prestações das partes envolvidas no negócio jurídico
oculto que causa a desvalorização econômica ou perda do bem adquiri- são conhecidas e tidas como equilibradas, embora não necessariamen-
do pelo comprador 14 . te iguais do ponto de vista econômico, sendo que uma prestação corres-
Esse instituto foi originado no direito romano como uma forma de ponde necessariamente a uma contraprestação22 •
proteger os compradores de gado e escravos dos defeitos ocultos, obri- O segundo requisito diz respeito ao desconhecimento do adqui-
gando os vendedores a comunicar os vícios ocultos e conhecidos para rente sobre o vício, sendo certo que, se o vício é ostensivo, o vendedor
os compradores no momento da negociação e, no caso de violação dessa não é obrigado a indicar a sua existência23 • Percebe-se que esse requisi-
obrigação, atribuindo-lhes responsabilidade, salvo estipulação em contrá- to faz referência a um aspecto subjetivo do adquirente, tendo em vista
rio15. A responsabilização do vendedor ocorreria por meio de uma ação que aquilo que é aparente para uma pessoa leiga, não necessariamente
redibitória, que ensejaria a rescisão do negócio jurídico ou uma ação esti- seria para um especialista24 •
matória ou quanti minoris, a fim de reduzir o valor pago originalmente 16 .
No direito brasileiro, os vícios redibitórios já eram incorporados no 18 "Para nós, o seu fundamento é o princípio da garantia, sem a intromissão de fatores exógenos,
de ordem psicológica ou moral. O adquirente, sujeito a uma contraprestação, tem direito à
Código Civil de 1916 de forma genérica, apenas apresentando os prin- utilidade natural da coisa, e, se ela lhe falta, precisa de estar garantido contra o alienante, para
cípios que o regiam, sendo aprofundados no atual Código Civil (Lei nº a hipótese de lhe ser entregue coisa a que faltem qualidades essenciais de prestabilidade,
independentemente de uma pesquisa de motivação.( ... ) Ao transferir ao adquirente coisa de
10.406/2002), no qual foram estabelecidos as condições e efeitos da sua qualquer espécie, seja móvel, seja imóvel, por contrato comutativo, tem o dever de assegurar-
aplicação 17 . -lhe a sua posse útil, se não equivalente rigorosa, ao menos relativa do preço recebido. E se
não se presta à sua finalidade natural, ou se não guarda paralelismo com o valor de aquisição,
prejudicada por defeito oculto, tem o adquirente o direito de exigir do transmitente a efetivação
do princípio da garantia" (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições do Direito Civil. 19ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2015. p. 107-108).
14 "Vício redibitório é, pois, o defeito oculto da coisa que dá ensejo à rescisão contratual, por 19 Art. 441. A coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode ser enjeitada por vícios ou
tornar o seu objeto impróprio ao uso a que se destina, ou por diminuir o seu valor de tal modo defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe diminuam o valor.
que, se o outro contratante soubesse do vício, não realizaria o negócio pelo mesmo preço. A 20 Art. 443. Se o alienante conhecia o vício ou defeito da coisa, restituirá o que recebeu com
própria etimologia do adjetivo 'redibitório' explica a finalidade do instituto, que assegura a perdas e danos; se o não conhecia, tão-somente restituirá o valor recebido, mais as despesas
devolução do objeto ao seu titular anterior" (WALD, Arnoldo. Direito Civil: direito dos obrigações do contrato.
e teoria geral dos contratos. 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 348.). No mesmo sentido: "Vício 21 Art. 441 do Código Civil.
redibitório é o defeito oculto de que a portadora a coisa objeto de contrato comutativo, que 22 Diferente dos contratos aleatórios, o qual uma das prestações pode não se concretizar.
a torna imprópria ao uso a que se destina, ou lhe prejudica sensivelmente o valor. Éassim que, 23 "Sendo o vício ostensivo, não há obrigação do vendedor de indicar a sua existência ao compra-
mutatis mutandis, todos os escritores o definem, e que o Código Civil entende no art. 441" dor. Sendo oculto, deverá mencioná-la sob pena de rescisão do contrato e responsabilidade
(PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições do Direito Civil. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. por perdas e danos, se alienante estiver de má-fé" (WALD, Arnoldo. Direito Civil: direito das
p.107). obrigações e teoria geral dos contratos. 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 355.)
15 WALD, Arnoldo. Direito Civil: direito dos obrigações e teoria geral dos contratos, 2. 21º Ed. São 24 "A classificação do vício como ostensivo ou oculto é questão de apreciação relativamente sub-
Paulo: Saraiva, 2013. p. 349. jetiva, variando com os magistrados e dependendo das condições e circunstâncias peculiares
16 WALD, Arnoldo. Direito Civil: direito das obrigações e teoria geral dos contratos, 2. 21º Ed. São a cada contratado, condicionando-se às próprias pessoas que intervieram no ato( ... )" (WALD,
Paulo: Saraiva, 2013. p. 350. Arnoldo. Direito CM[: direito das obrigações e teoria geral dos contratos. 21 ª ed. São Paulo: Saraiva,
17 Arts. 441 a 446 do Código Civil. 2013. p. 354.)
CA10 BRANDÃO, FEuPE HANSZMANN E RICARDO MAFRA - 155
154 - CONTINGÊNCIAS OcuLTAS EM CONTRATOS DE M&A: Vícios Rrn1s1TóR1os, Ev1c00 E•.•

Esse aspecto é relevante nas operações de M&A, pois, geralmente, nha como fato gerador o período em que o vendedor integrava o qua-
as partes possuem conhecimento do funcionamento do mercado e do dro social da empresa26 •
setor, além de possuírem uma equipe de especialistas técnicos prestan- Por :fim, não é qualquer vício que será caracterizado como redibitó~
2
do auxilio em todas as tomadas de decisão. Essa realidade pode ensejar rio, sendo necessário a redução econômica ou perda do bem adquirido '.
uma maior dificuldade no preenchimento desse requisito para a aplica- Como já previsto no direito romano, caso venha a ser detectado um
ção dos vícios redibitórios. vício oculto no ativo que ocasione a sua perda ou redução econômica,
Conforme já mencionado, nas operações de M&A, há uma obriga- poderá o adquirente rejeitar a coisa, retornando as partes ao status quo
ção do vendedor disponibilizar as informações necessárias para o com-
.
ante, ou requerer o abat1mento do preço pago2s-29 .
prador ter ciência da real situação do ativo e ponderar os riscos e valores A responsabilidade do vendedor é agravada caso tenha agido com
aplicáveis na transação. Ou seja, a princípio, a responsabilidade do ven- má-fé ao saber do vício previamente à alienação e não tenha informado
dedor é mitigada caso a informação completa e suficiente tenha sido ao comprador para que pudesse tomar sua decisão de investimento, sen-
disponibilizada e o comprador não a tenha interpretado de forma ina- do que, nesse caso, o vendedor poderia ser responsabilizado pelas perdas
dequada ou ignorado. e danos do comprador. Caso não tivesse conhecimento do vício, caberia
apenas restituição dos valores pagos, somad o as , d espesas mcorn
. .das 30 .
Nesse sentido, cita-se o julgado pela 5° Câmara de Direito Privado
do Tribunal de Justiça de São Paulo25 : Observa-se que o conhecimento do alienante é uma matéria de difícil
O montante cobrado decorre de reclamações trabalhistas já comprovação, tendo em vista se tratar de um aspecto subjetivo da parte.
pendentes na época da negociação, não sendo razoável conceber O prazo para as ações envolvendo vícios redibitórios é decadencial e
que a auditoria não tenha detectado a existência das deman- varia conforme a natureza do ativo, sendo de 1 (um) ano no caso de bem
das. Vale dizer, analisando sistematicamente as disposições e imóvel e 30 (trinta) dias para bens móveis 31 . Todavia, caso o vício, por
à luz do princípio da boa-fé contratual, forçoso admitir que
"Se O vício viera surgir depois da execução do contrato, não pode ser atribuída a responsabilidade
os alienantes se responsabilizariam por débitos referentes à ao vendedor, salvo se o comprador puder provar que decorre de outro defeito já existente por
sua gestão, porém, surgidos após a celebração do aditamento, ocasião do contrato. Perecendo a coisa, em virtude de caso fortuito ou culpa do comprador, este
não pode acionara vendedor. Se ao contrário o desapa~ecirn~nt? d_o objeto f?rc~nsequê~cia do
já que as contingências já existentes eram ou deveriam ser de vício, cabe o exercício da ação." (WALD, Arnoldo. Direito Cwtl: d1re1to dos obngoçoes ~_teo,:10 gero/
conhecimento dos adquirentes, que se responsabilizariam por dos contratos. 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 355). "Somente se levam em conta os Jª existentes
ao tempo da alienação e que perdurem até o momento da reclamação. Os supen:enientes afetam
elas, tendo inclusive realizado auditoria no estabelecimento, a coisa já incorporada ao patrimônio do adquirente; ese houverem ce~sado, deixam a dema_nda
sem objeto. Exceção a esta orientação se faz quanto aos defeitos relativos a ~rodutos e serv1_ç?s
de modo a verificar a regularidade contábil e fiscal. Portanto, objetos de relação de consumo regidos pela Lei nº 8._?78/1990'. a qual permite a tutela_do_v1c10
a ação é improcedente, podendo os apelantes, caso queiram e superveniente à formação do contrato, desde que nao tenha sido ca~sa~o por ato pr~pno_ ~o
consumidor, pelo uso inadequado ou inapropriado do produto ou serviço (PEREIRA, Caio Mano
julguem adequado, voltar-se contra o responsável pela auditoria da Silva. Instituições do Direito Civil. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 108).
que, em tese, deveria ter identificado pendências dessa natureza. 27 "Não é qualquer defeito que fundamenta o pedido de efetivação_ do pri~cípio, ~oré_m aqueles
que positivamente prejudicam a utilidade da coisa, tornand?-.ª map'.a as sua_s f~n~hdade~, ?u
Além disso, o vício deve ser existente ao tempo da transação, não reduzindo a sua expressão econômica.(... )" (PEREIRA, Caio Mano da Silva. lnstttU1çoes do Direito
Civil. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 109). .
sendo lógico reclamar com o vendedor sobre defeitos que ocorreram após Art. 442. Em vez de rejeitara coisa, redibindo o contrato (art.441), pode o adquirente reclamar
a transação, visto que não foram ocasionados pelo vendedor ou eram de abatimento no preço. . .
29 "( ... ) Esta faculdade não pode ser levada ao extremo de cnar para~ ª?qUJrente uma !onte de
seu conhecimento. Todavia, essa questão se torna discutível caso o ví- enriquecimento, mas deve ser de damno vitando [evitar o dano], lm~1tada a proporcionar ao
adquirente uma solução equitativa, que o resguarde de pagar pela c~1~a defe1tuo~a o preç~ de
cio seja resultante de ato que tenha ocorrido durante a gestão do ven- uma perfeita." (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições do Direito Ctvtl. 19ª ed. Rio de Janeiro:
dedor e se materializado posteriormente. Pode citar, como exemplo, a Forense, 2015. p. 111).
30 Art. 443. Se o alienante conhecia o vício ou defeito da coisa, restituirá o que recebeu com
hipótese de uma ação trabalhista movida por um empregado contra a perdas e danos; se o não conhecia, tão-somente restituirá o valor recebido, mais as despesas
companhia após a efetivação da alienação de seu controle, mas que te- do contrato.
Art. 445. O adquirente decai do direito de obter a redibição ou abatimento no preço ~o pra~~
31
de trinta dias se a coisa for móvel, e de um ano se for imóvel, contado da entrega efetiva; se Jª
25 Apelação Cível nº 9064542-64.2006.8.26.ooo. Rei. Des. Erickson Gavazza Marques.Julgado
em 11 de agosto de 2012. estava na posse, o prazo conta-se da alienação, reduzido à metade.
156 - CONTINGÊNCIAS ÜCULTAS EM CONTRATOS DE M&A: Vícios REDIBITÓRIOS, EVICÇÃO E••• CA10 BRANDÃO, FELIPE HANSZMANN E RICARDO MAFRA - 157

sua natureza, só possa ser conhecido em um período posterior ao men- A Corte entendeu que não era cabível essa alegação, pois mesmo
cionado acima, o prazo só começa a correr após o transcorrer do prazo em um cenário em que a parte vendedora tivesse falhado na divulgação
de garantia32 e a partir da ciência do comprador, sendo de 180 (cento e do vício, tal informação seria de fácil pesquisa e poderia ser feita por um
oitenta) dias para móveis e de 1 (um) ano para imóveis 33 • comprador minimamente diligente 36 •
Em M&A, é comum que as partes acordem uma extensão ou re- O correto entendimento sobre o tema foi brilhantemente
dução do prazo dê gàrantia, estabelecendo inclusive os mecanismos que abordado pelo Juiz a quo, motivo pelo qual transcreve-se a per-
feita exegese a ser dada ao caso concreto: 'Procurou o Código
regerão os pedidos de indenização 34- 35 •
Comercial estabelecer um sistema que propicia ao comprador
No que tange aos passivos ocultos, parece haver, a princípio, a pos- reclamar vícios, defeitos e faltas do vendedor, porém condicio-
sibilidade de aplicação do instituto dos vícios redibitórios caso os re- nou a reclamação a existência de o vício ser de fato oculto, e
quisitos mencionados acima estejam presentes, tendo em vista que estas de o comprador não possuir meios para descobri-los antes de
contingências não escrituradas tendem a reduzir o valor do ativo e não receber a coisa. No caso sob judice, verifica-se a ausência destes
são consideradas nos métodos de valuation justamente devido ao seu dois requisitos, ou seja, o vício não é oculto e os autores tinham
caráter oculto. meios de sabê-lo.( ... ) Verifica-se, ainda, que os autores tinham
Geralmente, as transações que envolvem altos valores de investi- condições de saber quanto a regularidade do alvará antes de
receber a coisa, uma vez que por meio de uma simples consulta
mento são tratadas em arbitragens sigilosas, tornando-se difícil mapear
na Prefeitura é possível obter informações se a empresa objeto
a aplicação do instituto dos vícios redibitórios em relação aos passivos
do contrato possuía alvará, fato que é reforçado à conta de que
ocultos em M&A. De toda forma, pode-se notar a aplicação do institu- um dos autores é advogado e conhecedor dos requisitos legais
to e dos seus requisitos no judiciário em operações mais simples, como para o funcionamento de uma empresa.
em compra e venda de quotas de sociedades limitadas.
Em outro caso também envolvendo a alegação de rescisão do contra-
O Tribunal de Justiça do Paraná já teve a oportunidade de anali- to de compra e venda de quotas, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais
37

sar o pleito de rescisão do contrato pelo adquirente em uma operação reconheceu a redução dos valores pagos a partir da aplicação dos vícios
de compra e venda de quotas de sociedade limitada pelo valor de R$ redibitórios 38 com base no fato de que os autores adquiriram as quotas
20.800,00 (vinte mil e oitocentos reais), representativas de 90% doca- de uma sociedade juntamente com uma das marcas, que se mostrou não
pital social. Nesse caso, o principal argumento da parte autora era que ser de titularidade da parte ré. Assim, entendeu-se que o vendedor vio-
a empresa não possuía um alvará de funcionamento válido e essa infor- lou o dever de divulgação dessa informação:
mação não teria sido divulgada pelo vendedor nas negociações, haven- (... ) No entanto, a precariedade do direito de uso das marcas e
do, portanto, vício redibitório. a forma como ficou consignado no contrato, sugerem que estas
estavam contabilizadas como parte integrante do negócio.( ... )
32 "( ... ) Se interpretado em sua literalidade, o art. 446 traria uma involução em tema de vícios redi- A perda do direito de uso da marca, caracteriza vício redibi-
bitórios, pois poderia conduzir ao entendimento de que o defeito deve ser denunciado nos 30 tório já que a circunstância diminui o valor do bem adquirido
dias seguintes ao seu descobrimento, sob pena de decadência, a despeito de, eventualmente,
ainda restar prazo para o exercício da redibição. Mesmo antes do Código Civil de 2002, essa (artigo 441 CC). Lado outro o vício só foi conhecido muito
orientação não se sustentava, doutrina e jurisprudência já admitiam o início da contagem do
prazo para o exercício da redibição a partire do fim do prazo de garantia, não importando o Apelação Cível nº 0163145-6. Tribunal de Justiça do Paraná. Rei. Des. Jurandyr Souza Junior.
momento em que o vício se apresentou." (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições do Direito Julgado em 23 de maio de 2001.
Civil. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 113). 37 Apelação Cível nº 10024028844074001. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Rei. Des. Antônio
33 Art. 445, § 1°. Quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, o prazo Bispo. Julgado em 11 de abril de 2013.
contar-se-á do momento em que dele tiver ciência, até o prazo máximo de cento e oitenta Importante mencionar que o juiz desconsiderou a caracterização da evicção no caso: "Trata-se
dias, em se tratando de bens móveis; e de um ano, para os imóveis. de um contrato comutativo, onde, ainda que não deliberado expressamente os contratantes
34 Art. 446. Não correrão os prazos do artigo antecedente na constância de cláusula de garantia; estão obrigados a responderem pelos vícios redibitórios e pela evicção. Se a marca ZEPP, fos-
mas o adquirente deve denunciar o defeito ao alienante nos trinta dias seguintes ao seu des- se objeto do contrato. A perda dela seria caracterizada evicção e como não e vê no contrato
cobrimento, sob pena de decadência. cláusula expressa nos termos do artigo 448 do Código Civil, em tese os fatos narrados na inicial
35 Esse assunto será melhor abordado no item que trata sobre Declarações e Garantias. agasalhariam os pedidos formulados".
CAIO BRANDÃO, FELIPE HANSZMANN E RICARDO MAFRA - 159
158 - CONTINGÊNCIAS OcuLTAS EM CONTRATOS DE M&A: Vícios Rrnrn1TóR1os, Ev1cÇÃo ~--·

te; seja o vício anterior à alienação; haja sentença, transitada em julga-


tempo depois e a ação foi proposta dentro do prazo decadencial.
do, em virtude da qual o adquirente perdeu o uso, a posse ou o domínio
(... ) Assim, dou provimento parcial ao apelo tão somente para
declarar o direito ao abatimento no preço ao invés de rescindir da coisa alienada" 40 .
parcialmente o contrato. Os efeitos da evicção variam de acordo com o grau de lesividade ao
. assim
ativo, . como o mve ' 1d e conhec1men
. t o por part e d o comprad or41-42 .
Essa mesma decisão também foi responsável por reformar a senten-
ça a quo concedendo indenização dos lucros cessantes e danos emergen- Nesse contexto, caso a evicção venha a produzir efeitos em relação a to-
tes sofridos pela parte autora a partir da perda da marca, a qual também talidade dos ativos, o adquirente terá direito ao reembolso dos valores
era alvo do contrato de compra e venda celebrado: pagos, honorários advocatícios, indenização pelas despesas e lucros ces-
santes43. Já no caso de a evicção afetar apenas uma parte do ativo (e.g.
É fato incontroverso nos autos, que por ocasião da aquisição da 44
empresa. Este fazia uso de uma marca, a qual inclusive servia de
apenas uma parte das ações alienadas) tida como substancial , o adqui-
garantia do pagamento da obrigação contraída, afigurando-se rente terá o direito de escolher entre a rescisão contratual e restituição
razoável crer que a perda do direito de uso da marca possa ter apenas de parte do preço45 .
influenciado na queda do faturamento da empresa. (... ) Não No que tange à alocação de responsabilidade pela evicção, o Código
estar delimitado é diferente de não estar provado, pelo que Civil foi expresso ao conferir às partes a liberdade de reforçar, excluir ou
reformo a decisão apelada nesta parte para reconhecer o direito 46
limitar a responsabilidade pela evicção •
dos autos aos lucros cessantes e danos emergentes, ambos a Traçando um paralelo com o tema que está sendo debatido nesse
serem apurados em liquidação de sentença.
artigo, imagina-se dois cenários mais recorrentes em operações de M&A,
Outro caso semelhante julgado pelo Tribunal de Justiça de São
Paulo envolveu a compra e venda de quotas de uma empresa que pos- WALD, Arnoldo. Direito Civil: direito das obrigações e teoria geral das contratos. 21 ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2013. p. 368.
suía diversos defeitos nos seus ativos. Todavia, o juiz reconheceu que tais 41 Art. 449. Não obstante a cláusula que exclui a garantia contra a evicção, se esta se der, tem
direito o evicto a receber o preço que pagou pela coisa evicta, se não soube do risco da evicção,
~cios eram de fácil constatação pela parte compradora, logo, não pode- ou, dele informado, não o assumiu.
riam ser caracterizados como redibitórios 39 • "1º) O adquirente sabe da litigiosidade da coisa e exclui a responsabilidade do alienante na
hipótese de evicção. 2º) O adquirente sabe da litigiosidade da coisa, mas não exclui a respon-
Dessa forma, nota-se que é possível a aplicação pelo judiciário do sabilidade do alienante no caso de evicção. 3°) O adquirente exclui a responsabilidade pela
evicção, mas não sabe da existência de ação de terceiro ou do vício do direito. 4º) O adquirente
instituto dos vícios redibitórios em operações de M&A, embora, nas não exclui a responsabilidade pela evicção e ignora o vício do direito" (WALD, Arnoldo. Direito
operações mais complexas, geralmente se estabeleça regras específicas Civil: direito das obrigações e teoria geral dos contratos, 2. 21 ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 371).
Art. 450. Salvo estipulação em contrário, tem direito o evicto, além da restituição integral do
43
de indenização e alocação de riscos no próprio contrato, que tendem a preço ou das quantias que pagou: 1-à indenização dos frutos que tiver sido obrigado a restituir;
li - à indenização pelas despesas dos contratos e pelos prejuízos que diretamente resultarem
respeitadas pelas cortes decisórias. da evicção; Ili às custas judiciais e aos honorários do advogado por ele constituído.
O legislador preferiu criar um conceito aberto de "considerável" que ensejaria essa opção do
44 adquirente de rescisão ou abatimento do preço. Nas palavras de Caio Mário: "Não cuidou,
3.1.2. EVICÇÃO
porém, a lei de definir o que seja parte considerável da coisa evicta, relegando-o à doutrina.
A evicção relaciona-se a situações nas quais o adquirente perde a Chamada a opinar, sustenta ser aquela perda que, em relação à finalidade da coisa, faça presu-
mir que o contrato se não realizaria se o adquirente conhecesse a verdadeira situação. Cunha
posse ou_ a ?ropriedade de um ativo em razão de decisão judicial que Gonçalves observa que a caracterização da parte considerável não atenderá somente ao cri-
tério da quantidade em relação ao todo, porém, à qualidade e à natureza, também, pois bem
afeta o direito do vendedor de realizar o negócio jurídico. pode ser que um desfalque de extensão reduzida seja mais grave do que um maior, tendo em
vista as circunstâncias de fato. Com efeito, se alguém compra fazenda de criar, e perde apenas
Assim como nos vícios redibitórios, esse instituto tem origem no pequena fração dela, porém na parte em que se situa a aguada, o desfalque é relevantíssimo,
princípio da garantia, segundo a qual o comprador tem o direito de re- por alcançar a própria finalidade econômica do objeto, e a evicção será considerável, não
obstante quantitativamente ínfima." (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições do Direito Civil.
ceber exatamente o ativo alvo da transação. De acordo com Arnoldo 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 125).
Wald, os requisitos para caracterização da evicção são a existência de Art. 455. Se parcial, mas considerável, for a evicção, poderá o evicto optar entre a rescisão do
45
contrato e a restituição da parte do preço correspondente ao desfalque sofrido. Se não for
"( ... ) contrato oneroso [em que] exista um vício no direito do alienan- considerável, caberá somente direito a indenização.
Art. 448. Podem as partes, por cláusula expressa, reforçar, diminuir ou excluir a responsabili-
39 Apelação Cível nº 10045692320158260577. Tribunal de Justiça de São Paulo. Rei. Des. Hamid dade pela evicção.
8dine.Julgado em 20 de fevereiro de 2019.
160 - CONTINGÊNCIAS ÜCULTAS EM CONTRATOS DE M&A: Vícios REDIBITÓRIOS, EVICÇÃO E••• CAIO BRANDÃO, FELIPE HANSZMANN E RICARDO MAFRA - 161

quais sejam: (i) a parte adquirente tem conhecimento acerca dos proble- Em resumo, essas cláusulas consistem em declarações dadas pelos
mas associados à disponibilidade do ativo, mas decide assumir o risco, vendedores e compradores em relação ao ativo transacionado e demais
refletindo-o no preço; ou (ii) o risco da evicção não foi alocado ao ven- aspectos, a fim de ilustrar a sua real situação, expondo os aspectos sen-
dedor por contrato, mas o comprador não foi devidamente informado síveis da transação (e.g. dívidas) e delimitando as bases de uma possível
sobre o vício na titularidade do bem negociado. indenização do vendedor ao comprador e vice-versa.
Na primeira hipótese, é razoável supor que, a depender das circuns- Geralmente, o vendedor presta declarações e garantias sobre diversas
tâncias do caso concreto, o adquirente teria assumido o risco do negócio, matérias, incluindo: (i) constituição e regularidade; (ii) efeito vinculante
não fazendo jus a qualquer indenização ou reembolso do vendedor.Já na dos contratos; (iii) estrutura do capital social; (iv) ausência de eventos
segunda hipótese, considerando que o evicto excluiu a responsabilidade extraordinários; (v) declarações financeiras e contábeis; (vi) aspectos am-
do vendedor expressamente em contrato, mas não tinha conhecimento bientais, trabalhistas e fiscais; (vii) aspectos contenciosos; (viii) proprie-
de sua litigiosidade, possivelmente caberia devolução dos valores pagos 47 • dade intelectual; (ix) ativos e passivos; (x) contratos; e (xi) endividamento
e garantias etc. O comprador, por sua vez, em geral presta garantias so-
3.2. ALOCAÇÃO DA RESPONSABILIDADE ENTRE AS PARTES PELO bre: (i) constituição regular; (ii) efeito vinculante do contrato; (iii) ca-
PRÓPRIO CONTRATO pacidade financeira; e (iv) ausência de violação à lei ou a contratos etc. 50 •
Além da alocação de responsabilidade por defeitos do objeto pela É importante mencionar que a cláusula de declarações e garantias
lei, com base nos institutos do vício redibitório e evicção, é possível que pode ser uma ferramenta eficaz na identificação do caráter oculto dos
as partes convencionem, por meio de contrato, qual delas deve arcar com passivos no caso concreto, quando, por exemplo, a parte atesta pela ine-
o ônus de possíveis defeitos. Este capítulo abordará algumas das dispo- xistência de passivos ocultos, mas a declaração é violada, seja por conduta
sições usualmente utilizadas pelas partes para este fim. dolosa (omissão voluntária) ou culposa (desconhecimento) do vendedor.
3.2.1. CLÁUSULA DE DECLARAÇÕES E GARANTIAS A alocação de riscos entre as partes mostra-se essencial quando
considerado que há natural assimetria de informações entre comprador
As cláusulas de declarações e garantias ou, do inglês, representations
e vendedor, além do fato de que esta alocação de riscos pode servir para
and warranties (R&W), são bastante comuns e extensas em contratos
suprir eventuais insuficiências da due diligence5 1- 52 , já que as partes po-
de M&A, não exigindo forma contratual específica48 • Estas cláusulas
possuem grande relevância para limitar os riscos do comprador, que em 50 BOTREL, Sérgio. Fusões & aquisições. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
geral se sub-roga em todos os direitos e obrigações do vendedor no que 51 Conforme doutrina sobre o tema: "As declarações e garantias prestadas pelo vendedor visam
principalmente: (i) servir como um meio para persuadira vendedora divulgar e tornar disponí-
tange ao ativo, salvo disposição legal e contratual em contrário49 • vel ao comprador a maior quantidade possível de informações sobre o negócio a ser adquirido,
anteriormente à conclusão da operação; (ii) conforme o desenrolar das informações reveladas
pelo vendedor e sua importância para a continuidade dos negócios a serem adquiridos, pode
servir como argumento do comprador para desistir do negócio diante da relevância e gravidade
destas informações; (iii) servir como base para fixação de significativa indenização na hipótese
47 "(... ) Ocorre uma transferência de riscos aceita pelo adquirente, mas se revela má-fé do alienan- de quaisquer destas declarações e garantias virem a ser declaradas inverídicas e omissas após
te, que não comunicou ao comprador a existência do defeito de direito. O Código considera o comprador tomar controle do negócio com o fechamento da operação. Inclusive, a fixação
que, na hipótese, vencendo o evictor o processo contra o adquirente, este só pode exigir do de uma vultosa indenização serve ainda como meio para assegurara exatidão e veracidade das
alienante a devolução do preço pago, não cabendo perdas e danos em virtude da convenção informações reveladas pelo vendedor com relação à situação do negócio objeto do contrato."
existente entre as partes" (WALD, Arnoldo. Direito Civil: direito dos obrigações e teoria geral dos (ABLA, Maristela Sabbag. Sucessão Empresarial: Declarações e Garantias - o Papel da Legal Due
contratos. 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 371-372). Diligence in: CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; ARAGÃO, Leandro Santos de. Reorganização
48 Art. 107. Avalidade da.declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando Societária. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 110)
a lei expressamente a exigir. Importante mencionar que as R&W também servem para proteger o vendedor: "Um enuncia-
49 "Quando o vendedor assume responsabilidade parcial ou integral pelos atos efatos ocorridos do que assegura que a empresa alvo em contra ela apenas e tão somente as ações listadas no
até o fechamento da operação, é preciso que tenha o cuidado de esclarecer que nada obstante Anexo X, onde consta uma cópia do índice de ações enumeradas no Data Roam, mas que a
esteja assumindo o dever de indenizar o comprador ou a sociedade-alvo, o valor das perdas falta de diligência do adquirente causou-lhe escapar da atenção uma ação judicial vultuosa,
objeto de indenização a ser paga não terá impacto no preço de venda, i.e., não haverá redução não pode ser utilizada pelo mesmo adquirente como fonte para arguição de erro essencial. O
do preço acordado pelas partes em virtude de perdas decorrentes de fatos ou atos desconhe- negócio deve ser concluído nesses termos, se o alienante, de boa-fé, tudo revelou" (PONTES,
cidos delas no momento da conclusão do contrato." (BOTREL, Sérgio. Fusões & aquisições. 2ª Evando Fernandes. Representantions & Warranties no Direito Brasileiro. São Paulo: Almedina,
ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 278.) 2014. p. 137.)
162 - CONTINGÊNCIAS OCULTAS EM CONTRATOS DE M&A: Vícios REDIBITÓRIOS, EVICÇÃO E••• CAIO BRANDÃO, FELIPE HANSZMANN E RICARDO MAFRA - 163

dem acordar o que acontecerá caso uma declaração prestada no contra- Há uma série de princípios do direito civil que regem a construção
to venha a ser considerada falsa 53 • Como esclarece James C. Freund54 : das R&W, como a autonomia das partes 58 em estipular os parâmetros
The representations (or, as they are usually referred to, the repre- que regularão a alocação de riscos entre si e a boa-fé59 •
sentations and warranties) are a way of the seller (or the buyer) Nesse contexto, as R&W representam ferramentas de mitigação
saying: 'Here is what my business is ali about, at this particular da responsabilidade pelos passivos ocultos justamente porque as partes,
moment in time'. ln the vernacular of financial statements em geral, declaram ter conhecimento das informações alvo da auditoria
'
representations constitute essentially a static balance sheet
e demais informações divulgadas para efetuar a transação.
approach, as contrasted with the motion implicit in a statement
of income showing results of operations; the photographic O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em uma ação de anulação
analogywould be to a snapshot, as distinguished from a movie. proposta pelo comprador para anulação de contrato em que o vende-
É importante destacar que as R&W podem ser discutidas na fase dor omitiu informações essenciais para a celebração do negócio e de-
pré-negocial (e.g. discussão de memorando de entendimentos ou da ofer- clarou informações que se mostraram inverídicas (que a sociedade alvo
ta vinculante), mas seus termos são principalmente dimensionados na não tinha dívidas e possuía uma determinada quantidade de produtos
negociação dos contratos definitivos a partir da auditoria que tem como em estoque60), deu provimento ao pedido do autor por entender que fi-
objetivo principal conhecer os riscos do ativo 55 • cou caracterizado um inadimplemento contratual que prejudicou dire-
tamente o objetivo do contrato 61 :
Esse tema é bastante sensível na discussão de um M&A, represen-
Nesse contexto, autorizada está a rescisão da avença, pois os réus
tando muitas vezes um ponto de tensão negocial. De um lado, o com-
omitiram dos adquirentes importante informação, essencial para
prador sempre vai querer a declaração mais aberta e genérica possível
a perfectibilização do contrato de compra e venda.
a fim ter mais chances em um processo de indenização. De outro lado,
Tal omissão pode ser verificada a partir dos próprios termos do
o vendedor tentará delimitar estas declarações, incluindo qualificações
contrato, que previa expressamente a inexistência de dívidas do
de conhecimento (como no caso das declarações "no melhor conheci-
estabelecimento comercial( ... )
mento do vendedor") ou de materialidade, quando se estabelece valo-
Ora, da interpretação dessas duas disposições do contrato, reali-
res mínimos (e.g. o vendedor declara não ter conhecimento de nenhum
zada em observância aos arts.112 e 113 do CC/2002, conclui-se
processo judicial que envolva valores maiores de R$ 1.000.000,00) 56- 57 • que a intenção manifestada, especialmente em relação à parte
53 Geralmente, é pactuado uma indenização no caso de falsidade de uma declaração, mas há adquirente era a de adquirir a farmácia livre de dívidas.
outros _mecanismos, t~is como: (i) anulação do contrato, (ii) desfazimento do negócio e (iii)
correçao da d_ecl?raçao ou do fato ~ue g~rou a falsidade (e.g. possibilidade do comprador (... )
consertar a maquina quebrada que tinha sido atestada como em pleno funcionamento).
54 FREUND, James C. Anatamy af a Merger: Strategies and Techniques for Negotiating Corpora te Registre-se que, no contexto econômico do pequeno empreen-
Acquisitions. NewYork: Law Journal Press, 1975. dimento adquirido, a existência de passivo de tal amonta (... )
55 "Quan_do o negócio não_ é precedido de uma due diligence, as declarações e garantias (repre-
sentat1ons and warrant1es) previstas no contrato que formaliza a operação assumem ainda
:,naior relevância" (B~E:~EL, Sérgi~. Fusões & aquisições. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 57.) 58 Esse princípio já foi tratado nos demais capítulos e sua relativização será melhor aprofundada
56 (... ) R~versam~nte, e licito reduz1r a garantia, o que constitui cautela adotada por quem nos próximos itens.
negocia em objetos usados, por exemplo: o alienante exime-se de responder pelos defeitos 59 De acordo com Araken Assis, a funções da boa fé podem ser resumidas em:"( ... ) três funções
ocultos, ou apenas restringe a responsabilidade, Mas é claro que uma cláusula desta sorte não independentes: (a) função interpretativa: o sentido e o alcance das cláusulas contratuais, no
prevalecerá se o alienante já tem conhecimento do defeito, porque não é jurídico que uma caso de divergências, obtêm-se através da referida regra de conduta; (b) função integradora:
pessoa possa extrair condição favorável da má-fé com que se conduza" (PEREIRA, Caio Mário explicita os deveres dos figurantes e os amplia, implicando o frequente nascimento de deveres
?ª Sil~a. Instituições ~a Direito_Civil. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 113). laterais ou anexos às obrigações principais e secundárias dos figurantes; (c) função mitigadora:
57 Em_ ~1rtude da amplitude d? liberdade de as partes convencionarem sobre o nível de respon- demarca limites à pretensão do credor perante o devedor" (ASSIS, Araken de. Comentários ao
sabilidade do vendedor, ex1s_tem m~delos extre':1_os e intermediários adotados na prática do Código Civil Brasileiro: do direito das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 92).
F&A. Os modelos e_x_tremossao o da (1) responsabtltdade total (full liability), em que o vendedor 60 Cláusula 7° do Contrato de Compra e Venda de Quotas: "Declaram-se os CEDENTES, paro todos
assume resp_onsab1ltdade pl~~a pelos atos~ fatos ocorridos até a data do fechamento, e o da (ii) os efeitos legais, que a presente empresa, cujas quotas estão totalmente, sendo transferidas e cedidas
total e~clusao de responsabtltdade, tambem conhecidos como regime de 'porteira fechada', por este ato, que a mesma não possui restrições bem como dívidas em aberto junto as entidades
por meto d~ qual o comprador assume o risco de ser surpreendido com dívidas e contingências privadas, municipais, estaduais efederais."
desconhecidas sem que tenha direito de obter indenização do vendedor" (BOETREL Sérgio. 61 Apelação Cível nº 2006.034036-6. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Rei. Des. Marco
Fusões & aquisições. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 276). ' Aurélio Gastaldi Buzzi.Julgado em 16 de março de 2010.
164- CONTINGÊNCIAS OCULTAS EM CONTRATOS DE M&A: Vícios REDIBITÓRIOS, EvICÇÃO E••• CAIO BRANDÃO, FELIPE HANSZMANN E RICARDO MAFRA -165

certamente importaria na desistência do comprador quanto da empresa. (... ) Da análise do contrato firmado pelas part_es,
à conclusão do contrato (... ) Configurou-se, assim, o vício de impossível reconhecer que houve erro substancial na vontade
consentimento de dolo, previsto no art.145 do CC/2002, o que do contratante, já que há cláusula expressa indicando o pleno
autoriza a rescisão do contrato, uma vez demonstrado que os conhecimento acerca das condições econômicas da empresa, o
vendedores ocultaram a informação que fazia essencial para a que não poderia esquivar nem mesmo o satisfatório cumpri-
celebração do contrato de compra e venda. mento do ajuste.
Em outro caso similar julgado pelo Tribunal de Justiça de São Outra ação julgada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo referiu-
Paulo 62 , o comprador pleiteou a anulação do contrato de compra e ven- -se ao pleito do comprador de anulação do contrato em razão da "omis-
da de quotas alegando que foi induzido a erro ao acreditar que o valor são de informações em relação a existência de dívidas contraídas pelo Sr.
da dívida da sociedade era substancialmente menor. O tribunal enten- Francisco [vendedor] por ocasião de sua administração, e que não cons-
deu que a ação não merecia prosperar tendo em vista que o autor decla- taram na contabilidade". O Tribunal indeferiu a ação,já que o comprador
rou que conhecia a real situação da empresa alvo: declarou ter conhecimento da situação financeira da sociedade63- 64 : "em
O contrato firmado pelas partes contém cláusula específica que pesem os argumentos do autor, de se atentar ser ele advogado, ten-
acerca das condições financeiras da empresa (fls. 17/19), sendo do livremente assinado contrato na condição de cessionário das quotas
clara a cláusula contratual que ressalta a impossibilidade do e manifestado expressamente ciência a respeito da situação da empresa".
cessionário alegar desconhecimento da situação financeira da A cláusula de declarações e garantias em contratos de aquisição de
empresa, afirmando que desde já a conhece. Não há qualquer participação societária geralmente vêm acompanhadas de cláusulas de
referência ao valor da dúvida a cargo da empresa, se corres- indenização, razão pela qual o seu breve exame se faz necessário.
pondente a R$ 6.000,00 (seis mil reais) como noticia o autor
que acreditava ser, ou a R$ 70.000,00 (setenta mil reais) como 3.2.2. CLÁUSULA DE INDENIZAÇÃO
constatou que o fosse, afastando a possibilidade de ser este As cláusulas de indenização estão diretamente ligadas às declarações
fato a causa de nulidade do ato jurídico a macular a vontade
e garantias e nada mais são do que uma alocação de riscos, atribuindo a
do contratante. A existência de passivo da empresa é fato in-
uma das partes a responsabilidade pelas perdas da companhia, podendo
controverso, assim como a ciência do autor acerca deste fato,já
ser estruturada de diversas formas 65 • Por exemplo, pode-se criar marcos
que pelo mesmo noticiado, bem assim representado por cláusula
contratual expressa. temporais para a responsabilidade do vendedor (e.g. o vendedor perma-
nece responsável enquanto perdurarem os prazos prescricionais e deca-
O juiz ainda menciona que o comprador deveria ter diligenciado
denciais das ações) ou de valor (e.g. vendedor apenas indenizará caso as
antes de adquirir as quotas:
perdas ultrapassem uma certa quantia).
Caberia ao requerente, na qualidade de adquirente das quotas
sociais, promover pesquisa junto aos órgãos públicos visando Um ponto fundamental na negociação da cláusula indenizatória é
conhecer, aproximadamente, o valor da dívida a cargo da empre- definir qual a limitação da obrigação de indenizar. Geralmente, o ven-
sa, o mesmo podendo fazê-lo junto a fornecedores, empregados dedor se obriga a indenizar o comprador por violação das declarações,
e outros credores. Não se impõe ao requerente a obrigação de obrigações estipuladas no contrato e contingências da companhia que
promover análise aprofundada quanto às vantagens do negócio
jurídico ou investigação aprofundada como relatado pela sen-
tença apelada, mas, pelo relato inicial, uma simples diligência Cláusula do contrato de compra e venda: "Os cessionários declaram, para todas osfins de direito,
investigativa, na forma indicada pela sentença apelada, se mos- que tem pleno conhecimento da situação atual da empresa, razão porque, em caso de faturamento
inferior ao atualmente obtido, não dará direito a reclamar redução do preço."
traria o suficiente para o autor confirmar a situação econômica Apelação Cível nº 9118915-40.2009.8.26.oooo. Tribunal de Justiça de São Paulo. Rei. Des.José
Carlos Ferreira Alves.Julgado em 19 de fevereiro de 2013.
62 Apelação Cível nº 9134453-61.2009.8.26.oooo. Tribunal de Justiça de São Paulo. Rei. Des. Uma das maiores discussões em relação a essa cláusula é a definição de "perda". Por exemplo,
Mareia Regina Dalla Déa Barone.Julgado em 14 de agosto de 2012. se a definição incluirá apenas os danos diretos ou também os danos indiretos e lucros cessantes.
166 - CONTINGÊNCIAS OCULTAS EM CONTRATOS DE M&A: Vícios REOIBITÓRIOS, EVICÇÃO E: •. CAIO BRANDÃO, FELIPE HANSZMANN E RICARDO MAFRA-167

foram ocasionadas antes do fechamento da transação 66 .Já em relação ao KOITI ASCAVA) já figurava como sócio à época e, portanto,
comprador, estipula-se a necessidade de indenizar o comprador por vio- a rigor, teria o ônus de conhecer o fato tanto quanto o réu, sal-
lação de declarações e das obrigações pactuadas no contrato. tando aos olhos, ainda, que o sócio que compareceu à audiência
naqueles autos (fls. 42; ROMULO P. NEDER) figurou como
Em relação aos passivos ocultos, percebe-se uma clara relação com anuente na avença em análise (fls. 15), tudo a tornar possível a
as declarações dadas pelo vendedor, uma vez que o vendedor pode de-
tese de prévio conhecimento.
clarar que a situação da companhia é a que foi divulgada para o com-
(... )
prador na due diligence e refletida no preço de aquisição, não havendo
Afinal, ao que se extrai da alteração do contrato social de fls.
passivos não escriturados. Caso uma declaração desse tipo seja forne-
17/28, as quotas de titularidade dos autores não são integral-
cida, haverá obrigação de indenizar caso um passivo não divulgado ve- mente aquelas objeto da compra e venda celebrada com o réu,
nha a se materializar. que detinha participação de 26,05% da sociedade e, à evidência,
A importância da cláusula de indenização foi evidenciada em um deve arcar somente com o valor proporcional a esta parte e, não,
caso recente julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. A ação en- à quantia integral suportada.
volveu o pedido de indenização pelos compradores de participação Outro caso relevante envolveu um contrato de compra e venda de
societária em face dos vendedores em razão de omissão de passivos tra- quotas, no qual ficou expressamente alocada a responsabilidade do ce-
balhistas. Destaca-se que não havia cláusula de indenização no contra- dente por quaisquer obrigações anteriores à transação. Após a transação,
to de compra em venda. a sociedade alvo foi multada pela Fazenda Estadual pelo não recolhi-
Em virtude deste passivo, os compradores precisaram aportar cer- mento de ICMS relativo a período anterior a cessão, tendo o Tribunal
ca de R$ 120.000,00 (cento e vinte mil reais) na sociedade, sendo que condenado os cedentes ao pagamento de tais impostos em função do
no contrato de compra em venda não estava estipulado uma cláusula de acordado entre as partes68 •
indenização, tampouco declaração acerca dos passivos. Nessa mesma linha, uma ação movida pelo vendedor contra o com-
Dessa forma, o Tribunal de Justiça reconheceu uma culpa concor- prador a fim de receber indenização e juros moratórias diante do atraso
rente entre as partes, determinando o ressarcimento de metade dos va- no pagamento de parcelas do preço 69 • Os réus alegaram suspensão dos
lores aportados pelos compradores, uma vez que o vendedor falhou em pagamentos por justa causa tendo em vista a descoberta de ações tra-
divulgar a existência da ação trabalhista e os compradores falharam no balhistas e encargos previdenciários não divulgadas dolosamente pelo
seu dever de diligência ao não retirarem as certidões necessárias para ter comprador no tempo das negociações, tendo notificado o vendedor que
real conhecimento da ação 67 : tais valores seriam retidos e descontados das parcelas restantes, confor-
Se, de um lado, não se nega o dever de informação do réu, com me previsto no contrato 70 • A Corte concordou com o argumento dos
fulcro na boa-fé contratual; de outro, razoável esperar que os 68 "Evidente a responsabilidade dos cedentes pela multa imposta pe~a Fazenda Estadu~I, em
estrita obediência ao que ajustaram as partes no contrato de cessao de quo~as. A cla_usula
adquirentes buscassem conhecer os riscos do negócio celebrado, terceira ao estabelecer os limites da responsabilidade dos cedentes pelo passivo anterior da
tendo, nessa senda, oi.Juízo a quo bem destacado que 'o dever empres;, responsabiliza-os por 'multas de quaisquer âmbitos do poder cons_tituído', o que
obviamente inclui multas de natureza fiscal.( ... ) Se ingressaram no quando social da emp_resa
de diligência é inerente aos negócios jurídicos', mormente em com obrigações tributárias pendentes, de gestões anteriores, mas nada fizeram para solve-las
se tratando de contratos empresariais. ou responsabilizar os antecessores, evidente que se omitiram e, com isso, o_neraram a empresa
com O passivo oculto." (Apelação Cível nº 0016302-24.2012.8.26.0604. Tribunal de Justiça de
Vale dizer, a informação quanto à pendência da reclamação tra- São Paulo. Rei. Des. Francisco Loureiro. Julgado em 19 de outubro de 2016)
balhista era pública, um dos autores adquirentes (ROBERTO 69 Apelação Cível nº 0000535-35.2012.8.26.0445. Tribunal de Justiça de São Paulo. Rei. Des.
Francisco Loureiro.Julgado em 10 de junho de 2015. , . , . . _
':4 Cláusula Quarta, parágrafo terceiro, do contrato, dispõe que eventua~s debitas ou obngaçoes
66 Ressaltando que as demais contingências já foram refletidas no preço acordado, não fazendo [. ..] que venham a surgir posteriormente à data da assinatura da ALTERAÇAO CONTRATUAL, CUJO
sentido o vendedor indenizar por obrigações que já foram divulgadas e descontadas no valu- FATO GERADOR TENHA OCORR/DOATÉAASS/NATURA DO PRESENTE INSTRUMENTO, [...}e que
ation, salvo peculiaridades do caso concreto. não tenham sida quitadas pelos VENDEDORES, poderão ser assumidas pelas COMPRADORES,
67 Apelação Cível nº 1006988-64.2018.8.26.0624. Tribunal de Justiça de São Paulo. Rei. Des. abatendo a(s) valar(es)do saldo devedarremanescente, sendo que, ca_so isso ocorra, os VENDEDOR~S
Grava Brazil.Julgado em 31 de outubro de 2019. deverão ser comunicados da existência de ta/fota. Se não houve mais saldo remanescente, em razoo
CAIO BRANDÃO, FELIPE HANSZMANN E RICARDO MAFRA - 169
168 - CONTINGÊNCIAS OcuLTAs EM CONTRATOS DE M&A: Vícios Rmrn11óR1os, Ev1cç~o E•••

réus, observando o previsto no contrato de compra e venda de quotas e 4. CONCLUSÃO


indeferindo o pleito do vendedor. Diante do exposto, percebe-se que os passivos ocultos representam
As cláusulas que delimitam a responsabilidade e indenização a se- uma matéria bastante sensível em operações de M&A.
rem incorridas pelas partes quanto aos passivos ocultos precisam ser cui- Nesse sentido, dependendo das particularidades do ~aso concreto,
dadosamente redigidas e claras. nota-se diversos institutos no Código Civil que podem vir a ser alega-
Nessa linha, o julgamento feito pelo Tribunal de Justiça de São dos pelas partes como forma de tratamento de~se~s p~ssivos, c~mo_ os ví-
Paulo no qual se discutiu se a expressão contratual "passivo que vier a cios de objeto e consentimento. Apesar da existencia desses mst~tutos,
ser firmado, não importando a natureza" 71 atribuiu a responsabilidade a prática empresarial tem caminhado no se~tido de que~ alocaçao ex-
pelo passivo oculto ao comprador ou vendedor 72 • O Tribunal entendeu pressa das responsabilidades nos contratos e a !arma mais adequada e
que seria de responsabilidade dos cessionários,já que as ações trabalhis- segura de mitigação, tendo o judiciário, na maior parte das vezes, res-
tas foram movidas após o registro da alteração contratual, mesmo ten- peitado as manifestações de vontade das partes. .
do fato gerador anterior73 : É importante destacar que apesar dessas alocações c?ntratu_ais, a
É a inte1pretação adequada à natureza do contrato. Não se está a autonomia da vontade - norte dessas atribuições - tem sido ,b~z~da
tratar, à evidência, de dívidas da sociedade resultantes de atu- pelos chamados "novos" princípios do direito civil, como a boa-fe obJet1va
ação ilegal, abusiva ou fraudulenta dos antigos sócios. Como e a função social do contrato.
precisamente dispôs a respeitável sentença, 'a cláusula discutida
abrange apenas aquelas obrigações já existentes e exigíveis da
sociedade ao ensejo da venda; em outras palavras, obrigações
cujo cumprimento poderia ter sido cobrado dos vendedores até
o momento da transferência.
Com efeito, passivo 'que vier a ser firmado' quer dizer dívida
líquida, certa e exigível que pudesse ser compensada com as
parcelas do preço (... ).
Assim, nota-se que os tribunais têm respeitado a vontade das par-
tes e mantido os termos contratuais ajustados em relação aos passivos
conhecidos e ocultos 74, representando o meio mais eficaz de mitigar
responsabilidades.

da quitação da obrigação em sua totalidade, os VENDEDORES se obrigam, a promover o imediato


pagamento de qualquerdébito que venha a ser apurado, em qualquer tempo, f ..}'"
71 Cláusula completa: "São de inteira e exclusiva responsabilidade dos vendedores todas e quaisquer
dívidas trabalhistas eventualmente incidentes sobre a sociedade até o registro da alteração contra-
tual, momento em que os compradores assumirão a ativo e o passivo que vier a serfirmado, não
importando a natureza."
72 Importante destacar que se tratava de um contrato de trespasse que possui algumas particu-
laridades distintas de uma compra e venda de ações/quotas propriamente ditas.
73 Apelação Cível nº 1101826100. Tribunal de Justiça de São Paulo. Rei. Des. Guilherme Santini
Teodoro.Julgado em 25 de abril de 2006.
74 Apelação Cível nº 70069146157. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Rei. Des. Eduardo
João Lima Costa. Julgado em 25 de agosto de 2016; Apelação Cível nº 1.070.242-8. Tribunal
de Justiça de São Paulo. Rei. Des. Virginía Sampaio.Julgado em 27 de abril de 2006.
SÉRGIO 80TREL -171

VI. BREVES APONTAMENTOS SOBRE AS CLÁUSULAS


MAC NOS CONTRATOS DE M&A
Sérgio Botrel1

1. INTRODUÇÃO
No universo corporativo a principal função desempenhada pelos
contratos é a de alocação de riscos. Em fazendo uso da autonomia priva-
da e das informações às quais têm acesso, as partes regulam suas relações
jurídicas por meio de um conjunto de técnicas, institutos e cláusulas que
formam uma verdadeira equação econômica.
E tendo em vista que nas relações empresariais a ausência de vul-
nerabilidade ou hipossuficiência das partes é presumida, assim como o
equilfürio da equação por elas construída, a intervenção estatal só se jus-
tifica em situações excepcionais 2 •
Nesse cenário, os efeitos da ocorrência de eventos adversos após a
celebração do contrato podem (ou devem?) ser regulados pelas partes,
seja para estabelecer parâmetros de reajuste do que foi pactuado ou mes-
mo para conferir-lhes a prerrogativa de resilir o contrato.
É esse o contexto de elaboração, negociação e aplicação das cláu-
sulas MAC (material adverse change; ou MA.E - material adverse ejfect),
cuja utilização em contratos de M&A e em contratos de financiamen-
to3 é recorrente.
No contexto mais comum- e que é aquele que gera as maiores po-
lêmicas envolvendo sua aplicação - o que se busca com essas disposi-
ções contratuais é facultar o desfazimento do contrato caso, após a sua
celebração, mas antes do fechamento da transação, ocorra alguma mu-
dança que gere efeitos materiais para os negócios e/ou finanças da em-
presa alvo da operação.
Doutor em Direito Privado (PUC/MG). Mestre em Direito Empresarial (FDMC). Professor do
LL.M. em Direito Corporativo do IBMEC. Advogado.
2 Nesse sentido, o art. 421-A do Código Civil (introduzido pela Lei nº13.874/19), prevê verbis: "Art.
421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de
elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes
jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: 1-as partes negociantes poderão
estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pres-
supostos de revisão ou de resolução; li - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser
respeitada e observada; e Ili - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional
e limitada."
3 A aplicação das cláusulas MAC nos contratos de financiamento não integra o escopo do pre-
sente ensaio.
SÉRGIO 80TREL - 173
172 - BREVES APONTAMENTOS SOBRE AS CLÁUSULAS MAC NOS CONTRATOS DE M&A

Mas apesar de sua frequente inserção nos contratos acima referi- trato (walk away right), sem que incorra em qualquer penalidade (salvo
dos, a ausência de jurisprudência no sistema jurídico pátrio4, cumula- ajuste em contrário).
da com a escassez de material doutrinário, fazem com que as cláusulas Fica nítida, assim, a função de alocação de riscos da cláusula MAC,
MAC sirvam mais para viabilizar a renegociação dos contratos, em caso que protege as partes (ou uma das partes, conforme aplicável) q~an~o
da superveniência de eventos que gerem efeitos relevantes sobre a equa- aos riscos de ocorrência de eventos que possam alterar, de forma s1gru-
ção contratual, do que para efetivamente implementar o mecanismo de ficativa, as características do negócio objeto da transação e/ou suas con-
resolução do negócio jurídico. dições financeiras/ econômicas.
Crises econômico-financeiras de repercussão global, assim como Frequentemente, no entanto, o titular do direito de resilição apre-
aquelas domésticas e setoriais, costumam colocar à prova as cláusulas senta sua prerrogativa contratual à parte contrária para negociar melho-
MAC 5, sendo que a pandemia do COVID-19 não representou uma ex- res termos e condições 7 • Afinal, o desfazimento do contrato constitui
ceção a essa regra, uma vez que os efeitos da pandemia deram origem a medida extrema e, amiúde, indesejável. Em diversas situações, afigura-
intensos debates acerca da interpretação e utilização de diferentes téc- -se mais vantajoso renegociar a equação contratual do que perseguir sua
nicas de redação das modalidades de cláusulas contratuais sob análise. extinção, conforme será exposto em maiores detalhes.
O presente ensaio coloca em destaque a utilização das cláusulas O segundo cenário de utilização das cláusulas MAC é aquele em
MAC nos contratos de M&A e algumas particularidades de sua apli- que, na seção referente a declarações e garantias8 , fica consignado (i) que
cação nos contratos regidos pelo sistema jurídico brasileiro. desde uma determinada data ou evento não ocorreu nenhuma altera-
ção material adversa aos negócios; ou (ii) que uma determinada declara-
2. UTILIZAÇÃO DAS CLÁUSULAS MAC ção é verdadeira e precisa, e que uma eventual imprecisão não acarretará
As cláusulas MAC disciplinam os efeitos de mudanças materiais uma mudança material adversa nos negócios da empresa (i.e. nesse caso
adversas ocorridas dentro de um determinado período e contexto. Num a MAC é utilizada como qualificadora de uma declaração).
primeiro cenário, a cláusula MAC formaliza, nos contratos de execução Nas hipóteses acima a quebra de uma declaração confere, via de re-
diferida, uma hipótese de resilição convencional6 : se entre a assinatura do gra9, o direito de a parte prejudicada pela falsidade, imprecisão ou in-
contrato e seu fechamento ocorrer alguma mudança material adversa a completude da declaração ser indenizada.
parte à qual se atribuiu esse direito terá a faculdade de denunciar o con- No primeiro cenário afigura-se importante que as partes avaliem a
estratégia de redação da cláusula MAC que melhor atende aos seus res-
4 A inexistência de jurisprudência sobre o tema decorre, em boa medida, do fato de que os
contratos de M&A e aqueles de financiamento contemplam, via de regra, cláusulas com pro- pectivos interesses.
missórias e estabelecem que o procedimento arbitral será conduzido em sigilo.
5 A importância das cláusulas MAC após a crise financeira de 2008 é destacada pela literatura
e~trangeira: "[...] since the financial crisis the legal and financial frameworks regulating finan- Cf. LAJOUX, Alexandra Reed et NESVOLD, H. Peter. The art ofM&A structuring. p. 60-61.
cmg and M&A agreements have greatly evolved, due to events such as economic turmoil, 7
8 Como esclarecemos em outra oportunidade, geralmente, "as declarações e garantias do
fluctuations in commodities indústries, and the increase of terrorist attacks and unforeseen vendedor visam, em especial: (i) servir como um meio para persuadir o vendedor a divulgar e
economic circumstances. The importance of MAC and the uncertainty surrounding it has tornar disponível ao comprador a maior quantidade possível de informações sobre o negócio
been acknowledged by academics, case law, practitioners, and policy drafters." LALAFARYAN, a ser adquirido, anteriormente ao fechamento da operação; (ii} conforme o desenrolar das
Narine. Material Adverse Change uncertainty: casting afortune if not carparate lives. Journal of informações reveladas pelo vendedor e sua importância para a continuidade dos negócios
Corporate Law Studies, DO1: 10.1080/14735970.2020.1781484. explorados pela sociedade-alvo, pode servir como argumento ao comprador para desi_stir ~o
6 Conforme a doutrina pátria, a cláusula MAC pode ser traduzida "de acordo com a nossa sis- negócio diante da relevância e gravidade das informaçõ':s; (iii} servir como ba_se para a f1xaçao
temática legal, como hipótese de resilição convencional, uma vez que a parte que se sentir de indenização na hipótese de as declarações e garantias se revelarem, apos o fechamento
prejudicada pela ocorrência de fato ao ato, previsível ou não, que altere substancialmente os da operação, imprecisas ou inverídicas; (iv) servir como componente na formação do preço,
r:sultad_?S ou premissas da transação n:go~iada, passa a ter o direito, mediante simples ma- haja vista que o teor das declarações e garantias permitem ao comprador estimar o risco da
nifestaçao de vontade, de efetuar a denuncia do pacto. Esta hipótese de resilição não inclui a operação; (v} servir como elemento de decisão quanto à celebração do contrato." BOTREL,
obrigatoriedade de pagamento de multa rescisória, a não ser que de outra forma estipulado
Sérgio. Fusões&Aquisições. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 298. _
entre as partes."WALD, Arnoldo; MORAES, Luiza Rangel; WAISBERG, Ivo. Fusões, incorporações A ressalva se justifica porque, a depender das particularidades da quebra da declaraçao, a
e aquisições - aspectos societários, contratuais e regulatórios. ln: WARDE JR, Walfrido Jorde 9
{Coord.). Fusão, cisão, incorporação e temas carreia tos. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 56. parte prejudicada poderá acionar a via da resolução.
174- BREVES APONTAMENTOS SOBRE AS CLÁUSULAS MAC NOS CONTRATOS DE M&A
SERGIO BOTREL - 175

3. ESTRATÉGIAS DE REDAÇÃO DAS CLÁUSULAS MAC


ções contratuais que reflitam uma Business MAC, ou anua em fixar um
_ As cláus~as MAC ~adem ser redigidas com ou sem a qualifica- rol exaustivo de situações que legitimam a prerrogativa de resilição do
çao pormenonzada das circunstâncias e eventos que acionam O direi- contrato. Em se tratando de contrato regido pela legislação brasileira es-
to à resilição. taria afastada a incidência dos arts. 478-480 do Código Civil, que posi-
Em sendo adotada a estratégia da qualifi,cação é possível adotar crité- tivaram a teoria da imprevisão? Esse questionamento é relevante porque
rios qualitativ~s,_ qu~ntit~t_ivos, ou ambos, para identificar as situações que o texto legal exige, dentre outros requisitos, que o evento que venha a
conferem o direito a resilição contratual; ou, a contrario sensu, descrever fundamentar o pleito da resolução do contrato seja qualificado como
eventos e situações que estão fora do âmbito de acionamento da cláu- extraordinário e imprevisível, no que podem se enquadrar mudanças de
sula MAC (MAC carve-outs), tais como os efeitos advindos do anúncio origem mercadológicas, assim como acontecimentos não elencados no rol
da transação, alterações legislativas/regulatórias,rescisões contratuais etc. exaustivo pactuado pelas partes.
Essa descrição pode referir-se a mudanças no ambiente macroeco- A rigor, não se pode admitir o afastamento tácito ou expresso do di-
nômico doméstico (ou global, conforme aplicável) e/ou no mercado de reito à resolução por onerosidade excessiva (regulado pelos arts. 478-480
atuaçã_o da empresa (Market MAC), ou mesmo alterações que impactam do Código Civil11), tendo em vista que, conforme esclarece a doutrina
exclusivamente as finanças e os negócios da empresa (Business MAC). pátria, o conjunto de normas que instrumentaliza a teoria da imprevi-
Com relação a esta distinção, é comum que, em se tratando de são é de ordem pública, além do que não se pode renunciar àquilo que
uma efetiva cdompra e venda, o vendedor sugira a aplicação exclusiva da se desconhece. 12
Business MA /- e:cluindo-se, desse modo, Market MAC -, sob argu- Note-se, entretanto, que tudo aquilo que as partes elencam no ins-
mento de que os nscos de mercado após a celebração do contrato (mas trumento contratual como eventos materiais adversos, assim como os cri-
antes do fechamento da transação) deveriam ser suportados pelo com- térios para enquadramento neste conceito ( v.g. previsão de (i) métricas
prador, porquanto se este se beneficia de eventuais melhorias do merca- financeiras para mensurar a relevância dos efeitos dos eventos, tais como
do dur~nt_e o período _entre signing e closing deveria suportar, também, a perda de receita, EBITDA ou algum outro referencial; ou (ii) operacio-
depreciaçao das condições mercadológicas. nais, como o fechamento de alguma linha de negócios, descontinuida-
C?co~re q~e raramente o comprador cede a esse tipo de solicitação, de da linha de produção de algum item manufaturado pela empresa
sob a JUs_tificativa de que riscos dessa natureza não estão precificados, e etc.), devem nortear a averiguação da presença dos requisitos necessá-
que a ongem do evento superveniente que altera o equilfbrio do con- rios à aplicação da teoria da imprevisão, em especial o enquadramento
trato não deve interferir na aplicação do mecanismo de resilição con- de algum acontecimento no conceito de "extraordinário e imprevisível".
tratual em comento 1º. Embora não esvazie por completo o que foi negociado entre as par-
. _ É relevante colocar em evidência que diante da inexistência de proi- tes - em virtude de o art. 4 78 do Código Civil contemplar elementos
biçao legal a enumeração das hipóteses de incidência da cláusula MAC normalmente não contidos nas cláusulas MAC -, a constatação acima
pode ser realizada em caráter "exaustivo" - ou seja, 0 que não está abran-
~do e:tá excl~~o - ou '~lucidativo", i.e. reconhecendo a possibilidade de
11 "Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes
situaçoes ou hipoteses nao expressamente abrangidas pelas qualificações e se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acon-
detalhamentos fundamentarem o acionamento da disposição contratual. tecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato.
Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
A_ est~ ~esp~ito, imagine-se situação em que o comprador venha a Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as
condições do contrato.
ceder a solicitaçao do vendedor e concorde em inserir apenas disposi- Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear
que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onero-
10 sidade excessiva."
Sobre a negociação das cláusulas MAC em operações de M&A, vide REED, Stanle Foster;
LAJOUX, Alexandra Reed; NESVOLD, H. Peter. The art ofM&A. p 483-4 84. y 12 BORGES, Nelson. A teoria da imprevisão no direito civil e no processo civil. São Paulo: Malheiros,
2002, p. 158-160.
SÉRGIO 80TREL -177
176 - BREVES APONTAMENTOS SOBRE AS (lÃUSULAS MA( NOS CONTRATOS DE M&A .

torna, de uma certa maneira, questionável a eficiência e eficácia da es- 4. Ac1ONAMENTO ·oA CLÁUSULA MAC
tratégia da qualificação. Qy.ando adotada a estratégia da qualificação o acionamento da prer-
Com efeito, a principal vantagem da estratégia de redação sob aná- rogativa de resilir o contrato estará subordinado à subsunção d~s fatos
lise é a redução das incertezas quanto àquilo que poderá conferir funda- ocorridos a alguma das hipóteses expressamente elencadas no mstru-
mento ao desfazimento do contrato. A desvantagem, por sua vez, reside mento contratual.
(i) na fase de negociação da redação da cláusula, tendo em vista a difi- Caso não haja detalhamento pormenorizado das hipóteses de in-
culdade de as partes chegarem a uma composição quanto às situações cidência da cláusula MAC, ou quando não houver enquadramento nas
e eventos que podem viabilizar a resilição contratual. Ou seja, os custos situacões elencadas a título elucidativo no contrato, a aplicação da cláu-
de transação dessa estratégia podem ser elevados, e a insistência em ne- sula MAC pressupõe a presença dos seguintes elementos interconecta-
gociar detalhes acerca desse mecanismo pode ter como impacto o en- dos: ocorrência de algum evento, superveniente à celebração do contrato, que
trave das negociações como um todo 13 ; e (ii) no risco de aquilo que foi gere efeitos materiais adversos.
contratualmente excluído do âmbito de incidência da cláusula MAC se Note-se que não é inexigível - salvo estipulação em contrário - a
enquadrar nos requisitos de aplicação da teoria da imprevisão e, desse comprovação de que o evento superveniente gera vantagem ou bene-
modo, inviabilizar o desfecho ajustado contratualmente. fício para a parte contrária àquela que busca a resolução do contrato, o
Nesse cenário, alternativamente, pode-se adotar a estratégia da im- que consiste em relevante diferença entre a aplicação da cláusula MAC
precisão, a qual outorga ao intérprete a árdua tarefa de avaliar a subsun- e a teoria da imprevisão.
ção dos fatos e eventos suscitados pela parte titular do direito à resilição Uma premissa óbvia e inquestionável que há de ser consigna~a é a
à hipótese normativa da cláusula MAC. Esta constatação demonstra que relação de causa e efeito direta e imediata entre o evento superveruente
a estratégia da imprecisão serve de estímulo para que as partes venham a e as consequências materiais adversas descritas pela parte que pretende
renegociar as bases contratuais. Afinal, a renegociação poderá se apre-
denunciar o contrato.
sentar como alternativa mais eficiente do que o litígio 14, tendo em vista
Por outro lado, um aspecto não tão evidente é a necessidade de o
não apenas os elevados custos de judicialização, mas também o potencial
dano reputacional e os efeitos das informações relacionadas ao conflito evento gerador dos efeitos materiais adversos ser caracterizado como
na cotação das ações (em se tratando de companhias listadas) 15 • "imprevisto" ou "imprevisível".
Em que pese ser necessário averiguar o contexto de contratação
13 David Morley enfatiza que"[ ...] the real reason mostMAC ela uses lack predictability is clear: to
get deals dane. The more explicitly the MAC is defined - by linking it to the specific fali in the
da cláusula MAC e a sua correlação com as demais disposições contra-
FTSE 100, say, ar a credit rating downgrade - the more effective and predictable is the clause. tuais16, no intuito de obter subsídios para melhor avaliar a intenção das
The snag is that insisting on such specific terms can be a deal-breaker. When people buy or
sell businesss, ar borrowers raise finance, they want to be certain the other side will stick to partes, afigura-se mais adequado utilizar~ doutrina da !mP_revisibilida-
the deal- specific conditions thatweaken this commitment are often negotiated out to get the de para uma legítima aplicação do mecarusmo de denuncia contratual
deal dane. What is left tends to follow a basic formula, but with infinite variations that affect
the MAC clause's impact." ln: Clauses with potenteffects, Financial Times, March 4, 2002. sob análise.
14 Nesse sentido, Maynard observa: "the use of MAC provisions creates the potential for rene-
gotiating the terms ofa deal when one of the parties decides to invoke a MAC provision. Even Com efeito, "uma primeira ideia de imprevisibilidade pode ser obti-
though the otherside may disagree whetherthe MAC provision has been triggered underthe
circumstances, renegotiation may often be preferable to the alternative-litigation". MAYNARD, da por via da noção contrária a fato certo e provável. ~sto porque, de ui:n
Therese H. Mergers and acquisitans: cases, materiais, and problems, p. 359. modo geral, até certo ponto, todos os eventos são mais ou menos previ-
15 Com efeito, "litigating MAC could ais o be dangerous not onlyforthe adverse legal and financial
consequences following the judgment but also for the party's reputation, should it lose the síveis, donde a necessidade de se balizar sua conceituação - sem o que
case. Arguably, the adverse financial impact on the losing party does not automatically entail
a reputation loss; since, however, proving MAC requires a very high threshold (as discussed
!ater), the party invoking it should demonstrate such severe evidence that, if proved, might Change uncertainty: costing afortune ifnatcarporate lives.Journal of Corporate Law Studies, DOI:
negatively impact the reputation of the party that has suffered MAC and, consequently, the 10.1080/14735970.2020.1781484. , ,, . , . , . ,,
public's trust in it. For instance, in Akorn, the market took the MAC event of default signal se- Dentre essas disposições contratuais destaca-se a clau~ula do curso ordmano dos ~egoc1os ,
riously, with the shares of the sellersuffering a sharp decline on the day ofthe Delaware Court of a qual estabelece limitações e delimita~ões para a gesta o da empresa durante o penado entre
Chancery's announcement of the decision by 68.67%." LALAFARYAN, Narine. Materia!Adverse a assinatura e o fechamento da transaçao.
178 - BREVES APONTAMENTOS SOBRE AS CLAUSULAS MAC NOS CONTRATOS DE M&A SÉRGIO 80TREL - 179

jamais se teria condições de classificar de forma segura um fato como Mais recentemente, a Delaware Court of Chance1y julgou um caso
não previsível. Tomando-se por base tais coordenadas, se a previsibili- considerado como um marco na interpretação e aplicação das cláusulas
dade decorre da identificação de um fato certo e provável, o fato in- MAC em contratos de M&A, por ter reconhecido o direito à resolução
certo e improvável só poderá ser considerado imprevisível" 17 . contratual com fundamento em cláusula MAC. Trata-se de Akorn Inc.
A contratação da cláusula MAC evidencia o reconhecimento ex- vs Fresenius Kabi AG1°.
presso e recíproco das partes de que a precificação e a estrutura foram Com efeito, diante da inexistência de jurisprudência pátria acerca do
negociadas tendo como base as circunstâncias fundamentais em que o tema, esses precedentes do sistema anglo-saxão podem contribuir para
contrato foi celebrado, e que eventos supervenientes fara do curso ordi- uma adequada aplicação das cláusulas MAC nos contratos de M&A
nário dos negócios (i.e. extraordinários) e que tenham efeitos materiais regidos pela legislação brasileira, mas desde que respeitadas as particu-
sobre as finanças e/ou negócios da empresa conferem a prerrogativa de laridades do ordenamento jurídico brasileiro e da tradição romano-ger-
denunciar o contrato. mânica do sistema pátrio.
Desse modo, eventos cuja estimativa de concretização futura seja Retomando a abordagem dos critérios de avaliação da relevância
identificada como provável devem ser precificados ou ter os seus respecti- da alteração superveniente, o mais citado é aquele de natureza financei-
vos efeitos devidamente regulados pelo contrato, mas não devem, como ra: afinal, o evento poderá ter reflexos diretos e imediatos na receita, nos
regra geral, servir de fundamento para acionamento da cláusula MAC custos e/ou nas despesas da empresa.
(salvo ajuste expresso em contrário). Nem sempre, porém, é viável estimar o impacto financeiro do even-
E mais: os efeitos adversos devem estar concretizados no momento to material adverso, o qual poderá ter evidente e substancial reflexo re-
de acionamento da cláusula MAC, ou a estimativa de sua concretização putacional, mas sem que seja possível quantificar os efeitos financeiros
há de ser irrefutável. Isto porque não se deve admitir efeitos potenciais, imediatos. Em tais circunstâncias, a impossibilidade de realização de
hipotéticos ou especulativos decorrentes do evento superveniente. uma mensuração segura dos reflexos econômicos e financeiros não pa-
Com relação à relevância ("materialidade"), a aplicação da cláusu- rece impedir a aplicação da cláusula MAC - naturalmente, desde que o
la MAC deve ser realizada quando o evento extraordinário gerar efei- abalo reputacional possa ser classificado com relevante-, do que se con-
tos graves e significativos de natureza "irreversível", i.e. deve-se excluir clui que a avaliação da relevância deve ser realizada tendo-se em conta
análises que levem em consideração visões de curto prazo e aquelas que critérios quantitativos e qualitativo?- 1 •
realcem efeitos "temporários" adversos 18 • Por fim, e cumulativamente ao já exposto, insta destacar que o acon-
Em um dos precedentes mais citados pela literatura anglo-sa- tecimento extraordinário que gera os efeitos adversos não pode ter sido
xã envolvendo a aplicação da cláusula MAC - IBP Inc. vs. Tyson Foods provocado por quem invoca o benefício da cláusula MAC, do mesmo
Inc. - restou consignado que aquele que busca o desfazimento do con- modo que aquele que se encontra em mora ou inadimplente não terá a
trato com base em linguagem genérica de uma cláusula MAC há de prerrogativa de resilir o contrato22 •
conseguir demonstrar que a mudança adversa é de tal magnitude que
se sobrepõe à forte presunção em favor do fechamento da transação.
Em especial quando se suspeita que o verdadeiro motivo para se bus-
car a resolução do contrato é o arrependimento da parte que invoca a 20 Para uma descrição detalhada deste importante julgado, ver LALAFARYAN, Narine. Material
Adverse Change uncertainty: costing afortune if nat corpora/e lives. Journal of Corporate Law
cláusula MAC 19 • Studies, DO1: 10.1080/14735970.2020.1781484, p. 22-26.
21 Os precedentes mais recentes do sistema anglo-saxão são nesse sentido:"[ ...] it is clear from
Boston Scientific and Akorn that to prove a MAC (e.g. 'reasonably expected to constitute a
17 BORGES, Nelson. A teoria da imprevisão no direito civil e no processo civil. São Paulo: Malheiros, MAC'), the buyer has to show material adverse change both from the qualitative and quantitative
2002, p. 304- destaques nossos. sides." Lalafaryan, Narine. Material Adverse Change uncertainty: costing afortune ifnat corpora/e
18 Cf. MAYNARD, Therese H. ivlergers and acquisitons: cases, materiais, and problems, p. 360. lives. Journal of Corpo rate Law Studies, DO1: 10.1080/14735970.2020.1781484.
19 MAYNARD, Therese H. Mergers and acquisitons: cases, materiais, and problems, p. 359. 22 Cf. BORGES, Nelson.A teoria(. ..), p. 321-322.
180 - BREVES APONTAMENTOS SOBRE AS CLÁUSULAS MAC NOS CONTRATOS DE M&A
ERIK FREDERICO ÜIOLI EJOSÉ ALVES RIBEIRO JR. - 181

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
VI 1. CONTRATOS ALEATÓRIOS E ALOCAÇÃO DE
A pandemia COVID-19 reforçou a constatação histórica de que
eventos de repercussões catastróficas ocorrem sem "aviso prévio", desa- Risco EM ÜPERACÕES
, DE SECURITIZACÃO
, DE
fiando e colocando a prova institutos jurídicos e arranjos contratuais das RECEBÍVEIS FUTUROS
mais diversas naturezas, a exemplo do que ocorre com as cláusulas MAC.
Apesar de o mercado brasileiro de M&A ter importado do siste- Erik Frederico Oioli1
ma anglo-saxão, há algum tempo, a utilização dessas cláusulas (e de vá-
rios outros institutos), a escassez de produção literária nacional sobre 0 José Alves Ribeiro Jr. 2
tema e a inexistência de precedentes jurisprudenciais impõem uma ta-
refa nada singela àqueles que fazem uso desse mecanismo contratual: a 1. 1NTRODUÇÃO
realização de uma adequada tropicalizaç.ão das cláusulas MAC. A securitização de recebíveis, transação praticada internacionalmen-
te no mercado de capitais criada nos anos 1970, no âmbito do merca-
do imobiliário estadunidense, como mecanismo de captação de recursos
a partir da cessão de carteiras de financiamento imobiliário garantidos
por hipotecas (mortages), passou por rápida evolução e sofisticação, cul-
minando na criação de diversas modalidades de estrutura, com diferen-
tes níveis de complexidade.
Este artigo analisará o papel dos contratos aleatórios em estrutu-
ras complexas de securitização de recebíveis futuras, como mecanismo
jurídico para alocação de risco entre investidores, veículos de propósito
específico de securitização (adiante referidos de modo genérico como
"VPE") e as entidades que captam recursos mediante transferência de
ativos de existência futura aos VPE (adiante referidas como "Entidades
Captadoras").
Para tanto, o presente artigo se dividirá em 6 seções, a começar pela
presente introdução. A seguir, faremos será realizada breve exposição do
conceito de securitização de recebíveis que utilizaremos como funda-
mento teórico para o presente trabalho. A terceira seção cuidará da se-
curitização de ativos de existência futura, ou future jlow securitization,
abordando brevemente os fundos de investimento em direitos creditó-
rios não padronizados, que possuem expressa permissão regulatória para
aquisição de direitos creditórios de existência futura.

Doutor e Mestre em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela USP, professor de
pós-graduação do lnsper e do CEU Law School, advogado em São Paulo.
2 Mestre em Direito Empresarial pela EDESP/FGV, bacharel em Direito pela USP, professor de
pós-graduação do lnsper, advogado em São Paulo.
182 - CONTRATOS ALEATÓRIOS E ALOCAÇÃO DE Risco EM OPERAÇÕES DE SECURITIZAÇÃO ••• ERIK FREDERICO ÜIOLI E JOSÉ ALVES RIBEIRO jR. - 183

Os contratos aleatórios e seu papel na alocação de risco entre as Contudo, faz-se necessano delimitar um conceito instrumen-
partes contratantes serão objeto da quarta seção. Por seu turno, a quinta tal que permita ao intérprete da legislação utilizar-se deste termo de
seção cuidará da relação entre a securitização de recebíveis e os contra- modo juridicamente adequado. Neste sentido, utilizaremos a proposta
tos aleatórios, demonstrando que estes últimos são ferramenta jurídica de RlBEIRO JÚNIOR, que delimita a securitização de recebíveis, do
fundamental para permitir que Entidades Captadoras, VPE e investi- ponto de vista jurídico, como:
dores aloquem adequadamente o risco de inexistência dos ativos futu- "A partir desta abordagem, propomos um conceito de securitização
ros securitizados. A sexta e última seção encerra o presente artigo, com que aponta que esta consiste na coligação de dois conjuntos de negó-
breve recapitulação e conclusão. ciosjurídicos distintos, para produção de umfim comum: oprimeiro
será o conjunto de negócios jurídicos que fimnaliza a aquisição, por
2. SECURITIZAÇÃO DE RECEBÍVEIS qualquer meio, de direitos sobre entradas de caixa.fitturas {recebíveis)
A securitização de recebíveis, embora citada em leis específicas e por um veículo de propósito especifico, o qual pode adotar variadas
regras infralegais, notadamente atinente à regulação bancária e de mer- formas jurídicas, tais como de uma sociedade de propósito especifico
cado de capitais, não possui uma definição legal ampla no ordenamento oufundo de investimento; e o segundo corefunto será aquele dos negó-
jurídico brasileiro3, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos da cios jurídicos que operam a aquisição, por investidores, de títulos de
América4 e na Europa5- 6 . crédito ou valores mobiliários emitidos pelo VPE cujos pagamentos
serão condicionados (econômica e/oujuridicamente), primariamente,
ao recebimento dos pagamentos dos recebíveis que os lastreiam. "7
3 Para uma descrição do ambiente normativo dasecuritização no Brasil, veja-se RIBEIRO JÚNIOR,
José Alves. Securitização de Recebíveis-Elementos Constitutivos no Direito Brasileiro. São Paulo: Em relação aos elementos acima dispostos, esse artigo abordará mais
Thomson Reuters Brasil, 2020, pp. 158-166.
4 Constante da Seção 941 da Dodd-FronkAct, abaixo reproduzida, que define os títulos de secu- detidamente dois pontos específicos: os ativos adquiridos pelo VPE e o
ritização (asset-backed securities): negócio jurídico pelo qual tal aquisição se opera.
"(77)ASSET-BACKED SECURITY.-The term 'asset-backed security'-
"(A) means afixed-income orother security co//atera/ized by any type ofse/f /iquidatingfinancia/ asset Em primeiro lugar, nota-se que o pagamento dos títulos emitidos
(inc/uding a /oan, a /ease, a mortgage, ora secured ar unsecured receivab/e) that a//ows the ho/derof
the security to receive payments that depend primarily on cosh jlowfrom the asset, inc/uding- pelo VPE, ou títulos de securitização, são condicionados primariamente
"(i) a co//atero/ized mortgage ob/igation; ao adimplemento de créditos ou direitos sobre entradas de caixa futuras
'(ii) a co//atero/ized debt obligation; adquiridos por este de uma ou mais Entidades Captadoras.
"(iii) a co//atero/ized bond obligation;
"(iv) a co//atero/ized debt obligation ojasset-backed securities; Estes últimos ativos, a que nos referiremos adiante de modo gené-
"(v) a co//atero/ized debt obligation ofco//atera/ized debt obligations; and
rico como "recebíveis" ou "direitos creditórios", podem já existir no mo-
"(vi) a security that the Commission, by rufe, determines to be an asset-backed securityfor purpases
ofthis section; and mento da aquisição pelo VPE e emissão dos títulos de securitização, ou
"(B) does not inc/ude a security issued by afinance subsidiar;, he/d by the parent company ora company não existir (ainda) neste momento 8• Neste segundo caso, nos referire-
contro//ed by the parent company, ifnane ofthe securities issued by the finance subsidiary are held
by an entity that is not contro//ed by the parent company." mos a "recebíveis futuros".
5 O Regulamento (UE) nº 2017/2402, em vigordesde1º de janeiro de 2019, é a regra geral aplicável
à securitização de recebíveis e a define da seguinte forma: - Elementos Constitutivos no Direito Brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, pp.
"Artic/e 2 142-158.
Definitions 7 RIBEIRO JÚNIOR, José Alves. Securitização de Recebíveis - Elementos Constitutivos no Direito
For the purposes ofthis Regulation, thefo//owing definitions apply: Brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 196.
8 Registre-se que securitizações de recebíveis envolvendo a utilização de certas espécies de
(1) 'securitisation' means a tronsaction orscheme, wherebythe credit risk associotedwith on exposure
veículos de propósito específico podem não comportar a emissão de títulos de securitização
oro pool ofexposures is tronched, having oi/ ofthefol/owing charocteristics:
com lastro em direitos creditá rios de existência futura em decorrência de restrições regulatórias
(o) poyments in the tronsoction orscheme are dependent upon the performance ofthe exposure orof específicas. Por exemplo, a Comissão de Valores Mobiliários entende que os certificados de
the poo/ ofexposures; recebíveis imobiliários, títulos de emissão exclusiva das companhias securitizadoras de créditos
(b) the subordination oftranches determines the distribution oflosses during the ongoing life ofthe imobiliários, não podem ser objeto de emissão com lastro em direitos creditá rios de existência
tronsoction ar scheme; futura ou comportar estruturas revolventes (i.e., em que os recursos provenientes da carteira
(c) the tronsoction ar scheme does not creote exposures which possess oi/ ofthe chorocteristics /isted de direitos creditórios inicialmente adquiridos seja utilizada para compra de novos recebíveis
inArtic/e 147(8) ofRegulation (EU) No 575/2013." para lastrear os títulos de securitização, sendo que tais recebíveis podiam ser existentes ou não
6 Para uma comparação entre as definições legais de securitização europeia e norte-americana, quando da emissão dos títulos que lastrearão). Não será objeto do presente artigo a discussão
e análise crítica de ambas, veja-se RIBEIRO JÚNIOR, José Alves. Securitização de Recebíveis sobre a correção ou incorreção deste entendimento da autarquia. Para maiores detalhes acerca
184 - CONTRATOS ALEATÓRIOS E ALOCAÇÃO DE Risco EM OPERAÇÕES DE 5ECURITIZAÇÃO ••• ERIK FREDERICO ÜIOLI EJOSÉ ALVES RIBEIRO JR. - 185

Em segundo lugar, cumpre destacar a relevância do negócio jurídico ao VPE direitos sobre a totalidade de suas receitas operacionais futuras 12 •
pelo qual os direitos creditórios deixam a esfera patrimonial da Entidade Estas transações foram criadas na Inglaterra e se tornaram uma forma
Captadora e passam a integrar a esfera patrimonial do VPE. de captação de recursos comumente utilizadas por pubs13 •
Caso este negócio jurídico diga respeito a recebíveis futuros - isto KETKAR e RATHA, em estudo a respeito da securitização de re-
é, decorrentes de relações jurídicas que ainda não existem no momen- cebíveis futuros, apontaram que Entidades Captadoras localizadas em
to em que Entidade Captadora e VPE contratam a seu respeito de sua países em desenvolvimento podem se beneficiar de condições mais fa-
transferência do primeiro ao segundo - estaremos, evidentemente, dian- voráveis para captação de recursos com tais estruturas, por permitirem
te de uma securitização de recebíveis de existência futura. Trataremos a mitigar o impacto do risco soberano sobre os custos de captação 14 •
respeito deste tipo de transação na próxima seção deste artigo. Em referidas operações, o VPE realiza a emissão e oferta pública
dos títulos de securitização aos investidores previamente à efetiva exis-
J. SECURITIZAÇÃO DE RECEBÍVEIS DE EXISTÊNCIA FUTURA (FUTURE
tência dos recebíveis que lastrearão os títulos emitidos. Ocorrerá, por-
FLOW SECURITIZATION)
tanto, a captação dos recursos de investidores pelo VPE e, possivelmente,
O histórico da securitização de recebíveis se inicia em estruturas o pagamento do preço de transferência dos recebíveis futuros à Entidade
simples, chamadas de pass through, em que os recursos oriundos dos pa- Captadora antes de os referidos ativos virem a existir.
gamentos de recebíveis de longo prazo e exigíveis de seus devedores no
Note-se, portanto, a existência de riscos peculiares a este tipo de
momento da cessão, decorrentes de contratos de financiamento imobi-
operação, quais sejam, os riscos de inexistirem, futuramente, quaisquer
liário, são pagos pelo VPE aos investidores respectivos 9 •
recebíveis, ou de que tais recebíveis venham a existir em volume insufi-
No entanto, este tipo de operação passou a adotar estruturas de ciente para o integral pagamento dos títulos de securitização. Voltaremos
maior complexidade com o passar do tempo 10 • Neste contexto, surgem a tratar destes riscos mais adiante neste artigo.
as transações envolvendo a aquisição de direitos sobre recebíveis de exis-
No Brasil, caso muito conhecido deste tipo de operação é o Fundo de
tência futura, isto é, que não se encontram constituídos por ocasião quer
Investimento em Direitos Creditórios da Companhia Paulista de Trens
de sua transferência ao VPE, quer da emissão dos títulos de securitização
Metropolitanos, ou FIDC CPTM. Este fundo,já liquidado, tinha como
neles lastreados e de sua aquisição por investidores - sendo certo que es-
política de investimento a aquisição de direitos creditórios que fossem:
tes três eventos, não raro, ocorrem em momentos distintos e sucessivos 11 •
12 HILL faz estudo da whole business securitizatian com foco em mercados emergentes: HILL,
No estrangeiro, estas estruturas encontraram seu ápice nas transações Claire A. Whole Business Securitizatian in Emerging Markets. ln Dukejaurnal of Comporotive &
de whole business securitization, em que a Entidade Captadora transfere lnternational Law, Vol 12, 2002, pp. 521-532, Disponível em <https://scholarship.law.duke.edu/
djcil/vol12/iss2/22>.
13 Para uma análise detalhada deste tipo de securitização em que a Entidade Captadora é um
pub, veja-se ln DENNIS, Andrew. Securitisatian afUK Pubs. ln FABOZZI, Frank]. e CHOUDHRY,
Moorad (Editors). Handbook of European Structured Finance. Hoboken: John Wiley & Sons,
do entendimento em questão aplicável aos CRI, veja-se: CVM. Processo CVM RJ no 2007/0547. lnc, 2004, pp. 389-409.
Relatório e Voto do Relator Marcelo Fernandez Trindade. 10/07/2007. Disponível em <http:// 14 "1. Securitizatian offutureflow and existing receivables can pro vide a way af raising deve/opment

www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/decisoes/anexos/0003/5436-o.pdf>. Sobre o conceito de financefor many /ow ondparticularly middle-income countries, especial/y during times aflaw liquidity
revolvência, veja-se FABOZZI, Frank]., e KOTHARI, Vinod. lntroduction to Securitizotion. New and heightened perception ofsovereign risk. Future flow securitizatian is a foul-weather friend for
Jersey: John Wiley & Sons, lnc., 2008, pp. 155-156; e RIBEIRO JÚNIOR,José Alves. Securitizoção investment grade entities in be/ow investment grade countries.
de Recebíveis - Elementos Constitutivos no Direito Brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2. Securitization transactions can be very costly to an issuer, because such transactions are
2020, pp. 58-59. relatively new and (so far) less amenable to standardization. Fees for obtaining investment
9 Abordagem histórica do surgimento da securitização de recebíveis pode ser obtida em RIBEIRO banking expertise, legal services and credit ratingcan be very high, and preparation times very
JÚNIOR, José Alves. Securitizoção de Recebíveis-Elementos Constitutivos no Direito Brasileiro. São long in undertaking a future flow securitization deal.
Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, pp. 32-38. 3. However, such tronsactions can be structured to mitiga te savereign risksa thata develaping country
10 RIBEIRO JÚNIOR, José Alves. Securitizoção de Recebíveis - Elementos Constitutivos no Direito barrawer can access /onger-term financing at /ower interest rotes than unsecured bonds. Typically
Brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, pp. 45-66. such benefits oflower interest rates ar /onger maturityfarautweigh the highfixed costs afundertaking
11 RAINES e WONG realizam breve estudo sobre asecuritização de fluxo future, fazendo didática futureflowsecuritizatian, especiallyduringacrisis." (KETKAR, Suhas, e RATHA, Dilip. Securitization
distinção em relação à securitização envolvendo recebíveis previamente existentes. Veja-se ofFuture Flow Receivables: A Useful Taolfar Developing Countries. ln Finance & Development,
RAINES, Marke, e WONG, Gabrielle.Aspects ofSecuritizotion ofFuture Cosh Flows UnderEnglish Março de 2001, Volume 38, Número 01. Washington: lnternational Monetary Fund, 2001.
ond New Yok Law. ln DukeJournal of Compara tive & lnternational Law, Vol 12, No 02, 2002. Disponível em <http://www.imf.org/external/pubs/ft/fandd/2001/03/ketkar.htm>).
186 - CONTRATOS ALEATÓRIOS E ALOCAÇÃO DE Risco EM OPERAÇÕES DE SECURITIZAÇÃ<?··· ERIK FREDERICO 01ou EJOSÉ ALVES RIBEIRO JR. - 187

"oriundos da arrecadação decorrente da venda de: (a) bilhetes de veis "de existência fatura e montante desconhecido, desde que emergentes de
transporte somente na modalidade comum (bilhetes unitários e seus relações já constituídas" 18 .
múltiplos,jicando ressalvado que os bilhetes únicos não estão incluí-
Assim, frisa-se que o ordenamento jurídico brasileiro dispõe de uma
dos) aos usuários nos guichês de determinadas estações; e (b) quaisquer
novas modalidades de bilhetes, além dos bilhetes de transporte da
modalidade de VPE destinada, de modo específico, à realização de se-
modalidade comum que venham a ser instituídos pela cedente a
curitizações envolvendo recebíveis de existência futura. A seguir, abor-
partir de 19 de setembro de 2006 e st;jam vendidos em tais estações. "15 daremos o tratamento legal dispensado aos negócios jurídicos relativos
à transferência de tais recebíveis ao FIDC-NP.
Isto é: o FIDC CPTM teria direito de receber o produto da venda
futura de bilhetes a ser realizada nas estações selecionadas da Companhia 4. CONTRATOS ALEATÓRIOS: ÁLEA E ALOCAÇÃO DE RISCO
Paulista de Trens Metropolitanos. Vale ressaltar que as relações jurídi-
Como vimos acima, a securitização de recebíveis futuros possui
cas de que resultariam tais pagamentos não se encontravam, portanto,
como elemento ínsito a contratação sobre bem 19 de existência futura.
existentes no momento da transferência, ao FIDC CPTM, dos direitos Este negócio jurídico possui a natureza de contrato aleatório, entendido
ao recebimento dos pagamentos em questão.
como aquele em que a incidência da álea em relação às prestações assu-
Posteriormente, com a edição da Instrução CVM nº 444, de 8 de midas entre as partes é elemento essencial e consiste em causa juridica-
dezembro de 2006, foi criado o fundo de investimento em direitos cre- mente relevante do negócio e que atrai tratamento jurídico específico 20 •
ditórios não padronizados (ou FIDC-NP), espécie de fundo de investi- Segundo BANDEIRA, em feliz definição, a álea é a "incerteza de
mento em direitos creditórios 16 voltado à aquisição de direitos creditórios ambos os contratantes, existente no momento da celebração do negócio, quanto
que a Comissão de Valores Mobiliários considerava demandarem do in- ao lucro ou prejuízo, em termos de atribuição patrimonial, que dele decorre-
vestidor "uma análise mais aprofundada de aspectosjurídicos (como na hipó- rá, a depender da verificação de evento incerto e incontrolável, embora pre-
tese em que a validadejurídica da cessão para o FIDC é considerada umfator visto pelas partes"21 •
preponderante de risco), bem como de aspectos operacionais (como no caso de
Neste sentido, os contratos aleatórios diferem dos demais tipos de
créditos existência futura e montante desconhecido)" 17 •
contrato no sentido de que, embora todo contrato esteja sujeito a ris-
Com efeito, a Instrução CVM nº 444/06 estabelece requisitos adi- cos, no contrato aleatório este elemento assume papel central e consis-
cionais para a constituição dos FIDC-NP, que são aplicáveis caso a po- te em causa juridicamente relevante do próprio negócio. Notadamente,
lítica de investimento do fundo preveja a aquisição de quaisquer dos opõe-se ao contrato comutativo, aquele em que não existe elemento de
direitos creditórios considerados "não-padronizados" nos termos do ar-
Os demais direitos creditá rios não padronizados são aqueles (i) "que estejam vencidas e pen-
tigo 1°, §1°, da norma em questão. Dentre eles, se incluem os recebí- dentes de pagamento quando de sua cessão para o fundo" (artigo 1°, §1 °, 1, da Instrução CVM nº
444/06); (ii) "decorrentes de receitas públicas originárias ou derivadas da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, bem como de suas autarquias efundaçães" (artigo 1°, §1°, li, da
Instrução CVM nº 444/06); (iii) "que resultem de açães judiciais em cursa, constituam seu abjeto
de litígio, ou tenham sido judicialmente penharados ou dados em garantia" (artigo 1°, §1°, Ili, da
15 Ainda, eram especificadas as estações da CPTM que originariam o fluxo de caixa transferido Instrução CVM nº 444/06); (iv) "cuja constituição ou validade jurídica da cessão para o FIDC seja
ao fu,ndo,_ que er_am: Lapa, Brás, Guaianazes, Santo André, Luz, Francisco Morato, Osasco, considerada umfator preponderante de risco" (artigo 1°, §1°, IV, da Instrução CVM nº 444/06); (v)
Maua, lta1m Paulista, Barra Fun~a, ?':zan_o, Franco ~a ~ocha, São Caetano, ltapevi, Tatuapé, "originados de empresas em processo de recuperação judicial au extrajudicial" (artigo 1°, §1 °, VII,
Perus, Ferraz de Vasconcelos, R1be1rao Pires, Carap1cu1ba e Barueri (CVM. Processo CVM RJ da Instrução CVM nº 444/06); e (vi) (artigo 1°, §1º, VII, da Instrução CVM nº 444/06).
nº 2006/7551._ Ata ~a Reunião do Colegiado de 12/12/2006 e Manifestação da Área Técnica. 19 E utilizamos o termo "bem" com a mesma finalidade e no mesmo sentido empregado por
12/12/2006. D1sponivel em <http://www.cvm.gov.br/decisoes/2006/20061212 R1/20061212 PONTES DE MIRANDA, que esclarece: "Digamos 'bem: e não 'coisa', porque a futuridade pode
D10.html>). - -
referir-se a bens incorpóreos e, até, a créditos, pretensões, açães ou exceçães" (PONTES DE MIRANDA,
Por seu tur~?• o fundo de investimento_ ~m d~reitos creditórios (ou FIDC) é uma entidade que Francisco Cavalcante. Tratado de Direito Privado. Tomo XXXVIII: Direito das Obrigações -
pode serut1hzada como VPE parasecunt1zaçoes de recebíveis no Brasil, criada pela Resolução Negócios Jurídicos Bilaterais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 513).
nº 2.90?, de 29 de novembro de 2001, do Conselho Monetário Nacional, e regulamentada pela 20 BANDEIRA, Paula Greco. ContratosAleatóriosno Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2010,
lnstruçao CVf-:1 nº 356, de_29 de dezem?:º d: 2001. Par~ ~aiores detalhes sobre os FIDC, veja- p. 25. Também: SOUZA, Adalberto Pimentel Diniz de. A Onerosidade Excessiva nos Contratos
-se RIBEIRO JUNIOR, Jose Alves. Secunl!zaçao de Recebwe,s- Elementos Constitutivos no Direito Aleatórios. Tese (Doutorado em Direito). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São
Brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, pp. 93-109. Paulo, 2014, pp. 51-52.
17 CVM. Edital de Audiência Pública nº 04/2016, p. 12, nota 17, disponível em <http://www.cvm. 21 BANDEIRA, Paula Greco. Contratos Aleatórios no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 201 o,
gov.br/export/sites/cvm/audiencias_publicas/ap_sdm/anexos/2006/sdmo406-edital.pdf>. p.25.
188 - CONTRATOS ALEATÓRIOS E ALOCAÇÃO DE Risco EM OPERAÇÕES DE SECURITIZAÇÃO .••
ERIK FREDERICO ÜIOLI EJOSÉ ALVES RIBEIRO J R. - 189

incerteza juridicamente relevante nas prestações das partes, que são pre- contratos de "compra de esperança" (emptio spei), regidos pelo
viamente estabelecidas22 •
artigo 458 do Código Civil26 ;
E, aqui, tratamos da álea em sentido jurídico e econômico, com a • aqueles em que a álea diz respeito à quantidade do bem objeto
certeza da possibilidade de perda para um dos contratantes com reper- da prestação, cuja efetiva existência futura, no entanto, é pres-
cussões patrimoniais previamente avençadas entre elas 23 • suposta entre as partes, em alguma quantidade, os quais são
Portanto, apenas a álea em sentido econômico, entendida como o também chamados de contratos de "compra de coisa esperada"
risco da variação de preços, custos ou do valor da própria prestação, sem (emptio rei speratae), regidos pelo artigo 459 do Código Civil27 ; e
que haja mudança do conteúdo em si da prestação, não bastaria para • aqueles que versam sobre a álea relativa a bem existente, mas sob
caracterização de um contrato como aleatório. Esse risco de nature- risco de destruição total ou parcial no momento da conclusão
za econômica é inerente aos negócios e permeia transações de natureza do contrato, regidos pelos artigos 460 e 461 do Código Civil28 •
comutativa e aleatória.
Com efeito, o legislador deixou larga margem para que a vontade
Também a álea apenas jurídica, entendida como aquela que altera a das partes contratantes aloque o risco de existência ou inexistência de
prestação "em si epara si", não é apta a caracterizar o contrato como ale- bem futuro, assim como de sua quantidade, em sede contratual.
atório por si só, pois é um risco economicamente neutro 24 •
Assim, necessária a presença do risco de natureza jurídica (isto é, 5. CONTRATOS ALEATÓRIOS E SECURITIZAÇÃO DE
possibilidade de alteração da prestação em si mesma em desfavor de uma RECEBÍVEIS FUTUROS

das partes) e de natureza econômica (relativa às repercussões patrimo- Como vimos anteriormente, as securitizações de recebíveis futuros
niais relevantes entre as partes, previamente avençadas contratualmente). envolvem a aquisição, pelo VPE, de direitos sobre recebíveis que pode-
O contrato aleatório, portanto, se afigura como instrumento jurídico rão vir a existir no futuro, que lastrearão o pagamento de títulos de secu-
de alocação de riscos Qurídico-econômicos) entre as partes. Em nosso ritização emitidos pelo VPE. Estes últimose serão pagos com os valores
ordenamento jurídico, além dos contratos aleatórios típicos, que não são que vierem, futuramente, a ser recebidos pelo VPE com o pagamento
objeto deste breve estudo (por exemplo, o seguro,jogo e aposta), existem destes recebíveis futuros.
os contratos aleatórios por expressa vontade das partes. Este tipo de operação, como também já mencionado, tem como
Estes últimos se dividem em três espécies25 : característica dois tipos de risco que lhe são inerentes: (i) o risco de ne-
• aqueles em que a álea diz respeito à existência ou inexistên- nhum recebível futuramente vir a existir e (ii) o risco de virem a exis-
cia futura do bem objeto da prestação, também chamados de tir recebíveis em montante insuficiente para o pagamento dos títulos de
securitização pelo VPE aos investidores respectivos.
22 "São comutativos os contratos em que as prestações de ambas as partes são de antemão conhecidas
e guardam entres! um~ certa equivalênci:! de__ valores. Não se exige o igualdade rigorosa destes, po; 26 Veja-se o teor do artigo: "Art. 458. Se o contrato for aleatório, por dizer respeito a coisos ouJatos
que os ben~ que sao objeto do contra_to nao tem valoração precisa. Podendo ser, portanto estimadas futuros, cujo risco de não virem a existir um dos contratantes assuma, terá o outro direito de receber
desde a ongem:, os controtan~es es'.'f!ulam .ª avença'. e fi:_am prestações que aproximadamente se integralmente o que lhefoi prometido, desde que de sua parte não tenha havido dolo ou culpa, ainda
c~rrespond:m. (PEREIRA, Caio Mano da Silva. lnsmwçoesde Direito Civil. Volume Ili: Contratos. que nada do avençado venha a existir."
Rio de Janeiro: Forense, 2009, pp. 58-59). "Art. 459. Sefor aleatório, por serem objeto dele coisasfuturas, tomando o adquirente a si o risco de
23 SOUZA :ntende que bastaria a álea jurídica, no sentido de álea juridicamente relevante por virem a existir em qualquer quantidade, terá também direito o alienante a todo a preço, desde qu:
e_x~re~s?o da von!ad_e das parte~ _e que configura causa jurídica do contrato, em contrapo- de sua parte não tiver concorrido culpa, ainda que a coisa venha a existir em quantidade inferior a
s1çao a alea econom1ca, exemphf1cando o contrato de empreitada global como espécie de esperada.
avença em que presente apenas a álea econômica (SOUZA, Adalberto Pimentel Diniz de. A Parágrafo único. Mas, se da coisa nada vier a existir, alienação não haverá, e o alienante restituirá a
O?e~osidad~ Exc~ssiva nos <:_ontratos Aleatórios. Tese (Doutorado em Direito). Faculdade de preço recebido."
D1re1to, Universidade de Sao Paulo, São Paulo, 2014, p. 51). 28 ''Art. 460. Seforaleatório o contrato, porse referira coisas existentes, mas expostas a risco, assumido
24 Veja-se, a fundamentaras assertivas a respeito daálea jurídica e econômica, BANDEIRA, Paula pelo adquirente, terá igualmente direito o alienante a todo o preço, posto que a coisa já não existisse,
Greco. Contratos Ale~tórios no J?i,:eito Brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, oo. 23-25. em parte, ou de todo, no dia do contrato.
SOUZA, Adalberto Pimentel Dm1z de. A Onerosidade Excessiva nos Contratos Aleatórios. Tese Art. 461. A alienação aleatória a que se refere o artigo antecedente poderá ser anulada como dolosa
(Doutorado em Direito). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014,
pp.41-45. pelo prejudicado, se provar que o outro contratante não ignorava a consumação do risco, a que no
contrato se considerava exposta a coisa."
ERIK FREDERICO ÜIOLI EJOSÉ ALVES RIBEIRO JR. -191
190 - CONTRATOS ALEATÓRIOS E ALOCAÇÃO DE Risco EM OPERAÇÕES DE SECURITIZAÇÃO, ••

Captadora, pois o investidor esperará um maior retorno sobre o capital


Em virtude da existência destes riscos, de natureza jurídico-econô-
investido no título de securitização adquirido.
mica, inerentes à transação e desejados pelas partes contratantes, o ne-
gócio entre Entidade Captadora e VPE, pelo qual este último adquire Mutatis mutandis, o mesmo raciocínio se aplica ao Contrato de
do primeiro os direitos sobre os recebíveis futuros, será ele mesmo um Transferência que se submeta ao disposto no artigo 459 do Código Civil,
contrato aleatório. Neste sentido, poderá assumir o tipo descrito no item isto é, em que VPE e Entidade Captadora aloquem entre si o risco de
"i" da seção 5 acima (compra de esperança) ou o tipo descrito no item existência de maior ou menor quantidade de recebíveis futuros, assumin-
"ii" da seção 5 acima (compra de bem esperado). do o negócio a característica de "compra de coisa esperada".
Na hipótese do contrato de aquisição, pelo VPE, dos recebíveis fu- No entanto, existe uma diferença substancial neste caso: tendo em
turos for da espécie referida no artigo 458 do Código Civil, Entidade vista que se pressupõe a existência de alguma quantidade de recebíveis
Captadora e VPE poderão alocar a uma ou a outra a repercussão eco- futuros, a integral inexistência destes implicará a restituição integral do
nômica da eventual inexistência de quaisquer recebíveis futuros que se- preço recebido, conforme o mandamento contido no parágrafo único do
jam objeto do Contrato de Transferência. artigo 459 do Código Civil. Entidade Captadora e VPE poderão alocar
o risco de variações de quantidade dos recebíveis - no entanto, se essa
Assim, na hipótese de celebração de um Contrato de Transferência
quantidade for igual a zero, a consequência será a legalmente estabelecida.
na modalidade de "compra de esperança'', poderá haver ou não haver re-
cebíveis futuros e, nesta hipótese, poderá a Entidade Captadora ser ins- Ainda, sempre que o VPE a adquirir direitos creditórios de existên-
tada a devolver a totalidade ou parte dos recursos desembolsados pelo cia futura for um FIDC-NP, será necessário observar o requisito cons-
VPE em contraprestação pela aquisição de referidos direitos creditórios tante do inciso VI do parágrafo 1° do artigo 1° da Instrução CVM nº
- ou, ainda, poderá ser avençado que nenhuma devolução será cabível, 444/06: os recebíveis deverão ser "eme1gentes de relações já constituídas".
sendo este risco suportado pelo VPE. Isto é, para que o FIDC-NP possa adquirir os recebíveis futuros, de-
Note-se, portanto, que VPE e Entidade Captadora possuem ampla verá haver uma relação jurídica que preencha as seguintes características:
discricionariedade para :fixação das consequências contratuais da futura (i) seja existente no momento da celebração do Contrato de Transferência
inexistência dos ativos lastreadores dos títulos de securitização. dos recebíveis futuros ao FIDC-NP; (ii) a Entidade Captadora seja par-
te de referida relação jurídica; e (iii) possua uma conexão com a futu-
Evidentemente, qualquer destes cenários terá repercussões para os
ra existência dos recebíveis em questão. Contudo, esta relação jurídica
investidores que adquirirem os títulos de securitização emitidos pelo
não necessariamente terá como integrante o devedor do recebível futuro.
VPE. Assumindo como pressuposto a inexistência de garantias ou me-
canismos de reforço de crédito 29 , caso o risco de inexistência futura dos A título exemplificativo, reportemo-nos novamente ao FIDC
recebíveis seja atribuído ao VPE, não haverá recursos com os quais pos- CPTM: o fluxo de caixa dos pagamentos de bilhetes decorre da rela-
sam ser pagos os títulos de securitização e, por consequência, haverá per- ção jurídica previamente existente, de exploração do serviço público
da total do capital investido. de transporte metropolitano sobre trilhos, havida não entre a CPTM
(Entidade Captadora) e o passageiro (devedor do recebível futuro), mas
Também é uma decorrência lógica que maior ou menor alocação
entre a CPTM e o governo do Estado de São Paulo.
deste risco ao VPE e, por conseguinte, ao investidor, repercutirá em maior
ou menor custo financeiro para a Entidade Captadora, aumentando ou Por fim, note-se que não se pode confundir a inexistência de rece-
diminuindo o preço dos recebíveis futuros transferidos ao VPE. bíveis no futuro com o seu eventual inadimplemento pelos respectivos
devedores. Embora também possa ser negociada entre as partes, a alo-
Vale dizer: quanto maior o risco de inexistência dos recebíveis
cação do risco de inadimplemento (isto é, risco de crédito do devedor
futuros atribuído ao VPE, menor será o preço obtido pela Entidade
dos recebíveis de existência futura) não integra a álea que constitui cau-
sa juridicamente relevante dos contratos aleatórios.
29 Para uma descrição didática destes mecanismos, ver FABOZZI, Frank J., e KOTHARI, Vinod.
lntroduction to Securitization. New Jersey: John Wiley & Sons, lnc., 2008, pp. 85-100.
ERIK FREDERICO ÜIOLI EjOSÉ ALVES RIBEIRO JR. -193
192 - CONTRATOS ALEATÓRIOS E ALOCAÇÃO DE Risco EM ÜPERAÇÕES DE SECURITIZAÇÃO._..

Ainda, caos o Contrato de Transferência adote a modalidade de con-


6. CONCLUSÃO
trato aleatório prevista no artigo 459 do Código Civil, VPE e Entidade
Como vimos acima, a securitização de recebíveis, consistente em Captadora poderão pactuar os efeitos da existência futura dos recebíveis
dois conjuntos de negócios jurídicos coligados entre si, envolvendo, por em diferentes quantidades. Contudo, caso tais recebíveis não venham a
um lado, a aquisição de recebíveis por um VPE e, por outro, a emissão existir em alguma quantidade, a Entidade Captadora necessariamente
de títulos de securitização cujos pagamentos estão condicionados, juri- deverá ressarcir ao VPE a totalidade do preço de transferência recebi-
dicamente e/ou economicamente, aos pagamentos dos citados recebí- do, pois este risco de inexistência não encontra amparo no Contrato de
veis, pode envolver a transferência ao VPE de recebíveis que não existem Transferência em questão.
(ainda) no momento da celebração do Contrato de Transferência entre
Caso o VPE adotado seja o FIDC-NP, espécie de fundo de in-
VPE e Entidade Captadora, da emissão dos títulos de securitização e/
vestimento que possui expressa permissão regulatória para aquisição de
ou de aquisição destes últimos por investidores.
direitos creditórios de existência futura, será condição para que o FIDC-
Este tipo de operação, a que nos referimos como securitização de NP possa adquirir tais recebíveis que haja uma relação jurídica de que
recebíveis futuros, envolve, portanto, a celebração de um negócio jurídi- a Entidade Captadora seja parte que exista por ocasião da transferência
co entre VPE e Entidade Captadora que versará sobre a transferência destes ativos ao Fundo e possua uma conexão com a futura existência
de bens que inexistem no momento da contratação. Existe, portanto, o dos recebíveis em questão.
risco de que tais recebíveis não venham a existir posteriormente, ou que
Concluímos, portanto, que a securitização de recebíveis futuros não
venham a existir em montante inferior ao suficiente para o pagamento
somente é possível no Brasil, como é baseada em permissões legais ex-
integral dos títulos de securitização pelo VPE aos respectivos investidores.
pressas. Essas permissões se baseiam tanto na existência de um tipo de
Estes riscos são inerentes à operação de securitização de recebíveis fundo de investimento que possui expressa permissão regulatória para
futuros e é desejado pelas partes que sejam assumidos no âmbito do adquirir recebíveis de existência futura, quanto no arcabouço normativo
Contrato de Transferência, com a atribuição da repercussão patrimonial relativo aos contratos aleatórios, que confere liberdade às partes contra-
de sua concretização a uma das partes respectivas (VPE ou Entidade tantes para alocarem os riscos inerentes a negócios jurídicos que versem
Captadora). sobre bens de inexistência futura.
Em virtude disso, o Contrato de Transferência celebrado no bojo Isto demonstra, uma vez mais, a atualidade e flexibilidade do Código
de securitização de recebíveis futuros possui a álea como causa juridi- Civil de 2002, que se mostra apto a acomodar, com segurança, transa-
camente relevante, elemento que caracteriza os contratos aleatórios no ções financeiras complexas como a securitização de recebíveis futuros.
ordenamento jurídico brasileiro e atrai o regramento específico aplicá-
vel a este tipo de negócio jurídico. BIBLIOGRAFIA

Neste sentido, o Contrato de Transferência poderá ser celebrado CVM. Processo CVM RJ no 2007/0547. Relatório e Voto do Relator Marcelo
Fernandez Trindade. 10/07/2007. Disponível em <http://www.cvm.gov.br/export/
na modalidade de contrato aleatório prevista no artigo 458 do Código
sites/cvm/ decisoes/anexos/0003/5436-0. pdf>.
Civil, hipótese em que VPE e Entidade Captadora alocarão entre si o
BANDEIRA, Paula Greco. Contratos Aleatórios no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro:
risco de que os recebíveis venham a não existir no futuro. Renovar, 2010
Vale dizer: caso tal risco seja atribuído ao VPE, este não terá direi- CVM. Edital de Audiência Pública nº 04/2016, p.12, nota 17, disponível em <http://
to ao recebimento de qualquer recurso oriundo dos recebíveis, porquan- www.cvm.gov. br/export/sites/cvm/audiencias _publicas/ ap _sdm/ anexos/2006/
to inexistentes, e, caso não haja garantias ou mecanismos de reforço de sdm0406-edital.pdf>.
crédito pactuados no âmbito da securitização, não disporá de recursos CVM. Processo CVM RJ nº 2006/7551. Ata da Reunião do Colegiado de 12/12/2006
e Manifestação da Área Técnica. 12/12/2006. Disponível em <http://www.cvm.
para o pagamento dos títulos de securitização, ocasionando a perda da
gov.br/decisoes/2006/20061212_Rl/20061212_Dl0.html>.
totalidade dos recursos investidos pelos respectivos titulares.
194- CONTRATOS ALEATÓRIOS E ALOCAÇÃO DE Risco EM ÜPERAÇÕES DE 5ECURITIZAÇÃO •••
JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO -195

DENNIS,Andrew. SecuritisationofUKPubs. InFABOZZI,FrankJ.e CHOUDHRY,


Moorad (Editors). Handbook ofEuropean Structured Finance. Hoboken: John
Wiley & Sons, Inc, 2004.
VIII. ÜPCÕES
, E CONDICÕES
, NO CóDIGO CIVIL
FABOZZI, FrankJ., e KOTHARI, Vinod. lntroduction to Securitization. New Jersey: DE 1916 E NO CóDIGO CIVIL DE 2002
John Wiley & Sons, Inc., 2008.
HILL, Claire A. Whole Business Securitization in Emerging Markets. In Duke journal José Alexandre Tavares Guerreiro 1
of Comparative & lnternational Law, Vol 12, 2002, pp. 521-532, Disponível em
<https:// scholarship.law. duke. edu/djcil/vol12/iss2/22>.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Volume III: Contratos. 1. No lançamento de Opções, é frequente a estipulação de Condições
Rio de Janeiro: Forense, 2009. para seu exercício. Como bem se observa, os negócios jurídicos que se
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de Direito Privado. Tomo baseiam em declarações unilaterais, tornam-se de inusitada frequência na
XXXVIII: Direito das Obrigações - Negócios Jurídicos Bilaterais. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2012. economia contemporânea2, não obstante sua conclusão requeira a inte-
RAINES, Marke, e WONG, Gabrielle. Aspects of Securitization ofFuture Cash Flows
ração de outra(s) parte(s) para a configuração dos vínculos obrigacionais
Under English and New Yok Law. In Duke J ournal of Compara tive &International respectivos. Daí a importância de se reconhecer, na Opção, a possibili-
Law, Vol 12, No 02, 2002. dade de limitações unilaterais condicionais ao respectivo exercício, tais
RIBEIRO JÚNIOR,José Alves. Securitização de Recebíveis -Elementos Constitutivos como inseridas nos instrumentos de seu lançamento pelo próprio lança-
no Direito Brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. dor, que, assim, exerce prerrogativa que lhe é amplamente reconhecida,
SOUZA,Adalberto Pimentel Diniz de. A Onerosidade Excessiva nos Contratos Aleatórios. no domínio da autonomia privada. A criação de condição, nos moldes
Tese (Doutorado em Direito). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, conhecidos secularmente no direito privado, funciona, exata e precipu-
São Paulo, 2014.
amente, como elemento auto-limitador das declarações obrigacionais
unilaterais dessa espécie. No Código Civil vigente, de 2002, a condição
encontra conceito expresso, em seu art. 121:
"A.rt. 121. Considera-se condição a cláusula que, derivando
exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito do
negócio jurídico a evento futuro e incerto."

1. CONDIÇÕES PACTUADAS DE MODO EXPRESSO E OBJETIVO


2. Desnecessário enfatizar o caráter acessório da condição, em re-
lação ao negócio jurídico. Mas, advirta-se desde logo, o sistema da lei
requer seja a incerteza do evento futuro contemplada expressamente, às
claras, não valendo presunção ou indício de que determinado negócio
jurídico possa implícita e eventualmente conter o evento condiciona-
dor. Assim já decidiu o STJ3. Disso deriva o princípio fundamental: se
o negócio se diz ou se pretende condicional, será necessário que a previ-
são do fato futuro e incerto conste de modo inequívoco da estipulação.
1 Professor Doutor da Universidade de São Paulo (USP).
2 Marie-Anne Frison- Rache, Volonté et Obligation, in Archives de philosophie du droit, Paris,
Dalloz, Tomo 44, p. 135. Cf. no direito brasileiro, a obra antecipadora de M. 1. Carvalho de
Mendonça, A Vontade Unilateral nos Direitos de Crédito, F. Alves, Rio de Janeiro, 1916. Sobre a
opção, no direito privado, o livro comercial de Felipe Campana Padin lglesias, meu orientando
no curso de Pós-Graduação na Faculdade de Direito de São Paulo, "Opção de Compra ou Venda
de Ações no Direito Brasileiro: Natureza Jurídica e Tutela Executiva Judicial".
3 STJ, 3ª T., REsp 182174-SP, v.u., j. 21.9.2000, DJU 27.11.2000, p. 156.
196 - ÜPÇÕES E CONDIÇÕES NO Córneo C1v1L DE 1916 E NO CóDIGO CIVIL DE 2002 JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO -197

3. Segundo penso, as condições, no caso presente, acham-se referi- to), seria irreal que os tomadores da Opção as entendessem imutáveis,
das de modo claro, expresso, não necessitando suplementos analógicos num campo de atividade econômica em que o risco é particularmente
ou raciocínios extensivos: a subordinação da Opção depende, expressis alto. Bem ao contrário, seria legítimo supor que as condições, pudessem
verbis, de modo literal, da verificação das condições pactuadas. Estas, ceder esse aspecto das condições, conjuntural e temporalmente deter-
p_or sua vez; decorrem de simples leitura de seus termos, os quais pres- minado, não poderia ser em boa-fé ignorado por quem quer que seja e,
cmdem de mterpretações ou de qualquer recurso externo aos termos da tampouco, seria razoável assumir o inverso, ou seja, a perenidade abso-
declaração: são circunstâncias objetivas, verificáveis objetivamente, sem luta das condições.
que careçam de avaliações subjetivas, presuntivas ou indiciárias. Não vejo 8. Na prática a caducidade do plano de negócios, determinada por
como se possa arguir em contrário. E, se enfatizo tal circunstância, é para novas situações de fato, não pode ser muitas vezes considerada impre-
que se possa considerar o conteúdo das obrigações objeto da Opção, de- visível, subordinando-se à álea natural e conhecida das atividades em-
limitado com absoluta clareza pelo lançador. presariais do ramo, de tal sorte que o posterior desaparecimento das
4. Há que se considerar, no entanto, que as condições são flagrante- condições se insere num segmento de razoabilidade que não pode ser
mente conjunturais, dizendo respeito a situações financeiras e econômicas contestado. As condições, pois, não podem ser interpretadas como per-
1e um momento determinado: são, assim, temporalmente determinadas. pétuas e imutáveis. Considerá-las dessa maneira constituiria violação
E ~er~ade que o lançador, inicialmente, prefere fazer constar da Opção do princípio da boa-fé, bem como apego a expressões literais que, por
~s limitações de seu conteúdo, ao invés de contar, apenas, com a possibi- sua natureza e função econômica, não possuem o condão da perenidade.
lidade, sempre presente, de arguir, para furtar-se ao pagamento do objeto
da Opção, escusas de outra natureza, como a aplicação da cláusula rebus li. O Córneo C1v1L DE 2002 E o Córneo C1v1L DE 1916
sic stantibus, a imprevisão, a onerosidade excessiva, a pressuposição, a 9. Será utilíssimo contextualizar o art. 121 do vigente Código na
quebra da base jurídica do negócio ou qualquer outra razão que tivesse tradição do direito brasileiro, a fim de lhe dar inteligência adequada e
porventura o mesmo efeito, de afastar, no todo ou em parte ou modifi- aplicação justa ao caso presente. Dizia Clovis Bevilaqua, em comentá-
car a exigibilidade do objeto, ante a ocorrência de fatores supervenientes. rio ao art. 114 do estatuto civil precedente4, correspondente ao hoje vi-
5. A escolha das condições como limitadoras do objeto da Opção gente, que as condições (suspensivas) eram as condições que tinham por
(como eventos suspensivos de efeitos, portanto) e sua explícita menção efeito suspender, temporariamente, a eficácia do negócio jurídico5 • Para
no Contrato parecem se revestir da mais alta significação, na medida Clovis, à luz do anterior art. 114, subordinava-se o efeito do ato jurídico
em que "anunciam" os riscos da Opção, vale dizer, a espécie de fatores a evento futuro e incerto. Assim sendo, entre efeito (palavra de Clovis)
fu1:1ros e incertos capazes de afetar o cumprimento da Opção - algo, e eficácia do negócio (palavra da lei), existia, se não sinonímia, ao me-
pois, de que, de boa fé, os tomadores da Opção não poderiam alegar nos - e com toda certeza - relação essencial.
desconhecimento. 10. Na Consolidação das Leis Civis, percebe-se o pensamento li-
6. A descrição inicial das questões que condicionam o exercício da geiramente diverso de Teixeira de Freitas, no sentido do não aperfei-
Opç~o t:az ~luz, de modo c_laro, a espécie de vicissitudes a que se sujei- çoamento do contrato condicional antes de cumprida a condição (art.
ta a liqmdaçao futura, ou sep, as conjunturas capazes de afetar o adim- 512) 6 • Seguia-se, assim, a antiga disposição das Ordenações, relativo às
plemento das obrigações condicionais. vendas condicionais:
7. Os destinatários são, pois, avisados de riscos capazes de oferecer,
ao curso normal da Opção, obstáculos de natureza conhecida, e de co- 4 Art. 114. "Considera-se condição a cláusula, que subordina o efeito do ato jurídico a evento
futuro e incerto."
nhecimento antecipado. No entanto, pela própria natureza dessas mes- Clovis Bevilaqua, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, F. Alves, 1916, vol.1.
5
mas condições (especificamente relacionadas a um plano de negócios e 6 Art. 512. "Na venda condicional o contracto não é perfeito senão depois de cumprida a
condição". Cf. Teixeira de Freiras, Consolidação das Leis Civis, Rio de Janeiro, Garnier, 1896,
pois, a conjunturas financeiras vigentes em um determinado momen~ p.343.
198 - ÜPÇÕES E CONDIÇÕES NO CóDIGO CIVIL DE 1916 E NO CóDIGO CIVIL DE 2002 JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO -199

"fallecendo a condição, faleceria em todo a venda, corno se ção do direito somente ocorre a partir do momento em que se verifica a
10
nunca fosse feita" condição, nos termos do art.118 da lei civil de 1916 •
(Ord.L.4°T 8° § 1°) 15. Não há dúvida, em complemento, da plena ciência, que possuía
11. O mesmo Teixeira de Freitas chamava a atenção para o art.191 Clovis, do debate travado a respeito dessa questão, a partir daquilo que
do Código Comercial de 18507 • Como bem se percebe, da não perfeição viera a dispor, exatamente, o direito alemão.
do contrato (ou seja, de sua inexistência), quando subordinado a con- 16. As referências tópicas contidas nos Comentários o atestam.
dição ainda não verificada, até à privação de seus efeitos, por força da Especialmente a chamada do § 158 do BGB 11 mostra-se esclarece-
condição pendente, vai grande diferença. De um lado, simples inexis- dora, uma vez que, nesse dispositivo, a alusão é inequívoca: é o efeito
tência do contrato. De outro, privação de sua eficácia. (Wirk.ung) do negócio jurídico que se suspende. Em outras p~avras,_a
12. Clovis Bevilaqua optou, no Código Civil de 1916, pela segun- opção do legislador germânico tendeu, precisamente, para o efeito, a vi-
2
da solução, sem dúvida mais clara e mais moderna, habilitando o intér- gência, a eficácia do negócio jurídi~o condic\o~al~ , ~e_ixando ~e _lado a
prete e aplicador da lei a discernir, diferencialmente, entre a conclusão questão da existência ou inexistência do ne~oc10 J~n~i~o condic1on~_e
do contrato e a possibilidade de o contrato produzir ou deixar de pro- proclamando, de outro lado, a adesão da lei ao pnnc1p10 da retroativi-
duzir efeitos - por força da condição, conforme esta se verifique ou não. dade das condições suspensivas.
13. A essa distinção atentou Pontes de Miranda, aludindo, igual- 17. Nesse particular, o Código Civil vigente não alterou a soluç~o
mente, ao art. 191 de nosso Código Comercial, ao escrever que "a con- consagrada no art. 118 do Código anterior, derivada, segundo o de?o1-
dição suspensiva é cláusula que não atinge o contrato, em sua conclusão; mento do próprio Clovis, à inspiração do direito alemã~ ~BGB), ~be~e~-
existe porque o contrato existe; há a vinculação dos contraentes e vin- te justamente, ao princípio da retroatividade das condiçoes. A d1sposiçao
13
culação já é eficácia. O que está suspenso é o efeito ou são os efeitos a e~ vigor reproduz, essencialmente, aquela de 1916 •
que a condição se refere" 8•
111. Ü COMPORTAMENTO DO DEVEDOR
14. Seguindo-se, portanto, a origem da condição em nosso direito
privado, o que se nota é, ainda em 1916, a preclara orientação de Clovis, A. VEDAÇÃO DAS CONDIÇÕES PURAMENTE POTESTATIVAS
no sentido da existência do direito desde a celebração do ato, que o cons-
18. Instituído o negócio jurídico condicional, impõe-se examinar
tituiu (se o negócio jurídico é inter vivos), e, ao mesmo tempo, a eficá-
qual O comportamento devido do devedor, no toca~te à verific,aç~o ~a
cia retroativa das condições, proclamada no art. 118 do Código 9 • Daí a
condição. Em primeiro lugar, diz a lei, há que considerar a propna li-
solução: é a eficácia do ato que se subordina à verificação da condição,
citude da condição pactuada, nos termos do art. 122, do seguinte teor:
vale dizer, é o efeito do ato que assim se difere, ou, se preferir, a aquisi-

10 Ob. cit, p. 401. . .


7 Art.191 - O contrato de compra e venda mercantil é perfeito e acabado logo que o comprador 11 § 15 8 (1) Wird Ein Rechtsgeschãft Unter einer aufsc_h1ebend:n Bed1~gu~g vorgen~mmen, ~o
e o vendedor se acordam na coisa, no preço e nas condições, e desde esse momento nenhuma tritt die von der Bedingung abhãngig gemachte Wirkung m1t dem Eintntt der Bedingu_ng e1~
das partes pode arrepender-se sem consentimento da outra, ainda que a coisa se não ache (2) Wird ein Rechtsgeschãft unter einer auflõsenden Bedi~_gung ~or?enomm~n, so end1?t m1t
entregue nem o preço pago. Fica entendido que nas vendas condicionais não se reputa o dem Eintritte der Bedingung die Wirkung des Re~ht~geschafts;_ n:_1td,'.esem Ze1(p~n_kt~ t~1tt d:r
contrato perfeito senão depois de verificada a condição (artigo nº 127). frühere Rechtszustand wieder ein"§ 158 (Ocorrenc1a da cond1çao) Se o negocio 1und1c? ~or
Éunicamente considerada mercantil a compra e venda de efeitos móveis e semoventes, para realizado sob condição suspensiva, produzir-se-á efeito, tornado depen~e~te ?ªcond1ç_ao,
os revender por grosso ou a retalho, na mesma espécie ou manufaturados, ou para alugar seu com a ocorrência da condição". Código Civil Alemão traduzido por Souza O1niz, Rio de Janeiro,
uso; compreendendo-se na classe dos primeiros a moeda metálica e o papel moeda, títulos Distribuidora Récord Editora, 1960, p. 42. _
de fundos públicos, ações de companhias e papéis de créditos comerciais, contanto que nas 12 Cf. Werner Flume, AllgemeinerTeil des Bürgerlichen Rechts, 2° vol.- Das Rechtsgeschaft, 4ª
referidas transações o comprador ou vendedor seja comerciante". Ed., Springer, Berlim, 1992, p. 678,§ 38.1. . , . ., . _
8 Cf. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Tomo XXXIX, Rio de Janeiro, 13 De forma geral, a doutrina italiana, mesmo anterior ao Cod1go de 19'.p, Jª c_onhec1a a n_o!ao
Borsoi, 1972, p. 7. da eficácia ou dos efeitos do negócio jurídico, suspensos pela estlpulaçao d:co;1d1~o_es
9 Art. 118. "Subordinando-se a eficácia do ato à condição suspensiva, enquanto esta se não suspensivas, de que é exemplo a sempre referida monografia de Angelo Falzea, G1uffre, Milao,
verificar, não se terá adquirido o direito, a que ele visa". 1941, passim.
JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO - 201
200 - OrçõEs E CONDIÇÕES NO CóDIGO Civ1L DE 1916 E NO Córneo Civ1L DE 2002

Art.122. 'São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias 21. O dispositivo corresponde ao art. 120 do anterior Código Civil,
15
à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições tendo como fonte, segundo a informação de Clovis, o§ 162 do BGB .
defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio 22.Já se sabe, pelo que ficou dito, que não pode ser reputada váli-
jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes". da condicão deixada ao puro arbítrio de uma das partes, nos termos do
19. Para o exame deste caso, avulta, dentre os requisitos de licitude <
art.122 1 Fora essa hipótese, relativa à interdição da condição purame~-
assim capitulados pela lei, a sujeição de uma das partes ao puro arbítrio te potestativa, será necessário considerar em q_ue casos se pode con~l~ir
da outra, tal como disposto na parte final desse preceito. Os negócios que a parte pode impedir, maliciosamente~ o implemento da condiç_ao.
jurídicos que contêm condições ilícitas são, por isso mesmo, inválidos Presume-se, à vista do art. 122, que a parte mteressada na falta de verifi-
(nos termos do art. 123, II do Código Civil) 14 • Não é preciso muito para cação da condição, possa maliciosamente impedir-lhe a verific~çã?. Em
lembrar as razões desse insuperável impedimento legal, que repousa no primeiro lugar, pois, subjaz ao preceito le?al que a p~te, p~r si so: vale
desaparecimento do vínculo de vontade entre as partes, com o predo- dizer sem o concurso de outras pessoas, sep capaz de impedir a verifica-
mínio puro e simples de uma delas sobre a outra. O rigor da lei veda a ção da condição - e isso porque a malícia é elemento subjetivo, pess~al
condição que depende apenas e tão somente do arbítrio unilateral de ao agente e incomunicável a terceiros. Em segundo lugar, o que o dis-
uma das partes. Há, nessa hipótese, uma só volição e essa mesma voli- positivo legal prevê é a capacidade pessoal do a~e~te para ~rovoc~ so-
ção é arbitrária. A potestas é, no caso, absoluta, sugerindo a subordina- zinho, a obstaculização do implemento da condiçao, vale dizer, sera ele,
ção completa de um sujeito a outro, o que é de todo incompatível com necessariamente, o único autor do obstáculo, não podendo para ele con-
a natureza e a função do contrato. Diverso,já se vê, é o tratamento jurí- correr outro fator qualquer, alheio à específica esfera jurídica do autor.
dico das condições meramente potestativas quando atuam não só como 23. Atente-se às expressões do art. 129 do Código Civil. Faz-se re-
resultado da volição de uma das partes, mas de outras causas - e por ferência à malícia do agente, ao qual se poderia imputar, por esse motivo,
isso não se pode dizer que a volição da parte seja arbitrária e exclusiva. a criação de obstáculo que tornasse impossível a ;~rificação da con~i_ção
8. IMPEDIMENTO MALICIOSAMENTE CRIADO À VERIFICAÇÃO
pactuada, com a consequente frustração do negoc10, e~ _seu_ benefic1~ e
contra o interesse da outra parte. Esse elemento (malícia) mtroduzm-
DA CONDIÇÃO
-se no texto de nosso Código de 1916, como já ficou dito, em razão da
20. Assim estabelecidos o sentido e a inteligência da condição sus- influência e inspiração do BGB, cujo § 162 alude à boa fé (Treu und
pensiva, é preciso analisar as razões que permitiriam ao intérprete e apli- Glauben), ofendida pelo comportamento obstativo do agente- em ou-
cador da lei fazer face ao comportamento malicioso do devedor, com tras palavras, a aquilo que, em português, veio a se conhecer co~o_ma-
o objetivo de impedir o implemento da condição estatuída. Da matéria lícia, no comportamento de uma das partes, tem sua matr!z ~a ideia ~a
trata o art. 129 do vigente Código Civil. boa fé do direito alemão (Treu und Glauben). Tal referencia permite
Art. 129. "Reputa-se verificada, quanto aos efeitos jurídicos, pôr er:i perspectiva o que a lei brasileira teve co:11~ finalidade, ao pros-
a condição cujo implemento for maliciosamente obstado pela crever a obstaculização do implemento da condiçao, defesa ao agente a
parte a quem desfavorecer, considerando-se, ao contrário, não
verificada a condição maliciosamente levada a efeito por aquele § 162 (l) Wird der Eintritt der Bedinung von der Partei, zu de~en Nachteil er ~ereiche_n w_ürde,
15
widerTreu und Glauben verhindert, so gilt die Bedingung ais emgetreten. (2) W1rd der E1~tnt_~ der
a quem aproveita o seu implemento". Bedingungvon derPartei, zu derem Vorteil ergereicht, widerTreu und <?lauben her_be1iief~hrt,
50
oilt der Eintritt ais nicht erfolgt".§ 162 (Impedimento ou provocaçao da ocorrenc1a) Se~
ocirrência fôrimpedida de má-fé pela parte em prejuízo da qual se havia ela de produzir, sera
tida a condição como ocorrida, _
se a ocorrência da condição fôr provocada de má-fé pela parte em vantage°:'. da qual ~e havia
ela de produzir, será tida como condição não ocorrida". Código Civil Alemao traduzido por
14 Art. 123. "Invalidam os negócios jurídicos que lhes são subordinados: Souza Diniz, ob. cit., 43- _ . . , - , d · bl'
1- as condições física ou juridicamente impossíveis, quando suspensivas; Art. 122 . "São lícitas, em geral, todas as condições_ nao contrarias a (e1, a or em pu 1c~ ou
li - as condições ilícitas, ou de fazer coisa ilícita; aos bons costumes; entre as condições defes~s _se incluem as que P~'.varem de todo efeito o
Ili as condições incompreensíveis ou contraditórias". negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arb1tno de uma das partes .
JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO - 203
202 - ÜPÇÕES E CONDIÇÕES NO CóDJGO Civil DE 1916 E NO CóDIGO Civil DE 2002

plano da causalidade e (ii) em qualquer caso, com observância da cláu-


quem interessaria a paralização do efeito da verificação da mesma con-
dição. O que se ofende, a título da malícia do agente, é a lesão à boa fé, sula geral da boa-fé.
como princípio e como norma de direito positivo, que deve presidir to- 27. Desse modo, pode-se afirmar que, deve ser considerado, em pri-
das as relações negociais, inclusive em sua execução. meiro lugar, o elemento objetivo da frustração da condição: se a não-ve-
rificação desta não se atribui, de modo necessário, ao devedor, ou seja, se
24. Não se trata, pois, de qualquer atitude maliciosa em abstrato,
não é apenas a conduta deste que determina o evento, não se pode falar
mas da violação de expresso dever jurídico, capitulado expressis verbis
em imputabilidade, nem mesmo em tese. Estamos diante, aqui, de um
no art. 422 do Código Civil17 que vem a ser, justamente, a necessária e
mínimo de causalidade, sem o qual sequer não se vislumbra o inadim-
imprescindível manutenção da boa fé na execução do contrato, para que
plemento. Em segundo lugar, o intérprete e aplicador da lei deve con-
se preserve sua base objetiva. Não tenho dúvida em afumar, assim, que a
siderar o contexto em que se deu a não-realização da condição, para
atitude da parte não pode ser julgada em abstrato, abstraindo das condi-
deduzir se o devedor poderia, em tese, ser acusado de má-fé na execu-
ções em que o negócio condicional pode ou não ser concluído segundo
ção do contrato - e isso apenas quando, do ponto de vista da relação de
a expectativa de ambas as partes, com atenção à respectiva base objetiva.
A boa fé da parte deve ser aferida, pois, não de modo isolado, desligado causalidade, a frustração poderia lhe ser imputada.
dos termos materiais sob os quais a contratação deve ou não produzir os 28. De notar-se, ainda, e em reforço ao que já foi dito, que o pre-
efeitos previstos. O que se impõe, bem ao contrário, é considerar a boa ceito determina a presença de interferência voluntária do agente, para
fé (ou a malícia) na relação de ambas as partes no negócio em concreto. que se caracterize sua malícia no impedimento da verificação da con-
dição. Somente se dá a interferência maliciosa, capitulada no art. 129,
25. É importante enfatizar, nessa linha de argumento, que a lei não
quando o agente, voluntariamente, vale dizer, por sua iniciativa exclusi-
estabelece quais as ações que o contratante deve adotar para prevenir ou
va e por atos próprios, vem a obstar a verificação da condição, sem que,
evitar a ocorrência do fato que impede a verificação da condição.A rigor,
nem mesmo o legislador se deu ao trabalho de estabelecer, literalmente, e para tanto, concorram fatores diversos de sua esfera volitiva. Trata-se de
de forma direta, se o devedor deve agir a fim de evitar o perecimento do consequência do que se acabou de dizer: se a frustração da condição se
deve à atuação de fatores diversos da atuação do devedor, que compro-
fato condicionante. O mesmo problema se levantou na experiência jurí-
dica italiana, ante a interpretação do art. 1359 do Código de 1942, tendo metam a execução da obrigação, de malícia não se pode falar, no senti-
a doutrina debatido, exatamente, a necessidade de comportamentos da do do art. 129.
parte do devedor (ao menos em parte, se não totalmente), mas os limi- 29. A distinção é amplamente conhecida, por exemplo, no direi-
tes dessa mensuração sempre dependem da verificação de elementos de to italiano. Existem fatos ou situações para as quais ocorre a iniciativa
fato e da boa-fé do contratante. E a solução preconizada é clara: o fato de um só sujeito, mas essa isolada iniciativa não constitui elemento ex-
imputável ao contratante portador de interesse contrário à realização da clusivo, concorrendo para a prática dos atos ou para a realização das si-
condição deve incidir como elemento essencial da frustração. Dito de tuações determinadas circunstâncias não controladas nem controláveis
outro modo: o fato do contratante, segundo a melhor doutrina, deve in- pelo estipulante19 • No campo das atividades empresariais complexas,
cidir como condicio sine qua non da falta de realização da condição 18 • como a que subjaz à Opção, neste caso, pode-se afirmar que eventos de
26. Confirma-se, assim, aquilo que já se afumou: a imputação do alta significação, como a superação de um plano de negócios por outro,
em conjunturas de vulto, de forma alguma pode ser havida como ato ou
fato ao devedor pressupõe sua ação própria e voluntária, em si mesmo
suficiente para bloquear a condição, apurável (i) de modo objetivo, no resolução de uma só pessoa. De um lado - e isso é verdade na hipótese
consultada -vários agentes econômicos atuam na conjuntura e determi-
nam mutações em planos de negócios. Além disso - como igualmente
17 Art. 422. "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em
sua execução, os princípios de probidade e boa-fé".
Cf. Maria Costanza, Condizione dei Contratto, Zanichelli, Bolonha, Commentario de Scialoja-
19 Cf. Maria Costanza, La Condizione, ob. cit., p. 845.
Branca, 1997, p. 109.
JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO - 205
204 - ÜPÇÕES E CONDIÇÕES NO Cá DIGO CIVIL DE l 916 E NO Cá DIGO CIVIL DE 2002_

está claro nessa hipótese - as alterações não são procedimentos simples, de não dar curso ao contrato, em face da mutação conjuntural verifica-
automáticos ou dependentes de uma só vontade ou de uma só pessoa. da. Nessa situação, deve-se reconhecer ao devedor, que se obrigou em
contrato benéfico, sem contrapartida dos beneficiários, o direit~ de dar
IV. CAUSAS DE SUSPENSÃO DA EFICÁCIA: INTERNAS E EXTERNAS como resolvida a estipulação contratual, com fundamento, pr~cisamen-
30.Admitido o conceito da condição suspensiva como causa de sus- te, na impossibilidade de manter a avença à vista de nova realidade eco-
pensão da eficácia do negócio jurídico condicional, deve-se igualmente nômica, não criada por ele.
acolher, analiticamente, duas categorias dessa espécie de causa, seguin- 34. Por mais que se pretenda argumentar com o caráter receptício
do, nesse particular, a diferenciação proposta por Angelo Falzea20 • De da declaração originária do devedor, como oferta de contrato (ou como
um lado, tem-se a causa interna, a qual deriva do próprio esquema da autêntica opção), que bastaria ser aceita pelos tomadores para co~subs-
fattispecie, na medida em que lhe falta um determinado efeito margi- tanciar O subsequente vínculo contratual, a exigibilidade do cumpn11:en-
nal; de outro lado, releva a causa externa, a qual deriva das situações ju- to respectivo, na situação posteriormente verificada, ~arece contrariar a
rídicas que, de fora, erigem obstáculos à eficiência geradora de efeitos natureza do pacto. A Opção, lembre-se, nada custou as p~rtes tomado-
de um determinado ato. ras e se enquadra na categoria jurídica dos contratos beneficos. E e~tes,
31. Ampliando os contornos dessas espécies de condições suspen- segundo penso, comportam sempre a desistência mo:ivada; vale dizer,
sivas, o intérprete e aplicador da lei facilmente reconhecerá que, própria a resolução unilateral, a fortiori quando essa resoluçao unilate:al tem
estipulação do negócio subcondicione, e como fato integrador necessá- como justificativa sólidas razões econômicas e não o mero capricho ou
rio da futura obrigação, dotada de eficácia, existem motivos fundados na a intenção de lesar, por parte do devedor.
própria disposição da vontade, no interior, pois, do próprio negócio jurí- 35. A interpretação estrita, preconizada pelo _art. 114, ampara ~m-
dico que, em conjunto, estipularam, que irão determinar a configuração plamente O entendimento e fornece a base para alicerça~, no c~so, a im~
posterior de sua eficácia (se realizada a condição) ou a falta da eficácia possibilidade de se obstar, ao devedor, a solução dada a ?pç~o, face a
do negócio (se não realizada a condição). Na primeira hipótese, fala-se frustração evidente das condições de início pactuada~.~ ngonsmo ~or-
da produção de efeitos - daqueles efeitos desejados por todas as partes. mal, na espécie, seria descabido e contrário ao própno sistema da lei.
Na segunda hipótese, não há produção de efeitos, ou seja, a eficácia, até
então suspensa, desaparece ou não chega a nascer.
V. CONDIÇÕES POTESTATIVAS
32. Não se pode deixar de notar, ainda, que as condições puramen-
te potestativas podem corresponder, na realidade, a um verdadeiro di-
reito de resolução contratual, que uma das partes pode se arrogar, para
desistir do cumprimento da convenção, seja ela instantânea, seja ela de
trato sucessivo (Rücktrittsrecht). A hipótese é lembrada por Werner
Flume, no direito alemão 21 •
33. Nesse caso, a própria estrutura do negócio condicional e, princi-
palmente, seu caráter benéfico (nos termos do art. 114 do Código Civil
de 2002) autorizam a prevalência da desistência substancial de execu-
tar o contrato sobre a vedação da condição puramente potestativa. Na
verdade, o comportamento do devedor revela, exatamente, a intenção
20 Cf. Angelo Falzea, La Condizione e gli elementi dell'atto giuridico, já mencionado.
21 Werner Flume, Das Rechtsgeschãft, p. 687.
Eu LORIA E DANIEL KALANSKY - 207

IX. AuENACÃo
, f1Duc1ÁRIA DE AcõEs:
,

QUESTÕES CONTROVERSAS

Eli Loria1

Daniel Kalansky2

1. INTRODUÇÃO
Este artigo trata da alienação fiduciária de ações em garantia, bus-
cando, de forma sucinta, entender o instituto, sua origem e regulamen-
tação, seus efeitos sobre os direitos do acionista de votar e participar dos
lucros, bem como de determinados aspectos decorrentes do inadimple-
mento da obrigação pelo devedor e da transferência das ações.
A alienação fiduciária de ações em garantia é muito comum em ope-
rações empresariais como, por exemplo, nas seguintes situações:
o
Financiamento: a fim de obter financiamento junto a uma ins-
tituição financeira, o controlador de determinada companhia
oferece, em garantia, as ações de emissão daquela companhia,
por meio de alienação fiduciária;
Alienação Parcial de Participação Societária: determinado acio-
nista vende, para um terceiro, parte das ações de emissão de
uma companhia de que seja titular, alienando fiduciariamente
as ações remanescentes, como garantia de eventual obrigação
de indenizar o comprador por contingências; e,
Alienação Total de Participacão Societária: em um contrato de
compra e venda da totalidade da participação societária detida
pelo vendedor em determinada companhia, estabelece-se no
contrato que o comprador realizará o pagamento a prazo, e as
ações de emissão da companhia detidas pelo comprador serão
alienadas fiduciariamente ao vendedor, até o total pagamento
do preço avençado.

Ex-diretor da Comissão de Valores Mobiliários. Doutor e Mestre em Direito Comercial pela


Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado em Administração - Coppead/UFRJ. Bacharel em
Administração Pública pela EBAP/FGV. Sócio de Loria e Kalansky Advogados.
2 Professor do Instituto de Ensino e Pesquisa - lnsper. Doutor e Mestre em Direito Comercial
pela Faculdade de Direito da USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial
IBRADEMP. Sócio de Loria e Kalansky Advogados.
208 - ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE AÇÕES: QUESTÕES CONTROVERSAS Eu LoR1A E DANIEL l<ALANSKY - 209

As situações acima descritas são corriqueiras, e, diante de sua gran- Já Melhim Namem Chalhub5 entende por negócio fiduciário "o ne-
de utilização, deve-se buscar compreender as diversas questões que cir- gócio jurídico inominado pelo qual uma pessoa (fiduciante) transmite
cundam o instituto da alienação :fiduciária de ações em garantia. a propriedade de uma coisa ou a titularidade de um direito a outra (fi-
Frequentemente, o contrato de garantia é celebrado entre as partes duciário), que se obriga a dar-lhe determinada destinação e, cumprido
sem maiores questionamentos, deixando-se de lado algumas conside- esse encargo, retransmitir a coisa ou direito ao :fiduciante ou a um bene-
rações importantes a respeito desse instituto, e que podem gerar con- ficiário indicado no pacto fiduciário."
sequências mais adiante, como por exemplo: (i) a devedora tem que ser O advento do instituto da alienação :fiduciária em garantia no or-
notificada antes da excussão? (ii) a devedora tem possibilidade de exer- denamento pátrio deu-se com a Lei 4.728/65, originalmente voltada
cer o direito de preferência? (iii) em caso de venda das ações a terceiro, apenas aos bens móveis, alterada pelo Decreto-Lei 911/69, estando vi-
o preço tem que ser consistente com o valor de mercado? (iv) as partes gente atualmente a redação dada pela Lei 10.931/04.
podem renunciar a qualquer direito no contrato de alienação :fiduciária O instituto foi introduzido em nosso ordenamento com a finali-
de ações? (v) os administradores da companhia têm a obrigação de efe- dade de reduzir os custos de financiamento pela facilitação da execução
tuar o registro de transferência nos livros da companhia para o adqui- da garantia, permitindo a venda do bem dado em garantia, por meio de
rente das ações? procedimentos mais eficientes previstos em lei, incrementando a segu-
Sem nos prender a simplesmente responder a essas questões, elas rança jurídica e diminuindo a inadimplência. Certo que, paga a dívida,
serão utilizadas como linha mestra para o desencadeamento do presente o fiduciante recupera a propriedade plena do bem dado em garantia.
artigo, trazendo nossa visão acerca desse tema tão importante em nosso Com a edição da Lei 9 .514/97, a alienação :fiduciária passou a abran-
direito societário. Antes, contudo, iniciaremos com considerações gerais ger também bens imóveis, e é amplamente empregada no âmbito do fi-
acerca do instituto da alienação :fiduciária, para então adentrarmos nas nanciamento imobiliário. Já a propriedade :fiduciária está contemplada
questões mais específicas da alienação fiduciária de ações em garantia. nos artigos 1361 a 1368-B do Código Civil, e, no que couber, pelos ar-
tigos 1419 a 1430 e 1436 do Código Civil, Lei 10.406/026 •
2. ASPECTOS GERAIS
A alienação fiduciária, prevista pelo art.1.361 do Código Civil para
O negócio :fiduciário encontra sua a origem remota no direito ro- os bens móveis, consiste em direito real de garantia. Qyando se insti-
mano. No dizer de Moreira Alves 3: ''A fidúcia é o contrato pelo qual al- tui a propriedade fiduciária, ocorre o desdobramento da posse, de forma
guém (o fiduciário) recebe de outrem (o fiduciante) a propriedade sobre que o devedor se torna possuidor direto da coisa, enquanto o credor fi-
uma coisa infungível, mediante a mancipatio ou a in iure cessio, obrigan- duciário se torna possuidor indireto e proprietário resolúvel. Assim, na
do-se, de acordo com o estabelecido num pactum aposto ao ato de en- alienação :fiduciária de coisa fungível, o devedor permanece, como de-
trega, a restituí-la ao fiduciante, ou a dar-lhe determinada destinação.", positário, na posse direta do bem móvel dado em garantia a um credor,
sendo a confiança elemento essencial no negócio. até o pagamento, salvo disposição contratual em contrário.
Em obra sobre o tema, Orlando Gomes 4 assim definia a alienação Na hipótese de o devedor se tornar inadimplente, o credor fiduci-
fiduciária: "Em sentido lato, a alienação fiduciária é o negócio jurídi- ário poderá vender a terceiros o bem dado em garantia, devendo aplicar
co pelo qual uma das partes adquire, em corifiança, a propriedade de um o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorren-
bem, obrigando-se a devolvê-la quando se verifique o acontecimento a tes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver7 •
que tenha se subordinado tal obrigação, ou lhe seja pedida a restituição".
5 CHALHUB, Melhim Namem. Alienação fiduciária: negácio fiduciário. 6ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2019, p. 27.
6 O Código Civil, por sinal, dirimiu a controvérsia então existente quanto à legitimidade para
aquisição fiduciária de bens móveis, havendo quem defendesse a aplicação exclusiva às
3 ALVES,José Carlos Moreira. Direito romano. Vol. 2. 6ª ed. ver. e acresc. Rio de Janeiro: Forense, instituições financeiras, hoje generalizado.
2001, p.125 7 Nesse sentido, assim dispõe o art. 66-B, §3°, da Lei 4.728/65, com a redação dada pela Lei
4 GOMES, Orlando.Alienação fiduciária em garantia. 2ª ed. rev. e ampl. São Paulo: RT, p. 18. 10.931/04:
210 - ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE AÇÕES: QUESTÕES CONTROVERSAS
Eu LoRIA E DANIEL KALANSKY - 211

Diferentemente do que ocorre no penhor, na alienação fiduciária o uma vez que o bem passa a integrar o patrimônio do credor, podendo
devedor fiduciante, ainda que mantenha a posse direta do bem, trans- pedir sua restituição, considerando sua condição de proprietário 9 • Além
mite ao credor fiduciário o seu domínio, ficando acordado que, em não disso, o art. 49, §3°, da lei de falências, determina que os credores fidu-
adimplindo a dívida, o bem seja alienado. Com o pagamento da dívida, ciários são considerados extraconcursais, ou seja, não se submetem à re-
a propriedade fiduciária é resolvida, e o devedor, então liberado de sua cuperação judicial10•
obrigação, recupera a propriedade da coisa.
Compreendidas as previsões legislativas e doutrinária sobre o ins-
A alienação fiduciária tem por características 8: tituto em estudo, cabe agora ponderar sobre as questões que permeiam
0
Bilateralidade, criando obrigações para ambas as partes; o contrato de alienação fiduciária de ações.
• Onerosidade, ao criar ônus e vantagens para os contraentes;
3. Ü DIREITO DE VOTO, O DIREITO À PARTICIPAÇÃO NOS LUCROS
° Caráter acessório, por depender de uma obrigação principal, E O DIREITO DE PREFERÊNCIA PARA SUBSCRIÇÃO DE NOVAS
extinguindo-se pela extinção do contrato de empréstimo; AÇÕES EM CASO DE AUMENTO DE CAPITAL DA COMPANHIA
° Caráter solene, requerendo-se o registro no Registro de Títulos
Em uma alienação fiduciária de ações, a lógica observada acima não
e Documentos do domicílio do devedor; e,
se aplica de forma idêntica, tendo em vista que as ações são bens incor-
• Caráter indivisível, uma vez que o pagamento de uma ou mais póreos, inexistindo divisão da posse em direta e indireta, mas apenas a
prestações da dívida não importa exoneração, exceto disposi- propriedade resolúvel das ações. Essa distinção resultará em peculiari-
ção expressa no título ou na quitação. dades atinentes ao regime da alienação fiduciária de ações em garantia.
Outra característica que confere grande atratividade à alienação fi- Inicialmente, as dúvidas que se apresentam são: a quem caberá o
duciária em garantia é o fato de, nos termos da lei de falências, o cre- exercício do direito de voto conferido em razão da titularidade das ações?
dor fiduciário ficar protegido de eventual falência do devedor fiduciante, Qy.em fará jus à participação nos lucros da companhia? E quem poderá
exercer o direito de preferência para subscrição de novas ações em caso
"Art. 66-8. O contrato de alienação fiduciária celebrado no âmbito do mercado financeiro e
de capitais, bem como em garantia de créditos fiscais e previdenciários, deverá conter, além de aumento de capital da companhia?
dos requisitos definidos na Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, a taxa de
juros, a cláusula penal, o índice de atualização monetária, se houver, e as demais comissões e
encargos.
3.1. DIREITO DE VOTO
(...). A Lei das S.A, em seu art. 113, dispõe o seguinte:
§3º É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre
coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, ''Art.113. O penhor da ação não impede o acionista de exercer
a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ~u d~ título representativo o direito de voto; será lícito, todavia, estabelecer, no contrato,
do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora
da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem obje'.o d~ p~opriedade fi?uc_iá_ria que o acionista não poderá, sem consentimento do credor
independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra ~:d1da JUd1c1al ou extra1ud1c1al,
devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu credito e das despesas decorrentes
pignoratício, votar em certas deliberações.
da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do
demonstrativo da operação realizada. 9 "Art. 85. O proprietário de bem arrecadado no processo de falência ou que se encontre em
poder do devedor na data da decretação da falência poderá pedir sua restituição."
(...)."
10 "Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido,
Da mesma forma, o art. 2°, caput, do Decreto-Lei 911/69, assim dispõe: ainda que não vencidos.
"Art. 2º No caso de inadimplemento ou mora nas obrigações contratuais garantidas mediante (... ).
alienação fiduciária, o proprietário fiduciário ou credor poderá vender a coisa a terceir_os,
independentemente de leilão, hasta pública, avaliação p_r~via ou_ qualquer outra medida § 3° Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou
judicial ou extrajudicial, salvo disposição expressa_e,:n contrano prevista no contrato, devendo imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos
aplicar o preço da venda no pagamento de seu credito e das despesas decorrentes e entregar respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em
ao devedor o saldo apurado, se houver, com a devida prestação de contas. incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio,
seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de
(... )." . - propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não
8 AMENDOLARA, César. Alienação Fiduciária como Instrumento de Fomento a Concessao de se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o§ 4° do art. 6° desta
Crédito, ln WAISBERG, Ivo e FONTES, Marcos Rolim Fernandes. Contratos Bancários. São Paulo: Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua
Quartier Latin, 2006, pgs. 160 e segs. atividade empresarial."
212 - ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE AÇÕES: QUESTÕES CONTROVERSAS Eu LORIA E DANIEL f<ALANSKY - 213

Parágrafo único. O credor garantido por alienação fiduciária J.2. DIVIDENDOS E DIREITO DE PREFERÊNCIA PARA SUBSCRIÇÃO DE
da ação não poderá exercer o direito de voto; o devedor so- NOVAS AÇÕES EM CASO DE AUMENTO DE CAPITAL DA COMPANHIA
mente poderá exercê-lo nos termos do contrato."
No que se refere aos dividendos, a Lei 6.404/76, determina que nem
No dizer de Paulo Resti:ffe Neto e Paulo Sérgio Resti:ffe 11 : " ••• con-
o estatuto social nem a assembleia-geral poderão privar o acionista dos
feriu-se na atual Lei Societária, ao credor, a propriedade fiduciária em
direitos de participar dos lucros sociais (art. 109, inciso I) e, por seu art.
garantia sobre a ação; e, ao devedor, enquanto adimplente, o exercício
202, obriga as companhias a distribuírem dividendos a seus acionistas
do direito de voto correspondente à posse "direta" (ou seja, por ficção)
como parcela dos lucros estabelecida no estatuto, integrando os direitos
da ação alienada, segundo a liberdade contratual das partes, isto é, nos
essenciais do acionista.
termos do contrato (sem exclusão dos demais direitos próprios do acio-
nista fiduciante e do credor fiduciário)." Dessa forma, estando o nome do fiduciante inscrito no Livro de
Acionistas, a companhia deverá pagar os dividendos em seu nome, salvo
Dessa forma, o credor não pode votar ou determinar o voto do de-
previsão contratual diversa, podendo os dividendos ser objeto de cessão
vedor, podendo, entretanto, estabelecer que, em certas matérias, o deve-
fiduciária em garantia. Caso o credor fiduciário recebesse os dividendos
dor não pode votar sem o consentimento do credor.
sem previsão contratual ter-se-ia enriquecimento sem causa.
O contrato pode conter cláusula prevendo os limites do exercício
O!ianto ao direito de preferência para subscrição de novas ações
do direito de voto pelo devedor, não podendo o credor fiduciário votar
em caso de eventual aumento de capital da companhia, o direito deve
como procurador do devedor fiduciante por encontrar-se em situação
ser exercido pelo devedor fiduciante, a semelhança do direito a receber
de conflito de interesses.
dividendos, salvo estipulação contratual em contrário, ou mesmo pelo
No caso de o contrato ser omisso a respeito das condições de voto credor fiduciário no caso de cessão do direito de preferência nos termos
do devedor fiduciante, com o devido respeito àqueles que entendem que do art. 171, §6°, da lei societária.
o fiduciante não poderia exercer o direito de voto, entendemos que não
existe restrição quanto a esse direito. Sendo o contrato omisso, o deve- 4. A EXCUSSÃO DA GARANTIA
dor fiduciante tem liberdade para exercer o direito de voto. Entendidas as questões atinentes ao exercício do direito de voto, ao
12 recebimento dos dividendos e ao direito de preferência para subscrição
Lucena , em linha com tal interpretação, conclui que jamais pode-
rá o acionista devedor ser privado do direito de voto, em face da omis- de novas ações em aumento de capital, passemos a analisar aspectos re-
são da cláusula de consentimento no contrato de alienação fiduciária. lacionados à excussão da garantia em caso de inadimplemento.
Ainda, Carvalhosa critica fortemente a redação do art.113, por sub- Já quando do inadimplemento da obrigação pelo devedor, ocor-
meter o voto das ações alienadas fiduciariamente aos termos do contra- re a excussão dos bens dados em garantia pelo devedor. A excussão de
to de alienação em garantia, e comenta que se o credor pudesse votar, garantias fiduciárias, no mais das vezes, se realiza extrajudicialmente,
seja diretamente, seja mediante procuração do acionista devedor, have- ficando o credor obrigado a vender a coisa a terceiros, e aplicar o mon-
ria uma distorção das relações de financiamento por seu interesse não tante apurado no pagamento de seu crédito e das despesas de cobran-
estar necessariamente alinhado com o interesse social13 . ça, e a entregar o saldo, se houver, ao devedor, nos termos do art. 1.364
do Código Civil. Caso o montante da venda não seja capaz de saldar o
débito, o credor fiduciário continuará a ser credor do devedor, nos ter-
mos do art. 1.366 14 do Código Civil.
11 RESTIFFE NETO, Paulo e RESTIFFE, Paulo Sérgio. Garantia fiduciária: direito e ações. 3ª ed. rev.,
atual. e ampl. São Paulo: RT, 2000, p. 362.
12 LUCENA,José Waldecy. Das saciedades anônimas. Vol. 1. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 1051.
13 MODESTO, Carvalhosa. Comentários à lei de saciedades anônimas. Vol. 2. 5ª ed. São Paulo: 14 "Art. 1.366. Quando, vendida a coisa, o produto não bastar para o pagamento da divida e das
Saraiva, 2011, p. 476 e p. 479. despesas de cobrança, continuará o devedor obrigado pelo restante."
214 - ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE AÇÕES: QUESTÕES CONTROVERSAS Eu LORIA E DANIEL l<ALANSKY - 215

Vale observar que a proibição do pacto comissório, conforme art. devedor fiduciante ou (ii) existiriam limitadores legais à hipótese de
1.365 15 do Código Civil, se o débito não for adimplido, leva a que o vender as ações a terceiros ou, (iii) ainda, se existem limitações ao pre-
credor fiduciário deva vender a terceiros o bem objeto da alienação ço de venda praticado, considerando os termos do contrato ou a omis-
fiduciária. são desses aspectos.
Em relação aos bens móveis, o Decreto-Lei 911/6 9, com a redação Qyanto às cláusulas negociáveis, é natural ao credor solicitar que
dada pela Lei 13.043/14, prevê o ajuizamento de ação judicial especifi- sejam incluídos dispositivos que assegurem o _adimplemento da obriga-
camente para a busca e apreensão do bem, que normalmente se encontra ção ou, pelo menos, reaver o valor garantido. E comum que o credor so-
na posse do devedor fiduciante, ficando o credor fiduciário autorizado a licite, dentre outras, as seguintes cláusulas:
"vender a coisa a terceiros, independentemente de leilão, hasta pública, 0
possibilidade expressa de venda imediata das ações para tercei-
avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, sal- ros, sem prévia notificação, em caso de mora ou inadimplemento;
vo disposição expressa em contrário prevista no contrato", nos termos
• cláusula-mandato, com a outorga de procuração em causa pró-
do art. 2° do referido diploma.
pria ao credor fiduciário, com poderes para efetivar a transfe-
Nesse aspecto, o regime da alienação fiduciária de ações em garan- rência das ações e abatimento do preço;
tia apresenta sua peculiaridade decorrente do fato de a ação ser um bem
• deveres expressos de colaboração da devedora com relação à
incorpóreo. As ações são registradas em assentos próprios, previstos na
venda das ações;
lei societária16 , e, da mesma forma, a alienação fiduciária em garantia é
registrada no livro Registro de Ações Nominativas da companhia.
0
desnecessidade de avaliação; e,
Como as ações não ficam na posse do devedor,já que são bens in- º inexistência de preço mínimo para venda das ações.
corpóreos, também não há que se falar no procedimento de busca e Por outro lado, o devedor fiduciário busca estabelecer um equilibrio
apreensão para consolidação a propriedade resolúvel. E, tendo em vis- no contrato sugerindo algumas adequações:
ta a inaplicabilidade do procedimento de busca e apreensão, inexiste o º notificação prévia, bem como exercício do direito de preferên-
direito de o credor pagar a integralidade da dívida pendente em até 5 cia em caso de alienação das ações a terceiros;
(cinco) dias após executada a liminar mencionada no art. 3°, caput, do º necessidade de avaliação por um terceiro das ações e sua ven-
Decreto-Lei nº 911/69, com a redação dada pela Lei 13.043/14. da conforme indicado em laudo de avaliação; e,
Na alienação fiduciária de ações em garantia, a lei autoriza que a º o devedor fiduciário fará jus aos direitos políticos e econômicos
venda se faça independentemente de hasta pública ou avaliação. Para re- relativos as ações em garantia, sendo que em caso de inadim-
alizar a excussão da garantia, deve ser observado o disposto pelas partes plemento o alienante deixará de exercer qualquer direito de
no contrato. Dessa forma, para que sejam evitados problemas quanto ao voto, comparecendo a assembleia para votar conforme instru-
procedimento de venda das ações objeto de garantia, as partes deverão ções da credora, desde que tais instruções não sejam contrárias
dispor detalhadamente sobre o assunto no contrato. aos interesses da companhia.
Em função da impossibilidade de busca e apreensão, é preciso pon- As cláusulas negociais dos contratos de alienação fiduciária de ações
derar sobre o modo como as ações seriam vendidas. Ocorrendo o inadim- em garantia podem gerar controvérsias das mais diversas entre credor e
plemento, (i) o exercício desse direito seria livre, somente se submetendo devedor, principalmente num cenário de inadimplemento. O presente
às cláusulas contratuais, em especial se é mandatório dar preferência ao capítulo tratará algumas dessas questões.
15 "Art. 1.365. Énula a cláusula que autoriza o proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada
em garantia, se a dívida não for paga no vencimento.
Parágrafo único. O devedor pode, com a anuência do credor, dar seu direito eventual à coisa
em pagamento da dívida, após o vencimento desta."
16 Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe op. cit. p. 375.
216 - ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE AÇÕES: QUESTÕES CONTROVERSAS Eu LORIA E DANIEL l<ALANSKY - 217

4.1. Ü CREDOR DEVE NOTIFICAR O DEVEDOR? diciais tomadas em casos, no mais das vezes, de alienação fiduciária de
veículo automotor19 •
O primeiro ponto se refere à necessidade de o credor fiduciário ter
como obrigação notificar o devedor fiduciante, já inadimplente, da in- Cita-se como referência a decisão do STJ no REsp 209.410-MG,
tenção de venda das ações e se existe consequência para a não comuni- 4ª Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, de 09.11.99, tratando de
cação do início do procedimento de venda extrajudicial das ações pelo venda extrajudicial de automóvel, em que, ponderando entre o interesse
credor fiduciário. do credor em recuperar seu crédito com presteza e o interesse do deve-
dor de que a venda seja realizada ao melhor preço, declarou que o de-
No caso de alienação fiduciária de bens imóveis, a necessidade de
vedor deveria observar a venda, assegurando o cumprimento do art. 6°,
notificação do devedor decorre do "direito de preferência", consoante
VII, do Código de Defesa do Consumidor.
Lei 9.514/97, art. 27, § 2°-B 17. Para a alienação fiduciária de ações, en-
tretanto, não existe previsão legal de que o credor fiduciário esteja obri- Outra decisão, ainda envolvendo aspectos do Código de Defesa do
gado a comunicar ao devedor fiduciante a intenção de venda para que Consumidor, é do STJ, REsp 327.291-SP, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy
este possa acompanhar a alienação das ações a terceiros. Andrighi, de 20.09.2001, no sentido de que a venda extrajudicial do bem
poderá ser efetuada em valor inferior ao da avaliação realizada pelo ofi-
Inicialmente, deve-se verificar a caracterização, ou não, de uma re-
cial de justiça, determinando, contudo, que o devedor seja previamente
lação de hipossuficiência. Apresentando-se na relação contratual deter-
comunicado das condições da alienação.
minado polo como hipossuficiente, os contratos, de uma forma geral,
tendem a estabelecer cláusulas unilaterais e abusivas, sem que a par- Entretanto, em casos entre partes equivalentes, sem que um dos
te hipossuficiente possa negociar seus termos. Assim, no caso, deve ser polos seja hipossuficiente; não existe preceito legal que obrigue a que a
mantida a equidade entre as partes, objetivando evitar abusos em uma fiscalização da venda pelo devedor fiduciante seja realizada.
relação não equilibrada. Na esfera da interpretação dos contratos, o contrato faz lei entre as
Nesse ponto cabe lembrar que, em contratos envolvendo o Código partes. Aplicando-se o princípio da força obrigatória dos contratos, o
de Defesa do Consumidor, em função de seu art. 6°, VII e VIII 18 , se- mesmo deve ser executado tratando suas cláusulas como comandos im-
gundo julgados, deve o credor fiduciário notificar o devedor fiduciante perativos, desde que, é claro, o contrato observe todos os requisitos le-
para acompanhar e fiscalizar a alienação do bem, sendo as decisões ju- gais de validade dos negócios jurídicos.
17 Art. 27. Uma vez consolidada a propriedade em seu nome, o fiduciário, no prazo de trinta dias,
Certo que os contratos devem ser regidos pela boa-fé (art. 422
contados da data do registro de que trata o§ 7° do artigo anterior, promoverá público leilão do Código Civil2º) e pela função social do contrato (arts. 113 e 421 do
para a alienação do imóvel.
(... ).
Código Civil21- 22), objetivando dar segurança jurídica às relações ne-
§ 2°-B. Após a averbação da consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor gociais, entretanto, em operações envolvendo a alienação fiduciária de
fiduciário e até a data da realização do segundo leilão, é assegurado ao devedor fiduciante
o direito de preferência para adquirir o imóvel por preço correspondente ao valor da dívida, ações, as partes, em geral, são pessoas que conhecem o mercado e estão
somado aos encargos e despesas de que trata o§ 2° deste artigo, aos valores correspondentes aptas a negociar os termos do contrato em igualdade de condições, em
ao imposto sobre transmissão inter vivos e ao laudêmio, se for o caso, pagos para efeito de
consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciário, e às despesas especial as cláusulas de excussão.
inerentes ao procedimento de cobrança e leilão, incumbindo, também, ao devedorfiduciante
o pagamento dos encargos tributários e despesas exigíveis para a nova aquisição do imóvel,
de que trata este parágrafo, inclusive custas e emolumentos. 19 Por todos STJ, AgRg no Recurso Especial n. 776.258-MG, 4ª T., rei. Min. Fernando Gonçalves,
(... ). j. 11.09.2007.
18 "Art. 6° São direitos básicos do consumidor: 20 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em
sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
VII-o acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas à prevenção ou reparação de 21 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar
danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção Jurídica, de sua celebração,
administrativa e técnica aos necessitados; (... ).
VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu 22 Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.
favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção
hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;'" mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.
218 - ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE AÇÕES: QUESTÕES CONTROVERSAS Eu LoR1A E DANIEL KALANSKY - 219

Assim, ocorrendo o inadimplemento, as ações são consolidadas em riquezas no futuro mediante uma taxa de desconto, e a comparação por
definitivo pelo credor :fiduciário, não havendo óbice à venda e nem ne- múltiplos faz uma análise comparativa de companhias com perfil similar.
cessidade legal de prévia notificação do devedor :fiduciante, se assim não Considerando que a lei delegou as partes a :fixação de critérios para
estabelecido no contrato. a alienação das ações, devem ser distinguidas as situações em que o cre-
dor :fiduciário vende as ações por montante superior ao valor da dívida
4.2. A VENDA DAS AÇÕES PODE SER REALIZADA A QUALQUER PREÇO?
e aquelas em que o valor da venda não alcança o total da dívida.
Seguindo o princípio da boa-fé objetiva, tem-se que a venda das Existe, a princípio, um conflito de interesses entre devedor :fidu-
ações deve buscar um preço que se aproxime de seu valor econômico da ciante e credor :fiduciário. O devedor almeja o melhor preço, objetivando
ação, de modo a assegurar os interesses do devedor que tem interesse quitar a dívida e receber o valor excedente, e o credor, a maior presteza
no maior valor de venda. no recebimento do valor devido. Entretanto, o credor :fiduciário, no mí-
Deve ser considerado, ainda, o conceito de preço vil, do parágrafo nimo, pretende ter restituído o valor do :financiamento, presumindo-se
único do art. 891 do Código de Processo Civil: a sua boa-fé e sua atuação diligente, não se podendo presumir que, ten-
''Art. 891. Não será aceito lance que ofereça preço vil. do a possibilidade de obter o seu pagamento integral, se satisfaça com
Parágrafo único. Considera-se vil o preço inferior ao mínimo um valor inferior.
estipulado pelo juiz e constante do edital, e, não tendo sido fixa- Nesse ponto, cabe comentar ser aplicável o princípio da boa-fé ob-
do preço mínimo, considera-se vil o preço inferior a cinquenta jetiva ao contrato de alienação :fiduciária de ações, tanto na conclusão
por cento do valor da avaliação." quanto em sua execução23 (art 422 do Código Civil),levando aos chama-
Da redação do Código de Processo Civil pode-se concluir que o dos deveres laterais, em especial ao dever de cooperação, tendo os con-
preço vil é um conceito aplicável à excussão judicial. Dessa forma, quan- traentes o dever praticar os atos necessários para que a relação jurídica
do se trata de leilão judicial, a hipótese de anulação do leilão, quando a alcance sua :finalidade, atendendo aos interesses do credor e do devedor.
venda for efetivada por lance vil, é bastante comum.Já em venda extra- Assim, em não havendo avaliação ou hasta pública, a venda das
judicial, ainda existe muita discussão. ações deverá buscar o preço condizente, acatando-se o princípio da me-
No que se refere ao preço de ações, inúmeros métodos podem ser nor onerosidade prevista no art. 805 24 do Código de Processo Civil.
empregados para :fixá-lo. Tomando-se emprestado o conceito da Lei das
S.A., o valor de avaliação de uma companhia pode ser apurado "com 4.3. As PROCURAÇÕES OU CLÁUSULAS MANDATO GERALMENTE
base nos critérios, adotados de forma isolada ou combinada, de patri- OUTORGADAS EM FAVOR DO CREDOR SÃO VÁLIDAS E PERMITEM
mônio líquido contábil, de patrimônio líquido avaliado a preço de mer- QUE O CREDOR REALIZE A EXCUSSÃO DA GARANTIA E ALIENAÇÃO
cado, de fluxo de caixa descontado, de comparação por múltiplos, de DAS AÇÕES A TERCEIROS?
cotação das ações no mercado de valores mobiliários" ao teor do art. 4°,
Uma das particularidades do contrato de alienação :fiduciária de
§ 4°, da Lei das S.A.
ações diz respeito a efetivação da transferência das ações. Nesse contex-
Apenas para esclarecer, a par desses critérios, que podem ser adota- to, é comum que o contrato contenha provisão sobre a possibilidade de
dos em conjunto ou isoladamente, outros critérios podem ser utilizados. o credor utilizar uma procuração em causa própria.
Qpalquer critério de avaliação envolve elementos subjetivos e depen-
de, dentre outros fatores, do setor de atuação da empresa, de seu porte 23 MARTINS-COSTA, Judith. A boofé no direito privado: critérios poro a sua aplicação. São Paulo:
e sua participação no mercado, bem como se já é uma empresa madu- Marcial Pons, 2015, pags. 381 e segs.
24 "Art. 805. Quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará
ra ou em crescimento. Qpanto aos critérios, tem-se que o fluxo de cai- que se faça pelo modo menos gravoso para o executado.
xa descontado traz a valor presente a capacidade da companhia de gerar Parágrafo único.Ao executado que alegar sera medida executiva mais gravosa incumbe indicar
outros meios mais eficazes e menos onerosos, sob pena de manutenção dos atos executivos
já determinados."
220 - ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE AÇÕES: QUESTÕES CONTROVERSAS Eu LORIA E DANIEL i<ALANSKY - 221

A procuração comum outorga poderes ordinários de representação. Parágrafo único. As dúvidas suscitadas entre o acionista, ou
A procuração em causa própria, por sua vez, além dos poderes de repre- qualquer interessado, e a companhia, o agente emissor de
sentação, também transmite direitos. Originária do direito romano, é ir- certificados ou a instituição financeira depositária das ações
revogável, sendo obrigação transmissível aos herdeiros 25 , de transmissão escriturais, a respeito das averbações ordenadas por esta Lei,
de direitos sobre bens móveis ou imóveis, que permite ao mandatário ou sobre anotações, lançamentos ou transferências de ações,
transferir o bem para si, ou seja, o procurador age como se coisa fosse partes beneficiárias, debêntures, ou bônus de subscrição, nos
sua. Hodiernamente, está prevista no art. 685 do Código Civil: livros de registro ou transferência, serão dirimidas pelo juiz
competente para solucionar as dúvidas levantadas pelos ofi-
"Conferido o mandato com a cláusula 'em causa própria', a sua
ciais dos registros públicos, excetuadas as questões atinentes
revogação não terá eficácia, nem se extinguirá pela morte de
à substância do direito." (grifo nosso)
qualquer das partes, ficando o mandatário dispensado de prestar
contas, e podendo transferir para si os bens móveis ou imóveis Os livros comerciais são equiparados a livros públicos, para efei-
objeto do mandato, obedecidas as formalidades legais." tos penais, consoante art. 297, § 2°til do Código Penal, e, desde o
Dessa forma, a procuração em causa própria tem por característi- Código Comercial de 1850, é exigido, por exemplo, o Diário como li-
cas: não poder ser revogada depois de outorgada (revogação sem eficá- vro obrigatório.
cia); não extinção do mandato com a morte; e, dispensa de prestação de Aponte-se que, em consonância com o art. 177 da lei societária, a
contas, devendo conter todos os elementos do negócio principal. companhia deverá manter registros permanentes, obedecendo "aos pre-
Assim, na alienação fiduciária de ações, em nosso entender, é válida ceitos da legislação comercial e desta Lei e aos princípios de contabilida-
a previsão contratual de outorga de procuração em causa própria, com de geralmente aceitos", observando em livros auxiliares as disposições da
poderes para efetivar a transferência das ações. lei tributária ou de legislação especial que afetem os critérios contábeis
geralmente utilizados, sendo que as companhias abertas deverão ainda
5. Ü REGISTRO DE TRANSFERÊNCIA NOS LIVROS DA COMPANHIA observar as normas expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários e
Uma vez analisadas algumas das principais controvérsias entre cre- serão obrigatoriamente submetidas a auditoria por auditores indepen-
dor e devedor em razão das cláusulas negociais do contrato de aliena- dentes nela registrados.
ção fiduciária de ações em garantia, passaremos, neste último capítulo, a O controle exercitável pela companhia - e, em última análise, pelos
debater como se dá o registro da transferência da propriedade das ações diretores que têm a incumbência de zelar pela regularidade dos livros
nos livros de registro da companhia. sociais - é, tal como ocorre com qualquer outro registro público, apenas
O registro dos livros sociais em órgãos competentes está previs- o de verificar a regularidade formal do negócio jurídico, sem jamais in-
to nos arts. 101 e 102 da lei societária. Qy.estão de profunda indagação gressar na análise de questões substanciais que digam respeito ao negó-
se refere à obrigatoriedade, ou não, de os administradores registrarem cio de base. Nesse sentido, ressaltou Comparato26 :
a transferência das ações nos livros da companhia, considerando o dis- "a competência da companhia, tal como a de qualquer oficial
posto no art. 103, § 1º, da LSA: de registro público, cinge-se ao exame formal dos documentos
"Art. 103. Cabe à companhia verificar a regularidade das que lhe são apresentados para inscrição; a um exame, pois, da
transferências e da constituição de direitos ou ônus sobre os legitimação em sua aparência documental"
valores mobiliários de sua emissão; nos casos dos artigos 27 e O registro de ações nominativas a ser realizado pela companhia em
34, essa atribuição compete, respectivamente, ao agente emissor livro próprio tem a mesma natureza dos atos praticados perante o regis-
de certificados e à instituição financeira depositária das ações tro público de empresas, e não se coaduna com qualquer critério de dis-
escriturais.
26 COMPARATO, Fabio Konder.As ações de sociedade anônima como valores mobiliários-natureza e
efeitos do registro acionário. in Novos ensaios e pareceres de direito empresarial, Rio de Janeiro:
25 FIUZA, Ricardo. Código Civil comentado. 6ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 631. Forense, 1981, p. 21.
Eu LORIA E ÜANIEL l<ALANSKY - 223
222 - ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE AÇÕES: QUESTÕES CONTROVERSAS

Inscrevem-se, isto sim, entre as atividades tidas como função


cricionariedade ou de análise de mérito daquilo que se está registrando. pública lato sensu, a exemplo das funções de legislação, diplomà-
A companhia, e sua administração só podem limitar-se à verificação dos cia, defesa nacional, segurança pública, trânsito, controle externo
critérios formais da transferência que se pretende realizar. e tantos outros cometimentos que, nem por ser de exclusivo
Como descrito no art. 103, parágrafo único, da Lei das S.A., caberá domínio estatal, passam a se confundir com serviço público."
ao Poder Judiciário a solução de dúvidas entre o acionista, ou qualquer A fé pública é inerente ao registro e a decisão da dúvida tem natureza
interessado, e a companhia. Observe-se que Requião 27 considerava um administrativa, não impedindo o uso do processo judicial. Caso o oficial
erro tal atribuição, entendendo que a Comissão de Valores Mobiliários de registro se negue a suscitar a dúvida, o apresentante poderá ingressar
poderia funcionar, no caso, como tribunal administrativo. Nesse ponto diretamente no juízo competente com pedido de dúvida inversa, com-
cabe destacar a exceção das "questões atinentes à substância do direito" provando ter requerido a dúvida ao oficial de registro e que este se ne-
ao final do parágrafo único. gou a suscitar a dúvida. Tal procedimento não está previsto na legislação,
Assim, as questões referentes às anotações irregulares serão dirimi- sendo admitido com fundamento no princípio da economia processual.
das pelo juiz da Vara dos Registros Públicos e, caso a questão seja relati- Na esfera da companhia, caberá a esta diligenciar para que os atos
va à substância do direito, ou seja, sobre o mérito, será competente o juiz de transferências e averbações nos livros sociais, sejam praticados no me-
da Vara Cível, em processo contencioso normal28 • Assim, questões refe- nor prazo possível, respeitando o princípio da eficiência.
rentes à capacidade das pessoas, nulidade do título, falsidade ideológica Entretanto, caso se perquira os deveres dos administradores, não se
ou material, responsabilidade por perdas e danos, extensão do usufru- encontra na lei societária o dever de dirimir dúvidas e conflitos entre o
to e a incidência de cláusulas onerosas devem ser tratadas em proces- acionista, ou qualquer interessado, e a companhia a respeito das averba-
so contencioso, respeitado o contraditório e decididas pelo juiz cível29 • ções ordenadas pela lei societária ou sobre anotações, lançamentos ou
No âmbito da lei de registros públicos, Lei 6.015/73, consoante arts. transferências de ações nos livros sociais de registro ou transferência.
198 a 204, quando o oficial de registro indicar uma exigência por escri- Considerando que a finalidade do registro público, nos termos do
to e o apresentante restar inconformado, será a dúvida remetida ao juízo art. 1° da lei dos registros públicos, é zelar pela autenticidade, segurança
para dirimi-la. Claro que o oficial deverá agir sempre de acordo com o e eficácia dos atos jurídicos, ou seja a presunção relativa de veracidade,
princípio da legalidade, verificando estar o título conforme a lei. Havendo a segurança jurídica a estabilizar as relações na sociedade e a garantir a
falta quanto aos requisitos do Código Civil, o oficial de registro deverá boa-fé dos partícipes, o registro que gere dúvidas deve ser evitado.
comunicar as exigências que entender necessárias, preferencialmente em
Nada obstante, não é função da companhia realizar juízo de valor
uma única vez, contemplando todos os aspectos considerados irregulares.
acerca do registro. Como verificado anteriormente, em caso de contro-
Note-se que os serviços notariais e de registro são exercidos em vérsia entre acionistas, a disputa deverá ser resolvida entre eles, deven-
caráter privado, por delegação do Poder Público, a luz do art. 236 3º da do a companhia realizar a análise estritamente formal dos atos levados
Constituição Federal, submetendo-se a um regime de direito público. a registro.
Vale transcrever voto do Ministro Carlos Ayres Brito na ADI 3.643,j,
08/11/2006: 6. CONCLUSÃO
"Numa frase, então, serviços notariais e de registro são típicas As cláusulas contratuais na alienação fiduciária de ações, tratando-se
atividades estatais, mas não são serviços públicos, propriamente. de relação não afeta ao Código de Defesa do Consumidor, devem pre-
27 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. Vai. 2. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 1982, 115. valecer e, como já dito, as partes deverão dispor detalhadamente sobre o
28 Modesto Carvalhosa, op. cit. p. 275. assunto, evitando inúmeras discussões quanto ao exercício do voto, re-
29 José Waldecy Lucena, op. cit. p. 945.
30 "Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do cebimento de dividendos e, em especial, ao procedimento de venda das
Poder Público." Observando-se o ADCT"Art. 32. O disposto no art. 236 não se aplica aos serviços
notariais e de registro que já tenham sido oficializados pelo Poder Público, respeitando-se o ações objeto de garantia.
direito de seus servidores."
224 - ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE AÇÕES: QUESTÕES CONTROVERSAS

Ainda assim, considerando-se que as partes, ao negociarem seus


contratos, muitas vezes não conseguem antever eventuais conflitos que
possam eventualmente surgir, é comum que venham a se deparar com
situações não previstas contratualmente.
Tendo por referência a alienação fiduciária de ações, alcançamos as
seguintes conclusões quanto às questões controversas suscitadas ao lon-
go do presente artigo:
o
exceto se previsto no contrato, inexiste "direito de preferência''
na alienação fiduciária de ações em garantia, previsão estabe-
lecida somente em lei especial referente à alienação fiduciária
de imóveis;
o procedimento de busca e apreensão de bens é inaplicável ao
regime da alienação fiduciária de ações em garantia, por se tra-
tar de bem incorpóreo;
inexiste previsão legal de que, depois de consolidada aproprie-
dade, o credor esteja obrigado a notificar o devedor acerca da
venda das ações e permitir que o devedor participe do proces-
so de venda das ações;
em caso de excussão de garantia, inexiste procedimento,judi-
Parte 2
cial ou extrajudicial, a ser observado pelo credor previamente INVALIDADES
à consolidação da propriedade plena;
• o credor fiduciário deverá buscar vender as ações a um preço
condizente, quando de sua alienação a terceiros; e
• a cláusula-mandato é estipulação válida, permitindo que ocre-
dor adote todas as medidas necessárias para excussão da ga-
rantia, venda das ações e adoção dos procedimentos registrais
competentes perante a companhia.
Por fim, verificamos que o registro da transferência das ações pela
companhia deverá ser efetivado de forma célere, inobstante o dever do
administrador de adotar uma postura cautelosa quando da ocorrência de
divergências e dúvidas suscitadas entre o acionista, ou qualquer interes-
sado, e a companhia, não devendo, contudo, em qualquer caso, realizar
juízo de valor acerca de eventual conflito, mas tão somente uma análise
formal do ato que se pretende registrar.
JUDITH MARTINS-C05fA - 227

1. EFEITOS OBRIGACIONAIS DA INVALIDADE: o CASO


DOS CONTRATOS VICIADOS POR ATO DE CORRUPÇÃO

Judith Martins-Costa1
"O negócio jurídico nulo não é, necessariamente, totalmente inefi-
caz, - só o é de regra" (PONTES DE MIRANDA, Francisco
Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo IV Rio de Janeiro:
Borsoi, 1954, § 380, 1).

INTRODUÇÃO
Contratos nascido!- de atos de corrupçãi' são, para o Direito brasileiro,
negócios jurídicos nulos. Assim ocorre quando as partes celebram negó-
cio jurídico movidas por motivo determinante ilícito, comum a ambas4,
pois, muitas vezes, a corrupção é o próprio contrato, que serve de instru-
mento para, por exemplo, lavagem de dinheiro, ou a formação de "caixa
dois". Igualmente, será nulo o negócio quando o objetivo for o de fraudar

Professora de Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande


do Sul (1992 a 2010). Livre-Docente e Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo. É
Presidente do Instituto de Estudos Culturalistas - IEC e membro da Academia Brasileira de
Letras Jurídicas, dentre outras associações. Advogada e sócia fundadora de Judith Martins-
Costa Advogados, atua como Parecerista e Árbitra. A Autora agradece aos Organizadores da
obra pelo convite a dela participar. Agradece também enormemente a Giovana Benetti, Rafael
Branco Xavier, Pietro Webber e a Luca Gianotti pelas discussões, sugestões, revisões e o auxílio
à pesquisa. Os agradecimentos se estendem a Carla Muller Rosa e a Luís Renato Ferreira da
Silva que leram a minuta e fizeram valiosas sugestões.
l 2 Acentua-se este aspecto porque se o ato de corrupção sobrevém a um contrato formado
validamente, poderá restar caracterizado o inadimplemento contratual (por exemplo, se o
contrato conter ou reenviar para normas decompliance empresarial). Então, o defeito estará no
plano da eficácia, inclusive podendo o inadimplemento apresentar-se pela violação positiva
do contrato.
3 Para o que se escreve neste artigo, a corrupção será tomada como fato jurídico lato sensu, não
se restringindo ao conceito que advém da tipificação penal. Nessa, a corrupção está tipificada
dentre os crimes contra a Administração Pública como "crime pelo qual funcionário solicita
ou recebe, em razão de sua função, vantagem indevida". Portanto, envolve necessariamente,
no polo passivo ou ativo, funcionário público, lato sensu considerado. No Código Penal brasi-
leiro a corrupção vem tipificada nos artigos 317 (corrupção passiva) e 316 (corrupção ativa ou,
mais tecnicamente, concussão), assim respectivamente enunciados: Art. 317 - "Solicitar ou
receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes
de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem".
Art. 316- Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou
antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida". Na primeira hipótese, o funcio-
nário solicita ou recebe, "para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da
função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida" ou aceita promessa de
tal vantagem (art. 317); na segunda hipótese, o agente corruptor oferece ou promete oferecer
"vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato
de ofício" (art. 333).
4 Código Civil, art. 166, Ili.
228 - EFEITOS ÜBRIGACIONAIS DA INVALIDADE: Ü CASO DOS CONTRATOS VICIADOS POR ••• JUDITH MARTINS-COSTA- 229

lei imperativa5 , ocorrendo, por exemplo, violação das regras legais que im- admiravelmente, a permitir a incidência do regime das nulidades a fatos
põem o prévio e probo procedimento licitatório 6• que assolam a sociedade por seus deletérios efeitos 11 •
Também assim acontece quando, ainda exemplificativamente, um A nulidade que atinge o contrato pode estar cominada em quais-
preposto de uma companhia, sabedor de que a empresa visa adquirir quer das instâncias pelas quais se espraia o Ordenamento. Carece lem-
um imóvel para ter expandidas suas instalações, combina com o vende- brar, porém, por sua centralidade ao Direito Privado, a regra do art. 166,
dor um "sobrepreço" ou "comissão", ambos induzindo a companhia em VII, do Código Civil, segundo a qual é nulo o negócio jurídico quan-
erro de modo a que essa pratique ato de disposição patrimonial, então do "a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem co-
se caracterizando a figura penal do estelionato 7, com o que se frauda no minar sanção" 12 . Ademais, da nulidade decorrem, ou podem decorrer,
Direito das Obrigações lei imperativa. Igualmente, em outro exemplo, consequências nos planos do Direito Penal, Administrativo, Societário
a corrupção levará à nulidade quando se verifica a conclusão de um ne- e Internacional Privado, no qual não são raras as decisões que versam
gócio ou de um conjunto de negócios aparentemente lícitos a fim de a nulidade de negócios contratuais por afronta à ordem pública inter-
contornar uma lei de natureza imperativa, de modo que o negócio (ou o nacional13. O que importa para as presentes notas é apenas apontar aos
conjunto de negócios) conduza a um resultado similar a outro que não seus efeitos no Direito das Obrigações.
é autorizado pelo Direito 8 • Ainda quando houver o vício da simulação9 Segundo reza o brocardo, quod nullum est nullum effectum producit-
que, no vigente Código, está na esfera da nulidade, não mais da anula- do ato nulo não nascem efeitos. Essa asserção, porém, não é nem rigoro-
bilidade. A plasticidade das regras introduzidas nos incisos III e VII do sa nem correta. Qyando se diz não decorrerem efeitos dos atos nulos, se
Código Civil de 2002 10 - e ausentes no Código revogado - presta-se, está a referir que deles não decorre a sua eficácia típica, isto é, os efeitos
normais aos quais o negócio estava predisposto. Não significa, de modo
5 Código Civil, ort. 166, VI. O negócio jurídico em fraude à lei é "uma das mais importantes ma-
nifestações da fraude à lei", explicita Ana Filipa Moraes Antunes, que sintetiza os plurívocos
algum, que as consequências fenomênicas de atos atingidos por defeitos
sign_ificados: fraudar a lei significa "violar indiretamente a lei"; "violar de modo oculto a lei"; em sua formação sejam irrelevantes para a Ordem jurídica. E há efeitos
"violar o espírito da lei"; atuar"em termos aparentemente lícitos ou formalmente válidos, mas
substancialmente inválidos" (ANTUNES: Ana Filipa Moraes. Negócio em fraude à lei". Em: não apenas porque mesmo nos atos nulos pode haver a eficácia mínima
SEQUEIRA, Elza Vaz de, e OLIVEIRA e SA, Fernando. Código Civil. Edição Comemorativa do de vinculação 14, mas, igualmente, porque a declaração negocial é rece-
Cinquentenário. Universidade Católica Editora. Lisboa, 2017, p. 161-187).
6 Lei 8.666, que regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal. Art. 2º, verbis: "As
ll Conquanto a profilaxia dessa doença social passe ao largo do Direito Privado, dependendo de
obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e lo- "políticas criminais internacionais" e mesmo de fortes políticas culturais e educacionais, certo
cações da Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente é que o Direito Privado não se esquiva de seu contágio, devendo suas categorias centrais estar
precedidas de licitação, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei".
aptas a fazer-lhe face. Muito especialmente o instituto da nulidade dos negócios jurídicos é
7 ~ódig? Penal, art. 171, verbis: "Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, confrontado com a realidade, por vezes estampada nos noticiosos dos jornais, por vezes cui-
induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio dadosamente engavetada em sombras. (Vide WUNDERLICH, Alexandre. Dos crimes contra
fraudulento". Como explica Miguel RealeJr, o estelionato "constitui um polinômio, composto a Administração Pública. Em: REALE Jr, Miguel. Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva,
pelos elementos ardil ou fraude, que induz ou mantém alguém em erro", sendo estabelecida,
2017, p. 923, nota 272).
"no p!ano psi_cológico uma re!ação_c~usal entre o ard(I e o erro~levando a pessoa à qual se dirige l2 Quando a lei comina expressamente a nulidade, tem-se a nulidade textual. Quando proíbe a
o ardil a praticar um ato de d1spos1çao, que conduz a obtençao de uma vantagem econômica sua prática, sem cominar sanção, tem-se, então, a nulidade virtual (art. 166, li e VII, segunda
ilícita de um lado e produção de um prejuízo patrimonial de outro". (REALEJr., Miguel. Direito parte). Quando a lei estabelece outra sanção que não a nulidade, deve-se entender que essa
Pena/Aplicado, São Paulo, RT, 1994, p. 102 e ss).
8 foi excluída. Na doutrina, vide: MELLO, Marcos Bernardes de. 6ª ed. Teoria do Fato Jurídico:
AN}"UNES, Ana FilipaMoraes. Negócio em fraude à lei. Em: SEQUEIRA, Elza Vaz de, e OLIVEIRA
Plano da Validade. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 94; THEODORO Jr, Humberto. Comentários
e SA, Fernando. Código Civil. Edição Comemorativa do Cinquentenário. Universidade Católica
Editora. Lisboa, 2017, p. 165. ao Novo Código Civil. Livro Ili. Volume Ili. Tomo 1, 3ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 2006,
9
p. 461-463.
CódÍfl? Civil, art. 167 "~ nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, Vide, exemplificativamente: Corte de Apelação de Paris. 10 de abril de 2018, nº 16/m82 (Alstom
se valido for na substancia e na forma". 13
10 Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: Transport SA &Alstom Network UK Ltd vAlexander Brothers Ltd); Sentença Final no Caso ICC 13515
(2013); Sentença Final no Caso ICC 8891 (1998).
1 celebrado por pessoa absolutamente incapaz; Trata-se da chamada "vinculação jurídica básica", verificada ainda antes que o contrato esteja
14
li - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto; apto a produzir a sua eficácia obrigacional típica, podendo ensejar, todavia, o nascimento de
Ili- o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito; deveres secundários e laterais. Vide: PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Trotado de
IV - não revestir a forma prescrita em lei; Direito Privado. Tomo XXXIX. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, § 4.268, 1, p. 36).
V- for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade; Esclarece, ainda, Paulo Lôbo: "O contrato quando for concluído existirá como ato, porque
VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa; o sistema jurídico satisfaz-se com a determinabilidade, e se tiver ultrapassado o plano da
validade (não for considerado nulo nem anulável) estará apto a produzir seus efeitos, assim
VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção que as condições fixadas, isto é, aceitação pelo terceiro da função de arbitrador e a fixação
230 - EFEITOS OBRIGACIONAIS DA INVALIDADE: 0 CASO DOS CONTRATOS VICIADOS POR ••• JUDITH MARTINS-COSTA - 231

bida pelo Ordenamento ao menos como fato jurídico 15 do qual decor- construção, ou mesmo em estágio avançado, o contrato for considerado
rerão outros efeitos, não necessariamente aqueles queridos pelas partes. nulo, quid iuris? A resposta segundo a qual o contrato desaparece pela
Ainda na vigência do Código Civil de 1916,recordava Serpa Lopes nulidade resposta não é incorreta, mas é insuficiente. Porque, e como, e
que, sendo função da nulidade tornar sem efeito o ato jurídico ou o ne- em qual extensão se deve retornar ao estado anterior? Qyal será o prin-
gócio jurídico, este "desaparece, como se nunca houvesse existido como cípio no qual se apoiará a pretensão restitutória, isto é, a pretensão a ver
negócio perfeito" e os "efeitos que lhe são próprios não poderão ter lugar". recomposto o estado patrimonial anterior à declaração de nulidade?
Advertia, contudo que "a nulidade, posto atue desta maneira, não se pode Buscarei responder a essas perguntas na Primeira Parte deste ensaio,
deixar de reconhecer que produz um fato jurídico" 16 • Consequentemente construindo caminhos com base na adaptação do regime geral das inva-
recomendava: "Se as vontades humanas construíram um negócio jurídico lidades e das atribuições patrimoniais destituídas de causa a essa especial
faltando um dos seus pressupostos necessários à sua integração, em razão hipótese de nulidade, qual seja, o contrato gerado_ po~ ato de cor~pç~o.
do que se produz a sua invalidade, por outro lado, essa criação inválida Subsequentemente, na Segunda Parte, minudenc1are1 as conse~u_enc_ias
não deixa de ser um fato jurídico, uma atividade que deve e é tomada atreladas à pretensão restituitória nas hipóteses em que os negoc10s Ju-
em consideração pelo Direito [ ... .].Ainda que por motivos diversos, os rídicos - e, especificamente, os contratos sinalagmáticos que vêm a ser
autores do negócio jurídico imperfeito penetraram no domínio do ius, declarados nulos - já foram total ou parcialmente executados, inclusive
pois, pretendendo realizar um ato jurídico, não chegaram senão a cons- para examinar se elementos subjetivos deverão ser considerados na de-
truir um fato, fonte de efeitos jurídicos [.. .]. E assim se explica uma série finição do que se deve restituir.
de consequências que a nulidade do negócio jurídico pode trazer, como
[... J o retôrno ao statu quo ante" 17 • 1. ÜS EFEITOS DO NULO
Como se dá, porém, esse retorno ao estado anterior? Qyal é a sua Dentre as consequências atípicas que podem ser atribuídas a um
extensão? Nos contratos instantâneos e naquela cuja execução apenas negócio jurídico inválido está o dever de restituir, decorrente do princípio
se está a iniciar o problema é de mais fácil resolução - com a nulidade da conservação estática dos patrimônios (i). Sobe ao proscênio a noção
o vínculo se desfaz e praticamente não deixa rastros no mundo natural jurídica de patrimônio, chave para a compreensão da extensão dos efei-
e no mundo jurídico. De modo similar ocorre naqueles em que a coisa, tos obrigacionais da nulidade (ii).
objeto indireto do contrato, pode ser devolvida. Mas qual é a solução na (1) A INVALIDADE DO CONTRATO, O DEVER DE RESTITUIR E O SEU
hipótese de não ser possível, faticamente, a devolução? FUNDAMENTO: O PRINCÍPIO DA CONSERVAÇÃO ESTÁTICA DO
Nos contratos cuja execução já se operou, a nulidade deixa rastros
PATRIMÔNIO
patrimoniais: se se tratar, por exemplo, de uma empreitada, já finda a
Há situações em que o negócio nulo gera relevante efeito, qual seja,
do preço, se consumarem. De qualquer forma, há vinculação das partes contratantes desde a
o efeito restitutório. Suponha-se que a construção de determinado préd~o
conclusão, o que importa efeito mínimo" (LÔBO, Paulo Luiz Netto. Comentáriosoo Código Civil: tenha sido ajustada entre empreiteiro e dono da obra. Uma vez conclm-
parte especial. Coord. Antonio Junqueira de Azevedo. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 41). Além do
mais, pode haver outras eficácias, algumas delas até mesmo típicas do negócio. Há exemplos da a obra - ou quase concluída-, venha a ser questionada a adstrição do
corriqueiros em matéria, por exemplo, de concursos públicos para o preenchimento de cargo contrato de construção a ditames legais imperativos, pretendendo-se a
regido pela CLT, cuja nulidade é decretada, nascendo, porém, efeitos transversais positivos
e negativos, como o cômputo de FGTS e a vedação a exigir a devolução dos salários pagos. sua nulidade. Sendo inválido o contrato, as partes devem retornar ao sta-
15 Recorda-se o conhecido ensaio de Alberto Trabucchi, hoje em: li contrato come fatto giuridico.
L'accordo. L'impegno. ln: li Contralto. Sillogi in onore di Giorgio Oppo. Cedam: Pádua, 1992, p.
tus quo ante. O prédio, porém, está lá, no mundo fático, fisicamente tan-
1-50, no qual destaco: "li contratto, questo fenomeno cosl presente nell'esperienza di ogni gível, erigido que foi em terreno de propriedade do dono da obra. Dele
giorno e di ciascuno di noi, especialmente da vedere come un fatto della vita giuridica, da
sottoporre come tale a regole per i suoi presupposti e per la sua efficacia". resultará, ao dono da obra, formidável acréscimo patrimonial. Tempo,
16 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil. Vol.1. 2ª ed. Rio de Janeiro: livraria Freitas expertise técnica e dinheiro foram nele empregados. Não há como r~-
Bastos, 1957, p. 503-504.
17 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil. Vol.1. 2ª ed. Rio de Janeiro: livraria Freitas tornar, faticamente, esses elementos ao patrimônio do construtor. Sena
Bastos, 1957, p. 503-504.
232 - EFEITOS ÜBRIGACIONAIS DA INVALIDADE: Ü CASO DOS CONTRATOS VICIADOS POR ...
JUDITH MARTINS-COSTA - 233

concorde ao Direito considerar que nenhuma consequência advenha do desde que haja causa de atribuição suficiente para tanto. Do contrário,
fato da construção ao empreiteiro? exsurge o dever de restituir.
Em outro exemplo, uma empresa petrolífera solicitou a determi- O deslocamento patrimonial importa numa operação econômica de cir-
nado Estado pagamento de verba que teria sido prevista em um acor- culação de riqueza, tal qual essa operação vem indicada por Enzo Roppo
do integrante de um complexo esquema contratual18• Descobriu-se que já nas primeiras linhas de seu livro Il Contralto, segundo o qual há ope-
o mencionado complexo contratual era puramente "ilusório", feito para ração econômica quando existe atual ou potencial transferência de ri-
contornar leis determinativas de políticas públicas do Estado envolvido. queza de um sujeito para outro, independentemente de considerações
Deveria, mesmo assim, ser feito o pagamento requerido? subjetivas, entendendo-se por "riqueza" não só o dinheiro ou bens ma-
Ou ainda: num leilão privado, o leiloeiro acede ao pedido de um teriais, mas, igualmente, "as utilidades suscetíveis de avaliação econômi-
dos participantes para arrematar o bem por um valor inferior ao que se- ca, ainda que não sejam 'coisas' em sentido próprio", incluindo, portanto,
ria razoável esperar, repassando certa "comissão" ao leiloeiro. Esse ne- até mesmo a promessa de fazer ou de não fazer qualquer coisa em bene-
gócio seria intangível? fício de alguém. Não se reduz, portanto, ao ato de troca ou intercâmbio,
Em todos esses casos, a resposta é claramente negativa. Entram em incluindo, também, o ato gratuito, de transferência sem correspectivo23 •
cena os princípios e as regras do Direito Restituitório 19, cujo fundamen- Dois aclaramentos se fazem necessários, o primeiro concernente ao
to ancora-se numa ideia singela - "ninguém deve locupletar-se à custa ajustamento do princípio em nosso sistema, e, o segundo, ao significado
20
alheia" - e num princípio, ou fundamento jurídico, por alguns deno- contextu ald a p alavra "causa" .
minado de "princípio do enriquecimento sem causa", mas que ora será
O princípio da conservação estática dos patrimônios, embora não
indicado como princípio da conservação estática dos patrimônios2 1 •
esteja expresso na littera do Código Civil, foi nele acolhido de modo
Pelo princípio da conservação estática do patrimônio, entende-se implícito, sendo, não raramente, confundido com o instituta2 4 do en-
que "o valor dos bens e direitos atribuídos a alguém e dos bens e direi- riquecimento sem causa previsto no Código Civil (arts. 884 a 886),
tos gerados a partir desses bens e direitos já atribuídos deve permanecer, tomando-se a espécie pelo gênero, em verdadeira operação verbal de me-
em princípio, no patrimônio desse alguém"22 • Dito de outro modo: para tonímia. Todavia, o que está no Título VII do Livro Ido Código Civil
o Ordenamento jurídico, prima facie, o patrimônio deve restar na esfe- são espécies que não esgotam - como logo se assinalará - as hipóteses
ra do sujeito, podendo deslocar-se, vindo a integrar patrimônio alheio, de remédios restituitórios admissíveis em nosso sistema25 • O fenômeno
18 Vide Sentença Final no Caso CCI 12990. da deslocação patrimonial por ausência de causa não se limita àquelas
19 Observa Michelon: "O estudo das medidas restituitórias pode ser simplesmente compreendido
como o estudo das condições nas quais uma atribuição patrimonial ocorrida em detrimento de
espécies, assim como se distinguem as hipóteses de restituição ao status
outrem pode gerar direito à restituição e o quanto desse enriquecimento deve ser restituído" quo ante em razão da invalidade (art. 182) e a do enriquecimento sem
(MICHELONJR., Cláudio. Direito Restituitório: enriquecimento sem causa, pagamento indevido
gestão de negócios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 29). ' causa (art. 884 a 886), embora ambas gerem a pretensão a restituir por-
20 CARVALHO SANTOS, João Manuel. Código Civil brasileiro interpretado. Vai. XII. 7ª ed. Rio de
Janeiro: Freitas Bastos, 1958, p. 377-400.
21 MIC~ELONJR.,_ C_láudi?. Direito Resti~uitório: en~iquecimento sem causa, pagamento indevido, 23 ROPPO, Enzo. O Contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Almedina:
gestao de negocios. Sao Paulo: Revista dos Tnbunais, 2007, p. 19-38. Também PONTES DE Coimbra, 1988, p. 7-15.
MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Tomo XXll.3ª ed. São Paulo: Revista O enriquecimento sem causa é, concomitantemente, _u_m instituto jurídico, co~ ~ua c~n_figu-
dos Tribunais, 1984, § 2.727-2.730, p. 227-235, Referi o tema em: MARTINS-COSTA, Judith; ração, pressupostos e efeitos tratados de modo espec1f1co (art. 884 e ss. do Cod1go Civil) - e
HAICAL, Gustavo. Direito Restituitório. Pagamento Indevido e Enriquecimento Sem Causa. um princípio jurídico, norma imediatamente finalís~ic~ e decorrente, P?r sua vez, do "p~in:í~io
Erro Invalidante e Erro Elemento do Pagamento Indevido. Prescrição. Interrupção e Diesa Quo. organizador" da conservação estática dos patrimomos. Nessa acepçao, ambos os pnnc1p1os
Parecer. Revista dos Tribunais, vol. 956, jun./2015, p. 257-295, Seja registrada, porém, a grande têm zonas de sobreposição, podendo ser admitido que o art. 884 do Código Civil enuncia um
controvérsi~ em sede doutrinária acerca da possibilidade, ou não, de haver um único princípio princípio geral que não se restringe ao instituto do enriquecimento sem causa. Just~mente
compreensivo de todos os grupos de casos em que surge a prestação à restituição fundada para evitar-se a confusão entre o princípio e o instituto é que se adotará, de ora em diante, a
no "principio do enriquecimento injustificado", como acena MEDI CUS, Dieter. Tratado de las denominação "princípio da conservação estática do patrimônio".
relaciones ob/igacionales. Vai. 1. Tradução espanhola de Ángel Martínez Sarrion. Barcelona. Ainda hoje há difundida na doutrina e na jurisprudência a sobreposição entre princípios e
Bosch 1995, p. 675.
22
institutos, seja para subsumir no princípio da conservação estática do patrimônio os seus
MICHELONJR,, Cláudio. Direito Restituitório: enriquecimento sem causa, pagamento indevido, particulares institutos (por vezes confundidos entre si), seja para classificar o instituto do
gestão de negócios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 29. enriquecimento sem causa, que é espécie, como gênero.
234 - EFEITOS ÜBRIGACIONAIS DA INVALIDADE: Ü CASO DOS CONTRATOS VICIADOS POR.,. JUDITH MARTINS-COSTA - 235

qu~ fun~a~as, ambas, numa deslocação patrimonial sem causa, tenha ja- de atribuição são, portanto, todos aqueles por meio dos quais uma parte
mais existido a causa, tenha deixado de existir. atribui algo a outra (ao próprio cocontratante ou a terceiro) ou as partes
Tecnicamente, consiste a deslocação patrimonial em todo o ato do negócio se atribuem reciprocamente algo 32 • ~ando, porém, se está
por virtude do qual se aumenta o patrimônio de alguém à custa de ou- diante de deslocação patrimonial sem causa justificadora, nasce o dever
trem, seja qual for a forma porque o aumento se opera26 • Comumente, de restituir, gênero composto por várias espécies.
há causa para tanto, sendo essa causa reconhecida pelo Direito. Por ve- Frequentes vezes a pretensão restitutória confunde-se com a preten-
zes, porém, não no há. O deslocamento patrimonial é sine causa. Daí a são indenizatória. A confusão é incorreta. A principal diferença33 está
razão de o Ordenamento contemplar diversos remédios restitutórios, de- no fundamento: as regras de indenização incidem se há um dano cau-
pendendo da razão pela qual determinado negócio é (ou tornou-se) sine sado por ato jurídico ilícito (absoluto ou relativo); o seu fundamento ou
causa. O tema é exaustivamente tratado no Direito Comparado de onde principium discriminationis radica na ideia segundo a qual todo o dano
vêm as expressões "remédios restitutórios" e "Direito Restituitório", como ilicitamente causado deve se tornar indemne (sem dano), como se não
está nos conhecidos trabalhos monográficos de Paolo Gallo 27 e Graham tivesse existido, razão pela qual o princípio é o da equivalência entre o
28
Virgo • Neles e ainda em outros- como oportunamente melhor referi- dano e a indenização ("princípio da reparação integral", Código Civil,
rei aborda-se exaustivamente a questão da ausência de causa e de atri- art. 944). Conquanto, em rigor técnico, não se deva falar em indeniza-
buição patrimonial como consequência da decretação de invalidade de ção se não houver dano (isto é: lesão a um interesse juridicamente pro-
um negócio. Na doutrina brasileira, Claudio Michelon tratou do tema tegido, em regra, derivado causalmente de um ato ilícito), a lei, muito
com integral proficiência ao versar três institutos do Direito Restitutório frequentemente, utiliza, de modo atécnico, a palavra "indenização" para
no Código Civil29 • aludir não a uma reposição consequente a um dano derivado de um ato
Por sua vez, o significado da palavra "causa"há de ser bem delimitado ilícito, mas a uma reposição do que migrara, sem causa, de um patrimô-
pois esse termo é fundamentalmente polifônico. No Direito Restituitório: nio para outro. É o que se verifica no art.182 do Código Civil34, o qual
trata-se de averiguar a causa de atribuição patrimonial. Esta é inconfun- prevê a hipótese não propriamente de uma ausência ab initio de causa,
dível com outras noções de causa, e.g., a "causa do contrato", noção tri- mas de uma causa que, existente, venha a desaparecer.
butária da concepção francesa e atinente a um elemento de validade do O que determina o art. 182 do Código Civil é que, com a invali-
30
negócio , a "causa fim", ou função prático-social ou econômico-social dade, passa a ser sine causa o deslocamento patrimonial, podendo quem
do negócio, ou a causa-motivo, ou, ainda, a causa fato jurídico (causa atribuiu pedir que lhe retorne a prestação, pois uma atribuição patri-
efficiens), isto é, a razão de ser do negócio. A causa de atribuição patri- monial que deveria ter justificação ("causa") ocorreu sem ter tido uma
monial concerne a uma investigação sobre a razão justificadora de uma causa válida. Trata-se do que Pontes de Miranda denomina de atribui-
determinada posição jurídica ativa, v.g., um direito subjetivo 31 • Negócios ção patrimonial defetiva de causa35 • É defetiva de causa não porque seja
ANTUNES VARELA,João de Matos. Das obrigações em geral. Vol.1. 10ª ed. Coimbra: AI medi na, abstrata, mas porque a causa deveria haver para justificar a atribuição
2008, p. 479.
27 GALLO, Paolo.1 Remedi Restitutori in Diritto Comparato. ln: SACCO, Rodolfo. Trattato di Diritta
patrimonial, mas não há, ou não há mais. Apesar de o art. 182 se referir
Comparato. Turim: UTET, 1997. literalmente à anulação, entende-se também ser aplicável o dispositivo
28 VIRGO, Graham. The Principies ofthe Law afRestitution. 3 ª ed. Oxford: Oxford University Press
2015. '
29 MIC:!ELONJR.: ~láud~o. Direito Restituitório: enriquecimento sem causa, pagamento indevido, 32 Assim, FLUME, Werner. E! Negocio}uridico. Tradução espanhola de José Maria Miquel González
gestao de negocios. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. e Esther Gomez Calle. Madrid: Fundacíon General dei Notariano, 1998, p. 193.
Assim anot~ AZEVEDO, Antonio Junqueira. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. São 33 Há, ainda, outras diferenças, v.g., no prazo prescricional, se a pretensão indenizatória estiver
Paulo: Sa:,a1va, 2.~~2, p.154. Regi~tre-se que, após a recente reforma do Direito das Obrigações, fundada no inadimplemento de um contrato.
a palavra cause nao aparece mais no art. 1.128 do Code Civilfrançais como condição de validade 34 Corretamente, distingue Fabiano Menke: "A indenização do equivalente diz respeito mais à
do ,;ontra~o, como consta~a na re~aç~o original do art. 1.108. Vem suposta, todavia, na noção realização da restituição do que foi negociado, do que propriamente a uma reparação" (MENKE,
de conteudo do contrato , como indica: BENABENT, Alain. Droitdes obligations. 15ª ed. Paris: Fabiano. Comentário ao art. 182. ln: NANNI, Giovanni (Coord.). Comentários aa Código Civil:
LGDJ, 2016, p. 127. Direito Privado contemporâneo. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 290).
31 MIC:!ELONJR.: ~láud~o. Direito Restituitório: enriquecimento sem causa, pagamento indevido, 35 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo XXVI. Rio de
gestao de negocios. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 212. Janeiro: Borsoi, 1971, § 3135, 1, p. 128
236 - EFEITOS ÜBRIGACIONAIS DA INVALIDADE: Ü CASO DOS CONTRATOS VICIADOS POR .•• JUDITH MARTINS-COSTA - 237

a hipóteses de nulidade36 , isto é, a todas as espécies da invalidade, não se ções terão de ser restituídas reciprocamente40 • É o que se lê, exemplifi-
devendo pensar "que a regra nele contida se destina apenas aos negócios cativamente, na doutrina de Martinho Garcez41 Zeno Veloso 42 , e, mais
anuláveis que tenham sido anulados, quando, na verdade, ela se aplica a recentemente, Fabiano Menke 43 e Rodrigo da Guia Silva44 •
todos os casos em que o negócio seja invalidado"37 , vale dizer: nulifica- Essa operação voltada a restabelecer a situação anterior - seja in
do e anulado, pois o termo invalidação "tem um sentido amplo, abrange natura, seja, quando impossível, por meio de uma restituição em dinhei-
quaisquer circunstâncias em que o negócio apresenta desconformidade ro - aproxima-se da ficção de se promover a "exécution à rebours" ou o
com a lei, contém vícios ou defeitos mais ou menos graves ou intensos, "contrat à l'envers", ensinando Ghestin que, idealmente, a restituição de-
o que determina a nulidade ou a anulabilidade do mesmo e, respectiva- verá concernir aos mesmos sujeitos e ao mesmo objeto da relação deri-
mente, a nulificação ou a anulação"38 , muito embora na nulidade a cau- vada do contrato que veio a ser invalidado45 • Sendo o negócio nulo, mas
sa que se pensava existir não existia.
produzindo efeitos concretos entre as partes, aponta Giovanni Nanni no
Verificado algum vício ou defeito ensejador de invalidade, o pedido tocante ao Direito brasileiro, "deverá o direito evitar que uma das partes
a ser deduzido em ação anulatória do negócio jurídico é, efetivamente, de possa auferir uma vantagem patrimonial indevida"46 • A restituição recí-
restituição, pois a sentença proferida tem eficácia constitutiva negativa. proca faz com que o direito, a pretensão, a ação, ou a exceção, que, em
''Após ela", esclarece Pontes de Miranda, "não há o nulo, mas o nada, o virtude do ato jurídico inválido, passara ao patrimônio do disponente,
inexistente", com o que, após a sentença, "não há diferença entre o que seja tida "como se nunca tivesse saído dêle" 47 •
se desconstituiu como nulo e o que se desconstituiu como anulável"39 • Pela invalidação nasce, pois, o dever de restituir, restabelecendo-se
Assim, nulificado o contrato e por isto desaparecendo a causa justifica- "o anterior estado de coisas, isto é, o estado em que se achavam os bens
dora das atribuições patrimoniais feitas, ambas as partes podem "recu- da vida, num e noutro patrimônio"48 • Trata-se de hipótese do nascimen-
perar" (por via do cumprimento do dever de restituição) as prestações to do dever de restituir por "faltar qualquer legitimação do figurante do
feitas em razão do contrato. Justamente nesse ponto distinguem-se as negócio jurídico nulo ou anulável a ficar com o que recebeu" 49 , podendo
consequências operadas pela invalidação de contrato cujas obrigações
40 VELOSO, Zeno. lnvolidodedo negócio jurídico: nulidade e anulabilidade. 2ª ed. Belo Horizonte:
ainda nãoforam cumpridas e de outro já executado. Na primeira hipótese, Dei Rey, 2005, p. 334; THEODORO JR., Humberto. Comentários ao Novo Códigf! Civil. Vo(.111.
o vínculo se desfaz e praticamente não deixa rastros no mundo natural Tomo 1. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 620. Note-se que, quando nao se ª?~1ta a
incidência do art. 182 às hipóteses de nulidade, restringindo-a aos casos de anulabd1dade,
e no mundo jurídico. Na segunda, com a execução promovida por uma ainda assim a consequência seria idêntica se invocado o art. 884 por analogia.
41 GARCEZ, Martinho. Dos nulidades dos atosjurídicos. 5ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 252.
ou por ambas as partes, há rastros, que terão de ser apagados: as presta- 42 Como destacado pelo Autor, tem-se "autêntica liquidação entre as partes" (VELOSO, Zeno.
Invalidade do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade. 2ª ed. Belo Horizonte: Dei Rey, 2005,
p. 334). ( d) , . C 'd·
43 MENKE, Fabiano. Comentário ao art. 182. ln: NANNI, Giovanni Coor .. Comentonosoo o 190
Civil: Direito Privado contemporâneo. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 290.
36 Na vigência do Código anterior, v. SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil. 2ª ed. 44 SILVA, Rodrigo da Guia. Enriquecimento sem cousa. As obrigações restitutórias no direito civil.
Vol. 1. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1957, p. 512; RODRIGUES, Silvio. Curso de Direito São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 244 e ss.
Civil. Vol.1- Parte Geral. 31ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 298 (embora referindo à ideia da 45 GHESTIN,Jacques; LOISEAU, Grégoire; SERINET, Yves-Marie. La Formation du Contrat: l'objet et
"indenização" ao invés da "restituição"). Sobre o Código de 2002: VELOSO, Zeno. lnvolidode la cause - les nullités. Tome 2. 4ª ed. ln: GHESTIN,Jacques (Ed.). Troité de droitcivil. Paris: LGDJ,
do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade. 2ª ed. Belo Horizonte: Dei Rey, 2005, p. 150; 2013, p. 1.542. No original: "Pour décrire l'opération de retour au statu quo ante on a l'habitude
THEODORO JR., Humberto. Comentários ao Novo Código Civil. Vol. Ili. Tomo 1. 3ª ed. Rio de d'utiliser les formules évocatrices d'«exécution à rebours, ou de «contrai à /'envers». Dans l'idéal,
Janeiro: Forense, 2008, p. 618; DELGADO, José; GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel. Comentários la restitution devrait donc concerner les mêmes sujeis et avoir le même objet que l'exécution
ao Código Civil Brasileiro. Vol. 11. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 818; BDINE Júnior, Hamid du contrat nul. Mais ce schêma simpliste ne rend pas compte de toutes les complications
Charaf. Efeitos do negócio jurídico nulo. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 111; TEPEDINO, Gustavo; rencontrêes".
BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado. Tomo NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem Cousa. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 392.
1. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p.332; SILVA, Rodrigo da Guia. Enriquecimento sem couso. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Trotado de Direito Privado. Tomo IV. Rio de Janeiro:
As obrigações restitutórias no direito civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 246. Borsoi, 1954, § 413, 3, p. 222. Na doutrina portuguesa, vide CAMPOS, Diogo José Paredes Leite
37 VELOSO, Zen o. Invalidade do negócio juridico: nulidade e anulabilidade. 2ª ed. Belo Horizonte: de. A subsidiariedode da obrigação de restituir o enriquecimento. Coimbra: Almedina, 2003, p.
Dei Rey, 2005, p. 150. 368.
38 VELOSO, Zeno. lnvolidodedo negócio jurídico: nulidade e anulabilidade. 2ª ed. Belo Horizonte: PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Trotado de Direito Privado. Tomo IV. Rio de Janeiro:
Dei Rey, 2005, p. 150. Borsoi, 1954, § 424, 2, p. 252.
39 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Trotado de Direito Privado. Tomo IV. Rio de Janeiro: 49 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Trotado de Direito Privado. Tomo XXVI. Rio de
Borsoi, 1954, § 424, 1, p. 252. Janeiro: Borsoi, 1971, § 3.135, 3, p. 129.
238 - EFEITOS ÜBRIGACIONAIS DA INVALIDADE: Ü CASO DOS CONTRATOS VICIADOS POR .••
JUDITH MARTINS-COSTA - 239

a restituição ou ser in natura ou pelo equivalente pecuniário, como está o da convenção acordada55 • Isto é: sendo um arrendamento
em consagrada doutrina oriunda de vários sistemas jurídicos5º. Este é um declarado nulo, deve o 'senhorio' restituir as rendas recebidas
e o 'inquilino' o valor relativo ao gozo do que disfrutou e
po~to _d~ ca?it_al importâ~cia: o retorno. ao statu quo ante dá-se no pla-
que equivale, precisamente, às rendas. Ambas as prestações
no ;urzdico, e dizer: se, faticamente, a restituição ao estado anterior não
restituitórias se extinguem, então por compensação, tudo
puder ocorrer, como na hipótese, acima cogitada, de o prédio já ter sido
funcionando, afinal, como se não houvesse eficácia retroativa,
construído, haverá que restituir pelo equivalente em pecúnia tudo aquilo
nestes casos" 56 •
que, em razão do negócio invalidado, saiu do patrimônio do construtor
Considera-se que, não sendo possível repor as coisas no estado an-
para o patrimônio do dono da obra, que ficará com a edificação, com-
pensando-se os respectivos créditos51 . terior, "como uma máquina do tempo que fizesse tudo voltar ao passa-
do, riscando a época que passou, apagando o que aconteceu", devem as
.. ~ambém assim é_no Dir_eito português. O art.289, 1,do seu Código partes voltar ao estado anterior,jictamente, recebendo o equivalente, em
Civil, mserto em secçao destmada a regrar as hipóteses de nulidade e de
pecúnia, ao que prestaram, funcionando a restituição pelo equivalente
anulabilidade do negócio jurídico, determina, quanto aos seus efeitos: como sucedâneo da restauração57 • Esta volta ao estado anterior é volta
"Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efei-
ao estado patrimonial anterior à declaração de nulidade. O tema é deli-
to retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado, ou, 58
cado, envolvendo problemas comumente associados à volta ao passado •
se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente"52 •
Entra em cena a compreensão do que seja o patrimônio.
Como anotaram Pires de Lima e Antunes Varela, "a restituição em es-
pécie, após a declaração de nulidade ou a decretação da anulação do ne- (11) A NOÇÃO JURÍDICA DE PATRIMÔNIO
gócio, não é possível e muitos casos: pode a coisa ter sido consumida ou É preciso atentar ao distingua: não são propriamente os bens que
ter desaparecido, e pode ter-se constituído sobre um direito de terceiro compõem o patrimônio, mas os direitos sobre estes. Ao se referir que "a
que deva ser respeitado (... )". Nesses casos, prelecionam, haverá a resti~ casa" está no patrimônio de A, quer-se dizer que o direito de proprieda-
tuição em valor"53 • Esclarece ainda Menezes Leitão que a invalidade de de da casa está no patrimônio de A. Há elipse, solvida há muitas déca-
negócio jurídico constitui uma hipótese de restituição de prestações54- o que 61
das por autores de peso, como von Tuhr5 9 , Larenz60 , Galgano , Galvão
também é apontado por Menezes Cordeiro, segundo o qual:
"Nos contratos de execução continuada em que uma das partes
beneficie do gozo duma coisa - como no arrendamento - ou de
serviços, como na empreitada, no mandato ou no depósito - a 55 Salvo, como se verá adiante, se a nulidade provém da corrupção, sendo então recomendável
utilizar-se o valor de mercado, e não o valor contratual, pois este muito provavelmente estará
restituição em espécie não é, evidentemente, possível. Nessa inflado em razão do ato ilícito.
altura, haverá que restituir o valor correspondente ao qual, 56 MENEZES CORDEIRO, Antonio. Trotado de Direito Civil. 4ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p.
935-937. Destaquei.
por expressa convenção das partes, não poderá deixar de ser 57 Similarmente, VELOSO, Zeno. lnvolidade do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade. 2ª ed.
Belo Horizonte: Dei Rey, 2005, p. 335.
58 Em passagem na qual faz referência ao pensamento de Jambu-Merlin (Essai surla rétroactivité
50 Al~m _dos autores a_té a_qui citados, também assim se verifica na doutrina francesa, e.g.: "Le danslesactesjuridiques), observa, a propósito,Julio Gomes: "Uma vez que o Direito, na realida-
pr'.nc1pe de la rest1tut1on en valeur, en tant qu'alternative à la restituition en nature est de, nunca pode alterar o passado, mas, tão-só, dispor para o futuro, qualquer retroactividade
auJourd'h~i clairementcon,sac_ré". GHESTIN,Jacques; LOISEAU, Grégoire; SERINET, Yves-M~rie. implica uma ponderação de interesses e encontra limites, por ex., no respeito a certas situações
La Formation du Contrat: 1obJet et la cause les nullités. Tome 2. 4ª ed. ln: GHESTIN Jacques adquiridas, da tutela da aparência e de atividades e prestações que se prolongaram durante
(Ed.). Troité de droitcivil. Paris: LGDJ, 2013, p. 1.576. ' um certo período. (GOMES,Julio Manuel Vieira. O conceito de enriquecimento, o enriquecimento
51 M~N_EZES_C_ORDEIRO: Antonio. Trotada de Direita Civil. 4ª ed. Coimbra: AI medi na, 2014, p. 936. forçado e os vários paradigmas do enriquecimento sem causa. Universidade Católica Portuguesa
52 Cod1go Civil portugues, art. 289, 1. Destaques meus. Editora, 1998, p. 581).
53 A~TUNES ~ARELA e PIRES DE LIMA. Código Civil Anotado. Vol.1. 4ª ed., revista e atualizada. 59 VON TUHR, Andreas. Derecho Civil. Vai. 1. Tradução espanhola. Madrid: Marcial Pons, 1998, §
Re1mpressao. i.yolters Kluver- Coimbra Editora, 2010, p. 265 18, li, p.319.
54 MENEZES LEITAO, ~uis :vianuel Teles de. O Enriquecimento sem Causa na Direita Civil. Lisboa: 60 LARENZ, Karl. Derecho Civil. Parte General. Tradução espanhola de Miguel lzquierdo y Macias-
Centro d: Estudos F1sca1s, 1996, p. 460; RESK, María Emília Lloveras de. Trotado Teórico-práctico Picabea. Madrid: EDERSA, 1978, p. 405.
de los nubdodes. Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1985, p. 115. 61 GALGANO, Francesco. Diritto Privato. 10ª ed. Padova: Cedam, 1999, p. 189.
240 - EFEITOS ÜBRIGACIONAIS DA INVALIDADE: Ü CASO DOS CONTRATOS VICIADOS POR •• , JUDITH MARTINS-COSTA - 241

Telles 62 e, entre nós, Clóvis Bevilaqua63 , Pontes de Miranda64 e Francisco vos, os direitos a prestações de valor pecuniário com base no direito de
Amaral65 , dentre outros 66 • O patrimônio é uma universalidade de direi- família. Há por igual patrimonialidade nas situações jurídicas daqueles
to. Há muito está sepultada a concepção segundo a qual o patrimônio que "expectam" algo de outrem, pois o direito expectativa sujeita o de-
é "massa de bens", "conjunto de bens" afeito a uma pessoa, não só pela vedor ao dever de sofrer o nascimento do crédito 71 •
doutrina, mas pelo próprio Código Civil ao definir a universalidade de Não há nessa noção nenhuma novidade ou excentricidade. Já o
direito, no art. 91, como "o complexo de relações jurídicas de uma pessoa, Código Civil de 1916 definia: "O patrimônio e a herança constituem coi-
dotadas de valor econômico"67 • Este complexo é composto por direitos, sas universais, ou universalidades, embora não constem de objetos materiais"72 •
ações, pretensões, exceções e a própria posse. Conquanto ali ainda empregada a palavra "coisas", ao comentar essa regra
A elipse acima destacada é relevante para a compreensão dos ele- (correspondente ao vigente art. 91) Bevilaqua, esclarecera: "Patrimonio
mentos constitutivos do patrimônio. São eles os direitos dotados da é o complexo de relações jurídicas de uma pessoa, que tiverem valor eco-
possibilidade de valoração econômica, sejam incidentes sobre bens mate- nomico. Nelle se compreendem os direitos privados economicamente
riais, como uma casa, ou imateriais, como a energia elétrica, albergan- apreciaves (elementos activos) e as dividas (elementos passivos)". E ao
do também as pretensões68 • No patrimônio, assenta Pontes de Miranda, tratar de seus elementos, arrolava: "Incluem-se no patrimônio: 1 ° a pos-
"só há direitos. Não se pode dizer, em terminologia e sistemática jurídi- se; 2° Os direitos reaes; 3° Os obrigacionais; 4°. As relações econômicas
ca escorreitas, que a casa A é elemento do patrimônio de alguém; o que do direito de família; 5° .As acções correspondentes a esses direitos" 73 • E ano-
é elemento do patrimônio é o direito de propriedade sobre a casa N..' 69 • tava então o Codificador de 1916 que a regra ali fixada "[e]ra principio
Constituem elementos do patrimônio, dentre outros, a propriedade ensinado pela doutrina" 74 •
e os demais direitos reais, os direitos sobre bens imateriais, o lucro70 , os Não há dúvida em que os direitos de crédito sejam dotados de pa-
direitos de crédito e a herança, que, por sua vez, é universalidade de di- trimonialidade. A categoria do direito patrimonial é uma aplicação da
reito; os direitos decorrentes da posse; os direitos intelectuais; o direito ideia genérica de direito subjetivo 75 • "Es evidente", assegura Díez-Picazo,
à marca de fábrica, ao nome; o direito de comuneiro, a ação de socieda- "que una relación jurídica es patrimonial cuando versa sobre bierres o
de civil, os poderes, como os direitos potestativos, os direitos formati- intereses que posean una naturaleza económicà'. Os direitos de crédi-
62 GALVÃO TELLES, Inocêncio. Introdução ao estudo do direito. Vol.11. 10. reimpressão. Coimbra: to - dentre os quais se incluem os direitos a uma prestação e os direitos
Coimbra Editora, 2010, p. 195.
63 BEVILAQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado. Vol. 1. 2ª ed. Rio de
a obter de outrem a entrega de uma soma em dinheiro - integram, in-
Janeiro: Francisco Alves, 1921, p. 277-278. controversamente o patrimônio.
64 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Trotado de Direito Privado. Tomo V. Rio de Janeiro:
Borsoi, 1955, § 595-597, p. 365-383. Estas noções importam para que se possa identificar o que, ao tem-
65 AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 455-457.
66 Permito-me reenviar, para uma síntese da doutrina acerca do tema, a MARTINS-COSTA, po, da invalidação do negócio - se esta for procedida-, deve ser reposto
Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Vol. V. Tomo li. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, no patrimônio do titular do direito à restituição, por via da restituição
p.267-268.
67 Destaquei. No comentário a esta regra, anota o Ministro Eduardo Ribeiro: "A universalidade derivada da invalidação.
de direito contempla relações jurídicas. Enfatize-se que não se trata do conjunto de bens de
que alguém seja titular, mas do conjunto daquelas relações" (RIBEIRO, Eduardo de Oliveira.
Comentários ao Novo Código Civil. Vol. li. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 81).
68 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo XXII. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Borsoi, 1958, § 2.680, p. 15; e Tomo V. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, §§ 595-597, p.
365-383. Também LARENZ, Karl. Derecho Civil. Parte General. Tradução espanhola de Miguel
lzquierdo y Macias-Picabea. Madrid: EDERSA, 1978, p. 405 e 406.
69 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo V. Rio de Janeiro: 71 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo V. Rio de Janeiro:
Borsoi, 1955, § 596, 1, p. 369. Borsoi, 1955, § 577, p. 287.
70 Aqui entendido em sua acepção ampla:"[...] toda vantagem ou utilidade, que se possa ter ou 72 Código Civil de 1916, art. 57- Destaque meu. .
tirar de alguma coisa, ou de um negócio.[...] Dessa maneira, tudo o que venha a beneficiar a 73 BEVILAQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado. Vol. 1. 2ª ed. Rio de
pessoa, trazendo um engrandecimento ou enriquecimento a seu patrimônio, seja por meio Janeiro: Francisco Alves, 1921, p. 277-278.
de bens materiais ou simplesmente de vantagens, que melhorem suas condições patrimoniais, 74 BEVILAQUA, Clóvis. Código Civil dos Estadas Unidos do Brasil Comentado. Vol. 1. 2ª ed. Rio de
entende-se um lucro" (DE PLÁCIDO ESILVA, OscarJoseph. Vocabulório]urídico. Vol.111. Forense: Janeiro: Francisco Alves, 1921, p. 277. Os destaques são meus.
São Paulo, 1967, p. 967). 75 DÍEZ-PICAZO, Luis. Fundamentos dei Derecho Civil Patrimonial. Madrid: Tecnos, 1972, p. 50.
242 - EFEITOS ÜBRIGACIONAIS DA INVALIDADE: Ü CASO DOS CONTRATOS VICIADOS POR ... JUDITH MARTINS-COSTA - 243

11. Do MONTANTE A RESTITUIR exemplo, de obras ou serviços que não possam, faticamente, retornar ao
patrimônio do seu titular, quid iuris?
Uma vez declarada a nulidade do contrato, se há de averiguar o que
saiu, ex contractu (enquanto ainda não decretada a sua nulidade), dopa- Cogite-se, para exemplificar, de um contrato de empreitada. Ares-
trimônio das partes, perquirindo-se, ademais, sobre a existência, ou não, tituição abrangeria, grosso modo, fornecimento dos materiais, mão de
de elementos ativos, consistentes em direitos de obter a entrega de uma obra e remuneração por serviços; numa compra e venda tornada nula,
soma em dinheiro pelas atividades prestadas que não possam retornar in abarca a coisa vendida, o preço por ela pago e despesas feitas em razão
natura ao seu patrimônio, como materiais que se incorporam por aces- do contrato; numa locação, atinge a posse do bem locado e o valor dos
são numa obra feita, créditos pelo fornecimento de serviços e projetos, alugueres pagos, bem como as prestações secundárias dotadas de valor
trabalho físico e intelectual. Uma pergunta fundamental diz respeito ao patrimonial; num contrato de parceria de atleta de futebol há direito à
conteúdo do dever de restituir e à consideração, ou não, de elementos devolução das quantias eventualmente adiantadas pelos contratantes,
subjetivos no cálculo do montante (i). O meio tecnicamente adequado "independentemente de requerimento expresso nesse sentido",já que "o
para concretizar a restituição é a relação que vem a substituir a relação provimento jurisdicional de decretação de nulidade do ajuste contém em
contratual extinta por força da nulidade, a qual pode ensejar, se sinalag- si eficácia restitutória (... ) e liberatória", como já bem decidiu o STJ7 8 •
mático for o contrato, o cômputo pelo saldo (ii). Em qualquer caso, a fonte deste dever de restituir já não será o contrato
(que, invalidado, deixou o mundo jurídico), mas o fato jurídico do des-
(1) Ü CONTEÚDO DE DEVER DE RESTITUIR: SEU CARÁTER OBJETIVO locamento patrimonial sem causa ("causa defectiva").
E A RELEVÂNCIA DO BROCARDO IN PARI C4USA TURPITUD/NIS Logo, em tendo em conta a hipótese de contratos nulos que foram
CESSAT REPETITJO executados, total ou parcialmente, há que proceder ao retorno - fático
O dever de restituição predisposto no art. 182 do Código Civil tem ou jurídico - do que saiu do patrimônio dos figurantes do negócio. A
natureza legal, prevalecendo sobre a pretensão ao enriquecimento injus- quantificação do montante a retornar deverá observar, como parâmetro,
tificado, cujo caráter é subsidiário (Código Civil, art. 886) 76 • Trata-se de o que saiu do patrimônio em razão do contrato invalidado, basicamen-
conclusão "tão consolidada na doutrina nacional" que, "mesmo diante te: serviços, materiais, obras e expertise, cujo valor terá como paradig-
da redação pouco clara dos artigos 177 e 182 do Código Civil, prevalece ma o valor de mercado, pois, no caso de invalidação decorrente do fato
o reconhecimento de que a pronúncia de qualquer espécie de invalida- da corrupção, os preços contratuais comumente estão inflados em ra-
de (nulidade ou anulabilidade) implica o surgimento das mencionadas zão da própria corrupção ("sobrepreço"; "superfaturamento" 79 ). A razão
obrigações restitutórias" 77, as quais serão recíprocas, se sinalagmático ti- pela qual se deve aplicar o "valor do mercado" está em que os contraen-
ver sido o contrato invalidado. tes não puderam determinar licitamente o valor dos bens trocados. Não
Se a execução do contrato nulificado ou anulado não chegou a ter há, portanto, verdadeiramente, sinalagma genético80 • Integra o quantum
lugar, sem que tenha havido o transpasse patrimonial, a solução é sim-
78 STJ, REsp. n. 1.611.415. Rei. Min. Marco Aurélio Belizze, j. em 21.02.2017.
ples: a nulidade provocará a extinção do contrato como se nunca tives- 79 No atinente aos contratos de Direito Administrativo, a Lei 13.303/16, que dispõe sobre o es-
tatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias,
se tido lugar. Porém, se a execução já começara, com a realização, por estabelece critério distintivo no art. 31, §1º, inc. l, li e suas alíneas.
80 O sinalagma genético "é a acorda das partes sobre um plano obrigacional conjunto[. ..} é a vontade
das partes de estabelecer um vínculo entre prestação e contraprestação que se encontra no suporte
76 A pretensão subsidiária pode, todavia, ser exercitada se a mera obrigação de restituir não fático dos contratos sinalagmáticos [. . .} os institutos ligados ao sina/ogma genético avaliam a
assegurar que todas as deslocações patrimoniais havidas em razão do contrato que veio a admissibilidade do vinculação recíproca das partes nos termos acordados". Eobserva: "Situações
ser invalidado tenham sido devolvidas. Vide, a propósito: PONTES DE MIRANDA, Francisco como a incapacidade das partes, ilicitude do objeto, coação, dolo, lesão e estado de perigo
Cavalcanti. Tratada de Direito Privado. Tomo XXVI. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, § 3.135, 3, p. 130. impedem que as partes possam juridicamente valorar a prestação e contraprestação. Assim,
MENEZES CORpEtRO, Antonio. Tratado de Direito Civil. 4ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 937; nesses casos, o ordenamento adota um critério neutro para fins do direito restituitório: o
MENEZES LEITAO, Luís Manuel Teles de. O Enriquecimento sem Cousa no Direito Civil. Lisboa: valor do mercado. A restituição derivada da resolução contratual, por outro lado, parte da
Centro de Estudos Fiscais, 1996, p. 469. equivalência fixada pelas partes, já que elas foram juridicamente capazes de determinar o
77 SILVA, Rodrigo da Guia. Enriquecimento sem causa. As obrigações restitutórias no direito civil. valor das prestações realizadas" (Assim está em GIANNOTTI, Luca. Perfil dogmático da exceção
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 246. de inseguridade. Tese de conclusão de curso, USP, São Paulo, 2020, p. 82).
244 - EFEITOS ÜBRIGACIONAIS DA INVALIDADE: Ü CASO DOS CONTRATOS VICIADOS POR ••• JUDITH MARTINS-COSTA - 245

a restituir não apenas o valor do material físico, mas, igualmente, o cré- Urna questão relevante diz respeito à consideração, ou não, do ele-
dito por remunerações devidas em razão de serviços prestados, proje- mento subjetivo - é dizer, a conduta do agente ou dos agentes da nulida-
tos elaborados, etc. de - no que diz respeito à determinação do objeto da restituição e de
Para exemplificar ainda com o contrato de empreitada, recorde-se sua extensão 86 • No Direito das Obrigações, parece equivocado afastar a
que, segundo a praxe do setor, a remuneração do empreiteiro normal- restituição - efeito da invalidação - por considerações de ordem subje-
mente é dita "lucro", mas o sentido a ser atribuído a esse termo não se tiva. Não há por que misturar com investigações sobre a culpa, a boa ou
confunde com o sentido comum, equivalente a "vantagem especulativa" a má-fé, pois o que se investiga é a causa - ou sua falta. Trata-se, a rigor,
nem com o econômico, corno "rendimento do capital investido em ativi- não de um juízo sobre a subjetividade do agente, mas de mera e objeti-
dade produtiva" 81 • Nesse tipo contratual, diz a doutrina, "o lucro consiste va restituição patrimonial.
na justa remuneração por aquilo que já foi realizado pelo ernpreiteiro" 82 , É bem verdade que, em comentário sobre o art. 158 do Código de
pressupondo "um valor líquido que o empreiteiro perceberia, descontados 1916 (homólogo ao vigente art. 182), Clovis Bevilaqua opinava fosse
todos os seus gastos com a consecução da obra"83 • Vale dizer: percebe- a regra balizada pelo princípio geral da posse de boa ou de má-fé 87 • O
ria como remuneração, assinalando-se: "Do lucro é que sai a remuneração entendimento era coerente com o fato de Beviláqua não considerar o
do empreiteiro, pois os demais valores percebidos são destinados ao pa- enriquecimento sem causa como uma fonte autônoma de obrigações 88
gamento das despesas" 84 . Trata-se, pois, do custo do serviço prestado 85 , - tanto assim que, no Código de 1916 o instituto restou confinado a
a ser estimado com base em parâmetros objetivos: o preço de mercado um "princípio implícito". Sem considerar o fato capital de o Código de
e o estado dos serviços, quando interrompida a prestação. O montante 2002 ter aceito e regulado a estrutura tríplice das fontes obrigacionais, a
correspondente ao custo do serviço prestado deve ser objeto da restitui- jurisprudência continua a seguir Beviláqua para lidar com todas as situ-
ção, pois, se assim não fosse, lucraria indevidamente a parte pelo servi- ações de fruição de bens. Seguindo-se este raciocínio, a parte que deve
ço que recebeu e não remunerou. restituir não seria obrigada à restituição dos frutos percebidos, a não ser
O dever de restituição em virtude do contrato inválido é compos- que tivessem sido percebidos de má-fé, então sendo aplicadas as regras
to tanto por obrigações de dar quanto de fazer, pelo seu valor, que deve hoje estampadas nos artigos 1.201 e 1.214 do Código Civil de 2002 89 •
ser restituído originalmente corno obrigação de dar (espécie que inclui, Porém, ao assim proceder, estaria o intérprete a misturar, incorretamente,
com subespécie, a obrigação de restituir). Não há o seu perdimento por- os significados da boa-fépossessória (vale dizer, boa-fé estado defato, assim
que a não-restituição importaria em confisco. A parte beneficiada por compreendida, ex vi legis, quando o possuidor ignora obstáculo que im-
esse ilegal confisco reteria, sem causa jurídica que o justificasse, parte do pede a aquisição da coisa) em urna relação nascida de contrato (ou, pelo
patrimônio alheio, consistente em crédito pela contraprestação de ser- menos, de fato jurídico obrigacional), sem atentar-se às marcantes espe-
viço feito e de obra construída. Apenas se utilizado tal montante corno cificidades que discernem aquela boa-fé possessória e a boa-fé obrigacio-
parâmetro é que se efetivará a recomposição patrimonial ao estado an- nal (isto é: norma de conduta, boa-fé normativa, e não "estado de fato").
terior à declaração de nulidade do contrato, corno determinado pelo ar-
tigo 182 do Código Civil. 86 Em posição aparentemente divergente, no tocante a restituição devida na hipótese de enri-
quecimento sem causa: MICHELON JR., Cláudio. Direito Restituitório: enriquecimento sem
causa, pagamento indevido, gestão de negócios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007 p.
186b e ss. Observe-se, porém, que o critério adotado pelo autor, todavia, não se refere, como
aqui pontuado, a uma ovo/ioção do conduto do autor (se culposa ou não), mas à avaliação do
81 Noi·oAurélio Século XXI. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 1.238. benefício (bens e direitos que são incorporados ao patrimônio) auferido com o suposto enri-
82 Assim,ANDRIGHI, Nancy; BENETI, Sidnei; ANDRIGHI, Vera. ComentóriosooNovo Código Cívil. quecimento, podendo haver prestação objetivamente útil e subjetivamente supérflua ou, ao
Vai. IX. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 341. contrário, subjetivamente útil e objetivamente supérflua.
83 LOPEZ, Teresa Ancona. Comentários ao Código Cívil. Vai. 7. Coord. Antonio Junqueira de 87 BEVILAQUA, Clovis. Codigo Cívil dos Estados Unidos do Brasil Commentodo. Edição histórica.
Azevedo. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 321. Vol.1. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1975, p. 424.
84 LOPEZ, Teresa Ancona. Comentários ao Código Cívil. Vai. 7. Coord. Antonio Junqueira de 88 BEVlLAQUA, Clovis. Direito dos obrigações. sª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1940, § 37.
Azevedo. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 321. 89 DELGADO,JoséAugusto; GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Comentóríosoo Código Cívil Brasileiro.
85 STJ. REsp 55.859-0/SP. Quarta Turma. Rei. Min. Ruy Rosado de Aguiar Jr.J. em 08.05.1995. Vol.11. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 820.
246 - EFEITOS ÜBRIGACIONAIS DA INVALIDADE: Ü CASO DOS CONTRf\TOS VICIADOS POR ••. JUDITH MARTINS-COSTA- 247

A consideração do estado subjetivo do agente para avaliar-se os (como apontam os exemplos comumente utilizados em doutrina 95 ), pois,
efeitos de fato jurídico obrigacional é, todavia, incorreta não apenas por então, estariam esses protegidos pela boa-fé do possuidor (insisto: boa-fé
misturar institutos que, apesar do mesmo nome, atuam distintamen- possessória, distinta da boa-fé obrigacional), sempre que se configuras-
te em ambos os campos jurídicos, o possessório e o obrigacional, tendo se situação de fruição possessória. E, aliás, não haveria caráter punitivo
muito diversos significados 90 • É indevida sobremodo porque, no Direito nem que a restituição fosse qualificada como vera e propria indenização.
Restituitório, trata-se de considerar, objetivamente, apenas a causa da atri- O Direito brasileiro não adota os punitive damages de Common Law96 ,
buição patrimonial, e não de impor "pena ressarcitória" ou confisco pa- medindo-se a indenização pela extensão do dano (Código Civil, art. 944,
trimonial. Neste campo, considerações acerca da boa-fé possessória hão caput). Consabidamente, a função precípua da responsabilidade civil é
de ser feitas apenas quando estiver em causa questão possessória, como indenitária, voltada à reparação dos prejuízos injustamente sofridos, o
seria, e.g., a de alguém que, estando de boa-fé, tem a posse (e eventual- que afasta das perdas e danos o intuito punitivo. Este não vem ao caso,
mente o uso e os frutos) do bem que, por força da invalidade, não é seu. assim como a ideia de pena civil, "porque não se trata de infligir um cas-
Bem perceberam a distinção entre culpa e causa os Ministros Luiz tigo ao agente" 97 • A punição pelo ilícito consistente no ato de corrupção
Fux e Franciulli Neto em arestas que relataram no Superior Tribunal de é de competência de outras instâncias: a penal ou, se tiver havido ato de
Justiça91 • Em outros julgados, é bem verdade, nem sempre é feito esse improbidade administrativa, também a esfera administrativa.
importante discrimine 92 , com o que resultam por estabelecer espécie de Se em consequência do negócio nulo se produz o fenômeno da aces-
"pena de perdimento" que não está em nosso sistema civil. Na doutrina, são, será preciso averiguar: a nulidade é atribuível a um só dos contra-
por sua vez, o entendimento segundo o qual a boa ou a má-fé impor- entes ou a ambos? Na hipótese de corrupção, é difícil, senão impossível,
tam para o efeito da restituição é acerbamente criticado por Pontes de cogitar-se de imputação pelo ilícito a apenas um dos agentes, pois não
Miranda, segundo o qual, na restituição por invalidade, a apuração do há corrupto sem que haja corruptor, ao menos quando praticam negó-
estado subjetivo de boa-fé "de modo nenhum está no nosso direito", sen- cio jurídico. A distinção tem relevo quanto à extensão da restituição, ex
do uma tal interpretação o resultado de "leituras apressadas que o siste- vi do art. 1.254 a 1.256 do Código Civil, aos quais remete o art. 242,
ma jurídico brasileiro repele" 93 • E o caminho está errado porque acabaria parágrafo único. Nessa hipótese, considerado o elemento subjetivo para
por eliminar, em matéria de restituição da posse, "a responsabilidade em medir o quantum a ser restituído, mais relevante se torna distinguir se
caso de deterioração ou perda da coisa e de determinar direitos a frutos, a conduta delituosa, geradora da invalidade foi, ou não, o resultado do
a benfeitorias, ius tollendi e direito de retenção" 94 • concerto de duas partes98 •
É acurado o entendimento ponteano porque, nessa matéria, parte
da jurisprudência parece estar a tomar pars pro foto. É que, mesmo con- CARVALHO SANTOS,João Manuel de. Código Civil brasileiro interpretado. Vol. III.13ª ed. Rio de
95
siderando haver frutos que escapam à restituição, ainda assim esses es- Janeiro: Freitas Bastos, 1986, p. 311; THEODORO JR., Humberto. Comentários ao Novo Código
Civil. Vai. III. Tomo I. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 611-612; DELGADO, José. Comentários
tariam limitados aos frutos decorrentes da posse prolongada da coisa ao Código Civil Brasileiro. Vai. li. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 820.
96 A propósito, veja-se voto do Ministro Ari Pargendler no STJ. REsp 447.431/MG. Segunda
90 Para as distinções, reenvio ao meu MARTINS-COSTA,Judith.A Boa-Fé no Direito Privado. Critérios Secção. Rei. Min. Ari Pargendler.J. em 28.09.2007, que expressa: "no Brasil a indenização de
para a sua aplicação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, § 24, 1, p. 279. perdas e danos não tem função punitiva". Escrevi sobre o tema em: MARTINS-COSTA,Judith;
91 STJ. REsp 662.924/MT. Primeira Turma. Rei. Min. Luiz Fux.J. em 16.06.2005; STJ. REsp 408.785/ PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva (punitive domoges e o direito
RN. Segunda Turma. Rei. Min. Franciulli Netto.J. em 05.06.2003. brasileiro). Revista do CE}, n. 28, jan.-mar./2005, p. 15-32; ainda: PARGENDLER, Mariana. Os
92 STJ. REsp 928.315/MA. Segunda Turma. Rei. Min. Eliana Calmon.J. em 12.06.2007, em obiterdic- danos morais e os punitive damages no Direito norte-americano: caminhos e desvios da juris-
tum. Também STJ. REsp 1.306.350/SP. Segunda Turma. Rei. Min. Castro Meira.J. em 17.09.2013, prudência brasileira. ln: Dano moral à brasileira. ln: PASCHOAL,Janaina Conceição; SILVEIRA,
em obiterdictum. Renato de Mello Jorge {Coords.). Livro Homenagem o Miguel Reale Júnior. Rio de Janeiro: GZ
93 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Trotado de Direito Privada. Tomo IV. Rio de Janeiro: Editora, 2014, p. 413-429.
Borsoi, 1954, § 424, 13, p. 258. Isso porque, no contexto da anulação de negócio jurídico, não 97 PESSOA JORGE, Fernando. Ensaio sobre os pressupostos do reponsabilidode civil. Coimbra:
estariam em causa as normas de direito das coisas atinentes à restituição dos frutos quando Almedina, 1999, p. 375.
o possuidor estiver de boa ou má-fé, como esclarece MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria da 98 Código Civil, Art. 1.256 "Se de ambas as partes houve má-fé, adquirirá o proprietário as se-
fato jurídico: plano da validade. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 298. mentes, plantas e construções, devendo ressarcir o valor das acessões.
94 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Trotada de Direito Privado. Tomo IV. Rio de Janeiro: Parágrafo único. Presume-se má-fé no proprietário, quando o trabalho de construção, ou
Borsoi, 1954, § 424, 13, p. 258. lavoura, se fez em sua presença e sem impugnação sua".
248 - EFEITOS ÜBRIGACIONAIS DA INVALIDADE: Ü CASO DOS CONTRATOS VICIADOS POR ••• JUDITH MARTINS-COSTA - 249

É um fato capital ser a responsabilidade pelo ato gerador da invali- de súmulas de soluções jurídicas têm valor axiomático, se apresentando
99 como um fundo cultural comum aos vários sistemas de raiz romanísti-
dade atribuível a ambos, contratante e contratado , ou a apenas a um só
deles. Se ambas as partes estivessem mancomunadas, mas apenas sobre ca e mesmo à Common Law, para significar que, quando os atos de am-
uma das partes recaísse a perda patrimonial, ainda que parcial (apenas bas as partes requerente e requerido - são igualmente reprováveis, o
restituindo o principal, desfalcado da remuneração pelos serviços fei- requerente não o pode alegar102 •
tos, por exemplo) estaria configurada uma afronta ao princípio segun- Muito próximas às regras in pari causa tUJpitudinem cessat repetitio
do o qual ninguém pode se beneficiar de sua própria torpeza. A questão estão aquelas segundo as quais turpitudinem suam allegans non auditur e
se põe com particular complexidade quando os contratantes são pesso- equity must come with clean hands, bem como a figura do tu quoque que,
as jurídicas. entre nós, é considerada hipótese de ilicitude por exercício inadmissível
As pessoas jurídicas podem ser, concomitantemente, autoras (por (abuso) de posição jurídica103 • Essa figura, segundo Menezes Cordeiro,
seus presentantes100 ) e vítimas (por seus acionistas) de atos delituosos. "traduz, com generalidade, o aflorar de uma regra pela qual a pessoa que
Como está em Pontes de Miranda, "se as pessoas jurídicas fossem inca- viole uma norma jurídica não poderia, sem abuso, exercer a situação ju-
pazes, os atos dos seus órgãos não seriam atos seus". Ora, o que o tráfe- rídica que essa mesma norma lhe tivesse atribuído", estando em jogo
go negocial nos apresenta é exatamente a atividade das pessoas jurídicas "um vector axiológico intuitivo", expresso naqueles axiomas necessários
por meio de seus órgãos: os atos são seus, conquanto praticados por pes- à ordem jurídica porque "fere as sensibilidades, primárias, ética e jurídi-
soas físicas. Os atos dos órgãos - inconfundíveis com os dos mandatá- ca, que uma pessoa possa desrespeitar um comando e, depois, vir exigir
rios das pessoas jurídicas - são atos das próprias pessoasjurídicas: "têm elas a outrem o seu acatamento" 1º4 •
vontade, que se exprime; daí a sua responsabilidade pelos atos ilícitos Os brocardos acima assinalados apontam à direção que conforma o
deles, que sejam seus" 1º1. fundo cultural comum no qual repousa a própria ideia de justiça. Deles
Não há estranheza nessa dupla posição. Situações em que ambos devem ser extraídas as soluções para resolver os casos pontuais que a
os contraentes concorrem para a produção de um mesmo ato ilícito não práxis apresenta por via de uma construção integrativa. Esta deverá con-
são, de modo algum, novas para o Direito Civil. Pelo contrário, per- siderar, além dos mencionados axiomas, a ratio que deflui das regras do
dem-se nos arcanos tempos da tradição romanística. No ius commune sistema. Assim, o art. 150 do Código Civil, concernente a outra causa
se consolidaram os brocardos in pari causa tUJpitudinis cessat repetitio e de invalidade de negócio jurídico, qual seja, o dolo. "Se ambas as partes
in pari delicto potior est conditio defendentis. Esses aforismos expressivos procederem com dolo", diz a regra, "nenhuma pode alegá-lo para anu-
lar o negócio, ou reclamar indenização". Sendo ambos a delinquir, a Lei
99 Por vezes os julgados minimizam essa circunstância, equivocadamente, seja por dar à hipó- Civil prestigia a equanimidade perante o ilícito.
tese de responsabilidade de ambos solução idêntica aos casos de responsabilidade de a um
só dos contraentes, seja por imiscuir em relações de Direito das Obrigações soluções legais
previstas para os Direitos Reais, essas sim fundamentadas no fato da má-fé. Assim, decisão do 102 LAWRENCE, William J. Application of the Clean Hands Doctrine in Damage Actions. Notre
STJ registrando a perda do direito à margem de lucro (STJ. REsp 1.153.337/AC. Segunda Turma. Dame Low Review, vai. 57, 1982, in verbis: "ln pari delicio, potier est conditio defendentis means
Rei. Min. Castro Meira.J. em 15.05.2012. Ainda: STJ. REsp 579.541/SP. Primeira Turma. Rei. Min. that where the acts of the plaintiff and the defendant are equally inequitable, the plaintiff will
José Delgado. J. em 17.02.2004): "A indenização pelos serviços realizados pressupõe tenha o not be allowed to recover''. Eainda: "ln pari delicio usually applies only where the parties have
contratante agido de boa-fé, o que não ocorreu na hipótese". entered into a fraudulent, illegal, ar inequitable transaction. ln its most conventional form, in
100 Há presentação quanto o ato é praticado pelo próprio órgão da pessoa jurídica. Presentar não pari delicio condemns a party if 'by participating in the illegal [ar fraudulent] transaction heis
é o mesmo que representar. Há representação quando há incapacidade ou quando a qualidade guilty of moral turpitude"'.
de representante é atuada. Como não se trata de incapacidade da pessoa jurídica, quando se 103 Permito-me reenviar ao meu: MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado. Critérios
trata de ato da própria pessoa jurídica, por si só, o conceito é o de presentacão. Essa é feita pelo para a sua aplicação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, §76, p. 703.
órgão (indivíduo ou grupo de indivíduos) enquanto cumprem sua função de perseguir o inte- 104 MENEZES CORDEIRO, António Manuel. Da Boa-Fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2007,
resse social. Essa concepção de Pontes de Miranda teve seguimento, no Brasil, nos planos dou- § 31, p. 837. A regra das "clean hands", muito próxima à regra in pari delicio paliar est conditio
trinário, legislativo e jurisprudencial, como apontou-se em: PONTES DE MIRANDA, Francisco defendentis, também compõe o fundo comum que ressalta na investigação comparatista. Vide,
Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo 1. Atualizado por Judith Martins-Costa, Gustavo por exemplo: CLAMM, Carolyn; PHAM, Hansel; MOLOO, Rahim. Fraud and Corruption in
Haical e Jorge Cesa Ferreira da Silva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, § 75, B, p. 412-413. lnternational Arbitration. ln: FERNANDEZ-BALLESTERO, Miguel; ARIAS, David. LiberAmicorum
101 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direita Privado. Tomo 1. Atualizado Bernardo Cremades. The Hague: KluwerLaw lnternational, 2010, p. 723-726; LAWRENCE, William
por Judith Martins-Costa, Gustavo Haical e Jorge Cesa Ferreira da Silva. São Paulo: Revista dos J. Application ofthe Clean Hands Doctrine in Damage Actions. Notre Dame LawReview, vai. 57,
Tribunais, 2012, § 97, 1, p. 578. Destaquei. 1982.
JUDITH MARTINS-COSTA - 251
250 - EFEITOS ÜBRIGACIONAIS DA INVALIDADE: Ü CASO DOS CONTRATOS VICIADOS POR •••_

Oliando ambos os contraentes agem ilicitamente não há boa-fé a antem. Essa relação não é promanada do contrato tornado inválido, mas
tutelar, razão pela qual o dolo bilateral se apresenta como um pressupos- do fato jurídico que subsiste ao contrato inválido 112 : o que fundamenta
to negativo, cuja presença impede a invocação da invalidade do negócio. a restituição é sempre a prestação que veio a propiciar o transpasse pa-
Como já estava no Digesto, "se dois houverem agido com dolo mau, não trimonial sem causa.
exercitarão reciprocamente a ação de dolo" (D. 4.3.36)1°5, vedando-se a Nessa fase, tal qual na resolução "desaparecem o direito e a pretensão
tutela judicial "a quem não tem mãos limpas" 106 • "Oliem dolo fêz, por do credor à prestação contratada, isto é, o devedor se libera do débito".
dolo não pode agir" 107 , razão pela qual- observou Antonio Junqueira de Na resolução exsurge seu lugar uma nova relação, dita "de liquidação" 113 •
Azevedo - a regra extraída do art. 150 do Código Civil configura um Analogamente - e consideradas as cautelas acima apontadas quanto à
paradoxo: a validade do ajuste é a "sanção" que a Lei atribui ao dolo de distinção entre efeito resolutório e efeito restitutório - se verifica quan-
ambas as partes 108 : nenhuma delas pode arguir a invalidade. Conquanto do se trata de restituir por atribuição patrimonial sine causa (ou por causa
a hipótese de nulidade de contrato seja distinta da sua anulabilidade por defetiva). Assim já recomendava Martinho Garcez, clássico monogra-
dolo, a razão é a mesma, assim como o é aquela que inspira os broca- fista das nulidades, ao apontar à analogia com a resolução 114 • O ponto
dos in pari causa turpitudinem cessat repetitio, turpitudinem suam allegans de partida da análise do montante a restituir é "simples e incontrover-
non auditw; equity must come with clean hands e a figura do tu quoque109 • so": trata-se de colocar as partes no estado em que elas se encontravam
Marcado o que se restitui cabe, finalmente, examinar como deve ser antes da celebração do contrato. Porém, qual valor deve ser restituído?
apurado o valor da restituição, então se devendo examinar qual é rela- Para auxiliar na resposta a essa questão, a jurisprudência germâni-
ção que se instaura entre as partes quando se trata de restituir o que foi ca formulou a Teoria do Saldo 115 , como uma correção jurisprudencial
patrimonialmente transpassado em virtude de contrato bilateral nulo.
111 Semelhante é o entendimento da doutrina francesa, aludindo ao "mécanisme de liquidation
du passé": "Mécanisme de liquidation du passé, les restitutions sont par essence rétroactive
(11) A RESTITUIÇÃO EM CONTRATOS BILATERAIS puisqu'elles tendent à revenirsurdes actes d'exécution du contrat. L'annulation rétroactive du
contrat com mande de remettre les choses en leur état antérieur afinque ne subsiste aucune
Bem resguardadas as diferenças de causa e de função existentes en- séquelle du contrat détruit" (GHESTIN, Jacques; LOISEAU, Grégoire; SERINET, Yves-Marie. La
tre os institutos da invalidade e da resolução em sentido estrito 110 , pode- Formation du Contrat: l'objet et la cause - les nullités. Tome 2. 4ª ed. ln: GHESTIN, Jacques
(Ed.). Troité de droit civil. Paris: LGDJ, 2013, p. 1.541).
-se afumar que, de forma meramente aproximativa ao que se verifica na 112 No Código Civil transparece a distinção teórica. E.g., Art. 884. Aquele que, sem justa causa,
se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido,Jeito o
resolução legal com eficácia ex tunc, na invalidação, exsurge uma relação atualização dos valores monetários. (destaquei).
similar à de liquidação para chegar-se ao restabelecimento do status quo 113 Assim, quanto à resolução, AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Comentários ao Novo Código Civil.
Vol. VI. Tomo li. Rio deJaneiro: Forense, 2011, p. 473-474. E, aproximando as consequências da
nulidade a "uma espécie de resolução", vide GARCEZ, Martinho. Dos nulidades dos atosjurídicos.
5ª ed. Rio deJaneiro: Renovar, 1997, p. 251-252. Apontando ao cerne da questão, STEINER, Renata
105 Segundo a tradução mais recente italiana, organizada por S. Schipani: "MARCIANO, nel libra Carlos. Reparação de donos: interesse positivo e interesse negativo. São Paulo: Quortier Lotin, 2018,
secando Deli e regale. Se due si siano comportati con dolo <l'uno nei confronti dell'altro>, non p. 379, ao referir: "É verdade que a desconstituição por invalidade também importa a extinção
potranno esercitare l'uno verso l'altro l'azione di dolo." Disponível em: <http://dbtvm1.ilc.cnr. do negócio jurídico e pode levar à restituição das partes ao status quo, com a devolução do já
it/digesto/>. prestado. Mas as semelhanças cessam por aí: a resolução é remédio voltado à tutela contra o
106 Assim, THEODORO JR., Humberto. Comentários ao Novo Código Civil. Vol. Ili. Tomo 1. 3ª ed. descumprimento contratual, algo muito diverso da invalidade contratual".
Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 162. Vide, a propósito, o que está na nota de rodapé n. 124, 114 GARCEZ, Martinho. Dosnulidodesdosotosjurídicos.5ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 251-
supro. 252: "[ ... ] a sentença que decreta a rescisão ou a nulidade de um contrato nulo ou anulável, tem
107 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Trotado de Direito Privado. Tomo IV. Rio de Janeiro: por efeito repor as coisas no estado primitivo, como se o contrato jamais tivesse existido. O
Borsoi, 1954, § 453, 2, p. 341. contrato maculado por uma causa de nulidade dependente de rescisão ou relativa, é, de fato,
108 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio jurídico e Declaração Negocial. São Paulo: Ed. do um contrato anulável sob condição suspensiva e, portanto, válido sob condição resolutória.
Autor, 1986, p. 110. Refere o autor à norma do art. 97 do Código de 1916, idêntica à hoje posta Logo, pronunciada a nulidade, o contrato é considerado como se nunca tivesse existido,
no art. 150. importando a anulação uma espécie de resolução, dizem os jurisconsultos franceses, com
109 Esse mesmo princípio se encontra subjacente à regra do art. 883 do Código Civil, in verbis: "Não esta diferença: que em lugar de ser fundada sobre a vontade expressa ou tácita das partes,
terá direito à repetição aquele que deu alguma coisa para obter fim ilícito, imoral, ou proibido repousa sobre a ideia de que um contrato, desde sua origem, empestado de certo vício, só
por lei". pode produzir efeitos provisórios, conservando em si o princípio da sua destruição; e que,
Parágrafo único. No caso deste artigo, o que se deu reverterá em favor de estabelecimento por analogia, é preciso aplicar as regras da condição resolutória e dizer que a anulação apaga
local de beneficência, a critério do juiz. retroativamente todos os efeitos do contrato".
110 Vide ainda STEINER, Renata Carlos. Reparação de donos: interesse positivo e interesse negativo. 115 RÕTHEL, Anne. Die sog. Soldotheorie. }uristische Ausbildung, v. 37, n. 12, 2015, pp. 1287-1294.
São Paulo: Quuartier Latin, 2018, p. 379-380. Traduzido por Luca Giannotti como "A Chamada Teoria do Saldo". Inédito. 2020.
252 - EFEITOS ÜBRIGACIONAIS DA INVALIDADE: Ü CASO DOS CONTRATOS VICIADOS POR ••. JUDITH MARTINS-COSTA - 253

do regime original do BGB 116 segundo o qual, para os efeitos restitutó- te ao Direito francês - de um "vai e vem": há um fluxo que se enquadra
rios, todo acréscimo patrimonial geraria uma pretensão independente, como o seu fato gerador e um refluxo concretizado pela restituição, ob-
estruturada sobre duas condictiones independentes, o que era fonte de in- jetivando-se o retorno de direitos sobre um bem ou sobre uma pres-
solúveis problemas no campo dos contratos sinalagmáticos. A Teoria é tação de serviços (pelo seu equivalente) ao patrimônio de origem122 •
aplicável apenas à recondução ao status quo ante em contratos de sinalag- Tecnicamente, nos contratos sinalagmáticos que tenham sido executa-
máticos, não desempenhando qualquer papel na restituição de contratos dos, venham a ser nulificados e impossível seja a restituição in natura,
unilaterais. Sua função é a de simplificar a recomposição dos acréscimos opera-se um "entra-e-sai": calcula-se o equivalente ao valor do que foi
patrimoniais: avalia-se,pelo saldo, o que ocorreu de acréscimo patrimo- cumprido e se desconta o montante equivalente à contraprestação feita.
nial quando não é possível restituir in natura. Seu pressuposto é o de Acertadamente aponta Michelon ao art. 240 do Código Civil, segundo
que "uma pretensão restituitória existe somente à medida que um saldo o qual na impossibilidade de restituir, sendo o devedor culpado, trans-
positivo dos valores trocados resulte em favor do titular, independen- muta-se o regime da obrigação restituitória em um regime de respon-
temente de ele ainda estar no patrimônio das partes" 117 • Diante de um sabilidade civil. Resta, assim, somente a pretensão à diferença 123 •
contrato sinalagmático já cumprido que vem ser invalidado, e não sen- A restituição tem como causa o fluxo patrimonial entre os figuran-
do possível restituir as prestações realizadas ou sendo elas apenas valor, tese o seu cálculo há de ser realizado de modo a atentar para cada um
"a 'Teoria do Saldo' - conforme seu próprio nome - gera um desconto dos deslocamentos patrimoniais havidos. Não se trata de realizar um cál-
[ Saldierung] do valor que circulou a ambas as partes, surgindo apenas culo global, mas analítico124, cabendo ao julgador "comparar os valores de
uma pretensão no valor do saldo remanescente" 118 • entrada e de saída do patrimônio de cada um dos contratantes em épo-
Se a restituição for de bens diversos, como ocorre quando é possível cas diferentes" 125 e, ao identificar este :fluxo patrimonial, deve determinar
recompor in natura, a Teoria do Saldo não é aplicável 11 9 • Nesse caso, sur- a restituição daquilo que cada parte recebeu com a devida atualização
gem, então, duas pretensões de restituição com objetos diversos - o preço monetária. Dito de outro modo: tendo havido a execução contratual, no
e a coisa, na compra e venda. Mas, aplicando analogicamente a exceção de todo ou em parte e se tratando de um contrato de duração a atualiza-
contrato não cumprido para que a recomposição patrimonial seja com- ção monetária deve ser realizada a partir de cada deslocação patrimonial, e
pleta120 , os deveres de restituir devem ser cumpridos sirnultaneamente 121 • não desde a celebração do contrato porventura invalidado. Para as pres-
A "Teoria do Saldo" não é incompatível com o nosso sistema. tações de pagamento em dinheiro, a tarefa resta simplificada: basta ver
Adotado esse método, o mecanismo fundamental das restituições apro- a data da transferência bancária e aplicar a correção; se não for possível,
xima-se de um "toma lá dá cá" ou- como diz Ghestin, respeitantemen- por razões práticas, a adoção desse critério, seria possível adotar a data
estimada em contrato para pagamento, presumindo que em cada dia es-
116 8GB, § 812 e§ 818, 3.
117 RÕTHEL, Anne. Die sog. Soldotheorie. Juristische Ausbildung, v. 37, n. 12, 2015, pp. 1287-1294. timado houve transferência. Se houver a prova de que houve atraso ou
Traduzido por Luca Giannotti como "A Chamada Teoria do Saldo". Inédito. 2020.
118 RÕTHEL, Anne. Die sog. Soldotheorie. Juristische Ausbildung, v. 37, n. 12, 2015, pp. 1287-1294. 122 GHESTIN,Jacques; LOISEAU, Grégoire; SERINET, Yves-Marie. La Formation du Contrat: l'objet
Traduzido por Luca Giannotti como "A Chamada Teoria do Saldo". Inédito. 2020. et la cause - les nullités. Tome 2. 4ª ed. ln: GHESTIN, Jacques (Ed.). Troité de droit civil. Paris:
119 RÕTHEL, Anne. Die sog. Soldotheorie. Juristische Ausbildung, v. 37, n. 12, 2015, pp. 1287-1294. LGDJ, 2013, p. 1.543: "Le mécanisme fondamental des restitutions est celui d'um va-et-vient".
Traduzido por Luca Giannotti como "A Chamada Teoria do Saldo". Inédito. 2020. 123 MICHELONJR., Cláudio. Direito Restituitório: enriquecimento sem causa, pagamento indevido,
120 Parte da doutrina chama essa situação de "sinalagma invertido". Entretanto, entre as pretensões gestão de negócios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 196.
restituitórias não há qualquer interdependência: se uma desaparecer, a outra não desaparece, 124 GHESTIN,Jacques; LOISEAU, Grégoire; SERINET, Yves-Marie. La Formation du Contrat: l'objetet
como o sinalagma condicional comandaria, e a onerosidade excessiva não é aplicável, instituto la cause- les nullités. Tome 2. 4 ª ed. ln: GHESTIN, Jacques (Ed.). Troitéde droit civil. Paris: LGDJ,
derivado do sinalagma funcional, como aponta GIANNOTTI, Luca. Peifil dogmático do exceção 2013, p.1.544: "Carla restitution dépend avant tout de ce qui a été exécuté, le cas échéant par
de inseguridade. Tese de conclusão de curso, USP, São Paulo, 2020, p. 99. chacun, durant la période intermédiaire précédant l'annulation. En conséquence, le calcul
121 "Na primeira situação [devolução de bens diversos], apesar de não aplicarem os remédios des restitutions n'est pas global mais analytique et suppose que l'on détermine, pour chaque
sinalagmáticos, atribui-se o direito geral de retenção a ambas as partes (§273, 1). Na falta dessa obligation exécutée, la som medes avantages directs ou indirects reçus qui feront l'objet de la
figura, nada mais justo do que a aplicação analógica da exceção de contrato não cumprido (art. restitution [...]".
476), para que ninguém se veja obrigado a prestar sem ter a garantia de restituição do bem e 125 GHESTIN,Jacques; LOISEAU, Grégoire; SERINET, Yves-Marie. La Formation du Contrat: l'objet
não levar à recomposição total da situação jurídica anterior ao contrato" GIANNOTTI, Luca. et la cause - les nullités. Tome 2. 4ª ed. ln: GHESTIN, Jacques (Ed.). Troité de droit civil. Paris:
Peifil dogmático do exceção de inseguridade. Tese de conclusão de curso, USP, São Paulo, 2020, LGDJ, 2013, p. 1.587. No original: "li incombe ainsi au juge de comparer des valeurs d'entrée et
p.95. de sortie du patrimoine de chacun des contractants à des époques différentes".
JUDITH MARTINS-COSTA - 255
254 - EFEITOS ÜBRIGACIONAIS DA INVALIDADE: Ü CASO DOS CONTRATOS VICIADOS POR •••.

da, por exemplo, se o vendedor devolver o preço pelo seu valor nominal,
modificação, essa prova específica afasta a previsão do contrato. Toma-
poderá estar restituindo muito menos do que deveria para re_st~bel~c:r
-se o contrato apenas como prova da data.
a situação econômica do comprador, causando a este uma d1mmmçao
Atentaria contra a lógica da restituição adotar, para fins de atuali- patrimonial, um prejuízo efetivo sem justa causa jurídica" 132 .Justamente
zação, marco temporal diverso ao do deslocamento patrimonial. Assim por ser a correção monetária apenas a atualização do valor corroído pela
concluiu-se em acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, em caso inflação 133 , quando se tratar de dívida de valor, será preciso fazer incidir
envolvendo a decretação da nulidade de contrato de empréstimo con- a correção monetária. Se assim não for, restará determinado montante
signado em benefício previdenciário, caber, de um lado, a restituição do no patrimônio do devedor sem justificativa para tanto.
valor emprestado, incidindo a atualização monetária a partir do recebi-
mento da quantia em dinheiro pela mutuária, e, de outro, a restituição CONCLUSÃO
do montante recebido pelo mutuante com a atualização das parcelas do Em face do fato jurídico da corrupção, essa doença que a tudo con-
empréstimo a partir de cada desconto 126 • Na análise do decidido, perce- tamina no tecido social de uma nação, também as categorias centrais do
be-se terem sido :fixados diferentes marcos temporais para as restituições Direito Privado sofrem impactos dos seus deletérios efeitos. Muito es-
recíprocas, observando quando se deu cada deslocamento patrimonial. pecialmente o instituto da nulidade dos negócios jurídicos é confronta-
Não sendo possível o retorno in natura das prestações executadas a do com a realidade, por vezes estampada nos noticiosos dos jornais, por
seu patrimônio, caberá a quem se beneficiou por esse acréscimo patrimo- vezes cuidadosamente engavetada em sombras.
nial (por exemplo, incorporadas ao seu patrimônio por via da acessão), a A confrontação entre o fato social e a dogmática há de ser feita com
restituição pelo equivalente pecuniário, passando a arcar com uma dívida cuidado, cabendo lembrar - a propósito de seus impactos na nulidade
de valor. Consequência prática será a incidência de correção monetária. dos contratos - que "al negocio jurídico nulo no le és aplicable la máxima
Nas dívidas de dinheiro, como regra, não há atualização monetá- del todo o nada" 134 • E assim o é porque "o mesmo ato pode ser elemento
ria, ao contrário do que se verifica nas dívidas de valor. É o sistema do dos suportes fáticos de regras jurídicas diferentes", sobre um mesmo fato
Código Civil, que assenta o princípio do nominalismo 127 , nos termos jurídico podendo ocorrer múltiplas incidências normativas, a configurar
postos no art. 315 128 , embora aceite o valorismo, ex vi dos artigos 316 129 o fenômeno da multiplicidade de incidências135 do qual tratou Pontes de
e 317130 e nos limites ali postos. Nas dívidas de valor, diferentemente, Miranda. "Aplicar o Direito" não é tarefa fácil justamente porque há ca-
incide a correção monetária até o momento do pagamento, pelos índi- madas de efeitos a discernir e a regular. O fato da corrupção, para além
ces oficiais 131 • É correto que assim seja, pois, de outro modo, não haveria de sua qualificação penal e das suas consequências enormemente dano-
completa restituição patrimonial: parte do patrimônio a ser retornado sas para toda a sociedade, nos planos ético, político, econômico e social,
estaria faltante. Exemplifica a doutrina: "Numa compra e venda anula- incide também nas categorias e institutos do Direito Privado, exigindo
um trabalho de construção que, atento ao fenômeno dos transpasses pa-
126 TJSP.Ap. Cív.1004011-43.2018.8.26.0481. Vigésima Câmara de Direito Privado. Rei. Des. Correia trimoniais destituídos de causa, componha e adapte o regime do Código
Lima.J. em 06.05.2019.
127 FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. Adimplemento e Extinção dos Obrigações. São Paulo: Revista Civil a essa especial causa de nulidade.
dos Tribunais, 2006, p. 139: "Pela adoção do nominalismo monetário, o devedor de obrigação Canela, novembro de 2020
pecuniária se libera entregando a quantidade de dinheiro inscrita no título da dívida, seja qual
for a alteração que, após o nascimento desta, venha ase processar no valor de troca da moeda".
Sobre o tema, me pronunciei em MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Cádigo Civil.
2 ª ed. Vol. V. Tomo 1. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 242-243. 132 VELOSO, Zeno. lnvolidodedonegácio jurídico: nulidade e anulabilidade. 2ª ed. Belo Horizonte:
128 Art. 315 do Código Civil: "As dívidas em dinheiro deverão ser pagas no vencimento, em moeda Dei Rey, 2005, p. 335.
corrente e pelo valor nof!!inal, salvo o disposto nos artigos subsequentes". 133 Assim escrevi em: MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Cádigo Civil. 2ª ed. Vol. V.
129 Art. 316 do Código Civil: "E lícito convencionar o aumento progressivo de prestações sucessivas". Tomo 1. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 245.
130 Art. 317 do Código Civil: "Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta 134 FLUME, Werner. El Negocio Jurídico. Tradução espanhola de José Maria Miquel González e
entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, Esther Gomez Calle. Madrid: Fundacíon General dei Notariano, 1998, p. 651.
a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação". 135 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. TrotododeDireitoPrivodo. Tomo li. RiodeJaneiro:
131 FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. Adimplemento e Extinção dos Obrigações. São Paulo: Revista Borsoi, 1954, § 170, p. 519.
dos Tribunais, 2006, p. 143 e 145.
MILENA DONATO ÜLIVA E PABLO WALDEMAR RENTERIA-257

li. NOTAS SOBRE A FRAUDE CONTRA CREDORES

Milena Donato Ollva1

Pablo Waldemar Renteria2

1. INTRODUÇÃO: PATRIMÔNIO COMO GARANTIA GERAL


DOS CREDORES
No que concerne à responsabilidade patrimonial, o Código Civil de
2002 pouco alterou as bases estabelecidas na codificação anterior, con-
servando o regime herdado das codificações oitocentistas. No núcleo
desse sistema se encontra o patrimônio, com o qual responde o deve-
dor inadimplente perante o credor (CC, art. 391 e CPC, art. 789), que,
não recebendo o que lhe é devido, pode requerer, na forma da lei pro-
cessual, a expropriação de tantos bens quanto bastarem para a satisfa-
ção do seu crédito.
O patrimônio constitui universalidade de direito, nos termos do art.
91 do Código Civil, e corresponde ao conjunto de direitos de uma pes-
soa suscetíveis de avaliação pecuniária. Traduz a unificação ideal dessa
coletividade, tendo relevância jurídica autônoma frente aos elementos
que o compõem. 3
Por ser uma universalidade, o patrimônio caracteriza-se pela elasti-
cidade de seu conteúdo, que pode se expandir ou se comprimir, sem que
disso resulte a modificação da configuração unitária do conjunto. Desse
modo, o titular pode alienar ou onerar os bens integrantes do patrimô-
nio, assim como nele incorporar novos ativos, permanecendo o todo,
considerado em si mesmo, inalterado, a despeito desses movimentos. 4
Disso resulta que, para fins de satisfação coativa do direito de cré-
dito, a responsabilidade patrimonial se mostra maleável. Se um bem sair
da universalidade, não mais se sujeita ao poder de agressão estatal para
a satisfação do crédito, salvo hipótese de fraude ou se for objeto de di-

Professora do Departamento de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro -


UERJ. Advogada Sócia do Escritório Gustavo Tepedino Advogados.
2 Professor de Direito Civil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro- PUC-Rio. Sócio
fundador do Escritório Renteria Advogados. Ex-diretor da Comissão de Valores Mobiliários
-CVM.
3 Acerca do conceito de patrimônio no direito pátrio, confira-se Mi lena Donato Oliva, Patrimônio
separado: herança, massa falida, securitização de créditos imobiliários, incorporação imobiliá-
ria, fundos de investimento imobiliário e trust, Rio deJaneiro: Renovar, 2009, p. 184 e seguintes.
4 Inocêncio Galvão Teles, Das universalidades, Lisboa: Minerva, 1940, p. 132.
258 - NOTAS SOBRE A FRAUDE CONTRA CREDORES
1 MI LENA ÜONATO ÜUVA E pABLO WALDEMAR RENTERIA - 259

reito real de garantia. Por outro lado, se um novo elemento ingressar na


superior ao conteúdo do seu patrim~~io. 8 U_ma vez _que a pessoa, pelo
universalidade, submete-se automaticamente ao regime da responsabi-
simples fato de ser devedora, não esta 1mped1da de_ d1s~or ~e se~s bens,
lidade patrimonial. 5
0 conteúdo do patrimônio pode passar por mutaçoes s1gmficat1vas en-
O disposto no artigo 789 do Código de Processo Civil determi- tre a constituicão do crédito e o momento da sua cobrança, inclusive
na que o "devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros capazes de tor~á-lo insuficiente para fazer frente ao valor dos débitos.
para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabeleci- Em determinadas hipóteses, a ordem jurídica admite a impugna-
das em lei". Assim, todos os bens presentes no patrimônio do devedor
ção dos negócios de transmissão de bens a terceiros. Tal oc~rre quando
no momento da execução judicial, com exceção daqueles resguardados
0 negócio é reputado patológico pelo ordenament?, por ter s1_do celebra-
pela lei, podem ser destinados à satisfação dos direitos do credor, pouco
do em violação à garantia geral dos credores. 9 Cmda-se dos mstrumen-
importando se foram adquiridos antes ou depois da constituição ou do tos destinados a preservar a efetividade da responsabilidade patri:11-onial,
vencimento do débito exigido. De outra parte, e ressalvadas as hipóte- usualmente denominados meios de conservação do patrimônio. 10 E o que
ses legais específicas, não podem ser alcançados os direitos já egressos. 6
ocorre, por exemplo, na fraude aos credores (CC, art. 158 a 165) e na
Essa atuação dinâmica, que decorre da elasticidade peculiar às uni- fraude à execução (CPC, art. 792).11 No mais das vezes, contudo, ocre-
versalidades, explica, em grande medida, a grandeza e também a fraqueza dor deve contentar-se com os bens presentes no patrimônio do devedor
da responsabilidade patrimonial. De um lado, faz dela um instrumen- ao tempo da execução.
to de proteção do crédito capaz de acompanhar, permanentemente, a No tocante à fraude contra credores, o Código Civil se manteve
evolução da esfera econômica do devedor, sem, no entanto, tolher a sua
fiel ao regime jurídico estabelecido na codificação de 1916, proceden~o,
liberdade. Ademais, como toda pessoa é apta a ter patrimônio, a respon-
no mais das vezes, a ajustes de apuração técnica do texto legal. O legis-
sabilidade patrimonial traduz técnica universal, que pode atuar na rea-
lador preservou praticamente inalterados os requisitos de configuração
lização de qualquer crédito pecuniário, independentemente da causa de
da fraude, bem como conservou a solução do direito anterior de repu-
sua constituição e da qualidade do credor ou do devedor. Por isso, cos-
tar anulável o ato fraudulento. A modificação mais notável diz respeito
tuma-se dizer que o patrimônio é a garantia geral dos credores.
à ampliação da proteção conferida à subsistência do devedor insolvente
De outro lado, o caráter dúctil do patrimônio é fonte de insegu- e de sua família, a qual, fundada na primazia dos valores existentes na
rança para o credor, pois não lhe oferece proteção consistente contra a ordem jurídica vigente, põe a salvo da ação dos credores os atos indis-
insolvabilidade do devedor, isto é, contra o risco de os bens contidos no pensáveis a uma vida digna.
patrimônio não serem suficientes para a satisfação integral de todas as
dívidas. 7 Isso se deve à possibilidade de o devedor dispor de seus bens, 8 Nas palavras de Antonio Faria Carneiro Pacheco: "O deved_or conserva, co_m? livre desenv?l-
vimento da sua actividade patrimonial, a faculdade de os ahenare d~ const1tu1r-se, quer a~tJva
assim como contrair, perante diversos credores, débitos em montante quer passivamente, em novos vínculos obrigatorios, alteran?o co?,tmuam~n_te ~ seu pa~nr1;0-
nio, todo jurídico abstracto, permanente apenas na sua unidade (Dos prwileg1os cred1tonos,
Coimbra: Imprensa da Universidade, 1913, p. 3-4). _ . . . . .
5 Sobre os efeitos da responsabilidade patrimonial do devedor, cf. Pablo Renteria, Penhor e 9 Conforme pontua Alvino Lima, "se a garantia geral sobre o patrimomo cons_t1t~1 um d1re1to do
Autonomia Privada, São Paulo: Atlas, 2016, p. 132 e seguintes. credor, muito embora não possa paralisar a atividade do deved?r, ~ este d1re1to deve c?r~es-
6 Como esclarece Humberto Theodoro Júnior: "Na realidade, a responsabilidade não se pren- ponder, necessariamente, a obrigação do devedor de ma_nt~r 1~c?lu~e, dentro d?s limites
de à situação patrimonial do devedor no momento da constituição da obrigação, mas da indispensáveis, aquela garantia" (Alvino Lima,Ajraude no direito cwil, Sao Paulo: Saraiva, 196_;;,
sua execução. O que se leva em conta, nesse instante, são sempre os bens presentes, pouco p. 90). De acordo com Francesco Carnelutti, "a lei 9uer protege_r o credor c_ontra_a_ re?u_çao
importando existissem, ou não, ao tempo da assunção do débito. Nesse sentido, não se pode artificial ou patológica do patrimônio do devedor, n~? contra os_mcos naturais ou f1s1olog1cos
entender literalmente a fórmula legal do art. 591, quando cogita da responsabilidade executiva de sua insuficiência" (Sistema de Direito Processual Cwil, vai. li, Sao Paulo: Lemos e Cruz, 2004,
dos bens futuros. Jamais se poderá pensar em penhorar bens que ainda não foram adquiridos p. 7 17). De acordo com Pontes de Miranda, a fra~de aos credores_~e f~nda no dever do devedor
pelo devedor. Tampouco se há de pensar que os bens presentes ao tempo da constituição da "de não dispor do patrimônio a ponto de prejudicaras credores Jª existentes, 9ue contam c?m
obrigação permanecem indissoluvelmente vinculados à garantia de sua realização. Salvo a a estabilidade patrimonial" (Tratado de direito privado: parte geral, tomo IV, Sao Paulo: Revista
excepcionalidade da alienação em fraude contra credores" (Curso de Direito Processual Civil, dos Tribunais. 2012, p. 550). _ . , . . .. , .
vai. 2, Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. r99). 10 Eduardo Espínola, Garantia e extinção das obrigações: obrigaçoes sol1danas e md1v1s1ve1s,
7 Nelson Abrão, Insolvência. ln: Enciclopédia Saraiva de Direito, vai. 44, São Paulo: Saraiva, 1977, Campinas: Bookseller, 2005, p. 289-317. , . _ . . , .
p. 421-423. 11 Mencionem-se ainda, no âmbito falimentar, a ação revocatona e a declaraçao de mef1cac1a
perante a massa falida (Lei n. 11.101/2005, arts. 129 e 130).
260 - NOTAS SOBRE A FRAUDE CONTRA CREDORES MILENA ÜONATO ÜLIVA E PABLO WALDEMAR RENTERIA- 261

2. PRESSUPOSTOS DA FRAUDE CONTRA CREDORES a recomposição da garantia patrimonial frente ao ato fraudulento que
conduziu à insolvência do devedor ou ao agravamento desse estado. 15
2.1. PREJUÍZO À GARANTIA PATRIMONIAL De outra parte, sendo medida de conservação do patrimônio, o
Nas suas mais diversas modalidades, a fraude contra credores pres- instituto não se presta a tutelar o interesse econômico dos credores na
supõe, sempre, a prática de ato jurídico pelo devedor que causa prejuízo ampliação do patrimônio do devedor insolvente. Por isso, não se sujei-
à garantia patrimonial dos credores quirografários. 12 O prejuízo, conhe- ta à impugnação pauliana a recusa do devedor em receber certa doação,
cido por eventus damni, é aferido pela insolvência13 ou seu agravamento, ainda que esteja em estado de insolvência. A fraude contra credores não
a denotar a ausência, no patrimônio do devedor, de bens disponíveis em constitui instrumento apropriado para compelir o devedor a aumen-
valor suficiente para o pagamento total de suas dívidas. tar o seu patrimônio. Sua função vincula-se estritamente à conserva-
Ainda que não tenha ocorrido o inadimplemento, a insolvência ção da garantia patrimonial, que não pode ser fragilizada em prejuízo
do devedor ou o seu agravamento representa, em si, um dano ao cre- dos credores. 16
dor, que passa a correr o perigo de sair frustrado em eventual processo Situação diversa, que não se confunde com a rejeição de doação, diz
de cobrança. Por isso que o eventus damni não corresponde à concreta respeito à renúncia de herança. No direito brasileiro, a herança defere-
violação do crédito, mas à potencial insatisfação do credor diante da in- -se automaticamente aos herdeiros no momento do falecimento do de
solvência do devedor. 14 cujus, por efeito da saisine, 17 de modo que a manifestação da aceitação
Desse modo, não se exige para a configuração do eventus damni o da herança traduz ato confirmatório, que torna definitiva a transmissão
inadimplemento do devedor nem a comprovação da concreta frustração operada ex vi legis com a abertura da sucessão. 18 Diante disso, e na me-
do credor em cobrança judicial movida em face do devedor. Em outras dida em que a renúncia à herança representa ato abdicativo gratuito, 19 o
palavras, não se faz necessária a demonstração de que o credor não te- Código Civil estabelece, em seu art. 1.813, que:
nha conseguido satisfazer o seu direito por não ter encontrado bens su- "Qy.ando o herdeiro prejudicar os seus credores, renunciando
ficientes no patrimônio do devedor. à herança, poderão eles, com autorização do juiz, aceitá-la em
nome do renunciante.
Tal orientação é coerente com a finalidade do instituto da fraude
contra credores, que não traduz, em si, meio de satisfação do débito, mas § 1° A habilitação dos credores se fará no prazo de trinta dias
seguintes ao conhecimento do fato.
instrumento de conservação do patrimônio do devedor. A ação paulia-
na, também denominada revocatória, tem precisamente por finalidade § 2° Pagas as dívidas do renunciante, prevalece a renúncia quan-
to ao remanescente, que será devolvido aos demais herdeiros".

15 Yussef Said Cahali, Fraudes contra credores, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 134; p.
12 Sobre a fraude contra credores, v. Gustavo Tepedino e Milena Donato Oliva, Fundamentos do 140-143.
Direito Civil, vol. 1, Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 329-335. 16 Cf. J. M. de Carvalho Santos, Código Civil brasileiro interpretado, vol. li, Rio de Janeiro: Freitas
13 Art. 955 do Código Civil: "Procede-se à declaração de insolvência toda vez que as dívidas Bastos, 1982, p. 413-414; Eduardo Espinola, Manual do Código Civil brasileiro, vai. Ili, Rio de
excedam à importância dos bens do devedor". V. tb. art. 748 do CPC/1973. Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1923, p. 583.
14 Oportuno transcreveras ensinamentos deAlvino Lima: "Quando o ato fraudulento compromete 17 Art. 1.784 do Código Civil: "Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros
a garantia patrimonial, total ou parcialmente, dos seus credores, ainda não se concretizou o legítimos e testamentários".
dano dos mesmos, porquanto, em regra, só com a execução do crédito poderemos determinar, 18 "A aceitação da herança torna definitiva a transmissão que ocorre automática e imediatamente
de modo absoluto e real, a extensão do dano sofrido pelo credor. Mas se o dano ainda não com a abertura da sucessão exvi legis. Não se confunde a transferência ipsofacto da morte com
pode ser determinado, nem por isso está o credor impossibilitado de agir com a revocatória, a compulsória continuidade das relações jurídicas do de cujus. Para tanto, não se dispensa a
desde que seja manifesto o perigo de dano, isto é, desde que, em virtude do ato fraudulento aceitação da herança por parte dos herdeiros. Sua natureza é ato meramente confirmatório,
do devedor, já se concretizou a simples possibilidade de que a autuação do direito do mesmo com efeitos sempre retroativos à abertura da sucessão" (Gustavo Tepedino, Ana Luiza Maia
credor corre o risco de serfrustrada, no todo ou em parte. Não se trata de determinar um dano Nevares, Rose Melo Vencelau Meireles, Fundamentos do Direito Civil, vol. 7, Rio de Janeiro:
já verificado, mas a violação de uma obrigação do devedor, que subsiste sempre que resulte Forense, 2020, p. 40). Cf. tb. Orlando Gomes,Sucessões, Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 20-21.
diminuída ou extinta a garantia, de maneira tal que o credor sofrerá o prejuízo, não podendo 19 Art. 1.804do Código Civil: "Aceita a herança, torna-se definitiva a sua transmissão ao herdeiro,
receber o valor de seu crédito" (Alvino Lima, Afraude no direito civil, São Paulo: Saraiva, 1965, desde a abertura da sucessão. Parágrafo único. A transmissão tem-se pornãoverificada quando
p.144). o herdeiro renuncia à herança".
262 - NOTAS SOBRE A FRAUDE CONTRA CREDORES MI LENA ÜONATO ÜUVA E pABLO WALDEMAR RENTERIA - 263

Uma vez que a herança integra automaticamente o patrimônio do em termos desfavoráveis ao devedor - tal como se verificaria no exem-
herdeiro em virtude da saisine, a renúncia a esta significa ato de libera- plo da venda feita por valor inferior ao de mercado -, como também os
lidade, o qual não pode se dar em prejuízo de seus credores. O precei- atos onerosos que acarretem alteração potencialmente danosa de ele-
to, portanto, tem fundamento comum ao do art. 158 do Código Civil, mentos do patrimônio do devedor insolvente.
justificando-se na tutela dos credores contra a diminuição fraudulenta Veja-se, a título ilustrativo, a compra e venda realizada em condi-
da garantia patrimonial do devedor. No entanto, distancia-se da fraude ções de mercado, que apenas altera a composição patrimonial - bem mó-
contra credores na medida em que o art. 1.813 dispensa a propositura vel ou imóvel por dinheiro -, sem acarretar diminuição do patrimônio
da ação pauliana, autorizando a aceitação da herança pelos credores por do devedor. A despeito do seu intrínseco equihôrio, ao ser celebrada por
meio de procedimento judicial próprio. devedor insolvente, acarreta o eventus damni, na medida em que a mu-
Tal como a norma estabelecida no art.158, o disposto no art.1.813 dança de ativos propicia maior fragilidade à Qá débil) garantia patrimo-
do·Código Civil pressupõe a insolvência do herdeiro, isto é, sua inca- nial, haja vista o dinheiro ser mais facilmente ocultado ou dissipado do
pacidade de fazer frente às suas dívidas sem o quinhão hereditário que que imóveis ou outros bens móveis. 21 Do mesmo modo, a substituição
lhe cabe. 20 Note-se, por oportuno, que o legislador consagra hipótese de de ativos líquidos por outros desprovidos de liquidez é reputada preju-
anulação parcial do negócio abdicativo, reduzindo-se a renúncia à parte dicial aos credores, por comprometer o resultado útil esperado da exe-
que exceder as dívidas do herdeiro. Assim, uma vez pagos os seus cre- cução judicial.
dores, a renúncia permanece válida quanto ao saldo (§ 2°). Tal orientação é corroborada pela leitura do art. 160 do Código
2.2. CONFIGURAÇÃO DO EVENTUS DAMNI
Civil, que estabelece o meio pelo qual o adquirente a título oneroso, que
ainda não pagou o preço pactuado, pode se proteger da ação pauliana.
O Código Civil prevê quatro hipóteses configuradoras do eventus O adquirente só se livra do risco de impugnação por meio do depósito
damni próprio da fraude contra os credores, quais sejam: (i) os negócios em juízo do preço, expediente que protege os credores da sua dissipação
gratuitos de transmissão de bens ou remissão de dívida que reduzam o indevida e propicia que estes opinem, no foro apropriado, sobre a des-
devedor à insolvência ou agravem esse estado (art.158); (ii) os negócios
tinação a ser dada ao preço depositado.
onerosos de transmissão praticados por devedor insolvente (art. 159);
Por sua vez, o parágrafo único trata da hipótese - mais evidente -
(iii) o pagamento de dívidas não vencidas efetuado pelo devedor insol-
dos bens que o devedor insolvente aliena por valor inferior ao real. Prevê
vente (art. 162); e (iv) a concessão de garantias reais pelo devedor in-
solvente (art. 163). que o adquirente pode proteger os bens da ação dos credores median-
te o depósito em juízo do "preço que lhes corresponda ao valor real".
Os atos gratuitos não conferem vantagem econômica ao devedor, Além de evitar a malversação dos ativos recebidos, tal providência res-
acarretando redução do seu patrimônio. Qyando essa diminuição patri-
taura a equivalência das prestações, afastando qualquer prejuízo aos in-
monial prejudica a garantia dos credores, levando o devedor à insolvên-
teresses dos credores.
cia ou acentuando-a, tem-se o eventus damni configurado. No que tange
Em definitivo, a fraude contra credores tem por objetivo a preser-
aos atos onerosos praticados por devedor insolvente, consideram-se pre-
judiciais aos credores não apenas os negócios desequilibrados, ajustados vação da efetividade da responsabilidade patrimonial, de sorte que o
eventus damni não se atém aos casos de empobrecimento do devedor,
20 "A autorização será concedida se ficar evidente que a renúncia efetivamente prejudicou os vinculando-se, em termos mais amplos, ao enfraquecimento da garantia
credores, por não subsistirem outros bens no patrimônio do herdeiro renunciante suficientes
para garantir o pagamento da dívida. Não há necessidade de prova de intuito fraudulento, patrimonial, o qual pode resultar de atos diversos, gratuitos ou onero-
bastando a da necessidade do quinhão hereditário para assegurar o pagamento das dívidas" sos, e até mesmo da prática de negócios comutativos e equilibrados que
(Mauro Antonini. ln: Cezar Peluso (Coord.), Código Civil comentado, Barueri: Manole, 2018, p.
2133). De acordo com J. M. de Carvalho Santos: "é imprescindível que a dívida seja anterior se revelem, todavia, potencialmente danosos aos interesses dos credores.
à renúncia da herança e a prova do prejuízo, isto é, que se demonstre a insolvabilidade do
renunciante, não possuindo bens que garantam as dívidas existentes ao tempo da renúncia"
(Código Civil brasileiro interpretado, vol. XXII, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1981, p. 151). 21 Cf. YussefSaid Cahali, Fraudes contra credores, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 134-135.
264 - NOTAS SOBRE A FRAUDE CONTRA CREDORES MILENA ÜONATO ÜLIVA E PABLO WALDEMAR RENTERIA- 265

De outra parte, em certas hipóteses legais, considera-se prejuízo a Em vista disso, percebe-se que, ao efetuar o pagamento de dívi-
violação do tratamento igualitário aos credores - consagrado no conhe- da ainda não vencida em favor de determinado credor, o devedor insol-
cido adágio par conditio creditorum -, como se verifica no pagamento de vente confere a esse último tratamento privilegiado em detrimento dos
dívida ao credor quirografário antes do vencimento, ou na concessão de demais quirografários, pois que se aguardasse o vencimento e fosse obri-
garantia real pelo devedor insolvente a algum dos seus credores. Essas gado, em momento posterior, a habilitar o seu crédito no concurso cre-
hipóteses, definidas em termos gerais pelo Código Civil, pressupõem que ditório, participaria equitativamente do rateio e, desse modo, receberia
tenha havido discriminação entre os credores sem justa causa, a denotar apenas parte do débito. Justamente para equalizar a posição dos credo-
o intuito de beneficiar um ou alguns credores em detrimento dos demais. res, a declaração da insolvência, com a consequente abertura do concur-
De acordo com o art. 162 do Código Civil, "o credor quirografá- so creditório, acarreta o vencimento antecipado de todas as dívidas do
rio, que receber do devedor insolvente o pagamento da dívida ainda não devedor insolvente. 27
vencida, ficará obrigado a repor, em proveito do acervo sobre que se te- Portanto, antes da abertura do concurso universal, o devedor insol-
nha de efetuar o concurso de credores, aquilo que recebeu". Sendo opa- vente, embora permaneça na gestão do seu patrimônio,28 não pode pura
trimônio do devedor insuficiente para solver todas as suas obrigações, e simplesmente pagar dívida ainda não vencida a credor quirografário, 29
faculta-se ao credor, ou ao próprio devedor, nos termos da lei, requerer uma vez que, ao agir dessa maneira, agrava a situação Gá adversa) em
a decretação judicial da sua insolvência, 22 procedendo-se à instauração que se encontram os demais credores quirografários. De outra parte, an-
do concurso universal. Por meio deste, realiza-se o rateio do acervo pa- tes de aberto o concurso creditório, assiste ao devedor o direito de pagar
trimonial entre todos os credores em estrita observância às regras legais, dívida já vencida sem incorrer em fraude, uma vez que tal ato se insere
entre as quais se destacam a ordem de prioridade dos créditos e a divi- dentro da legítima esfera de atuação que se reconhece ao devedor insol-
são proporcional entre os credores quirografários. 23 vente antes de instaurado o concurso creditório. 30
O legislador diferencia os credores conforme o seu título legal de Também não se admite, em vulneração ao princípio do igual tra-
preferência. 24 Caso não tenham título algum, reputam-se quirografários tamento aos credores, que o devedor insolvente conceda garantia real a
e participam em pé de igualdade do rateio do acervo patrimonial após um deles, 31 pois que estaria conferindo-lhe preferência para receber o seu
serem satisfeitos os credores preferenciais. 25 Recebem, assim, tratamen- crédito antes dos demais, reduzindo, ainda mais, o tamanho do acervo
to isonômico, fazendo cada um jus a quinhão proporcional ao montan- dos credores simples quirografários, sem privilégio" (Código Civil dos Estados Unidos do Brasil
te de seus créditos. 26 comentado, vol. V, Rio de Janeiro: Paulo de Azevedo, 1957, p. 269).
27 Art. 751, 1, do CPC/1973.
28 Art. 752 do CPC/1973: "Declarada a insolvência, o devedor perde o direito de administrar os
22 Art. 751, CPC/1973: "A declaração de insolvência do devedor produz: 1 o vencimento anteci- seus bens e de dispor deles, até a liquidação total da massa". Em crítica aguda ao preceito,
pado d~s suas dívidas;_ 1~ - a arrecadação de todos os seus bens suscetíveis de penhora, quer Daniel Bucar ressalta a violação à dignidade humana em se retirar da pessoa física a possibi-
os atuais, quer os adqumdos no curso do processo; 111- a execução por concurso universal dos lidade de gerir seus bens, comparando tal disposição à morte civil (Superendividamento, São
seus credores". Em análise crítica do instituto da insolvência no direito brasileiro, cf. a obra de Paulo: Saraiva, 2017, p. 85).
Daniel Bucar, Superendividamento, São Paulo: Saraiva, 2017, passim. Além da insolvência civil, 29 Confira-se a advertência de Alvino Lima: "Os credores quirografários gozam, em igualdade de
o concurso universal condições, da garantia geral do patrimônio do devedor; o pagamento antecipado fere aquela
23 Cf. arts. 748 a 786-A do CPC/1973; arts. 955 a 965 do Código Civil. garantia geral, em proveito de um credor, com prejuízo dos demais. Entretanto, o pagamento
24 V. art. 958 do Código Civil. antecipado de um credor privilegiado não acarreta prejuízo aos demais, visto como não se
25 A igualda?e_entr~ c:e~o~es no concur;50 univers~I de cre?ores encontra-se consagrada no art. modifica o valor do patrimônio geral, pois o privilégio do credorantecipadamente pago, coloca-
957 do Cod1go Civil: Nao havendo titulo legal a preferencia, terão os credores igual direito -o em posição de ser contemplado, em qualquer tempo, em primeiro lugar. Se, no entanto,
sobre os bens do devedor comum". com esta antecipação, o credor privilegiado auferiu proventos que atingiram a garantia geral,
26 Conforme pontua). M. de Carvalho Santos, "havendo igualdade de situação para os credores, prejudicando os demais credores, este lucro, com o qual fora beneficiado tal credor, deve ser
munidos de títulos que se equivalem, todos têm igual direito sobre o patrimônio do devedor, restituído, mediante a revogação, em benefício dos demais credores" (Afraude no Direito Civil,
tal como na hipótese de não haver título legal de preferência (art. 1.566)" (Código civil brasileiro São Paulo: Saraiva, 1965, p. 259-260).
interpretado, vol. XXI. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, p. 479). De acordo com o art. 962 do 30 J. M. de Carvalho Santos, Código Civil brasileiro interpretado, vol.11, Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
Código Civil, "quando concorrerem aos mesmos bens, e por título igual, dois ou mais credores 1982, p. 442-443.
da mesma classe especialmente privilegiados, haverá entre eles rateio proporcional ao valor 31 Art. 163 do Código Civil: "Presumem-se fraudatórias dos direitos dos outros credores as
dos respectivos créditos, se o produto não bastar para o pagamento integral de todos". Clovis garantias de dívidas que o devedor insolvente tiver dado a algum credor". Cf., em aplicação
Bevilaqua registra que também "quando os credores gozam de privilegio geral, se os bens do preceito, TJSP, Ap. Cív. 10140868720168260554, 34ª COP., Rei. Des. Gomes Varjão, julg.
são insuficientes para o pagamento integral de todos, haverá entre eles rateio, com exclusão 21.1.2019, publ. DJ 21.1.2019.
266 - NOTAS SOBRE A FRAUDE CONTRA CREDORES
MI LENA ÜONATO ÜUVA E pABLO WALDEMAR RENTERIA - 267

a ser partilhado entre os credores quirografários. O parágrafo único do é a ciência - real ou presumida - quanto ao estado de insolvência que
art. 165 do Código Civil determina que se os negócios fraudulentos ti- caracteriza o elemento subjetivo da fraude contra credores. Valora-se a
nham por único objeto atribuir direitos preferenciais, mediante hipote- conduta do terceiro adquirente, no sentido de verificar se, na celebração
ca, penhor ou anticrese, sua invalidade importará somente na anulação do ato aquisitivo, tomou cautelas razoáveis para averiguar a situação pa-
da preferência ajustada. trimonial do devedor.
Examina-se, desse modo, se o terceiro sabia ou teria condições de se
2.3. A CIÊNCIA DA FRAUDE informar acerca do estado de insolvência do devedor, caso tivesse agido
A impugnação pauliana do ato do devedor insolvente, no mais das de forma diligente. Por conseguinte, o art. 159 do Código Civil reputa
vezes, põe em conflito o credor, que procura conservar a garantia patri- configurada a scientiafraudis se "a insolvência for notória, ou houver mo-
monial, e o terceiro adquirente, que, em direção oposta, pretende pre- tivo para ser conhecida do outro contratante". 36 Na análise do motivo,in-
servar a titularidade do bem adquirido. cumbe ao intérprete considerar o padrão de comportamento a ser exigido
Sendo a transmissão a título gratuito, o interesse do credor prevale- do adquirente, à luz das peculiaridades sociais, culturais e econômicas.
ce em detrimento do adquirente. Aduz-se que o primeiro procura evitar No caso de o bem adquirido do devedor insolvente ser objeto de
um prejuízo, ao passo que o segundo almeja a manutenção da vanta- novas alienações subsequentes, a sua anulação requer, adicionalmente, a
gem obtida sem correspectivo. 32 Em razão disso, o art. 158 do Código demonstração da má-fé dos sucessivos contratantes, 37 a teor do que dis-
Civil facilita a tutela do credor, autorizando a anulação do ato gratuito põe o art.161: "a ação, nos casos dos arts.158 e 159, poderá ser intentada
mediante a simples prova do eventus damni, isto é, de que o devedor era contra o devedor insolvente, a pessoa que com ele celebrou a estipula-
insolvente ao tempo da sua celebração ou teria sido reduzido à insol- ção considerada fraudulenta, ou terceiros adquirentes que hajam pro-
vência por conta desse ato. 33 cedido de má-fé". Destaque-se, a propósito, que o art. 161 do Código
Em contrapartida, com relação aos atos onerosos, o legislador con- Civil pode induzir interpretação equivocada. O credor não pode esco-
lher contra quem litigar, haja vista que, por se tratar de anulação de ne-
fere maior proteção ao terceiro adquirente, pois que, tendo oferecido
gócio jurídico, todos os afetados com o desfazimento do ajuste devem
prestação em troca do bem, a impugnação do ato lhe causaria prejuízo
equivalente àquele que o credor procura evitar. Por essa razão, o art. 159 ser réus (litisconsórcio passivo necessário). 38
do Código Civil requer para a anulação, além da prova da insolvência 3. LEGITIMIDADE PARA A IMPUGNAÇÃO DO ATO FRAUDULENTO
do devedor, a demonstração de que o terceiro tinha conhecimento da
O caput do art. 158 do Código Civil alude aos credores quirogra-
situação de insolvência ou deveria tê-lo.
fários como aqueles que podem anular o negócio jurídico sob alegação
Esse elemento subjetivo, expressamente dispensado para os atos gra-
(scientiafraudis)" (STJ, Aglnt no REsp 1.294.462/GO, 4ª T., Rei. Min. Lázaro Guimarães, julg.
tuitos, é conhecido como consilium fraudis, 34 e deve ser compreendido, 20.3.2018, publ. DJ 25.4.2018).
à luz do que dispõe o Código Civil, como scientia fraudis. 35 Com efeito, "O nosso Código Civil não permite dúvidas: o estado de insolvência conhecido é bastante
para determinar a má fé que presidiu a alienação. Se a insolvência do devedor for notória, se
32 Eduardo Espinola,Manua/do Código Civil brasileiro, vol.111, Rio deJaneiro:Jacintho Ribeiro dos houver motivo suficiente para que se presuma conhecida do terceiro adquirente, a alienação
Santos, 1923, p. 619. é fraudulenta e suscetível de anulação. Todas as disposições do Código, nessa matéria, giram
33 "Para o Código Civil as diminuições gratuitas do patrimõnio do devedor são anuláveis, sempre em torno do conhecimento real ou presumido da insolvência" (Eduardo Espinola, Manual
que, por causa delas, se ache na impossibilidade de satisfazer as suas dívidas. Pouco importa do Código Civil brasileiro, vai. Ili, Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1923, p. 600). V.
que ele conhecesse, realmente, ou não, o estado dos seus bens. Indiferente é, também, que tb. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, t. IV, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012,
o soubesse aquele que lucrou com a liberalidade" (Clovis Bevilaqua, Código Civil dos Estados p.569.
Unidos do Brasil comentado, vai. I, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1956, p. 287). 37 "Sucessivas alienações de veículo que pertencia ao devedor. Anulação que não alcança os
34 Sobre o consi/iumfraudis, ensina Alvino Lima: "Alguns escritores sustentam a necessidade do terceiros de boa-fé. Em consonância com o art. 109 do CC/1916 (com redação correspondente
animus nocendi, de um propósito deliberado e consciente de subtrair os bens à penhora dos no art. 161 do CC/2002), tendo havido sucessivos negócios fraudulentos, cabe resguardar os
credores. Esta teoria está hoje abandonada" (A fraude no direito civil, São Paulo: Saraiva, 1965, interesses dos terceiros de boa-fé e condenar tão somente os réus que agiram de má-fé" (STJ,
p.139). REsp 1145542/RS, 3ª T., Rei. Min. Sidnei Beneti, julg. 11.3.2014, publ. DJ 19.3.2014).
35 "A ocorrência de fraude contra credores demanda a anterioridade do crédito, a comprovação Humberto Theodoro Júnior, Fraude contra credores: a natureza da sentença pauliana. Belo
de prejuízo ao credor (eventus damni), que o ato jurídico praticado tenha levado o devedor à Horizonte: Dei Rey, 2001. p. 152; Caio Mário da Silva Pereira, Comentários ao Código Civil de
insolvência e o conhecimento, pelo terceiro adquirente, do estado de insolvência do devedor 2002, vol. l, Rio de Janeiro: GZ, 2017, p. 163.
268 - NOTAS SOBRE A FRAUDE CONTRA CREDORES MILENA ÜONATO ÜUVA E PABLO WALDEMAR RENTERIA -269

de fraude contra credores. Uma vez que o pressuposto objetivo da frau- Com efeito, os credores posteriores recebem a garantia patrimonial no
de contra credores consubstancia a incapacidade patrimonial do deve- estado em que se encontra, não tendo sofrido prejuízo decorrente de
dor de fazer frente às suas dívidas, apenas os credores que dependem do sua diminuição. 44
patrimônio do devedor para satisfazer seus créditos é que são legitima- No entanto, o requisito da anterioridade não é concebido de forma
dos a arguir a fraude, pois são eles os que sofrem o prejuízo oriundo do absoluta pela doutrina e pelos tribunais, pois o devedor pode agir dolo-
negócio fraudulento. samente para dilapidar o seu patrimônio com o fim de frustrar credores
Muito embora a definição de credor quirografário seja residu- futuros. 45 Alude-se, em tal hipótese, à necessidade de comprovação do ato
al, excluindo-se dessa definição até mesmo os credores que possuem premeditado do devedor no sentido de provocar sua insolvência futura. 46
privilégios, 39 a rigor, objetiva o legislador apenas excluir a legitimidade
dos credores que não sofrem prejuízo com a fragilização da situação pa- 4. A PROTEÇÃO AO DEVEDOR INSOLVENTE
trimonial do devedor, notadamente aqueles que possuem garantia real Consoante o art.164 do Código Civil, presumem-se de boa-fé e de-
suficiente para satisfazer seus créditos. 4º vem ser preservados os negócios ordinários indispensáveis à manutenção
A corroborar que a ideia de prejuízo é a que deve guiar a defini- de estabelecimento mercantil, rural, ou industrial, "ou à subsistência do
ção do credor legitimado a arguir a fraude, o § 1° do art. 158 estabelece devedor e de sua família". Essa parte final do preceito consiste em subs-
que "igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficien- tancial inovação em relação ao Código Civil de 1916, a denotar preo-
te", em reconhecimento de que mesmo os credores com garantias re- cupação legislativa com a proteção do patrimônio mínimo do devedor.
ais podem precisar recorrer à garantia patrimonial geral para terem seu O dispositivo enuncia duas normas distintas, que convém examinar
crédito satisfeito, figurando, na parcela não coberta pela garantia, como separadamente, uma vez que fundadas em valores e princípios diversos.
quirografários. 41 Esse entendimento já existia desde a codificação ante- De um lado, o legislador resguarda da impugnação pauliana os negócios
rior, tendo o Código Civil de 2002 sedimentado essa orientação já con- indispensáveis à manutenção de estabelecimento do devedor insolven-
solidada.42 Portanto, o legislador afasta tão somente a legitimidade de 44 J. M. de Carvalho Santos aduz que tal decorre "de simples bom-senso, por isso que os credo-
quem que não sofreu prejuízo com a fragilização da situação patrimo- res posteriores não podiam contar com uma garantia do patrimônio do devedor que já não
mais existia" (Código Civil brasileiro interpretado, vol. li, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1982,
nial do devedor, por dispor, por exemplo, de garantia real suficiente para p. 419-420).
satisfazer o seu direito. 45 "De regra, só é anulável a transmissão feita depois de ter sido contraída a dívida, mas não há razão
para essa limitação porque o ato de alienação praticado anteriormente pode ser dolosamente
preordenado, a fim de prejudicara satisfação do futuro credor". (Orlando Gomes, Obrigações,
De outra parte, como a legitimidade pressupõe o prejuízo, o dispos- Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 277). V. tb. Humberto Theodoro Júnior, Comentários ao novo
to no § 2° do art. 158 do Código Civil elucida que "só os credores que Código Civil, vol.111, t. l, Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 327-328. Consoante decidiu o STJ:
"A interpretação literal do art. 106, parágrafo único, do CC/16, conservada pelo art. 158, § 2°,
já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles". 43 do CC/02, já não se mostra suficiente à frustração da fraude à execução. O intelecto ardiloso
é criativo e, através dos tempos, encontra meios de contornar a caracterização da fraude no
39 Cf. definição contida na Lei 11.101/2005, art. 83, VI. desfalque de patrimônio para livrá-lo dos credores. Um desses expedientes é o desfazimento
40 '.'Os credore~ q~irografários, isto é, os que não têm garantia real, em seu favor, é que têm antecipado de bens, já antevendo, num futuro próximo, o surgimento de dívidas, com vistas
mte~esse e d1re1to de anul_ar as transmissões gratuitas de bens e as remissões de dívidas, que a afastar o requisito da anterioridade do crédito, como condição da ação pauliana. Nesse
prat1ca~em os devedores msolventes. Os privilégios pessoais não tiram ao crédito pessoal o contexto, deve-se aplicar com temperamento a regra do art. 106, parágrafo único, do CC/16.
seu cara ter, e somente revelam a sua eficácia por ocasião do concurso creditório (arts. 1.554- Embora a anterioridade do crédito seja, via de regra, pressuposto de procedência da ação
1.571). As garantias reais ad~r~m ao bem, acompanham-no por toda a parte, e asseguram, a pauliana, ela pode serexcepcionada quando verificada a fraude predeterminada em detrimen-
todo o tempo, enquan~o existirem, o pagamento da dívida" (Clovis 8evilaqua, Código Civil dos to de credores futuros" (STJ, MC 16.170/SP, 3ª T., Rei. Min. Nancy Andrighi, julg. 20.10.2009,
Estado~ Umdos do Bras,/ comentado, vol. 1, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1956, p. 287-288). publ. DJ 18.11.2009). "É possível a relativização da anterioridade do crédito, requisito para o
41 Enunciado~º 151 da 111 Jornada de Direito Civil: "O ajuizamento da ação pauliana pelo credor reconhecimento da fraude contra credores, quando configurada a fraude predeterminada
com garantia real (art. 158, § 1°) prescinde de prévio reconhecimento judicial da insuficiência em detrimento de futuros credores" (STJ, REsp 1324308/PR, 3ª T., Rei. Min. João Otávio de
da garantia". Noronha, julg. 18.2.2016, publ. DJe 26.2.2016).
42 Por todos, cf.J. M. de Carvalho Santos, Código Civil brasileiro interpretado, vol.11, Rio de Janeiro: 46 "O credor, no caso de crédito posterior ao ato fraudulento, deve provar plenamente o dolo
Freitas Bastos, 1982, p. 419. específico, isto é, que o devedor, com a cumplicidade do terceiro, agira com o propósito pre-
43 V. STJ, 3ª T., REsp 1.324.308/PR, Rei. Min. João Otávio de Noronha, julg. 18.2.2016, publ. DJ concebido de constituir a situação de uma insolvência futura, à vista da sucessiva obrigação que
25.4.2018. De acordo com o Enunciado nº 292 da IV Jornada de Direito Civil: "Para os efeitos iria assumir. O ato do devedor aparece como o instrumento de uma maquinação preordenada
do art. 158, § 2º, a anterioridade do crédito é determinada pela causa que lhe dá origem, in- para criar uma situação de prejuízo ao futuro credor" (Alvino Lima, Afraude no direito civil, São
dependentemente de seu reconhecimento por decisão judicial". Paulo: Saraiva, 1965, p. 136).
MILENA ÜONATO ÜLIVA E PABLO vVALDEMAR RENTERIA-271
270 - NOTAS SOBRE A FRAUDE CONTRA CREDORES

te. Tal medida se justifica não só no interesse do devedor, mas também tear o tratamento médico do seu filho enfermo. Ainda que prejudique a
no de terceiros, como fornecedores, empregados e até mesmo credores, sua já combalida situação patrimonial, o ato de alienação deve ser pre-
que dependem do prosseguimento da atividade econômica para que se- servado, porque fundado em razões superiores à tutela que se reserva, na
jam gerados os recursos necessários à quitação das dívidas.47 ordem jurídica, aos direitos patrimoniais dos credores.
A proteção legal tem amplo alcance, compreendendo todos os ne- 5. EFEITOS DA FRAUDE CONTRA CREDORES
gócios realizados no curso ordinário da atividade econômica do deve-
O Código Civil optou, deliberadamente, por atribuir a consequência
dor, como, por exemplo, a venda de bens deterioráveis ou destinados à
da anulabilidade ao ato praticado em fraude contra credores, mantendo,
alienação, 48 a compra de insumos e a outorga de garantia, em condições
assim, a solução adotada na codificação anterior. Durante a tramitação
de mercado, para a contração de empréstimo necessário para reforço do
legislativa do projeto de novo código, apresentou-se emenda destinada
capital de giro. No entanto, encontram-se excluídos da proteção e, por-
a substituir a anulação pela declaração de ineficácia do negócio fraudu-
tanto, sujeitos à anulação os atos extraordinários, como seria o caso da
lento em relação aos credores prejudicados. A proposta, todavia, foi re-
alienação de bens do ativo permanente ou do perdão de dívidas.
jeitada pela Comissão Revisora, que assim justificou sua posição:
O legislador presume que os atos ordinários tenham sido praticados
"O Projeto segue o sistema adotado no Código Civil [de 1916],
de boa-fé, ainda que o devedor esteja insolvente, por serem indispensáveis segundo o qual a fraude contra credores acarreta a anulação.
à preservação da sua atividade. Cuida-se, todavia, de presunção relativa, 49 Não se adotou, assim, a tese de que se trataria de hipótese de
de modo que assiste aos credores o direito de impugná-los mediante a ineficácia relativa. Se adotada esta, teria de ser mudada toda a
demonstração de que tenham sido praticados em condições prejudiciais. sistemática a respeito, sem qualquer vantagem prática, já que
De outra parte, fundado na primazia dos valores existenciais na atu- o sistema do Código nunca deu motivos a problemas, nesse
al ordem jurídica, o art. 164 do Código Civil coloca a salvo da impug- particular. ( ... ) Nos sistemas jurídicos que admitem a revogação
nação pauliana os negócios imprescindíveis à subsistência do devedor e do negócio jurídico por fraude contra credores, admite-se que
de sua família. Nesse caso, a norma legal não se justifica tanto na pre- o credor retire a voz do devedor (revogação), ao passo que, em
servação da capacidade do devedor em gerar recursos, mas na tutela do nosso sistema jurídico, se permite que o credor, alegando fraude,
patrimônio mínimo, entendido, nesse contexto, como o direito que se peça a decretação da anulação do negócio entre o devedor e ter-
reconhece ao indivíduo de praticar os negócios necessários para prover ceiro. São dois sistemas que se baseiam em concepções diversas,
condições dignas de vida para si e sua família. 50 mas que atingem o mesmo resultado prático. Para que mudar?" 51

Assim, não podem os credores anular a venda de bem feita pelo de- A matéria foi, novamente, debatida por ocasião da tramitação do
vedor insolvente para levantar os recursos de que necessitava para cus- Código de Processo Civil de 2015, tendo-se respeitado a solução da
anulabilidade alvitrada pelo Código Civil. Assim, e nada obstante as
47 Nas palavras de Humberto TheodoroJúnior: "não se pode impedir, por exemplo, que o produtor opiniões que defendem a ineficácia relativa do negócio fraudulento, a
venda a colheita, pois é por meio dela que irá custear as obrigações pendentes com empre-
gados e fornecedores; e será de seu rendimento que extrairá os meios de subsistência. Nem é decretação da anulação traduz a legítima opção do legislador brasileiro
admissível que se prive o devedor dos recursos necessários para manter em funcionamento a
aparelhagem da empresa. Aliás, é do interesse até mesmo dos credores que o empreendimento a respeito da matéria. 52
lucrativo do devedor não se extinga, pois é de sua produtividade que se podem esperar os A anulação, ressalte-se, beneficia todos os credores, e não apenas
meios para honrar os compromissos pendentes" (Comentários ao novo Código Civil, vol. 3, t. 1,
Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 372). o autor da ação pauliana, 53 nos termos do caput do art. 165 do Código
48 Clovis Bevilaqua, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado, vol. V, Rio de Janeiro:
Paulo de Azevedo, 1957, p. 33. 51 Cf.José Carlos Moreira Alves,,-1 Porte Cerol do Projeto de Código Civil Brasileiro (subsidias históricos
49 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado: parte geral, tomo IV, São Paulo: Revista dos
para o nava Código Civil brasileiro), São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 152-153.
Tribunais. 2012, p. 583. 52 De acordo com o Antonio Junqueira de Azevedo, o direito brasileiro adota a fraude contra
50 Sobre o tema, cf. Luiz Edson Fachin, Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro:
credores como hipótese de invalidade do negócio celebrado por causa ilícita (Negácio}urídico:
Renovar, 2006, passim; Luís Roberto Barroso, "Aqui, lá e em todo lugar": a dignidade humana
existência, validade e eficácia, São Paulo: Saraiva, 2002, p. 85 e 106).
no direito contemporãneo e no discurso transnacional. Revista dos Tribunais, vol. 919, 2012;
53 "Outra coisa interessante é que não tenha um credor só, e sim muitos, e que, uma vez anula-
Ana Paula de Barcellos, Eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade
do o ato fraudulento, o que se obtiver com tal anulação ainda não baste para pagar a todos.
da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 304-305.
272 - NOTAS SOBRE A FRAUDE CONTRA CREDORES MILENA ÜONATO ÜUVA E PABLO WALDEMAR RENTERIA- 273

Civil: "Anulados os negócios fraudulentos, a vantagem resultante rever- os credores e não apenas ao autor da ação pauliana. Em exemplo, men-
terá em proveito do acervo sobre que se tenha de efetuar o concurso de ciona-se que, na doação realizada por devedor insolvente, o montante
credores". Nessa direção, o art. 162 estipula que "o credor quirografário, que sobejar o valor devido ao autor da ação deveria permanecer no pa-
que receber do devedor insolvente o pagamento da dívida ainda não ven- trimônio do donatário, em vez de ser restituído ao devedor. 56
cida, ficará obrigado a repor, em proveito do acervo sobre que se tenha Cumpre esclarecer, todavia, sem prejuízo da legítima escolha do co-
de efetuar o concurso de credores, aquilo que recebeu". dificador de tutelar toda a massa de credores, que a anulabilidade não é
Como se denota, tutela-se, com a ação revocatória, não apenas o incompatível com a preservação de efeitos ao negócio jurídico. Até mes-
credor que a ajuizou, mas todos os credores do devedor, inclusive os pos- mo o negócio nulo pode gerar efeitos tutelados pelo ordenamento. 57 A
teriores ao ato anulado, uma vez que o bem retorna ao patrimônio do consequência imposta para as situações que ensejam nulidade e anula-
devedor - exatamente como ocorreria se não tivesse havido a operação bilidade é a ineficácia do ato praticado, a qual, entretanto, deve ser con-
fraudulenta, uma vez que os elementos do patrimônio garantem todos cretamente modulada. 58 É possível, ainda, que o negócio jurídico seja
os credores, não importando a data de constituição do crédito ou do in- parcialmente anulado, nos termos do art. 184 do Código Civil.
gresso do ativo no patrimônio do devedor. 54 Cuida-se de solução que A possibilidade de preservação de efeitos do negócio inválido é
tem por escopo a preservação da função de garantia do patrimônio, fun- expressão do princípio da conservação dos negócios jurídicos, segun-
ção essa que se destina a todos os credores do devedor, e não apenas ao do o qual deve-se preservar, tanto quanto possível, a eficácia do ajuste
autor da ação, a justificar a proposital escolha legislativa de o resultado celebrado, por ser a solução que melhor atende aos interesses das par-
da ação pauliana reverter em proveito de todos. 55 tes. 59 O princípio da conservação dos negócios jurídicos inspira diver-
Argumenta-se contra a solução legislativa da anulação que a inefi- sos dispositivos legais, tais como os arts.170, 184,157, § 2°, 317 e 479
cácia relativa se mostraria mais afinada com a ideia de que a impugna- do Código Civil.
ção pauliana não deveria privar o negócio fraudulento de todos os seus Do mesmo modo, o art. 549 do Código Civil consagra o princípio
efeitos jurídicos, de modo a preservar sua eficácia na parte que não in- da conservação do negócio jurídico ao preceituar que "nula é também a
teressar à satisfação dos direitos do credor autor da ação - o que, como doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da
foi ressaltado, não se conforma à opção legislativa de beneficiar a todos liberalidade, poderia dispor em testamento". Por determinação do art.
549, em harmonia com o art. 184 do Código Civil, o montante da li-
Deve-se entender que há preferência em favor do credor que moveu a ação, ou está em pé de beralidade é reduzido, preservando-se a doação nos limites permitidos
igualdade com todos os outros, em benefício de todas? A anulação do ato fraudulento faz-se
em benefício do acervo comum e faz-se, então, o concurso de credores" (San Tiago Dantas, por lei. No já abordado art. 1.813 do Código Civil, o § 2° preserva a
Programa de Direita Civil, Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 255). Na mesma direção, Pontes de eficácia da renúncia naquilo que sobejar o direito dos credores, em mais
Miranda ressalta que "a ação de anulação tem eficáciaergaomnes, no que se diferencia da ação
de declaração de ineficácia relativa( ... )" (Tratado de direita privado: parte geral, t. IV, São Paulo: uma manifestação do princípio da conservação dos negócios jurídicos.
Revista dos Tribunais. 2012, p. 604).
54 Embora critique a opção do legislador brasileiro pela anulabilidade, Alvino Lima explica Em definitivo, a anulabilidade não é incompatível com a produção
que, nos termos do Código Civil, "anulado o ato fraudulento, em virtude da procedência da
revocatória, o bem alienado passa ao patrimônio do devedor, em benefício de todos os seus
de efeitos, de maneira que se afigura possível, por exemplo, que o negó-
credores, tenham ou não participado da ação pauliana, quer anteriores, como posteriores ao cio praticado em fraude contra credores seja apenas parcialmente anu-
ato impugnado e revogado, nos termos do art. 1.554 do Código Civil. Não será beneficiado,
em hipótese alguma, o devedor, visto como o terceiro adquirente figurará também como lado, preservando-se os seus efeitos naquilo que não interferir com os
credor" (A fraude na direita civil, São Paulo: Saraiva, 1965, p. 270). E remata: "A anulação do ato
fraudulento aproveita a todos os credores do devedor comum" (Alvino Lima,Afraudeno Direito 56 V. nessa direção, entre outros, Alexandre Freitas Câmara, Lições de direito processual civil, São
Civil, São Paulo: Saraiva, 1965, p. 270). Paulo: Atlas, 2013, p. 218-227.
55 Nada obstante, prevalece na atual jurisprudência o entendimento de que a fraude contra cre- 57 Sobre o tema, v. Gustavo Tepedino e Milena Donato Oliva, Fundamentos do Direito Civil, vai. 1,
dores enseja a ineficácia do ato fraudulento com relação ao credor prejudicado que ajuizou Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 337-348; p. 353-355.
a ação pauliana. Cf. STJ, REsp 1377845/SP, Dec. Mon. Rei. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 58 José do Vali e Ferreira, Subsídios para o estudo das nulidades. ln: Doutrinas essenciais obrigações
julg. 27.6.2016, publ. DJ 1.7.2016; STJ, REsp 1100525/RS, 4ª T., Rei. Min. Luís Felipe Salomão, e contratos, vol. 2, jun./2011, pp. 655-662; Eduardo Nunes de Souza, Teoria geral das invalidades
julg. 16.4.2013, publ. DJ 23.4.2013; STJ, REsp 971.884/PR, 3ª T., Rei. Min. Sidnei Beneti, julg. do negócio jurídico, São Paul o: Almedina, 2017, pp. 249-286.
22.3.2011, publ. DJ 16.2.2012; STJ, REsp 506.312/MS, 1ª T., Rei. Min. Teori Albino Zavascki, julg. 59 Gustavo Tepedino e Milena Donato Oliva, Fundamentos do Direito Civil, vol. 1, Rio de Janeiro:
15.8.2006, publ. DJ 31.8.2006. Forense,2020,p.353-355.
274 - NOTAS SOBRE A FRAUDE CONTRA CREDORES MILENA ÜONATO ÜLIVA E PABLO WALDEMAR RENTERJA -275

interesses dos credores, na esteira do§ 2° do art.1.813 do Código Civil. de se informar acerca do estado de insolvência do devedor, caso tives-
Para se chegar a esse resultado - a ser concretamente avaliado à luz dos se tomado cautelas razoáveis para averiguar a sua situação patrimonial.
interesses das partes envolvidas e que sejam merecedores de tutela-, não Coerentemente com a finalidade do instituto, que traduz meio de
é necessário recorrer à declaração de ineficácia, podendo a preservação
recomposição do patrimônio, e não de realização do crédito, o legisla-
parcial do negóciojurídico ocorrer mesmo na hipótese de anulabilida- dor brasileiro atribui à fraude contra credores a consequência da anula-
de. Basta pensar, ilustrativamente, na doação de elevada quantia em di-
ção. Tal a orientação do Código Civil de 1916, que se manteve no texto
nheiro efetuada pelo devedor, reduzido à insolvência por esse ato. Se a legal vigente, a despeito dos debates ocorridos durante a tramitação le-
devolução parcial do numerário já for suficiente para o pagamento de
gislativa do atual Código Civil e do Código de Processo Civil promul-
todos os seus credores, não há razão para o desfazimento total do negó-
gado em 2015.
cio, em vulneração ao art.184 do Código Civil.
Nada obstante as vozes autorizadas que defendem a ineficácia rela-
6. CONCLUSÃO tiva do ato fraudulento, a invalidação do ato traduz a legítima opção do
Embora o devedor tenha liberdade para dispor dos seus bens, a or- legislador brasileiro, que, nesse tocante, adotou solução que atendesse a
dem jurídica admite, em algumas hipóteses, a impugnação de atos ilegí- todos os credores do devedor insolvente, e não apenas ao autor da ação
timos que comprometem a sua capacidade de satisfazer plenamente os pauliana. Como a anulação conduz à reposição do bem alienado no pa-
direitos de seus credores. Trata-se dos meios de conservação do patri- trimônio do devedor, todos os credores se beneficiam, inclusive os pos-
mônio do devedor, que compreendem, entre outros institutos, a fraude teriores ao ato anulado.
contra credores, a qual se destina à recomposição da garantia patrimo- Ao argumento de que a ineficácia relativa se mostra mais consen-
nial frente ao ato fraudulento praticado pelo devedor já insolvente ou tânea com a preservação, em parte, dos efeitos do ato impugnado, pode-
por ele reduzido à insolvência. -se objetar que, na atual ordem jurídica, a anulabilidade, e até mesmo a
O Código Civil vigente preservou inalterados os requisitos de con- nulidade, não são incompatíveis com a preservação de efeitos ao negó-
figuração da fraude contra credores previstos na codificação anterior, en- cio jurídico. Em verdade, a consequência imposta para as situações que
tre os quais se encontra, como elemento nuclear, o prejuízo à higidez da ensejam nulidade e anulabilidade é a ineficácia do ato praticado, a qual,
garantia patrimonial. Em linha com a finalidade do instituto, o eventus entretanto, deve ser concretamente modulada, procurando-se conser-
damni corresponde à potencial insatisfação do direito do credor que re- var os efeitos do negócio jurídico de forma a melhor atender aos inte-
sulta do quadro de insolvência do devedor, e não pressupõe a concreta resses das partes. Sendo assim, afigura-se possível a preservação parcial
violação do crédito ou frustração da execução judicial. dos efeitos do negócio anulado em fraude contra credores, sem que seja
necessário recorrer à figura da ineficácia relativa.
O prejuízo à garantia patrimonial pode assumir diferentes formas,
seja o empobrecimento do devedor por meio de atos gratuitos, seja a A inovação mais notável empreendida pelo Código vigente em relação
alteração nociva dos elementos do patrimônio por meio de negócios ao anterior diz respeito à ampliação da proteção conferida aos negócios
onerosos, ou ainda a vulneração do tratamento isonômico dos credores, imprescindíveis à subsistência do devedor e de sua família, os quais se
como verificado na aludida hipótese do devedor insolvente que paga ao presumem de boa-fé e, por consequência, impassíveis de impugnação
credor quirografário antes do vencimento da dívida. pauliana. Nesse caso, o legislador tutela o patrimônio mínimo, enten-
dido, nesse contexto, como o direito que se reconhece ao indivíduo de
Além da comprovação do prejuízo - exigida em qualquer hipóte-
praticar os negócios necessários para prover condições dignas de vida
se de fraude - o Código Civil requer, em se tratando de atos onerosos,
para si e sua família. Ainda que prejudique a sua já deficitária situação
a demonstração da scientia fraudis do terceiro adquirente, isto é, de que
patrimonial, o ato de alienação deve ser preservado, porque fundado em
tinha conhecimento da situação de insolvência do devedor ou deveria
razões superiores à tutela que se reserva, na ordem jurídica, aos direitos
tê-lo. Nesse tocante, examina-se se o terceiro sabia ou teria condições
patrimoniais dos credores.
276 - NOTAS SOBRE A FRAUDE CONTRA CREDORES MI LENA ÜONATO ÜLIVA E pABLO WALDEMAR RENTERIA - 277

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Parte 3
FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
GERSON Luiz CARLOS BRANCO - 281

1. A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO NO CóDIGO


CIVIL: 18 ANOS DE VIGÊNCIA E A INTERPRETAÇÃO
JURISPRUDENCIAL DO STJ

Gerson Luiz Carlos Branco 1

INTRODUÇÃO
O Art. 421 do Código Civil inaugurou na história do Direito
Privado a função social dos contratos como uma "cláusula geral" inseri-
da no portal de abertura do capítulo do Direito Contratual, não havendo
antecedentes que identifiquem norma com tal generalidade em qualquer
outro ordenamento jurídico de Direito codificado ou não.
Embora a disposição tenha causado polêmica logo após a promul-
gação do Código Civil, com opiniões acaloradas, o decurso do tempo e a
consolidação jurisprudencial em torno da matéria não provocou grandes
alterações no cenário jurídico. O propósito deste artigo é demonstrar que
ao longo da vigência do Código houve um movimento de acomodação
entre o que a doutrina e jurisprudência anterior já reconheciam como
"funcionalização" do contrato e a disposição do Art. 421 do Código Civil.
Para esse fim e seguindo as instruções para a elaboração da obra, sob
a organização dos ilustres Drs. Henrique Barbosa e Jorge Cesa Ferreira
da Silva este artigo irá tratar sobre a evolução da doutrina e os diversos
sentidos que são atribuídos à função social dos contratos na sua primei-
ra parte, e confrontará essas correntes de pensamento mediante a aná-
lise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça na segunda parte.
1. EVOLUÇÃO DOUTRINÁRIA DA f UNÇÃO SOCIAL
DOS CONTRATOS
O Código Civil de 2003 foi pioneiro em prever uma disposição so-
bre a função social dos contratos com a estrutura de cláusula geral na
abertura do Título dedicado aos "contratos em geral", cujo texto origi-
nal era o seguinte: Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em ra-
zão e nos limites da fimção social do contrato.
O pioneirismo do Código Civil de 2003 ao disciplinar a matéria não
encontra paralelo no Direito Comparado, pois ainda que seja comum,
Professor de Direito Empresarial da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e advogado
em Porto Alegre.
282 - A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO NO CóDIGO Civ1L: 18 ANOS DE VIGÊNCIA E A INT~RPRETAÇÃO .•. GERSON Luiz CARLOS BRANCO - 283

tanto para o legislador brasileiro quanto em outros ordenamentos, es- rentes correntes doutrinárias, todas críticas às concepções estruturais e/
tabelecer normas atribuindo funções específicas ao contrato, foi o legis- ou formais da Teoria geral dos Contratos. Judith Martins-Costa sin-
lador brasileiro que outorgou aos juízes a possibilidade de aplicação de tetizou de modo peculiar a matéria ao tratar sobre o negócio jurídico,
uma noção aberta de funcionalidade social, no caso concreto, por meio acentuando que o significado de contrato somente pode ser compreen-
da concreção de uma cláusula geral. Os antecedentes de funcionaliza- dido por sua "história e função", distinguindo-se muitas vezes de seu va-
ção legal da liberdade contratual até o advento do Código Civil de 2003 lor "facial", pois seu valor semântico é "sempre imantado pelas mutantes
eram pontuais, tais como os revelados no Decreto-lei 58/1937 ou no Art. percepções sociais". 5
45 da Lei 8.245/1992, pois indicavam parâmetros aos Juízes sobre quais A longa história do contrato é a história de sua funcionalidade e de-
eram os fins a serem alcançados com a regulamentação legal, para além senvolvimento conceitual de caráter milenar. Ou seja, a discussão sobre
de estabelecer direitos, deveres ou elementos estruturais do contrato. 2 funcionalidade não é uma novidade do Código Civil, pois foi foi com
A disposição legal em comento foi concebida diretamente por base em sua função que o Direito Privado conseguiu substituir o "Pretor
Miguel Reale, que ao atuar como revisor do "anteprojeto de Código Romano" para assegurar no próprio contrato a sua eficácia obrigatória e
Civil", na década de 1970,3 redigiu a disposição, com o propósito de in- não mais na autoridade externa.
disfarçadamente inserir uma determinada perspectiva de contrato com- Esse processo, que pode ser descrito como transformação dos nuda
patível com sua concepção filosófica. pacta em contratos com eficácia obrigatória foi muito bem capturado
Trata-se da adoção de sua "dialética da complementaridade", desen- pela obra de James Gordley, a respeito dos fundamentos filosóficos da
volvida na obra Experiência e Cultura, a qual aplicada aos contratos per- doutrina moderna do contrato e a influência do pensamento Tomista-
mite identificar uma dualidade entre os elementos individuais e sociais, Aristotélico no século X:V. 6
que embora opostos não se excluem, porém se complementam. Assim, Foi a partir da função que se encontrou fundamento para a obri-
afirmava que o contrato, como uma moeda, possui duas faces, uma vol- gatoriedade do contrato em um contexto histórico de ausência da auto-
tada para o indivíduo e outra voltada para a sociedade. 4 ridade da Lei aproveitando-se da "autoridade" remanescente dos textos
Essa perspectiva levou Miguel Reale a estruturar a redação do ar- romanos a partir da lógica escolástica.7 A suma teológica de Tomás de
tigo do modo como constou em sua redação original, pois a liberdade Aquino foi escrita no mesmo período da redescoberta dos textos ro-
contratual existe em razão da dimensão social do contrato e vice-versa. manos pelos Glosadores da escola de Bolonha, período no qual tam-
bém ressurgem as relações comerciais e está em via de formação o que
Todavia, apesar de as ideias de Miguel Reale terem sido decisivas
mais tarde denominou-se de !ex mercatória, e consequentemente, uma
para a inclusão da Cláusula Geral no Código Civil, a perspectiva fun-
proliferação de contratos novos, tais como os de seguro, letra de câm-
cional do contrato e sua dimensão social não é uma exclusividade, pois
bio, comissão, etc. 8
trata-se de perspectiva talhada ao longo do século XX a partir de dife-
2 Se analisarmos as disposições do Decreto-Lei 58/1937 e seus considerandos ou mesmo o Art. 5 MARTINS-COSTA,Judith. Modelos de Direito Privado. Marcial Pons, 2012, p. 81: "Teve a Autora
45 da Lei 8.245/g1, pode-se ver disposições altamente funcionais, embora sem o caráter de bem presente que conceitos jurídicos não têm essência: têm história e tem função. Por isso
generalidade do Art. 421 do Código Civil. Veja-se a redação deste último dispositivo: "Art. 45. distingue-se entre o seu valor facial (a palavra, isto é, o signo linguístico que o representa) e o
São nulas de pleno direito as cláusulas do contrato de locação que visem a elidir os objetivos seu valor semântico, sempre imantado pelas mutantes percepções sociais". (Grifamos.)
da presente lei, notadamente as que proíbam a prorrogação prevista no art. 47, ou que afastem 6 GORDLEY, James. The Philosophical Origins of Modem Contract Doctrine. Clarendon Law
o direito à renovação, na hipótese do art. 51, ou que imponham obrigações pecuniárias para Series, Oxford, 1991. Sobre a importãncia e o desenvolvimento do contrato no medievo, ver
tanto". também GROSSI, Paolo. Sulla natura dei contrato (qualche nota sul 'mestiere' di storico dei
Há claramente uma norma de invalidade que condiciona condutas que funcionalmente são diritto, aproposito di um recente 'corso' di lezioni). Quaderni Fiorentini - per la historia dei
incompatíveis com fins estabelecidos no texto da Lei. pensiero giurídico moderno, v. 15, 1986, p. 593 - 619.
A propósito do tema, observa-se o texto do artigo manuscrito pelo autor na obra REALE, Miguel. 7 Esta relação entre autoridade e razão com que os intelectuais medievais se ocupam remonta
3 ao idealismo grego-platônico. Wieacker, Franz. História do Direito Privado Moderno. Porto:
Código Civil. Anteprojetos com minhas revisões, correções, substitutivos e acréscimos. Texto
inédito, não publicado, parcialmente manuscrito, sem data. Fundação Calouste Gulbenkian, 1980, p. 47-48. .
A propósito dessa perspectiva, ver REALE, Miguel. Experiência e cultura. 2° ed. Campinas: 8 GALGANO, Francesco. Lex Mercatoria. 5 ed, Bologna: Mulino, 2010, p. 31 - 47. Rico estudo a
4 respeito da matéria pode-se encontrar em LATTES, Alessandro. li Diritto Commerciale nella
Bookseller, 2000 e MARTINS-COSTA,Judith e BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes Teóricas
Legislazione Statutaria dele Città ltaliane. Milano: Ulrico Hoepli, 1884, p. 122 - 242.
do novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2002.
284 - A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO NO CóDIGO CIVIL: 18 ANOS DE VIGÊNCIA E A INTERPRETAÇÃO •.. GrnsoN Luiz CARLOS BRANCO - 285

Na lógica Tomista-Aristotélica, o Direi to torna as promessas exigí- Por razões que aqui não cabe aprofundar, a incorporação da doutri-
veis e vinculantes, porque representam um ato de fidelidade, fundamen- na contratual pelo Jusracionalismo, e o seu afastamento do pensamen-
to ético da vinculatividade das promessas que visam realizar um ato de to escolástico, não retirou de todo a discussão sobre a funcionalidade,
troca (de justiça comutativa) ou de doação (liberalidade). 9 A finalidade de tal modo que o Código Civil francês foi expresso ao prever um arti-
a ser alcançada com o contrato é essencial para que produza efeitos e go a respeito da causa.
realize os valores que lhe são subjacentes. Entretanto, o contexto da codificação francesa e a pandectística ale-
Isso significa que o reconhecimento do princípio da força obrigatória mã afastaram substancialmente o debate a respeito da funcionalização
dos contratos passou fundamentalmente pela compreensão da existên- do contrato, pois os problemas filosóficos que justificaram tal debate não
cia de um fundamento ético, que por sua vez é também uma finalidade encontravam mais eco, tampouco utilidade prática.
vinculada ao contrato. 10 E sempre que "a finalidade" a ser alcançada é Na perspectiva das duas escolas, o fundamento da obrigatoriedade
relevante para compreensão dos efeitos do contrato, isso representa re- do contrato é fundamentalmente a vontade, surgindo nesse período o
conhecer o seu caráter instrumental e funcional. dogma da "autonomia da vontade" associado ao pacta sunt servanda. Isso
Assim, o desenvolvimento das ideias que levaram ao pacta sunt ser- consagrou as ideias iluministas de um sujeito autônomo tal como pen-
vanda, passa por definir o contrato pela sua finalidade objetiva, razão sado por Kant, sem que uma finalidade seja imanente ou externa a essa
pela qual a definição expressa o mínimo que as partes devem saber para vontade tenha relevo para a produção de efeitos jurídicos. 13
contratar. Também identifica uma finalidade a ser atendida por outras Foi somente com as transformações sociais e econômicas do final do
obrigações contratuais. 11 século XIX e início do século XX que ressurge o debate sobre a funciona-
Jaques Ghestin, ao analisar esse fenômeno descreve o contrato lização. Entretanto, num contexto distinto, num cenário no qual a força
como fruto "de notre tradition gréco-latine et judéo-chrétienne, qui fait obrigatória do contrato é assentada na autoridade da Lei, matéria com-
de l' utile et du juste les finalités objectives du contrat". A liberdade de pletamente estranha ao debate funcionalista dos períodos precedentes.
contratar é caracterizado por um "déplacement de valeurs, fondement Nesse sentido, pode-se dizer que a função social dos contratos, tal
et cause du rapport obligatoire". 12 como pensado o contrato no período da codificação, surge no século
9 Isso é feito a partir de sua definição, que por sua vez depende da correta compreensão da XIX a partir de três vertentes distintas: a alemã, a partir do pensamen-
essência da coisa. A definição estabelece o gênero ao que a coisa pertence, e as diferenças to de Jhering, Otto Von Gierke e Karl Renner, a francesa, especialmen-
específicas constituem as espécies. Essas diferenças específicas descrevem como as poten-
cialidades presentes no gênero se realizam. Por exemplo: um homem tem tais e tais partes, te pelo pensamento de Leon Duguit e da influência do "funcionalismo
pois a definição de homem inclui essas partes, e porque elas são condições necessárias para
a sua existência. Por isso, Aristóteles afirmava que o método correto era verificar as caracte-
estrutural" de Emilie Durkeim, e a italiana, com especial relevo para as
rísticas definitivas que distinguem o animal como um todo. Essa metodologia foi aplicada por obras de Enrico Cimbali e Emilio Betti.
Aristóteles a todos os assuntos que ele investigou. Quando ele discutiu as virtudes da vincu-
latividade das promessas, de justiça comutativa e de liberalidade/generosidade, ele estava No cenário germânico, é com a rebeldia de Jhering à Pandectística
aplicando essa metodologia que utilizou no estudo dos seres vivos.
10 Essa noção de "causa essencial" tomada de Aristóteles, com uma específica aplicação por que se começa da discutir função. Em sentido completamente distinto
Tomaz de Aquino e desenvolvida pelos praxistas (como Baldo e Bartolo), porém fundamen- da perspectiva precedente (pensamento Tomista-Aristotélico), o funcio-
talmente sistematizada pela escolástica espanhola (Soto, Molina, etc.) teve papel fundamental
na noção de "causa" e no âmbito da common law, na noção de consideration, elementos que nalismo de Jhering propõe a identificação da dimensão social do Direito,
invariavelmente atraem o debate para a funcionalidade do contrato.
11 GORDLEY, J. Op. Cit. O pensamento Tomista-Aristotéico afirma que para saber o que uma sugerindo retorno a uma "ética material", ligada a dados sociais objetivos,
coisa é, devemos saber sua causa formal. Quando Tomás de Aquino estudou o direito natural que são os interesses decorrentes das relações e forças sociais. De modo
ao definir ações como promessa e casamento e suas consequências, ele estava dando ao mé-
todo aristotélico uma nova aplicação. Assim, para Tomás de Aquino, a essência está ligada à
finalidade, e a essência de uma ação é definida pela finalidade que tem para o homem. Jacques. Le contrat en tant qtf'échange économique. Revue d'économie industrielle, vol. 92,
12 Ghestin avança no seu conceito para afirmar que "Le contrat estdefine com me "une operation 2e et 3eme trimestres 2000. Economie des contrats: bilan et perspectives, p. 84.
économique fondée sur l'équibre objectif ou subjectif des valeurs échangées", p. 84, para rea- 13 Ludwig Raiser afirma que a filosofia de Kant substituiu a "ética social" desenvolvida como
firmar sua noção de que o contrato não serve para a troca de bens, mas de valores. O acordo âncora da liberdade contratual nos séculos anteriores, por uma ideia de autonomia moral da
de vontades é um elemento objetivo e essencial deduzido "de notre tradition gréco-latine et pessoa que foi impulsionada pela obra de Savigny. RAISER, Ludwig. Funzione dei contrato e
judéo-chrétienne, qui fait de l'utile et du juste lês finalités objectives du contrat". GHESTIN, Libertà contrattuale. ln: li Compito dei Diritto Privato. Milano: Giuffre, 1990, p. 53.
GERSON Luiz CARLOS BRANCO - 287
286 -A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO NO CóDJGO CIVIL: 18 ANOS DE VIGÊNCIA E A INTERPRETAÇÃO ••.

lidariedade social, cujo resultado é a moderação do poder da vontade


muito objetivo, a perspectiva funcional de Jhering contribuiu para a in-
como critério único para definição do conteúdo do Direito. 18
terpretação teleológica na dogmática jurídica, com reflexos sobre a in-
terpretação dos contratos e sua inserção na vida social. O contato não é Uma análise da doutrina contemporânea, posterior ao advento do
só mais vontade e texto, mas também contexto. 14 Código Civil indica que essa base de análise foi fortemente utilizada
como viés interpretativo da disposição do Art. 421 do Código Civil. 19
Além das ideias de Jhering, que retomam a perspectiva funcional
ao tratar do interesse, a doutrina alemã trouxe outras contribuições im- Todavia, a contribuição mais importante para a construção do Art.
portantes para a discussão a respeito da funcionalidade dos institutos 421 do Código Civil foi a contribuição da doutrina italiana, especial-
do Direito Privado, tal como foi a obra clássica sobre "A função social mente as obras de Enrico Cimbali e Emílio Betti, tendo em vista a forte
do Direito Privado" Otto Von Gierke. 15 influência do pensamento desses juristas sobre a doutrina brasileira. 20
Entretanto tanto Von Gierke quanto Jhering tinham em mente Cimbali é o primeiro jurista que usa a expressão "função social do
principalmente a propriedade e por isso pouco disseram sobre o con- contrato", 21 atribuindo um caráter instrumental de "reconciliação e rein-
trato. Foi Karl Renner quem efetivamente enfrentou a problemática da tegração" do individual com o social. O homem celebra o contrato para
função social dos contratos, conectando os contratos não mais somen- realizar de maneira direta interesses individuais (prover sua subsistên-
te a "noção de interesse", mas estabelecendo uma relação entre os fa- cia) e de maneira indireta para realizar interesses sociais (subsistência da
tos econômicos e jurídicos. Embora haja dependência entre processos agregação social da qual participa". Essas duas finalidades mantêm-se
econômicos e jurídicos, com uma recíproca determinação, não há coin- em equihbrio entre tendências individuais e tendências sociais. 22
cidência, pois a produção não é um contrato. Sua proposição é de que A síntese de seu pensamento é revelada pela sentença segundo a
cada momento histórico determina uma certa função para o contrato. qual o contrato tem uma face voltada para o indivíduo e outra para a so-
A função social é a soma de todas as funções, pois cada função particu- ciedade, adotada expressamente por Miguel Reale e tornada substanti-
lar se funda numa única função social. 16 va na expressão "em razão", que a Lei da Liberdade Econômica retirou
Sob a influência do pensamento do sociólogo Émilie Durkheim, 17 do Art. 421 do Código Civil.
que dedicou um capítulo de seu livro sobre lições de sociologia ao con- Seguindo a mesma tradição Emílio Betti concebeu uma teoria ge-
trato, Leon Duguit acrescenta à teoria da função social dos contratos ral do negócio jurídico que tem seu centro no reconhecimento da au-
uma característica, de que o fim para o qual contrato serve não é pura- tonomia privada como fato social. Esse fato social é recepcionado pelo
mente individual tal como na teoria do interesse de Jhering, mas de so- ordenamento sob a forma de um preceito, cuja função é reconhecer o
poder que os particulares têm de regulamentar um determinado setor
14 "sem causa eficiente, um movimento da vontade é tão inconcebível quanto o movimento da
matéria; acreditar na liberdade de querer no sentido de a vontade poder espontaneamente, de sua vida, que é a vida de relação.
sem qualquer causa impulsora, pôr-se em movimento, é como acreditar no mentiroso que
diz sair do pantanal agarrando-se no topete". JHERING, Rudolf von. A finalidade do Direito. 18 DUGUIT, Leon. Las transformaciones generales dei Derecho Privado desde el Código de
Edição histórica. Tradução deJoséAntônio Faria Correa. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979, p. 12. Napoleón. 2° ed. Madrid: Francisco Beltran, Libreria espaiiola y extranjera, 1920, p. 69 - 74.
Ver também JHERING, Rudolf von. Do lucro nos contratos e da suposta necessidade do valor Veja-se as obras de FERREIRA DA SILVA, Luís Renato. A funcão social do contrato no novo có-
patrimonial das prestações obrigatórias. ln: Questões e Estudos de Direito. Campinas: LZN digo civil e sua conexão com a solidariedade social. ln: lng~ Sarlet. (Org.). O novo código civil
Editora, 2003. e a constituição. 1ªed.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, v. 1, p. 130-145. e MARTINS-
15 GIERKE, Otto von. La función social dei Derecho privado y otros estúdios. Granada: Editorial COSTA, Judith. Reflexões sobre a função social dos contratos. Revista Direitogv, São Paulo, v.
Comares, 2015. A propósito, da obra de Gierke, recente introdução feita a nova tradução 1, p. 41-66, 2005.
para o inglês feita por Ewan McGaughey traz aspectos interessantes do contexto da obra, no 20 A propósito da importância de Miguel Reale no processo da codificação ver MARTINS-COSTA,
quadro de crítica ao projeto do 8GB. McGaughey, Ewan, The Social Role of Private Law (Otto Judith e BRANCO, Gerson. Diretrizes Teóricas do Código Civil. São Paulo: Saraiva 2002.
von Gierke, 1889) (October 31, 2016). (2018) 19(4) German Law Journal 1017; King's College 21 A função social "serve ad assicurare a ciascuno quel tanto di godimento Che gli spetta in pro-
London Law School Research Paper. Available at SSRN: <https://ssrn.com/abstract=2861875> porzione deli o sforzo sostenuto per procurarei mezzi di sussistenza e di sviluppo a sé e ad altri,
or <http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2861875>. nantenendo um' equazione costante tra que! Che si dá e que! Che si receve, tra que! che si produce
16 RENNER, Karl. Gli istituti dei diritto privato e la !oro funzione giuridica. Un contributo alia e que! che si consuma". CIMBALI, Enrico. La funzione sociale dei contratti e la causa giuridica
critica dei diritto civile. Bologna: Società editrice il Mulino, 1981. Tradução da edição de 1929, della !oro forza obbligatoria. Archivio Giuridico, n. 33, fasc. l e li, 1884, p. 187-217, ln: CIMBALI,
por Cornelia Mittendorfer. Enrico. Opere complete. Torino: Unione Tipográfico-editrice Torinese, 1907, p. 34- 36.
17 DURKHEIM, Émile. Lições de Sociologia: a Moral, o Direito e o estado. Tradução e Notas deJ. 22 CIMBALI, Enrico. Opere complete. Torino: Unione Tipográfico-editrice Torinese, 1907.
B. Damasco Pen na. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1983.
288 - A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO NO Córneo CIVIL: 18 ANOS DE VIGÊNCIA E A INTERPRETAÇÃO •••
GrnsoN Luiz CARLOS BRANCO - 289

A função social do contrato é conectada a causa, reconhecida como ou mesmo como problematização sobre a conformação da liberdade de
"função social típica" dos negócios da vida privada. A ligação entre os contratar, no Direito brasileiro a função social do contrato faz parte da
planos econômico e jurídico tem natureza dialética de recíproca determi- dogmática jurídica e tem sido usada como fundamento de decisões a
nação: o ato de vontade determina o conteúdo do preceito, mas este so- respeito de conflitos relativos à execução e interpretação dos contratos.
mente produz efeitos se o seu conteúdo for coincidente com o substrato As manifestações a respeito da funcionalização são muito díspa-
econômico e social que lhe é subjacente. Portanto, há uma relação recí- res, ao ponto de que há ordenamentos como o Direito Francês em que
proca de "dever-ser" entre o plano jurídico e o plano da vida de relação. 23 a problemática da funcionalização do contrato é desenvolvida em cone-
A função social é conectada com a causa do contrato, instrumento xão com a noção de boa-fé objetiva, tendo em vista o caráter teleológico
de controle do conteúdo e da adequação valorativa das declarações de desse princípio. 26 Diferentemente, no Direito Civil italiano são comuns
vontade, pois o aspecto objetivo da causa, que é a função social típica, as referências à funcionalização, especialmente por conta da noção de
precisa estar em consonância com o seu reflexo subjetivo, que é a von- causa-função e da importância do pensamento jurídico dos causalistas
tade individual dirigida para um interesse concreto. naquele ordenamento.
No cenário jurídico brasileiro talvez o acolhimento da função social Qy.ando se analisa o cenário da common law, o fenômeno mais
do contrato deva-se mais a Orlando Gomes do que a Miguel Reale, pois importante do funcionalismo é o debate sobre a forte influência da
foi o jurista baiano quem propagou a ideia de função social do contrato chamada "análise econômica do Direito" no Direito Contratual nor-
a partir das lições de Emílio Betti, especialmente em torno do problema te-americano. A perspectiva funcional é distinta da que é representada
dos contratos mistos e dos contratos socialmente típicos como categoria no Art. 421 do Código Civil, tendo em vista que é a ideia de eficiên-
autônoma. 24 Essa perspectiva permitiu forte aplicação da concepção de cia econômica e "redução de custos de transação", que governam os
funcionalidade tanto pela doutrina quanto na jurisprudência posterior. 25 fins do contrato. 27
Como se disse no início, não obstante a discussão sobre
funcionalização da liberdade contratual seja uma constante tanto nos
26 A propósito, ver Anne-Sylvie Courdier-Cuisinier. Le solidarism contractuel. Paris: Litec,
sistemas da common law, quanto da civil law, não se conhece norma le- 2006; MAZEAUD, Denis. la cause pour que survive la cause, en dépit de la réforme! Droit et
Patrimoine, Nº 240, 1er octobre 2014. Mazeaud Denis. La confiance légitime et l'estoppel. ln:
gal ou precedente com conteúdo equivalente ao do Art. 421 no Direito Revue internationale de droit comparé. Vai. 58 Nº 2,2006. pp. 363-392. DAVID, Marcél. La
Comparado. solidarité comme contrat et com me éthique. Paris: Berger-Levrault, 1982.
No Direito brasileiro, o sentido da funcionalização adotado no Direito francês é reproduzido
De modo peculiar cabe destacar nesta primeira parte, que enquanto por Vera Fradera, ao descrever o que chama de "concepção voltada para uma finalidade de
ordem funcional (no sentido da escola de Lyon}". FRADERA, Vera. Liberdade contratual e
em alguns sistemas jurídicos o debate sobre a "funcionalidade" do con- função social do contrato - Art. 421 do Código Civil. ln: MARQUES NETO, Floriano Peixoto,
trato é desenvolvido como um problema da Teoria Geral do Direito, RODRIGUES JR., Otavio Luiz, XAVIER LEONARDO, Rodrigo. Comentários à Lei da Liberdade
Econômica - Lei 13.874/2019. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 298 a 300.
23 BETTI, Emílio. Negozio Giuridico. Novíssimo Digesto Italiano, p. 209 e ss. BETTI, Emílio. 27 As obras de Ronald Coase, como um dos principais precursores da análise econômica, e o
lstituzioni di Diritto Romano. Volume secando, parte prima. Padova: Cedam - Casa Editrice desenvolvimento posterior realizado por Richard Posner, podem ser tidos como principais
Dott. Antonio Mílani, 1962.BETTI, Emílio.Teoria General de las Obligaciones- Tomo 1. Madrid: referências teóricas dessa escola. COAS E, R. H. The nature ofthe Firm. Economica, New Series,
Editorial de Drerecho Privado. v. 4, n. 16, 1937, p. 386-405 analisa o contrato como fator de eficiência econômica e seu caráter
24 A propósito, verMARTINS-COSTA,Judith. Novas Reflexões sobre o Principio da Função Social instrumental na organização da empresa. POSNER, Richard A. Let us never blane a contract
dos Contratos. Revista Estudos de Direito do Consumidor, Centro do Direito do Consumo, breaker. Michigan Law Review, v.107= 1349-1363 é um exemplo do trabalho do juiz americano
Universidade de Coimbra, n. 7, Coimbra, 2005, p. 49-109 e TALLAMINI DOS SANTOS, Carolina ao tratar sobre a boa-fé como uma "ferramenta econômica pragmática" em vez de um princípio
Mallmann. Delineamentos de uma função social do contrato no pensamento das "transforma- ético tal como concebemos, sendo um bom exemplo do desenvolvimentofuncionalista dessa
ções" de Orlando Gomes. Revista de Direito Privado, vai. 87/2018 1 p. 179 -195 J Mar/ 2018. conc~pção. Em português tem sido considerado como principal obra de referência o livro de
Ver também do autora clássica obra GOMES, Orlando. Transformações Gerais do Direito das ARAUJO, Fernando. Teoria Económica do Contrato. Coimbra: Almedina, 2007.
Obrigações. 2ª ed. São Paulo: RT, 1980. Para uma crítica a essa concepção, por conta da falta de consideração dos aspectos éticos
25 Éimportante observar que há manifestações de parte da doutrina, como faz Vera Fradera, de essenciais das relações privadas já formuladas nos anos 1970 e 1980, verGILMORE, Grant. The
que com a edição do Código Civil "sofreu a segurança jurídica", tendo esta sido abalada pela death ofcontract. Columbus, Ohio, 1974, e especialmente FRIED, Charles. Contractas Promise.
liberdade que o Juiz "conforme a sua compreensão desse conceito". FRADERA, Vera. Liberdade A theory of contractual obligation. Harvard University Press, 1981.
contratual e função social do contrato-Art. 421 do Código Civil. ln: MARQUES NETO, Floriano Mais recentemente pode-se indicar a sólida crítica de COLLINS, Hugh. The Law of Contract.
Peixoto, RODRIGUES JR., Otavio Luiz, XAVIER LEONARDO, Rodrigo. Comentários à Lei da Cambridge: Lexis Nexis, 2003, SMITH, Stephen. ContractTheory. Oxford, 2004, p. 108-136,
Liberdade Econômica - Lei 13.874/2019. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 295. e também de WEINRIB, ErnestJ. The idea of private law. Oxford, 2012, p. 01 -21.
290 - A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO NO CóOIGO ÜVIL: 18 ANOS DE VIGÊNCIA E A INTERPRETAÇÃO •••
GERSON Luiz CARLOS BRANCO - 291

Mais próximo do que se compreende como o funcionalismo no


Direito Contratual brasileiro, pode-se identificar nas obras de Hugh li. A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NA JURISPRUDÊNCIA

Collins, Roger Brownsword, entre outros autores, que observam o fenô- DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
meno da funcionalização, a importância do contexto e dos valores éticos A análise da função social dos contratos na jurisprudência brasilei-
a serem realizados por meio da liberdade contratual. 28 ra passa pelo reconhecimento inicial de que não há um bloco uníssono,
Observa-se no debate jurídico da common law fortes correntes an- sistemático e absolutamente coerente nos Tribunais do país. Pelo con-
ti-funcionalistas, como são as obras de Charles Fried29 e mais recente- trário, a jurisprudência sobre a matéria é substancialmente difusa e tó-
mente as manifestações de ErnestJ. Weinrib, 30 por conta da tese central pica, de modo que embora possam existir "paradigmas" implícitos em
de suas obras que rejeitam o funcionalismo no Direito Privado. A pro- tais decisões, é difícil afirmar que as decisões tenham sido fundantes ou
pósito do contrato, Weinrib afirma que sua função é ser "o contrato" e determinantes de determinados entendimentos.
nada além disso, em um contexto de forte crítica a inserção de elemen- Nesse quadro, a opção realizada neste capítulo foi de sintetizar as
tos externos a dogmática jurídica, especialmente à análise econômica do principais linhas jurisprudenciais construídas no Superior Tribunal de
Direito. Esta corrente é considerada predominante atualmente no seio Justiça a respeito da matéria, tendo em vista que é o Tribunal do país
da common law, embora encontre forte resistência por conta de sua con- responsável pela uniformização jurisprudencial, porém, especialmente
cepção metafísica e pressuposição de um Direito Natural. 31 porque as decisões dos Tribunais Estaduais a respeito da matéria pos-
Ou seja, as diversas vertentes da doutrina antecedente ao Código suem uma difusão ainda maior e de difícil sistematização.
Civil auxiliaram a acomodar a concepção de Função Social dos Contratos No âmbito do Superior Tribunal de Justiça pode-se dizer que há
prevista na cláusula geral do Art. 421, o que pode ser percebido na ju- linhas relativamente definidas, que permitem afirmar um conjunto de
risprudência da principal corte do país em matéria de Direito Privado, decisões que indicam um caminho, relativamente coerente com as ideias
que será abordada na segunda parte deste capítulo. desenvolvidas na doutrina conforme apresentado na primeira parte. Para
analisar essas linhas o método adotado para sistematizar as decisões do
28 COLLINS, Hugh. The law of Contract. London: Lexis Nexis, 2003, p. 94 113. No capítulo The
contractualization of social life, Collins desenvolve a relação do contrato e os mercados, as Superior Tribunal de Justiça foi a de agrupar casos e entendimentos a
técnicas legais para controle do escopo dos contratos, externalidades, justiça distributiva, etc. respeito do modo de aplicação do Art. 421 do Código Civil como con-
BROWNSWORD, Roger. Contract Law. Themes for the twenty-first century. Oxford: Oxford,
2006, p. 37-41. Brownsword enfrenta no capítulo específico chamado The function of contract cretizador da função social dos contratos,.tendo como base de consulta
law as tendências de controle dos fins dos contratos após as obras de Stwart Macaulay, Patric
Atiyah e do próprio Hugh Collins no âmbito da doutrina e jurisprudência norte-americanas,
a totalidade das decisões coletivas, excluídas as decisões monocráticas.
especialmente para controle de fins no contexto de um mercado global, acentuando também Tomaram-se todas as decisões do Tribunal desde o advento do Código
a importância recente da boa-fé no âmbito da common law.
29 FRIED, Charles. Contract as promise. A theory of contractual obligation. Harvard University Civil que tenham mencionando o Art. 421 do Código, ou expressões co-
Press, 1981. nexas a funcionalidade do contrato e função social do contrato.
30 WEINRIB, Ernest J. The idea of private law. Oxford, 2012, "My basic contention, then, is that
private law relationships have a unifying structure. This structure is internai in the two senses Não se levou em consideração meras referências ilustrativas, nas
suggested above, that it is implicit in the salientfeatures of private law and that it is intelligible
without externai referent as a harmony of parts making upa coherent whole. Beca use priva te quais a expressão função social dos contratos ou o Art. 421 do Código
law attempts to elaborate doctrines expressive ofits own potential coherence, the structure is
ais o a regulative idea. This is why the purpose of priva te law is simply to be priva te law." p. 21. Civil tenham sido tomados como mero recurso auxiliar ou fora de con-
31 SAPRAI, Prince. Contract Law Without Foundations. Oxford: Oxford, 2019, p. 41. texto. Do mesmo modo cuidou-se de indicar aqueles casos em que a
Um exemplo da intensidade sobre o debate a respeito do funcionalismo na common law é a
recente obra de Prince Saprai, editado no ano de 2019, cuja tese central é justamente crítica matéria tenha sido invocada, porém o fundamento da decisão é regula-
às concepções não funcionalistas, chamadas por ele de Foundationalism, dirigindo-se espe- do por disposição legal específica com vigência sobre a relação jurídica
cialmente a autores como Fried e Winrieb, que desenvolveram suas ideias como resposta a
principal corrente funcionalista que é a da análise econômica do Direito. objeto da controvérsia. 32
Prince Saprai ao fazer a crítica à uma determinada concepção anticausalista, afirma sua per-
spectiva funcionalista: "This teleological and distinctly republican approach to contract law 32 Decisões meramente referenciais, porém sem qualquer conteúdo dogmático claro: RESP n.
diverges structurally from the consequentialism oflaw and economics, and it differs in at least 1.525.109 SP, Ricardo Vilas Bôas Cueva, j. em 04.10.2016; AgRg no RECURSO ESPECIAL No
four significantways from the promise theory. First, on my view contract law serves a purpose 1.444.292 SP, Rei. Min. Sidnei Beneti, j. em 05.08.2014; AgRg no AGRAVO EM RECURSO
that is distinct from the practice itself; it is functional". SAPRAI, Prince. Op. Cit., p. 8. ESPECIAL No 32.884-SC, Rei. Min. Raúl Araújo, j. em 17.11.2011. RECURSO ESPECIAL No 887.946
-MT, Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. em 10.05.2011.AgRgnoAGRAVO DE INSTRUMENTO No
292 - A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO NO CóOIGO CIVIL: 18 ANOS DE VIGÊNCIA E A INTERPRETAÇÃO .•. l GERSON Luiz CARLOS BRANCO - 293

Há casos em que a invocação da Função Social é meramente estudo da função social e da finalidade econômica e social, está na pers-
argumentativa, como na hipótese do caso em que foi provido um recur- pectiva do jurista na análise do fenômeno jurídico em relação aos resul-
so para considerar válido um aval em uma Nota Promissória Rural. O tados práticos do ato: o jurista que estuda a função, tem seu foco sobre o
fundamento jurídico é de que a invalidade do aval depende do atendi- instrumento para alcançar determinados fins, verificar se o instrumento
mento de disposição legal expressa. Entretanto, logo após o fundamen- está servindo para fins pré-determinados, sua validade e eficácia condi-
to jurídico a decisão faz uma referência genérica, que não é efetivamente cionada pela funcionalidade; o jurista que estuda os fins, tem seu foco
relevante para o conteúdo do decisum. 33 Também não foram analisados sobre os efeitos, não pela contraposição ao instrumento, mas em relação
aqueles casos em que a Função Social dos Contratos é mencionada como a norma que pré-determina os fins a serem alcançados pelo instrumento.
não sendo suficiente para alterar a aplicação de regras legais cogentes. 34 Não é propriamente o caso de se questionar sobre o cumprimento
Os principais temas desenvolvidos pelo Superior Tribunal de Justiça da função social do contrato, pois o preceito contratual não é objeto de
podem ser agregados em cinco linhas, a seguir analisadas, que são (a) maior indagação. O problema posto é de que o direito de resolver teve
funcionalidade social do contrato como limite ao exercício de posições seu exercício contrariamente a finalidade para a qual o direito nasceu.
jurídicas subjetivas; (b) Interpretação extensiva (teleológica e, portanto, Está em discussão a extensão e as condições para a eficácia de um de-
funcional) dos deveres contratuais; (c) hipótese de alargamento da no- terminado direito, nascido a partir de um ato válido.
ção de parte: eficácia do contrato em benefício de terceiro; (d) função Fenômeno comum, com perspectiva diferente, são diversos os casos
social do contrato associada a políticas públicas; e, (e) tipicidade e fun- em que o Superior Tribunal de Justiça considera que a noção de "fun-
cionalidade social do contrato. ção social do contrato" foi utilizada para negar a possibilidade de reso-
lução de um contrato.
A) FUNCIONALIDADE SOCIAL DO CONTRATO COMO LIMITE AO
EXERCÍCIO DE POSIÇÕES JURÍDICAS SUBJETIVAS
Exemplo disso é o caso de um compromisso de compra e venda
de imóvel da Encol S.A., que não concluiu a construção por conta de
Muitas das decisões do Superior Tribunal de Justiça sobre a Função sua falência. Os adquirentes das unidades do empreendimento no qual
Social dos Contratos tratam sobre o exercício abusivo de posições jurí- seria construído o imóvel reuniram-se e, na forma da Lei n. 4.591/64
dicas subjetivas com fundamento na funcionalidade de direitos previs- (Condomínio e Incorporação), deliberaram substituir o incorporador e
tos no contrato. contratar outro construtor. 35
Neste caso, embora a questão da "finalidade" do contrato possa ser A decisão usou a noção de "função social do contrato" para limitar
tomada em consideração, talvez a caracterização da funcionalidade não o direito individual do contratante em resolver o contrato por inadim-
seja propriamente do contrato, mas do exercício disfuncional de deter- plemento, na perspectiva de que o interesse coletivo dos demais adqui-
minados direitos, tal como o direito de resolver o contrato, cujo funda- rentes era de executar os seus contratos e, consequentemente, construir
mento é o Art.187 do Código Civil. o empreendimento.
Neste sentido, tanto a ideia de "função social dos contratos" quanto a O caso apresenta duas dimensões da funcionalidade, pois embo-
"finalidade econômica e social" prevista no art. 187 do Código Civil pos- ra o efeito concreto tenha sido o limite ao exercício do direito, também
suem um componente finalístico que lhe é inerente. A diferença entre o há o reconhecimento de uma eficácia externa do contrato, além, é claro,
de outras implicações, inclusive processuais, por conta da sucessão da
1.383.974-SC(2010/0213363-o), Rei. Luís FelipeSalomão,j. em 13.12.2011. EDcl nos EMBARGOS
DE DIVERGÊNCIA EM RESP No 791.077-SP, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. em 23.04.2008. Massa Falida por uma outra construtora.
33 RESP n. 1.483.853, Rei. Min. Moura Ribeiro, j. em 04.11.2014. "Essa linha interpretativa, igual-
mente, é a que melhor atende a função social do contrato, haja vista que no plano objetivo, não Veja-se o principal trecho da decisão na qual essa perspectiva foi
é difícil constatar a existência de gama enorme de pequenos produtores rurais que, impossi- adotada:
bilitada de oferecer garantia diferente da pessoal (aval), tem o acesso ao crédito obstruído ou
só o encontra franqueado em linhas de crédito menos vantajosas".
34 RESP n. 1.413.818 - DF, Rei. Min. Vilas Bôas Cueva, j. em 14.10.2014. 35 RESP n. 1.115.605 - RJ, Rei. Min. Nancy Andrighi, j. em 07.04.2011.
294-A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO NO CóDIGO CIVIL: 18 ANOS DE VIGÊNCIA E A INT_ERPRETAÇÃO •.• GERSON Luiz CARLOS BRANCO - 295

"Embora o art. 43, III, da Lei no 4.591/64 não admita ex- de modo a realizar, por outro lado, os princípios da função social
pressamente excluir do patrimônio da incorporadora falida e e da boa-fé objetiva.
transferir para comissão formada por adquirentes de unidades Nessa linha, a insuficiência obrigacional poderá ser relativizada
a propriedade do empreendimento, de maneira a viabilizar a com vistas à preservação da relevância social do contrato e da
continuidade da obra, esse caminho constitui a melhor maneira boa-fé, desde que a resolução do pacto não responda satisfa-
de assegurar a funcionalidade econômica e preservar a função toriamente a esses princípios. Essa é a essência da doutrina do
social do contrato de incorporação, do ponto de vista da co- adimplemento substancial do contrato."37
letividade dos contratantes e não dos interesses meramente
A decisão acima transcrita, foi proferida contra negativa de uma
individuais de seus integrantes."36
seguradora em efetuar o pagamento de um pecúlio por morte. O con-
Sob o ponto de vista da análise detalhada dos efeitos da decisão, a
tratante atrasou as parcelas do seguro e ao tentar efetuar o pagamento
funcionalidade do contrato foi utilizada como modo de (a) compreen-
recebeu informação de que o mesmo teria sido cancelado por inadim-
são de um conjunto de contratos conexos que possuem uma finalidade
plemento. Posteriormente a isso houve a morte.
comum e interdependente; (b) essa interdependência limita a possibi-
O Tribunal entendeu que o pagamento regular por longo tempo
lidade de individualmente os contratantes exercerem determinados di-
reitos, como o direito de resolver por inadimplemento. e as tentativas de pagamento demonstram que a resolução do contra-
to por parte da seguradora foi "ineficaz", pois haveria possibilidade de
A decretação da falência do vendedor no compromisso de com-
purgação da mora.
pra e venda não resolve automaticamente o contrato, pois pode a Massa
Como se pode perceber, a referência à função social dos contra-
Falida executá-lo. Contudo, a consideração de que os adquirentes pos-
tos não representou propriamente criação ou alteração de direitos ou
suem uma ligação e uma reciprocidade de interesses permite que o di-
reito atribua soluções uniformes que extrapolem o interesse individual, de interpretação que se pode dizer fundada sobre o Art. 421 do Código
Civil, pois tanto matérias como o adimplemento substancial e o limite
o que está previsto de algum modo nas regras da Lei 4.591/64.
ao exercício de direitos no âmbito do Direito Contratual, são matérias
Todavia não se pode deduzir do Art. 421 a limitação ao exercício de
que circulavam na doutrina e na jurisprudência brasileiras antes mesmo
direitos no caso o limite ao direito de resolver o contrato. Por outro lado,
' do advento do Código Civil.
a possibilidade de que um ou alguns dos adquirentes da unidade exer-
cam seu direito de resolução resultará na inviabilidade da continuidade B) INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA (TELEOLÓGICA E, PORTANTO,
da construção e dos fins do contrato. A resolução do contrato tornaria FUNCIONAL) DOS DEVERES CONTRATUAIS
os adquirentes credores quirografários e a possibilidade de efetivação de
Outra linha de aplicação da norma do Art. 421 do Código Civil foi
seu crédito bastante remota.
a utilização da norma para promover uma interpretação funcional dos
No mesmo sentido da decisão anterior, como limitadores ao exer- deveres contratuais, para compreender que certos deveres ainda que não
cício de direitos, pode-se indicar decisões que fundamentam a teoria do previstos expressamente no texto contratual são decorrência funcional
adimplemento substancial sobre a função social do contrato: do tipo social a que estão associados.
"Vale dizer que, para a resolução do contrato, inclusive pela via Nesse sentido, o STJ entendeu que mesmo após a extinção do con-
judicial, há de se considerar não só a inadimplência em si, mas
trato, determinadas obrigações devem ser executadas, para permitir atin-
também o adimplemento da avença durante a normalidade
gir-se a finalidade contratual. A decisão foi proferida sobre contratos de
contratual.
A partir desse cotejo, entre adimplemento e inadimplemento, é STJ, RESP n. No 877.965- SP, Rei. Min. Luís Felipe Salomão, j. em 22.11.2011. "No caso, embora
37
que deve o juiz aferir a legitimidade da resolução do contrato, houvesse mora de 90 (noventa) dias no pagamento da mensalidade do plano, antes da ocorrên-
cia do fato gerador(morte do contratante) tentou-se a purgação,_ ocasião em q~e.os ~alo~es em
RESP 1.115.605 RJ, Rei. Min. Nancy Andrighi, j. em 07.04.2011.
atraso foram pagos pelo de cujus, mas a ele devolvidos pela entidade ?e prev1?en~1a pnva~a,
com fundamento no cancelamento administrativo do contrato ocorrido 6 (seis) dias antes .
296 - A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO NO CóOIGO Civ1L: 18 ANOS DE VIGÊNCIA E A INTERPRETAÇÃO ... GERSON Luiz CARLOS BRANCO - 297

planos de saúde coletivos, que admitem denúncia no prazo de vigên- te de trânsito", deve ser considerada como deficiência permanente para
cia de um ano, desde que notificada a parte contrária com antecedência fins de pagamento de indenização.
de 60 dias. Contudo, todos os pacientes que estiverem sendo atendidos, Ou seja, a noção de função social foi utilizada como critério legal
internados ou em tratamento, devem ser mantidos nessa condição pela para uma interpretação finalistica e extensiva para obrigar a segurado-
Seguradora. 38 ra a indenizar, em "consideração da natureza pública do seguro obri-
A decisão não trata da questão da possibilidade de ressarcimento gatório e dos princípios da igualdade e da função social do contrato". 39
ou mesmo possibilidade de cobrança de diferenças de contraprestação
e) HIPÓTESE DE ALARGAMENTO DA NOÇÃO DE PARTE: EFICÁCIA
no período, porém estabelece uma eficácia prolongada ao contrato ten-
DO CONTRATO EM BENEFÍCIO DE TERCEIRO - EFICÁCIA EXTERNA
do em vista a finalidade do mesmo, a finalidade econômica e social, com
DO CONTRATO
fundamento no Art. 421 do Código Civil.
A decisão tem uma importância peculiar e de certo modo trata-se Uma das dimensões mais discutidas da função social do contrato,
de uma aplicação autônoma relativamente às tendências doutrinárias e que é o alargamento da noção de parte ou de flexibilização do princípio
jurisprudenciais anteriores, pois reconhece que os valores relacionados da relatividade dos efeitos dos contratos encontra alguns acórdãos re-
à prestação a que o contrato visa cumprir torna-o instrumento essen- conhecendo o contrato como fato social relevante, que não pode ser ig-
cial da vida de relação, mantendo sua eficácia para que tais fins não se- norado e, portanto, reconhecendo sua oponibilidade perante terceiros. 40
jam frustrados. Não obstante essa doutrina seja anterior ao debate da funcionalização do
contrato no Código Civil, o STJ associa tal eficácia contratual à Função
Adicionalmente, a decisão consegue captar a distinção essencial
Social do Contrato.
entre os valores subjacentes e o caráter instrumental do contrato, para
impor a vigência do contrato mesmo após o término por conta da de- Considerou-se o alargamento da noção de parte para dar legitimi-
núncia unilateral. dade passiva para seguradora, permitindo a execução direta da segura-
dora denunciada à lide que foi condenada em via regressiva. A decisão
No mesmo sentido, e também no âmbito das relações de consumo,
foi fundamentada na concepção de que "Mostra-se plenamente correta
a função social dos contratos também foi aplicada pelo STJ como crité-
essa orientação, à luz do princípio da função social do contrato de segu-
rio para interpretação extensiva de obrigações no seguro obrigatório de
ro, permitindo a ampliação do âmbito de eficácia da relação contratual
automóveis. O Tribunal, por meio de decisão relatada pelo Min. Paulo
para se garantir o pagamento efetivo da indenização ao terceiro lesado
de Tarso Sanseverino, considerou que apesar de expressa menção de um
pelo evento danoso". 41
determinado fato como sendo determinante de "incapacidade perma-
nente", no caso "a retirada cirúrgica do baço em decorrência de aciden- Em outras palavras, o STJ considera que a finalidade do contra-
to de seguro é proteger o segurado e embora o mecanismo contratual
não contenha previsão que permita o efeito visado, o Tribunal conside-
38 RESP1.818.495-SP, Rei.Marco Aurélio Belizze,j.em 08.10.2019.3. "O posicionamento adotado
pelo Tribunal de origem diverge da jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça, a
qual proclama ser perfeitamente possível a resilição unilateral e imotivada de contrato coletivo 39 STJ, RESP 1.381.214-SP, Rei. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. em 20.08.2013. "2. Ainda que a
de plano de saúde, desde que cumprido o prazo de vigência de 12 {doze) meses, bem como situação não constasse da tabela utilizada até 2009, elaborada pelo CNSP, há expressa menção
haja notificação prévia do contratante com antecedência mínima de 60 {sessenta) dias, uma na lista incluída na Lei 6.194/74 pela Medida Provisória 456/09, a qual deve ser utilizada como
vez que o art. 13, inciso li, da lei 9.656/1998, incide tão somente nos contratos individuais ou instrumento de integração daquela.
familiares. 4. Entretanto, não obstante seja possível a resilição unilateral e imotivada do con- 3. Caráter exemplificativo das tabelas do seguro DPVAT descritivas de situações configuradores
trato de plano de saúde coletivo, deve ser resguardado o direito daqueles beneficiários que de invalidez permanente.
estejam internados ou em pleno tratamento médico, observando-se, assim, os princípios da
4. Consideração da natureza pública do seguro obrigatório e dos princípios da igualdade e da
boa-fé, da segurança jurídica e da dignidade da pessoa humana. 4.1. Com efeito, a liberdade
função social do contrato.
de contratar não é absoluta, devendo ser exercida nos limites e em razão da função social dos
contratos, notadamente em casos como o presente, cujos bens protegidos são a saúde e a 5. Cobertura concedida proporcionalmente ao grau de invalidez{Súmula474/STJ)". {Grifamos).
vida do beneficiário, os quais se sobrepõem a quaisquer outros de natureza eminentemente 40 Esse é considerado um dos elementos centrais por( ... )
contratual, impondo-se a manutenção do vínculo contratual entre as partes até que os referidos 41 STJ, no AgRg no RECURSO ESPECIAL No 474.921 - RJ, Rei. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j.
beneficiários encerrem o respectivo tratamento médico". em 05.10.2010.
298-A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO NO CóDIGO CIVIL: 18 ANOS DE VIGÊNCIA E A INTERPRETAÇÃO •••
GERSON Luiz CARLOS BRANCO - 299

rou o aspecto instrumental do contrato para admitir que há "solidarie- Tribunal de Justiça essa matéria já era reconhecida sob outros funda-
dade" entre o segurado e a seguradora, podendo a vítima do infortúnio mentos, o que também era reconhecido na doutrina e jurisprudência
escolher contra quem deve promover a execução. A vítima de um dano dos Tribunais Estaduais.
obtém um benefício da relação contratual mantida pela parte contrária
com uma seguradora, que por ser instituição :financeira, etc., tem nor- D) fUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO ASSOCIADA A POLÍTICAS PÚBLICAS
malmente maior solvabilidade que a parte contrária. Embora existam decisões do STJ, como as que são tratadas no próxi-
Sobre essa matéria, o STJ chegou a ter posição mais incisiva ao ad- mo tópico acentuando a importante distinção entre o âmbito do Direito
mitir que a vítima pudesse propor demanda diretamente contra a segu- Privado e as políticas públicas, de algum modo a Corte incorporou em
radora, sem necessidade de que houvesse litisconsórcio passivo com o suas razões de decidir, via função social dos contratos, razões associadas
segurado, posicionamento iniciado pela 3ª Turma do STJ, que em mo- a política pública de combate ao uso do álcool pelos motoristas de veí-
mento posterior foi alterado para rejeitar essa possibilidade: culos automotores nas vias públicas.
"Pode a vítima em acidente de veículos propor ação de in- Isso deu-se mediante decisões relativas a cobertura do contrato de
denização diretamente, também, contra a seguradora, sendo seguro, pois o STJ usou como fundamento a função social do contrato
irrelevante que o contrato envolva, apenas, o segurado, causador para negar cobertura ao segurado que fez uso de bebida alcoólica, acen-
do acidente, que se nega a usar a cobertura do seguro."42 tuando que as normas contratuais precisam estar alinhadas com as ad-
Observe-se que a decisão acima transcrita é do ano de 2000, ou ministrativas e penais, razão pela qual foi usada essa noção de :finalidade
seja anterior a vigência do Código Civil de 2003, razão pela qual pode- econômica e social do contrato de seguro para criar uma "presunção rela-
-se afirmar claramente que não há conexão entre a origem da decisão e tiva" de agravamento do riscos quando o condutor do veículo estiver sob
o fundamento legal. influência do álcool e se envolver em acidente de trânsito, e, com isso fa-
Todavia, por longo período as decisões sobre a "eficácia externa" do zer incidir a perda da indenização, na forma do art. 768 do Código Civil.
contrato, tal como a supra referida estiveram associadas a função social A "presunção é relativa", tendo em vista que o STJ entendeu que pode
do contrato. haver indenização, apesar de a prova do consumo de álcool por parte do
Outro grupo de decisões reconhecendo eficácia externa do contrato segurado, quando este demonstrar inequivocamente que "o infortúnio
é relacionada ao Sistema Financeiro da Habitação, pelo qual é comum ocorreria independentemente do estado de embriaguez (como culpa do
a hipoteca de unidades habitacionais destinadas a venda. O STJ consi- outro motorista, falha do próprio automóvel, imperfeições na pista, ani-
dera que a hipoteca embora seja válida e eficaz não irá produzir o efei- mal na estrada, entre outros)". 44
to de hipoteca, por força da função social dos contratos materializada A conexão com a Função Social do Contrato está em um elemen-
no Art. 1.488 do Código Civil. 43 Trata-se de decisão que considera que to externo, dado por valores e políticas públicas: ''A função social desse
o efeito da hipoteca não pode recair sobre a propriedade do imóvel ad- tipo contratual torna-o instrumento de valorização da segurança viária,
quirido, mas apenas sobre o crédito de titularidade do comprador, para colocando-o em posição de harmonia com as leis penais e administra-
o qual :fica a hipoteca sub-rogada, matéria também associada à Função tivas que criaram ilícitos justamente para proteger a incolumidade pú-
Social dos Contratos, porém com ocorrência no período anterior à vi- blica no trânsito". 45
gência do atual Código Civil. Na mesma linha, o contrato para prover "crédito educativo", no qual
Em síntese, não obstante as decisões que fundamentam a ex- o papel atribuído à funcionalidade do contrato é levado em consideração
tensão do conceito de parte ou a eficácia externa sejam fundamenta- em outra medida, por ser considerada uma funcionalidade social estrita. 46
das na função social do contrato, observa-se que mesmo no Superior 44 RESP n. 1.485.717-SP, Rei. Min. Ricardo Vilas Bôas Cueva, j. em 22.11.2016.
45 RESP n. 1.485.717-SP, Rei. Min. Ricardo Vilas Bôas Cueva, j. em 22.11.2016.
42 RESP, 228840/RS, Rei. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. em 26.06.2000.
46 Ag,Reg. No RESP, n. 1.270.314 - RS, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. em 25.02.2014.
43 RESP n. 691.738 - SC, Rei. Min Nancy Andrighi, j. em 12.05.2005.
"3. O Contrato de Crédito Educativo, dada a elevada finalidade nitidamente social da sua
300 - A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO NO Córneo CIVIL: 18 ANOS DE VIGÊNCIA E A lt'!TERPRETAÇÃO ••• GERSON Luiz CARLOS BRANCO - 301

A decisão afastou a incidência do Código de Defesa do Consumidor da do como fundamento jurídico a função social dos contratos, o Superior
referida relação contratual, porém entendeu que pelo disposto no Art. Tribunal de Justiça decidiu em sentido diretamente inverso47 •
421 do Código Civil os fins sociais do contrato precisam ser tomados A relatora do recurso tomado aqui como paradigma de um grupo
em consideração. No caso, apesar da longa fundamentação a decisão foi de casos, Min. Nancy Andrighi, decidiu a questão analisando diversos
tomada para não admitir cláusula penal moratória no percentual de 10%, aspectos, entre eles a boa-fé e os critérios de incidência do art. 478 do
tendo sido reduzida a mesma para 2% sobre o valor do débito. Código Civil, tendo, no que respeita a este artigo, afumado o seguinte:
''A função social infugida ao contrato não pode desconsiderar
E) TIPICIDADE E FUNCIONALIDADE SOCIAL DO CONTRATO
seu papel primário e natural, que é o econômico. Este não pode
Há um conjunto de decisões judiciais que são as que mais se aproxi- ser ignorado, a pretexto de cumprir-se uma atividade beneficen-
mam da noção de "decisões paradigmáticas", tendo em vista que resolve- te. Ao contrato incumbe uma função social, mas não de assistên-
ram questões centrais associadas a liberdade contratual, que diz respeito cia social. Por mais que o indivíduo mereça tal assistência, não
à possibilidade de revisão dos contratos com fundamento na função so- será no contrato que se encontrará remédio para tal carência.
cial dos contratos. O instituto é econômico e tem fins econômicos a realizar, que
não podem ser postos de lado pela lei e muito menos pelo seu
Logo após o início da vigência do Código Civil, o Tribunal de Justiça
aplicador. A função social não se apresenta como objetivo do
do Estado de Goiás proferiu diversas decisões permitindo a revisão de
contrato, mas sim como limite da liberdade dos contratantes
contratos de compra e venda, e, consequentemente, declarando ineficazes
em promover a circulação de riquezas. "48
as cláusulas contratuais que definiam um determinado preço para a soja.
Em outras palavras, à decisão da Min. Nancy Andrighi, que poste-
Como fundamento daquelas decisões, foi usada a função social dos con-
riormente passou a ser referência para um conjunto de outras decisões do
tratos prevista no art. 421 do Código Civil, cuja incidência exigiria a inter-
próprio STJ, afastou a ideia de uma "solidariedade social" compreendi-
venção judicial para que o contrato mantivesse seu equihbrio econômico.
da ao modo de "assistência social" que seria ínsita ao contrato, o que faz
As demandas invocavam a onerosidade excessiva e necessidade de questionar qual é o sentido do "social" atribuído pela lei, quando afuma
revisão para preservação do equilfürio econômico que se afumava com- que a liberdade de contratar deve ser exercida "em razão e nos limites da
preendido na noção de função social dos contratos. função social dos contratos". Esse conjunto de decisões entendeu que,
A adoção desse princípio pelo Direito Contratual autorizava - se- embora os fins do contrato sejam econômicos, o equihbrio necessário
gundo o alegado - a aplicação dos efeitos da onerosidade excessiva, pois para os contratos não deve levar em conta o "valor das prestações", mas
afinal de contas será sempre "excessivamente oneroso" o contrato em que sim a função do contrato na distribuição dos riscos da operação econô-
há desequihbrio econômico, caracterizado pela disparidade do valor das
47 O acórdão reformado no Superior Tribunal de Justiça foi o seguinte: Tribunal de Justiça de
prestações quando comparadas na data da contratação frente ao seu va- Goiás. Ap. Civ. 200400673805. Relator: Des. Vítor Barboza Lenza. Julgado em 17.05.2005.
lor na data do adimplemento. Com a seguinte ementa: "Apelação Cível. Revisão de cláusulas contratuais com pedido de an-
tecipação dos efeitos da tutela. Contrato de compra e venda. Soja. Alegação de desequilíbrio
Embora o Tribunal de Justiça de Goiás tivesse entendido que a revi- entre as partes. Preço pré-estabelecido. Entrega futura. Substancial elevação do preço. Prejuízo
insuportável por parte do devedor. Revisão do reajuste. Possibilidade. Pacta sunt servanda.
são era necessária em prol da preservação do equilfürio econômico, ten- Função social. Boa-fé. 1 - nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de
uma das partes se torna excessivamente onerosa, com extrema vantagem para outra, em virtude
instituição, não deve ser interpretado sem levar-se em conta a sua especificidade, como se de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do
fosse uma relação financeira comum, por isso que a sua compreensão assimila as regras que contrato, os defeitos da sentença que o decretar retroagirão a data da citação. 2 - o principio
servem de padrão ao sistema de proteção ao equilíbrio das relações de crédito, em proveito pacta sunt servanda deve ser interpretado em consonância com a realidade socioeconõmica,
da preservação de sua teleologia. (... ) de sorte a evitar desequilíbrio econômico entre os contratantes. 3 - em contrato de compra e
5. Vale dar destaque as normas insertas nos arts. 421 e 422 do CC, as quais tratam, respectiva- venda de soja para entrega futura, acontecendo substancial aumento do preço e do produto,
mente, da função social do contrato e da boa-fé objetiva. A função social apresenta-se hodier- não pode prevalecer a cláusula contratual entre as partes. 4- os contratantes são obrigados a
namente como um dos pilares da teoria contratual. Éum princípio determinante e fundamental guardar, assim na conclusão do contrato como em sua execução os princípios de probidade
que, tendo origem na valoração da dignidade humana (art. 10. da CF), deve determinar a ordem de boa-fé. Recurso conhecido e parcialmente provido".
econômica e jurídica, permitindo uma visão mais humanista dos contratos que deixou de ser 48 SuperiorTribunal de Justiça. 3ª Turma. REsp 803.481/GO. Relatora Ministra Nancy Andrighi.
apenas um meio para obtenção de lucro." Julgado em 28.06.2007.
302 - A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO NO Córneo CIVIL: 18 ANOS DE VIGÊNCIA E A INTERPRETAÇÃO ••• GERSON Luiz CARLOS BRANCO - 303

mica que pretende regular, afastando o reconhecimento de um princí- Evidentemente que essa perspectiva talvez não leve em considera-
pio do "equilíbrio econômico do contrato". 49 ção um sentido imanente e técnico de função social dos contratos, pois
0 paradigma da função social da propriedade somente poderia ser apli-
CONCLUSÃO cado por intervenções públicas, tais como ocorre com a desapropriação
A conclusão deste artigo é no sentido de que apesar de o Código para realizar os fins sociais da propriedade agrária ou urbana. Contudo,
Civil ter inovado ao inserir uma cláusula geral sem igual em outros or- a dimensão social do Direito Privado e sua funcionalidade não afastam
denamentos codificados ou não, o cenário jurídico não sofreu nenhuma a supremacia da estipulação contratual, podendo ocorrer a intervenção
alteração substancial ou radical no que tange aos efeitos do reconheci- como forma de recondução funcional do contrato aos fins da autono-
mento legal da função social dos contratos. mia privada. Ou seja, há uma conciliação entre autonomia privada e sua
As hipóteses de aplicação positiva, considerados aqui aqueles casos funcionalização, dado o seu caráter regulatório ou ordenatório.
em que a noção de :finalidade econômica e social, funcionalidade ou sim- A estrutura da norma tem elasticidade suficiente para que se afu-
plesmente socialidade do contrato foram os fundamentos de determina- me a liberdade de contratar e sua natural funcionalidade, condicionada
das decisões, estiveram adstritas ao que a doutrina e jurisprudência, em pelos valores sociais que determinam a existência e o sentido da pró-
decisões anteriores,já vinham aplicando em determinadas matérias mais pria liberdade contratual, marcada pela conectividade entre os sujeitos
sensíveis, tais como planos de saúde, seguro obrigatório de automóveis na "vida de relação", cunhada por Betti, que revela muito da natureza e
e sistema :financeiro de habitação. da funcionalidade do contrato na vida contemporânea.
É certo que essas linhas do Superior Tribunal de Justiça, ainda que REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
não guardem completa coerência entre si, reafirmam que o contrato ser-
COURDIER-CUISINIER,Anne-Sylvie. Le solidarism contractuel. Paris: Litec, 2006.
ve para realizar interesses privados. Esta pesquisa demonstra como são
ARAÚJO, Fernando. Teoria Económica do Contrato. Coimbra: Almedina, 2007.
pouco razoáveis os argumentos que associavam a funcionalidade do con-
BETTI, Emilio. Istituzioni di Diritto Romano. Volume secando, parte prima. Padova:
trato à revisão contratual imotivada. Cedam - Casa Editrice Dott. Antonio Milani, 1962.
É claro que essa conclusão não agrada a todos, pois pode-se observar BETTI, Emilio. Negozio Giuridico. Novíssimo Digesto Italiano, p. 209 e ss.
algumas reações contrárias a tendência de aplicação técnica da função BETTI, Emílio.Teoria General de las Obligaciones - Tomo I. Madrid: Editorial de
social dos contratos, em prol de uma visão externa que considera "de- Drerecho Privado.
magógica" a aplicação da função social dos contratos quando usada para BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Elementos para interpretação da liberdade contratual
"defesa de dos interesses patrimoniais e individuais" dos contratantes. e função social: o problema do equilfürio econômico e da solidariedade social
como princípios da Teoria Geral dos Contratos. ln: Judith Martins-Costa. (Org.).
Há o reclamo para que seja adotada a mesma perspectiva da função so-
Modelos de Direito Privado. led.São Paulo: Marcial Pons, 2014, v. 1, p. 257-291.
cial da propriedade, mencionando os artigos 182 e 186 da Constituição BROWNSWORD, Roger. Contract Law. Themes for the twenty-first century. Oxford:
Federal, 50 nos quais há clara identificação dos limites para a desapro- Oxford, 2006, 'p. 37 - 41.
priação por "interesse social". CIMBALI, Enrico. La funzione sociale dei contratti e la causa giuridica della loro
forza obbligatoria. Archivio Giuridico, n. 33, fase. I e II, 1884, p. 187-217, ln:
CIMBALI, Enrico. Opere complete. Torino: Unione Tipográfico-editrice Torinese,
49 A respeito do suposto "princípio do equilíbrio econômico" essa decisão foi objeto de análise 1907, p. 34- 36.
detalhada no texto BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Elementos para interpretação da liberdade
contratual e função social: o problema do equilíbrio econômico e da solidariedade social COASE, R. H. The nature of the Firm. Economica, New Series, v. 4, n. 16, 1937, p.
como princípios da Teoria Geral dos Contratos .. ln: Judith Martins-Costa. (Org.). Modelos de 386 - 405 analisa o contrato como fator de eficiência econômica e seu caráter
Direito Privado. 1ed.São Paulo: Marcial Pons, 2014, v. 1, p. 257-291. instrumental na organização da empresa.
Apesar de essa posição ser a dominante no Superior Tribunal de Justiça, é apontada como
minoritária por SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio Contratual e Dever de Renegociar. 2° ed. COLLINS, Hugh. The Law of Contract. Cambridge: Lexis Nexis, 2003.
SP: Saraiva, 2020, p. 484. DAVID, Marcél. La solidarité comme contrat et comme éthique. Paris: Berger-
50 SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio Contratual e Dever de Renegociar. 2° ed. SP: Saraiva, 2020,
p.399. Levrault, 1982.
304 - A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO NO CóDJGO CIVIL: 18 ANOS DE VIGÊNCIA E A INTERPRETAÇÃO ••• GERSON Luiz CARLOS BRANCO - 305

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LEONARDO DE FARIA BERALDO - 307

11. Os 18 ANos DA FUNÇÃO


SOCIAL DO CONTRATO

Leonardo de Faria Beraldo 1

1. RECORDANDO ESSE ESPINHOSO TEMA


A observação a seguir é de suma importância e deve ser lembrada pelo
leitor durante todo o tempo: se a função social do contrato é algo que só existe
no Brasil, não pode ser utilizada para resolver problemas jurídicos que exis-
tem no resto do mundo, pois seria um contrassenso sem igual.
A redação original do art. 421 do Código Civil (CC) era a seguin-
te: "[a] liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da
função social do contrato". Claro que não pretendo fazer algo exaustivo
ou completo sobre o tema ao longo destes 18 anos, pois não teria espa-
ço. Assim, almejo tecer algumas considerações sobre a função social do
contrato, tendo, como único objetivo, colaborar com o aperfeiçoamen-
to da matéria.
Muitos anos depois foi publicada, no dia 30/04/2019, a Medida
Provisória n. 881 (MP n. 881). No seu preâmbulo consta que ela "[i]
nstitui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelece
garantias de livre mercado, análise de impacto regulatório, e dá outras
providências". Entre essas "outras providências", a MP n. 881 criou e al-
terou a redação de alguns dispositivos do CC.
Com o advento da MP n. 881, confira-se a nova redação do art. 421
do CC, bem como o seu parágrafo único:
''.Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos
limites da função social do contrato, observado o disposto na
Declaração de Direitos de Liberdade Econômica.
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerá
o princípio da intervenção mínima do Estado, por qualquer
dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma
externa às partes será excepcional".
Em seguida, com a sua conversão na Lei n. 13.874/2019, ocorreu
outra alteração, ficando a redação final com o seguinte teor:
Advogado. Doutorando e Mestre em Direito Privado pela PUC Minas. Ex-Diretor da Escola
Superior de Advocacia da OAB/MG. Ex-Diretor do Instituto dos Advogados de Minas Gerais. Ex-
Diretor e Membro do Conselho Deliberativo da Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial
Brasil (CAMARB).
308 - Os 18 ANos DA FUNÇÃO Soc1AL DO CONTRATO LEONARDO DE FARIA BERALDO - 309

''.Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da flito, pergunto: como é que no restante dos ordenamentos jurídicos se
função social do contrato. resolve questões como essa? Simples: com base na responsabilidade civil
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão extracontratual. Então por que é que não se sustenta isso, aqui no Brasil,
o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da ao se escrever sobre o caso acima? Não sei. Aliás, o próprio art. 608 do
revisão contratual."
CC seria suficiente para resolver este imbróglio. Nos países de common
Antes de mais nada, não posso perder a oportunidade de criticar o law fala-se em tortious inteiference. Sobre o "caso Zeca Pagodinho", é
fato de se ter alterado a redação do art. 421 do CC sem que doutrina e interessante, também, conhecer o ponto de vista de Julio Alberto Díaz,
jurisprudência, mesmo depois de mais de 16 anos de vigência do CC, que o analisa à luz do inadimplemento eficiente e dos punitive damages. 4
tenham conseguido definir o conceito, a natureza j'!rídica e as formas
Outro exemplo que corriqueiramente surge na doutrina, com o
concretas de se aplicar a função social do contrato. E, sem dúvida, uma
propósito de se demonstrar a aplicabilidade do art. 421 do CC, é o do
situação bastante inusitada.
"contrato de locação de varanda para assistir o cortejo do rei". 5 Para
O que eu pude perceber, ao longo desses 18 anos de vigência do quem não é familiar com o caso, é celebrado um contrato de locação de
CC, é que a jurisprudência aplicava o art. 421 do CC de forma desne- uma sacada para que o locatário possa assistir o cortejo do rei, todavia, o
cessária, na medida em que a questão já tinha sido decidida por outra re- evento é cancelado. Nesse caso, o locador ainda teria direito de receber o
gra mais específica (e a função social do contrato foi mencionada como valor pelo aluguel, ou, se já tivesse recebido, estaria obrigado a devolvê-
mero adorno), ou, então, deveria ter sido decidida por regra mais especí- -lo? Para os que escreveram sobre o tema, o contrato seria ineficaz por-
fica, logo, a função social do contrato foi aplicada de forma equivocada. que teria ocorrido a violação da função social do contrato. Na verdade,
Em algumas situações, apenas se fazia menção ao chamado princípio da este tema é tratado nos outros países de duas formas diferentes: (i) in-
função social do contrato, mas, na verdade, o caso concreto não guardava validade ou ineficácia do contrato, dependendo se o fato ocorreu antes
nenhuma relação com o mesmo. A doutrina, sem embargo das incon- ou durante a execução do contrato; (ii) frustração do fim do contrato,
testes autoridades que escreveram sobre o assunto, seguiu esse mesmo que conduz à sua resolução por ineficácia. O fato superveniente tem re-
caminho. A propósito, segundo Teresa Negreiros, "[a] generalizada fal-
ta de profundidade na abordagem da função social do contrato espelha- 4 "Fiz referência às duas posições (descumprimento eficiente e induzimento ao rompimento)
-se em definições tão vagas quanto retóricas", 2 e, em seguida, lista vários pois ambas representam soluções absolutamente antagônicas para um mesmo problema.
O rompimento do contrato pelo Zeca Pagodinho com a Schincariol poderia ser analisado por
autores que assim o fazem. Esse cenário não me surpreende, pois, quase Posnersimplesmente como um descumprimento eficiente; paga os danos causados e pronto,
sempre, a jurisprudência trilha o mesmo caminho da doutrina. embolsa o resto (e ponha resto nisso!).
A Brahma, nesse caso, ficaria completamente alheia à questão (apenas indiretamente trazida
O exemplo mais contundente para ilustrar isso que estou afirmando à tona porque, segundo as informações, teria assumido contratualmente com o pagodeiro o
compromisso de responder pelas perdas e danos a que ele será certamente condenado).
é o famoso "caso Zeca Pagodinho". 3 Para os que escreveram sobre isso, Se considerarmos o induzimento ao rompimento como ação ilícita, o papel da Brahma passa
a AMBEV teria violado a função social do contrato ao incentivar Zeca a ser fundamental pois se constitui no principal responsável pelos danos resultantes. Se
aplicada a teoria dos punitive domages, a sanção poderia ser calculada tendo em consideração
Pagodinho a quebrar o seu contrato com a Nova Schin. Esse tipo de con- os lucros obtidos graças à campanha publicitária infiel. Imaginando que isso seja possível, por
exemplo, calculando o total de vendas no país nos três meses do verão (época da publicidade)
duta ilícita existe no mundo inteiro, e não vou julgar, nesse momento, se e comparando essa soma com o total histórico, poderia atribuir-se os incrementas a um efeito
está certa ou errada. O fato é que somente no Brasil (pelo menos entre da campanha em questão. Os danos punitivos iriam repr':sentar não ape~as u~ podero_so
instrumento de redistribuição da riqueza injustamente obtida, como tambem tena um efeito
os países de tradição jurídica) se fala em função social do contrato, logo, altamente moralizador do próprio sistema contratual que, independentemente de gostos ou
se a função social do contrato seria o único meio de se decidir esse con- preferências por uma ou outra bebida, vem construindo _a sua eficácia ao long? dos :,é cu los
baseado no princípio fundamental de que os pactos sao para serem cumpridos ... (Zeca
Pagodinho, duas cervejas e a teoria do rompimento eficiente do co~trato de Richard _Posner.
Disponível no site: <https://jus.com.br/artigos/5463/zeca-pagodmho-duas-cerveias-e-a:
2 NEGREIROS, Teresa. Teoria dos contratos: novos paradigmas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, teoria-do-rompimento-eficiente-do-contrato-de-richard-posner>. Acesso ':m 15/11/2020): E
2006, p. 207-208 - nota de rodapé n. 331. salutarverdoutrinadores pensando fora do senso comum, escrevendo algo diferente, todavia,
3 Para um melhor aprofundamento do tema, confira-se: BERALDO, Leonardo de Faria. Função lembremo-nos de que, de lege lata, não existem punitive damages no Brasil. . _
social do controlo: contributo para a construção de uma nova teoria. Belo Horizonte: Dei Rey, Para um melhor aprofundamento do tema, confira-se: BERALDO, Leonardo de Fana. Funçao
2011, p. 115-129. 5
social do contrato: contributo para a construção de uma nova teoria, p. 162-164.
LEONARDO DE FARIA BERALDO - 311
310 - Os 18 ANos DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO

percussão no contrato. O motivo determinante implícito ou tácito tam- de 2007, sobre o referido tema. Procurei, num primeiro momento, tentar
bém poderia ser uma justificativa suficiente para se resolver o contrato desconstruir a doutrina e a jurisprudência sobre o tema, e, num segundo
sem custo para as partes. Não é preciso, pois, se valer da função social momento, busquei construir um conceito de função social do contrato.
do contrato para se decidir a questão. Essa foi a minha tentativa, com a melhor das intenções, e, claro, sempre
respeitando os que possuem entendimento em sentido contrário.
Um terceiro exemplo que merece ser lembrado é o de que a função
social do contrato seria a causa do contrato, 6 e, para tanto, costuma-se ci- Como foi o processo de desconstrução? Tomei como base a chama-
tar acórdão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em que se declarou da Navalha de Ockham, isto é, se há mais de uma forma passível de ser
a invalidade de um contrato de troca, que, na verdade, era contrato de utilizada para se resolver um problema, deve-se utilizar a mais simples.
mútuo. 7 Ora, não é preciso se valer do art. 421 do CC para se dirimir Assim, sempre procurei comprovar que nos diversos exemplos criados
essa controvérsia, até porque o caso foi julgado no ano de 1994. O con- pela doutrina, bem como nos vários arestas dos tribunais, sempre exis-
trato é inválido porque se quis fraudar a lei. A troca do nomen iuris do tia uma regra específica que poderia ser usada para se dirimir a ques-
contrato não foi mero acidente; foi intencional. E por que? Para se jus- tão em vez de se pretender invocar a função social do contrato. Foram
tificar a licitude da cobrança abusiva de juros. Em outras palavras, o art. 28 ideias diferentes sobre o tema, bem como 27 exemplos e casos reais
166, II e VI, do CC seria mais do que suficiente para fundamentar a aplicando-se o art. 421 do CC.
ilicitude do contrato pactuado. Ainda sobre a causa do contrato, diz-se Com efeito, qual foi a construção que tentei fazer do disposto no
que seria o equivalente à função econômico-social do contrato, contu- art. 421 do CC?
do, essa expressão era utilizada na Itália, na década de 1940, apenas em Em primeiro lugar, tive o cuidado de conceituar a função social do
relação aos contratos atípicos, para se averiguar se o mesmo seria ou não contrato de uma forma objetiva e com um propósito bem delimitado,
merecedor de tutela jurídica, ou seja, o seu objeto não poderia ser fútil. qual seja, o direito que as pessoas têm de ter acesso a bens e serviços, desde que
Vejamos, então, quatro possíveis fundamentos para o caso em tela. Em por meio de contratos onerosos. Isso porque, na sociedade de massa (e isso
primeiro lugar, não podemos confundir causa com motivo. Em segundo não se resume, claro, às relações de consumo), o contrato tornou-se algo
lugar, o desaparecimento da causa pode levar à nulidade (por impossibi- totalmente essencial para a sobrevivência das pessoas naturais e jurídi-
lidade do objeto) ou à resolução do contrato, dependendo do momento cas. É importantíssimo tentar encontrar um conceito para a função so-
em que ela desaparece, isto é, se antes ou durante a execução do con- cial do contrato porque ela está inserida no art. 421 do CC, ou seja, esse
trato. Em terceiro lugar, bastaria que o contrato fosse resolvido por im- dispositivo não se resume à função social do contrato.
possibilidade superveniente, mas desde que o motivo determinante fosse Em segundo lugar, considero que a função social do contrato seja
de conhecimento da parte contrária e existisse cláusula contratual nes- mera funcão do contrato, não sendo devido taxá-la como um princípio.
se sentido. Em quarto lugar, se o motivo for implícito, e uma das partes Afinal d; contas, ninguém fala em princípio da função econômica do
criar entraves, então será possível sustentar a ocorrência de violação po- contrato, certo? Assim sendo, por que é que deveria existir o princípio
sitiva do contrato (art. 422 do CC), em razão da não observância dos da função social do contrato, se não existe o princípio da função econô-
deveres de lealdade e de cooperação. mica do contrato? O contrato possui, destarte, uma função econômica,
Irresignado com essa ausência de interpretação clara acerca do con- uma função social e, até mesmo, uma função pedagógica.
teúdo do art. 421 do CC, escrevi a minha dissertação de mestrado, no ano Em terceiro lugar, ao contrário do que alguns doutrinadores sus-
6 Para um melhor aprofundamento do tema, confira-se: BERALDO, Leonardo de Faria. Função tentavam antes da alteração pela Lei de Liberdade Econômica, não me
social da contrata: contributo para a construção de uma nova teoria, p. 72-75. Em sentido
contrário, isto é, defendendo o art. 421 do CC como o princípio da causalidade social, confira- parece correto dizer que no art. 421 do CC, onde se lia "liberdade de
se: BODIN DE MORAES, Maria Celina. A causa do contrato. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a.
2, n. 4, out.-dez./2013. Disponível em: <http://civilistica.com/a-causa-do-contrato/>. Acesso
contratar", dever-se-ia ler "liberdade contratual". Por quê? Porque acre-
em 22/11/2020, p. 23-24. dito que o elemento de interpretação gramatical (ou literal) deveria preva-
7 Cf. STJ, 3ª T., REsp n. 44.456/RS, Rei. Min. Eduardo Ribeiro, j. 22/03/1994, D} de 16/05/1994,
p.11.767.
312 - Os 18 ANos DA FUNÇÃO Soc1AL DO CONTRATO
LEONARDO DE FARIA BERALDO - 313

lecer sobre qualquer outro no caso em tela. Isso posto, se a lei falava em
"liberdade de contratar", essa deveria ser a expressão a ser utilizada pelo
2. o ART. 421 DO Córneo CIVIL APÓS A ALTERAÇÃO TRAZIDA
PELA LEI DE LIBERDADE ECONÔMICA
profissional do direito. Além disso, a liberdade contratual - ao contrário
da liberdade de contratar- já possui muitas proteções no nosso ordena- Antes de mais nada, vou transcrever, novamente, o novo art. 421
mento jurídico, tais como a teoria das nulidades, os defeitos do negócio doCC:
jurídico, o princípio da boa-fé objetiva, o dever de o magistrado reduzir ''Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da
a cláusula penal abusiva, a interpretação favorável ao aderente no con- função social do contrato.
trato de adesão, o princípio da equivalência material, a teoria das nuli- Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão
dades, entre outras. o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da
revisão contratual."
Em quarto lugar, defini que a expressão "em razão", que constava
do art. 421 do CC, não deveria ser vista como o fundamento ou a razão De imediato, é possível perceber que ocorreram duas alterações no
do contrato, mas, sim, como critério ou dever de razoabilidade a ser ado- caput do art. 421 do CC, se comparado com a sua redação original, bem
tado, pelo julgador, ao fazer o cotejo entre a "liberdade de contratar" e como o acréscimo do seu parágrafo único.
a "função social do contrato". Vê-se, pois, que no art. 421 do CC havia A primeira alteração diz respeito à substituição da expressão "liber-
uma expressa determinação para que fosse aplicado o princípio dara- dade de contratar" por "liberdade contratual". Não considero esta mu-
zoabilidade quando se for ligar a liberdade de contratar à função social dança positiva, pois, como já mencionei acima, a liberdade contratual já
do contrato no caso concreto. possui muita proteção do ordenamento jurídico. A liberdade de contratar,
Em quinto lugar, no tocante ao termo "nos limites", creio que podem por outro lado, precisa ser melhor regulamentada, tendo em vista que o
ser divididos em positivos e negativos. Isso significa dizer que o julgador, contrato, na atual sociedade de massa, é extremamente relevante no dia
dentro do limite positivo, pode obrigar uma pessoa a celebrar determi- a dia das pessoas, e, caso seja mal utilizado, gerará danos e lesões adi-
nado contrato oneroso e, dentro do limite negativo, pode decidir que é reitos. A liberdade contratual, recordando, diz respeito à liberdade ne-
lícita uma certa não-contratação, isto é, o direito de não-contratar, de- gocial, isto é, para se estabelecer o conteúdo do contrato.
pendendo do caso, é plenamente legal. Evidentemente que estou me re- A segunda alteração foi a supressão do termo "em razão". Sei que essa
ferindo, sempre, a contratos onerosos. expressão sempre foi alvo de enormes críticas por parte da doutrina, ao
Desse modo, a correta leitura, a meu ve1; que se deveriafazer do art. 421 argumento de que a função social não pode ser a razão do contrato, con-
do CC é a seguinte: desde que haja razoabilidade, a liberdade de contratarpo- tudo, se ela fosse lida da forma como sugeri - no sentido de razoabili-
derá sefrer limites, positivos ou negativos, inte1ferindo-se, assim, no direito dade - então não teríamos quaisquer tipos de problema na aplicação do
de acesso a bens e a serviços. Trata-se, portanto, de verdadeira cláusula geral art. 421 do CC da forma como foi concebido. Claro que poderiam sur-
em que ojulgador pode julgar alguns aspectos da liberdade de contratar den- gir decisões judiciais aplicando-a incorretamente, mas isso, como sabe-
tro do contexto da jimção social do contrato. mos, faz parte da vida, pois o julgador é um ser humano, com convicções
e experiências de vida próprias, e, por conseguinte, pode errar. É justa-
Feitas essas considerações iniciais, que, na verdade, é um brevíssi-
mente por isso que existe o direito ao recurso no devido processo legal.
mo resumo das conclusões do meu livro sobre a função social do contra-
to, passo a analisar a alteração do art. 421 do CC pela Lei de Liberdade Vamos, agora, a quatro observações iniciais e, em seguida, uma aná-
Econômica. lise de como deverá ser lido o caput do art. 421 do CC.
Uma primeira observação que se pode fazer é a da total ausência de
urgência nessa reforma legislativa. Desse modo, seria constitucional essa
alteração por meio de uma medida provisória? Ora, afinal de contas, há
dois pressupostos constitucionais (art. 62 da Constituição da República
314- Os 18 ANos DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
LEONARDO DE FARIA BERALDO - 315

Federativa do Brasil- CF/88) para a edição de uma medida provisória: CC deverá ser respeitado e aplicado, salvo se for declarado inconstitu-
urgência e relevância. Penso ser pouco provável existir algum civilista cional em controle concentrado ou difuso, o que, a meu ver, seria um
que irá defender a existência de urgência nessa reforma ao art. 421 do absurdo, pois é direito do legislador alterar uma linha de pensamento, e
CC (não vou discutir o restante da MP n. 881; depois convertida em lei). é dever do julgador aplicar as leis, sob pena de se violar o princípio da
A segunda observação que faço é a de que essa alteração legislati- tripartição dos Poderes.
va do caput, a meu sentir, não vai alterar em quase nada a atual realida- A quarta observação é a de que não podemos nos esquecer de que
de. Por quê? A uma, porque o tema não vem sendo aplicado, do ponto essa alteração se deu no âmbito do CC, ou seja, a lei que deve ser apli-
de vista técnico, corretamente. E, a duas, porque realmente creio que as cada para dirimir os litígios entre particulares, isto é, entre pessoas natu-
alterações foram insignificantes. Vou explicar essa última assertiva um rais, entre empresas e, dependendo do caso concreto, entre particulares e
pouco mais abaixo neste capítulo. empresas. Fato é que, para se resolver os problemas oriundos das relações
de consumo, aplicar-se-ão as regras do Código de Defesa do Consumidor
A terceira observação é no tocante ao disposto no novo parágrafo úni-
(CDC). E, caso haja no CC uma regra mais benéfica ao consumidor, ela
co do art. 421 do CC. Penso que veio em um bom momento, tendo em
poderá ser aplicada. O art. 421 do CC, por exemplo, poderá ser aplicado
vista que o contrato decorrente das relações privadas (exclui-se, in casu,
numa relação de consumo, muito embora o art. 39, II e IX, do CDC,já
as relações de consumo) precisa voltar a ser respeitado. Não é possível
continuar existindo constantes e indevidas intervenções judiciais (e ar- tenha esta mesma aptidão.
bitrais) nos contratos que foram livremente pactuados pelas partes. O Dito isso, considero que a alteração legislativa não tem o condão de
pacta sunt servanda não acabou. E mais: as partes contratantes precisam alterar o conceito de função social do contrato que criei no ano de 2007,
conscientizar-se de que deverão cumprir o contrato da forma como foi que continua sendo "o direito que as pessoas têm de ter acesso a bens
assinado, salvo, claro, se ficar comprovada, v.g., a existência de vícios de e serviços, desde que por meio de contratos onerosos". Desse modo, já
validade e/ou eficácia, abuso de direito, violações ao princípio da boa-fé que a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do
objetiva, descumprimento à função social do contrato ou onerosidade contrato, creio que as partes não poderão, em princípio, criar cláusulas
excessiva. Mesmo nos casos de desequiliôrio contratual superveniente, contratuais que restrinjam a liberdade de contratar das pessoas. Por que
por fatores externos às partes, deverá ser levado em consideração pelo é que liberdade contratual tem o limite de não restringir a liberdade de
julgador as eventuais cláusulas contratuais, estabelecidas pelas partes, contratar? Simples: se "função social do contrato" significa "direito de
que disciplinam essa matéria. Resumindo, vejo o dito parágrafo único se ter acesso a bens e serviços, desde que por meio de onerosos", e a li-
mais como um reforço do que deveria ser - e não vem sendo - do que berdade contratual será exercida nos limites da função social do contra-
uma novidade jurídica propriamente dita. E, se realmente eu estiver cer- to, então, em outras palavras, a liberdade contratual tem, como limite, a
to na minha análise, não há mal algum em se ter uma norma de refor- não restrição da liberdade de contratar. Claro que não é uma limitação
ço. 8 Termino esta nota lembrando que o parágrafo único do art. 421 do absoluta. A cláusula de raio, muito comum nos shopping centers, é, em
princípio, válida. Não é possível, de antemão, definir quando a restrição
8 Em sentido contrário, confira-se: "Talvez a consequência mais drástica da reforma tenha sido
a inserção de um parágrafo único no art. 421 do Código Civil, prevendo que, 'nas relações será legal ou ilegal; só o caso concreto permitirá, ao julgador, encontrar
contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade a melhor solução.
da revisão contratual'. Trata-se de mais uma tentativa, francamente inócua, de consolidar no
Código Civil uma ideologia de Estado mínimo que ignora a inexistência, no ordenamento
jurídico brasileiro, de um 'princípio da intervenção mínima', sobretudo quando é o próprio
constituinte que determina a atuação estatal nas relações privadas como mecanismo de
promoção da igualdade substancial e de garantia, em última instância, de uma liberdade contratual: aplicações da função negocial nas invalidades e nas vicissitudes supervenientes do
efetiva de contratar. O novo parágrafo único, de todo modo, apresenta o efeito nocivo de contrato. Cívilistica.cam. Rio de Janeiro, a. 8, n. 2, 2019. Disponível em: <http://civilistica.com/
popularizar a noção arcaica de que a intervenção judicial nos contratos seria atentatória de-volta-a-causa-contratual/>. Acesso em 22/11/2020, p. 44). Peço vênia para discordar. Ora,
à autonomia privada. A rigor, que os contratos válidos são, em princípio, obrigatórios nos quer dizer que o legislador não pode criar uma regra ou um princípio de intervenção mínima,
termos em que foram pactuados nunca se questionou, e qualquer entendimento ainda mais do julgador, nos contratos interempresariais? Estamos diante de uma ideia, um pouco mais
restritivo a respeito da revisão judicial apenas representa um retrocesso na implementação liberal, sendo positivada, e não há qualquer inconstitucionalidade nisso, pois o art. 5°, XXXV,
dos valores constitucionais em matéria privada" (SOUZA, Eduardo Nunes de. De volta à causa da CF/88 continua plenamente vigente.
316 - Os 18 ANOS DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO LEONARDO DE FARIA BERALDO - 317

A próxima pergunta seria: não restringir a liberdade de contratar de que deveria ter êxito. Perceba que há uma cláusula contratual com uma
quem? Pode ser tanto do outro contratante quanto de terceiros. Outra limitação positiva (obrigação de contratar) condicionando o transpor-
indagação é bem apropriada neste instante: quais limites seriam estes? te das mercadorias, entretanto, tenho que não há qualquer violação ao
Conforme já mencionado no capítulo anterior, são limites positivos ou art. 421 do CC.
negativos, ou seja, uma determinação para se contratar ou uma restri- Um restaurante celebra um contrato de fornecimento de bebidas
ção de se contratar. Vejamos, abaixo, cinco exemplos de como o art. 421 do (alcoólicas e não alcoólicas) com uma grande empresa do gênero. Ores-
CC poderia ser aplicado. 9 taurante, em troca de alguns benefícios e descontos, concordou em inse-
Romeu tem um plano de saúde administrado por uma entidade de rir no contrato uma cláusula de exclusividade. Com isso, ele só poderia
autogestão, logo, este contrato não pode ser analisado à luz do CDC, comprar essas bebidas do mesmo fornecedor. Pergunta: essa cláusula é
por força do enunciado de súmula n. 608 do STJ. Após algumas déca- válida? Viola a função social do contrato, na medida em que o restau-
das, a operadora de plano de saúde informa que não irá renovar o con- rante não pode comprar bebidas de outras marcas? A cláusula é válida e
trato. Aponta, como fundamento, uma cláusula contratual que permite não viola o art. 421 do CC. Isso porque ela foi inserida pelo restaurante,
que qualquer uma das partes não renove o contrato, desde que notifique por livre e espontânea vontade, e, além do mais, em troca de benefícios
a outra com 30 dias de antecedência. Pergunta: teria a operadora este di- e descontos. A minha resposta seria totalmente diferente se o fornece-
reito de não renovar? Penso que não, pois viola a função social do con- dor impusesse o dever de exclusividade sem qualquer tipo de contrapar-
trato. A não renovação de um contrato tão importante como esse, muito tida. Nesse caso, penso que seria cabível a tutela específica (arts. 497 e
provavelmente pelo fato de a pessoa estar causando "prejuízo" para a ope- 498 do Código de Processo Civil CPC) e a base legal, no direito ma-
radora, é algo mesquinho e que não coaduna com os valores preconiza- terial, seria justamente a violação ao art. 421 do CC. Em suma: a cláu-
dos no nosso ordenamento jurídico. Sendo assim, será possível buscar a sula de exclusividade com contrapartida, em princípio, é válida; se não
tutela jurisdicional para que o contrato seja renovado. Qµanto ao valor tiver contrapartida, em princípio, é inválida.
da prestação, deverá ser verificada a cláusula do contrato que versa so- Osvaldo abre uma loja para vender eletrodomésticos e produtos ele-
bre o valor e a forma/periodicidade de aumento. Neste exemplo, apesar trônicos. Um dos fabricantes se recusa a vender esses aparelhos a Osvaldo,
da limitação negativa da cláusula contratual, ela foi considerada inváli- sem qualquer justificativa, mesmo sendo o pagamento à vista. Pergunta:
da pelo juiz, que, por sua vez, impôs um limite positivo à operadora de essa conduta é lícita? Penso que não. Ocorre que não há violação ao art.
plano de saúde. Claro que a não renovação, e.g., por fraude do usuário 421 do CC porque não é mais a liberdade de contratar que será exerci-
deve ser exemplarmente punida. da nos limites da função social do contrato, mas, sim, a liberdade contra-
Uma loja de eletrodomésticos comprou uma série de produtos de tual. Nesse caso, então, a base legal para a solução do problema estaria,
um fabricante. A loja, então, contratou uma empresa de transportes para v.g., nos arts. 36, IV e seu§ 3°, III e XI, da Lei n. 12.529/2011 (Lei de
fazer a entrega. No contrato de transporte há uma cláusula que obriga Defesa da Concorrência).
a loja a contratar uma empresa de segurança armada, que deverá escol- A loja Peixoto celebra contrato de locação com o Shopping
tar o caminhão com as mercadorias durante todo o itinerário. Pergunta: Imperador. No pacto há uma cláusula de raio, em que a loja se compro-
está intromissão na liberdade de contratar da loja é válida? Penso que mete a não abrir novas lojas num raio de um quilômetro (de distância
sim, pois é notório que existem quadrilhas especializadas em roubo de do shopping, em linha reta) durante a vigência do contrato de locação.
eletrodomésticos. Assim, se a loja ajuizasse uma ação judicial visando a Estaria essa cláusula de acordo com o art. 421 do CC? Em princípio,
declaração de nulidade da cláusula contratual, ou o reembolso do gas- considero que sim, pois está-se diante de contrato interempresarial, no
to que teve com a contratação da empresa de transporte, não considero qual o princípio da autonomia privada tem muito mais força do que num
contrato de natureza consumerista (e até mesmo nos chamados contratos
g No meu livro há 24 exemplos: BERALDO, Leonardo de Faria. Função social do contrato: contributo
para a construção de uma nova teoria, p. 209-234.
LEONARDO DE FARIA BERALDO - 319
318 - Os 18 ANOS DA FUNÇÃO Soc1AL DO CONTRATO

3. Ü PAPEL DA DOUTRINA NOS ÚLTIMOS DEZ ANOS


civis). 10 É natural que um shopping não queira concorrência tão perto,
pois isso, obviamente, prejudicará a sua receita. 11 Também é preciso lem- Como escrevi sobre o tema no ano de 2007, e publiquei o meu li-
brar que o valor do aluguel e dos demais encargos são calculados tendo, vro em 2011, há uma série de textos doutrinários que vieram depois, em
como premissa, o cumprimento dessa cláusula contratual. A sua alteração especial por conta da alteração sofrida no art. 421 do CC por conta da
influenciará e alterará a base objetiva do negócio jurídico. Interessante Lei de Liberdade Econômica. Separei alguns 14 e analisarei, portanto, al-
observar que essa questão já chegou no STJ (REsp n. 1.535.727/RS), gumas passagens destes trabalhos científicos (em ordem crescente quan-
todavia, foi julgada com base da Lei de Defesa da Concorrência. A cor- to ao ano da publicação). Qyero deixar claro, uma vez mais, que tenho
te entendeu que a cláusula de raio, no caso concreto, era válida. Ocorre enorme respeito por todos os que se propõem a escrever sobre algum
que uma cláusula dessa natureza pode ser válida do ponto de vista con- assunto jurídico, especialmente de um tema tão espinhoso e polêmico
correncial, mas ilícita e/ou inválida para o direito civil. É algo para re- como este. Trata-se de um debate apenas no plano das ideias, e o fato
fletirmos. Como se pôde ver, a cláusula de raio limitou, negativamente, a de eu discordar de suas colocações é porque, provavelmente, partimos
liberdade da loja de empreender, o que, de certo modo, está contido den- de premissas e conceitos distintos sobre a função social do contrato. Por
tro do conceito de função social do contrato, que é o "direito de acesso derradeiro, informo que não poderei fundamentar as minhas concordân-
a bens e serviços". Essa restrição, no meu sentir, é válida, desde que não cias e discordâncias da forma como gostaria, pois o espaço não permite.
contenha abusos, tais como longas distâncias ou mesmo eficácia após o No livro de Antonio RulliNeto, 15 cinco pontos me chamaram a aten-
término do contrato. Considero que a renovação do contrato, por óbvio, ção: (i) a desconsideração da personalidade jurídica, a lesão, a proteção
ratifica a cláusula de raio, salvo se ela for extirpada do pacto. do aderente no contrato de adesão, o direito à resilição unilateral do con-
Por derradeiro, reitero o que já sustentei em meu livro que o des- trato, o enriquecimento sem causa, entre outros, decorrem da função so-
cumprimento ao art. 421 do CC é causa de nulidade virtual, 12 muito em- cial do contrato; (ii) se houver dispositivo legal específico para a solução
bora há entendimento de que seria hipótese de ineficácia. 13 do caso, não se deve aplicar o art. 421 do CC; (iii) é norma cogente e
Passo, agora, a analisar a doutrina mais recente sobre o tema. deve ser aplicada ex ojficio pelo julgador; (iv) os direitos fundamentais
exercerão papel de dupla relevância, na medida em que (1) a aplicação
da função social do contrato deve observar os limites por eles impostos
e (2) devem ser aplicados na ausência de norma específica, para que a
10 Nesse sentido: "DIREITO EMPRESARIAL. CONTRATOS. COMPRA EVENDA DE COISA FUTURA
(SOJA). TEORIA DA IMPREVISÃO. ONEROSIDADE EXCESSIVA. INAPLICABILIDADE.1. Contratos função social do contrato seja mantida, uma vez que a preservação dos
empresariais não devem ser tratados da mesma forma que contratos cíveis em geral ou direito fundamentais seria um escopo da função social do contrato; e
contratos de consumo. Nestes admite-se o dirigismo contratual. Naqueles devem prevalecer
os princípios da autonomia da vontade e da força obrigatória das avenças. 2. Direito Civil e (v) "a aplicação da função social dos contratos tem também como li-
Direito Empresarial, ainda que ramos do Direito Privado, submetem-se a regras e princípios neamento a manutenção da segurança jurídica, mantendo a confiança
próprios. O fato de o Código Civil de 2002 ter submetido os contratos cíveis e empresariais
às mesmas regras gerais não significa que estes contratos sejam essencialmente iguais. 3. O das pessoas e do mercado em geral nas instituições e no próprio mer-
caso dos autos tem peculiaridades que impedem a aplicação da teoria da imprevisão, de que
trata o art. 478 do CC/2002: (i) os contratos em discussão não são de execução continuada ou cado, evitando instabilidade jurídica, econômica e social" .16 Concordo
diferida, mas contratos de compra e venda de coisa futura, a preço fixo, (ii) a alta do preço da que não se deve aplicar o art. 421 do CC se houver norma mais especí-
soja não tornou a prestação de uma das partes excessivamente onerosa, mas apenas reduziu
o lucro esperado pelo produtor rural e {iii) a variação cambial que alterou a cotação da soja fica, bem como é correta a aplicação do dispositivo em comento, ex ojfi-
não configurou um acontecimento extraordinário e imprevisível, porque ambas as partes
contratantes conhecem o mercado em que atuam, pois são profissionais do ramo e sabem que cio, pelo julgador (na forma do art.10 do CPC). Discordo, todavia, que
tais flutuações são possíveis" (STJ, 4ª T., REsp n. 936.741/GO, Rei. Min. Antonio Carlos Ferreira, os institutos citados no item (i) decorram da função social do contrato,
j. 03/11/2011, D}e 08/03/2012).
11 Se e porque a loja teria interesse em abrir outra loja, e se isso impactaria ou não em sua receita
e de que forma, é algo que foge ao escopo deste artigo científico.
12 Cf. BERALDO, Leonardo de Faria. Função social do contrato: contributo para a construção de 14 Não vou tratar das obras sobre as quais já citei e comentei em meu livro do ano de 2011. Convido
uma nova teoria, p. 254-261. Nesse sentido: SILVESTRE, Gilberto Fachetti, A responsabilidade o leitor a conhecer a obra.
civil pelo violação àfunção social do contrato. São Paulo: AI medi na, 2018, p. 286. 15 Cf. RULLI NETO, Antonio. Função social do contrato. São Paulo: Saraiva, 2011, 28op.
13 Nesse sentido: HADDAD, Luís Gustavo. Função social do contrato: um ensaio sobre seus usos e 16 RULLI NETO, Antonio. Função sacio/ do contrato, p. 245.
sentidos. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 242.
320 - Os 18 ANos DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO LEONARDO DE FARIA BERALDO - 321

até porque já existiam, no nosso Direito, muito antes do atual CC.17 O todavia, nas hipóteses que passam pela minha mente haveria, no CDC,
mesmo vale para os direitos fundamentais, ou seja, existem por si só e regra específica para a resolução do caso (art. 39, II e IX). Qy.anto ao
muito antes do art. 421 do CC. Em relação à necessidade de termos se- item (iii), creio que quanto mais objetivarmos e especializarmos o con-
gurança jurídica, claro que estou plenamente de acordo, contudo, a teo- teúdo e o sentido do dispositivo legal, melhor para a segurança jurídica
ria da confiança surgiu muito antes da função social do contrato, e não dos contratos e da atividade jurisdicional. Por fim, não vejo inconstitu-
precisa dela para ser utilizada no caso concreto. Enfim, se um dia o art. cionalidade no art. 421 do CC com a interpretação que venho atribuin-
421 do CC fosse revogado, continuaríamos tendo, no nosso ordenamen- do ao mesmo. Aliás, nem mesmo para a tese daqueles que o enxergam
to, todos os institutos elencados no item (i), os direitos fundamentais e como um dispositivo utilizado para justificar a tutela externa do crédito
a teoria da confiança. ou a frustração do fim do contrato. O que não pode é, com todo o res-
Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa, no capítulo dedicado ao tema em peito, ser visto como um instrumento de solidariedade social, pois essa
seu livro sobre teoria geral dos contratos, acredita que: (i) função social é uma função do Estado, e, não, do particular.
do contrato não pode ser "relacionada ao exame do equihbrio contra- Custodio da Piedade Ubaldino Miranda, 18 em seus comentários ao
tual no caso concreto"; (ii) "o sentido de função social do contrato não Código Civil, traz vários pontos que devem ser mencionados: (i) lem-
deveria ser identificado com qualquer interesse que não fosse o das par- bra da doutrina italiana da função econômica-social do contrato e seus
tes contratantes"; (iii) a segurança jurídica da função social do contrato desdobramentos; (ii) todos os tipos contratuais devem observar a fun-
está em crise, pois seus pilares são bastante fluídos, tais como, definição, ção social; (iii) não se pode deixar de celebrar um contrato com alguém
identificação de interesses institucionais, mediação do dano, etc.; (iv) não por simples arbítrio ou capricho, ou seja, a liberdade de contratar não
se pode coadunar com a ideia de se ter uma nova qualificação de partes é absoluta; (iv) o contrato deve respeitar o meio ambiente, a livre con-
e de terceiros; (v) o art. 421 do CC não tem como escopo a regulação corrência e o consumidor; (v) o locatário de um apartamento não pode
dos efeitos externos do contrato, pois, estes, há tempos,já teriam meca- tocar um instrumento musical, com volume alto, em horário incompatí-
nismos de proteção, que é a responsabilidade civil; (vi) não se pode pre- vel; (vi) dependendo do tipo de contrato se existencial ou empresarial
tender aplicar a função social do contrato para se estabelecer a justiça - a intervenção do juiz deverá ser maior ou menor; (vii) seja qual for o
do caso concreto diante de certas situações de crise (como nos contra- tipo de contrato, não pode conter cláusulas que, direta ou indiretamen-
tos de leasing no início dos anos 2000), sob pena de se acabar com ore- te, conflitem com o interesse social; (viii) a função social do contrato
ferido seguimento (e foi o que de fato aconteceu, enquanto o STJ não deve ser respeitada tanto no momento da formação do contrato, como
reviu seu próprio posicionamento); e (vii) o art. 421 do CC é inconsti- durante a sua execução ou vigência, refletindo, também, nos direitos e
tucional, salvo se se entender que a função social do contrato decorre da obrigações dele advindos; (ix) os casos de frustração do fim do contrato
função social da propriedade, e for orientada para a ordem econômica e (coroação do rei e o da construção da porta da igreja que já havia sido
financeira. Como partimos de premissas distintas, obviamente temos vi- demolida) não podem ser resolvidos com base no art. 421 do CC, mas,
sões diferentes, apesar de eu estar de acordo com as ideias apresentadas sim, com fulcro na teoria da base do negócio jurídico, haja vista a inefi-
nos itens (i, v, vi). Com relação aos itens (ii, iv), é possível, em tese, que cácia superveniente; (x) a aplicação da teoria da base objetiva do negó-
uma cláusula contratual viole a função social do contrato de terceiros, cio inclusive citando João Baptista Villela (p. 42-43) - dar-se-ia com
espeque no art. 422 ou no art. 478, ambos do CC; e (xi) não se pode re-
17 Como já sustentei, não vejo natureza jurídica, de princípio, na função social do contrato, e não correr ao art. 421 para se resolver questões sobre a eficácia externa das
desconheço que já se escreveu sobre a função social do contrato anos antes da promulgação
do atual CC. Apesar disso, não considero que o princípio da função social do contrato fosse
obrigações, quais sejam, terceiro que viola o contrato ou o contrato que
algo que já existisse no nosso ordenamento jurídico, e que foi, simplesmente, positivado pelo viola direito de terceiro. Destaco, de início, a lucidez com que o doutri-
';=C. No ~oc~n_te ao prin_cípio da b~a-~é º?je_tiva, o que º':~rreu foi exatamente o contrário, pois
e um pnnc1p10 que existe nos prmc1pa1s sistemas de cwil law e, antes mesmo da vigência do nador tratou do tema. Os comentários tecidos nos itens (iii, ix, x, xi) es-
CC, já era alvo de escritos acadêmicos (como o livro de Judith Martins-Costa) e, até mesmo,
de decisões judiciais, aplicando-se a responsabilidade civil pré-contratual e o venire contra 18 Cf. MIRANDA, Custódio da Piedade Ubaldino. Comentários ao Código Civil. vol. 5. São Paulo:
Jactum proprium (do então Des. Ruy Rosado de Aguiar Jr., no TJRS). Saraiva, 2013, p. 17-50.
322 - Os 18 ANos DA FUNÇÃO Soc1AL DO CONTRATO LEONARDO DE FARIA BERALDO - 323

tão exatamente na mesma linha do que sustentamos alguns anos antes seja plenamente possível que a discussão vá para o plano da eficácia. A
dele. Concordo, basicamente, com todas as suas ideias. Discordo, porém, assertiva do item (v), dependendo de como for interpretada, está correta.
do que foi afumado no item (v), pois, a meu ver, a situação não guarda Em relação ao item (vi), conforme já explanado, discordo do doutrina-
qualquer relação com a função social do contrato. Como existem duas dor. Em relação ao item (vii), parece-me perfeitamente possível adis-
relações jurídicas distintas, dois são os fundamentos legais para se re- cussão da validade da cláusula de raio com base no art. 421 do CC. Isso
solver a questão: na relação locatário-condomínio, trata-se de problema porque a referida cláusula, em outras palavras, está limitando, negativa-
de direito de vizinhança; por outro lado, na relação locador-locatário, mente, o direito de empreender, que, de certa forma, estaria englobado
ocorreu cumprimento defeituoso do contrato, podendo ensejar, até mes- pela expressão "direito de acesso a bens e serviços". Adianto que, in abs-
mo, o seu despejo. trato, considero válida a cláusula de raio. Por quê? Porque é natural que
Luís Gustavo Haddad escreveu um livro muito bom. 19 É claro que um shopping queira evitar a concorrência muito próxima, pois isso vai
não concordo com tudo que está em seu trabalho - o que é algo normal gerar perda de receita. Além disso, trata-se de contrato interempresarial,
e salutar-, mas, realmente, recomendo a leitura. Como não tenho mui- no qual a autonomia privada tem muito mais força que num contrato
to espaço disponível, não conseguirei resumir as suas principais ideias. de consumo. Informo, ainda, que o STJ já teve a oportunidade de julgar
Destaco que o autor acredita que: (i) a mitigação do princípio da relati- essa questão, e, sem se valer da função social do contrato, a considerou
vização dos contratos não decorre, necessariamente, da função social do válida. Foram analisadas as regras de direito da concorrência no julga-
contrato; (ii) a intervenção judicial/legal na liberdade de contratar é an- mento.20 O interessante neste exemplo, bem como no julgado do STJ, é
tiga, v.g., na ação renovatória e na dissolução parcial de sociedade; (iii) que a cláusula de raio pode ser analisada à luz do direito de concorrên-
existem deveres anexos de conduta que decorrem do art. 421 do CC; cia e do direito civil/empresarial. Em outras palavras, é possível que ela
(iv) o descumprimento da função social do contrato está no plano da não viole a Lei de Defesa da Concorrência, mas que infrinja o CC. E, a
eficácia; (v) a função social do contrato pode exercer o papel de com- meu ver, o art. 421 seria a base legal para essa discussão. Por fim, quan-
plemento da ordem pública; (vi) a intervenção de terceiro, visando a ex- to ao item (viii), não vejo a ligação entre tais dispositivos e o art. 421 do
tinção de um contrato (como no caso Zeca Pagodinho), bem como nas CC. São regras mais antigas que a função social do contrato e com pro-
hipóteses de frustração do fim do contrato, são exemplos de demandas pósitos diferentes e mais específicos.
que deveriam ser resolvidas à luz do art. 421 do CC, e com base nas re-
Eduardo Tomasevicius Filho escreveu um artigo fazendo uma re-
gras da responsabilidade civil contratual, e, não, aquiliana; (vii) eventual
trospectiva de uma década da função social do contrato. 21 Ele fez um
abuso das chamadas cláusulas de raio (pactuada no contrato entre shop-
resumo/ descrição das teses doutrinárias e jurisprudenciais até aquele
ping e lojista, em que este último assume obrigação de não empreender
momento, mas sem tecer quaisquer considerações; foi, de fato, um tra-
num determinado raio de distância) poderão ser combatidos com base
balho mais descritivo. Recomendo a leitura para aqueles que quiserem
no art. 421 do CC; e (viii) afuma que existem vários dispositivos legais
conhecer várias facetas da doutrina e da jurisprudência ao longo dos 10
no CC que asseguram a observância da função social do contrato (arts.
primeiros anos de vigência do CC, no entanto, confesso que senti fal-
473, parágrafo único, 720 [parte final], 317,478 a 480, 1.488, 684,685,
ta de um posicionamento do autor sobre os contornos do art. 421 nes-
1.094, IV a VIII, 783). Passo, agora, à minha apreciação. Concordo com
os itens (i e ii). Não entendi bem quais seriam os deveres anexos de- sa primeira década de vida. Não ficou claro qual é a visão dele sobre a
correntes da função social do contrato (item iii). Qyanto ao item (iv),já função social do contrato, uma vez que ela tem sido descrita e aplicada
disse que, a meu ver, a violação ao art. 421 do CC está no plano dava- com diversos sentidos.
lidade (e não será preciso invalidar todo o contrato, mas, apenas, a cláu-
sula ilegal), todavia, quando o contrato prejudicar terceiros, admito que
20 Cf. STJ, 4ª T., REsp n. 1.535.727/RS, Rei. Min. Marco Buzzi, j. 10/05/2016, D}e 20/06/2016.
21 Cf. TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. Uma década de aplicação da função social do contrato:
19 Cf. HADDAD, Luís Gustavo. Função social do contrato: um ensaio sobre seus usos e sentidos, análise da doutrina e da jurisprudência brasileiras. Revisto dos Tribunais, vol. 940. São Paulo:
285p. RT, fev./2014, p. 49-84.
324- Os 18 ANOS DA FUNÇÃO Soc1AL DO CONTRATO LEONARDO DE FARIA BERALDO - 325

Carlos Pianovski e Marcelo Bürger escreveram um artigo sobre um outros institutos específicos". 26 Aduz que a jurisprudência tem come-
ponto específico relacionado à função social do contrato, qual seja, o da tido este mesmo erro. 27 Desse modo, "essa postura interpretativa frente
tutela externa da obrigação. 22 Fiquei contente em verificar que pensam, à função social do contrato é, na verdade, uma resistência à sua própria
basicamente, com o que venho defendendo ao longo dos anos, isto é, o existência, uma vez que a leva a não ter qualquer relevância normativa,
art. 421 do CC não se presta a resolver casos desse jaez, como, por exem- priva-a de qualquer conteúdo autônomo e de qualquer efeito prático" .28
plo, aquele envolvendo o cantor Zeca Pagodinho. Essas questões devem Em outro momento, afuma que o princípio da função social do contra-
ser dirimidas à luz da responsabilidade civil extracontratual. 23 to pondera o princípio da relatividade dos contratos, isto é, o contrato
Carlos Nelson Konder2 4 procurou mostrar, em seu artigo científico,
não pode prejudicar terceiros e vice-versa. Na última parte de seu artigo
científico, tenta encontrar uma forma de se aplicar o art. 421 do CC de
que as dificuldades pelas quais a função social do contrato passou (e está
forma isolada, e assevera: "a função social do contrato implica o condicio-
passando) são similares àquelas pelas quais a função social da proprie-
namento da tutela da liberdade de contratar a interesses da coletividade.
dade passou. A falta de parâmetros legais do art. 421 do CC é o maior
Trata-se da proibição de contratos que repercutam negativamente sobre
problema a ser enfrentado. Para o autor, "[e]ra necessário evitar que a
a comunidade e da conservação ou tratamento diferenciado de contra-
abertura da cláusula geral do art. 421 não implicasse uma fórmula vazia
tos que repercutam positivamente junto à sociedade" .29 Em seguida, traz
que franqueia tal julgamento ao mero arbítrio do juiz". 25 O autor, tam-
vários julgados em que se aplicou a função social do contrato e conclui
bém discordando de Flávio Tartuce, lembra que a função social do con-
que a função social do contrato não seria um princípio, mas, sim, uma
trato foi utilizada de forma tímida e retórica, "referindo-a em situações
de tutela de interesses das partes, no mais das vezes já resguardados por
°
exigência interpretativa. 3 Como são muitos os pontos a debater com
o doutrinador, e o meu espaço é pequeno, serei breve em minhas con-
siderações: (i) concordo, integralmente, com as críticas que faz sobre a
22 Cf. RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski; BÜRGER, Marcelo L. F. de Macedo. A tutela externa da falta de parâmetros para a aplicação da função social do contrato, bem
obrigação e sua (des)vinculação à função social do contrato. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. como com o fato de a doutrina e a jurisprudência estarem esvaziando o
6, n. 2, 2017. Disponível em: <http://civilistica.com/a-tutela-externa-da-obrigacao/>. Acesso
em 22/11/2020. seu conteúdo com interpretações e aplicações desnecessárias/equivoca-
23 "E como se chegaria a tal dever de abstenção? Seria necessário recorrer ao princípio da função
social do contrato? Nos parece que não, pois não é este princípio que permite a eficácia das; (ii) também concordo que a função social do contrato não seja um
transpessoal do contrato; pelo contrário, somente pelo reconhecimento de uma eficácia
externa da obrigação que se pode conceber a existência e eficácia de uma função social, cuja KONDER, Carlos Nelson. Para além da "principialização" da função social do contrato, cit.,
atuação seja externa ao contrato. A função social não é antecedente, mas, sim, consequente p. 48 - nota de rodapé n. 24.
da admissão de uma eficácia transpessoal às obrigações, como reforço à sua oponibilidade 27 "É importante observar que na maior parte destas decisões a função social do contrato vem
externa. [... ]. Resta claro, portanto, que o crédito é um bem da vida juridicamente tutelado invocada junto com outros princípios, o que corrobora a constatação de que essa interpretação
(primeiro pressuposto), e que tal direito, uma vez integrante do patrimônio dos contratantes, acaba esvaziando a função social de qualquer utilidade autônoma, de qualquer repercussão
é protegido por força da eficácia projetada pela situação jurídica básica do negócio jurídico, prática que já não seja atendida por outros meios. Écurioso observar, por rápida consulta no
desde seu nascimento {segundo pressuposto), a partir de um dever geral de não violação sítio do STJ, que dos 100 acórdãos que fazem menção à função social do contrato desde que
da esfera jurídica alheia. Eis o fundamento teórico da tutela externa, que não se confunde, o Código de 2002 entrou em vigor, em 62 ela é citada junto com o princípio da boa-fé, em 3
pois, com a função social dos contratos. Evidenciadas tais premissas, pode-se concluir que junto com um 'princípio de eticidade' e em 10 junto com a vedação ao enriquecimento sem
o fundamento normativo da tutela externa da obrigação se encontra na subsunção à regra causa. Isso sem contaras diversas vezes em que a função social do contrato é invocada apenas
instituidora da responsabilidade civil por danos, inserta nos artigos 186 e 927 do Código Civil. como fundamento axiológico de um outro instituto, que é o que se aplica diretamente ao
[...]. Em conclusão, revisitando a teoria do fato jurídico é possível construir uma norma de caso, como a redução da cláusula penal e a proibição de cláusulas abusivas" (KONDER, Carlos
tutela do crédito, sistemicamente coerente e que permite garantir sua proteção jurídica não Nelson. Para além da "principialização" da função social do contrato, cit., p. 49).
somente perante o devedor, mas também face a todos que conheçam ou devam conhecer 28 KONDER, Carlos Nelson. Para além da "principialização" da função social do contrato, cit., p.
a relação creditícia. A aplicação de tal norma aos casos que clamam por uma tutela externa 49-50.
da obrigação evidencia a prescindibilidade, no direito brasileiro, de recorrer ao princípio 29 KONDER, Carlos Nelson. Para além da "principialização" da função social do contrato, cit., p. 55.
da função social do contrato para solucionar satisfatoriamente as intervenções de terceiros 30 "Esse panorama revela que, sob essa última perspectiva, a função social do contrato é aplicada
sobre o crédito alheio, permitindo assim não só a proteção aos contratos que atuam como um de forma mais análoga à função social da propriedade, como um postulado metodológico-
contributo para a coletividade, como também àqueles que instrumentalizam apenas interesses hermenêutico que leva o intérprete a submeter a tutela do direito individual ao atendimento
particulares" {RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski; BÜRGER, Marcelo L. F. de Macedo. A tutela de interesses coletivos. Contrapõe-se, em certa medida, à possibilidade de concebê-la como
externa da obrigação e sua (des)vinculação à função social do contrato, cit., p. 19, 24 e 27). princípio, já que ela não é ponderada ou superada por outros princípios, não valora ou reprova
24 Cf. KONDER, Carlos Nelson. Para além da "principialização" da função social do contrato. condutas específicas, não se limita a impor sanções. Trata-se muito mais de uma exigência
Revista Brasileira de Direito Civil, vol.13. Rio de Janeiro: IBDCivil, jul.-set./2017, p. 39-59. interpretativa que remete a tutela do contrato ao atendimento de bens jurídicos coletivos
25 KONDER, Carlos Nelson. Para além da "principialização" da função social do contrato, cit., para além dos bens individuais" (KONDER, Carlos Nelson. Para além da "principialização" da
p.48. função social do contrato, cit., p. 58).
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princípio; aliás,já expus isso anteriormente, contudo, com base em outra do contrato tem uma função interna, e cita muitos julgados do STJ (to-
fundamentação; (iii) discordo da tese de que a função social do contrato dos, snef, envolvendo relações de consumo) e enunciados do CJF; (iii) é
deveria ser empregada para mitigar a relatividade contratual, para que o cabível a revisão judicial dos contratos, por onerosidade excessiva, com
contrato não prejudicasse terceiros e vice-versa, uma vez que há regras base no art. 421 do CC; (iv) é preciso se valer da função social do con-
específicas para esse fim; (iv) discordo do fundamento comum utilizado trato para defender teses como a da frustração do fim do contrato e a re-
nos arestos trazidos pelo autor, pois, em todos eles, é possível dirimir a dução/ devolução de cláusula penal; (v) a função social do contrato tem
lide com regra específica, sendo desnecessário o uso do art. 421 do CC; uma função externa, podendo ser percebida, v.g., na tutela externa do
e (v) não me parece que a função social do contrato seja uma exigência crédito, na eficácia externa do contrato de seguro (REsp n. 1.269.635/
interpretativa. Como já afirmei anteriormente, trata-se de uma das fun- MG), no fracionamento da hipoteca para proteger o consumidor, entre
ções do contrato, assim como há, por exemplo, a econômica. O concei- outros (todos, snef, relações de consumo); (vi) o art. 421 do CC reforça
to de função social do contrato já foi apresentado e ela está inserida no o princípio da conservação dos contratos, e, ainda, permite trocas justas;
art. 421 do CC, devendo ser lida dentro daquele contexto. e (vii) a função social do contrato foi empregada para solucionar casos
Cristiano de Souza Zanetti concluiu, em artigo publicado, 31 que o STJ envolvendo cláusula de não-restabelecimento, responsabilidade civil de
não vem empregando corretamente o art. 421 do CC. O autor analisou shopping por não tomar providências em relação às violações a direi-
todos os julgados do STJ publicados entre janeiro/2003 e julho/2013. tos de propriedade industrial. Sem embargo de sua inconteste autori-
Ele os dividiu em três grupos, quais sejam: (i) acórdãos em que a fun- dade doutrinária, peço licença para discordar de todo o seu texto, pois
ção social do contrato depende de concretização (alegar, no caso con- partimos de premissas distintas acerca do conceito de função social do
creto, como se deu a violação); (ii) acórdãos em que a função social do contrato. Tenho apenas duas observações a tecer: (i) a doutrina não é
contrato foi utilizada apenas para referendar soluções já existentes no unânime quanto à natureza principiológica da função social do contra-
nosso ordenamento jurídico; e, (iii) acórdãos em que a função social do to, uma vez que Carlos Nelson Konder, 33 Gilberto Fachetti Silvestre34 e
contrato foi efetivamente aplicada como fundamento principal. A con- eu, 35 por exemplo, pensamos de forma distinta. Aproveito o ensejo para
clusão à qual o referido doutrinador parece chegar é a de que o STJ não reiterar que nunca vi alguém sustentar que a função econômica do con-
conseguiu definir, naquele período, qual seria o sentido único e específi- trato seja um princípio, por conseguinte, a função social também não
co do art. 421 do CC no ordenamento jurídico brasileiro. Mesmo num deve ser classificada como um princípio; (ii) todos os exemplos trazidos
pequeno número de julgados do terceiro grupo, nos quais se trabalhou, podem (e deveriam) ser solucionados à luz de regras específicas, sendo
v.g., com a eficácia externa do contrato de seguro, ainda assim consi- desnecessário o auxilio do art. 421 do CC. Ao longo deste meu artigo
dero que seria possível chegar àquela conclusão sem que fosse preciso científico (e do meu livro,já citado) analisei, basicamente, todos os que
aplicar o art. 421 do CC. O doutrinador, porém, não se preocupou em foram listados por Claudia Lima Marques.
construir um conceito de função social do contrato; certamente porque Sidnei Beneti faz um bom apanhado do tema na doutrina e na ju-
não era o escopo de seu artigo científico. risprudência, sem, contudo, tentar trazer uma nova visão sobre o tema.
Claudia Lima Marques discorreu sobre o tema em um capítulo de Afirma que o "princípio da função social do contrato vem sendo pro-
livro. 32 Em suma, considera que: (i) a doutrina é unânime sobre a na- gressivamente implantado pela jurisprudência nacional por intermédio
tureza principiológica da função social do contrato; (ii) a função social de institutos que lhe servem de veículo de inserção sistemática, como, ad
exemplificandum tantum, o adimplemento substancial, o dever demiti-
31 ZANETTI, Cristiano de Souza. A função social do contrato no Superior Tribunal de Justiça: 10
anos depois. ln: Estudos de direito privado: Liber Amicorum para João Baptista Villela. Elena de 33 Cf. KONDER, Carlos Nelson. Para além da "principialização" da função social do contrato, cit.,
Carvalho Gomes, Edgard AudomarMarx Neto e Marcelo Andrade Féres (orgs.). Belo Horizonte: p.58.
D' Plácido, 2017, p. 273-305. 34 Cf. SILVESTRE, Gilberto Fachetti, A responsabilidade civil pela violação àfunção social do contrato,
32 Cf. MARQUES, Claudia Lima. Função social do contrato: visão empírica da nova teoria contratual. p. 121.
ln: Direito civil: diálogos entre a doutrina e a jurisprudência. Luís Felipe Salomão e Flávio Tartuce 35 Cf. BERALDO, Leonardo de Faria. Função social do contrato: contributo para a construção de
(coords.). São Paulo: Atlas, 2018, p. 209-268. uma nova teoria, p. 180-183.
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gar a perda contratual, o enriquecimento sem causa, a vulnerabilidade da concordo que o descumprimento da função social do contrato possa
parte mais fraca e semelhantes". 36 Curiosamente, depois de suas conclu- ser visto como um ato ilícito (indenizante, invalidante ou até mesmo
sões, conta a história do grave problema pelo qual o fundador da cidade funcional). 39 O grande dilema é saber quando é que ocorreu a violação
de São Francisco, nos Estados Unidos, passou no passado. Afirmou que ao art. 421 do CC, para, aí sim, determinar o tipo de ilícito e qual seria
é uma "[p ]ena que não havia institutos de solução sociojurídica, como a a consequência disso. E é isso que não ficou totalmente claro para mim
função social do contrato e da propriedade, naqueles tempos históricos". 37 ao ler o livro, entretanto, caso o autor esteja se referindo aos exemplos
Particularmente, penso que a solução para o ocorrido nesta cidade foi que mencionei no item (v), logo acima, então, a meu ver, não seriam hi-
falha da autoridade judiciária, que não conseguiu impor a autoridade e póteses de descumprimento do art. 421 do CC, pois, para se solucio-
a efetividade de sua decisão, que, corretamente, teve como fundamento nar aqueles problemas, há sempre um dispositivo legal mais específico
o esbulho possessório. Qy.anto aos exemplos citados de penetração da que deverá ser aplicado; (iv) conforme já me manifestei, não conside-
função social na jurisprudência, tenho que alguns deles (adimplemen- ro que o art. 421 do CC possa ser enquadrado como causa do contra-
to substancial e mitigação do prejuízo) decorrem do princípio da boa- to; (v) não consigo vislumbrar violação ao art. 421 do CC em hipóteses
-fé objetiva, e, os demais, têm luz própria. de superfaturamento da prestação contratual e no caso do Mensalão.
Gilberto Fachetti Silvestre escreveu uma longa tese de doutorado so- Evidentemente que há ilegalidade, contudo, com seus dispositivos es-
bre o tema. 38 Resumindo bastante, os principais pontos do livro são: (i) pecíficos e próprios para a resolução da lide. Qy.anto à tutela externa do
crédito, já me manifestei, à exaustão, sobre isso, no sentido de que não
dia:1te da funcionalização do contrato, o direito de crédito passa a ter
efeitos absolutos, criando, assim, um vínculo entre as partes e a socie- vejo qualquer ligação com o art. 421 do CC, devendo, tais casos, serem
dirimidos à luz da responsabilidade civil aquiliana.
dade; (ii) em caso de lesão às posições jurídicas das partes, em razão do
não cumprimento dos deveres de incolumidade previstos no art. 421 do Paulo Velten traz duas assertivas importantes. A primeira é que "o
CC, haverá violação à função social do contrato, tendo, como uma das contrato cumpre a sua função social quando realiza a sua finalidade
consequências, a desfuncionalização social do contrato; (iii) a violação econômica, atendendo as expectativas dos sujeitos da relação, e quando
da função social do contrato é fato ilícito e gera danos patrimoniais, ex- projeta valores que contribuem para a preservação e funcionamento do
trapatrimoniais e sociais, sendo responsável, pela indenização, aquele que mercado, estimulando novos agentes econômicos a continuar contra-
desfu~cionalizou o contrato; (iv) a função social do contrato é requisito tando, sem danos a terceiros e aos próprios contratantes". 40 A segunda é
de validade do contrato, logo, é a causa do contrato; e (v) seriam exem- a de que a boa-fé objetiva e a função social do contrato devem ser "exa-
plos de descumprimento da função social do contrato, v.g., um contra- minadas sempre em uma relação permanente e progressiva, não se po-
to superfaturado entre um particular e o Poder Público, o "Mensalão", a dendo compreender uma sem a outra, considerando que formam uma
simulação, a fraude contra credores, o terceiro que estimula o descum- unidade concreta da relação obrigacional que constituem". 41 Concordo
primento de um contrato, entre outros. Passo, agora, às minhas consi- com a primeira afirmativa do doutrinador, no entanto, como é um tema
derações, mas, antes, não poderia deixar de revelar que a tese do autor é ainda novo, complexo, e que só é debatido no Brasil, é preciso termos
interessante e, de certa maneira, diferente do que se tem publicado. São balizas mais certas e objetivas para podermos compreender e trabalhar
melhor o tema. Senti falta disso na referida doutrina. Qyanto à segun-
elas: (i) não é novidade um certo caráter absoluto do contrato, tanto é
da assertiva, peço licença para fazer um complemento. De fato, é difí-
que se fala em oponibilidade do contrato há décadas; (ii) estou de acor-
cil imaginar um contrato válido que não respeite tanto a boa-fé objetiva
do com a conclusão, todavia, confesso que não compreendi bem quais
quanto a função social do contrato, entretanto, tenho plena convicção de
seriam os "deveres de incolumidade" previstos no art. 421 do CC; (iii)
~E~ETI, S_ídn_ei. F~nçã? social d~ cont;ato. ln: Direito civil: diálogos entre a doutrina e a 39 Sobre essa classificação, confira-se: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Teoria dos ilicitoscivis. Belo
1unsprud~nc1a: Lu1s f:_hpe S~lomao e Flavio Tartuce (coords.). São Paulo: Atlas, 2018, p. 28s. Horizonte: Dei Rey, 2003, p. 99-123.
37 BENETI, S1dne1. Funçao social do contrato. ln: Direito civil: diálogos entre a doutrina e a 40 PEREIRA, Paulo Sérgio Velten. Contratos: tutela judicial e novos modelos decisórios. Curitiba:
jurisprudência, p. 286. Juruá, 2018, p. 148.
Cf. SILVESTRE, Gilberto Fachetti,A responsabilidadecMlpela violação àjunção social do contrato, 3 9 8p. 41 PEREIRA, Paulo Sérgio Velten. Contratos: tutela judicial e novos modelos decisórios, p. 148.
330 - Os 18 ANos DA FuNÇÃo Soc1AL DO CONTRATO LEONARDO DE FARIA BERALDO - 331

que os dois institutos são completamente diferentes um do outro, e com tudo do próximo doutrinador, gostaria de deixar algo para a reflexão do
propósitos bem diversos na estrutura do direito contratual. Começando leitor. Eduardo Nunes de Souza considera um equívoco sustentar que a
pela natureza jurídica, um é princípio; o outro é mera função. O prin- base legal do adimplemento substancial (ou mesmo do inadimplemen-
cípio da boa-fé objetiva tem aquelas três funções clássicas já trabalha- to antecipado) seria o princípio da boa-fé objetiva. Na sua visão, o fun-
das pela doutrina e jurisprudência. A função social do contrato ainda damento mais imediato seria a frustração da causa. 45 Dito isso, lanço a
está tentando mostrar a que veio. No nosso ponto de vista, já explanei seguinte indagação: existe alguma diferença, de ordem prática, em se
o seu conceito e a forma pela qual entendo que o art. 421 do CC deve buscar o fundamento mais imediato para a solução dessas duas questões,
ser utilizado na prática. quais sejam, adimplemento substancial e inadimplemento antecipado?
Eduardo Nunes de Souza faz uma distinção entre o controle valo- Ou essa discussão seria, estritamente, de ordem técnica (se for, nada de
rativo negativo 42 e positivo43 da função social do contrato, concluindo errado nisso)? E não nos esqueçamos - como, a propósito, muito bem
que o negativo é irrelevante e o positivo é uma utopia. No último capí- lembrou o autor-, que a causa não está positivada no nosso CC (como
tulo de seu artigo científico, critica o fato de a causa não ter sido positi- está, v.g., no CC italiano e no argentino); a boa-fé objetiva, por sua vez,
vada pelo CC, na medida em que é um tema sobremaneira importante. está insculpida no art. 422 do CC.
E, em seguida, critica alguns casos que vêm sendo dirimidos (mesmo Véra Fradera escreveu um capítulo de livro sobre a função social do
que in abstrato) de forma equivocada, entre eles, o da frustração do fim contrato após a Lei de Liberdade Econômica. 46 Suas considerações -
do contrato. Por fim, apesar de não ser objeto deste meu estudo, infor- sempre com técnica e cautela - podem ser resumidas da seguinte for-
mo que o autor entende - e eu concordo com ele - que o princípio da ma: (i) a função social do contrato mitigou os princípios do pacta sunt
boa-fé objetiva está sendo superutilizado e banalizado. 44 Aliás, concordo servanda e da relatividade dos contratos; (ii) elogiou a alteração legisla-
com as suas críticas acerca dos controles valorativos positivo e negati- tiva, com a substituição de "liberdade de contratar" por "liberdade con-
vo da função social do contrato. Com efeito, antes de passar para o es- tratual", bem como a supressão do termo "em razão"; (iii) considera que
0 parágrafo único do art. 421 do CC tem um viés bastante lib:~al, pois
42 "No que diz respeito ao controle valorativo negativo (ou repressivo) do contrato, afirma-se determina a intervenção mínima do julgador, e, claramente, cnt1ca essa
que a função social atua internamente ao contrato, limitando e legitimando os interesses das
partes (o programa contratual não pode violar valores socialmente relevantes, sob pena de se posição. Como já pude me manifestar sobre os dois primeiros itens no~
configurar uma ilicitude - possivelmente, do objeto do negócio, ensejando sua invalidade-,
nem a execução da avença poderá fazê-lo -sob pena de se verificar o exercício disfuncional
capítulos 1 e 2, desnecessário repetir os mesmos argumentos. ~anto_ a
das posições contratuais). Tem-se, assim, aplicado o princípio para destacar que o vínculo terceira parte, com todo o respeito, não vejo com maus olhos a movaçao
contratual não pode violarvalores como a proteção do meio-ambiente, a tutela do consumidor,
a garantia da livre-concorrência e assim por diante. Não se pode ignorar, contudo, que esses do parágrafo único do art. 421. O que se tem ali é uma determinação
valores já contam com previsões específicas no ordenamento, não configurando aplicações para que o juiz respeite a vontade das partes, e, para tanto, deverá in-
propriamente autônomas do princípio, o que parece esvaziar, ao menos à primeira vista, sua
relevãncia" (SOUZA, Eduardo Nunes de. De volta à causa contratual: aplicações da função tervir o mínimo possível, pois a autonomia privada precisa voltar a ser
negocial nas invalidades e nas vicissitudes supervenientes do contrato, cit., p. 41-42).
43 "Poroutro lado, no que tange ao controle positivo (ou promocional), o qual deveria incentivar mais respeitada. Não há inconstitucionalidade nisso. Não se quis afas-
que as partes promovessem ativamente valores não individuais, parece pouco realista supor que tar a jurisdição da parte, mas, tão somente, evitar o intervencionismo
os contratantes passarão a celebrar avenças tendo em vista esses valores, e não seus próprios
interesses. Como já registrado em doutrina, o caminho parece ser o de conferir um regime desnecessário, excessivo e indesejado no contrato paritário. Isso por-
jurídico diferenciado a contratos de grande relevância social (por exemplo, priorizando sua que, repita-se, esse dispositivo não se aplica nas relações de consumo.
manutenção, ainda que temporária, em face de certas vicissitudes extintivas). A implementação
desse projeto, porém, normalmente levará ao benefício de um dos próprios contraentes (por Trata-se de uma regra de reforço ao conteúdo da autonomia privada e
exemplo, aquele que desejar evitar a extinção da relação diante de uma vicissitude que tenha
prejudicado o outro contratante), o que, segundo alguns autores, desvirtuaria a natureza social
do princípio.186 Põe-se·em dúvida, assim, se uma das partes deteria legitimidade para invocar
eventual inobservância da função social em benefício próprio (aproveitando-se, em certos Cf. SOUZA, Eduardo Nunes de. De volta à causa contratual: aplicações da função negocial nas
casos, inclusive da própria torpeza)" (SOUZA, Eduardo Nunes de. De volta à causa contratual: 45
invalidades e nas vicissitudes supervenientes do contrato, cit., p. 34.
aplicações da função negocial nas invalidades e nas vicissitudes supervenientes do contrato, Cf. FRADERA, VéraJacob de.Art. 7°: liberdade contratual e função social do contr_ato-ar~. 421
cit., p. 42). do Código Civil. ln: Comentários à Lei de Liberdade Econômico: Lei 13.874/2019. Flor~ano Peixoto
44 Cf. SOUZA, Eduardo Nunes de. De volta à causa contratual: aplicações da função negocial nas Marques Neto, Otavio Luiz Rodrigues Jr. e Rodrigo Xavier Leonardo (coords.). Sao Paulo: RT,
invalidades e nas vicissitudes supervenientes do contrato, cit., p. 34. 2019, p. 293-308.
332 - Os 18 ANos DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO LEONARDO DE FARIA BERALDO - 333

do p~cta sunt servanda dentro do atual contexto estabelecido pela Lei a perda do objeto por fato superveniente é um problema que existe e é
de Liberdade Econômica. objeto de doutrina em diversos países. Desse modo, se só no Brasil se
Anderson Schreiber,logo no início de seu texto, assevera que "(a] fim- fala em função social do contrato, como é que a questão é dirimida nes-
ção social do contrato, que, no plano puramente teórico, prometia uma tas outras localidades? Há resposta para isso com dispositivos legais es-
transformação até superior em suas dimensões àquela representada pelo pecíficos, e, claro, valendo-se dos ditames dos planos da validade e da
advento da boa-fé objetiva, alterando, entre nós, o próprio fundamen- eficácia do negócio jurídico.
t~ axiof~gico_da liberdade contratual, não encontrou ainda uma aplica- Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber teceram breves linhas sobre
çao pratica digna das suas potencialidades, configurando tema até hoje a função social do contrato em livro recentemente lançado. 52 Em suma,
enigmático e polêmico".47 Em seguida, este doutrinador faz duras crí- sustentam que: (i) a função social do contrato surgiu no Brasil com a
ticas ao que se vem escrevendo sobre o tema, em especial à doutrina de Constituição de 1946, isto é, com a positivação da função social da pro-
Flávio Tartuce. 48 Anderson Schreiber afiança que "[n]enhuma das duas priedade; e (ii) há mais de 50 anos foi objeto de estudo pela doutrina
normas traz indicação de conteúdo material ou parâmetros para a deli- italiana. Existem, basicamente, três correntes sobre o tema. Pela primei-
mitação_ co~ceitual da função social dos contratos. A omissão legislati- ra corrente, a função social do contrato não teria eficácia jurídica autô-
va contnbm fortemente para que a função social do contrato ainda seja noma, sendo uma espécie de norma programática pela qual se revela
mantida, pela imensa maioria da nossa doutrina, em um plano puramen- em vários institutos, tais como lesão, onerosidade excessiva, simulação,
te abstrato, sendo definida de modo tão amplo e vago que seu significa- entre outros. Vê-se, pois, que "tal entendimento, apesar do respeito que
do passa a se confundir com aquele atinente à ordem jurídica em geral. merecem seus autores, acaba por reduzir a relevância prática da função
Assim, a função social do contrato acaba sendo mencionada frequente- social. Esta se expressaria por meio de institutos já positivados no orde-
mente, entre nós, de modo pouco útil, como justificativa ética ou apoio namento, restando desprovida, por isso mesmo, de eficácia jurídica autô-
principiológico para institutos jurídicos já consolidados no direito bra- noma". Para a segunda corrente, "a função social do contrato imporia aos
sileiro, mesmo antes do seu advento". 49 Concordo integralmente com a terceiros o dever de colaborar com os contratantes, de modo a respeitar
avaliação do autor e espero que, num futuro próximo, ele possa trazer a a situação jurídica creditória anteriormente constituída da qual têm co-
sua contribuição concreta para o debate. 50 nhecimento". A terceira corrente "propõe que a função social do contrato
seja fonte de deveres jurídicos. Informada pelos princípios constitucio-
Flávio Tartuce manteve o mesmo entendimento que tinha por oca- nais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III); do valor social da li-
si~o da publicação de seu livro sobre a função social do contrato, qual vre iniciativa (art. 1º, IV) - fundamentos da República-; da igualdade
sep, o de que ela está presente em diversos dispositivos do CC. 51 De substancial (art. 3°, III); e da solidariedade social (art. 3°, I) - objetivos
novidade, salvo engano, afirma que no caso de frustração do contrato a da República-, a função social impõe às partes o dever de perseguir, ao
~nção social do contrato incidirá de forma isolada e sem que seja pre- lado de seus interesses individuais, interesses extracontratuais social-
ciso se valer de nenhum outro dispositivo legal. Como já discorri so- mente relevantes alcançados pelo contrato". Concluem afirmando que
bre isso no início deste artigo, não serei repetitivo, contudo, reitero que "o debate acerca do conteúdo e do papel da função social do contrato
47 SCHREIBER, Anderson. Manual de direita civil contemporâneo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva 2020
no ordenamento jurídico brasileiro se insere no âmbito deste processo
p. 431. ' ' de funcionalização dos fatos jurídicos, impondo-se ao intérprete verifi-
48 Cf. a nota de rodapé n. 792.
49 SCHREIBER, Anderson.Manual de direito civil contemporâneo, p. 432. car o merecimento de tutela dos atos de autonomia privada, os quais en-
50 Ne~te momento ele acredita que o ideal é que o legislador apresentasse parâmetros concretos contrarão proteção do ordenamento se - e somente se - realizarem não
assim como o fez ao tratar da função social da propriedade. '
51 cy. TA~1:UCE, Fl_ávi?._Manual de direito civil. 10ª ed. São Paulo: Método, 2020, p. 5 6 0 -570 _Os apenas a vontade individual dos contratantes, perseguida precipuamen-
d1spos1t1vos, pr~nc'.pws e ideias seriam: art.113, § 1°, IV, 156,157,166, li, 187,317,423,424, 47 8, te pelo regulamento de interesses, mas, da mesma forma, os interesses
tod~s _d~ C~;- d1grndad_e da_µess?~ humana (art.1°, Ili, CF/88); princípio da conservação do
n~goc1? Jund1co (sem c1tard1spos1t1vo legal); proteção dos direitos difusos e coletivos (sem citar
d1spos1t~vo legal); tutela externa _do_créd_it? (art. 608 do CC). O autor cita muita jurisprudência 52 Cf. TEPEDINO, Gustavo; SCHEREIBER, Anderson. Fundamentos do direito civil. vai. 3. Rio de
e enunciados das Jornadas de D1re1to Civil do Conselho da Justiça Federal. Janeiro: Forense, 2020, p. 47-50.
334- Os 18 ANOS DA FUNÇÃO Soc1AL DO CONTRATO LEONARDO DE FARIA BERALDO - 335

extracontratuais socialmente relevantes vinculados à promoção dos va- recordar de que não se trata de um direito absoluto, pois, sabidamente,
lores constitucionais". Sem embargo da grande autoridade doutrinária não existem direitos absolutos no nosso ordenamento jurídico.
de ambos, apesar de se ter buscado resumir a discussão dos últimos 18 Ricardo Villas Bôas Cueva, em recente live, fez duras críticas ao art.
anos sobre o tema, tenho que as afirmações abertas e vagas, com todo o 421 do CC, e, de certo modo, idênticas às que venho fazendo ao lon-
respeito, não servirão para se chegar a um conceito preciso de como se go dos anos. 57 Ele (i) lembra da ideia de Emilio Betti na Itália fascista,
deve aplicar o art. 421 do CC, ou seja, a insegurança jurídica continu- mas que é bem diferente do art. 421; (ii) reforça que, na jurisprudência,
ará nos assombrando. Finalizando, concordo, claro, com as críticas que a função social do contrato só vem sendo utilizada como mero pendu-
fazem àqueles que, ao escreverem sobre a função social do contrato, in- ricalho, pois está sempre sendo empregada junto com outros institutos
sistem em conectá-la a outros dispositivos legais peculiares. (notadamente a boa-fé objetiva); e (iii) acredita que o campo do direi-
Gustavo Tepedino e Laís Cavalcanti escreveram breve artigo sobre a to concorrencial possa vir a ser um bom campo de atuação para a cor-
nova redação do art. 421 do CC. Pude perceber que Gustavo Tepedino reta utilizacão
, da funcão
, social do contrato. Estou de acordo com suas
manteve os mesmos argumentos que sempre utiliza em seus textos ponderações.
anteriores, 53 quais sejam: (i) as raízes do contrato estão na CF/88, e "a Portanto, feitas essas considerações, creio que o leitor tem uma boa
exclusão da locução 'em razão' não tem o condão de afastar o controle noção do que se tem escrito sobre este delicado tema. Parece-me que as
de utilidade social das relações patrimoniais"; 54 (ii) "[p]ropriedade, em- duas maiores críticas são: (i) falta de critérios objetivos de como se deve
presa, família, relações contratuais tornam-se institutos funcionalizados aplicar o art. 421 do CC e (ii) o erro em se utilizar a função social do con-
à realização da dignidade da pessoa humana, fundamento da República, trato sempre em conjunto com outras regras específicas sobre a matéria.
para a construção de uma sociedade livre,justa e solidária, objetivo cen-
tral da Constituição brasileira de 1988";55 e (iii) em relação à função so- 57 Aseguir, a transcrição, na íntegra, do que ele disse: "A função social do contrato nã? te~ paralelo
no mundo. É uma criação original do professor Miguel Reale. Provavelmente inspirada por
cial do contrato, esta pode ser entendida como norma que, informada um autor italiano, Emílio Betti, que foi muito citado em sua obra, e que foi produzida em uma
pelos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. outra circunstãncia, na década de 1930 e 1940, na Itália fascista, e que tinha uma outra visão
do contrato. Inclusive é um contrato com causa, que não temos no Brasil. Beviláqua repeliu
1º, III), do valor social da livre iniciativa (art. 1º, IV) - fundamentos da a ideia de causa e nós até hoje não temos uma causa no contrato. Enfim, a função social do
contrato é interessante porque foi objeto de alguns estudos empíricos de defen~o~es da f~nç~o
República - e da igualdade substancial (art. 3°, III) e da solidariedade social do contrato em nosso sistema e eles mesmos reconhecem que a nossa iunsprudenc1a,
social (art. 3°, I) - objetivos da República - impõe às partes o dever de sobretudo no STJ, ao longo desses quase 20 anos de vigência do CC, tem sido sempre usada em
conjunto com outros institutos, notadamente a boa-fé objetiva, ~u seja, a_existê~cia_ou a não
perseguir, ao lado de seus interesses individuais, interesses extracontra- existência da funcão social do contrato no nosso ordenamento nao tem feito muita diferença.
tuais socialmente relevantes, dignos de tutela jurídica, alcançados pelo Naqueles casos e~ que deveria haver uma revisão do contrato, de acordo com_aquela~ ~orm~s
a que se referia o professor Rodrigo [Xavier Leonar?o] agor_a, que o noss_o s1st~ma Jª preve,
contrato". 56 A meu ver, esses conceitos muito abertos, sem quaisquer em caráter excepcional, a revisão do contrato, ela nao tem tido uma funçao muito relevante.
Na proteção dos mais vulneráveis, como já se sabe, ela n~,º tem essa função maior po_rq_u_e a
parâmetros, parecem ter sido alvo das críticas de Anderson Schreiber. legislação consumerista, por exemplo, e sobretudo, ela Jª exe~ce esse pap~I de poss1b1htar
Assim, com todo o respeito, repito: enquanto o art. 421 do CC conti- a revisão de cláusulas abusivas, Nos contratos de longa duraçao entre 1gua1s os contratos
paritários - talvez a função social do contrato possa exercer umy~p_el importante, sobretudo
nuar sendo definido de maneira tão vaga, a segurança jurídica tende a naqueles casos em que se trate de coibir, de algum modo, uma ef1cacia externa danosa daquele
contrato; tipicamente os contratos de distribuição, sobre os quais tão bem escreveu a profe~sor~
crescer, e os equívocos na sua utilização, pelos nossos tribunais, perma- Paula [Forgioni], Nos contratos de distribuição ?e lo~go prazo onde, naturalmente, n~o ha
necerão existindo. Em relação à dignidade da pessoa humana, é preciso uma simetria perfeita entre as partes, e, tambem, ha problemas d~, fa(ta de tr~nsparenc1a
quanto à racionalidade econômica das duas partes; ~a um desequ!hbno ta~be~ s_o~re o~
investimentos necessários; nesse tipo de contrato - nao apenas obviamente d1stnbu1çao - a1
53 Tanto é verdade que cita, a si próprio, em diversas notas de rodapé. sim essa discussão pode ser útil, né, Quando se tratar de uma eficácia externa do contrato que
54 TEPEDINO, Gustavo; CAVALCANTI, Laís. Notas sobre as alterações promovidas pela Lei n. tem a ver com a ordem pública, por exemplo, concorrencial, então aí me parece interessante.
13.874/2019 nos artigos 56, 113 e 421 do Código Civil. ln: Lei de Liberdade Econômica e seus impactos Eu não sei se falei suficientemente sobre isso; na verdade é apenas uma opinião pessoal minha,
no direito brasileiro. Luis Felipe Salomão, Ricardo Villas Bôas Cu eva e Ana Frazão (coords.). São claro, Os civilistas que defendem uma eficácia dos princípios constitucionais diretamente no
Paulo: RT, 2020, p. 501. direito civil naturalmente têm uma posição mais favorável à necessidade de uma função social
55 TEPEDINO, Gustavo; CAVALCANTI, Laís. Notas.sobre as alterações promovidas pela Lei n. tal qual vem sendo interpretada no Brasil" (CU EVA, Ricardo Vil las Bôas. Live sobre "Saída de
13.874/2019 nos artigos 50, 113 e 421 do Código Civil, cit., p. 501. Emergência- Contratos empresariais e Direito da Concorrência", realizada no dia 13(04/2020
56 TEPEDINO, Gustavo; CAVALCANTI, Laís. Notas sobre as alterações promovidas pela Lei n. pela TV Conjur. Disponível no site: <https://www.youtube.com/watch?v=7HDnyp1xhvk>, O
13.874/2019 nos artigos 50, 113 e 421 do Código Civil, cit., p. 503. momento exato do trecho é este aqui: 37'00" a 40'33").
336 - Os 18 ANOS DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO LEONARDO DE FARIA 8ERALDO - 337

4. A JURISPRUDÊNCIA DO STJ NA ÚLTIMA DÉCADA está escrito que a base legal seria, também, a função social do contrato.
Desde que escrevi sobre a função social do contrato no ano de 2007, Minhas considerações: (i) não se fundamenta no acórdão, devidamen-
e com a publicação do livro em 2011, venho advertindo para o emprego te, porque é que o art. 421 do CC deveria incidir; (ii) o dispositivo legal
equivocado e desnecessário do art. 421 do CC pela nossa jurisprudên- efetivamente utilizado foi o art. 768 do CC (a meu ver, muito bem usa-
cia.58 Na época eu era uma voz isolada e solitária, contudo, com o pas- do); (iii) poderia ter sido empregado, ainda, o art. 422 do CC, na medi-
sar dos anos, verifico que o cenário está mudando. Anderson Schreiber, da em que ocorreu violação positiva do contrato (descumprimento do
por exemplo, aduz que a "[n]ossa jurisprudência, por sua vez, refere-se dever de cooperação). Por incrível que pareça, no STJ há um julgado
nominalmente ao princípio da função social com frequência, mas tem em que a discussão foi, basicamente, a mesma, contudo, a seguradora foi
encontrado dificuldade em empregá-lo sem o caráter um tanto dema- obrigada a indenizar o segurado, justamente com base na função social
gógico que, muitas vezes, se lhe imprime na prática advocatícia, em que do contrato. 62 A diferença é que no Aglnt no AREsp n. 1.039.613/SP
a função social tem sido invocada ora como argumento para a defesa não se permitiu que a seguradora indenizasse o segurado; já no REsp n.
dos interesses patrimoniais e individuais dos próprios contratantes ou 1.738.247/SC decretou-se a ineficácia da cláusula do contrato de segu-
de seus concorrentes - utilização que, note-se, contraria o caráter social ro em relação a terceiros, ou seja, a seguradora foi obrigada a indenizar
da função que o legislador pretendeu expressamente atribuir ao contra- a vítima, já que o segurado (embriagado) foi considerado culpado pelo
to -, ora como fundamento para a desconsideração do próprio objeto acidente. Não concordo com esta última decisão, que, aliás, foi tomada
do contrato, resultado que representa uma aplicação principiológica in- por maioria de votos. Ora, se houve o agravamento do risco, e o segu-
tensíssima, mas que se afasta da própria essência de um princípio seto- rado perdeu a garantia (art. 768 do CC), parece-me coerente que esta
rial do direito dos contratos". 59 perda fosse estendida, também, aos terceiros. E mais: será que, além dis-
Dito isso, vejamos alguns julgados do STJ em que, com a devida so, a seguradora sub-rogar-se-á (art. 786 do CC), nestes direitos, con-
vênia, se aplica a função social do contrato de forma equivocada e/ou tra o próprio segurado?
desnecessária. Os dois últimos julgados a serem analisados, todavia, pa- No REsp n.1.804.965/SP foi decidido que "os prejuízos resultantes
recem ser uma luz no fim do túnel em prol do escopo que tenho defen- de sinistros relacionados a vícios estruturais de construção estão acober-
dido e proposto para o art. 421 do CC. tados pelo seguro habitacional obrigatório, vinculado a crédito imobi-
No Aglnt no AREsp n.1.673.739/SP decidiu-se que o rol de pro- liário concedido para aquisição de imóvel pelo Sistema Financeiro da
cedimentos da ANS não é taxativo, mas, sim, exemplificativo. 60 Na emen- Habitação". 63 Na ementa consta que há violação à boa-fé objetiva e à
ta está escrito que a base legal seria a função social do contrato. Minhas função social do contrato. Minhas considerações: (i) não se fundamenta
considerações: (i) não se fundamenta, no acórdão, porque é que o art. no acórdão, devidamente, porque é que o art. 421 do CC deveria incidir;
421 do CC deveria incidir; (ii) o dispositivo legal efetivamente utiliza- (ii) o caso concreto não guarda relação com o conceito de função social
do foi o art. 51, IV, do CDC (a meu ver, muito bem usado); (iii) pode- do contrato que propus anteriormente; (iii) o que se discute é a ampli-
riam ter sido empregados, ainda, os arts. 423 e 424 do CC. tude do objeto segurado, assim como aquilo que foi excluído da cober-
No Aglnt no AREsp n. 1.039.613/SP decidiu-se que o segurado 62 Cf. "6. O seguro de responsabilidade civil se transmudou após a edição do Código Civil de
2002, de forma que deixou de ostentar apenas uma obrigação de reembolso de indenizações
que empresta o automóvel ao filho, que, por sua vez, está embriagado do segurado para ab~igartambém uma obrigação de garantia da vítima, prestigiando, assim, a
e causa acidente, não tem direito à cobertura securitária. 61 Na ementa sua função social. 7. Einidôneaa exclusão da cobertura de responsabilidade civil no seguro de
automóvel quando o motorista dirige em estado de embriaguez, visto que somente prejudicaria
a vítima já penalizada, o que esvaziaria a finalidade e a função social dessa garantia, de proteção
58 Cf. BERALDO, Leonardo de Faria. Função social do contrato: contributo para a construção de dos interesses dos terceiros prejudicados à indenização, ao lado da proteção patrimonial do
uma nova teoria, p. 115-176. segurado" (STJ, 3ª T., REsp n. 1.738.247/SC, Rei. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 27/11/2018,
59 SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo, p. 433. D}e 10/12/2018). Ora, no caso em tela, se se quisesse atingir este resultado, sem se invocar o
60 Cf. STJ, 3ª T., Aglnt no AREsp n. 1.673.739/SP, ReL Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 19/10/2020, art. 421 do CC, bastaria que não fosse aplicado o art. 768 do CC, ao argumento de que o fato
D}e 26/10/2020. de se dirigir embriagado não significa que se quis, intencionalmente, agravar o risco objeto
61 Cf. STJ, 3ª T., AglntnoAREsp n. 1.039.613/SP, Rei. Min. Ricardo Villas Bôas Cu eva, j. 19/10/2020, do contrato. Nesse caso, a discussão iria pairar no grau de embriagues do segurado
D}e 29/10/2020. 63 STJ, 2ª Seção, REsp n. 1.804.965/SP, Rei. Min. Nancy Andrighi, j. 27/05/2020, D}e 01/06/2020.
338 - Os 18 ANos DA FUNÇÃO SociAL DO CONTRATO LEONARDO DE FARIA BERALDO - 339

tura; (iv) a parte recorrente não arguiu violação ao art. 421 do CC para da. 67 Por outro lado, se o banco cobrou percentual mais elevado do que
se interpor o recurso especial, logo, causa estranheza decidir-se com base poderia, então é o caso de se decotar o que excedeu e se determinar que
nele; 64 (v) pelo que consta do acórdão, a cláusula contratual que versa pague com prazo mais longo.
sobre o que está excluído da cobertura é bastante clara, por conseguin- No REsp n. 1.573.945/RN decidiu-se que o adquirente de imó-
te, se estiver em destaque, como determina o § 4° do art. 54 do CDC, vel pelo programa "Minha Casa, Minha Vida" não tem direito de rece-
não haveria, em tese, qualquer ilegalidade; (v) o STJ desconsiderou a ber lucros cessantes pelo atraso na entrega do imóvel. Teria direito de
cláusula contratual que versa sobre as excludentes de cobertura, por en- perceber danos emergentes, desde que comprovados. Qy.anto aos da-
tender que violou a boa-fé objetiva e a função social do contrato; (vi) nos morais, entendeu-se que houve mero dissabor. 68 Consta, na emen-
os arts. 47, 48, 51, IV, e 54 do CDC seriam suficientes para se resolver ta, que a função social do contrato deve ser aplicada na solução da lide.
a lide, sem que fosse preciso se socorrer ao art. 421 do CC. Curiosamente, no acórdão não se fala em função social do contrato de
No Aglnt no REsp n. 1.812.927/DF foi decidido que, "de acordo forma concreta, mas, tão somente, há a citação de uma obra doutriná-
com a orientação jurisprudencial vigente no Superior Tribunal de Justiça, ria que, com a devida vênia, não guarda relação com o deslinde do caso
em observância aos princípios da função social do contrato e da dignida- concreto. O verdadeiro fundamento utilizado para se decidir foi a ve-
de da pessoa humana, o adimplemento de obrigação assumida em con- dação ao enriquecimento sem causa. Por quê? Porque, segundo a corte,
trato de mútuo bancário na modalidade de consignação em pagamento não se poderia indenizar o comprador, pelo que ele deixou de ganhar,
está limitada ao percentual de 30%". 65 O que causa espanto, com todo já que ele não poderia vender o imóvel, tendo em vista as regras restri-
o respeito, é que esta mesma questão vinha sendo decidida no STJ du- tivas do contrato.
rante muitos anos, com base na lei, e não se falava em função social do No REsp n.1.624.273/PR foi decidida questão sobre o pagamen-
contrato. 66 Por que é que de repente, num passe de mágica, o art. 421 to de reserva matemática adicional em entidade fechada de previdência
passou a ser necessário para o deslinde do caso? Qy.ando a questão che- privada. 69 Na ementa consta a expressão "função social do contrato pre-
gou ao STJ, os fundamentos para se decidir, desta mesma maneira, eram videnciário". No voto é citada uma doutrina que faz alusão ao mesmo
a Lei n. 10.820/2003, o princípio da razoabilidade e o caráter alimen- termo, sem, contudo, se descer em detalhes. Na verdade, o dispositivo
tar dos vencimentos. Por fim, mesmo que não existisse lei própria, seria legal utilizado para decidir o caso foi o art. 18 da Lei Complementar n.
indevida a aplicação do art. 421, uma vez que o desconto excessivo em 109/2001. Dessa forma, por que fazer uso do art. 421 do CC?
folha não está ligado ao direito de acesso a bens e serviços. Nesse caso, No REsp n. 1.734.750/SP se discute se a diária em hotel ou pou-
as alternativas seriam os arts. 156 e 157 do CC, ou, então, o art. 51, IV, sada deve ou não durar 24 horas, nos termos do art. 23, § 4°, da Lei n.
do CDC. De todo modo, é preciso ter em mente que um contrato livre- 11.771/08. Consta da ementa que "[a] função social do contrato define
mente pactuado deve ser cumprido pelas partes, salvo se ficar compro- os limites internos do direito de contratar e, por conseguinte, a prote-
vado vícios nos planos da validade ou da eficácia, ao princípio da boa-fé ção jurídica das justas expectativas das partes contratantes no momen-
objetiva ou outro regramento específico. Lembremo-nos de que o con- to da celebração do acordo de vontades. O caput e o inciso III do art. 4°
sumidor conseguiu juros mais baixos e prazos mais longos para pagar do CDC acrescentam densidade normativa à função social do contrato,
o empréstimo consignado justamente em razão da garantia apresenta- ressaltando que um dos objetivos das relações de consumo é compati-
Nesse sentido: "Por um lado, a norma federal possibilita ao consumidor que tome empréstimos,
obtendo condições e prazos mais vantajosos, em decorrência da maior segurança propiciada
Não desconheço a tese de que, conhecido o recurso especial, abre para o STJ a oportunidade ao agente financeiro. Poroutro lado, por meio de salutar dirigismo contratual, impõe limitações
de aplicar o direito, ao caso concreto, como bem entender. aos negócios jurídicos firmados entre os particulares, prevendo, na relação privada, o respeito
STJ, 3ª T., Aglnt no REsp n. 1.812.927/DF, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 14/10/2019, D/e à dignidade humana, pois impõe, com razoabilidade, limitação aos descontos que incidirão
65
22/10/2019. sobre a verba alimentar, sem menosprezara autonomia da vontade" (STJ, 4 ª T., REsp n. 1.169.334/
66 Confiram-se, por exemplo, estes julgados: REsp n:1.169.334/RS, j.23/08/2011; REsp n. 1.184.378/ RS, Rei. Min. Luís Felipe Salomão, j. 23/08/2011, 0/e 29/09/2011.
RS, j. 20/11/2012; AgRg no AI n. 1.418.832/RS, j. 07/05/2013; AgRg no AREsp n. 488.321/SP, j. 68 Cf. STJ, 4ª T., REsp n. 1.573.945/RN, Rei. Min. Marco Buzzi, j. 25/06/2019, D/e 05/08/2019.
02/10/2014. 69 Cf. STJ, 3ª T., REsp n. 1.624.273/PR, Rei. Min. Nancy Andrighi, j. 21/05/2019, D/e 24/05/2019.
340 - Os 18 ANos DA FUNÇÃO Soc1AL Do CONTRATO LEONARDO DE FARIA 8ERALDO - 341

bilizar a proteção do consumidor com o desenvolvimento econômico e Dependendo das particularidades do caso concreto, é possível que reste
tecnológico". 70 Decidiu-se, ao final, que a limpeza e organização do quar- configurada uma venda casada (fornecimento de cartão de crédito con-
to também fazem parte do período da diária, consequentemente, é líci- dicionado à contratação de seguro de responsabilidade civil). Nesse caso,
to não conceder o acesso ao quarto por exatamente 24 horas. Concordo essa prática é vedada, ex vi do disposto no art. 39, I, do CDC.
com a conclusão, todavia, discordo da forma utilizada para se quebrar No REsp n.1.770.358/SE foi travada a discussão sobre o direito de
a literalidade do § 4° do art. 23 da Lei n. 11.771/08. Não penso que é uma viúva receber a carta de crédito de um consórcio em razão da morte
preciso se valer do art. 421 do CC, pois não estamos diante de recusa de seu marido e, primordialmente, porque todas as prestações foram pa-
e/ou problemas ligados ao direito de acesso a bens e serviços. O que se gas por uma seguradora, uma vez que o falecido contratou seguro pres-
está debatendo é a legalidade de se ter uma diária com um período me- tamista. Assim, mesmo com a liquidação do débito, o banco responsável
nor do que 24 horas. Para se interpretar o mencionado dispositivo, da por administrar o consórcio negou a entrega da carta de crédito. Consta
forma como se deu no caso concreto, bastaria sustentar que o § 4° do do acórdão estes dois trechos: (i) "[p]ara solucionar a celeuma,indispen-
art. 23 não proíbe a restrição do horário de entrada e saída, pois, pelos sável, portanto, que se averigue a dimensão social do consórcio à luz da
usos e costumes desse seguimento empresarial (art. 113 do CC), é pre- cláusula geral da função social do contrato, conciliando-se o bem comum
ciso que haja um intervalo para que o quarto possa passar pela limpeza pretendido qual seja, a aquisição de bens ou serviços por todos os con-
e organização. Para que não surjam demandas judiciais desnecessárias, sorciados - e a dignidade de cada integrante do núcleo familiar atingido
é importante que esta limitação esteja em destaque na oferta e no con- pela morte do consorciado, que, destaca-se, teve suas obrigações finan-
trato de hospedagem, nos termos do § 4° do art. 54 do CDC. Essa res- ceiras (perante o grupo consorcia!) absorvidas pela própria seguradora,
trição é legal por um motivo extremamente simples, qual seja, o CDC quando do adimplemento do saldo devedor remanescente"; e (ii) "am-
não a proíbe. O consumidor pode ser alvo, sim, de certas restrições, des- parando-se na própria função social do contrato, se existe previsão con-
de que observado o mencionado dispositivo legal. tratual de seguro prestamista vinculado ao contrato de consórcio, não há
No REsp n. 1.737.411/SP consta do voto da relatora (vencida no lógica em se exigir que o beneficiário aguarde a contemplação do con-
julgamento) os seguintes trechos: (i) "o sinalagma inerente à função so- sorciado falecido ou o encerramento do grupo, para o recebimento da
cial do contrato de cartão de crédito é o de as instituições financeiras e carta de crédito, uma vez que houve a liquidação antecipada da dívida
administradoras de cartões de crédito assumirem, ao se oferecerem para (saldo devedor) pela seguradora, não importando em qualquer desequi-
prestar essa atividade especializada de forma empresarial e visando lu- lfbrio econômico-financeiro ao grupo consorcial". 72 Não vejo qualquer
cro, o correspondente dever de gerir com segurança as movimentações violação à função social do contrato, pois não se negou a contratação
de seus clientes"; e (ii) "o pagamento do prêmio de referido seguro pelo do consórcio ou mesmo do seguro. Estamos diante de inadimplemento
consumidor ensejaria, no entanto, mais uma vez, a exoneração completa contratual. O fato de inexistir previsão legal sobre a hipótese concreta na
do fornecedor pela ocorrência de fato do serviço que é de sua responsa- Lei n.11.795/2008 não é justificativa suficiente para o não cumprimen-
bilidade, em flagrante discordância com os princípios da função social to da obrigação. Ocorre que o cumprimento pleno da obrigação do con-
do contrato e da boa-fé objetiva". 71 Peço vênia para discordar, pois o que sorciado se deu de forma atípica, pois, normalmente, ninguém entra em
deveria estar em discussão é a validade da cláusula de transferência de um consórcio pretendendo falecer, ou mesmo pagar, antecipadamente,
responsabilidade do fornecedor para o consumidor. Para se declarar a sua todas as prestações. Com efeito, não se pode confundir o presente caso
nulidade não é preciso trabalhar com a função social do contrato. Aliás, com o da exclusão do consorciado por inadimplemento das prestações
o próprio acórdão aplica, de forma expressa, o art. 51, I, do CDC. Este, mensais. Nessa situação, como prevê a lei, a devolução dos valores pagos
sim, é o dispositivo específico e suficiente para se dirimir a controvérsia. dar-se-á ao final, com a extinção do grupo de consórcio. Desse modo,
70 STJ, 3ª T., REsp n. 1.734.750/SP, Rei. Min. Nancy Andrighi, j. 09/04/2019, D}e 12/04/2019.
concordo que foge à lógica do contrato (contratos coligados, diga-se de
71 STJ, 3ª T., REsp n. 1.737.411/SP, Rei. Min. Nancy Andrighi, Rei. p/ o acórdão Min. Ricardo Villas
Bôas Cueva, j. 26/03/2019, D}e 12/04/2019. 72 STJ, 3ª T., REsp n. 1.770.358/SE, Rei. Min. Nancy Andrighi, j. 19/03/2019, D}e 22/03/2019.
LEONARDO DE FARIA 8ERALDO - 343
342 - Os 18 ANos DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO

No AgRg no REsp n.1.422.191/SP foi decidido que viola os arts.


passagem) almejar a entrega da carta de crédito somente ao final, com o
421,422 e 424 a decisão da seguradora de não querer reno~ar o contra-
encerramento do grupo, mesmo com a liquidação do débito pela segu-
to de seguro de vida com um segurado depois de 30 anos?' Pelo que se
radora. A base legal, para tanto, além do princípio da razoabilidade, se-
vê no acórdão, a função social do contrato foi inserida, d.v., como mero
riam os arts. 389 e 394 do CC e o art. 497 do CPC.
penduricalho, uma vez que os dois dispositivos que foram efetivamen-
No REsp n.1.641.131/SP foi decidido que "[n]o atual Código Civil, te empregados foram os arts. 422 e 424 do CC, que tratam de supres-
o abrandamento do valor da cláusula penal em caso de adimplemento sio e da proibição de renúncia antecipada de direitos, respectivamente.
parcial é norma cogente e de ordem pública, consistindo em dever do Ademais, por se tratar de uma relação de consumo, os arts. 39, II e IX,
juiz e direito do devedor a aplicação dos princípios da função social do 35, I e 51, IV, do CDC, resolveriam o problema da mesma maneira. O
contrato, da boa-fé objetiva e do equihôrio econômico entre as presta- caso em tela está bem próximo do que entendo ser o escopo do art. 421
ções, os quais convivem harmonicamente com a autonomia da vontade do CC no nosso ordenamento jurídico, qual seja, garantir o direito de
e o princípio pacta sunt servanda". 73 Ora, com a devida vênia, existe uma acesso a bens e serviços, desde que por meio de contratos onerosos, to-
regra específica para a redução da cláusula penal, que é o art. 413 do davia, por se tratar de relação de consumo, os dispositivos que mencio-
CC. Desse modo, por que se preocupar com o art. 421 do CC? A meu nei, logo acima, resolveriam, tranquilamente, a questão. Acresço que num
ver, com todo o respeito, é mais um exemplo de como a função social do aresto bastante similar (contrato de seguro de vida em grupo) o STJ de-
contrato é empregada de maneira totalmente desnecessária. cidiu de forma contrária (não se mencionou a função social do contrato
No REsp n.1.455 .296/PI, numa lide envolvendo a resilição de con- neste julgado). Consta do acórdão que "[n]o contrato entabulado entre
trato de concessão comercial e comodato de bens e indenização por da- as partes, encontra-se inserta a cláusula contratual que expressamente
nos materiais (posto de gasolina), decidiu-se que "à luz dos princípios da viabiliza, por ambas as partes, a possibilidade de não renovar a apólice
função social do contrato e da boa-fé contratual, deve haver equihôrio de seguro contratada. Tal faculdade, repisa-se, decorre da própria lei de
e igualdade entre as partes contratantes, assegurando-se trocas justas e regência. Desta feita, levando-se em conta tais circunstâncias de cará-
proporcionais. Desse modo, à obrigação contratual do posto revende- ter eminentemente objetivo, tem-se que a duração do contrato, seja ela
dor de adquirir quantidade mínima mensal de combustível deve corres- qual for, não tem o condão de criar legítima expectativa aos segurados
ponder simétrica obrigação da distribuidora de fornecer, a cada mês, no quanto à pretendida renovação. Ainda que assim não fosse, no caso dos
mínimo a mesma quantidade de produto". 74 Trata-se, sem dúvida, de autos, a relação contratual perdurou por apenas dez anos, tempo que se
um caso envolvendo a liberdade de contratar, tendo em vista que uma revela demasiadamente exíguo para vincular a seguradora eternamen-
das partes busca a resilição do contrato, enquanto que a outra, em tese, te a prestar cobertura aos riscos contratados. Aliás, a consequência ine-
almeja a manutenção do contrato. Ocorre que não é preciso invocar o xorável da determinação de obrigar a seguradora a manter-se vinculada
uso do art. 421 do CC, uma vez que já há regra específica para o des- eternamente a alguns segurados é tornar sua prestação, mais cedo ou
linde da lide, in casu, os arts. 389,394,395,422 e 476 do CC. Isso por- mais tarde, inexequível, em detrimento da coletividade de segurados". 76
que a lide gira em torno da responsabilidade contratual da fornecedora Como o leitor já deve ter percebido, é evidente que não concordo com
de combustíveis, do dever de mitigar o próprio prejuízo e da exceção do o resultado deste precedente, pois está sendo violada a função social do
contrato não cumprido. Dessa forma, qual seria a necessidade de se em- contrato. Ora, e não é o fato de se ter cláusula de direito de não reno-
pregar o art. 421 do CC? A meu ver, nenhuma. Acresço que, apesar de vação, para ambas as partes, que haverá legalidade na decisão, da segu-
constar da ementa a expressão "função social do contrato", não se dis- radora, de não querer renovar o contrato, pois, no meu sentir, apenas o
correu, nos votos, sobre a mesma.
Cf. STJ, 3ª T., AgRg no REsp n. 1.422.191/SP, Rei. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 06/08/2015,
D]e 24/08/2015. _ , _ .
73 STJ, 3ª T., REsp n. 1.641.131/SP, Rei. Min. Nancy Andrighi, j. 16/02/2017, D]e 23/02/2017. STJ, 2ª Seção, REsp n. 880.605/RN, Rei. Min. Luís Felipe Salomao, Rei. p/ o acordao Mm.
74 STJ, 3ª T., REsp n.1.455.296/PI, Rei. Min. Moura Ribeiro, Rei. p/ o acórdão Min. Nancy Andrighi, Massami Uyeda, j. 13/06/2012, D/e 17/09/2012.
j. 01/12/2016, D/e 15/12/2016.
344 - Os 18 ANos DA FUNÇÃO Soc1AL Do CONTRATO
LEONARDO DE FARIA BERALDO - 345

consumidor tem o direito de não renovar, uma vez que ofornecedor está doença grave. 78 O art. 13, parágrafo único, II, da Lei n. 9.656/98 proí-
em constante estado de eferta, logo, deve cumpri-la. É evidente que os valo- be que a operadora de plano de saúde individual possa ser resilido pela
res das prestações poderão (e deverão) aumentar com o passar dos anos, operadora de plano de saúde, salvo nas hipóteses de fraude ou inadim-
na forma da lei, mas este é um outro aspecto e que não guarda relação plemento. Este mesmo privilégio não é outorgado aos planos de saúde
com o objeto do meu artigo.
coletivos; e foi justamente aí que o STJ atuou. A corte aplicou, por ana-
No REsp n. 680.815/PR foi debatido, em ação ordinária cumulada logia, o art. 8°, § 3°, b, da referida lei. Na ementa fala-se em função social
com obrigação de não fazer, o descumprimento de cláusula contratual do contrato, contudo, no voto, tudo o que há é a transcrição da emen-
pela qual uma das partes teria se comprometido a não realizar armazena- ta do acórdão recorrido, que, por sua vez, apresenta um sentido, com o
gem e corretagem de grãos na área de atuação da cooperativa, por tempo qual não concordamos, para a função social do contrato. Gostei de ver
indeterminado. No mérito do recurso foi sustentada a violação aos arts. que foi mencionada a função social do contrato no contexto da liberda-
166, II e VII e 421 do CC e a alguns dispositivos da Lei n. 8.884/94 (an- de de contratar, ou seja, determinando-se que o contrato seja mantido.
tiga Lei de Defesa da Concorrência). Consta da decisão que o "art. 421 É bem verdade que a manutenção se deu de forma tímida, pois existe a
de CC/2002 positivou o princípio da função social dos contratos como particularidade de que o cidadão está fazendo tratamento oncológico,
limitador da liberdade de contratar, inexistindo violação a essa norma, mas, ainda assim, é algo a se comemorar. Há, ainda, outra observação a
no estabelecimento da cláusula de 'não restabelecimento', usual na reali- ser feita. Como existe lei especial regulamentando a matéria, ten~o mi-
dade empresarial para coibir a concorrência desleal". 77 No voto, a função nhas dúvidas se o art. 421 do CC poderia, de fato, ser empregado. E algo,
social do contrato foi enfrentada de forma muito rasa. Trabalhou-se, tão sem dúvida, para refletirmos.
somente, como o princípio que foi positivado para que o contrato não No REsp n.1.203.109/MG o debate girou em torno de uma cláu-
prejudicasse interesses metaindividuais. Ocorre que, no caso concreto, sula de não-concorrência em contrato de credenciamento de loja de tele-
não me parece que há possível risco de transgressão a direitos coletivos, fone celular (um contrato associativo ou de intermediação, como consta
mas apenas ao direito da parte contrária. Por outro lado, fiquei conten- do acórdão), pelo qual deveria vender pacotes de telefone, de uma mes-
te em perceber que o art. 421 do CC foi invocado para sustentar a li- ma operadora, para os consumidores. Neste contrato havia uma cláusula
citude de eventual proibição, de um dos contratantes, em contratar. De determinando que a parte não poderia explorar este mesmo serviço nos
certo modo, é exatamente o escopo que venho defendendo, para o art. seis meses seguintes ao término do contrato. 79 Decidiu-se que a "funcio-
421, ao longo dos anos. O STJ considerou válida a cláusula de não-con- nalização dos contratos, positivada no art. 421 do Código Civil, impõe
corrência, contudo, não admitiu que assim o fosse por prazo indetermi- aos contratantes o dever de conduta proba que se estende para além da
nado e, analogicamente, aplicou o prazo de cinco anos do art.1.147 do vigência contratual, vinculando as partes ao atendimento da finalidade
CC (contrato de trespasse).
contratada de forma plena. São válidas as cláusulas contratuais de não-
Porfim, coriforme informei no início deste capítulo, os próximos dois exem- -concorrência, desde que limitadas espacial e temporalmente, porquanto
plos ( não excluindo outros não citados) demonstram que o STJpode estar che- adequadas à proteção da concorrência e dos efeitos danosos decorrentes
gando perto de decidir, com base na função social do contrato, e de acordo com de potencial desvio de clientela - valores jurídicos reconhecidos consti-
a interpretação que venho lhe atribuindo desde o ano de 2007. tucionalmente". Por incrível que pareça, no tribunal local considerou-se
No Aglnt no REsp n. 1.876.498/SP foi decidido que o contrato que era uma relação de consumo e que a cláusula seria nula. No recurso
de plano de saúde coletivo não pode ser resilido, imotivada e unilateral- especial requereu-se fosse determinada a negativa de vigência aos arts.
mente, enquanto o cidadão estiver submetido a tratamento médico de 51, IV, do CDC e art. 422 do CC, ou seja, o art. 421 do CC não fez par-
Cf. STJ, 3ª T., Aglnt no REsp n. 1.876.498/SP, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 19/10/2020, D}e
26/10/2020. Esta matéria é objeto de dois Recursos Especiais Repetitivos que serão julgados
pela 2ª Seção: 1.842.751/RS e 1.846.123/SP.
77 STJ, 4ª T., REsp n. 680.815/PR, Rei. Min. Raul Araújo, j. 20/03/2014, D}e 03/02/2015. 79 Cf. STJ, 3ª T., REsp n. 1.203.109/MG, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 05/05/2015, D/e
11/05/2015.
346 - Os 18 ANos DA FUNÇÃO SocJAL DO CONTRATO
LEONARDO DE FARIA BERALDO - 347

te da pretensão recursal. Ao final, vê-se que a função social do contrato A alteração da expressão "liberdade de contratar", por "liberdade
não foi o fundamento legal determinante para a conclusão do STJ, en- contratual", igualmente não deverá modificar muito o escopo do art. 421
tretanto, fiquei contente em ver o STJ trabalhar com a licitude de uma do CC. Caso não exista um contrato, e uma parte não queira celebrar
cláusula contratual que impõe limites negativos na liberdade de contra- 0 contrato, penso que o juiz não poderá obrigá-la a contratar, uma vez
tar de uma das partes. que o julgador, pela nova regra, só pode controlar! libe~dade contratu-
Encerro, assim, a análise da jurisprudência do STJ nesta última dé- al (e, não, a liberdade de contratar) à luz da funçao social do contrato.
cada. Tenho certeza de que não foi uma pesquisa exaustiva, mas acredito Nos termos da redação original, porém, seria possível. Contudo, se num
que consegui trabalhar com os principais julgados nos quais foi emprega- contrato (ou mesmo no contrato preliminar, na carta de intenções, no
do o art. 421 do CC. Creio que foi possível perceber que a função social memorando de melhores esforços, etc.) existir alguma cláusula contra-
do contrato tem sido aplicada de forma desnecessária e/ou equivoca- tual limitando, positiva ou negativamente, o acesso a bens e serviços da
da. Reforço que a minha reiterada discordância, com todo o respeito, se outra parte (ou mesmo de terceiros), poderá o julgador, atento _às par-
deve ao fato de que a minha premissa (do conceito de função social do ticularidades do caso concreto, determinar que um contrato seF cele-
contrato) é bem diversa da que é utilizada pelos ministros daquela corte. brado, ou, então, permitir que não seja celebrado (ou mesmo renovado).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Confesso que, até o presente momento, tenho dificuldade em ima-
ginar uma situação concreta em que um contrato pudesse violar a fun~ão
Inicio este capítulo final citando o italiano Pietro Perlingieri, que, social em relação a terceiros, sem que se pudesse resolver eventual lide
frequentemente, é mencionado no Brasil. Como se verá, ele tem uma com base no CDC ou na Lei de Defesa de Concorrência, todavia, não é
visão bastante liberal e correta sobre solidariedade; eu, particularmen- hora de fecharmos portas, mas, sim, de reflexão e de coalizão intelectual.
te, concordo. Assevera que "[o] instrumento mais imediato para reali-
Para os que eventualmente resistirem e discordarem dessa ideia
zar o preceito do§ 2 do art. 3 [da Constituição italiana] é a intervenção
legislativa reformadora e, principalmente, aquela administrativa, que se do controle jurisdicional da liberdade de contratar, lembro que se tra-
tornam possíveis mediante a "despesa pública" à qual o cidadão é obri- ta de uma prática comum, já existindo decisões judiciais versando sobre
gado a contribuir de acordo com a própria "capacidade" e segundo cri- isso (citei algumas, inclusive), todavia, sem que a fundamentação ten~a
térios de progressividade. A contribuição fiscal é, portanto, instrumento sido o art. 421 do CC. Até há uns dois arestas discorrendo sobre a li-
berdade de contratar - e mencionando o art. 421 do CC -, entretanto,
de justiça social e de promoção civil[ ... ]. Consistiria numa distorção do
sistema pretender atribuir a função reequilibradora típica da justiça so- em sentido técnico diferente do que venho sustentando. Fora do Poder
cial, realizável mediante a contribuição fiscal, a intervenções ocasionais Judiciário é, igualmente, bastante corriqueiro. Executivo e Legislativo,
em esporádicas e individuais relações entre cidadãos e entre o mesmo frequentemente, limitam a liberdade de contratar do cidadão, das socie-
cidadão e o Estado quando age iure privatorum". 80 dades e das companhias.
No tocante à doutrina citada, reitero que tenho grande admiração
Não considero que essa alteração legislativa no art. 421 do CC terá
o condão de alterar, sobremaneira, a realidade jurídica no Brasil, uma vez e respeito pelas pessoas e suas ideias, e que a minha proposta foi, úni-
que a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do ca e exclusivamente, a de debater com os colegas. Afinal de contas, a
ciência do Direito se faz por meio da dialética; e discordar não é sinô-
contrato, que, por sua vez, pode ser definida como "o direito de acesso a
bens e serviços, desde que por meio de contratos onerosos", por conse- nimo de desrespeito ou de briga. Ter pontos de vista díspares é salutar e
guinte, o dever de contratar, assim como o direito de não-contratar, con- importante em um Estado Democrático de Direito. Dito iss?, confes-
tinuarão gozando de grande proteção no nosso ordenamento jurídico. so que fiquei contente em verificar que, do ano de 2007 pra c_a,_ ocorreu
uma grande mudança neste cenário, surgindo vários autores cr~t1cando o
80 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. 2ª ed. Rio
uso desnecessário e errado do art. 421 do CC, tanto em doutnna quan-
de Janeiro: Renovar, 2002, n. 33, pp. 48-49. to na jurisprudência. Espero que este número continue crescendo cada
348 - Os 18 ANos DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO LEONARDO DE FARIA BERALDO - 349

vez mais, pois precisamos tentar encontrar um conceito mais objetivo e REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
com parâmetros para a função social do contrato. BENETI, Sidnei. Função social do contrato. ln: Direito civil: diálogos entre a doutrina
Com efeito, algo que me chamou a atenção durante a minha pes- e a jurisprudência. Luís Felipe Salomão e Flávio Tartuce (coords.). São Paulo:
quisa nos arestas do STJ foi o fato de aparecer, em considerável núme- Atlas, 2018.
ro, menções a função social do contrato X, função social do contrato Y, BERALDO, Leonardo de Faria. Função social do contrato: contributo para a construção
de uma nova teoria. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.
e assim por diante. A meu ver, não existe uma função social específica
BODIN DE MORAES, Maria Celina. A causa do contrato. Civilistica.com. Rio de
para cada tipo contratual. O que muda, por óbvio, é a causa e o motivo Janeiro, a. 2, n. 4, out.-dez./2013. Disponível em: <http://civilistica.com/a-causa-
em cada um desses tipos contratuais. Ora, se o conceito de função so- do-contrato/>. Acesso em 22/11/2020.
cial do contrato é "o direito de acesso a bens e serviços, desde que por BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Teoria dos ilícitos civis. Belo Horizonte: Del Rey,
meio de contratos onerosos", então pouco importa se estamos diante de 2003.
contrato de seguro, de compra e venda, de plano de saúde, de represen- CUEVA, Ricardo Villas Bôas. Live sobre "Saída de Emergência - Contratos
tação comercial, etc. empresariais e Direito da Concorrência", realizada no dia 13/04/2020 pela TV
ConJur. Disponível no site: <https://www.youtube.com/watch?v=7HDnypixhvb.
Em relação ao parágrafo único do art. 421 do CC, apesar de sua re-
DÍAZ, Julio Alberto. Zeca Pagodinho, duas cervejas e a teoria do rompimento
dação ser um pouco acanhada do ponto de vista técnico, penso que a in- eficiente do contrato de Richard Posner. Disponível no site: <https://jus.com.br/
tenção do legislador foi apenas a de reforçar às partes, aos magistrados, artigos/5463/zeca-pagodinho-duas-cervejas-e-a-teoria-do-rompirnento-eficiente-
aos árbitros, aos advogados, enfim, a todos que trabalham com contra- do-contrato-de-richard-posner>. Acesso em 15/11/2020.
tos, que ele deve ser cumprido da forma como foi pactuado. Conforme FRADERA, Véra Jacob de. Art. 7°: liberdade contratual e função social do contrato
já mencionei, as hipóteses de revisão estão listadas no CC e não foram - art. 421 do Código Civil. ln: Comentários à Lei de Liberdade Econômica: Lei
alteradas pela Lei de Liberdade Econômica. A rescisão, revisão ou reso- 13. 874/2019. Floriano Peixoto Marques Neto, Otavio Luiz Rodrigues J r. e Rodrigo
Xavier Leonardo (coords.). São Paulo: RT, 2019.
lução judicial são medidas excepcionais, pois o contrato nasce para ser
HADDAD, Luís Gustavo. Função social do contrato: um ensaio sobre seus usos e sentidos.
cumprido. Essa obviedade é do conhecimento de todos, no entanto, pa- São Paulo: Saraiva, 2013.
rece que foi desejo do legislador reforçar, ainda mais, essa extraordinarie- KONDER, Carlos Nelson. Para além da "principialização" da função social do contrato.
dade, apesar de inexistir, até então, no nosso ordenamento jurídico, um Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 13. Rio de Janeiro: IBDCivil, jul. -set./2017.
princípio de intervenção mínima. Aqui é importante ratificar algo que MARQUES, Claudia Lima. Função social do contrato: visão empírica da nova teoria
disse em meu livro, há muitos anos, ao tratar do princípio da equivalên- contratual. ln: Direito civil: diálogos entre a doutrina e a jurisprudência. Luis Felipe
cia: o juiz não deve interferir no preço e no objeto previamente pactu- Salomão e Flávio Tartuce (coords.). São Paulo: Atlas, 2018.
ados entre as partes. 81 MIRANDA, Custodio da Piedade Ubaldino. Comentários ao Código Civil. vol. 5. São
Paulo: Saraiva, 2013.
Enfim, apesar de a função social do contrato ter atingido a maio-
NEGREIROS, Teresa. Teoria dos contratos: novos paradigmas. 2ª ed. Rio de Janeiro:
ridade, considero que ainda continua irresponsável e perdida, sem saber Renovar, 2006.
a que veio. Precisamos, urgentemente, evoluir. Se não for para aplicá- PERLINGIERl, Pietro. Pe,jis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional.
-la, com o sentido que venho propondo, que, pelo menos, deixe de ser 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
empregada de forma equivocada e/ou desnecessária, pois essa conduta RULLI NETO, Antonio. Função social do contrato. São Paulo: Saraiva, 2011.
a está banalizando. E, claro, por que não construirmos, juntos, um ca- RU'.ZYK, Carlos Eduardo Pianovski; BÜRGER, Marcelo L. F. de Macedo. A tutela
minho melhor para o art. 421 do CC? externa da obrigação e sua (des)vinculação à função social do contrato. Civilistica.
com. Rio de Janeiro, a. 6, n. 2, 2017. Disponível em: <http://civilistica.com/a-tutela-
externa-da-obrigacao/>. Acesso em 22/11/2020.
SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. 3ª ed. São Paulo:
81 Cf. BERALDO, Leonardo de Faria. Função social do contrato: contributo para a construção de Saraiva, 2020.
uma nova teoria, p. 36.
350 - Os 18 ANos DA FUNÇÃO Soc1AL Do CONTRATO

SILVESTRE, Gilberto Fachetti.A responsabilidade civil pela violação àfimção social do


contrato. São Paulo: Almedina, 2018.
SOUZA, Eduardo Nunes de. De volta à causa contratual: aplicações da função negocial
nas invalidades e nas vicissitudes supervenientes do contrato. Civilistica.com. Rio de
Janeiro, a. 8, n. 2, 2019. Disponível em: <http://civilistica.com/de-volta-a-causa-
contratual/>. Acesso em 22/11/2020.
TARTUCE, Flávio. J11anual de direito civil. 10ª ed. São Paulo: Método, 2020.
TEPEDINO, Gustavo; CAVALCANTI, Laís. Notas sobre as alterações promovidas
pela Lei n. 13.874/2019 nos artigos 50, 113 e 421 do Código Civil. In: Lei de
Liberdade Econômica e seus impactos no direito brasileiro. Luís Felipe Salomão, Ricardo
Villas Bôas Cueva e Ana Frazão (coords.). São Paulo: RT, 2020.
TEPEDINO, Gustavo; SCHEREIBER, Anderson. Fundamentos do direito civil. vol.
3. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. Uma década de aplicação da função social do
contrato: análise da doutrina e da jurisprudência brasileiras. Revista dos Tribunais,
vol. 940. São Paulo: RT, fev./2014.
ZANETTI, Cristiano de Souza. A função social do contrato no Superior Tribunal
de Justiça: 10 anos depois. In: Estudos de direito privado: Liber Amicorum para
João Baptista Villela. Elena de Carvalho Gomes, Edgard Audomar Marx Neto e
Marcelo Andrade Féres (orgs.). Belo Horizonte: D' Plácido, 2017.
Parte 4
INTERPRETAÇÃO CONTRATUAL
GUILHERME ÚRNEIRO MONTEIRO NITSCHKE - 353

L COLMATAÇÃO DE LACUNAS CONTRATUAIS:


INSUFICIÊNCIAS DO CóDIGO CIVIL, DEFICIÊNCIAS
DA LEI DA LIBERDADE ECONÔMICA E
O TRABALHO DE DOUTRINA1

Guilherme Carneiro Monteiro Nitschke2

''Ator e juiz estão na mesma posição quanto à peça e à lei: ambos


não se limitam a simples reprodução do que disse o poeta ou
o legislador: dão vida à palavra morta, um pouco da própria
personalidade. Nisto é que estão os perigos e somente se pode-
riam diminuir ou afastar pela adoção de rigorosos métodos, que
cerceiem a atividade pessoal e fortaleçam a exploração objetiva".
Pontes de Miranda3

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

Passados 18 anos de vigência do Código Civil, ainda há muitos


cantos escuros de sua disciplina que carecem do facho de luz da doutri-
na. Um dos menos iluminados, também porque construído com timi-
dez pelo legislador, é o da interpretação contratual, e, dentro desta - com
breu ainda mais denso-, o da colmatação de lacunas. A análise desta
matéria guarda, porém, um paradoxo. Ao mesmo tempo que se tinha
um Código insuficiente em tema de regras de interpretação, recomen-
dando, assim, o complemento de doutrina ou mesmo a atenção do le-
gislador reformador4, sobreveio a chamada Lei da Liberdade Econômica

Registro meus agradecimentos a Jorge Cesa Ferreira da Silva e Henrique Barbosa pelo muito
honroso convite em participar desta obra coletiva.
2 Doutorem Direito Civil pela USP, Mestre em Direito pela UFRGS, Diretor do CBAr, Secretário-
Executivo da Comissão de Arbitragem e Mediação da ICC Brasil, Diretor da Câmara de
Arbitragem da Federasul e do Centro de Arbitragem e Mediação da OAB/RS, Sócio de
Contencioso e Arbitragem de TozziniFreire Advogados.
3 PONTES DE MIRANDA, F. C.Sistemade Ciência Positivado Direito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi,
1972, t. 4, pp. 136-137.
4 Que poderia se dar como, nos últimos anos, se observou na França com a "Ordonnance n.2016-
131 du 10 février2016", que reformou o direito obrigacional francês e, em tema de interpretação
contratual, inaugurou disciplina que inova em alguns aspectos e, noutros, mantém-se atada
à tradição. São exemplos respectivos o art. 1.188, segunda parte, que remete ao critério da
"personne raisonnable" em etapa sucessiva do processo interpretativo, e o art. 1.192, que
segue exigindo que a interpretação só tenha espaço quando não houver "clauses claires et
précises à peine de dénaturation". Sobre isso, confira-se CHANTEPIE, Gael; LATINA, Mathias.
La Réforme du Droitdes Ob/igations. Cammentaire théarique et pratique dans l'ordre du Code Civil.
Paris: Dalloz, 2016, p. 419 e ss.
354 - COLlv\ATAÇÃO DE LACUNAS CONTRATUAIS: INSUFICIÊNCIAS DO CóDIGO Civil, DEFICIÊNCIAS ••.
GUILHERME CARNEIRO MONTEIRO NITSCHKE - 355

(Lei Federal nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, a "LLE") em parte terpretação contratual, que organiza e polariza o processo de preenchi-
com essa intencão. Contudo, se antes havia lacunosidade e insuficiência
mento de lacunas (Cap. II.2).
de previsões, o que abria espaço para a doutrina propor desenvolvimen-
tos, agora há atecnia e balbúrdia, a ensejar construções instáveis, porque PARTE 1. o DIREITO POSITIVO EM MATÉRIA DE INTERPRETAÇÃO
li - li
apoiadas nos pilares tortos do direito positivo. CONTRATUAL: ENTRE A DIRETRIZ DA TRADIÇAO E OS
Daí que a comemoração dos 18 anos de Código seja importante "DISCURSOS DE ECONOMISTAS"
não somente para revisitar as causas e as consequências de sua original Ao traçar observações introdutórias ao Código Civil de 1916, Clóvis
insuficiência em matéria de interpretação contratual e, em específico, Beviláqua apontava para a necessidade de que o legislador conseguisse
de colmatação de lacunas, mas também para limpar terreno e mitigar as encapsular "a conservação e a innovação", "duas forças" de cujo equilí-
deficiências que, agora, com os acréscimos da LLE, ele passou a apre- brio dependeria a perenidade do edifício 7 • Sem conservação, há desali-
sentar. Uma "comemoração", assim, não no sentido de festividade, mas nhamento face à tradição, desprezo ao fato de que a codificação é sempre
de resgate da "memória compartilhada" ("co-memória") e, portanto, da- um "estadia da evolução do direito" 8 • Sem inovação, há repetição do ve-
quilo que, à ocasião, "se lembra" ou "se faz lembrar"5, pois a história dos lho, inconsistência à "concepção do mundo victoriosa em certos cere-
códigos é também a história de suas críticas, de suas interpretações, de bros ou em certo momento historico" 9 • As advertências de Beviláqua
suas reformas - e das críticas a essas interpretações, e das críticas a es- - que, sem sucesso, tentou inovar no Projeto de Código mais do que o
sas reformas 6•
trâmite legislativo permitiria10 - servem como lente de análise para a
O que aqui "se lembra" e "se faz lembrar" em tema de colmata- recente disciplina em matéria de interpretação contratual: de um lado,
ção de lacunas contratuais - e assim se "co-memora" - são os caminhos ampliam certo pecado da força conservativa (Cap. 1._,_1); de outro, adver-
e descaminhos que lei, doutrina e jurisprudência tiveram de percorrer tem para os excessos da força inovativa (Cap. I.2). E, assim, entre con-
diante das carências umas das outras, e de como, ocasionalmente, pro- servação e inovação, entre tradição e discurso, que transitaremos nos
curaram refúgios que merecem, por igual, balanço crítico. Assim é que, tópicos subsequentes.
estruturalmente, este artigo trate na Parte I da premissa, que é perceber
as inszificiências do original texto do Código Civil em matéria de inter-
pretação contratual (Cap. I.1), para tratar, a seguir, das deficiências que
a LLE logrou acrescentar (Cap. 1.2). A Parte II resume um esforço de 7 BEVILÁQUA, Clóvis. Observações para esclarecimento do Codigo Civil Brasileiro. ln: Codigo
Civil Brasileiro: trabalhos relativos á suo elaboração. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917, v.
construção a partir do falho, escavando as camadas de disciplina da in- 1, p.17.
terpretação contratual situadas por debaixo do relevo da lei, assim pro- 8 Idem, p.11.
9 Idem, p.10. . .
cedendo, no tema da colmatação de lacunas, a partir da distinção entre 10 Ao ponto de Beviláquadeclararem 1915: "posso, com bons fundamentos, considerar o Cod1go
lacunas típicas e lacunas atípicas (Cap. II.1), para, ato seguinte, tratar da Civil trabalho de outrem" {BEVILÁQUA, Clóvis. O Codigo Civil. ln: Linhos e Perfis}uridicos. Rio
de Janeiro: Freitas Bastos, 1930, p. 176). Apanhe-se como exemplo a proposta de artigos de
intenção comum das partes como diretriz metódica e finalidade da in- tratariam do contrato de locação de serviços {arts. 1.359 a 1.383 do Projeto original) e que
propunham assegurar direitos mínimos aos trabalhadores, e que foram defenestrados no
ERNOUT, A.; MEILLET, A. Dictionnaire Etymologique de la Langue La tine. Histoire des mots. 3ª ed. trâmite legislativo pelas forças conservadoras da época. Tal exemplo, dentre outros, faz soar
5
Paris: Librairie C. Klincksieck, 1951, p. 704, vocábulo 'memoro, as', "trazer à memória", "chamar exageradas, senão injustas,ª; críticas qu,~ Bev_ilá9uasofr_eu d~ aut~re_s c~,mo Orlan~,º Goi:17':_s,
de volta", "de onde, celebrar(a lembrança de)", e, assim 'commemoro'; SARAIVA, F. R. dos Santos. que atribuía ao autor do Codigo uma prof1ssao de ye _ant1-soc1alista , ou_ uma op_os1ç~o
Novíssimo Dicionário Latino-Português. 11ª ed. Rio de Janeiro: Garnier, 2000, p. 252, vocábulo categórica contra as inovações de fundo social qu~ se mfilt~~vam, des_de_e~tao, na l;~1slaç~o
'commemoratio'. dos povos mais adiantados" {GOMES, Orlando. Ra,zes H1stoncas e Soc1olog1cas do Cod,!!o Cw,!
6 Doutrina e jurisprudência são partícipes dessa "co-memória", uma vez que, através da reflexão Brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2006 {ed. original de 1958), pp. 36-37). Tal cancatura
sobre a lei, da crítica que se debruça sobre a crítica, demonstram "o incompleto, o imperfeito da não resiste nem à leitura do texto original do projeto, nem à verificação de textos de doutrina
obra", e, a partir disso, propõem novos caminhos. O trecho entre aspas é d~ Lac_erdade Almeida, produzidos pelo próprio Beviláqua {e.g.: Observaçõ;s para escla~ecii:17ento do_Codigo Civil
ao contrastar a intenção de completude do legislador versus seu mexoravel macabament_o e, Brasileiro. ln: Codigo Civil Brasileiro: trabalhos relativos a sua elaboroçao. ~10 de Janeiro: Imprensa
assim, a oportunidade de posteriores desenvolvimentos {LACERDA DE ALMEIDA, Francisco Nacional, 1917, v. 1, p. 25; e mesmo um de 1938, em que o autor an_tec1pa, argutamente, ~erto
de Paula. O Codigo Civil visto por alto ou reparos críticos de doutrina a varias de suas disposições comprometimento que no,;ava na teoria contratual d: certos pa1ses _e~r?,peus em raz~o de
mostrando o modo comoforam tratadas no Codigo as differentes matérias de que se ocupa o Direito "metamorphoses políticas que, em seu entender, nao devenam ex1g1r transformaçao_do
Civil. [s.l.]: [s.n.], 1921, p. 21). direito privado" - BEVILÁQUA, Clóvis. Evolução da theoria dos contractos em nossos dias.
Revista da Faculdade de Direito da USP. São Paulo: Faculdade de Direito, 1938, n. 34, p. 57).
356 - COLMATAÇÃO DE LACUNAS CONTRATUAIS: INSUFICIÊNCIAS DO CóOIGO CIVIL, DEFICIÊNCIAS .•• GUILHERME CARNEIRO MONTEIRO NiTSCHKE - 357

l.1. INSUFICIÊNCIAS DO Córneo ÜVIL em nenhum destes dispositivos endereçando a matéria de colmatação de
O Código Civil não contém regras gerais sobre colmatação de la- lacunas, exceto, timidamente, na disciplina de certos tipos contratuais 15 •
cunas, senão que regras específicas, ligadas a tipos. Tal não é de admirar, Mas a causa mais remota da avareza do legislador repousa em dois
uma vez que, pertencendo o tema a tópico maior, que é o da interpreta- fatores que, ao longo do tempo, sustentaram a desatenção às regras de
ção contratual, o diploma apresenta global insuficiência. interpretação contratual e, tanto assim, a pregação de sua futilidade. O
primeiro deles é quanto à natureza que se passou a atribuir a essas re-
A avareza é consequência mais direta da irreflexão sobre o tema da
interpretação negocial durante a redação e discussão do Código Civil gras. O segundo é quanto ao papel que se passou a reconhecer, crescen-
de 2002. Uma consulta aos seus trabalhos preparatórios revela o silêncio temente, ao aplicador em face da norma positiva.
eloquente das vozes que se pronunciaram sobre os temas tratados pelo O primeiro fator é já da época em que se redigiu o Código Civil de
novo projeto, tendo os debates se centrado noutras facetas do papel do 1916, plasmando verdadeira quebra em face do que antes se consolidara
aplicador que maior polêmica geravam, tais como as da função social na tradição luso-brasileira. Em prol de uma percepção de doutrina im-
do contrato 11 ou as que consolidavam o emprego de cláusulas gerais e portada de autores franceses e de posicionamentos da Cour de Cassation
conceitos indeterminados 12 • Diante da desatenção dos elaboradores do da época, que tinham as regras de interpretação como meras sugestões ao
Anteprojeto e da doutrina - que raríssimos trabalhos monográficos so- intérprete - destituindo-as, em verdade, da própria dignidade de "regras" 16
bre interpretação negocial produziu na última centúria, antes de 2002 13 -, abandonou-se a ideia de Código que as trouxesse listadas, como an-
-, restou àqueles empregar a diretriz da tradição, expressada por Miguel tes havia no Código Comercial 1850 (arts. 130 a 133) e nos sucessivos
Reale em prol da "preservação do Código vigente sempre que possível" 14 • projetos de Código Civil (v.g. projetos de Felício dos Santos e Coelho
O resultado final foi uma disciplina geral esparsa (i.e. em parcelas dife- Rodrigues). Tal abandono foi deliberado, tanto que objeto de específico
rentes do Código), assistemática (i.e. sem organização e escalonamento) registro quando dos debates para a aprovação do Projeto de Código 17 ,
e avara, consolidada nos arts. 112, 113 e 114 da Parte Geral ao tratar do e manteve-se como opinião corrente de boa parte da doutrina juspriva-
negócio jurídico, e 423 da Parte Especial ao tratar dos contratos em geral; tista brasileira do século XX:18 •

11 Sobretudo a partir das críticas de Caio Mário da Silva Pereira ao art. 420 do Projeto e, assim, à
vinculação da liberdade de contratar à função social (PEREIRA, Caio Mário da Silva. 3ª Reunião. 15 Arts. 485,596, 628, Parágrafo Único, 658, Parágrafo Único, 701, 721 e 724.
Conferência do Professor Caio Mário da Silva Pereira. ln: MENCK,José Theodoro Mascarenhas 16 É o que narra Eduardo Espínola, ao fazer alusão a entendimento circulante na virada do séc.
(Org.). Código Civil Brasileiro no Debate Parlamentar: elementos históricos do elaboração do Lei n. XIX para o séc. XX (ESPÍNOLA, Eduardo. Manual do Código Civil Brasileiro. Parte Cerol. Dos
10.406, de 2002. Brasília: Câmara dos Deputados, 2012, t. 1, p. 147). Factos jurídicos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1929, v. 3, parte 1, p. 171).
12 Em defesa da técnica legislativa, REALE, Miguel. Estrutura e espírito do novo Código Civil Apanhe-se, apenas como exemplo, o caso do influente Marcel Planiol, que sustentava serem
brasileiro. ln: História do Novo Código Civil. São Paulo: RT, 2005, pp. 37-39. Um balanço crítico as regras de interpretação contratual (os originais arts. 1.156 a 1.164 do Code Civil) "de peu
sobre as "mútuas (e polarmente opostas) vantagens e desvantagens das técnicas de legislar d'usage dans la pratique", de modo que a Cour de Cassation considerava que "l'erreur des
pelo método casuístico e pelo método das cláusulas gerais (e dos princípios)" encontra-se em juges sur l'interprétation d'un contrai n'est qu'un sim pie mal jugé quine donne pas ouverture
MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado: critérios poro sua aplicação. São Paulo: à cassation", exceto na rara hipótese de desnaturação de uma cláusual contratual "claire et
Marcial Pons, 2015, p. 175 e ss. précise" (PLANIOL, Marcel. Troité Élémentaire de Droit Civil conforme ou progromme officiel des
13 Com exceção dos seguintes: FRANCO, Vera Helena de Mello. Aspectos da Integração dos facu/tés de droit. Paris: Librarie Cotillon, 1900, t. 2, pp. 370-371).
Contratos no Direito Comercial. São Paulo: Pioneira, 1979; e MIRANDA, Custódio da Piedade 17 "O juiz deve sempre agir de accôrdo com o que houverem apurado a sagacidade de seu espirita,
Ubaldino. Interpretação e Integração dos Negócios Jurídicos. São Paulo: RT, 1989. a experiencia adquirida no exercício de suas melindrosas funções e a cultura jurídica de sua
14 REALE, Miguel. Estrutura e espírito do novo Código Civil brasileiro. ln: História do Novo Código razão", não podendo "ficar coacto pelas regras, nem adstricto a elas" (Parecer de Oliveira de
Civil. São Paulo: RT, 2005, p. 35. Bem se diga que tal também fora a diretriz de outras iniciativas Figueiredo. Pareceres parciaes dos membros da Comissão. ln: Codigo Civil Brasileiro: trabalhos
legislativas, como, por exemplo, o Projeto de Código de Obrigações, de Caio Mário da Silva relativos ó sua elaboroçõo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917, v. 2, p. 929).
Pereira (1963), que malinha-se econõmico quanto a regras de hermenêutica contratual (arts. 18 E.g.: PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direita Civil. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense,
22 a 26), ainda que trazendo alguns avanços, como a revigoração da boa-fé e dos usos como 2001, v. 1, pp. 316-317; SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil (fontes das obrigações
critérios de interpretação· (Projeto de Código de Obrigações. Brasília: Serviço de Reforma de e contratos). 2ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1957, v. 3, p. 29; WALD, Arnoldo. Direito Civil:
Códigos, 1964, p. 5). No caso de Caio Mário, tal não era mera repetição impensada, mas opção direito das obrigações e teoria geral dos contratos. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, v. 2, p. 245.
explícita, como se lê do relatório por ele elaborado, ao descrever o Projeto enquanto "[s]em os Contra essa visão, entendendo pelo cogência, para o aplicador, das regras de interpretação
excessos de minúcias do código francês que convertera em outros tantos artigos as famosas negocial, pode-se registrar a posição de ao menos dois autores de mesmo período: CARVALHO
regras de hermenêutica de Pothier" (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Relatório (Elaborado pelo DE MENDONÇA,J. X. Trotado de Direito Comercial Brasileiro. 6ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
Professor Caio Mário da Silva Pereira). ln: Projeto de Código de Obrigações. Brasília: Serviço de 1960, v. 6, 1ª parte, p. 209; e PONTES DE MIRANDA, F. C. Trotado de Direito Privado. 4 ª ed. São
Reforma de Códigos, 1964, p. XIII). Paulo: RT, 1983, t. 1, p. 65.
358 - COLMATAÇÃO DE LACUNAS CONTRATUAIS: INSUFICIÊNCIAS DO Córneo CIVIL, DEFICIÊNC_IAS ••• GUILHERME CARNEIRO MONTEIRO NITSCHKE - 359

O segundo fator se transfigurou, no âmbito contratual, não somen- Contribuíram para esse segundo fator, promovendo dirigismo com
te enquanto dirigismo do Estado-juiz, ao lado do Estado-lei, mas de um frágil ancoragem objetiva, uma diversidade de abordagens e posturas de
dirigismo com fraca ancoragem objetiva. Por "dirigismo" queremos co- doutrina, tais como as assumidos por autores de teoria e filosofia do di-
notar a admissão da interferência estatal no âmbito privado de espec- reito, em "discurso intuicionista e emotivista em torno da "sensibilidade
tro mais amplificado, que ganhou corpo a partir da década de 193019 e interpretativà' dos juízes" 23 , a exemplo do que ainda hoje se encontra, en-
que, no direito contratual, consistiu, de um lado, na edição de uma mi- tre nós, naqueles que sustentam carcomido discurso antipositivista - ou
ríade de leis20 com intenção compressiva e expansiva, buscando, respec- melhor: antípoda ao que caricaturizam como positivismo-; e de seu re-
tivamente, limitar a liberdade das partes por meio da "esterilização" de forço com retalhos mal consarcinados de teorias estrangeiras, a compor o
certas cláusulas e incrementar o conteúdo contratual obrigatório com que recebeu nomes como "pós-positivismo" ou "neoconstitucionalismo"24 •
disposições cogentes não previstas ou não queridas pelas partes21 • De ou- Especificamente no direito privado, nota-se ressonância em doutri-
tro lado, consistiu na defesa de um dirigismo via Estado-juiz, de modo na já das décadas de 1930 e 1940, como é o caso de N ehemias Gueiros,
a conceder-se ao aplicador poderes interventores, moduladores e cria- para quem, inspirado em Georges Ripert, sustentava estar em curso uma
tivos, pelo que a lei passa a ser um "obstáculo a ultrapassar" por "genero- crescente "decadência da soberania contratual", que vai "cedendo terreno
sidade de alguns espíritos, preocupados com uma Justiça mais efetiva", às expansões intervencionistas do estado moderno, para dar lugar à con-
mas também, de outro turno, por "ambição política de outros, menos cepção do contrato dirigido" 25 . Gueiros pregava que a revisão dos con-
altruístas, desejosos de ver o Estado agindo sem peias", como percebe tratos por impossibilidade e imprevisão daí decorrente plasmava "uma
Antônio Junqueira de Azevedo 22 • forma de interpretação construtiva em torno da intransigência dos tex-
tos ainda existentes", tomando, sem qualquer censura, o direito alemão
da época (portanto, nacional-socialista em matéria de direito privado)
19 Por todos: BOSI, Alfredo. A arqueologia do Estado-providência: sobre um enxerto de idéias de
longa duração. ln: Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, pp. 273-307; enquanto paradigma26 • Para além de outras obras da mesma época, to-
e SCHWARTZMAN, Simon. São Paulo e o Estado Nocional. São Paulo: Difel, 1975, pp. 113-115 e
119-120.A mentalidade estatal-intervencionista das décadas de 1920 e 1930 se manteve perene
das tendo por pano de fundo debater o modo e os limites da interven-
porveredas diversas, como no caso do Integralismo, a destacar autores como Gustavo Barroso, ção estatal nos contratos 27 , nota-se persistência em autores posteriores,
que pregava intervirnos contratos internacionais para revisá-los, haja vista que, transbordando
antissemitismo, os via como benéficos apenas aos judeus que estariam se assenhorando do quando destacavam a "transformação do direito das obrigações" condu-
capital brasileiro (SOUZA, Francisco Martins de. O integralismo. ln: BARRETO, Vicente; PAIM, zida por uma "política legislativa para vigorosa limitação da autonomia
Antonio (Orgs.). Evolução do Pensamento Política Brasileira. São Paulo: Itatiaia, 1989, p. 334);
e do golpe de 1964, doutrinariamente escorado em autores como Alberto Torres e Oliveira privada"28 ; ou o reconhecimento de que "[o]s princípios tradicionais, in-
Vianna, cânones da Escola Superior de Guerra (PAIM, Antonio. Correntes e temas políticos
contemporâneos. ln: BARRETO, Vicente; PAIM, Antonio (Orgs.). Evolução do Pensamento Política dividualistas e severos, sofrem frequentes derrogações, em proveito da
Brasileira. São Paulo: Itatiaia, 1989, pp. 439-444).
20 E.g. Decreto-Lei nº. 4.598/42, Lei Federal nº.1.300/50, Lei Federal n°. 6.649/79 e Lei Federal nº.
4.494/64 (os quatro sobre locações), Lei Federal nº. 2.313/54 (sobre a extinção dos contratos
de depósito e o destino dos bens depositados), Lei Federal nº. 4.290/64 (sobre o sistema UMA LOPES,José Reinaldo de. Naturalismo jurídica no Pensamento Brasileira. São Paulo: Saraiva,
financeiro de habitação), Lei Federal nº. 4.864/65 (de estímulo à construção civil), Decreto-Lei 2014, p. 269. . . _ . .. . , . .
nº. 911/69 (sobre alienação fiduciária), Lei Federal nº. 6.194/74 (sobre o seguro obrigatório de 24 Como bem demonstra o balanço entice de DIMOULIS, D1m1tr1. Pos1ttv1smo }und1co: teona
responsabilidade para veículos automotores) e Código de Defesa do Consumidor(Lei Federal da validade e da interpretação do direito. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018,
nº. 8.078/90). A história econõmica pós-varguismo demonstra que essa intervenção foi uma especialmente pp. 179-192. . _ .
constante, ao ponto de, por exemplo, ter-se por naturalizada a taxação de preços pelo Governo, 25 GUEIROS, Nehemias. A Justiça Comutativa no Direito das Obngaçoes. Recife: Jornal do
no que a produção legislativa foi o principal vetor por que a intervenção estatal foi levada a Commercio, 1940, pp. 17 e 25.
cabo. Idem, p. 109. É interessante contrastar a obra de Cueiros com outro auto_r de mesma época,
21 A classificação de dirigismo compressivo e expansivo é de SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso Arthur Rocha, e que lia a obra de Ripert com alguma censura, destacando o risco de, adotan?o-a
de Direito Civil (fontes das obrigações: contratos). 2ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1957, v. 3, acríticamente, "negaro principio da autonomia da vontade" (ROCHA, Arthur. Da lntervençaodo
p. 21, inspirado em JOSSERAND, Louis. Le contrat dirigé. Da//az. Recuei/ Hebdomadaire. Paris: Estado nos Contractos Concluídos (o revisão dos negósio privados e o Codigo Civil). Rio de Janeiro:
Dalloz, 1933, n. 32, pp. 89-91. Sobre a influência de Josserand no direito brasileiro, veja-se Irmãos Pongetti, 1932, pp. 76-77). .
FRADERA, Vera Maria Jacob de. L'influence de la doctrine française dans l'actuel Code Civil 27 Assim as obras de Pedro Batista Martins sobre abuso de direito, Arnoldo Medeiros da Fonseca
brésilien. ln: Liber Amicorum. Mé/anges en /'honneur de Camil/e }auffret-Spinosi. Paris: Dalloz, sobre teoria da imprevisão e caso fortuito, Luiz da Cunha Gonçalves sobre contrato de compra
2013, pp. 659-670. e venda comercial, Agostinho Alvim sobre locação predial, dentre outras.
22 JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antõnio. O direito pós-moderno e a codificação. Revista da Faculdade 28 GOMES, Orlando. Transformações Gerais da Direito das Obrigações. 2ª ed. São Paulo: RT, 1980,
de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 1999, v. 94, p. 7. p.6.
360 - COLMATAÇÃO DE LACUNAS CONTRATUAIS: INSUFICIÊNCIAS DO CóDIGO CIVIL, DEFICIÊNCIAS •.• GUILHERME CARNEIRO MONTEIRO NnsCHKE - 361

justiça contratual e da interdependência das relações entre os homens"29; tratual - sistemática, abrangente e receptáculo da tradição enraizada no
ou, ainda, a tentativa de adaptação ao direito privado do intuicionismo Digesto, nas "Regras de Pothier", nos Códigos Comerciais de Espanha
típico do legal realism norte-americano, pregando um "necessário arbí- e de Portugal, e no Code Napoléon -, trazendo regras gerais e regras es-
trio do juiz ante a imprecisão dos conceitos"30 • Tal contexto discursivo de peciais vinculadas a tipos contratuais 34 , com alusão aos usos e costumes,
liberdade do intérprete tornou desinteressante à doutrina dissertar sobre à boa-fé, à interpretação sistemática, à conduta posterior, à interpreta-
hermenêutica negocial, sobre interpretação e integração do contrato, so- tio contra proferentem e às circunstâncias do negócio enquanto vias para
bre critérios e cânones hermenêuticos que, no fim do dia, não passariam a colmatação de lacunas; e nos projetos de Código Civil, que não dis-
de meras sugestões, de recomendações não vinculativas ao aplicador. taram do que havia no Código Comercial35 • O exemplo que se dá é da
Regras de interpretação amputadas da lei, mais dirigismo contra- legislação, mas também a doutrina dos oitocentos contribuiu à exegese
tual via Estado-juiz, mais pregação de soltura do aplicador, foi equação de referidos dispositivos legais, sem, contudo, abstrair modelo aplicável
que resultou na dormência do legislador do Código de 2002 em propor à generalidade dos casos de lacunosidade36 •
o debate quanto à disciplina da interpretação, e, por consequência, em Segundo, ao lançarem-se os olhos para o direito positivo de outros
desenvolvê-la na estrutura do Projeto. Tal se deu à exceção de pontualís- países, encontram-se exemplos de regras de interpretação e colmatação
simas reflexões, e que, em matéria de interpretação negocial, se cingiram de lacunas contratuais com algum grau de desenvolvimento. Tal se faz
ao art. 112, que introduziu a palavra "consubstanciada" para qualificar as sem a intenção de argumentar que o legislador devesse, acriticamente,
declarações de vontade, no que registra José Carlos Moreira Alves ser "copiar e colar" soluções de outras paragens, e sim que a ele careceu are-
herdeira das contribuições de Eduardo Espínola quando comentava o flexão própria da comparação jurídica, que é "observar e explicar simila-
art. 85 do antigo diploma31 • Afora isso, nada mais. Da falta de reflexão ridades tanto quanto diferenças" 37 , com o fito de melhor compreender;
resultou a insuficiência, que se avalia como presente não em exercício e, se pertinente, aprimorar o ordenamento de destino via transplanta-
de anacronismo histórico, mas em contraste com a própria tradição lu- ção de modelo estrangeiro, quando necessário e oportuno (ou úti/) 38 , des-
so-brasileira na matéria e sob o ponto de vista da comparação jurídica. de que submetido a prévio e indispensável exercício de "cremação" e
Primeiro, ao escavar a tradição luso-brasileira32 , acha-se na legisla- "aclimatação"39 • Não servissem para consolidar o que é o entendimento
ção o tratamento de situações de lacunosidade contratual, seja em cone- 34 Regras gerais: arts. 130 a 133. Regras específicas: arts. 154, 168, 176, 179,186,234,282,591,592,
637 e 666.
xão a tipos contratuais específicos, seja enquanto regras gerais, apesar de 35 Assim o "Esboço" de Teixeira de Freitas (arts. 789 §5°, 1.881 §1°, 1.882, 1.989 caput e §2°, 1.992,
tímidas sobre o tema. Assim há nas Ordenações Filipinas no que tan- 1.998-2.008, 2.044 §2°, 2.302, 2.317, 2.626, 2.697, 2.748 §1º, 2.757, 2.758, 2.750, 2.751 e 2.976),
com reiterada alusão à participação dos "técnicos" (arbitradores ou louvados) no suprimento
ge aos contratos de compra e venda e de mútuo, com remissão sobretu- das lacunas, deixando pouco ou nenhum espaço à interferência do juiz nos contratos; o projeto
de Joaquim Felício dos Santos (arts. 265, 1.967, 2.140 a 2.144); e o projeto de Coelho Rodrigues
do aos costumes como critério de suprimento 33 ; no Código Comercial (arts. 353,354,588,589).
de 1850, de especial destaque quanto à disciplina da interpretação con- 36 Para um exame da doutrina luso-brasileira que, nos últimos dois séculos e meio, se debruçou
sobre o tema, remetemos a NITSCHKE, Guilherme Carneiro Monteiro. Lacunas Contratuais e
29 BESSONE, Darcy. Aspectos da Evolução da Teoria das Contratas. São Paulo: Saraiva, 1949, p. Interpretação. História, conceito e método. São Paulo: Quartier Latin, 2019, pp. 75-82, 109-126 e
112. Ou noutro trecho, quando sustenta que se o legislador dirige o contrato, limitando ou 149-164.
expandindo seu conteúdo, ao aplicador concede-se "contorna[r] os textos por processos 37 SCHLESINGER, Rudolf B. The past and future of comparative law. The American }aurnal af
engenhosos, por vias oblíquas", fazendo "sair da convenção" obrigações não avençadas pelas Camparative Law. Michigan: The American Society of Comparative Law, 1995, n. 455, p. 477.
partes; revisando os contratos, atenuando "o seu rigor", protegendo e amparando "os fracos"; 38 Assim já era a lição de Rudolph von Jhering ao tratar das transplantações: "L'adoption
adaptando "o direito às realidades que desafiam a sua decisão, para as quais os Códigos não d'institutions juridiques étrangéres n'est point une question de nationalité, mais bien
fornecem soluções adequadas"; construindo "à margem da lei, sedutoras teorias, como a do d'opportunité et de nécessité. Personne n'ira chercher au loin ce qu'il peut rencontrer à un
abuso de direito, criação nitidamente jurisprudencial" (idem ibidem). degré de perfection égal ou même supérieur chez lui. Un fou seul refusera des oranges, sous
30 E.g. capítulo "O juiz e a regra" de RODRIGUES, Sílvio. Das Defeitos das Atas Jurídicas. Da Erra. prétexte qu'elles n'ont pas miiri dans son jardin" (JHERING, Rudolph von. L'Espritdu Droit Ramain
Da Dolo. 2ª ed. São Paulo: Max limonad, 1963, pp. 73-82. dons lesdiverses phases deson dévelappement(trad. O. de Meulenaere). 3ª ed. Paris: A. Marescq,
31 MOREIRA ALVES, José Carlos. A Parte Geral da Projeta de Código Civil Brasileira, com análise da 1877,t.1,p.9).
texto aprovado pela Câmara dos Deputadas. São Paulo: Saraiva, 1986, pp. 103-104. 39 "[...] nos casos especiais em que se há de tomar de empréstimo um instituto jurídico, cumpre
32 Para uma alentada demonstração, permitimo-nos referir a NITSCHKE, Guilherme Carneiro escoimá-lo de seu arcabouço de origem. Cumpre despi-lo de tôda sua técnica de uso e
Monteiro. Lacunas Contratuais e Interpretação. História, conceito e método. São Paulo: Quartier desenvolvimento caracteristicamente nacional. Dele só deve restara ideia após a cremação a
Latin, 2019, pp. 51-170 e 173-188. que deverá ser submetido antes da adaptação" (AZULAY, Fortunato. Os Fundamentos do Direita
33 livro Quarto, Título I, §1°; Título XI, §4º; Título XXIX; e Titulo L, §1º. Comparada. Rio de Janeiro: A Noite, 1946, p.38). Daí que alguns dos autores que mais debateram
362 - COLMATAÇÀO DE LACUNAS CONTRATUAIS: INSUFICIÉNCIAS DO CóDIGO CIVIL, DEFICIÉNCIAS ••• GUILHERME CARNEIRO MONTEIRO NnsCHKE - 363

local acerca da matéria, ao menos o direito estrangeiro suscitaria a atenção 1.2. ÜEFICIÊNCIAS DA LEI DA LIBERDADE ECONÔMICA
do legislador para a matéria, provocando a construção de soluções situa-
Jamais se pode olvidar que a Lei Federal nº 13.874, de 20 de se-
das ou, ao menos, sugerindo a necessidade de um debate a respeito. Não
tembro de 2019 (a "LLE"), é consequência de uma Medida Provisória
se teve nem uma coisa, nem outra, mesmo diante de exemplos como os
(nº 881, de 30 de abril de 2019, a "MP") que mais profundas alterações
do Código Civil português de 1966 (arts. 35.1 e 239) 40 , do Godice Civile
propunha, e que, mesmo modificando ?ispos_iti~o~-chave do Código
italiano de 1942 (art. 1.374) 41 e, ainda antes, do Código Civil espanhol
Civil, fora elaborada à revelia da comumdade JUndica, quebrando com
de 1889 (art. 1.287) 42 , todos com disposições específicas sobre o tema.
a tradição das grandes reformas legislativas, que é de abertura para o de-
É por contraste a esse pano de fundo, portanto, que se fala da in- mocrático e prévio debate ou, ao menos, para a participação de gra~des
suficiência do Código Civil de 2002 em tema de regras de interpreta- expoentes do direito privado em sua elaboração. O que se teve fo1 um
ção contratual e, especificamente, de colrnatação de lacunas. O resultado, ato do Poder Executivo editado "do dia para a noite", com restritíssi-
como sumário, foi o diploma não conter nenhuma regra geral sobre col- mo espaço de tempo e chamamento coletivo a poster!,ori ?ara c~rreções,
matação de lacunas, tanto quanto apresentar disciplina da interpretação resultando, em menos de cinco meses, na chamada Lei da Liberdade
que esparsa, assistemática e avara (arts. 112, 113, 114 e 423); e repetir, Econômica", felizmente com algumas vitórias da comunidade jurídica
confirmando a "diretriz da tradição" na matéria, as específicas regras que, - que logrou, na revisão a jato e no hercúleo esforço de convencimento,
tradicionalmente, disciplinam a colrnatação~ de lacunas para certos~ tipos extirpar dispositivos de gravidade maior e modificar outros tantos que
contratuais (arts. 485,596,628, Parágrafo Unico, 658, Parágrafo Unico, fraturariam a coluna vertebral do direito privado.
701, 721 e 724). Foi com esse escasso material que a doutrina tam-
Antes de entrar na particular disciplina da interpretação contratual
bém escassa - teve de trabalhar para construir propostas de modelo ju-
que a LLE alterou, é necessário traçar pelo menos três comentários ?erais
rídico, até que, recentemente, convocada a repensar e a recolocar ordem
sobre referida lei, primeiro por destacar alguns problemas formais que
no pouco que conseguira organizar.
ela contém, segundo por desvelar a matriz ideológica mal encoberta pelo
É que sobreveio o vagalhão da LLE, revolvendo o terreno do di- veu da legislação e terceiro por dar ênfase à grande diretriz da reforma.
reito positivo, desorganizando-o ao pretexto de reorganizá-lo, tudo sob
Primeiro, a LLE apresenta problemas formais graves. A lei não é
feroz velocidade e impulsionado por ventos de ideologia que merecem
de boa qualidade, tal podendo ser visto de dispositivos mal redigidos e
explicitação.
deficientes sob o ponto de vista científico - com sequência de palavras
que obscurece a compreensão, organização assistemática d~ matéri~s, ~s_o
de expressões importadas que não encontram desenvolvim~nto Jund1-
co em nossa ambiência, dentre outros problemas-, o que deixa entrever
sobre a possibilidade ou impossibilidade da transplantação tenham chegado, mesmo em
polos antagônicos, a conclusôes que se aproximam: que "a transplantação frequentemente, ser isso consequência da escassa participação da comunidade jurídica em
talvez sempre, envolve transformação jurídica", e que o "empréstimo[...] rapidamente se faz sua redação e do curto tempo que se teve para revisões. Para que não :fi-
indigenizado à capacidade integra tiva da cultura do hospedeiro" (respectivamente: WATSON,
Alan. Legal Transplants: an appraach ta camparative law. 2ª ed. London: The University of Georgia quemos apenas na crítica genérica, alguns exemplos ilustram as defici-
Press, 1993, p. 107; e LEGRAND, Pierre. The impossibility oflegal transplants.Maastricht}ournal
ofEuropean and Comparative Law. Maastricht: Maastricht University, 1997, n. 111, p. 118). ências contidas na modificada disciplina do direito contratual: o novo
40 "Art. 35.1. A perfeição, interpretação e integração da declaração negocial são reguladas pela art. 421-A, que faz alusão a "contratos empresariais" (:figura não despi-
lei aplicável à substância do negócio, a qual é igualmente aplicável à falta e vícios de vontade";
"Art. 239. Na falta de disposição especial, a declaração negocial deve ser integrada de harmonia da de polêmica na doutrina brasileira) e à "simetria" co~tratual (qu~-
com a vontade que as partes teriam tido se houvessem previsto o ponto omisso, ou de acordo
com os ditames da boa~fé, quando outra seja a solução por eles imposta".
cativo importado com parco desenvolvimento entre nos); o art. 3°, me.
41 "Art. 1.374. lntegrazione dei contralto. li contralto obbliga le parti non solo a quanto e nel V, da LLE, que parece atribuir força normativa à presunção de boa-fé,
medesimo espresso, ma anche a tutte le conseguenze che ne derivano secando la legge, o, in
mancanza, secando gli usi e l'equità". .. um "estado de fato " sub~etivo,
· toman do, assim,· "f:ato por norma"43 ; ou ,
42 "Art. 1.287. EI uso o la costumbre dei país se tendrán en cuenta para interpretar las ambiguedades
de los contratos, supliendo en éstos la omisión de cláusulas que de ordinario suelen Assim as observacões críticas de MARTINS-COSTA, Judith. Art. 3º, V: presunção de boa:fé.
43
establecerse". ln: MARQUES NETO, Floriano Peixoto; RODRIGUES JR., Otávio Luiz; LEONARDO, Rodrigo
364 - COLMATAÇÃO DE LACUNAS CONTRATUAIS: INSUFICIÊNCIAS DO CóDIGO CIVIL, DEFICl~NCIAS ••• GUILHERME CARNEIRO MONTEIRO NITSCHKE - 365

ainda, o dispositivo que permite a interpretação contra proferentem (art. ideológico e sem adentrar no balanço de estudos que têm investigado
113, §1º, inc. IV) de contratos paritários, fazendo mais do que apenas os malefícios de versões radicalizadas da Escola Austríaca quando im-
estender a regra antes restrita aos contratos por adesão (art. 423) 44 , uma plantadas enquanto "políticas de Estado"48 , há quem duvide da própria
vez que dilui os requisitos "ambiguidade" e "contradição" na simples e constitucionalidade, entre nós, de se pretender inserir a livre-iniciativa
amorfa presença de "dúvida". como direito fundamental em termos absolutos, haja vista a série de li-
mitações que a Constituição, por razões sociais, a ela antepõe49 •
Portanto, a técnica empregada é, em larga medida, deficiente.
Seja como for, fato é que o substrato ideológico produziu mais. Ele
Segundo, há que se destacar a matriz ideológica da LLE, porque
não esteve contido, apenas, na declaração de princípios que a lei trouxe:
ela verte, incontida, das frestas de seus dispositivos e se revela, inteira,
os "discursos de economistas"50 estão amalgamados em variados dispo-
na Exposição de Motivos da MP. Essa matriz ideológica é a do ultra-
sitivos da LLE, dentre estes os que tratam da interpretação contratual,
liberalismo, embalada por discursos anti-estatalistas que já vinham, lá
por certo combinados ao frequente par jurídico do ultraliberalismo, que
e cá, ganhando corpo, e que pregam a redução do tamanho do Estado
é certa fração de autores da Análise Econômica do Direito a Análise
(quando não sua total desidratação, nas searas mais radicalizadas 45 ) e a
Econômica do Direito. Tal explica a referência a "custos de transação",
retomada de políticas ditas "neoliberais"46 • A Exposição de Motivos da
"eficiência", "simetria contratual" e outras expressões típicas dessa linha-
MP vincula, em relação de causalidade, atuação do Estado e baixo de-
gem de estudos, esparramadas pela LLE. Por isso a importância de se
senvolvimento econômico, daí revelando como objetivo "inverter o ins-
desvelar o verniz discursivo antes de se adentrar nos específicos temas
trumento de ação" e "empoderar o Particular e expandir sua proteção
técnicos que nos cabem, uma vez que muitos dos dispositivos se expli-
contra a intervenção estatal, ao invés de simplesmente almejar a redução cam menos pela tecnicidade e mais pelo viés de que são produto.
de processos"47 • Sem que se faça juízo de valor acerca de tal substrato
É o que se verá, não sem antes tratar da espinha dorsal da lei.
Xavier (Orgs.). Comentários à Lei do Liberdade Econômico. Lei 13.874/2019. São Paulo: RT, 2019, O terceiro comentário preliminar, portanto, é com referência à di-
pp. 125-126. retriz central da LLE, que deriva da matriz ideológica recém relatada e
44 A Exposição de Motivos da MP sustenta ter havido apenas a extensão da regra do art. 423 às
hipóteses de contratos paritários, uma vez que derivaria "do princípio de que ninguém será vai resumida no chamado "princípio da intervenção mínima do Estado"51 ,
beneficiado pela própria torpeza" (disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_o3/_
ato2019-2022/2019/Exm/Exm-MP-881-19.pdf>, §11).
que, no âmbito contratual, parte de uma premissa jurídica que - adian-
45 Sendo um dos berços do que se fala o chamado "Instituto Ludwig von Mi ses - Brasil" ("IMB"), temos - não é correta, qual seja: a de que o Estado estaria intervindo
que, segundo seu descritivo, "é uma associação voltada à produção e à disseminação de estudos
econômicos e de ciências sociais que promovam os princípios de livre mercado e de uma em demasia nos contratos, pelo que sua ação deveria ser limitada. Neste
sociedade livre. Em suas ações o 1MB busca: 1- promover os ensinamentos da escola econômica campo, a limitação pretendida pelo reformador aparece nos novos arts.
conhecida como Escola Austríaca;[ ... ] Ili - defender a economia de mercado, a propriedade
privada, e a paz nas relações interpessoais, e opor-se às intervenções estatais nos mercados e
na sociedade" (em: <https://www.mises.org.br/About.aspx>). Édos quadros desta e de outras 48 Consulte-se: BROWN, Wendy. Nas Ruínas do Neoliberalismo: a ascensão da política
instituições ultraliberais que o Ministério da Economia do Governo Jair Bolsonaro compôs parte antidemocrático no Ocidente (trad. Ma rio A. Marino e Eduardo Altheman C. Santos). São Paulo:
de seus quadros, bastando apanhar como exemplo um dos co-redatores da MP da Liberdade Ed. Filosófica Politeia, 2019; KLEIN, Naomi. The Shock Doctrine: the rise of disaster capitalism.
Econômica, Geanluca Lorenzon, autor de textos cujos títulos já indicam a ancoragem ideológica, New York: Picador, 2007; SLOBODIAN, Quinn. Globalists. The end of Empire and the Birth of
tais como "Em defesa do Ultralibera_l", "O que diferencia o proletariado dos donos do meio de Neoliberalism. Cambridge: Harvard University Press, 2008, passim.
produção? Cada vez mais, nada", "E economicamente impossível fazer com que os "direitos 49 Assim compreende BERCOVICI, Gilberto. As inconstitucionalidades da "Lei da Liberdade
sociais" sejam mantidos para sempre", dentre outros disponíveis no website do 1MB. Sobre Econômica" (Lei no 13.874, de 20 de setembro de 2019). ln: SALOMÃO, Luis Felipe; CUEVA,
a matriz ideológica da LLE, veja-se o texto de YEUNG, Luciana L. Friedrich Hayek, liberdade Ricardo Vi lias Bôas; FRAZAO, Ana (Coords.). Lei de Liberdade Econômico e seus impactos no Direito
econômica, a MP e a Lei da Liberdade Econômica: por que é necessária? ln: SALOMÃO, Luís B,:asileira. São Paulo: RT, 2020, pp. 123-129.
Felipe; CU EVA, Ricardo Villas Bôas; FRAZÃO, Ana (Coords.). Lei de Liberdade Econômico e seus 50 "E com os fios invisíveis do Direito que se fazem as civilizações, e não com discursos de
l!71pactas na Direito Brasileira. São Paulo: RT, 2020, pp. 75-88. economistas e de politiqueiros". A frase é de Pontes de Miranda, dita em uma das poucas
46 Eo que relatam autores que têm estudado a história econômica recente, marcando que a virada entrevistas que dele se tem gravadas (PONTES DE MIRANDA, F. C. Entrevista a Otto Lara, 1977,
para essas políticas iniciou mesmo antes, com o início do segundo mandato de Dilma Rousseff disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=olanYDsa6sw>).
e o Ministério da Fazenda de Joaquim Levy, ampliando-se com o manifesto "Uma Ponte para o 51 Tido como princípio pela LLE no art. 2°, incisos 1("a liberdade como uma garantia no exercício
Futuro", o Governo MichelTemere o seu Ministro da Fazenda Henrique Meirelles, e assumindo de atividades econômicas") e Ili ("a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o
sua mais radical versão (até o presente momento) com o Ministro da Economia Paulo Guedes exercício de atividades econômicas"). Tal já constava da MP na enumeração de princípios do
do Governo Jair Bolsonaro. Veja-se: CARVALHO, Laura. Valsa Brasileira. Do boom aos caos art. 2°, seja no inc.1 ("a presunção de liberdade no exercício de atividades econômicas"), seja
econômico. São Paulo: Todavia, 2019, pp. 55-147. no inc. Ili ("a intervenção subsidiária, mínima e excepcional do Estado sobre o exercício de
47 Em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_o3/_ato2019-2022/2019/Exm/Exm-MP-881-19.pdf>, §8. atividades econômicas").
366 - COLMATAÇÃO DE LACUNAS CONTRATUAIS: INSUFICIÊNCIAS DO CóDIGO CIVIL, DEFICIÊNCIAS ••• GUILHERME CARNEIRO MONTEIRO NITSCHKE - 367

421, Parágrafo Único, e 421-A, inc. III, do Código Civil52 ; e, antes, na cessário resguardar o contratante que menos consegue fazer prevalecer
tentativa frustrada de inserção do art. 3°, inc. V1II da MP53 . A poda in- sua posição em contratos com dependência econômica. Aí se vê o para-
tentada, portanto, é dos dois galhos do dirigismo contratual: do dirigis- doxo da proposta do legislador, que, sob o pretexto de promover o valor
mo via Estado-juiz, por reiterada declaração de que a intervenção em liberdade, pretendia erodir regras que garantem o mais livre exercício
contratos e sua revisão serão sempre excepcionais; e do dirigismo via de posições jurídicas de contratantes cuja dependência os faria menos
Estado-lei, por tentativa que tornaria dispositivas todas as regras legais livres ... De outro lado, sob o ponto de vista do aplicador, o direito posi-
cogentes, golpeando o conteúdo implícito dos contratos54 . tivo sempre tratou como extraordinária sua intervenção nos contratos,
A diretriz é de ser criticada por dois motivos. sendo redundante a LLE, assim, quando reafirma, a todo momento, a
Primeiro, porque a premissa de que o Estado estaria intervindo de- excepcionalidade do que já era excepcional. Basta apanhar como exem-
masiadamente nos contratos não nos parece correta, nada obstante cer- plo a disciplina da excessiva onerosidade superveniente, que, na letra da
tos abusos que, episodicamente, se podem notar. Fala-se isso porque, lei, só enseja a atuação revisiva do juiz se a parte prejudicada pretender a
sob o ponto de vista legal, as regras cogentes em tema de direito con- resolução e, conjugadamente, a contraparte oferecer a modificação equi-
tratual são, como sempre foram, "ilhas no mar do direito dispositivo" 55 , tativa do contrato (arts. 478 e 479 do Código). Não por acaso, ironica-
limitando, excepcionalmente, o auto-regramento privado56 , quando ne- mente, a palavra "revisão" só passou a fazer parte do Código Civil depois
52 Que passaram a dispor, respectivamente: "Nas relações contratuais privadas, prevalecerão
das alterações promovidas pela LLE.
o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual"; e "a revisão Segundo, a diretriz é criticável porque se escora noutra frágil pre-
contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada".
53 "[ ...]tera garantia de que os negócios jurídicos empresariais serão objeto de livre estipulação missa, advinda de autores da Análise Econômica do Direito: de que as
das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de
maneira subsidiária ao avençado, hipótese em que nenhuma norma de ordem pública dessa partes são suficientemente racionais e livres, e, por isso, capazes de mode-
matéria será usada para beneficiar a parte que pactuou contra ela, exceto se para resguardar lar contratos complexos, tornando dispensáveis, assim, normas cogentes
direitos tutelados pela administração pública ou de terceiros alheios ao contrato".
54 "Conteúdo implícito" é a disciplina contratual que deriva de regras cogentes, por sua incidência, protetivas. Tal é visão otimista em demasia, que não coincide com are-
independentemente do que as partes tenham declarado. Veja-se, sobre isso, PONTES DE alidade57,já tendo sido bastante criticada na ambiência de onde é origi-
MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Privado. 3ª ed. São Paulo: RT, 1984, t. 38, p. 64 ("as regras
jurídicas cogentes em verdade não completam: como que iniciam, em vez de completar, o nária (i.e. o direito anglo-americano) tanto sob o ponto de vista prático
conteúdo do negócio jurídico"). O art. 3°, inc. VIII, da MP, nesse sentido, era uma sorte de
cavalo de Troia para o direito contratual, pois implodiria o sistema por dentro, ao intencionaro quanto sob o ponto de vista ideológico. Pragmaticamente, está a críti-
confessado pela Exposição de Motivos: "Garante que os negócios jurídicos em presarias serão ca de não se contar, na maioria das contratações, com o modelo ideal
objeto de livre estipulação das partes pactuantes, aplicando-se as regras de direito empresarial
apenas de maneira subsidiária ao avençado. Mais de 60% das 500 maiores empresas do mundo de "contratante" com que certos autores da Análise Econômica traba-
estão registradas especificamente no Estado de Delaware, EUA. Isso se dá em razão de aquela
jurisdição constituir um dos melhores ambientes para o desenvolvimento e preservação do lham. Ideologicamente, está a crítica de que tal viés tende a privilegiar,
direito empresarial. Para o Brasil caminhar nesse sentido, propõe-se de maneira emergencial de modo subreptício, a parte mais proeminente face à mais enfraque-
permitir que qualquer cláusula contratual seja vigente entre os sócios privados e capazes
que assim a definiram, inclusive aquelas que, atualmente, parecem ir em sentido contrário cida, seja sob o verniz da "eficiência" (eficiência que serve ao polo mais
a normas de ordem pública, estritamente, do direito empresarial, contanto que não tenham
efeitos sobre o Estado ou terceiros alheios à avença. Essa medida rapidamente permitirá que
forte) 58 , seja quando sustenta uma hiperbolia do valor "liberdade" em de-
grandes empresas sintam-se seguras para investir e produzirno Brasil, gerando emprego e renda
para os milhões de brasileiros que hoje se encontram desempregados, e que os empresários de conformidade com as normas jurídicas de natureza cogente" (MELLO, Marcos Bernardes
terão respeitados os termos que acertarem entre si, sem prejudicar a soberania nos assuntos de. Teoria do Fato}un'dico. Plano da Existência. Bª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 161).
que de fato afetem terceiros e a coletividade como um todo" (disponível em: <http://www. 57 POSNER, Eric. Economic analysis of contract law afterthree decades: success orfailure? Yale Low
planalto.gov.br/ccivil_o3/_ato2019-2022/2019/Exm/Exm-MP-881-19.pdf>, §11, inc. VIII)". O Journal. New Haven: Yale University, 2003, p. 863. Entre nós, nesse exato sentido ao comentar
resultado, fosse acolhido, seria evanescer um apanhado sem fim de leis protetivas de polos o art.113 §1º, inc. V, do Código Civil: LEONARDO, Rodrigo Xavier; RODRIGUESJR., Otavio Luiz.
frequentemente com dependência econômica, como o dos representantes comerciais (Lei A interpretação dos negócios jurídicos na Lei da Liberdade Econômica. ln: CUNHA FILHO,_
Federal nº 4.886/65), o dos franqueados (Lei Federal nº 13.966/2019), o dos locatários (Lei Alexandre J. Carneiro da; PICCELLI, Roberto Ricomini; MACIEL, Renata Mota (Coords.). Lei
Federal nº 8.245/91), dentre outros. da Liberdade Econômica Anotada. Vai. 2. Lei nº 13.874, de 2019. São Paulo: Quartier Latin, 2020,
55 GAMBARO, Antonio. Contratto e regale dispositive. Rivista di Diritto Civi/e. Padova: CEDAM, p. 224: "Trata-se de regra de interpretaçã_? que s~ _baseia em pre~suposto que nem sempr~ é
2004, n. 1, p. 4. verdadeiro ou que carece de comprovaçao empmca: a presunçao de que todos os negocios
56 PONTES DE MIRANDA, F. C. TratadodeDireitoPrivado.4ª ed.São Paulo: RT, 1983, t.3, pp.45 e 60. jurídicos são fruto de uma efetiva racionalidade econômica". . .
"Daí se pode concluirque a margem deixada à vontade pelo sistema jurídico traça os contornos 58 Assim: KELMAN, Mark. A Cuide to Criticai Legal Studies. Cambridge: Harvard Un1vers1ty Press,
do campo onde se pode exercera poder do auto-regramento (autonomia). Constitui, portanto, 1987, pp. 151 e ss.; HORWITZ, Morton J. Law and economics: science or politics? Hofstra Lmv
regra fundamental a de que a vontade somente pode ser manifestada quando admitida e sempre Review. Hempstead: Hofstra University School of Law, 1980, v. 8, especialmente pp. 911-912
368 - COLMATAÇÃO DE LACUNAS CONTRATUAIS: INSUFICIÊNCIAS DO CóDJGO CIVIL, DEFICIÊNCIAS ••. GUILHERME CARNEIRO MONTEIRO NITSCHKE - 369

trimento do valor "igualdade". Tal vem não apenas como estrato subja- na62 ; e assim é a regra da interpretatio contra preferentem do inc. IV, re-
cente do que ora se analisa, mas de outros temas com que lida a Análise petindo a "Sétima Regra de Pothier", e presente no Código Comercial
Econômica do Direito, como, por exemplo, a chamada "teoria dos con- (art. 131, 5) e no Anteprojeto de Código de Obrigações (art. 68), tanto
tratos incompletos"59 • quanto desde os juristas oitocentistas 63 • Assim também é o §2°, uma vez
As circunstâncias de forma, ideologia e diretriz da LLE aparecem, que indisputado ser permitido às partes pactuar livremente regras de in-
marcadamente, nos dispositivos que incrementaram a disciplina da inter- terpretação contratual, inclusive em sobreposição às legais (exceto às ex-
pretação contratual e, assim, da colmatação de lacunas. Esse incremento cepcionalmente cogentes), conforme em frente se tratará em apartado.
se deu com o acréscimo de dois parágrafos ao art. 113 do Código Civil Se essas regras só repetem o que já era parte da tradição, onde no-
(§§1 ° e 2°) 60 ,o primeiro fazendo inserir critérios de interpretação contra- tar a deficiência que o título deste trabalho adianta? Essa deficiência não
tual e o segundo dizendo prevalecer a autonomia privada por sobre a lei está em declarar que "o sol brilha" ou que "a chuva cai", mas em como
quando as partes dispuserem acerca da própria interpretação contratual. isso vem declarado (confusamente, atecnicamente, inovando com im-
O primeiro comentário que se pode traçar a respeito é de que, no ge- pertinência e imprecisão), sendo de apontar, então - e como segundo
ral, eles não inovam. Apesar de defeituosos, os incisos do § 1° pretendem comentário-, os principais problemas que tais dispositivos apresentam.
consolidar critérios de interpretação antigos em nossa tradição jurídica. A um, o §1°, caput,já principia com equívoco ao ditar que a inter-
Assim é o "comportamento posterior" do inc. I, velha regra do Código pretação do negócio jurídico "atribui" sentido. No direito brasileiro, a
Comercial de 1850 (art. 131, 3) e presente nos Projetos de Felício dos
Santos (art. 265, 13) e Inglês de Souza (art. 715,inc.III), tanto quanto em 62 A "Quinta Regra" de Pothier, inspirada no Digesto, dispunha ser o uso "de uma grande
autoridade para a interpretação dos contratos", devendo-se subentender "as cláusulas que
doutrina de todas as épocas61 ; assim são os "usos" e "costumes" do inc. II, são do uso, ainda que não sejam exprimidas: ln contractibus tacite venunte acquae sunt moris et
velhíssimo critério de interpretação que remonta às "Regras de Pothier" consuetudinis" (POTH IER, Robert-Joseph. Oeuvres de Pothierannotées et mises en corrélation avec
te Code Civil et la LégislationActuelle parM. Bugnet. Paris: Casse et N. Delamotte, 1848, t. 2, p. 49);
(Quinta Regra), também presente no Código Comercial (arts.130, 131, "Art. 205. [...] 5ª. O que é ambíguo, deve ser entendido segundo o uso do Jogar em que o acto
é celebrado" (SANTOS, Joaquim Felício dos. Projecto da Codigo Civil da Republica dos Estados
4, 132 e 133), nos Projetos de Felício dos Santos (art. 205, 5ª), Coelho Unidos do Brazil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891, pp. 208-209); "Art. 353. [... ] §9º As
Rodrigues (art. 353 §9°) e Inglez de Souza (art. 714), no Anteprojeto dúvidas que ocorrerem na execução devem ser resolvidas de acordo com o costume do lugar"
(RODRIGUES, Coelho. Projeto do Código Civil Brasileiro. Brasília: Departamento de Imprensa
de Código de Obrigações (art. 66), e trabalhado desde antiga doutri- Nacional, 1980, pp. 86-87). "Art. 714. [...] segundo o uso do Jogarem que foi celebrado[... ] e no
sentido em que as costumam empregaras pessoas da profissão ou industria a que disser respeito
o acto" (INGLEZ DE SOUZA, Herculano Marcos. Projectode Codiga Commercial. Rio de Janeiro:
("And once it has been realized that efficiency is, by definition, a function of a particular Imprensa Nacional, 1912, v. 2, p. 225); Ante-Projeto de Código de Obrigações (Parte Geral). Rio de
distribution (invariably the status quo), the inherently conservative bias of the definition of Janeiro: Imprensa Nacional 1943, art. 66. Para um estudo sobre o tema, que abrange menção à
efficiency becomes clear"). doutrina de variadas épocas de nossa tradição, remetemos a NITSCHKE, Guilherme Carneiro
59 Sobre o substrato de compreensão que se tem acerca de "mercado" e do papel do Estado como Monteiro. Usos e costumes no direito contratual brasileiro (ou, sobre a precisão da doutrina
relevante para a Teoria dos Contratos Incompletos e a vários dos autores da Análise Econômica face à imprecisão do legislador). ln: BENETTI, Giovana; CORRÊA,André Rodrigues; FERNANDES,
do Direito, veja-se: BIX, Brian. Diccionário de Tearíafurídica (trad. Enrique Rodríguez Trujano e Márcia Santana; NITSCHKE, Guilherme Carneiro Monteiro; PARGENDLER, Mariana; VARELA,
Pedro A. Villarreal Lizárraga). Cidade do México: UNAM, 2009, p. 9 e ss. Laura Beck (Orgs.). Direito, Cultura, Método. Leituras da obra de Judith Martins-Costa. Rio de
60 "Art. 113. [... ] § 1° A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: Janeiro: GZ, 2019, p. 618 e ss.
1 - for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; 63 "Em duvida deve interpretar-se huma clausula de qualquer contracto, contra o estipulante,
li - corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; em descargo daquelle que se obrigou" (POTHIER, Robert-Joseph. Regras da interpretação
Ili - corresponder à boa-fé; IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se dos contractos. ln: ALMEIDA, Cândido Mendes de. Auxiliar jurídico servindo de appendice à
identificável; e V- corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão décima quarta edição do Codigo Philippina ou Ordenações do Reino de Portugal. Rio de Janeiro:
discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das Typographia do Instituto Philomathico, 1869, p. 483);Ante-Projeto de Código de Obrigações(Parte
partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. § 2º As Geral). Rio deJaneiro: Imprensa Nacional 1943, art. 68. Em doutrina:ALMEIDA, Cândido Mendes
partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de. Axiomas e brocardos de direito extrahidos da legislação brazileira antiga e moderna. ln:
de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei". ALMEIDA, Cândido Mendes de.AuxiliarJurídico servindo de appendice à décima quarta edição do
61 "Art. 265. [... ] 13. Os factosâos agentes na occasião do acto, ou anteriores ou posteriores, e que Codigo Philippino ou Ordenações do Reina de Portugal. Rio de Janeiro: Typographia do Instituto
tenham relação com a questão, tambem servirão para sua interpretação" (SANTOS, Joaquim Philomathico, 1869, p. 554; CARVALHO, Carlos Augusto de. Direito Civil Brozileiro Recopilada ou
Felício dos. Projecto do Codigo Civil da Republica dos Estados Unidos do Brazil. Rio de Janeiro: Nava Consolidação das Leis Civis. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1899, p. 97; CORREIA TELLES,
Imprensa Nacional, 1891, p. 209); "Art. 715. [...] JU - o facto dos contrahentes posterior ao José Homem. Manual do Tabellião ou Ensaios de Jurisprudencia Eurematica. Lisboa: Imprensa
contracto, que tiver relação com o objecto principal, será a melhor explicação da vontade que Nacional, 1859, pp. 24 e 39; LOBÃO, Manoel de Almeida e Sousa de. Especialidades de direito
as partes tiveram na occasião de celebrar o mesmo contracto" (INGLEZ DE SOUZA, Herculano nas compras e vendas de vinhos. Exposição especial da Ord., L. 4, t., 8, §§5 e 6 e de outras mais.
Marcos. Prajecta de Cadigo Commercial. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1912, v. 2, p. 225). ln: Fascículo de Dissertações jurídico-Praticas. Lisboa: Imprensa Nacional, 1866, t. 1, p. 357.
370 - COL!v\ATAÇÃO DE L\CUNAS CONTRATUAIS: INSUFICIÊNCIAS DO CóDIGO CIVIL, DEFICIÊt'jCIAS ••• GUILHERME CARNEIRO MONTEIRO NITSCHKE - 371

interpretação negocial não é atributiva de significado: ela extrai o signi- deveria tê-lo feito de maneira a resgatar a tradição que se tinha a respei-
ficado seguindo a trilha dos critérios de interpretação (viae ad res), uma to, sendo mais completo e cuidadoso. O inc. I, nesse sentido, faz alusão
vez que o postulado normativo (diretriz e fim da interpretação negocial) ao comportamento posterior partes - critério não assimilável nem ao
é a intenção comum das partes (art. 112), que restaria malferida caso se comportamento concludente, nem às práticas pretéritas-, mas perde a
buscasse, como finalidade da interpretação, sentido que não está nessa oportunidade de também referir ao comportamento anterior, referente à
mesma intenção comum. O tópico merecerá apartada consideração logo fase das negociações, que é critério relevante de interpretação negocial.
em frente, mas é de se adiantar, uma vez que a redação deficiente é ca- Também teria sido pertinente inserir, ao menos, regras de interpreta-
paz de sugerir o que não é compatível à disciplina da interpretação no ção sistemática (interpretar umas cláusulas pelas outras e uns contratos
direito brasileiro: a existência de um sistema bifásico, como em alguns pelos outros, em havendo conexidade), de interpretação consonante ao
países se nota presente, em que, em primeira etapa, se buscaria a inten- fim do negócio jurídico (nada obstante tal poder ser extraído do inc. V,
ção comum e, em segunda etapa, se atribuiria sentido externo 64 • em algum esforço de construção) e de colmatação de lacunas. Perdeu a
A dois, e indo aos incisos, nota-se desnecessária redundância em oportunidade e, assim, pecou pela falta.
alguns deles, tal sendo o caso dos usos e costumes (inc. II) e da boa-fé A quatro, o pecado do legislador reformador se estende, também,
(inc. III), a repetir o que já consta do caput do art. 113. Para tentar sal- para aquilo que pretendeu inovar. Assim é o inc. IV ao referir à inter-
var algo que vá além da redundância, o inc. II faz acertada remissão às pretação contra aquele que elaborou a cláusula, dispositivo problemáti-
"práticas" - que já vinham sendo extraídas do caput do art. 113 e, assim, co porque, antes, remete o aplicador à fase das negociações e ao difícil
fazendo-se presentes em nosso sistema - e ao "tipo de negócio", miti- exame da troca de minutas e concessões recíprocas de que, muitas ve-
gando a imprecisão do legislador originário (que conectava os usos e cos- zes, apesar de redigida por um dos polos, certa disposição é produto 66 ;
tumes apenas ao "lugar" de sua celebração) e conotando, pela menção e, depois, remete ao critério da "dúvida" como suficiente para ensejar a
genérica à tipicidade, que se pode tratar tanto de tipos legais quanto de interpretatio contra preferentem, o que é demasiadamente impreciso (pois
tipos sociais; e o inc. III, por sua vez, ao fazer menção algo redundante sempre que se busca a atuação de um aplicador já há dúvida quanto ao
à boa-fé, denota que esta atua não somente enquanto princípio retor65 , significado) e mais concessivo do que a regra protetiva do art. 423, que
mas, igualmente, como critério autônomo de interpretação e preenchi- exige "ambiguidade" ou "contradição" para que se possa beneficiar o ade-
mento de lacunas. rente. Também há pecado na inovação do inc. V, que instaura verdadeira
A três, há algumas omissões importantes na reforma que se fez, pois mistura de critérios, talvez a depressão mais profunda da disciplina que
se o legislador quis reinserir ao direito positivo regras de interpretação, se fez inserir, pois: confunde interpretação sistemática ("demais dispo-
sições do negócio") com outros critérios; e faz alusão à "racionalidade
64 A saber, o italiano (MESSINEO, Francesco. DoctrinoCeneral dei Contrato (trad. R. O. Fontanarrosa;
5. Sentís Melendo; M. Volterra). Buenos Aires: EJEA, 1952, t. 1, p. 90); e o francês reformado
econômica das partes" - produto provavelmente importado da Análise
do art. 1.188 (FAGES, Bertrand. Droit des Obligotions. 6ª ed. Paris: LGDJ, 2016, p. 227; FABRE- Econômica do Direito -, quando, em verdade, o que importa à inter-
MAGNAN, Muriel. Droit des Obligotions. 1- Contrat et engogement unilatéra/. 4 ª ed. Paris: PUF,
2016, pp. 562-563). O alemão aparenta estabelecer sistema bifásico, circunstância que foi pretação é a economia do contrato67 , pela lente de seu objeto e seu fim.
interpretada deste modo por doutrina mais tradicional (DANZ, Erich. La interpretación de los
negócios jurídicos (contratos, testamentos, etc.) (trad. Francisco Bonet Ramon). 3ª ed. Madrid: 66 A isso se soma a observação de que o dispositivo "desconhece que a redação material
Editorial Revista de Derecho Privado, 1955, p. 179; LARENZ, Karl. Derecho Civil. Parte General do instrumento contratual nem sempre é efetuada por quem o concebeu. O dispositivo
(trad. Miguel lzquierdo y Macías-Picaea). Madri: Editorial Revista de Derecho Privado, 1978, poderia mesmo dar azo à situação em que os contratantes se esquivem de inserir no contrato
p. 453; VON TUHR, Andreas. Tratado de las Obligaciones (trad. W. Roces}. Madri: Reus, 1934, t. determinada cláusula, procurando imputar à contraparte tal responsabilidade, mesmo que
1, p. 193), mas que, em verdade, não é mais lida enquanto tal, hoje prevalecendo a conjugada com ela concordem, para se valer da aludida previsão" (TEPEDINO, Gustavo; CAVALCANTI,
aplicação dos §§133 e 157 do BGB com vistas ao desvelamento da comum intenção das partes Laís. Notas sobre as alterio!ções promovidas pela Lei nº 13.874/2019 nos artigos 50, 113 e 421 do
(FLUME, Werner. E/ Negócio}uridico (trad.José María Miquel González e EstherGómez Calle}. Código Civil. ln: SALOMAO, Luís Felipe; CU EVA, Ricardo Villas Bôas; FRAZAO, Ana (Coords.).
Madri: Fundación Cultural dei Notaria to, 1998, p. 370; KORNET, Nicole. Contract lnterpretation Lei de Liberdade Econômica e seus Impactos na Direito Brasileiro. São Paulo: RT, 2020, p. 500 }.
and Cap Filling: comparative and theoreticalperspectives. Oxford: lntersentia Antwerpen, 2006, Com toda razão, nesse sentido, GEDIEL, José Antônio Peres; CORRÊA, Adriana Espíndola.
p.97). lnterpretações-art.113 do Código Civil. ln: MARQUES NETO, Floriano Peixoto; RODRIGUESJR.,
65 E, assim, "norte" das regras de interpretação, como aponta SILVA, Luís Renato Ferreira da. Otávio Luiz; LEONARDO, Rodrigo Xavier(Orgs.}. Comentários à Lei da Liberdade Econômica. Lei
Prefácio. ln: NITSCHKE, Guilherme Carneiro Monteiro. Lacunas Contratuais e Interpretação. 13.874/2019. São Paulo: RT, 2019, p. 356: "A racionalidade econômica das partes como critério
História, conceito e método. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 28. de interpretação deve considerar aquilo que objetivamente se possa identificar do conjunto do

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372 - COLMATAÇÃO DE LACUNAS CONTRATUAIS: INSUFICIÊNCIAS DO CóDIGO CIVIL, DEFICIÊNC(AS .•• GUILHERME CARNEIRO MONTEIRO NrrscHKE - 373

Por fim, também há pecado dessa sorte no §2°, que permite às par- uma vez que esta é parte do processo interpretativo e, assim, socorre-se
tes elaborar regras "de interpretação, de preenchimento de lacunas e de dos mesmos critérios e é regida pelo mesmo postulado normativo que a
integração dos negócios jurídicos", sem deixar claro o que entende por interpretação como um todo.
"integração", palavra de intranquilo emprego pela doutrina. Voltaremos
Faltou ao legislador da Lei da Liberdade Econômica atentar para
a tratar mais em frente desse dispositivo, pois diretamente relacionado
as lições de outro grande jurista brasileiro da última centúria (caso fosse
ao problema das lacunas. Diga-se, por ora, que referido §2°, ao dizer o
possível exigir tanto de quem, tão rapidamente, expeliu tão graves mo-
óbvio, deixa entrever o viés ideológico e a diretriz geral da LLE, que é a
dificações a um Código): "não se edita uma lei, como se escreve um ro-
de podar a intervenção estatal sempre que possível, no caso consistindo
mance, ou se compõe uma sonata, ou se pinta um quadro", pois "[a] lei
em fazer prevalecer a autonomia das partes frente às regras legais de in-
não é um fim, em si; tende a operar na vida. E, sendo efeito, ela mesma
terpretação. Tal não pode ser lido, contudo, como se afastasse a regência
terá efeitos a desenvolver, fatalmente" 70 • O risco de misturar lei e discur-
de regras cogentes de interpretação 68 , tal sendo o caso do art. 112, que,
so, e romper com estruturas a golpes de tacape, tudo com o fito de fazer
injuntivamente, faz inserir a intenção comum das partes como postula-
verter, no texto legal, conjunturas ideológicas e subreptícias transplanta-
do normativo de toda interpretação negocial no direito brasileiro.
ções, é mais do que um risco na LLE: foi seu deliberado objetivo; e as-
Mas, a cinco, há também o pecado da desordem: o legislador refor- sim sendo, operou e opera efeitos na realidade, atua na vida, carecendo
mador perdeu a oportunidade de organizar o processo de interpretação de crítica e reorganização pela pena da doutrina.
contratual, orientando o aplicador acerca de quais critérios deve consi-
derar com prioridade no processo hermenêutico. Tal não é de despre- É o que se procurará traçar, em esforço de suma, na Parte que segue.
zar, urna vez que há relativa tranquilidade, dentre os que escrevem sobre pARTE 11. Ü "f 10 DE ARIADNE" DA DOUTRINA: O MODELO
a matéria, sobre a sequência "literalidade", "contexto verbal", "contex- JURÍDICO DA COLMATAÇÃO DE LACUNAS CONTRATUAIS
to situacional" e "fim do negócio jurídico"69 • Certo, porém, é que não se
pode considerar a lista de incisos do §1° enquanto o correto escalona- Ao tratar do tema da colmatação de lacunas no direito italiano,
mento desses critérios: mais uma vez, é na doutrina que se terá de bus- Stefano Rodotà alerta para os riscos de que o "observador superficial" se
car e construir a ordem na desordem. perca "nos labirintos dogmáticos [ ... ] "que não levam a nenhum lugar ou
cuja tortuosidade induz a duvidar da efetiva concretude do problema" 71 •
Em matéria de colmatação de lacunas, a LLE fez persistir a insufi-
No direito brasileiro, as paredes desse labirinto são antepostas não tan-
ciência do original texto do Código, perdendo, por igual, a oportunida-
to pela doutrina72 , mas sobretudo pela lei - nas insuficiências do Código
de de elencar critérios e, assim, de orientar a atividade do aplicador. Mas
Civil, nas deficiências acrescidas pela LLE -, sendo a dogmática o "fio
mais do que a persistência da falta, a novidade da desordem na disciplina
de Ariadne" de que se pode socorrer quem está na labiríntica prática
geral estende insegurança também para a "interpretação completativa",
para, a partir das coordenadas gerais (arts. 112 e 113) e específicas (arts.
negócio jurídico, especialmente levando-se em conta a economia do contrato voltada ao fim 70 ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Tratado de Direito Civil Brasileiro. Volume IV.
concreto do negócio jurídico. Não é possível buscar qual a racionalidade econômica subjetiva O Método Positivo na Interpretação e na Integração das Normas Jurídicas. Rio de Janeiro: Freitas
das partes, mas deve o intérprete conferir interpretação que se ajuste melhor ao equilíbrio Bastos, 1940, p. 418.
contratual desenhado pelas partes no conjunto negocial e que seja adequado a atingir o fim 71 RODOTÀ, Stefano. Lefonti di integrazione dei contralto. Milano: Giuffre, 1970, p. 2.
concreto buscado por ambas". Que, contudo, por vezes as reforça, ao se apoi?r em material estrangeiro e assim prod_u_zir
72
68 Também é essa a compreensão de: LEONARDO, Rodrigo Xavier; RODRIGUESJR., Otavio Luiz. "quebra sobre quebra" em nossa tradição, como e o caso, por exemplo, da propo~ta de ac~1t1ca
A interpretação dos negócios jurídicos na Lei da Liberdade Econômica. ln: CUNHA FILHO, recepção da teoria norte-americana dos chama9os "contratos incompletos". Assim_ p_ropoem:
Alexandre J. Carneiro da; PICCELLI, Roberto Ricomini; MACIEL, Renata Mota (Coords.). Lei BANDEIRA, Paula Greco. Contrato Incompleto. Sao Paulo: Atlas, 2015; CAMINHA, Um1e; LIMA,
da Liberdade Econômica Anotada. Vai. 2. Lei nº 13.874, de 2019. São Paulo: Quartier Latin, 2020, Juliana Cardoso. Contrato incompleto: uma perspectiva entre direito e economia paracont~atos
p. 226; e o estudo de VIEIRA, Vítor Silveira. Liberdade contratual, interpretação, integração e de longo termo. Revista Direito CV. São Paulo: GV, 2014, n. 1?, pp. 155_-20_0; PENTEADO, Lu 71a~o
colmatação de lacunas - escopo e limites do art. 113, §2º do Código Civil (inédito). de Camargo. lntegraçãode Contratos Incompletos. Tese de Livre Docen 1a. Faculdade de f?1re1to
69 Sistemática abordagem desses quatro blocos de critérios se encontra em MARINO, Francisco 7
de Ribeirão Preto, 2013; SZTAJN, Raquel. Sociedades e contratos incompletos. Revista da
Paulo De Crescenzo. Interpretação da Negócio Jurídico. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 102-143. Faculdade de Direito da USP. São Paulo: USP, 2006, v. 101, pp.171-179; SZTAJN, Raquel. Supply
Correlacionados à colmatação de lacunas, remetemos ao nosso NITSCHKE, Guilherme Carneiro chain e incompletude contratual. Systemas Revis~a de Ciências jurídicas_ e E~onômicas. ~ampo
Monteiro. Lacunas Contratuais e Interpretação. História, conceito e método. São Paulo: Quartier Grande: Contemplar, 2009, n. 1, pp. 1-27 disponivel em <http://cepe1us.l1bertar.org/mdex.
Latin, 2019, passim. php/systemas/article/view/10/11>).
GUILHERME CARNEIRO MONTEIRO NITSCHKE - 375
374 - COLMATAÇÃO DE LACUNAS CONTRATUAIS: INSUFICIÊNCIAS DO CóDIGO CIVIL, DEFICIÊNCIAS •.•

485,596,628, Parágrafo Único, 658, P_arágrafo Único, 701, 721 e 724) arbitrador a :fixação do preço em contrato de compra e venda, estipulan-
do Código, encontrar saída e solução. E esse "fio de Ariadne" - i.e. essa do, deste modo, meio de colmatação. O art. 596 dita que a retribuição
proposição de modelo jurídico- que procuraremos sumarizar nos capí- em contrato de prestação de serviço será fixada em arbitramento e "se-
tulos que seguem73 a partir de conceito, distinção e método: conceituando gundo o costume do lugar, o tempo de serviço e sua qualidade", se não
e distinguindo as situações de lacunosidade típica e atípica (Cap. II.1), estipulado pelas partes. O art. 628, Parágrafo Único, estipula que are-
e, ato seguinte, demonstrando como o postulado normativo da intenção tribuição em depósito oneroso sem previsão específica será determina-
comum das partes dirige e organiza o método de suprimento de lacunas da pelos usos do lugar ou por arbitramento. O art. 658, Parágrafo Único,
no direito brasileiro (Cap. II.2). trata da contraprestação faltante em contrato de mandato, remetendo
aos usos e costumes e, sucessivamente, ao arbitramento. O art. 701 de-
11.1. DISTINGUINDO E CONCEITUANDO: LACUNOSIDADE termina que a remuneração em contrato de comissão será arbitrada de
CONTRATUAL E PREVISÃO LEGAL acordo com os usos do lugar, em caso de omissão, regra que, por força
Dentro da moldura deste trabalho, releva principiar pela distinção do art. 721, se aplica também ao contrato de agência e distribuição. O
entre "lacunas típicas" e "lacunas atípicas", uma vez que guarda relação art. 724, por :fim, prevê que, no contrato de corretagem, a remuneração
com a tipicidade ou atipicidade das hipóteses em considerando a disci- omitida será estipulada "segundo a natureza do negócio e os usos locais".
plina do Código Civil. São típicas as lacunas que vêm tratadas pela ex- Remetendo o leitor ao aprofundamento que, de outra feita, proce-
pressa letra da lei, antecipando sua ocorrência em conexão à tipologia demos em cada uma das hipóteses típicas 74 , sobre elas é possível traçar
contratual e tratando de estabelecer coordenadas para sua colmatação. alguns comentários gerais.
De outro lado, são atípicas as lacunas que não vêm tratadas em específi- O primeiro é no sentido de criticar certas imprecisões que alguns
co pela letra da lei, regendo-se sua colmatação pelas regras gerais de in- desses dispositivos contêm, ao misturarem inapropriadamente meios e
terpretação. Passemos ao exame de cada uma dessas categorias. critérios de colmatação de lacunas. É o que ocorre, apenas para exemplo,
no art. 628, Parágrafo Único, em que se fala de "usos do lugar" e, suces-
ll.1.1. LACUNAS TÍPICAS
sivamente, de "arbitramento". Ora, "usos do lugar" (rectius usos do trá-
A circunstância de o Código disciplinar algumas hipóteses de la- fico) é critério de interpretação, informando o que preencherá a lacuna
cunosidade decorre de duas circunstâncias. Primeiro, do interesse do le- do conteúdo, ao passo que "arbitramento" é meio de interpretação, via
gislador em possibilitar a conservação do contrato lacunoso, isentando ad res, ao lado do suprimento pelas próprias partes, judicial, arbitral ou
que a falta ou precariedade de elemento essencial venha a produzir a por dispute boards. Destes não se destila o conteúdo da regra, senão que
inexistência do contrato ou sua conversão, uma vez que, na hipótese de são os meios pelo que se o destilam, de modo que as referências a "ar-
lacunas típicas, a consequência da falta é sua colmatação. E segundo, do bitramento" que alguns dos dispositivos contêm, para superação da im-
interesse do legislador em indicar previamente os meios e critérios que precisão, devem ser lidos como referindo ao critério "tecnicidade" (que
haverão de reger a colmatação a ser procedida pelo aplicador, tornando- também plasma um dos critérios de preenchimento de lacunas, como
-os cogentes ao intérprete, ainda que sejam dispositivos às partes (isto em frente trataremos).
é, as partes podem disciplinar a colmatação de lacunas - ainda quera-
O segundo comentário é para alertar que as regras de suprimento
ramente o façam - elegendo meios ou critérios outros que não os esta-
de lacunas previstas nos tipos legais são dispositivas, querendo isso dizer
belecidos nas hipóteses típicas).
que os arts. 485, 596, 628, Parágrafo Único, 658, Parágrafo Único, 701,
As hipóteses de lacunas típicas se encontram conectadas à disciplina 721 e 724 são derrogáveis pelas partes, se desejarem a eles sobrepor, em
dos contratos legalmente típicos. Assim, o art. 485 relega a um terceiro
73 Revisitando o que procuramos desenvolver com mais profundidade em NITSCHKE, Guilherme
74 NITSCHKE, Guilherme Carneiro Monteiro. Lacunas Contratuais e Interpretação. História, conceito
Carneiro Monteiro. Lacunas Contratuais e Interpretação. História, conceito e método. São Paulo:
Quartier Latin, 2019, ainda que agora com complementos ao ensejo da LLE. e método. São Paulo: Quartier Latin, 2019, pp. 458-476.
376 - COLMATAÇÀO DE LACUNAS CONTRATUAIS: INSUFICIÊNCIAS DO Córneo CIVIL, DEFICIÊNCIAS .•• GUILHERME CARNEIRO MONTEIRO NJTSCHKE - 377

exercício de autonomia privada, regras de preenchimento de lacunas 75 • cidência que geram - presunção, esta, que só é afastada caso os contra-
Os próprios dispositivos legais sempre pressupõem, em seu texto, a au- tantes tenham aposto específica previsão que se sobreponha à regra legal
sência de estipulação específica dos contratantes 76 • O que é dispositivo dispositiva. Por isso que, por exemplo, doutrina que comenta o art. 488
para as partes, contudo, é cogente para o aplicador, pois é da natureza entende tratar-se de já preço determinado, e não determinável, plasman-
das regras dispositivas se somarem ao conteúdo contratual, integrando-o do "matéria de interpretação da vontade das partes"79 •
por incidência, em caso de não previsão. Estarã9, portanto, presumida- A distinção entre o que é hipótese de lacuna típica e o que é "fal-
mente incorporadas à disciplina contratual as regras de preenchimen- sa lacuna" é de fundamental importância prática, uma vez que, quando
to de lacunas que não tenham sido afastadas pelas partes, tornado-se de se tem lacuna, o que se pode fazer é preenchê-la, tendo a partícula in-
obrigatória observância pelo aplicador77 • serta eficácia para o futuro, a partir do momento em que agregada ao
O terceiro comentário é para advertir que há casos de "falsa lacuna" conteúdo contratual. De outro lado, os casos de "falsa lacuna", por se-
no Código Civil, em que a regra legal não trata de orientar o intérprete rem, verdadeiramente, situações de integração heterônoma da discipli-
acerca de como a falta deve ser suprida, mas verdadeiramente integra o na contratual - em que a regra legal incide e o conteúdo se incrementa,
conteúdo, incidindo - i.e. a lei enquanto fonte heterônoma da discipli- integrado que fica -, a eficácia da regra é a partir do momento de sua
na concreta - para ditar dispositivamente o que este contém, na ausên- incidência. Para este último caso, a agregação da regra não depende do
cia de expressa disposição das partes. São assim os arts. 488,569, inc. II, intérprete, pois ela já ocorreu, como decorrência da incidência, restan-
581 e 599 78 • Em todos esses casos o que a lei faz é integrar o conteúdo, do a quem interpreta reconhecê-la como presente,já tendo gerado efi-
que depois é interpretado, já integrado pelas demais fontes (i.e. com a cácia às partes, como se por elas próprias acrescida. A decorrência é que,
norma tendo incidido e, assim, preenchido heteronomamente o conte- quando se colmata uma lacuna, não se pode desdobrar a ocorrência de
údo total do contrato), daí se justificando as expressões "entende-se" ou inadimplemento, pois antes o conteúdo contratual não continha o que,
"presume-se" de alguns desses dispositivos, haja vista a presunção de in- agora, se acrescenta80 • De outro lado, quando se reconhece que o conte-
75 Tal já era assim e veio a ser repetido pela reforma do Código Civil via LLE, inserindo-se o §2º ao údo já estava integrado por regra legal, é possível que qualquer das par-
art. 113: "As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de tes a tenha inadimplido.
lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei".Já criticamos
acima, e aqui repetimos, que carece de tecnicidade o dispositivo, uma vez que obscuro quando Semelhante análise procedeu J. X. Carvalho de Mendonça em pare-
emprega a palavra "integração".
76 O art. 485, por exemplo, dispõe que a fixação do preço "pode ser deixada ao arbítrio de cer sobre compra e venda mercantil sem estipulação de prazo para entre-
terceiro"; o art. 596 indica que o critério legal só o art. 596 indica que o critério legal só se
aplica quando não houver estipulação ou acordo das partes; os arts. 628, Parágrafo Único, e
658, Parágrafo Único, fazem aplicáveis as orientações da lei se a retribuição não "resultar de
ajuste"; o art. 701 faz pressuposto não ter havido estipulação pelos contratantes; e o art. 724, ESPÍNOLA Eduardo. Dos Contratos Nominodos no Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Gazeta
79
por fim, só incide em seu critério se a remuneração do corretor não constar do ajuste das partes. Judiciária, '1953, p. 42, nota 71. Nesse mesmo sentido: AZEVEDO JÚNIOR, José Osório de.
77 Tal é ensinado por Pontes de Miranda ao diferenciar as "regras de interpretação" das "regras Compro e Vendo. Troca e Permuta. São Paulo: RT, 2005, p. 41; GOMES, Orlando. Contratos. 16ª
interpretativas". Ao passo que estas últimas são ·'coloridoras do espaço cinzento que a dúvida ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 229; GONÇALVES, Luiz da Cunha. Da Compro e Venda no
deixa à vista", esclarecendo a dúvida que se revela, as regras de interpretação são operatórias, Direito Comercial Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1950, pp. 178-180; PONTES DE
cogentes, "que são gerais e não para o caso de dúvida"; não são dispositivas (para o aplicador) MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Privado. 3ª ed. São Paulo: RT, 1984, t. 39, p. 37.
e não se confundem, portanto, com as regras jurídicas interpretativas (PONTES DE MIRANDA, 80 Por ser agregação a posteriori de disciplina contratual, não é regra, portanto, que possa ser
F. C. Trotado de Direito Privado. 4 ª ed. São Paulo: RT, 1983, t. 1, pp. 64-65). No mesmo sentido, tida por inadimplida: o completamento é sempre ex nunc, e daí por que Pontes de Miranda
CARVALHO DE MENDONÇA,J. X. Trotado de Direito Comercio/ Brasileiro. 6ª ed. Rio de Janeiro: destaque a eficácia constitutiva da sentença que assim estabeleça (PONTES DE MIRANDA,
Freitas Bastos, 1960, v. 6, 1ª Parte, p. 209. F. C. Tratado de Direito Privado. 3ª ed. São Paulo: RT, 1984, t. 38, p. 61). Perceber a qualidade
78 "Art. 488. Convencionada a venda sem fixação de preço ou de critérios para a sua determinação, eficacial constitutiva da sentença que determina a colmatação de uma lacuna é importante
se não houver tabelamento oficial, entende-se que as partes se sujeitaram ao preço corrente nas para fins de mora, pois esta só existirá depois que haja agregação da regra. Não pode ser a
vendas habituais do vendedor". "Art. 569. O locatário é obrigado:[... ] li- a pagar pontualmente parte obrigada retrospectivamente pelo que não compunha o conteúdo do contrato, e não
o aluguel nos prazos ajustados, e, em falta de ajuste, segundo o costume do lugar". "Art. 581. se pode, por isso, considerar a presença de inadimplemento e fazer derivaras efeitos da mora
Se o comodato não tiver prazo convencional, presumir-se-lhe-á o necessário para o uso senão depois que colmatada a lacuna e oportunizado o cumprimento, exceto se a uma das
concedido; não podendo o comodante, salvo necessidade imprevista e urgente, reconhecida partes incumbia fazer o suprimento dentro de determinado prazo avençado contratualmente,
pelo juiz, suspender o uso e gozo da coisa emprestada, antes de findo o prazo convencional, ou, quando ausente prazo específico mas presente a previsão de colmatação unilateral, foi
ou o que se determine pelo uso outorgado". "Art. 599. Não havendo prazo estipulado, nem se interpelada pela contraparte para tanto e não o fez. Nessas hipóteses, haverá mora a contar
podendo inferir da natureza do contrato, ou do costume do lugar, qualquer das partes, a seu da data em que a parte deveria ter procedido à colmatação seja por desrespeito ao prazo
arbítrio, mediante prévio aviso, pode resolver o contrato". contratual (mora ex re), seja por desatendido o prazo da interpelação (mora ex persona).
378 - COL'vlATAÇÃO DE LACUNAS CONTRATUAIS: INSUFICIÊNCIAS DO CóDIGO CiVJL, DEFICIÊNCIAS ..• GUILHERME CARNEIRO MONTEIRO NITSCHKE - 379

ga, e que aqui chamaremos de o "caso das caixas com banha" 81 • No caso, 581 e 599 do Código Civil). Tal não foi o "caso das caixas com banha",
discutia-se se a parte vendedora estava em mora para a entrega de 1.000 em que para a entrega do insumo nem as partes estipularam prazo, nem
caixas com banha, nada obstante não ter havido estipulação quanto ao as fontes heterônomas ditavam como se deveria entender a omissão dos
prazo dentro do qual a remessa deveria ser feita, haja vista, de outro lado, contratantes a esse respeito. Sem prazo, regra não havia que pudesse ser
o princípio proveniente do Digesto de que "[i]n omnibus obligationibus, descumprida e, assim, de mora não se poderia falar, como concluiu J. X.
in quibus dies non promitur proesenti die debentur" 82 • A parcela interes- Carvalho de Mendonça.
sante do caso está na consideração de que, presente lacuna de prazo no Esclarecido e exemplificado o que entendemos por "lacunas típi-
contrato de compra e venda, não se pode falar em mora do vendedor. O cas", passemos às situações em que, de um lado, as partes nada previram
parecerista é literal a esse respeito ao afumar: "Para que o vendedor A. para quando do surgimento de lacunas e, de outro, a lei não contém sal-
fosse obrigado a indemnizar os damnos da mora e cumprir o contracto vaguarda típica para o caso lacunoso que se apresenta.
(Cod. Com., art. 202) era indispensável que fosse estipulado prazo cer-
11.1.2. LACUNAS ATÍPICAS
to para a entrega da cousa vendida, e que dentro deste prazo não fosse
essa entrega realisada. Faltando tal estipulação, e não sendo da natureza Tem-se "lacuna atípica" quando a disciplina de sua colmatação é
do contracto entre as partes a entrega immediata de toda a cousa ven- dada pelas regras gerais de interpretação, destiladas das sutis coordena-
dida, como deixamos dito acima, não póde o fabricante vendedor estar das do Código Civil. Antes de advinda a LLE, essas indicações de fato
em móra, e conseguintemente, indemnisar o comprador pelos damnos eram tênues, extraídas do art. 113, que dita no seu caput-. "Os negócios
que allega ter soffrido com a alta do produto no mercado" 83 • jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do tráfi-
Qyer-se dizer: não poderia o julgador suprir a lacuna a posteriori co". Com a LLE, inseriu-se o §1° com um arsenal de incisos atécnicos,
com inserção de prazo para a entrega e dizê-lo retrospectivamente des- desordenados e incompletos, que mais desorganizam do que sistema-
cumprido, exceto se houvesse regra legal dispositiva dizendo que a au- tizam o processo interpretativo e a extração de coordenadas objetivas
sência de estipulação expressa deveria ser entendida enquanto contendo para a colmatação de lacunas. Em sendo a colmatação de lacunas um
determinada regra. Para essa derradeira hipótese, sequer lacuna have- processo da interpretação contratual, ao patamar de Pontes de Miranda
ria, pois uma das fontes heterônomas estaria ditando como o contrato bem chamá-la de "interpretação completativa" 84 , ela se insere na moldura
deve ser executado, rectius que regras deveriam as partes seguir em caso da disciplina da interpretação contratual, desdobrando-a e adaptando-
de específica omissão (a exemplo do que se vê nos arts. 488,569, inc. II, -a para a falta de específica parcela do conteúdo contratual que tem de
suprir. Para sua adequada compreensão e de modo a colocar "ordem na
81 CARVALHO DE MENDONÇA, J. X. Compra e venda mercantil, sem estipulação de praso para
entrega. Pareceres. Direita Commercial(coligidos por Achilles Bevilaqua e Roberto Carvalho de desordem'', releva passar, brevemente, pela premissa da disciplina, pelos
Mendonça). Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1936, v. 3, p. 45 e ss. critérios de colmatação e pela :final alusão a seu escalonamento.
82 CARVALHO DE MENDONÇA, J. X. Compra e venda mercantil, sem estipulação de praso para
entrega. Pareceres. Direito Commercial (coligidos por Achilles Bevilaqua e Roberto Carvalho A premissa é entender que, quando se supre uma lacuna, se está pre-
de Mendonça). Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1936, v. 3, p. 45. A tradução é aproximadamente
a seguinte: "Em todas as obrigações em que não houver estipulação de prazo, a prestação é enchendo o que nem a autonomia privada, nem as fontes heterônomas
devida imediatamente". Entendeu Carvalho de Mendonça que, apesar do princípio, "ficaram
as suas remessas dependentes, como ali se affirma, da capacidade productiva da fabrica e do conteúdo contratual (i.e. lei, costumes e boa-fé em sua funcionali-
forças do mercado. Tratava-se de mercadoria vendida pelo fabricante, e que ainda devia dade normativa) foram capazes de informar. Daí falar que o conteúdo
ser produzida ou fabricada e expedida por mar. Isso somente bastaria para demonstrar
que a entrega não podia ser imediata" (idem, pp. 45-46). E complementa: "Affirma ainda a do contrato não se compõe apenas de regras que as partes desenharam,
exposição preambular da consulta que, devido á grande falta de materia prima (a banha bruta), mas também de regras que, por incidência, se agregaram (i.e. se integra-
o fabricante viu-se obrigado a interromper as remessas desde Janeiro até Setembro do anno
passado. Esta circunstancia affasta a idéia de culpa por parte do vendedor. O vendedor, é ram) à disciplina geral da particular relação, sendo, por isso, o comple-
preciso _bem attender, era fabricante; a ma teria prima lhe faltou; não lhe foi possível executar
success1vamente o contracto de venda. Eis um caso de força maior, impedindo a entrega da xo de regras informado por um conjunto de fontes, em autorregulação
cousa vendida" (idem, p. 46).
CARVALHO DE MENDONÇA, J. X. Compra e venda mercantil, sem estipulação de praso para
entrega. Pareceres. Direito Commerciol(coligidos por Achilles Bevilaqua e Roberto Carvalho de 84 PONTES DE MIRANDA, F. C. Trotado de Direito Privado. 3ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, t. 3,
Mendonça). Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1936, v. 3, p. 46. p.342.
380 - CoLMATAÇÃO DE LACUNAS CONTRATUAIS: INSUFICIÊNCIAS DO CóDIGO CIVIL, DEFICIÊ~CIAS ••. GUILHERME CARNEIRO MONTEIRO NITSCHKE - 381

(fonte: declaração de vontade) e heterorregulação (fontes: lei, costumes cunas quando houver tipo social; as regras costumeiras incidem, integran-
e boa-fé) 85 . Formalmente, o conteúdo é o "conjunto das cláusulas nego- do O conteúdo 88 • Por isso, a boa-fé em sua funcionalidade normativa não
ciais" e das regras que se agregam por derivação de fontes heterônomas; é critério de colmatação de lacunas; ela incide, sobretudo in executivis89 ,
substancialmente, é a própria auto e hetero "regulação de interesses", no modificando, reduzindo ou ampliando a disciplina contratual concreta.
sentido de ser uma combinação de "elementos normativos" e "elemen- Se lei, costumes e boa-fé em funcionalidade normativa informam
tos voluntários"86 • regras (=elementos) do conteúdo contratual, não plasmando critérios
Por isso, a lei não é critério de colmatação de lacunas para contratos de colmatação de lacunas, e sim de integração da disciplina, quais são
legalmente típicos; a lei incide, cogente ou dispositivamente, integrando as coordenadas a serem observadas pelo aplicador quando diante de
o conteúdo 87 • Por isso, os costumes não são critério de colmatação de la- lacunosidades?
85 Esta é a definição partilhada porumasérie de autores, dentre eles: ASCENSÃO,José de Oliveira. Os critérios para colmatação de lacunas atípicas que se logrou cons-
Teoria Geral do Direito Civil. Volume Ili.Acções e Factos Jurídicos. Lisboa: [s.n.], 1992, p. 66, apesar
de não falar de regras, mas de preceitos; CATAUDELLA, Antonino. Sul Contenuto dei Contralto.
truir, a partir das coordenadas sutis do Código Civil (e que a LLE não
Milano: Giuffre, 1966, p. 18; FERREIRA DE ALMEIDA, Carlos. Contratos li. Conteúdo. Contratos de logrou modificar), são seis: práticas (ou "usos individuais"), usos do trá-
Troca. 4ª ed. Coimbra: Almedina, 2016, pp. 9-10; FLUME, Werner. E! Negócio Jurídico (trad.José
MaríaMiquel González e EstherGómez Calle).Madri: Fundación Cultural dei Notariato, 1998, p. fico, regras legais por analogia para contratos mistos, boa-fé objetiva em
110; GABRIELLI, Enrice. li contratto e il suo oggetto nel diritto italiano. Rivista Trimestraledi Dirilto funcionalidade hermenêutica, equidade quando autorizada pelas partes
e Procedura Civile. Milano: Giuffre, 2012, n 1, p. 41; GALGANO, Francesco. l/ Negozio Giuridico.
Milano: Giuffre, 1988, p. 103; TELLES, Inocêncio Galvão. Manual dos Contratos em Cerol. 4ª ed. em arbitragem e tecnicidade para a colmatação de lacunas extrajurídi-
Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 253; GERI, Una Bigliazzi. L'interpretazione dei contralto.
Arlt. 1362-1371. Milano: Giuffre, 2013, p. 196; IBARBIA, Francisco de Elizalde. E! Contenido dei cas. Não é a pretensão deste estudo examinar à minúcia cada um desses
Contrato. Navarra: Thomson ReutersAranzadi, 2015, pp. 37-38; MENEZES CORDEIRO, António. requisitos - como já fizemos de outra feita e a que, assim, remetemos 90
Tratado de Direito Civil. li. Parte Geral. Negócio Jurídico. Formação. Conteúdo e Interpretação.
Vícios da Vontade. lneficócias e Invalidades. 4ª ed. Coimbra: Almedina, 2017, p. 537; MIRANDA,
Custódio da Piedade Ubaldino. Interpretação e integração dos negócios jurídicos. São Paulo: RT, mistura indevidamente integração com interpretação, composição da disciplina contratual
1989, p. 78; ROPPO, Enzo. O Contrato (trad. Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes). Coimbra: com o suplemento de suas falhas, e não compreende que o conteúdo do contrato é maior que
Almedina, 1988, p. 126. Sobre o negócio jurídico como regra, tanto quanto trazendo um aporte apenas o expressado pelos contratantes, sendo formado, diversamente, por uma miríade de
crítico aos autores que a negam, mas também àqueles que veem no negócio fonte de direito regras que, por sua vez, vêm informadas por um rol de fontes dentre as quais figura a legislação
objetivo (crítica com a qual concordamos inteiramente), veja-se CASTRO Y BRAVO, Federico (cogente e dispositiva). Se o contrato contiver lacuna, isso significa que não houve norma legal
de. E! Negocio Jurídico. Madri: Instituto Nacional de EstudiosJuridicos, 1971, p. 31-33. cogente ou dispositiva a informar disciplina, ou que a disciplina que seria incidente deixou
86 MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de Direito Civil. li. Parte Geral. Negócio Jurídico. Formação. de ser recepcionada pelo conteúdo contratual, por incompatível com a intenção comum
Conteúdo e Interpretação. Vícios da Vontade. lneficócias e Invalidades. 4 ª ed. Coimbra: Almedina, das partes. Nesse sentido, doutrina que nos parece bem compreender o ponto é a seguinte:
2017, pp. 538-539, indicando que os primeiros correspondem ao derivado da heteronomia CAPOBIANCO, Ernesto. lntegrazione e correzione dei contratto: tra regale e principi. ln:
(sejam injuntivos, sejam supletivos) e os segundos, ao que vem da autonomia. VOLPE, Fabrizio (coord.). Correzione e lntegrazione dei Contralto. Torino: Zanichelli, 2016, p.
87 Ao contrário de parte da doutrina, e em crítica a esta, que compreende a lei como critério 2; CATAUDELLA, Antonino. Sul Contenuto dei Contralto. Milano: Giuffre, 1966, p. 18; FAGES,
de colmatação de lacunas. Entre nós, sustentando tal entendimento, de que discordamos: Bertrand. Droit des Obligations. 6ª ed. Paris: L.G.D.J., 2016, p. 229; FLUME, Werner. E! Negócio
FORGIONI, Paula A. Integração dos contratos empresariais: lacunas, atuação dos julgadores, Jurídico (trad. José Maria Miquel González e Esther Gómez Calle). Madri: Fundación Cultural
boa-fé e seus limites. Revisto de Arbitragem e Mediação. São Paulo: RT, 2015, v. 45, pp. 230-232; dei Notariato, 1998, pp. 390 e 716; GALGANO, Francesco. l/ Negozio Giuridico. Milano: Giuffre,
MIRANDA, Custódio da Piedade Ubaldino. Interpretação e Integração dos Negócios Jurídicos. 1988, p.55; IBARBIA, Francisco de Elizalde. E! Contenidodel Contrato. Navarra: Thomson Reuters
São Paulo: RT, 1989, p. 211-213, com o destaque de que este autor vê na lei a dupla função de Aranzadi, 2015, p. 38; RODOTÀ, Stefano. Lefonti di integrazione dei contralto. Milano: Giuffre,
colmatar lacunas e integrar o conteúdo negocial com regulamentação a mais; PENTEADO, 1970, pp.103-104. Entre nós: FRANCO, Vera Helena de Mello:Aspectosdaintegraçãodoscontratos
Luciano de Camargo. Integração de contratos incompletos. Tese de Livre Docência. Faculdade de no direito comercial. São Paulo: Pioneira, 1979, pp. 79-80; LOBO, Paulo. Direito Civil. Contratos.
Direito de Ribeirão Preto, 2013, pp. 208-210. No direito estrangeiro: CANA RIS, Claus-Wilhelm; São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 181-182.
GRIGOLEIT, Hans Christoph. lnterpretation ofcontracts. ln: HARTKAMP, ArthurS.; HESSELINK, 88 Para um mais alentado estudo sobre "práticas", "usos do tráfico" e "costumes", remetemos a
Martijn W.; HONDIUS, Ewoud H.; et alii (eds.). Towards a Europeon Civil Code. 4ª ed. Alphen NITSCHKE, Guilherme Carneiro Monteiro. Usos e costumes no direito contratual brasileiro (ou,
aan den Rijn: Kluwer Law lnternational, 2011, p. 612; LARENZ, Karl. Derecho Civil. Parte General sobre a precisão da doutrina face à imprecisão do legislador). ln: BENETTI, Giovana; CORRÊA,
(trad. Miguel lzquierdo y Macías-Picaea). Madri: Editorial Revista de Derecho Privado, 1978, André Rodrigues; FERNANDES, Márcia Santana; NITSCHKE, Guilherme Carneiro Monteiro;
pp. 750-751; chamando a atenção, porém, para o fato de a jurisprudência alemã compreender PARGENDLER, Mariana; VARELA, Laura Beck (Orgs.). Direito, Cultura, Método. Leituras da obra
que não há lacuna quando a lei supletiva atua, veja-se KORNET, Nicole. Contract lnterpretation de Judith Martins-Casto. Rio de Janeiro: GZ, 2019, p. 618 e ss.
and Gap Filling: compara tive and theoreticol perspectives. Oxford: lntersentia Antwerpen, 2006, 89 Assim destacam: D'ANGELO, Andrea. La buona fede ausiliaria dei programma contrattuale. ln:
pp. 109-110; MESSINEO, Francesco. Doctrina General dei Contrato (trad. R. O. Fontanarrosa, 5. D'ANGELO, Andrea; MONATERI, Pier Giuseppe; SOMMA, Alessandro. Buona Fede e Giustizia
Sentis Melendo e M. Volterra). Buenos Aires: EJEA, 1952, t. 2, pp. 122-123; ANDRADE, Manuel Contrattua!e. Modelli cooperativi e modelli conjliltuali a confronto. Torino: G. Giappichelli, 2005,
A. Domingues de. Teoria Geral da Relação Jurídico. Coimbra: Almedina, 1983, v. 2, p. 322; p. 17; FERREIRA DA SILVA,Jorge Cesa.A Boa-Fé ea Violação Positiva do Contrato. Rio de Janeiro:
FERREIRA DE ALMEIDA, Carlos. Contratos tv. Funções. Circunstâncias. Interpretação. Coimbra: Renovar, 2007, p. 96; SCOGNAMIGLIO, Claudio. lnterpretazione dei Contralto e lnteressi dei
Almedina, 2014, pp. 325-326; TELLES, Inocêncio Galvão. Manual dos Contratos em Geral. 4ª Contraenti. Padova: CEDAM, 1992, pp. 372-373.
ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 448; VASCONCELOS, Pedro Pais de. Teoria Geral do 90 NITSCHKE, Guilherme Carneiro Monteiro. Lacunas Contratuais e Interpretação. História, conceito
Direito Civil. 8ª ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 493. Labora em equívoco essa doutrina, pois e método. São Paulo: Quartier Latin, 2019, pp. 477-584.
GUILHERME CARNEIRO MONTEIRO NITSCHKE - 383
382 - COLMATAÇÃO DE LACUNAS CONTRATUAIS: INSUFICIÊNCIAS DO CóDIGO CIVIL, DEFICIÊNCIAS ..•

não incidem, seja porque não preenchido o suporte fático para sua inci-
-, bastando consolidar, contudo, alguns comentários gerais que situam 93
dência, seja porque barradas pela intenção comum das partes •
sua aplicação, orientando-a, e revelam sua aderência ao sistema de di-
reito privado, em especial ao Código Civil. Já as "regras legais por analogia para contratos mistos" tiram de sua
própria natureza a justificativa para atuação enquanto critério de col-
O primeiro comentário é no sentido de que a aplicação desses cri-
matação de lacunas, uma vez que, para contratos mistos, elas desenvol-
téri~s. haverá d~ variar a d~~ender do cont:ato em tela, i.e. se legalmen- vem função hermenêutica, informando, por analogia, o preenchimento
te tipico, se socialmente tipico ou se a raridade de um atípico tout cort.
que falta ao contrato misto. A analogia de per se, portanto, não é critério
Essa variação ocorre, fundamentalmente, por conta dos critérios "usos
de colmatação de lacunas: as regras legais que o são, por analogia, para
do tráfico" e "regras legais por analogia para contratos mistos", uma vez
contratos mistos. Ressaltemos, especialmente, que tal funcionalidade se
que ambos dependem de se poder qualificar o negócio in concreto sob
dá para o suprimento de lacunas, mas não para reconhecer como inte-
categoria contratual (um tipo, legal ou social), a que se conectam, assim, grado ao conteúdo de um contrato legalmente atípico regras referen-
certos usos ou certas regras legais por analogia. Qµando se tiver, por
tes a tipos legais. Qµeremos dizer que a disciplina de um contrato sem
exemplo, um contrato de built-to-suit, os usos do tráfico serão critério
tipicidade legal não pode ser tida como composta de regras legais típi-
de co~atação er:n decorrência do tipo social, e as regras dos tipos legais cas exceto quando as partes, expressamente, a elas fizerem alusão (como,
locaçao e empreitada serão, por analogia, critério de colmatação de la-
por exemplo, em um contrato de built to suit que contenha cláusula fa-
cunas em decorrência de se tratar de um contrato misto. Caso se tenha,
zendo remissão à aplicação subsidiária da Lei de Locações para o que
porém, contrato legalmente típico, como a locação comercial ou a em- não houver contradição). O contrário representaria admitir a inserção a
preitada para a construção de um prédio, as regras legais não funcionam
posteriori, por analogia, de uma disciplina retroativa a que as partes não
co:110 critério de colmatação de lacunas, pois elas já comporão O con- fizeram referência, de regras que simplesmente não incidem em sua nor-
teudo contratual, por incidência cogente ou dispositiva. Caso se trate,
mal eficácia94 •
~or fim, de um ~ontrato inqualificável (i.e. não reconduzível a qualquer
De sua vez, a "boa-fé objetiva em funcionalidade hermenêutica" é a
ti,P? legal ou social), não haverá espaço para se falar na aplicação de cri-
que se retira do art. 113, caput, e, mais recentemente - em redundância-,
tenos que pressupõem algum grau de tipificação, pois tipo não existirá.
do §1°, inc. III, sendo de destacar, para clareza, sua distinção da "função
O segundo comentário é de situar os critérios dentro da moldura
normativa" da boa-fé, destilada do art. 422, e que não atua para colmatar
do direito positivo.
lacunas, e sim para integrar o conteúdo contratual95 • Essa funcionalida-
Nesse sentido, "práticas" e "usos do tráfico" são dessumíveis do ca-
put do ar~. 113 e, mais recentemente, do §1°, inc. II, sendo que aquelas, 93 Para conceito, distinção e funções de "práticas", "usos do tráfico" e "costumes", remetemos a
Para um estudo sobre o tema, que abrange menção à doutrina de variadas épocas de nossa
em espe~ial, se co~struíram, em nosso sistema, primeiro por sugestão tradição, remetemos a NITSCHKE, Guilherme Carneiro Monteiro. Usos e costumes no direito
de doutrma consolidada em enunciado91 , depois pela internalização da contratual brasileiro (ou, s;:ibre a precisão da doutrina face à imprecisão do legislador). ln:
BENETTI, Giovana; CORREA, André Rodrigues; FERNANDES, Márcia Santana; NITSCHKE,
CISG ao direito brasileiro que acolhe a categoria em seu texto92 • A es- Guilherme Carneiro Monteiro; PARGENDLER, Mariana; VARELA, Laura Beck (Orgs.). Direito,
Cultura, Método. Leituras do obro de Judith Martins-Costa. Rio de Janeiro: GZ, 2019, p. 618 e ss.
pecial advertência está em não se ter os "costumes" como critério de col- 94 São nesse exato sentido as observações de ZANETTI, Cristiano de Sousa. Build to suit:
matação de lacunas, uma vez que fonte de regras consuetudinárias: ou qualificação e consequências. ln: BAPTISTA, Luiz O lavo (Org.). Construção Civil e Direito. São
Paulo: LexMagister, 2011, p. 118.
elas incidem, enriquecendo (=integrando) o conteúdo contratual; ou elas 95 A mistura entre as funções de preenchimento de lacunas e de integração de disciplina, presente
em boa parte de nossa doutrina, parece remontar ao direito italiano, que passou a reconhecer
que a integração funciona para uma e outra operações (e.g., mais recentemente, repetindo
91 Enunciado ~º,,409 da'!J_or~ad_a ?e Direito Civil, elaborado por Véra Maria Jacob de Fradera, essa percepção: D'ANGELO, Andrea. La buona fede ausiliaria dei programma contrattuale. ln:
de que sele: Os neg?c1os JUn~1:os devem ser interpretados conforme a boa-fé, 05 usos do D'ANGELO,Andrea; MONATERI, PierGiusseppe; SOMMA, Alessandro. Buona Fede e Ciustizia
lugar de sua celebraçao e as praticas estabelecidas entre as partes" (ln: AGUIAR JÚNIOR Ru Controttuale.MadeUicaaperotivie madeW conflittuali a confronto. Torino: G. Giappichelli, 2005,
Rosado d~ (Org.). VJornada de Direito Civil. Brasília: CFJ, 2012, p. 100). ' y p. 13; PIRAI NO, Fabrizio. L'integrazione dei contratto e il precetto di buona fede. ln: VOLPE,
92 Convençao de V1enasobre Compra e Venda Internacional de Mercadorias, internalizada pelo ~abrizio (coord.). Correzione e lntegrozione de{ Contralto. Torino: Zanichelli, 2016, pp. 175-243).
Decreto nº 8.~27, de 16 de outu~r? ?e20~4, e que trata das práticas sobretudo nos arts. 8( 3) Evisão desacertada, pois não há na integração colmatação de lacunas: o conteúdo integrado
e 9(1), respectivamente como cnteno de interpretação e fonte de disciplina jurídica para 05 pela boa-fé "já está lá" quando da interpretação, constituindo-se de modo consentâneo à
contratantes.
384 - COLMATAÇÃO DE LACUNAS CONTRATUAIS: INSUFICIÊNCIAS DO CóDIGO CIVIL, DEFICIÊNCIAS ..• GUILHERME CARNEIRO MONTEIRO NITSCHKE - 385

de hermenêutica da boa-fé também se pode extrair do que dita o inc. V Por outro lado, e indo-se adiante no abreviado exame dos critérios
do §1°, que, apesar de sua extrema atecnia - como acima já endereçado de colmatação em contraste ao direito positivo, a "equidade", via de re-
-, faz alusão a "qual seria a razoável negociação das partes sobre a ques- gra, não é critério de interpretação contratual e menos ainda de preen-
tão discutida", inferida da "racionalidade econômica" do negócio (e não chimento de lacunas, haja vista a restritiva letra do art. 140, Parágrafo
"das partes", ao contrário do que a littera, em equívoco, dita). A boa-fé Único, do Código de Processo Civil, que só permite o emprego da equi-
em funcionalidade hermenêutica endereça o intérprete à finalidade eco- dade quando a lei autorizar em específico 100 - o que, diga-se de passa-
nômico-social do negócio 96 , atuando, na colmatação de lacunas, à ex- gem, não é o caso do preenchimento de lacunas contratuais, sendo que
cepcional construção - e, por isso, em ultima ratio no escalonamento de a única hipótese possível dar-se-á quando escolhida consensual e ex-
critérios, como em frente veremos - do que seria a "intenção hipotéti- pressamente pelas partes para arbitragem, como permite o art. 2° da Lei
ca'' das partes, socorrendo-se de dois indicadores concretos a partir dos Federal 9.307/96 101 • Por fim, a "tecnicidade" atua como critério de su-
quais o intérprete haverá de trabalhar: o objeto e o fim negocial, pois, se plemento das chamadas "lacunas extrajurídicas", que, pela natureza da
neste último vem consolidado o escopo econômico-social do contrato, falta, invocam o trabalho de um expert (um perito ou um arbitrador),
no primeiro está plasmada a operação que se presta à realização desse sendo, assim, admissível por homologia às hipóteses de lacunas típicas
fim 97 • Tendo por suposto que o conteúdo é a disciplina de interesses que que remetem ao arbitramento.
coloca em marcha uma operação (=conjunto de prestações) 98 , esta con- Estabelecida a premissa e identificados os critérios para suplemen-
vergindo à realização de uma dada finalidade, a boa-fé auxilia na "cami- to de lacunas, particular atenção há de merecer o método, enucleado que
nhada de volta", permitindo que do fim e da operação se consiga extrair é no postulado normativo da intenção comum das partes.
a parcela do conteúdo que está faltando 99 •
11.2. ORGANIZANDO o MÉTODO: A INTENÇÃO COMUM DAS PARTES
Tanto o escalonamento dos critérios de completamento de lacunas
formação do contrato ou agregando-se in executivis, por decorrência da conduta das partes e quanto a própria filtragem da partícula por eles sugerida, para fins do
das vicissitudes de sua execução.
96 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado: critérios poro o suo oplicoção. São Paulo: adequado enquadramento à moldura do contrato, são procedidos pela
Marcial Pons, 2015, p. 507 ("[ ...] direcionar o intérprete, na avaliação do contrato (considerados
o texto contratual e conduta contratual), ao sentido contextualmente mais coerente com a
intenção comum das partes, que, no direito brasileiro, funciona corno
utilidade que seria possível esperar daquele contrato particularmente considerado, em vista de postulado normativo de toda interpretação contratual, alçada enquan-
sua finalidade econômico-social"). O atrelamento entre boa-fé e finalidade econômico-social
do negócio vem reconhecido também por doutrina estrangeira: MENEZES CORDEIRO,António. to tal pelo art. 112 do Código Civil. Dizer que a intenção comum das
Trotado de Direito Civil. li. Porte Cerol. Negócio Jurídico. Formação. Conteúdo e Interpretação. Vícios partes é postulado normativo significa, a um, sustentar que ela é crité-
do Vontode. lneficáciose Invalidades. 4° ed. Coimbra: Almedina, 2017, p. 777; SCOGNAMIGLIO,
Claudio. lnterpretozione dei Contralto e lnteressi dei Controenti. Padova: CEDAM, 1992, p. 377; rio de aplicação de outras normas e "diretriz metódica'' que conduz o
e mesmo entre aqueles que aproximam direito e economia, e.g. GRANIERI, Massimiliano. li
Tempo e il Contralto. ltinerorio storico-comporotivo sui controtti di duroto. Milano: Giuffre, 2007, aplicador na interpretação dessas outras normas 102 ; e a dois, plasmar a
p. 182.
97 Assim é a lição de LUCAS-PUGET, Anne-Sophie. Essoi surto Notion d'Objetdu Controt. Paris: LGDJ, 100 "O juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei". O dispositivo repete o anterior
2005, pp.381-382, uma vez que, conforme outro autor que estuda o tema, o objeto do negócio, Código, art. 127. Há explicação genética para tanto, uma vez que foi objeto de debate entre
apesar de elemento estranho do conteúdo, nele entra por meio da "representação descritiva Clóvis do Couto e Civil e José Carlos Moreira Alves a possibilidade de sefazerinserirdispositivo,
e individualizante" de seus caracteres, queremos dizer: o conteudo descreve e disciplino a sugerido pelo jurista gaúcho, que diria, quase que em tradução do antigo art. 1.135 do Code
operação que as partes querem colocar em prática para a realização de um determinado fim Civil (hoje, depois da reforma de 2016, art. 1.194, com texto quase inalterado) e do art. 1.374
(GABRIELLI, Enrico.11 contratto e il suo oggetto nel diritto italiano. Rivisto Trimestra/e di Dirilto do Codice Civile: "O negócio jurídico não produz apenas os efeitos expressos, mas também
e Proceduro Civile. Milano: Giuffre, 2012, n. 1, p. 41). os resultantes da equidade, dos usos e costumes, tomando-se em consideração a finalidade
98 Recorde-se a fundamental distinção entre "conteúdo" (=disciplina) e "objeto" (=operação, da manifestação de vontade". Moreira Alves, contudo, rejeitou a sugestão por compreender
consistente no conjunto de prestações), tratada em NITSCHKE, Guilherme Carneiro Monteiro. que ela estaria em descompasso com o art. 108 do Anteprojeto, depois consolidado como art.
Lacunas Contratuais e Interpretação. História, conceito e método. São Paulo: Quartier Latin, 2019, 112, porpermitirao aplicador"iralém da intenção das partes" (MOREIRAALVES,José Carlos.A
pp. 212-293. Porte Cerol de Código Civil brasileiro, com análise do texto aprovado pelo Câmara dos Deputados.
99 Há muito destacava Pontes de Miranda ao tratar da interpretação contratual: "o fim objetivo São Paulo: Saraiva, 1986, pp. 43-44). Em sendo a intenção comum o postulado normativo da
ilumina pontos sôbre os quais os figurantes não dirigiram a sua lanterna", fazendo "aparecer interpretação contratual, evitou-se o desajuste sistemático que a proposta geraria.
como se tivessem sido previstas soluções de problemas que se tinham de resolver conforme 101 "A arbitragem poderá ser de direito ou de equidade, a critério das partes".
o sentido mesmo do negócio jurídico" (PONTES DE MIRANDA, F. C. Trotado de Direito Privado. 102 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: do definição à oplicoção dos princípios jurídicos. 13ª
3ª ed. São Paulo: RT, 1984, t. 38, p. 71). ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 143; no campo contratual, SILVA, Luis Renato Ferreira da.
386 - COLMATAÇÃO DE LACUNAS CONTRATUAIS: INSUFICIÊNCIAS DO CóDIGO CIVIL, DEFICIÊNCIAS ..• GUILHERME CARNEIRO MONTEIRO NITSCHKE - 387

finalidade da exegese contratual, uma vez que a interpretação tem por - por u m terceir·o é ativada quando de um conflito de opiniões (e,
taçao
objetivo desnudar o sentido do contrato, que é justamente a intenção to de interesses), o postulado da intenção comum das partes tem
comum das partes 103 • portan ' " d .
· t mente por função colocar o intérprete em um ponto e vista que
JUS a "105
Dito de outro modo, enquanto diretriz metódica, a intenção comum esteja por cima do interesse de cada uma das partes . , _
das partes submete e faz convergir os critérios de interpretação: "litera- Disso deriva não existir hierarquia entre os arts. 112 e 113 do Codigo
lidade", "contexto verbal", "contexto situacional" e "fim do contrato" são Civil no sentido de, em primeira fase, perquirir-se a intenção comum
acessados para fins de seu desvelamento, do mesmo modo que, quando das partes e, em fase sucessiva, acessare~-se a boa-~é e os usos do lugar.
da colmatação de lacunas, são esses os critérios que, em fase final, filtra-
D ai, nao
- se poder sustentar, como de diversa maneira se encontra nou-

rão a regra sugerida para o fito de verificar se a sugestão está ou não de tros sistemas jurídicos, haver entre nós um escalonamento entre mter-
acordo com a intenção comum (o que determinará a agregação ou a re- pretação subjetiva" e "interpretação objetiva". . . . .
jeição do que foi informado pelos critérios acessados). Já enquanto fi- Antes de tudo, porque não há de se falar em subjetivismo na m-
nalidade da exegese contratual, procura-se descobrir "a intenção comum tenção comum das partes caso se a compr~enda como d~v: s~r compre-
que os animou [os contratantes] e que, por inadvertência, inadequada endida: uma intenção de conteúdo, uma mtenção de disciplina, que se
compreensão das próprias expressões ou por outro motivo, ficou expres- volta ao regulamento a ser observado pelas partes e que se expressa nes~
sa de modo a não refletir com rigor aquela intenção" 104 • Se a interpre- se regulamento 1º6 • Não é uma intenção subjeti::a, mas ~ntersubj:ti~a ~
1 1

Autonomia privada e usos negociais empresariais. Cadernos IEC n. 6. Conversa sobre Autonomia e, por isso, objetivada no conteúdo contratual. E o sentido da d~s~ipli-
Privada. Canela: [s.n.], 2015, p. 32. na contratual criada em co-autoria, isto é, pelas partes no exerc1c10 de
103 BETTI, Emílio. !nterpretazione della Legge e degli Alti Giuridici (Teoria Generale e Dogmatica). 2ª
ed. Milano: Giuffre, 1971, p. 393-394; CANARIS, Claus-Wilhelm; GRIGOLEIT, Hans Christoph. sua autonomia privada e pelas fontes contratuais_ heterôn~mas. A inte~ -
lnterpretation of contracts. ln: HARTKAMP, Arthur S.; HESSELINK, Martijn W.; HONDIUS,
Ewoud H.; et alii (eds.). Towards a European CM! Code. 4 ª ed. Alphen aan den Rijn: Kluwer Law ção, por contida no conteúdo, é objetiva: o que importa e o que se qms
lnternational, 2011, p.590; FLUME, Werner. E! Negócio jurídico (trad.José María Miquel González enquanto declarado, isto é, como "manifestação _de vo~tade, no que ~la
e EstherGómez Calle). Madri: Fundación Cultural dei Notariato, 1998, p. 370; GENTILI, Aurelio.
Senso e Consenso. Storia, teoria e tecnica dell'interpretazione dei cantralti. Torino: Giappichelli, revela da vontade verdadeira do manifestante. E preCiso que o querido
2015, v. 1, pp. 322-323; IRTI, Natalino.Principie problemi di interpretazione contrattuale. ln:
IRTI, Natalino (org.). L' interpretazione dei contralto nella doltrina italiana. Padova: CEDAM, 2000, Milano: Giuffre, 2003 , p. 1 e ss.; SCOGNAMIGLIO, Claudio. lnterp~e_tazione dei ~ontralto e_
p. 609 e ss.; MESSINEO, Francesco. Doctrina General dei Contrato (trad. R. O. Fontanarrosa; S. fnteressi dei Contraenti. Milano: CEDAM, 1992, p. 309; VIGLIONE, F1hppo. Me_tad, e Mo~el/1
Sentís Melendo; M. Volterra). Buenos Aires: EJEA, 1952, t. 1, pp. 97-98; PENNASILICO, Mauro. di /nterpretazione dei Contralto. Prospettive di un dialogo tra comm~n l~w ~ cwt! !m~- To_nno:
Contralto e lnterpretazione. Lineamenti di ermeneutica cantraltuale. 2ª ed. Torino: Giappichelli, · h e 11·1, 2011 , p • 14 · Não há que se descurar' porém, que a doutnna
G.1app1c · ditaliana
,,. nao- e urnvoca"
2015, p. 5; RODOTÀ, Stefano. Lefontidiintegrazionedelcantralto. Milano: Giuffre, 1970, p. 87 e ss.; a respeito, visto que o cedo movimento de objetivação do conceito _e inte~çao comui:'.1
SCALISI, Antonino. La Comune lntenzionedei Contraenti. Dall'interpretazione letterale dei contralto levou parte da doutrina mais recente até mesmo a enjeitá-la como objeto da int~rpreta~ao
all'interpretazione secando buonafede. Milano: Giuffre, 2003, p. 1 e ss.; SCOGNAMIGLIO, contratual, seja por torná-la função ou mero elemen'.o estrutur~l do contr~to, seia por ve-la
Claudio. lnterpretazione dei Contralto e lnteressi dei Contraenti. Milano: CEDAM, 1992, p. 309; como prescindível, sobrelevando-se a boa-fé a prec1p~a lent~ interpretativa?º contrato. A
VIGLIONE, Filippo.Metodi eModelli di /nterpretazione dei Contralto. Prospeltive di un dialogo tra jurisprudência italiana, contudo, e à diferença da doutrina mais recente, mantem-se atrelada
common law e civil law. Torino: Giappichelli, 2011, p. 14. Entre nós, são literais a esse respeito: ao conceito de intenção comum como finalidade da hermenêutica contratual. Uma suma de
MIRANDA, Custódio da Piedade Ubaldino. Interpretação e Integração nos Negócios jurídicos. todos os posicionamentos, fluxos e contra fluxos, está em GENTl~I, Au~elio. Senso e Consenso.
São Paulo: RT, 1989, p. 185; e RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil. 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, Storia, teoria e tecnica dell'interpretazione dei contratti. Torino: Giapp1chellr, 2015, v. 2, ~P- 417-4 25-
v.3, p.47. MESSINEO, Francesco. Doctrina General dei Contrato (trad. R. O. Fonta,~arrosa; ~- Sentis '.""elen??;
105
104 MIRANDA, Custódio da Piedade Ubaldino. Interpretação e Integração nos Negócios jurídicos. M. Volterra). Buenos Aires: EJEA, 1952, t. 1, p. 102. E complementa: ~~r ~ed10 de la_intenc1on
São Paulo: RT, 1989, p. 185. Elogo em frente, ao analisar o art. 85 do Código Civil de 1916, dele común se debe poder establecertambién cual es la medida dei sacr~f1c10 y, resp~:=uvam;~te,
depurando o mesmo postulado a que aqui fazemos menção: "A idéia de que nos contratos de Ia ventaja de cada parte (si el contrato es oneroso) o cuál es la med1d~ de sacnf1c10 dei urnco
a interpretação deve dirigir-se à pesquisa da intenção comum, resulta também da própria obligado y de Ia ventaja dei único beneficiado (si el contrato es gratuito): en una palabra, la
formulação do art. 85 quando se refere à intenção das declarações de vontade para o efeito medida de cada una de las prestaciones" (idem ibidem). __
de lhe dar prevalência sobre a forma que a exprime" (idem ibidem). Também RODRIGUES, Assim ESPÍNOLA, Eduardo. Manual do Codigo Civil Brasileiro. Parte Geral. Dos Fac,:os__Jund,cos.
106
Sílvio. Direito Civil. 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, v. 3, p. 47. A título comparativo, o mesmo Arts. 14 a 173 _2ª ed. Rio de Janeiro: Jaci~tho R!bei~o ?ºs Santos, 1929, v. 3, p. 178 ( ~a~ se trata
entende a doutrina italiana para os arts. 1.362 a 1.366 do Codice Civile, como se pode ver dos mais, em materia de acto privado, duma invest1gaçao integral da vont~de psycholog1ca, :rata-s~
seguintes autores: BETTI, Emilio. lnterpretazione della Legge edegliAtti Giuridici (Teoria Generale de estabelecer a vontade jurídica, isto é, a que o autor da declaraçao creou para servir ~e I_e1
e Dogmatica).2ª ed. Milano: Giuffre, 1971, pp. 393-394; MESSINEO, Francesco. Doctrina General entre os seus cointeressados e elle"). Também PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de Direito
dei Contrato (trad. R. O. Fontanarrosa; S. Sentís M_elendo; M. Volterra). Buenos Aires: EJEA, 1952, Privado. 4ª ed. São Paulo: RT, 1983, t. 3, p. 334· . .
t. 1, pp. 97-98; PENNASILICO, Mauro. Contralto e lnterpretazione. Lineamenti di ermeneutica "Ogni regala ha le sue ragioni. Ma le regale contrattuali esprimono un part~colare_assetto_d1
107
contrattuale. 2ª ed. Torino: Giappichelli, 2015, p. 5; SCALISI, Antonino. La Comune lntenzione ragioni: un asselto intersoggett~vo" (~ENTI_LI, A:ureli~- Senso e Cons~nso. Stona, teona e tecntca
dei Contraenti. Dall'interpretazione lelterale dei contralta all'interpretazione secando buonafede. dell'interpretazione dei contrattt. Torino: G1app1chelh, 2015, v. 1, p. 3-1).
GUILHERl\,IE CARNEIRO MONTEIRO NITSCHKE - 389
388 - COLMATAÇÃO DE LACUNAS CONTRATUAIS: INSUFICIÊNCIAS DO CóOIGO CIVIL, DEFICI_ÊNCIAS •••

esteja na manifestação; o que não foi manifestado não entra no mun- regras cogentes. A principal delas é a do art. 112 (e, assim, a intenção
do jurídico" 108 • Isso faz com que a interpretação do contrato busque não comum das partes enquanto postulado normativo), mas também os arts.
112
a vontade dos contratantes, mas o "programa dos comportamentos" es- 423 e 424, quando se estiver interpretando contrato por adesão • Ler
tabelecido pelas partes a partir do que "disseram, escreveram ou fize- 0
§2º como se tornasse dispositivas, de uma tacada, todas as regras de
ram'', como bem destaca um jurista italiano ao analisar dispositivos do interpretação (tal como queria o redator da MP para as regras cogentes,
Godice Civile assemelhados ao nosso diploma109 • "Interpretamos decla- de integração de conteúdo contratual, no felizmente abandonado art.
rações que exprimem regras" 110 • Deve-se averiguar a vontade real, mas 30 inc. VIII) seria fazer ruir a disciplina inteira, e promover proteção a
com "inexorável limite no texto da própria declaração, onde aquela von- u~a hiperbólica "liberdade" - pregada pelos arautos da ideologia sub-
tade terá de encontrar um mínimo de expressão" 111 , e do que as fontes jacente à LLE - que, no excesso, não é liberdade: é arbítrio, em sacrifí-
heterônomas a ela somam. -cio ao valor "igualdade".
Em acréscimo, não há escalonamento entre subjetivismo e objeti- Na colmatação de lacunas, a enucleação do processo hermenêutico
vismo porque os arts. 112 e 113 fazem alusão a diferentes critérios de na intenção comum das partes não leva a que o aplicador extraia uma
interpretação negocial isto é, de interpretação do conteúdo contratu- intenção que não foi exposta, uma vez que, em havendo lacuna, há falta
al-, sendo o primeiro à literalidade (além de trazer o postulado da in- de conteúdo; e como a intenção comum das partes é uma intenção de
tenção comum das partes), e o segundo à boa-fé e aos usos do lugar. conteúdo, não há que se falar, na colmatação de lacunas, em extração de
Literalidade, boa-fé e usos e costumes são critérios que servem para o específico significado. O postulado normativo, contudo, não c~de à cri~-
desvelamento da intenção comum das partes, sendo incorreto susten- tividade do aplicador quando diante da falta de regra: ele o onenta, pri-
tar que a busca pela intenção plasma primeira fase do processo ao passo meiro escalonando os critérios de suprimento que deverá levar em conta,
que o acesso à boa-fé e aos usos e costumes constitui a segunda etapa. depois promovendo a :filtragem da regra de modo a avaliar se compatí-
Do contrário, admitir-se-ia interpretação à revelia da intenção comum vel com o todo em que inserto.
das partes, o que significaria, noutras palavras, atribuir significado, e não Expliquemos melhor.
extraí-lo do conteúdo que se apresenta como objeto do exame; signifi- A intenção comum das partes tem dupla atuação, uma para cada
caria, enfim, admitir que os critérios possam contrariar o postulado, na fase da interpretação completativa. Na primeira fase a que chamamos
conclusão que deles se extraísse. Daí a atecnia acima já apontada no ca- de "juízo positivo"-, ela organiza e faz convergir todos os critérios que
put do §1° do art. 113, quando dita que a interpretação do negócio "deve acima abordamos, escalonando-os de modo a impor ao intérprete que
lhe atribuir" sentido, devendo tal ser lido como "extração de sentido". principie por empregar os que presumidamente mais próximos da dis-
Disso deriva, por fim, a cogência do art. 112, quando define a in- ciplina concreta do contrato, seguindo aos que paulatinamente forem
tenção comum das partes como postulado normativo do processo her- mais distantes 113 • Lembremos que, para esse pretendido escalonamento,
menêutico no direito brasileiro. E sob essa luz que o novo §2° deve ser estamos a considerar as práticas, os usos do tráfico, a legislação por ana-
lido: as partes dispõem de liberdade para definir os critérios de interpre-
tação e colmatação de lacunas, desde que dentro da moldura dada pelas 112 Sobre isso, as argutas observações de VIEIRA, Vit?r~ilveira. Liberdad~ contr~t~al, in_te_rp_re~a~ão,
integração e colmatação de lacunas-escopo e limites do art. 113, §2 do Cod1go Civil (medito).
113 Registre-se, de qualquer modo, que o escalonamento de critérios é variável de acor~o ~o_m o
108 PONTES DE MI_RANDA, F. C. Tratado de Direito Privado. 4ª ed. São Paulo: RT, 1983, t. 3, p. 334. ordenamento jurídico em que se o tenta desenvolver, de acordo c_om o que a~ fontes Ju!1d1cas
SCALISI, Antonino. La Camune lntenzionedei Contraenti. Dal/'interpretaziane /ettera/ede/ contralto locais consolidam. Tanto é assim que, por exemplo, Carlos Ferreira de Almeida propoe uma
109
a//'interpretaziane secando buonafede. Milano: Giuffre, 2003, p. 11. escala dentro das estritas coordenadas do direito positivo português, valendo a menção,
110 GENTIL!, Aurelio. Senso ·e Consenso. Storia, teoria e tecnica de//'interpretazione dei contratti. apenas para fins comparativos:"[... ] os critérios de integração dos contrato~ ordenam-~e co~o
Torino: Giappichelli, 2015, v. 1, p. 310. Daí ensinar Pontes de Miranda que "[a] interpretação segue: 1º Normas legais imperativ~s; 2° Ne~ociação entre as part~s; 3º E1~!dade (na;: s1tua~~es
tem porobjeto mostrara conteúdo do que foi bilateralmente acordado, com o significado das previstas na lei); 4º Normas legais suplet_1as e/?u usos ~o~mat~v?s; 5 Vonta_de (?ec1sao)
manifestações de vontade e da conduta dos figurantes" (PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratada hipotética das partes; 6º Ditames da boa fe (se a vontade h1potet1ca os ~ontranar). Fie~ claro
de Direito Privado. 3ª ed. São Paulo: RT, 1984, t. 38; p. 78). que, em minha opinião, só é possível passar de um patamar para o segumt:, se? anter'.or _for
111 fv:IRANDA, Custódio da Piedade Ubaldino. lnterpretaçãa e Integração nos Negócios Jurídicos. inservível ou inaplicável" (FERREIRA DE ALMEIDA, Carlos. Contratos IV. Funçoes. Circunstanoas.
Sao Paulo: RT, 1989, p. 177. Interpretação. Coimbra: Almedina, 2014, p. 332).
390 - CoLMATAÇÃO DE LACUNAS CONTRATUAIS: INSUFICIÊNCIAS DO CóDJGO Civil, DEFICI_ÊNCIAS •.•
GUILHERME ÚRNEIRO MONTEIRO N!TSCHKE - 391

logia em contratos mistos, a boa-fé, a equidade e a tecnicidade. A orga- contrariá-la, pelo que só pode ser manejad~ se to~as as fontes forem si-
nização desses critérios que vem promovida pelo postulado normativo lentes e se todos os demais critérios forem msu~c1entes para a colmata~
faz prioritários aqueles que potencialmente mais próximos da intenção - Aqueles que deseJ· am sobrepor critérios mais soltos - como a boa-fe
çao. "[ ]
comum das partes, isso a significar uma escalada que vai da concretu- _ ue de feição mais objetiva violam norma expressa: u ma regra
aos q r 1 . , hº , .
de à abstração. Q},ieremos dizer: terão prioridade os critérios que, pre- t e presumivelmente coerente é pre1eríve a um JUlZO 1potet1co, que
cer a . . d d "115
suntivamente, se situarem mais próximos do contrato in concreto e que, inclui sempre um condimento de arb1trar1e a e .
também em presunção, possibilitarão ao intérprete agregar regra mais Na segunda fase - por nós denominada de "juízo negativo"-, o
aderente ao conteúdo total do negócio.
postul ado normativo da intenção comum das partes atua no . enquadra-
.
Tal resulta, a um, em ter genericamente a seguinte escala, e que há nto da regra sugerida pelo critério de que se a consegum extrair, no
me . - " bal"
de variar a depender da tipicidade do contrato inconcreto: "práticas", "usos sentido de verificar se não apresenta contrad1çao ao contexto ver ,
116
do tráfico", "lei por analogia" e "boa-fé". De modo avulso, há "equidade" e "contexto situacional" e ao fim do negócio jurídico • Para clareza,
ao b. d.
"tecnicidade", que só operam nas situações excepcionais em que por elas or "contexto verbal" queremos aludir aos elementos ver ais o mstru-
se tiver optado. E a dois, tal resulta em não ler a sequência de critérios pmento contratual (cláusulas d o texto, seus "cons1ºderand os ", ~eus anexos,
do §1° do art. 113 enquanto escalonamento, seja por conta da atecnica etc.) e os eventuais contratos que estejam coligados ao negócio lacunoso,
do dispositivo (que sequer quanto à interpretação tout court aproveitou pois jamais a regra inserida pode estar em contradição ao que as partes
o ensejo da reforma para ordenar critérios, conforme escala consagrada convencionaram expressamente117; e por "contexto situacional", d~ seu
pela tradição), seja por se tratar de lista que não endereça, expressamen- turno, queremos aludir às circunstâncias n~gociais, tend~ as segumtes
te, à colmatação de lacunas, devendo o exercício, assim, ser de constru- como principais: tempo e lugar da celebraçao e da execuçao do contra-
ção do modelo a partir das coordenadas desordenadas da lei. to, qualidades dos contratantes envolvidos e da coisa que eventu~en-
Comentário particular, nessa primeira fase de escalonamento, mere- te é objeto da prestação, relação pessoal dos contratantes, boa-fe, usos
ce a boa-fé, uma vez que é a ultima ratio, em qualquer hipótese de supri- e costumes, e comportamento das partes antes ou depois da celebração
mento de lacuna, porque, ainda que trabalhe a partir do fim do negócio do contrato118 • É em contraste a esses dois conjuntos de critérios, mais
e de seu objeto, ela é o único critério que imporá atividade construtiva fim do negócio jurídico, que se analisa a compatibilidade da reg~a _que
do intérprete, isto é: a manufatura de regra a partir da matéria-prima se pretende inserir, em colmatação à lacuna. Em caso de contrad1çao, a
fornecida pelo fim e pelo objeto que não cogitada pelas partes e que não
informada pelas fontes do conteúdo total do contrato 114 • Na colmata- FERREIRA DE ALMEIDA, Carlos. Contratos IV. Funções. Circunstâncias. Interpretação. Coimbra:
115
ção pelas práticas, apanha-se regra já existente em contratações ante- Almedina, 2014, PP· 330-331. . , . . . ~º •
116 Mesmo O emprego da equidade como cnteno, escolhido em co_nform1_dade a_o art. - da Lei
riores para suprir a lacuna que se apresenta; na colmatação pelos usos de Arbitragem, não poderá se desgarrar do postulado n?r:natt~o. da m_tençao comum das
do tráfico, apanha-se prática coletivizada já existente e transforma-se-a partes, que é cogente conforme extrai-se do ar~. 112 do Cod1go C1v1l. ln~1~ando que, m~smo
com O emprego da equidade, o árbitro está restnto pelas regras substanc1a1s _cogentes, ~eJa-se
em regra contratual; na colmatação de lacunas em contratos mistos por CARMONA, Carlos Alberto. Julgamento por equidade em arbitragem. Rev'.sta de Arb1tr_~ge':'
e Mediação. São Paulo: RT, 2011, v. 30, pp. ~4;i-244. Tal é _res~,altado, tambem, na amb1e_nc1a
utilização analógica da legislação, a regra legal já existe, sendo apanha- francesa, para apanhar-se um exemplo de d1re1to estrangeiro: ?_podermodera_dordeamwble
da e modulada pela atuação do aplicador. Na atuação da boa-fé, contu- compositeur não pode contudo ir tão longe ao ponto _de ~od1f1car a_economia do ~ontra~o,
substituindo obrigações contratuais por novas obngaçoes que nao atendem a mtençao
do, não há regra anterior que se extraia e se modele, e sim regra que se comum das partes" (SERAGLINI, Christophe; ORTSCHEIDT,Jérôme.Droitde l'Arbitroge Interne
cria; regra que se constroi a partir das coordenadas concretas do contra- et lnternational. Paris: Montchrestien, 2013, PP· 795-798). . , .
LARENZ, Karl. Derecha Civil. Parte General (trad. Miguel lzqu1erdo y Mac~as-P1caea). Madn.
..
117
to, em considerando seu fim e seu objeto. É, por isso, a atuação que mais Editorial Revista de Derecho Privado, 1978, pp. 745-746. No mesmo sentido, MOTA Pl~T?,
Carlos Alberto da; MONTEIRO, António Pinto; MOTA PINTO, António. Teoria Geral do D1re1to
se distancia da intenção comum das partes e que mais porta o risco de Civil. 4ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2~05, P· ~~7- . _ . . . . . a _

118 JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antônio. Negocio}und1co. Ex1stenoa, V~/,dadee Eficocw. 4 e~. S~o
114 O mesmo é proposto por FERREIRA DEALMEIDA;Carlos. Contratos IV. Funções. Circunstâncias. Paulo: Saraiva, 2 002, pp. 118-125; KIRCHNER, Felipe. lnterpretaçao Contratual: hermeneullca
Interpretação. Coimbra: Almedina, 2014, pp. 330-331, ao proceder à hermenêutica do art. 239º e concreção. Curitiba: Juruá, 2016, pp. 228-233'. MARINO, Francisco Paulo De Crescenzo.
do Código Civil português. Interpretação do Negócio Jurídico. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 116.
392 - COI..MATAÇÃO DE LACUNAS CONTRATUAIS: INSUFICIÊNCIAS DO CóDJGO CIVIL, DEFICI_ÊNCIAS ••• GUILHERME CARNEIRO MONTEIRO NJTSCHKE - 393

entrada da regra na moldura contratual restará barrada. Não havendo, Nada obstante as críticas que se possam hoje dirigir a um e outro
contudo, pode-se dar por finalizada a colmatação da lacuna. autor - e, no caso de Gadamer, também, e principalmente, a alguns de
É só com o emprego do método (aqui em parte sumarizado, em seus intérpretes 123 -, o alerta do :filósofo alemão, no geral, serve, no espe-
parte sugerido) que o aplicador consegue encontrar o caminho de saída cífico, para a interpretação contratual. Só com método se conhecem os
para os labirintos da insuficiência e da deficiência da matéria no direi- astros; só com método se bem interpreta um contrato e se suprem suas
to positivo brasileiro. Digamos, porém, uma última palavra sobre méto- lacunas; só com método é que se respeita a intenção comum das partes,
do, a título conclusivo. que é O postulado normativo - o vetor de orientação - de to~a interpre-
tação contratual. Esse método é o que se acha (ou se devena achar, ao
CONCLUSÕES
menos com mais frequência) no trabalho de doutrina quando propõe
Conta Platão, em Theaetetus, que Tales de Mileto, ao observar as "modelos jurídicos" ao aplicador, quando desencava os fósseis dos câno-
estrelas com os olhos :fitados no céu, descuidou de seus próprios pas- nes e critérios hermenêuticos, e os trabalha e retrabalha - pois, como es-
sos e findou por cair em um buraco, provocando o riso de uma ser- creveu Judith Martins-Costa sobre tema assemelhado, "(o vintage pode
, · 119 . E ssa conh ec1·da ane d ota costuma ser mvoca
va tr acia . d a para certa ser moderno!)-, a receita é a da terapêutica civilista clássica, combinan-
zombaria dos :filósofos que não atentam à chã realidade. Hans-Georg do a sabedoria da experiência com o olhar à realidade" 124.
Gadamer, porém, revisitou-a para recontá-la. Primeiro em uma pales- O método que procuramos sumarizar - a partir da tradição, tanto
tra no Boston College 120, depois em aula gravada sobre a história da fi- quanto das coordenadas sutis do Código Civil e desordenadas da LLE
losofia121, Gadamer sustentou que Tales não caiu em um buraco: nele -, e que dá conta das situações de lacunosidade contratual pode serre-
entrou por premeditada vontade, pois, mirando lá de seu fundo, conse- sumido aqui, a título conclusivo, em quatro níveis de atuação do intér-
guiria utilizar as bordas de suas paredes para detectar o movimento dos prete, quando chamado a colmatar suposta lacuna:
astros, anotar suas trajetórias, racionalizar o que observava. Gadamer
alertava, com essa reinterpretada alegoria, que só se conhece com critérios
Paulo Giachini). 6ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2011, p. 449 e ss., dentre outros textos publicados
racionais, só se bem inte1preta com método - o que é lição deveras signi- de parte a parte.
ficativa, em se tratando de filósofo a quem, usualmente, se dirige a crí- 123 E que propõem uma indevida "metodologização para o direito" ~e sua "ontologia do
compreender", como foi o caso deJosefEsser(ESSER,Josef. Precomprens1onee sce/tadel metada
tica de desvalorizar a importância da metodologia; e em sendo aquele nel processo di individuazione dei diritto. Fond?menti di i:ozi?~olità n~lla r:rassi dec!sionale dei
com quem Emilio Betti, um dos juristas que mais paradigmaticamen- giudice (trad. Salvatore Patti; Gioseppe Zaccana). Napoh: Ed1_z1one Scient1fiche lt_ah~ne'. 1~83);
um alargamento teórico que beira muitas vezes a desmedida, tanto que o propno filos?fo
te escreveram sobre interpretação contratual, travou aguerridos debates alemão não o tinha por foco. Basta que se leiam os seguintes trechos para ilustrar o que dito,
sobre método 122 . tanto quanto para desfazer da equivocada percepção de que Gadamer era a priori contrário
ao método: "Não pretendia desenvolver um sistema de regras artificiais capaz de descrever o
procedimento metodológico das ciências do espírito.[ ...] Minha verdadeira intenção, porém,
l19 "SOCRAT~S. ln the sense of the s~ory they tel1 about Thales, THEODORUS. The story is that foi e continua sendo uma intenção filosófica: O que está em questão não é o que fazemos, o que
he ~vas domg as~ronomy and lookmg upwards, when he fell into a pit; anda Thracian servant, deveríamos fazer, mas o que nos acontece além do nosso querer e fazer. Assim, não estamos,
a g1rl of some w1t and humour, made fun of him, because, as she sai d, he was eager to know aqui, falando dos métodos das ciências do espírito". "O espírito metodológico da ciência
the contents of "heaven, but didn't notice what was in front of him, under his feet. That sarne impõe-se por toda parte. Assim, longe de mim negar o caráter imprescindível do trabalh~
gi?e will ~o fo~everyone who spends his life in philosophy. Because such a person really does metodológico dentro das assim chamadas ciências do espírito. [...] A questão co_locada aqui
fa1I to notice ~1s next-door neighbour: he's oblivious not only of what he's doing, but almost quer descobrir e tornar consciente algo que foi encoberto e ignorado por aquela disputa sobre
of whether he s a man or some other creature. But as for the question what exactly a man is os métodos, algo que, antes de limitar e restringir a ciência moderna, precede-a e em parte
and what it's distinctively characteristic of such a nature to do or undergo, that's so~ething h~ torna-a possível"."[...] o sentido de minhas investigações não é oferecer uma teoria geral da
does ask and take pains to inquire into. You do understand, don't you, Theodorus?" (PLATO. interpretação e uma doutrina que diferencia seus métodos, como fez magistralmente E. Betti.
The?etetus (trad.John McDowell). Oxford: Clarendon Press, 1973, pp. 50-51). Procuro demonstrar aquilo que é comum a todas as maneiras de compreender[...]" (GADAMER,
120
Assim narra um_ de seus__ tra~utore_s, P. ~hristopher Smith, em GADAMER, Hans-Georg. The Hans-Georg. Verdade e Método/. Traçosfundamentais de uma hermenêutic~filosófico (trad._ Flá~io
!deaofthe Coodm Platomc-Anstotelton Ph1losophy(trad. P. Christopher Smith). New Haven: Yale Paulo Meurer). São Paulo: Vozes, 2008, respectivamente pp. 14, 15 e 18). Ha o mesmo no pnme1ro
University Press, 1986, p. 39, nota 6.
121
texto publicado por Gadamer em re_sposta a Betti: GADAM~R, ~ans-Ge9r?. Hermen~uti~a_e
GADAMER, Hans-Georg. Gadamer narra la historia de la filosofia. 1.6. Subtitulado espaiiol historicismo (1965). ln: Verdade e Metada li: complementos e md1ce (trad. Erno Paulo G1achm1).
disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=HNf8vhDTnQo>. ' 6ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2011, especialmente pp. 455-458.
122 Fala-se da célebre polêmica que principiou com BETTI, Emílio. L'ermeneutico storico e /a storicità 124 MARTINS-COSTA, Judith. Como harmonizar os modelos jurídicos abertos com a segurança
dell'inte~dei:e (se~arat~): Bari: Cressati, 1962; e pro_sseguiu com GADAMER, Hans-Georg. jurídica dos contratos? (notas para uma palestra). Revista Brasileira de Direito Civil. Rio de Janeiro:
Hermeneut1ca e h1stonc1smo (1965). ln: Verdade e Metada li: complementos e índice (trad. Ênio Instituto Brasileiro de Direito Civil, 2015, v. 5, p. 73.
394 - COL,\,\ATAÇÀO DE LACUNAS CONTRATUAIS: INSUFICIÊNCIAS DO CóDIGO CIVIL, DEFl<::IÊNCIAS •••
GUILHERME LlRNEIRO MONTEIRO NITSCHKE - 395

1. Primeiro, o intérprete há de averiguar, diante da situação-pro- mento da interpretação tout court' 126 • Só o método é capaz de iluminar
blema, se de fato é de lacuna que se trata, uma vez que o con- a atuacão de quem interpreta, e "cercear a atividade pessoal" e "fortale-
teúdo contratual é informado por fontes diversas. Seu exame é cer a e~ploração objetiva" de quem tem por incumbência "dar vida à pa-
enfocado, então, no "conteúdo total" do contrato, identifican- lavra morta"127 .
do se, na disciplina que deriva da declaração das partes, da lei É tal como se o intérprete entrasse à noite no Louvre, com as luzes
(cogente e dispositiva), dos costumes e da boa-fé, faz-se pre- apagadas, portando ªferras _um l~mpião ~e mão. ~o breu, ele divisa as
sente a regra que, supostamente, se afuma como ausente. formas gerais das estatuas, identifica as tmtas mais claras dos qu_adros,
11. Segundo, caso não haja regra, e, assim, consolidando-se a pre- desvia dos sarcófagos e das vitrinas. Seus olhos não colhem, porem, os
sença de lacuna contratual, o intérprete há de verificar, antes, detalhes menores, o contraste das cores, o desgaste do mármore, a secu-
se as próprias partes disciplinaram, no texto contratual, o su- ra das pinturas. É só com a ajuda do lampião, e com a pouca mas útil luz
primento da lacunosidade (hipótese raríssima); e, depois, em por ele emanada, que o passeante flagra alguns desses detalhes; frequen-
caso negativo, se a situação que se apresenta é de lacuna típi- temente, porém, de modo incompleto, só conseguindo colher uma parte
ca. Sendo o caso de lacuna típica, é aos específicos critérios le- do quadro ou um pedaço da escultura. O intérprete de um contrato é o
gais que o intérprete deverá ajustar o processo de colmatação. passeante de um museu escuro. _Na_ escuridão d~ ~~vida e~tá a intenç!o
iii. Terceiro, caso não se trate de lacuna típica, e, assim, consoli- comum das partes. Na mão do interprete, os cntenos de mterpretaçao.
dando-se a ocorrência de lacuna atípica, o intérprete procederá É a única luz de que dispõe para examinar o que foi obra de outros; para
à primeira etapa da colmatação, que consiste em consultar os iluminar hoje o ontem. Sem o facho, ainda que fraco, ele nada vê. Sem
gerais critérios, respeitando o escalonamento organizado pela 0
facho, ele está apenas consigo mesmo e com sua ilusiva imaginação.
intenção comum das partes. Essa etapa variará a depender da
tipicidade do contrato: se for contrato legalmente típico, a or-
, · ", "usos d o tr áfi co" e "b oa- fi'"
d em e, "praticas ·
e ; se contrato mis-
to, a ordem é "práticas", "usos do tráfico", "lei por analogia" e
"boa-fé"; e se for contrato atípico tout court, a ordem é "práti-
cas" e "boa-fé".
iv. Qyarto, depois de extraída a possível regra, a última etapa é de
teste de seu enquadramento ao pano de fundo do contrato, de
modo a confirmar que esta não contraria o "contexto verbal", o
"contexto situacional" ou o "fim" do negócio jurídico. Não ha-
vendo inconsistência, a colmatação é tida por finalizada.
A quem eventualmente reclame por interpretação liberta de critérios,
haja vista a complexidade do que se descreve e o quão mais fácil é utili-
zar o "abracadabra" da equidade125 , ocorre referir à lição de uma autora
italiana, quando confrontada com os temas da interpretação contratual:
126 GERI, Una Bigliazzi. L'interpretazionedel controtto.Artt.1362-1p1. Milan?: Gi~ffre, 2013, f:P· 4?-
se "a incerteza (a dúvida) constitui a ocasião da atividade hermenêuti- 41. "Como actividade ou operação dirigida à fixação do sentido negocial, a mterpretaçao nao
ca", é essa mesma incerteza "(e portanto a sua superação) que constitui pode ser abandonada ao senso empírico de cad_a intérprete, _mas ?eve pauta:-se por re_g~as ou
critérios cuja formulação é, precisamente, o obJecto da teona da mterpretaç~o ~os ~egooos ou
também a ratio de todas as normas sobre interpretação e assim o funda- hermenêutica negocial" (MOTA PINTO, Carlos Alberto _da; MON:EIRO, A~tonto Pinto; MOTA
PINTO, António. Teoria Cerol do Direito Civil. 4ª ed. Coimbra: Coimbra E~1tora, 20~5, p. 441):
125 Assim era a definição de Jeremy Bentham para a equidade, como narra RODOTÀ, Stefano. Le PONTES DE MIRANDA, F. C. Sistema de Ciência Positivo do Direito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Borso1,
127
fonti di integrozione dei controtto. Milano: Giuffre, 1970, pp. 225-226. 1972, t. 4, pp. 136-137.
Lu1s RENATO FERREIRA DA S1LvA - 397

li. A INTERPRETAÇÃO CONTRATUAL E SUA


SISTEMÁTICA NO CóDIGO CIVIL DE 2002
APÓS O ADVENTO DA LEI 13.874/2019

Luís Renato Ferreira da Silva1

1. INTRODUÇÃO E CONTEÚDO DESTE ARTIGO2


1. O Código Civil de 2002 alterou a estrutura dos dispositivos que
tratavam da interpretação dos negócios jurídicos, fazendo-o com algu-
mas peculiaridades. De um lado, houve uma extensão explicativa no que
tange ao antigo artigo 85 do Código Beviláqua, para tornar mais claro
o papel da declaração negocial. Por outro, uma contração dos disposi-
tivos de interpretação do contrato constantes dos artigos 130 e 131 do
Código Comercial de 1850, visto que não mais reproduzidas todas as
regras ali constantes.
2. A essas particularidades pode-se acrescentar mais uma. Os ar-
tigos 112 e 113 que assumiram as respectivas funções explicativa e re-
dutora acima referidas estão postos na Parte Geral do Código Civil e
destinados, assim, à interpretação não só dos contratos (negócios jurí-
dicos bilaterais de conteúdo patrimonial) mas também a outros atos ju-
rídicos em sentido amplo, como os atos jurídicos em sentido estrito (v.
g., uma escritura pública de reconhecimento de paternidade) ou os ne-
gócios jurídicos unilaterais (v.g., o testamento).
3. Como desdobramento dos dispositivos sobre a busca da inten-
ção das partes (artigo 112, primeira parte) e da vigência do princípio da
boa-fé e dos usos (artigo 113, segunda parte) há algumas regras próprias
aos negócios gratuitos ou benéficos (como a do artigo 819 para a fian-
ça) e os que comportem renúncia (como o artigo 843 para a transação),
situações genericamente contempladas no artigo 114. Na mesma senda,
previsão específica para os contratos de adesão constante do artigo 423.
4. A esse quadro enxuto (e por isso criticado por parte da doutri-
na) novos dispositivos se agregaram, em especial no artigo 113 ao qual

Professor Associado do Departamento de Direito Privado e Processo Civil da UFRGS.Mestre


em Direito pela UFRGS. Doutor em Direito pela USP. Sócio de Tozzinifreire Advogados.
2 O autor agradece a leitura atenta e generosa de Judith Martins-Costa e Guilherme Carneiro
Monteiro Nitschke.
Lu1s RENATO FERREIRA DA SILVA - 399
398 - A INTERPRETAÇÃO CONTRATUAL E SUA SISTEMÁTICA NO Córneo Civil DE 2002 APÇ)S •••

s~ acres_centai:am dois parágrafos, por força da lei 13.874/2019, a (mal) li. NATUREZA E ESTRUTURA DOS DISPOSITIVOS LEGAIS DE
dita Lei da Liberdade Econômica3 • INTERPRETAÇÃO NO Córneo C1v1L: O ARTIGO 112, PRIMEIRA
5. ~iante des~e qu~dro_ e ainda correndo o risco de alterações re- PARTE, COMO PRESSUPOSTO NORMATIVO
cen:es nao ~erem sido_ di_gendas pela doutrina e pela jurisprudência na 8. O artigo 112 do Código Civil debuta os dispositivos de interpre-
sua integralidade, o obJ~hvo ~~ste trabalho é examinar, em uma primeira tação afumando que "[n}as declarações de vontade se atenderá mais à inten-
parte, a estrum_ra ,dos dispositivos que versam a interpretação, recortan- ção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem".
do-o~ para a hipotese dos contratos civis e empresariais, e construindo 9. Como dito acima, dada a topografia do artigo, o mesmo não re-
u1:1 s_1stema que explique o papel de cada um deles na atividade herme- fere contrato, nem à intenção comum dos contratantes, haja vista abran-
neut1ca. Em uma segunda parte, pretende-se examinar a nova redacão do ger declarações unilaterais e atos não contratuais. Entretanto, a leitura
artigo 113 e seus §§,alguns deles adaptados do velho Código Corr:ercial que tradicionalmente se tem feito é de que se trata, em caso de contra-
outros, alterados em relação a eles e outros, por fim, contraditórios corr: tos, de declarações que serão bilaterais e, portanto, a busca da intenção
os. seus próprio~ termos, a impor um desafio interpretativo para as pró- não deve ser nem a do declarante ou a do declaratário isoladas, mas con-
prias regras de interpretação.
jugadas em intenção comum.
_6. O ~es~nvol~me~t,o vai se limitar às inovações e, portanto, não 10. A busca da intenção comum aparece em outros sistemas jurídi-
considerara d1spos1t1vos Jª presentes e inalterados como os dos artigos 5
cos. Em especial, vale a pena examinar o direito italiano , cujo Código
1_14 e 423, bem como, por tratar do tema legal recentemente introdu- Civil, em seu artigo 1462, estabelece que ao interpretar o contrato de-
z~d~, n_ão examin~á decisões judiciais visto que, ainda não exaradas na ve-se indagar qual era a intenção comum das partes e não se limitar ao
v1gencia das modificações. sentido literal das palavras 6 • Dito dispositivo apresenta alguns pontos de
7. O ~ema ~: i~terpre~aç_ão contr_atu~ tem sido versado há tempo divergência importantes em relação ao art. 112 do Código brasileiro, em
e com mmta sap1encia por JUnstas nac10na1s e estrangeiros, 0 que torna, especial o fato de que (i) refere-se só a contratos, (ii) logo, pode valer-se
adentrar no tema, uma aventura (senão uma petulância) por parte de da intenção comum e, principalmente, (iii) utiliza-se a intenção como
quem ª?e~~s quer co~partilhar ideias desenvolvidas ao longo de anos um meio para interpretar. Note-se que o artigo refere "nell'interpretare
de magisteno e pesqmsa no campo da interpretação contratual. Por isso si deve indagare".
t~ qual o Prólogo de Shakespeare, ': .. ali chego eu/ Prólogo armado, ma; 11. Natalino Irti sustenta que o artigo 1362 faz da intenção um
n~~ corifiante,I Com pena e voz do autor, 'stando trajado/ Nas mesmas con- 7
meio para interpretar e não o conteúdo da interpretação • Por isso ela
dzçoes que nosso ass~nto,I Pra dize1; espectador(.... ) I Podem gostar, ou ver serve para que se escolha, entre os possíveis sentidos que a letra do con-
que o texto erra: I Fica entre o bom e o mau o destino da guerra'11 • trato pode dar. Qy.ando se lê um contrato o sentido literal pode assu-
mir, sempre para esse Autor, um aspecto primário, percebido no senso
comum do diálogo cotidiano e um aspecto secundário, que é um reper-

Diz-se isso po~q~e, a despei~o da intenção de promover a liberdade, esse diploma legal ( ue A referência ao Código Civil Italiano é feita por duas principais razões. De um lado, o legislador
3 5
r~rt~_docinnc1p1o_da menor interferência do Estado na vida dos particulares e ironicame~te de 2002, valeu-se de fontes estrangeiras e, em vários momentos fez expressa referência
01 ~ 1ta ~po_rmem de uma Medida Provisória .... ) criou vários dispositivos cuj~ hermenêutic~ ao Código Civil Italiano de 1942, especialmente na parte dedicada aos contratos (além de
po e ~~n uz1r exatamente ao oposto do pretendido, como pretende-se examinar no ue comparações cabíveis também com o Código Civil Português de 1966). De outro lado, e
~an?e a interpretação. Isso para não falar dos numerosos erros de construção legislativa ~m talvez a aspecto mais importante, é a relevância de nomes da doutrina italiana para o tema,
incisos repetmdo ~ texto ~o ~aputdo mesmo artigo, ou artigos sucessivos que reiteram a mesma bastando-se pensar em Emílio Bettti.
regra (como o paragrafo umco do artigo 421 reiterado no inciso Ili do artigo 4 ~1-A) Tud · 6
Tradução livre do texto: "Nell'interpretare il contrato se deve indagare quale sia stata la com mune
maculando um_ Código_demoradamente elaborado por uma comissão form;da ~or ·u~i:~:~ intenzione dele parti e non !imitarsi ai sensa letterale deli e parole"
do Pº:te do ~m. Moreira Alves, dos Professores Clóvis do Couto e Silva, Sylvio Mar~ondes "L'art. 1362 non disse chel'interpretazione dei controtto consiste nella determinazione dela com une
7
Ag~stinho ~lv~m, Eb~rt Chamoun, Torquato de Castro, liderados por Miguel Reale ' intenzione, ma che, 'nell'interpretare il controtto: si deve indagare la com une intenzione dele parti.
Tro1lus e \ressida, Prologo, 22-26; 30-31. Teatro Completo, vai 1, Tradução Barbara H~liod Non e' eequazione, ma relazione di mezzo afine, di strumenta a risultato". Testo e Contesto. Cedam.
4
NovaAgu1lar, RJ 2oo6. ora, Milão, 1996, p. 23.
Lu1s RENATO FERREIRA DA S1LVA - 401
400 - A INTERPRETAÇÃO CONTRATUAL E SUA SISTEMÁTICA NO CóDIGO CiVJL DE 2002 APÓS .••

tório comum aos usuários. Aqui, a intenção comum exerce a escolha de em síntese referida a contratos, na compreensão comum concreta de ambas
qual destes significados deve se atribuir ao contrato. Daí que a inten- as partes, apurada a partir dos elementos atendíveis''ll_
ção comum é indagada e o comportamento valorado para que o contra- 16. O artigo 112, no nosso caso afuma, que no conteúdo da declara-
to seja interpretado. ção deve estar na intenção, ou seja, a interpretação, não se vale da inten-
12. Nesta linha de raciocínio, o sentido primário é feito para ser ul- ção, mas atende a ela. O objeto da interpretação é a intenção declarada.
trapassado, mas o que é comum a ambos, o sentido secundário, é para Evidentemente, desde a superação do psicologismo do papel da vontade
ser respeitado. A intenção comum das partes, então, ': .. ecritério selettivo na formação dos contratos, substituído por uma atividade mais objetiva
all'interno di una pluralità di sensi. Non costituisce il segno, ma lo individua'fJ_ da vontade, o que se busca é a intenção constante da declaração, capaz
de, por ser conhecida ou cognoscível, ser comungada pela outra parte.
13. Esse não é o raciocínio único no direito italiano, no qual vários
autores compreendem o papel da intenção comum de modo diverso. 17. Sintomático o verbo usado: atender. Na origem latina (atendo,
Por todos Emílio Betti, para quem no plano da interpretação "trata- ere), o verbo tem o primeiro significado de puxar com força, esticar, apon-
-se justamente de concentrar-se naquele primeiro processo [de criação] com tar; o segundo, prestar atenção, escutar. Assim, a letra do artigo 112 esta-
uma reflexão consciente, para dele extrair as diretivas e as leis de formação e belece um preceito para que o interprete aponte, puxe com força, preste
de desenvolvimento'~. atenção à intenção contida na declaração.
14. Ou seja, o objetivo da interpretação jurídico-contratual reside 18. Esse esforço traduz a finalidade da atividade interpretativa. Nem
em buscar, na formação do contrato, a regra que as partes pretendem se diga que isso padece de subjetivismo excessivo. Não se trata da vonta-
para o seu desenvolvimento. Daí que o princípio da ultraliteralidade es- de-motivo (contida e não expressa nas declarações, tal qual fosse reserva
teja intimamente ligado à busca da intenção comum para permitir que, mental). Trata-se, como diz Eduardo Espinola, de ': .. procurara vontade
a partir de comportamentos das partes, descubra-se o que elas queriam, do declarante no acto final e definitivo da declaração, [de] determinar o que
3
e não o contrário. Não é do interesse comum que se descobre o sentido, elle quiz declarar, e não aquilo que elle tinha a intenção de querer''l _

mas é o sentido que descobre o interesse comum pois ': . .la esata dimen- 19. Isso porque, se a intenção não vem à tona, ou não é comparti-
sione delle rego/e individua/e espesso puà ricostruirsi andando ai di là di quello lhada nos contratos, não se tem o material básico da interpretação que
che il tenore letterale delle dichiarazione di per se vuole dire''lº. é a declaração, ou seja, a externalização do querer, seja ela escrita (base
15. Mesmo em um sistema como o do Código Civil Português, no nos contratos formalizados), seja ela circunstancial (nos contratos ver-
qual a regra de interpretação faz referência a uma eventual vontade pre- bais ou gestuais, igualmente sujeitos à busca da intenção comum). Daí
sumida por um "declaratário normal", dá-se preferência à vontade real que não haja subjetividade unilateral, '1o] que se há de evitar é que o des-
desde que comungada pelas partes, na dicção do número 2 do artigo coberto não corresponda ao manifestado, ou, em caso de recepticiedade, ao ma-
236 11 daquele diploma. E a explicação de Carlos Ferreira de Almeida nifestado a alguém''l4 _
corrobora: "... o sentido relevante segundo o critério (dito) da vontade real do 20. Fixada, então, a premissa de que, no nosso sistema, o artigo 112
declarante, consiste qfinal no sentido tal como o declaratário o compreende ou, fixa a intenção (no caso dos contratos, a intenção comum) como o ob-
jetivo da interpretação, como o fim a ser alcançado, surge a necessidade
de se indagar qual o valor normativo deste dispositivo, visto que, como
8 Idem, p. 44. dito na introdução, alinhado a ele estão vários outros princípios e regras
9 "As categorias civilistas da interpretação" in "Interpretação da lei e dos atos jurídicos". Martins
Fontes, SP, 2007, p. LXXXV. de interpretação.
10 Claudio Sconamiglio. "lnterpretazione dei contratto e interessi dei contraenti". Cedam. Milão,
1992, p. 306.
11 Art. 236 "1. A declaração negocial vale com o sentida que um declaratório normal, colacado na 12
"Contratos IV. Funções. Circunstãncias. Interpretação". Almedina, Coimbra, 2014, p. 259
posição do real declaratório, possa deduzir da comportamento do declarante, salva se este nãa puder, - grifeou-se.
razoavelmente cantar com ele. 2. Sempre que o declaratório conheça a vontade real do declarante 13 "Manual do Código Civil Brasileiro".Jacintho Ribeiro dos Santos Editor, RJ, 1929, vol.111, p. 184.
é de acordo com ela que vale a declaração emitida". ' 14 Pontes de Miranda. "Tratado de Direito Privado". RT, SP, 2014, 2ª tiragem, vol. XXXVIII, p. 182.
Lu1s RENATO FERREIRA DA SILVA - 403
402 - A INTERPRETAÇÃO CONTRATUAL E SUA SISTEMÁTICA NO CóDIGO Civil DE 2002 Aeós •••

21. A doutrina tem adotado terminologia variada para identificar os 26.Já as regras, de conteúdo muito mais determinativo e explícito
dispositivos legais que tratam da interpretação, ora referindo a cânones de comportamentos são normas "... imediatamente descritivas, primaria-
interpretativos (na linha da linguagem de E. Betti15), ora, de forma mais mente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para
genérica, de regras (tal qual as famosas doze regras de Pothier), ou, no cuja aplicação se exige a avaliação( ..) entre a construção conceitua! da des-
dizer de Francisco Paulo de Crescenzo Marino, meios interpretativos 16 • crição normativa e a construção conceitua! dos fatos"22 .
22. A proposta deste trabalho é de aprofundar um pouco a siste- 27. Adotando-se essa sistemática, pode-se harmonizar os disposi-
mática ligeiramente sugerida em um artigo sobre usos e costumes17 e tivos que tratam da interpretação, enquadrando-os de forma a que sua
adotada, en passant, p~r tese doutoral 18 e que se vale, por sua vez, do tra- aplicação se conforme com a sua natureza (postulado, princípio ou re-
balho de Humberto Avila sobre princípios e regras. gra) e resulte em entender a eficácia que cada uma possui na atividade
23. Nessa obra, Humberto Ávila distingue três categorias da estru- interpretativa.
tura normativa: postulados, princípios e regras. Ao tratar dos postulados 28. Assentada a premissa de que a intenção comum das partes no
afuma que são "condições essenciais sem as quais o objeto não pode ser sequer contrato é um postulado normativo, visto que é a norma de sobredireito
apreendido"19 e os divide em dois grupos: os postulados hermenêuticos que orienta a aplicação da atividade do intérprete no manejo dos ins-
e os postulados normativos ou aplicativos. Os primeiros servem à com- trumentos principiológicos e de regras que o Código põe a sua disposi-
preensão geral do direito de forma abstrata, tal como os postulados da ção, nesta segunda parte, vai-se tentar enquadrar o conteúdo dos artigos
unidade do ordenamento, da coerência e da hierarquia, que acabam ser- 112, segunda parte, 113 e§§ neste esquema.
vindo como estruturas da racionalidade do sistema normativo.
Ili. Os PRINCÍPIOS E AS REGRAS DA INTERPRETAÇÃO NO Córneo
24.Já os postulados normativos ou aplicativos servem para solucio- CIVIL: O ARTIGO 112, SEGUNDA PARTE, E O ARTIGO 113
nar questões que surgem quando da aplicação do direito. São metanormas
que :.. situam-se num segundo grau e estabelecem a estrutura da aplicação de 29. Abusando-se de um pragmatismo na diferenciação dos princí-
outras normas, princípios e regras. Como tais, eles permitem verifi,car casos pios e das regras, poder-se-ia dizer que uma norma contenedora de um
em que há violação às normas cuja aplicação estruturam. Só elipticamente é princípio não descreve uma conduta e não diz como as partes devem se
que se pode efirmar que são violados os postulados (... ).A rig01; são violadas comportar, senão que disciplina o modo como os comportamentos des-
as normas( ..) que deixam de ser devidamente aplicadas"2º. critos em normas devem ser lidos. Servem de luz para o entendimento
25. Diferente dos postulados são os princípios e as regras cuja nor- dos comportamentos desejados.
matividade propicia uma violação direta, ainda que cada uma das espé- 30. Assim, exemplificativamente, quando o artigo 421 inicia o
cies tenha fi:1-alidade e composição própria. Sempre valendo a obra de Títulos dos contratos consagrando os princípios da liberdade contratual
Humberto Avila, pode-se dizer que os princípios são normas de oti- e da função social do contrato, a norma não diz qual o conteúdo de am-
mização, cujo conteúdo finalístico - definidor de um fim a ser alcança- bos os princípios nem qual a consequência da sua inobservância (visto
do - ': .. demanda uma avaliação da correlação entre os estados de coisas a ser que adota a técnica legislativa das cláusulas gerais 23 ), mas mais do que
promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua isto, é que a estrutura do princípio faz com que a a norma que o contém
promoção "21 . determine que se busque a forma ótima de valer-se do mesmo.

15 Op. cit., p. XLII, onde afirma que o papel dos cânones, é aferir a exatidão da interpretação.
16 "Interpretação do Negócio Jurídico". Saraiva, SP, 2011, p. 253.
17 Silva, Luís Renato Ferreira da."Autonomia privada e usos negociais empresariais". Cadernos
IEC nº 6. Conversas sobre autonomia privada. Canela, [s.n.], 2015, p. 32. 22 Idem, ibidem.
23 "... as cláusulas gerais constituem técnica de legislar baseada na estabelecimento de normas
18 Nitschke, Guilherme Carneiro Monteiro. "Lacunas Contratuais e lntepretação. História,
carecedoras de valoração a serem preenchidas pelo intérprete, caracterizam-se também pela vagueza,
conceito e método". Quartier Latin, SP, 2019, pp. 370/371.
par serem sempre expressas e por promoverem o reenvio a outros espaços do sistema''. como ensina
19 "Teoria dos Princípios". Malheiros, SP, 14ª ed.;2013, p. 142.
Fabiano Menke, "A interpretação das cláusulas gerais: a subsunção e a concreção de conceitos
20 Idem, p. 155.
21 Idem, p. 85. "in Revista de Direito do Consumidor, vol. 50, abr-jun 2004, pp. 9-35.
404-A INTERPRETAÇÃO CONTRATUAL E SUA SISTEMÁTICA NO CóOIGO CIVIL DE 2002 AP9S ••• Lu1s RENATO FERREIRA DA SILVA - 405

31. Assim, ao dizer que a liberdade contratual rege os contratos, a do que O interprete conclui tenham a parte ~u as partes atribuíd~ à declaração
norma está dizendo que todos os contratos devem ser lidos corno ex- negocial, após o exame da literalidade da lzngu~gem, do contexro v~rb~l e de
pressão da autonomia privada de modo a que sua elaboração privilegie todas as circunstâncias relevantes, tendo em -vista oponto de relevancia her-
126
a escolha do meio contratual, o momento da contratação, a pessoa do menêutica peculiar ao negócio jurídico em questão' •
co-contratante e o conteúdo do contrato. No momento em que isto é 36. Assim, sair do texto literal ou do sentido literal da linguagem
assegurado, o princípio é aplicado. De tal sorte, se um contrato é pre- é princípio que avalia a correlação e~,:re .ª bus~a da _intenção (o e~tado
disposto por uma das partes no seu conteúdo, para que o princípio seja de coisa a ser promovido) e a insufic1encia da literalidade, de_termm~n-
otimizado, deve-se estabelecer um contra-peso a essa unilateralidade do que se vá além (efeito necessário à prorno~ão). De novo, 11:1pos~1vel
na fixação do conteúdo, por exemplo, privilegiando a interpretação con- aplicar-se, tout court, a norma que mand~ co~~1derar menos a literalida-
tra stipulatorem (para ficar em um exemplo no campo da interpretação). de, senão lendo regras com a lente do prmc1p10.
32. No caso das normas de interpretação da parte geral pode-se ver, 37. Na mesma senda o disposto na primeira parte do artigo 113.
basicamente, dois princípios: na segunda parte do artigo 112, o princí- Aqui entra em cena o princípio da boa-f~. Mais fácil demonstrar o que
pio da ultraliteralidade e, no artigo 113, primeira parte, o princípio da se sustenta nesse artigo com essa norma visto que assente pela boa dou-
boa-fé objetiva, na sua função hermenêutica. trina o fato de que a boa-fé objetiva é um princípio.
33. A noção de ultraliteralidade consiste no reconhecimento de que 38. No caso da interpretação contratual, ele atua para que, na bus-
a intenção comum das partes não se traduz, necessariamente, apenas no ca da intenção comum das partes, não resulte leituras desleais ou q~e
texto escrito, na littera do contrato. Aliás, se esta estiver posta de forma firam as expectativas legítimas dos contratantes, visto que o consenti-
cabal e clara, não se precisará do princípio da ultraliteralidade visto que mento foi dado por conta, justamente, da comunhão de fins das partes.
o contrato já tem em si o elemento suficiente para atender ao postula- 39. Nesse sentido, não cria um comportamento determinado, mas
do da intenção comum. ': .. supõe a articulação de uma estrutura ~01:1~ativ~ que engloba regras legais
34. Note-se que isso não significa concordar com o brocardo in ela- e contratuais standards e modelos doutrznarzos e, igualmente modelos dedu-
ris non fit interpretatio, mas reconhecer que o material com que trabalha zidos de julg:mentos precedentes que, com o caso, guardem relação de identi-
o intérprete é o texto contratual e que este, por claro ou incontroverso, dade ou de semelhança I1eadem ratio; .. 1,127.
prescinde de que se vá além. É como se se transformasse o brocardo para 40. Tem-se, no artigo 113, primeira parte, uma norma que visa oti-
dizer in claris cessat interpretatio. Não é outra a lição do clássico Carlos mizar a busca da intenção comum por isso "... atua auxiliando a recons-
Maximiliano: "Se as disposições contratuais, ou de última vontade, não pa- trução da declaração negocial 'conforme o espírito, isto é, enquadrando-a na
recem obscuras, nem ambíguas, nem equívocas, prevalece o significado natu-
totalidade das circunstâncias... '128 •
ral das palavras segundo o modo comum de entender'12425 •
41. Até aqui, é como se o legislador dissesse: as normas de inter-
35. Entretanto, se a letra contratual não é suficiente (sem contar pretação, ao serem aplicadas, devem bus_car a vo~;ade das parte~ - por-
as inúmeras vezes em que o contrato sequer é escrito) entra em vigor o que O contrato imprescinde do consentimento_ ( quando um na~ q~er,
princípio da ultraliteralidade que não diz corno o intérprete deve agir, dois não contratam ... ") - e, sempre que elas nao o façam, estarao v10-
com um conduta concreta, mas sim dizendo que, na busca da intenção lando O postulado normativo da comum intenção. Ao surgirem questões
comum, otimiza-se o comportamento quando se vai além da letra e, por hermenêuticas, essas devem ser resolvidas com tal postulado em men-
isso, determina que se.saia do texto para examinar o contexto. Como en- te. Para isso a atividade deve ser iluminada, finalisticamente, pelo uso
sina o citado Francisco Marino, ':li. vontade das partes corresponde ao senti- de outros m~ios que não a letra contratual (princípio da ultraliteralida-
24 "Hermenêutica e Aplicação do Direito'. Forense, RJ, 1998, 18ª ed., p. 343.
25 Neste sentido, Judith Martins-Costa afirma: "por vezes, o littero bosto, pois o seu significado é Op. cit., p. 174, grifei. _ .
relativamente unívoco, consensualmente admitido, nãosuscitondodivergêncio". "A Boa-fé no Direito Judith Martins-Costa, op. c1t., pag. 450.
Privado. Critérios para sua aplicação". Marcial Pons, SP, 2015, p. 453. Francisco Marino, op. cit., p. 273.
406 - A INTERPRETAÇÃO CONTRATUAL E SUA SISTEMÁTICA NO CóDIGO CIVIL DE 2002 APÓS ••• Lu1s RENATO FERREIRA DA SILVA - 407

de) e respeitando a justa, leal e legítima expectativa de ambas as partes te de direito, o que Pontes de Miranda chamava de costume regra e que
(princípio da boa-fé). não pode ser confundido com os usos ou usos e costumes interpretati-
42. Em boa parte, a doutrina via essa distinção, muito embora vos3º. O costume (rectius, costume regra) não tem função interpretati-
pudesse expressá-la em termos menos precisos. Assim, já dizia Sílvio va, mas de criação de deveres e obrigações. Assim, ou bem o legislador
Rodrigues: "O art, 112 do Código Civil, dispondo que nas declarações de von- usava no inciso II a expressão "usos e costumes, ou não deveria ter usa-
tade se atenderá mais à sua intenção do que ao sentido literal da linguagem, do "usos, costumes" como conceitos distintos (o que existe) mas que não
contém m~is ~n;n{rincípio de int:_rpretação dos negócios jurídicos do que uma cumprem aqui a mesma função. Se se somar a isso o fato de que já ha-
regra de direito - . Aparece entao, o caso concreto e este deverá ser solu- via referido no caput original, de forma adequada só os usos (que têm
cionado pelo intérprete a quem se apresenta o desentendimento quanto função interpretativa também) do inciso só resta o conceito de práticas.
às obrigações recíprocas que nasceram do consentimento. Aí entram em 46. A invocação das práticas reforça o que se disse no parágrafo an-
ação as regras que estão dispostas no artigo 113, segunda parte, e seus§§. terior. As práticas têm um conteúdo interpretativo próprio, distinto dos
. 43. Até o advento da lei da liberdade econômica, o artigo 113 li- usos ou "usos e costumes" mas com a mesma função de auxiliar o en-
mitava-se a estabelecer a regra de que se deveria ter em conta a boa-fé tendimento da intenção comum e diversa da função dos costumes 31 , re-
e os usos do lugar da contratação. Deixava de elencar outras regras que pita-se, por normativos que são.
pudessem servir de meios para que o intérprete desenvolvesse seu tra- 47. Trata-se aqui do conceito de práticas ou usos do tráfico que, no
balho com o guia da lei. Com a promulgação dela, voltou-se a introdu- dizer de Judith Martins-Costa, denotam "um caráter individualizador (as
zir um catálogo no qual são reproduzidas algumas das regras constantes práticas seguidas por aquelas partes, em situações análogas; práticas indivi-
do velho artigo 131 do Código Comercial de 1850, bem como outras duais, portanto); os segundos (usos) podem te1; por sua vez, vários significa-
adotadas em sistemas estrangeiros. Ao lado delas outras até então iné- dos e ifi,cácias, mas em todos há um caráter transindividual". E arremata, no
ditas sob a forma de lei como a do inciso V do § 1º, bem como a do § mesmo sentido aqui sustentado: "denominar de práticas apenas às práti-
2° do artigo 113. cas das partes individualmente consideradas, isto é, aos seus comportamentos
44. Comece-se limpando os incisos do que era desnecessário, por em determinada(s) relação{ões) contratual(is), utilizando-se o termo usos em
redundante ou mal redigido. O inciso II do § 1° diz que a interpretação uma de suas acepções, qual stja: a de 'usos do tráfico: com valor hermenêuti-
que deve ser atribuída ao negócio jurídico é a que ''c01nsponder aos usos, co, acepção, essa, distinta, por sua vez, daquela denotada pela expressão 'usos
costumes epráticas do mercado relativas ao tipo de negócio". O primeiro pon- e costumes: que traduz fonte jurígena"32 •
to é a repetição parcial do caput que já mandava observar os usos. O se- 48. O segundo ponto desnecessário está no inciso III que "é abun-
gundo é a referência ao costume. É bem verdade que o Código Civil (e dante, pois repete o contido no caput desse artigo"33 • Mais do que abundan-
boa parte da jurisprudência e alguma doutrina) tratam usos junto com te, ele é equivocado porque não só repete como aloca entre as regras de
costumes e não os diferenciam, valendo-se da expressão "usos e costu- conduta do intérprete o que, como se vem sustentando aqui, tem outra
mes" em conjunto. Nada obstante, a boa doutrina distingue esses ter-
mos e, considerando que o mesmo inciso ainda referiu às práticas, seria 30 Op. cit., p. 179.
31 Para um exame do tema dos usos e costumes, veja-se Marcos de Campos Ludwig, "Usos e
de boa técnica a supressão dos costumes. Costumes no Processo Obrigacional", RT, SP, 2005; Gustavo Haical, "Os usos do tráfico como
modelo jurídico hermenêutico no Código Civil de 2002" in RDPriv 50, abr-jun/ 2012, pp.11/47;
45. Ocorre que uma coisa seria usar a expressão "usos e costumes" Giovana Comiran, "Os Usos Comerciais: da formação dos tipos à interpretação e integração
com função interpretativa. Outra é usar a palavra uso separada de costu- dos contratos", Quartier Latin, SP, 2019 e Natálioa lnez lóra, "Os Usos Negociais e os Contratos
Empresariais- O conteúdo, as funções e o alcance dos usos no processo contratual", Quartier
me. Qy.ando a lei o faz, está utilizando a expressão costume como fon- Latin, SP, 2020.
32 Op. cit., pp.471/472.
33 José Antônio Peres Gediel e Adriana Espíndola Correa. "Interpretações - art. 113 do Código
29 :Direito Civ!I-_Part~ ~era!". Saraiva:, SP, 32ª ed., 2002, p.177. Washington de Barros Monteiro, Civil", Comentários à lei da liberdade econômica: lei 13.874/2019, coordenadores Floriano
Curs~ d~ 1:?1re1to C1v~I - Parte Geral , Saraiva, SP, 39ª ed., p. 216, refere que o artigo 112 consagra Peixoto Marques Neto, Otavio Luiz RodriguesJr. e Rodrigo Xavier Leonardo, Thomson Reuters
um pnnc1p10 e os artigos 113 e 114 regras. Brasil, SP, 2020, p. 346.
Lu1s RENATO FERREIRA DA SILVA - 409
408 - A INTERPRETAÇAO CONTRATUAL E SUA SISTEMÁTICA NO CóOIGO ÜVIL DE 2002 APÇ)S ...

função: a de princípio. Melhor fora não ter sido redigido pois nem sem- do Código Comercial que mencionava que tal comportamento era a me-
pre é verdadeira a máxima quod abundam non nocet... lhor explicação do que as partes tiveram no ato da celebração, ou seja,
claramente send o retrospectiva· 34 .
49. Superados esses incisos, o que consta dos demais são regras no
sentido aqui adotado. Trata-se de normas com uma conduta a ser se- 55.Já no inciso III, sobram as práticas e os usos interpretativos ou
guida pelo seu aplicador. No momento em que se apresenta ao advoga- do tráfico. O recurso aos usos, como referido é um recurso que parte do
do, ao juiz ou ao árbitro um contrato no qual as partes divergem sobre pressuposto de que as partes, inseridas em uma determinada comun~-
o conteúdo interpretativo, começa o trabalho acima descrito de buscar dade (para efeitos de usos) ou numa relação duradoura consta~te, rei-
a intenção à luz dos princípios e, para tanto, o Código municia-os com terada e sucessiva (para efeito de práticas), entendem que o agir usual
regras de ação. ou a prática entre elas criada, é como normalmente se pode entender o
50. O intérprete deve, então, ao examinar a regra, em se tratando que foi estabelecido.
de um contrato oneroso, examinar o comportamento posterior à sua ce- 56. Em alguns casos trata-se isso como uma vontade ou uma inten-
lebração para ver como as partes agiram quando invocaram a referida ção presumida ou implícita das partes. Ainda que o seja assim, o im~or-
cláusula (isso sai da letra e vai para o comportamento e, tendo as partes tante é que as partes querem o uso ou a prática reiterada, quer se dizer
entendido de uma forma anteriormente, ferirá a justa expectativa, alte- que não é uma vontade alheia, senão que a das partes. Ou seja, ado~an-
rar-se tal entendimento. A regra é aplicada conforme os princípios e es- do os usos e as práticas, não os afastando expressamente como podenam
tará corretamente empregada por atender ao sobredireito que a rege). ter feito, as partes incorporam-nos como sua vontade. O fato deles in-
gressarem de forma implícita não os fazem presumidos em si, mas como
51. Aqui a regra presente no velho Código Comercial e também
vontade não declarada (daí que se enquadrem no atendimento do prin-
em outras legislações estrangeiras e que o Código Civil Italiano chama
de comportamento complessivo das partes, ou aquilo que se tem chamado, cípio da ultraliteralidade).
também, de interpretação autêntica, na medida em que os declarantes 57. Como bem diz Pontes de Miranda, "( o ]s usos negociais podem ser
da vontade, ao darem execução ao contrato, o fazem segundo a sua pró- postos inteiramente de lado pela vontade negocial, ou lhes suprir ou lhes in-
pria interpretação. Sendo esta, até o momento da disputa, uníssona, ain- terpretar a vontade (.. .) a lei dispositiva supõe falta de declaração de vo~ta-
da que divergente da letra, essa é a melhor interpretação. de negocial,· os usos ou costumes supletivos (note-se a inversão) supõem, amda
sem expressão, a intenção dos .figurantes. Não há usos ou costumes disposi-
52. Não se está falando de comportamento que, ainda que conjunto,
tivos, há-os supletivos; não há a rigor usos ou costumes interpretativos, há
altere o conteúdo do contrato, em atividade que, se comum e duradou-
usos ou costumes que exprimem. Não são regras sobre declarações de vonta-
ra impediria um retorno à letra do instrumento por incidência da figura
do venire contrafactum próprio. Aqui o comportamento é o que as partes de; são vontade"35 .
vinham desenvolvendo na compreensão do que fora estatuído. Sempre 58. Para que se possa fazer o contraponto com a regra do inciso V
se entendeu assim, tanto que se executou assim, ainda que a letra do do mesmo dispositivo e que é algo inexistente até então no nosso sis-
contrato, quando surge o litígio, pudesse conduzir a outra interpretação. tema, o que está posto aqui, determinando que vontade deva corres-
ponder ao que seria a razoável negociação entre as partes, inferida das
53.A regra tem dicção um pouco diversa do quanto figura no Código
negociações e da racionalidade econômica das partes é regra dispositiva.
Civil Italiano que refere o comportamente anche posteriore, o que tem le-
Impondo por pressuposição uma vontade que não é a das partes, mas a
vado a doutrina daquele país a indagar o papel do comportamento du-
rante as tratativas e na hora da formação do contrato, visto que mesmo do homem racional.
o posterior deve ser considerado. De qualquer sorte, o comportamento durante a fase das tratativas e no processo de tr_oca d~
34
consentimento via proposta e aceitação, dentro da ideia de comportamento compless'.vo tera
54.Já o inciso Ido§ 1° do artigo 113 refere apenas o comporta- relevância por outros fundamentos que não serão explorados nesse t'.abalh_o:O des1der_ato
mento posterior, em reiteração não tão explicativa quanto o antecessor aqui é de examinar o texto da lei e suas repercussões nos quadrantes das1stemat1ca normativa.
35 Op. cit., p. 177, grifou-se.
Lu1s RENATO FERREIRA DA SILVA - 411
410 -A INTERPRETAÇÃO CONTRATUAL E SUA SISTEMÁTICA NO CóOIGO CIVIL DE 2002 APÓS ••.

59. Um tal dispositivo merece duas críticas do ponto de vista que zão da função social do contrato (em que pese a reforma do artigo 421
orienta este trabalho (que tem a pretensão de ser o que sobra entre o feita pela mesma lei ... ).
bom e o mal da guerra). A primeira reside no fato de que ele vai contra a 63. Para que se pudesse compatibilizar o dispositivo dever-se-ia: (i)
busca da comum intenção das partes o que as regras anteriores queriam entendê-lo como ultima ratio, só aplicável para "salvar" o contrato e (ii)
buscar. Afronta, ou pelo menos confronta, o postulado do artigo 112, im- adequar ao máximo possível a razoabilidade aos suj~it_~s _concretos, ma_s,
pondo uma interpretação de uma vontade presumida e inafastável. Não para isso, o inciso V deveria se auto-proclamar subs1d1ar10, com~ o arti-
é como no caso dos usos em que as partes poderiam dizer que não estão go 1.188, segunda parte, do direito fra~cês reformado ou no artigo 236
tratando tal termo como é entendido usualmente ou como estava sen- do Código Civil Português antes refendo.
do praticado anteriormente entre elas. Aqui, no inciso V, o afastamento 64. Entre nós, portanto, correto dizer que tal dispositivo, afastado
presumiria dizer que as partes não estão sendo razoáveis ou racionais do da sistemática da comum intenção, terá que ser reconduzido a ela e na
ponto de vista econômico, o que, certamente, nenhuma parte admitiria. linha do sempre citado Pontes de Miranda, 'a manifestação de vontade,
60. O dispositivo acaba por determinar, agora sim, uma vontade fic- integralizável segundo regras jurídicas ou segundo método de inte1pretação,
38
tícia, não mais a comum intenção das partes, mas a que elas deveriam é o que pode conter o sentido, ofim do negócio jurídico" .
querer se fossem razoáveis. Impossível deixar de notar a ironia de aban- 65. Nessa premissa o que recentemente se tem dito entre nós, e com
donar a liberdade da vontade comum pela imposição da vontade razoá- 0 que parece ser a melhor interpretação até ~sse mo_m~nto e1:1 q_ue ,ºs
vel vinda de uma lei que quer o mínimo de interferência... tribunais estatais e arbitrais ainda não consolidaram JUnsprudencia, e a
61. A questão é que compatibilizar tal regra (presente na recente proposta por José Antonio Peres Gediel e Ad~i~na ~s~índola C~rrea,
alteração do direito das obrigações no Código Civil Francês 36, atribuída para quem "[o] inciso V do§ 1 do art.113 do Codigo Civil,_em_ relaçao ~os
à influência do artigo 4.1 dos princípios do Unidroit) pressupõe a inci- contratos, deve ser lido em conjunto com o art. 421-A, lambem introduzido
dência, já no campo da interpretação de outro princípio, qual seja, o da pela Lei 13.874/2019, que estabelece uma presunção de paridade e simetria
conservação dos contratos. Parece que ao legislador foi preferível man- entre as partes nos contratos civis e empresariais, salvo a presença de elemen-
ter o contrato, mesmo que nele não mais se encontre a vontade das par- tos com concretos que possam afastar essa presunção. Nesses contratos, deter-
tes, por adoção do que elas deveriam ter querido. mina o inciso II desse artigo que seja observada e respeitada a '... alocação de
62. Como bem reconhecem os comentadores da nova redação do riscos definida pelas partes 139 •
Código Civil Francês, o dispositivo da segunda alínea do artigo 1188, ': .. 66. Assim, o que é razoável é a economia concreta do contrato o
comporte plusieurs directives d'interprétation dominées par une politique ju- que se traduz na alocação de riscos, com isso afastando-se um ".. .pr:s-
ridique plus que parle souci de découvrir la commune intention des parties"37 • suposto que nem sempre é verdadeiro ou que carece de comprovação _empíri~a:
Trata-se de uma funcionalização do contrato que deve ser preservado a presunção de que todos os negócios jurídicos são fruto de uma efetiva racio-
para atender aos seus desígnios econômicos, mais do que assegurar a li- nalidade econômica'140 •
berdade contratual, ou seja, esta deve ser exercida aparentemente em ra- 6 7. Essa alocação de riscos iluminaria a preservação do contrato
dando à intenção comum o escopo funcional do contrato, com isto, em
36 Com a introdução de uma segunda parte ao que tradicionalmente dizia o artigo 1056 da versão alguma medida tornando não um parâmetro de mercado externo, fun-
original, agora assim posta no artigo 1188: "Le contrat s'interprete d'apres la com mune intention
des porfies plutôt qu'en s'arrêtant ou sens littéral de ses termes.
'Lorsque cette intention ne peut être décelée, le contrat s'interprete selon le sens que fui donnerait une
personne raisannable placée dons le même situation".
37 Philippe Malaurie, Laurent Aynes et Philippe Stoffel-Munck. "Droit des Obligations", LGDJ, 38 Op. cit., p. 181.
Paris, 10e. ed., 2018, p. 420. No mesmo sentido, Aude-Solveig Epstein in "La Réforme du Droit 39 Op. cit., p. 357. , - 'd·
40 Rodrigo Xavier Leonardo e Otávio Luiz Rodriguesjr., "A interpretação dos Negoc1_osjun 1cos n,?
des Contrats, du Régime Général et de la Preuve des Obligations - commentaire article para Lei da Liberdade Econômica" in "Comentários à lei da liberdade econômica: lei 13.~74/201~,
article", Direção de Thibault Douville, Caulino, Paris, 2019, onde se diz (p. 170): "Le textsemble coordenadores Floriano Peixoto Marques Neto, Otavio Luiz Rodrigues Jr. e Rodngo Xavier
ainsi relayerla these de c'est pourqui la commune intention des porfies pourrait ne pas être découverte,
Leonardo, Thomson Reuters Brasil, SP, 2020, p. 224.
voire ne pas exister".
Lu1s RENATO FERREIRA DA S1LVA - 413
412 - A INTERPRETAÇÃO CONTRATUAL E SUA SISTEMÁTICA NO CóDIGO Crv1L DE 2002 APÓS .•.

cionalizado pela economia, mas pela atividade própria dos contratantes um pode ser favorável ao credor. Novo desafio para a sistematização se
na sua economia contratual. impõe. A ver como salvar mais uma incongruência.
68. Derradeiro inciso a ser analisado (ao qual se volta numerica- IV. CONCLUSÕES
m~nt~ vist~ que do III pulou-se para o V para fins de confrontação ex- 73. A guisa de conclusão do que até aqui se disse vale a pena exa-
pli~ativa) e o IV do § 1° do artigo 113 reformado, no qual está a regra minar o papel prático das distinções feitas e como as mesmas se inter-
da mterpretação contra preferentem. -relacionam com o §2° do artigo 113, outra das alterações introduzidas.
69. Novamente há redação que parece fugir ao postulado da intenção Neste dispositivo fixa-se a possibilidade das partes pactuarem regras para
comum. Re~ra assemelhada a essa constante no Código Civil Italiano a interpretação, com isto alterando as legalmente dispostas.
l~vo~ Claud10 _Sconamiglio a dizer que a linha evolutiva da interpreta- 74. O dispositivo alcança, além de regras interpretativas, as integra-
çao ... sembra mcontrare una brusca cesura... "41 • Novamente porém na- tivas que visem preencher lacunas42 • Dentro do escopo deste trabalho,
quele diploma se põe a regra como reserva e derradeira o~ortunidade vai-se examinar o tema do ponto de vista das regras de interpretação.
de salvar-se o negócio, visto que só se a invoca quando, depois de usar
75. A regra explicita o que a doutrina há tempo já afirmava e a prá-
as outras regras, "il contrato rimanga oscuro': nos termos do artigo 1371.
tica da advocacia, em vários contratos de maior fôlego, vinha dando exe-
70. Outro ponto importante de verificar, na infeliz redação do inciso cução: a disponibilidade que as partes têm de regular a interpretação.
IV, é que ela confere a interpretação mais benéfica à parte de não redigiu Considerando-se a gênese volitiva e a comunhão de intenção, essas re-
o contrato e sabendo-se quimérica, aduz, se identificável. Ao fazê-lo fica gras certamente gozam de validade no ordenamento eis que, como as
cl~o que não é re~ra para os contratos de adesão, até porque para ~stes citadas regras de interpretação, consistem em direito dispositivo.
esta a regra do artigo 423 do Código Civil. E a pergunta cabível é por 76. Os dois pontos que decorrem são, de um lado, a existência de
que, em um contrato com tratativas e não meramente de adesão dever- outras regras não legisladas e, de outro, o que, na sistemática legislada, é
-se-ia beneficiar quem propõe uma cláusula que, a rigor, livre~ente as
passível de volição dos contratantes.
partes concordaram após, paritariamente, terem discutido?
77. O primeiro ponto é relevante porque, antes das alterações ora
71. _Veja-se que não se está na mesma dicção do antigo Código comentadas, por força de uma construção jurisprudencial bastante ro-
Comercial segundo a qual art.131, 5 - 'nos casos duvidosos, que não pos- busta, estribada em sólida doutrina, entendia-se que os preceitos do re-
sam resolver-se segundo as bases estabelecidas, decidir-se-á emfavor do deve- vogado Código Comercial ainda se mantinham como regras, não mais
dor": ~á, naquel~ c~digo, a regra do favor debitoris traduzia outro princípio legais, mas jurisprudenciais e doutrinárias, a guiar o intérprete. Agora,
tradic10nal do direito comercial: caveat emptor. Entre comerciantes pro- com o advento das regras legais algumas que eram admitidas não retor-
fission~s ~o~ecedores do seu ramo, cada qual deve buscar prot;ger 0 nam, como, por exemplo, a regra da interpretação sistemática, segundo
seu propno mtere~se e, assim, cuide-se o comprador. Aliás, não à toa, a qual, as cláusulas mais claras explicam as ambíguas. O que já demons-
desde as Ordenaçoes, entre os contratantes profissionais do comércio tra a insuficiência da enumeração que, necessariamente terá regramen-
. . '
isso era_ assim tanto que coerentemente, o mesmo Código Comercial, tos criados por outras fontes como a jurisprudência e a doutrina.
~ue aceitava o fa_vor debitoris, proibia a lesão entre comerciantes (no ar- 78. Se as regras podem ser criadas pelas partes e se os dispositivos
tigo 220). Ou seJa, levava a cabal efeito o caveat emptor.
legais são destinados ao aplicador-intérprete, não estando em nenhuma
72. Não parece ter a mesma racionalidade a inclusão entre as re- destas previsões podem ser acrescidas? Diante do estado da arte inter-
gras ~e interpretação de uma norma cuja sentido é superado ou pela in- pretativa, se se considerar a busca da intenção comum como postulado
tenç,a~ comum ou pel_a p:-"ote~ão do aderente e que não reside, sequer,
na logica do favor debitorzs, ate porque a dáusula ambígua proposta por 42 Já referido mas merecedor de novo destaque o trabalho de Guilherme Carneiro Monteiro
Nitschke, indubitavelmente o que de mais profundo e completo se escreveu sobre o tema no
direito brasileiro:. "Lacunas Contratuais e lntepretação. História, conceito e método". Quartier
41 Op. cit., p. 409. Latin, SP, 2019.
Lu1s RENATO FERREIRA DA SILVA - 415
414 -A INTERPRETAÇÃO CONTRATUAL E SUA SISTEMÁTICA NO CóDIGO CIVIL DE 2002 APÓS ...

84. O tema sugere os pontos acima, mas muit~s _mais ~~e merecem
e a boa-fé e a ultraliteralidade como princípios, certamente outras con- · to Para celebrar a maioridade do Codigo Civil, entretan-
dutas que sirvam a este caminho devem e podem ser adotadas, o que desenvo1V1men · .
to, ficam essas reflexões que, com o amadurecimento e do Autor m e-
e· fi
não se pode perder de vista são essas figuras. . b
lizmente em ale'm da maioridade) quiçá possam ser melhor pensadas
79. Essa também parece ser a extensão do poder de disposição das • em voz não armada e mais confiante.
possam Vlf
partes ao estabelecerem uma regra contratual. Na utilização do § 2° do
artigo 113, é possível afastar-se ou estabelecer regras diversas. Pode-se,
por exemplo, dizer que em um contrato benéfico, a interpretação será
extensiva, com isso contrariando-se a regra do artigo 114. Ainda, pode-
-se dizer que todos os demais contratos firmados entre as partes não te-
rão influência no que eles estão fixando, afastando a regra do inciso II
que trata das práticas existentes entre os contratantes.
80. Esse poder arrefece, entretanto, se as partes, por exemplo, pre-
tenderem que nenhuma cláusula poderá ser interpretada por elemen-
tos externos à letra contratual (querendo-se aplicar uma espécie de paro!
evidence rufe) entre elas, isto porque o § 2° fala em alterar regra e não
princípio. Do mesmo modo, se se tentar ir contra a boa-fé, afastando-a
no que diz com a interpretação ou com a conduta da parte, novamente
estrará pactuando sobre princípio e não sobre regra.
81. Menos admissível seria que as partes quisessem impor uma ra-
zoabilidade de mercado ou uma racionalidade econômica que contra-
riasse a intenção comum por valer-se da conduta do homo economicus.
Aí o postulado normativo estaria sendo ignorado, conduta tão grave
como ignorar a proporcionalidade ao aplicar as normas, especialmente
as principiológicas.
82. Em ambas as situações a cláusula esbarraria em questões de or-
dem pública. Como bem diz Genevieve Helleringer, ':Accords conventio-
nnels ayant pour qfet de modifier l'ojfice dujuge, les clauses de différend sont
valables en vertu du príncipe de liberté contractuelle, sous réserve de ne pas
porter atteinte à l'ojfice impératifdu juge, élément de l'ordre publicjudiciaire"43 •
83. O esforço de sistematizar os dispositivos dos artigos 112 e 113
na nova redação, portanto, tem como foco fixar o papel que cada um
desempenha na estruturação da interpretação e, com isto, delimitar os
poderes do intérprete e das próprias partes ao darem a sua própria lei
de interpretação.

43 "Quand les parties font leur loi - Réflexion sur la contractualisation du pouvoir judiciaire
d'interprétation" in Repenser le contrat, Dalloz, Paris. 2009, org. Gregory Lewkowicz etMikha"iln
Xifaras, p. 291.
VÉRA MARIA JACOB DE FRADERA - 417

Ili. INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS

VéraMariaJacob de Fradera1
La comunicación de las ideas sefía!adas por las palabras no es ni e!
principal ni e! solo jin dei lenguaje, como se supone comumente. 2

INTRODUÇÃO
Muito honrada pelo convite dos ilustres colegas, Doutores Jorge
Cesa e Henrique Barbosa, organizadores desta obra coletiva, a quem
cumprimento e agradeço efusivamente, pela possibilidade de livre es-
colha do tema por parte dos autores. Desta sorte, informo ter recaído
minha escolha sobre assunto anteriormente objeto de um meu estudo,
então apresentado de forma sucinta, o qual será agora mais detalhado.
No referente ao tema por mim escolhido, destaco o fato de, des-
de a sua inserção como Enunciado de nº 409 ao artigo 113 do Código
Civil brasileiro, após aprovação pela Comissão Julgadora, durante as V
Jornadas do CJF, ocorridas em 2011 3 , foram publicados estudos, artigos
e até mesmo uma tese, muito recente, onde o tema foi ventilado, dadas
as modificações sofridas em relação ao antigo texto, constante do Código
de 1916. Mais recentemente, outras alterações foram nele introduzidas,
pela Lei da Liberdade econômica, lei 13.874/2019.
Afora isso, todos conhecemos as intensas discussões travadas des-
de épocas mais recuadas, sobre a difícil tarefa de interpretar o sentido
pretendido pelos contratantes ou pelo legislador no caso da lei, visando
criar instrumentos para desvendar o emprego de determinado vocábulo.
Por óbvio, trata-se de assunto de relevância na prática de advogados,
magistrados, árbitros, pareceristas e tradutores, gerando, amiúde, dúvi-
das e incertezas. Por certo, estas reflexões não têm a pretensão de esgo-
tar o tema, apenas contribuir, dentro do possível, para uma compreensão

Mestre e doutora em direito pela Universidade de Paris li, advogada em Porto Alegre, professora
convidada na UFRGS.
2 CARRIÓ, Genaro R Notas sobre Derecho y Lenguaje. 3ª ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1985,
p.40.
3 Cons. obra contendo a publicação enunciados resultantes da Vª Jornada de Direito Civil.
Organização: Ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr. Brasília: CJF, pub. online em 2012, p. 388.
Sobre o mesmo tema, cons. artigo de minha lavra "A interpretação dos negócios jurídicos
empreendidos no Brasil e o alargamento das hipóteses previstas no art. 113 do Código Civil
brasileiro, mediante inspiração do art. 9º da CISG", inA Cisg e o Brasil, lngeborg SCHWENZER,
César A. GUIMARÃES PEREIRA e Leandro TRIPODI (orgs.), Marcial Pons Editora do Brasil, São
Paulo, 2015, p. 569.
418 - INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS
VÉRA MARIA JACOB DE FRADERA- 419

~ais alargada deste assunto tormentoso, mediante o recurso à compara- concepção de contrato é a de uma relação de cooperação, de desempe-
çao de seu tratamento com Códigos mais recentes.
nho de atividade importante para a sociedade e seus membros, algo tí-
Desta sorte, o meu enunciado ao art. 113, anteriormente apresen- pico dos povos voltados precipuamente ao comércio.
tado e aprovado, nas V Jornadas do CNJ será ampliado, tendo em vis- Esta reconhecida característica do nosso comportamento contratual,
ta a oportuni~ade ensejada pelo prestigioso convite dos organizadores ainda persiste, embora a enormidade de obras produzidas sobre o papel
d~sta obra, pois a extensão da justificativa do enunciado, à época, era li- da boa-fé nessa relação, além da ênfase dada pela jurisprudência à ne-
mitada a poucas linhas.
cessidade de cooperação entre os seus partícipes, pouco, ou quase nada,
Como anteriormente referido, há longo tempo este tema vem sen- tem sido alterado nesse aspecto. Isso demonstra claramente o quanto
do objeto _de estudo e pesquisa de civilistas de todos os quadrantes, ha- complexa se torna a tarefa da interpretação do escopo dos membros da
vendo vanedade de definições acerca do vocábulo "interpretação". relação contratual.
Ini~io_ com a definição de M. Troper, para quem "a interpretação é Assim, na 1ª parte deste estudo, tratarei das regras de interpreta-
a operaçao mtelectualpela qual dá-se sentido a um signo, um discurso ou um ção do contrato nos Códigos Civis brasileiros (1916 e 2002) e no nosso
escrito". 4 revogado Código Comercial de 18508, bem como das introduzidas pela
Já K. Larenz afuma não ser a interpretação uma operação mate- Lei da Liberdade Econômica de 2019, cotejando-as com o BGB, da-
mática, sim uma atividade intelectual criadora, refletindo bem a manei- das as semelhanças e algumas pequenas diferenças interessantes entre
ra como é vista essa operação pelos juristas alemães. 5 os textos legais de nossas Codificações com a do BGB.
P~r outro lado, ensina o Professor Batiffol que "a busca de sentido, Neste caso, será feita uma menção, inserta no Code Napoléon, resul-
para o mtérpre~e, passa tanto pela busca do pensamento de seu autor como pela tante de alteração introduzida pela reforma no seu direito das obriga-
descoberta da direção a seguir em caso de incerteza". 6 ções de 2016, na letra do art. 1.1889, referente à interpretação, em razão
_ N~ste aspecto, há uma provada relação de proximidade entre a ques- de um movimento social.
tao da mterpretação jurídica e o idioma no qual está redigida a regra, Já na 2ª parte deste estudo, trarei à baila as escolhas de Códigos re-
como b~m e~p~sto por Jean Louis Sourioux, em um de seus instigan- centes em matéria de regras de interpretação e integração dos contratos
tes escnt~s, mti~ado Les fonctions langagieres du droii1. Assim, pode- e a forte influência da CISG sobre algumas dessas escolhas.
mos considerar a mterpretação jurídica com a leitura de palavras uma À título de comparação e, sobretudo, como demonstração da atu-
leitura levando em conta todos, ou quase todos, os componentes d~ fato al crescente influência de textos internacionais sobre recentes codifica-
cultural em análise, no caso, o contrato. ções neste preciso campo da interpretação contratual, apresentarei as
Aqui, a _meu ver, está posto o grande problema da interpretação do escolhas de legisladores de dois Códigos Civis, o romeno e o argentino,
contrato, pois as normas ditas interpretativas deveriam conciliar esses cujos sistemas, assim como o nosso, integram a família romano-germâ-
aspectos da busca do sentido de um contrato. nica de direito.
Entre nós, todavia apegados a uma concepção latina do contrato,
a~amos, na grande maioria das vezes, com desconfiança e pessimismo, 8 Conforme pontua Maria Regina Diniz HECK, referindo-se à maneira como pode ser possível a
diversamente dos contratantes de origem germânica ou anglo-saxã, cuja compreensão de um texto, afirma, com apoio em Gademer, que é preciso ser versado na coisa
em questão, ou seja, ter a pré-compreensão, não sobre a coisa, mas na coisa, que, no caso,
4 TR?:ER, Michael. lnferprétation. ln: Stéphane Riais e Denis Alland. Dictionnaire de la culture seria a matéria do texto. Ademais, entende a autora ser necessário "transpor-se para o tradição
;und1que. L. CADIET, PUF, 2004. à qual o texto pertence, quebrando a tensão existente entre o estranhamento e a familiaridade e ter
5 consciência histórica da distância temporal entre o autor (no caso, o legislador) e o intérprete". E
~;:_ENZ, Karl. Methoden Lehre der Rechtswissenschaft. Springer, Ed.Berlin, 6.Auflage, 1991 p.
segue com a seguinte importante reflexão: "esse conhecimento da temporalidade do texto permite
6 realizarafusão de horizontes entre o passado e o presente, e, consequentemente, a possibilidade de
BAl_TIF~)L, Henri. Questions d' lnterprétation juridique, Archives de philosophie du droit nº
Pans: 5Jrey, 1972, p. 09 ss. ' 17· ampliação e abertura de novos horizontes''. HECK, Maria Regina Diniz. O ensino do Latim no Brasil,
7 SOURIOUX, Jean-Louis. Parle Droit, au-délà du Droit. Paris: LexisNexis, 2011 , p. 6 55 _ Objetivos, Método e Tradição. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris editor, 2020, p. 27.
3 7 9 Antigo art. 1 156.
420 - INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS

VERA MARIA JACOB DE FRADERA - 42l

Essas reflexões visam contribuir, embora sem esgotar o assunto, para


uma maior informação sobre esse tormentoso tema, mediante a exposi- J , 0 Có d1.go C omerc1.al de 1850 continha' no seu
_ entender,um. bom_
ção de novos critérios, recentemente adotados acerca do tratamento do , a d disposições gerais acerca da interpretaçao contratual, mser
assunto em pauta. numero e d t· 131·
tas no seu reVogado ' mas tantas vezes evoca o, ar igo D. .
dentre elas, a inteligência simples e adequada, que or mais
1 a PARTE: As DIRETRIZES PARA A INTERPRETAÇÃO DO CONTRATO ••• .e rme a' boa-fé e ao verdadeiro espírito e natureza do con-
conio ' · · ifi -
DISPOSTAS NOS Córneos C1v1s BRASILEIROS DE 1916 E trato, deve sempre prevalecer à rigorosa e estrita si~n caçao
2002 E NA RECENTE REFORMA INTRODUZIDA PELA LEI DA d alavras· que as cláusulas duvidosas serão entendidas pelas
LIBERDADE ECONÔMICA, LEI 13.874/2019. as P
que nao - o 1•.co,rem , e que as partes tiverem admitido• e as antece-
li -
dentes e subsequentes que estiverem em harmoma exp carao
Como determinam as regras da sistemática de redação de um arti-
as ambíguas. . .
go científico, relativo a um tema jurídico, inserido em um ou mais tex-
Muito interessante e todavia atual é a redação do mc1so IV do art.
tos legais, em diferentes épocas, devemos nos debruçar, primeiramente,
nos documentos legislativos antecedentes ao atual, para após iniciar a l31 do mencionado Código: , .
tarefa de comparação entre os textos. , ,-:ca geralmente observada no comerc10 nos casos
uso e a prau
0 d
Desta sorte, vou, de forma resumida, expor o tratamento da interpre-
d~ mesma natureza, especialmente o costume do l~gar ?~ e.º
contrato deva ter execução, prevalecerão a qualquer mteligencia
tação dos contratos nos Códigos Civil de 1916 e no Comercial de 1850. em contrário que se pretenda dar às palavras. .
A. ÜS TEXTOS CONSTANTES DAS REGRAS RELATIVAS À INTERPRETAÇÃO Como se percebe, o legislador do Código Comercial :d~to::::
DO CONTRATO DECORRENTES DO Córneo ÜVIL DE
Córneo COMERCIAL DE 1850
1916 E DO
~~:ç:. -o obºetivista calcada nos usos e costumes e na boa-fe, e a
se}modelo' legislativo inspirador, o Cod: de Com7:ierce d;.;sc:;1;
influenciado este, muito de perto, por seu congenere italiano, e 1, ~a
Adotando
10
a diretriz preconizada por Regina Heck, supra mencio-
nada , optei por trazer à lume e analisar os textos mais recuados, com o
sobre o jus mercatorum, donde a referência aos usos e cos_tumes e a ºª:
-fé, elementos relacionados ao comércio e, desta sorte, incorporados a
objetivo de apreender a sua temporalidade, para, posteriormente, reali-
/ex mercatoria. . . • d
zar a fusão entre o passado e o presente, e, consequentemente, ampliar
os novos horizontes. Reunindo os dois critérios, subjetivista de um lado e obJet1v~sta e
h q ue Junqueira de Azevedo considera uma soluçao con-
Neste sentido, o Professor Antônio Junqueira de Azevedo, em in- outro c ega-se ao · · d' · b si/eira
ciliad~ra, segundo suas palavras,muito própria da;urispru encia ra .
teressante texto redigido sob forma de Parecer, reflete sobre a maneira
Conclui o citado autor, em passagem constante de outra de suas
distinta como os legisladores do Código Civil de 1916 e o do Comercial
obras: 13
de 1850 regularam a questão da interpretação do contrato.
O que importa salientar é que, para o p~nt? _de que nos o~u~
De acordo com o Mestre das Arcadas, o legislador do Código Civil do conflito entre a intenção (subJetiv1Smo) e a boa fe
11
de 1916 foi avaro em matéria de previsão de regras para interpretação pamos, - h, d · -
(objetivismo) como critérios de interpretaçao, ª. _e~1soes que
do contrato, pois previu apenas um (01) artigo contendo diretivas inter- implícita ou mesmo expressamente, utilizam o c~1t_eno da boa:
pretativas gerais para as declarações de vontade, qual seja, o artigo 85 12 , -fé ao lado da intenção para interpretar o ~egoc_1~; a boa-fe,
cujo teor é de cunho _subjetivista. apesar do silêncio do Código (Civil), é critério utilizado pelos
nossos tribunais.
10 V. nota 8 supra.
11 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Estudos e Pareceres de Direito Privado com remissões ao novo
Código Civil (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002). São Paulo: Editora Saraiva, 2 004, p. 163.
12 Nas declarações de vontade se atenderá mais a sua intenção que ao sentido literal da linguagem. 13 • . Ju nque·1ra de · Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. 1 a Edição. São
AZEVED O , Antorno
Paulo: Saraiva, 2 ooo, p. 117.
VÉRA MARIA JACOB DE fRADERA - 423
422 - INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS

§ 133 relativo à interpretação das declarações de vontade: "para


No referente ao Código Civil de 2002, houve ampliação do elenco
em seu - d' a declaração de vontade, épreciso buscar a vontade real e
e acréscimo ao texto das normas relativas à interpretação dos contratos, interpretaçao e um - " 17
como se verá seguir. _ ater-se ao sentido literal da expressao •
nao · , · d
A comprovar a tendência para uma interpretação mais proxim_a . as
8. As NORMAS RELATIVAS À INTERPRETAÇÃO CONTRATUAL NO - tabuladas no mundo dos negócios, nos deparamos, no Codigo
Córneo re1açoes en d · t
CtvtL DE 2002: A PROXIMIDADE COM UMA NOÇÃO Civil de 2002 com o art. 113, cujo teor correspon e a uma mterpre a-
MAIS COMERCIALISTA E MENOS CIVILISTA DA RELAÇÃO CONTRATUAL - b. n·VI·st~ do contrato, a mesma adotada pelo legislador do BGB e
çao o ~e ·al ' · d 1850· "O -
De início, convém frisar ter sido o legislador de 2002 mais generoso a do legislador do revogado Código Comerei patno, e . s ne
do que Beviláqua em matéria de edição de normas de interpretação das gócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-Je e os usos do lugar
declarações de vontade e dos contratos, editando a respeito três regras, de sua celebração". . ,
exaradas nos artigos 112, 113 e 11414 • Este último artigo não será obje- No próximo segmento, apresentarei uma breve análise do recurso a
to de análise nesta oportunidade, pois foge ao tema central aqui tratado, boa-fé na interpretação do contrato. A propositada_brevida~e tem fulcro
especificamente a interpretação dos contratos onerosos. • teAnci·a de um sem número de obras, desde livros, artigos, parece-
na exis , . d 20021s - d
O texto do artigo 112, referente às declarações de vontade, bastan- comentários sobre os artigos 113 do Codigo e , nao se~ .º
te próximo do artigo 85 do diploma revogado, dispõe: "nas declarações de ~~jeto deste artigo esgotar a temática ou analisar ou comentar as opm1-
vontade se atenderá mais à intencão nelas consubstanciada do que ao sentido ões a respeito, emitidas nessas obras.
literal da linguagem" (grifos meus).
8.1. A BOA-FÉ COMO CRITÉRIO INTERPRETATIVO DOS CONTRATOS NO
A diferença entre os dois textos, o do artigo 85 revogado e o atual, CóDIGO CIVIL DE 2002 E NO 8GB, NO§ 157
está na expressão nelas consubstanciada, inexistente na redação do artigo
Como antes exposto, embora o Código Ci_vil de ~9~6 não contas-
anterior, relativo ao mesmo assunto 15 .
se com uma norma referindo a boa-fé em sentido obJet~vo, como nor-
Segundo a Doutrina, esta menção reforça o elemento objetivo na comportamento dos contratantes, a partir dos anos 90,
interpretação da declaração de vontade, ou seja, a intenção deve ser ex- ma a. regular O
", d e Cl'ovis
· do
ternada pelo declarante. med iant e a d"vulgaça~o
1
da obra "A Obrigação como Processo
. , .
cada em 197619 ela foi erigida a pnnc1p10 pressupos-
C outo e Silva, publi ' • , 1 d" ·
Embora possa ser apontada esta modificação no texto do art. 112 to no direito civil e passou a ser reconhecida como aplicave no ir~lto
como um progresso, há quem a ele apresente objeções, considerando-o das obrigações, como princípio e como standard, bem antes da publica-
"defàsado desde o seu nascimento", conforme expresso por José Roberto de 20
ção do Código Reale, em 2002 •
Castro Neves 16, em razão da adoção da teoria da declaração.
Na opinião deste autor," a melhor interpretação seria medida pela con-
17 § 133 :Sei de_r A_uslegu~g e,d·nerAWild/ensk~rklii~~4e~t(:~t~!~t~;el~~lf~~:1~;s1~~~a~:~i~~~b:~
fiança que uma parte legitimamente despertou na outra", porquanto a te- dembuchstabltchenSmne es us ruc szu 'J' · ,

oria da confiança se apresenta mais atual e condizente com a realidade 199 1) .. E SILVA Clóvis. A Obrigação como Processo. São Paulo: J_o_sé
18 V. por todos, no Brasil. COUTO . MARTÍNS-COSTA Judith.ABoa-Féno DireitoPrivado:cntenos
do mundo dos negócios. O BGB adota regra semelhante à do art. 112, Butschasky, 1976 e, recentemente. . ,
. - a Ed s-o Paulo· Saraiva ~018.
para a sua ap /,caçoa. 2 · ª · d 'êo to e Silva por ocasião do concurso de livre-
14 Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente. V., a respeito: 19 Esta obra tem origem na tese apresenta a por u d'd 66
• · · · d d d' ·t · ·1 na UFRGS defen I a em 19 .
NEVES,José Roberto de Castro. O comportamento das partes como elemento da integração docenc1a a c~te, r~ e ~;~~t~~'sempenha' três funções: interpretação, concr 7tiza_çãod e
dos contratos. ln: Direito, Cultura, Método, Leituras do obro de Judith Martins-Costa, Giovana 20 Enquanto principio, a . ões conforme a matéria onde e aplica a,
Benetti, André Corrêa, Márcia Santana Fernandes, Guilherme Carneiro Monteiro Nitschke, controle; como standard, recebe variadas ~~~~ioédÍa de conduta social, capaz de adaptar-
Mariana Pargendler, Laura Beck Varela (Orgs.). Rio de Janeiro: Editora G/Z, 2019, p. 614. da?o o fato_ d~ o standard fornecer utattALUZOT qualifica o standard da boa-fé como um
15 Nas declarações de vontade se atenderá mais a sua intenção que ao sentido literal da linguagem. se as pecuhandade~ do c?~º concre 0 · · t" . duvidosa tendo como vantagem sua
16 NEVES,José Roberto de Castro. O comportamento das partes como elemento da integração canc_e~t? de geometria va_navel, dotadi ~;Rc;~~:;~~éra Maria Jacob de. A Boa-fé Objetiva:
flex1b1hdade. V. a respeito me~ e st ul ·• b 'leiro e i·aponês de contrato. ln: Cadernos do
0
dos contratos. ln: Direito, Cultura, Método, Leituras do obro de Judith Martins-Costa, Giovana
Benetti, André Corrêa, Márcia Santana Fernandes, Guilherme Carneiro Monteiro Nitschke, uma noção presente no conceito a emao, ras1
Programa de Pós-graduação em Direito-PPGDir/ UFRGS, nov./2003, P· 125-14o.
Mariana Pargendler, Laura Beck Varela (Orgs.). Rio de Janeiro: Editora G/Z, 2019. p. 610.
VERA MARIA JACOB DE fRADERA - 425
424 - INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS

E t §157 tem grande relevância por ser o único a reger a inter-


A divulgação e análise aprofundada do conceito de boa-fé obje-
~ edos contratos 27 e O faz de maneira muito peculiar, sobretudo
tiva e de sua correta aplicação, na obra "Obrigação como Processo", pro- pretaçao '
vocou enorme reação nos meios jurídicos de então, e, embora de início Para do aos termos do Code Napoléon.
se com . d
mal compreendida, acabou se tornando, ''por um hábito tristemente pecu- t algum as reflexões merecem ser feitas em torno essa
D esta sor e, fi' ·
liar ao Brasil, uma bala de prata para liquidar questões jurídicas"21 , na bem uliar do legislador alemão, de consagrar a boa- e como cn-
1h
esco a pe C d d · - d n
encontrada expressão de Otávio Luiz Rodrigues J., ao se referir à ma- , . de iºnterpretação dos contratos, destacan o-a a mtençao os co -
teno d 1 · -
neira como, em alguns setores da Doutrina, da Magistratura e no am- tratantes, transformando-a em algo distinto e a, mtençao.
biente da advocacia, vem sendo utilizada a noção principal da boa-fé. No momento das discussões dos legisladores alemães em torno do
No Código Civil de 2002 encontramos o art. 113, cujo teor cor- do BGB foi decidido dividi-lo em duas regras, co-
texto d o fu turo §242 ' . , .
responde a uma interpretação objetivista do contrato, a mesma adotada oca das em duas partes distintas deste Código, _ uma relativa a mterpre-
1
pelo legislador do BGB e pelo legislador do revogado Código Comercial tacão do contrato e, em outra, a sua execuçao.
pátrio de 1850: "Os negócios jurídicos devem ser interpretados coriforme a , De acordo com a explanação de Béatrice Jaluzo:, essa escolha re-
boa-je e os usos do lugar de sua celebração". ultou na separação de duas operações intimamente ligadas, porquanto
Este artigo foi denominado artigo-chave por Miguel Reale, sen- :em ser interpretado o contrato não pod: ser adequada~ente e~ecuta-_
do considerado o alicerce da diretriz da eticidade, traço marcante do ·s "intertiretar um contrato é determinar o seu conteudo e, pma pode1
d o, poi r . , ·l p -
Código de 200222 . exi ir a boa-fé na sua execução, é imprescmdivel apura~ aqui o a que ~s, ar
Judith Martins-Costa, citando Miguel Reale a.firma, ao comentar tes gse obrigmam
· . ", confiorrrie se manifestara a Doutrina francesa, F nos
este art.113, 23 que "o seu teor condiciona e legitima a interpretação das cláu- . , . d , ulo:XX2s
llllClOS o sec . . .
sulas contratuais até as suas últimas consequências', auxiliando no proces- Logo a boa-fé é aqui entendida sob duas perspectivas. Na primei-
so de interpretação das cláusulas contratuais, servindo de instrumento ra, como ~ma regra para desvendar o conteúdo do contrato, e, na se-
para uma análise objetiva das normas estipuladas no pacto. gunda, como uma regra a determinar o comportamento das partes na
Ademais, ainda segundo o Legislador do Código Civil de 2002, todo execução do contrato. . . , .
contrato visa um objetivo, com ele as partes pretendem atingir uma fi- Por outro lado, de acordo com a Doutrina e a JUnsprude~cia ger-
nalidade econômico-social24 . Esta finalidade é o primeiro objeto de in- mânicas, interpretar um contrato não significa somente deter~una~-lhe
terpretação do contrato, tal como entendia Henri Battifol, para quem o senti"do, mas tambe'm lhe preencher possíveis lacunas, nele msermdo,
"a busca de sentido, para o intérprete, passa tanto pela busca do pensamento se for O caso, elementos exteriores.
de seu autor como pela descoberta da direção a seguir em caso de incerteza"25 • Este é um ponto muito peculiar dessa temática, po~s, ?este passo,
Voltando o olhar ao direito alemão, verificamos ter o §157 do BGB os alemães adotam posição distinta da francesa e da brasileira.
redação semelhante à do nosso art. 113: "Os contratos devem ser interpre- Enquanto os franceses e outros sistemas, nesse especial terr~n~, pre-
tados como o exige a boa-je, levando em conta os usos de trt!fico."26 enchem as lacunas contratuais acaso detectadas de forma cas~1stica? ~a
21 Como refere o Professor Otávio Luiz RODRIGUES Jr., em sua apresentação ao livro Mitigação Alemanha existem para tal regras precisas, orientando a atuaçao do JUlZ
de Danos na Responsabilidade Civil, de Daniel Dias, RT, São Paulo, 2020, p. 22.
22 REALE, Miguel. Um artigo-chave do Código Civil. Estudos preliminares do Código Civil. São Paulo:
nesse mister. E isso é tão importante, a ponto de a Suprema Corte ale-
Revista dos Tribunais, 2003, p. 75 ss.
23 REALE, Miguel. A boa-fé no Código Civil. História da Novo Código Civil. São Paulo: Revista dos · · · · • eia ou não de distinção entre interpretação do
Tribunais, 2005, p. 248. 27 Indagação importante _diz resp_e1t? a elx1st:n C, JALUZOT Béatrice. La Bonne Foi dons les
contrato e sua execuçao, no direito a emao. ons. ,
24 REALE, Miguel. Diretrizes do Hermenêutica Contratual. Questões de Direito Privado. São Paulo: 1 8 5
Saraiva, 1997, p. 05. Contrats. Pairs: Dallo~, 20 0 1, P· 5 : · d 't ·ner/econtenuetpourpouvoirexigerla bonnefoi
25 BATTIFOL, Henri. Questions d' lnterprétation juridique, Archives de philosophie du droit, nº 17. J-
No or(g!nal: .._.mtderpreterun c~7'fitra~ ~~;;d s~:~'rr~e à quoi /es partiessont obligées. Cf. PLAN_IOL,
Paris: Sirey, 1972, pp. 09 e segs. dons/ execut!On es contrais, 1 ou . . . .,e droit civi/firançais. Tomo IV - Les Obligatwns.
M., G. RIPERT, G., ESMEIN, P. Tra1te pratique u,
26 §157: Vertrãge sindso ouszulegen, wie Treu und Glauben mil Rücksicht aufdie Verkehrssitte es erfordern
(idem). Paris: Premiere Partie, 1930, nº 379·
VÉRA MARIA JACOB DE fRADERA- 427
426 - INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS

uma vez mais, a boa-fé atua em dois quadros, assim como


mã t_~r consagrado a denominada Interpretação Completiva2 9 dos Contratos
faz em relação a quase todas as regras extraídas do prin-
(erganzende Vertragsauslegung), cuja primeira referência data de 19153º
cípio Treu und Glauben, ela serve ao mesmo tempo de
erigida sobre o §157 do BGB,com fulcro na boa-fé, todavia intacta em~ 34

bora, e~entualmente, a Corte também invoque o §133, o qual ir:ipõe, fundamento jurídico e de critério à regra criada •
c~mo visto, a pesquisa da vontade real para interpretação das declara- A seguir, seguindo na análise do artigo 113 do Código Civil de
çoes de vontade, no que é secundado pelo §157. 31 2002, será abordada a utilização dos usos como recurso interpretativo
Contudo, a interpretação completiva não pode ser realizada livre- dos contratos.
mente, é regida por limites muito estreitos. Assim, antes de tudo a sua B.2. Os Usos COMO RECURSO INTERPRETATIVO DOS CONTRATOS
aplicação tem como requisito primeiro a existência de uma lacun~ evi- Conquanto a boa-fé em sentido subjetivo e também no objetivo te-
~ando, desta sorte, a possibilidade de o intérprete, alegando razõ~s de nha estado presente no Código Comercial brasileiro de 1850 e no Civil
interpretação, acabar por modificar o contrato, por um motivo de equi- de 1916 (neste de forma pressuposta) e, no atual, de 2002, expressamen-
dade. Merece destaque o fato de não poder ser alegada uma lacuna so- te, inclusive no artigo onde estão postas as regras sobre interpretação do
mente porque determinado aspecto da avença não tenha sido regrada contrato, as referências a um outro recurso à interpretação e preenchi-
pelas partes. mento de lacunas contratuais, qual seja, os usos, nesses diplomas foram
. ~ara que haja uma lacuna suscetível de ser preenchida é necessá- 35
sempre parcimoniosas .
no nao terem os contratantes previsto determinada circunstância, a qual Ao reler o texto do meu antigo enunciado ao art. 113, tendo em
vem a ocorrer na sequência32 . vista a redação deste artigo, verifiquei ter, na época, emitido a seguinte
Outra possibilidade de ocorrência de lacuna dá-se face à circuns- reflexão: na prática, embora ocorra eventualmente a sua invocação (usos
tância de uma cláusula contratual vir a ser anulada. e costumes), "a Doutrina e jurisprudência todavia não perceberam todo o
Contudo, nem toda lacuna necessita ser preenchida de forma com- seu potencial interpretativo".
pleti:7a, pois existem :s normas supletivas previstas em lei para O seu pre- Contudo, a partir de um dado momento, a Doutrina nacional pas-
enchimento, a boa-fe, os usos, os costumes, as práticas das partes, bem sou a ocupar-se do assunto, com destaque para Judith-Martins-Costa,
como outros recursos, admitidos, embora não previstos em lei como 0 tendo percebido no termo usos, constante do art.113 do Código Civil
exame do preâmbulo do contrato (quando houver) e a equidade. 33 de 2002, um caráter polissêmico, ou seja, o termo usos, em sentido her-
Relevante transcrever as conclusões de Béatrice Jaluzot acerca des- menêutico, é dotado de natureza bifuncional, porquanto, por meio desse
se papel da boa-fé: vocábulo, alude-se a duas utilidades distintas, interpretação (do contra-
to) e integração (das lacunas) 36 .
Desta sorte, a anterior situação de desatenção pela notável poten-
29 Cf. Dicionário HOUAISS da língua portuguesa, Editora Objetiva, 2001. Verb. completivo que cialidade dos usos como ferramenta de interpretação e integração dos
preenche'. que acrescenta para tornar algo completo, p. 776. '
30 RG,_19 de Junho ?e 1915, RGZ(Reichs Gericht Zeitung) n. 87, p. 211 e segs. cit. por B.JALUZOT
31 Na !1teratura nacional, V. sobre esse tema, o recente estudo de Guilherme Nitschke. NITSCHKE 34 No original: lei encare/a bonnefoijoue surdeux tableaux, ainsi qu'e/lelefaitpourpresque toutes les
Guilherme. Lacunas Contratuais e Interpretação. São Paulo: Quartier Latin, 2019, pp. 350 a 351 '. rêgles issues du príncipe de Treu und Glauben, elle sert à la fois de Jondement juridique et de critere
32 Claude ":'IT~ alu_de a~~ exem~lo_ tornando bem clara a situação onde se realiza a interpreta ão à la regle créée. Op. cit. p. 438, n. 1525.
comple~1~a. dois ~ed1co~, _clinicando em dois locais distintos, realizam a troca de s~us 35 Na minha opinião, várias foram as causas dessa escolha do legislador, por exemplo, o rigoroso
consultonos.
• f Depois
·d de vanos. meses, ,tendo surgido um litígio , um dos me"d•1cos d ec1·d e se espírito positivista legalista, predominante desde o início do século XX, persistindo entre nós
re!nsta ar em sua c1 ade de origem, proximo de seu antigo consultório. A questão que se ôs até os anos 90, atribuía-lhes pouco relevo, relegando-os prioritariamente à esfera do Direito
foi a de saber se? contrato :e opunha à reinstalação. A Bundesgerichthofinvocou O princ{ io Comercial. Hoje, a situação revela-se distinta, sobretudo porque o atual Código Cívil unificou
segundo o qual a mterp_retaçao completiva implica em uma lacuna necessitando ser preenchfda as obrigações civis e comerciais, carreando para o interior do Código Civil, por uma espécie
e q~e est_e era o caso, Vide: WITZ, Claude. DraitPrivéAllemand,Actesjuridiques DraitsSub'}·ectiifs de contaminação, alguns traços típicos da atividade comercialista.
Pans: Ed1teur LITEC, 1992, p. 178. ' · 36 V. MARTINS-COSTA, Judith.A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 474
33 Trata-se ~je equidade contrat~al, n~o aquela de que é investido o Magistrado em seu mister. o
recurso a equidade como meio de integrar o contrato visa precipuamente a sua conservação. e segs.
428 - INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS
VERA MARIA JACOB DE FRADERA - 429

contratos vem sofrendo uma auspiciosa modificação, dada a publicação


de recentes e excelentes estudos a respeito. Acredito possam os termos deste artigo 9°, em sua primei,ra parte,
tar uma relevante contribuição da CISG, agora parte de nosso
Como se depreende do exposto, está ocorrendo um interesse re- represen . - d , · · 'd.
ard enamento nacional , para a mterpretaçao os negoc10s JUn
. icos, cor-
novado por parte da Doutrina nacional no referente à interpretação do roborando a jurisprudência internacional no meu entendimento.
contrato e formas de integração das lacunas contratuais, sendo isto mo-
tivo de júbilo. Podemos iniciar nossas reflexões pela definição do vocábulo ''prá-
tzcas, tal como resulta do texto do artigo 9° da CISG: "Práticas· sãod esta-
. "
.. Além dos usos a que se refere o legislador no artigo 113 do Código belecidas mediante uma conduta regular, a qual cria uma expectativa e que
Civil, outros recursos existem, merecendo galgar o status de fonte in- essa conduta sera, manti·da. "4º
terpretativa dos negócios jurídicos, em especial, os contratos. Estou me
Os professores Schlechtriem e Schwenzer, em seu co1:1"~ntário ~-
referindo às práticas das partes, já reputadas como tal, em documen- 41
tos internacionais, como a Convenção de Viena de 1980 sobre Venda tigo po r aru·go da CISG , explicam serem relevantes as
. . praticas_ segui-
.
Internacional de Mercadorias. ' das pelas partes, desde que tenham uma certa freqüência e dura~ao e CUJa
ocorrência não se tenha dado dentro de uma circunstância particular, ou
Este será o tema do próximo segmento. seja, de forma excepcional.
8.3. As PRÁTICAS DAS PARTES Ao comentarem o mesmo artigo, Bianca e Bonnell destacam serem
tais práticas aplicáveis não somente para suprir termos do acordo contratu-
_ Estou aludindo às práticas desenvolvidas entre as partes em rela-
al, mas também para determinar a intenção das partes42 •
çao ao seu c_ontr~to, tomando por base o reconhecimento do princípio
d_a autonomia privada, um dos alicerces do direito privado. Como anun- Há de ser referido ainda o fato de, em não existindo um contrato
ciado supra, este trecho de meu artigo tem como fonte o texto apresen- precedente entre as mes1:1as par~es n~~ podem as práticas ser estabele-
tado nas V Jornadas de Direito Civil do CJF, em 2011. cidas. Contudo, em existmdo tais praticas, surge entre os membros da
relação contratual uma expectativa legítima de que ~las conti~uarão a
Na época, meu objetivo, ao sugerir enunciado, foi o de contribuir
ser mantidas nas suas futuras relações, resultando dai a necessidade de
para uma melhor e mais extensa interpretação dos negócios jurídicos, so- , · 43 .
reconhecerem elas determinada conduta como uma pratica
bretudo a dos contratos, sua mais notável espécie, trazendo para O âmbi-
to do artigo 113 as práticas estabelecidas entre as partes no seu contrato. Não obstante, em determinado momento, é possível venham as par-
tes a desinteressar-se pela manutenção de uma prática, desta sorte, de-
. Buscando inspiração no texto da CISG37, especificamente na pri-
verão realizar uma mudança de comportamento no seu agir contratual.
meira parte do seu artigo 9°, ali encontrei o seguinte: "as partes se obri-
Se a renúncia a determinada prática ocorrer de maneira unilateral, isso
gam por qualquer uso a que tenham convencionado e -/Jor qualquer Prática
estabelecida entre elas" 38 (grifo meu). 1
1
importará mudança apenas em relação ao futuro.
Interessante lembrar um julgado do Tribunal de Justiça do Estado
As práticas referidas na CISG, segundo Franco Ferrari um dos mais
. ' do Rio Grande do Sul, proferido bem antes da recepção da CISG pelo
~m~ortantes comentaristas da CISG, define-as como sendo aquelas que,
a diferença dos usos, não resultam de uma praxe generalizada no inte- nosso país, seu Relator, o eminente Desembargador Armín!o Lim~ ~a
Rosa, em ação de resolução contratual onde ocorrera a cessao de direi-
r~or de determinado setor do tráfico, mas sim do comportamento indi-
vidual! 1:1-antido pelas próprias partes, por ocasião de anteriores relações HONNOLD,John O. Uniform Lawforlnternationa/Salesunderthe1980 United Nations Convention.
negociais entre elas estipuladas 39 • 3ª ed. The Hague: Kluwer Law lnternational, 1999, p. 124-13. .
41 SCHLECHTRIEM, Peter. SCHWENZER, lngeborg. Commentary o_n th~ UN Convent1on on the
37 Conv~n5ão ~e Viena de 1980 sobre Venda Internacional de Mercadorias. international Safe of Goods (CISG). 3 ª edição. Oxford: Oxford Umvers1ty Press, 2010, p. 182 e
38
No 0~1gmal: . (1) The parties are bound by any usage to which they have agreed and by any
pract1ces wh1ch they have established between themselves". 42 ~~f~cA, Massimo; BONELL, Michael Joachim. Commentary on the lnternotionol Sales Law: the
39 1980 Vienna Sales Convention. Milão: Giuffr_ê, 1987, p. 10~. .
FER~ARI,_ franco. La rilevanza degli usi nella Canvenziane di Vienna sulla vendita internazionale di
ben, mob,b. ln: Contrato e lmpresa, anno X, n. 1, 1994, p. 239 e segs., sobretudo p. _ 43 Ao invocar a existência de determinada pratica em relaça o a seu parceiro no contrato, a parte
245 necessita comprová-la.
VÉRA MARIA JACOB DE fRADERA - 431
430 - INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS

V - corresponder a qual seria a razoável negociação das partes


tos de comerci~zação de determinados bens, e, face à ausência de regra-
sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do
mento convenc10nal expresso, relativamente a uma determinada situacão
negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas
de natureza transitória, assim foi decidido: ' '
as informações disponíveis no momento de sua celebração.
nã~ tendo as partes cuidado de regrar situação transitória, re- § 2º As partes poderão livremente pactuar regras de interpreta-
lattvam_ente ao interregno situado entre contrato e implemento ção, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios
de condição suspensiva, cumpre observar o comvortamento de jurídicos diversas daquelas previstas em lei.
las, comofàtor revelador da composicão de inter;sses e restJectiva 1 Passo ao exame do inciso I do § 1° do novo art. 113 do Código Civil.
normatização que terminou por se estabelecer, dando a melhor Ao lê-lo pela primeira vez, veio-me imediatamente à lembrança um
interpretacãopossível ao queforapactuado. 44 (grifos nossos). Parecer do professor Junqueira, publicado em volume aqui anteriormen-
. Neste exemplo jurisp~d~ncial, resta evidente a função interpreta- te citado45 , na parte onde trata da interpretação do contrato mediante
tiva desempenhada pelas praticas estabelecidas entre os contratantes ao exame do comportamento das partes, posteriormente à celebração do
l?ngo do tempo, pois estiveram as partes vinculadas por contrato, rela- 0
contrato. Para tanto, traz à colação os textos dos Códigos Civis italiano
tivo aos mesmos bens. desde o ano de 1971. (art. 1362, al.2) e espanhol (art. 1282), mediante os quais comprova ser
1:- relevância do texto da CISG como uma espécie de línguafranca essa espécie de interpretação reconhecida universalmente como autênti-
de ongem l~g~ ou b~~kground Law, fonte inspiradora para interpretação ca. Desta sorte, andou bem o legislador da Lei da Liberdade Econômica
de nosso Cod1~0 ~1~, fica aqui evidenciada, tal como ocorreu e segue ao adotar esse critério como ferramenta interpretativa.
ocorrendo no direito mterno dos países que a adotaram. No inciso II do artigo em exame, surge outra novidade, correspon-
Chegando ao fi~al do exa~e do art. 113 do Código Civil de der aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio.
2002, resta-me exa~mar as ~odificações nele introduzidas pela Lei Aqui o legislador inovou em relação ao teor do enunciado 409, re-
13.874/2019, denommada Lei da Liberdade Econômica. ferente ao recurso às práticas estabelecidas entre as partes como ferramen-
8.4. A INTERPRETAÇÃO DO CONTRATO SEGUNDO A REFORMA DO ta útil à interpretação dos contratos.
ART. 113, INTRODUZIDA PELA LEI 13.874/2019, LEI DA Com efeito, o teor desse inciso II reforça a intenção legislador da
LIBERDADE ECONÔMICA Lei de Liberdade Econômica de afastar a interpretação subjetivista do
contrato, ao preconizar o recurso à interpretação normalmente efetua-
Conform~ dispõe o art. 7° da lei 13.874/2019, o Código Civil de
da em relação a determinados negócios, usualmente praticada no mer-
2002 passa a vigorar com as seguintes alterações: 46
cado, relativamente a determinados tipos de contrato •
Art. 113.( ... )
No inciso IV do novo art. 113 do Código Civil, outra novidade,
§ 1° A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir 0
sentido que:
que não constitui novidade, pois repete uma das antigas máximas ou re- 47
gras de Pothier, recepcionadas pelo Code Napoléon, em seu artigo 1.162 ,
I for confirmado pelo comportamento das partes posterior à
ora na redação dada pela Reforma de 2016, constante do art. 1.190: na
celebração do negócio;
dúvida, o contrato se interpreta contra o credor e em favor do devedor,
II - _corresp~nder aos usos, costumes e práticas do mercado
relativas ao tlpo de negócio;
III - corresponder à boa-fé;
V. nota 11 supra.
IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo V. a respeito: FORGIONI, Paula A. A Interpretação dos Negócios Jurídicos 11- alteração do art.
113 do Código Civil: art. 7°. ln: Comentários à Lei do Liberdade Econômica, Lei 13874/2019. São
se identificável; e ' Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2019, p. 363 e segs., sobretudo PP· 384-385.
Dons lo dou te, lo convention s· interpréte contre celui qui a stipulé eten faveurde ce/ui qui a contracté
47
44 Apelação Cível nº 70008000275, TJRGS, 20ª Câmara Cível, julgado em 03 de março de 2004. /' ob/igation.
432 - INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS
VÉRA MARIA JACOB DE FRADERA - 433

e .º contrato de adesão contra o proponente. 48 O legislador da Lei da


as características do mundo empresarial, normalmente bem orientado
Liberdade Econômica faz a ressalva: se encontrada a parte que redigiu 0
por advogados e consultores experimen~ados na reda~ão ~e- ~ontratos
contrato. De ~c~rd~ com o ~omentário da Professora Paula Forgioni: "se
complexos e, muitas vezes, pouco conhecidos da doutnna civilista e dos
o agente ec~no_mico e necessariamente ativo eprobo, devem-lhe ser imputadas
as consequencias de não ter se expressado melhor. "49 magistrados. Desta sorte, nada mais justo que partes com essas caracte-
rísticas criem suas próprias regras interpretativas, bem como a forma de
Passo a comentar o inciso V, do novo art. 113 do Código Civil. preenchimento de eventuais lacunas em seus instrumentos contratuais 51 •
~este inciso~ fica muito clara a compreensão do legislador a respei- Expostas as regras interpretativas de nossos Códigos Civis, com a
to de mterpre_taç~o de contratos empresariais, ao oferecer aos intérpre- reforma sofrida pelo artigo 113 do Código de 2002, minhas próximas
tes algumas diretivas para chegar a uma razoável negociação das partes observações terão por objeto a demonstração de quanto os direitos na-
a~erca_ do tema em discussão, tais "as demais disposições do contrato, ara- cionais são, atualmente, influenciados pelas Convenções Internacionais,
czonaltdade econômica das partes, levando em conta as iriformações existentes com destaque para aquelas relativas aos contratos.
quando da celebração do negócio."
Nesse aspecto, merece ser relembrado o fato de estas diretrizes in- 2ª PARTE: A INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO DOS CONTRATOS
terpretativas já constarem do art. 131, II, do antigo Código Comercial À LUZ DE NOVOS CóDIGOS C1v1s: A INFLUÊNCIA DOS
brasileiro de 1850, ora quase totalmente revogado. INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS SOBRE OS LEGISLADORES
NACIONAIS E A IMPORTÂNCIA DO PAPEL DO DIREITO
Por fim, por meio desse texto do inciso V, há de ser buscada es-
s~ncialm~nte .ª rac!onalidade econômica do contrato, a qual está rela- COMPARADO NESTAS ATUALIZAÇÕES

c10nada a rac10nalidade econômica das partes. Como bem destacado Como anunciado introdutoriamente, há um espírito renovador
pela Prof~s_sº:ª Paula Forgioni: "se concebido para determinadofim, não se pairando sobre as recentes legislações no referente ao tema in comento.
p~de admitir interpretação extensiva que o desvie daquilo que objetiva e so- Por outro lado, no tocante ao Código Civil francês, a Reforma de
cialmente dele se esperava obter - e, portanto, do que as partes efetivamen- 2016, trouxe para seu interior um efeito resultante das lutas sociais, no
te contrataram. "5º
caso, o movimento feminista francês, com origem em movimentos si-
A seguir, uma breve reflexão sobre o § 2° do novo art. 113 do milares, desencadeados no plano internacional e local, em vários países.
Código Civil. Seu objetivo comum consiste na luta para a eliminação de quaisquer
§ 2° As partes poderão livremente pactuar regras de interpreta- traços distintivos entre Homens e Mulheres, resultando na inserção de
7ã~, ~e pre~nchimento de lacunas e de integração dos negócios um modelo neutro como padrão a ser seguido, não mais o do bom pai
3und1cos diversas daquelas previstas em lei. de família, sim o da pessoa razoável.
O primeiro aspecto a chamar a atenção do leitor, neste § 2°, diz
A. ÜMA INOVAÇÃO OPERADA NO CODE NO REFERENTE AO
com a natureza dessa norma, qualificada como dispositiva (não cogen-
TRADICIONAL STANDARD DO BOM PAI DE FAMÍLIA
te), e~pressando de forma clara a opção do atual Governo, para um li-
beralismo, diria eu, mitigado, levando, acertadamente, em consideração Após a reforma do direito das obrigações, instituída pelo Decreto
( Ordonnance) nº 2016-131, de 10 de fevereiro de 2016, o Code Napoléon
No original: f!ans Ir! doute, lecontratgré àgré s'interpretecontre lecréancieretenJaveurdu débiteur. consagra cinco artigos à interpretação do contrato, adotando, em seu
et !e contrat d adhesi~n contre cel~i qui['a praposé. N.T. contrat gre à gré, expressão que desi n~
os co!1Í:ªtos nos quais as pa~tes livremente discutem os termos de seu contrato. Éutilizada~m art. 1188 (antigo 1156) redação similar à do nosso art. 112: "O contrato
opos1ça_~ a contrato de adesao._ Sobre este assunt?, consultara interessante artigo do prof. AI do
Petrucci. ~ETRU_C~I, Aldo. Dois exemplos de m1gra_ção de conceitos e princípios em matéria
contratual. do direito romano ao DCFR (e outros). Fabio Andrade (Trad.). ln: Revista daAJURIS
- Porto_A(egre, vol. 45, nº 145, dezembro de 2018, vol. 45, nº 145, dezembro 201 3 pp _ 51 Para uma visão comparativa, embora muito próxima d? aqui exposto, cons. o excelente estud_o
49 Obra c1t. m nota 48, supra, p. 381. ' 293 311 · "Interpretações": GEDIEL, José Antônio Peres; CORREA, Adriana Espíndola e KROETZ, Mana
50 Idem, ibidem, p. 384. Cândida do Amaral. Interpretações. ln: Comentários à Lei da Liberdade Econômica, Lei,3874/2019.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2019, pp. 327 e segs.
434 - INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS VÉRA MARIA JACOB DE FRADERA- 435

se inte1preta de acordo com a comum intenção das partes ao invés de ater-se áveis, ou seja, o equivalente ao contratante médio, colocado nas mesmas
ao sentido literal de seus termos". circunstâncias de tempo e de lugar.Já o Código Civil Romeno, em vi-
Contudo, a 2ª alínea deste art. 1188 introduz uma inovação, uma gor desde 1° de outubro de 2011, em seu art.1266, adota norma seme-
outra linguagem para significar o papel do antigo paradigma do bom lhante à constante do nosso art. 112:
pai de família: "Quando essa intenção não pode ser deduzida, o contrato se (1) Os contratos se interpretam segundo a vontade concordante
interpreta segundo o sentido que lhe daria uma pessoa razoável colocada na das partes e não segundo o sentido literal dos termos 56 ;
mesma situação. "52
(2) Para determinar a vontade concordante deve ser levada em
Desta sorte, a pessoa razoável referida pelo legislador francês nada conta, dentre outros, a finalidade do contrato, das negociações
mais é do que a nova denominação para o antigo e notório standard, entre as partes, de práticas constantes entre elas e de seu com-
cuja origem remonta ao Direito Romano, o paterfamílias, ou pai de fa- portamento posterior à conclusão do contrato 57 •
mília, presente em variados âmbitos do Direito 53 . Como se percebe da leitura do texto, a regra romena é bastante
A origem da adoção dessa expressão está na lei francesa de 04 de abrangente, cobrindo vários recursos à interpretação e francamente ins-
agosto de 2014, referente à igualdade real entre homens e mulheres, pirada de documentos internacionais.
ofi_cializando a supressão daquela expressão no atual documento legis- Em nosso Continente sul-americano, temos o novo Código Civil e
lativo, desencadeando críticas por parte da Doutrina e dos operadores Comercial Argentino (lei 26 994, promulgado pelo decreto 1795/2014),
do ~ireito, como demonstra esta manifestação, exarada por advogado o qual, no referente ao tema aqui exposto, assim dispõe:
praticante:
Art. 961. boa-fé. Os contratos devem celebrar-se, interpretar-
Durante décadas, convivemos com esse standard de compor- -se e executar-se de boa-fé. Obrigam não somente ao que está
tamento, ao mesmo tempo tradicional, universal, flexível, poli- formalmente expresso, mas também a todas as consequências
valente e evolutivo, permitindo adapta-lo a todas as situações que possam considerar-se neles compreendidas. 58
e a todas as épocas, algo que não faz o seu substituto sem que Art. 962. Carácter das normas legais. As normas legais
sejam necessárias longas demonstrações para convencê-lo.54
relativas aos contratos são supletivas da vontade das partes,
De acordo com os comentadores deste artigo, quando se torna di- a menos que de seu modo de expressão, de seu conteúdo,
fícil encontrar a comum intenção das partes, ou quando ela não se de- ou de seu contexto resulte seu carácter indisponível. 59
duz da leitura do contrato e de sua contextualização, o intérprete tem à
Art. 964. Integração do contrato. O conteúdo do contrato
mão o recurso ao conceito de pessoa razoável colocada na mesma situação.
se integra com:
Nessas circunstâncias, a interpretação do contrato dar-se-á mediante
critério objetivo (standard da pessoa razoável). a. as normas indisponíveis, que se aplicam em substituição
às cláusulas com elas incompatíveis; b.as normas supletivas;
Esta referência à pessoa razoável suscita críticas da Doutrina55 e dos
os usos e práticas do lugar de celebração, enquanto sejam
operadores do Direito em geral, como supra referido, sugerindo os seus
críticos deveria o legislador ter escolhido a expressão contratantes razo- 56 Art.1266. L' interprétation selon la volonté concordante des parties. (1) Les contrats s'interprétent
selon la volonté concordante des parties et non selon le sens littéral des termes. (2) Pour
52 déterminer la volonté concordante il est tenu compte, entre autres, du but du contrat, des
Importante esclarecer o fato de não guardar essa linguagem relação com os termos utilizados négociations entre les parties, des pratiques devenues constantes entre elles et de leur
nos _do~um:ntos internacio_nais, c~nhecidos como conceitos indeterminados, evocando, logo comportement postérieur à la conclusion du contrat.
a pn:11e1ra v}st~, a Co~~ençao de Viena de 1980 sobre venda internacional de mercadorias. 57 Nouveau Code Civil Roumain, troduction commentée, Collection La Lettre des Lois, Dalloz, Paris,
53 A JUnsprudenc1a_trad1c1onal, e ~~o somente ~m F~ança, considera o bom pai de família aquele 2013.
que age de maneiro prudente e d1ltgente, consc,enctoso e avisada. 58 Art. 961. Buenofé. Los contratos deben celebrorse, interpretror-se yejecutarse de buenofé. Obligan
54 '!·HERVIEUX, ~lain. Hommage _au Bo~ :e_re de F~mille: d'une _modification terminologique non solo a lo que estáformalmente expresado, sino a todas las consecuencias que puedan considerarse
a u~e autre: ln. Vtllag_e de /ajust'.ce (penod1co on /me), Dalloz, feb/2019; v, igualmente, HUET, compreendidas en e/los
Jerome. Ad1eu bon pere de familie, ln: Recuei/. Paris: Da/loz, 2014, p. 505. Art. 962. Carácter de las normas /ega/es. Las normas legales relativas a los contratos son supletorios
55 59
V. por tod?s, C~A_NTEPIE, G~el; LATIN_A, Mathias. La Réforme du droit des ob/igations, de la vo/untad de las partes, a menos que de su modo de expresián, de su contenido, o de su contexto,
Commenta1re theonque et pratique dans I ordre du Code Civil. Paris: Dalloz, 2016, p. 419 _42 6. resulte su carácter indisponible.
VÉRA MARIA JACOB DE FRADERA- 437
436 - INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS

plicáveis, porque tenham sido declarados obrigatórios desta, desde que a outra parte tenha tomado conhecimento
62
pelas partes ou porque sejam amplamente conhecidos e dessa intenção, ou não pudesse ignorá-la.
regularmente observados no âmbito no qual se celebra o Aqui é possível outra observaç~o, ª. de que a CISG nem sempre é
contrato, exceto em sendo a sua aplicação não razoável. 60 modelo inspirador, pois ela mesma mspirou-se do § 133 do BGB.
Relevante observar o fato de os Códigos Alemão, Argentino e o O Código Civil Romeno, anteriormente citado, adota, em seu ar-
Brasileiro de 2002 incluírem a boa-fé como cânone interpretativo dos tigo 1266, al. 01, em relação à forma de interpretação dos contratos, re-
contratos. gra assemelhada à do nosso art. 113.
No próximo tópico, será apresentado o papel desempenhado pela Mas na sua al. 02, da mesma forma que o Código Civil Argentino,
CISG como fonte inspiradora dos legisladores dos novos Códigos Civis nesse terr~no, 0 Código Romeno mostra-se mais próximo dos termos da
bem como o recurso ao Direito Comparado por esses legisladores. CISG (sobretudo do seu art. 9°) inclusive elencando, entre os recursos
para auxiliar na interpretação dos contratos, as práticas tornadas cons-
B. A INFLUÊNCIA DA CISG NOS CóDIGOS CIVIS RECENTES E
tantes entre as partes.
O RECURSO AO DIREITO COMPARADO PELOS LEGISLADORES
De idêntica forma à do Código Argentino, o Código Romeno ins-
NACIONAIS E APLICADORES DESSES TEXTOS
pirou-se no Código do Qyebec, conforme noti~iado pela direJão de
Conforme noticiado supra, percebe-se, nos novos Códigos Civis, Juriscope63 organismo encarregado da sua traduçao para o franc~s.
no terreno específico da interpretação e da integração dos contratos, a Gostaria de encerrar estas reflexões aludindo a um outro me10, bas-
influência de outros Códigos e de Convenções internacionais relativas tante eficaz, mas pouco utilizado entre nós na busca do sentido de um
ao contrato, notadamente, a CISG. contrato, qual seja, mediante os termos do seu preâmbulo.
Para comprovar essa assertiva, trago como exemplo o novo Código A presença de um preâmbulo nos contratos nacionais, pelo menos
Civil e Comercial da Nação Argentina, publicado em 2014, em vigor a em nossa prática advocatícia, não é corrente,,ª~ menos em se :ratan-
partir de 1° de agosto de 2015, onde se percebe uma nítida influência do de tipos contratuais mais comuns, ao contrario da esfera relativa aos
do Código Civil do Qyebec (art. 1.425) a começar pela especial rele- contratos internacionais.
vância à intenção comum das partes, bem maior do que ao sentido lite- Os advogados internacionalistas privatistas costumam se referi~ ao
ral dos termos utilizados 61 • reâmbulo do contrato como sendo "uma espécie de exposição de motivos
P duçao
- "64 .
Igualmente relevante é referir o art. 8 (1) da CISG, outra fonte de conducente ao texto contratual, do qual ele constitui a mo,,''dura e a mtro
.
inspiração para o Código Civil Argentino, vazado em termos bem pró- Dentre outras utilidades, o preâmbulo demonstra o compromisso das
ximos aos dos Códigos ora em comento: partes, mediante a recapitulação das diferentes fases da negociação, tais
(1) para os fins desta Convenção as declarações e a conduta as de referir documentos apresentados por ambos contratantes, e, deve-
65
de uma parte devem ser interpretadas segundo a intenção ras relevante, expor em termos gerais, o objetivo contratual das partes •

62
No original: Article 8 (l) for the purpose ofthis Conventian statements made byand otherconduct
60 Art. 964. lntegración dei contrato. E{ contenido dei contrato se integracon: o. los normas indisponibles, ofa party are to be interpreted according to his intent where the party knew ar could not have been
que se aplicon en sustitución de las clausulas incampatibles can ellas; b. las normas supletorias; unaware what that intent was. • . . .f ·
e. los usos y prácticas dei lugardecelebración, en cuantoseon aplicobles porque hayan sido declarados Organismo cujas missões são difundir o direito frances e os d1re1t?s fra~co -~nos no ~xteno~,
obligatorios por las partes o porque seon ampliamente conocidos y regularmente observados en el especializado em tradução jurídica, trabalhando mediante pes~u'.s~s c1ent1f1cas d~d1c~d~~ a
ómbito en que se celebra el contrato, excepto que su aplicación sea irrazonable. - JUíl
tra d uçao. · 'd"1ca e a uma metodologia
. .da. tradução de textos iund1cos.
• Sede: Umvers1te e
61 Para uma análise comparativa do projeto de Código Civil para a Argentina, consultar o excelente Poitiers, fr. Este organismo traduziu o Cod1go Romeno para o_frances.. .,
artigo de RIVERA, Julio César. Le projet de code civil pour la République Argentine. ln: Les v. BLANCO, Dominique. NégocieretRédigerun Controt lnternatwnal. Pans: Dunod, _002, p. 115.
Cahiers de droit, vai. 46, nº 1-2, 2005, p. 295-314. BLANCO, op.cit., p. 115.
VÉRA MARIA JACOB DE FRADERA- 439
438 - INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS

Desta sorte, conclui o autor citado, (o preâmbulo) "poderá e deverá O m ais interessante é o fato de o Brasil, mediante o recurso
1
ao bar-
.
constituir um precioso instrumento de interpretação dessa vontade contratu- tolismo jurídico, utilizar esse recurso da integraçã~ de s~ uções prov~n-
al mútua e de seus objetivos"66 • outras ordens 3ºurídicas desde a época colomal ate os nossos
. 1 dias,
d as d e ,
Logo, é mediante o preâmbulo que se reconhece o espírito do com muito proveito. Mas esse assunto e tema para outro art1.go.
contrato. Ao finalizar meu estudo, espero possam esses exemplos de trata-
mento do tema objeto deste artigo servir, eventualmente, como _so~ução
CONCLUSÃO casos concretos a serem enfrentados pelos operadores do Direito. E
para· s: servir de inspiração aos redatores de contratos, evitan
· d o d'uv1ºd as e,
Chegando ao final destas despretensiosas reflexões, gostaria de des-
tacar o fato de o conhecimento de diferentes maneiras de interpretar o ::ta sorte, afastando a eventualidade de um possível litígio.
contrato, instrumento universal das trocas, pode ser interessante para o
intérprete, seja por encoraja-lo a olhar sob outra forma a questão da in- REFERÊNCIAS
terpretação ou integração, seja para preveni-lo de uma interpretação er- AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Estudos e Pareceres de Direito Privado com rem'.ssões
ao novo Código Civil (Lei n.10.406, de 10 de janeiro de 2002). São Paulo: Editora
rônea do contrato.
Saraiva, 2004.
Ademais, diante do fato inegável da globalização provocando uma AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. ia
já constatada comunicação e interpenetração dos diversos direitos na- Edição. São Paulo: Saraiva, 2 000.
cionais com os sistemas internacionais e supra nacionais (em relação BATTIFOL, Henri. Questions d' Interprétation juridique, Archives de philosophie du
aos Mercados Regionalizados), o direito comparado, no caso, a legisla- droit, nº 17. Paris: Sirey, 1972.
ção comparada, torna-se o instrumento por excelência para o progresso BIANCA, Massimo; BONELL, Michael Joachim. Commentary on the lnternational
e aperfeiçoamento do direito em todas as esferas, nacional, internacio- Sales'Law: the 1980 Vienna Sales Convention. Milão: Giuffre, 1987.
nal e supranacional. BLANCO, Dominique.Négocier et Rédigerun Contra! lnternational. Paris: Dunod,2002.
CARRIÓ, Genaro R Notas sobre Derecho y Lenguaje. 3ª ed. Buenos Aires: Abeledo-
A cada dia, a relevância da comparação jurídica se revela mais evi-
Perrot, 1985, p. 40.
dente, contrariando o antigo modo de compreendê-la. Como muito bem CHANTEPIE, Gael; LATINA, Mathias. La Reforme du droit des obligations,
posto por François Ost, em um de seus magníficos estudos 67 , durante Commentaire théorique et pratique dans l' ordre du Code Civil. Paris: Dalloz,2016.
muito tempo o direito comparado foi ''praticado à maneira como ofilate- COUTO E SILVA, Clóvis.A Obrigação como Processo. São Paulo:José Butschasky, 1976.
lista coleciona selos, ou o entomologista, insetos", sendo a disciplina conside- FERRARI, Franco. La rilevanza degli usi nella Convenzione di Vienna sulfa vendita
rada como mero diletantismo, praticado por uma certa classe de juristas. internazionale di beni mobili. In: Contrato e lmpresa, anno X, n.l, 1994.
As ordens jurídicas permaneciam estanques, sem comunicação entre FRADERA VéraMariaJacob de.A Boa-fé Objetiva: uma noção presente no conceito
si, restringindo-se a comparação ao aspecto exterior de cada uma delas. alemão, brasileiro e japonês de contrato. In: Cadernos do Programa de Pós-graduação
em Direito-PPGDlrl UFRGS, nov/2003.
Em nossos dias, as ordens jurídicas se movimentam, se comunicam ___. A interpretação dos negócios jurídicos empreendido: ~o Brasil: o al~gar_nen~o
entre si, trocam soluções entre elas, "se hibridam de milformas". Em conse- das hipóteses previstas no art. 113 do Código Civil brasilerro, mediante insprraçao
quência, o direito comparado deixou de ser "a ciência das relações platônicas do art. 9° da CISG. In: A Cisg e o Brasil, orgs., SCHWENZER, Ingebo~g,
entre sistemasjurídicos", para tornar-se o estudo de um "direito integrado", GUIMARÃES PEREIRA, César A. e TRIPODI, Leandro TRIPODI, Marcial
conforme afuma Patrick Glenn68 • Um direito que contribui com solu- Pons Editora do Brasil, São Paulo, 2015, p. 569.
ções de importação mais ou menos controladas, por iniciativa da práti- FORGIONI, Paula A. A Interpretação dos Negócios Jurídicos II alteraç~o _do art:
113 do Código Civil: art. 7°. In Comentários à Lei da Liberdade Economica, Lei
ca, verdadeira animadora dessa integração não cogente, mas bem real.
13874/2019. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2019.
66 Idem, ibidem. GEDIEL, José Antônio Peres; CORRÊA, Adriana Espíndola e KROETZ, M~ia
67 OST, François. Traduire, Défense et illustration du multilinguisme, Ouvertures, Paris: Edition A. Cândida do Amaral. Interpretações. In: Comentários à Lei da Liberdade Econômica,
Fayard, 2009, pp. 404-407.
68 Revue lnternationale de Droit Comparé, Année 1999, vol. 04, pp. 841-852. Lei 13874/2019. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2019.
VERA MARIA JACOB DE FRADERA- 441
440 - INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS

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Parte 5
REVISÃO CONTRATUAL
ANDERSON 5CHREIBER - 445

1. CONSTRUINDO UM DEVER DE RENEGOCIAR NO


1
DIREITO BRASILEIRO

Anderson Schreiber2

1. A ECONOMIA DO DESEQUILÍBRIO
Em uma economia cada vez mais dinâmica, periodicamente afeta-
da por crises e mudanças, torna-se patente a importância de que o direi-
to desenvolva remédios aptos a lidar com o problema do desequihôrio
contratual superveniente. Também parece evidente, diante da utilidade
social dos negócios legitimamente celebrados e da necessidade de evi-
tar custos transacionais que onerem as partes, que tais remédios privi-
legiem o reequihôrio do contrato e a conservação da relação contratual,
rompendo o dogma da preferência pelas soluções que conduzem à ex-
tinção do vínculo entre as partes (anulação/resolução).
O Código Civil brasileiro, embora tratando da extinção como re-
gra (especialmente nos arts. 156, 157 e 478), permitiu, em diferentes
passagens, o afastamento dos remédios terminativos mediante "oferta"
de reequihôrio por parte do contratante favorecido, quer se trate de de-
sequihôrio originário (art. 157, §2°), 3 quer se trate de desequihôrio su-
perveniente (art. 479). 4
A referida abordagem legislativa - que encontra paralelo em algu-
mas codificações estrangeiras, como o Código Civil italiano (art. 1467,
in fine) - tem a virtude de abrir caminho para aquela que seria, para mui-
tos, a solução "mais simples" para o problema do desequilíbrio, na medi-
da em que as próprias partes, por exercício da sua autonomia, estariam
contornando-o, de comum acordo, mediante uma revisão convencional
do contrato ou, mais precisamente, um reequihôrio contratual espon-
tâneo.5 A ineficiência (e, de certo modo, a contradição valorativa) desse
modelo revela-se, contudo, no fato de que acaba por restringir o acesso

Para um aprofundamento do tema, seja consentido remeter a SCH REI BER, Anderson. Equilíbrio
contratual e dever de renegociar. São Paulo: Saraiva, 2020. 2 ª ed.
2 Professor Titular de Direito Civil da UERJ. Membro da Academia Internacional de Direito
Comparado. Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Advogado.
3 "Art. 157. [...] §2º Não se decretará a anulação do negócio, se foroferecido suplemento suficiente,
ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito".
4 "Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente
as condições do contrato".
5 GALLO, Paolo. Sopravvenienza contrattuale e problemi di gestione dei contratto. Milão: Giuffre,
1992. p. 364.
446 - CONSTRUINDO UM DEVER DE RENEGOCIAR NO ÜIREITO BRASILEIRO
ANDERSON 5CHREIBER - 447

à via do reequiliôrio contratual, ao condicioná-lo à vontade exclusiva de ambas as partes como um fato perturbador da su: relaç~o contra::Ual e
um dos contratantes, restando ao outro o ônus de pleitear a anulação ou produz, não raro, um acentuado efeito ~e ~esestimulo a obtençao do
a resolução do contrato e "torcer" pela oferta da contraparte. 6 Em suma, nsenso na medida em que, por sua propna estrutura e por uma cer-
ro ' . dº
ta cultura beligerante do contencioso, o processo costuma acirrar 1ver-
na literalidade do Código Civil brasileiro, há uma valorização do reequi-
9
hôrio contratual ma non troppo: sua obtenção é sempre indireta, depen- gências entre as partes.
dente que :fica da iniciativa do contratante favorecido pelo desequiliôrio. 7 Há ainda que se recordar a resistência à interferência do juiz no
Daí todo o esforço interpretativo que tem sido conduzido por nossa objeto do contrato. Mesmo que a intervenção judicial ~os co~tra:os na
doutrina e jurisprudência no sentido de admitir o pleito direto de revisão experiência jurisprudencial brasileira ~gure-se comedida ~ cnte;10~a -
judicial do contrato por parte do contratante prejudicado. 8 Tal aborda- com alterações que se limitam, no mais das vezes, a modificar md1ces
gem permite superar a insuficiência da disciplina geral traçada no nosso de reajuste de preços ou a estender prazos de cumprimento, sem revelar
Código Civil e também harmonizá-la quer com as disposições especí- ingerência sobre aspectos essenciais do negócio ~ue pudessem com~ro-
ficas da própria codificação (arts. 620, 770, etc.), quer com as leis espe- meter sua utilidade para as partes-, é compreens1vel que as partes seJam
10
ciais, como o Código de Defesa do Consumidor, a Lei do Inquilinato e acometidas de certa insegurança quanto ao resultado da sua demanda,
a Lei de Licitações, que já asseguram, cada qual à sua maneira e em seus quer pela inevitável falta de expertise do magistrado acerca não apenas
próprios limites, o acesso do contratante prejudicado à revisão judicial da atividade econômica que é objeto da contratação, mas também do
do contrato. Ainda assim, não é possível ignorar aqui uma dificuldade Nesse sentido, COOLEY,John W.A advocacia no mediação. Tradução de René Loncan. Brasília:
9 Universidade de Brasília, 2001c p. 30: "As partes muitas vezes acha:11 que o processo de j_ulga-
que a via da revisão judicial do contrato, se não agrava, tampouco con-
mento por tribunal perturba significativamente suas vidas ~ess~a1s dur~nte lo~gos penados
torna: a necessidade de recurso ao Poder Judiciário. de tempo e em última análise produz um resultado q~e as_ deixa ainda mais polarizadas d_o que
estavam quando do início do processo". Na mesma d1reçao, WILLIAMS, Geral d R. Negot1at1on
Não se trata apenas de lamentar os custos envolvidos, as formali- as healing process.Journol of Disput Resoluti?n, p. 39-40, 1996, destacand? q~e, mesmo em
dades inerentes e o tempo exigido pela solução judicial ônus que se casos em que se logra obter transações em ju1zo'. reco_me~d~das porse~s pro~nos ad~ogados,
as partes, por vezes, não superam o esta?o_de d1ver?en_c1a:_ Once part1es_ are in confhct, there
verificam, de resto, também nas demandas voltadas à anulação ou à re- are essentially only two ways out: negot1a'.1on or adJ_ud1cat1on. Bo'.h are ~1t~al processes. Both
are intended to end the conflict and perm1t the partles to get on w1th the1r hves. Nevertheless,
solução do contrato-, mas de destacar a particular desarmonia entre o except for the relatively few cases which require a triai verdict, the most desira~le outcome is
caminho da judicialização e a ideia de reequilíbrio contratual. A propo- for both to have a change of heart, to arrive not only at unacceptable comprom1se, but to ais o
experience a genuine reconciliation. The fundamental P:incip1 7 is this: if both sides_ do not
situra de uma demanda judicial, por si só, é usualmente percebida por experience a change of heart, then one or both of them w1ll continue to ~ar~y everything that
was left unresolved into the indefinite future with little prospect forresolving1tshort of another
6 Tal modelo reflete aquele que havia sido adotado pelo legislador italiano de 1942, já foi conside- conflict. This conclusion is supported by research showingthat in many situations, conflicts are
rado "assai strano" e "perfino illogico" em sua terra natal: "É bene mettere subito in evidenza che not resolved, but continue in an endless cycle until one party or '.he other is able to 'exit', that
il nastro sistema avverte chiaramente l'esigenza di un riequilibrio contrattuale, ma la soddisfa is, to escape the situation by moving far e~ou~h away that the ~1sputan,ts no long~r see each
in modo assai incompleto e perfino illogico. Risulta infatti assai strano che, in via di principio, il other. However, it should be noted that th1s ex1t does not really resolve the confhct because
mutamento deli e circostanze puà condurre, nei contratti corrispetivi, sol tanto all'esecuzione nothing has really changed in either of the parties. The best prediction is that both parties \~ili
dei contratto alie condizioni programmate, oppure alia sua risoluzione, essendo riservata la soon find themselves in similar conflicts wherever they may end up. More troublesome st1ll,
'rinegoziazione' o l'adeguamento dei regolamento contrattuale all'iniziativa di una sola deli e there is research suggesting that even when plaintiffs have retained lawyers and obtained_a
parti ed, in particolare, all'iniziativa dei beneficiaria della sopravvenienza". (TERRANOVA, mutually agreeable settlement (but not a genuine settleme~t or change of ~:art), they w1!,'
Cario G. L'eccessiva onerosità nei contratti- arts. 1467-1469. ln: SCHLESINGER, Piero (Org.). // continue to suffer from emotional and physical traumas growing out of the ong1nal problem .
Codice Civile Commentorio. Milão: Giuffré, 1995. p. 239). 10 "An adjustment of the contract may be achieved by different methods. lt can be qualified as ~n
Trata-se de um direito potestativo, a exemplo do que ocorre no Código Civil italiano, em que operation of Jaw which the courts are called upon to carry out (e.g., the Neth~rlands, Sp~in,
7
a doutrina destaca: "La riduzione ad equità e un diritto potestativo dei convenuto in risolu- Sweden).An alternative mechanism is to entitle the burdened partyto requestadiustmentwh1ch
zione, che questi esercita - nel proprio interesse - quando valuta che l'utilità di conservare il is then enforced by the courts (e.g., Germany, ltaly). Anotheroption is to combin: termination
contra'.to valga p(u_del sovraprezzo che deve sborsare perridurlo ad equità". (RICCIO, Angelo. ofthe contractwith a claim of compensation forthe party who would have benef1ted from the
Eccess1va oneros1ta -Arts. 1467-1469. ln: GALGANO, Francesco (Cur.). Commentorio dei codice contract (e.g., England under the Law Reform (Frustrated Contracts) Act 1913). Ali th~ ~ethod_s
civile. Bolonha: Zanichelli, 2010. Livro IV. p. 241). ofadjustmenthave in common thatthey leave wide discretio_n to the courts 1~ determ1~in?a fa1r
8 Ver, nesse sentido e em caráter pioneiro, CARDOSO, Vladimir Mucury. Revisão contratual e allocation of risks related to the unexpected circumstances m accordance w1th the pn~c1ple of
lesão, r~visão contratual e lesão à luz do C~digo Civil de 2002 e do Constituição do Repúblico. Rio equity. Therefore, the price of an equitable allocation of the risks is t_hat court~ strongly ~nterf~re
de Janeiro: Renovar, 2008. p. 408-409: "E necessário, pois, ampliar a norma legal por meio da with the parties' contractual dispositions. Consequently, the part1es have htt(e certamty w1th
int~rpretação, para se autorizar ao juiz realizar a justiça no caso concreto, modificando equi- regards to the outcome of a lawsuit". (HONDIUS, Ewoud; GRI_GOLEIT, Han_s Chnst?ph (~oords.).
tativamente o contrato, com vistas a privilegiar o equilíbrio entre as prestações e a satisfação Unexpected circumstonces in Europeon Contract Low. Cambridge: Cambridge Univers1ty Press,
dos legítimos interesses das partes". 2011. p. 9).
448 - CONSTRUINDO UM DEVER DE RENEGOCIAR NO ÜIREITO BRASILEIRO ANDERSON 5CHREIBER - 449

"mu~do dos ~e~ócios" em geral, quer pela ampla discricionariedade que falta de cláusula contratual expressa, não há nenhuma "garantia" de que
a aç~o de revisao contratual concede ao julgador, que pode, em teoria, 0 contratante favorecido responderá à tentativa de renegociação efetu-
modificar qualquer aspecto da relação contratual, a fim de obter o ree- ada por quem sofre a excessiva onerosidade, nem o direito brasileiro se
quilfbrio pretendido. 11 ocupa, em qualquer medida, daquilo que se passa nessa fase, manten-
Não é por outra razão que, na prática negocial, tornou-se frequente do um autêntico vácuo normativo em relação àquela que seria a solução
~ue o contratante p~ej~d~cado pelo desequilfbrio tente, antes da propo- mais ágil, eficiente e segura para o desequilibrio do contrato.
situra da demanda Judicial, uma solução consensual com o outro con-
2. COMPORTAMENTO DOS CONTRATANTES DIANTE DO
tratante, com base em cláusulas contratuais prevendo a "renegociação
DESEQUILÍBRIO E O SILÊNCIO DO LEGISLADOR BRASILEIRO
de boa-fé" ou mesmo na ausência delas. A doutrina reconhece, por toda
part~, q~,e essa tentativa pr~vi'~ de renegociação do contrato representa, Examine-se, a título de exemplo, caso concreto que envolveu, de
ela sim, a melhor alternativa entre aquelas disponíveis para o proble- um lado, uma companhia do setor de petróleo e, de outro, uma compa-
ma do desequilfbrio contratual ou "o remédio mais eficiente" para lidar nhia de navegação que lhe prestava serviços de apoio, no âmbito de um
com a alteração superveniente do equihbrio contratual. 12 Ocorre que, à contrato com prazo de dez anos de vigência, renovável por igual perí-
odo. Após oito anos de fiel cumprimento do contrato e ótima relação
11 Em perspectiva internacional, destaca Christoph Brunner, ao tratar da revisão do contrato negocial, a companhia de navegação informou, por carta, à sua cliente,
por cortes estatais e arbit:ais: "The court may adjust the contrat in a variety of ways. lt may:
mcrease or re~uce the pnce _or the ex~ent of a performance obligation of a party (e.g., the que o contrato havia se tornado desequilibrado por uma série de acon-
contra~t quant1ty); and/or adJust a particular means or method of performance, e.g., extend tecimentos que elevaram o custo da navegação no Brasil, entre os quais,
the penod for performance or due date, change the place of performance or allow for parti ai
performances, or extend or shorten the duration of a contract; and/or arder a compensatory acordos coletivos de natureza trabalhista e mudanças da legislação bra-
paymentormo~etary adjustmentappropriate oradequately allowforthe hardship event in view
º'.
of any other adJustment~ the contract'.'· (BRUNNER, Christoph. Force Mojeure and Hardship sileira que permitiram a concorrência de embarcações estrangeiras em
unde:General Contract Pnnc,ples- ExemptJon for Non-Performance in lnternational Arbitration. águas nacionais, resultando no aumento dos salários dos trabalhado-
Austm: Wolter:s Kluwer, 200~. p.501). Na Itália, registra, em semelhante direção, ROPPO, Enzo.
? co?tr~ta.,Co1mbra: Almedma, 1988. p. 175: "Mas que significa, em concreto, a determinação res do setor marítimo. Argumentava a companhia de navegação que o
equ1tat1va do '.e?ula~ento: contemplada pelo art. 1374 cód. civ.? Parece consistir em O juiz, contrato havia se tornado "excessivamente oneroso", na medida em que,
chamado a defm1r as s1tuaçoes compl_e_xas de direi:os e deveres que, para as partes, derivam
d_o regu~a~ento contratual, estar leg1t1mado a atribuir, para esse fim, relevãncia a todas as nos últimos anos, o custo da operação teria sido majorado em propor-
c1rcunstanoas - externas ao mesmo regulamento, porque não tomadas em consideração na-
~uele e, como _tal, não ~ssumidas pelas partes como sua 'vontade' contratual - que ele, face ção muitas vezes maior que aquela esperada à luz da média histórica de
ª. u~ ~on~o. n~? r:esolv1do pel? _regulam:nto contratual', considerará, com a sua valoração aumento de custo do setor. Pleiteava, assim, um reajuste no valor do seu
d1scnc1?nana, 1done~s a P;rm1t1r ~ sol_uçao que pareça mais harmónica com a operação de-
senvo(v1da no seu conjunto (Rodota): ainda que tal solução não resulte imediatamente do teor contrato. A carta nunca foi respondida. Novas cartas se seguiram, com
das clau_sulas ~~ordad_as_entre as partes". No Brasil, ver SAMPAIO, Rogério Marrone de Castro. solicitação de reuniões para debater o tema, mantendo-se o silêncio. O
A atuaçao ~o ;~1z no d1r~ilo processual civil moderno. São Paulo: Atlas, 2008. p. 10 9 : "Segundo
essa_ no~? tecmca, .ª aplicação da lei ao caso concreto depende da valoração dessas expressões contrato foi cumprido por mais dois anos, tendo a companhia de nave-
de s1gmf1cado mais abrangente, gerando, com isso, aumento no poder de atuação no juiz Se
?e _ui:n lado o abandono ao sis:ema fechado ~bran_da, em certa medida, a referida segura~ça gação informado, então, à sua cliente, que não desejava a renovação do
JUnd1ca, d_e outr? ~erve como instrumento eficaz a busca dos ideais de justiça e equidade, já prazo de vigência. Nesse momento, foi chamada para renegociar os ter-
9ue peri:n1t_e ao Juiz, com base na mesma norma, outorgar tutelas diferenciadas em atenção
as pecuhandades de cada caso". mos do seu contrato. 13
12 SEROZAN, Rona. General report on the effects offinancial crises on the binding force of con-
tracts: r:ne_gotiation, rescission orrevision. ln: BA~OGLU, Ba~ak (Ed.). Theeffectsoffinancial crises Não é raro, na prática brasileira, que, diante de cartas e notifica-
on the bmdmgforce of contracts: renegotiation, rescission ar revision. Nova Iorque· Springer ções suscitando desequilibrio contratual, a parte instada a renegociar os
~016. p. 23: "Rene?otiati?n is the most efficient remedy for the change of circumsta~ces sinc~
1: enables th~ pa_rt1es to fmd a m~tua! resol~tion. Renegotiation is not an all-or-nothing remedy termos do contrato simplesmente silencie, confiando que o custo eco-
hke t~e termmat1on of ~ontractsmce 1t prov1des the parties with the full discretion ofreallocating
the ns~ and regeneratm_gthe contrac:ua~ balance". No Brasil, Giovanni Ettore Nanni, tratando
nômico e o ônus negocial da propositura de uma demanda judicial de-
das clausul~s contratuais de renegoc1açao, afirma que "a adequação consensual do contrato
frut~ de ~x~toso emprego da cláusula de renegociação, é, sem dúvida, sempre mais eficient~ Ettore. A obrigação de renegociar no direito contratual brasileiro. Revista do Advogado, São
e sat1sfatona para os contrata_n~es: A ~rf tica demonstra que o acordo é celebrado por ambas Paulo, v. 116, 2012. p. 96).
as partes, ao passo que a ?ec1sa_o JUd1:1al usualmen,te proporciona comemoração só de uma 13 O caso concreto resultou em procedimento arbitral, de caráter sigiloso, razão pela qual se
delas._Logo, e r~~omendavel a mclusao de uma clausula de renegociação nos contratos de deixa de fornecer detalhes que poderiam resultar na identificação das partes ou do contrato
duraçao, o que Jª acontece com frequência nos negócios internacionais". (NANNI, Giovanni concretamente celebrado.
450 - CONSTRUINDO UM DEVER DE RENEGOCIAR NO ÜIREITO BRASILEIRO ANDERSON 5CHREIBER - 451

sestimularão a adoção de qualquer atitude do contratante prejudicado. ue sofre a excessiva onerosidade. 16 Essa é a linha expressamente adota-
Tal situação verifica-se, com ainda maior frequência, naquelas situações da pelo Código Civil português, cujo art. 438 afuma:
em que se configura a chamada "dependência econômica", como no caso Artigo 438 (Mora da parte lesada). A parte lesada não goza
de fornecedores que atuam em mercados dominados por um pequeno do direito de resolução ou modificação do contrato, se estava
número de agentes econômicos, que tais fornecedores precisam atender em mora no momento em que a alteração das circunstâncias
para manter sua viabilidade econômica, ou, ainda, dos distribuidores que se verificou.
atuam por anos a fio em prol do mesmo cliente de tal modo que seu fim- Entre nós, mesmo à falta de norma nesse sentido, argumenta-se
do de comércio atrela-se indissociavelmente à oferta de produtos deste que, advindo o fato superveniente após a constituição em mora do de-
último. 14 Nesse cenário, a inércia do contratante favorecido pelo dese- vedor, "ele arca com os efeitos da sua inadimplência, inclusive quanto
quilfbrio torna-se um autêntico mecanismo de coerção que confronta o à onerosidade superveniente, aplicando-se o princípio do art. 399 do
contratante prejudicado com a "decisão trágica" de propor uma ação ju- Código Civil" .17 A melhor doutrina estrangeira tem destacado que, mes-
dicial - comprometendo sua relação negocial com aquele cliente e quiçá mo quando o desequihôrio contratual se verifica após a constituição em
com outros clientes do seu mercado de atuação - ou manter o cumpri- mora, deve ser admitida a alegação de excessiva onerosidade, desde que
mento de um contrato que se tornou economicamente injustificável. Por a mora do contratante não tenha contribuído causalmente para o dese-
vezes, opta-se pela segunda via, com grave prejuízo para o contratante e quihbrio do contrato. 18 Pondera-se, nessa direção:
para a economia em geral, na medida em que se mantêm preços artifi- Decerto que a parte não pode invocar em seu benefício a altera-
ciais por atividades produtivas, freando investimentos e resultando fre- ção das circunstâncias se a sua mora foi causal para que aquela
quentemente na redução da mão de obra ou da qualidade dos serviços. 15 relação fosse atingida por essa alteração; quando, portanto, se
Registre-se, entretanto, que não é apenas o contratante favorecido tivesse cumprido, a relação estaria já extinta. Pelo contrário, a
pelo desequihbrio que costuma adotar comportamentos pouco transpa- parte pode prevalecer-se da alteração das circunstâncias que
rentes e colaborativos. Não se afigura incomum, no Brasil, que o desequilf- teria sobrevindo de qualquer modo e atuado sobre o contrato,
brio contratual seja invocado tardiamente pelo contratante alegadamente houvesse ou não mora. De outra maneira, a exclusão do efeito
prejudicado, a título de defesa em ação judicial movida por força do seu da alteração das circunstâncias só por haver mora seria injusta,
inadimplemento, por vezes como mera estratégia para se livrar de obri-
16 Nesse sentido, AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Relatório brasileiro sobre revisão contra-
gações já assumidas que se revelam, com o passar do tempo, fruto de má tual apresentado para as Jornadas Brasileiras da As_s~ciaç~o Hen~i Capitant. ln: AZEVEDO,
escolha comercial. O desequilfbrio do contrato tornou-se, de fato, um Antônio Junqueira de. Novos estudos e pareceres de direito prwado. Sao Paulo: Sara_1~a, 2009. p.
191; MARTINS-COSTA, Judith; TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Come~tanos_ ao Novo
argumento recorrente daqueles que querem escapar ao efeito vinculante Código Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 310-311. v. 5. t. l; SIDOU,Jose '.'."a ria O~h~n.
Resolução judicial dos contratos (clóusulo rebus sic stantibus) e contratos de odesao: no d1re1to
do contrato e à responsabilidade contratual daí decorrente. vigente e no projeto de Código Civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 114-115; TABET,
Gabriela. Obrigações pecuniárias e revisão obrigacional. ln: TEP~DINO, Gustavo (Coord.).
Daí porque a maior parte da doutrina brasileira passou a elencar Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Ren_ovar, 2005. ~- 354;
como requisito negativo para a incidência das normas que disciplinam o entre outros. Contra: ANDRADE, Fábio Siebeneichlerde.A teoria da onerosidade excessiva no
direito civil brasileiro: limites e possibilidades de sua aplicação. RevistaAJUR/5, v. 41, n. 134, p.
desequihbrio contratual superveniente a mora por parte do contratante 246-247, jun. 2014, que afirma: "Outro ponto de debate no que concer~e aos pressupostos da
teoria incide sobre a questão de saber se o devedor em mora pode pleitear a tutela da one~o-
sidade excessiva, na medida em que o Código de 2002 não dispôs expressamente a respeito
[...]. Diante desta indeterminação legislativa, cumpre adotar posição f!exível, no senti~o ~e
favorecer o interessado em suscitar a onerosidade excessiva, na medida em que o propno
14 Sobre o tema da dependência econômica, ver SOARES, Felipe Ramos Ribas. O abuso da depen- legislador não indicou a inexistência da mora como requisito necessário para a invocação do
dência econômica nos contratos de distribuição: aplicação do remédio do art. 51, §2°, do CDC e benefício".
a manutenção do equilíbrio econômico do contrato. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de 17 AGUIARJÚNIOR, Ruy Rosado de; TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Comentários ao Novo
Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. p. 58-90. Çódigo Civil: da extinção dos contr~tos. Rio de Janeiro: F?r7nse, ~<?11,; p. 888-889. v. VI. t.11.
15 Como lembra Paolo Gallo, em perspectiva ligada à análise econômica do direito, "i costi pos- 18 E, de resto, o que resulta da parte final do art. 399 do Cod1go Civil: Art. 399. O devedor em
sono infatti essere aumentati a tal punto da rendere il progetto completamente diseconomico mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilida~e res~lte de caso
in relazione ai beneficio che ci si aspettava di trarre da essa". (GALLO, Paolo. Sopravvenienzo fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provansençao de culpa,
contrattuale e prablemi di gestione dei contratto. Milão: Giuffre, 1992. p. 417). ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada".
452 - CONSTRUINDO UM DEVER DE RENEGOCIAR NO DIREITO BRASILEIRO
ANDERSON 5CHREIBER - 453

22
por ser desproporcionada. A lei estabelece sanções próprias para do desequihbrio contratual a discussão do tem~. O cum?rimento ~a
a mora, que não abrangem a exclusão da invocação da alteração obrigação somente deveria oc~r~er, p_ortanto, apos a proposi'.11-ra da a~ao
das circunstâncias .19 · dicial O que impõe custos adicionais a ambas as partes e dificulta, am-
JU
da mais,' a obtenção de uma soluçao - consensu al . D ai, porque normativas
.
Pode ocorrer, todavia, que o fato superveniente seja anterior à mora
do contratante, o qual pode ter se tornado impontual justamente em estrangeiras têm, como se verá adiante, imputado ao contratante que so-
virtude da excessiva onerosidade. Nessa situação, impedir a alegação de fre a excessiva onerosidade o dever de informar prontamente à contra-
onerosidade excessiva pelo contratante em mora equivaleria a referendar parte, "sem atrasos indev~dos", a oco~rê~c~a do de~equfübrio contra~al,
o desproporcional sacrifício econômico do contrato, negando ao contra- atribuindo a essa comumcação extrajudicial o efeito de preservar a dis-
23
tante qualquer instrumento de tutela em face da excessiva onerosidade. 20 cussão em torno do tema, mesmo após o cumprimento da obrigação.
Tal circunstância não apenas vai de encontro ao princípio do equfübrio Tem-se aí apenas um exemplo de como normas comportamentais,
contratual, mas também desestimula uma efetiva renegociação do con- relativas à atitude a ser adotada pelos contratantes diante do desequi-
trato, funcionando como fator adicional de coerção sobre o contratan- hbrio contratual, estimulam uma conduta mais transparente e colabo-
te prejudicado pelo desequihbrio. 21 De outro lado, o outro contratante rativa entre as partes, auxiliando a busca de uma Jolução consensuada
pode nem sequer ter tido conhecimento do desequihbrio contratual - que evita as dificuldades inerentes à via judicial. E de s~ lamentar que
especialmente naqueles casos que não resultam em "extrema vantagem'' a nossa codificação civil, promulgada em 2002, tenha deixado de aten-
para si-, de tal maneira que a mora não deixa de lhe gerar prejuízos que tar para esse importante aspecto, não trazendo qualquer palavra sobre a
poderiam ter sido evitados e que exigirão ressarcimento. Para solucio- renegociação de contratos desequilibrados. Trata-se, porém, de reflexo
nar esse dilema, há quem afume que o contratante que sofre a excessiva inevitável do seu silêncio sobre a negociação que antecede a formação
onerosidade teria de propor, ainda que às pressas, ação judicial de revi- dos contratos. Com efeito, em injustificado anacronismo, nosso Código
são ou resolução do contrato, para, em seguida, efetuar o cumprimen- Civil optou por reproduzir, em tema de formação do vínculo contratu-
to da sua obrigação, restando assegurada por meio da prévia invocação al, o sistema binário que constava da codificação civil de 1916, em que
o contrato resulta do encontro de uma proposta pronta e acabada (con-
tendo todos os elementos essenciais do contrato) com uma aceitação,
19 A~~ENSÃO, José de Oliveira. Alteração das Circunstâncias e Justiça Contratual no Novo Código
sendo qualquer alteração na proposta entendida como nova proposta,
Civil. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 25, 2006. p. 66, o qual acrescenta os em uma sucessiva troca de atos unilaterais contendo a visão isolada de
seguintes exemplos: "Imaginemos que uma empresa se obrigue à reparação de um navio, e
atrasa-se seis meses em relação ao prazo a que se comprometera. Já no período de mora, cada uma das partes, quando, na realidade atual, especialmente em rela-
desencadeia-se uma guerra que atii:,ge o país de origem das matérias-primas necessárias, o que ções empresariais, o contrato resulta não de uma sucessão de atos unila-
leva estas a cotações exorbitantes. Enesses casos que a parte em falta não poderá prevalecer-se
da alteração das circunstâncias. Não porém na hipótese de, no pagamento de uma dívida em
prestações, haver atraso de uma delas, quando ainda faltam outras, pelo que, de todo modo, 22 D'ARRIGO, Cosimo. li controllo delle sopravvenienze nei contratti a lungo termine. ln:
o contrato seria atingido por aquela alteração das circunstâncias". No Brasil, em igual sentido, TOMMASINI, Raffaele {Cur.). Sopravvenienze e dinamiche di riequilibrio tra contrai/o e gestione
ver BRITO, Rodrigo Toscano de. Equivalência material dos contratos. São Paulo: Saraiva, 2007. dei rapporto contrattuale. Turim: G. Giappichelli, 2003. p. 556, destaca que isso se deve ao fat~
p. 108: "Se a parte estava em mora ao tempo da alteração das circunstâncias, deve sofrer as de que "se la parte onerata porta a termine l'impegn? contrattuale nonostante l'~umento de~
consequências da mora, e não se ver proibida de conservar o contrato, desde que possa ser costi e senza aver richiesto la rinegoziazione, il suo interesse ad essere tenhuta mdenne dei
reequilibrado". maggiori oneri si scontra con l'esigenza della controparte di non sostenere costi per beni o
20 Nessa direção, tem-se admitido na Grécia, por exemplo, a invocação do desequilíbrio contratual servizi non desiderati, perlomeno a quel prezzo".A propositura da ação judicial, contudo, pode
pelo contratante em mora, destacando-se, contudo, que "the change in circumstances must não assegurar uma genuína discussão do tema, uma vez que é co_mu~, entre nós e em outros
be the primary if not sole reason for the default". {DAVRADOS, Nikolaos A. Financial turmoil países, que os tribunais entendam que "the performance ofthe obhgat1on already demonstrates
as a_ change of circumstances under Greek Contract Law. ln: BA~OGLU, Ba~ak {Ed.). The efjects that there is not hardship". {BAYSAL, Ba~al. The adaptation of the contract in Turkish L~w: ln:
offinoncia/ crises on the bindingforce of contracts: renegotiation, rescission or revision. Nova BA~OGLU, Ba~ak {Ed.). The ejfects offinancial crises on the bindingforce ofcontracts: renegot1at1on,
Iorque: Springer, 2016. p. 152). rescission or revision. Nova Iorque: Springer, 2016. p. 323).
21 Fat~r de coerção especialmente tormentoso, na medida em que, uma vez cumprida a pres- 23 Era já a opinião de Vaz Serra ao tratar do tema da alteração das ci~cunstâncias_ ~o d~reito
ta_çao, sua excessiva onerosidade, a não ser que ressalvada anteriormente ao cumprimento, português: "Se a boa fé obrigar o contraente que pretende a resoluçao ~u a mod1f1c~~ao ~o
nao poderia mais ser discutida ao menos em sede de invocação do desequilíbrio contratual; contrato a avisar disso, com antecedência, o outro contraente, a resoluçao ou a mod1f1caçao
restaria ao contratante prejudicado unicamente a via restitutória, fundada na vedação ao en- não se aplica à prestação ou às prestações, de cuja cessa_ção ou modifica5ão o con~r_aen!e
riquecimento sem causa. {MARTINS-COSTA, Judith. A revisão dos contratos no Código Civil devia ser avisado, e não o foi". {SERRA, Adriano Paes da Silva Vaz. Resoluçao ou modif1caçao
brasileiro. Diritto Romano Comune, Roma, n. 16, 2003. p. 166, entre outros). dos contratos por alteração das circunstâncias. Lisboa: [s.n.], 1957. p. 94).
454 - CONSTRUINDO UM DEVER DE RENEGOCIAR NO DIREITO BRASILEIRO
ANDERSON 5CHREIBER - 455

terais de proposta e aceitação, mas sim, de uma negociação continuada Muito ao contrário, as normas de direito empresarial devem, como
em que a delimitação dos elementos essenciais do contrato é atingida todas as demais, exprimir a concretização dos valores constitucionais, aí
por um consenso tão complexo e multifacetado, com influência de tan- · cluídas a igualdade substancial e a solidariedade, a amparar o controle
in d d ,
tos fatores e personagens, que se revela praticamente impossível a de- de merecimento de tutela dos comportamentos a ota os por empresa-
limitação de uma proposta e uma aceitação, sendo o contrato redigido rios individuais ou sociedades empresárias, entre si ou perante terceiros.
frequentemente "a muitas mãos". O sistema dicotômico e puramente es- Exemplos colhidos em experiências estrangeiras e no cenário interna-
trutural do Código Civil soa tão artificial quanto ultrapassado, ignoran- cional reforçam esse entendimento no âmbito do tema do desequilfbrio
do por completo uma fase de contato social que assume cada vez mais contratual, especialmente naquele superveniente à formação do contrato.
importância nas relações contratuais contemporâneas: a fase da negocia- 3. DIMENSÃO COMPORTAMENTAL DO DESEQUILÍBRIO
ção. 24 E, calando sobre a negociação dos contratos, cala também a codi-
CONTRATUAL NA EXPERIÊNCIA JURÍDICA ESTRANGEIRA
ficação, por consequência, sobre a renegociação dos contratos, omissões
E INTERNACIONAL
imperdoáveis quando se tem em vista um corpo de normas publicado
em 2002, ano em que as tratativas contratuais de elevada complexidade Importante referência no tocante ao comportamento a ser adotado
já não eram novidade alguma na realidade brasileira. pelas partes em face do desequilibrio contratual superveniente prov~~
do art. 6.2.3(1) dos Princípios Unidroit relativos aos Contratos Comerciais
Se o silêncio do Código Civil de 2002 pode ser atribuído, em algu-
ma medida, à falta de atualidade do projeto que lhe deu origem, o mesmo Internacionais, que determina:
não se pode dizer da nossa legislação de direito empresarial, cuja falta de Art. 6.2.3. [... ]
atenção à renegociação dos contratos exprime, a bem da verdade, uma (1) Em caso de hardship, a parte em desvantagem tem direito
fidelidade excessiva ao pacta sunt servanda. 25 Há enorme resistência, no de pleitear renegociações. O pleito deverá ser feito sem atrasos
27
indevidos e deverá indicar os fundamentos nos quais se baseia.
campo da doutrina empresarial brasileira, às importantes transforma-
ções pelas quais passou o direito contratual contemporâneo. Por exem- Esse "direito de pleitear renegociações", que opera como incenti-
plo, os novos princípios contratuais - que o Código Civil, mesmo com vo à solução extrajudicial do desequilibrio, 28 não suspende o cumpri-
todas as suas deficiências, não deixou de mencionar, ainda que apenas mento do contrato, nem isenta o contratante prejudicado do dever de
pontualmente - parecem ter tido pouca influência na produção doutri- adimplir suas obrigações, 29 como esclarecem textualmente os próprios
nária daqueles que se dedicam ao estudo desse ramo jurídico. Boa-fé Princípios do Unidroit. Ao referido direito de pleitear renegociações há
objetiva, função social do contrato, equfübrio das prestações ainda são de corresponder, naturalmente, um dever da contraparte a quem o plei-
expressões raras no vocabulário dos autores mais influentes do direito da to se dirige, mais especificamente o dever de responder à pretensão de
empresa brasileiro. Basta recordar que tramita no Congresso Nacional
Ordenamento na Pluralidade de Fontes. ln: SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson
um projeto de Código Comercial cujo texto afirma expressamente sua (coords.). Direito Civil Constitucional. São Paulo: Atlas, 2016. p. 80-86.
imunidade à influência de princípios explícitos ou implícitos da ordem 27 A hardship (em tradução literal, dificuldade) corresponde, mutatis mutandis, à exc~ss\v~ one-
rosidade contemplada em nossa legislação, como se pode ver do art. 6.2.2 dos Pnnc1p1os do
jurídica brasileira, criando uma espécie de "mundo à parte" no sistema Unidroit, segundo o qual: "Háhardship quando sobrevêm fatos que alteram fundamentalmente
jurídico nacional. 26 o equilíbrio do contrato, seja porque o custo do adimplemento da obrigação de uma parte tenha
aumentado, seja porque o valor da contraprestação haja diminuído, e (a) os fatos ocorrem ou
se tornam conhecidos da parte em desvantagem após a formação do contrato; (b) os fatos não
24 Sobre o tem~'. ver PEREIRA, Regis Fichtner. A responsabilidade civil pré-contratual: teoria geral poderiam ter sido razoavelmente levados em conta pela parte em desvantagem no momento da
e responsabilidade pela ruptura das relações negociais contratuais. Rio de Janeiro: Renovar, formação do contrato; (c) os fatos estão fora da esfera de controle da parte em desvantagem; e (d)
2001, passim. o risco pela superveniência dos fatos não foi assumido pela parte em desvantagem". (Tradução
25 Crítica formulada no seguinte ensaio, ao qual se permite remeter: SCHREIBER, Anderson. Existe de Lauro GamaJr. Disponível em: <www.unidroit.org>. Acesso em: 13 jun. 2018).
um dever de renegociar? Revista daAASP, n. 131, p. 21-30, out. 2016. 28 O art. 6.2.3(3) deixa claro o caráter extrajudicial do direito de pleitear renegociação do contra-
Pr~jeto _d~ Lei nº 1.572(2011 da Câmara dos Dep~tad~s: "Art. 8° Nenhum princípio, expresso to, ao afirmar: "À falta de acordo das partes em tempo razoável, cada uma das partes poderá
ou 1mph~1to, pode ser1_n_vocado par~ afastar a aphcaçao ~e ~ualquerdisposição deste Código recorrer ao Tribunal".
ou da lei .. Para uma critica ~o mencionado Projeto de Cod1go Comercial, ver SOARES, Felipe 29 "Art. 6.2.3(2). O pleito para renegociação não dá, por si só, direito à parte em desvantagem de
Ramos Ribas; MATIELI, Lou1se Vago; DUARTE, Luciana da Mota Gomes de Souza. Unidade do suspender a execução".
ANDERSON 5CHREIBER - 457
456 - CONSTRUINDO UM DEVER DE RENEGOCIAR NO DIREITO BRASILEIRO

reneg~ciação, adotando o mesmo agir transparente e comunicativo que (2) Se, no entanto, o cumprimento de uma o~rig_a~ão con_tratual
de uma obrigação derivada de um ato Jundico umlateral
lhe f01 reservado pelo outro contratante. Trata-se, como se vê, de uma 00 . al
tornar-se excessivamente onerosa por conta de uma excepc1on
regra de comportamento entre os contratantes, evitando-se a dispari-
alteração das circunstâncias que seria manifestamente injusto
dade nas atitudes adotadas diante do desequilibrio que prejudica sensi-
manter o devedor vinculado à obrigação, a corte pode: (a) mo-
velmente uma das partes apenas. Referido aspecto resta claro na parte dificar a obrigação, a fim de torná-la razoável e equitativa nas
final do art. 6.2.3(1) dos Princípios do Unidroit, que impõe ao titular do novas circunstâncias; ou (b) extinguir a obrigação em uma data
direito de pleitear renegociações que o faça "sem atrasos indevidos" e in- e em condições a serem determinadas pela corte.
dicando os "fundamentos" da sua pretensão. (3) O parágrafo (2) aplica-se somente se: (a) a alt~raç~o d~
Note-se que não tem sido raro, na prática negocial brasileira, que circunstâncias ocorrer após o momento em que a obngaçao foi
contratos nacionais prevejam, em caso de desequilibrio superveniente, um assumida; (b) o devedor não tiver levado em conta naquele mo-
mecanismo convencional de negociação como primeira via para o sane- mento, e não poderia razoavelmente dele se esperar que tivesse
amento da excessiva onerosidade e, somente em caso de insucesso nessa levado em conta, a possibilidade ou a dimensão dessa alteração
tentativa inicial, remetam a questão àjurisdição arbitral ou estatal. Em tais de circunstâncias; (e) o devedor não tiver assumido, e não se
situações, é inegável a existência de um direito a pleitear renegociação, nos puder razoavelmente considerar que tivesse assumido, o risco
termos contratualmente ajustados, e de um correspondente dever de res- dessa alteração de circunstâncias; e (d) o devedor tenha tentado,
de forma razoável e de boa fé, alcançar por meio de negociação
ponder ao pleito, fruto que serão da própria vontade das partes, sempre nos 31
um ajuste razoável e equitativo da disciplina da obrigação.
limites da sua disposição. O que os Princípios do Unidroit trazem de insti-
gante é um direito ex lege de pleitear a renegociação do contrato em sede Como se vê, a tentativa de renegociação do contrato é tratada pelo
extrajudicial, independentemente de previsão contratual nesse sentido. 3º Drajt Common Frame ofReference como_ u_m~ es_r~cie de requisito para a
propositura do pleito de resolução ou revisao 3udic1al d? c?~trato po~ par~
Outras normas de soft law seguem caminho semelhante. O Drajt
te do debtor (devedor). Assim, diferentemente dos Princípios do Umdroit
Common Frame ofReference, preparado pelo Grupo de Estudos para um
que aludem, mais genericamente, ao "direito a pleitea: rene~;o_ciações", o
Código Civil Europeu, liderado pelos juristas Christian von Bar, Eric
Drcift Common Frame ofReference contempla a tentativa previa de rene-
Clive e Hans Schulte-Nolke, prevê em sua seção III, item 1:110, que o
contrato pode ser resolvido ou revisto em juízo, desde que o devedor te- 31
No original: "Ili. 1:110: Variation or termination by court on a change of circumstances. (1) An
obligation must be performed even if performance has beco me more ~nerous, wh:ther_because
nha tentado, razoavelmente e de boa-fé, alcançar "by negotiation a reaso- the cosi of performance has increased or because the value of what 1s to be rece1ved m_ ret~rn
nable and equitable adjustment of the terms regulating the obligation''. has diminished. (2) lf, however, performance of a contractual obligation or o_f an obhgat1on
arising from a unilateral jurídica! act becomes so onerous beca use of an ex~ept_1onal change º'.
Confira-se o teor da norma, em tradução livre: circumstances thatitwould be manifestlyunjustto hold the d~btort_o the obhga~1on a court may •
(a) vary the obligation in arder to make it reasonable and equ1table m the new c,rcumstances; or
III - 1: 110: Modificação ou extinção judicial por alteração (b) terminate the obligation ata date and on terms to be determined b~ the court. (3) Par?gr~ph
das circunstâncias. ( ) applies only if: (a) the change of circumstances occurred after the time when the obhgat1on
2
was incurred; (b) the debtor did not at that time take into account, and could n?t reasonably be
(1) Uma obrigação deve ser cumprida mesmo que seu cum- expecte d to have taken into account, the possibility orscale of that change of c1rcumstanc 7s; (c)
the debtor did not assume, and cannot reasonably be regarded as having assu~ed, the ~,sk of
primento tenha se tornado mais oneroso, quer por elevação do that change of circumstances; and (d) the debtor has attem pted, reasonably and m_ good fa1t~, to
custo do cumprimento, quer por redução do valor daquilo que achieve by negotiation a reasonable and equitable adjustment ofthe terms r~g~latmgthe obhga-
tion". Sobre O Oraft Common Frame ofReference em gerat ver VON BAR, Chnst,an. Th: ~aunch of
será recebido em contrapartida. the Draft Common Frame ofReference.Juridica lnternal!ona/, 14, p. 4-9, 2008. Espec1f1cam~n~e
sobre item 1:110 da sua seção 111, ver SCHWENZER, lngeborg. Force Majeure and Hardsh1p m
O 2
lnternational Sales Contracts. Victoria UniversityoJWel/ington Law Rev,ew, 39-4, P· 709-726, oo9.
30 A postu:~ in_ovadora dos_Princípios do Unidroitexplica-se, em parte, pela grande frequência de Comparando a referida disposição do Oraft Com mo~ f:ame of~efer~nce com outras normas, ve:
desequil1~no_s s_upervenientes em contratos internacionais. Nesse sentido, sustenta Christoph URIBE Rodrigo Momberg. Change ofcircumstances m mternat1onal mstruments of contractlaw.
Brunner: Th1s 1s so because the performance of transborder contracts involves additional the ap~roach ofCISG, PICC, PECLand DCFR. European ReviewofPrivateLa_w, 1_5(2), ~.233-266, 2011,
risks, and the legal and political framework ofinternational commercial contracts is generally qual conclui que "the rejection of renegotiation as a duty for both part,es 1s agamst the general
less stable than that of m_ter_nal contracts'.'· (BRUNNER, Christoph. Force Majeure and Hardship 0
trend in European and international contract law. [... ] ln th1s sense, '.he law_and the courts sh,?uld
unde:Genera/ ContractPnnop/es- Exempt1on forNon-Performance in lnternational Arbitration.
encourage the parties, as far as possible, to find a way to settle the1r confhct by agreement .
Austm: Wolters Kluwer, 2009. p. 1).
458 - CONSTRUINDO UM DEVER DE RENEGOCIAR NO ÜIREITO BRASILEIRO ANDERSON 5CHREIBER - 459

gociação como um dever do contratante prejudicado, revelando ambos judicado, mas um dever mútuo de renegociar os contratos que padeçam
os conjuntos de normas nítida preferência pela solução negocial. de desequih'brio superveniente.
Merecem destaque, ainda no campo da soft law, os Princípios de Não é apenas no campo da soft law que o dever de renegociar en-
Direito Contratual Europeu, 32 os quais preveem, em seu art. 6:111, que, contra respaldo. Codificações nacionais mais recentes têm acolhido o
diante de uma alteração de circunstâncias que preencha certos requisi- dever de renegociar contratos em caso de desequih'brio supervenien-
tos, "as partes estão obrigadas a entrar em negociações" para adaptar o te. Emblemático, nessa direção, é o Código Civil da República Tcheca,
contrato ou resolvê-lo. Confira-se o teor do dispositivo, ainda em tra- de 2012, cujos §§1.764 a 1.766 asseguram a qualquer dos contratan-
dução livre: tes o direito de pleitear a renegociação do contrato, atribuindo à con-
Artigo 6:111: Alteração das circunstâncias [ ... ] traparte o dever de responder ao pedido de renegociação. 34 Ademais, o
(2) Se, contudo, o cumprimento do contrato se tornar exces- Código Civil tcheco condiciona a admissibilidade do pleito de revisão
sivamente oneroso devido a uma alteração das circunstâncias, judicial do contrato à demonstração de que o direito à renegociação foi
as partes estão obrigadas a entrar em negociações, a fim de exercido em "prazo razoável", chegando a afumar que tal prazo será de
adaptar o contrato ou extingui-lo, desde que: (a) a alteração das dois meses, salvo prova de que outro prazo decorre das circunstâncias
circunstâncias tenha ocorrido após o momento de celebração do do caso concreto. 35
contrato; (b) a possibilidade de uma alteração de circunstâncias Também o Código Civil da Romênia, de 2011, impõe um dever de
não seja uma que pudesse razoavelmente ter sido levada em
renegociação às partes em virtude de um desequih'brio contratual super-
conta no momento da celebração do contrato; e (c) o risco da
veniente. Em dispositivo nitidamente inspirado no Dreft Common Frame
alteração das circunstâncias não seja um que, segundo o con-
trato, a parte afetada devesse ser chamada a suportar. 33
ofReference, o art. 1.271 do Código Civil romeno determina que a revisão
judicial do contrato ou sua resolução somente poderão ser pleiteados se
Interessante notar que os Princípios de Direito Contratual Europeu o devedor "a essayé, dans un délai raisonnable et de bonne confiance, la
não mencionam "direito a pleitear renegociação", como fazem os négociation de l'adaptation raisonnable et équitable du contrat" (tenha
Princípios do Unidroit, nem um dever unilateral do contratante prejudi-
tentado, dentro de um prazo razoável e de boa-fé, negociar a adaptação
cado de ingressar em renegociação como requisito para o pleito de re- razoável e equitativa do contrato). 36 Também aí, portanto, o exercício do
solução ou revisão judicial, como faz o Draft Common Frame ofReferece,
mas impõem a ambos os contratantes um dever de ingressar em renego-
ciação. Em outras palavras, os Princípios de Direito Contratual Europeu
34 "Nevertheless if there is a significant change of circumstances, any of the parties has a right to
não consagram um direito à renegociação por parte do contratante pre- renegotiate and the other party has to negotiate although it does not even want to. Whereas
the standard process of concluding a contract ora change of a contract is based on a free will
of both parties, as for hardship, the legal status of the parties is different, because each of
32 Fruto d~s trabalhos de uma comissão liderada pelo jurista dinamarquês Ole Lando-e, por isso, the parties has the right to ask for a new negotiation and the other party is obliged to negoti-
co~~ec1da co_mo Lan~o <;~míssíon - e formada por membros de todos os países integrantes da ate. However, they do not have to come to an agreement; they are just obliged to negotiate".
Urnao Europeia, os Pnnc1p1os de Direito Contratual Europeu foram publicados em 1995 (primei- (SELUCKÁ, Marketa. Elimination ofthe impacts offinancial crisis on legal relationships according
ra parte), 1999 jsegu~da parte) e 2002 (terceira parte). Trata-se de um conjunto de princípios to Czech Private Law. ln: BA~OGLU, Ba~ak (Ed.). The effects offinancíal crises on the bindingforce
e regras de carater nao cogente, desprovido de força normativa atribuída por qualquer órgão ofcontrocts: renegotiation, rescission or revision. Nova Iorque: Springer, 2016. p.111-112).
es!a~al ou supraestatal. Seus ~utores pretendem, todavia, que sirva de "base para um futuro 35 Lei nº 89/2012, §1.766. Trata-se, como enfatiza a doutrina tcheca, de uma presunção relativa,
Cod1go Europeu de Contratos . (LANDO, Ole; BEALE, Hugh. PríncíplesofEuropeon Controct Low, podendo a corte estendera prazo em certos casos. (FIALAJosef; SELUCKÁ, Marketa. The effects
Ports I ond li. [s.l.]: The Commission on European Contract Law, 2000. p. XXIII). offinancial crises on the binding force of contracts in the Czech Republic. The LowyerQuarterly,
33 No original: "Article 6:m: Change of circumstances [... ] (2) lf, however, performance of the 2/2014, I, p.110. Disponível em: <www.ilaw.cas.cz/tiq>.Acesso em: 13jun. 2018). Ver, também,
contract becomes excessively onerous because of a change of circumstances, the parties are SELUCKÁ, Marketa. Elimination ofthe impacts offinancial crisis on legal relationships according
bound to enter into neg?tiations with a view to adapting the contract orterminating it, provided to Czech Priva te Law. ln: BA~OGLU, Ba~ak (Ed.). The effects offinancial crises on the bindingforce
that: (a) t_h: ~hange of circumst~nces occurred after the time of conclusion of the contract, (b) ofcontrocts: renegotiation, rescission or revision. Nova Iorque: Springer, 2016. p. 112).
the p~ss1b1hty of a change_of c1rcumstances was not one which could reasonably have been 36 Lei nº 71/2011, art.1.271 (3) (d). DOBREV, Dumitru; ULIESCU, Marie na (Trad.). L'imprévision dans
t~ken mto acc~unt at the t1~e of conclusion of the contract, and (c) the risk of the change of le Nouveau Code Civil roumain enfanté par la crise écnomique mondiale. ln: BA~OGLU, Ba~ak
circumstances 1s not one wh1ch, according to the contract, the party affected should be required (Ed.). The effects offinancial crises on the bindingfarce of controcts: renegotiation, rescission or
to bear". revision. Nova Iorque: Springer, 2016. p. 245.
ANDERSON 5CHREIBER - 461
460 - CONSTRUINDO UM DEVER DE RENEGOCIAR NO ÜIREITO BRASILEIRO

dever de renegociação opera como condição prévia para o pleito de re- 0


dever de renegociação pode assumir diferentes papéis na intervenção
visão judicial ou resolução do contrato. 37 judicial sobre o contrato.40
Na América Latina, o novo Código Civil e Comercial argentino, Assim, no Qyébec, a busca pela renegociação surge não apenas
de 2014, embora não discipline expressamente um dever de renegocia- como um dever cujo cumprimento deve ocorrer previamente à inicia-
ção, afuma que o .contratante tem o direito de pleitear "extrajudicial- tiva judicial, mas também como uma atitude que pode ser exigida das
mente, o pedir ante un juez, por acción o como excepción, la resolución partes ao longo do processo, por meio de ince~tivo do tribunal e:ta~
total o parcial del contrato, o su adecuación". 38 A referência ao direito ou arbitral. Em qualquer das hipóteses, conclm-se que a renegociaçao
de pleitear "extrajudicialmente" a revisão pode ser interpretada como "figure au coeur des modalités d'intervention des tribu~aux sur fon- 1:
um direito à renegociação, com o correspondente dever da contraparte dement de l'imprévision'' ("figura no coração das modalidades de mter-
41
de responder à incitação à via negocial, na esteira do chamado "princí- venção dos tribunais com base na imprevisão").
pio do esforço compartido", forjado nas leis emergenciais promulgadas Na Alemanha, o BGB, após a reforma do direito das obrigações,
42
para aplacar os efeitos da disparidade cambial entre o dólar norte-ame- atribui expressa preferência à revisão do contrato (§313). A juris-
ricano e o peso argentino. 39 prudência alemã, todavia, vai além, já tendo o V Zivilsenat do B~H
Em outras experiências jurídicas, mesmo à falta de qualquer previ- (Bundesgerichthoj) reconhecido expressamente um dever de renegocia-
são normativa explícita, a jurisprudência tem acolhido um dever de re- ção por parte do contratante favorecido por uma perturbação na base
negociação, na esteira da cooperação esperada entre os contratantes em do negócio (Storung der Geschãftsgrundlage). Em decisão de 30.9.2011,
contratos de duração. No Qyebec, por exemplo, tem-se destacado que ao analisar caso envolvendo a permuta de imóveis entre um município
37 "[...] the negotiation attempt being a condition prior to addressing the court". (POSTOLACHE,
Rada. Unforeseeability accordingto the Regulations ofthe Romanian Civil Code- Legal Nature.
CKS - Chollenges ofthe Knowledge Society- Privo te Low, Bucareste, v. 3, 2013. p. 379).
Tradução livre: "extrajudicialmente, ou pedir perante o juiz, por ação ou como defesa, are- Como destacam Élise Charpentier e Nathalie Vézina, em traduç~o livre do autor:"~ r:nego-
solução total ou parcial do contrato, ou sua adequação". Na íntegra do original constante do ciação pode ser vista por diferentes ângulos: ela pode serc~nceb1d~ como_um_a co~d1~~0 para
Código Civily Comercial de lo Noción, aprovado pela Lei nº 26.994 e promulgado pelo Decreto 0 exercício dos direitos da parte que seja vítima da alteraçao das c1rcuns:a~c1as, s1gm~cando
nº 1.795/2014: "Artículo 1091. lmprevisión. Si en un contrato conmutativo de ejecución diferida dizer que esta última deve ter tentado renegociar antes de propor_em JUIZ□ uma açao pa_ra
o permanente, la prestación a cargo de una de las partes se torna excesivamente onerosa, por adaptar ou resolver o contrato. A ausência de tentativa de renegociar d': sua par_te podena,
una alteración extraordinaria de las circunstancias existentes ai tiempo de su celebración, so- então, justificar um desfecho de inadmissibilidade da demanda submet_1da_ ao tnbunal p~lo
brevenida por causas ajenas a las partes y ai riesgo asumido por la que es afectada, ésta tiene respectivo lesado a fim de determinar o destino do contrato. Ela (a renegoc1~~a_o) pode tamb~m
derecho a plantear extrajudicialmente, o pedir ante un juez, por acción o como excepción, ser vista como um efeito da intervenção judicial, se considerarmos a poss1b1hdade de uma in-
la resolución total o parcial dei contrato, o su adecuación. Igual regia se aplica ai tercem a tervenção judicial em duas etapas, primeiro para impor às partes o dev':rd: r,7negociar, depois
quien le han sido conferidos derechos, o asignadas obligaciones, resultantes dei contrato; y para de~idir sobre o destino o contrato _diante do f:aca~so ~~ negoc1açao . (CH~RPE~TIER,
ai contrato aleatorio si la prestación se torna excesivamente onerosa por causas extraiias a su Élise; VEZINA, Nathalie. Les effets exerces parles cnses fmac1eres sur la force obhgato1re _des
álea propia". contrats: certitudes et incertitudes du droit québécois en matiere d'imprévision. ln: BA$0GLU,
Era a opinião que já se vinha construindo na doutrina argentina com base nas leis especiais, Ba~ak (Ed.). The effects offinonciol crises on the bindingforce ofcontrocts: renegotiation, rescission
39
como se pode verde MI QUEL, Juan L. et ol. El principio dei esfuerzo compartido como sustento de ar revision. Nova Iorque: Springer, 2016. p. 78).
lo pretensión autónomo de revisión de los contratos en monedo extronjero 'pesificodos' celebrados 41 É a conclusão alcançada no relatório relativo ao Québec apresentado no XIX Congress_o_ da
entre particulares. [s.1.]: Ministerio de Justicia y Derechos Humanos, 2005. Disponível em: Academia Internacional de Direito Comparado, em Viena, em 2014. (CHARPENTIER, Ehse;
<www.saij.jus.gov.ar>. Acesso em: 13 jun. 2018: "De lo expuesto se infiere, que la normativa VÉZINA, Nathalie. Les effets exercés parles crises finacieres surla force obligatoire de~ contrats:
de emergencia con el principio dei esfuerzo compartido insta a las partes a autocomponersus certitudes et incertitudes du droit québécois en matiere d'imprévision. ln: BA$0GLU, Ba~ak
intereses, a renegociar el contrato; procurando evitar la extinción dei mismo". Entre nós, noticia (Ed.). The effects offinonciol crises on the bindingforce of controcts: renegotiation, rescission ar
RENNER, Rafael. Novo direito contratual: a tutela do equilíbrio contratual no Código Civil. Rio de revision. Nova Iorque: Springer, 2016. p. 79).
Janeiro: Freitas Bastos, 2007. p. 140: "No ordenamento jurídico argentino, a obrigatoriedade 42 "§313 (Perturbação da base do negócio) (1) Se circunstâncias, tornadas base d~ contr~to,
em revisar os pactos desproporcionais possui previsão legal expressa, por conta da perda de alteraram-se profundamente depois da sua celebração, de mo_do que as parte: nao ~ tenam
paridade cambial legalmente estipulada entre o peso argentino e o dólar norte-americano. celebrado ou o teriam com outro conteúdo, se houvessem previsto essa alteraçao, entao pode
As leis de emergencio económico instituíram o principio do esforço compartido, que convoca as ser exigida a revisão do contrato, na medida em que fo: inexig!vel_ para a parte a manutenção
partes a autocompor seus interesses". Confira-se o teor do art. 11 da Lei nº 25.561, trazido à do contrato não modificado, considerando todas as circunstancias do caso concreto, espe-
colação pelo mesmo autor: "Las partes negociarán la reestructuración de sus obligaciones cialmente a repartição contratual ou legal do risco.[ ...] (3) Se não é possível a revisão ou se ela
recíprocas, procurando compartir de modo equitativo los efectos de la modificación de la não for exigível de uma das partes, então pode a parte prejudicada resolv<:_r o contrato. N~
relación de cambio que resulte de la aplicación de lo dispuesto en el artículo 2° de la presente lugar do direito de resolução dá-se o direito à denúncia, nos casos de relaçoes duradouras •
ley, durante um pi azo no mayora dento ochenta (180) días.Acordadas las nuevas condiciones, (FRUHSTOCKL, Fernanda Carvalho.Aspectos do revisão judicio/ d~s ~antro to~~~ direi'.º civtl bra-
se compensarán las diferencias que, eventualmente, existian entre los pagos dados a cuenta y sileiro e alemão. Trabalho (Conclusão de Curso)- Faculdade de D1re1to Pont1f1c1a Universidade
los valores definitivamente acordados". Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. p. 15).
ANDERSON 5CHREIBER - 463
462 - CONSTRUINDO UM DEVER DE RENEGOCIAR NO DIREITO BRASILEIRO

e um particular, em que restou caracterizada a tentativa de renegociação lando a busca de fundamentos adicionais para o dever de rene~o_ciação
por parte do primeiro e a inércia do último, o BGH afumou: Abito da própria Convenção de Viena, como o dever de m1t1gar os
no am - 48
A pretensão da parte colocada em desvantagem devido a
danos,47 expressamente previsto no art. 77 daquela convençao.
uma perturbação na base do negócio à revisão (Anpassung) do Mesmo na França, cuja jurisprudência se mostra tradicionalmente
contrato obriga a outra parte a colaborar para a revisão. Caso avessa à aplicação da theorie d'imprévision aos contratos civis, registra-
a colaboração seja recusada, a parte em desvantagem pode -se que a Cour de Cassation "aceitou mais recente~ente (no caso Huard
pleitear a concordância com a revisão valorada como adequada e em alguns outros casos) a obrigação de renegociar contratos para re-
49
ou diretamente a prestação que resulta dessa revisão. 43 equilibrar deveres contratuais desproporcionais entre as partes". Com
O tribunal acrescentou, na ocasião, que "a violação da obrigação de efeito, no célebre arrêt Huard, de 3.11.1992, aquela corte condenou um
colaborar para a revisão do contrato pode gerar pretensões indenizató- -ontratante a indenizar outro, por força da sua recusa em rever um con-
50
rias conforme o art. 280, par. 1º, do BGB". 44 ~ato cujo cumprimento conduziu este último à ruína. Vale desta~a~
Na mesma direção, o Tribunal de Cassação da Bélgica (Hof van que, após a alteração dada pela Ord~nn~nce nº 2~16~1~1, ~ Code Civil
1
Cassatie) já havia reconhecido, em 19.6.2009, a existência de um dever passou a prever expressamente a obligatwn de renegociatton.
de renegociação derivado da boa-fé objetiva. No célebre caso Scafom
International BV v. Lorraine Tubes S..11..S., envolvendo um contrato in- but 'both parties must conduct the rene~o:iations in a constru~tive ma~ne;', 'by refraining
from any form of obstruction and by prov1d1ng ali the necessary mfor~at1on, takmg al~o the
ternacional de aquisição de tubos de aço que havia se tornado desequi- duty of cooperation into account [... ]. Though not ~xpressly stated, a fa1lur~ to comply w1th the
librado em virtude do aumento de 70% no custo da matéria-prima, o above-mentioned provisionsshould give ris e to a nghtto recoverdam~ges 1n favourofthe other
party''. (VENEZIANO, Anna. Unidroit principies and CISG: change of cr_rcumstances and dutyto
Hof van Cassatie, invocando de modo inédito os Princípios do Unidroit renegotiate accordingto the Belgian Supreme Court. Unifarm Law Rei,,ew, 15.1, p. 144-147, 2010).
Nesse sentido, DEWEZ,Julie etal. The duty to renegotiate an international sales contr~ct under
para integrar as lacunas da Convenção de Viena, concluiu que "la par- 47 CISG in case ofhardship and the use ofthe unidroit principies. ~urap_ea? Rev,ewofPnva'.e Law,
tie contractante qui fait appel au:x circonstances modifiées perturbant , . p. 114: "Ensuite, l'idée est é mise qu'une obliga~ion de ren~goc~at1?n du contrat decoule
1 2011
de Ja regle contenue dans J'article 77 de la CVI~ º?hgeant le cr~ancier a prendre les m~sures
fondamentalement l'équilibre contractuel a le droit de réclamer la re- raisonnables, eu égard aux circonstances, pour limiterla perte r~sul_ta~t ?.e la contraven_tion _au
contrat. La renégociation des conditions contractuelles pourrait a1ns1 s 1mpos~r au creancier
négociation du contrat" ("a parte contratante que invoca a alteração das en raison de son obligation de limiter de son dommage . Sobre o dever de mitigar os danos
circunstâncias que perturba fundamentalmente o equilfürio contratual no Brasil, ver FRADERA, Vera. Pode o credor ser instado a diminuir o próprio prejuízo? Revista
Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 19, jul./set, 2004, possim, e MORAES, Bru_no Terra
tem o direito de reclamar a renegociação do contrato"). 45 A referida de- de.A aplicação do dever da vítima de mitigar o próprio dano n_o Brasil: fundamentos e parametros.
cisão suscitou amplo debate na doutrina belga e internacional, 46 estimu- Dissertacão (Mestrado) - UERJ, Rio de Janeiro, 2016, passtm.
"Article . A party who relies on a breach o_f contr~ct musttake s~ch mea~ures as are reasonable
77
in the circumstances to mitigate the Joss, 1nclud1ng loss of prof1t, res~lt1~g from the bre~ch. lf
43 BCH(Bundesge,:i~hthof), decisão de30.9.2011-VZi_vilse~~t17/11 (OLG Hamm-Oberlandesgericht he fails to take such measures, the party in breach may claim a reduct1on m the damages m the
H~':1m). No or~gmal: Der Anspruch der durch eme Storung der Geschãftsgrundlage benach-
amount by which the loss should have been mitigated".
te1h9ten Par'.e, a~fVe_rtr~gsanpassun 9 verpflichtet die andere Partei, an der Anpassung mit- Em traducão livre do original de SEROZAN, Rona. General report on the effects offinoncial crises
zuw1rken. W1rd dte M1twirkungverwe1gert, kann die benachteiligte Partei aufZustimmungzu 49 on the bindingforce ofcontracts: renegotiation, rescission or revision._ ln_: BASOG~U, _Ba~ak (Ed.)-
der al_s angemessen erachteten Anpassung oder unmittelbar auf die Leistung klagen, die sich The effects offinancial crises on the bindingfa,:ce af con~racts: renegot1ation, rescission ar_ rev~-
aus d1eser Anpassung ergibt". sion. Nova Iorque: Springer, 2016. p. 24. Em igual sentido, anota ~ENEZIAN<?, Anna. Unidr_o1t
44 BCH (Bundesgerichthof), decisão de 30.9.2011 V Zivilsenat 17/11 (OLG Hamm - principies and CISG: change of circumstances and dutyto renegot1ate,~ccordm_g to the Belgian
Oberlandesgeri~ht H~mm). No original: "Die Verletzung derVerpflichtung, an der Anpassung Supreme Court. Uniform Law Review, 15.1, p. 144-147, 2010. p. 148: lnterest1ngly, however,
des Vertrages m1tzuw1rken, kann Schadensersatzansprüche nach §280 Abs. 1 BGB auslõsen". French Jaw has recently undergone some developments in this field. Scholars have referr_ed
Não s_e P?de dei~ar de notar qu_e a decisão despertou algum criticismo em parte da doutrina to the principie of good faith, cooperation or solidarité in arder to found_ a duty of_t~e parties
alema e mternac,onal. ~es~a direção, v~r BRUNNER, Christoph. ~orce Mojeure and Hardship to renegotiate their terms when the circumstances s~ffer su~h ~n al~erat1on that is1vmg effect
underCeneral Cantract Pnnc,ples- Exem pt1on for Non-Performance 1n lnternational Arbitration. to the original contractual terms would be clearly uniust. A similar l1ne of reasonmg has been
Austin: Wolters Kluwer, ~º':>9· p. 481, par~ qu~m "undergeneral contract principies and in the
the_ ab~ence of a reneg?t1at1on ela use, an mfnngement of the duty to renegotiate by the party applied by case law".
50 Bulletin civil de la Courde Cossation, IV, n. 338, 1992.
wh1ch 1s confronted w1th a request for renegotation should generally not result in liability for "Article 1195: Si un changement de circonstances imprévisi?le lo_rs ?e 1~ conclusion d_u ~ontrat
damages". 51 rend J'exécution excessivement onéreuse pour une partie qu1 n avait pas accepte d en as-
45 Haf van _Cassi:tie/C?urde_Cassation (Belge), 19.6.2009, n. C.07.0289.N, Arr. Cass. 2009 n. 422. sumer Je risque, celle-ci peut demander une renégoc(atio~ ~u contrat à son cocontr~~tant.
46 :endo sido, 1nclus1ve, af1:mado que o efeito da violação a tal dever de renegociação, embora Elle continue à exécuter ses obligations durant la renegociat1on. En cas de refus ou d echec
a falta de expressa mençao da Corte belga, haveria de ser a deflagração do dever de indenizar de Ja renégociation, Jes parties peuvent convenir de la résolution du cont_rat, à la date ~tau~
~s prejuízos causados: "ln practical terms it granted the seller, as the disadvantaged party, the conditions qu'elles déterminent, ou demander d'un commun accord au Juge de proceder a
nght to request renegotiations of the price. [.. :l There is no obligation to reach any agreement
ANDERSON 5CHREIBER - 465
464 - CONSTRUINDO UM DEVER DE RENEGOCIAR NO ÜIREITO BRASILEIRO

Todos esses exemplos, ainda que examinados perfunctoriamente, do desequihôrio tampouco é visto, pela maior parte da nossa doutrina,
revelam que normas estrangeiras e internacionais de elaboração mais re- como um dever jurídico, sendo apresentado, pelos raros autores que tra-
55
cente têm atentado para a conveniência de disciplinar, em alguma medi- tam do tema, como uma atitude "indicada''54 ou "recomendável" . Mesmo
da, o comportamento a ser adotado pelas partes diante do desequiHbrio a escassa doutrina que defende alguma abertura da ordem jurídica bra-
contratual e, mesmo à falta de norma específica, doutrina e jurispru- sileira a um dever de renegociação registra que "não há no ordenamento
dência de diversos países têm reconhecido a importância dessa dimen- jurídico brasileiro uma norma específica que determine a renegociação
são comportamental no tratamento jurídico da matéria. Trata-se, com dos contratos iníquos"56 e que, entre nós, "a jurisprudência e a doutrina
efeito, de dimensão essencial para evitar que a tutela do equiHbrio con- não qualificam o comportamento do contratante que se recusa à revi-
tratual acabe por se revelar pouco eficiente - na medida em que refrea- são como abuso". 57 Também na experiência estrangeira não faltam vozes
da pelos custos e ônus inerentes a uma iniciativa judicial desnecessária contrárias à imposição aos contratantes de um dever de renegociação,
58
ou excessivamente maleável, a ponto de ser ignorada pela parte favo- que significaria medida "extrema" de violência à autonomia privada.
recida ou invocada tardiamente pela parte prejudicada, como mero ardil relacionais todos os contratos que, sendo de duração, têm porobjeto colaboração (sociedade,
parcerias, etc.) e, ainda, os que, mesmo não tendo porobjeto a colaboração, exigem-na intE_:n~a
para escapar ao cumprimento regular do contrato. Referida essenciali- para atingir seus fins, como os de distribuição e da fra~q~ia, j_á referido_s". (:"'ZEVEDO, An_torno
dade justifica que, mesmo nos ordenamentos jurídicos em que o dever Junqueira de. Natureza jurídica do contrato de consorcio (smalagma indireto). Onerosidade
excessiva em contrato de consórcio. Resolução parcial do contrato. Novos Estudos e Pareceres
de renegociar carece de explícita consagração, estudiosos e tribunais se de Direito Privado, São Paulo, p. 355-356, 2009). Nesse mesmo sentido, Ruy Rosado de Aguiar
esforcem conjuntamente por lhe atribuir contornos vinculantes. Trata- Júnior define o contrato relacional (ou per relationem) "como o negócio jurídico perfeito
e incompleto, no qual a determinação do seu conteúdo ou de alguns dos seus elementos
se precisamente do caminho que deve ser seguido no direito brasileiro. essenciais se realiza mediante.a remissão a elementos estranhos ao mesmo". E adverte que
"o modelo do contrato relacional é o que melhor se adapta à nova sistemática dos contratos
4. CONSTRUÇÃO DE UM DEVER DE RENEGOCIAR NO de empresa e entre empresas, nas quais a gestão do risco da superve~iência é um pro?lema.
Essa nova realidade exige a consideração de remédios de manutençao, que conduz a rene-
DIREITO BRASILEIRO gociação, ao mesmo tempo em que nos obriga a lidar com cláusulas que, pela concepção
tradicional, seriam inválidas, tais como as que ficam intencionalmente em branco, para futura
A doutrina brasileira, em sua ampla maioria, ainda alude à renego- renegociação. Nos contratos relaciona_is: a prime(ra alternativ~ ~iante da s~pe_rve~iência é a
da renegociação; frustrada, cabe a rev1sao das clausulas pelo JUIZ ou pelo arbitro . (AGUIAR
ciação do contrato desequilibrado como mera "faculdade" das partes. 52 JÚNIOR, Ruy Rosado de. Contratos relacionais, existenciais e de lucr?· Rev'.sta Trime:tral _de
Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 45, p. 98-99, 2011). Ainda sobre o tema, e considerada pioneira
Em alguns poucos casos, chega-se a aludir à renegociação como "primeira a obra de MACEDO, Ronaldo Porto. Contratos relacionais e a defesa da consumidor. São Paulo:
alternativa" a ser seguida pelas partes, quase sempre no âmbito de con- Max Limonad, 1998, em que, embora o autor não chegue a trazer uma definição muito precisa
do que deve ser entendido como contrato relacional, noticia a transformaçã_o das relações
· · 53 O·m10rmar
tratos re1ac10na1s. r o outro contratante prontamente acerca contratuais em prol de sua maior duração, bem como demonstra o amplo impacto dessa
transformação sobre as relações de consumo.
son adaptation. A défaut d'accord dans un délai raisonnable, le juge peut, à la demande d'une ANDRADE, Fábio Siebeneichlerde.A teoria da onerosidade excessiva no direito civil brasileiro:
54
partie, réviser le contratou y mettre fin, à la date et aux conditions qu'il fixe". limites e possibilidades de sua aplicação. Revista AJUR/5, v. 41, n. 134! p. _246-247, jun. _2014._
52 "Ant:sd: cuidarmos dos efeitos propriamente ditos, é oportuno consignar neste passo a im- 55
"Ao devedor lesado pela modificação superveniente recomenda-se de aviso ao credor, mclus1ve
para lhe garantir a possibilidade de propor ainda a tempo útil a modificação das cláusulas do
por~anc1a da postura a ser adotada pela parte prejudicada pela excessiva onerosidade super-
~ernente: Embora deva recorrer ao Judiciário, atentando ainda para não se tornar inadimplente, negócio, ou de colaborar na criação das condições que viabilizem a perfeição do contrato".
e certo dizer qu: ant:s de qualquer medida deve cientificar a contraparte de sua dificuldade, (AGUIARJÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento da devedor. Rio de
fac~!tando-lhe discutir a c~ntenda amig~~elmente, c?locando na notificação um prazo para Janeiro: Aide, 1991. p. 159).
isto . (WELTON, Nelly Mana Potter. ReV1Sao e resoluçao dos contratos no Código Civil conforme 56 RENNER, Rafael. Novo direito contratual: a tutela do equilíbrio contratual no Código Civil. Rio
perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 205). de Janeiro: Freitas Bastos, 2007. p. 137-138.
53 São denominados contratos relacionais aqueles "que se caracterizam pelos seguintes elemen- AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Relatório brasileiro sobre revisão contratual apresentado
57
tos: (i) os con_trato~ r:la:ionais tend:m a se estender no tempo; (ii) em virtude de sua ligação, para as Jornadas Brasileiras da Associação Henri Capitant. ln: AZEVEDO, Antônio Junqueira
busca-se mais a d1sc1plma de questoes futuras entre as partes. Ou seja, o contrato não visa a de. Novos estudos e pareceres de direito privada. São Paulo: Saraiva, 2009. P: 196. . . .
estabelecer apenas regras sobre as trocas em si, mas disciplinar o relacionamento a ser fruído 58 O termo é empregado descritivamente porTOMMASlNI, Raffaele. Dalle log1che d1 rev1s1one dei
ao longo da vida do contrato. Assim, é comum que, na redação do instrumento, as partes rap porto alie piu articolate forme di gestione. ln: TOMMASINI, Raffaele (Cu_r.).Sopr~vve~1enze~
valham-se de termos amplos, sem significado claramente definido no momento da celebração dinamichedi riequilibrio tra contralla egestione dei rap parto contr~ttu_ale. Turim: G. G1app1c~:ll1,
do ato,- ~ançam-se bases para um futuro comportamento colaborativo, mais do que a ordem 2003. p. 4, para quem a imposição de um dever de renegoc1açao acabaria por permitir a
espec1f1ca de obrigações determinadas; (iii) há uma certa interdependência entre os contra- identificação de "un novo significato deli a esperessione che il contratto ha forza di legge tra le
tantes, uma vez que o sucesso de uma (e do negócio globalmente considerado) reverterá em parti, nel senso della necessità di una sua conservazione anche quando vicende sopravvenute
benefício da outra (i. e., de outras delas)". (FORGIONI, Paula Andrea. Contratos de distribuição. sembrano potere rendere inattuabile il rapporto nei termini disegnati dai contraenti". Ainda
2~ ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 71). Para Antônio Junqueira de Azevedo:"[ ...] na doutrina italiana, contra a existência de um dever de renegociação, ver GABRlELLI, Enrice.
ha, no contrato relacional, um contrato de duração e que exige fortemente colaboração. São L'eccessiva onerosità sopravvenuta. Turim: G. Giappicheli, 2012. p. 102: "li tema della rinegozia-
466 - CONSTRUINDO UM DEVER DE RENEGOCIAR NO ÜIREITO BRASILEIRO
ANDERSON 5CHREIBER - 467

Em que pese esse desestimulante cenano, afigura-se não apenas conhecimento do dever de renegociar, entre nós, encontra fundamento
possível, mas imperativa a construção (rectius: o reconhecimento) de normativo na cláusula geral de boa-fé objetiva, mais especificamente no
um dever de renegociação de contratos desequilibrados no direito bra- art. 422 do Código Civil. 62
sileiro, como expressão do valor constitucional da solidariedade social, 59 Não há, assim, necessidade de norma específica estabelecendo, en-
bem como de normas infraconstitucionais daí decorrentes, em particu- tre nós, o dever de renegociar. 63 Com a consagração da boa-fé objeti-
lar a cláusula geral de boa-fé objetiva. va no Código Civil - e, mesmo antes disso, no Código de Defesa do
Como já afumado em outra sede, o que o ordenamento jurídico visa Consumidor, bem como na produção doutrinária e jurisprudencial bra-
com o princípio da boa-fé objetiva é "assegurar que as partes colabora- sileira -, 64 o contrato deixa de ser pacto originário estático para se con-
rão mutuamente para a consecução dos fins comuns perseguidos com o verter em relação contratual dinâmica, funcionalizada ao atendimento
contrato". 60 Ou, em outras palavras, a boa-fé objetiva "impõe um padrão do fim comum que as partes pretendem alcançar com sua mútua coope-
de conduta a ambos os contratantes no sentido da recíproca cooperação, ração. 65 Não se quer dizer, note-se, que o mundo dos negócios se torna
com consideração dos interesses um do outro, em vista de se alcançar o um ambiente romântico, em que cada contratante deve, altruisticamente,
efeito prático que justifica a existência jurídica do contrato celebrado". 61
62 "Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em
Nesse sentido, não se pode deixar de notar que tanto o dever de sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. Sob o ponto de vista dogmático, tem-se,
avisar prontamente a contraparte acerca do desequilíbrio contratual por toda parte, atribuído à boa-fé objetiva uma tríplice função no sistema jurídico, a saber:
(i) a função de cânone interpretativo dos negócios jurídicos; (ii) a função criadora de deveres
identificado, quanto o dever de ingressar em renegociação com vistas anexos ou acessórios à prestação principal; e (iii) a função restritiva do exercício de direitos. A
referida tripartição funcional, inspirada nas funções do direito pretoriano romano, foi moder-
a obter o reequilfürio do contrato constituem deveres de conduta que, namente sugerida por Gustav Boehmer. Grundlogen derbürgerlichen Rechtsordnung, opud Franz
conquanto instrumentalizados à recuperação do equilfürio contratual, Wieacker. El principio general de lo buenofe, Madrid: Civitas, 1986, p. 50: "[ ... ] el parágrafo 242
8GB actúa también iuris civilis iuvandi, supplendi o corrigendi gatio". No Brasil esta classificação
derivam, a rigor, da necessidade de que as partes cooperem entre si para foi adotada por autorizada doutrina. Ver AZEVEDO, Antõnio Junqueira de. Insuficiências,
a concretização do escopo contratual. Assim, é de se concluir que o re- deficiências e desatualização do projeto de Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos
contratos. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 1, 2000. p. 7: "Essa mesma tríplice
função existe para a cláusula geral de boa-fé no campo contratual, porque justamente a ideia
zione esula, in realtà, da quelio dell'eccessiva onerosità, sopratttutto se si crede, cosi come é ajudar na interpretação do contrato, adjuvandi, suprir algumas das falhas do contrato, isto
sembre corretto, che l'ordinamento, salvo casi espressamente regolati, non ha previsto un é, acrescentar o que nele não está incluído, supplendi, e eventualmente corrigir alguma coisa
generico obbligo di rinegoziare tra le parti in presenza di una sopravvenienza. Sicché quelio que não é de direito no sentido de justo, corrigendi". No mesmo sentido, AGUIAR, Ruy Rosado
offerto d alia rinegoziazione eun pro filo di indagine che, purneliasua utilità, attiene piu ai diritto de. A boa-fé na relação de consumo. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 14, 1995. p.
degli affari, ed alie sue tecniche di redazione dei contratti, che alia ricostruzione sistematica 25, ao tratar especificamente das relações de consumo: "Na relação contratual de consumo,
dei diritto comune dei contratti". a boa-fé exerce três funções principais: a) fornece os critérios para a interpretação do que foi
Expressamente nesse sentido, afirma-se na doutrina estrangeira: "Quest'obbligo sembra avere avençado pelas partes, para a definição do que se deve entender por cumprimento pontual
59
radiei profonde, saldamente ancorate ai principi fondamentali delia Costituzione. Difatti, e das prestações; b) cria deveres secundários ou anexos; e c) limita o exercício de direitos".
nel dovere di solidarietà sociale previsto dali'art. 2 Cost. che viene additata la giustificazione Igual entendimento tem sido adotado por parcela da doutrina em países em que a codificação
dei perché il contraente fortunato, che ha tratto beneficio da una imprevista circostanza so- civil é omissa a respeito, como ocorre, por exemplo, na Turquia: "As regards to Turkish law,
pravvenuta, dovrebbe rinegoziare i termini dell'accordo originaria, cosl rinunciando a parte neither the Court of Appeal nor the legislator addressed at ali the renegotiations, as if they are
dei vantaggi conseguiti". (D'ARRIGO, Cosimo. li controlio delie sopravvenienze nei contratti unaware of the subject matter. On the other hand, Article 138 of the Turkish Civil Code does
a lungo termine. ln: TOMMASINI, Raffaele (Cur.). Sopravvenienze e dinomiche di riequilibrio tra not exclude renegotiation. ln our opinion, renegotiation shali be performed not to violate the
controllo e gestione dei rapporto contrattuole. Turim: G. Giappichelii, 2003. p. 534). principie of good faith which is, in fact, the legal grou d of the provision". (BAYSAL, Ba~al. The
60 TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. A boa-fé objetiva no Código de Defesa do adaptation ofthe contract in Turkish Law. ln: BA~0GLU, Ba~ak (Ed.). The effects offinancial crises
Consumidor e no Código Civil. ln: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Obrigações: estudos na on the bindingforce of contracts: renegotiation, rescission or revision. Nova Iorque: Springer,
perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 39. Veja-se, também, 2016. p. 326-327).
HATTENHAUER, Hans. Conceptosfundomentoles dei derecho civil - lntroducción histórico- Éindiscutível marco inicial nesta matéria a obra de SILVA, Clóvis do Couto e.A obrigação como
-dogmática. Barcelona: Ariel, 1987. p. 91: "PorTreu und Glauben entendemos el mandato de processo. São Paulo: José Bushatsky, 1976. p. 30, em que o autor afirmava:"[ ...] a inexistência,
justificar em cualquier situación la confianza dei outro en que quedarán a salvo la fidelidad y no Código Civil, de artigo semelhante ao §242 do 8GB não impede que o princípio tenha
1~ rectitud, como es usual y nec~sario e_ntre camaradas alemanes. En el pasado, porignorancia vigência em nosso direito das obrigações, pois se trata de proposição jurídica, com significa-
liberal dei Derecho, se entendia parcialmente por Treu und Glauben un arreglo equitativo do de regra de conduta". Sobre o papel desempenhado pela boa-fé no direito obrigacional
de los intereses encontrados de las partes contratantes, lo que no era sino uma atrofia de su brasileiro, ver a obra, também fundamental, de MARTINS-COSTA, Judith. A boofé no direito
verdadero contenido. La exigencia de fidelidad representa mucho más que una medíocre privado - Sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
limitación de los propios intereses; requiere una acción que en ningún momento pierda de p. 381-515, especialmente.
vista la compenetración con los demás y, por ende, la gran comunidad (nacional) de la que 65 Sobre a boa-fé objetiva e seu impacto no direito contratual, verSCHREIBER, Anderson.Aproi-
somos responsables". biçõo de comportamento contraditório - Tutela da confiança e venire contra factum proprium.
61 NEGREIROS, Te reza. Teoria do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 122-123. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2016 (especialmente capítulo 2).
468 - CON5fRUINDO UM DEVER DE RENEGOCIAR NO DIREITO BRASILEIRO ANDERSON 5CHREIBER - 469

abandonar suas posições de vantagem em benefício do outro. É natural medida em que se agrava o seu prejuízo. Ninguém é obrigado a aceitar
e legítimo que cada contratante busque a realização de seu próprio in- propostas de renegociação, mas ~ boa-fé objetiva impõe que t~ ~roposta
teresse, mas não se permite mais que essa busca se realize com o sacri- seja respondida, em tempo razoavel, para que aquele que pleiteia o ree-
fício da finalidade comum que conduziu as partes à contratação. Não se quilibrio possa, eventualmente, recorrer à jurisdição arbitral ou estatal, a
tolera, à luz da boa-fé objetiva, que um contratante esvazie a utilidade fim de corrigir a excessiva onerosidade que o atinge. Tampouco se admite
do contrato, ou permaneça inerte quando sua atuação se faz necessária que um dos contratantes guarde para si, tal qual "carta na manga", even-
para que tal utilidade seja atingida. Impõe-se às partes o agir responsá- tual desequilibrio do contrato, esperando para invocá-lo tardiamente, em
vel, tomando em consideração os interesses do outro contratante, res- sede de defesa em ação judicial proposta diante do seu inadimplemen-
peitando suas legítimas expectativas, tudo em prol da realização efetiva to. Impõem-se a pronta comunicação e a interação com a contraparte.
do fim contratual. 66 Como se vê, o dever de renegociar consiste, essencialmente, em um
Essa profunda transformação operada pela boa-fé objetiva tem dever anexo ou lateral68 de comunicação e esforço de superação de um
íntima relação com o reconhecimento de um dever de renegociar con- fato significativo na vida do contrato: um excessivo desequilibrio con-
tratos em desequiHbrio. 67 A dimensão comportamental valorizada pela tratual, nos termos delimitados pela ordem jurídica. Como dever anexo,
boa-fé objetiva e consubstanciada na conduta adotada pelas partes ao integra o objeto do contrato independentemente de expressa previsão
longo da relação contratual desempenha papel relevantíssimo nos casos das partes. 69 A boa-fé objetiva impõe que, em ocorrendo referido dese-
de desequilibrio superveniente das prestações. A partir do momento em quilibrio, que compromete a plena concretização do escopo contratual,
que os contratantes são chamados a abandonar posturas de imobilismo empenhem-se as partes em colaborar reciprocamente em busca do ree-
para cooperar, de modo leal e transparente, em prol da realização do fim quiHbrio, por meio de uma readequação mutuamente aceitável do con-
contratual, deixa de ser aceitável à luz da ordem jurídica que o contratan- trato.70 Doutrina estrangeira chega a aludir nesse sentido a um principio
te que recebe uma proposta de renegociação do contrato, em virtude de di adeguamento (princípio de adequação) do contrato, a ser concretizado
um desequilíbrio a que a ordem jurídica atribui relevância (e.g., Código
Civil, arts. 317 e 478-480), simplesmente silencie, deixando o contra- 68 Os deveres anexos, também chamados deveres laterais, são deveres impostos pela boa-fé
objetiva ao lado das obrigações principais e acessórias pactuadas pelas partes, como explica
tante prejudicado em situação de insegurança que se prolonga na exata CORDEIRO, Menezes. Da boafé no direita civil. Coimbra: Almedina, 1997. p. 605 e ss. Acerca da
ampla variabilidade do conteúdo dos deveres criados pela boa-fé, ver SILVA, Clóvis do Couto e.
66 Jacques Mestre chega a aludir, nesse sentido, a uma espécie de ajfectio cantractus, a substituiro A obrigação cama processa. São Paulo:José Bushatsky, 1976. p. 113, para quem os deveres anexos
ferrenho antagonismo entre os direitos do credor e os direitos do devedor. (MESTRE, Jacques. "comportam tratamento que abranja toda a relação jurídica. Assim, podem ser examinados
L'évolution du contrat en droit privé français. ln: CARBONNIER, Jean et ai. L'évolution contem- durante o curso ou o desenvolvimento da relação jurídica, e, em certos casos, posteriormente
paraine du Draitdes Cantrats-Journées René Savatier(Poitiers, 24-25 octobre 1985). Paris: Presses ao adimplemento da obrigação principal. Consistem em indicações, atos de proteção, como o
Universitaires de France, 1986. p. 51). dever de afastar danos, atos de vigilância, da guarda de cooperação, de assistência. O objeto
67 Traçando um panorama da relação entre boa-fé e dever de renegociação, o General Repart de alguns deles é, portanto, fazer ou não fazer, consistindo alguns em declarações de ciência,
apresentado no XIX Congresso da Academia Internacional de Direito Comparado, em Viena, como nas indicações e comunicações; outros, em atos determinados".
em 2014, registra: "This recent approach, arising from the general principie of loyalty and 69 Na síntese de Luiz Edson Fachin: "Quem contrata não mais contrata tão só o que contrata"
good faith, is also observed in the United Kingdom. ln Quebec, the principie of good faith (Contratos na ordem pública do direito contemporâneo. ln: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz
is generally recognized and although it has not yet been applied to change of circumstances Edson (Coords.). O direita e o tempo: embates jurídicos e utopias contemporâneas. Estudos em
cases, some authors have suggested it as a tool to enable the courts to tem per the principie of homenagem ao Professor Ricardo Pereira Lira. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 458). E, em
pacta sunt servanda. The possibility of such a duty to renegotiate is also stated in the Turkish outra passagem, completa: "Probidade e boa fé são princípios obrigatórios nas propostas e
report. According to the Turkish reporter, such duty deduced from the general principie of negociações preliminares, na conclusão do contrato, assim em sua execução, e mesmo depois
g_ood faith and the duty of cooperation, would be more consistent with the economic reality, do término exclusivamente formal dos pactos. Desse modo, quem contrata não mais contrata
smce application to the court in order to invoke other remedies is more expensive and time tão só o que contrata, via que adota e oferta um novo modo de ver a relação entre contrato e
consuming for both parties. Moreover, in the United States, there is an incresingly liberal ordem pública". (p. 460).
attitude towards the way of renegotiation depending on good faith as stated in the national 70 "ln questa dimensione le rinegoziazione rappresenta lo strumento attraverso il quale perse-
report. This altitude most probably originates from the effects of frustration in the Common guire questa finalità. li fondamento della sua applicazione risied nella norma che fissa tra gli
Law tradition. Frustration causes namely an automatic (eo ipso) release of the parties from the obblighi di comportamento quello di esecuzione secondo buona fede che, nel caso di specie,
contract and this fact makes it necessary to renegotiate about a new contract with different si identifica anche con la legittima esigenza (reciproca) di comportamenti tali da consentire
terms". (SEROZAN, Rona. General report on the effects of financial crises on the binding force il regolare svolgimento dei rapporto nel tempo". (PARRINELLO, Concetta. Obbligatorietà
of contracts: renegotiation, rescission or revision. ln: BA~0GLU, Ba~ak (Ed.). The effects offinan- dei vincolo e squilibrio delle prestazioni nei contratti tra imprenditori: riflessioni sui Principi
cial crises on the bindingforce of cantracts: renegotiation, rescission or revision. Nova Iorque: Unidroit. ln: TOMMASI NI, Raffaele (Cur.). Sopravvenienze e dinamiche di riequilibrio tra cantrallo
Springer, 2016. p. 24). e gestiane dei rap porto cantrattuale. Turim: G. Giappichelli, 2003. p. 480).
470 - CONSTRUINDO UM DEVER DE RENEGOCIAR NO ÜIREITO BRASILEIRO ANDERSON 5CHREIBER - 471

pela atuação permanente das partes em prol da sua conformação à rea- sar O contrato extrajudicialmente ou, pior, de aceitar um contrato novo. 75
lidade social e econômica subjacente. 71 Rejeita-se, em síntese, a inércia, O contratante favorecido atende ao dever de renegociação analisando e
quer do contratante favorecido, que não pode silenciar diante de uma respondendo ao pleito que lhe é apresentado, ainda que simplesmente
proposta de renegociação apresentada pelo contratante que alega sofrer para rejeitá-lo. O dever de renegociar constitui, em outras palavras, um
a excessiva onerosidade, quer desse último contratante, que não pode se dever de ingressar em renegociação, informando prontamente o fato que
retardar a comunicar o desequilfbrio, invocando-o tardiamente como a enseja e formulando um pleito de revisão do contrato, ou analisando
oportunista justificativa para seu inadimplemento, o qual poderia mes- e respondendo, com seriedade, ao pleito apresentado pelo outro con-
mo ter sido evitado caso a renegociação chegasse a bom termo. 72 tratante. É, em essência, um dever de comunicar, de pronto, a existên-
O dever de renegociação não tem como objeto a obtenção de um cia do desequfübrio contratual e ingressar em tratativas para encontrar
resultado consubstanciado no efetivo acordo para a revisão do contrato, a melhor forma de superá-lo, em consonância com a boa-fé objetiva. 76
mas sim, a conduta a ser adotada pelas partes diante do desequihbrio Afigura-se inevitável, quanto ao segundo aspecto indicado, algum
contratual. Desdobra-se em duas etapas: (a) o dever de comunicar pron- paralelismo com a incidência da boa-fé objetiva sobre as tratativas pré-
tamente a contraparte acerca da existência do desequfübrio contratual -contratuais. Na Itália, parte da doutrina chega a apontar como funda-
identificado; e (b) o dever de suscitar uma renegociação que possibili- mentos do dever de renegociação não apenas o art. 1.375 do Código
te o reequihbrio do contrato ou de responder a proposta nesse sentido, Civil italiano, 77 correspondente ao art. 422 do nosso Código Civil, mas
analisando-a seriamente. 73 também o art. 1.337 da mesma codificação, que impõe que as partes se
Assim, o dever de renegociação consubstancia uma abertura adi- comportem secando buonafede (segundo a boa-fé) nas tratativas e na for-
cional à revisão do contrato, mas uma revisão extrajudicial e autônoma, mação do contrato78 - norma que não encontra correspondente na nossa
conduzida pelas próprias partes e que pode, eventualmente, fracassar. 74 codificação. 79 Em que pese a ausência, o paralelo auxilia na compreen-
Repita-se: o dever de renegociar não configura um dever de reequilibrar são quer do conteúdo do dever de negociação, quer da responsabilida-
o contrato em sede negocial. Não constitui tampouco um dever de aceitar de decorrente da sua violação, pois, como observa Cosimo D'Arrigo:
as novas condições propostas pelo contratante que alega estar sofrendo a
excessiva onerosidade. Não se trata, nesse sentido, de um dever de revi- 75 Nessa direção, embora em passagem de início um tanto ambíguo, registram Rodolfo Sacco
e Giorgio De Nova: "II dovere di negoziare nuli'altro e, se non _u~ obbligo ?i contrar:e: detto
meglio, l'obbligo di essere disponibile a contrarre, ~elie cond1z1one che :1~~lta~o g1uste ali~
stregua (a) dei parametri risultanti dai testo originaria dei contralto, (b) nv~s1ta~1 alia luce dei
71 DE MAURO, Antônio.// principio di odeguomento nei ropporti giuridicitro priva ti. Milão: Giuffré, nuovi eventi imprevedibili e sopravvenuti". (SACCO, Rodolfo; DE NOVA, G1org10. /[ controtto.
2000, especialmente p. 83. 2ª ed. Milão: Giuffre, 2012. p. 724. t. li).
72 Nessa direção, D'ARRIGO, Cosimo. II controlio delle sopravvenienze nei contratti a Iungo Na síntese de Ba~al Baysal, "the principie of good faith, in the first place, should lead the par-
termine. ln: TOMMASINI, Raffaele (Cur.). Soprovvenienze e dinomiche di riequilibrio tro contrai- ties facing difficulty in performing the contractual obligations to come together ai:_d to seek
lo e gestione dei ropporto controttuale. Turim: G. Giappichelii, 2003. p. 535: "ln particolare, il a solution". (BAYSAL, Ba~al. The adaptation of the contract in Turkish Law. ln: BA~OGLU, Ba~ak
principio di buona fede, prevenendo i comportamenti opportunistici -vale a d ire, il tentativo (Ed.). The effects offinancial crises on the bindingforce of controcts: renegotiation, rescission or
di appropriarsi dei surplus di profitto inatteso ed immeritato cui potrebbe dar luogo una revision. Nova Iorque: Springer, 2016. p. 327).
sopravvenienza contrattuale, rinsalda la fiducia fra le parti[...]". 77 "Art. 1375. Esecuzione di buona fede. II contratto deve essere eseguito secando buona fede
73 Nessa direção, MARASCO, Gerardo. La rinegoziazione. ln: VISINTINI, Giovanna. Trottato delia [...]". . . .
responsabilità contrattuale. Pádua: Cedam, 2009. p. 599. v. 1: "AI fine di valutare la condotta 78 "Art. 1337. Trattavie e responsabilità precontrattuale. Le parti, nelio svolg1mento deli e trattat1ve
delle parti posso no socorrere le regele elaborate d alia giurisprudenza in relazione alia respon- e nelia formazione dei contratto, devono comportarsi secando buona fede[ ...]".
sabilità precontrattuale: in questo ambito, la buona fede impone alie parti, in primo luogo, un 79 Ausência que era já criticada pela melhor doutrina antes_da promulg~~~o ~o Códi15~ .civ_il de
dovere di reciproca informazione (cosicché ogni contraente e tenuto a dare notizia di fatti e 2002, como se pode ver de AZEVEDO, Antônio Junqueira de. lnsuf1c1enc1as, def1c1enc1as e
delle circostanze che ritiene rilevanti e di cui la controparte appare non essere informata) e, desatualização do projeto de Código Civil na questão da boa-fé objeti~a no~ c_~ntr~tos. Revista
in secondo luogo, l'obbligo di condurre le trattative nel rispetto dell'altrui affidamento". Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 1, 2000. p. 4: "[ ...] Segunda msuf1c1enc1a: o art. 421
74 Em igual sentido, mas em perspectiva talvez mais otimista, SEROZAN, Rona. General report se limita ao período que vai da conclusão do contrato até sua execução. Sempre digo que.º
on the effects of financial crises on the binding force of contracts: renegotiation, rescission or contrato é um 'processo' em que há começo, meio e fim. Temos fases contratuais fase pre-
revision. ln: BA~OGLU, Ba~ak (Ed.). The effects offinancial crises on the bindingforce ofcontrocts: -c□ ntratual, contratual propriamente dita e pós-contratual. Uma das pos~ív:is aplic_aç?es da
renegotiation, rescission or revision. Nova Iorque: Springer, 2016. p. 24: "The opening of the boa-fé é aque!a que se faz na fase pré-contratual; nessa fase, temos as negocia~o:s prelm~m~res,
possibility of renegotiation means atthe sarne time the opening ofthe opportunity to revise the as tratativas. Eum campo propício para a regra do comportamento da b?~-fe, eis que, a1, ainda
contract. ln fact, the process of renegotiation will in most cases lead inevitably to the revision não há contrato e, apesar disso, já são exigidos aqueles deveres espec1f1cos que uma pessoa
of the contract". precisa ter como correção de comportamento em relação à outra".
ANDERSON 5CHREIBER - 473
472 - CONSTRUINDO UM DEVER DE RENEGOCIAR NO DIREITO BRASILEIRO

Assumiria relevo nesta sede não somente o art.1.375 do Código construir o equilíbrio contratual. 83 De fato, a renegociação deve ser "sé-
Civil - ao qual se reconduz o surgimento da obrigação legal de ria, propositiva, cooperativa e de boa-fé", mas pode fracassar, hipótese
renegociar-, mas também o art.1.377 do Código Civil, uma vez na qual restará a via da revisão heterônoma do contrato, a ser realizada
que o adirnplemento desta obrigação, dando vida a uma nova fase pelo juiz ou pelo árbitro. 84
de tratativas para alcançar a restauração da originária razão de
troca, sujeita-se também à disciplina da atividade pré-contratual. 5. CONCLUSÃO
Em essência, a pactuação de novas condições contratuais propor- Como fruto da boa-fé objetiva, o dever de renegociar não se limita a
cionais às superveniências - mesmo que constitua, na perspectiva incidir sobre momentos pontuais ou específicos, mas se espraia por todo
em exame, objeto de uma precisa obrigação integrativa ex lege do o iter da relação contratual. Assim, embora se imponha a pronta comu-
conteúdo dos contratos a longo prazo - se concretiza sempre por nicação do desequilíbrio contratual, tem-se aí apenas o primeiro passo
meio de um acordo entre as partes. Portanto, se os contraentes de um amplo e recíproco colaborar (mitzuwirken, na expressão tão uti-
não encontram um ponto de acordo e as tratativas naufragam lizada pelos juristas alemães) que não se esgota em uma estrutura sim-
por causa não imputável ao prornissário, este último não poderá plista e binária de aviso e contra-aviso como no mencionado exemplo
ser considerado inadimplente. 80
da antiquada disciplina do nosso Código Civil em torno da proposta e
Afirma-se, nessa mesma direção, que o dever de renegociar não con- aceitação na formação do contrato-, mas se pretende contínua e perma-
siste em obrigação de resultado, mas "se configura como uma obrigação nente, nunca preclusa aos contratantes, que não restam dispensados em
de meio". 81 Parte da doutrina estrangeira chega a descrever o remédio nenhum momento do seu mútuo cumprimento.
como invitation to renegotiate (convite para renegociar), reforçando que O conteúdo do dever de renegociação somente pode, portanto, ser
o sucesso ou não da renegociação é questão que extrapola o âmbito do precisamente determinado à luz da concreta relação contratual e das es-
dever. 82 O dever de renegociação restringe-se à tentativa "séria" de re-
pecíficas circunstâncias de que deriva a necessidade de renegociar, mas
é possível, a título meramente exemplificativo, arrolar alguns compor-
tamentos que podem vir a compor o conteúdo desse dever, como (a)
80 Tradução livre do trecho original de D'ARRJGO, Cosimo. li controlio delle sopravvenienze
nei contratti a lungo termine. ln: TOMMASINI, Raffaele (Cur.). Sopravvenienze e dinomiche di pronta e detalhada comunicação à contraparte sobre o desequilfürio con-
riequilibrio tra contrallo e gestione dei rapporto contra/tua/e. Turim: G. Giappichelli, 2003. p.
560: "Verebbe in rilievo in questa sede non soltanto l'art. 1375 e.e. - ai quale si riconduce il tratual, indicando fundamentadamente a presença dos seus pressupos-
sorgere dell'obbligo legale di rinegoziare -, ma anche l'art. 1337 e.e., in quanto l'adempimento tos; (b) resposta da contraparte em tempo razoável a essa comunicação,
di quest'obbligo, dando vila ad una nuova fase di trattative per addivenire ai ripristino dell'o-
riginaria ragione di scambio, soggiace altresi alia disciplina deli'attività precontrattuale. ln informando pronta e fundamentadamente se não considerar presentes
sostanza, la pattuizione di nu ove condizioni contrattuali commisurate alie sopravvenienze - aqueles pressupostos; (c) qualquer proposta, bem como contraproposta
sebbene costituisca, nelia prospettiva in esame, oggetto di un preciso obbligo integrativo ex
lege dei contenuto dei contratti a lungo termine -si concretizza pur sempre in un accordo fra de revisão extrajudicial do contrato, deve ser apresentada de modo de-
le parti. Perianto, sei contraenti non trovano un punto di intesa ele trattaive naufragano per
causa no~ imputabile ai promissario, quest'ultimo non potrà esse considerato inadempiente". talhado e justificado, evitando-se a lógica do "pegar ou largar"; (d) no
Como afirma MARASCO, Gerardo. La rinegoziazione. ln: VISINTINI, Giovanna. Trattata del!a curso da renegociação cada parte deve fornecer à outra todas as infor-
responsabilità contra/tua/e. Pádua: Cedam, 2009. p. 595-596. v. l: "II dovere di rinegoziazione,
i~ via g_e~erale, si configura co~e u_n~ ~bbligazione di mezzi: i cont~aenti, ai verificarsi di par-
83 GORNI, Alfredo. Le clausole di rinegoziazione. ln: VACCÀ, Cesare. li conflitto dei Golfo e i
t1colan c1rcostanze, sono tenut1 ad mlZlare e condurre nu ove trattat1ve (a svolgere, quindi, una
contra/ti di impresa: esecuzione, adattamento e risoluzione in uno scenario di crisi - Quaderni
certa attività ed assumere una particolare condotta) ai fine di trovare una congrua soluzione
per l'arbitrato e per I contratti internazionali. Milão: EGEA, 1992. p. 56. v. 5.
ai problema delie sopravvenienze. L'obbligo di rinegoziare non impone alie parti il raggiun-
84 A lição é de Ruy Rosado de AguiarJúnior, embora em passagem restrita aos contratos relacionais:
gimento di un accordo (un risultato), ma le impegna sem pi icem ente a mettere in discussione
"As considerações acima foram feitas para ensejara conclusão de que, no tema da onerosidade
i termini dell'originario contratto nel tentativo 'serio' di ricostruire, ove cio risponda a ragioni
excessiva e da teoria da imprevisão relativamente aos contratos relacionais, a aplicação do regime
di efficienza e di reciproca convenienza economia, l'alterato equilibrio contrattuale".
legal de onerosidade excessiva deve ser posterior à fase de renegociação do risco da superve-
~The legal remedies provided in light of the theoretical instruments justifying an intervention
niência. Fracassando essa tentativa, abre-se a oportunidade para a intervenção heterônoma,
m cases of unexpected and burdensome financial developments are as follows: (a) invitation
do juiz ou do árbitro, para a redefinição que o fato novo determina. Nos contratos relacionais,
to renegotiate, regarding the possible means in orderto finda compromisingsolution against
a primeira alternativa diante da superveniência é a da renegociação, que deve ser séria, propo-
the suddenly changed circumstances [... ]". (SEROZAN, Rona. General report on the effects
sitiva, cooperativa e de boa-fé; frustrada, cabe a revisão das cláusulas pelo juiz ou pelo árbitro".
of financial crises on the binding force of contracts: renegotiation, rescission or revision. ln:
(AGUIARJÚNIOR, Ruy Rosado de; TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Comentários ao Novo
BA$0GLU, Ba~ak (Ed.). The effects offinancial crises on the bindingforce ofcontracts: renegotiation,
Cádigo Civil: da extinção dos contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 896. v. VI. t. li).
rescission or revision. Nova Iorque: Springer, 2016. p. 23).
FRANCISCO PAULO DE CRESCENZO MARINO - 475
474 - CONSTRUINDO UM DEVER DE RENEGOCIAR NO DIREITO BRASILEIRO

mações úteis para avaliar a oportunidade e o conteúdo de uma eventual 11. REVISÃO CONTRATUAL FUNDADA EM
revisão extrajudicial do contrato; (e) as partes devem igualmente man-
EXCESSIVA ONEROSIDADE SUPERVENIENTE:
ter reserva sobre dados e informações obtidos no curso da renegociação,
evitando sua divulgação a terceiros; (f) nenhuma das partes deve se re- COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO CREDOR E
cusar injustificadamente a manter renegociações ou interrompê-las de 1
modo abrupto e imotivado; e (g) o insucesso da renegociação não deve LIMITES DA ATUAÇÃO DO JUIZ
ser considerado por qualquer das partes como razão para se recusar a
Francisco Paulo De Crescenzo Marino 2
analisar propostas de solução consensual no âmbito de eventual proces-
so judicial ou arbitral subsequente. 85
1. A LÓGICA DO JOGO DE PODERES (EXTINTIVO E MODIFICATIVO)
O dever de renegociação nasce, como se vê, no afã de permitir uma
NO SISTEMA DO ART. 478 DO Córneo CIVIL
solução extrajudicial do problema do desequilibrio contratual, mas, fra-
cassada tal tentativa, estende-se, inclusive, sobre um eventual processo Consoante a clara letra dos arts. 478 e 479 do Código Civil, com-
judicial ou arbitral a que os contratantes necessitem recorrer. Nesse sen- pete ao devedor da prestação tornada excessivamente one~osa pl_ei~ear
tido, a doutrina italiana admite, mesmo, que uma oferta formulada em a resolução da relação contratual, podendo o credor requerido evita-la,
fase de renegociação possa ser reapresentada em juízo no âmbito de ação oferecendo-se a rever (modificar equitativamente) as bases do contrato.
de resolução promovida pelo outro contratante, como oferta destinada Com efeito, no primeiro dispositivo, atribui-se ao devedor confron-
a evitar o fim do contrato, 86 nos termos da norma contida na parte final tado com o agravamento relevante do custo de sua prestação, ou com a
do art. 1.467 do Código Civil italiano, 87 correspondente ao art. 479 do desvalorização excessiva da contraprestação, o poder de resolver a relação
Código Civil brasileiro. 88 Confirma-se, assim, que o dever de renegociar contratual, liberando-se da obrigação assumida. A resolução contratu-
incide sobre ambos os contratantes, podendo qualquer deles deflagrar al é, portanto, o remédio legal de tutela do devedor contra a excessiva
ou retomar o processo de renegociação, 89 que consubstancia autêntico onerosidade superveniente.
favor contractus, assumindo preferência em relação aos possíveis remé- Frente a esse poder extintivo, a lei outorga ao credor um contrapo-
dios terminativos disponibilizados pela ordem jurídica. der, de natureza modificativa, permitindo-lhe evitar a extinção do vín-
culo, desde que o reconduza à equidade.
O poder de modificar as bases do contrato não é conferido ao de-
vedor, tampouco autorizado, ex o.fficio, ao juiz.
85 Sobre o tema, ver MARASCO, Gerardo. La rinegoziazione. ln: VISINTINI, Giovanna. Trattato A opção legislativa é legítima e justificada. Afinal, a modificação
dei/a responsabilità contrattuale. Pádua: Cedam, 2009. p. 600-601. v. 1.
86 Afirma expressamente Cosi mo D'Arrigo que "l'offerta di riconduzione ad equitàgià formulata equitativa da relação contratual terá sentido e efeito distintos para as
prima dell'inizio della lite, potrà essere ri proposta nel giudizio promosso dall'onerato per la partes. Para o devedor da prestação tornada excessivamente onerosa, o
risoluzione dei contratto". (D'ARRIGO, Cosimo. li controllo dellesopravvenienze nei contratti
a lungo termine. ln: TOMMASINI, Raffaele (Cur.). Sopravvenienze e dinamiche di riequilibria tra reequilíbrio significará a atribuição de uma vantagem econômica - seja
contrai/o e gestione dei rapporto contrattuole. Turim: G. Giappichelli, 2003. p. 560).
"Art. 1.467. [...] La parte contra la quale e domandata la risoluzione puà evitaria offrendo di
por meio da redução de sua prestação, do incremento da contrapresta-
modificare equamente le condizioni dei contratto". ção, da extensão de prazo para o adimplemento, da alteração benéfica
"Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente
as condições do contrato".
89 No mesmo sentido, MARASCO, Gerardo. La rinegoziazione. ln: VISINTINI, Giovanna. Trattato
dei/a responsobilità contrattuale. Pádua: Cedam, 2009. p. 597. v. 1, destacando, inclusive, que Os temas abordados no presente artigo encontram-se mais extensamente desenv_olvidos
a ren~gociação pode ser deflagrada não só pelo contratante excessivamente onerado, mas em: MARINO, Francisco Paulo De Crescenzo. Revisão contratual: excessiva oneros1d?de e
tambem por aquele que não sofre o efeito negativo do desequilíbrio contratual: "Si tratta di modificação contratual equitativa. São Paulo: Almedina, 2020 (notadamente nos Capitulas
un'obbligazione che, in egual misura, investe entrambi i contraenti. AI verificarsi dei richiesti
presupposti, uno dei contraenti potrà d are impulso alia rinegoziazione (l'iniziativa, nella gene- leV).
2 Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Vice-Presidente
ralità dei casi, viene assunta dalla parte che vi ha interesse, ma nulla toglie che il procedimento
rinegoziativo venga avviato dall'altro contraente)". do Instituto de Direito Privado.
FRANCISCO PAULO ÜE CRESCENZO MARINO - 477
476 - REVISÃO CONTRATUAL FUNDADA EM EXCESSIVA ONEROSIDADE SUPERVENIENTE: COMPETÊNCIA .••

do loc~ ?u da forma da ~restação, dentre outras possíveis adaptações -, Como visto, mostra-se justificável a atribuição do poder modificati-
necessana para reconduzir a prestação ao álveo da álea normal. vo somente ao credor, dado o efeito econômico resultante da conserva-
ção do vínculo, correlatamente positivo para o devedor e negativo para
Para o c_:edor, em contrapartida, o reequilibrio implicará, via de re-
o credor. Esta a razão pela qual Darcy Bessone defendia a solução legal,
gra, a assunçao de ônus econômico adicional em relação ao programa con-
antes mesmo do Código de 2002: "Em certos casos, porém, o melhor re-
tratual originário. 3
médio seria a revisão para a adaptação às novas condições, mas, a nosso
_ A dinâmica da le! explica-se, pois, a partir da desigualdade da posi- ver, em caráter facultativo para o credor, a quem ficaria salvo preferir a
çao das partes frente a manutenção do contrato cuja prestação foi afe- resolução, porque, de outro modo, poderia ser conduzido a estipulações
tada pela excessiva onerosidade superveniente. Em outros termos a que não lhe conviessem. O devedor, no entanto, teria os seus efeitos mi-
atribui~ã~ desigual de poderes jurídicos a credor e devedor justifica~se norados e seria colocado em posição melhor que a estabelecida pelo con-
pelas d1stmtas posições jurídicas de que são titulares. Trata-se no fim- trato, razão por que não poderia furtar-se aos termos da nova situação."
7

do, de medida isonômica. '


É hoje majoritária, na doutrina brasileira, a posição segundo a qual
Caso o poder modificativo fosse conferido ao devedor o seu exercí- é possível ao devedor da prestação excessivamente onerosa pleitear não
~io ten~encialmente levaria a impor ao credor ônus econô~ico superior somente a resolução da relação contratual, mas também sua modifica-
aque_le livremente assumido, mediante simples declaração do devedor ou ção.8 Embora prevalecente,esse posicionamento é tudo menos unânirne.
9

mediante a atuação do juiz- em qualquer caso, sem o concurso do credor.


Para justificar o poder revisional do devedor da prestação excessiva-
_Div:rsa era a regra constante do Anteprojeto de Código das mente onerosa, a doutrina nacional recorre a diversos argumentos, afe-
Obngaç~es (Parte Geral), de 1941, elaborado por Comissão composta tando conjuntamente os arts. 478 e 479 do Código Civil, pois admitir a
por Orosrmbo Nonato, Philadelpho Azevedo e Hahnemann Guimarães. 4 revisão contratual por iniciativa do devedor significa incluir, ao lado do
~ art. 322 do Anteprojeto permitia ao juiz, a pedido do interessado, "mo- remédio resolutório previsto no art. 4 78, um segundo e distinto remédio.
d_ificar o cumprimento da obrigação, prorrogando-lhe o termo ou redu- Altera-se, ipso facto, a dinâmica daqueles artigos, calcados no equilíbrio
zmdo-lhe a importância."5 de posições jurídicas, na medida em que a posição jurídica modificativa
. Ao revés, o Anteprojeto de Código de Obrigações de 1963 de au- atribuída ao credor é reação ao exercício da posição jurídica extintiva ti-
to~ia de Caio Mário da Silva Pereira, continha regras notavelm~nte si- tulada pelo devedor.
milares aos arts. 478 e 479 do Código Civil de 2002. 6
3 Apó~ e~por a dinâmica do art. 1.467 do Código Civil italiano - dispositivo em que 0 le islador
brasileiro :!aramente se inspirou -, ressaltando a impossibilidade de O devedor pf ·t
;an~t~nçao d? contrato, Francesco Delfini afirma: "Tal cautela é compreensível, nasist=~~~i~: 7
BESSONE, Darcy. Do contrato: teoria geral. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 224.
a o cod~go,_ pois se '.r?ta de e!e~a_r a presta~âo de uma das partes, ainda que para reequilibrar 8 Este aparente consenso (refletido na "praxe") foi registrado por Antonio Junqueira de Azevedo:
relaçao ~mal?gmat1c?, e ~ao Jª de reduzir a prestação originariamente pactuada." (DELFINI JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Relatório brasileiro sobre revisão contratual apresentado
Autonomia pnv?ta e nsch10 contrattuale, Milano: Giuffre, 1990, p. 392). ' para as Jornadas Brasileiras da Associação Henri Capitant. ln: _____ . Novos estudos e
Sobre as te_ntat1vas __de reforma, vide ZANETTI, Cristiano de Sousa. Direito contratual pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 182-198, aqui p. 193). Sintomática, a
4
conte_mp?raneo: a liberdade contratual e sua fragmentação. Rio de Janeiro: Forense· Sã 0 esse respeito, a aprovação do Enunciado 176 da Ili Jornada de Direito Civil do Centro de Estudos
Paulo. Metodo, 2008, p. 145-1 52 . ' Judiciários do Conselho daJustiça Federal: "Art. 478- Em atenção ao princípio da conservação
"Art. 32:, - Quando, ~or força de acontecimentos excepcionais e imprevistos ao tempo da dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível,
5
concl~sao do ato, opoe-se ao cumprimento exato desta dificuldade extrema com re"uízo à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual."
exorb1tantepa_ra uma d~s par~es, pode o juiz, a requerimento do interessado: consi~er!ndo Po~icionam-se de modo contrário ao poder revisionai do devedor, exemplificativamente:
9
com equanimidade a s1tuaçao dos contraentes, modificar o cumprimento da obrigação LEAES, Luiz Gastão Paes de Barros. A onerosidade excessiva no Código Civil. Revista de Direito
prorrogando-lhe o termo ou reduzindo-lhe a importância." ' Bancário e do Mercado de Capitais, São Paulo, n. 31, p. 12-24, 2006, aqui p. 19-20; ASCENSÃO,
6 Art. 35~- Nos c_ontrat~s de execução diferida ou sucessiva, quando, por força de acontecimento José de Oliveira. Alteração das circunstâncias e justiça contratual no novo Código Civil. Revista
excepcional e 1n:'prev1sto ao tempo de sua celebração, a prestação de uma das partes venha a Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, n. 25, p. 93-118, 2006, aqui p. 107-108; PEREIRA LIRA,
tornar-se excess1vament~ ~nerosa, capaz de gerar para ela grande prejuízo e para a outra arte José Ricardo. A onerosidade excessiva no Código Civil e a impossibilidade de "modificação
lucro exagerado~ pode o J_wz, a requer_111;ento do interessado, declarar a resolução do confrato. judicial dos contratos comutativos sem anuência do credor." ln: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN,
~ sentença, entao p!ofenda, retro traira os seus efeitos à data da citação da outra parte." Luiz Edson (coord.). O direito e o tempo: embates jurídicos e utopias contemporâneas, estudos
em homenagem ao Professor Ricardo Pereira Lima. Rio de Janeiro/São Paulo/Recife: Renovar,
Art. 359. A resoluçao do contrato poderá ser evitada oferecendo-se o re'u dent 0 d
d t t - d'f' ' , r o prazo 2008, p. 425-455, aqui p. 449-50.
a con es açao, a mo 1 1car com equanimidade o esquema de cumprimento do contrato."
FRANCISCO PAULO ÜE CRESCENZO MARINO - 479
478 - REVISÃO CONTRATUAL FUNDADA EM EXCESSIVA ONEROSIDADE SUPERVENIENTE: COMPETÊNCIA •••

No que se segue, passaremos em revista, de forma não exaustiva, os Fundamentalmente, a aplicabilidade do art. 317 para além do campo das
principais argumentos explorados pela doutrina, em exame crítico que prestações pecuniárias é sustentada com base na literalidade do disposi-
ponderará o acerto da opinião sustentada. tivo, sobretudo em razão da expressão não restritiva "prestação devida",
bem como da suposta incompatibilidade da primeira corrente exegética
2. o ART. 317 DO Córneo CIVIL DIZ RESPEITO A OBRIGAÇÕES com outras regras e princípios do ordenamento, notadamente conserva-
PECUNIÁRIAS ção, boa-fé, equihbrio econômico e função social do contrato (examinados
Determinada exegese do art. 317 do Código Civil, 10 que assinalaria adiante). Examinemos então, com a brevidade que se impõe, o art. 317.
peculiaridade do sistema brasileiro frente ao italiano, constitui um dos Do ponto de vista do processo legislativo, o texto do art. 317 foi
principais argumentos brandidos pelos defensores do poder revisiona! do objeto de sucessivas alterações 15 • Com efeito, o Projeto de Lei ("PL'')
devedor. Sobre o âmbito de incidência desse.artigo, é possível identificar 634/1975 continha, em seu art. 315, menção à "desvalorização da
três principais correntes interpretativas. A primeira restringe o disposi- moeda''. 16
tivo às prestações pecuniárias. 11 A segunda, aparentemente majoritária, Essa redação foi objeto de quatro emendas, 17 tendo sido aprova-
entende pela aplicabilidade do art. 317 a toda e qualquer prestação.12 da a emenda 327, por força da qual o artigo, então renumerado já como
Enfim, a terceira orientação, bastante minoritária, ainda mais restriti- 317, passou se referir à "correção monetária" a ser determinada pelo juiz
va do que a primeira, opina pela incidência da referida norma apenas às "mediante aplicação dos índices oficiais", sem necessidade de pedido das
obrigações não-contratuais. 13 partes. O objetivo era de tornar mais simples e expedita a correção mo-
O entendimento esposado pela segunda corrente, especificamente, netária do valor das dívidas. 18
tem servido de base para a atribuição do poder revisiona! ao devedor. 14 Nova emenda foi proposta, 19 com o objetivo de eliminar o artigo
como um todo, devido ao caráter supostamente transitório e emergen-
10 Exe_mylificativamente: BARLETTA, Fabiana. Apontamentos para um estudo comparado da
r~v1sao contratual por excessiva onerosidade superveniente nos direitos brasileiro, português cial da correção monetária,2° mas o senador Josaphat Marinho, embo-
e 1ta_liano. Revista Trimestr~I de Direito Civil, Rio de Janeiro, n. 24, p. 247-272, out./dez. 2005, ra concordando com a objeção, opinou pela manutenção do artigo. A
aqui p.256 e 263; A:GU!ARJUNIOR, Ruy Rosado de. Comentários ao Novo Código Civil: volume
VI, tom_o 11, da extinçao do contrato, arts. 472 a 480. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 916-917 proposição do Presidente da Comissão Revisora e Elaboradora não foi,
(Coleçao Comentários_ao Novo Código Civil, coordenada por Sálvio de Figueiredo Teixeira);
NASSER, Paulo Magalhaes. Onerosidade excessiva no contrato civil. São Paulo: Saraiva, 2011, contudo, integralmente acolhida21 , e a referência original à "desvalori-
p. 108-109; e SCHREIBER, Andersen. Equilíbrio contratual e dever de renegociar, São Paulo: zação da moeda" foi alterada, para admitir outras hipóteses de reajuste
Saraiva, 2018, p. 247-249 e 264.
11 Destacam-se, a esse respeito, entre outras, as seguintes contribuições: LEÃES, A onerosidade do valor da prestação. 22 - 23
excessiva no Código Civil, op. cit., p. 19-20; FRANTZ, Laura Coradini. Revisão dos contratos:
elementos para sua construção dogmática. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 111, 140 e 180; FRANTZ, 15 O processo legislativo conducente ao art. 317 do Código Civil foi esmiuçado por FRANTZ,
L~u_ra Co:a~ini. Bases dogmátic~~ par? interpretação dos artigos 317 e 478 do Novo Código Revisão dos contratos, op. cit., p. 11-15.
Civil bras1le1ro. ln: DELGADO, Mano Luiz; ALVES,Jones Figueiredo (coord.). Novo Código Civil: 16 Redação idêntica à do art. 311 do Anteprojeto de Código Civil apresentado ao Ministro da
questões controvertidas no direito das obrigações e dos contratos. São Paulo: Método, 2004, Justiça pela Comissão Elaboradora e Revisora em março de 1973.
157-217, aqui p. 199,200 e 212). 17 Emendas 324,325,326 e 327. Cf. PASSOS, Edilenice; LIMA,João Alberto de Oliveira. Memória
12 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor: Legislativa do Código Civil: volume 2, tramitação na Câmara dos Deputados, primeiro turno.
resolução. 2ª ed. Rio de J~nei~o: AIDE, 2003, p. 152-153; LOTUFO, Renan. Código Civil
Brasília: Senado Federal, 2012, p. 227-229.
Comentado: volume 2, obngaçoes, parte geral, arts. 233 a 420. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 18 Cf. PASSOS & LIMA, Memória Legislativa do Código Civil: volume 2, op. cit., p. 230-231).
228-22_9; PU~LI E~E, Antonio Celso Fonseca. Teoria da imprevisão e o novo Código Civil. Revista 19 Emenda nº 38, de autoria do senador Gabriel Hermes.
dos Tribunais, Sao Paulo, n. 830, p. 11-26, dez. 2004, aqui p. 23; MORAES, Renato José de. 20 PASSOS, Edilenice; LIMA, João Alberto de Oliveira. Memória Legislativa do Código Civil:
Alteração ~as circunstãncias negociais. ln: PEREIRA, Antonio Jorge; JABUR, Gilberto Haddad volume 3, tramitação no Senado Federal. Brasília: Senado Federal, 2012, p. 27.
(c_oord.). D1rei~o dos contratos. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 136-160, aqui p. 144; BDINE 21 Critica este fato Judith Martins-Costa: Comentários ao novo Código Civil: volume V, tomo 1,
JU_NI_OR, ~~m1d Charaf. Comentário ao art. 317 do Código Civil. ln: PELUSO, Cezar (coord.). do adimplemento e da extinção das obrigações, arts. 304 a 388. Rio deJaneiro: Forense, 2004,
Cod1go Civil comentado. 12ª ed. Barueri: Manole, 2018, p. 278; e LOBO, Paulo. Direito Civil: p. 285 (Coleção Comentários ao Novo Código Civil, coordenada por Sálvio de Figueiredo
obrigações. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 197-198.
13 PEREIRA LIRA, A onerosidade excessiva no Código Civil, op. cit., p. 451-452. Teixeira).
22 Cf. Parecer Final nº 749, de 1997, da Comissão Especial, destinada a examinar o Projeto de Lei
14 Como recentemente se afirmou, o art. 317 converteu-se em "uma espécie de 'puxadinha da Câmara nº 118, de 1984, de iniciativa do Presidente da República, que institui o Código Civil,
hermenêutico' do arts. 478 a 480", sendo "empregado em uma interpretação corretiva dos arts. Diário do Senado Federal, 15 de novembro de 1997, Suplemento "A", p. 34; itálicos nossos).
478 a 480, para garantir a revisão mesmo na hipótese dos contratos bilaterais, ao contrário 23 Resultou daí subemenda e, com ela, a redação definitiva do artigo: Emenda do Senado Federal
do que sugeriria a leitura isolada daqueles dispositivos" (SCHREIBER, Equilíbrio contratual e nº 34, de autoria do senador JosaphatMarinho. Vide PASSOS & LIMA, Memória Legislativa do
dever de renegociar, op. cit., p. 248, grifos nossos).
480 - REVISÃO CONTRATUAL FUNDADA EM EXCESSIVA ONEROSIDADE SUPERVENIENTE: COMPETÊNCIA ••• FRANCISCO PAULO ÜE CRESCENZO MARINO - 481

A tônica da elaboração legislativa do art. 317 do Código Civil foi, Se O vocábulo polissêmico "revisão" pode eventualmente designar
assim, a expansão da previsão do reajuste do valor da prestação a outras ambas as hipóteses, a necessária precisão impõe segregar o mero reajuste
hipóteses (os "motivos imprevisíveis", na dicção da lei), além da "desva- ou correção de valores, de um lado, da mais ampla modificação dos ter-
lorização da moeda", contemplada no PL original. O exame das justifi- mos do contrato, de outro. Naturalmente, a norma reguladora de mero
cativas das emendas apresentadas não permite afirmar, no entanto, que reajuste ou correção não constituirá ba~e suficient~ para ampliar os ca-
se tenha eliminado a conexão do texto final da norma ao contexto da sos de modificação expressamente preV1stos em lei.
correção monetária de dívidas pecuniárias. 24 Julgamos inviável, diante da interpretação acima exposta em que
Antes, a necessária consideração dos demais meios hermenêuticos convergem os elementos interpretativos literal, histórico e sistemático-,
corrobora a leitura proposta. De um ponto de vista sistemático, a locali- estabelecer qualquer forma de combinação, associação ou concurso en-
zação do dispositivo, fonte de perplexidade para alguns, é eminentemente tre os arts. 317,478 e 4 79 do Código Civil, pois o primeiro e os últimos
significativa. Com efeito, o art. 315 enuncia o princípio do nominalis- tratam de hipóteses distintas. 27
mo nos seguintes termos: "As dívidas em dinheiro deverão ser pagas no
vencimento, em moeda corrente e pelo valor nominal, salvo o disposto nos
3. Ü PRINCÍPIO DA CONSERVAÇÃO E SEUS LIMITES

artigos subsequentes." (itálicos nossos) A tese majoritária invoca ainda, habitualmente, o princípio da con-
, . . ,d. ?s 29
Por evidente, a expressão "salvo o disposto nos artigos subsequentes" servação d os negocios JUn 1cos.- -
incluída pela mesma subemenda que deu redação final ao art. 31725 - Trata-se de raciocínio singelo: posta a alternativa teórica entre are-
se reporta necessariamente aos arts. 316 e 317, que constituem, assim, solução e a revisão do contrato cuja prestação se tornou excessivamente
exceções ao princípio do nominalismo. Daí se conclui que o art. 317 se onerosa, dever-se-ia não somente admitir, mas mesmo privilegiar a re-
aplica apenas às obrigações pecuniárias. 26 visão, dado que somente esta conduz à manutenção da avença, em aten-
Retira-se daí outra consequência central. O fato de serem distintos ção ao princípio da conservação. 30
3
os objetos dos arts. 317 e 4 79 do Código Civil resulta em formas diver- Não se nega o alcance amplo do princípio da conservação 1, poden-
sas de combater a perturbação da relação obrigacional neles verificada. do-se adotar a definição lata de ANTONIO JUNQUEIRA DE AzEVEDO, para
No art. 317, a lei prescreve a correção ou o reajuste do valor da prestação. quem, consoante o princípio da conservação, "tanto o legislador quanto
No art. 479, ela estatui a modificação equitativa das "condições do con- o intérprete, o primeiro, na criação das normas jurídicas sobre os diver-
trato". Tratar a ambos como casos de "revisão contratual" leva a confun- sos negócios, e o segundo, na aplicação dessas normas, devem procurar
dir formas distintas de intervenção na economia contratual. conservar, em qualquer um dos três planos - existência, validade e efi-
32
cácia-, o máximo possível do negócio jurídico realizado pelo agente" .
Código Civil: volume 3, op. cit., p. 311.
24 Veja-se, na justificativa do senador Josaphat Marinho à rejeição da Emenda nº 38 (autoria do 27 Exatamente nesse sentido: LEÃES, A onerosidade excessiva no Código Civil, op. cit., p. 20. O
senador Gabriel Hermes), a afirmação inicial de que "[o]s arts. 315 a 317 disciplinam a aplicação tema foi objeto, ainda, de recente dis~ertação d': mest~ado,_t~ndo a auto~~ concl~ído, a nos~o
da correção monetária", assim como a alusão à afirmação de Miguel Reale quanto à possível ver com inteiro acerto, pela autonomia dos referidos d1spos1t1vos, sendo 1mposs1vel a adoçao
subsistência, no Código, de "dispositivos legais sobre a correção monetária" (Parecer Final nº de um procedimento sequencial para hipóteses distintas e com o~jetos diversos" (FERRAZ, A
749, op. cit., p. 34). onerosidade excessiva na revisão e extinção dos contratos, op. c1t., p. 98.).
Parecer Final nº 749, op. cit., p. 34. 28 Cf. entre outros, ASCENSÃO, Alteração das circunstâncias, op. cit., p. 107; ASSIS, Araken de.
Essa constatação é coerente, ademais, com a letra do artigo em comento. A prescrição no Comentários ao Código Civil brasileiro: volume V, do direito das obrigações, arts. 421 a
sentido de "corrigir" o "valor da prestação" diante de uma desproporção entre valores (valor 480. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 728 (Coleção Comentários ao Código Civil Brasileiro,
original e valor no momento da execução), de modo a assegurar o "valor real da prestação", organizada por Arruda Alvim e Thereza Alvim). . . . .
parece inteiramente compatível com a correção monetária das dívidas em dinheiro. Laura 29 Neste sentido, ainda, o já citado Enunciado 176 da Ili Jornada de D1re1to Civil do Centro de
Coradini Frantz julga a expressão "valor real" compatível apenas com as prestações pecuniárias Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal.
(FRANTZ, Revisão dos contratos, op. cit., p. 180). A nosso ver, a referência ao "valor real da 30 Vide, por todos, SCH REIBER, Equilíbrio contratual e ~ever de ~en~~ociar, op. cit., p. 257. _
prestação" poderia, in abstracto, designar o valor de mercado de bens em geral, sentido esse, 31 Tivemos oportunidade de enfrentar as diversas acepçoes do prmc1p10,_optando pe_la ~c~p~ao
v.g., que parece ter sido prestigiado no parágrafo único do art. 160 do Código Civil ("Se inferior, maximalista, em MARINO, Francisco Paulo De Crescenzo. lnterpretaçao do negocio Jund1co.
o adquirente, para conservar os bens, poderá depositar o preço que lhes corresponda ao valor São Paulo: Saraiva, 2011, p. 307 ss. . . . _
real."). Parece-nos, contudo, que o já exposto contexto do art. 317 do Código Civil efetivamente 32 JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Negócio jurídico: existência, validade eef1cac1a. 4ª ed. Sao
leva a vincular o "valor real da prestação" ao valor real da moeda. Paulo: Saraiva, 2010, p. 66. O mesmo autor enumera os meios conservativos fornecidos pelo
482 - REVISÃO CONTRATUAL FUNDADA EM EXCESSIVA ONEROSIDADE SUPERVENIENTE: COMPETÊNCIA ••• FRANCISCO pAULO ÜE CRESCENZO MARINO - 483

O princípio da conservação seria, contudo, apto a criar remédio re- Nesse quadro, a modificação equitativa (revisão) tem, ao menos po-
visional paralelo ou preferencial relativamente ao remédio resolutório tencialmente, aptidão para causar impacto mais significativo no progra-
previsto no art. 478, um remédio revisional? Nosso parecer é negativo, ma contratual, o que suscita, no mínimo, maior cautela ao propor a sua
por razões que passamos a expor. extensão a casos não expressamente previstos em lei. 35
O princípio da conservação não atua de modo ilimitado. Ao con- Dada a heterogeneidade dos meios - dos quais poucos se equiparam
trário, consoante a definição de JUNQUEIRA acima exposta, a possibilida- ao 479, na intensidade da intervenção na autonomia privada-, não há
de de manter o negócio jurídico existente, válido e eficaz dependerá dos como invocar a conservação para multiplicar os casos de revisão. A revisão
limites traçados pelo direito positivo. Deve-se preservar, assim, o meio não somente promove a conservação, como interfere na autonomia pri-
pelo qual o legislador concretizou o resultado conservativo para deter- vada.Evoca-se, aqui, a colisão de princípios ou "fratura intra-sistemática"
minado caso hipotético. de que fala MENEZES CORDEIRO, aludindo à oposição entre autonomia
No caso da revisão de contratos 33 cuja prestação se tornou excessi- privada e boa-fé verificada no campo da alteração das circunstâncias. 36
vamente onerosa por conta de acontecimentos extraordinários e impre- Não há, em.suma, um princípio gera/ da revisão dos contratos no direi-
visíveis, o meio em questão existe e está previsto no art. 4 79 do Código to positivo brasileiro. 37
Civil. Esse dispositivo, associado ao princípio da conservação, não ape- Além de metodologicamente injustificável, o afastamento da solução
nas admite a manutenção do contrato, mas ainda delimita o meio de in-
legal conduziria à consagração de um mecanismo revisional com contor-
cidência concreta do princípio da conservação na hipótese em questão. 34
nos indefinidos38 , sujeito às preferências volúveis de cada intérprete ou
Note-se a existência de significativa particularidade do meio con- julgador travestido de legislador, sacrificando, por completo, as exigên-
servativo previsto no art. 4 79 do Código Civil em relação à maior parte cias basilares de segurança e de previsibilidade. 39 Também por essa ra-
das outras figuras tradicionalmente relacionadas ao princípio da conser- zão, não se mostra adequada a extensão dos casos de revisão com apoio
vação: nele, a manutenção demanda a modificação do conteúdo de deter- na exigência geral de conservação dos negócios jurídicos.
minada relação contratual em curso. Ao contrário, na maior parte dos
demais meios conducentes à conservação (i) o conteúdo negocial não so-
fre qualquer alteração (v.g., na conservação interpretativa, na conversão
substancial e na confirmação dos negócios anuláveis etc.), (ii) há mera 35 Em sentido semelhante, notando que a maior parte dos mecanismos de manutenção da relação
contratual dispostos em lei não impõem o agravamento do ônus econômico da contraparte:
correção ou ajuste de valores (v.g., na ação estimatória, na restituição DELFINI, Francesco. Autonomia privata e rischio contrattuale. Milano: Giuffre, 1990, p. 392-
393; AMBROSOLI, Matteo. La sopravvenienza contrattuale. Milano: Giuffre, 2002, p. 432.
de parte do preço em caso de evicção parcial e na correção do valor da MENEZES CORDEIRO, António. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2015, p. 1111.
prestação do art. 317), ou (iii) há a redução do conteúdo negocial, seja Note-se, contudo, que o Código Civil brasileiro, como o italiano, não alude expressamente à
boa-fé no regular a excessiva onerosidade superveniente, diferentemente do art. 437º, 1 do
por conta da adaptação ou da substituição de cláusula tida por inválida Código Civil português.
( v.g., a redução da cláusula penal e a redução da taxa de juros ao máxi- 37 MARTINS-COSTA,Judith.A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo:
Marcial Pons, 2015, p. 594.
mo permitido em lei), seja por meio da separação e da preservação da 38 Note-se que os defensores da extensão do remédio revisionai ~~ual1:1ente_não_ enfrentam as
múltiplas possibilidades de concretização da proposta de mod1f1caçao leg1sl_at1va ..
parte válida do conteúdo (art. 184). Afinal, eventual extensão do remédio revisionai prescrito no art. 479 poderia realizar-se de
39
diversos modos. Poder-se-ia permitir que o devedor pleiteasse a modificação equitativa da
sistema jurídico brasileiro consoante a tripartição dos planos de análise do negócio jurídico e, relação contratual, cuja eficácia, contudo, ficaria na dependência da aceitação do credor
ao abordar os meios atuantes no plano da eficácia, afirma que o princípio da conservação se (solução, diga-se de passagem, pouco ou nada eficaz do ponto de vista prático). Uma alternativa
aplica também para fins de "revisão judicial, nos casos de contratos onerosos desequilibrados seria impor às partes uma tentativa prévia de renegociação, ~ujo insuces~o poderi~, <:onfor_me o
pela excessiva onerosidade de uma das prestações etc.)." caso, levar à sanção da parte a quem se imputasse a frustraçao das tratat1vas. lmagmavel, amda,
33 Referimo-nos à revisão de contratos civis e empresariais. conceder ao devedor o poder de pleitear judicialmente a revisão contratual, cabendo ao juiz
34 Analogamente, não se revelaria adequado propor, em nome do referido princípio, a inclusão de determinar a modificação julgada conveniente, sem que o credor a ela pudesse se opor. Uma
requisitos adicionais, não previstos no art. 157 do Código Civil, de modo a dificultara anulação quarta possibilidade, por fim, seria atribuir ao dev:dor um direito potestativo indep 7n?ente
dos contratos por lesão, favorecendo, assim, a manutenção dos contratos; ou a supressão, no de exercício judicial, tendo por objeto a modificaçao dos termos do contrato. N~ssa h1po~e;e,
art. 170, do requisito atinente ao fim visado pelas partes, resultando na ampliação dos casos o credorficariaadstrito à modificação determinada, cabendo-lhe apenas questionarem JLIIZO
de conversão substancial do negócio jurídico; ou a extensão do art. 172 aos negócios nulos; e a sua equidade. Tais possibilidades poderiam ser combinadas com outras tantas, atinentes à
assim por diante. iniciativa revisionai do credor.
484 - REVISÃO CONTRATUAL FUNDADA EM EXCESSIVA ONEROSIDADE SUPERVENIENTE: COMPETÊNCIA •••
FRANCISCO PAULO ÜE CRESCENZO MARINO -485

4. ISONOMIA ENTRE CREDOR E DEVEDOR vezes, atribui-se a uma das partes o poder de pôr fim à relação contratu-
al (v.g., anulando-a ou resolvendo-a), conferindo-se à ~mtra, e some~te
Outro argumento principiológico que sustentaria a posição majori- ela O contra1ioder de manter a relação, adaptando-a. E o que se venfi-
tária reside na ideia de que a solução por ela preconizada seria essencial a em
ca ' matéria :r
de erro e de lesão, outorgando-se a uma so'd as partes _(o
para conferir tratamento paritário aos figurantes da relação contratual; destinatário da declaração emitida pelo errante e o credor da prestaçao
afinal, permitir que somente o credor possa optar pela modificação equi-
cujo valor é desproporcional em relação à ,c~n~ra~r~stação, respectiva-
tativa do contrato consgraria privilégio iníquo4°, "inadequada supremacia mente) o poder de evitar a anulação do negoc10 JUndico (arts.144 e 157,
de uma das partes"41,geradora de "inconstitucional quebra de isonomia". 42
§2.º do Código Civil). 45
O argumento em questão se apoia em duas premissas: (i) a exis- Outras vezes, os poderes extintivo e conservativo (modificativo) são
tência de um princípio da igualdade de posições jurídicas legalmente titulados pela mesma parte, que pode optar pelo exercício de um ou ~e
atribuídas aos contratantes; e (ii) a situação concreta de igualdade en- outro. É o que ocorre em tema de vícios redibitórios, cabendo ao adqu~-
tre credor e devedor, frente à prestação tornada excessivamente onerosa. rente (credor da coisa defeituosa), e somente a ele, os poderes alternati-
Assinale-se, em primeiro lugar, ser falaciosa a ideia de que haveria vos de redibir o contrato ou obter o abatimento do preço, mantendo a
idênticas posições jurídicas atribuídas às partes de dada relação contra- avença (art. 442 do Código Civil). Também no regime da evicção par-
tual. Antes, o regime dos contratos típicos caracteriza-se pelo deline- cial, a lei atribui apenas ao credor da coisa evicta os poderes extintivo e
amento de posições jurídicas ativas e passivas distintas para cada polo modificativo (mediante "restituição da parte do preço correspondente
da relação. Tal disparidade deriva da natural desigualdade de interesses ao desfalque sofrido") da relação contratual. Configuração semelhante
dos contratantes, sobretudo em se tratando de contratos sinalagmáti- pode ser encontrada na disciplina de certos tipos cont:a~ais. Na e_m-
cos.43 Adotada a perspectiva da obrigação, tampouco se podem afumar preitada, apenas o dono da obra é titular dos poderes extmt1vo ~ modifi-
paritárias as posições tituladas pelo credor e pelo devedor da prestação. 44 cativo (abatimento de preço) do contrato em caso de obra realizada em
A mesma disparidade logicamente se verifica no tocante aos re- desacordo com o contrato ou as normas técnicas (art. 615, segunda par-
médios ou meios de tutela de posições contratuais dispostos em lei. Por te, e 616 do Código Civil). No seguro, são conferidos apenas ao segura-
do os poderes extintivo e modificativo ("revisão do prêmio") do contrato
40 POTTER, Revisão e resolução dos contratos no Código Civil, op. cit., p. 174.
41 GARCIA, Sebastião Carlos. Revisão dos contratos. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 846, p. no caso de diminuição superveniente e considerável do risco segurado
51-66, abr. 2006, aqui p. 61
42 EHRHARDT JUNIOR, Marcos. Revisão contratual: a busca pelo equilíbrio negocial diante da (art. 770 do Código Civil).
mudança de circunstãncias. Salvador:Juspodivm, 2008, p. 100. A constitucionalidade da norma
também é questionada por MARTINS, A onerosidade excessiva no Código Civil, op. cit., p. 226.
Ora, em nenhum dos casos referidos há igualdade de tratamento
Cf., ainda, RODRIGUES JUNIOR, Revisão judicial dos contratos, op. cit., p. 164; ALMEIDA, entre as partes contratantes, no sentido propugnado pela doutrina refe-
Juliana Evangelista de. Resolução contratual ou revisão contratual: uma perspectiva à luz da
boa-fé objetiva. Belo Horizonte, 2011. Dissertação (Mestrado em Direito Privado). Faculdade rida· antes uma delas estará submetida à deliberação da outra quanto à
Mineira de Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, p. 76-77.). '
eventual '
manutenção da relação contratual.
43 Embora o critério dos interesses contrapostos ou divergentes- (BETTI, Emilio. Teoria general e dei
negozio giuridico.2ª ed. Reimpressão corrigida. Napoli: Edizioni Scientifiche ltaliane, 1994, p. Diante disso, os adeptos da corrente expansionista poderiam, em
305)- não se mostre aplicável a todos os contratos, parece suficientemente apto a caracterizar
os sinalagmáticos. tese, propor argumento construído em torno do favor debitoris46 , a cuja
44 A lei é pródiga em situações nas quais o tratamento dispensado ao devedor não é idêntico
àquele dispensado ao credor. Poder-se-iam mencionar, sem pretensão sistemática e com o atuação já se atribuiu a admissão doutrinária da te~ria da imprevisão
único intuito de ilustrar a afirmação, as seguintes normas contidas no Código Civil: os arts. quando esta não era acolhida expressamente pela lei. 4 ' Não julgamo~, no
234, primeira parte, 238 e 246, ao alocarem a uma só das partes o risco associado à perda ou
deterioração da coisa não-imputável a nenhuma delas, mesmo quando estivesse na posse entanto, assistir melhor sorte a essa hipotética fundamentação. Ainda
da outra parte (caso do art. 238); o art. 252, ao atribuir ao devedor a escolha nas obrigações
alternativas; as hipóteses legais de solidariedade, nas quais se atribui posição de vantagem 45 Registre-se, contudo, a posição, de ~arte da doutrina, ~o sen_ti~o de_ p_ropor a extensão, ao
ao credor; o art. 309, ao considerar eficaz o pagamento feito ao credor putativo; o art. 327, devedor, do poder modificativo previsto no art. 1_57, §2: _do Cod1go C1v1l.
ao fixar a regra do pagamento no domicílio do devedor; o art. 416, ao dispensar o credor da Esse argumento não foi desenvolvido, de forma s1:temat1ca, nos autores con_sult_ados. . .
multa contratual de alegar e provar prejuízo; o art. 494, ao alocar ao credor da coisa vendida o MOREIRAALVES,José Carlos.As normas de proteçao ao _devedo~e? favordeb_it?ns-d~ ~ire1to
risco do transporte; e o art. 581, ao atribuir ao comodante o poder de suspender o uso e gozo Romano ao Direito Latino-Americano. Notícia do Direito Bras1le1ro: nova sene, Bras1ha, n. 3,
da coisa emprestada antes do término do prazo convencionado. p. 109-165, 1º semestre de 1997, aqui p. 165.
486 - REVISÃO CONTRATUAL FUNDADA EM EXCESSIVA ONEROSIDADE SUPERVENIENTE: COMPETÊNCIA ••• FRANCISCO PAULO DE CRESCENZO MARINO - 487

que se qualifique o favor debitoris como princípio geral do direito no veniente, extraordinário e imprevisível, parece respeitar a intenção dos
campo das obrigações, 48 ele atuaria na interpretação e no preenchimen- contratantes, que não somente não previram o evento (ou ao menos as
to de lacunas, 49 inexistindo, nos arts. 478 e 479, dúvida interpretativa ou suas consequências), como não pactuaram regras expressas de alocação
omissão 50 a ser sanada. de riscos que pudessem solucionar o conflito; modificar, contudo, ainda
Ademais, o favor libertatis- apontado como fundamento último do que equitativamente, corresponderá a uma alteração não planejada na
favor debitoris-, consistente em assegurar ao devedor que a limitação de economia . contr atual .55
sua esfera de liberdade, oriunda do vínculo obrigacional, seja a menos Ainda que tal perspectiva possa ser matizada, no mínimo se demons-
gravosa possível, 51 parece plenamente atendido com a atribuição dopo- tra assim a impossibilidade de estabelecer, a priori, qual das soluções re-
der de resolver o contrato, cujo exercício levará à liberação do devedor. presentaria a colisão mais direta com a autonomia privada. 56
5. REVER NÃO É MENOS DO QUE RESOLVER. INSUSTENTABILIDADE
A demonstrar o desacerto do argumento em exame, vários dos par-
tidários da extensão do remédio revisional ao devedor reconhecem a su-
DO ARGUMENTO A MA/ORE AD MINUS
perioridade d~ resolução quand~ as circunstân~~as torna~e~ irrazoável
Aqueles que sustentam haver poder do devedor de modificar o con- ou desproporc10nal a manutençao do contrato. Se a rev1sao represen-
trato também recorrem a argumento a maiore ad minus, ao proporem tasse algo menos do que a resolução, tal limitação à prioridade da mo-
que, "dispondo a lei sobre a ação de resolução a ser utilizada pelo agra- dificação equitativa não se justificaria.
vado, que seria o mais, com a extinção do contrato, nem por isso proibiu
o menos, que é a simples modificação, o que permite a continuidade da 6. EXCEÇÃO A CONFIRMAR A REGRA: O REGIME DE CERTOS
relação." 52 A alegação é, no entanto, equivocada, pois resolução e revisão CONTRATOS TÍPICOS
contratual não se distinguem sob o prisma quantitativo, mas qualitati- Enfim, a tese da generalização da revisão do contrato é postulada,
vo. Manter um contrato, modificado em suas bases, é de todo distinto com esteio em casos especiais de revisão previstos no Código Civil e nas
de resolvê-lo, e não um minus em relação à resolução. leis esparsas. Além do já examinado art. 317, os principais dispositivos
Parece haver, por detrás da ideia de que "quem pode o mais (resol- citados58 são os arts. 442, 620 e 770 do Código Civil e o art. 19 da Lei
ver), pode o menos (rever)", a percepção de que a resolução representaria de Locações, que merecem breve comento.
intervenção mais grave na autonomia privada, se comparada à revisão. 53 O art. 442 não corrobora a tese em exame. Em primeiro lugar, pela
Contudo, a visão oposta parece perfeitamente sustentável: 54 extinguir re- natureza dos vícios redibitórios, sobre a qual paira notória controvérsia. 59
lação contratual gravemente desequilibrada por acontecimento super- Ainda que não se pretenda subsumi-los ao espectro do adimplemen-

Para uma percuciente análise crítica dessa possibilidade no direito espanhol, confira-se VIDE, 55 A advertência sobre o fato de que a modificação do contrato é tãogral'e quanto a sua extinção,
Carlos Rogel. Favordebitoris: análisis crítico. Buenos Aires: Zavalia; Bogotá: Temis; Cidade do aliás, já foi feita por RENÉ DEMOGUE em 1907. "Mas, a vontade modificativa do contrato não é
México: UBIJUS; Madrid: Reus, 2010, pp. 127-138 e passim. menos grave do que a vontade destrutiva do contrato." (DEMOGUE, René. Des ~odi!ications
49 lbid., p. 164. aux contrats parvolonté unilatérale. Paris: Dalloz, 2013, p. 3). Trata-se da republ1caçao de um
50 Em sentido contrário, opina pela existência de omissão no art. 478 do Código Civil, dentre artigo originalmente divulgado na Revue trimestrielle de droit civil n. 2, de 1907.
outros, DIAS, Onerosidade excessiva e revisão contratual no direito privado brasileiro, op. 56 É a observação de Antônio Pedro Medeiros Dias, para quem a "análise da melhor solução
cit., p. 439 e 442. [resolução ou revisão] dependerá, portanto, do caso concreto e das circunstãncias que o
51 MOREIRA ALVES, As normas de proteção ao devedor e o favor debitoris, op. cit., p. 161. envolvem" (DIAS, Antônio Pedro Medeiros. Revisão e resolução do contrato por excessiva
52 AGUIARJÚNIOR, Comentários ao Novo Código Civil, op. cit., p. 917 e 926. Vide ainda: CUNHA, onerosidade. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 140).
Revisão judicial dos contratos, op. cit., p. 220 (para quem "aquele que pode fazer o mais, ou 57 Cf. AGUIAR JÚNIOR, Extinção dos contratos por incumprimento do devedor, op. cit., p. 151-
seja, pedir a resolução, pode fazer o menos, isto é, pedir a revisão do contrato"); SCHREIBER, 153). No mesmo sentido, entre outros, CARDOSO, Revisão contratual e lesão à luz do Código
Equilíbrio contratual e dever de renegociar, op. cit., p. 254; NASSER, Onerosidade excessiva Civil, op. cit., p. 422.
no contrato civil, op. cit., p. 128; e DIAS, Onerosidade excessiva e revisão contratual no direito 58 Andersen Schreiber limita-se a tecer breves comentários sobre tais dispositivos (SCHREIBER,
privado brasileiro, op. cit., p. 441. Equilíbrio contratual e dever de renegociar, op. cit., p. 247 e 249). Maior desenvolvimento
53 Anderson Schreiber afirma exprimir a resolução, "sob certo prisma, a maior agressão possível à em CARDOSO, A onerosidade excessiva no direito civil brasileiro, p. 168 s~_.
vontade das partes" (SCHREIBER, Equilíbrio contratual e dever de renegociar, op. cit., p. 251). 59 Boa exposição das diversas teorias pode ser encontrada em: GUIMARAES, Paulo Jorge
54 Chamando a atenção para o fato de que "revisar um contrato pode ser mais ofensivo do que Scartezzini. Vícios do produto e do serviço por qualidade, quantidade e insegurança:
resolvê-lo", NITSCHKE, Revisão, resolução, reindexação, renegociação, cit., p. 150. cumprimento imperfeito do contrato. São Paulo: RT, 2004, p. 134-172.
488 - REVISÃO CONTRATUAL FUNDADA EM EXCESSIVA ONEROSIDADE SUPERVENIENTE: COMPETÊNCIA ••• FRANCISCO pAULO DE CRESCENZO MARINO - 489

to imperfeito, 60 sobretudo por conta da especificidade e diversidade de elementos pertinentes à excessiva onerosidade superveniente; portanto,
regime dos vícios no direito brasileiro, 61 a figura é bastante próxima do não exclui a incidência do regime geral65 e tampouco se choca com ele.
inadimplemento da prestação de dar. 62 Sob esta ótica, não parece haver Por força do art. 620, atribui-se ao dono da obra o direito à revisão
paralelo possível entre os vícios redibitórios e o desequihôrio econômi- do preço global pactuado, caso se verifique "diminuição no preço do ma-
co superveniente, não havendo naqueles alteração subsequente das cir- terial ou da mão de obra superior a 1/10 (um décimo)" daquele mesmo
cunstâncias, a desequilibrar a economia contratual. preço. Trata-se de revisão bastante limitada, 66 pois contempla hipótese
É digno de nota, ainda, que a pretensão à diminuição da contra- não tão frequente, restringe-se à empreitada por preço global e benefi-
prestação, objeto da ação quanti minoris, implica mero reajuste de valor, cia apenas o credor da obra.
algo mais restrito do que a revisão prevista no art. 4 79 do Código Civil. 63 A última disposição pertinente encontra-se no art. 625, inciso II,
Não se vê, por fim, como a atribuição ao credor da prestação afetada pelo atributivo do direito do empreiteiro à suspensão da obra, caso se veri-
vício de uma opção entre redibir o contrato e pleitear a diminuição da fiquem "dificuldades imprevisíveis de execução" advindas de causas ge-
contraprestação (usualmente, a redução do preço) possa servir de base ológicas, hídricas ou similares, a tornar a empreitada "excessivamente
para a extensão, ao devedor, do poder revisiona! conferido ao credor por onerosa", tendo o dono da obra se oposto ao "reajuste de preço ineren-
força do art. 4 79. te ao projeto por ele elaborado". Deve-se indagar, então: conferir-se-ia,
O art. 620, a seu turno, deve ser inserido no regime mais amplo da aqui, ao empreiteiro, direito à revisão do contrato de empreitada? Ares-
superveniência em matéria de empreitada. Diversamente do Código de posta é negativa. A lei se limita a regular a suspensão da obra, sem nada
1916, cujo art.1.246 negava ao empreiteiro o direito a acréscimo no pre- dispor acerca de eventual poder revisiona! do devedor. Nesse contexto,
ço em caso de aumento no custo do material e mão de obra, 64 o Código é forçoso reconhecer que, a persistir o impasse, a solução será a resolução
de 2002 regulou as vicissitudes da empreitada de modo mais minudente. do contrato de empreitada. 67
Em primeiro lugar, o art. 619, apesar de ter aproveitado parte do texto do O art. 770 permite ao segurado, em cenário de diminuição consi-
art.1.246 do diploma revogado, ampliou afattispecie, ao negar ao emprei- derável do risco segurado, impor à seguradora a resolução do contrato
teiro o direito a exigir acréscimo no preço, "ainda que sejam introduzidas ou a "revisão do prêmio". Trata-se, a exemplo do art. 620, de norma bas-
modificações no projeto", em texto que, implicitamente, acoberta outros tante circunscrita. Seja como for, a lei atribui a apenas uma das partes os
fatos geradores de aumento de preço, dentre os quais o aumento no cus- poderes extintivo e modificativo da relação contratual, permanecendo a
to do material e mão de obra. Mas o dispositivo não traz nenhum dos contraparte sujeita às consequências do respectivo exercício.
Diversamente das hipóteses de revisão acima comentadas, o art. 19
da Lei nº 8.245/91 prevê uma revisão de maior amplitude, ao consagrar
60 Cf. SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A boa-fé e a violação positiva do contrato. Rio de Janeiro: 65 Nesse sentido: LOPEZ, Teresa Ancona. Comentários ao Código Civil: volume 7, das várias
Renovar, 2002, p. 230 ss. e passim. espécies de contratos, arts. 565 a 652. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 308-309 (Coleção
61 A recondução dos vícios da coisa ao cumprimento defeituoso é feita, exemplificativamente, Comentários ao Código Civil, coordenada por Antonio Junqueira de Azevedo); PEREIRA, Caio
por: MARTINEZ, Pedro Romano. Cumprimento defeituoso em especial na compra e venda Mário da Silva. Instituições de direito civil: volume Ili, contratos.13. ed., revista e atualizada por·
e na empreitada. Coimbra: Almedina, 2000, p. 459-463; e DÍEZ-PICAZO, Luís. Fundamentos Regis Fichtner. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 270; e CARDOSO, A onerosidade excessiva
dei derecho civil patrimonial: tomo li. 5ª ed. Madrid, Civitas, 1996, p. 665-671. no direito civil brasileiro, op. cit., p. 171.
~ILVA, A boa-fé e a violação positiva do contrato, op. cit., p. 176. LOPEZ, Comentários ao Código Civil, op. cit., p. 310.
Eprovavelmente por essa razão que a doutrina não usa qualificartal diminuição como "revisão", Éa conclusão a que chega LOPEZ, Comentários ao Código Civil, op. cit., p. 332. No mesmo sentido,
antes aludindo à "redução do preço" ou a "correções", como é o caso de Antonio Junqueira TEPEDINO, Gustavo; BARBOSA, Heloisa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina. Código
d_e Azevedo UUNQUEIRA DE AZEVEDO, Negócio jurídico: existência, validade e eficácia,, op. Civil Interpretado conforme a Constituição da República: volume 1, parte geral e obrigações,
CJI., p. 71).
arts. 1° a 420. 3 ª ed. São Paulo: Renovar, 2014, p. 380; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições
Pon~es de Miranda era taxativo: "No art.1.246 do Código Civil, que éiusdispositivum, afasta-se de direito civil: volume Ili, op. cit., p. 275; e ROSENVALD, Código Civil comentado, op. cit., p.
a clau~ula rebus sic stantibus." (Tratado de direito privado: tomo XLIV. 2ª ed. Rio de Janeiro: 646. Em sentido diverso, a partir de uma leitura sistemática, a nosso ver equivocada, dos arts.
Borsrn, 1963, p. 407). Mas havia vozes dissonantes, admitindo o acréscimo de preço em caso de 619, 620 e 625 do Código Civil, Laura Coradini Frantz defende a possibilidade de o empreiteiro
aumento de custo considerável e imprevisível. Ea jurisprudência, por vezes, admitia a revisão requerer a revisão do contrato de empreitada mesmo sem provar a imprevisibilidade dos fatos
(MORAES, Renato José de. Cláusula rebus sic stantibus. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 221-224). supervenientes (FRANTZ, Revisão dos contratos, op. cit., p. 173).
FRANCISCO PAULO DE CRESCENZO MARINO - 491
490 - REVISÃO CONTRATUAL FUNDADA EM EXCESSIVA ONEROSIDADE SUPERVENIENTE: COMPETÊNCIA •••

o direito do locador e do locatário à modificação judicial do aluguel, para lados no art. 19 da Lei nº 8.245/91, dele afasto~ a inv~~ação da teoria
ajustá-lo aos valores de mercado. Esta possibilidade, de resto, é tradicio- da imprevisão, abrindo a possibilidade de um pleito revis_i~nal for~ula-
nal em nosso sistema jurídico, vigendo, ainda que com regime distinto, do antes do prazo fixado, desde que amparado nos reqmsitos gerais da
. d . 7o
ao menos desde a Lei de Luvas (Decreto nº 24.150/34). excessiva onerosida e supervemente.
A norma em questão guarda algumas peculiaridades relevantes em Se tal orientação fosse seguida, poder-se-ia vislumbr:ir campo~ ~ara-
comparação com o regime geral fixado nos arts. 478 e 479 do Código 1e1os e complementares de atuação entre o art. d
19 da Lei do Inquilinato
d _
Civil. Em primeiro lugar, a compor o suporte fático do direito à revi- e O art. 478 do Código Civil, caso em que a iscussão e uma extensao
71
são bastam (i) a existência de um contrato de locação em vigor por pra- do remédio revisiona! poderia ter lugar.
zo superior a três anos (requisito interpretado pela doutrina no sentido A doutrina majoritária, contudo, assim como a jurisprudênci~, ~re-
do decurso do prazo de três anos desde o termo inicial do contrato ou à retórica revisionista e, ao que tudo indica, alheias às potencialida-
sas • • al d
do último reajuste do valor locativo 68); e (ii) a ausência de acordo en- des da conjugação das referidas normas, vinculam a ação r~vision .º
tre as partes quanto ao novo valor do aluguel. Não há menção, na lei, à alu el prevista na lei especial a fórmulas típicas da ex~essiva ~n_erosi -
necessidade de um acontecimento superveniente, extraordinário e im- dafesuperveniente, 72 - 73 negando a possibilidade de pleitear revisao an-
previsível, tampouco se alude à excessiva onerosidade da prestação ou à tes do triênio determinado. 74
vantagem da contraparte. Havendo, pois, disparidade entre o valor do Mesmo adotada essa exegese, que toma o art. 19 da Lei do
aluguel vigente e o valor de mercado do aluguel de um imóvel nas mes- Inquilinato como hipótese específi~a de_re:vis~o contra~al por excessi-
mas circunstâncias (o que pode redundar em um aluguel defasado ou su- va onerosidade superveniente, persiste distmçao essencial em compara-
perestimado), ainda que essa disparidade não seja exacerbada e advenha ção com o regime geral do Código Civil. Esta a:sen_ta, de~ignadamente,
de acontecimentos ordinários e previsíveis, terá o locador ou o locatá- em três pontos: (i) desconsideração do desequihôno verificado de~tro
rio direito à revisão, ao menos em uma interpretação direta do disposi- do prazo de três anos a partir do termo inicial do contrato ou do re_aJ_us-
tivo em questão. te convencional do aluguel; (ii) ausência da maior parte ~os reqmsit~s
Se a norma, de um lado, favorece a revisão, na medida em que li- previstos no art. 478 do Código Civil; e _(iii) :_11-enor amplitude ~a revi-
bera o autor do ônus de demonstrar a presença dos pressupostos enu- são em tela, confinada à redução ou maJoraçao de uma prestaçao nor-
merados no art. 478 do Código Civil - exceto, evidentemente, aquele malmente (ainda que não necessariamente) pecuniária.
atinente à existência de um contrato de duração-, por outro lado cria
um óbice temporal acertadamente apontado 69 como incompatível com 70
No mesmo sentido: BARROS, Francisco Carlos Rocha de. Comentários à Lei do Inquilinato: _Lei
n. 8. 2 45, de 18-10-1991, doutrina e jurisprudência do STJ, TACSP, TAMG, TACRJ e TARS, artigo
o conceito de excessiva onerosidade superveniente. Com efeito, seara- por artigo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997, P· 93· _ .
E isso porque O direito à revisão caberia, então, ao devedor da p~estaçao excessivamente
zão de ser da regra fosse combater o grave desequiliôrio oriundo de fa- 71
onerosa: 0 locatário, onerado com o pagamento de um aluguel excessivo, ou o locador, onerado
tos extraordinários e imprevisíveis, não haveria sentido em sujeitar a um por conta da desvalorização excessiva do valor locativ~. . . .
Cf. SOUZA, Sylvio Capanema de. Da locação do imovel urbano:, direito e pro~esso, _Rio
prazo fixo de três anos o exercício do poder modificativo em questão, 72
de Janeiro: Forense, 1999, p. 113, 154 e 155. Também apontam a clausula rebus, s1c stant1bus
negando a revisão antes do referido lapso, malgrado o comprometimen- como fundamento do art. 19 da Lei do Inquilinato, dentre outros: MORAES, Cl~usula ~e?us
sic stantibus, op. cit., p. 2 27; FUX, Luiz. Revisão judicial do aluguel: doutrina, pratica,
to da economia contratual. jurisprudência. Rio de Janeiro: Destaque, 1993, p. 8-9.
Sirva de exemplo recente aresto do STJ, a que se remete: AgRg no REsp 12~67~3/MG, Rei.
A ausência dos requisitos típicos de uma revisão por conta de ex- 73
Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 17/05/2012, DJe 11/10/2012) (1tahco~ n_o_ssos)
Já na década de 1990 , a Sexta Turma do STJ proferiu vário~ ~córdãos su~te~tando a poss1b1hdade
cessiva onerosidade superveniente parece ter sido percebida por parte da 74
de "desconsiderar" 0 triênio do art. 19 quando a instabilidade econon:11c~ acarretass~ da_no a
doutrina, que, atenta à simplicidade e à objetividade dos critérios estipu- qualquer das partes. Neste sentido, v.g.: REsp32.639/RS, Rei.Ministro Lu1z~1cent: Cl;rn1cch1~ro,
Sexta Turma, julgado em 23/03/1993, DJ 19/04/1993, p. 6699_). Essa onentaç~o ~ aplat:di~a
68 PACHECO,José da Silva. Tratado das locações, ações de despejo e outras. 11ª ed. São Paulo: por RODRIGUES JUNIOR, Revisão judicial dos co~t~atos'. op. c1t;, p. 190-192. AJunsprudencia
RT, 2000, p. 671. dominante, hoje, parece ostentar sentido contrario. V1~e, a titulo de exemplo,_ o Recurso
69 "O triênio do art. 19 da Lei do Inquilinato prefigura-se incompatível com toda a ideia de Especial 2 6 .55 6/RJ (Rei. Ministra Maria Thereza De Assis Moura, Sexta Turma, Julgado em
4
imprevisão." (RODRIGUES JUNIOR, Revisão judicial dos contratos, op. cit., p. 188). 22/04/2008, DJe 19/05/2008).
FRANCISCO PAULO DE CRESCENZO MARINO - 493
492 - REVISÃO CONTRATUAL FUNDADA EM EXCESSIVA ONEROSIDADE SUPERVENIENTE: COMPETÊNCIA •••

trinária de estender, contra legem, a revisão contratual por excess.iva one-


Em suma, essa revisão sui generis, própria de um verdadeiro mi-
crossistema normativo, 75 não parece apta a fundamentar a extensão, ao rosidade superveniente para além dos limites previstos nos arts. 478 e
devedor, do poder revisiona! conferido ao credor da prestação tornada 479 do Código Civil.
excessivamente onerosa. 8. NULIDADE DA OFERTA DE REVISÃO "GENÉRICA" E RECUSA DO
Ao final d~stas breves considerações, pode-se afumar, com segu- PODER REVISIONAL DO JUIZ
rança, que o rol de remédios revisionais típicos referido pela doutrina Dentre os requisitos de validade da oferta de modificação formu-
em exame, circunscritos a situações e a âmbitos operacionais próprios,
lada pelo credor, dois deles dialogam com os limites da revisão, ajudan-
é insuficiente para amparar a extensão da regra geral de revisão contra-
do a fixá-los. O primeiro diz respeito ao conteúdo da oferta, que deve
tual estatuída no art. 479. 76 A nosso ver, pelo contrário, o confronto das
ser determinado ou determinável.
soluções particulares reafuma o regime geral disposto no Código Civil.
O ponto relaciona-se a questão altamente debatida na doutrina ita-
7. "REVISÃO EXCEPCIONAL E LIMITADA". A LEGITIMIDADE liana, com eco também na literatura jurídica nacional: os graus de deter-
EXCLUSIVA DO CREDOR É CORROBORADA PELA LEI DA minação da oferta formulada pelo credor. Em uma primeira aproximação,
LIBERDADE ECONÔMICA a indagação pode ser assim posta: deve o credor requerido formular oferta
A legitimidade exclusiva do credor para a modificação equitativa do com conteúdo determinado, ou pode realizar oferta genérica?
contrato é confirmada pelas recentes alterações promovidas no Código "Oferta genérica'' é uma expressão plurívoca. Por meio dela, ora se
Civil por força da Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/19). pretende designar todos os casos em que o credor não determina, de an-
Nesse sentido, destaca-se a inclusão do parágrafo único do art. 421, temão, as modificações necessárias a reconduzir o contrato a parâmetros
a estatuir: "Nas relações contratuais privadas, prevalecerão oprincípio da in- equitativos; ora se alude à mera declaração da intenção de modificar are-
tervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual." E, ainda, o lação contratual, sem a indicação de critérios para a alteração pretendida.
inciso III do art. 421-A, dispondo que nos contratos civis e empresariais Cumpre diferenciar tais casos. Pode-se vislumbrar, primeiramen-
'a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. " te, a hipótese de o credor declarar a vontade modificativa da relação
Em que pese alguma controvérsia hermenêutica sobre o alcance contratual e indicar de que modo a alteração se daria - v.g., por meio da
desses dispositivos legais, parece claro o escopo de circunscrever a revi- extensão do prazo para a realização da prestação, ou do acréscimo no
são contratual a hipóteses excepcionais. valor da contraprestação - e os critérios para a respectiva determinação,
Não parece fundada a tentativa de vislumbrar, nas normas acima ou, ao menos, os critérios para identificar e determinar as alterações jul-
transcritas, a enunciação de um princípio geral da revisão contratual, atu- gadas apropriadas.
ante fora dos lindes dos casos previstos expressamente na lei. Ao contrá- Diversa é a situação em que o credor se limita a declarar-se dispos-
rio, ambos os artigos parecem endereçados a reforçar uma interpretação to a aceitar as alterações que vierem a se mostrar necessárias à recondu-
das hipóteses revisionais legalmente previstas que, na dúvida, conduza a ção do contrato a parâmetros equitativos, cuja determinação deixaria,
restringir a revisão, ao invés de ampliá-la. então, a cargo do julgador.
A baliza interpretativa dos arts. 421, parágrafo único, e art. 421-A, Tais hipóteses ensejam qualificações distintas. A primeira corres-
inciso III do Código Civil, torna ainda mais descabida a tentativa dou- ponde a uma declaração negocial com conteúdo indeterminado, porém
determinável. Na segunda, delegar-se-ia integralmente ao juiz a deter-
75 TOMASETTIJR., Alcides. Comentários ao art. 1°. /n: OLIVEIRA,Juarezde (coord.). Comentários
à lei de locação de imóveis urbanos: lei n. 8.245, de 18 de outubro de 1991. São Paulo: Saraiva, minação da modificação contratual, vale dizer, a escolha do elemento
1992, p. 2-38, aqui p. 2-3. a ser afetado e a quantificação desta alteração. Propõe-se reservar a ex-
76 Em sentido semelhante, no direito italiano: D'ARRIGO, Cosimo M. li controllo delle
sopravvenienze nei contratti a lungo termine tra eccessiva onerosità e adeguamento dei pressão "oferta genérica'' a este último caso.
rapporto. /n: TOMMASINI, Raffaelle. Sopravvenienze e dinamiche di riequilibriotra controllo
e gestione dei rapporto contrattuale. Torino: Giappichelli, 2003, p. 491-569, aqui p. 502.
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Ter-se-iam, então, três possibilidades de declaração negocial mo- de que eram partidários CARNELUTTI 80 e MIRABELLI. 81 As três ver-
ca, 82
dificativa, consoante o grau de determinação do seu conteúdo: (a) ofer- tentes angariaram adeptos ao longo do tempo.
ta com conteúdo determinado (ou simplesmente oferta determinada); A doutrina nacional, por sua vez, parece polarizada entre os que
(b) oferta com conteúdo indeterminado, porém determinável (ou sim- dmitem a oferta genérica83 e os que exigem a perfeita determinação
plesmente oferta determinável); e (c) oferta com conteúdo indetermina- ~a declaração modificativa da relação contratual afetada pela excessiva
do (oferta genérica). ·
onerosidade supervemente. 84

Essas possíveis configurações do negócio jurídico modificativo Traçado esse panorama, enfrentemos a admissibilidade da oferta
acarretam distintas consequências teóricas e práticas, inclusive quanto genérica, entendida como tal a declaração do credor tendo por conteú-
à extensão dos poderes do juiz. Ao passo que, na oferta determinada, o do a intenção de modificar equitativamente as bases do contrato, sem,
julgador estará adstrito a valorar a sua equidade, sem que haja a possibi- contudo, indicar os elementos a serem alterados e os critérios para de-
lidade de corrigi-la, alterá-la ou complementá-la, na oferta determinável terminar a alteração necessária.
agrega-s~ à valoração de sua equidade, a determinação das mudanças Os partidários da oferta genérica invocam razões sistemáticas e e~-
consoante os critérios fornecidos pelo credor. gências práticas em abono de sua construção. P.u~menta-se que a ~tr1-
Na oferta genérica, por fim, a iniciativa da revisão contratual per- buição do poder modificativo ao julgador estaria alinhada com o regime
manecerá vinculada à atuação do credor, porém o poder de determinar dos demais casos de superveniência, nos quais se admitiria a interven-
as modificações necessárias à recondução do contrato a parâmetros de ção judicial. Pondera-se, ainda, que excluir a declaração n~gocial vaz~-
equidade terá sido transferido, pelo credor, ao juiz. da em termos genéricos terminaria por restringir a própna autonomia
Examinada a classificação das declarações negociais modificativas contratual cuja tutela se almeja. 85 Somente a admissão da oferta gené-
conforme o seu conteúdo, deve-se analisar se as três modalidades são rica permitiria ao credor, assim, verdadeiramente evitar a resolução, fim
válidas e eficazes no sistema jurídico brasileiro, notadamente a ofer- último da previsão normativa. 86
ta genérica, por se traduzir em verdadeira delegação de poder revisio- CARNELUTTI, Francesco. Preclusione dell'offerta di riduzione dei contratto ad equità. Rivista
80
nal ao juiz. di diritto processuale, Padova, n. 8 (2), 1953, p. 111. .
81 MIRABELLI, Giuseppe. La rescissione dei contratto, 2. ed., Nap~l1: Jovene, 1962, P· 358.
Se a admissibilidade da oferta determinada não suscita discussões, 82 Deixa-se de incluir Francesca Panuccio Dattola pois a sua pos1çao e obscura, _os~ilando e_ntr_e
a admissão da oferta genérica e a necessidade de referir a proposta a dados tecmcos afenve1s
o mesmo não pode ser dito a respeito das outras duas modalidades. A (L'offerta di riduzione ad equità, op. cit., p. 185-18~)-_ . .
doutrina italiana mostra-se dividida. Encontravam-se já delineadas, na A título exemplificativo, admitem a oferta genenca: MARTINS: Sa~1r Jose Ca~t~no. A
onerosidade excessiva no Código Civil: instrumento de manutençao da Ju_sta_ repart1çao do~
década de 60 do século passado, as três possíveis correntes doutrinárias riscos negociais. Revista Forense. Rio de Janeiro, n. 391, p. 2~9?37, _m_a10/Ju_n. _2007, a_qu1
p. 227 ; DIAZ, Julio Alberto. A teoria da imprevisão no novo cod1go c_1vil brasileiro. Re_v1sta
sobre os graus de determinação das ofertas modificativas: (i) a restri- de Direito Privado, São Paulo, n. 20, p. 197-216, out,/dez. 2004, aqui p. 21 (o auto~ afirma,
tiva, daqueles que julgavam eficaz apenas a oferta determinada, como equivocadamente, que doutrina e j~r~sprudência ~talianas exigiriam a ofert~ determm~da); e
DIAS, Antônio Pedro Medeiros. Revisa o e resoluçao do contrato por excessiva onerosidade.
PINo77 e BosELLI 78 ; (ii) a intermediária, dos que admitiam a oferta de- Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 156. ,, ,. , . • .
Dentre os quais: Araken de Assis, para quem a oferta deve ser espec1f1ca, sena e congrua, a
terminada ou determinável, rejeitando apenas a genérica, encabeçada semelhança da proposta" (ASSIS, Araken de. Comentários ao Código Civil bra:ileiro voluf'.1: V,
por REnENTi7 9 ; e (iii) a ampliativa, favorável à eficácia da oferta genéri- do direito das obrigações, arts. 421 a 480. Rio de)aneiro: Forense, 2007 [~oleçao Com~~tan~s
ao Código Civil Brasileiro, organizada ~or Ar_ru,?a Alvim e The~eza A,(v1m], p. 7?); Flav10 Luiz
Yarshell, a exigir que o pedido do requen_d~ sei a ce~,to: det~rr:im~do (Resoluçao do_c?ntra_t~
por onerosidade excessiva: uma nova h1potese de açao duplice : ln: YARSHELL, Flav10 Lu_1z'.
ZANOIDE DE MORAES, Maurício (org.). Estudos em homenagem a Professora Ada Pellegnm
Grinover. São Paulo: DPJ, 2005, p. 563-574, aqui p. 573-574); e SOU!A, llton Carmona 9e.
o pedido genérico na ação de revisão contratual. ln: ~AZZEI'. ~o_dngo (~oord.). C?,uestoes
77 PINO, Augusto. La eccessiva onerosità delta prestazione. Padova: CEDAM, 1952, p. 84. processuais do novo Código Civil. Barueri: Minha Editora; V1tona: Instituto Capixaba de
78 BOSELLI, Aldo. La risoluzione dei contratto per eccessiva onerosità. Torino: UTET, 1952, p. Estudos, 2006, p. 278-302, aqui p. 300). . ..
304-305. 85 CAGNASSO, Oreste.Appalto esopravvenienzacontrattuale: contributo a una rev1s1one deli a
79 REDENTI, Enrico. L'offerta di riduzione ad equità. Rivista trimestrale di diritto e procedura dottrina dell'ecccessiva onerosità. Milano: Giuffrê, 1979, p. 194-195.
civile, Milano, n. 1 (1), mar. 1947, p. 580-581. 86 MACARIO, Adeguamento e rinegoziazione nei contratti a lungo termine, op. cit., p. 285-287.
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FRANCISCO PAULO DE CRESCENZO MARINO - 497

Do ponto de vista prático, ademais, a oferta genérica impor-se-ia "suficiente" para reconduzir o contrato à equidade, então, logicamente,
em razão da impossibilidade de o credor identificar com precisão, em "a suficiência da modificação implica que esta seja determinada, ou de-
muitos casos, as modificações necessárias. 87 terminável, por força de critérios designados na própria oferta." O poder
de evitar a resolução subordina-se à satisfação de um ônus, correspon-
Por outro lado, os adversários da oferta genérica argumentam com a
dente à oferta de, no mínimo, o suficiente para reequilibrar o contra-
própria dicção da norma legislativa- o que vale, tanto para o art.1.467,
to. E conclui: "Somente em presença dessas condições é possível, para o
3 do Código Civil italiano, quanto para o art. 479 do Código Civil bra-
juiz, exprimir um juízo sobre a suficiência da oferta e, portanto, afumar
sileiro-, que atribui somente à parte, e não ao juiz, o poder de modifica-
ou negar que essa 'baste a satisfazer a necessidade' jurídica de recondu-
ção equitativa do contrato. Não haveria, assim, paralelo possível com as
demais normas invocadas pelos defensores da oferta genérica. 88 zir o contrato à equidade." 9º
A oferta genérica deixa as partes, até o final do processo, em uma
Enquanto expressão da autonomia privada, a declaração modifica-
tiva deveria ter conteúdo determinado ou, quando menos, determiná- situação de incerteza, não somente quanto ao êxito do processo, mas
91
também quanto ao conteúdo das modificações a serem implementadas.
vel.Aventa-se, ademais, a necessidade de permitir a valoração da oferta
por parte do devedor, destinatário de uma eventual oferta extraproces- Note-se, por fim, que uma vez interpretado o art. 478 do Código
sual, o que somente seria possível em se tratando de oferta determinada. Civil no sentido de permitir ao devedor a propositura de uma ação re-
A nosso ver, deve-se aferir a viabilidade de uma declaração modi- visional direta, sem qualquer limitação, não faria sentido restringir a ini-
ciativa do credor, condicionando a sua oferta à prévia determinação do
ficativa com conteúdo genérico, à luz de sua natureza jurídica e da in-
conteúdo. 92 Uma vez adotada, contudo, a premissa da não extensão do
terpretação do art. 479 do Código Civil.
poder revisional ao devedor, tal argumento desaparece.
Adotada a premissa de que a oferta do art. 479 tem natureza de
negócio jurídico unilateral modificativo, a ela se aplicam as normas re- 9. ÜS LIMITES DA INTERVENÇÃO JUDICIAL NO PROCESSO
guladoras dos negócios jurídicos em geral, cuja validade, como sabido, REVISIONAL: O CONTROLE DA EQUIDADE DA OFERTA
requer "objeto lícito, possível, determinado ou determinável" (art. 104, II Nos termos do art. 479 do Código Civil, a declaração negocial do
do Código Civil), sob pena de nulidade (art. 166, II do Código Civil). credor somente produzirá efeitos se for equitativa, isto é, se "modificar
A declaração por meio da qual o credor manifesta a intenção de equitativamente as condições do contrato". Surgem daí algumas ques-
modificar as bases do contrato, ficando a determinação de tais mudan- tões importantes: o que se deve entender, neste contexto, por "equidade"?
ças ao exclusivo critério do julgador, não parece configurar validamente A necessidade de observar parâmetros equitativos diz respeito apenas à
um negócio jurídico. Ao contrário, tratar-se-á de pedido genérico de re- oferta do credor, ou também afeta a conduta do juiz, que deveria, então,
visão judicial do contrato. Tal pedido, contudo, a nosso ver não encontra decidir por meio de um juízo de equidade?
amparo legal, pois o art. 4 79 em momento algum atribui ao julgador o Dúvidas a respeito surgiram logo após a promulgação do Código
poder de modificar a avença, mas somente ao credor. Civil italiano de 1942. Alguns autores viram, na menção à equidade, a
O ponto foi ferido com precisão por D'ANDREA. Para ele, uma vez atribuição de poderes discricionários ao julgador, chegando mesmo al-
afastada a natureza processual da oferta e estabelecida a qualificação de guns a qualificarem o juízo a ser emitido como verdadeiro e próprio juí-
negócio jurídico unilateral modificativo, a oferta genérica torna-se inad- zo de equidade, para os fins do processo civil.Ao lado destes, puseram-se
missível. 89 Se a lei determina que o credor deva oferecer uma modificação os partidários de interpretação mais restritiva, pela qual a norma impo-
87 CAGNASSO, Appalto e sopravvenienza contrattuale, op. cit., p. 194-195.
88 TARTAGLIA, Eccessiva onerosità ed appalto, op. cit., p. 71 e nota 124. ao menos devem ter um conteúdo determinável." (D'ANDREA, 1.:'offerta di equa modificazione
89 "Acima de t~?º• a_tese que reputa admissível a oferta genérica é[...] abstratamente compatível dei contratto, Milano: Giuffre, 2006, p. 269).
com.ª. quahf1caçao da ofer'.ª. co~o demanda, ao passo que é i~compatível com as teses que 90 Ibidem, p. 265.
qualificam a oferta de mod1f1caçao como proposta, como negocio unilateral modificativo da 91 Ibidem, p. 266, nota 70.
situação jurídica ou como oferta real, as quais, se não devem ter um conteúdo determinado, 92 DIAS, Revisão e resolução do contrato por excessiva onerosidade, op. cit., p. 156.
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se-ia partir da equidade, como simples "cânone de valoração técnica com


ria determinados parâmetros a serem observados para que a oferta pu-
base na situação econômica corrente", a ser feita com base no equilíbrio
desse ser considerada equitativa.
objetivo dos preços de mercado. Tal visão, contudo, deveria ser comple-
No primeiro grupo, pôs-se um autor com o peso de FRANCESCO mentada pela consideração de elementos subjetivos passíveis de valora-
MESSINEO, o qual, na terceira edição da Dottrina generale dei contralto, 98
ção econômica, consoante parâmetros aferíveis na "consciência social".
mudando declaradamente de posição em relação às anteriores, passou
Esta última opinião conquistou diversos adeptos, tornando-se ma-
! s~s~~ntar ~ue a r~missão à equidade forneceria às partes e ao juiz um
joritária.99 Exprimindo o que parece ser a orientação moderna, GALGANO
cnteno mmto :flexivel, no qual podem confluir considerações de ordem
. d" considera "impróprio" o emprego do conceito de equidade nesse contex-
varia a .93 E m outro passo, ao tratar da oferta no contexto da lesão as-
to, dado que as normas que tratam das ofertas de modificação do con-
sev:rou: "Persuado~me a modificar a opinião expressa em outra o;or-
trato em matéria de lesão e excessiva onerosidade superveniente "não
tu~i~ade, para considerar que o art. 1450, falando de 'equidade', atribui
aludem a um princípio ético, mas sim à congruência econômica do cor-
ao JlilZ um poder de valoração discricionária [ ... ]."94 MESSINEO recusou,
respectivo contratual." E arremata: "O termo de referênc~a para julgar
contudo, tratar-se de verdadeiro juízo de equidade, nos termos da lei
sobre a 'iniquidade' das condições contratuais ou sobre a sua recondu-
processual, pois "o juiz não decide, mas avalia". 95
ção 'à equidade' não é outro senão o valor de mercado da prestação de-
Traçando forte paralelo com a autonomia privada, DE MARTINI
duzida em contrato." 1ºº
também destacou a atividade criativa do juiz. 96
Acolhemos a posição dos que negam, na modificação equitativa, a
, J?iscurso distinto foi adotado pelos que procuraram mitigar a pos- equidade como "justiça do caso concreto" ou o juízo de equidade excep-
sivel liberdade do juiz, ora criticando abertamente a impropriedade da cionalmente admitido pela lei processual. Parece-nos, no entanto, que a
alus~o à equidade, ~r~ atribuindo, à equidade positivada no Código Civil, consideração do valor de mercado da prestação deve ser complementa-
sentido bastante distmto da equidade substitutiva da decisão conforme da com a valoração do modelo de distribuição de riscos inerente ao tipo
o Direito e do juízo de equidade previsto na lei processual. negocial em questão, do conteúdo do contrato in concreto e de todas as
Significativa, a esse respeito, a posição de MIRABELLI, que discor- circunstâncias concretas que se mostrarem relevantes.
reu longamente sobre o tema. Partindo do paradigma jurisprudencial Não parece discrepar dessa orientação SAcco, ao sintetizar: ''Aqui
sobre a fixação equitativa da indenização, ele conclui que, na oferta de equidade significa, como sempre nestes contextos, equivalência das pres-
modificação equitativa, "o julgador não pode e não deve fazer referência tações. A aequitas romana não tem lugar. Isso posto, a palavra equidade
a preceitos jurídicos ou morais, mas deve proceder mediante critérios não pertence à matemática. Conforme as diversas situações de direito,
técnicos" para valorar economicamente o elemento a ser determinado. A ela pode implicar exigências quantitativas diversificadas."
101

seu ver, a atividade judicial seria aproximada do arbitrium boni viri que
Nesse contexto, a afirmação da ausência de qualquer margem de
o terceiro arbitrador normalmente deve observar. 97
discricionariedade judicial soa exagerada. Se a oferta é determinada, o
Também °-1JADRI nega que a valoração judicial esteja fundada em juiz valora a opção da parte. A norma regula, sobretudo, a conduta do
critérios discricionários. Para ele, uma vez afirmada a natureza negocial
da o~ert~ e afast~da ~ possi~,ilidade d~ oferta g~nérica, a atividade judicial 98 QUADRI, La rettifica dei contratto, op. cit., p. 126-129.
estaria circunscnta a mera declaraçao da eqmdade das condicões ofere- 99 Dentre outros: PINO, La eccessiva onerosità delta prestazione, op. cit., p. 83; CARPI NO, La
rescissione dei contratto, op. cit., p. 103; GABRIELLI, Enrico. Studi suite tutele contrattuali.
cidas". Inexistiria, pois, verdadeiro poder discricionário do j~iz. Dever- Padova: CEDAM, 2017, p. 19; GAZZONI, Equità e autonomia privata, op. cit., p. 102 (o autor
chega a falar em equidade como "um critério técnico", "quase matemático")
93 M_ESSl~EO, Francesco. Dottrinageneraledel contratto: artt.1321-1469 cod. civ.3ª ed. Milano: 100 GALGANO, Francesco. II negozio giuridico. 2ª ed. Milano: Giuffre, 2002 (Coleção Trattato di
G1uffre, 1948, p. 514. diritto civil e e commerciale, dirigida por Antonio Cicu, Francesco Messineo e Luigi Mengoni,
94 lbid., p. 460, nota 52 (grifo do autor). continuada por Piero Schlesinger, vol.111), p. 565.
95 lbid., p. 515, nota 95-bis. 101 SACCO & DE NOVA, II contratto, op. cit., p. 1.707. Também Macario chama a atenção para o fato
96 DE ~ARTINI, Angelo. Riduzione ad equità di contratto eccessivamente oneroso già de que a modificação equitativa nem sempre conduzirá aos valores de mercado (MACARIO,
parz1almente eseg~it~. II foro italiano. Roma, n. 74 (1), p. 26-28, 1951, aqui p. 27. Adeguamento e rinegoziazione nei contratti a fungo termine, op. cit., p. 271-273).
97 MIRABELLI, La resc1sswne dei contratto, op. cit., p. 201-202.
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credor. Parece possível, ainda assim, falar em discricionariedade, desde relevante das circunstâncias, dele partindo para determinar a modifica-
que por ela se entenda não o subjetivismo, a falta de critérios objetivos cão equitativa do contrato.
e sindicáveis, mas sim uma liberdade relativa, de escolha e valoração de ' Outra questão atinente ao resulta~o ec_onômic.o ~a r:nodi_ficação
critérios disponíveis, sobretudo econômicos. Ademais, sendo a "modifi- equitativa, de certo modo conexa à antenor, diz r~speito a discutida ~b-
cação equitativa" um conceito indeterminado, é natural a atribuição de servância dos limites assinalados pela chamada alea normal do conhato,
uma margem de atuação mais elástica ao julgador. baliza adotada expressamente no Código Civil italiano.
104

Diversa será a hipótese da oferta determinável. Nela, ao menos em O conceito de álea normal do contrato não suscita maiores diver-
parte dos casos, o juiz terá liberdade para determinar em que elemen- ências entre os autores. Por ela se entende a variação do valor de uma
to a modificação se produzirá (valor da contraprestação, prazo, local ou ~u de ambas as prestações contratuais no período posterior à celebração
modalidade da prestação), o que aumentará o grau de discricionarieda- do contrato, por conta de oscilações oriundas de fatores de mercado ou
de de sua valoração. Nestes casos, o credor terá delegado ao juiz parte da de outras circunstâncias previsíveis. 105 Basta pensar na flutuação do va-
sua competência para determinar a modificação equitativa. lor do aluguel e dos encargos da locação no curso da relação locatícia, ou
Note-se, por fim, que a reductio opera diversamente no âmbito da no quase inexorável aumento no custo de uma ob:ª. durante_ª sua exe-
lesão. Nele, o contrato nasce desequilibrado, por conta da desproporção cucão em razão do incremento no valor dos matenais e da mao de obra.
manifesta entre as prestações. Reconduzi-lo à equidade significará eli- , '
Como se percebe, a álea normal, também chamada "álea econômi-
minar a desproporção, por meio de parâmetros objetivos. 106
ca'', nada tem que ver com a álea característica dos contratos aleatórios ,
No campo da excessiva onerosidade superveniente, ao contrário, o que corresponde a um risto, assumido p~r uma ou ambas as partes, as-
parâmetro a ser observado advém, primeiramente, do próprio contra- sociado à existência, quantidade ou qualidade de uma o~ de ª;n~as as
to a ser modificado. Di-lo precisamente BIANCA: "Função da recondu- prestações. Longe de configurar a aleatoriedade em ~entido tecmco, a
ção do contrato à equidade não é criar um novo arranjo contratual, mas álea normal está presente, em maior ou menor medida, em qualquer
conservar o arranjo querido pelas partes. Contrária a tal função seria, contrato cuja execução não seja imediata. Trata-se, pois, de risco assu-
portanto, uma recondução do contrato voltada a tornar corresponden-
mido pelas partes. 107
tes os valores das prestações, sem respeitar o seu equilibrio originário." 1º2
Conquanto cada modelo de contrato r~gulado ~m .lei _e~volva, .de
A função da modificação equitativa não é assegurar a equivalência modo mais ou menos preciso, um dado regime de distr1bmçao de ris-
objetiva das prestações, mas sim reconduzir o contrato a um certo equi- cos entre as partes contratantes, a álea normal deve ser aferida no plano
líbrio, pautado nos critérios concretos deduzidos do próprio contrato. 103
Dito de outro modo, a modificação equitativa do art. 479 do Código
"Art. 1. 4 67 [... ] [2] La risoluzione non puo essere domandata se lasopravvenuta onerosità ri entra
Civil não é meio para eliminar um eventual desequilíbrio congênito do 104
nell'alea normale dei contratto." _ . ,,. ,
programa contratual. Se a prestação assumida por uma das partes já se 105 Em sentido semelhante, Gianguido Scalfi circunscreve a noçao de alea normal a passivei e
previsível influência, sobre as prestações, de osci(aç~es dos ~alares de mercado conexos a
afastava dos parâmetros do mercado, tendo a onerosidade se agravado uma das prestações correspectivas, ou de circunstancias relativas a um dos compo~tamentos
por conta de um evento superveniente, extraordinário e imprevisível, ca- devidos idôneas a produzir um desequilíbrio de valores entre as mesmas prestaçoes, ou,_de
qualqu:rmaneira, a tornar uma delas onero_sa e~ r~(ação àou~ra (nos c_ont_ratos com pn:sta_çoes
berá ao credor, ao formular a oferta, e ao julgador, ao valorá-la, isolar o correspectivas)," (SCALFI, Gianguido. Cornspettw1taeolea ne, cantrath. Milano-Varese. lst1tuto
incremento no custo da prestação causado pela alteração juridicamente Editoriale Cisalpino, 1960, p. 135). ,, .
Assinalando a diferença, Scalfi observa que a álea normal é "extrínseca ao con,tr~to , ~infl~encia
.
106
0 valor da prestação, ao passo que a álea característica _do.s c?nt:~to~, aleatonos e 1~tnns_e~~
102 BIANCA, Cesare Massimo. Diritto civile: volume 5, la responsabilitá. Milano: Giuffre, 2003, ao contrato" e "determina uma prestação em sua cons1stencia f1s1ca (SCALFI, Cor~1spett1~1to
p. 399, nota 48. e alea nei contratti, op. cit. p. 138). Em sentido semelhante, OI GIANDOME~ICO, G1ova~m- ll
103 Cataudella destaca a existência de um "metro subjetivo atendível, originariamente fixado contratto e/'a/ea. Padova: CEDAM, 1987, p. 303. De se notar, a~enas: ~ estreiteza da noçao de
pelos contratantes, ao qual é reconduzida a proporção entre as prestações", exceto quando a determinação da "consistência física" da prestação, a nosso ver msuf1c1ente para compreender
alteração das circunstâncias seja de tal monta a alterar a própria razão da troca, inviabilizando todos os casos de álea em sentido técnico. . . . . .. .
o recurso aos parâmetros do contrato (CATAUDELLA, Antonino. Sul contenuto dei contratto. 107 FERRARI, Vincenzo. // problema del/'alea contrattua/e, Napoli: Ed121om Sc1ent1fiche ltaliane,
Milano: Giuffre, 1974, p. 310-311). 2001, p.37.
502 - REVISÃO CONTRATUAL FUNDADA EM EXCESSIVA ONEROSIDADE SUPERVENIENTE: COMPETÊNCIA ••• MARLON TOMAZITTE - 503

do contrato in concreto, 108 considerada a operação econômica em sua in- li L REVISÃO CONTRATUAL No Cóo1co C1v1L
tegralidade, bem como as cláusulas que porventura denotem um afas-
tamento ou uma especificação em relação ao modelo típico e todas as Marlon Tomazette 1
circunstâncias relevantes.
Ao recusar a resolução contratual na hipótese de agravamento do 1. INTRODUÇÃO
custo da prestação que não desborde da álea normal do contrato em Em qualquer relação contratual, se está diante de um vínculo obri-
questão, a lei italiana claramente estabeleceu um limite e um critério de- gatório entre as partes. A manutenção desse vínculo e o seu cumprimen-
finidor da onerosidade superveniente juridicamente relevante. Em ou- to é essencial para a segurança jurídica. Ocorre que, existem situações
tras palavras, será excessiva a onerosidade que ultrapasse a álea normal completamente inesperadas, do ponto de vista objetivo, que podem afe-
do contrato in concreto. tar a própria essência de um contrato fumado. O direito não poderia ig-
A nosso ver, a mesma consideração é perfeitamente aplicável ao re- norar essas circunstâncias inesperadas e tenta lidar com elas por meio da
gime da oferta de modificação equitativa no direito brasileiro. A falta de chamada revisão contratual.
referência expressa à alea normal no Código Civil brasileiro não afas- Para lidar com essas circunstâncias inesperadas, criou-se histori-
ta a prestabilidade do conceito, que deve ser considerado implícito na camente a cláusula rebus stantibus, cujo conteúdo e evolução são funda-
própria noção de excessiva onerosidade superveniente. A doutrina na- mentais para a compreensão do instituto da revisão contratual. Neste
cional que enfrentou a questão também se inclinou à mesma solução. 109 caminho, o presente trabalho apresenta as linhas dessa cláusula e o seu
desenvolvimento histórico em vários países europeus, com o surgimen-
to das teorias modernas sobre o fundamento dessa revisão contratual.
A partir daí, é trazido essa figura para o direito brasileiro, no texto
do Código Civil, apresentando-se os requisitos exigidos para a revisão
em cada uma das previsões de caráter geral do Código sobre a temática.
São trazidas também todas as atualizações advindas da Lei da Liberdade
Econômica (Lei n.13.874/2019) para o texto do Código Civil, bem como
os impactos do artigo 7° do Regime Jurídico Emergencial e Transitório
das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pande-
mia do coronavírus (Covid-19) no mesmo tema.
Com esse estudo, pretende-se demonstrar-se a importância des-
se instituto considerando especialmente sua aplicação prática pelos
tribunais.

2. EQUILÍBRIO CONTRATUAL X FORÇA OBRIGATÓRIA DOS


CONTRATOS

Muitos autores apontam como um dos princípios regedores dos con-


tratos, o equihôrio contratual ou equivalência material das prestações2 •
108 A necessidade de aferição inconcreto da álea normal constitui observação usual na doutrina,
como nota BALESTRA, Luigi.// contratto aleatório e !'atea norma/e. Padova: CEDAM, 2000, p. Mestre e Doutor em Direito no Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Professor de
131-132. Direito Comercial no UniCEUB, na Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e
109 FRANTZ, Laura Coradini. Revisão dos contratos: elementos para sua construção dogmática. Territórios e no Instituto de Direito Público- lDP. Procurador do Distrito Federal e advogado.
São Paulo: Saraiva, 2007, p. 151; NITSCHKE, Revisão, resolução, reindexação, renegociação, 2 COELHO, Fábio Ulhoa. Cursa de direita civil. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, v. 3, p. 37; LOPEZ,
op. cit., p. 150-151; e ASSIS, Comentários ao Código Civil brasileiro, op. cit., p. 732. TerezaAncona. Princípios contratuais. ln: FERNANDES, Wanderley (coordenador). Fundamentas
504 - REVISÃO CONTRATUAL NO CóDJGO CIVIL
MARLON TOMAZITTE - 505

Esse princípio tenta evitar distorções nas relações contratuais, não im- 3. CLÁUSULA REBUS s,c STANTIBUS
pedindo que maus negócios sejam feitos. A equivalência material é ob- Um dos instrumentos de tutela do equilibrio contratual é a cha-
jetivamente aferida quando "o contrato seja na sua constituição, seja na mada cláusula rebus sic stantibus (se as coisas assim permanecerem) que
sua execução, realiza a equivalência das prestações, sem vantagens e one- era considerada implícita nos contratos nos contratos de execução pro-
rosidades excessivas originárias ou supervenientes para uma das partes" 3 • longada no direito romano. Por ela "os contratante: estão :ds:ritos a seu
Ela se funda nos princípios constitucionais da solidariedade e da justi- cumprimento rigoroso, no pressuposto de que as c1rcuns~an~1:s ~o a~-
ça social. A ideia é manter o equilíbrio entre os sacrifícios das duas par- biente se conservem inalteradas no momento da execuçao, 1dent1cas as
tes, de forma a respeitar a boa-fé objetiva e a função social do contrato. que vigoravam no momento da celebraçã~" 4 • Pre~sufõe-se que as par-
O rompimento desse equilfürio é muito ruim, pois pode gerar o tes prometeram cumprir o contrato se as circunstancias permanecerem.
inadimplemento contratual ou até mesmo a insolvência de uma das par- Essa cláusula "traduz a necessidade, para a subsistência de uma re-
tes. Em razão disso, o direito criou mecanismos que tutelam esse equi- lação contratual, de persistirem as circunstâncias existentes ~o mome~-
líbrio contratual permitindo a declaração de nulidade, a revisão ou até to da conclusão do contrato, devidamente pressupostas, CUJa alteraçao
mesmo a extinção do contrato. A declaração de nulidade, a revisão ou não era acessível à percepção das partes contratantes"5• Por meio dela, os
mesmo a extinção do contrato que teve seu equilibrio quebrado repre- contratos de execução prolongada deveriam ser cumpridos como combi-
sentam uma mitigação do princípio da obrigatoriedade dos contratos nado, se as circunstâncias que as partes tiveram presentes se mantiverem.
(pacta sunt servanda) e uma aplicação do chamado dirigismo contratual. Com a mudança das circunstâncias consideradas pelas partes, deve haver
Este dirigismo representa a intervenção do Estado no domínio eco- a mudança da execução do contrato. Assim, tal cláusula permitira a reso-
nômico em razão de supostos valores maiores de interesse da coletivi- lução ou a revisão do contrato em razão da mudança das circunstâncias.
dade. A autonomia privada não pode ser exercida de forma arbitrária, Ela existiu desde o classicismo romano, representando uma bre-
cabendo ao Estado corrigir as distorções, intervindo nos contratos e so- cha no princípio da :fidelidade ao contrato 6 • Com o pass~ do tem~o, e~a
brepondo-se ao inicialmente estabelecido pelas partes. foi abandonada e só voltou a ter importância com canomstas med1eva1s
Naturalmente, deve-se lembrar que essa intervenção se dá em ca- que, com seus ideais cristãos, passaram a reconhecer a necessidade de
ráter excepcional. O Código Civil reforçou essa excepcionalidade, ao di- uma justiça contratual.
zer no art. 421, parágrafo único que "nas relações contratuais privadas, Na idade moderna, com a força dada aos princípios da força obri-
prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da gatória dos contratos e da autonomia privada, mais uma a vez, a cláusu-
revisão contratual". Do mesmo modo, no artigo 421-A, III se disse que la perdeu importância, chegando a ser esquecida nos códigos do século
"a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limita- XIX. A cláusula voltou a ser importante no século XX em razão das per-
da". Assim, a excepcionalidade é indiscutível. turbações econômicas causadas pelas grandes guerras. No entanto, nova
A regra geral ainda é privilegiar a autonomia privada, mantendo roupagem teve que ser colocada, gerando o surgimento de três famílias
integro o que foi estabelecido pelas partes. Porém, excepcionalmente o de teorias com a mesma :finalidade.
estado deve intervir, determinando a revisão do contrato ou mesmo a
3.1. TEORIA DA IMPREVISÃO
sua extinção, sendo desenvolvidas várias teorias para justificar essa in-
tervenção, destacando-se as principais a seguir. A teoria da imprevisão surgiu na França, em 1916, diante dos efei-
tos da Primeira Guerra Mundial. A Companhia de Gás de Bordeaux
(Compagnie Génerale d'Éclairage) possuía um contrato com a cidade
e princípios dos contratos empresariais. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 8; LÔBO, Paulo. Direito Civil: 4 FIÚZA, César. Contratos. Belo Horizonte: Dei Rey, 2009, p. 53.
Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 39-55; NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e 5 FRANTZ Laura. Revisão dos contratos. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 5.
de empresa. São Paulo: Saraiva, 2010, v. 2, p. 226-240. 6 LYNCH, Maria Antonieta. Da cláusula rebus sic stantibus à onerosidade excessiva. Revista de
3 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 71. informação legislativa, a. 46, n. 18, out./dez. 2009, p. 8.
506 - REVISÃO CONTRATUAL NO CóDIGO CIVIL MARLON TOMAZITTE - 507

para o fornecimento de gás. Ocorre que o fornecimento de gás ficou mui- ainda que de modo tácito à existência de determinadas situações" 1º, cuja
to mais caro, em razão da dificuldade de fornecimento de matéria prima mudança seria determinante para a revisão ou resolução do contrato.A
pela ocupação das áreas fornecedoras. Em razão disso, a citada compa- principal crítica da teoria da pressuposição muita parecida com a cláu-
nhia pediu uma indenização pela quebra do equilibrio do contrato e o sula rebus sic stantibus, na sua visão original11 •
Conselho de Estado concedeu a indenização reequilibrando o contrato. A teoria da base subjetiva do negócio considera que que as partes
Foi a partir dessa decisão, na esfera administrativa, que surgiu a Lei do negócio jurídico consideram subjetivamente determinadas circuns-
Faillot de 1918 que admitia a revisão ou resolução dos contratos que ti- tâncias históricas sociais, políticas e econômicas. Assim, se há alguma
nham se tornado excessivamente onerosos para uma das partes, em ra- alteração nessas circunstâncias, se considera que as partes não teriam se
zão dos acontencimentos imprevisíveis da Primeira Guerra Mundial. obrigado 12 • Desse modo, as partes poderiam se desvincular ou revisar o
Pelo exposto, a teoria da imprevisão, que alguns consideram gênero7• conteúdo daquele contrato realizado em outras bases. A principal crí-
representa uma restrição da cláusula rebus sic stantibus, na medida tica dessa teoria é o elemento psicológico puro a ser considerado para
em que exige que as alterações das circunstâncias sejam excepcionais cada parte, o que é impossível de precisar na prática.
e imprevisíveis. 'A teoria da imprevisão parte do seguinte pressu- Nessa evolução, surge a teoria da base objetiva do negócio que "só
posto: existe uma cláusula rebus sic stantibus em todos os contratos considera o conjunto de circunstâncias cuja existência ou permanência
czqas prestações se protraem no tempo, aplicável às situações limite. é tida como pressuposto do negócio jurídico, ainda que o não saibam os
É pressuposto dessa teoria a existência de uma alteração prefitnda figurantes ou o figurante" 13 • Em outras palavras, essa teoria leva em con-
da situação de fato e como elemento decisivo, que essa alteração seja sideração o conjunto de circunstâncias "cuja existência ou permanência
imprevisível". 8 é tida como pressuposto do contrato"14 pelas partes, ainda que não o te-
Não se tutela objetivamente o equihôrio entre prestação e contra- nham declarado tais circunstâncias.
prestação, mas protegem-se as partes de eventos, que elas não poderiam Tal base objetiva seria quebrada quando a relação de equivalência
cogitar, capazes de gerar uma onerosidade excessiva para uma das partes, entre prestação e contraprestação se destruiu, ou quando a finalidade
independentemente de vantagens para a outra parte 9.A teoria da impre- objetiva do contrato não pode mais ser atingida ainda que a obrigação
visão, acolhida na França, pode ensejar a revisão ou resolução do contrato. possa ser cumprida. Considera-se objetiva a base fática levada em con-
3.2. TEORIA DA QUEBRA DA BASE OBJETIVA DO NEGÓCIO sideração para a manutenção do negócio como digno de significado. Se
o negócio deixou de ter sentido, seja pela impossibilidade objetiva de
Na Alemanha, também muito afetada pelos efeitos da Primeira
alcançar sua finalidade, seja pelo desequilíbrio extremo entre as presta-
Guerra Mundial, foram desenvolvidas diversas teorias para justificar a
ções, ele não pode ser mantido nas mesmas condições.
relativização da força obrigatória do contrato, sendo a mais importan-
te a teoria da quebra da base objetiva do negócio. Para entender tal te- 3.3. TEORIA DA ONEROSIDADE EXCESSIVA SUPERVENIENTE
oria, é necessário estudar duas teorias que a antecederam, cujas críticas Outra forma de aplicação da teoria veio da Itália, que é a teoria da
moldaram sua concepção: teoria da pressuposição e teoria da base sub- onerosidade excessiva superveniente. Em 1915, o Decreto-lei n. 739
jetiva do negócio. considerou a guerra um elemento de força maior quando a prestação se
A primeira teoria a ser estudada é a teoria da pressuposição que per-
mite a revisão ou resolução do contrato no caso de mudança nas situa- 10 FRANTZ, Laura. Revisão dos contratos. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 39.
ções pressupostas pelas partes para a celebração do contrato. Essa teoria 11 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Atualizado por Vilson Rodrigues Alves.
Campinas: Bookseller, 2003, v. 25, § 3061, item 4.
"caracteriza-se pelo fato de as partes contratantes vincularem seu acordo 12 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privada. Atualizado por Vilson Rodrigues Alves.
Campinas: Bookseller, 2003, v. 25, § 3062, item 1.
7 FIÚZA, César. Contratos. Belo Horizonte: Dei Rey, 2009, p. 54. 13 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Atualizado por Vilson Rodrigues Alves.
8 FRANTZ, Laura. Revisão dos contratos. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 23. Campinas: Bookseller, 2003, v. 25, § 3063, item 1.
9 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 208. 14 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 205.
508 - REVISÃO CONTRATUAL NO CóDIGO CIVIL MARLON TOMAZETTE - 509

tornasse excessivamente onerosa. A obrigação já existia, o fato Guerra Em outras palavras, a autonomia privada "consiste na prerrogativa
já existia, mas se a sustentação econômica do contrato não se mantives- conferida aos indivíduos de criarem relações na órbita do direito, desde
se era possível resolver o contrato. Embora a previsão do atual artigo que se submetam às regras impostas pela lei e que seus fins com o inte-
1.467 do Código Civil Italiano também seja apenas no sentido da re- resse geral, ou não o contrariam'' 19 • Em síntese, ela representa "a liber-
solução do contrato, tem-se admitido a revisão 15 com esse fundamento. dade de emitir regras (o contrato faz lei entre as partes) que deverão ser
Na linha italiana de compreensão, o importante para a eventual re- obedecidas pelas partes"20 , trata-se do "poder jurídico conferido pelo di-
visão ou resolução do contrato por onerosidade é a profunda alteração reito aos particulares para a autorregulamentação de seus interesses"21 •
do equihbrio ente as prestações. A finalidade objetiva do contrato ainda Francesco Galgano afirma que a "liberdade ou autonomia contratual
pode ser cumprida, mas a prestação de uma das partes "fica fortemente significa, em sentido positivo, que as partes podem, com um ato próprio
prejudicada no seu valor econômico (em relação ao sinalagma original- de vontade, constituir ou regular ou extinguir relações patrimoniais: que
mente fixada pelas partes)" 16 por fatos supervenientes. Por essa preocu- eles possam, isto é, dispor dos próprios bens e possam obrigar a execu-
pação com o equihbrio de prestação e contraprestação, não se admite a tar prestações a favor de outros"22 •
aplicação do instituto a contratos aleatórios (art. 1.469 do Código Civil Além disso, reconhece-se no reforço a esse princípio uma das ten-
Italiano). dências do direito moderno diante da nova realidade imposta pela glo-
A ideia se fundava na tutela de um equihbrio nos contratos bilaterais. balização econômica, afirmando-se que a tendência é a expansão do
Mudanças nas circunstâncias podem acontecer, mas se elas quebrarem espaço da autonomia privada, vale dizer, a ampliação do espaço aberto
esse equihbrio de uma forma extrema, isto é, de modo que a prestação a contratos negociados entre as diversas partes envolvidas 23 • Como ato
de uma das partes seja sensivelmente iníqua. Oliando isso ocorre,justi- de vontade que é, "qualquer contrato devia ser uma operação absoluta-
fica-se a relativização da força obrigatória do contrato, permitindo sua mente livre para os contratantes interessados"24, vale dizer, deve haver
revisão ou sua resolução. uma liberdade das partes que firmam contratos.
4. AUTONOMIA PRIVADA E CRITÉRIOS DE REVISÃO CONTRATUAL Com a Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.784/2019 - art. 3°,
VIII) fica consagrada expressamente essa autonomia, ao se prever os ne-
Talvez o princípio mais basilar do direito contratual é o da auto- gócios empresariais serão "objeto de livre estipulação das partes pactu-
nomia privada, a autonomia privada é conceituada como "aspecto da li- antes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas
berdade de contratar, no qual o poder atribuído aos particulares é o de de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública".
se traçar determinada conduta para o futuro, relativamente às relações Além disso, o art. 421, p. único do CC prevê uma excepcionalidade da
disciplinares da Lei" 17 . Clóvis do Couto e Silva afuma que "entende-se intervenção do Estado nos contratos, reforçando a autonomia das partes.
por autonomia da vontade a facultas, a possibilidade, embora não ilimi-
Dentro dessa perspectiva, as próprias partes podem estabelecer cri-
tada, que possuem os particulares para resolver seus conflitos de inte-
térios objetivos para a revisão contratual, como parâmetros admitidos da
resses, criar associações, efetuar o escambo dos bens e dinamizar, enfim,
a vida em sociedade"18 • 19 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil. Dos Contratos e dos Declarações Unilaterais de da Vontade. 22ª
ed. São Paulo: Saraiva, 1994, Vai. Ili, p. 15.
20 LOPEZ, Tereza Ancona. Princípios contratuais. ln: FERNANDES, Wanderley (coordenador).
Fu_ndamentos e princípios dos contratos empresariais. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 9.
15 MACARIO, Francesco. Le sopravvenienze. ln: ROPPO, Vincenzo. Trattato dei contrato. Milano: 21 LOBO, Paulo. Direito Civil: Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 57.
Giuffre, 2006, p. 619, tradução livre de "risulta fortemente pregiudicata nel suo valore 22 GALGA NO, Francesco. Trattato di diritto civile. 2ª ed. Pádova: CEDAM, 2010, v. 2, p. 162, tradução
economico (in relazione alia corrispettività originariariamente fissata dele parti)". livre de "libertà o autonomia contrattuale significa, in senso positivo, che le parti possono, con
16 MACARIO, Francesco. Le sopravvenienze. ln: ROPPO, Vincenzo. Trattato dei contrato. Milano: un proprio atto di volontà, costituire o regolare o estinguere rapporti patrimonialli: che essi
Giuffre, 2006, p. 619, tradução livre de "risulta fortemente pregiudicata nel suo valore possono, cioe, disporre dei propri beni e possono obbligarsi ad eseguire prestazioni a favore
economico (in relazione alia corrispettività originariariamente fissata dele parti)". di altri".
17 GOMES, Orlando. Contratos, 20° ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 22. 23 FARIA, José Eduardo. Direito e conjuntura. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 97.
18 COUTO E SILVA, Clóvis. A obrigação como processo. São Paulo: FGV, 2011, edição do kindle, 24 ROPPO, Enzo. O contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra:
posição 385. Almedina, 2009, p. 32.
510 - REVISÃO CONTRATUAL NO CóDIGO CIVIL MARLON TOMAZITTE - 511

variação de preço de um determinado ativo integrante do custo do con- da execução no tempo 27 • É essencial que entre a formação dos contratos
trato. O artigo 421-A do CC consagra essa possibilidade ao dizer que e a execução da prestação prometida decorra certo prazo, o qual não é
"as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a definido pela lei. Assim, esse prazo deve ser avaliado caso a caso28 •
interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão O essencial é que neste prazo, tenham surgido fatos posteriores
ou de resolução", bem como ao prever que "a alocação de riscos defini- a sua formação que afetem o equih'brio do contrato. Se o contrato for
da pelas partes deve ser respeitada e observada". Nunca houve impedi- de execução instantânea, não há como ocorrer um fato superveniente a
mento legal para tal regulamentação, mas a inclusão expressa na lei foi formação do contrato, pois o contrato é executado simultaneamente a
muito bem-vinda. sua formação. "Executado integralmente o contrato, todos os riscos são
transferidos para as partes"29 •
5. A REVISÃO DOS CONTRATOS NOS ARTIGOS 478 E 479 DO
Embora o artigo 478 do CC se refira a contratos de execução con-
Córneo C1v1L
tinuada, acreditamos que ele abrange todos os contratos de trato suces-
No direito brasileiro, a intervenção do Estado no~,contratos para sivo, de execução continuada ou de execução periódica, pois em qualquer
fins de extinção ou mesmorevisão é admitida expressamente na hipó- caso há um tempo entre a celebração do contrato e as prestações de ao
tese de onerosidade excessiva superveniente. Cogita-se aqui do remédio menos uma das partes. Assim, seriam contratos de duração o forneci-
para corrigir o desequih'brio das prestações em razão de fato superve- mento de mercadorias, a locação e a franquia.
niente. Ela serve tanto para a prestação excessiva onerosa para o deve-
dor, quanto para a contraprestação irrisória para o credor25 • Em qualquer 5.2. f ATOS EXTRAORDINÁRIOS
um desses casos, o equilíbrio contratual é quebrado e, por isso, é neces- Além do tipo específico de contrato, a resolução ou revisão con-
sária uma medida corretiva que poderá ser a extinção ou mesmo a re- tratual dependerá da ocorrência de fatos supervenientes extraordiná-
visão do contrato. rios e imprevisíveis que sejam responsáveis pela quebra do equilíbrio
Embora não haja uma uniformidade de enumeração na doutrina, contratual.
para a revisão ou resolução do contrato em razão da onerosidade exces- Por fatos extraordinários devem ser entendidos os fatos externos
siva superveniente são exigidos seis requisitos 26 : ao contrato e que não decorram da conduta das partes 30 , vale dizer,
- fatos extraordinários; fatos que alteram o curso normal das coisas. Os fatos que normal-
- fatos imprevisíveis; mente ocorrem no contrato, ou que decorram especificamente da con-
duta das partes são fatos ordinários. Ainda que estes fatos ordinários
onerosidade excessiva;
afetem o equilíbrio do contrato, no regime do CC, eles não são sufi-
- não cobertura pelos riscos do negócio; cientes para autorizar qualquer medida tendente à revisão ou resolu-
- ausência de adimplemento da prestação; ção do contrato.
- ausência de mora da parte lesada, no momento do pedido.

5.1. APLICAÇÃO AOS CONTRATOS DE EXECUÇÃO PROLONGADA 27 KHOURI, Paulo R. Roque A. A revisão judicial dos contratos no novo Código Civil, Código do
Consumidor e Lei 8.666/93: a onerosidade excessiva superveniente. São Paulo: Atlas, 2006,
O artigo 478 do CC só pode ser em contratos que possuam pres- p.49.
28 DIAS, LúciaAncona Lopez de Magalhães. Onerosidade excessiva e revisão contratual no direito
tações a serem executadas no futuro. Haverá sempre um fracionamento privado brasileiro. ln: FERNANDES, Wanderley (coordenador). Fundamentos e princípios dos
contratos empresariais. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 341.
DIAS, LúciaAncona Lopez de Magalhães. Onerosidade excessiva e revisão contratual no direito 29 KHOURI, Paulo R. Roque A. A revisão judicial dos contratos no novo Código Civil, Código do
25 Consumidor e Lei 8.666/93: a onerosidade excessiva superveniente. São Paulo: Atlas, 2006,
privado brasileiro. ln: FERNANDES, Wanderley (coordenador). Fundamentos e princípios dos
p.50.
contratos empresariais. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 337.
DIAS, LúciaAncona Lopez de Magalhães. Onerosidade excessiva e revisão contratual no direito 30 KHOURI, Paulo R. Roque A. A revisão judicial dos contratos no novo Código Civil, Código do
privado brasileiro. ln: FERNANDES, Wanderley (coordenador). Fundamentos e princípios dos Consumidor e Lei 8.666/93: a onerosidade excessiva superveniente. São Paulo: Atlas, 2006,
p.52.
contratos empresariais. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 338.
512 - REVISÃO CONTRATUAL NO CóOIGO CIVIL MARLON TOMAZETTE - 513

5.3. fATOS IMPREVISÍVEIS agrícola, um dos riscos a ela inerente é a ocorrência de estiagem, em de-
De outro lado, os fatos imprevisíveis são aqueles que não poderiam corrência das variações climáticas que afetam a região, culminando com
ser cogitados pelas partes em razão das diligências que razoavelmen- a quebra da atividade produtiva. Porém, isso não pode ser visto como
te são esperadas das pessoas envolvidas naquele ~ipo de con_trato31 • Se a fato imprevisível, porquanto é perfeitamente possível esperar que uma
parte tivesse condição de prever tais fatos, ela nao cel~braria .º, c~ntr~- intempérie climática afete a atividade desenvolvida, trazendo prejuízo
aos agricultores"36 •
to ou celebraria de modo diverso. Em suma, os fatos imprev1S1veis sao
aqueles que as partes não poderiam legitimamente prever no momento Uma praga extraordinária e previsível pode gerar uma alteração in-
da celebração do contrato. sustentável das condições do contrato. Todavia, se a partes podiam pre-
Embora o artigo 478 do CC mencione a necessidade fatos impre- ver essa praga, não se pode cogitar da revisão. O STJ já decidiu que ''A
visíveis, tem-se entendido que as consequências imprevisíveis de fatos "ferrugem asiática" na lavoura não é fato extraordinário e imprevisível,
previsíveis também seriam suficientes para a ~plicação ~a revisão ou re- visto que, embora reduza a produtividade, é doença que atinge as plan-
solução do contrato32 • Assim, se o fato poderia ser previsto, mas as con- tações de soja no Brasil desde 2001, não havendo perspectiva de erradi-
sequências desse fato fogem ao que poderia ser cogitado pelas partes, cação a médio prazo, mas sendo possível o seu controle pelo agricultor"37 •
também será admitida a resolução ou revisão contratual. A pandemia do coronavírus de 2020 representa claramente um
Assim um determinado plano econômico pode ser considerado um evento extraordinário e imprevisível3 8, cujas consequências só poderão
fato extrao;dinário e imprevisível. Uma grande desvalorização da mo- ser definidas caso a caso. O requisito da extraordinariedade e da impre-
eda nacional, fora dos padrões esperados, pode se inserir dentro dessa visibilidade, a nosso ver, está claramente preenchido, mas, a onerosida-
ideia. O STJ reconheceu a desvalorização cambial de 1999 em alguns de excessiva precisará ser demonstrada. Todavia, a Lei n. 14.010/2020
casos 33 mas em outros não 34 • Todavia, uma variação cambial dentro de diz que "não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos
patam~es comuns para aqueles que conhece11: e atua no mercado não} dos arts. 317,478,479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a
considerada um fato imprevisível. Nesse sentido, o STJ afumou que a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetá-
rio" se decorrerem da pandemia.
variação cambial que alterou a cotação da soja não configurou um acon-
tecimento extraordinário e imprevisível, porque ambas as partes con- 5-4. ÜNEROSIDADE EXCESSIVA
tratantes conhecem o mercado em que atuam, pois são profissionais do
Para que se possa admitir a resolução ou a revisão do contrato, é
ramo e sabem que tais flutuações são possíveis"35 .
essencial que os fatos extraordinários e imprevisíveis gerem uma onero-
Do mesmo modo, uma catástrofe natural com impactos sobre os sidade excessiva para uma das partes do contrato. A prestação será con-
contratos também pode ser inserida na ideia de fatos extraordinários e siderada excessivamente onerosa se gerar um sacrifício patrimonial não
imprevisíveis. Todavia, se os fenômenos na~ais são_ c~r_r~queiros e acon- consentido pela parte na celebração do contrato 39 , isto é, se gerar um
tecem com alguma frequência, retira-se a imprevisibili~;de. ~ !JRS
considerou a estiagem um fato natural, afumando que Na atividade
36 TJRS-Apelação Cível Nº 70044794345, Décima Sétima Câmara Cível, Relator: Liege Puricelli
31 DIAS, Lúcia Ancona Lopez de Magalhães. Onerosidade excessiva e revisão contratu~I n? ?irei to Pires,Julgado em 08/03/2012 _
privado brasileiro. ln: FERNANDES, V\'anderley (coordenador). Fundamentos e pnnop1as das 37 STJ - REsp 945.166/GO, Rei. Ministro LUIS FELIPE SALOMAO, QUARTA TURMA, julgado em
contratos empresariais. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 346. , . 28/02/2012, DJe 12/03/2012.
32 LORENZETTI, Ricardo Luís. Tratado de los contratos: parte general. 2ª ed. Santa Fe: Rubmzal- 38 ARAUJO, Rogerio Andrade Cavalcanti. Da adequação dos efeitos dos contratos à nova realidade
Culzoni, 2010, p. 537- T MA · 1 d imposta em decorrência da pandemia de coronavírus. Disponível em: <https://jus.com.br/
33 STJ -AgRg no REsp 1260016/SP, Rei. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA UR , Ju ga o em artigos/80454/d a-ad eq uacao-dos-efeitos-d os-contra tos-a-nova-rea li da de-imposta-em-
17/11/2011, DJe 05/12/2011. , _ .. decorrencia-da-pandem ia-de-coronavi rus>. Acesso em 24 mar 2020.
34 STJ- REsp 1321614/SP, Rei. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Rei. p/ Acordao Ministro 39 DIAS, Lúcia Ancona Lopez de Magalhães. Onerosidade excessiva e revisão contratual
RICARDO VILLAS BÔAS CU EVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/12/2014, DJe 03/o~/2015. no direito privado brasileiro. ln: FERNANDES, Wanderley (coordenador). Fundamentos e
35 STJ REsp 936.741/GO, Rei. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, Julgado principias dos contratos empresariais. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 351; MACARIO, Francesco.
em 03/11/2011, DJe 08/03/2012. Le sopravvenienze. ln: ROPPO, Vincenzo. Trattato dei contrata. Milano: Giuffre, 2006, p. 633.
514 - REVISÃO CONTRATUAL NO CóDIGO CIVIL MARLON TOMAZETTE - 515

custo, um sacrifício muito maior do que o levado em conta para a cele- Desse modo, há quem entenda, a nosso ver, com razão, que essa
bração do contrato, em comparação com a contraprestação. extrema vantagem é um elemento acidental, mas não essencial na one-
A boa-fé que se espera das partes não pode tolerar um sacrifício rosidade excessiva42 • Portanto, não se deve caracterizar a onerosidade ex-
desse tipo, que fuja ao que normalmente decorrerá daquele tipo de con- cessiva em dependência da vantagem da outra parte.
trato. A onerosidade excessiva é uma patologia "que atinge a obrigação
contratual no curso de sua execução e que deve ser afastada, para prote-
5.6. NÃO COBERTURA PELOS RISCOS DO NEGÓCIO
40
ger, seja o interesse patrimonial do credor, seja o do devedor" • Todo contrato riscos para as partes, riscos que são assumidos cons-
A apreciação do que é excessivamente oneroso deve ser feita de for- cientemente e automaticamente na celebração do contrato, são os riscos
ma objetiva, levando-se em conta a prestação e o próprio contrato, mas próprios do contrato43 • Deve-se considerar o contexto de mercado, para
não as condições subjetivas da parte. A obrigação deve ser considerada avaliar o que faz parte desse risco 44 • Se os fatos extraordinários estive-
onerosa para qualquer pessoa que participe daquele tipo do contrato. As rem dentro desse risco, eles são algo que a parte deveria suportar, pois
condicões individuais do contratante não devem influenciar a verificação assumiu esse risco. Assim, se a onerosidade excessiva decorre da álea ine-
da on~rosidade41 • Assim, se a prestação se tornou onerosa em razão de rente ao negócio, não se pode cogitar de pedido de revisão ou resolu-
problemas subjetivos da parte, como grandes prejuízos sofridos por ela, ção do contrato. Enzo Roppo afuma que "é preciso que o desequilfbrio
não há como se cogitar da revisão ou resolução do contrato. determinado entre a prestação e contraprestação supere à medida que
corresponde as oscilações normais de mercado dos valores trocados" 45 •
5.5. EXTREMA VANTAGEM PARA OUTRA PARTE Assim, em contratos çom risco assumido pelas partes, a onerosida-
Além da onerosidade excessiva, o artigo 4 78 do CC menciona ex- de excessiva só ensejará a revisão ou resolução se não for coberta por es-
pressamente a extrema vantagem para a outra parte. Tal exigência é cri- ses riscos. Nos contratos de compra e venda de produtos agrícolas para
ticada, pois, além de não constar na legislação estrangeira, é de prova entrega futura, a variação do preço dentro dos patamares de normalida-
muito complicada podendo engessar o instituto. Na maioria dos casos, de daquele mercado é algo abrangido pelo risco do negócio, não ense-
a onerosidade excessiva das prestações de uma das partes não gera uma jando a revisão ou a resolução do contrato. Até por isso, "a alocação de
vantagem extrema para a outra. riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada" como diz o
Assim, por exemplo, a falta imprevisível e extraordinária de insumos artigo 421-A, II do CC.
no mercado que gera um grande ônus para a parte que depende desses Nesse sentido, o STJ afirmou que "Nos contratos agrícolas de ven-
insumos, sem gerar, contudo, uma vantagem excessiva para a outra parte. da para entrega futura, o risco é inerente ao negócio. Nele não se cogi-
Nem por isso, deixa de haver uma quebra do equilíbrio contratual que ta em imprevisão"46 • De modo similar, o STJ afumou que "Os contratos
autoriza a revisão ou mesmo a resolução do contrato. de derivativos são dotados de álea normal ilimitada, a afastar a aplicabi-
Do mesmo modo, imagine-se um contrato de transporte em que o
caminho mais usual foi fechado em razão de um deslizamento de terras 42 FARIA, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito dos contratos. Rio de Janeiro:
e, por isso, o transportador teve que fazer um caminho muito mais ex- Lumen Juris, 2011, p. 618; DIAS, Lúcia Ancona Lopez de Magalhães. Onerosidade excessiva e
revisão contratual no direito privado brasileiro. ln: FERNANDES, Wanderley (coordenador).
tenso. Tal situação gerou um ônus bem pesado para o transportador, mas Fundamentos e princípios dos contratos empresariais. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 355; Enunciado
365 da 111 Jornada de Direito Civil.
não gerou qualquer vantagem para quem remeteu a coisa transportada. 43 KHOUR!, Paulo R. Roque A. A revisão judicial dos contratos no nava Código Civil, Código do
Consumidor e Lei 8.666/93: a onerosidade excessiva superveniente. São Paulo: Atlas, 2006, p.
KHOURI, Paulo R. Roque A. A revisão judicial dos contratos na novo Código Civil, Código do 57.
Consumidor e Lei 8.666/93: a onerosidade excessiva superveniente. São Paulo: Atlas, 2006, 44 MACARIO, Francesco. Le sopravvenienze. ln: ROPPO, Vincenzo. Trattato dei contrato. Milano:
p. 65. .d d . . - 1 d. ·t Giuffre, 2006, p. 638.
41 DIAS, LúciaAncona Lopez de Magalhães. Oneros1 a e excessiva e revisa o contratu~ n? . 1re1 o ROPPO, Enzo. O contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra:
privado brasileiro. ln: FERNANDES, Wanderley (coordenador). Fundar:i~ntos e pnnop,os dos Almedina, 2009, p. 262.
contratos empresariais. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 353; MATIELLO, Fabnc10 Zamprogna. Curso STJ - REsp 783.520/GO, Rei. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA,
de direito civil. São Paulo: LTr, 2008, v. 3, p. 153. julgado em 07/05/2007, DJ 28/05/2007, p. 328.
516 - REVISÃO CONTRATUAL No Córneo CIVIL MARLON TOMAZITTE - 517

lidade da teoria da imprevisão e impedir a sua revisão judicial por one- 5.7. AusÊNCIA DE ADIMPLEMENTO
rosidade excessiva"47 • Outro requisito para a resolução ou revisão do contrato pela one-
Diante desse requisito pode-se imaginar, que a revisão ou resolu- rosidade excessiva superveniente é a ausência de adimplemento da pres-
ção por onerosidade excessiva não se aplicaria aos contratos aleatórios, tação51. A parte prejudicada só pode requerer a resolução ou revisão se
pois nestes o risco é inerente a prestação assumida. Nos contratos ale- ainda não adimpliu sua obrigação. Se a obrigação já foi cumprida, não
atórios, uma das prestações é incerta e pode deixar de acontecer, isto é, há motivos para a revisão ou resolução do contrato, pois o contrato já
"a prestação devida por uma das partes depende de um evento incerto foi cumprido por ela. O cumprimento da obrigação ou não pela outra
que torna impossível essa avaliação até a realização" 48 • Assim, se as par- parte não impede o pedido, mas se a própria parte já cumpriu sua obri-
tes disciplinaram o risco do contrato, alguns autores afastam a possibi- gação, não se pode mais admitir o pedido de revisão ou resolução, por
lidade de revisão ou resolução por onerosidade excessiva49 • questões de segurança jurídica.
Todavia, tal visão é incorreta, pois mesmo nos contratos aleatórios
há um risco aceitado pela parte e só o que se encontra dentro desse risco
5.8. AUSÊNCIA DE MORA DA PARTE LESADA
é que vai ser suportado pela parte. O que fugir desse risco poderia ense- Alguns autores indicam como requisito negativo para a revisão ou
jar a revisão ou resolução do contrato50 se presentes os demais requisitos resolução do contrato pela onerosidade excessiva superveniente é a au-
para tanto. O enunciado 439 da V Jornada de Direito Civil afirma que sência de mora da parte prejudicada, isto é, a parte só pode pedir a re-
"é possível a revisão ou resolução por excessiva onerosidade em contra- solução ou a revisão do contrato se ainda não estiver em mora52 • Daniel
tos aleatórios, desde que o evento superveniente, extraordinário e im- carnacchioi afirma que a mora neutraliza os efeitos da teoria53 . Rizzardo
previsível não se relacione à álea assumida no contrato". nega tal requisito, afirmando que enquanto não resolvido o contrato é
Portanto, nos contratos aleatórios, além do risco normal inerente a sempre oportuna a emenda da mora54 . Do mesmo modo, Paulo Lôbo e
todos os contratos, há um risco adicional assumido pelas partes que re- Flávio Tartuce negam o requisito afirmando que é justamente pela mora
cai sobre a ocorrência ou não de fato contratualmente previsto. O risco que se necessita da revisão ou resolução do contrato55 .
assumido não abrange fatos extraordinários e imprevisíveis e, por isso, A nosso ver, tal requisito efetivamente existe. Assim, antes de atrasar
se estes fatos ocorrerem e acarretarem a quebra do equilíbrio do contra- o pagamento das suas obrigações, a parte lesada deverá notificar a outra
to de forma anormal, também deve-se admitir a revisão ou resolução do parte sobre a intenção de revisão ou resolução, ou até mesmo ajuizar a
contrato pela onerosidade excessiva. ação. Nos contratos bancários, em que há cobrança de encargos abusi-

47 STJ-REsp1689225/SP, Rei. Ministro RICARDOVILLAS BÔAS CU EVA, TERCEIRA TURMA, julgado


em 21/05/2019, DJe 29/05/2019. 51 DIAS, LúciaAncona Lopez de Magalhães. Onerosidade excessiva e revisão contratual no direito
48 RIPERT, Georges; BOULANGER, Jean. Tratado de derecho civil: segun el tratado de Planiol. privado brasileiro. ln: FERNANDES, Wanderley (coordenador). Fundamentos e princípios dos
Trad. De Delia Garcia Daireaux. Buenos Aires: La Ley, 1964, t. 4, v. 1, p. 64, tradução livre de contratos empresariais. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 357.
"la prestación debida por una de las partes depende de acontecimento incierto que hace 52 KHOURI, Paulo R. Roque A. A revisão judicial dos contratos no novo Código Civil, Código do
impossible esa valuación hasta su realización" Consumidor e Lei 8.666/93: a onerosidade excessiva superveniente. São Paulo: Atlas, 2006, p.
49 ROPPO, Enzo. O contrato. Tradução de Ana Coimbra e_M. Januário C. Gomes. Coimbra: 63; LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de/os contratos: parte general. 2ª ed. Santa Fé: Rubinzal-
Almedina, 2009, p. 263; GOMES, Orlando. Contratos. 18ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. Culzoni, 2010, p. 540; DIAS, Lúcia Ancona Lopez de Magalhães. Onerosidade excessiva e
179; GALGANO, Francesco. Trattato di diritto civile. 2ª ed. Pádova: CEDAM, 2010, v. 2, p. 533; revisão contratual no direito privado brasileiro. ln: FERNANDES, Wanderley (coordenador).
MATIELLO, Fabrício Zamprogna. Curso dedireitocivil. São Paulo: LTr, 2008, v. 3, p. 153; PEREIRA, Fundamentos e princípios dos contratos empresariais. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 358; FARIA,
Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, v. Ili, p. Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito dos contratos. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
142; GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, v.111, 2011, p. 619; GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 6ª ed. São Paulo: Saraiva,
p.173. 2009, v.111, p. 178.
50 DIAS, LúciaAncona Lopez de Magalhães. Onerosidade excessiva e revisão contratual no direito 53 CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Curso de direito civil: teoria geral das obrigações e contratos.
privado brasileiro. ln: FERNANDES, Wanderley (coordenador). Fundamentos e princípios dos São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 820.
contratos empresariais. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 371; KHOURI, Paulo R. Roque A. A revisão 54 R~ZZARDO, Arnaldo. Contratos. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 271.
judicial das contratos no novo Código Civil, Código do Cons_umidare Lei 8.666/93: a onerosidade 55 LOBO, Paulo. Direito Civil: Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 204; TARTUCE, Flávio. Direito
excessiva superveniente. São Paulo: Atlas, 2006, p. 117; FIUZA, César. Contratas. Belo Horizonte: civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 7ª ed. São Paulo: Método, 2012, v. 3,
Dei Rey, 2009, p. 68. p.170.
518 - REVISÃO CONTRATUAL NO CóDJGO CIVIL
MARLON TOMAZITTE - 519

vos, a mora é descaracterizada56 , autorizando ainda a adoção das medi- Assim, deve-se admitir que a parte prejudicada possa pedir a revi-
das de revisão ou resolução. são do contrato diretamente ao invés da sua resolução 58 • Dentro da lógi-
O contratante em mora assume, portanto, todos os riscos inerentes ca da conservação dos contratos, é natural e até preferível que se busque
ao contrato, mesmo que extraordinários, como os decorrentes de caso a revisão e não a resolução contratual59 • Apesar do teor do artigo 478,
fortuito e força maior. Essa imputação do risco ao contratante moroso é deve-se admitir o pedido de revisão, pois quem pode mais, pode menos,
uma penalidade plenamente justificável, pois se ele tivesse cumprido sua logo, se parte pode o mais que é pedir a resolução, ela também pode o
prestação no tempo devido o fato superveniente não a atingiria. Assim, menos que é pedir a revisão do contrato. Outrossim, os princípios da
se uma fabricante de equipamentos industriais promete a entrega de de- boa-fé objetiva e da função social do contrato permitem essa conclusão.
terminados equipamentos e atrasa essa entrega e durante o período de Além disso, é certo que a revisão não deve ficar adstrita aos termos
atraso há um grande aumento nos preços dos insumos utilizados em ra- propostas pela outra parte, admitindo-se uma maior intervenção judicial
zão de um plano econômico, ela não poderá pedir a revisão contratual. em tais situações. Não se pode negar ao juiz a possibilidade de intervir
Tal requisito decorre da previsão do artigo 399 do CC pelo qual moderadamente nos contratos impondo a revisão da melhor maneira
a parte em mora responde pelos riscos advindos ao contrato durante a possível60 • Tal intervenção não deve chegar a extremos, derrogando a au-
mora, inclusive nas hipóteses de caso fortuito e força maior. Ocorre que tonomia da vontade, mas deve ocorrer de forma ponderada. Nesse sen-
esse mesmo dispositivo libera a parte da responsabilidade pelo caso for- tido, o STJ ao decidir os processos de revisão dos contratos de leasing
tuito e pela força maior se ela comprovar que o dano ocorreria mesmo afetados pela maxidesvalorização da moeda nacional em 1999, decidiu
com a obrigação cumprida oportunamente. Fazendo uma analogia com pela repartição dos ônus entre as duas partes 61 •
tal dispositivo, a mora do contratante não inibiria o pedido de resolução Caso se opte pela resolução do contrato, esta resolução se dará com
ou revisão se o agravamento da prestação decorresse de fato anterior ao efeitos ex nunc, retroagindo, porém à data da citação (CC- art. 478). Em
atraso. Nesse sentido, Paulo Roque Khouri afuma que "a relevância da razão disso, nos contratos de execução continuada ou periódica, a par-
mora para efeito de não autorizar o acionamento do instituto deve estar te poderá requerer ou a devolução dos valores pagos a maior, ou o com-
no nexo causal entre a conduta do contratante faltoso e o fato superve- plemento dos valores a menor, a partir da data da citação 62 • No caso dos
niente ensejador da onerosidade excessiva em si"57 • contratos de execução diferida, a resolução implicará a devolução do va-
lor pago e da coisa recebida.
5.9. REVISÃO OU RESOLUÇÃO DO CONTRATO

Presentes os requisitos, a parte prejudicada, a princípio, tem a pos- 6. REVISÃO DOS CONTRATOS UNILATERAIS (CC -ART. 480)
sibilidade de requerer a resolução do contrato (CC - art. 478). Todavia, A mesma ideia da onerosidade excessiva se aplica os contratos uni-
nos termos do artigo 4 79, ''A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se laterais, nos quais haja prestação de apenas uma parte (CC - art. 480).
o réu a modificar equitativamente as condições do contrato". A princí- Naturalmente, essa aplicação é indiscutível nos contratos unilaterais
pio, numa intepretação literal, a parte poderia apenas requerer a resolu- onerosos, que gerem sacrifícios para ambas as partes, mas é discutível
ção e a revisão só poderia ocorrer nos termos da proposta da outra parte. 58 DIAS, LúciaAncona Lopez de Magalhães. Onerosidade excessiva e revisão contratual no direito
Todavia, tal intepretação não se coaduna com os princípios da boa-fé privado brasileiro. ln: FERNANDES, Wanderley (coordenador). Fundamentos e princípios dos
contratos empresariais. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 379.
objetiva e da função social do contrato. 59 LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos: parte general. 2ª ed. Santa Fé: Rubinzal-
Culzoni, 2010, p. 529; TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 3: teoria geral dos contratos e contratos
em espécie. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, cap. 4, item 4.2.
60 GOMES, Orlando. Contratos. 18ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p.179.
61 ST! ~ REsp 472594/SP, Rei. Ministro CARLOS ALBERTO M~NEZES DIREITO, Rei. p/ Acórdão
56 STJ -AgRg no Ag 1371547/RS, Rei. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em
Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, SEGUNDA SEÇAO, julgado em 12/02/2003, DJ
17/11/2011, DJe 30/11/2011. 04/08/2003, p. 217.
57 KHOURI, Paulo R. Roque A. A revisão judicio/ dos contratos no novo Código Civil, Código do 62 DIAS, LúciaAncona Lopez de Magalhães. Onerosidade excessiva e revisão contratual no direito
Consumidor e Lei 8.666/93: a onerosidade excessiva superveniente. São Paulo: Atlas, 2006, privado brasileiro. ln: FERNANDES, Wanderley (coordenador). Fundamentos e princípios dos
p. 65. contratos empresariais. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 379.
520 - REVISÃO CONTRATUAL NO Córneo Civ1L MARLON TOMAZITTE - 521

nos contratos unilaterais gratuitos em que há sacrifício apenas de uma 7. REVISÃO CONTRATUAL NO ARTIGO 317 DO CC
das partes. A opinião que prevalece é que também nos contratos g~a-
Outra hipótese de revisão contratual decorre da previsão do artigo
tuitos seria possível a aplicação do instituto da onerosidade excessiva
317 do CC que diz "Qy.ando, por motivos imprevisíveis, sobrevierdes-
superveniente63 •
proporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momen-
Embora não se possa cogitar de desequiHbrio entre as partes no caso to de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo
de contratos unilaterais gratuitos, é certo que a parte obrigada pode so- que assegure, quanto possível, o valor real da prestação".
frer o impacto de fatos supervenientes que tornem a prestação exces-
Tal dispositivo se aplica aos contratos que possuam uma prestação
sivamente onerosa. Assim, o doador que prometeu executar a doação
em dinheiro. Embora não se confunda com a previsão do artigo 4 78 do
em momento posterior a celebração do contrato, pode ter sua prestação
CC, a aplicação do artigo 317 do CC também exige que se trate de con-
tornada excessivamente onerosa em razão de fatos supervenientes e im-
trato de duração ou de execução diferida, pois deve haver um prazo en-
previsíveis como um plano econômico. N~ste ~aso, é n~tural q~e sega-
tre a celebração do contrato e o momento da prestação.
ranta a ele a possibilidade de rever sua obngaçao, reduzindo o onus que
se tornou excessivo 64 • Nestes contratos, com prazo entre a celebração do contrato e a exe-
cução de uma prestação em dinheiro, a revisão da prestação será possível
Em todo caso, nos contratos unilaterais, gratuitos ou onerosos, o
se ficar demonstrar que por fatos imprevisíveis, houve uma desproporção
único requisito apontado pelo art. 480 do CC é a onerosidade excessiva
manifesta da prestação, causada por motivos imprevisíveis.
superveniente. Assim, a parte prejudicada pod~rá ped~ a revis~o. da sua
prestação. Acreditamos, que se aplicam tambem aqm os reqmsltos da O art. 317 do CC se preocupa com a manutenção do valor econô-
não cobertura pelos riscos do negócio e da ausência de mora. Ressalte- mico da prestação, comparando-se o momento da celebração do contrato
se sempre que a eventual cobrança de valores indevidos pelo credor des- e o momento da execução da obrigação. Não há aqui uma relação com a
carecteriza a ora. contraprestação 66 , mas apenas uma preocupação em relação à manuten-
ção do valor real da prestação prometida, tanto para o credo~ q~anto para
Desse modo, no contrato de mútuo com pagamento de juros, a
o devedor. "Na revisão propugnada pelo art. 317 tem-se a ideia de des-
parte prejudicada pela onerosidade excessiva, poderá ~edir uma ,n~visão
proporção da pre~t~ção considerada ~m relação a si mesma, ou sej~, ~~
dos juros, mas não a extinção do contrato. Para o mutuo bancar10, no
dois momentos distintos - na formaçao do contrato e na sua execuçao .
qual as ações revisionais por onerosidade excessiva são muito comuns,
Portanto, trata-se de previsão distinta daquela do artigo 478 do CC.
o STJ pacificou que só haverá onerosidade excessiva no caso de a taxa
de juros cobrada fugir muito da taxa média do mercado divulgada pelo Também se exige a imprevisibilidade do fato causador da despro-
Banco Central65 • porção entre as obrigações. Assim, uma grande inflação em uma econo-
mia estável ou um ataque terrorista, que afetem sensivelmente os preços
Do mesmo modo, no contrato de mútuo sem pagamento de juros,
das prestações, podem autorizar a revisão da prestação que se mostrou
a parte pode pedir mais prazo para devolver, mas não pode resolver o
manifestamente desproporcional em relação ao que foi combinado.
contrato sem a devolução do que foi emprestado.
Acreditamos, que se aplicam também aqui os requisitos da não co-
bertura pelos riscos do negócio e da ausência de mora.
Presentes os requisitos indicados, a revisão deverá assegurar o
DIAS, LúciaAncona Lopez de Magalhães. Onerosidade excessiva e revisão contratual n? direito "quanto possível, o valor real da prestação". Vale dizer, a "despropor-
privado brasileiro. ln: FERNANDES, Wanderley (coordenador). Fundamentos e pnnopws dos
contratos empresariais. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 345. . . . . . . ção manifesta pode ser tanto pela desvalorização do bem a ser prestado
KHOURI, Paulo R. Roque A. A revisão judicial dos contratos ~o novo_Cod,go CIVIi, Cod,go do
Consumidor e Lei 8.666/93: a onerosidade excessiva superv;rnente. Sao Paulo: Atlas, 2006, p. 66 DIAS, LúciaAncona Lopez de Magalhães. Onerosidade excessiva e revisão contratu~I n? ?ireito
105; GALGANO, Francesco. Trattato di diritto civile. 2ª ed. Padova: CE~AM, 2010, v. 2, p. 534. privado brasileiro. ln: FERNANDES, Wanderley (coordenador). Fundamentos e pnnop,os dos
65 STJ Aglnt no REsp 1669617/ PR, Rei. Ministro RICARDO VIL LAS BOAS CU EVA, TERCEIRA contratos empresariais. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 368.
TURMA, julgado em 09/03/2020, DJe 13/03/2020. FRANTZ, Laura. Revisão dos contratos. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 109.
522 - REVISÃO CONTRATUAL NO CóDIGO CIVIL MARLON TOMAZITTE - 523

(desvalorização da moeda pela inflação, p. Ex.), como pela supervenien- ao segurador, autoriza a este a possibilidade de decidir pela .resolução
te desvalorização excessiva da prestação, quebrando a proporcionalida- do contrato (CC - art. 769, § 1°). O aumento ou agravamento do ris-
de entre a que fora convencionada e a que agora deve ser cumprida, em co que autorizam a revisão ou a resolução do contrato devem ser consi-
prejuízo do devedor" 68 • Desse modo, a revisão do art. 317 do CC pode deráveis, ou seja, são aqueles não abrangidos pelos riscos do negócio 70 •
valer tanto para o credor, quanto para o devedor. Mais uma vez não são exigidos os requisitos de aplicação da revisão ge-
ral do CC ou do CDC.
8. REGIMES ESPECIAIS DE REVISÃO CONTRATUAL POR FATOS
Além destes, admite-se a revisão do valor do contrato de locação
SUPERVENIENTES
de as partes não chegarem a um acordo após três anos de vigência do
Além do regime geral do CC e do regime especial do CDC, cer- contrato ou do acordo anteriormente realizado. Neste caso, as partes
tos tipos contratuais admitem a revisão ou a resolução em razão de fa- poderão pedir revisão judicial do aluguel, a fim de ajustá-lo ao preço de
tos supervenientes. mercado (Lei nº 8.245/91 - art. 19). Não aqui também qualquer exi-
No comodato (empréstimo de coisa infungível), o artigo 581 admi- gência dos requisitos da revisão pela onerosidade excessiva, sendo ne-
te que o comodante obtenha a restituição da coisa emprestada, mesmo cessária apenas o decurso do prazo de 3 anos e a diferença em relação
antes do término do prazo previsto, em caso de "necessidade imprevis- ao valor de mercado.
ta e urgente" reconhecida pelo juiz. Trata-se de um fato superveniente, Na sublocação de ponto no contrato de franquia, a Lei n.
previsível ou não, que causou essa necessidade imprevista e urgente,jus- 13.966/2019 prevê a possibilidade de revisão por onerosidade excessiva
tificando a resolução do contrato. Tal necessidade pode ser do próprio ao franqueado (art. 3°, p. único, II).
comodante ou de alguém da sua familia 69 • Em todo caso, é ela que jus-
tificar a imediata devolução do bem emprestado. 9. CONCLUSÃO
Outra hipótese especial envolve o contrato de empreitada, no qual Com o presente trabalho demonstra-se a importância e reconhe-
se admite a revisão da cláusula preço, "Se ocorrer diminuição no preço cimento da aplicação do instituto da sua revisão contratual para o direi-
do material ou da mão de obra superior a um décimo do preço global to brasileiro ao longo dos 18 anos de vigência do Código Civil. Não se
convencionado" (CC - art. 620). Neste caso, o preço poderá ser revisto, pode deixar de ter em mente que tal instituto, embora fundamental, não
a pe1ido do dono da obra, para que se lhe assegure a diferença apura- pode ser banalizado, devendo ser aplicado com muito cuidado, sempre
da. E natural na fixação do preço do contrato de empreitada que se leve de maneira excepcional.
em conta o custo do material e da mão. Assim, se houve um decréscimo A fluidez dos requisitos legais traz consigo naturalmente uma grande
considerável (superior a 10%), o dono da obra pode pedir a revisão do variação na jurisprudência que não é boa para a segurança jurídica, mas
preço, para que ele se adeque à realidade. Aqui também não se cogita de é natural em um tema como esse. Não se acha, nesse ponto, que se ne-
nenhum dos requisitos da onerosidade excessiva. cessário definir legalmente critérios objetivos, mas deixar às partes para
No contrato de seguro, no qual o risco é da essência, o agravamen- que elas, quando possível, elejam esses critérios objetivos para tanto, ao
to ou diminuição considerável desse risco poderá ter impactos sobre o definir a alocação dos riscos contratuais.
contrato. Se a redução do risco for considerável, o segurado poderá exi- Apesar da grande variação de decisões, não se pode negar que elas
gir a revisão do prêmio, ou a resolução do contrato (CC - art. 770). De demonstram a excepcionalidade da revisão, que não podia ser ignora-
outro lado, o agravamento considerável do risco, uma vez comunicado da, mesmo antes da Lei da Liberdade Econômico. O choque entre os
princípios do equilibrio contratual e da força obrigatória dos contratos
68 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. 2ª ed.
Rio de Janeiro: AIDE, 2003. P. 152-153.
69 KHOURI, Paulo R. Roque A. A revisão judicio/ dos contratos no novo Código Civil, Código do 70 KHOURI, Paulo R. Roque A. A revisão judicio/ dos contratos no novo Código Civil, Código do
Consumidor e Lei 8.666/93: a onerosidade excessiva superveniente. São Paulo: Atlas, 2006, Consumidor e Lei 8.666/93: a onerosidade excessiva superveniente. São Paulo: Atlas, 2006,
p. 80. p.80.
524 - REVISÃO CONTRATUAL NO CóDIGO CIVIL MARLON TOMAZITTE - 525

sempre vai ocorrer e deve passar por um juízo de ponderação, conside- MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Atualizado por Vilson Rodrigues
Alves. Campinas: Bookseller, 2003, v. 25.
rando os elementos já estabelecidos na legislação, sob pena de inviabi-
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lizar o tráfico jurídico.
de Planiol. Trad. De Delia Garcia Daireaux. Buenos Aires: La Ley, 1964, t. 4, v.1.
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RAFAEL 5ETOGUTI J. PEREIRA - 527

IV. ÜS INSTITUTOS DE REVISÃO CONTRATUAL DO


CóDIGO CIVIL DE 2002 E O ACORDO DE SÓCIOS 1

Rafael SetogutiJ. Pereira2

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
O presente artigo tem por objetivo analisar e compreender o fenô-
meno da revisão dos contratos no âmbito do acordo de sócios, instru-
mento próprio do direito societário.
O estudo revela-se oportuno. Ao longo dos 18 anos de existência
do Código Civil de 2002, o tema da revisão contratual ganhou reno-
vada importância e persiste até hoje como relevante foco de discussão
no direito dos contratos. A crise sanitária e econômica provocada pela
pandemia do novo coronavírus devolveu fôlego às discussões acerca dos
pressupostos e do alcance dos remédios jurídicos disponíveis para lidar
com eventos imprevisíveis perturbadores do programa contratual, pon-
do à prova a evolução dogmática e jurisprudencial das últimas duas dé-
cadas no que diz respeito aos dispositivos do Código Civil que abordam
o desequilíbrio contratual superveniente (arts. 317, e 478 a 480).
A figura da revisão contratual, compreensivelmente, configura ter-
reno tormentoso no âmbito do direito civil e, mais especificamente, no
direito dos contratos, erigido que foi sobre a lógica fundamental de que
o contrato, tal qual formulado originalmente, obriga as partes (princípio
da força obrigatória dos contratos, ou pacta szmt servanda). Modificá-
lo, pela manifestação de vontade de apenas um dos contratantes, desafia
assim o papel do direito dos contratos como garantidor da segurança e
previsibilidade das relações econômicas. Não por acaso, apesar da fartu-
ra de material doutrinário e jurisprudencial acerca do tema, existe pouco
consenso em torno da interpretação e aplicação dos institutos disponí-
veis para tratamento da revisão contratual. Essa ausência de decantação
do assunto, no Brasil, pode ser atribuída em boa parte ao tecido norma-
tivo sui generis propiciado pelo Código Civil no tema da alteração super-
veniente das circunstâncias, que inegavelmente se inspirou no Código
Civil italiano ao contemplar os arts. 478 a 480, mas que também acabou
O autor agradece gentilmente a José Flávio Pereira e Rogério Soler Junior pela revisão e valiosas
contribuições ao texto.
2 Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduado pelo CEU
Law School. Advogado em São Paulo. Professor no Programa de Pós-Graduação do lnsper.
528 - ÜS INSTITUTOS DE REVISÃO CONTRATUAL DO CóDIGO CIVIL DE 2002 E O ACORDO DE SÓCIOS RAFAEL 5ETOGUTI J. PEREIRA - 529

congregando o art. 317, dispositivo esse sem paralelo nos outros siste- 11. ÜS INSTITUTOS DE REVISÃO CONTRATUAL COM BASE NA
mas jurídicos, gerando com isso multiplicidade de tratamentos jurídicos ALTERAÇÃO SUPERVENIENTE DAS CIRCUNSTÂNCIAS DO
- não raro sobrepostos - aplicáveis ao desequilibrio contratual. Córneo C1v1L DE 2002
A esta dificuldade soma-se outra, central ao enfrentamento do tema
As discussões no direito dos contratos envolvendo a alteração de
ora proposto. Trata-se da interpretação e aplicação das regras de revisão circunstâncias e o reestabelecimento do equilíbrio do contrato são anti-
contratual, próprias do direito dos contratos, ao acordo de sócios, ne-
quíssimas.6 No Brasil, parcela relevante dos juristas adotou, no início do
gócio que pertence ao campo do direito societário. A atração da lógica
jurídico-societária pelo acordo de sócios interfere, em maior ou menor 6 Remonta a 400 a.e., na Grécia Antiga, a preocupação com a conservação da justiça no con-
trato submetido a eventos extraordinários. O assunto ressurgiu com expressividade na Idade
grau, a depender do conteúdo do arranjo estipulado, no funcionamen- Média, adentrando a dogmática da época a partir do desenvolvimento da teoria da cláusula
rebus sic stantibus, segundo a qual um contrato apenas se mantém vinculante desde que não
to de institutos oriundos de outros ramos do direito, ora limitando-os, modificados os pressupostos substanciais incidentes sobre a relação de valor existente entre as
ora flexibilizando-os. 3 Essa particular dinâmica se explica pelas regras prestações do contrato (cf. Cf. Andrea Torrente; e Piero Schlesinger, Manuale di diritto privato,
24ª ed., Giuffre, 2019, p. 682 e 683). A partir daí, e ao longo da Idade Moderna, as discussões
cogentes e de caráter coletivo pertencentes ao direito societário, que em envolvendo o restabelecimento do equilíbrio contratual entraram em estado de hibernação,
alguma medida contrastam com a ampla autonomia privada assegurada muito em virtude da visão liberal e voluntarista predominante nas codificações da época,
desinteresse esse reforçado pelo período de relativa estabilidade monetária do período. O
aos contratantes pelo direito contratual. 4- 5 desequilíbrio contratual somente tornou a atrair a atenção dos juristas na metade do século XIX,
no direito estrangeiro, e no começo do século XX, no Brasil, tendo sido por fim impulsionado
Cabe esclarecer, por fim, que o presente estudo é centrado no fenô- à pauta principal do direito dos contratos em virtude das discussões contratuais surgidas no
quadro de instabilidade econômica posterior à 1ª Guerra Mundial (1914-1918). Diversas teorias
meno da modificação superveniente das circunstâncias, e não originária. gestadas nos países continentais da Europa trataram do tema. Na França, concebeu-se a teoria
Dito de outro modo, serão analisadas as regras disponíveis na codificação da imprevisão, de origem jurisprudencial e aplicada inicialmente para os contratos adminis-
trativos. Segundo ela, existiria uma cláusula rebus sic stantibus implícita em todos os contratos
civil para os casos de alteração das circunstâncias sob as quais o contrato de duração. Seus pressupostos consistem em (i) haver uma modificação profunda da situação
tenha sido celebrado, nomeadamente os arts. 317, e 4 78 a 480, do Código de fato e (ii) que essa seja imprevisível (v. Laura Coradini Frantz, Revisão dos contratos: elemen-
tos para sua construção dogmática (Coleção prof. Agostinho Alvim - Renan Lotufo (coord.)),
Civil. Os apertados limites deste trabalho não permitem uma análise São Paulo: Saraiva, 2007, p. 23). O direito alemão, de sua parte, foi berço de algumas teorias
justificadoras do restabelecimento do equilíbrio contratual. A teoria da pressuposição, de
dos eventos de desequilibrio contratual existentes na formação do con- Windscheid, colocava que"[ ...] a relação jurídica originada através da declaração de vontade
trato, cristalizados nos institutos da lesão (art. 157) e do estado de perigo é feita depender de um certo estado de coisas.[... ] Assim, se o estado de coisas pressuposto
não existir, ou não se concretizar ou deixar de existir, a relação jurídica constituída através da
(art.156), temas vastos que por si só justificariam um estudo individual. declaração de vontade não se mantém a não ser sem, ou melhor, contra a vontade do decla-
rante." (cf. Bernard Windscheid, Die Lehre dos rõmischen Rechtsvon dervoraussetzung, apud
António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, Coimbra: Almedina,
2013, p. 970). Apoiando-se nos fundamentos da teoria da pressuposição, a teoria da quebra da
base subjetiva, desenvolvida no direito alemão por Paul Oertmann, postula que os contratantes
fazem representações mentais sobre a existência e permanência de certas circunstâncias fun-
damentais, "de modo que a insubsistência e a cessação de tais circunstâncias ou a verificação
3 A relação societária subjacente ao acordo de sócios é elemento necessário a ser levado em de outras que sejam incompatíveis com as representações mentais possibilitariam a extinção
consideração na interpretação e aplicação das regras jurídicas ao caso concreto. Conforme do contrato a pedido do contratante que sofre danos" (cf. Laura Coradini Frantz, Revisão ...,
aponta Fábio Konder Comparato, o intérprete, ao lidar com acordo de sócios, deve fazer p. 43 e 44.). Por assentar a base da vontade negocial sobre as representações subjetivas feitas
uma necessária distinção entre negócio jurídico não societário e societário (v. "Restrições à pelos contratantes em relação às circunstâncias presentes e futuras, a teoria é reputada incom-
circulação de ações em companhia fechada: Novo et vetero", in Novos ensaios e pareceres de patível com o sistema jurídico brasileiro por autorizada doutrina pátria, o qual não considera
direito empresarial, 1ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 44 e 45). relevante, para formação da vontade negocial, o erro acerca dos motivos do ato (ex vi art. 140
4 Assim nota Otávio Yazbek: "À medida que aqueles acordos eminentemente privados passam do Código Civil) (v.Judith Martins-Costa, Comentários ao novo código civil-do adimplemento
a produzir efeitos internos, começam sobre eles a incidir, de forma mais ou menos direta, e da extinção das obrigações-arts. 304 a 388, volume VI, tomo 1, Sálvio de Figueiredo Teixeira
conforme o caso, regras mais típicas do direito societário", e, assim, "a relação entre o campo do (coord.), Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 241). Na sequência das críticas à teoria da quebra da
direito civil e o do direito societário (com as regras mais cagentes que para este último vigoram) base subjetiva e a seu caráter excessivamente abrangente e subjetivo foi formulada a teoria da
se torna cada vez mais complexa" ("A vinculação dos administradores das sociedades aos base objetiva. Segundo ela, a celebração de um contrato presume determinadas "circunstâncias
acordos de acionistas- exercício de interpretação do §8° do art. 118 da Lei n. 6.404/1976", in objetivas de caráter geral, tais como: a ordem econômica do país; o poder aquisitivo da moeda;
Revista de direito das sociedades e dos valores mobiliários, São Paulo: Almedina, nº 1, 2015, condições de desenvolvimento do contrato, etc.", as quais, se modificadas ao longo da vida do
p.20 e21). contrato e desde que não tenham sido antecipadas pelas partes, poderiam ensejar a revisão
5 Em trabalho vigoroso sobre o assunto, Mariana Conti Craveiro explora a imprescindível neces- ou a extinção antecipada do contrato (v.Judith Martins-Costa, Comentários ... , p. 242 e 243). O
sidade de observação das regras e princípios do direito societário na interpretação dos acordos enfoque, assim, passa da pessoa para o negócio. Deixam de ter relevância os eventos futuros
de sócios (ou, como prefere chamá-los em sentido lato, "contratos entre sócios"), tarefa da qual projetados ou os motivos compartilhados pelas partes, e ganham importância os fatos que se
extrai preciosas conclusões práticas relacionadas ao funcionamento dos acordos de sócios (cf. ligam ao negócio em si mesmo (v. Jorge Cesa Ferreira da Silva, Adimplemento e extinção das
Contratos entre sócios: interpretação e direito societário, São Paulo: Quartier Latin, 2013). obrigações (Coleção biblioteca de direito civil: estudos em homenagem ao Professor Miguel
530 - ÜS INSTITUTOS DE REVISÃO CONTRATUAL DO CóDJGO CIVIL DE 2002 E O ACORDO DE SÓCIOS RAFAEL SETOGlJTJ J. PEREIRA - 531

século XX, postura avessa às teorias revisionistas, ainda apegados à noção e acolheu, como matriz teórica desses dispositivos, a teoria italiana da
individualista e de intangibilidade dos contratos. Rejeitavam a ideia de onerosidade excessiva. 13 - 14
interferência no conteúdo do contrato posteriormente à sua formação Assim preceituam os dois grupos de dispositivos do diploma civil
calcados nas ideias de igualdade formal (em oposição à material), força que tratam do desequilibrio contratual:
obrigatória dos contratos e autonomia da vontade, bem como na ausên- "Art. 317. Qµando, por motivos imprevisíveis, sobrevierdes-
cia de lei expressa. 7 Somente a partir de meados do século juristas bra- proporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do
sileiros se inclinaram, ainda que de maneira vacilante8, para uma visão momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido
mais simpática ao reequilibrio negocial, quando confrontados com situ- da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real
ações de injustiça contratual patente. Nesta época, sendo o Código Civil da prestação".
de 1916 silente a respeito do assunto, coube à jurisprudência9 e doutri- "Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se
na10 assentarem as bases teóricas para aplicação dos institutos jurídicos a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa,
pertinentes durante o período de omissão legislativa. 11 com extrema vantagem para a outra, em virtude de aconteci-
Influenciado por essa progressiva incorporação à jurisprudência e mentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir
doutrina das considerações de socialidade, o legislador do Código Civil a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar
de 2002 conferiu tratamento abrangente e sistemático à matéria da re- retroagirão à data da citação.
visão contratual. Assim abrigou, nos arts. 317, e 478 a 480, institutos Art. 4 79. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a
voltados a remediar situações perturbadoras do programa contratual12 modificar eqüitativamente as condições do contrato.
Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma
Reale), Miguel Reale e Judith Martins-Costa (coords.), v. 6, São Paulo: Revista dos Tribunais, das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida,
2007, p. 174). Na Itália, consagrou-se a seu turno, na primeira metade do século XX, a teoria da
excessiva onerosidade, sob forte influência dos estudos alemães no tema. A teoria de origem ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade
peninsular sustenta que tem lugar a onerosidade excessiva quando há dificuldade prestacional . "
excessiva.
superveniente que transforma o contrato, concluído sobre as bases de uma dada situação
econômica, em um negócio jurídico com base econômica radicalmente diversa (v. Francesco O art. 317 motivou - e motiva - acirrada polêmica, repartindo a
Messineo, Dottrina general e dei contralto, 3ª ed., Milano: Giuffre, 1952, p. 501). Por fim, para
um relato mais aprofundado sobre a evolução das teorias justificadoras da revisão contratual, dogmática civilista em duas grandes linhas interpretativas em relação ao
no Brasil e no mundo, consultar ainda Anderson Schreiber, Equilíbrio contratual e dever de
renegociar, São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p.135-161; Otávio Luiz Rodrigues Junior, Revisão
alcance da regra. A primeira, que aparenta ser dominante na doutrina,
judicial dos contratos-autonomia da vontade e teoria da imprevisão, 2ª ed., São Paulo: Atlas, propõe sua aplicação para qualquer tipo de prestação, seja ela pecuni-
2006, p. 28-64; e ainda, na doutrina clássica, Pontes de Miranda Tratado de direito privado,
t. XXV, 3ª ed., Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, p. 216-244.) ária15 ou não. 16 Os defensores dessa tese apoiam-se, em geral, na lite-
7 Para Pontes de Miranda- nitidamente influenciado pelas teorias alemãs envolvendo a base do
contrato -a revisão do contrato somente seria admitida caso houvesse regra jurídica expressa, diminuição no preço do material ou da mão de obra superior a um décimo do preço global
ou se do negócio jurídico se pudesse depreender que as partes teriam querido, ou levado em convencionado, poderá este ser revisto, a pedido do dono da obra, para que se lhe assegure a
consideração ao contratar, a manutenção das circunstâncias (v. Tratado ... , t. XXV, p. 245 e 263). diferença apurada") e no seguro ("Art. 770. Salvo disposição em contrário, a diminuição do risco
8 Paulo Roberto Roque Antonio Khouri narra o movimento pendular da doutrina a respeito do no curso do contrato não acarreta a redução do prêmio estipulado; mas, se a redução do risco
tema (cf. A revisão judicial dos contratos no novo código civil, código do consumidor e Lei for considerável, o segurado poderá exigir a revisão do prêmio, ou a resolução do contrato").
8.666/93: a onerosidade excessiva superveniente, São Paulo: Atlas, p. 2006, p. 7-27). 13 Defendendo a onerosidade excessiva do Direito italiano como matriz teórica do Código
Em 1938 o Supremo Tribunal Federal já discutia a aplicação da cláusula rebus sic stantibus Civil, cf., entre outros, Anderson Schreiber, Equilíbrio ... , p. 158; e Judith Martins-Costa,
9
(Recurso Extraordinário nº 2.675, Min. Rei. Laudo de Camargo, Min. Rei. ad hoc Costa Manso, Comentários ..., p. 245 e 246. Contra: Renan Lotufo, Código civil interpretado: obrigações
d.j. 05/01/1938), sendo digno de nota o extenso e detalhado voto do Ministro Eduardo Espínola. parte geral- arts. 233 a 420, volume 2, São Paulo: Saraiva, 2004, p. 226-228.
10 Cf., a título de exemplo, José Xavier Carvalho de Mendonça, Tratado de direito commercial 14 A teoria da quebra da base do contrato não foi abraçada pelo Código Civil, embora há quem
brasileiro, v. VI, 1ª parte, 3ª ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1939, p. 61 e 62; e João Manuel defenda que o art. 317, ao fazer expressa referência à onerosidade excessiva, deixa de lado
de Carvalho Santos, Código civil brasileiro interpretado, v. XV, 2ª ed, Rio de Janeiro: Freitas alguns problemas relevantes, que poderiam ser tratados a partir da teoria da quebra da base
Bastos, 1938, p. 212-234. do contrato - v.g., o erro compartilhado quanto aos motivos do negócio e a inviabilidade dos
ll O diploma civil começou a ser gestado ainda na década de 70, e foi enfim sancionado na vira- objetivos prestacionais (cf. Jorge Cesa Ferreira da Silva, Adimplemento ... , p. 177).
da do século. Antes de sua sanção, a via revisionai dos contratos já se abrira no ordenamento 15 Prestação pecuniário, conforme definição de Jorge Cesa Ferreira da Silva, é aquela que "tem
jurídico brasileiro, mas por meio de leis especiais: v.g., no Código de Defesa do Consumidor por objeto primário - e não indenizatório ou substitutivo - o dinheiro" (v. Adimplemento ... ,
(Lei nº 8.078 de 1990), art. 6, V; na Lei de Locações (Lei nº 8.245 de 1991), art. 19; e na Lei de p.136).
Licitações (Lei nº 8.666 de 1993), arts. 57, §1°; 58, §2º; 65, "li", "c" e "d", e §6º. 16 Aderem a esta opinião, entre outros, Caio Mário Pereira da Silva, Instituições de direito civil,
12 Além desses dispositivos de aplicação mais geral, existem no diploma civil outros com alcance v.11 (Teoria geral das obrigações), atualização de Guilherme Calmon Nogueira da Gama, 29ª
mais restrito, aplicáveis a situações específicas, como na empreitada ("Art. 620. Se ocorrer ed., Rio de Janeiro: Forense, p. 192 e 193; Carlos Roberto Gonçalves, Direito civil brasileiro:
532 - ÜS INSTITUTOS DE REVISÃO CONTRATUAL DO CóDIGO CIVIL DE 2002 E O ACORDO DE SÓCIOS RAFAEL SHOGUTI J. PEREIRA - 533

ralidade do art. 317, para afirmar que o texto legal (suporte fático) não vas emendas ao art. 317 propostas durante a discussão legislativa atestam
faria distinção em relação ao tipo de prestação (i.e., pecuniária ou não que o legislador esteve atento a este contexto de instabilidade monetária
pecuniária), e também no fato de que a interpretação mais restritiva do e procurou introduzir normas na legislação civil que se prestassem a tute-
dispositivo (i.e., prestação pecuniária apenas) não estaria em consonân- lar a questão da repentina e drástica alteração das dívidas em dinheiro. 20
cia com as regras e princípios do ordenamento jurídico, nomeadamen- Os apontamentos trazidos por esta segunda corrente - minoritá-
te, conservação dos contratos, boa-fé objetiva, equilfbrio econômico e ria na dogmática, ao que parece - são persuasivos. De fato, a redação fi-
função social dos contratos. 17 nal do art. 317 é fruto de uma conjugação de esforço legislativo que em
A segunda linha interpretativa é integrada por aqueles autores que sua raiz parece ter buscado dar solução à inequidade superveniente das
confinam o art. 317 ao território das obrigações pecuniárias 18 e justifi- prestações em dinheiro, dado o ambiente de corrosiva inflação de pre-
cam sua posição a partir de interpretação sistemática, histórica e tam- ços vigente no Brasil da época - ainda que nessa tentativa tenha descu-
bém literal do dispositivo. Literal porque a redação do comando legal rado da necessária reflexão quanto à integração harmônica do art. 317 à
empregaria expressões que remetem claramente a questões envolvendo estrutura do Código Civil, em particular a coexistência do art. 317 com
dívidas em dinheiro, como "corrigir" e "valor real da prestação". Alegam os arts. 478 a 480. Mas daí a sustentar que o intérprete deveria restringir
ainda, do ponto de vista orgânico e estrutural do Código Civil, que não o alcance da norma, ignorando o comando legal - que se refere generica-
se poderia admitir a aplicação irrestrita do art. 317 na medida em que mente à "prestação devida", sem distinção quanto ao tipo da prestação -,
existe regra específica na codificação civil para tratar do desequilfbrio para aplicá-la somente às obrigações de dinheiro, vai uma boa distância.
contratual superveniente em obrigações de natureza não pecuniária, lo- Primeiro, porque no processo de discussão legislativa do art. 317,
calizada nos arts. 478 a 480, sendo esses remédios revisionais distintos e apesar das discussões terem girado em torno da desvalorização da mo-
inconfundíveis com o previsto no art. 317. Aceitar, portanto, a aplicação eda (onde hoje se lê "motivos imprevisíveis", na formulação original lia-
simultânea desses dois grupos de artigos para a mesma situação fática -se "desvalorização monetária"), fato é que a vontade final do legislador
seria sobrepor regras e resultaria, em última análise, na própria negação que acabou prevalecendo foi a que confere maior alcance ao dispositivo
do instituto da resolução da onerosidade excessiva. 19 no que toca às causas motivadoras do desequilfbrio do contrato. O pare-
Por fim, argumentam estes autores que o próprio histórico do pro- cer do relator da comissão responsável pelo projeto no Senado,Josaphat
cesso legislativo do art. 317 conduz à conclusão de que esse dispositivo se Marinho, atesta essa afirmação: "Outros fatores, e imprevisíveis, pode-
aplicaria somente às obrigações pecuniárias. Neste contexto é lembrado rão ocorrer, gerando o desequilfbrio das prestações e justificando o re-
que, durante as discussões do Projeto de Código Civil, principalmente ajustamento dela".
nas décadas de 80 e 90, a economia brasileira vivenciava uma galopante Segundo, porque uma interpretação restritiva somente pode ter lu-
inflação, com a desvalorização monetária sendo objeto de grande preo- gar quando a expressão literal da regra vem a conduzir a uma indeseja-
cupação da política econômica do país de então. Com efeito, as sucessi- da amplitude que, em vez de proteger interesses, os prejudica, de modo
que a limitação dos efeitos da norma é medida que acaba se impondo. 21
contratos e atos unilaterais, v. 3 (e-book), 14ª ed., São Paulo: Saraiva, 2017, p. 61 e 62; e Renan No caso, o prejuízo, porém, se mostra ausente. O mecanismo de revisão
Lotufo, Código ... , p. 228 e 229. .
17 Cf. Francisco Paulo De Crescenzo Marino, Revisão contratual: onerosidade excessiva e mo-
dificacão contratual equitativa, São Paulo: Almedina, 2020, p. 26. 20 Para um relato detalhado do processo legislativo, d. Laura Coradini Frantz, Revisão ... , p. 11-15.
Identificam-se com esta corrente, exemplificativamente, Antonio Junqueira de Azevedo, 21 "Uma interpretação restritiva ocorre toda vezquese limita o sentido da norma, não obstante a
"Relatório brasileiro sobre revisão contratual apresentado para as Jornadas Brasileiras da am~lit~d~ de sua expressão literal. Em geral, o intérprete vale-se de considerações teleológicas
Associação Henri Capitant", in Novos estudos e pareceres ~e-direito privado, São Pau~º: e ax1olog1cas para fundar o raciocínio. Supõe, assim, que a mera interpretação especificadora
Saraiva, 2009, p. 187; Francisco Paulo De Crescenzo Marino, Rev1sao ..., p.25 e 2~; Laura Cora~m1 não atinge os objetivos da norma, pois lhe confere uma amplitude que prejudica os interesses
Frantz, Revisão ... , p. 14; e Patrícia Sá Moreira de Figueiredo Ferraz, A onerosidade excessiva ª? i~vés de protegê-los. Assim, por exemplo, recomenda-se que toda norma que restrinja os
na revisão e extinção dos contratos: a concorrência na aplicação das regras dos arts. 317 e d1re1tos e garantias fundamentais reconhecidos e estabelecidos constitucionalmente deva
478 do Código Civil vigente (dissertação), São Paulo: Faculdade de Direito da Universidade ser interpretada restritivamente. O mesmo diga para as normas excepcionais: uma exceção
de São Paulo, 2014, p. 92. . . _ deve sofrer interpretação restritiva" (Tercio Sampaio Ferraz Junior lntroducão ao estudo do
As observações são emprestadas de Francisco Paulo De Crescenzo Manno, Rev1sao ... , p. 30 e 31. direito: técnica, decisão, dominação, 3ª ed., São Paulo, Atlas, 20;1, p. 291).·
19
534 - Os INSTITUTOS DE REVISÃO CONTRATUAL DO CóOIGO Civil DE 2002 E o ACORDO DE SÓCIOS RAFAEL 5ETOGUTI J. PEREIRA - 535

contratual previsto nos arts. 4 78 a 480 aparenta ser muito mais voltado e a interpretação finalística de institutos jurídicos25, p~iorizam a manu-
à resolução por onerosidade excessiva (modo de extinção do contrato) tenção do contrato em detrimento de sua extinção. E, portanto, nesse
que à revisão (modo de preservação do contrato), ostentando essa última, contexto que o art. 317 é empregado como porta de entrada para a ex-
nesse conjunto de artigos, papel meramente secundário, deixando um tensão do direito revisional ao devedor, na medida em que sua genéri-
espaço vazio no Código Civil para um instrumento de revisão contra- ca redação permite a interpretação segundo a qual qualquer contratante
tual efetivo e democrático, o qual se entende preenchido pelo art. 317. 22 pode pleitear a revisão do contrato ("poderá o juiz corrigi-lo, a pedido
Os arts. 478 a 480 também têm sua própria quota de controvér- da parte"). Teria o art. 317, assim, uma função "corretiva dos arts. 478 a
sias. A principal delas refere-se à interpretação extensiva do art. 4 79, que 480, para garantir a revisão mesmo na hipótese dos contratos bilaterais,
é almejada por porção relevante de doutrinadores, com o propósito de ao contrário do que sugeriria a leitura isolada daqueles dispositivos" 26 .
conferir legitimidade também ao devedor para realizar a oferta de modi- Muitos criticam a ampliação de efeitos almejada para o art. 317,
ficação equitativa do contrato. Trata-se de hipótese à qual a literalidade com o argumento de que ele e os arts. 478 a 480 referem-se a figuras
dos dispositivos a princípio não conduz. Afinal, nos termos do art. 478, autônomas e inconfundíveis entre si e que, portanto, deveria ser respei-
diante de uma situação de desequilíbrio contratual, "poderá o devedor tada a sistemática pensada pelo legislador para o Código Civil no que
pedir a resolução do contrato", com o art. 479 preceituando na sequência diz respeito aos remédios revisionais. Francisco Paulo De Crescenzo
que o réu na referida ação de resolução do contrato - i.e., o credor po- Marino pontua que "[s]e é verdade que o vocábulo polissêmico 'revisão'
derá oferecer a modificação equitativa das condições do contrato. Porém, pode eventualmente ser empregado para designar ambas as hipóteses, é
apesar da literalidade do art. 479 restringir de modo explícito o remé- igualmente verdade que a necessária precisão (sem mencionar a distin-
dio revisional apenas ao credor, porção relevante da doutrina23 e juris- ção de regime) impõe segregar o mero reajuste ou correção de valores,
prudência24 constrói entendimento no sentido de admiti-lo ao devedor. de um lado [art. 317], da mais ampla modificação dos termos do con-
A principal justificativa empregada pela referida vertente jurídica se trato, de outro [art. 478]. Naturalmente, a norma reguladora de mero
escora no fato de os arts. 478 a 480 estarem centrados na figura da re- reajuste ou correção não constituirá base suficiente para ampliar os ca-
solução contratual por onerosidade excessiva, estando relegado à revisão sos de modificação expressamente previstos em lei". 27
contratual papel secundário e subsidiário. A ordem jurídica - prossegue Outros fatores invocados pelos que defendem o alargamento dos
a referida corrente doutrinária - deveria dar prioridade ao remédio re- limites de aplicação do art. 479, para permitir o pedido revisional pelo
visional. Isso porque os novos valores e princípios que informam o di- devedor, são igualmente rebatidos por Francisco Paulo De Crescenzo
reito dos contratos contemporâneo, como a conservação dos contratos Marino, como observância aos princípios da conservação dos contra-
tos, equihôrio econômico, função social do contrato e boa-fé; necessi-
22 Francisco Paulo de Crescenzo Marino coloca-se em sentido contrário ao ora esposado, pois, dade de salvaguarda da isonomia supostamente existente entre credor e
para professor das Arcadas, a admissão da incidência do art. 317 às obrigações não pecuniárias
é legitimadora de interpretações equivocadas a respeito da aplicação dos arts. 478 e 479, devedor; argumento "a maiore ad minus" (quem pode o mais - resolver
nomeadamente a legitimidade ativa do devedor de pleitear a resolução por onerosidade
excessiva. A extensão ao devedor do direito de se exigir o reequilíbrio contratual, segundo o
-, pode o menos - rever); admissibilidade, pelo Código Civil, de meca-
professor, romperia com a dinâmica de poderes e contrapoderes desenhada pelo legislador nismos de revisão contratual nos contratos de empreitada e seguro por
para devedor e credor e cristalizada nos arts. 478 e 479 (cf. Revisão ... , p. 24-32).
23 V. Anderson Schreiber, Equilíbrio ... , p. 245 e 246; Antonio Junqueira de Azevedo, "Relatório ...",
p. 193; Antônio Pedro Medeiros, Revisão e resolução do contrato por excessiva onerosidade,
Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 141; Araken de Assis, Comentários ao código civil brasileiro: 25 Anderson Schreiber propõe a releitura de institutos jurídicos por meio de uma "perspectiva
do direito das obrigações (em coautoria com Ronaldo Alves de Andrade e Francisco Glauber remediai", que prestigia "a efetiva concretização dos fins da ordem jurídica, ainda que por
Pessoa Alves), v. V, Arruda Alvim e TherezaAlvim (coords.), Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 705; mais de uma via, cumulativa ou alternativamente colocadas à disposição do intérprete. [...]
José de Oliveira Ascensão, "Alteração das circunstâncias e justiça contratual no novo código Quando se examina, por exemplo, a questão do desequilíbrio contratual superveniente sob
civil", in Revista CEJ, nº 25, abr./jun., 2004, p. 64; e Paulo Roberto Roque Antonio Khouri, A uma perspectiva remediai, algumas novas vias interpretativas se revelam" (cf. Equilíbrio ..., p.
revisão ... , p. 122. 245e246).
24 Cf., nesse sentido, TJSP, Apelação nº 0027175-87.2010.8.26.0011, Des. Rei. Hugo Crepaldi, d.j. 26 V. Anderson Schreiber, Equilíbrio ... , p. 248.
04/09/2014; e TJMG, Apelação nº 1.0071.06.028611-o/001, Des. Rei. Marcelo Rodrigues, d.j. 27 Cf. Revisão ... , p. 31. No mesmo sentido, v. Patrícia Sá Moreira de Figueiredo Ferraz, A onero-
13/02/2008 (julgados extraídos de Francisco Paulo De Crescenzo Marino, Revisão ..., p. 23). sidade ..., p. 98 e 104.
536 - ÜS INSTITUTOS DE REVISÃO CONTRATUAL DO CóDIGO CIVIL DE 2002 E O ACORDO DE SÓCIOS RAFAEL 5ETOGLJTI J. PEREIRA - 537

vontade do devedor; e o fato de a doutrina italiana contemporânea ad- li.A. REQUISITOS DE APLICAÇÃO
mitir a revisão pelo devedor. 28 Embora considerados figuras autônomas, o art. 317 e os arts. 478
É preciso, por fim, apontar, no quadro legislativo nacional, a promul- a 480 ostentam critérios de aplicação comuns, os quais, na lição de
gação da Lei nº 13.874 de 2019 (Declaração de Direitos de Liberdade Antonio Junqueira de Azevedo32 , classificam-se em positivos (i.e., fatos
Econômica), que adicionou o art. 421-A ao Código Civil. 29 Firmada cuja presença abre caminho para incidência do suporte fático à situação
sobre os princípios tradicionais da força vinculativa dos contratos, da em concreto) e negativos (i.e., fatos cuja ausência é necessária para que
autonomia privada e da segurança jurídica, a iniciativa legislativa neste se legitime o exercício do direito de revisão):
ponto, porém, revelou-se um verdadeiro truísmo jurídico, não trazendo Critérios positivos
entendimento que já não estivesse sedimentado na dogmática e na ju-
• o contrato deve ser (a) de execução (1) continuada (ou contra-
risprudência. Alude-se aqui aos critérios autorizadores dos remédios re-
to de duração ou duradouro), (2) diferida, ou até mesmo, em
visionais. Com efeito, a intervenção no contrato para reestabelecimento
casos excepcionais, (3) instantânea; (b) bilateral ou unilateral;
do equihôrio contratual já supunha que o evento superveniente causa-
e (e) comutativo;
dor do desequilíbrio se colocasse fora do espectro normal e esperado de
risco, respeitando-se com isso o sistema de alocação de riscos do con- • deve haver desproporção econômica manifesta da prestação,
trato (inciso "ii"). Da mesma forma, o dispositivo em comento pareceu seja em comparação a si mesma (art. 317), seja em relação à
reafirmar o óbvio ao ditar a excepcionalidade e a parcimônia da revisão contraprestação (art. 478); e
contratual (inciso "iii"), na medida em que esta é a posição defendida • a desproporção há de ser provocada por fatores supervenientes
com larga folga pela doutrina30 e que encontra boa ressonância em nos- à conclusão do contrato e que sejam imprevisíveis.
sos tribunais, que têm se mostrado comedidos e cautelosos na aprecia- Critérios negativos
ção de pleitos revisionais. 31 • o contratante que reclama a revisão não pode estar em mora; e
• o evento que causou a excessiva onerosidade não pode ser con-
siderado como elemento normal e esperado do sistema de dis-
28 Cf. a detalhada crítica da literatura e jurisprudência nacional tecida por Francisco Paulo De tribuição de riscos (i.e., álea) do contrato.
Crescenzo Marino contra a admissibilidade do poder revisionai ao devedorporvia do art. 479
do Código Civil (Revisão ..., p. 32-73). A doutrina ensina que a onerosidade excessiva pode ser aplica-
29 "Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até apre-
sença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os da tanto para os contratos bilaterais quanto para os unilaterais, seja via
regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: 1-as partes negociantes
poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de art. 317, seja via arts. 478 e 480 do Código Civil. Qyestão relevante que
seus pressupostos de revisão ou de resolução; li a alocação de riscos definida pelas partes surge, nesse contexto, é se a onerosidade excessiva seria compatível com
deve ser respeitada e observada; e Ili - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira
excepcional e limitada." a categoria dos contratos plurilaterais, da qual o acordo de sócios é re-
30 A propósito do tema, é certeiro o comentário de Otavio Luiz Rodrigues Jr., Rodrigo Xavier
Leonardo e Augusto Cézar Lukascheck Prado: "O inciso Ili do art. 421-A, rigorosamente,
presentante por excelência. Tal questão, por tocar ao tema das questões
funda-se em lição da doutrina e até dispensaria incorporação ao texto da lei" (cf. "A liberdade problemáticas envolvendo a revisão do acordo de sócios, será enfrenta-
contratual e a função social do contrato", in Comentários à lei da liberdade econômica - Lei
13.874/2019, Floriano Peixoto Marques Neto, Otavio Luiz Rodrigues Jr. e Rodrigo Xavier da com mais vagar no item III infra.
Leonardo (orgs.), São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 324).
31 Conforme apontaAnderson Schreiber, após conduzir ampla pesquisa nos tribunais brasileiros, O desequilíbrio econômico mencionado no art. 317 refere-se à
de 499 decisões examinadas, apenas 131 (um quarto) acataram a alegação de desequilíbrio variação de valor da prestação em si mesma considerada, quando vista em
contratual. E mesmo quando o fazem, mostram nítida preocupação em interferir o mínimo
possível na relação contratual (cf. Equilíbrio ..., p. 70-72). Maria Fernanda Calado de Aguiar fases distintas do contrato (formação e execução). Adota-se a perspec-
Ribeiro Curytambém conduz levantamento semelhante- utilizando-se de critérios e material
sensivelmente distintos daqueles do estudo de Schreiber- e chega a um número ainda menor: tiva de um dos contratantes apenas, independentemente do que o outro
de 427 decisões em que se examinou a configuração ou não de onerosidade excessiva, apenas vá prestar. Diferentemente, a quebra da relação de equivalência prevista
em 23 (5,38%) delas se acatou o pleito revisionai (cf. Onerosidade excessiva em acordos de
acionistas (dissertação de mestrado), São Paulo: Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, 2014. p. 155). 32 Cf. "Relatório ...", p. 191.
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no art. 4 78 ocorre entre prestação e contraprestação, um exame relacio- é permitido ao devedor invocar o art. 4 78 não apenas quando tem sua
nal portanto, que contempla as posições jurídicas do devedor e do credor. própria prestação fulminada pela valorização ou desvalorização excessi-
va em confronto com a contraprestação, mas também quando a contra-
A este respeito,Anderson Schreiber, com suporte na doutrina italia-
prestação da outra parte se deteriorou desmesuradamente, ainda que a
na, observa que ambos os arts. 317 e 478 tratam de desequilíbrio contra-
sua própria prestação tenha restado inalterada.
tual, conceito esse, entretanto, que assume feições diferentes a depender
dos dispositivos legais:"[ ... ] (a) no art. 317 retrata-se um desequilíbrio Ainda sobre o art. 478, convém apontar que seu suporte fático dis-
que pode, como já visto nesta obra, denominar-se desequilíbrio contra- põe de uma particularidade frente ao art. 317. Ele reclama, além dosa-
tual horizontal, verificado a partir do agravamento do sacrifício econô- crifício econômico de uma parte, a "extrema vantagem" da contraparte.
mico imposto ao contratante no tempo - entre o momento da formação Dito de outro modo, para configuração da onerosidade excessiva à luz
do contrato e o momento da sua execução;já (b) no art. 478, tem-se em do art. 478 mostra-se insuficiente que o contratante incorra em sacrifí-
vista um desequilibrio contratual vertical, porque constatado a partir da cio demasiado em comparação ao benefício econômico auferido; deve
comparação entre os direitos e obrigações (lato sensu) recíprocos que com- também a contraparte fazer jus a uma vantagem indevida. Esse segun-
põem o objeto do contrato - seu objetivo é evitar que o contratante sofra do pressuposto do art. 478, tem compreensivelmente despertado severas
sacrifício econômico desproporcional ao benefício econômico obtido". 33 críticas por parte da doutrina moderna. Acusam-no de esvaziar de utili-
dade o mecanismo de revisão contratual do art. 478, dado que em gran-
Assim - tomando-se mais uma vez de emprestado as lições de
de parte das situações de desequilibrio contratual é comum despontar
Schreiber e contando com a indulgência do leitor pela integral citação
prejuízo apenas para uma das partes, sem haver o correspondente ga-
- conclui o autor que "o agravamento do sacrifício econômico que o
nho da contraparte.
contrato impõe a uma das partes [ex vi art. 317] e a desproporção entre
sacrifícios e benefícios econômicos derivados do contrato [ex vi art. 478] Para contornar a questão, levando em conta que não se poderia
são problemas que não se confundem ontologicamente, mas gravitam em simplesmente ignorar a letra da norma, porção considerável da doutri-
torno da mesma exigência valorativa por parte do ordenamento jurídi- na constrói interpretação de que o sacrifício econômico da parte, de um
co: a conservação da proporcionalidade interna do contrato. Sua ocorrência lado, e extrema vantagem da contraparte, de outro, são faces do mesmo
poderá depender de requisitos peculiares, desafiar métodos de aferição fenômeno da onerosidade excessiva, conectados entre si por uma dinâ-
distintos e até suscitar a aplicação de remédios diferenciados [ ... ], mas mica de causa e efeito. A lógica é que a manutenção do contrato em ba-
parece inegável que se está diante de duas faces de um mesmo fenôme- ses iníquas para uma das partes representa, por si só, extrema vantagem
no, que se pode denominar com a expressão mais ampla de desequilíbrio da contraparte, "pois qualquer avença da mesma natureza, celebrada no
contratual superveniente". 34 novo contexto,jamais alcançaria aqueles termos". 38 É dizer: o sacrifício
econômico da parte, tornado excessivo em razão do aumento do custo
Apesar de o art. 478 se referir apenas a "prestação", a doutrina bra-
da prestação por alteração superveniente das circunstâncias, represen-
sileira, calcada no direito italiano, manifesta entendimento de que 0
taria um injustificado ganho ou benefício para a contraparte, pois tivesse
juízo relacional entre sacrifício e benefício econômico pode se dar tam-
essa que ir a mercado para obter a mesma prestação agora, acabaria pa-
bém sob o prisma da contraprestação. É o svilimento (ou aviltamento
gando mais diante da alteração das circunstâncias.
ou envilecimento )35 da contraprestação 36 ou onerosidade excessiva in-
direta37, verificado a partir da desvalorização da contraprestação, a pon- Exige-se para a configuração da onerosidade excessiva, ademais, que
to de se tornar imprestável como contrapartida justa. Isso significa que ela seja objetiva. 39 A qualificadora supõe que a prestação tenha se torna-
Cf. Equilíbrio ..., p. 216.
do excessivamente onerosa per se, e não em relação a determinado deve-
33
34 V. Equilíbrio ..., p. 220.
Para se referir ao fenômeno,Judith Martins-Costa (Comentários ... , p. 249 a 251) adota o termo 38 V. Antônio Pedro Medeiros Dias, Revisão ..., p. 92 e 93, e, em direção semelhante, Laura Coradini
35
"envilecimento", enquanto Anderson 5chreiber (Equilíbrio ... , p. 218) opta por "aviltamento". Frantz, Revisão ... , p. 142.
36 Cf. Judith Martins-Costa, Comentários ... , p. 250 e 251. 39 V., entre outros,Judith Martins-Costa, Comentários ... , p.249; Laura Coradini Frantz, Revisão ...,
Cf. Anderson Schreiber, Equilíbrio ... , p. 218. p. 112 e 113; e Patrícia Sá Moreira de Figueiredo Ferraz, A onerosidade ..., p. 69 e 70.
37
540 - ÜS INSTITUTOS DE REVISÃO CONTRATUAL DO CóDIGO CIVIL DE 2002 E O ACORDO DE SÓCIOS RAFAEL SETOGUTI J. PEREIRA - 541

dor. 40 Não ingressam no juízo do intérprete, ao aferir a presença ou não zes também se digladiam em torno do conceito de eventos extraordiná-
da onerosidade excessiva, fatores subjetivos, associados à pessoa ou às cir- rios e imprevisíveis e, não raro, conferem intepretações opostas diante
cunstâncias particulares do contratante que pleiteia a revisão, como ca- ao mesmo assunto, como no caso da chamada maxidesvalorização do
pacidade de pagamento41 ou vulnerabilidade (informacional, econômica real frente ao dólar46 ou das altas inflacionárias47 •
ou jurídica). 42 Daí decorre que a investigação quanto à existência ou não Diante do quadro caótico que emoldura o tema, Anderson Schreiber
de desequih'brio deve se prender exclusivamente ao objeto do contrato propõe o deslocamento do foco pela doutrina e jurisprudência ao exa-
e suas obrigações, pouco importando a situação particular das partes. 43 me da imprevisibilidade e extraordinariedade para a questão do efetivo
Por fim, reclama a onerosidade excessiva que a desproporção eco- desequih'brio contratual. Aponta o jurista que a abordagem atual - cen-
nômica seja provocada por evento superveniente ao nascimento do con- trada na verificação do que é ou não imprevisível e extraordinário, para
trato que escape à previsibilidade das partes. A matéria é cercada por fins de incidência dos arts. 317 e 478 do Código Civil- apresenta dois
uma profusão de discussões na literatura jurídica. Debate-se se há, ou problemas. Por um lado, ela carece de segurança e científicidade - pois
não, diferença prática entre o requisito de imprevisibilidade insculpido a caracterização do que é um fato previsível ou imprevisível, ordinário
no art. 317 ("motivos imprevisíveis") e o do art. 478 ("acontecimentos ou extraordinário, se mostra, na jurisprudência, excessivamente subjeti-
extraordinários e imprevisíveis"). Igualmente controvertido é se extraor- va e oscilante, evidenciando que essa investigação repousa muito mais
dinariedade e imprevisibilidade seriam ou não sinônimos, o que revelaria sobre o arbítrio do julgador e seus valores pessoais do que qualquer ou-
desnecessária redundância do legislador,44 ou se ostentariam semânticas tra coisa. De outro lado, ela perde de vista o que deveria ser a verdadeira
jurídicas distintas, a exigir dupla qualificação do evento deflagrador do ratio do instituto da onerosidade excessiva: a restauração do equih'brio
desequih'brio contratual no art. 478. 45 No campo dajurisprudência,juí- no contrato.
Em ampla pesquisa jurisprudencial sobre o assunto, pôde o juris-
40 Cf. Francesco Messineo, Dottrina ... , p. 502.
41 A recente crise econômica provocada pela pandemia da COVID-19 inundou o Judiciário com
ta constatar que na grande maioria dos casos a discussão das partes e o
processos de revisão contratual, muitos baseados na perda ou dificuldade da capacidade de processo de convencimento do juiz se mantiveram limitados à classifi-
pagamento. Embora os tribunais tenham se mantido comedidos e cautelosos no deferimento
desses pleitos, as decisões não demonstram um posicionamento claro quanto à inadmissibi- cação de determinado evento como imprevisível ou não, sequer haven-
lidade do exame subjetivo para aferição da onerosidade excessiva, chegando-se, em muitos do uma investigação quanto à presença ou não do efetivo rompimento
deles, a flertar com a verificação da capacidade econômico-financeira do contratante: v., entre
outros, TJSP, Ag. lnt. nº 2072070-83.2020.8.26.oooo, Rei. Marcos Ramos, d.j. 30/06/2020; e do equih'brio do contrato. Em seu levantamento, de 93 acórdãos prola-
TJSP, Ag. lnt. nº 2072338-40.2020.8.26.oooo, Rei. Hugo Crepaldi, d.j. 30/06/2020.
42 Por uma lógica reversa, subsiste a onerosidade excessiva mesmo que o contratante desfavo- tados por tribunais diversos versando sobre desequilíbrio contratual su-
recido pelo abalo no equilíbrio interno do contrato possua recursos para o adimplemento e perveniente, apenas 12 de fato se debruçaram sobre o impacto do evento
queira suportar a perda (v. Ricardo Pereira Lira, "A onerosidade excessiva nos contratos", in
Revista de direito administrativo, v. 159, Rio de Janeiro: FGV, 1985, p. 12). superveniente sobre o equilíbrio do contrato. 48
43 O STJ em diversas ocasiões, ao apreciar pedido de revisão de contrato de financiamento ha-
bitacional pela parte tomadora do empréstimo, com base na alegação de comprometimento Por essas razões que, para Schreiber, o que deveria estar no centro
da renda decorrente da perda do emprego, rejeitou a alegação de onerosidade excessiva, das preocupações do intérprete quando se lida com o instituto da one-
pois não fundada na base objetiva da contrato (Ag. lnt. no Ag. em REsp nº 1340589/SE, Rei. Min.
Raul Araújo, d.j. 23/04/2019; e Ag. lnt. no REsp nº 1.514.093/CE, Rei. Min. Marco Buzzi, d.j. rosidade excessiva seria a preservação do equih'brio do contrato, e não a
7/11/2016). proteção ou não das partes contra acontecimentos que não previram, ou
44 "A previsibilidade deve ser entendida em sentido relativo, como a razoável possibilidade de
representação de um acontecimento incerto, devendo-se reconhecê-la nos eventos ordiná- que não conseguiriam prever, no momento da celebração do contrato.
rios. Todavia, não se pode dizer que os eventos extraordinários sejam sempre imprevisíveis,
podendo existir para estes uma possibilidade de previsão. Com isso, é fácil reconhecer a
prescindibilidade da referência à extraordinariedade do fato, além do requisito da imprevisibi- que as partes não o tenham previsto'); considera-se aperfeiçoado o requisito da imprevisibi-
lidade. Nesse sentido, a referência à extraordinariedade do fato constitui a vontade legislativa lidade quando, embora podendo prever-se o acontecimento, não é antecipável o seu grau de
de imprimir um caráter excepcional ao instituto da resolução, por meio de uma redundância, gravidade" (cf. Ricardo Pereira Lira, "A onerosidade ... ", p. 16).
que so aparentemente restringe a aplicação do instituto" (cf. Laura Coradini Frantz, Revisão ... , 46 STJ, REsp nº 609.329/PR, Min. Rei. Raul Araújo, d.j. 18/12/2012; e STJ, REsp nº 1348081/RS, Min.
p.123). Rei.João Otávio de Noronha, d.j. 2/6/2016.
45 "[ ...] a situação de onerosidade excessiva deve decorrer da verificação de acontecimentos 47 STJ, REsp nº 744.446, Min. Rei. Humberto Martins, d.j. 17/04/2008; e STJ, REsp nº 94.962, Min.
extraordinários e imprevisíveis (É preciso que o acontecimento seja extraordinário e imprevi- Rei. Sálvio de Figueiredo Teixeira, d.j. 25/6/1998 (julgados citados por Anderson Schreiber,
sível: 'Não basta que o acontecimento seja extraordinário, porque, se suscetível de previsão, em Equilíbrio ..., p. 173).
descabe a rescisão. Não basta que seja imprevisível, porque, sendo normal, pouco importa 48 V. Anderson Schreiber, Equilíbrio ..., p. 204.
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542 - ÜS INSTITUTOS DE REVISÃO CONTRATUAL DO CóDIGO CIVIL DE 2002 E O ACORDO DE SÓCIOS

Isso quer dizer que a "imprevisibilidade e a extraordinariedade do acon- Tipo e valor são mais frequentemente tratados na prática contratu-
al e encerram um grau maior de complexidade na realidade dos negó-
t:cimento devem representar não um requisito autônomo, a ser perqui-
ndo em abstrato com base em um acontecimento localizado a maior ou cios. Assim, serão eles analisados brevemente abaixo.
menor distância do impacto concreto sobre o contrato, mas devem, isso Qganto a valor, a hipótese mais comum é a que admite o suplemento
sim, r~st~ intimamente relacionadas ao referido impacto, o qual passa da contraprestação devida pelo credor. De plano, impõe diferenciar aqui
a consistir no real objeto da análise judicial". 49 as obrigações pecuniárias das não pecuniárias. Com relação às primeiras,
paira pouca dúvida sobre a viabilidade de incremento do valor da con-
_Ha~eria, ainda segundo Schreiber, a presunção relativa de que o de-
traprestação, desde que com isso se restaure efetivamente o equilíbrio
sequihôno contratual excessivo, quando constatado, implicaria automa-
econômico.Já quanto às obrigações não pecuniárias, referida solução deve
ticamente a presença da imprevisibilidade e da extraordinariedade dos
ser encarada com um grão de sal, dado que não necessariamente a oferta
~nt:cedentes causais deflagradores do desequihôrio: "O que se afigura
de acrescer valor à contraprestação, pelo credor, representará automático
m~ispensável à atuação da ordem jurídica é que o desequihôrio seja su-
atendimento ao interesse do devedor. Para ilustrar a questão, Francisco
ficientemente grave, afetando fundamentalmente o sacrifício econômico
Paulo De Crescenzo Marino exemplifica com o caso de sócio que assu-
representado pelas obrigações assumidas. Uma alteração drástica e inten-
me a obrigação de integralizar o capital social de determinada sociedade
sa desse sacrifício recai presumidamente sob o rótulo da imprevisibilidade e
com bem imóvel, e esse sofre súbita e radical valorização. A possibilidade
extraordinariedade, pois é de assumir que os contratantes não celebram de o devedor receber maior participação societária pode não ser atrativa
contratos vislumbrando tamanha modificação do equihôrio contratual; a ele, na medida que o seu interesse não pode ser reduzido a mero ajus-
se a tives~em vislumbrado, poderiam ter disposto sobre o tema, para lhe te de valor do bem a ser cóntraprestado (quotas ou ações), mas também
negar efeitos por força de alguma razão inerente ao escopo perseguido deve ser avaliado à luz da alteração da carga de obrigações ativas e passi-
com aquele específico contrato (v.g., deliberada assunção de risco por vas que o devedor terá enquanto sócio com maior participação societária.
uma das partes). Os contratantes sujeitam-se, por essa razão, à presunção de
Nesse sentido, no exame de merecimento ou não do reforço da con-
que não anteciparam a possibilidade do manifesto desequilíbrio - presunção,
traprestação, devem pesar o tipo de contrato - obrigações de forte cunho
em uma palavra,_ de imprevisão -, pela simples razão de que se espera que as
pessoal podem gerar um aumento indesejado na posição ativa ou passi-
partes procurem ingressar em relações contratuais equilibradas".
va a que o devedor se propôs - e as circunstâncias do negócio jurídico,
E nada impediria que essa presunção, de natureza relativa, pudesse como a atividade desempenhada regularmente pelo devedor e o relacio-
ser afastada, se constada a situação de (a) expressa ou (b) tácita e inequí- namento prévio entre os contratantes. 51
voca_ assunção por u:11ª ~as partes do risco que causou o desequihôrio, Há também a possibilidade de redução da prestação do devedor, isto
ou amda (e) desequihôno provocado pela própria conduta do contra-
é, a renúncia pelo credor de parte da prestação - v.g., contrato de trans-
tante vítima da onerosidade excessiva. 50
porte em que se tornou excessivamente oneroso para o devedor pres-
11.B. EFEITOS tar, cabendo então a redução do volume transportado ou a redução do
percurso; ou contrato de empreitada em que houve aumento excessivo
Uma vez preenchidos os critérios autorizadores da revisão contra-
no preço dos materiais, sendo permitido ao empreiteiro entregar por-
tual, resta saber quais os meios (i.e., efeitos da revisão) colocados à dis-
ção menor da obra. Neste caso, deve-se ponderar se (a) a prestação re-
posição do intérprete (quer pelo art. 317, quer pelos arts. 478 a 480 do
duzida do devedor será viável e se o seu interesse persiste mesmo com
Código ~ivil) para restabelecimento do equilíbrio contratual rompido.
a redução da prestação - por exemplo, no caso de fornecimento de toda
As soluçoes propostas costumam dispor sobre o tipo e o valor, bem como
a produção de energia elétrica por uma usina, ou da venda da totalida-
o prazo, o local e o modo de execução da prestação.
de de uma safra, pode ser que o devedor não queira prestar parcialmen-
49 Cf. Andersen Schreiber, Equilíbrio ... , p. 204 e 205. 51 Cf. Francisco Paulo De Crescenzo Marino, Revisão ... , p. 162-164
50 V. Andersen Schreiber, Equilíbrio ..., p. 205-209.
544 - ÜS INSTITUTOS DE REVISÃO CONTRATUAL DO CóDJGO CIVIL DE 2002 E O ACORDO DE SÓCIOS RAFAEL 5ETOGUTI J. PEREIRA - 545

te, em virtude da dificuldade em se encontrar terceiro interessado em O acordo de soc10s representa um instrumento de composi-
adquirir a porção dos bens não consumidos -; e (b) a contraprestação ção de interesses entre sócios que buscam, por meio dele, criar regras
sofrerá redução, afigurando-se tal oferta modificativa ilícita, "dado que disciplinadoras de uma relação societária subjacente. Assim, se trata de
suprime do devedor parte da contraprestação programada, impondo- um contrato, mas um contrato parassocial, 55 o que significa que seus efei-
-lhe desvantagem econômica incongruente com o sentido da oferta de tos são voltados à sociedade, ou a ela de alguma forma relacionados. A
modificação equitativa". 52 constatação é crucial para a compreensão de que incidem sobre o acordo
Por fim, não se vê como possível que se ofereça a alteração do tipo de sócios preceitos e regras não só de direito comum (direito civil), mas
da contraprestação, pois tal medida "extrapola manifestamente os limi- também do direito societário. Isso significa que a autonomia das partes,
tes determinados pela própria relação contratual de base". 53 ainda que encontre abrigo no direito societário e seja considerada prin-
cípio jurídico relevante, é compelida a coexistir com outras regras cujo
111. A REVISÃO DO ACORDO DE SÓCIOS E QUESTÕES caráter cogente supõe a prevalência do interesse coletivo em detrimen-
PROBLEMÁTICAS to do interesse individual. Como resultado, a liberdade contratual tradi-
O acordo de sócios 54 pode ser definido como contrato celebrado en- cionalmente conferida aos particulares pelo direito dos contratos sofre,
tre sócios, com a finalidade de criar, alterar ou extinguir direitos de só- no acordo de sócios, modulações.
cios de natureza (a) patrimonial (compra e venda de ações ou quotas e Tal dualidade de regimes jurídicos a que o acordo de sócios se en-
preferência para adquiri-las; conferência de bens ou dinheiro ao capital contra submetido representa potencial fonte de interferência na interpre-
social; pagamento de dividendos; e empréstimo de recursos à socieda- tação e aplicação dos institutos de revisão contratual (arts. 317, e 478 a
de) e (b) política (exercício do direito de voto, ou do poder de contro- 480 do Código Civil), mostrando-se relevante examinar e compreender
le), em uma sociedade. o funcionamento e os efeitos dos mecanismos de revisão contratual no
Trata-se de ferramenta que regula a conduta de seus signatários, por acordo de sócios. Com este objetivo em mente, é preciso analisar as ca-
meio da imposição de obrigações, em sua maioria, defazer e de não fazer: racterísticas do acordo de sócios: consiste ele em contrato 56 não solene, 57
(a) concluir um contrato ou abster-se de conclui-lo (compra e venda de
ações e preferência para adquiri-las); (b) emitir declaração de vontade ou
abster-se de emiti-la (exercício do direito de voto ou do poder de contro- 55 A designação "parassocial" deriva da obra pioneira de Giorgio Oppo, Contratti parasociali,
Milano: Vilardi, 1942.
le em assembleia); e (e) praticar ou não praticar atos (exercício do poder 56 Embora haja posição doutrinária que vislumbre diferenças relevantes entre acordo e contrato (v.,
de controle na direção das atividades sociais e orientação do funciona- exemplificativamente, Emílio Betti, Teoríageneral dei negocio jurídico, 2ª ed., Madrid: Revista
de Derecho Privado, 1959, p. 225), tal distinção atualmente encontra-se superada pela sua falta
mento dos órgãos da companhia; pagamento de dividendos). Embora de utilidade, conforme ensina Ronaldo Porto Macedo Junior: "O que se observa no âmbito
do direito social é o fato de que os contratos que visam a regulação de situações concretas
menos frequente, pode o acordo também comportar obrigações de dar passam cada vez mais a ter um caráter também normativo à medida que visa regular a proje-
(conferência de bens ou recursos ao capital social; e mútuo à sociedade). ção de trocas no futuro de longo prazo. Os contratos passam, pois, a ter um caráter também
constitucional, processual e normativo, o que acaba por diluira distinção entre os dois conceitos
[contrato e acordo]. À medida que entra em crise o pressuposto neoclássico da existência de
interesses antagônicos nas relações contratuais, começa também a perder funcionalidade a
distinção dogmática entre contrato e acordo" (Contratos relacionais e defesa do consumidor,
52 Cf. Francisco Paulo De Crescenzo Marino, Revisão ..., p. 165 e 166. 2ª ed., São Paulo: RT, 2007, p. 70). Para ampla referência bibliográfica acolhendo a posição
53 V. Francisco Paulo De Crescenzo Marino, Revisão ... , p. 164 e 165. ora defendida, v. Rafael Setoguti Julio Pereira, A extinção do acordo de acionistas, São Paulo:
54 Neste artigo adotaremos a expressão "acordo de sócios" para nos referirmos a todos e quaisquer Quartier Latin, 2019, p. 25 e 26, nota de rodapé 18.
contratos celebrados entre sócios de uma sociedade limitada ou sociedade anônima, que visem 57 "Dizem-se solenes os contratos que só se aperfeiçoam quando o consentimento é expresso
o exercício de direitos decorrentes de sua posição jurídica de sócio ou a convivência no seio pela forma prescrita na lei. Também denominam-se contratos formais" (cf. Orlando Gomes,
social, quer aqueles com objeto típicas- acordos cujo objeto contemple as matérias arroladas Contratos, 18ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 77). Não se pode considerar assim o acordo
no art. 118 da Lei nº 6.404/76 e que, com isso, gozam de eficácia reforçada (i.e., oponibilidade de sócios um contrato solene, em virtude de a lei não exigir, para sua validade, forma escrita.
perante terceiros) - quanto os não típicos- pactos celebrados entre sócios que não contêm as O que sucede é que, caso não sejam seguidas as formalidades prescritas em lei, ele não gozará
matérias elencadas no dispositivo legal, se submetendo ao regime geral dos contratos e não de eficácia perante terceiros-regime jurídico especial conferido pelo legisladorsocíetário ao
dispondo dos efeitos societários assegurados pelo art. 118. acordo de sócios-, mas guardará eficácia entre as partes.
546 - ÜS INSTITUTOS DE REVISÃO CONTRATUAL DO CóDIGO CIVIL DE 2002 E O ACORDO DE SÓCIOS RAFAEL 5ETOGUTI J. PEREIRA - 547

de execução continuada, comutativo, definitivo ou preliminar5 8 (a depen- aplicam-se aos acor~os d~ sócios autentica~e_nte pl~ril~~erais, pois re-
der de seu objeto), parassocial, plurilateral, intuitu personae e relacional. 59 presentam a categoria mais recorrente na pratica soc1etana.
Das características mencionadas, sobressaem em importância para Contrato plurilateral é aquele em que duas ou mais partes (ou cen-
o presente estudo a plurilateralidade e a parassocialidade do acordo, no- tros de interesses) estabelecem direitos e obrigações entre si, orientados
tas que influenciam o funcionamento e os efeitos da revisão contratu- por um escopo comum. Trata-se de categoria contratual que não se es-
al do instrumento. Passemos, pois, a examiná-las em detaJhes abaixo. trutura sob a clássica dinâmica de prestação e contraprestação, típica dos
contratos bilaterais e eventualmente dos unilaterais, a chamada recipro-
Ili.A. A PLURILATERALIDADE DOS ACORDOS DE SÓCIOS
cidade ou correspectividade (designado também de sinalagma imediato
Antes de prosseguir no exame da plurilateralidade propriamente, ou direto) de prestações. Antes, organiza-se sob o espírito da cooperação
mostra-se apropriado esclarecer que o desenvolvimento das lições a se- - os interesses não estão contrapostos, e sim compostos. 62
guir adotará como premissa a natureza plurilateral dos acordos de sócios. A classificação tem origem na teoria do contrato plurilateral, pri-
A ressalva é relevante na medida em que há construção dogmática que morosamente desenvolvida no direito brasileiro por Tullio Ascarelli, 63
conecta umbilicalmente a natureza bilateral ou unilateral do acordo de segundo a qual inexistiria, para os contratos plurilaterais, o sinalagma
sócios à presença de determinado conteúdo - i.e., acordos de controle e típico dos contratos bilaterais, traduzido na equivalência entre as pres-
os de voto seriam contratos plurilaterais, e acordos de compra e venda de tações assumidas pelas partes e na substituição recíproca em seus res-
ações ou de direito de preferência seriam contratos bilaterais ou unilate- pectivos patrimônios. Aqui, o sinalagma opera de forma distinta, pois é
rais. 60 Essa rejeição de plano da natureza plurilateral dos acordos, como representado pelo que determinada parte prestou em confronto com o
tivemos a oportunidade de demonstrar em outra ocasião, 61 sugere uma que todos os demais contratantes contraprestaram rejeita-se, para este
postura demasiadamente inflexível, aferrada a categorias estanques, que tipo jurídico, a ideia de equivalência entre a prestação de uma das par-
ignora a dinamicidade e fluidez do acordo de sócios. A própria realida- tes perante a outra, individualmente consideradas. Nos contratos pluri-
de social tem referendado tal posição. Nela se tem identificado presen- laterais a busca pela comutatividade se faz pela posição que o indivíduo
te uma tendência crescente de aproximação de todo o gênero do acordo ocupa frente a todos os demais. 64 Nas palavras de Ruy Rosado de Aguiar
de sócios à categoria dos contratos plurilaterais: dos interesses em co- Júnior, "apesar de as prestações não serem dadas a uma pela outra, mas
mum das partes até a independência de vínculos, passando pela função reunidas e dirigidas a um fim comum", é possível vislumbrar "o víncu-
organizativa e normativa, todos esses elementos configuradores de uma lo sinalagmático entre a prestação de cada um frente à de todos os ou-
relação plurilateral vêm apontando para a consagração do acordo de só- .
tros, 'funcionando estas, no seu conJunto, como contraparte daque1as ,,, .6s
cios como um contrato estruturalmente unilateral, bilateral ou plurila-
A relação plurilateral dispõe, portanto, de um sinalagma, mas que
teral, mas que, em essência e funcionalmente, é plurilateral.
não é direto e imediato tal qual nos contratos bilaterais, mas indireto e
Desse modo, dados os apertados limites deste trabaJho para serem mediato. A reciprocidade e a interdependência entre as prestações, no
examinadas todas as hipóteses de acordo de sócios, as lições ora tecidas contrato plurilateral, manifestam-se na relação entre a prestação de cada
parte e as de todas as outras, que funcionam, em conjunto, como con-

58 Contrato preliminar é a "convenção pela qual as partes criam em favor de uma delas, ou de cada 62 "Anche la posizione delle parti, che dovrebbe imprimere il carattere peculiare ai e.d_. contrato
qual, a faculdade de exigir a imediata eficácia de contrato que projetaram" (Orlando Gomes, plurilaterale, e che sarebbe di antagonismo di interessi, e fa}sam~nte ra~presentata, in q~an~o,_
Contratos, p. 135). nell'atto in cui i contraenti stringono il rapporto, non pua ma1 esserv1, fra coloro, ant1tes1 d1
59 Em linhas gerais, Antonio Junqueira de Azevedo define contrato relacional como aquele interessi, poiche il contrato genera, per definizione, La composizionefra interessi" (Francesco
contrato de longa duração e que exige colaboração constante ("Considerações sobre a boa- Messineo, Dottrina ... , p. 46).
-fé objetiva em acordo de acionistas com cláusula de preferência: excertos teóricos de dois Cf. "O contrato plurilateral", in Problemas das sociedades anônimas e direito comparado, 2ª
pareceres", in Novos estudos e pareceres de direito privado, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 124). ed., São Paulo: Saraiva, 1969.
60 V., dentre outros, Nelson Eizirik, A lei das S/Acomentada, v.11, 2ª ed., São Paulo: Quartier Latin, Cf. Tullio Ascarelli, "O contrato ...", p. 277.
2015, p. 266. Cf. Ruy Rosado Aguiar Júnior, Extinção dos contratos por incumprimento do devedor, Rio de
Cf. Rafael SetogutiJulio Pereira, A extinção ... , p 49 e ss. Janeiro: Aide, 1991, p. 87.
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tra~artida da primeira. 66 Por isso que se diz que a troca de prestações econômico com a existência de proporção entre prestação e contrapres-
aqm não sucede de maneira direta entre as partes, tal qual nas relações tação ou entre a própria prestação ao longo de determinado período de
de intercâmbio. 67
tempo. Mas ele parece ser insuficiente quando transposto para a relação
Daí ~u~ cada parte é devedora e credora uma da outra na relação pluri- plurilateral, visto que nela o equilíbrio econômico é complexo e multi-
lateral, existindo um vínculo débito-crédito indireto entre elas todas. 68 facetado, e identificá-lo - para se verificar se ele foi rompido, ou não, e
. Walter Moraes, em primoroso estudo sobre o sinalagma indireto, determinar o alcance da revisão - exige ir além do confronto do sacrifí-
ensma que a contraprestação a ser recebida pelo devedor do credor (ou cio econômico do devedor no tempo (desequihbrio contratual horizon-
credores) não é a mesma prestação paga pelo devedor individualmente tal) ou do sacrifício econômico do devedor com o respectivo benefício
considerado, mas um resultado, um benefício em decorrência do que foi econômico (desequih'brio contratual vertical) - benefício esse, a propó-
p_res~ado.,,No ensinament? d? respeitável magistrado e jurista, a palavra sito, que por se tratar de relação plurilateral advirá das contraprestações
mdrreto ~ste_nta duplo significado. Da perspectiva subjetiva, o sinalag- de todas as demais partes (credores), e não de apenas uma. Com efeito,
ma se faz mdrreto porque a satisfação do crédito não se dá por inter- a preocupação adicional que deverá ocupar a mente do intérprete, para
médio de um devedor individual, mas pelo conjunto de devedores. Sob verificação da admissibilidade e da extensão dos efeitos do remédio re-
o prisma objetivo, o sinalagma é indireto porque o que se recebe como visional, reside em avaliar se a revisão afetará também as posições ju-
co_ntrap~rtida das prestações realizadas corresponde ao proveito econô- rídicas dos demais contratantes - afinal, no contrato plurilateral todos
mico u~orme em que elas foram transformadas, obtido graças à ação são credores e devedores entre si-, e se o escopo comum restará com-
cooperativa das partes - e não em razão de suas prestações uti singuli. 69 prometido uma vez reequilibrado o contrato.
Dessa dinâmica do sinalagma indireto e mediato irradiam conse- Dito de outro modo, o exame da admissibilidade da revisão do acor-
quências determinantes ao funcionamento e aos efeitos da revisão con- do de sócios e a eleição dos meios para restauração do equihbrio contra-
tratual no acordo de sócios. tual devem necessariamente passar pela consideração da universalidade
Como visto no item II supra, cuida o fenômeno da revisão contratu- de direitos e obrigações de todas as partes do contrato plurilateral que é
al da restauração do equilfürio econômico interno do contrato, quer isso o acordo de sócios, não cabendo uma análise circunscrita ao polo subje-
em uma perspectiva do agravamento econômico imposto ao contratante tivo do devedor que se julga afetado pela onerosidade excessiva. Se assim
no tempo (desequihbrio contratual horizontal, insculpido no art. 317 do não se fizer, corre-se o risco de reparar uma injustiça no contrato para
Código Civil), quer em uma perspectiva da desproporção entre o sacri- desencadear outra, talvez até mais grave, na medida em que o acordo de
fício econôm!co ~o contratante e ~ benefício econômico por ele espe- sócios plurilateral constitui um feixe complexo de poderes e contrapo-
rado (desequihbno contratual vertical, disposto no art. 478 do Código deres relacionados entre si, meticulosamente calibrados pelos contratan-
Civil). Tal raciocínio se coloca adequado e abrangente para a relação bi- tes. Seria a situação do cobertor curto.
lateral ou unilateral, pois a partir dele busca-se identificar o equihbrio Há outra característica relevante dos contratos plurilaterais capaz
66 "!---] la :sencia de_l contrato re~íproco ~o ha de limitarse de manera que sólo pueda tener por de influenciar o funcionamento do mecanismo revisional, em particu-
fin un intercamb10 de prestacmnes, sino que su esencia exige únicamente que cada una de
las par~es prometa sus ~~estaciones para que también las otras se obliguen, 0 sea como con-
lar na sua interação com o direito à resolução por onerosidade excessiva
trapa_rt1da o remuneracmn de la co~t~aprestación [... ]" (Ludwig Enneccerus, Theodor Kipp, e (art. 478). Trata-se de sua estrutura aberta, que permite aos contratan-
Martin Wolff, Tratado de derecho crvrl: derecho de obhgaciones, v. 2, t.11, Barcelona: Bosch
1935, p. 390, nota 5). ' tes ingressarem ou se retirarem do contrato sem que o negócio jurídico
A id,~ia foi esposada magistral e pioneiramente, entre nós, porTullio Ascarelli (cf. "O contra- seja ameaçado de extinção, salvo se o fim comum se tornar impossível. 70
to ... , p. 2c:io), e encontra boa ressonância na mais autorizada doutrina: cf. Luiz Gastão Paes de
B~rr?s lea':s, :R_esolução de acordo de acionistas por quebra de offectiosocietotis", in Temas de Tal prerrogativa possibilita ao devedor que sofreu a excessiva onerosi-
direito societano e empresarial contemporâneos- liber amicorum Prof. Dr. Erasmo Valladão
Azevedo e Novaes França, Marcelo Vieira von Adamek (coord.), São Paulo; Malheiros 2011 p. dade, não desejoso de prosseguir com o acordo de sócios - quer porque
448 e 449; e Ruy Rosado Aguiar Júnior, Extinção ..., p. 86 e 87. ' ' as possíveis soluções para restabelecimento do equihbrio contratual não
68 V. Walt:r Moraes, Sociedade civil estrita, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 275 .
69 Cf. Sociedade ... , p. 279.
70 Cf. Tullio Ascarelli, "O contrato ... ", p. 283 e 284.
550 - Os INSTITUTOS DE REVISÃO CONTRATUAL DO CóDIGO Civil DE 2002 E o ACORDO DE SÓCIOS
RAFAEL 5ETOGUTI J. PEREIRA - 551

lhe interessam objetivamente, quer porque o reequilíbrio econômico dei- sua aplicação a este tipo de contrato. Ponderações de ordem societária
xou de ser viável -, resolver o seu vínculo jurídico e se retirar do acordo também devem ser contempladas no juízo do intérprete, a quem cabe
de sócios, sem que o seu desligamento implique a extinção do acordo assegurar a conformação dos requisitos e dos efeitos de tais institutos
para aqueles que ficam. É a resolução parcial subjetiva, isto é, a resolução jurídicos à lógica societária subjacente aos acordos de sócios.
do vínculo obrigacional que liga uma pessoa ou uma parte ao contrato. 71 É O caso já referido acima, 75 envolvendo acordo de sócios em que
Neste contexto poderá também o devedor solicitar a extinção par- um de seus membros se obriga a integralizar o capital social de socie-
cial de obrigação que se tenha tornado excessivamente onerosa. É o que dade com imóvel que sofre repentina e considerável valorização em vir-
chega a propor Antonio Junqueira de Azevedo em caso envolvendo tude de evento extraordinário e imprevisível. A solução mais intuitiva
contrato de consórcio, quando uma das consorciadas passou a suportar para se restabelecer o equilíbrio contratual, na espécie, seria suplementar
desmedido sacrifício econômico por conta da alteração superveniente a contraprestação, por meio do incremento da participação que o sócio
das circunstâncias, dada a obrigação assumida por ela de custear deter- receberia na sociedade. Tal medida, contudo, não apenas pode ser ina-
minadas despesas contingentes em benefício das demais consorciadas. 72 dequada aos interesses do devedor - ele talvez não deseje deter maior
Embora se trate de hipótese de resolução, pois há extinção de uma rela- participação do aquela prevista (quer porque passará a ter uma carga
ção obrigacional em específico, seus efeitos assemelham-se àqueles típi- maior de obrigações e responsabilidade, quer porque será exigido dele
cos de um remédio revisional, dado que a parte que pleiteia a resolução maior envolvimento nas atividades sociais) - e dos outros signatários
parcial terá preservada todas as suas demais obrigações e lhe será garan- do acordo - uma fatia maior do capital social pode significar a indese-
tida a permanência no contrato. 73 jada a aquisição pelo devedor de maiores direitos-, mas também pode
frustrar a expectativa dos demais sócios que eventualmente não tenham
111.B. A PARASSOCIALIDADE DOS ACORDOS DE SÓCIOS participado do acordo de sócios, e até mesmo de stakeholders (institui-
O termo "parassocial" foi cunhado por Giorgio Oppo, em sua obra ções :financeiras credoras com contratos com cláusula de composição do
seminal Contratti Parasociali, a partir da observação da relação de coliga- capital social, por exemplo), dada a maior influência que o devedor pas-
ção existente entre o acordo de sócios e o contrato de sociedade. Segundo sará a ter sobre a gestão da sociedade.
a teoria de Oppo, o contrato parassocial representa um negócio jurídico Da mesma forma a parassocialidade deverá ser considerada pelo
(a) distinto do contrato de sociedade, pois baseado em relações individu- aplicador do direito que apreciar pedido de revisão do preço de exercício
ais e pessoais (em oposição às de caráter social derivadas do contrato de de opção de compra ou de opção de venda da totalidade da participação
sociedade); e, ao mesmo tempo, (b) atrelado a uma subjacente relação so- societária de determinado sócio, motivado por alteração superveniente
cietária (existente ou a existir), na medida em que celebrado em paralelo das circunstâncias. Na medida em que essas cláusulas nada mais são, do
ao contrato ou estatuto social, mas sobre esses projetando seus efeitos. 74 ponto de vista funcional, do que autênticos mecanismos de exclusão ou
A parassocialidade é fundamental para se compreender o fenômeno de retirada de sócio, respectivamente, qualquer solução revisional não po-
da revisão contratual do acordo de sócios, visto que não basta a leitura derá simplesmente buscar a reparação do equilíbrio econômico do ponto
meramente obrigacional dos arts. 317, e 4 78 a 480 do Código Civil para de vista meramente contratual Antes, será forçoso que se pondere are-
lação societária subjacente e sejam observados os princípios e regras de
71 Em contraposição à resolução parcial subjetiva, tem-se a resolução parcial objetiva quando
a resolução se dá sobre a obrigação em si, isto é, sobre a posição da obrigação em relação ao direito societário atinentes à apuração de valor da participação societá-
conteúdo do contrato (cf. Antonio Junqueira de Azevedo, "Natureza ...", in Novos ... , p. 367).
72 Cf. Antonio Junqueira de Azevedo, "Natureza ... ", in Novos ... , p. 367-369. ria em casos de exclusão ou retirada de sócio, conforme aplicável, para se
73 Na hipótese de desequilíbrio contratual originário, a supressão da cláusula será caso de invali- assegurar que não ocorre na situação em concreto, por exemplo, abuso de
dade parcial, a partir da invocação do art. 184, que preceitua: "Art. 184. Respeitada a intenção
das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se direito ou violação aos usos e costumes daquele mercado em específico.
esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias,
mas a destas não induz a da obrigação principal." (cf. José Oliveira Ascensão, "Alteração ... ", p.
64).
74 Cf. Contratti parasociali, Milano: Vilardi, 1942, p. 2. 75 Cf. Francisco Paulo De Crescenzo Marino, Revisão ... , p. 163 e 164.
552 - Os INSTITUTOS DE REVISÃO CONTRATUAL DO CóDIGO Crv1L DE 2002 E o ACORDO DE SÓCIOS RAFAEL 5ETOGUTI J. PEREIRA - 553

111.C. RESOLUÇÃO OU REVISÃO DO ACORDO DE SÓCIOS Qµando transposto para a realidade do acordo de sócios, o assunto
. ~11:ª últi~a questão que merece ser explorada diz respeito à adquire novos e complexos contornos. Como visto, o acordo de sócios
existencia ou nao de uma preferência pelo remédio revisiona! frente à plurilateral ostenta múltiplos vínculos de créditOJ e débitos, enfeixados
resolução por onerosidade excessiva no âmbito dos acordos de sócios. em uma intrincada rede de relações econômicas. E, afinal, uma estrutura
que reúne interesses diversos e entrecruzados, com diversas relações in-
Esse debate é assaz controvertido no direito dos contratos. Aqueles76
ternas de equihôrio econômico a serem tuteladas.
que afirmam haver uma predileção pela revisão o fazem fundados no
prestígio conferido pela ordem jurídica ao princípio da conservação dos Interferir nessa enredada estrutura exigirá do intérprete redobrado
contratos, que, embora não positivado de maneira expressa, é passível de cuidado com a aplicação dos meios conducentes ao reequihôrio contratual
se: ~xtraído a partir de determinados institutos que figuram no Código (v.g., redução da prestação, suplementação da contraprestação, extinção
Civil, como no caso de conversão do negócio inválido (art. 170), 77 in- parcial de obrigação etc.). Porém, esse desafio de encontrar solução que
validade parcial do negócio (arts. 183 e 184), 78 abatimento de preço em assegure a preservação do acordo de sócios (i.e., a revisão contratual), não
caso de vicio redibitório (art. 442)79 e evicção parcial (art. 455), 80 entre autoriza que o aplicador do direito se furte ao enfrentamento da questão.
outros. Assim, segundo a vertente dogmática, a resolução deveria ceder Pelo contrário, a dificuldade no trato da matéria exigirá um esfor-
cami~o p_ara a revisão sempre que o contrato, uma vez reequilibrado, ço interpretativo ainda maior, e, quer parecer, com vistas a uma solução
puder realizar concretamente o interesse comum das partes ali consubs- que na medida do possível viabilize a preservação do acordo. Isso por-
tanciado, restando a resolução como remédio subsidiário ou ultima ra- que o acordo de sócios assume a função de instrumento normativo das
tio, aplicável apenas quando a revisão nesses termos não seja possível".81 relações societárias, assegurando estabilidade e previsibilidade ao funcio-
Outros juristas, a seu turno, enfatizam que resolução e revisão se- namento da sociedade como organização que congrega recursos e es-
riam remédios concorrentes, não se conseguindo afirmar, de antemão, forços de seus consócios para a persecução de um escopo comum e a
que a revisão consistiria na melhor alternativa. Tal raciocínio tem por partilha dos resultados daí originados. Nesse particular, parece preferí-
pano de fundo a constatação de que o reequiHbrio surte efeitos distintos vel que, diante da alteração superveniente de circunstâncias que venham
para as partes: para o devedor se traduzirá em uma vantagem econômi- a abalar o equihôrio econômico interno do acordo de sócios, opte-se,
ca (redução da sua prestação, complementação da contraprestação etc.), em um primeiro momento, pela revisão, em detrimento da resolução.
ao passo que para o credor implicará "a assunção de um ônus econômi- Afinal, o remédio resolutório é medida traumática - porque interrompe
co adicional em relação ao programa contratual originário". 82 o programa contratual acordado - para os signatários do acordo e tam-
bém para a sociedade. 83
Isso não quer dizer - convém registrar - que a revisão do acordo de
Cf., exemplificativamente, Araken de Assis, Comentários ... , p. 728; José de Oliveira Ascensão
"Alteração ... ", p. 64; e Laura Coradini Frantz, Revisão ..., p. 105. ' sócios deverá ser priorizada a todo custo. Caberá ao intérprete e ao apli-
77 "Art. 170.5:, porém, ~ negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este cador do direito avaliar os elementos concretos do caso posto (o conte-
qua~do o fim_ a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem
previsto a nulidade." údo e a função socioeconômica do negócio jurídico, o comportamento
"Art. 183. A invalidade d? i~strumento não induz a do negócio jurídico sempre que este puder
provar-se por outro meio.' das partes, a observância à boa-fé objetiva, a possibilidade de manuten-
"Ar'.. 18_4. R~speitada a _i~tenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não 0 ção do fim comum, entre outros) a fim de decidir pela viabilidade da re-
preJud1c~ra n~ parte va)1~a, se esta for sepa~áv_el; a invalidad~ da _?brigação principal implica
a das obngaçoes acesso nas, mas a destas nao induz a da obngaçao principal." visão ou pela pertinência do remédio resolutivo.
79 "Art._442. Em vez de rejeitar a coisa, redibindo o contrato {art. 441), pode o adquirente reclamar
abatimento no preço." 83 Mariana Conti Craveiro, ao comentar sobre a inevitável irradiação dos princípios e diretrizes
80 "Art. 455. Se parcial, mas considerável, for a evicção, poderá o evicto optar entre a rescisão que informam o direito societário sobre os contratos entre sócios de cunho patrimonial (em
do c~ntr~to e a restit_uição da parte do preço correspondente ao desfalque sofrido. Se não for particular o dever de lealdade), influenciando a interpretação desse tipo contratual, pontua
cons1deravel, cabera somente direito a indenização." que "no fenômeno societário em exame não é possível apartar duas figuras distintas: o sócio
81 Cf. Anderson Schreiber, Equilíbrio ..., p. 261. e a parte do contrato parassocial, já que a parte do pacto só o é porque é igualmente sócio, e
82 V. Fr_a~cis~o Pau_lo de ~resc_enzo Marino, Revisão ..., p. 48 e 49. Em sentido semelhante, cf. o sócio tem seu conjunto de prerrogativas formatado, daquela maneira e naquela sociedade,
Patnc1a Sa Moreira de F1gue1redo Ferraz, A onerosidade ... , p. 93 e ss. porque é parte do pacto parassocial patrimonial" (Contratos ... , p. 170).
554 - ÜS INSTITUTOS DE REVISÃO CONTRATUAL DO CóDIGO CIVIL DE 2002 E O ACORDO DE SÓCIOS
RAFAEL 5ETOGUTI J. PEREIRA - 555

IV. CONCLUSÃO Diante desse cenário, não surpreende que pouca atenção tenha sido
dada à específica hipótese de revisão dos acordos de sócios, temática que
Como visto ao longo do presente estudo, o fenômeno da revisão dos
reúne, além das questões de direito civil, desafios próprios do direito so-
contratos não é tema novo no direito brasileiro. As primeiras discussões
cietário, dando-se origem, diante disso, a problemas complexos e talvez
sobre ele na literatura jurídica e na jurisprudência da época puderam ser
nunca enfrentados pela dogmática brasileira.
percebidas já no início do século XX. Desde então, a visão inicialmente
refratária à mitigação dos efeitos dos princípios da pacta sunt servanda e A constatação, longe de pretender desestimular aqueles que buscam
da autonomia da vontade aos poucos cedeu espaço às diretrizes de so- se lançar à empreitada de compreender e contribuir para a sistematiza-
cialidade e de justiça acolhidas pelo direito dos contratos moderno, fa- cão do assunto, visa suscitar o seu debate, por meio da demonstração da
zendo, assim, com que a revisão contratual fosse abraçada como remédio ;tilidade de se aprofundar o seu estudo. Como demonstrado, a inter-
jurídico adequado para solucionar o problema do desequiliôrio contra- pretação e aplicação dos remédios revisionais no acordo de sócios sur-
tual decorrente da mudança superveniente de circunstâncias. te efeitos práticos relevantes - tanto diretos quanto reflexos - sobre os
agentes econômicos organizados em estruturas societárias. E uma mera
E foi em meio a esse contexto histórico que a revisão dos contratos
leitura obrigacional nem sempre será eficaz na proteção e conservação
e~c~ntrou positivação no ordenamento jurídico, acolhida pelo Código
desses interesses e direitos de ordem societária.
~i~il de 2002.em seus arts. 317, e 478 a 480. Inspirado no Código Civil
italiano, o legislador brasileiro não só replicou no conjunto dos artigos BIBLIOGRAFIA
478 a 480 do diploma civil as disposições do direito italiano relaciona- AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Extinção dos contratos por incumprimento do
das à resolução e revisão por onerosidade excessiva, mas foi além. No devedor. Rio deJaneiro: Aide, 1991.
art. 317 ele previu um segundo mecanismo de revisão contratual, tendo ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. 2ª
em mente as variações drásticas na economia brasileira e o seu impacto ed. São Paulo: Saraiva, 1969.
na desvalorização das prestações ao longo do tempo. ASCENSÃO, José de Oliveira. "Alteração das circunstâncias e justiça contratual no
novo código civil". ln: Revista CEJ, nº 25, abr./jun., 2004.
Essa aparente sobreposição de normas criou um sistema revisional
ASSIS, Araken de; e outros. ln: ALVIM, Arruda; e ALVIM, Thereza (coords.).
contra.tual singular, sem paralelo no direito comparado, que propiciou Comentários ao código civil brasileiro: do direito das obrigações. V. 5. Rio de
o surgimento de discussões inéditas envolvendo a revisão contratual. Janeiro: Forense, 2007.
Passados 18 anos desde a promulgação do Código Civil, contu- AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Novos estudos e pareceres de direito privado.
do! é forçoso reconhecer uma nítida evolução da doutrina neste campo, São Paulo: Saraiva,2009.
CUJOS esforços científicos contribuíram para um maior esclarecimento e
BESSONE, Darcy. Do contrato - teoria geral. São Paulo: Saraiva, 1997.
sistematização do assunto - ainda que esse continue sendo um terreno BETTI, Emílio. Teoria general dei negocio jurídico. 2ª ed. Madrid: Revista de
tormentoso, onde consensos são raros. Da jurisprudência também é pos- Derecho Privado, 1959.
CARVALHO DE MENDONÇA,José Xavier. Tratado de direito commercial
sível colher um horizonte relativamente alentador: os tribunais têm exi-
COMPARATO, Fabio Konder. "Restrições à circulação de ações em companhia
bido postura ponderada e cautelosa em relação à aplicação do remédio fechada: Nova et vetera". ln: Novos ensaios e pareceres de direito empresarial. 1ª
revisional, o que por si só é meritório, pois com isso se prestigiam os ed. llio de Janeiro: Forense, 1981.
princípios basilares do direito contratual moderno, isto é,pacta sunt ser- CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no direito civil,
vanda e autonomia da vontade - a despeito de, nas decisões, transpare- Coimbra: Almedina, 2013.
cerem inconsistências teóricas relacionadas à aplicação dos dispositivos CRAVEIRO, Mariana Conti. Contratos entre sócios: interpretação e direito
legais de revisão contratual, quadro esse que talvez seja explicado pelas societário. São Paulo: Qrartier Latin, 2013.
próprias incertezas e discussões que rondam o tema. CURY, Maria Fernanda Calado de Aguiar Ribeiro. Onerosidade excessiva em
acordos de acionistas (dissertação de mestrado). São Paulo: Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo, 2014.
556 - ÜS INSTITUTOS DE REVISÃO CONTRATUAL DO CóDIGO CIVIL DE 2002 E O ACORDO DE SÓCIOS RAFAEL 5ETOGUTI J. PEREIRA - 557

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Parte 6
f RUSTRAÇÃO DAS
OBRIGAÇÕES E SEUS EFEITOS
CHRISTIAN SAHB BATISTA LOPES - 561

1. AINDA SOBRE A TAXA LEGAL DE JUROS NO


CóDIGO CIVIL DE 2002

Christian Sahb Batista Lopes 1

1. INTRODUÇÃO
A vida e a economia eram mais simples em 1916 do que no início
do século XXI. Em 2002, entendeu nosso legislador que essa comple-
xificação da vida e da economia deveria ser refletida na norma que tra-
ta da taxa legal de juros. Assim a norma simples, clara, estável e indene
de questionamentos de nosso primeiro Código Civil não serviria mais
para os novos tempos, tendo sido substituída por uma norma que, ao
invés de trazer em seu texto o percentual dos juros legais, define-a por
referência a outra taxa. E começaram, já durante a vacatio legis do então
novo Código, os debates entre os juristas.
A regra insculpida no Código anterior trazia muito claramente a
definição de que a taxa legal de juros era de 6% ao ano. Aplicava-se a três
situações - (i) juros moratórias, quando a taxa não for convencionada,
(ii) juros compensatórios devidos por força de lei ou (iii) juros compen-
satórios convencionados sem que a taxa tenha sido estipulada - como
evidenciam os artigos 1.062 e 1.063 do diploma revogado:
Art. 1.062. A taxa dos juros moratórias, quando não conven-
cionada (art. 1.262), será de seis por cento ao ano.
Art. 1.063. Serão também de seis por cento ao ano os juros
devidos por força de lei, ou quando as partes os convencionarem
sem taxa. estipulada.
A clareza desses dispositivos não ensejava maiores debates. No
Código atual, é o artigo 406 que define a taxa legal de juros, da seguinte
forma:
Art. 406. Qyando os juros moratórias não forem convenciona-
dos, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de
determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver
em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à
Fazenda Nacional.

Professor adjunto de Direito Civil na Universidade Federal de Minas Gerais. Sócio de VLF
Advogados -Vilas Boas, Lopes e Frattari. Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal
de Minas Gerais. Mestre em Direito (LL.M.) pela Columbia University(Nova York). Especialista
em Direito da Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio Vargas.
CHRISTIAN SAHB BATISTA LOPES - 563
562 - AINDA SOBRE A TAXA LEGAL DE JUROS NO CóDJGO CIVIL DE 2002

ciso Ido art. 84 da Lei nº 8.981/953, combinado com o art.13 da Lei


De acordo com esse artigo, a taxa legal se aplicaria também a três
n. 9.065/95, que estipula:
situações: (i) juros moratórios não convencionados, (ii) juros (morató-
Art.13.A partir de 1° de abril de 1995, os juros de que tratam
rios?) forem convencionados sem taxa estipulada ou (iii) juros (morató-
a alínea c do parágrafo único do art.14 da Lei nº 8.847, d~ 28
rios?) provierem de determinação da lei. de janeiro de 1994, com a redação dada pelo art. 6°_ da Lei nº
A redação quanto à hipótese de incidência da taxa legal não é das 8.850, de 28 de janeiro de 1994, e pelo art. 90 da Lei nº 8.981,
mais felizes, o que tentamos indicar por meio do "moratórios" entre pa- de 1995, o art. 84,inciso I, e o art. 91, parágrafo único, alínea ª:2,
rêntese e com ponto de interrogação acima. Qgando o dispositivo le- da Lei nº 8.981, de 1995, serão equivalentes à taxa referencial
gal faz referência a "o forem sem taxa" ou "provierem de determinação do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia - SELIC
da lei", há um sujeito oculto que deveria se referir a "juros moratórias", para títulos federais, acumulada mensalmente.
que é o sujeito da primeira oração. No entanto, a disposição apenas faz Portanto, por determinação legal, a "taxa que [está] e_m vi~~r P,;11"ª a
sentido se suprimirmos o "moratórios" da qualificação do sujeito e con- mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nac1?~al e a taxa
siderarmos que, nas orações que começam com "o forem sem taxa" ou referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custodia- SELIC
"provierem de determinação", o sujeito é apenas "juros". Do contrário, para títulos federais", conhecida como Taxa Selic.. Essa taxa é apurada
os juros moratórias não convencionados apareceriam nas hipóteses (i) e pelo Banco Central do Brasil que a define da segumte forma:
(iii) acima. E, interpretando-se a hipótese (ii) como se referindo apenas Taxa Selic
a "juros moratórias", nosso novo diploma teria excluído a solução para A Selic é a taxa básica de juros da economia. É o principal ins-
os casos em que juros compensatórios são estipulados sem taxa. trumento de política monetária utilizado pelo Banco Central
Essa, entretanto, não é a origem da controvérsia. Em geral, aceita- (BC) para controlar a inflação. Ela influencia to~a: as taxas
-se que o art. 406 estipula a taxa legal de juros, que serve para as mes- de juros do país, como as taxas de juros dos emprestimos, dos
mas hipóteses previstas nos antigos arts. 1.062 e 1.0632 • financiamentos e das aplicações financeiras.
A questão reside na segunda parte do período que define que os ju- A taxa Selic refere-se à taxa de juros apurada nas operações de
empréstimos de um dia entre as instituições financeiras que
ros legais "serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora
utilizam títulos públicos federais como garantia. O BC opera no
do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional."
mercado de títulos públicos para que a taxa Selic efetiva esteja
Verificamos, portanto, que em contrapartida à definição direta feita em linha com a meta da Selic definida na reunião do Comitê
pelo Código Civil anterior, o diploma atual define a taxa legal de juros de Política Monetária do BC (Copom).
por uma referência externa ao sistema de direito privado, ligando-a à taxa Origem do nome "Selic"
que for praticada para a mora de tributos devidos à Fazenda Nacional. O nome da taxa Selic vem da sigla do Sistema Especial de
E justamente nessa referência que reside ainda (mais de dezoito anos Liquidação e de Custódia. Tal sistema é uma infrae~trutura
depois da promulgação do Código Civil) a controvérsia que será abor- do mercado financeiro administrada pelo BC. Nele sao tran-
dada nesse trabalho. sacionados títulos públicos federais. A taxa média ajustada dos
2. A CONTROVÉRSIA EM TORNO DA TAXA LEGAL DE JUROS
Em razão da referência feita pelo art. 406 do Código Civil, é ne-
cessário investigar qual é a taxa de juros que paga o contribuinte em Art a Os tributos e contribuições sociais arrecadados pela Secretaria da Receita Federal,
3 4
mora com a Fazenda Nacional. Essa taxa é, atualmente, fixada pelo in- cuj~s f~tos geradore~ vie~em? ?corr:r a parti~ de 1° d_e janeiro de 1995, não pagos nos prazos
previstos na Iegislaçao tnbutana serao acrescidos de. . .
2 Cf. CAMPINHO, Sérgio. Sobre os juros no Código Civil de 2002. Re1,ista de Direita Empresarial, 1-juros de mora, equivalentes à taxa média mensal de captação do Tesouro Nacwnal relativa
Curitiba, n.3, jan./jun. 2005, p.195-210. p. 199. TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloísa Helena; à Dívida Mobiliária Federal Interna;
MORAES, Maria Celina Bodin de. Código civil interpretada conforme a Constituição da República. (... )
2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 744.
564 - AINDA SOBRE A TAXA LEGAL DE JUROS NO Córneo Civil DE 2002
CHRISTIAN SAHB BATISTA LOPES 565

financiamentos diários apurados nesse sistema corresponde à Art. 161. O crédito não integralmente pago no vencimento é
taxa Selic. 4•
acrescido de juros de mora, seja qual for o motivo determinante
Em continuidade, o Anexo à Circular n. 3.868/2017 do Banco da falta, sem prejuízo da imposição das penalidades cabíveis e
Central do Brasil define a Taxa Selic: da aplicação de quaisquer medidas de garantia previstas nesta
Art.1° (... ) Lei ou em lei tributária.
§ 1° Define-se como Taxa Selic a taxa média ajustada dos § 1° Se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora
financiamentos diários apurados no Sistema Especial de são calculados à taxa de um por cento ao mês.
Liquidação e de Custódia (Selic) para títulos públicos federais. Este foi o posicionamento adotado pelo Centro de Estudos
§ 2° Para efeito do disposto no § 1º, são considerados os finan- Judiciários do Conselho da Justiça Federal que, na I Jornada de Direito
ciamentos diários relativos às operações com títulos públicos Civil, realizada ainda na vacatio legis do Código atual (entre 11 e 13
federais custodiados no Selic, registradas e liquidadas no próprio de setembro de 2002) formulou o Enunciado de nº 20, com a seguin-
Selic ou em sistemas operados por câmaras ou prestadores de te redação:
serviços de compensação e de liquidação de que trata a Lei nº
A taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do
10.214, de 27 de março de 2001.
art. 161, § 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, um por
A forma de cálculo da Taxa Selic está definida pela Circular n. cento ao mês.
3.671/2013 do Banco Central do Brasil. O Comitê de Política Monetária Como justificativa de tal enunciado, foi aduzido o seguinte:
(Copom) do Banco Central do Brasil, a seu turno, fixa a meta da Taxa
A utilização da Taxa SELIC como índice de apuração dos
Selic para fins de política monetária (art. 1°, caput, do Anexo à Circular
n. 3.868/2017). juros legais não é juridicamente segura, porque impede o
prévio conhecimento dos juros; não é operacional, porque seu
Dessa forma, parece-nos induvidoso que os juros legais a que se uso será inviável sempre que se calcularem somente juros ou
refere o art. 406 devem ser calculados pela Taxa Selic, pois esta é a taxa somente correção monetária; é incompatível com a regra do art.
de fato aplicada como juros moratórios dos tributos federais, tendo tal 591 do novo Código Civil, que permite apenas a capitalização
aplicação sido definida pela lei, incidência do inciso I do art. 84 da Lei anual dos juros, e pode ser incompatível com o art. 192, § 3°,
n. 8.981/95, combinado com o art.13 da Lei n. 9.065/95. da Constituição Federal, se resultarem juros reais superiores a
12% (doze por cento) ao ano. 6
Entretanto, parte da doutrina5 entende que a utilização da Taxa
Selic como ~uros legais seria indevida, motivo pelo qual se acredita que O entendimento de que a taxa de juros legais não seria a Selic, mas,
deve ser aplicada a taxa de 1 % ao mês, prevista no § 1 ° do art. 161 do sim, 1 % ao mês costuma ter por fundamento algumas razões constantes
Código Tributário Nacional, com a seguinte redação: do Enunciado n. 20 acima transcrito e outras que dele não fizeram par-
te. Os fundamentos aduzidos podem ser resumidos da seguinte forma:
(1) a Taxa Selic é imposta unilateralmente pela administração
4 BANCO CE~TRAL DO BRASIL (BCB). Disponível em: <https://www.bcb.gov.br/controleinfla-
cao/taxasehc>. Acesso em 28/09/2020. pública e não poderia regulamentar questões fiscais e tributárias
5 Cf~ PERE~ RA, Caio ~ária da Silva. Instituições de Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações, v. .
21_ ~d. R_1~ de Janeiro: Forense, 2006. p. 142-145. MARTINS-COSTA,Judith. Comentários ao novo
2 afetas à Fazenda Nacional, que, teoricamente, dependeriam de
cadigo_ cwJ/. ~- 5, t. 2. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 402-408. RIZZATTO NUNES Luiz lei ordinária ou complementar para serem reguladas; não po-
Anto_rn?. Os Juros no Novo Código Civil e suas implicações para o direito do consumidor. R~vista
de D1re1ta da Consumidor, São Paulo, a. 14, jan.-mar. 2005, p. 78-88. TURRA T. e. e.• RANGEL dendo ser aplicada à Fazenda Nacional, não seria também apli-
M. A.~- 5.. }uros Morató~ios Lega!s: Análise Crítica da taxa SELIC à luz da,jurisprudência d~
Supen?rTnbunal de Justiça. ln: Cesar Augusto de Castro Fiuza; Otávio Luiz Rodrigues Júnior;
cada como base para o art. 406 do Código Civil;
Fre~enco da Costa Carvalho N_eto (Org_.). Direita Civ~l l: Florianópolis: Conpedi, 20 , v. 1, p.
15
128 14_6. SC"."VONE JUNIOR, Lu1s Antonio.Juros no d1re1to brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Revista
dos Tnbuna1!, 2009. p. 92-m. RIZZARDO, Arnaldo. Direito das obrigações: Lei n. 10. o6, de 6 MORAES, Renato Duarte Franco de. Juros no Código Civil de 2002: a não incidência da taxa
4 Selice a ausência de limites dos juros cobrados por instituições financeiras. ln: HIRONAKA,
10.01.2012._4. ed. rev. e atual .. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 517-519. ROSENVALD Nelson·
FARIAS, Cnst1ano Chaves de. Cursa de direito civil. 7ª ed. Salvador: JusPodivm, 2013 . ~- 6 _ ' Gilselda Maria Fernandes. A outra face do Poder Judiciário: decisões inovadoras e mudanças
47 paradigmáticas. Belo Horizonte: Dei Rey, 2005. p. 116.
566 - AINDA SOBRE A TAXA LEGAL DE JUROS NO CóDIGO CIVIL DE 2002
CHRISTIAN 5AHB BATISTA LOPES - 567

(2) a Taxa Selic varia ao longo do tempo, de acordo com O merca-


nibilizados esses fundos à Parte A. É vista, dessa forma, como juros
do e_ c_o~. as metas fixadas pelo Copom, o que não conferiria , • 7
remuneratonos.
prev1S1b~dad~ e se~rança j~ídica aos negócios jurídicos pri-
vados, pois os Juros nao podenam ser previamente conhecidos· Assim, se a Parte B paga à Parte A R$ 1.000,00 por um título
em um dia com o compromisso de vendê-lo, no dia seguinte, por R$
(3) a S~lic_seria capitalizada e o Código Civil permitiria apenas~
capitalização anual de juros; 1.000,10, temos que dez centavos é o seu ganho por ter disponibilizado
0 recurso de R$ 1.000,00 por um dia à Parte A. Em outros termos, dez
(4) a Selic não necessariamente seguiria a limitação constitucional centavos ou 0,01 % é o juro que cobra por um dia. A taxa anual, nessa
de juros;
operação, é de 3, 717%.
(5) a Taxa Selic seria hfürida, por não ter natureza exclusiva de A Taxa Selic é calculada pelo Banco Central a partir das médias das
j~ros,já que também teria em si incluída a correção monetá- inúmeras operações compromissadas semelhantes à descrita acima que
na? a taxa não poderia ser incluída na expressão "juros legais", ocorrem em um dia, sendo que os arts. 2° e 3° da Circular nº 3.671/2013
~ois, se cobrada cumulativamente com a atualização monetá- definem a forma de calcular essa média e quais operações serão descon-
na como determina o Código Civil, caracterizaria bis in idem sideradas para tal cômputo.
impossibilitando a separação de juros e correção monetária 0 ~
O Comitê de Política Monetária - COPOM, órgão colegiado do
o cálculo desses dois fatores de maneira separada.
Banco Central, fixa a meta da Taxa Selic, tendo em vista a política mo-
Diante ~essas dificuldades para aplicação da Selic, defende-se que a netária do País, incluindo o aspecto de controle inflacionário. A Taxa
taxa legal de JUros deve ser de 1% ao mês, com base no § 1o do art. 161 Selic efetiva (aquela calculada da forma acima e que é chamada comu-
do Código Tributário Nacional, acima transcrito. mente de Selic Over) tende a convergir para sua meta (chamada de Selic
, ~ão nos parece, contudo, que esses argumentos se sustentem, como Meta), pois o Banco Central atua provendo maior ou menor liquidez
sera visto na seção 4 a seguir, depois da correta compreensão do que é para tais operações compromissadas.
a Taxa Selic.
Em razão de o investimento em títulos federais representar o in-
3. A NATUREZA DA TAXA SEUC vestimento de menor risco na economia brasileira e vários deles esta-
rem indexados à Taxa Selic, esta funciona como taxa básica de juros na
, Conforme define o art 1° da Circular nº 3.671/2013, a Taxa Selic economia8• Além disso, pelas próprias operações compromissadas no
e cal~ul~d_a a p~tir dos valores pagos nas operações compromissadas de SELIC, as instituições financeiras podem obter liquidez ao "preço" da
um ~ia ~til ~e titulos f:d~rais realizadas no âmbito do Sistema Especial Taxa Selic. Portanto, ao aumentar a meta da Taxa Selice, consequen-
de Liqmdaçao e Custodia (SELIC). Essas operações compromissadas temente, a taxa efetiva, o COPOM torna mais caro o crédito tomado
ocor~em quando uma das partes (Parte A, por exemplo) vende um tí- pelas instituições financeiras e, consequentemente, aquele por elas con-
tulo a outra (Parte B, por exemplo), com o compromisso da Parte A de cedido. Da mesma forma, torna mais atraente o investimento em títu-
re~omprar o mesmo título e da Parte B de revendê-lo no dia útil se- los vinculados à Taxa Selic. Pelas duas vias, torna menos interessante o
gumte a um preço certo.
consumo (seja porque o crédito é mais caro, seja porque a poupança se
Por_ m~i~ dessa operação, a Parte B fornece liquidez para a Parte A torna mais interessante), reduzindo a demanda por produtos e serviços.
de ~m dia util para o outro (overmght), sendo que o ganho da Parte B é Por essa via, restringe a atividade econômica e reduz a taxa de inflação.
a ~iferença e°:tre o preço de compra em um dia e o de venda no dia se- Com a redução da Taxa Selic, ocorre o oposto. Há mais dinheiro dispo-
gumte. Essa diferença é o custo da disponibilidade do recurso financeiro
pela Parte A ou, em outros termos, o ganho da Parte B por ter dispo- Cf. OLIVEIRA, Marcos Cavalcante de. Moeda, juros e instituiçõesfinanceiros -regime juridico. Rio
7
de Janeiro: Forense, 2006. P. 357. .
8 BANCO CENTRAL DO BRASIL (BCB). Disponível em: <https://www.bcb.gov.br/controlemfla-
cao/taxaselic>. Acesso em 28/09/2020.
CHRISTIAN SAHB BATISTA LOPES - 569
568 - AINDA SOBRE A TAXA LEGAL DE JUROS NO CóOIGO CIVIL DE 2002

nível a um custo menor, o que incentiva o consumo, aumenta a ativida- (iii) A Taxa Selic é a taxa básica de juros da economia e é o retor-
de econômica e tende a ter uma pressão sobre a alta de preços. no esperado para o investimento de mais baixo risco na eco-
nomia brasileira, ou seja, em títulos federais;
Desta forma, o COPOM monitora as tendências de inflação e, à luz
da compreensão política do nível de atividade econômica, dosa a Taxa (iv)A partir de 1995, a Taxa Selic passou a ser usada, por força do
Selic de forma que os níveis de inflação se situem dentro do aceitável. inciso Ido art. 84 da Lei nº 8.981/95, combinado com o art.
13 da Lei n. 9.065/95, como juros de mora aplicáveis ao atra-
Entretanto, não se pode desconsiderar, que historicamente o con-
so de pagamento de tributos federais.Assim, apesar de ser ini-
trole inflacionário não foi o único fator considerado para a definição
cialmente medida de juros remuneratórios de operações feitas
da meta da Ta.-xa Selic. Em 1995, 1997 e 1998, diante das crises mexi-
com títulos federais, o legislador achou por bem usar essa mes-
cana, asiática e russa, respectivamente, a resposta do governo brasileiro
ma taxa como consequência da mora no atraso do contribuin-
a um ataque especulativo ao Real foi aumentar a Taxa Selic9• Portanto,
para evitar um brusco aumento do dólar frente ao real, a solução utili- te junto à Fazenda Nacional.
zada à época foi aumentar a taxa de juros a fim de atrair investimentos 4. ANÁLISE DOS ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À APLICAÇÃO DA
estrangeiros. Assim, embora a inflação estivesse baixa em 1997 e 1998 TAXA SELIC
(respectivamente, 5,22% e 1,66% ao ano, pelo IPCA), a Taxa Selic foi
significativamente alta (chegou a 45, 9% em novembro de 1997 e a 42, 1% 4.1. A APLICAÇÃO DA TAXA SELIC ÀS OBRIGAÇÕES TRIBUTÁRIAS
em outubro de 1998). SERIA ILEGAL
Portanto, podemos concluir que: O primeiro argumento é o de que a Taxa Selic é imposta unilate-
(i) A Taxa Selic é uma taxa calculada a partir da média das ope- ralmente pela administração pública e não poderia regulamentar ques-
rações compromissadas de um dia com títulos federais realiza- tões fiscais e tributárias afetas à Fazenda Nacional, que, teoricamente,
das no SELIC, sendo que, em tais operações, uma das partes dependeriam de lei ordinária ou complemen~ar, para serem _reguladas.
provê recursos financeiros à outra (liquidez) e cobra por isso. Seria, portanto, ilegal a aplicação da Taxa Selic a mora de tnbutos de-
A partir da diferença entre o preço de venda e o de recompra, vidos à Fazenda Nacional e, portanto, não seria possível sua extensão às
calculamos a remuneração do comprador, equivalendo a juros dívidas civis.
remuneratórios. Portanto, a Taxa Selic mede, em princípio,ju- Como se viu, a Taxa Selic não é imposta unilateralmente pela ad-
ros remuneratórios. ministração pública, embora a sua meta o seja. No entanto, essa fixação
(ii) Pela atuação do Banco Central, a Taxa Selic efetiva converge não visa apenas a regular a mora de tributos. Seu objetivo é maior, ser-
para a meta de Taxa Selic10, que é fixada pelo COPOM como vindo de instrumento de política monetária e servindo como taxa básica
instrumento de política monetária. Atualmente, o principal as- de juros na economia brasileira. Dessa forma, a T~a S~lic term~na ~or
pecto considerado na fixação da meta da Taxa Selic é o com- refletir as condições de contratação de juros em aplicaçoes de barx:o ns-
portamento da inflação e a necessidade de que seja mantida co na economia brasileira. Do ponto de vista do legislador federal, essa
dentro da meta definida. No passado,já foi usada também para taxa básica de juros seria suficiente para compensar os danos causados
evitar a desvalorização acentuada do Real. pelo inadimplemento do contribuinte.
A questão da ilegalidade do uso da Taxa Selic foi superada p~lo j~-
9 Cf. REMOE, Mônica Zanol. A crise brasileira de 1998-1999: análise sob a ótica do modelo de gamento do REsp 1111175/SP, Rel. Ministra Denise Arruda, Pnmeira
Krugman (Dissertação). Pelotas: Universidade Federal de Pelotas, Departamento de Economia,
2013. p. 38-39. Seção,julgado em 10/06/2009, DJe 01/07/2009, ao qual se atribui~ a
10 Ressalta-se que, em outubro de 1998, a meta daSelic era de 19% e a taxa efetiva ficou em 42,1%. sistemática dos Recurso Repetitivos, definindo o Tema 145 da segum-
Em dezembro de 1997, a meta era de 2,9% e a taxa efetiva foi de 39,87%. A grande diferença
pode ser explicada pelo momento de crise cambial por que o Brasil passou nesses períodos, te forma:
com reflexo das crises dos países asiáticos e da Rússia.
CHRISTIAN SAHB BATISTA LOPES - 571
570 - AINDA SOBRE A TAXA LEGAL DE JUROS NO CóOIGO CIVIL DE 2002

Aplica-se a taxa SELIC, a partir de 1°.1.1996, na atualizacão flacionário, notadamente às dificuldades vividas nas décadas de 1940 a
monetária do indébito tributário, não podendo ser cumul;da, 1960, quando a correção monetária ainda não era amplamente aplica-
porém, com qualquer outro índice, seja de juros ou atualização da pelos Tribunais 12 •
monetária. Se os pagamentos foram efetuados após 1°.1.1996, Além disso, a adoção de uma taxa variável evita injustiças para o
o term~ inici~ para a incidência do acréscimo será o do paga- credor ou o devedor, dependendo do momento econômico em que se
mento mdeVIdo; havendo pagamentos indevidos anteriores à esteja vivendo. Exemplificativamente, a meta da Taxa Selic atualmente
data de vigência da Lei 9.250/95, a incidência da taxa SELIC (setembro de 2020) é de 2,0% dois por cento ao ano. Por ser a taxa bási-
terá como termo a quo a data de vigência do diploma legal em ca da economia, dificilmente uma pessoa consegue um investimento de
tela, ou seja,janeiro de 1996.
baixo risco com rendimento superior. A caderneta de poupança rende
Portanto, não faz sentido a objeção de que a Taxa Selic não poderia 70% da Taxa Selic, ou seja, 1,4% ao ano. Caso a pessoa resolva investir
ser usada para obrigações civis, pois não se aplicaria no âmbito tributário. em Certificado de Depósito Bancário de um banco sólido, obterá cer-
ca de 100% da taxa CDI que é igual a 0,15% para o mês de agosto de
4.2. AUSÊNCIA DE SEGURANÇA JURÍDICA
2020. No mesmo período, a Taxa Selic é igual a 0,16%.
O segundo argumento contrário à aplicação da Taxa Selic é que
Nesse contexto, a dívida judicial ser acrescida de juros de 12% ao
essa seria variável ao longo do tempo, de acordo com o mercado e com
ano não nos parece a solução mais justa. Ou seja, o credor receberá 10%
as metas ~a~a~ pelo COPOM, o que não conferiria previsibilidade e
a mais ao ano (ou cinco vezes mais do que receberia) em uma aplicação
se~rança 3und~ca aos negócios jurídicos privados, pois os juros não po-
de baixo risco. Poder-se-ia argumentar que a justiça da situação estaria
denam ser previamente conhecidos.
em penalizar o devedor moroso. No entanto, a taxa legal deve ser equili-
_ A variabilidade da Selic, no nosso entender, é favorável à sua apli- brada, não conduzindo a uma penalização excessiva do devedor moroso.
ca_ç~o como taxa legal, e nã~ o inverso. Na adoção de um novo Código Para esse fim, as partes podem estipular taxa maior que a legal e pre-
Civil em 2002, optou o legislador por uma disciplina dos juros legais ver cláusula penal em seus contratos. Além disso, esse efeito nem sem-
que se afastou do que havia no Código de 1916. Onde havia uma taxa pre será verificado com a adoção da taxa fixa de 1% ao mês. Haverá o
fixa pela lei (6% .ªº. ano, na forma do art. 1.062 do Código Civil revoga- efeito inverso quando as condições econômicas do País levarem à Taxa
d~)'. passou a existir uma taxa variável, vinculada àquela que a Fazenda
Selic maior que 12%.
utilizasse para os débitos de seus tributos.
Tomemos como exemplo o mês de agosto de 2005, em que a Taxa
Conf~r~e já se destacou 11 , a taxa fixa estipulada no Código Civil Selic estava fixada em 19,75% ao ano ou 1,65% ao mês. Uma pessoa po-
de 1916 utilizada ~º1:1º base para o cálculo do teto de juros pela Lei da deria aplicar seus recursos a 1,58% ao mês (ou 100% da taxa CDI) em
Usura gerou uma limitação também fixa de juros. Essa limitação, em um um Certificado de Depósito Bancário de um bom banco. No entanto,
c~nte~o de inflação crescente em uma sociedade que ainda não conhe- a dívida judicial seria acrescida de apenas 1% ao mês. Ou seja, o deve-
cia a mdexação das obrigações pecuniárias, teve consequências nefastas dor teria interesse em protelar o pagamento e reter a diferença de cerca
p~ra a poupança interna e para as atividades do setor financeiro. Além de 0,58% do valor da dívida a cada mês. O credor, nessa situação, rece-
~isso, levou ~ i~j~sti?s flagrantes, deixando que o credor, sem qualquer beria menos do que a aplicação de menor risco disponível no mercado
tipo de remed10 3und1co para a situação, visse seu crédito reduzir-se a
financeiro.
zero diante do inadimplemento do devedor de obrigações pecuniárias.
Portanto, parece-nos que é mais justa- e parece ter sido justamen-
Portanto, a adoção de um padrão móvel de taxa de juros legais, que te esse o objetivo do legislador - a adoção de uma solução que seja dúc-
pudesse adaptar-se ao contexto econômico de cada momento foi ares- til e possa se adaptar às condições econômicas a cada dado momento.
posta do legislador (ainda que tardia) ao aprendizado do p;ríodo in-
11 L?PES, Christian Sahb Batista. Correção monetário: tempo e dinheiro no direito. Belo Hori t . 12 LOPES, 2011, p. 53-54.
L1der, 2011. p. . zon e.
43
CHRISTIAN 5AHB BATISTA LOPES - 573
572 - AINDA SOBRE A TAXA LEGAL DE JUROS NO CóDIGO ÜVIL DE 2002

1. Segundo dispõe o art. 406 do Código Civil, "Qyando os


4.3. CAPITALIZAÇÃO DA TAXA SELIC E SUPOSTO LIMITE
juros moratórias não forem convencionados, ou o forem sem
CONSTITUCIONAL
taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei,
A objeção levantada quanto ao fato de a Selic ser capitalizada igual- serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora
mente não resiste a uma análise mais detida. A Selic poderá ser tomada do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional".
com base anual, tomo é a meta fixada pelo COPOM, sendo sua taxa, 2. Assim, atualmente, a taxa dos juros moratórias a que se refere
diária ou mensal, calculada como se fosse juros compostos ou juros sim- o referido dispositivo é a taxa referencial do Sistema Especial
P:es. Ou seja, não é a Selic que é capitalizada, mas sua aplicação ao prin- de Liquidação e Custódia - SELIC, por ser ela a que incide
cipal que poderá ser ou não capitalizada. Assim, com uma Selic anual de como juros moratórias dos tributos federais (arts. 13 da Lei
9%, poder-se-á calcular a taxa mensal dos juros legais mediante a divisão 9.065/95, 84 da Lei 8.981/95, 39, § 4°, da Lei 9.250/95, 61, §
por 12 meses. Nesse caso, não haverá capitalização e a taxa mensal de ju- 3°, da Lei 9.430/96 e 30 da Lei 10.522/02).
ros legais será de 0,75%. Por outro lado, é possível calcular a taxa men- 3. Embargos de divergência a que se dá provimento.
sal que, capitalizada, chegue a 9%. Essa corresponderia a 0,72% ao mês. (EREsp 727.842/SP, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZA-
VASCKI, CORTE ESPECIAL,julgado em 08/09/2008, DJe
Portanto, não há incompatibilidade intrínseca entre a Taxa Selice a
20/11/2008).
vedação à capitalização em periodicidade inferior à anual prevista, para
No Acórdão dos Embargos de Divergência acima referidos, o
os contratos de mútuo, no art. 591 do Código Civil, e, para os demais
contratos, no art. 4° do Decreto nº 22.626/1933. É necessário apenas Ministro Relator aduziu, como fundamentação, outros acórdãos que afu-
que o aplicador da norma tenha a cautela de usar sempre a taxa anual e, mavam que a Taxa Selic era composta de juros e correção monetária. Na
ao decompô-la em taxas mensais ou diárias, fazê-lo por meio de divisões ementa de um dos acórdãos citados, lemos o seguinte:
simples por 12 meses ou por 365 dias. Dessa maneira, a taxa será usada Com o advento do novo Código Civil (aplicável à espécie por-
sempre como juros simples, sem capitalização 13 • que ocorrida a citação a partir de sua vigência), incidem juros
de mora pela taxa SELIC a partir da citação, não podendo ser
Por fim, não existe mais o limite constitucional mencionado no art. cumulada com qualquer outro índice de correção monetária,
192, § 3°, da Constituição Federal, revogado pela Emenda Constitucional porque já embutida no indexador.( ... )
n. 40, de 2003, não subsistindo mais esse argumento contrário à aplica-
(REsp 807880/RN, 2ª Turma, Min. Eliana Calmon, DJ de
ção da Taxa Selic.
23/05/2006).
4.4. A TAXA SEUC SERIA HÍBRIDA, COMPOSTA DE JUROS E CORREÇÃO Em seguida a essa decisão, o Superior Tribunal de Justiça tem rei-
MONETÁRIA teradamente decidido que a taxa a que se refere o art. 406 do Código
Civil é a Taxa Selic, mas que esta engloba juros e atualização monetária
. As objeções. acima foram afastadas pela jurisprudência do Superior
e, portanto, não poderia ser aplicada conjuntamente com qualquer índice
Tnbunal de Justiça, que consolidou entendimento de que o art. 406 do
de correção. Dessa forma, quando o Código Civil determina a aplicação
Código Civil leva à aplicação da Taxa Selic, conforme evidencia decisão
de juros de mora e correção monetária (a exemplo dos arts. 389 e 395),
de 2008 da Corte Especial, em Embargos de Divergência em Recurso
a incidência da Taxa Selic já cumpriria ambas as funções.
Especial assim ementado:
Esses dois entendimentos - a de que a interpretação do art. 406 do
CIVIL.JUROS MORATÓRIOS.TAXALEGAL. CÓDIGO
Código Civil leva à conclusão de que a Taxa Selic é a taxa de juros legais
CIVIL, ART. 406. APLICAÇÃO DA TAXA SELIC.
e a de que a Taxa Selic é composta de juros e correção monetária - vêm
14
sendo aplicados em julgados posteriores do Superior Tribunal deJustiça •
13 1:?eve-se esclarecer, entretanto, que o Banco Central calcula as taxas diárias ou mensais con- São exemplos de julgados que aplicam tal entendimento: Aglnt nos EDcl no REsp 1.740.851/MA
siderando que as taxas serão capitalizada_s para se chegar ao valor anual. Por isso, faz-se aqui 14
(Rei. Ministro Moura Ribeiro, 3ª Turma, DJe 26/06/2019); Aglnt nos EDcl no REsp 1.518.445/SP
essa ressalva se de usar sempre a Taxa Sehc anual como base para qualquer cálculo.
CHRISTIAN SAHB BATISTA LOPES - 575
574 - AINDA SOBRE A TAXA LEGAL DE JUROS NO Córneo CIVIL DE 2002

A chamada "cláusula de escala móvel" era justamente a disposição


A, c?nclusão de que a Taxa Selic é composta de juros e correção
monetana, entretanto, não é correta e merece ser revista pelo Superior convencional que fazia aplicar a alguma obrigação contratual a correção
Tribunal de Justiça. monetária. Posteriormente, a evolução doutrinária e jurisprudencial, dian-
te da necessidade imposta pela injustiça da ausência de correção diante
, Conforme se demonstrou na seção 2 desse trabalho, a Taxa Selic
de uma inflação crescente, reconheceu a aplicação da atualização mo-
e comp~sta pela média de juros pagos nas operações compromissadas netária para as hipóteses de mora e de responsabilidade civil extracon-
de um dia q~e ocorrem no SELIC. A Taxa Selic tende a convergir para tratual independentemente de cláusula ou disposição legal específica •
16

a meta que e fixada pelo COPOM, servindo de política monetária de


Justamente essa evolução fez com que o legislador, diante da elabora-
controle de inflação.
cão de um novo Código Civil, incluísse nos dispositivos pertinentes a
É inegável que o fator "inflação" entra como um dos principais as- ~xpressa previsão de que a obrigação deveria ser atualizada monetaria-
pectos na cogitação dos membros do COPOM ao fixar a meta da Taxa mente (arts. 389,395,404,884, entre outros, do Código Civil de 2002).
Selic, mas é _também forçoso reconhecer que isso não significa incluir na Mais modernamente, Romualdo Wilson Cançado e Orlei Claro de
sua composição um ou mais índices de correção monetária.
Lima definiram correção monetária de forma a deixar bem claro o seu
Ora, a correção monetária é a atualização do valor de uma obriga- efeito de tomar uma medida de inflação passada e projetá-la para ova-
ção pecuniária, pactuada em uma certa data (a data inicial) de acordo lor presente de uma obrigação pecuniária:
com algum índice de preços que reflita a variação do poder a~uisitivo da Correção monetária é atualização de valor de data passada (ex-
moeda entre a data inicial e aquela para a qual se pretende atualizar (a presso na moeda de origem), até a data para a qual foi calculado,
data final). A atualização monetária implica, necessariamente um olhar na proporção da variação do poder aquisitivo da moeda, medida
no ~etrovisor, a ~m de verific~ ~ual foi a ~nflação passada, p~a adequar por índice de preços. 17
o numero de urudades monetarias da obrigação pecuniária. Assim, se formos corrigir monetariamente a obrigação de R$
Esse aspecto já havia sido captado por Arnoldo Wald em seu livro 1.000,00, pactuada em agosto de 2019, para agosto de 2020, vamos ne-
de 1956, precursor sobre a matéria: cessariamente precisar saber qual foi a variação de preços, de acordo com
Podemos pois definir a cláusula de escala móvel, também deno- algum índice, entre agosto de 2019 e julho de 2020. Se utilizarmos o ín-
minada cláusula escalar, cláusula de escalonamento ou cláusula dice IPCA, vamos concluir que a inflação no período, medida por esse
número índice como sendo aquela que estabelece uma revisão índice, foi de 2,305%. Assim, olhamos o passado e verificamos que os
preco_nvencionada pelas partes, dos pagamentos que deverã; preços, de forma geral, variaram em tal percentual e projetamos tal va-
ser feitos de acordo com as variações do preço de determinadas riação para o momento presente. Ou seja, dizemos: "porque os preços
mercadorias ou serviços ou do índice geral do custo de vida ou variaram 2,305% de agosto de 2019 a julho de 2020, a obrigação que
dos salários. Escolhem-se pois uma ou várias mercadorias ou era de R$ 1.000,00 em agosto de 2019 deve ser de R$ 1.023,05 no pre-
mercadorias e serviços ou um índice geral para, de acordo com
sente (agosto de 2020)". Tal diferença R$ 23,05 não representa um plus,
eles, fazer variar o montante da dívida. 15
mas mera recomposição do poder aquisitivo da moeda, como reiterada-
mente decidiram nossos Tribunais 18 •
:t
(Rei. Ministro Raul Ar:újo, Turma, DJe10/06/2019); REsp 1.495.146/MG (Rei. Ministro Mauro
Jampbell Marqu~s, 1 s.eçao, DJe 02/03/2018); EDcl no REsp 1.622.514/GO (Rei. Ministro Paulo
e Tars?~anseven_no,3 Turma, DJe 29/09/2017); AgRg nos EDcl no AgRg noAREsp 573 -927/DF 16 Cf. LOPES. Correção ... op. cit. p. 43-56.
(R~I: Mm1stro Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, DJe 24/04/2018); EmbExeMS 12 .miDF (Rei 17 CANÇADO, Romualdo Wilson, LIMA, Orlei Claro de.Juros, carreçãomanetária, danosfinanceiras
~m1stro Herman B_enamln, 1ª Seção, DJe 01/08/2017); REsp 1.403.005 /MG (Rei. Ministro Paul~ irreparáveis: uma abordagem jurídico-econômica. Belo Horizonte: Dei Rey, 2000. p. 61.
e Tarso Sa~se~er!no, 3 Turma, DJe 11/04/2017); Aglnt no REsp 1.632.906/PR (Rei. Ministra 18 A ementa do seguinte julgado ilustra esse entendimento:
Nan~y Andngh1, 3 i:urma, DJe 11/04/2017); AgRg nos EDcl no REsp 1.025.111/SP (Rei. Ministra CIVIL. PROMESSA DE COMPRA E VENDA. AÇÃO DE REVISÃO DO CONTRATO. CORREÇÃO
Mana Isabel_ Gallott1, 4ª Turma, DJe 28/05/2013); REsp 1.112.524/DF (Rei. Ministro Luiz Fux MONETÁRIA. NÃO-PACTUACÃO. IRRELEVÂNCIA. FATO SUPERVENIENTE. PLANO CRUZADO.
Co'.te ~spe~1~I, DJe 30/09/2010); REsp 1.111.117/PR (Rei. Ministro Luís Felipe Salomão Rei pÍ PRECEDENTES DA TURMA. DISSÍDIO. CARACTERIZADO. RECURSO PROVIDO. PROCEDÊNCIA
Acordao Mm1stro M~uro Campbell Marques, Corte Especial, j. em 02/06/2o10). ' ·
WALD, Arnoldo.A clausula de escala móvel. São Paulo: Max Limonad, 1956. p. 7 6. DO PEDIDO.
15
CHRISTIAN 5AHB BATISTA LOPES - 577
576 - AINDA SOBRE A TAXA LEGAL DE JUROS NO CóDIGO CIVIL DE 2002

Portanto, para que a Taxa Selic contivesse ou embutisse correção Portanto, ao fixar a meta da Taxa Selic, o COPOM não aplica uma
monetária ou fosse um hfbrido entre correção monetária e juros, deveria fórmula estabelecida previamente. O que ele faz é um ajuste da taxa de
necessariamente entrar, em seu cálculo, um ou mais índices de inflação juros básica da economia tendo em vista a sua avaliação do cenário ma-
ou alguma outra medida de variação de preços no passado. Na fórmu- croeconômico para o futuro. Não havendo uma fórmula para meta da
la constante da Circular n. 3.671/2013 do Banco Central do Brasil de- Taxa Selic, é evidente que um ou mais índice~ de inflação (que m~dem
veria constar o IPCA, o INPC, o IGP-M ou qualquer outro índice de
' passado) não entram em sua composição. E claro que, ao analisar o
inflação, que seria, assim, somado aos juros. O que se vê, pela simples ~enário macroeconômico como um todo, o COPOM avalia, nesse con-
leitura da Circular n. 3.671/2013, é que ela traz apenas a fórmula para t xto O comportamento da inflação, para o que leva em consideração os
calcular a média das remunerações pagas nas operações compromissadas í:dic~s mais recentes. No entanto, para a fixação da meta da Taxa Selic
de um dia realizadas no SELIC. Não há qualquer menção a índice de mais importante do que considerar o passado da inflação, é levar em con-
, . - futu 20
preços. Não há, na sua fixação, esse olhar para o passado que é inerente ta seus motivos e como e a sua proJeçao para o ro .
à correção monetária. A comparação entre a Taxa Selic e os índices de inflação nos últi-
Como visto acima, a meta da Taxa Selic é fixada pelo COPOM mos meses ilustram essa afirmativa. Se a Taxa Selic tivesse efetivamente
como instrumento de política monetária; ou seja, é fixada tendo em vis- embutida a correção monetária, seu percentual não poderia, em hipótese
ta o nível de aquecimento da economia que se espera (o que é uma deci- alguma, ser inferior àquele dos índices de preços. Se a T~a Se~c soma
são política) e o percen!Ual de inflação que é aceitável (o que também é juros com correção monetária, ela teria que s~r, pelo men~s,_1gual a corr~;
uma decisão política). E, portanto, um olhar para o futuro. O COPOM ção monetária. Mas não é isso que temos verificado nos últimos meses .
analisa as condições macroeconômicas atuais, projeta o cenário futuro e, Selic IPCA IGP-M
Mês
diante dessa projeção, avalia se é necessário algum ajuste na taxa de juros. 0,26% 1,56%
Junho/2020 0,21%
Se a inflação estiver sob controle, mas o nível de atividade econômica 2,23%
Julho/2020 0,19% 0,36%
estiver aquém do esperado, ele reduz a taxa de juros, aumentado a dis-
0,16% 0,24% 2,74%
ponibilidade de recursos na economia e incrementando a atividade eco- Agosto/2020
nômica. Do contrário, se a atividade econômica estiver muito aquecida 0,56% 0,86% 6,67%
Acumulado
e o cenário projetado indicar comprometimento do controle de preços,
o COPOM aumenta a taxa de juros, retirando liquidez da economia, e Como demonstrado na seção 2 desse trabalho, a Taxa Selic é obti-
desaquecendo a atividade econômica de forma a manter a inflação den- da a partir da média das remunerações das operações compromissa~as
tro da meta estabelecida19 • de um dia, realizadas com títulos federais, no âmbito do SELIC. Assim,
na sua gênese, equivale a juros remuneratórios, pois remunera os fundos
1- Nos termos do entendimento da Turma, "celebrado o contrato de promessa de compra e
v~n_da,_ com prestações diferidas, sem cláusula de correção monetária, durante o tempo de
v1genc1a do plano Cruzado, quando se esperava debelada a inflação, a superveniente desva- ao consumo do que era no cenário de juros mais baixos. Assim, agentes terão_ u°: desincentivo
lorização da moeda justifica a revisão do contrato, cuja base objetiva ficou substancialmente para comprar e contratar serviços, reduzindo a demanda e_, p~rtanto, cont~1b_um~o para que
alterada, para atualizar as prestações de modo a refletir a inflação acontecida depois da cele- os precas não aumentem. A menor taxa de juros tem o efeito inverso. O cred1to_f1ca barato e
bração do negócio" (REsp nº 135.151-RJ). poupa~ fica menos interessante. Os agentes econômico_s t~ndem a comprar mais e contratar
li -Sendo a correção monetária mero mecanismo para evitar a corrosão do poder aquisitivo da mais serviços, incrementando o nível de atividade econom1ca: Mas, se essa demanda aumen-
moeda, sem qualquer acréscimo do valororiginal, impõe-se que o valor devido seja atualizado, tada começar a superar a oferta de bens e serviços, isso levara a aumento de preços.
mes?1o nos casos de não constar do contrato cláusula específica. 20 Assim, recentemente, houve aumento de preços nos meses de julho e ago~to de 2020 sem que
isso levasse a um incremento na meta da Taxa Selic, pois o COPOM avaliou que tal aumento
111- Eentendimento consolidado da Corte que a evolução dos fatos econômicos tornou insus- de preços se deveu por quebra de ~afra de alguns g_ên~ros alimentícios e, portanto, er,a a~go
tentável a não-incidência da correção monetária, sob pena de prestigiar-se o enriquecimento transitório e que não afetaria o cenario macroeconom1co. O mesmo ocorre quando o _mdice
~em cau_sa do ?ev:_dor, constituindo ela imperativo econômico, jurídico e ético indispensável de inflação é impactado por aumento de preços regulados (como, por exemplo, tanfas de
a plena mdernzaçao dos danos e ao fiel e completo adimplemento das obrigações.
(STJ, REsp 94692/RJ, 4ª Turma, Rei. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira. j. 25.06.1998, p. ônibus). . . , .
21 Fonte: Calculadora do Cidadão do Banco Central do Brasil. D1spornvel em: <http~.//www3.
21.09.1998). bcb.gov.br/CALCIDADAO/publico/exibirFormCorrecaoValores.do?method=ex1b1rFormCor
19 Como explicado acima, maior taxa de juros torna o crédito para consumo e investimentos em
bens de capital mais caro. Além disso, torna a poupança mais interessante comparativamente recaoValores>.
CHRISTIAN SAHB BATISTA LOPES - 579
578 - AINDA SOBRE A TAXA LEGAL DE JUROS NO CóOIGO CIVIL DE 2002

tes em diferentes contextos de estipulação de juros. O fato de que,


fornecidos pela parte que compra o título em um dia e o revende no dia
~: mora de tributos da Fazenda Nacional, o legislador a tenha coloca-
se_guint:. ~o ent~nto, uma vez calculada, é apenas uma taxa de juros (e
do como referência dos juros moratórias nominais, não impede que, em
nao de mdice de mflação) que pode ser usada de referência para inúme-
utra norma, o legislador a coloque como referência de juros moratórias
ras operações econômicas diferentes, como são a TJLP22 , a Taxa CDPJ 0
ais (como ocorre com os arts. 389,395,404 e 406 do Código Civil).
ou a LIBOR24 •
Assim como não impede que o Tesouro Nacional , por exemp1o, emita
re ·
, . Assim, nas operações realizadas no âmbito do SELIC, a Taxa Selic títulos de dívida cujos juros remuneratórios nominais estejam vincula-
e 3uros remuneratórios e nominais. Por meio do inciso I do art. 84 da
Lei n. 8.981/95 e do art.13 da Lei n. 9.065/95, a Taxa Selic foi utilizada dos à Taxa Selic.
Assim, com a devida vênia, apenas é possível concluir ser inverídi-
co_~o juros ~oratórios e nominais. Nos arts. 389,395 e 404 do Código
ca a afirmativa contida em tantos Acórdãos de nossa Corte Superior de
C1~il~ comb_mados com o art. 406, a Taxa Selic é usada como juros mo-
que a Taxa Selic é co~posta d~ j_uros ~ c~rreção mon~t~ia. o~ que ela
ratorios reais. No art. 591 do Código Civil, combinado com o art. 406
tem embutida correçao monetaria. Nao e uma questao Juridicamente
a Taxa Selic é juros remuneratórios e nominais. '
mal posta, mas sim faticamente equivocada. Infelizmente, várias deci-
. O legislador (na hipótese de juros legais) ou as partes (no caso de sões foram proferidas desde 2008 (quando foram julgados os Embargos
3uros convencionais) podem estipular uma certa taxa de juros incidente de Divergência no REsp 727.842/SP pela Corte Especial) com funda-
sob~e algum capital a título de juros reais ou de juros nominais. Como
mento em uma premissa faticamente falsa.
ensmado ~or Bresser Pereira25 , valor nominal é o valor tal e qual se
Esse é um aspecto que merece ser corrigido pelo Poder Judiciário,
apresenta, mdependentemente da taxa de inflação; o valor real é O va-
sob pena de continuar a se negar vigência a parte dos arts. 389, 39~ e
lor nominal deflacionado (se houver inflação), ou inflacionado (se hou-
404 do Código Civil. Ao longo de nossa história, trabalharam doutrina
ver deflação). Dessa forma, exemplificativamente, se as partes ajustam
e jurisprudência para que a aplicação da correção monetária, nas hipó-
um c~ntrato de m~tuo ~ara paga:11ento em um ano, acrescido de juros
teses de mora contratual e de responsabilidade civil, fosse aceita como
de 10 Mi ~o ~no e a mflaçao no periodo é de 4%, pode-se dizer que os ju-
medida de justiça, a fim de evitar que o credor recebesse significativa-
ros nomma1s pactuados são de 10% e os juros reais foram de 6%. Se ao
.,. . .
c?~trario, pactua-se 3uros de 10% ao ano, acrescido de correção mone-
' mente menos do que faria jus em razão da escalada inflacionária. Essa
evolução foi bem captada pelo legislador do princípio do século corren-
t~ria, a taxa de 10:'6 representará juros reais, uma vez que a desvaloriza-
te que incluiu disposição expressa nos referidos artigos para que, den-
çao da moeda sera compensada pela correção monetária.
tre as consequências da mora, ficasse o devedor obrigado a pagar juros
. Por~anto, o que fez o legislador ao prever a mora para impostos e correção monetária. O legislador, portanto, determinou que ambas as
devidos a Fazenda Nacional, por meio das inciso Ido art. 84 da Lei n. verbas fossem aplicadas conjuntamente.A correção monetária como for-
8.98~/95 _e_ do art. 13 da Lei n. 9.065/95, foi disciplinar que tal mora ma de manutenção do poder aquisitivo da moeda entre a data da mora
estaria_ su3e1ta ap_en~s a juros e não à correção monetária. Ou seja, esti- e a data do efetivo pagamento; e os juros como forma de compensar os
p~lou 3uros nommais. No caso da mora de dívidas civis, o legislador fez danos causados ao credor por não ter disponível o recurso quando pre-
diferente: previu que a mora estaria sujeita a juros e correção monetária. visto (no caso da mora contratual) ou quando ocorreu o ilícito de acor-
A taxa escolhida (qualquer que fosse ela, Taxa Selic, 1% ou outra) seria
do com o art. 398.
portanto, aplicada como juros reais. Portanto, a Taxa Selic é uma mer~
A manutenção do entendimento atual de nossa Corte Superior
referência de taxa de juros que pode ser usada pelo legislador ou pelas
irá transformar a opção do legislador de utilizar a Taxa Selic como ju-
22 Taxa de Juros de Longo Prazo.
ros reais na hipótese de mora para que seja usada como juros nominais.
23 Taxa dos Certificados de Depósito lnterbancário Riscará dos arts. 389,395 e 404 do Código Civil a expressão "correção
24 London lnter-Bank Offered Rate
25 BRESSER-PE~EIRA, Luiz Carlos_- Ec~nomio Brasileira, uma ln tradução Crítica. 1987. p. 121-1 22. opud monetária'' tão conscientemente ali inserida pelo legislador. Por fim, irá
WEDY, Gabriel. O ltm1te conslítuoonal dos ;uros reais. Porto Alegre: Síntese, 199 7. p. 72 .
CHRISTIAN SAHB BATISTA LOPES - 581
580 - AINDA SOBRE A TAXA LEGAL DE JUROS NO CóDIGO CIVIL DE 2002

privar o credor da garantia de manutenção do poder aquisitivo da moe- Selic" e determinou que fossem ouvi~as al~mas entidades na qualid~-
da na hipótese de mora contratual do devedor ou de ato ilícito. No qua- de de amici curiae. Apresentaram manifestaçoes .ª ~ebraba~ - _Fede~ª7ªº
dro acima, pode-se observar que, se mantido esse entendimento, nos três Brasileira de Bancos, IBDCivil - Instituto Brasileiro de Direito C1vil,_o
meses ali considerados o credor receberá menos do que receberia apenas IDEC - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor e a Procuradona
a título de reposição do poder aquisitivo da moeda. Geral da Fazenda Nacional.
A Febraban expôs entendimento de que a taxa a qu~ s~ refere o
5. O JULGAMENTO oo REsP Nº 1.081.149/RS art. 406 do Código Civil é a Taxa Selice que o_precede~t~ JUnsprud_en-
No Recurso Especial nº 1.081.149/RS, o Relator, Ministro Luís cial do STJ deve ser mantido. A entidade considera mais JUSta a ap_li:a-
Felipe Salomão, afetou o processo para a Corte Especial do Superior ão da Taxa Selic nas hipóteses de mora, pois esta reflete as cond~çoes
Tribunal de Justiça para propor decisão que alteraria o entendimento àa economia em determinado momento, enquanto a taxa fixa de 1 ¼i ~o
consolidado no Tribunal a partir do julgamento do EREsp 727.842/SP mês pode levar a ganhos indevidos pelo credor ou pelo devedor da obn=
também pela Corte Especial. Na proposta do Relator, dever-se-ia uti- gação, dependendo das taxas de juros pagas no mercado em cada mo
lizar, como taxa legal de juros, o percentual de 1% ao mês, com base no mento econômico. . . .
art. 161, §1°, do Código Tributário Nacional, ao qual se acrescentaria O IBDCivil opinou no sentido de que os juros legais seJam 1~a1s
correção monetária, na hipótese de mora, de acordo com a tabela oficial
adotada pelos tribunais de origem.
O caso em espécie cuidava de indenização por danos morais, ten-
Tributário Nacional, "diante da incompatibilidade
sistemática dos juros moratórias e da correção monetana .
da:~~
a 1% (um por cento) ao mês, com base n? _§_1 º do art. 161 do. Cod1go
Selic com a

do ficado patente a dificuldade de aplicação do entendimento de que a O IDEC reconheceu, no parágrafo 71 de sua manif"es:ação (e-STJ
Taxa Selic é composta de juros e correção monetária. Isso porque, nes- Fl 467) que a Taxa Selic não pode ser utilizada como md1ce de_ corre-
se caso, os juros fluem a partir do evento danoso, conforme o art. 398 -. on'etária pois funciona exatamente no sentido oposto, ou seJa, uma
do Código Civil e a Súmula nº 54/STJ, enquanto a correção monetária çao m , · nfl - Afi a
redução na Taxa Selic tende a gerar um aumento na 1 açao. rm ,
a partir de sua fixação em sentença ou acórdão, segundo a Súmula nº
em seguida que: .
362/STJ. Como os juros e a correção começariam a fluir em momentos Interpretar que a Taxa Selic deve cumulativamente ~ervir para
distintos, não seria possível aplicar um índice único que, teoricamente, efetiva recomposição da moeda somado ao estabelec1m?nto de
representaria as duas verbas. · 1egais,
· e, rru·sturar a finalidade para qual a Taxa
Juros , . Selic meta
, .
Entretanto, a Corte Especial, a partir de questão de ordem levantada foi criada, tendo em vista seu caráter de política marretaria.
pela Ministra Nancy Andrighi, entendeu em 01/02/2019, que o recurso (parágrafo 81, e-STJ Fl.471) .
não poderia ter sido afetado àquele órgão, pois não teriam sido discu- No entanto, concluiu que,já que o Superior Tribunal de Justi a tem 7
tidas nas instâncias de origem as questões levantadas pelo Relator, no- consolidado entendimento de que a Taxa Selic é composta por J_uros e
tadamente, qual a taxa de juros moratórias que deve incidir em dívidas - monetar'1·a e que tal Taxa no entendimento do IDEC, nao ser-
correçao ' fi 1 A •

civis - se Taxa Selic ou 1% ao mês - e a delimitação da responsabilidade ve para correção monetária, ela não pode ser usada por_ re erencia p~ o
contratual e extracontratual para efeitos de incidência de juros e correção art. 406 do Código Civil. Por esse motivo e para dar mais segurança J_u-
monetária. Assim, o recurso foi devolvido à 4ª Câmara para julgamento. rídica para O consumidor, entendeu que a taxa a que se refere esse dis-
Em 17/02/2020, o Ministro Relator proferiu despacho em que de- positivo codificado é a de 1% ao mês. . .
clarou que o Recurso Especial "discute a incidência ou não da Taxa Selic A Procuradoria Geral da Fazenda Nacional opmo~ pela a~lica-
nas dívidas civis, especialmente quando relacionadas a reparações de cão da taxa de 1% ao mês, por considerar que a Taxa Selic, s~ ª?li~ada
danos contratuais e extracontratuais, tendo em vista os diferentes mar- ~onjuntamente com correção monetária, poderia levar a um bis m idem.
cos iniciais dos juros moratórias e da correção monetária embutidos na
CHRISTIAN 5AHB BATISTA LOPES - 583
582 - AINDA SOBRE A TAXA LEGAL DE JUROS NO CóOIGO CIVIL DE 2002

entanto restou um último equívoco que vem trazendo dificul-


As entidades que apresentaram suas manifestações como amici N0 ' T d .
curiae partiram do pressuposto que é verdadeira a afirmativa de que a dades na aplicação da Taxa Selic como juros legais. ratam~s- a arrai-
Taxa Selic é composta de juros e correção monetária. Para tanto, referi- gada concepção de que a Taxa ,S:lic representa uma composiçao de taxa
ram-se aos inúmeros precedentes do Superior Tribunal de Justiça nesse de juros com correção monetana ou, ~m o~tros termos, de que a Taxa
Selic tem embutida correção monetária. Diante _dessa suposta caracte-
sentido. Essa afirmativa, portanto, foi tomada como dogma inquestio-
, t· da Selic o entendimento da Corte Superior de que a taxa a que
nável sem se verificar a forma efetiva de cálculo da Taxa Selic ou mesmo ru~ , . al
art 406 do Código Civil é a Taxa Selic vem com uma ress -
os critérios para a definição da sua meta para saber se essa tão repeti- se re fiere O · , . . .
va: ela não pode ser cumulada com correção monetana, pms, sena carac-
da afirmativa é, de fato verdadeira. Como demonstramos acima - e es-
terizado um bis in idem de atualização monetária. Portanto, quando os
peramos que essa seja a contribuição principal desse trabalho - a Taxa
Selic é apenas taxa de juros e não contém qualquer elemento de corre- dispositivos do Código Civil determinam a aplicação de _juros e c?rre-
cão monetária (a exemplo dos arts. 389,395 e 404), deveria ser aplicada
ção monetária em seu cálculo ou em seu conceito. A má compreensão
dessa realidade é que tem sido, na verdade, a fonte dos problemas para ;penas a Taxa Selic, pois ela já desempenharia as duas funções. .
a aplicação da Taxa Selic como juros legais. Admitindo-se que a Taxa Entretanto 1 conforme se demonstrou nesse trabalho, essa afirmati-
Selic não tem correção monetária, o problema do REsp nº 1.081.149/ va é equivocada e não resiste à compreensão da nature~a d~ T~a Selice
RS será facilmente resolvido, atendendo-se às Súmulas nº' 54/STJ e de sua meta fixada pelo COPOM. Igualmente não resiste a simples ve-
362/STJ. Basta aplicar os juros, pela Taxa Selic, a partir do evento da- rificação da sua fórmula de cálculo na Circular n. 3.671/2013 ~o ~anco
noso e a correção monetária, de acordo com a tabela oficial adotada pe- Central do Brasil, em que não se verifica a menção a qualquer mdice de
los tribunais de origem, a partir da data de fixação do dano moral em preços. Por fim, a realidade recente tem esc~~carad~ o desacerto ~a afir-
sentença ou acórdão. mativa de que a Taxa Selic é uma compos1çao de Juros e correçao m~-
netária. Com efeito, nos meses de junho a agosto de 2020, a Taxa Selic
6. CONCLUSÃO tem sido inferior a qualquer índice de preços, demonstrando que este
Logo após a promulgação do Código Civil de 2002, foi levantada não entra na composição daquela.
a dúvida sobre qual seria a taxa legal de juros, que passou a ser defini- Esperamos que, diante das evidências trazidas nesse trabalho, seja
da por referência a uma norma externa ao sistema codificado. Ainda no mantido o entendimento jurisprudencial de que a taxa a que se refere o
período de vacatio legis, a I Jornada de Direito Civil, organizada pelo art. 406 do Código Civil é a Taxa Selic, mas corrigido o equívoco fáti-
Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, aprovou co de ser afirmar que ela não pode ser cumulada com correção monetá-
o Enunciado nº 20 em que os participantes concluíam que a taxa legal ria nas hipóteses de mora.
deveria ser a de 1% (um por cento) ao mês, aduzindo vários óbices para
a aplicação da Taxa Selic às obrigações civis. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMPINHO, Sérgio. Sobre os juros no Código Civil de 2002. Revista de Direito
Tais objeções foram sendo afastadas por emenda constitucional
Empresarial, Curitiba, n. 3,jan./jun. 2005, p. 195-210.
(Taxa Selic poderia ser superior ao limite de juros anteriormente cons-
CANÇADO, Romualdo Wilson, LIMA, Orlei Claro de. juros,_ correção mo1'.etária,
tante do art. 192 da Constituição Federal) e pela doutrina e jurispru- danosfinanceiros iinparáveis: uma abordagem jurídico-econômica. Belo Horizonte:
dências subsequentes (ilegalidade da aplicação da Taxa Selic à mora das
Del Rey, 2000.
dívidas tributárias, ausência de segurança jurídica e previsibilidade, ca- LOPES Christian Sahb Batista. Correção monetária: tempo e dinheiro no direito. Belo
)

pitalização de juros). Diante do afastamento desses óbices, o Superior Horizonte: Líder, 2011.
Tribunal de Justiça terminou por consolidar entendimento de que a taxa MARTINS-COSTA,Judith. Comentários ao novo código civil. v. 5, t. 2. 2ª ed. Rio de
a que se refere o art. 406 do Código Civil é a Taxa Selic. Janeiro: Forense, 2003
584 - AINDA SOBRE A TAXA LEGAL DE JUROS NO Córneo CIVIL DE 2002 JORGE ÜSA FERREIRA DA SILVA - 585

MORAES, Renato Duarte Franco de.Juros no Código Civil de 2002: a não incidência
da taxa Selice a ausência de limites dos juros cobrados por instituições financeiras. 1LA CLÁUSULA PENAL E A QUADRATURA DO
ln: HIRONAKA, Gilselda Maria Fernandes. A outra face do Poder judiciário:
CÍRCULO: AS FUNÇÕES DA CLÁUSULA PENAL
decisões inovadoras e mudanças paradigmáticas. Belo Horizonte: Dei Rey, 2005.
P.116.
DEPOIS DO NOVO CóDIGO CIVIL BRASILEIRO
OLIVEIRA, Marcos Cavalcante de. Moeda, juros e instituições financeiras - regime
jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
Jorge Cesa Ferreira da Silva1
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Teoria Geral das
Obrigações, v. 2. 21 ° ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
REMDE, Mônica Zanol.A crise brasileira de 1998-1999: análise sob a ótica do modelo Seguramente, poucos institutos do Direito Civil brasileiro convi-
de Krugman (Dissertação). Pelo tas: Universidade Federal de Pelo tas, Departamento
de Economia, 2013. vem com tamanho paradoxo como a Cláusula Penal.2 De um lado, ela
RIZZARDO, Arnaldo. Direito das obrigações: Lei n. 10.406, de 10.01.2012. 4a ed. rev.
parece gozar do dom da onipresença, encontran~o-_se em qu~se tod~s
e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2008. os contratos celebrados por escrito, desde os mais simples ate os mais
RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Os juros no Novo Código Civil e suas complexos e detalhados. De outro lado, a cláusula penal tem sua ap~ca-
implicações para o direito do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São ção relativamente incerta, especialmente no que se refere, aos seus efeitos
Paulo, a.14,jan.-mar. 2005, p. 78-88 concretos. Eis aí o intrigante paradoxo. Os contratos são, por natureza,
ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de direito civil. 7a ed. avessos à insegurança e à incerteza, de modo que institutos dotados de
Salvador: JusPodivm, 2013.
previsibilidade reduzida tendem a ser paulatinamente rechaçados pela
SCAVONE JUNIOR, Luis Antonio.juros no direito brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Revista prática. Mas não é isso que se verifica com a cláusula pe~al. Ao con-
dos Tribunais, 2009.
trário, ao lado da relativa insegurança quanto aos seus efeitos, o que se
TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloísa Helena; MORAES, Maria Celina
Bodin de. Código civil interpretado conforme a Constituição da República. 2ª ed. Rio
constata não é apenas a manutenção do seu uso, mas, talvez, até mesmo
de Janeiro: Renovar, 2007. o alargamento dele.
TURRA, T. C. C.; RANGEL, M. A. S. S.. Juros Moratórios Legais: Análise Crítica As razões desse paradoxo não se mostram claras. Elas podem se
da taxa SELIC à luz da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. In: César encontrar na psicologia das partes, que creem que cláusulas penais mais
Augusto de Castro Fiuza; Otávio Luiz Rodrigues Júnior; Frederico da Costa duras ao possível inadimplente, ainda que possam ser questionadas no
Carvalho Neto (Org.). Direito Civil I Florianópolis: Conpedi, 2015, v. l, p.128-146.
futuro (e, portanto, não realizar o intuito de certeza, ínsito aos contra-
WALD, Arnoldo.A cláusula de escala móvel São Paulo: Max Limonad, 1956.
tos), sejam úteis para reduzir os riscos de descumprimento. Elas também
WEDY, Gabriel. O limite constitucional dos juros reais. Porto Alegre: Síntese, 1997.
podem ter suas fontes na ignorância das partes sobre os riscos e custos
envolvidos com a incerteza jurídica, como aqueles que podem advir dos
processos judiciais que questionam o conteúdo da cláusula penal. Além
disso, elas podem ter sustentação na astúcia negocial das partes, que op-
tam pela adoção de um instituto com efeitos imprecisos exatamente para
poderem jogar, no futuro, com as cartas da incerteza.

Doutor em Direito Civil (USP), Mestre em Direito Privado (UFRGS), Advogado. O autor ag~a-
dece ao acadêmico Matheus Gadonski Stortti Rosa pelo auxilio recebido com a pesquisa
jurisprudencial.
2 Entende-se por cláusula penal - também chamada de "pena convenci?ºª!" ou sin_iplesmente
"multa" - a cláusula que impõe ao devedor uma determinada consequenc1a negativa <:m c~so
de inadimplemento, normalmente correspondendo ao pagamento d_e ~m va_l~r em. dinheiro.
Regulada entre nós fundamentalmente pelo artigos 40~ e 416 do_ Cod1go Civil, _ale_m d~ ~u-
tros dispositivos específicos encontráveis em leis especificas, a clausula penal nao e definida
legalmente.
586 - A CLÁUSULA PENAL E A QUADRATURA DO CÍRCULO: AS FUNÇÕES DA CLÁUSULA PENAL DEPOIS •••
JORGE CESA FERREIRA DA SILVA - 587

Mais claras do que as razões deste paradoxo são as incertezas efica- ~ ci·a de uma dessas funções sobre a outra6, a referência a um
a prevalen al 7
ciais vinculadas à cláusula penal, que se principiam pela função primor- . · t 'ru·co com pelo menos duas funções conjugadas, era usu .
mstltu ou ' '
dial atribuída a ela. Destinar-se-ia a cláusula penal, prioritariamente, a Com O Código Civil de 2002, esse panora1:1a se altera_parcialmen-
incentivar o devedor a evitar o inadimplemento? Ou seria ela, fundamen- odificação de alguns textos legais relativos ao regime geral ~a
talmente, uma cláusula de natureza mais imparcial, por meio da qual as te. A m d . , . d rfil d . t
Cláusula Penal deu ensejo a uma revisão outnnaria o pe o ms i-
partes, no interesse de ambas, focariam na pré-liquidação convencionàl om isso das suas funções. Essa discussão, por sua vez, teve per-
tu t o e, C , . N 1 d .
dos possíveis danos? Qyal o efeito desses diversos enfoques possíveis na :fil distinto daquela existente à luz da legislação antenor. e a, eixa:se
redução judicial ou arbitral da cláusula penal? Havendo um regramen- de promover listagens de argumentos sólidos para ~efender ~ prevalen-
to abstrato de conteúdo maleável, poderiam as partes estabelecer regras cia de uma ou de outra função, para buscar-se realizar uma ~nterpreta-
concretas mais específicas e rígidas para as suas cláusulas particulares? - funcional da cláusula concretamente considerada. Ou seJa, antes de
Se isso fosse possível, a cláusula mais definida e rígida corresponderia a ~::nfocar a prevalência, buscou-se compreender as escolha de funções
um negócio jurídico indireto, a uma nova cláusula distinta da cláusula concretamente acolhida pelas partes.
penal ou a uma cláusula penal, só que delimitada? Contribuiu para isso não só a mudança de alguns textos legais tr~-
Conquanto a cláusula penal conviva há muito entre nós 3 e, com ela, zidas pelo novo Código, ou a abertura d~utr~nária a no_vas hermenêuti-
as questões acima levantadas, pode-se dizer que um grupo de questões s ti'picas de momentos de alteração legislativa. Tambem exerceu papel
ca, p al ,
se tornou mais agudo desde a publicação do novo Código Civil: as re- central a influência de uma marcante obra escrita em ortug que, ate
lativas às funções das cláusulas penais. então, era pouco referida no Brasil. Trata-se da tese _de ~outorame_nt,o
Qyando da vigência do Código Civil de 1916, a compreensão usu- de António Pinto Monteiro, Cláusula Penal de Indemzaçao, que, ao iru-
almente aceita era a de que a cláusula penal trazia consigo duas funções, cio da década de 90 do Século XX, estabelece~ u1:1 novo p_atamar ~e
conjuntamente verificadas. A primeira seria a de reforçar o vínculo, por análise da cláusula penal em língua portuguesa. O livro, escnto a partir
meio da imposição de uma consequência jurídica negativa ao devedor de estudos realizados entre Coimbra e Munique e com profundas re-
(normalmente pecuniária) para o caso de descumprimento. 4 A segun- ferências de direito estrangeiro, trouxe à luz a tendência verificada e~
da seria a de pré-liquidar as perdas e danos, com o que se desobrigava vários ordenamentos de separar as funções da cláusula penal por me10
o credor de provar tanto o dano sofrido pela inadimplência do devedor da admissão de duas cláusulas concretamente específicas. Uma delas
quanto a extensão desse dano. 5 Ainda que houvessem discussões sobre seria mais voltada à liquidação prévia das perdas e danos - as chama-
das Cláusulas de Liquidação de Perdas e Danos9 e a outra, ~ai~ voltada a
3 Cf. Ordenações Filipinas, L. IV, t, LXX.
4 Expressivo nesse sentido é o texto do art. 1.062 do Projeto Bevilaqua, que, após modificações assegurar o adimplemento - a~ chamadas ~;áusulas Penais.,~ o ,~~e ~~
no Congresso Nacional, deu ensejo ao art. 916 do Código Civil de 1916: "Para reforça da abri-
gaçãa, pode ser imposta uma cláusula penal ou seja estipulada conjunctamente com ella ou
verifica no Direito anglo-amencano, com a penalty clauses e a liqm
acto posterior." (Grifou-se). dated damages clauses", no Direito alemão, com as "Vertragsstrafe~ e a
5 No sentido da existência dessa dupla função do instituto unitário, ver ESPÍNOLA, Eduardo.
Systema da Direita Civil brasileira. v. 2, t. l. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1912, p. 254; BEVILAQUA, "Schadenersatzpauschalierung", no Direito francês, com a "clause pena-
Clóvis, Códiga Civil das Estadas Unidas do Brasil. v. IV. 9ª ed. Atual. Bevilaqua, Achilles. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1953, p. 64; CONTINENTINO, Mucio. Da cláusula penal no direito brasi-
leiro. São Paulo: LivrariaAcadêmicaSaraiva, 1926, p.3os.; FULGENCIO, Tito.Manual do Código 6 Ver tópico I, abaixo. . . . t t
Há autores que diferenciam as funções em três. E o caso_ de L1~ong1 Fr~nça, que sus en a que
Civil brasileiro. v. X. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1928, p. 376; MENDONÇA, M. 7
as funções da cláusula penal seriam: refor~o da obrigaço_o, pre-avabaç~o dos danos e pena. Cf~
1., Carvalho de. Doutrina e prática das obrigações. t. l, 4ª ed. Atual. Dias, José de Aguiar. Rio de FRANCA, R. Limongi. Teoria e prática do clausula penal. Sao Paulo: Saraiva, 1_9~8, P: 157. No en
Janeiro: Forense, 1956, p.373; MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direita Privado.3ª ed. São Paulo: tanto ~inda que as ideias de reforco da obrigação e de pena possam ser d1stingu1das, e!a~ se
Revista dos Tribunais, 1984, pp. 59 s.; LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. v. a ro:imam em muitos pontos, de ~o do que podem ser incluídas em um mesmo grupo t1p1co.
li. 6ª ed. Atual. Maria, José Serpa de Santa. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1997, pp. 155 ss.;
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988, pp. P~r isso a divisão binária utilizada no texto. . . _ . . b .
MONTEIRO, António Joaquim de Matos Pinto. Clóusulo penal e mdenizaçao. 3. Reimp. Co1m ra.
197 s. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: parte geral das obrigações. 30ª ed. São Paulo: Saraiva, 8
2002, p. 263 ss. Mais recentemente: AZEVEDO, Álvaro Vilaça. Teoria geral das obrigações e Almedina, 2019. . . - f · 1
AI uns autores ressaltam a condição de antecipação da l1qu1daçao, de sortear; en- a c_om_o
responsabilidade civil. 12° ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 227 ss.; GONÇALVES, Carlos Roberto.
Direito Civil brasileiro. v. 2. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 424 ss.; VENOSA, Silvo de Salvo.
9 c1fusula de liquidação antecipada de perdas e danos. Essa inclusão não altera, porem, a essenc1a
Direito Civil. v. 2. São Paulo: Atlas, 2014, p. 367 ss. do tema.
588 - A CLÁUSULA PENAL E A QUADRATURA DO CÍRCULO· AS FUNÇO-ES DA C ·
JORGE CESA FERREIRA DA SILVA - 589
• LAUSULA PENAL DEPOIS •••

le" e a "clause de dommages-intérêts" e no Direito italiano com " 1 _ culpa11 ou a possibilidade de exigência dos seus efeitos ainda que ine-
1 al ,, "li .d .
so a pen e e qm az10ne convenzionale del danno".10
' a c au
xistissem prejuízos demonstraria o seu aspecto sancionatório ou coati-
Certamente por influência da obra de Pinto Monteiro es · vo.12 Já a imposição de limite ao valor cominado na cláusula à obrigação
~ b al . , sa posi-
çao aca ou prev ecendo na doutrma brasileira que, a partir do Código principal e a possiblidade de haver redução pelo juiz, em caso de excesso,
de 2002, se voltou a tratar da cláusula penal com especial atenção demonstraria a função pré-liquidatória. 13 O que se poderia discutir seria
monografi as, teses e di ssertações. Com isso, a doutrina focada no tema
'em a hierarquia dessas funções, uma em relação à outra. As funções seriam
bus_cou reduzir o campo das incertezas, atribuindo à cláusula penal um essas, mas uma delas seria a prevalente. Era o que se via em Caio Mario
regime que,_ embalado pela autonomia privada, ofereceria uma maior da Silva Pereira e em Orlando Gomes, entre outros. 14
c~areza func10nal, ao mesmo tempo que permitiria uma visão sem rom- Para o Caio Mário, a função fundamental da cláusula penal seria
pimentos com o regramento posto. o reforço do vínculo obrigacional, sendo subsidiária a atribuição pré-
Nada obstante, a prevalência dessa posição doutrinária parec - -liquidatária, haja vista que esta nem sempre se configuraria. 15 Já para
·d ( • d e nao
se ter re fl et1 o ou ain a não se ter refletido) nos J·ulgados d Orlando Gomes, a principal função da cláusula penal seria a indeniza-
· d , mesmo e-
pois o _nº:'º Có~i~~' Civil ter alcançado, em relação a sua publicação, a tória, tendo em conta que a consequência nela cominada poderia, na si-
sua m~ondade civil . Como con~equência, abriu-se um novo paradoxo. tuação prática, reduzir o montante indenizatório. 16
A doutrma, que se voltou a reduzir parte das incertezas sobre a cláusula Assim entendidas as funções da cláusula penal, emergem dessa com-
penal, passou a gerar um no:'o es~a~o de insegurança, na medida em que preensão duas consequências relevantes.
o descasamento
, entre doutrma e JUnsprudência é campo fértil d a d,uvi·d a. A primeira delas diz respeito ao papel da vontade no delineamento
, E a este último paradoxo que se volta o presente artigo. Seu intuito da cláusula penal concretamente estipulada. Considerando que essa du-
e retomar o tema, passados os primeiros 18 anos do novo Cód" c·vil pla função decorre da própria estruturação legal da cláusula, se as partes
. d .d tifi igo i '
visan o a 1 e~ caros sentidos, os descompassas e os possíveis caminhos (ou, em negócios unilaterais, a parte) escolheram incluir uma cláusula
a serem seguidos. penal, automaticamente seriam aplicáveis as duas funções. Em outras
1. Ü SENTIDO DA DOUTRINA palavras, essa dupla função é verificável independentemente do deline-
amento dado pelas partes à cláusula penal em concreto. As manifesta-
. Até a entrada em vigor do Código Civil, a doutrina brasileira ha- ções das partes conducentes à descrição da cláusula não impediria que
via
. se assentado
. , . no entendimento de que a cláusula penal sena · um ms
· _ a dupla função atuasse, ainda que a cláusula penal em particular tenha
t1tuto umtar10, mas com função dúplice, ou seja, um único instituto cuja sido claramente formulada para estabelecer uma verdadeira "pena" para
estrutu~a normativa_ serviria, ao mesmo tempo, à realização de (pelo me-
nos) dois escopos distintos. A cláusula penal perse011iri·a
b- ,
de um 1ad o, a
fi n alidad e assecuratória do adimplemento, por meio de uma imposição 11 A culpa não era expressamente referida no Código Civil de 1916, mas isso não impedia de a
de uma consequência presumivelmente contrária aos interesses do d _ doutrina fazer referência a ela, como imanente à cláusula penal. Cf. CONTINENTINO, Mucio.
d • . eve Da cláusula penal, cit., pp. 113 ss.
or que, por isso, tena um _:11aio: i~ce~tivo de evitar O inadimplemento. 12 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil, cit., p. 157.
13 SILVA,Jorge Cesa Ferreira da. Inadimplemento das obrigações. São Paulo: Revista dos Tribunais,
De outro_lad~, a uma funçao pre-liqmdatória dos danos decorrentes do 2006, p. 237.
eventual mad1mplemento, pela qual o credor estaria liberado da tarefa 14 Mesmo depois do novo Código Civil, manifestações doutrinárias seguiram estabelecendo
hierarquias funcionais. VerNEVES,José Roberto de Castro.Direito das obrigações. Rio de Janeiro:
de provar tanto os danos sofridos quanto a respectiva extensão. GZ, 2009, p. 426, sustentando preponderar a pré-avaliação dos danos. Em sentido distinto,
afastando a existência de função coativa ou assecuratória, de modo a entender cabível apenas
Essa dupla função estaria presente na estruturação legal da cláusu- a função indenizatória, cf. RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz.Função, natureza e modificação da
la penal, sendo, portanto, diretamente decorrente desta. A demanda de cláusula penal no Direita Civil brasileiro. Tese de doutorado. Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo, pp. 272 ss.
15 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. 2. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense,
10 1997, p. 101.
Cf. MONTEIRO, António Joaquim de Matos Pinto. Cláusula penal cit 16 GOMES, Orlando. Obrigações. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p.159.
' ., p. 497 55.
590 - A CLÁUSULA PENAL E A QUADRATURA DO CÍRCULO: AS FUNÇÕES DA CLÁUSULA PENAL DEPOIS ••• JORGE (ESA FERREIRA DA SILVA - 591

o incumprimento ou tenha sido projetada para pré-estabelecer o valor - e volta a incentivar o adimplemento, mas, sim, a facilitar o cum-
nao s d, . . d . , . El
futuro da indenização. 17 •
pnmento, ai
·nda que relativo à pretensão secun aria, m emzatona. a
A segunda consequência diz respeito à insegurança interpretativa · lifica O exercício da pretensão do credor, ao mesmo tempo que as-
simp d . d" 1 .
da cláusula concreta, circunstância de grandes efeitos práticos em siste- segura ao devedor que ele nada pagará se, o seu i~a 1mp ement~, me-
mas que, como no caso brasileiro, autorizam um considerável espaço de . ·
xistirem danos •Decorre disso que ' havendo. , necessidade
. de reduçao
_ dos
.
intervenção judicial na eficácia da cláusula penal. Qiando essa possi- efeitos da cláusula, em razão de algum cnteno de desproporçao, o eqm-
bilidade de intervenção é inexistente ou bastante restrita, os problemas líbrio se foca no provável valor do dano.
interpretativos se limitam, já que o processo de aplicação legal às cir- Esse perfil se assemelha, mas não se e~ui:'ale, ao da cláusula penal.
cunstâncias do caso enseja um menor grau de subjetivismo. Ainda que À cláusula penal caberia realizar o seu pr~pno :egramento legal, ~as,
haja incertezas sobre o :finalidade específica da cláusula concreta, essa haja vista a ocorrência da possibilidade de mserçao p:las partes de clau-
dúvida tende a não afetar a aplicação normativa. No entanto, quando é sulas de liquidação de perdas e danos, a função da clauAs~a penal acaba-
atribuído ao julgador um maior espaço de moldagem dos efeitos da cláu- ria sendo mais definida ou, ao menos, o espaço ~erm~ne~tico das n?rmas
sula - moldagem que sempre ocorrerá a posteriori, no momento do lití- legais sobre a cláusula penal passaria a ser ma1~ delimitado. A cla~sula
gio - a dúvida passa a acarretar consequências relevantes. Tome-se, por penal passaria a mirar a maior proteção d~ a~implement~, a partir da
exemplo, o caso da concretização da expressão "manifestamente exces- · posição de uma consequência que, a priori, representaria um mal a
im dd ,. 1
sivo", constante do art. 413 do Código Civil. Aquilo que é classificável ser evitado pelo devedor. Por isso, a inexistência e ano sera irre evan-
como "manifestamente excessivo" se altera conforme a compreensão da te à aplicação da cláusula penal e sua eventual r~duç~o d_eve levar em
função atribuída à cláusula penal em concreto. Acolhida a coação como conta sua característica de pena. Além disso, na v1Suali':açao do q~e se-
função preponderante, a consequência cominada na cláusula correspon- . "manifestamente excessivo", a noção de pena tambem exerceria um
de - ou, ao menos,pode corresponder- a um plus em relação ao valor do ;:pel relevante, pois não poderia s~~ tido fºr "ma~if~sto" aquilo_ que se
dano. Por outro lado, entendida como função principal a pré-liquidatá- restringisse a ser superior ao dano, Jª que e da essencia das coaçoes q~e
ria, a consequência cominada deve equivaler ao dano - ou, ao menos, não elas envolvam uma consequência mais forte que o mal que se busca evi-
pode corresponder a algo além daquilo que se cogita tratar-se do dano. 18
• - ?Q
tar, exatamente para aviar a prevençao.-
Essas circunstâncias, aliadas à referida influência exercida pela obra Como se constata, a distinção prática entre cláusula de li~uidação
de Pinto Monteiro, convidou a doutrina a repensar o tema ao interpretar de danos e cláusula penal é tênue e, em muitos casos, o p~ó?no regra-
o novo Código Civil e, a partir dele, tornou-se usual a referência a duas mento da cláusula penal poderia, em tese, dar conta dos objetivos perse-
cláusulas distintas, ainda que equiparáveis entre si em diversos aspectos: guidos por ambas as cláusulas. No entanto, a i~trodu~ã~ d~ cláusula de
a cláusula penal e a cláusula de liquidação de perdas e danos. liquidação de danos e, a partir disso, a percepçao da distmçao entre elas
A cláusula de liquidação de perdas e danos é aquela que, como o trazem consigo a grande vantagem de atribuir maior clare~ª-ªº escopo
nome indica, tem por fim pré-estabelecer o montante das perdas e da- da cláusula penal, já que parte das funções que for~m !rad:cionalmen-
nos.19 Em síntese, ela dispensa o credor de demonstrar a extensão dos te a ela vinculadas pode ser atribuída à cláusula de liqmdaçao de danos.
danos, mas não o dispensa de provar a existência deste. Portanto, par- Sendo a cláusula de liquidação de danos uma opção aberta às partes, a
tindo-se do suposto de que danos ocorram, a respectiva liquidação já se interpretação do caso passa a incorporar um relevante elem~nto herm~-
encontra estabelecida. Desse modo, a cláusula de liquidação de danos nêutico: considerando que as partes, podendo optar pela clausula de li-
17 SILVA,.Jorge Cesa Ferreira da. Inadimplemento das obrigações, cit., p. 238.
quidação de danos, fizeram a opção pela cláusula penal, pre:ume-se que
18 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Inadimplemento das obrigações, cit., p. 239.
0
escopo perseguido pela cláusula de liquidação de danos nao era o que-
19 A aqui chamada cláusula de liquidação de perdas e danos é referida de outros modos similares
pela doutrina, como 'cláusula de prefixação de indenização", "cláusula de fixação antecipada
do montante da indenização", "cláusula de liquidação antecipada das perdas e danos", entre
outros. SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Inadimplemento das obrigações, cit., p. 241s.
20
592 - A CLÁUSULA PENAL E A QUADRATURA DO CÍRCULO: AS FUNÇÕES DA CLÁUSULA PENAL DEPOIS •••
JORGE CESA FERREIRA DA SILVA - 593

rido pelas partes ou, ao menos, não era o suficiente para realizar suas in- nal do fenômeno concreto. A possibilidade de as partes estabelecerem
tenções negociais concretas. finalidades específicas daria à cláusula penal uma interpretação restriti-
Como reflexo, a introdução da cláusula de liquidação de danos, va, pela qual se ressaltaria a função coercitiva. Por certo que, cabendo às
como uma opção das partes, atribui maior realce à função assecurató- partes a opção, poderiam elas fixar cláusulas penais com finalidade espe-
ria do adimplemento ou coercitiva, já que esta função não é encontrável cífica de prefixação das perdas e danos, hipótese na qual a cláusula con-
na cláusula de liquidação de danos. No entanto, como apontado acima, creta teria a feição de "fixação antecipada de indenização". 23
essa atribuição é indireta ou reflexa, o que diferencia essa compreensão Mais recentemente, em estudo monográfico voltado fundamental-
daquelas que buscam verificar, no regramento abstrato da cláusula pe- mente à distinção entre cláusulas penais moratórias e compensatórias,
nal, a função essencial ou prevalente. O que a interpretação decorrente Vivianne da Silveira Abilio acolheu a distinção, ainda que sustente que
da introdução da cláusula de liquidação de danos demonstra é que parte o caráter essencialmente penal somente seria visualizável no âmbi-
das funções tradicionalmente atribuíveis à cláusula penal pode ser dele- to das cláusulas penais moratórias. 24 Também Marcelo Matos Amaro
gada, pelas próprias partes, a uma outra cláusula, mais específica e par- da Silveira, em trabalho dedicado à cláusula penal e ao sinal sob o viés
ticularizada, de sorte que a cláusula penal concreta acabaria por ter um comparativo, defendeu a distinção, compreendendo que, sob o manto
núcleo hermenêutico definido por exclusão, sem embargo de sua nor- do regramento geral da cláusula penal, estariam compreendidas tanto a
matividade abstrata acolher a adoção de outras funções. Ou seja, o nú- cláusula penal em sentido estrito quanto a cláusula de liquidação ante-
cleo funcional da cláusula penal não se encontraria no plano normativo cipada dos danos. 25 Mais recentemente ainda, André Silva Seabra dedi-
geral, como tradicionalmente se acostumou a enfocar, senão no plano cou sua tese de doutoramento à cláusula penal, sustentando a distinção
concreto da vontade das partes. A hermenêutica funcional da cláusula entre cláusulas penais e cláusulas de prefixação de danos, mas pontuan-
penal volta-se, pois, mais à concretude dos fatos do que à generalidade do que ela não se põe como modalidades abrangidas pela moldura geral
abstrata das normas. do regramento da cláusula penal, mas, antes, como um conceito abs-
Os ganhos decorrentes dessa maior clareza foram seguramente uma tratamente autônomo e fundado em fonte distinta da cláusula penal:
das grandes razões da sedução exercida por essa distinção na doutrina enquanto que a cláusula penal encontraria fundamento legal geral nos
que se ocupou da cláusula penal posteriormente ao Código de 2002. 21 artigos 408 a 416 do Código Civil, a cláusula de prefixação de danos, na
Em seguida ao novo diploma, comentários ao Código passaram a sus- liberdade de contratar. 26
tentar a possibilidade de inclusão das cláusulas de liquidação de dano no Outros textos doutrinários seguiram a mesma linha27, inclusive no
Direito brasileiro. 22 Também trabalhos monográficos voltados à cláusu- âmbito da manualística28 , conquanto, neste campo, o acolhimento do
la penal abordaram especificamente o tema, vindo a acolher a distinção
23 ROSENVALD, Nelson. Cláusula penal: a pena privada nas relações negociais. Rio de Janeiro:
entre cláusula penal e cláusula de liquidação de danos. Lumen Juris, 2007, p. 81 ss, em especial p. 84 e p. 299. Pouco tempo depois, a dissertação de
mestrado de Fernanda Girardi Tavares também se ocupou do tema, aceitando a distincão entre
O primeiro deles foi o estudo de Nelson Rosenvald, no qual o autor cláus~la de liquidação de dano e cláusula penal como veículo para a compreensão f~ncional
sustenta que uma visão meramente abstrata da cláusula penal, voltada da clausula penal. Cf. TAVARES, Fernanda Girardi. Redução da cláusula penal: uma releitura
baseada no perfil funcional. Porto Alegre, 159 p. Dissertação (Mestrado em Direito} Faculdade
apenas à análise dos textos legais, é insuficiente à compreensão funcio- de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS}, Porto Alegre, 2007.
24 A81LIO, Vivianne da Silveira. Cláusula penais moratória e compensatória: critérios de distinção.
Belo Horizonte: Forum, 2019, p. 59 ss e 184 ss.
21 Mesmo muito antes do novo Código Civil, Fabio de Mattia já havia tratado do tema entre nós. 25 SILVEIRA, Marcelo Matos Amaro da. Cláusula penal e sinal: as penas privadas convencionais na
Cf. De MATTIA, Fabio Maria. Cláusula penal pura e cláusula penal não pura. Revistados Tribunais, perspectiva do Direito português e brasileiro. Rio de Janeiro: GZ, 2019, p. 25 ss e 192.
n. 383, 1967, p. 38. SEABRA, André Silva. Limitação e redução da cláusula penal. São Paulo, 390 p. Tese (Doutorado
22 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Inadimplemento das obrigações, cit., p. 237 ss. Digno de nota em Direito} ~acuidade de Direito da Universidade de São Paulo (USP}, São Paulo, 2020, p. 57
nesse campo foi a mudança de posição de Judith Martins-Costa, da primeira para a segunda ss, em especial p. 60.
edição de seus comentários, acolhendo a cláusula de liquidação de perdas e danos e suas KONDER, Carlos Nelson.Arrase cláusula penal nos contratos imobiliários. Revistados Tribunais,
consequências em relação à interpretação da cláusula penal. Cf. Comentá rias ao novo Código V. 4, 2014, p. 83 55.
Civil: do inadimplemento das obrigações. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 613 ss. A SCREIBER, Anderson.Manual de Direito Civil contemporâneo. São Paulo: Saraiva Educação, 2018;
primeira edição é de 2003. Mais recentemente, ver NANNI, Giovanni Ettore. Comentários ao SCHREIBER, Anderson. Obrigações. ln: TEPEDINO, Gustavo (org.}. Fundamentos do Direito C,Wl.
Código Civil. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 669. v. 2, Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 386 ss.
594 - A CLÁUSULA PENAL E A QUADRATURA DO CÍRCULO: AS FUNÇÕES DA CLÁUSULA PENAL DEPOIS ••• JORGE CESA FERREIRA DA 51LVA - 595

t:ma a~~da seja parcial, o que parece se justificar pelo perfil mais descri- das partes), mas, sim, no da aplicação das normas específicas da cláusu-
tivo utilizado pelos manuais brasileiros29 • la penal, oriundas dos arts. 408 a 416 do mesmo Código.
. _A observaç~o desse sta~s demonstra a condição doutrinária expan- Mas não se pode concluir disso que a jurisprudência brasileira não
s10ni~ta no sent~do_ do :colhimento da distinção entre a cláusula penal esteja apta a desenvolver-se no sentido adotado pela doutrina. Ao con-
da clausula ~e li_qmda?ªº de dano no Direito brasileiro, do que decor- trário, constata-se um campo aberto a essa adoção, desde que acolhidos
rem consequencias na mt~rpr:tação ~as cláusulas penais, tanto no plano alguns ajustes.
legal quanto no que respeita as previsões contratuais concretas. Jo Uma análise mais detida da jurisprudência dos diversos tribunais
Com efeito, é majoritário o acolhimento da distinção entre os auto- brasileiros, apesar de desejável, não se coadunaria com os limites do pre-
re~ que mais especificamente se voltaram ao tema, em trabalhos mono- sente artigo. Porém, o exame de algumas decisões do STJ, competente
?-ra~~os ou a_cad~micos de maior fôlego, como dissertações e teses, 0 que que é para dar a palavra final à interpretação da legislação federal (CR,
mdicia um smal importante em relação à compreensão mais autorizada art.105),já oferece uma visão privilegiada da posição da jurisprudência
e~ ~elação ao tema. Por certo, não seria de se esperar uma unanimidade brasileira. Essa visão, vale lembrar, não é turbada pela ação restritiva dos
teonc_a ~1:1 torno dele,_ mas se pode dizer que, postas as manifestações enunciados 05 e 07 da Súmula do STJ. Isso porque o tema não depen-
d_outnnaria~ em uma linha evolutiva, identifica-se uma franca tendên- de de direta intepretação de cláusula contratual, que não só pode, como
cia ao acolhimento da distinção entre as cláusulas. 31 também já deve (ou deveria) ter sido feita pelo tribunal de origem, bem
li. ÜMA VISÃO DA JURISPRUDÊNCIA
como não corresponde à reexame de prova. A decisão do tema envolve
a interpretação e aplicação de legislação federal, sendo suficiente, por-
. , 1?-pesar da clareza do sentido dessa linha evolutiva no plano dou- tanto, a verificação fática pelos tribunais a quo.
tnnano, bem_ como do tempo decorrido desde que essa doutrina pas-
Das decisões do STJ, extraem-se algumas manifestações dignas de
sou a se manifestar no Brasil, constata-se que ela, ao menos ainda não
reflexão, haja vista sua representatividade ao tema aqui debatido.
se fez refletir nos julgados. Com efeito, os tribunais têm-se most;ados
atrelados à visão tradicional, amplamente prevalente antes do Código de A primeira delas encontra-se no julgamento do REsp 1.424.074-SP,
2~02, segundo a qual a cláusula penal possuía função, pelo menos, dú- da relatoria do Min. Villas Boas Cueva.32 Tratava o caso de um contra-
to atípico, firmado em março de 2001 e intitulado de "locação de banco
plice, ao me:mo te:11Pº _de coação e de liquidação antecipada dos danos.
Em geral, nao se vem discussões acerca da possibilidade de as partes te- de dados", envolvendo uma prestadora de serviços e uma grande ban-
rem se ocupado da redação de cláusulas especificamente liquidatárias deira de cartão de crédito. A noção de "locação" parece ter sido utiliza-
bem como de terem as partes optado por um perfil mais coativo à cláusu: da de modo bastante flexível na designação contratual, já que o acordo
la p~nal concretamente negociada. De fato, as discussões não costumam não envolvia uma cessão temporária de um banco de dados, mediante
se por na moldura argumentativa do art. 112 do Código Civil (intenção uma correspondente remuneração, mas, sim, a realização de serviços so-
bre os dados temporariamente transferidos. Pelo contrato, a prestadora
dos serviços recebeu da contratada um banco de dados cujas informa-
29 Vide nota 04, acima. ções foram manipuladas, por meio de fusão e posterior expurgo das in-
30 SEAB~A, André Silva. Limitação e redução da cláusula penal, cit., p. .
31 147 formações duplicadas (sistema "merge and purge"), de modo a obter-se
E_xcedoei5podem ser identifica~as em CASS~TTARI, Christiano. Multa contratual: teoria e prá-
tic_a a c aus~la pen~!. 2ª ed. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 52 ss, que não trata da um conjunto de informações mais proveitosas. Por isso, a prestadora de
clausula de l1qu1daç_ao de danos, acabando por acolher a posição mais tradicional da cláusula
penal como uma unidade dotada de diversas funcões e em RODRIGUESJUNIOR Ot · L · serviços seria remunerada pelas unidades de registros que fossem apro-
Nature afi - dff,. - . • ' , avio u1z.
(D z , unçaa e_m~ 1 1caçao da e1ausula penal no Direito Civil brasileira. São Paulo. 41 a p. Tese veitadas pela contratada para fins de mala direta e telemarketing, no pra-
outorado em Direito) Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Sã p 1
20 zo de 6 meses contados do acordo.
06, P· 227 ss. Rodrigues Junior aborda expressamente o tema e O afasta suste~tan~o ~uu~'
apesar de se tratar de uma compreensão sedutora, a distincão não tem c~nver ência com ~
;egr~m~n~o legal ~a cláusula pen~! no Direito brasileiro. AÍém disso, sustenta~ autor que a
unçao unica da clausula penal sena a de pré-liquidação dos danos. 32 STJ, 3ª Turma, REsp 1-424.074-SP, Rei. Min. Villas Boas Cueva, j. 10.11.2015.
596 - A CIÁUSULA PENAL E A QUADRATURA DO CÍRCULO: AS FUNÇÕES DA CIÁUSULA PENAL DEPOIS .••
JORGE ÜSA FERREIRA DA 51LVA - 597

Prestados os serviços objeto do contrato, ambas as partes passaram


a discutir sobre o inadimplemento da outra, tendo sido afastado o des- cumpnmen· t o (cf• "•·•mais o valor adicional complementar
. a ser
, pago
ul ao
cumprimento da prestadora de serviços e confirmada a violação contra- :final do 'merge and purge"'). Ou seja, o valor prev1st~ na claus a pe-
tual pela bandeira de cartão de crédito, consistente no não pagamento nal em questao - era um "plus" em relação ao dano efetivo decorrente do
de uma parcela dos registros que, conforme comprovado durante a ins- inadimplemento. . ..
trução processual, foram efetivamente aproveitados. Essa parcela teria Nada obstante, esta intenção, em si, não fo1 explic1ta~en~e pr~b_le-
correspondido a 20% dos registros. . d no aco'rdão mas parece ter sido aceita de maneira implícita.
matiza a , . 1' ul al fi ·
No seu recurso especial, a prestadora de serviços se insurgiu contra Além disso, a viabilidade do caráter sancionatório da c aus a pen o1
o afastamento da cláusula penal contratualmente prevista, afastamento igualmente aceito, sem discussão. .
esse decorrente da compreensão, do tribunal de origem, de que a cláu- O que o caso demonstra é que a Terceira Turma, ao Julgar ocas~~
sula seria nula por superar o valor da obrigação principal e, assim, des- fez uma intepretação implícita da vontade das partes, bem co~o ace1
respeitar o disposto no art. 412 do Código Civil. 33 A tese da prestadora tou que, entre as funções possíveis de, abstratamente, ser, ex~rc1das pela
de serviços foi acoThida pela Terceira Turma do STJ, que-corretamente cláusula penal, podem as partes dispor sobre elas, dan~o ~ clausula con-
- manteve o posicionamento de que o eventual excesso da cláusula pe- creta o perfil que entendam relevante à operação econo1:uc_a entab~a~a.
nal em relação à obrigação principal não conduz à invalidade da cláusu- Digno de consideração, nesse sentido, é a expressa referencia no acorda~
la, mas à respectiva redução. Diante disso, a corte fixou em 20% o valor a outros fatores de ponderação do percentual fixado, fatores esses que so
devido a título de cláusula penal, montante a ser calculado sobre o valor fazem sentido dentro da ótica sancionatória.
da indenização já concedida e equivalente ao percentual descumprido. A segunda manifestàção relevante encontra-se no Tema 970, fru-
Na equalização do valor da cláusula, a Terceira Turma também levou to de recurso repetitivo afeito à Segunda Seção e cuja tese_ f~i fixada em
em conta não ser claro o alcance "da cláusula contratual que estabeleceu . d e 2009 . O Tema 970 se relaciona às cláusulas
ma10 . , penais
. msertas em -
o método de filtragem denominado "merge and purge" e a ausência de t ·mobili"ar'1·os relativos à aquisição de 1move1s em construçao,
má-fé na conduta da empresa ora recorrida." contra os 1 . :fi. alid d d
. re d"1g1· d o.. "A cláusula penal moratória
send O assim . _ tem a n a be 1 e_
Vale indicar ainda que a cláusula em questão possuía a seguinte indenizar pelo adimplemento tardio da obngaçao, e, em regr:, esta e e
redação: cida em valor equivalente ao locativo, afasta-se sua cumulaçao com lu-
"( ... ) Caso se verifique por parte da [contratante] qualquer ato cros cessantes. " .
em desacordo com o disposto acima, caberá a [contrada] uma Como facilmente se constata, o texto não estabelece uma re~ra in-
indenização igual ao dobro do valor a ser pago pela [contratante] flexível a ser seguida em qualquer caso envo~ve~d~ cláusulas pen~s mo-
a [contratada], a saber, o dobro do valor do adiantamento mais ratórias apostas a contratos de aquisição de imove1s ~m construçao, mas
o valor adicional complementar a ser pago ao final do 'merge
and purge'." indica um norte interpretativo para cláusulas penais q~e p~ssuam_ um
certo perfil. Ao assim fazê-lo, o Tema 970 tem u_ma aplicaçao restrita~
Apresenta-se claro da leitura desta cláusula que a intenção das par- um dado perfil de cláusula, não impedindo, por isso, ~ue outras conse
tes consubstanciada no texto era a de evitar o inadimplemento, por meio quências jurídicas sejam cominadas por cláusulas penais dotadas de.ou-
da cominação de uma verdadeira sanção à conduta contrária ao cumpri- , •
tras caracterist1cas. 34
mento, tanto que exigia o dobro do valor que seria devido. Além dis-
34 · d d · - que vinha se consolidando no STJ
so, vale perceber que a cláusula não se voltava à pré-liquidar os danos, O Tema 970 vai de encontro a um coniun_t~ e_ ec1sot!m contratos destinados à venda de
haja vista que os danos seriam liquidados pelo exercício da pretensão ao f!~~~fsºe: ~~~s~:i~!~~~!~~a~~~~1o:~~f ~~;::~~n:t:r~~er~_i~i~=• r;:;~~~!:q~:~~~~~r~i~:J;
cobradas juntamente com a demanda por perdas e danos'.n~dimq !emento ~esse sentido, STJ,
na cláusula penal equivalesse aos d~nos_dec?rrent~s_do '/P/~of2 assim e~entado: "DIREITO
33 Art. 412. O valor da comi nação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação 1 6
principal. 3ª Turma, REsp nº 1355554/RJ, Rei. M~i1d~: 1teó~~~Ê~ CÔNSTRUÇÃO. INADIMPLEMENTO
CIVIL. PROMESSA DE COMPRA EVE . VEL MORA CLÁUSULA PENAL. PERDAS E DANOS.
PARCIAL AIRASPOSSIBILIDADE.
CUMULAÇAO. O NA ENTREGA 1.-ADO IMb~
o ngaçao : de indenizar é corolário natural daquele que
JORGE CESA FERREIRA DA SILVA - 599
598 - A CLÁUSULA PENAL E A QUADRATURA DO CÍRCULO: AS FUNÇÕES DA CLÁUSULA PENA~ DEPOIS •••

em sentido contrário. Ante a inexistência de tal notificação, o termo fi-


Além disso, vale constatar que o Tema 970 não discute sobre a in-
nal do contrato ficou estabelecido para 30.06.2004.
terpr_:tação da m~nifestaç~o das part~s e tampouco se ocupa de distinguir
Ocorre que, em 16.04.2004, a sociedade jornalística contratante
as clausulas penais das clausulas de liquidação de danos, que - conside-
tomou ciência formal, por meio de notificação a ela enviada, de que a
rando a _conclusão ~tingida - poderia ser o caso. Conclui-se disso que
contratada- e, por conseguinte, o famoso jornalista-âncora a ela vincu-
el~,_segm?do o cammho apontado acima, não incorpora a visão doutri-
lado - dava por encerrada a relação contratual, fato que já estava sendo
naria mais recente acerca das cláusulas penais e de suas cláusulas cor-
veiculado pela mídia. Na data da notificação, além disso, o jornalista já
relatas. N~da_ obstante, o Tema 970 autoriza a interpretação de que as
havia acertado, com uma sociedade concorrente, os termos dos seus no-
partes estao livres para estabelecer cláusulas com outro desiderato, des-
vos compromissos profissionais. Para esta sociedade, o jornalista passou
de que a consequência estabelecida na cláusula penal em concreto não
a atuar publicamente dois dias depois da notificação de encerramento
corresponda à integralidade dos danos indenizáveis oriundos da mora.
O espaço para a definição do regime jurídico da cláusula em concreto contratual à outra sociedade, em 18.04.2004.
portanto, segue preservado.
' Diante disso, houve inobservância do prazo contratual, o que con-
substanciou inadimplemento que ensejava a aplicação da cláusula penal
A terceira manifestação que merece reflexão verifica-se em duas de-
pactuada. Segundo ela, a existência de descumprimento contratu~ e_:1-
cisões que receberam grande atenção em face das partes envolvidas. Em
sejaria o dever de pagamento do valor de R$ 1.200.500,00 (um milhao,
~ma delas, liti?ara°: a maior rede jornalística brasileira e um jornalista,
duzentos mil e quinhentos reais). O!ianto deste valor foi fixado a título
an~ora de tele3ornais e amplamente reconhecido do público. Em outro,
de sanção, quanto foi fixado a título de liquidação de dano, não fica cla-
a disputa se deu entre um famoso cantor, que assumiu a função de apre-
ro. O que se pode dizer é que tanto o acórdão do STJ quanto as decisões
sentador de programa televisivo, e a sociedade jornalística que O havia
anteriores, de primeira e segunda instâncias, reconheceram a existência
contratado. Em ambos, a discussão se deu sobre a aplicação do art. 413
de danos à sociedade jornalística contratante, decorrentes, entre outros,
do Código Civil a contratos parcialmente cumpridos e extintos, antes
do elemento surpresa envolvido no conjunto de atos que resultaram na
do prazo, por uma das partes, sem que a outra tenha dado causa à an-
tecipada extinção. extinção do contrato.
Em essência, o processo judicial se voltou à cobrança da multa con-
O primeiro desses casos é o REsp 1.186.789 - RJ, da relataria do
vencional pela sociedade jornalística contra a sociedade contratada, re-
Min. Luis Felipe Salomão. 35 Tratou o recurso de um contrato celebrado
presentativa do jornalista, bem como contra este, de modo que o cerne
em 01.04.2000 entre uma grande rede jornalística e uma pessoa jurídi-
da discussão se estabeleceu em torno da aplicação ao caso do art. 413 do
ca representativa de jornalista nacionalmente reconhecido, não só pela
Código Civil. Conforme os réus-recorrentes, faltariam apenas 74 dias
sua com~etênc~a,_ mas também pelo fato de ter atuado para essa grande
para o total cumprimento do prazo contratual equivalente a 1.475 dias
empresa 3ornalística por aproximadamente 30 anos. O contrato em dis-
e, por isso, far-se-ia necessária a redução da cláusula penal, a ser propor-
cuss~o fora celebrado para vigorar até 31.03.2004,prorrogando-se auto-
cionalizada em relação ao tempo de cumprimento contratual. Por outro
maticamente por mais três meses, caso não houvesse prévia notificação
lado, sustentou a autora-recorrida que os danos sofridos foram conside-
pratica ato_l_esi~o ao interesse ou direito de ou~rem. Se a cláusul~ penal compensatóriafunciona ráveis, razão pela qual a multa se justificava.
como preftxaçao do~p~rd?s e ~anos, o mesmo nao ocorre com a clausula penal moratória, que não
compenso nem substitui o mod,mplem<:_nt?, apenas pune o moro. 2.-Assim, a com inação contratual Entendeu a O!iarta Turma, confirmando as decisões prévias, que
de uma m_ulto para o caso de mora nao interfere na responsabilidade civil decorrente do retardo
no cumprimento da obrigação que já deflui naturalmente do próprio sistema. 3.- o promitente a multa poderia ser cobrada, diante do inquestionável inadimplemen-
comprador,~~ caso de atraso na entrega do imóvel adquirido pode pleitear, por isso, além da to verificado, mas que ela deveria ser reduzida, em face da ocorrência de
multa m?ratona expressamente estabelecida no contrato, também o cumprimento mesmo
qu~ t_:1rd10 ?ª ?brigação e ainda.ª indenização correspondente aos lucros cessantes pela não adimplemento parcial, correspondente à maior parte do prazo contra-

fru1çao do 1movel ~urante per'.odo da mora da promitente vendedora. 4.- Recurso Especial
tual. Essa redução, por sua vez, não poderia equivaler a um juízo de pro-
a que ~e nega prov1m~nt_o: - Grifou-se. No mesmo sentido: STJ, 3ª Turma, REsp 953907-MS,
Rei.-~'~- Nancy Andngh1, J. 23.03.2010; STJ, 4ª Turma; AgRg no Ag 741776-MS, rei. Min. Raul porcionalidade estrita, já que a norma extraída do art. 413 do Código
AraUJO, J. 07.11.2013.
35 STJ, 4ª Turma, REsp 1.186.789-RJ, Rei. Min. Luis Felipe Salomão, j. 20.03.201 4 .
600 - A CIÁUSULA PENAL E A QUADRATURA DO CÍRCULO: AS FUNÇÕES DA CIÁUSULA PENAL DEPOIS •..
JORGE ÜSA FERREIRA DA SILVA - 601

Civil não pressupõe uma relação de equivalência matemática entre dano


e efeito previsto na cláusula, mas se vale de critérios de equidade, atri- e, portanto, o correto cumprimento. Nesta hipótese, o apresentador te-
buindo ao juízo a competência de moldar os efeitos da cláusula à luz das ria direito a uma remuneração anual equivalente a R$ 480.000,00 (qua-
especificidades do caso concreto. trocentos e oitenta mil reais). Tendo em vista tal circunstância e à luz
da equidade, a redução a R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) estaria
Diante disso, e tendo em conta as características do caso e dores-
justificada. Na dicção do a~órd~o, a "red~ção~ da_ aludi~a ~-ulta para~$
pectivo inadimplemento, a Qgarta Turma entendeu por manter a deci-
500.000,00 (quinhentos mil reais), pelas mstancias ordmarias, em razao
são "a quo", pela qual a multa teria sido reduzida à metade, o que, diante
do cumprimento parcial do prazo estabelecido no contrato, observou o
dos dias faltantes ao completo adimplemento, equivaleu a uma conside-
critério da equidade, coadunando-se com o propósito inserto na clá~-
rável diferença em relação ao juízo de proporcionalidade estrita.
sula penal compensatória: prévia liquidaçã~ das perd~s e dan~s ex_pen-
Conforme consignado no acórdão, "entender de modo contrário, mentados pela parte prejudicada pela rescisão antecipada e imotivada
reduzindo a cláusula penal de forma proporcional ao número de dias do pacto firmado, observada as peculiaridades das obrigações aventadas."
cumpridos da relação obrigacional, acarretaria justamente extirpar uma
Em ambos os acórdãos aqui referidos, identificam-se característi-
das funções da cláusula penal, qual seja, a coercitiva, estimulando rup-
cas que merecem algumas notas.
turas contratuais abruptas em busca da melhor oferta do concorrente e
induzindo a prática da concorrência desleal." A primeira é a de que, tal como visto nos outros casos aqui refe-
ridos, não houve uma discussão sobre a real intenção das partes ao es-
Fundamentos similares foram deduzidos pela Qgarta Turma no
tabelecerem a cláusula penal, bem como não houve menção à possível
acórdão relativo ao REsp 1.466.177-SP,igualmente relatado pelo Min.
ocorrência de cláusula de liquidação de danos. Em ar;nbos os casos, a
Luís Felipe Salomão e de contornos muito similares. 36
abordagem judicial levou em consideração as circunstâncias do caso
Neste caso, tratou-se igualmente de extinção antecipada de contra- concreto, mas, nelas, a intenção das partes, consubstanciadas na expres-
to de prestação de serviços envolvendo, de um lado, um famoso cantor, são contratual utilizada não foi o foco maior da análise. A avaliação da
que, em razão do contrato, atuaria como apresentador de um programa cláusula em concreto levou em conta, sobretudo, o perfil normativo da
televisivo, e, de outro, uma sociedade jornalística detentora de um canal cláusula penal que, no plano abstrato, prevê distintas funções, funç?es
de televisão. O contrato fora celebrado para vigorar por 12 meses, mas, essas que seriam verificadas, no caso, independentemente das especifi-
por deliberação unilateral e imotivada da sociedade jornalística tomado- cidades da vontade das partes.
ra dos serviços, foi extinto depois de transcorridos 6 meses. Para a hipó-
Além disso, identifica-se uma forte compreensão de que a pena
tese, o contrato previa cláusula penal no montante de R$ 1.000.000,00
convencional possui, necessariamente, uma função coativa, sancionató-
(um milhão de reais). Iniciado o litígio para a cobrança da pena con-
ria, destinada a evitar o inadimplemento. Decorre disso que, apesar de
vencional, as partes discutiram sobre a incidência do art. 413 do Código
não se poder falar em uma prevalência de uma função _sobre a(s) outr~(s),
Civil, tendo a Qgarta Turma seguido a orientação advinda do tribunal "a
pode-se dizer que a função sancionatória é reconhecida pelo STJ, visto
quo" de fixar o valor devido em 50% daquele previsto na cláusula penal.
que ambas reduções levaram em conta essa função específica.
Ao assim agir, a corte não aplicou a simples proporção estrita (50%
do prazo= 50% da pena convencional), como poderia parecer em um Ili. À GUISA DE CONCLUSÃO: O STATUS E O FUTURO DA
primeiro momento, mas valeu-se também de um juízo de equidade. Isso QUADRATURA DO CÍRCULO NAS FUNÇÕES DA CLÁUSULA PENAL
porque levou em conta não só o montante previsto na cláusula, mas tam- De uma análise geral da jurisprudência, bem como dessa pontu-
bém os valores - comparativamente distintos - que cada parte obteria al análise de relevantes manifestações judiciais como procedido acima,
(ou poderia obter) caso tivesse sido mantido o curso contratual normal constata-se, em primeiro lugar, a existência de uma cisão entre a linha
evolutiva da doutrina e a posição adotada pelos tribunais, ainda afeita
36 STJ, 4ª Turma, REsp 1.466.177 SP, Rei. Min. Luis Felipe Salomão, j. 20/06/2017.
à interpretação mais tradicional acerca das funções plurais da cláusula
602 - A CLÁUSULA PENAL E A QUADRATURA DO CÍRCULO: AS FUNÇÕES DA CLÁUSULA PEN0L DEPOIS ••• JORGE ÜSA FERREIRA DA SILVA - 603

penal. Essa cisão chama atenção não pelo fato de demonstrar um pos- tere no futuro próximo, notadamente quando a atual linha evolutiva da
sível desacolhimento de uma dada posição doutrinária frente a outra, doutrina passar a ser debatida judicialmente, pelas partes e pelos pró-
mas pela ausência de consideração e debate daquela posição doutrinária prios julgadores. Com efeito, dois conjuntos de atores poss~em papel
que, apesar de não se poder intitular "prevalente" - especialmente con- fundamental no acolhimento da posição proposta pela doutnna preva-
siderando-se o peso da tradição e a posição ainda externada pela maio- lente pós-Código Civil.
ria dos manuais, muitos dos quais redigidos antes do Código de 2002 O primeiro são as partes. Cabe a elas, ao negociarem, indicar os
- tem sido aceita pela expressiva maioria dos teóricos que, depois do novo interesses perseguidos pela cláusula escolhida, inclusive explicitamente
Código, dedicaram-se ao estudo vertical da cláusula penal. Por certo que quando possível, seja por meio de "consideranda", seja por meio de re-
não se poderia esperar que essa nova visão doutrinária acerca da cláusula ferências explicativas na própria cláusula. Nunca é demais lembrar que
penal fosse se refletir com extrema rapidez nos pretórios. Porém, atin- cabe às partes, em primeira instância, deliberar sobre a interpretação dos
gido o período de "maturidade civil" do Código, seria de se esperar que seus próprios negócios. O segundo conjunto de atores são os julgadores,
as discussões mais modernas tivessem se refletido nos tribunais, ainda árbitros e juízes, mas, em especial, o judiciário, de onde emergem prece-
que fosse para negar a sua aplicabilidade prática no Direito brasileiro. dentes que, ainda que não sejam vinculativos do ponto de vista formal,
Ao contrário, o que se constata é que a hermenêutica da cláusula pe- geram uma reprodução interpretativa que se espraia sobre diversos casos.
nal segue sendo realizada, prevalentemente, do mesmo modo como era Se de fato o caminho da distincão entre cláusula penal e cláusu-
feita à luz do Código Civil de 1916, ou seja, a partir das funções abstra-
' ' ,
la de liquidação de danos for aquele a ser trilhado no futuro próximo,
tamente consideradas, independentemente da análise da vontade espe- várias questões ainda ficarão em aberto. Caberá identificar-se sob qual
cífica das partes ao disporem sobre a cláusula. Como resultado, tem-se fundamento a cláusula de liquidação de danos será acolhida, ou seja, se
a constituição de um círculo vicioso: no momento em que os tribunais será entendida como uma espécie de cláusula penal, afeita portanto, aos
deixam de dar atenção às possíveis nuances do tema, as partes, em suas limitadores dos artigos 412 e 413 do Código Civil, ou se será compreen-
manifestações processuais, igualmente se afastam do debate, o que, por dida como fundada na autonomia privada, a partir do que o regramen-
consequência, retira dos tribunais o dever de se manifestarem sobre o as- to próprio da cláusula penal só se mostrará aplicável pela via analógica,
sunto. A cláusula penal e suas correlatas deixam de ser abordadas a par- quando cabível.
tir das lentes da vontade especificamente veiculada e com isso, deixam De qualquer modo, a acolhida desse caminho tende a ser o melhor
de ser decididas à luz dessa abordagem, com o reflexo nos próximos ca- modo de atribuir-se um maior grau de racionalidade e certeza em rela-
sos. Paralelamente, as próprias partes têm pouco incentivo a redigirem ção à interpretação de cláusulas contratuais concretas. Mas, para tanto,
cláusulas penais (ou cláusulas correlatas) que possuam contornos inter- é fzmdamental mudar a perspectiva de análise e substituir o mecanis-
pretativos claros e objetivos definidos, já que o empenho no processo mo de visualizacão da cláusula limitada à normatividade abstrata, para
de redação não se fará refletir caso seja necessária a intervenção judicial. a identificação cla vontade veiculada pelas partes e consubstanciada nas
O resultado final deste círculo é empobrecedor ao Direito contra- declarações negociais. Foi essa mudança de perspectiva, aliás, que permi-
tual como um todo pois, ao invés da adoção de uma pluralidades de al- tiu a solução do antigo problema matemático da quadratura do círculo.
ternativas e da conquista de maior segurança das operações, mantém-se A quadratura do círculo, um dos problemas mais instigantes da ma-
o modelo mais simples e, ao mesmo tempo, dotado de maior insegu- temática grega, correspondente ao modo de realizar a Cü_?Strução de um
rança às partes, já que dotado de pouca previsibilidade quanto aos seus quadrado com a área igual à de um específico círculo. A solução deste
efeitos futuros. problema se dedicaram relevantes matemáticos e, assim como ocorreu
Essa consequência, no entanto, apesar de condizente com a inércia com outros problemas matemáticos propostos no período, dessa dedica-
interpretativa - tanto das partes quanto dos tribunais - não é necessá- ção advieram vários desenvolvimentos da geometria, conduzindo a mui-
ria. Ao contrário, mostra-se prudente cogitar-se que essa situação se al- tas descobertas fundamentais. Contudo, somente no Século XIX, depois
604 - A CLÁUSULA PENAL E A QUADRATURA DO CÍRCULO: AS FUNÇÕES DA CLÁUSULA PENAL DEPOIS ••• ALINE DE MIRANDA VALVERDE TERRA - 605

de ~000 anos desde que_ o_ problema foi proposto, ficou claro que a so-
luçao desse problema exigia uma alteração de perspectiva. Ao contrário
Ili. CLÁUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA:
do que o~orre co_:11 ou~ros tantos problemas da geometria, 0 da quadra- FUNÇÃO, ESTRUTURA E OPERATIVIDADE
tura do c1rculo nao sena resolvível com o uso dos instrumentos usuais
ela, vale d!zer, a régua e o compasso. Foi assim, e só assim, trocando-s: Aline de Miranda Valverde Terra1
de mecarusmo, que o problema foi solucionado. 37
_ Se for ,alterada a perspectiva de análise dos casos envolvendo a apli- 1. INTRODUÇÃO
caça~ de clausula penal, é provável que o mesmo ocorra em relação à res- A relação obrigacional encerra indispensável fenômeno de colabora-
pectiva concepção funcional. ção econômica, constituída por vínculo transitório orientado à satisfação
, _É o ~~e se espera para os próximos anos de aplicação do novo do concreto interesse das partes. Por vezes, todavia, alguma intercorrência
Codigo Civil. impede o desfecho perseguido pelos sujeitos do negócio e não se reali-
za a prestação satisfativa, consubstanciada no comportamento do deve-
dor que executa, a um só tempo, o dever principal de prestação e todos
os demais deveres secundários e de conduta que se façam instrumen-
talmente necessários para a consecução do resultado útil programado.
Diante dessa possibilidade, sempre presente em qualquer relação obri-
gacional, podem as partes prever instrumentos destinados a proteger o
credor do indesejado desenlace contratual, dentre os quais a cláusula re-
solutiva expressa assume destacada relevância.
Fruto da autonomia privada, a cláusula resolutiva expressa permite
ao credor se desvincular de relação jurídica disfuncionalizada, incapaz de
cumprir o programa negocial traçado pelas partes, de forma célere, me-
diante simples declaração receptícia de vontade. Revela-se, assim, aquela
que é, sem sombra de dúvidas, sua extraordinária vantagem em compa-
ração com sua congênere, a cláusula resolutiva tácita: a possibilidade de
resolver a relação obrigacional extrajudicialmente, sem que tenha, o cre-
dor, que se socorrer do Poder Judiciário ou da Arbitragem.
No Brasil, a cláusula resolutiva expressa mereceu tratamento legis-
lativo tímido, incompatível, certamente, com sua relevância no âmbito
das relações contratuais, sobretudo aquelas paritárias. Há dois dispositi-
vos no Código Civil dedicados ao tema, que, todavia, sequer o abordam
com exclusividade: o art. 474, segundo o qual "a cláusula resolutiva ex-
pressa opera de pleno direito; a tácita depende de interpelação judicial"; e
o art. 475, que determina que "a parte lesada pelo inadimplemento pode

Doutora e Mestre em Direito Civil pela UERJ. Professora do Departamento de Direito Civil da
UERJ e da PUC-Rio. Professora Permanente dos Programas de Pós-graduação em Direito da
37 E"":'ES, Howard.!ntroduçãoàhistóriadamotemótica.2ª ed. Trad. Hygino H Do · e • UERJ (Mestrado e Doutorado) e da PUC-Rio (Mestrado Profissional). Sócia de Aline de Miranda
Editora da Unicamp. 1997, p. 134 . · mmges. ampmas:
Valverde Terra Consultoria Jurídica.
606 - CLÁUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA: FUNÇÃO, ESTRUTURA E ÜPERATIVIDADE ALINE DE MIRANDA VALVERDE TERRA - 607

pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimen- direito, sem intervenção judicial ou arbitral, a relação contratual disfun-
to, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos". cionalizada, liberando-se das obrigações assumidas e recuperando o que
A economia legislativa, acompanhada de abordagem meramente es- eventualmente já houver prestado.
trutural da cláusula, tem suscitado diversas controvérsias, sobretudo no Cuida-se, em verdade, de instrumento privilegiado de gestão de
que tange ao seu precípuo efeito. É bem verdade que parte das impro- riscos contratuais, concedendo ao contratante não inadimplente "trans-
priedades cometidas remonta às insuficiências e deficiências do regime ferir o risco de sua insatisfação ao devedor". 4 De regra, afirma-se que a
anterior. O legislador de 1916 parece ter tratado da cláusula resoluti- cláusula resolutiva expressa se destina a disciplinar apenas o inadimple-
va expressa como se fora instituto equivalente à condição resolutiva, e mento absoluto. 5 Indiscutivelmente, o instituto permite às partes distri-
a doutrina, àquela época, também a equiparava, sob diversos aspectos, à buir as perdas decorrentes do inadimplemento de obrigações contratuais
cláusula resolutiva tácita, negando-lhe regime jurídico próprio e criando de forma ímpar, facultando-lhes valorar a relevância de cada obrigação
embaraços à resolução extrajudicial. Nesse cenário, acabou-se por se lhe e estabelecer as consequências de sua inexecução, conforme o concreto
atribuir disciplina hfbrida, resultante da combinação aleatória de regras regulamento de interesses. Como aponta Guida Alpa, "mesmo nesses
atinentes à condição resolutiva e à cláusula resolutiva tácita, confundin- casos, o problema a resolver é um problema de distribuição dos riscos". 6
do-se institutos com estruturas e funções diversas.
O inadimplemento absoluto encerra, portanto, específico risco con-
Afigura-se, assim, imprescindível reafirmar, à luz do Código Civil tratual, a cuja gestão a cláusula resolutiva expressa serve magistralmente. 7
de 2002, a autonomia dogmática da cláusula resolutiva expressa, a fim Restringi-la, contudo, à disciplina desse particular risco revela inacei-
de consolidar a desnecessidade de se acorrer ao Poder Judiciário ou à tável misoneísmo. Embora, em sua origem, o instituto estivesse ligado
Arbitragem para que se proceda à resolução. Nessa direção, insta, em pri- a essa espécie de inadimplemento, sua percepção histórico-relativa im-
meiro lugar, identificar sua função e estrutura para, na sequência, distin- põe a ampliação de seus confins, a permitir a gestão de outros riscos que,
gui-la brevemente da condição resolutiva e da cláusula resolutiva tácita; uma vez implementados, impeçam a promoção da função econômico-
sobretudo esta última investigação se revela fundamental para reafirmar -individual do negócio.
o processamento extrajudicial da resolução, por ato exclusivo do credor.
Desse modo, faculta-se às partes, valendo-se da cláusula resolu-
2. CLÁUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA: FUNÇÃO E ESTRUTURA tiva expressa, redistribuir os riscos de caso fortuito ou de força maior, 8
ou de qualquer outro evento que incida diretamente sobre a relação, in-
Produto da autonomia privada, a cláusula resolutiva expressa per-
viabilizando a atuação do programa contratual; para tanto, esses riscos,
mite que o credor, diante da verificação do evento nela contemplado,
quando externos ao negócio, devem ser a ele internalizados. Ou então,
opte entre exigir a execução do contrato pelo equivalente2 ou resolvê-
podem também os contratantes manter a alocação do risco feita pelo
-lo extrajudicialmente, desvinculando-se de relação jurídica incapaz de
promover sua função econômico-individual. 3 Com efeito, a finalidade
4 GARRIDO, Maria Luisa Palazón. EI remedia resolutorio en la propuesta de modernización
precípua da cláusula reside em viabilizar que o credor resolva de pleno dei derecho de obligaciones en Espaiia: un estudio desde el derecho privado europeo. ln:
DOHRMANN, Klaus Jochen Albiez (Dir.); GARRIGO, Maria Luísa Palazón; SERRANO, Maria
Dei Mar Méndez (Coord.). Derecho privado europeo y modernización dei derecho contractual en
2 Sobre a execução pelo equivalente, seja consentido remeter a TERRA, Aline de Miranda Espaiia. Barcelona: Atelier Libras Jurídicos, 2011. p. 425, tradução livre.
Valverde. Execução pelo equivalente como alternativa à resolução: repercussões sobre ares- Veja-se, por todos: PROENÇA, José Carlos Brandão.A resolução do contrato no Direito Civil: do
5
ponsabilidade civil. Revista Brasileira de Direito Civil- RBDCivil, Belo Horizonte, v. 18, p. 49-73, enquadramento e do regime. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 76. _ .
out./dez. 2018. Disponível em: <https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/305/246>. 6 ALPA, Guida. Manuale di diritto priva to. 8ª ed. Padova: Cedam, 2013. p. 540, traduçao livre.
Acesso em 10.09.2020.
7 Para Ana Prata, "sempre que o incumprimento convencionalmente prefigurado não fosse,
3 De acordo com Ferri, a função econõmico-individual concebida como causa do contrato indi- por lei, bastante para fundamentar a resolução do contrato, ~em para constituir o d:ve?or
ca o valor e o alcance que as partes deram à operação econõmica globalmente considerada. na obrigação de indemnizar, e essas sejam nos termos da clausula, as suas consequ:nc1as,
Conceber a causa co~o função eco~õmico-individual importa em ressaltar que, se o negócio estar-se-á perante um agravamento da responsabilidade do devedor" (PRATA, Ana. Clausulas
expressa uma regra pnvada, a causa e o elemento que conecta a operação econômica objetiva de exclusão e limitação da responsabilidade contratual. Coimbra: Ali:nedina, 1985. p. 4?). _
com os sujeitos da relação, a indicar como o concreto regulamento de interesses expressa 8 Do ponto de vista prático, a diferença doutrinária entre caso fort~1t? ou de fo_rç~ m_ª'º: n~o- se
objetivamente as finalidades subjetivas (FERRI, Giovanni Battista. Causa e tipa nella tearia dei reveste de qualquer serventia, tendo em vista que em ambas as h1poteses a d1sc1phna 1und1ca
negozio giuridico. Milano: Giuffré, 1966. p. 371-372).
aplicável é a mesma, o que torna a distinção verdadeiramente bizantina.
ALINE DE MIRANDA VALVERDE TERRA - 609
608 - CLÁUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA: FUNÇÃO, ESTRUTURA E ÜPERATIVIDADE

Bem se nota, portanto, que a elaboração da cláusul~ re~olutiva e~-


legislador e alterar somente os efeitos de sua superveniência, a exem-
pressa pressupõe a avaliação pelas partes acerca ~a _relevancia das obn-
~lo do qu: ocorre quando se incluem vícios redibitórios no suporte fá-
gações assumidas no contexto do escopo economICO do contr~to, e a
t1co da clausula; neste caso, o comprador poderá, uma vez constatado 0
· 1 ~ de alguma(s) delas na cláusula indica que o seu cumprimento
vício oculto que torne a coisa imprópria ao uso a que se destina, resol- me usa0 ·a1 p .
a indispensável para a realização do programa negoc1 . or isso
ver a relação obrigacional extrajudicialmente, sem necessidade de ajui- se afigur . 1. d al
mesmo, as partes não são totalmente livres p~a 1~c U1f to a e qu ~u~~
zamento da ação redibitória.
br· gação no suporte fático da cláusula; a obngaçao deve ser essencial,
Seja como for, fato é que a redação da cláusula deve observar o "re- ~al; dizer, imprescindível para a realização do resultado útil programado.
quisito de especificidade", 9 entendido como a exigência de menção ex-
Note-se bem: não se está a afirmar que a obrigação deva ser princi-
press! à ob_riga_ção cujo i~adimpleme~to poderá ensejar a resolução da
pal, mas sim essencial, o que significa que mesmo obrigação secundária,
relaçao obrigac_10nal. A clausula resolut1va expressa deve indicar pontual-
ou até mesmo dever de conduta, pode constar da cláusula. Isso, p~rque. a
mente ~(s) obriga?ão~ões) cujo descumprimento autorizará sua atuação,
essencialidade não decorre da classificação da obrigação_ e nem s~ 1d~nt1-
a refletir ~e man~ir~ 1~equívoca a vontade dos contratantes de permitir
fi.ca abstratamente; trata-se de qualificação que se extrai da relevancia da
a resoluçao extra_iud1c1al naquela(s) hlpótese(s) especí:fica(s).
obrigação para a satisfação do interesse objetivo das partes no concreto
N~sse sentido, não basta à resolução extrajudicial que da cláusula
regulamento negocial.
reso!ut1va c~nste_ disposição consoante a qual "o contrato poderá ser re-
A necessidade de a obrigação se qualificar como essencial decorre
s~~v1do/or madimplemento ~e qualquer obrigação legal ou contratu-
do próprio regime da ine:xecução das obrigações, mais precisamente da
al , ou em caso de descumprimento de qualquer obrigação contratual
vinculação da resolução ao inadimplemento absoluto. Posto o art. 475 do
a p~te não _inadimplente poderá resolver o contrato". Cláusula genéri~
Código Civil não defina expressamente que esp~cie de ,in_adimplemento
ca e 1m~rec1sa, que ~ão ?bserva o requisito da especificidade, equivale a
autoriza a resolução, é possível extrai-la do paragrafo umco do art. 395,
mera clausula de estilo, mcapaz de conduzir à resolução extrajudicial. 10
Isso, porque a possibilidade de resolver extrajudicialmente a rela-
que permite a extinção da relação "se a prestação, devido à mora, se to:-
nar inútil ao credor". Ora, se só é possível resolver quando a prestaçao
ção obrigacion~ d_ecorre, justamente, do acordo prévio entre as partes se torna inútil, enquanto houver simples mora - porque o recebi~ento
acerca da relevancia da obrigação no âmbito da economia do contra- da prestação ainda se afigura não apenas útil, mas também poss1vel ao
to. Nesse cenário, o devedor já sabe, de antemão, o que é essencial para
credor - não está autorizada a resolução.
? cr~dor naquele contrato e que, uma vez descumprido, conduzirá ao Há de se considerar, ainda, que tampouco a qualificação da in~x~-
1~ad1mplemento absoluto. Se não há esse acordo ex ante, faz-se impe-
cução como mora ou inadimplemento absoluto encerra escolh~ a~b1tra-
riosa a avaliação judicial ou arbitral11 sobre a repercussão da inexecu-
ria do credor cuida-se de qualificação que decorre do fato objetivo de
ção no resultado útil programado a fim de verificar se há efetivamente
a prestação t~r ou não se tornado inútil ou impossível de ser recebida.13
i~adimple1;1~nto absoluto ou se se trata de simples mora,' que não auto~
riza o remedia resolutório. De acordo com Trimarchi, "A cláusula resolutiva expressa deve se referi~ a obrigações_ e ~oda:
12 rdade de adimplemento determinadas, às quais as partes atribuem caraterdeessenc1ahdad~
(~RIMARCHI, Pietro.llcontratto: inadempimento e ri medi. Milano: Giuffre, 2010. p. 69, traduçao
9 ROPPO, Vincenzo. li contralto. 2ª ed. Mil ano: Giuffre, 2011. p. 905; tradução livre. livre). . · 11 d
"bTd
Já observava Agostinho Alvim que o foco da analise deve estar, sobretudo, na 1mposs ~' a e
10 BESS<?N~, Darcy. D_o con_troto. ':_io de Janeiro: Forense, 1960. p. 325. Reconhece-se, todavia 13 de credor receber a prestação, e não apenas na impossibilidade de o devedorp_re~tar: C?b~1
que a;unsprude~c~a nacional naose ocupa do requisito da especificidade e admite a validad~ O
efeito,se admitirmos, comovulgarmentese diz, que o inadimplement? absol~to e a 1m~oss1 -
de c(a_usulas gen~ncas, como o fez, por exemplo, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais ue lidade de sercumpridaa obrigação pelo devedor, veremos que esta f?rmula everdad~1ra para
adm1t1u a re:oluçao. de contrato de distribuição do qual constou cláusula redigida nos seg~in- rande número de casos, mas não para todos.Assim,se o d:vedor~e,xou perecera co1s~ certa
tes t~rmos: Podera em caso de inadimplemento de qualquer das cláusulas deste contrato g ue deveria entregar, a execução da obrigação tornou-se 1mposs1vel para ele. Mas a f9rmula
se n~o ~anado em um prazo de_ 15 \quinze) dias do recebimento de notificação protocolada'. deixa de ser exata, na hipótese de prestação de fato pessoal. Realm~nte.'. se o escult~rnao q~e~
rescindir~, contrato, ª.Parte pre1ud1cad~, fazendo jus a perdas e danos decorrentes do inadim- fazera obra prometida, poder-se-á dizer que o cumprimento d~ obngaçao se_tor~ou 1mposs1vr
plemento (TJMG, 17 CC, Rei. Des. Mareia De Paoli Balbino, AC 1.0024.06.244B4 o-2; 002 para ele, isto é, que O devedor está impossibilitado de cumpnr, co1:10 ~o pnmei_r? exe;~tod E
Julg. 29.05.2009). ' evidente que não está. Bastará que O queira fazer. O credor, esse sim e que esta 1mpe ' o e
11 ROSSETTI, Marco. Lo risoluzione perinadempimento. Milano: Giuffre, 2012. p. 3 a3 .
ALINE DE MIRANDA VALVERDE TERRA - 611
610 - CLÁUSUIA RESOLUTIVA EXPRESSA: FUNÇÃO, ESTRUTURA E ÜPER,\TIVIDADE

E mesmo a definição de inutilidade da prestação também é passível de consonância com os interesses concretos e objetivos perseguidos pelas par-
controle, já que não é o credor quem estabelece, unilateral e capricho- tes, identificados a partir do regulamento negocial.
samente, o que é útil para si; embora a utilidade se revista de certo viés A breve análise da função e da estrutura da cláusula resolutiva ex-
subjetivo, a exigir que seja apreciada em relação ao concreto credor da
relação obrigacional e não em relação a um credor qualquer abstrata-
pressa permite distingui-la de outras figur_as jur~d~cas, com as quais
sido confundida desde a vigência do Código Civil de 1916: a condiçao
:e~
mente considerado, a essa avaliação subjetiva somam-se dados objeti- resolutiva e a cláusula resolutiva tácita. A precisa distinção entre os insti-
vamente extraídos da específica relação jurídica. 14 Busca-se identificar, tutos se mostra essencial para o correto manejo da cláusula e~ sobretudo,
assim, a utilidade objetivada, aferida a partir da operação econômica em para o reconhecimento de sua plena eficácia extrajudicial. E, portanto,
tela, isto é, a partir do que as partes dispuseram no comum regulamen- a que se passa a seguir.
to de interesses, à luz de critérios como a boa-fé objetiva15 e o interes-
se do sinalagma. 16 3. DISTINÇÃO DE FIGURAS AFINS

Nesse cenário, considerando-se que a resolução é remédio extre- 3.1. CLÁUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA X CONDIÇÃO RESOLUTIVA
mo, só autorizado quando há inadimplemento absoluto, cuja configura- O Código Civil de 1916 inaugurou grande confusão entre a cláu-
ção se subordinada à impossibilidade ou inutilidade da prestação para o sula resolutiva expressa e a condição resolutiva, caracterizada como o
credor, apenas devem constar da cláusula resolutiva expressa obrigações evento futuro e incerto destinado a "resolver o regulamento de interes-
cujo descumprimento conduza a uma dessas consequências. É evidente, ses convencionado, isto é, a fazê-lo cessar com a sua verificação".17 A
todavia, que as partes ostentam certa margem de liberdade ao avaliar as controvérsia já se inicia rio tocante à efetiva distinção entre as figuras
obrigações que se lhes afiguram essenciais. Afirmar que as partes não em razão da redação do artigo 119 do Código Civil de 1916, segundo
são totalmente livres para incluir toda e qualquer obrigação no suporte o qual "se for resolutiva a condição, enquanto esta não se realizar, vigo-
fático da cláusula quer significar que não se trata de escolha arbitrária. rará o ato jurídico, podendo exercer-se desde o momento deste o direi-
Liberdade não se confunde com arbitrariedade. Apenas o poder absolu- to por ele estabelecido; mas, verificada a condição, para todos os efeitos,
to é arbitrário, e rejeita qualquer tipo de controle. A autonomia privada se extingue o direito a que ela se opõe", e de seu parágrafo único que
não é poder absoluto, como, a rigor, não o é qualquer situação jurídica dispunha que "a condição resolutiva da obrigação pode ser expressa, ou
subjetiva. Aqui, a autonomia privada deve ser exercida justamente em tácita; operando, no primeiro caso, de pleno direito, e por interpelação
judicial, no segundo".
receber. Portanto, o inadimplemento absoluto é precisamente a impossibilidade de receber; Clóvis Beviláqua, em comentário ao referido parágrafo único, as-
e a mora, a persistência dessa possibilidade" (ALVIM, Agostinho. Da lnexecuçãa das Obrigações
~ suas c_onsequências. 3° ed. Rio de Janeiro: Editora Jurídica e Universitária Ltda., 1965. p. 59). severou que a condição resolutiva tácita está subentendida em todos os
14 Etambem a lição de Ruy Rosado de Aguiar Junior: "Os dados a considerar, portanto, são de duas
ordens: os elementos objetivos, fornecidos pela regulação contratual e extraídos da natureza da contratos sinalagmáticos, devendo ser "posta em relevo pela intervenção
prestação, e o elemento subjetivo, que reside na necessidade exiscente no credor em receber do poder judiciário, para que se não possa alegar surpresas. A resolutória
uma presta_ção que atenda à carência por ele sentida, de acordo com a sua legítima expectativa"
(AGUIARJUNIOR, Ruy Rosado. Extinção dos Contratos por Incumprimento do Devedor(resolução). expressa está no conhecimento do interessado, consta do título, em que
Rio de Janeiro: Aide Editora, 1991. p. 133). Na mesma direção, confira-se MARTINS-COSTA,
Judith. Comentários ao novo Código Civil: do inadimplemento das obrigações. Rio de Janeiro:
se funda o seu direito, nenhuma dúvida pode suscitar. Dispensa a inter-
18
Forense, 2004. v. 5, t. 2. p. 254. venção do poder judiciário, e opera por si, de pleno direito" .
15 BETTI, Emilio. Teoriageneraledelleobbligazioni. Milão: Giuffre, 1953. v. 1. p. 105.
16 ~esse sentido, afirmaJudith Martins-Costa, a inutilidade pode ser mensurada, objetivamente,
"a vista de suas repercussões no equilíbrio entre as prestações; na funcionalidade do contrato,
implicada no concreto programo negocial, que organiza os riscos e vantagens, os custos e os 17 BETTI, Emilio. Teoria generale delle obbligazioni. Milano: Giuffre, 1953. v. 1. p. 94-
benefícios de cada parte; na relação de proporcionalidade; na própria licitude, considerada à 18 BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. 1~ª ed. São Paulo:
vista da cláusula geral do art. 187" (MARTINS-COSTA,Judith. Comentários ao novo Código Civil: Livraria Francisco Alves, 1959. v.1. p. 301.João Luiz Alves alinh_a-se n~sse ~ent1d?, ~o comen:ar
do inadimplemento das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. 5, t. 2. p. 256, grifos no 0 mesmo dispositivo do Código revogado: "Nos contratos ~!laterais, ha co_nd1çao resolut1va
original). Na lição de Larenz, configura-se o inadimplemento absoluto quando a prestação tácita, quando uma dasyartes s~ re_cusa ~u nã_o pode cum~,m a sua pre3taça_o, pe_lo_ que P?de
resultar, enfim, economicamente distinta (LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. Tradução a outra pedir a resoluçao da propna obngaçao (art. 1092) (ALVES, Joao Luiz. Cod1go Cwtl da
de Jaime Santos Briz. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1958. t. 1. p. 303). Repúblico dos Estados Unidos do Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1957. v. 1. p. 207).
612 - CLÁUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA: FUNÇÃO, ESTRUTURA E ÜPERATIVIDADE ALINE DE MIRANDA VALVERDE TERRA - 613

Na mesma direção, Francisco dos Santos Amaral Neto parece equi- dentro no conceito de condição propriamente dita, visto que a condição
parar os institutos ao afumar que resolutória tácita é uma decorrência da lei e depende, para sua eficácia,
A condição suspensiva tem de ser expressa. A resolutiva pode de nova declaração"-, "corresponde exatamente ao preceito do art.1.184
ser expressa ou tácita. No primeiro caso, opera de pleno direito; do Código Civil francês, que a subentende nos contratos sinalagmáti-
no segundo, por interpelação judicial, pois a parte reclamante cos, quando uma das duas partes não venha a satisfazer a sua obrigação,
pode optar entre o cumprimento e a resolução do contrato; a caso em que, não ficando o contrato resolvido de pleno direito, cabe ao
escolha da segunda hipótese se manifesta por interpelação. Tal credor ou forçar o devedor à execução da obrigação ou pedir a resolu-
regra é importante nos contratos bilaterais, cuja interdepen- ção do contrato, mediante perdas e danos". 22
dência de obrigações fundamenta a resolução do contrato por
Apesar da viva controvérsia que reinava sob a égide do Código revo-
inadimplemento. Presume-se a existência de condição resolu-
gado, condição resolutiva e cláusula resolutiva se distinguem por diversos
tiva, pela qual o descumprimento da obrigação de uma parte
autoriza a outra a pedir ao juiz o cumprimento ou a resolução
aspectos. 23 Em primeiro lugar, a condição resolutiva decorre da vontade
do negócio jurídico. 19 das partes, enquanto a cláusula resolutiva pode ser fruto da autonomia
privada, quando expressa, ou resultar de disposição legal, quando tácita.
Outros autores, entretanto,já apontavam o equívoco do legislador de
1916, ratificando cuidar-se, a condição resolutiva e a cláusula resolutiva, Sob o aspecto estrutural, a condição resolutiva constitui elemen-
de institutos diversos, a exemplo de Pontes de Miranda, segundo o qual: to acidental do negócio jurídico, uma vez que não integra o tipo abs-
Não há condição resolutiva na resolução do art. 1.092, pará-
trato do negócio, mas é aposta, no concreto regulamento de interesse,
grafo único, do Código Civil. Não há condição. Há atribuição pela vontade das partes. A acidentalidade decorre, como aponta Cariota
legal de escolha, que tem o devedor: ou exige, forçadamente, a Ferrara,justamente, do "poder ser ou não ser": 24 não é a lei, mas as partes,
prestação, ou resolve o contrato (= exerce, contra o devedor, a no exercício da autonomia privada, que a fazem constar do contrato.
pretensão à resolução ou à resilição). Não se pode afirmar que E, uma vez incluída no ajuste, cessa a acidentalidade e transmuda-se
o direito legal de resolução ou de resilição por inadimplemento a condição em elemento essencial do negócio celebrado. Significa, em
tenha provindo do uso da condição, donde a fase intermédia verdade, que os elementos objetivamente acidentais são subjetivamente
da condição tácita. 20 essenciais. 25 Daí o porquê de a inserção de condição resolutiva ilícita ou
A rigor, a confusão do Código de 1916 deita raízes na disciplina de fazer coisa ilícita conduzir à invalidade de todo o negócio (art. 123,
legal que lhe serviu de inspiração, o artigo 1.184 do Código Civil fran- II, CC), e não apenas da condição resolutiva. 26 A condição não é, pois,
cês.21 Como já observava Serpa Lopes ao discorrer a respeito da cláusu- SERPA LOPES, Miguel Maria de. Cursa de Direita Civil. 8ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Freitas
22
la resolutiva, "essa espécie de condição" - que "não pode ser enquadrada Bastos, 1996. v. 1. p. 496.
23 Sobre o tema, confira-se FERNANDES, Micaela Barros Barcelos. Distinção entre a condição
resolutiva e a cláusula resolutiva expressa: repercussões na falência e na recuperação judicial.
19 AMARAL NETO, Francisco dos Santos. Da irretroatividade da condição suspensiva na Direita Civil Revista Brasileira de Direita Civil - RBDCivil, Belo Horizonte, v. 20, p. 183-207, abr./jun. 2019.
brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 96-97. Disponível em: <https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/417/298>. Acesso em
20 PONTES DE MIRANDA. Tratada de Direita Privada. 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1959. t. 25. 15.09.2020.
p.338. 24 FERRARA, Luigi Cariota. ti negazia giuridica nel Diritta privata italiana. Napoli: Edizioni
21 "Art: 1.1_84.A condição resolutiva está sempre subentendida nos contratos sinalagmáticos, para Scientifiche ltaliane, 2011. p. 116, tradução livre.
as h1poteses nas quais uma das partes não possa adimplir satisfatoriamente sua obrigação. 25 FERRARA, Luigi Cariota. li negazia giuridica nel Diritta Privata italiana. Napoli: Edizioni
Nesses casos, o contrato não será resolvido de pleno direito. A parte em prejuízo da qual a Scientifiche ltaliane, 2011. p. 116.
pre_:1ação não foi devidamente executada tem a opção de exigir da outra a execução da pres- No Direito português, destaca Menezes Cordeiro: "A condição aparece, em termos formais,
taçao no momento oportuno, ou exigir a resolução acrescida de perdas e danos. A resolução como algo autônoma, isto é, como um aditiva introduzido num determinado conteúdo ne?ocial.
deve ser pleiteada judicialmente, e pode ser concedida ao réu uma dilação de prazo, conforme Mas tal deve-se, apenas, à limitação da linguagem humana, obrigada a recorrer a penfrases
as circunstâncias" (tradução livre). para traduzir algo que, afinal, tem natureza unitária. De resto, a condição es~á sujeita à _mesma
forma do contrato em que se insira. Não há, pois, uma vontade de certo efeito e, depois, nova
"Art. 1.183. A condição resolutiva é aquela que, uma vez implementada, opera a revogação da
vontade de o subordinara determinado evento; há, antes uma vontade única, mas condicional.
obrigação, e que restitui as coisas ao mesmo estado em que se encontrariam caso a obrigação
Resulta daí que todo o conteúdo do negócio condicionado fica, por igual, tocado pela condi-
não tivesse existido. Ela não suspende a execução da obrigação; ela somente obriga o credor a
ção, com claros reflexos no regime. Edesignadamente: a invalidade duma condição acarreta a
restituiraquilo que recebeu, nos casos em que o evento previsto pela condição se implementa"
invalidade de todo o negócio (vitatetvitatur)" (MENEZES CORDEIRO, António. Tratada de Direita
(tradução livre).
Civil português: parte geral. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2005. t. 1. p. 718, grifos no original).
614 - CLAUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA: FUNÇÃO, ESTRUTURA E ÜPERATIVIDADE

ALINE DE MIRANDA VALVERDE TERRA - 615

~is_posição, a_ce~só~i~ do _negócio principal, mas parte incindível de um


umco negoc10 3und1co. 21 operar externamente ao negócio, 29 não se relacionando diretamente à
. ~or outr~ ~ado, a cláusula resolutiva expressa, esta sim, encerra dis- realização do programa negocial. 30 E é por essa razão que o inadimple-
pos1çao acessona do contrato: é inserida pela autonom1·a . d mento não constitui evento idôneo a figurar no contrato como condição
d d pnva aecon- resolutiva, 31 conforme afirma Santoro-Passarelli: "o inadimplemento não
:~::~ri~~:~t~ t~ d~ o d:s:nrolar da relação jurídica, a característica da
pode ser deduzido nem mesmo em condição resolutiva expressa, ou ver-
· , · d e, e . 1Spos1çao que opera no plano da efic acia , . e segue
0
p~mc1p10. aA gr~v1tação jurídica, pelo que eventual vício da cláusul - dadeira, exatamente porque diz respeito ao funcionamento do negócio". 32
a1eta a existencia ou validade do contrato. a nao A cláusula resolutiva expressa prevista no art. 474, ao contrário, con-
No que tange a~ suporte fático objetivo, a condição resolutiva re- templa eventos já alocados pela lei entre as partes e cujos efeitos se busca
Ju~r ~ue o ~~ent~ S~Ja futuro e incerto. No direito brasileiro, a futuri- alterar. Referidos eventos podem ser inerentes ao contrato - inexecuções de
a e e reqms1to md1spensável à condição No entanto e' , 1 obrigações que conduzem ao inadimplemento absoluto e vício redibitório,
ev t d · , poss1ve que por exemplo - ou podem ser a ele intemalizados pela autonomia privada
en os passa os ou presentes requeiram confirmaça-o futu h· ,
em f: fu ra, 1potese dos contratantes - como o caso fortuito. Neste último caso, mostra-se in-
q~e esse ato turo (fato da confirmação) pode ser qualificad
condição N o como dispensável que o específico risco tenha sido expressamente assumido por
d • esses casos, portanto, a condição-jàto não corresponde ao fato
~assa o ou presente, mas sim, ao fato da confirmação do evento passa- um dos contratantes e que a sua superveniência conduza à impossibilidade
o ou presente: Pense-se em contrato de promessa de com ra e venda ou inutilidade da prestação, consoante o concreto regulamento de interesses
i~~err~no por mcorp_oradora que deseja ali desenvolver pro}eto imobi-
ar10. o entanto, a incorporadora ainda não conhece pl
Constatada a ocorrência do suporte fático da cláusula resolutiva
expressa ou implementada a condição resolutiva, resolve-se a relação
custos do em re d. d erramente os
. bilid d p ~n _1mento, e modo que não está segura quanto à sua jurídica. No primeiro caso, faz-se necessária, de regra, a declaração do
via a e econom1ca neste momento A fim de na- d , . credor dirigida à resolução. 33 Na segunda situação, prevalece no direito
· d · o per er o negocw
a ~ncorpora ora celebra o contrato com a proprietária do imóvel e a õ; brasileiro o entendimento segundo o qual a resolução é sempre automá-
cl~usula pela qual se ficar constatado, após levantamento junto ao r!er- tica, independente da vontade ou mesmo do conhecimento das partes. 34
~d
c\ qu~ ~ custo da obra será superior a certo valor, o contrato será re- 29 Sobre a condição resolutiva, afirma Falzea: "O evento, portanto, encontra no ato apenas seu
~~ v1 o. ~a-se que os _custos da obra são presentes, mas dependem de pressuposto, mas a ele se contrapõe comofattispecie estruturalmente autônoma" (FALZEA,
Angelo. La condizione e gli elementi de/l'atto giuridico. Milano: Giuffre, 1941, p. 245, tradução
nfirmaçao, havendo incerteza quanto ao seu efetivo val C .d livre).
Portan t o, d e verd ad eira

condição resolutiva.
or. m a-se
' 30 Serve a ilustrar o que se afirma o seguinte exemplo: o colecionador A, em penúria financeira,
vende para seu amigo B todos os seus quadros. No entanto, sabendo que é um dos herdeiros
Para tratar-se de d. - d • d contemplados no testamento de sua tia, já idosa, inclui no contrato cláusula segundo a qual se,
, . . con içao, eve, am a, o evento ser externo ao ne-
nos dois anos seguintes, vier a receber a herança, o contrato se resolverá. Trata-se, indiscuti-
goc10 e por isso não pode corresponder nem a elemento essencial d velmente, de evento futuro, incerto e externo à compra e venda que, por si só, não produziria
contrato nem a m , · d d 0 qualquer efeito resolutivo sobre o contrato. A sua relevância para o negócio decorre, única e
. al\s O omento típico o esenvolvimento do vínculo obri- exclusivamente, do fato de as partes terem sujeitado o contrato a essa condição.
gacwn .- evento há de constituir fato estruturalmente tA 31 RESCIGNO, Pietro. Condizione (Dir. vig.). ln: Encic/opediadel Diritto. Milano: Giuffre. v. 8. p. 799.
au onomo, a Em sentido contrário, admitindo, portanto, que as próprias partes qualifiquem o cumprimento
de uma das obrigações que caracteriza determinado tipo contratual, como o pagamento do
De acordo com Francisco Amaral "a cond· - - , , . preço na compra e venda, como condição resolutiva: GALGANO, Francesco. El negocio jurídico.
negócio" (AMARAL, Francisco. DÍreito Civi;?~~r~~o e _acet~nRa'. mdas ele~ento integrante do Tradução Francisco de P. Biasco Gascó e lorenzo Prats Albentosa. Valencia: Tirant lo Blanch,
p. 464). uçao. · · 10 e Janeiro: Renovar, 2006. 1992. p. 166.
28 32 SANTORO-PASSARELLI, Francesco. Dottrinegenera/idel diritto civile. 9ª ed. Na poli: Casa Editrice
C~mo observa Lenzi, "o conceito de ser extrínseco coin "d ,
ce1to de ser acidental no sentido de um o t I c1 e, portanto, e e explicativo, ao con- Dott. EugenioJovene, 2012. p. 199, tradução livre.
· .
d a fiattJspeoe ' u roe emento que sei
e contribui para a realizaçã d ~ . nsere no esquema normativo 33 Sobre a possível automaticidade da resolução, confira-se TERRA, Aline de Miranda Valverde.
condição de realizar por si só conform o os e e1tos que os elementos essenciais não têm Cláusula resolutivo expressa. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 141 et. seq.
a~ton~mia privata efunzione di autotute~a~ f-:~!:m.a negocial" (LEN~J, Raffaele. Condizione, 34 Nessa direção, confira-se a lição de Carvalho Santos: "[ ...] é princípio incontestável, conse-
G1uffre, ~996. p. 17, tradução livre). Na me~ma dir p1_mento ~edotto m condizione. Milano: quência da resolução de pleno direito, que verificado o implemento da condição resolutiva,
element1 accidentali: la condizione. ln: LIPARI i5ª~'.:~~~ra-se GIA~OBBE, Emanuela. Gli não podem as partes renunciar à resolução, o que vale dizer que não lhes é lícito considerar
Andrea (Coord.). Obbligazioni: il contratto in ge~er~c~~Í . CGI_GNffC!, P1etro (Dir.); ZOPPINI, ainda em vigor o contrato, que, em princípio, é havido como nunca tendo existido. De sorte
• 1 ano. 1u re, 20 09 . v. 3, t. 2 _p. 418 _ que as partes só poderão restabelecer as relações de direito entre elas, por via de um nôvo
contrato, sem nenhuma referência ao primeiro, que em hipótese alguma pode ser revigorado"
616 - CLAUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA: FUNÇÃO, ESTRUTURA E ÜPERATIVIDADE ALINE DE MIRANDA VALVERDE TERRA - 617

Tudo se passa de forma mais simples e célere do que ocorre na cláusula Como já apontado, a cláusula resolutiva expressa encerra relevante
resolutiva. expressa. De todo modo, em ambas as situações, a resolução mecanismo de alocação e disciplina dos riscos contratuais, não apenas
conduz à meficácia do negócio. aquele decorrente do inadimplemento absoluto, mas também do caso
. _Tratando-se de cláusula resolutiva, o efeito restitutório da resolução fortuito, da força maior e até mesmo dos vícios redibitórios. A cláusula
1mpoe aos_ contratantes o retorno ao status quo ante - exigindo, inclusive, resolutiva tácita, por se entender subentendida nos contratos, sequer é
~ devoluçao dos frutos eventualmente percebidos por ambas as partes, cláusula: trata-se de regra legal, que não oferece às partes qualquer espa-
mdepend.entemente de quem tenha dado causa à resolução-, e tende ço para alocar outros riscos contratuais; na realidade, é ela mesma uma
a operar mterpartes, salvo se ao terceiro atingido pelo negócio foi dado espécie de alocação estabelecida pela teoria legal do risco. Por essa ra-
conhecer. a e~stência .e o conteúdo da cláusula. Por outro lado, por for- zão, a avaliação sobre a relevância das obrigações assumidas pelo con-
ça da aplicaçao do artigo 128 do Código Civil, a retroatividade da con- tratante no contexto do concreto regulamento de interesses é realizada
dição resolutiva se restringe aos atos incompatíveis com a verificação do a posteriori, depois, portanto, da inexecução pelo devedor, como desta-
evento futuro e incerto. Sob a égide do Código Civil de 1916 Cunha ca Valie Ferreira:
~onçalves_já ~ustentava que se o possuidor de boa-fé não tem a' obriga- [ ... ] embora a compra e venda, contrato bilateral, possa sempre
çao de re~t1~rr os f~tos, com muito mais razão não a tem O comprador resolver-se por inadimplemento (Cód. Civil, art.1.092, §), nin-
~ob c~n~çao resolut1va, que não possui coisa alheia, mas coisa própria. guém negaria ser o inadimplemento fato de tal modo complexo
Por isso , afirmava o autor, "a restituição é limitada só à cousa e ao seu que a sua verificação tem de ser decidida em juízo, conforme
preço, pois só êstes foram os objectos do contrato". 35 Logo, o implemen- tão bem acentuou VIVANTE [ ... ]. Basta considerar que, sem a
to da condição resolutiva intervenção do juiz, seria impossível decidir pela resolução, nos
casos de inexecução parcial. Somente por uma cláusula resoluti-
não faz reverter as partes, em absoluto, à situação anterior como
va expressa, contratada no ato da estipulação, poderiam as partes
?
se ~ontrato nenhum efeito houvesse produzido, o que até
circunscrever o evento, isto é: combinar a resolução para o caso
sena impossível, porque até à realização do facto condicional, 0
de inadimplemento de uma 'determinata obbligazione', segundo
comprador foi o verdadeiro proprietário da cousa; e esta situação
a linguagem do nodo Código italiano (art. 1.456) [.. .]. 01iando
tem de surtir, até êsse momento, todas as suas consequências,
as partes querem indicar concretamente certas modalidades
entre as quais a de lhe pertencerem os frutos. 36
particulares, cuja observância consideram essencial à eficácia
3,2. CLÁUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA X CLÁUSULA RESOLUTIVA TÁCITA do contrato, não dispõem de outro meio mais completo e mais
seguro que o pacto comissário expresso. 37
À primeira vista, cláusula resolutiva expressa e cláusula resolutiva
tá~ita _aparentam ser institutos análogos, com a única diferença de a Como cláusula acessória, a cláusula resolutiva expressa pode ser fir-
pnme1ra resultar da autonomia privada e a segunda, da lei, que a insere mada no mesmo ato de celebração do negócio ou em momento posterior,
no contrato de forma supletiva, diante do silêncio dos contratantes. por instrumento separado, aditando-se os termos originais da avença. A
Ledo engano. Em verdade, a distinção vai muito além da fonte da qual fixação posterior da cláusula pode se dar a qualquer tempo, desde que
emanam, a ponto de ser possível identificar regimes jurídicos diversos. antes da verificação do suporte fático nela previsto. A cláusula resolu-
tiva tácita, ao contrário, está presente desde a celebração do negócio, já
que subentendida nos contratos bilaterais, conforme orientação tradi-
(~AR~ALH<? SANTOS,João Manoel de. Código Civilbrosileirointerpretodo. 10ª ed. Rio de Janeiro·
cional majoritária da doutrina.
Livraria Freitas Bastos, 1963. v. 8. p. 397). ·
35 CUNH": GONÇALVES, ~uiz da. Do compro e vendo no Direito Comercio! brasileiro. 2 a ed. mel. e
Do ponto de vista da operacionalidade, a mais relevante distin-
atual. Sao Paulo: Max L1monad, 1950. p. 214. ção reside no fato de a cláusula resolutiva expressa operar de pleno di-
CUNHA ~ONÇALVES, L~iz da. Da compra e venda no Direito Comercial brasileiro. 2 a ed. mel.
e ~t~al. Sa~ Paulo: '."'1~x_L1mona_d, _1950. _P· 214. Essa também é a orientação de PEREIRA, Caio
Mano da Silva. lnsl!tu1çoesde D1reI10 Civil. 26ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 20 13. v.1. p. . 37 VALLE FERREIRA, José Gaenaert do. Resolução da compra e venda. Revisto Forense, Rio de
475 Janeiro, v. 139, p. 29-30, jan./fev. 1952.
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618 - CLÁUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA: FUNÇÃO, ESTRUTURA E ÜPERATIVIDADE

a exemplo da possibilidade de estabelecerem, ex ante, as obrigações que


reito, vale dizer, independentemente de intervenção judicial ou arbitral,
se lhes afiguram essenciais para a realização do escopo econômico per-
enquanto a tácita requer atuação do Poder Judiciário ou de Tribunal
seguido, cuja inexecução configurará inadimple1:1ento absoluto. No en-
Arbitral: no primeiro caso, a resolução produz efeitos de jure; no segun-
tanto, inegavelmente, a grande vantagem oferecida aos contratantes - e
d~, :7eri:fica-se efficio judieis, nos termos expressos do art. 4 74 do Código
que no mais das vezes os leva a celebrá-la- é a possibilidade de resolver
Civil. Trata-se de flagrante vantagem da primeira sobre a segunda, que
extrajudicialmente, sem delongas, sem surpresas, nos termos pactuados
permite às partes o exercício da autotutela nos termos convencionados
a oferecer solução mais célere e segura para a perturbação ocorrida n; no contrato, a relação obrigacional.
contrato. Nessa senda, como reconhece Cunha Gonçalves, a intervenção A resolução extrajudicial vem, com efeito, ao encontro da necessi-
do Poder Judiciário se revela "muito inconveniente e embaraçosa para dade, cada vez mais premente, de assegurar certeza e celeridade às re-
a rápida circulação mercantil; pois que a rescisão dos contratos, no caso lações contratuais. Cuida-se, em verdade, de mecanismo legítimo de
de inexecução por uma das partes, não deve ser entravada pelas chica- autotutela privada dos interesses do credor, que o libera de se submeter
nas e morosidades forenses" .38 à atuação judicial - ou, ainda, à atuação arbitral - para obter resposta a
respeito do rompimento do vínculo obrigacional. Trata-se, portanto, de
A despeito da expressa dicção do art. 474 do Código Civil, encon-
remédio que favorece o tráfego jurídico e, consequentemente, a circu-
tram-se decisões que exigem a manifestação do Poder Judiciário para
que se opere a resolução, o que ocorre, sobretudo, no âmbito de promes- lação de riquezas.
sa de compra e venda de bens imóveis. A exigência, todavia, não se jus- A cláusula resolutiva expressa permite, enfim, que o credor resol-
tifica, como se passa a demonstrar. va, ele próprio, a relação obrigacional; e ele o faz por meio de declara-
ção receptícia de vontade dirigida ao devedor. Note-se que a declaração
4. A OPERATIVIDADE DA CLÁUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA: pela qual o credor faz chegar ao devedor sua opção pela resolução não
RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL POR DECLARAÇÃO RECEPTÍCIA se confunde com a interpelação do devedor para constituição em mora.
DO CREDOR Referidas declarações são distintas, com suportes fáticos e funções que
O efeito precípuo da cláusula resolutiva expressa, que a torna in- não se confundem: enquanto a declaração sobre a qual se discorre pres-
finitamente mais atrativa do que a cláusula resolutiva tácita, reside na supõe o inadimplemento absoluto e tem por função resolver a relação
resolução extrajudicial da relação obrigacional. 39 Evidentemente, como obrigacional, a interpelação para constituição em mora requer a simples
visto, a cláusula resolutiva expressa oferece outros benefícios às partes, inobservância do modo, tempo ou lugar ajustados para a prestação, sem,
todavia, impossibilitar ou tornar inútil o seu recebimento pelo credor,
38 CUNHA GONÇALVES, Luiz da. Da compra e venda no Direito Comercial brasileiro. 2ª ed. mel. e além de ter em mira inaugurar a mora do devedor.
atual. São Paulo: Max Limonad, 1950. p. 215.
39 N~ D!r 7ito português, Galvão Telles aponta as vantagens desse sistema: "seria injusto, em Por certo, a interpelação para constituição em mora será necessária,
pr~nc1P_10, manter um do~ pactuantes sujeito ao contrato depois de o outro o ter infringido, antes da declaração dirigida à resolução, sobretudo quando não houver
ate o ~rib~n~I se pronunciar, o que pode ser demorado. E não ficam excluídas as vantagens da
fisca/Jzaçao Judicial; se um dos contraentes se arroga o direito de resolver o contrato e com esse termo previamente ajustado para o cumprimento da prestação. Nesse
pretexto deixa de c~mp~ir, mas não tem efectivamente aquele direito, o tribunal, a pedido da
outra parte, declara-lo-a incurso em responsabilidade contratual" (TELLES, Inocêncio Galvão
caso, inclusive, pode o credor, naquela interpelação, já manifestar o seu
Di'.e'.to das obrigações. 7~ ed. rev. e atual., Coimbra: Coimbra Editora, 1997. p. 461, grifos n~ propósito de resolver a relação, como lhe autoriza a cláusula resolutiva,
original). Masco se manifesta na mesma direção no Direito italiano: "Mas como o exercício
dessa ação ~equer u_~ temp? ~onsiderável, ~u~ante o qual a relação entre as partes litigantes caso o devedor não execute a obrigação constante da cláusula no pra-
perman_ece incerta, Jª que o ex1to da controvers1a depende essencialmente do convencimento zo assinalado, dispensando-o de nova declaração. 40 Por outro lado, ha-
do _magistrado acerca da gravidade do inadimplemento, e levando em conta que esse estado
d: 1_n_certeza pode acarr_etar um dano expressi~o - a parte deve, por exemplo, manter a dispo- vendo termo contratualmente fixado, a mora é ex re e dispensa qualquer
mb1hdade da mercadoria ou de outro bem objeto da prestação pactuada-, a lei permite que,
em cert?s casos e observados certos pressupostos específicos, as delongas do processo de
resoluça~ possam ser superadas por meio da atribuição à parte insatisfeita de um particular
P?d:r r,rivado de re~o!ução'. que _enseja aquela que costuma-se chamar de 'resolução de AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Comentários ao nava Código Civil: da extinção do contrato.
d1re1to (M?SCO, Lu1g1. La nsoluzwne dei contralto per inadempimento. Na poli: Casa Editrice Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. 6, t. 2. p. 381.
Dott. Eugen10Jovene, 1950. p.145-146, tradução livre).
ALINE DE MIRANDA VALVERDE TERRA - 621
620 - CLÁUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA: FUNÇÃO, ESTRUTURA E ÜPERATIVIDADE

a presença dos pressupostos resolutivos, a sentença será merarI1ente de-


interpelação, 41 a autorizar a imediata declaração dirigida à resolucão uma 46
claratória, a reconhecer, então, a resolução ope voluntatis.
vez configurado o inadimplemento absoluto. '
Os Tribunais, atentos à melhor técnica, têm cuidado, em boa par-
Algumas leis especiais, por sua vez, exigem a interpelação do de-
te, de prestigiar a autonomia privada, reconhecendo que, presente
vedor para a conversão da mora em inadimplemento absoluto. É o que
cláusula resolutiva expressa, a resolução se processa extrajudicialmen-
~e ~as~a, por exemplo, no âmbito de promessa de compra e venda de
te. Ratificaram, por exemplo, a resolução extrajudicial promovida pela
1move1s loteados (Lei nº 6.766/1979) 42 e não loteados (Decreto-Lei nº
cláusula resolutiva expressa: o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ao
745/1969). 43
deliberar sobre contrato de empreitada para a reforma de piscina em con-
Seja como for, o que importa sublinhar aqui é que não se confunde domínio edilicio47 e sobre contrato de mútuo; 48 o Tribunal de Justiça de
a declaração pela qual o credor manifesta sua vontade de resolver extra- 49
São Paulo, ao apreciar contrato de locação de bem móvel; o Tribunal
judic\~~nte a relação obrigacional, com a notificação do devedor para de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, por ocasião da análise
constltmçao em mora.A constituição em mora pressupõe a mora, e con- de contrato de concessão de direito real de uso; 50 e o Tribunal de Justiça
cede ao d~ved_or prazo para purgá-la; a declaração resolutiva, por sua vez, do Paraná, ao examinar contrato de compra e venda de empresa alimen-
requer o ma~1mplemento absoluto e não abre ao devedor a possibilida- tícia51 bem como contrato de cessão de direito de ocupação de unidade
de de cumpnr a prestação, pois dá por resolvido o vínculo obrigacional. 52
habitacional hoteleira em sistema de tempo compartilhado.
Em sistemas em que a resolução se opera por mera declaração do
Há, porém, decisões que exigem a prévia manifestação judicial para
cred~r, a secundarização do papel do juiz ou do árbitro na apreciação
que se opere a resolução mesmo diante de cláusula resolutiva expressa.
da clausula pode ser atenuada por iniciativa do devedor. 44 Se inevitável
Trata-se, em sua maioria, de ações cujo objeto é a reintegração de pos-
o litígio, a intervenção judicial ou arbitral será meramente fiscalizado- 53
se do bem objeto de promessas de compra e venda de imóveis. Ao que
ra, da legitimida_de do exercí~io da autonomia privada na elaboração da
parece, outra deveria ser a solução. Embora se reconheça que semelhan-
c~ausula resolutiva e do efetivo preenchimento dos pressupostos auto-
tes contratações envolvam, muitas vezes, especial interesse do promiten-
nz~d~res da ~esolução. De todo modo, a atuação do julgador será a pos-
te comprador- aquisição da casa própria-, revestindo-se de relevância
teriort45 e, venfi.cada a regularidade do exercício da autonomia privada e
social justificadora da intervenção protetiva do Estado, é preciso consi-
41 Éo 9~e co~st~ expressamente do art. 397 do Código Civil: "O inadimplemento de obrigação derar que o Decreto-Lei nº 745/69 e a Lei nº 6.766/79 já flexibilizaram
p~s1t1va e liquida, no seu termo, const!tu! de pl_eno direito em mora o devedor. Parágrafo único'.
N~o ~avendo te\'.11º' a moras~ const~tu1 mediante interpelação judicial ou extrajudicial". o rigor da disciplina do Código Civil ao exigir a notificação do devedor
42 L~1 n 6.7~6/79, Art. 32. Vencida e nao paga a prestação, o contrato será considerado rescin- para sua constituição em mora, pelo que referidas decisões acabam por
dido ~o dias dep_oi: de constituído em mora o devedor. §1° Para fins deste artigo o devedor
ad9u1rente sera int1n:iado, a r~querimento do credor, pelo oficial do registro de imóveis, a exceder a proteção que a lei conferiu ao contratante. O Decreto-Lei nº
satisfaze: as prestaçoes vencidas e as que se vencerem até a data do pagamento 05 juros
convencionados e as custas de intimação". ' 745/69 e a Lei nº 6.766/79 exigem notificação,judicial ou por meio do
43 Decreto-Lei nº 745/69, ":"rt. 1º Nos :ontratos a9uese r~fere o art. 22 do Decreto-Lei nº 58, de 1o Cartório de Registro de Títulos e Documentos, para a constituição em
de ?e~embro, de 1937, ?ind? que nao tenham sido registrados junto ao Cartório de Registro de
lm<;>ve1s competent~, <;> in?~1mplemento ab~oluto do promissário comprador só se caracterizará
se,_interpelado porv1aJud1c1al ou porintermedio de cartório de Registro de Títulos e Documentos AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Comentários ao novo Código Civil: da extinção do contrato.
d:1x,~r de_ pur~ar ~ m<;>ra, no praz_o d~ 15 (~uinze) ~ias contados do recebimento da interpela~ Coordenação de Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. 6, t. 2. p. 494.
çao. • Assim, c1taçao literal do artigo ficara da seguinte maneira: "Art. 1º Nos contratos a que se TJRJ, 13ª CC, Rei. Des. Gabriel Zefiro, AC 0071083-54.2012.8.19.0001, julg. 16.09.2014.
ref~re o art: 22 do Decre~~-Lei no 58, de 10 de dezembro, de 1937, ainda que não tenham sido 47 TJRJ, 24ª CC, Rei. Des. Sérgio Wajzenberg, AC 0035062-45.2013.8.19.0001, julg. 27.04.2016.
reg1st~ad_o~ Junto ao Carto~10 de Regist~o d~ lm~veis competente, o inadimplemento absoluto do 48 TJSP, 28ª CDPriv., Rei. Des. Gilson Delgado Miranda, AC 0021370-86.2009.8.26.0562, julg.
pro~1~sano coi:ipradors_ose caractenzarase, interpelado por via judicial ou por intermédio de 49
c~rtono de Registro de T1tulos e Documentos, deixar de purgar a mora, no prazo de 15 (quinze) 24.02.2015.
TJDF, 4ª TC, Rei. Des. Arnoldo Caminho de Assis, AC 20110111863536, julg. 30.01.2013.
dias con~ados do recebi~ento da interpelação. De acordo com Darcy Bessone, "não explica 0 50
TJPR, 7ª CC, Rei. Des. Fábio Haick Dalla Vecchia, AC 1.187.541-1, julg. 22.07.2014.
texto o f!,m a que se destina o prazo, mas subentende-se que foi estabelecido para a purgação 51
TJPR, 12ª CC, Rei. Umberto Guaspari Sudbrack, AC 70066824764, julg. 30.08.2016.
da mora (~ESSONE, Darcy. Da compra e venda, promessa, reserva de domínio ealienacãofiduciária 52 STJ, 4ª, T., Rei. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, REsp 204.246/MG, publ. DJ 24.2.2003; STJ,
em garantta. 4ª,ed. rev. e amp!. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 191). , 53 4ª T., Rei. Min. Luís Felipe Salomão, Resp. 620.787/SP, julg. 28.04.2009; TJMG, 15ª CC, Rei.
44 PR<?ENÇA,!ose Carl~s Brandao.A resolução do contrato no Direito Civil: do enquadramento e do Des.José Affonso da Costa Côrtes, AI 1.0024.11.026503-o/001, julg. 19.05.2011.
regime. Cmmbra: Coimbra Editora, 2006. p. 113.
45 BESSONE, Darcy. Do contrato. Rio de Janeiro: Forense, 1960. p. 325.
ALINE DE MIRANDA VALVERDE TERRA - 623
622 - CLÁUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA: FUNÇÃO, ESTRUTURA E ÜPERATIVIDADE

mora do promitente comprador, mesmo que do contrato conste cláusula de purgar a mora, no prazo de 15 (quinze) dias contados do
resolutiva expressa, sem afastar, todavia, a resolução extrajudicial. Com recebimento da interpelação.
efeito a única peculiaridade que referidas leis impõem é a necessidade Parágrafo único. Nos contratos nos quais conste cláusula reso-
de notificação do promitente comprador, nada mais; após a notificação, lutiva expressa, a resolução por inadimplemento do promissário
comprador se operará de pleno direito (art. 474 do Código
tudo ~eve se passar consoante a disciplina da cláusula resolutiva expressa.
Civil), desde que decorrido o prazo previsto na interpelação
. E preciso frisar que a exigência do ajuizamento da ação de referida no caput, sem purga da mora.
remtegração de posse no âmbito de promessas de compra e venda não
A lei, a toda evidência, pretendeu corrigir o desvio de percurso da
torna necessário que o credor também recorra ao Judiciário para obter a
jurisprudência, reafumando a produção do efeito perseguido pelas par-
resolução do contrato, tanto mais no âmbito de relações paritárias: resolve-
tes com a inserção de cláusula resolutiva expressa no contrato, mesmo
se o c~~trato extrajudicialmente e ajuíza-se a ação para a reintegração. Em em promessa de compra e venda: a resolução extrajudicial da relação
defimt1vo, conquanto, não raro, se faça necessário recorrer ao Judiciário
obrigacional. Nessa direção, mostra-se auspicioso que algumas decisões
para que _se ~roduzam os efeitos materiais da resolução, isso não significa
posteriores à alteração legislativa já reconhecem a plena eficácia da cláu-
que a propna resolução tenha que se processar judicialmente. Cuida-se
sula, prestigiando a autonomia privada, a exemplo daquela proferida pelo
de problemas distintos, a serem resolvidos em esferas distintas.
Tribunal de Justiça de São Paulo, em cuja ementa se lê:
Não se :s~~ ~ sustentar~ em absoluto, a impossibilidade de atuação Tutela antecipada - Compromisso de compra e venda - Decisão
do Poder Jud1c1ar10 ou de Tnbunal Arbitral em resolução de compromis- que deferiu liminar para reintegração dos autores promitentes
s~ d~ compra e vend~a d~ qual conste cláusula resolutiva expressa. Aliás, vendedores na posse do imóvel - Inconformismo dos réus, que
n_ao e es:a a _consequencia da pactuação da referida cláusula em qualquer imputam aos autores a culpa pelo inadimplemento, bem como
c_ircunstancia. Propugn~-se, tão so~ente, a aplicação da disciplina per- sustentam a necessidade de prévia rescisão do contrato por
tmente, de sorte a considerar resolvido o contrato depois de transcorri- determinação judicial - Descabimento - art.1 ° do Decreto-Lei
do, in albis, o prazo para a purga da mora. Se, no entanto, o promitente nº 745 de 7 de agosto de 1969 teve sua redação recentemente
c~~prador não concordar com a resolução extrajudicial, caberá a ele 0 alterada pela Lei nº 13.097 de 19 de janeiro de 2015, dando
a3mzamento de ação a fim de submeter ao Judiciário ou à Arbitragem 0 eficácia à cláusula resolutória expressa quando o promissário
acertamento da controvérsia, e não ao promitente comprador. 54 comprador é interpelado e deixa de purgar a mora no prazo de
15 dias contados do recebimento desta - Ainda que a notifi-
Ante a resistência à efetividade da cláusula resolutiva expressa apos-
cação previamente encaminhada pelos autores não tenha sido
ta em promessas de compra e venda, editou-se a Lei nº 13.097, de 19
feita pela via judicial ou por intermédio de cartório de títulos,
de janeiro de 2015, cujo artigo 62 altera o artigo 1° do Decreto-Lei nº a citação para o feito de origem faz as vezes de interpelação
745/69, que passou a vigorar com a seguinte redação: judicial - Incontroverso o inadimplemento e não havendo
Art. 1°. Nos contratos a que se refere o art. 22 do Decreto-Lei notícia de purgação da mora, realmente não há óbice ao de-
nº 58, de 10 de dezembro de 1937, ainda que não tenham sido ferimento da antecipação de tutela, ante a eficácia da cláusula
registra~os j~nto ao Cartório de Registro de Imóveis compe- , · ( ....
resa1ut ona ) 55
tente, o madimplemento absoluto do promissário comprador De todo modo, encontram-se decisões que apenas admitem a reso-
só se caracterizará se, interpelado por via judicial ou por inter-
lução extrajudicial de promessa de compra e venda de imóveis não lote-
médio de cartório de Registro de Títulos e Documentos, deixar
ados, ao argumento de que a modificação promovida pela Lei nº 13.097
54 "? pact~ resolut~ri~ e~p.resso, segundo indicam o próprio nome e a leitura do art. 474, prescin- não teria alcançado as promessas referentes a imóveis urbanos loteados,
dir:a de mtervençaa~u.d1c1al para r~solver o contrato, já que 'está no conhecimento do interessa-
~º. O resul'.ado pr~t1co dessa leitura é a inversãa da iniciativa judicial: o devedor, discordando, reguladas pela Lei nº 6.766/79, e tampouco a imóveis incorporados, dis-
e que ?~vena t.er? o nus de demonstrarem juízo que não se verificaram os pressupostos para 0
ex~r~1c10 ??d1re1to de :e~o!ução".(GARCIA, Rebeca dos Santos. Cláusula resolutiva expressa:
55 TJSP, 1ª CDPriv., Rei. Des. Rui Cascaldi, AI 2079575-67.2016.8.26.oooo, julg. 06.07.2016.
analise cnt,ca de sua ef1cac1a. Revista de Direita Privado t São Paulo v 56 p 83 out /de 2.2013 )•
1 • I • I •
624 - CLÁUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA: FUNÇÃO, ESTRUTURA E ÜPERATIVIDADE
ALINE DE MIRANDA VALVERDE TERRA - 625

ciplin_adas pelas Leis nºs 4.591/64 e 4.864/65, no âmbito das quais are- de resolução extrajudicial às promessas de compra e venda de imóveis não
soluçao sempre deveria se processar judicialmente. 56 loteados, mas apenas ratificar, em razão da resistência por vezes consta-
A restrição, todavia, não colhe. Isso, porque a resolução extrajudicial tada, a forma pela qual se opera a resolução diante de cláusula resoluti-
facultada pela cláusula resolutiva expressa é a regra geral, constante do va expressa. Se não há qualquer exceção em lei especial - como não há
art. 474 ~o Có~igo Ci~, q~e só pode ser afastada por previsão específi- nas promessas de compra e venda- aplica-se o regime geral do Código
ca em lei especial. E nao ha, em relação a qualquer espécie de promessa Civil, a afastar a exigência de prévia apreciação judicial ou arbitral para
de compra e venda, disposição que excepcione a regra. Ao contrário. No que se opere a resolução, sob pena de restar gravemente violado o exer-
que tange especificamente às promessas de compra e venda celebradas cício legítimo da autonomia privada pelos contratantes.
no _âmbito ~e i:1corp?r_a!ões imobiliárias, há mesmo referência na legis-
laçao especial a possibilidade de resolução extrajudicial. 5. NOTAS CONCLUSIVAS

A Lei 4.591/64, no art. 63, determina que "é lícito estipular no O Código Civil de 2002 ratificou a autonomia dogmática da cláu-
contrato, sem ?rejuízo de outras sanções, que a falta de pagamento, por sula resolutiva expressa, distinguindo-a da condição resolutiva e da cláu-
parte do adqmrente ou contratante, de 3 prestações do preço da cons- sula resolutiva tácita. A análise de sua função, estrutura e da forma qual
~ção, quer estabelecidas inicialmente, quer alteradas ou criadas poste- se operam seus efeitos permite não apenas distanciá-la daquelas figu-
norme~te, quando for o caso, depois de prévia notificação com o prazo ras, mas reconhecer sua importância ímpar na tutela dos interesses do
de 10 dias para purgação da mora, implique na rescisão do contrato, con- credor no momento mais dramático da relação contratual: o inadimple-
.,fo:m_e ne!e sefix~r. ou que, na falta de pagamento, pelo débito respondem os mento absoluto .
direitos a respectiva fração ideal de terreno e à parte construída adicionada, Isso, porque, como se destacou, a cláusula resolutiva expressa per-
na forma abaixo estabelecida, se outra forma não fixar o contrato" (grifou- mite ao credor se desvincular de relação jurídica estéril, incapaz de pro-
-se).57 Note-se que o dispositivo autoriza a "rescisão (sic.) do contrato, mover o resultado útil programado, de forma célere, mediante simples
conforme nele se fixar", ou o leilão do imóvel. Ora, se a lei se refere à notificação ao devedor, extrajudicialmente. Todavia, a despeito da reda-
"rescisão (sic.) do contrato, conforme nele se fixar", é porque o contrato ção inequívoca do art. 474 do Código Civil, ainda se encontram vozes
pode prever forma de resolução que não a legal, ou seja, que não aquela que subordinam a resolução à manifestação judicial ou arbitral, o que
decorrente da cláusula resolutiva tácita, o que indica a possibilidade de ocorre sobretudo quando se está diante de promessa de compra e ven-
previsão de cláusula resolutiva expressa e, por consequência, de resolu- da de bem imóvel, o que descaracteriza a cláusula resolutiva expressa,
ção extrajudicial. equiparando-a, quanto ao seu principal efeito, à cláusula resolutiva táci-
Em definitivo, a alteração promovida pela Lei nº 13.09712015 no ar- ta. Desvirtua-se a disciplina da cláusula e impõe-se ao credor a penosa
tigo 1° do Decreto-Lei nº 745/69 não pretendeu restringir a possibilidade tarefa de socorrer-se do Poder Judiciário ou da Arbitragem para fazer
valer seu direito quando, a rigor, quem deve fazê-lo é o devedor, se dis-
56 Nesse sentido, c?nfira-se: "( ... ) Cláusula resolutiva expressa. Art. 1° do Decreto-Lei 745 ;6
9 cordar da execução da cláusula. Fere-se a autonomia privada, apesar de
alt~rª?º pela Lei _nº 13.097/15 aplicável apenas aos imóveis não loteados. Caso que trat~
d~ 1m~v_el e~ regime de incor~oração imobiliá~ia. (:)'·, No corpo do acórdão, lê-se: "(... ) 0 inexistir qualquer justificativa legal para tanto.
d1spos1t1vo e_ expresso ao mencionar que sua aphcaçao e restrita aos contratos, sem cláusula
de arrepend~mento, de compromisso de compra e venda e cessão de direitos de imóveis não A fim de superar o imbróglio, alterou-se o artigo 1° do Decreto-Lei
lotead_os_(art1go 2~ d? Decreto-Lei no 58/37), hipótese diversa da existente nos autos, em que nº 745/69, que passou a mencionar expressamente que "nos contratos
se esta d1ant: ~.e 1movel em regime de incorporação imobiliária, prometido à venda e ainda
~m construçao (TJSP, 36ª CDPriv., AC1121866-85.2019.8.26.0100, Rei. Des. Milton Carvalho nos quais conste cláusula resolutiva expressa, a resolução por inadimple-
Julg. 04.08.2020). '
57 A Lei 4.86~,'.'.65, no art. 1º, ratifica que a resolução requer atraso mínimo de 3 meses: "art. 1o_ mento do promissário comprador se operará de pleno direito". Espera-se
VI -A resc1sao do ;~ntrato po__rinadimplemento_ do adquirente somente poderá ocorrer após que a mudança legislativa - cujo escopo não foi restringir a possibilida-
o atras~ de, no m~mmo, 3 (t~es) meses do vencimento de qualquer obrigação contratual ou
de 3 {tres) prestaçoes m_ensa1s, assegurado ao devedor o direito de purgar a mora dentro do de de resolução extrajudicial às promessas de compra e venda de imó-
pr~zo _de 90 (nov:nta) dias, a contar da data do vencimento da obrigação não cumprida ou da
pnme1ra prestaçao não paga". veis não loteados, mas reforçar a regra geral prevista no Código Civil-,
626 - CLÁUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA: FUNÇÃO, ESTRUTURA E ÜPERATIVIDADE GISELA SAMPAIO DA CRUZ GUEDES E MARIA CAROLINA BICHARA - 627

contribua para esclarecer o regime jurídico da cláusula e, assim, confe-


rir maior segurança jurídica às partes, prestigiando a autonomia privada.
IV. IMPOSSIBILIDADE TEMPORÁRIA DA PRESTAÇÃO:
A presença da cláusula resolutiva expressa resulta de escolha prévia ENTRE ATRASOS E INCERTEZAS QUANTO AO
dos contratantes quanto aos mecanismos de tutela de que disporá o cre- CUMPRIMENTO DA PRESTAÇÃO PACTUADA
dor em caso de inadimplemento, a restringir a possibilidade de o juiz ou
árbitro reavaliar essa escolha. Sempre será permitido ao julgador anali- Gisela Sampaio da Cruz Guedes1
sar a legitimidade e a legalidade da cláusula, mas é preciso cuidar para
que, ao fazê-lo, não se substitua à vontade inicial das partes, alterando a Maria Carolina Bichara2
disciplina contratual e, por vezes, o próprio equihbrio do contrato, uma
"Costuma-se dizer, dêmos tempo ao tempo, mas aquilo que sempre
vez que a presença da cláusula resulta de complexa equação que envol- nos esquecemos de perguntar é se haverá tempo para dar".
ve cuidadosa distribuição de riscos contratuais.
- José Saramago

1. INTRODUÇÃO
As repercussões da impossibilidade da prestação no direito das
obrigações sempre foram discutidas pela doutrina brasileira nem
sempre, porém, com a profundidade que o tema merece ser estudado.
Especificamente no que se refere à impossibilidade temporária, tanto a
doutrina brasileira como a estrangeira são escassas, o que se explica tal-
vez pelo fato de a aplicabilidade dessa figura contrariar, por assim di-
zer, a essência da sociedade contemporânea - imediatista e impaciente
-, que assiste diariamente os avanços tecnológicos reduzirem cada vez
mais o espectro do que é realmente impossível.
A crise que se instaurou em razão da Covid-19 lançou novas luzes a
antigas controvérsias, em especial à teoria das impossibilidades que tem
sido cada vez mais debatida. O tema é tão rico, que se desdobra numa
série de classificações, porque o acontecimento inevitável pode impac-
tar a vida dos contratos de diversas formas, gerando variados efeitos que
podem culminar na própria extinção do dever de prestar. A importân-
cia dessas classificações, portanto, não se revela apenas no plano teórico
ou acadêmico, mas também no prático, e os efeitos que advêm de cada
uma delas são distintos.
1, Em relação à natureza, por exemplo, diz-se que a impossibilidade
pode ser física ou jurídica. A impossibilidade será física quando a pres-
tação não puder ser realizada pelo homem com suas próprias forças (ex.
obrigação de tocar o céu com o dedo), mas esse é um conceito histo-

Professora Adjunta de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio deJaneiro-UERJ. Doutora


e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada, parecerista e árbitra.
2 Mestre em Direito Civil pela UERJ, orientada pela primeira autora. Advogada.
628 - IMPOSSIBILIDADE TEMPORÁRIA DA PRESTAÇÃO: ENTRE ATRASOS E INCERTEZAS ••• GISELA SAMPAIO DA CRUZ GuEDES E MARIA CAROLINA BICHARA - 629

ricamente situável, porque não necessariamente o que é impossível no A teoria contratual clássica sempre concebeu o conceito d.e impos-
presente também o será mais à frente, no futuro. 3 A impossibilidade ju- sibilidade como absoluto, por não comportar avaliações sobre as pecu-
rídica, por outra lado, resulta de determinação legal ou de disposição ne- liaridades do caso concreto, 8 e objetivo, no sentido de atingir a todos
gocial. 4 Ainda que a prestação seja fisicamente possível, importa saber que possam ocupar a mesma posição jurídica do devedor. Nas palavras
se a norma jurídica e a imposição negocial também a consideram pos- de Pontes de Miranda: "O objeto é impossível se o é para todos. O ele-
sível. A prestação deve ser possível, física e juridicamente, pois, como já mento subjetivo não entra em conta. (... ) impossibilidade só subjeti-
9
afumavam os romanos, ad impossibilia nemo tenetur. 5 va não é impossibilidade. A relatividade pré-exclui a impossibilidade".
Outra classificação importante é a que distingue a impossibilida- De fato, a impossibilidade relativa, em regra, não interfere na eficácia
de em originária e superveniente, levando em consideração o momen- do ato jurídico que a tenha por objeto. 10 Se aquele que prometeu a pres-
to em que a impossibilidade resta configurada. Enquanto a originária tação não a cumpre, apenas por não ter, pessoalmente, possibilidade de
atinge a prestação já no momento de formação do contrato, repercutin- cumpri-la, não existe verdadeira impossibilidade, mas antes inadimple-
do no plano de sua validade6 - já que, a rigor, a prestação sequer deveria mento. No entanto, o dever de prestar não se impõe em termos indiscri-
ter sido acordada -, a superveniente surge no curso de sua execução. O minados, possuindo como limite intrínseco o sacrifício razoavelmente
efeito fundamental da impossibilidade superveniente da prestação, por exigível do devedor para a realização da prestação contratada à luz do
causa não imputável ao devedor, é a extinção da obrigação, com a con- princípio da boa-fé objetiva e do equilíbrio de interesses componentes
sequente exoneração do obrigado. da relação obrigacional. 11
Por ser a impossibilidade superveniente um problema de incum- Este artigo, entretanto, não tratará dessas classificações, mas de ou-
primento, faz-se necessário avaliar a imputabilidade do impedimento tra igualmente importante, que distingue a impossibilidade a partir de
para, sequencialmente, determinar o regime jurídico aplicável: para as seus efeitos, em definitiva ou temporária. 12 Pode ocorrer, sobretudo nos
hipóteses em que a impossibilidade da prestação for ocasionada por fato contratos de execução continuada ou sucessiva, em que evento extraor-
imputável a uma das partes, configura-se uma situação de similitude ou dinário e inevitável, apto a se qualificar como um caso fortuito ou for-
mesmo identidade com os efeitos decorrentes do inadimplemento, ori- ça maior, gere efeitos apenas transitórios, não chegando a acarretar a
ginando o dever de indenizar; na situação contrária, quando a impossi- impossibilidade definitiva da prestação. Nesses casos, esclarece Judith
bilidade não for imputável, a prestação deixa de ser exigível,já que não 8 DEIAB, Felipe Rocha. O alargamento do conceito de impossibilida~e_no direito das obrigações:
há que se falar em inadimplemento "porque este constitui a não realiza- a inexigibilidade e a frustração do fim do contrato. ln: MOTA Mauric10; KLOH, Gustavo (org.).
Transformações contemporâneas do direito das obrigações. Rio de Janeiro: ~lsevier, 2?11, p. 139:
ção da prestação devida enquanto devida". 7 9
PONTES DE MIRANDA, Francisco. Tratado de direito privado. T. XXll.3ª ed. Rio deJane1ro: Borsrn,
1970, p.43. . . . . , , .
10 A distinção entre impossibilidade obJet1va e subJet~va tam~em e reconhecida .P:'ª
3 PIRES, Catarina Monteiro. Impossibilidade da prestação. Coimbra: Almedina, 2017, p. 114. jurisprudência:"( ... ) é certo que a obrigaçã? pode ser real_1zada, nao ha~endo qualquer ob1ce
4 Tome-se o exemplo de Catarina Monteiro Pires: "Quando se diz que não é possível matar objetivo à demolição da construção indevidamente reah_za~a. O_ obstaculo encontrado,_ em
alguém, emprega-se um sentido de impossibilidade jurídico-normativa. A promessa através verdade, é subjetivo logo, relativo, não concerne~te ao pro~r~o ~bJ~t~ que ~eve ser demolido.
da qual A promete matar Bé uma promessa ilegal e o ato performativo que lhe está subjacente Dessa maneira em decorrência da força executiva da dec1sao Jud1c1al, nao pode o devedor
não é aceite pelo ambiente normativo que o conforma, mas o efeito visado pode ocorrer, se furtar-se de ex;cutar sua obrigação enquanto esta for objetivamente possível" (TJ/SP, 25ª Câm.
A praticar homicídio.Já a promessa de vender um imóvel de domínio público corresponderia de Dir. Priv. AI 2052181-80-2019.8.26.oooo, Rei. Des. Hugo Crepaldi, j. em 16.05.2019).
a uma impossibilidade jurídica-real, porque a ordem jurídica não só proíbe, como consegue 11 o Direito dvil contemporâneo promove uma releitura funciona~ àt7oria da_s i1;1possibilidades,
impedir a consumação da prestação ilegal" (Impossibilidade da prestação, cit., pp. 117-118). ampliando-se o conceito de impossibilidade e, por consequenc1a,_ ~s h1poteses em que o
5 A expressão em latim significa "ninguém é obrigado a fazera impossível", ou seja, a obrigação cumprimento in natura da prestação não pode ser razoavelmente ex1g1do do d_ev~d<?_r.
cujo objeto consiste numa obrigação impossível não pode ser exigida. 12 Orlando Gomes já observava a importân_cia da distinçã_o: "lm~~r~ante a d1s'.1~çao entre
6 A possibilidade do objeto é, portanto, pressuposto ontológico da obrigação: "O requisito da impossibilidade definitiva e temporária. A rigor, somente a 1mp?ss1b1hdade defimt1~a ex_onera
possibilidade está presente em toda e qualquer prestação, positiva ou negativa, conducente o devedor. A impossibilidade temporária apenas retarda o ad1_mplemen'.o da obngaçao. ~a
a um dare ou a um facere, pois é intuitivo que, em qualquer caso, se, sujeito o devedor a uma natureza transitória do obstáculo resulta que o devedor pode satisfazer, ~ais tarde, a pre~taç~o,
ação ou a uma omissão, a nada estará obrigado, se for a prestação insuscetível em si mesma" salvo em alguns contratos, nos quais é essencial o termoy~r~ o cumprimento da o_bng':çao.
(PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: teoria geral das obrigações. V. 2, 24ª Se a procrastinação dura tanto que a prestação se torna mut1l par~ o c!edor, _tambe~ _n_ao se
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 19). lhe pode exigir que espere indefinitivamente. Extinguindo:se a obngaçao por1mposs1b1h~ad:
7 MARTINS-COSTA, Judith. ln: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Comentários ao novo transitória, o credor não tem direito a exigir seu cumprimento quando se torne passivei
código civil. V. 5. T, li. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 277. (Obrigações, 18ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, PP· 148-150).
630 - IMPOSSIBILIDADE TEMPORÁRIA DA PRESTAÇÃO: ENTRE ATRASOS E INCERTEZAS ••• GISELA SAMPAIO DA CRUZ GUEDES E MARIA CAROLINA BICHARA - 631

Martins-Costa, "o Direito contemporâneo admite uma suspensão do mais das vezes, é que a impossibilidade temporária não leva à extinção
contrato durante o tempo da impossibilidade causada pelo caso fortuito do contrato, mas à mera suspensão de seus efeitos. A rigor, como se verá
ou força maior. A suspensão é, por definição, provisória, mas as obriga- mais à frente, o efeito da impossibilidade temporária é suspender o de-
ções contratuais, que nesse período ficam numa espécie de 'estado la- ver principal de prestar, e não propriamente todos os efeitos do contrato.
tente', recobram o seu vigor tão logo o evento tenha cessado".13 Esse é Dependendo das peculiaridades do caso concreto, porém, pode acon-
precisamente o tema que será desenvolvido nas páginas que se seguem. tecer de a impossibilidade temporária conduzir à inutilidade da presta-
cão para O credor. Basta, por exemplo, o contrato ter um t~rmo essencial,
2. A IMPOSSIBILIDADE TEMPORÁRIA NO ORDENAMENTO
passado O qual a prestação não mais interessa ao credor.1:, Ne~s~s casos,
BRASILEIRO
a impossibilidade nasce temporária, mas se conver~e em ~efimt1va, por-
A teoria das impossibilidades representa a mais importante exceção que fulmina a prestação que tinha de ser cun~?r:d~ ate o. advent_o -~º
ao princípio do cumprimento específico, uma vez que, sendo inconcebível termo essencial. 16 Daí se conclui que o traço d1stmt1vo da 1mposs1bili-
cumprir aquilo que é impossível, afasta a execução específica da prestação. dade temporária é que o obstáculo ao cumpri~ent~ nã~ seja p~rmanen-
No Direito brasileiro, a regra geral é a de que somente a impossibi- te, sendo a prestação possível ou recuperável a sat1sfaçao dos mteresses
lidade definitiva da prestação libera o devedor, conduzindo à extinção do dos contratantes.
dever principal de prestar. Em realidade, o Código Civil sequer trata da Não é preciso dizer muito, então, para explicar que a inimputab~-
impossibilidade temporária, pelo menos não por meio de uma cláusula dade do impedimento e a utilidade da prestação são elementos necessa-
geral, como em outros sistemas o assunto é previsto. 14 O que se diz, no 17
rios à identificação desta espécie de impossibilidade. Como o Código
13 MARTINS-COSTA, Judith. ln: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Comentários ao nava citar um exemplo vizinho, o art. 956 do Código Civil da ':rgenti_na_ regula a impossibilida~e
Código Civil. V. 5. T.11. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 304. Segundo Carvalho Santos, temporária da seguinte forma: "La imposibilidad sobrevenida, _ob1et1va, absoluta y t:i:nporana
"Pouco importa que a impossibilidade seja absoluta ou relativa, objetiva ou subjetiva. O que de Ia prestación tiene efecto exti~tivo cu~nd~, el plazo es esenc1al, o cu ando su durac1on frustra
interessa é saber se a impossibilidade surgiu em conseqüência de culpa do devedor. Um ponto, el interés dei acreedor de modo 1rrevers1ble . . , .
entretanto, ainda merece nossa atenção: a impossibilidade temporária não está incluída Tome-se O exemplo de Judith Martins-Costa: "Suponhamos o caso ?e um eng~~h~iro eletnco
no texto supra. De fato, a impossibilidade pode ser transitória, pode cessar. Neste caso, ela 15
contratado para instalar e operar um sistema de iluminação especial no munic1p~o ~, p_ara_ os
será apenas um impedimento. Doutrina Carvalho de Mendonça: a regra é que o contrato festejos do "Dia da Cidade". Acontece que, justamente naquela data, tod~ ~ reg1ao_ e atin~1da
é válido somente quando a cessação é inerente à natureza da impossibilidade e inválido por um black-out, em virtude de defeito numa das usinas_da empresa lta1pu. ~o dia ~e?~inte
quando acidental. Se um artista não pode, pela superveniência de uma grave moléstia, dar defeito é consertado, mas a festa já se realizou, e o serviço contratado fora 1mposs1b1htado
0
cumprimento a uma obra que contratou, não se poderá furtara executá-la desde que sua saúde de forma irreversível" (Comentários ao novo Código Civil, ~it., p. 388) ...
se restabeleça, salvo se a moléstia for de tal modo protraída que não haja mais utilidade para Se a prestação pudesse ser cumprida em outra ~ata, ainda com u_t1hdad: ~~ra o credor, o
o credor em obter o serviço. Nesta hipótese especial, o impedimento temporário equivale ao devedor teria de cumprir o seu dever de prestar tao logo cessada a 1~~oss1b_1hdad~. _co~o o
perpétuo. É um exemplo da cessação, inerente à natureza da impossibilidade" (Código Civil interesse do credor, na maioria dos casos, não sobrevive eternamente, e 1mp~nos_o d1stingu1rse
brasileiro interpretado. V.11. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1986, pp. 84-85).
Ao contrário de outros códigos, que preferiram regular os efeitos da impossibilidade
se trata de obrigação com termo essencial, fixo no contrato, o~ ?e uma obngaçao duradoura,
14 que pode ser cumprida mais à frente, sem que isso faça a sua utilidades: perde~p_a_ra o credor.
temporária, o Código Civil brasileiro não cuida dela, mas apenas da impossibilidade definitiva. Nesse sentido, esclarece Pontes de Miranda: "Se é de prever-~e que a 1mposs1bil'.d~de pode
Em Portugal, a impossibilidade temporária vem tratada no art. 792. 0 o Código Civil português, passar, a extinção da dívida não se dá. Enquant_o tal mudança e de esperar-se, de Jeito ~u~ se
que estabelece, no item 1, que "[s]e a impossibilidade for temporária, o devedornão responde consiga a finalidade do negócio jurídico, nem incorre em ri:ora o_ deved?r'. ~em, afort,on,_ se
pela mora no cumprimento" e, no item 2, que "[a] impossibilidade só se considera temporária extingue a dívida. Mas, ainda aí, é de advertir-se que a duraçao da 1mpo~s1b1h?ad_e passageira,
enquanto, atenta a finalidade da obrigação, se mantivera interesse do credor" -redação que é ou de se supor passageira, pode ser tal que se tenha de conside~~r ofe_nd1da a ~inahdade, dando
reproduzida fielmente no art. 781º do Código Civil de Macau. Na França, o art. 1.218 do Código ensejo a direito de resolução". E, mais adiante, continua.º ~utor: ~e foi dete_rm1~ado te1;1~~ para
Civil francês determina que "[s]i l'empêchement est temporaire, l'exécution de l'obligation a prestação, de modo que se haja de entender que seJ~ 1mr:oss1ve) dep_o1s, a 1mposs1b1~da?e
est suspendue à moins que le retard qui en résulterait ne justifie la résolution du contrat" (em transitória opera como a definitiva. Idem, se tal determinaçao se ha ~e ~irar~as c1rcunstanc1~s
tradução livre: Se o impedimento for temporário, o cumprimento da obrigação é suspenso, e se há de considerar conteúdo do negócio jurídico" (Tratado de d1re1to privado. T. XXV. Sao
a menos que o atraso resultante justifique a rescisão do contrato"). Na Itália, o art. 1.256 do Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, PP· 289-290). .
Código Civil italiano dispõe que "[s]e l'impossibilità esolo temporanea, il debitore, finché essa A doutrina costuma distinguir as espécies d~ impo_ssib_ilidad'.; d_e acor?°. ~om os efeitos
perdura, non e responsabile dei ri tardo nell'adempimento. Tuttavia l'obbligazione si estingue 17
ocasionados pelo impedimento sobre a rel~çao_ o_b~1~ac1on~I: A 1mposs1bil1d~d_e pod~ ser
se l'impossibilità perdura fino a quando, in relazione ai titolo dell'obbligazione o alia natura também definitiva, quando o vínculo se extinguira (in1mputavel) ou se alterar_a (1mputavel),
dell'oggetto, il debitore non puà piu essere ritenuto obbligato a eseguire la prestazione ovvero il ou temporária (p. ex., plano econômico governament_al q~e vend~ t~~poranamente cer_ta
creditore non ha piu interesse a conseguiria" (em tradução livre: "Se a impossibilidade for apenas prática). A impossibilidade temporária enseja a parahsaçao da ex1g1b1_hdade da p_restaçao
temporária, o devedor, enquanto essa persistir, não é responsável pelo atraso no cumprimento. e mantém O vínculo até que a causa da impossibilidade se afaste ou ate qu~ se ext1~ga~ os
Todavia, a obrigação se extingue se a impossibilidade perdurar até que, em relação ao título interesses do credor na prestação. Essa hipótese diferencia-se da mora pela inocorrenc1a do
da obrigação ou à natureza do objeto, o devedor não possa mais ser considerado obrigado elemento subjetivo característico desta, a culpa do devedor, de modo_que,,~avendo culpa que
a realizar a prestação ou o credor não tenha mais interesse em obtê-la"). Finalmente, para tenha determinado o atraso, o caso será regido pelos arts. 394 e seguintes (SILVA,Jorge Cesa
632 - IMPOSSIBILIDADE TEMPORÁRIA DA PRESTAÇÃO: ENTRE ATRASOS E INCERTEZAS ••• GISELA SAMPAIO DA CRUZ GUEDES E MARIA CAROLINA BICHARA - 633

Civil brasileiro não possui um regramento bem definido sobre o tema, to, em uma relação obrigacional que tem por objeto, por exemplo, a lo-
o que se extrai das regras contidas nos artigos 476 18 e 477 19 do Código cação de uma loja em um shopping center que, em função de um decreto
Civil- e em oposição ao que se verifica nas hipóteses de impossibilida- estadual, fica momentaneamente impedido de funcionar, o impedimen-
de definitiva - é que a impossibilidade temporária, a princípio, não pos- to temporário ressoa desde o seu início.Já no que se refere à obrigação
sui aptidão para extinguir o dever principal de prestar, mas apenas para de fotografar um casamento, eventual impedimento repercutirá apenas
alterá-lo, de modo a adequar o conteúdo da avença à satisfação dos inte- sobre o termo estipulado para o seu cumprimento.
resses almejados com o negócio. Significa dizer, por outras palavras, que O mesmo ocorre com as obrigações de conteúdo negativo: tratan-
a impossibilidade temporária possui apenas o condão de retardar o cum- do-se de omissão específica e pontual, como na hipótese de omissão de
primento do dever primário de prestar, sem, contudo, extinguir a relação direito de voto em uma específica reunião, a inexecução da prestação no
obrigacional, apenas suspendendo-a, afastando a responsabilidade das momento oportuno ocasiona a impossibilidade definitiva da prestação.
partes quanto ao atraso incorrido e aos demais consectários da mora. 20 Contudo, sendo contratada uma omissão duradora, a depender do caso
O termo inicial do estado de suspensão do dever de prestar está di- concreto, pode ser que eventual impedimento temporário da prestação
retamente vinculado ao momento de execução da prestação contratada. não ocasione a extinção do dever de prestar.
Em se tratando de prestação única, o obstáculo temporário ao cumpri- Por vezes, a relação obrigacional será alcançada, de modo sucessi-
mento que se manifeste no curso do prazo contratualmente definido não vo ou simultâneo, por obstáculos de diferentes naturezas, ocasionando a
necessariamente alcançará o dever de prestar, que apenas será executado involuntária conversão da impossibilidade temporária em definitiva. Por
em momento posterior, quando o impedimento poderá já ter sido supe- hipótese, um cirurgião que em meio a uma crise sanitária seja obrigado
rado, sendo necessário aguardar a confirmação da durabilidade do obs- por lei a desmarcar as cirurgias estéticas e eletivas inicialmente contra-
táculo ao cumprimento do dever de prestar. 21 tadas, deixando-as suspensas até a revogação do impedimento. Contudo,
Diferente, contudo, será o cumprimento de prestações continuadas, antes mesmo da superação do impedimento transitório, o cirurgião fica
que se perpetuam até o termo final estipulado entre os contratantes. Para cego e, portanto, definitivamente impossibilitado de realizar a prestação
essa espécie de prestação, o obstáculo ao cumprimento tem o condão de contratada. Nesses casos, a impossibilidade temporária é convertida em
suspender imediatamente a relação obrigacional já em curso. Com efei- definitiva em razão do segundo obstáculo (cegueira), e não em função
do primeiro (crise sanitária) que era transitório e, portanto, a princípio
Ferreira da; REALE, Miguel; MATINS-COSTA,Judith (Coords.). Inadimplementa das obrigações: só tinha potencial para gerar uma impossibilidade temporária.
comentários aos arts. 389 a 420 do código civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 39).
18 "Art.476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, Exatamente porque, a rigor, não extingue o dever de prestar, há na
pode exigir o implemento da do outro".
19 "Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes doutrina quem questione a própria natureza jurídica da impossibilidade
diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela
qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça
temporária, concebendo-a como uma figura autônoma e independente
a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la". da teoria das impossibilidades. 22 No entanto, ainda que cada espécie de
20 Como observa Catarina Monteiro Pires, quando se está diante de uma impossibilidade
temporária não imputável ao devedor,"( ... ) a partir do momento em que a prestação volta a ser 22 MEDI CUS Dieter. Bemerkungenzur "vorübergehenden Unmõglichkeit", FS für Andreas Heldrich
possível, o devedor não fica, na falta de específica previsão contratual, obrigado a recuperar zum 70. Geburtstag, org. Stephan Lorenz, AlexanderThunk, Horst Eindenmuller, Christiane
o tempo perdido" (Contratos: perturbaçôes na execução. Coimbra: AI medi na, 2019, p. 176). Wenderhorst, Johanner Adolff, Munique: Beck, 2005, pp. 347-357. Quando da reforma do
21 Por esse motivo, inclusive, não se admite a verificação de uma impossibilidade temporária BGB, o Projeto Governamental previa que o §275/1 teria a seguinte redação: "A pretensão a
anterior ao termo para cumprimento da prestação. Esclarece Aline M_if<!nda de Valverde prestação é excluída quando e enquanto seja ela impossível_para o dev~d?r_ou par_a to_dos".
Terra que "À impossibilidade equipara-se, ainda, a situação em que o desaparecimento do A redação proposta resolveria qualquer discussão quanto a natureza_Jund1ca do mst1tut_o,
obstáculo colocado ao adimplemento por culpa do devedor dependa da verificação de fato mas cabaria por originar problemas ainda mais com~lex?.s, na medida que ~~a soluç~o
cuja probabilidade é tão remota que, racionalmente, não é de esperar que se realize. Por jurídica una à todas as espécies seria impraticavel. ExphcaJorg Neune_rqu: o Direito ale_mao
outro lado, a impossibilidade temporária não configura o estado de não poderadimplir. Nesse considera a impossibilidade temporária mero retardamento da reahzaçao da prestaça?, .ª
sentido, o promitente vendedor de unidade imobiliária, que aliena o mesmo imóvel a terceiro qual irá se distinguir da mora por ser inimputável ao deve?or: "A !~~ossibilid~d_e_temporana
com cláusula de retrovenda a ser executada antes do advento do termo da promessa, não pode não é regulada por lei na Alemanha. Diferentemente da 1mposs1b1hdade defm1t1va, o dever
ser reputado inadimplente em relação ao primeiro contrato, pois a impossibilidade é apenas de prestar do devedor fica aqui afastado, :m ~rincípio, apenas pe!o tempo q~e per~urar o
temporária" (O chamado inadimplemento antecipado. Revista de Direito Privado, vol. 60/2014, impedimento. O retardamento da prestaçao difere da mora, que e um atraso 1mpu_tavel ao
pp. 135 -157, out.-dez./2014). devedor. Se o devedor for responsável pelo obstáculo e, consequentemente, pelo adiamento
GISELA SAMPAIO DA CRUZ GUEDES E MARIA CAROLINA BICHARA - 635
634 - IMPOSSIBILIDADE TEMPORÁRIA DA PRESTAÇÃO: ENTRE ATRASOS E INCERTEZAS •••

Para ilustrar essa afirmação, o autor formula o seguinte exemplo:"( ... )


impossibilidade ressoe sobre a relação obrigacional de forma singular,
é pedido um reboque para um veículo que, entretanto, começa a funcio-
certo é que o efeito primário ocasionado será similar a todas as espécies,
nar; há que avisar, de imediato, a empresa rebocadora de que o serviço já
qual seja, inibe-se o cumprimento específico do dever de prestar, 23 pos-
não é mais possível; não sendo isso viável, deve alguém permanecer no
tergando-o, extinguindo-o ou redimensionando-o.
local para informar o pessoal técnico e prevenir mais danos". 25 Os deve-
Além disso, como a relação obrigacional complexa compreende res decorrentes da boa-fé impõem esse tipo de conduta ainda que o de-
também os deveres anexos derivados da boa-fé objetiva, mostra-se tec- ver principal de prestar esteja extinto. Exatamente por isso, do ponto de
nicamente inadequada a afirmação de que a impossibilidade definitiva vista técnico, é mais preciso afumar que a impossibilidade definitiva al-
ext~ngue o vínculo obrigacional. A impossibilidade definitiva, a rigor, cança o dever de prestar, mas não o vínculo obrigacional na sua integra-
e~t:mgue apenas o dever principal de prestar, mas não o vínculo obriga- lidade. Já a temporária sequer fulmina o dever de prestar, repercutindo
c10nal como um todo. Com efeito, no bojo de uma relação obrigacional, apenas sobre sua exigibilidade, a qual fica suspensa até que o obstáculo
quando a prestação principal é alcançada por uma impossibilidade, de que gera a impossibilidade seja superado.
caráter definitivo ou temporário, parcial ou total, os deveres secundá-
Nessa mesma linha, referindo-se apenas à impossibilidade tempo-
rios e os acessórios permanecem dotados de eficácia independentemente
rária, Guilherme Valdetaro Mathias explica que "[n]ão é de todo corre-
da espécie de impossibilidade que atinja a prestação principal. Menezes
to afumar que a impossibilidade temporária venha a afetar a totalidade
Cordeiro considera, inclusive, que os deveres acessórios se intensificam
do contrato suspendendo todos os seus efeitos. A impossibilidade dessa
"para protegerem, condigna e equilibradamente, as partes envolvidas, pe-
natureza sustará a eficácia da obrigação afetada e de outras quando for
rante a grave crise que veio atingir a relação obrigacional". 24
necessário à manutenção do sinalágma ou quando atingir o âmago do
da execução, surge para o credo~ uma pretensão de ressarcimento do dano moratório(§§ 284 contrato, impedindo a aplicação do art.184 do Código Civil" .26 Segundo
ss., § 326 8GB). Aqui tem-se porf1m conservar ao máximo a pretensão do credor à execução e
de conce?er-lh_e a~enas pretensões secundárias na forma de indenização do dano decorrente
o autor, o fator exógeno, caracterizador da impossibilidade temporária, é
da mora (m:lus1ve Jur_os). O cr_edor, porém, só F'.º?erá desfazera contrato se perdera interesse alheio à estrutura da relação obrigacional, não atingindo seus elementos
na prestaçao ou s: tiver espirado o prazo ad_1c1onal (Nachf_ri~t) concedido ao devedor para
executar a pr:staçao, com a ressalva de que, fmdo o prazo, ira recusar a cumprimento. Nesse (plano da existência), nem seus requisitos (plano da validade). Exatamente
caso, p~esum1da a c~lpa do devedor, pode o credor pleitear a indenização substitutiva da por isso, a obrigação tornar-se-á apenas ineficaz.
presta_çao: Se o obst?culo ~ão !ºr imputáv:I ao devedor, adia-se o cumprimento da prestação,
mas nao ha dever de 1~demzar. (FRITZ, Kanna Nunes. Entrevista: Prof Dr.Jorg Neuner, disponível A classificação da impossibilidade temporária como fator de ineficá-
~m <https://www.m1galhas.c0m.br/coluna/german-report/332717/entrevista--prof--dr--
JOrg-n_euner-acessado ~m 03/o~/2020_>._":cesso em 04-«;>9-2020). No mesmo sentido, para a cia serve, igualmente, para explicar o retorno imediato dos efeitos da obri-
?outn_na po~tuguesa a f1g~ra da_1mposs_1b_1l_1dade tem pararia também suscita dúvidas quanto
a sua m_c~usao na_ ca(e!50~1a d~ 11~poss1b1hdades, na medida em que esta perturbação não
gação, tão logo cessada a circunstância que lhe deu causa. Dependendo
cond~z1r)ª: em pn~cip1?, ª:xtmça? da obrigação: "A impossibilidade temporária não conduz, das circunstâncias, a pandemia da Covid-19, por exemplo, pode ser qua-
em prmc1p10, nem a extm~ao nem a mora do deved~r. (... ) O cumprimento é apenas protelado
para ~m momento posterior (para quando for poss1vel), sem consequências para o devedor. lificada como fator de ineficácia, apto a gerar a impossibilidade tempo-
Este f1:a exone~ado apenas enquanto a impossibilidade se mantiver, não incorrendo em mora rária da obrigação. Nesses casos, não só restaria afastada a ocorrência
por nao cu1:1pnr durante o penodo do impedimento" (LIMA, Fernando de Andrade Pires de;
VARELA, Joao de Matos_Antunes. Código Civil anotado., V. 2. Coimbra: Coimbra, 1997, p. 45). da mora, como também outras consequências poderiam ser observadas,
23 Segundo os proces~u~hs~as: "Julga-se qu_e tutela específica se restringe àquela que propicie
ao ~uto~ resul~ado _1dent1co ? que se tena chegado através do inadimplemento regular da como, por exemplo, a interrupção da fluência dos prazos contratuais di-
obngaçao (sat1sfaçao espontanea); de outro lado, o resultado prático equivalente corresponde retamente ligados à obrigação suspensa.
a u~ resultado semelhante a~ que se c_he_garia c?m o _cumprimento regular da obrigação
(ad1mplemento)-m?~ nu~c~ d1~erso! O )1m1te_do d1stanoamento dessa equivalência em relação No mais das vezes, porém, não atingirá o negócio jurídico por in-
ao resultado espec1f1co/1dent1co desejado e dado pelas próprias características do dever
ou ?ª o_brigação or~ginária" (TEIXEIRA, Guilherme Puchalski. Tutela específica dos direitos: teiro, mas apenas aquela específica obrigação cuja satisfação se tornou
obngaçao :fefaz,,er,_naofazer e ent;egarcoisa. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011,
p. 153). Eamda, n~~ sendo passivei a obtenção ~a tutela específica, nem de tutela específica 25 MENEZES CORDEIRO, António Manuel. Tratado de Direito Civil IX, cit., p. 363.
pelo re~~lt,~do pratico eq~1val:nte, a ordem jundica oferece à parte tutela pelo equivalente 26 VA~DET:"RO MATHIAS, Guilherme. "Consequências da pandemia criada pela COVID-19 nas
mo_netano (':'1ARl?NI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado obngaçoes e nos contratos - uma visão pelo ãngulo do Direito Civil". Revista EMERJ. V. 22.
arligo por artigo. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 427). ~ia de Jan_eiro: EM~RJ, i?n./ma_r. 2020, P_P· 290-292. Disponível em <https://www.emerj.tj rj.
24 MENE~ES CORDE~RO, Antó_nio Manuel. Tratado de Direito Civil IX: direito das obrigações: JUs.br/rev1staemeq_onl1ne/ed1coes/rev1sta_v22_n1/revista_v22_01_284.pdf>. Acessado em
cumpr~mento e nao-cumpnmento, transmissão, modificação e extinção. 3ª ed. Coimbra: 23.06.2020.
Almedma, 2017, p. 363.
636 - IMPOSSIBILIDADE TEMPORÁRIA DA PRESTAÇÃO: ENTRE ATRASOS E INCERTEZAS ••.
GISELA SAMPAIO DA CRUZ GUEDES E MARIA CAROLINA BICHARA - 637

temporariamente impossível. Se existirem outras obrigações não afeta- sentes pressupostos cuja falta impedirá a própria verificação do efeito
das pela impossibilidade temporária, passíveis de serem destacadas, apli- imediato ou primário pretendido com a prestação debitória.
ca-se analogicamente a regra do art. 184 do Código Civil27 - que trata, Em recente julgado, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça de-
porém, de invalidade, e não de ineficácia-, mantendo hígidas as obri- cidiu que, em relação a um sujeito que ficou preso durante quatro meses,
gações que não foram atingidas pela pandemia e que continuam úteis a pena de restrição de liberdade ocasionou a impossibilidade temporá-
para o credor. Situação semelhante se dará com os deveres anexos de- ria de cumprimento do dever de pagar pensão alimentícia, visto que, no
correntes da boa-fé objetiva, como bem apontou Menezes Cordeiro na período em que ficou na prisão, o devedor de alimentos esteve impos-
passagem acima citada. sibilitado de gerar recursos financeiros necessários ao cumprimento da
prestação devida, de modo que "o inadimplemento, portanto, não de-
3. A IMPUTABILIDADE DO IMPEDIMENTO TEMPORÁRIO
correu de sua livre vontade". 28
Já se adiantou acima que a impossibilidade temporária pode ser im- Qy.ando a impossibilidade imputável for definitiva, o dever de pres-
putável ou não às partes. A impossibilidade temporária que é imputável tar principal é integralmente substituído pelo dever de indenizar. Assim,
configura a mora do devedor ou do credor, conforme o caso. No entan- o vínculo sinalagmático é mantido e a relação obrigacional conservada,
to, pode ocorrer de a impossibilidade temporária, que atrasa a satisfa- ocorrendo apenas a sub-rogação do objeto, que passa a ter um objetivo
ção da prestação devida, não ser imputável às partes1 porque oriunda de reparador. 29 Como a impossibilidade temporária não extingue o dever
fato estranho aos sujeitos da relação obrigacional. E somente nesse úl- de prestar, quando ela não é imputável ao devedor, apenas terá aptidão
timo caso que a exigibilidade da prestação ficará suspensa até que cesse para isentar o devedor de eventual responsabilidade pelos efeitos decor-
o obstáculo que gera a impossibilidade. rentes do cumprimento posterior da obrigação contratada. A referida
Apenas quando o obstáculo ao cumprimento regular da prestação distinção decorre do fato de que "o cumprimento tem o mesmo objecto in
for transitório e inimputável aos integrantes da relação obrigacional que obligatione e in solutione, enquanto na reparação do dano o objecto in solu-
se estará diante de hipótese de impossibilidade temporária que gera a tione é um sub-rogado do objecto in obligatione". 30
suspensão da obrigação. Do contrário, aquele que der causa à demora no O Código Civil, nos artigos 394 e 396, estipula ser a culpa do de-
cumprimento responderá pelos danos que o inadimplemento ocasionar vedor pressuposto para a qualificação da mora, imputando ao devedor
à parte lesada. Em outras palavras, quando a impossibilidade da presta- inadimplente a presunção de culpa pelo descumprimento. Bastará, assim,
ção for ocasionada por fato imputável ao devedor, configurar-se-á efeitos que o credor demonstre que o devedor descumpriu a obrigação para que
similares aqueles decorrentes do descumprimento, originando-se, inclu- se presuma que o inadimplemento é a este imputável. De forma similar,
sive, o dever de indenizar as perdas e danos eventualmente verificados. diante da impossibilidade da prestação, imputa-se ao devedor a presun-
Certo é que a relação obrigacional não pode ser analisada isolada-
mente, tal como uma substância química em um experimento científi- 28 O número do processo não foi divulgado em razão de segredo judicial. Detalhes do julgamento
estão disponíveis em <http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/
co, porque a realidade fática é componente de suma importância à sua Prisao-por-condenacao-penal-justifica-impossibilidade-temporaria-de-pagar-pensao-
compreensão. De mais a mais, a atuação do obrigado não se encontra alimenticia.aspx>. Acessado em 21/08/2020.
29 Segundo Antunes Varela, é equivocada a percepção de que o dever de prestar e o dever de
limitada aos elementos de sua própria vontade, dialogando com fatores indenizar possuem fontes diversas, pois o dano é indenizável na medida em que existe o
estranhos e circunstâncias exteriores que fogem ao controle de qualquer dever de prestar: "do ponto de vista da lógica estrita, tão correcto é incluir na antiga obligatio
dos romanos a reacção contra a liberdade ou a vida do devedor, como integrar no moderno
um, e que, invariavelmente, condicionam sua atividade. Ressalte-se, con- conceito de obrigação a sanção contra o patrimônio do obrigado, dada a relação de pertinência
existente entre o inadimplente e os bens sujeitos à responsabilidade. Não podendo reagir, por
tudo, que só haverá verdadeira impossibilidade quando se verificar au- óbvias razoes, contra a pessoa (a vida ou a liberdade) do devedor, o direito investe contra o seu
patrimônio, sendo certo que este é, como alguns autores afirmam, uma espécie de projeção
da personalidade do titular sobre o mundo exterior" (ANTUNES VARELA, João de Matos. Das
"Art. 184. Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o obrigações em geral. V. 1. 7. ed., Coimbra: Almedina, 2017, p. 157).
prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica 30 CAI.VÃO DA SILVA, João. Cumprimento e sanção pecuniária compulsória. Coimbra: Coimbra,
a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal." 1997, p. 148.
638 - IMPOSSIBILIDADE TEMPORÁRIA DA PRESTAÇÃO: ENTRE ATRASOS E INCERTEZAS ... GISEIA SAMPAIO DA CRUZ GUEDES E MARIA CAROLINA BICHARA - 639

ção de culpa, sendo ele responsabilizado como se faltasse culposamen- Diferentemente do problema de inexecução causado pela impossi-
te ao cumprimento da obrigação contratada. Para tanto, cabe ao credor bilidade superveniente, a originária ocasiona um problema de validade
apenas demonstrar que a obrigação não foi cumprida. do negócio jurídico. Isso porque, o sujeito que deve o que não é possí-
Incumprimento e impossibilidade partilham, portanto, da mesma vel, em verdade, nada deve, por não haver sobre o que incidir o cumpri-
noção comum de não-cumprimento do dever de prestar, distinguindo- mento da obrigação. 34 A possibilidade do objeto é, portanto, pressuposto
-se a partir das circunstâncias que poderão permitir que o devedor se ontológico da obrigação.
isente de responsabilidade. A depender do interesse das partes na manu- Assim, a imputação de invalidade consiste em uma forma de asse-
tenção do vínculo obrigacional com o cumprimento do dever de prestar gurar a integridade do ordenamento jurídico, que recusando utilidade
em momento posterior ao inicialmente estipulado, será conferido à im- jurídica, e consequentemente prática, aos atos realizados com infringên-
possibilidade imputável o mesmo status jurídico de mora ou de inadim- cia de suas normas, resguarda a sua vigência como um todo e, também,
plemento absoluto, conforme o caso. 31 · de cada uma de suas normas. Por esse motivo, afirma-se, de maneira ge-
No mais, "a impossibilidade só é, pois, temporária quando o cum- ral, que "só há invalidades originárias. O negócio que nasce válido é váli-
primento da obrigação for susceptível de mora". 32 Contudo, para que se do para sempre. Pode extinguir-se, por qualquer causa, mas não se pode
esteja diante de um verdadeiro problema de impossibilidade temporá- mais suscitar a questão da validade". 35
ria, é necessário que o obstáculo ao cumprimento não seja imputável ao Nesse contexto, como a verificação da possibilidade do objeto deve
devedor. Além disso, se a impossibilidade temporária for originária, não ocorrer no momento da celebração do negócio, ainda que se trate de
se estará diante de uma questão de ineficácia, mas antes de um problema impossibilidade transitória, mostra-se indiferente à validade da relação
situado no plano da validade, como na sequência se explicará. obrigacional se a prestação será impossível em definitivo ou tempora-
riamente. Por exemplo, em meio à vigência de um decreto estadual que
4. A IMPOSSIBILIDADE TEMPORÁRIA PODERÁ SER ORIGINÁRIA? proíba o banho de mar, a contratação de um professor de surf para que
A summa diviso em matéria de impossibilidade diz respeito ao mo- dê aulas nesse período é um negócio inválido.
mento da eclosão do obstáculo ao cumprimento, que pode ser anteceden- Como exceção à regra, podem escapar da invalidade as relações obri-
te ou concomitante à formação da relação obrigacional (impossibilidade gacionais estipuladas em atenção a uma condição suspensiva ou a um
originária) ou mesmo superveniente à sua conclusão (impossibilidade termo inicial que efetivamente subordine a eficácia do negócio à possibi-
superveniente). 33 lidade do objeto contratado e à superação do obstáculo ao cumprimento
da prestação. No mesmo negócio acima referido, visando à contratação
de aulas de surf, se as partes estipularem que a eficácia do pacto esta-
31 Ressalte-se que diante da imputabilidade de um impedimento temporário que ocasione a rá condicionada à superação do obstáculo transitório, isto é, que a rela-
impossibilidade definitiva do dever de prestar, tem-se que a própria execução específica da
prestação se torna impossível, podendo, também neste caso, o credor optar pela execução ção obrigacional apenas produzirá efeitos quando o decreto estadual for
pelo equivalente pecuniário da prestação ou pela resolução contratual. Nesse contexto, Aline
Miranda Valverde Terra adverte: "as execuções forçadas in natura e pelo equivalente, bem revogado, tem-se um negócio válido mesmo que o objeto da prestação
como a resolução são instrumentos de tutela que se colocam automaticamente à disposição do principal seja ainda impossível de se concretizar.
credor diante do inadimplemento relativo ou absoluto, respectivamente; a responsabilidade
civil, no entanto, só lhe será franqueada se do inadimplemento advierem prejuízos" ("Execução De toda forma, ao negócio jurídico nulo o ordenamento jurídico bra-
pelo equivalente como alternativa à resolução: repercussões sobre a responsabilidade civil".
Revista Brasileira de Direito Civil- RBDCivil. V. 1B. Belo Horizonte, out./dez. 2018, p. 56). sileiro atribui regime jurídico específico, que determina o desfazimento
32 LIMA, Fernando de Andrade Pires de; VARELA, João de Matos Antunes. Código Civil anotado,
cit., p. 45. 34 Explica Caio Mário que o devedor que se obriga a algo, sabidamente impossível, a nada se
33 Em sentido contrário, António Menezes Cordeiro: "não acolhemos a ideia de que a fronteira obriga, visto que não haverá sobre o que incidir o cumprimento da prestação: "o requisito da
entre a impossibilidade original e a superveniente dependa de um mero fator cronológico, possibilidade está presente em toda e qualquer prestação, positiva ou negativa, conducente a um
difícil de determinar e, quiça, aleatório. Não se trata de um fenómeno meramente cronológico: dare ou a umfacere, pois é intuitivo que, em qualquer caso, se, sujeito o devedor a uma ação ou
antes de um dado ontológico irresistível. No momento em que alguém se vincula, não pode a uma omissão, a nada estará obrigado, se for a prestação insuscetível em si mesma" (Instituições
haver um juízo (necessariamente humano) de que deverá fazer o impossível" (Tratado de Direito de direito _civil: teoria geral das obrigações. V. 2, 24ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 19).
Civil IX, cit., p. 332). 35 ASCENSAO, José de Oliveira. Direito civil. V. 11. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 314.
GISELA SAMPAIO DA CRUZ GUEDES E MARIA CAROLINA BICHARA - 641
640 - IMPOSSIBILIDADE TEMPORÁRIA DA PRESTAÇÃO: ENTRE ATRASOS E INCERTEZAS •••

do negócio com a subsequente reposição das partes ao estado anterior, 36 os países voltariam à normalidade política e social e, por consequência,
pois, tradicionalmente, entende-se que "quod nullum est nullum produ- quando o cumprimento de obrigação de fornecimento e montagem de
cit ejfectum". 37 A não produção de efeitos refere-se, contudo, aos efeitos equipamentos no Irã seria executável. 41
que normalmente caracterizariam o ato, sendo inegável que, por vezes, Do mesmo modo, será definitivamente impossível a obrigação que
mesmo os negócios nulos geram consequências e/ou efeitos laterais.38 tiver seu cumprimento obstado por impedimento que só cessará me-
diante a verificação de um fato extraordinário com o qual não seja le-
5. CASUÍSTICA DETERMINAÇÃO DOS EFEITOS GERADOS PELO gítimo contar, de acordo com critérios racionais. Imagine-se o exemplo
IMPEDIMENTO TEMPORÁRIO do pianista que ficou surdo por consequência de uma doença autoimune
A concepção de uma impossibilidade temporária está atrelada à recente e irreversível, mas não desmarcou suas apresentações do próxi-
própria natureza do obstáculo que impede o adimplemento tal como mo mês por confiar em um milagre que lhe permitirá superar a doença
contratado: enquanto for transitório o impedimento, a realização da e voltar a tocar piano. Nesse caso, não há razão para se supor que se tra-
prestação permanece sendo possível, ainda que em momento posterior, ta de uma mera impossibilidade temporária.
definido ou indefinido. 39 A avaliação dessa transitoriedade nada mais é Assim, ainda que o obstáculo seja essencialmente temporário, por
do que um prognóstico sobre a suscetibilidade de superação do impedi- vezes não será possível determinar quando ocorrerá a sua remoção e,
mento de acordo com critérios de razoabilidade. 40 consequentemente, o momento em que se poderá cumprir a prestação
Apesar de possuir natureza transitória, o evento impeditivo ao de- pactuada. A fundada incerteza acerca do momento de superação do im-
ver de prestar poderá não ser previsivelmente superável, tornando du- pedimento ao dever de prestar pode tornar inexigível a manutenção da
vidosa a realização dos interesses das partes contratantes e da própria relação obrigacional, isto é, poderá, também nessa hipótese, o impedi-
finalidade pretendida com o negócio. Nesse sentido, o Tribunal Alemão mento temporário produzir efeitos como se definitivo fosse.
(Bundesgerichtshoj BGH) considerou ser a Guerra Irã-Iraque impedi- Sobre o tema, a doutrina alemã identifica duas espécies de impossi-
mento de natureza transitória, com aptidão para produzir efeitos como bilidade temporária, quais sejam: "casos de atraso" (verspatungsfalle) e "ca-
se definitiva fosse. Isto porque, seria impossível determinar em que data sos de incerteza" {unisicherheitsfalle). Em ambas as hipóteses, em atenção
Sobre os efeitos da anulação do negócio jurídico, tem-se como principal "a restituição dos ao princípio da equivalência, simultaneamente prestação e contrapres-
contratantes ao estado anterior ao da contratação. Seja caso de anulabilidade ou nulidade, a tação perdem exigibilidade até que a causa da impossibilidade se afaste
anulação ou o decreto de nulidade do negócio opera a sua completa_invalidade, com~ se o
negócio jamais tivesse existido, ficando cada c~~trata~te com o q~e e seu, com ex<:_eçao do ou a impossibilidade que era temporária se torne definitiva. 42
pagamento feito a incapaz, previsto no art. 181, Jª analisado. Tai:iib_em ocorre _exceçao a ess~
preceito do art. 182, quanto aos frutos per~ebidos'. ~ ~ue tem d1re1t,o o pos~U1dor d_e ?oa-~e: Indo além, o mesmo obstáculo poderá assumir contornos definiti-
conforme estabelece o art. 1.214 do novo Codigo Civil (AZEVEDO, Alvaro Vilaça. Cad,go Cw,I
comentado. V. 2. São Paulo: Atlas, 2002, p. 337).
vos ou transitórios, a depender do conteúdo da relação obrigacional pac-
37 "O que é nulo não produz efeito nenhum" (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito tuada, bem como dos interesses das partes contratantes e da finalidade
civil. V. 1. 23ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 550.
38 Via de regra, o ato jurídico nulo "não pode produzir efeitos de ~spécie alguma! To~os os seu_s pretendida com o negócio. Para a hipótese em que o devedor garantiu
efeitos se dissolvem ex tunc, desde o momento em que tenha sido decretada a nulidade. Ha,
entretanto, efeitos jurídicos que parecem decorrer de um ato nulo e que _se precisa examinar 41 Sent. den de março de 1982, NJW1982, p. 1458ssapudPIRES, Catarina Monteiro. Impossibilidade
com cautela" (DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil. Rio de Janeiro: Rm, 1977, pp.331-332). da prestação, cit., p. 226.
Não se deve presumir que o impedimento ao desempenho ~eja d 7 duração in:~r'.ª· A 42 A correspectividade entre prestação e contraprestação evidencia que "a obrigação de uma
39
impossibilidade temporária abrange tanto ~s cas_o~ em que o 1mped1mento trans1to~o se das partes, nos contratos sinalagmáticos, tem a sua causa justificativa na obrigação da outra
apresenta com uma delimitação temporal pre-defm1da, como os casos em que a duraçao do (... ). Como há certa simultaneidade nas prestações, nenhuma das partes pode exigir da outra o
obstáculo seja incerta. . .. . . cumprimento da prestação enquanto não cumprira que lhe incumbe: pode opor-lhe, quando
40 Pietro Perlingieri pontua o equívoco de se considerar a durabilidade d? 1mped1mento _e:ri exigida, a exceção do contrato não cumprido, a exceptio non adimpleti controctus" (MIRANDA,
abstrato quando da verificação da impossibili~ade_ temp~rár!a, _ad\ertm_do se~ nece~s~~1~ Custódio da Piedade Ubaldino._Comentários ao código civil. V. 5. São Paulo: Saraiva, 2013, pp.
uma análise teleológica funcional da relação obngac1onal: ,/ cnteno d,scretwo tro 1mposs1b1bta 432-433). No mesmo sentido: "E a consequência normal do mecanismo (sinalagma) próprio
definitiva e temporonea riposa, piuttosto che sull'entità dei temp? ~n cui d~ro l'in:,pedimento (potendosi do contrato bilateral. O devedor fica desonerado da obrigação, mercê da impossibilidade
definire temporaneo un impedimento duro to un anno e defm1two un 1mped1mento che duro poche da prestação. Como, porém, a prestação é o correspectivo da contraprestação, o devedor
are), sulla valutazione teleologicojunzionale, in relazione ai tito/o dell'obbligazione o alia natura liberado perde imediatamente o direito à contraprestação, sem ser sequer necessário pedir
dell'oggetto, degli interessi correlati dei debitore e dei creditore''. (ln: Anto_nio S~ialoja e Giuseppe a resolução do contrato" (ANTUNES VARELA, João de Matos. Das obrigações em geral. V. 2. 7ª
Branca. Commentario dei Codice Civile. V. 4. T.111. Bologna: N1cola Zamchelli, 1975, p. 496). ed. Coimbra: Almedina, 2017, p. 84).
642 - IMPOSSIBILIDADE TEMPORÁRIA DA PRESTAÇÃO: ENTRE ATRASOS E INCERTEZAS •.•
GISELA SAMPAIO DA CRUZ GUEDES E MARIA CAROLINA BICHARA - 643

a possibilidade da prestação, incluindo-a na álea normal do negócio, 43 para o credor, a impos~ibilidade temporária gerará o mesmo efeito ex-
mas, ao longo da execução da avença, a impossibilidade não foi contor- tintivo da definitiva. 46 E preciso não confundir, porém, mera dificuldade
nada, terá ele inadimplido a obrigação contratada. Afinal, "[a]dotar uma com impossibilidade: "Mera dificuldade, ainda que de ordem económi-
conduta impossível é visceralmente diferente de optar por uma possível, ca, não se confunde com impossibilidade de cumprimento da avença". 47
mas que, por superveniências não imputáveis, venha a ser impossibilita-
Outros exemplos servem para ilustrar essa afirmação. O adoeci-
da.( ... ) A eventualidade de alguém, com consciência ou sem ela, se obri-
mento do fotógrafo no dia do evento que deveria ser por ele registrado
gar ao impossível é suficientemente grave, num plano social e humano,
permite que o credor se libere da ~elação obrigacio~al po~ falta de int~-
para merecer um juízo valorativo próprio". 44
resse na execução da prestação apos o termo essencial tacitamente esti-
De todo modo, uma vez superado o impedimento temporário, ca- pulado; contudo, se o fotógrafo tivesse sido contratado para fotografar
berá ao devedor realizar a prestação contratada. Por esse motivo, apenas os alunos de um colégio, não haveria um termo essencial tácito a ser ra-
será admitida a suspensão do dever de prestar durante o tempo em que zoavelmente observado, permanecendo o credor vinculado a aceitar o
perdurar o impedimento passageiro se, por óbvio, o cumprimento pos- cumprimento da prestação após a superação do impedimento transitó-
terior da prestação permanecer útil ao credor, que se manterá vincula- rio. Adverte-se que, se, por um lado, não se torna inútil o cumprimento
do ao dever de contraprestar. Tome-se o exemplo da cidade cujo único na semana ou no mês seguinte à superação do impedimento, por outro,
porto é submetido a uma inspeção não planejada e obras de recupera- não será razoável exigir do credor que aceite essa prestação tendo de-
ção emergencial, impossibilitando momentaneamente o escoamento de corrido anos da contratação, quando as crianças, por exemplo, não fo-
mercadorias locais. Sabe-se que o impedimento cessará dentro de se- rem mais alunas daquele ano letivo.
manas, mas nem todos os exportadores que contrataram o porto para o
Por vezes será irrazoável a exigência de manutenção da vincula-
referido período terão interesse em postergar o cumprimento da pres-
ção do devedor à relação obrigacional enquanto se aguarda a superação
tação devida, como é o caso do sujeito que exporta bens perecíveis ou
da impossibilidade temporária. Nesse caso, poderá o devedor recla-
destinados a um evento inadiável. A inutilidade da prestação decorrente
mar que se reconheça a impossibilidade definitiva de sua prestação e,
do seu cumprimento posterior ao termo inicialmente contratado denota
ato contínuo, a extinção do seu dever primário de prestar. Assim, evi-
que o impedimento de natureza transitória poderá também ocasionar a
dencia-se a necessidade de superação da análise meramente estrutural
impossibilidade definitiva da prestação.
acerca da durabilidade e/ou da extensão do impedimento que atinja a
Nesse sentido, a execução da prestação possuirá um termo absoluta- relação obrigacional, devendo-se atentar aos efeitos secundários oca-
mente fixo quando derivar de previsão legal ou contratual, bem como nos sionados pelo impedimento sobre o vínculo obrigacional in concreto,
casos em que as partes atribuírem uma finalidade à prestação que tacita- bem como à finalidade atribuída à prestação e ao interesse das partes
mente estipule um termo essencial para o seu cumprimento. 45 Q:\iando com o negócio.
o obstáculo é transitório, mas a obrigação tem termo essencial ou a im-
possibilidade persistiu por tanto tempo que a prestação se tornou inútil 6. Ü CARÁTER TEMPORÁRIO DE UMA IMPOSSIBILIDADE À LUZ
DOS INTERESSES DO CREDOR
43 BANDEIRA, Paula Greco. Contrato incompleto. São Paulo: Atlas, 2015, p. 130.
44 MENEZES CORDEIRO, António Manuel. Tratado de Direito Civil IX, cit., 2017, p. 333. A impossibilidade temporária sempre se dá em razão da ocorrên-
45 Orlando Gomes explica que o credor não perde o interesse na prestação contratada apenas
por não ter ela sido realizada na data acordada, mas si_m_ qua_ndo a utilid~de _da prestaçã~ é cia de fato superveniente à formação da relação obrigacional,48 oriundo
sacrificada: "sendo o termo simples modalidade do negocto, nao afeta a essenc1a da prestaçao,
de modo que, em princípio, a antecipação ou o retardamento do pagamento, não sacrifica A essa conclusão chegam também José Augusto Fontoura Costa e Ana Maria de Oliveira Nusdeo
a utilidade da prestação para o credor. Não perde o credor o interesse em receber somente em "As cláusulas de força maior e de hardship nos contratos internacionais". Doutrinas Essenciais
porque a dívida se venceu, mas há prestações c~ja utilidade consiste_na ~ati~fação tem~estiva. de Direito Internacional. V. 5. São Paulo: Revista dos Tribunais, jun. 2012, pp. 555-594.
Ao credor interessa que seja cumprida no vencimento. Quando assim e, diz-se que ha termo Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro: contratos e atos unilaterais. V. 3. 14ª ed. São
essencial. Como tal, se deve entender, por conseguinte, o termo cuja observância tira da Paulo: Saraiva, 2017, p. 191. . _
prestação utilidade que tinha para o credor. A essencialidade do termo pode ser subjetiva ou Como já observado: "Não há, por lógico raciocínio, 'imprevisibilidade antecedente' a conclusao
objetiva. Ésubjetiva quando depende da vontade das partes e objetiva se decorre da natureza do vínculo. Quando este é formado, os fatores pré-existentes são, naturalmente, considerados.
da prestação" (Obrigações, cit., p. 121). Pode haver, é claro, desproporções entre as prestações que se manifeste contemporaneamente
644 - IMPOSSIBILIDADE TEMPORÁRIA DA PRESTAÇÃO: ENTRE ATRASOS E INCERTEZAS ••• GISELA SAMPAIO DA CRUZ GUEDES E MARIA CAROLINA BICHARA - 645

de eventos transitórios e inevitáveis, que extrapolem a álea normal do tes uma apreciação objetiva53 da utilidade que a prestação proporciona
contrato, isto é, de eventos de caso fortuito ou de força maior alheios, ou proporcionaria. 54
portanto, à atuação culposa das partes - que superem a alocação de ris- Com efeito, para que se configure uma impossibilidade temporá-
cos feita pelas partes, de modo a ocasionar a desnaturação da relação ria será necessária a verificação do interesse e da utilidade da prestação.
obrigacional tal como inicialmente estabelecida. 49 Ou seja, a relação obrigacional apenas ficará suspensa diante de um im-
A configuração de um evento apto a ocasionar o desequilfbrio da pedimento temporário se, quando ocorrer a superação do obstáculo, a
relação obrigacional será sempre imprevisível, no sentido de superar a obrigação ainda for executável, havendo utilidade em seu cumprimen-
álea normal do contrato. 50 Em outras palavras, a distinção entre a álea to. Como já observava Pontes de Miranda, "[d]e ordinário, a proibição
normal e a álea extraordinária do contrato permitirá a caracterização temporária, ou a impossibilitação passageira, não atinge a base da relação
do evento superveniente apto a configurar hipótese de impossibilidade jurídica. Se o devedor havia de prestar entre 1 e 30 e a superveniência de
da prestação definitiva e temporária. Nesse contexto, quando o cumpri- greve tornou impossível o fornecimento, o devedor tem de prestar quan-
mento do dever de prestar for impedido por um obstáculo de natureza do cesse o óbice, pois não cessou o interesse do credor em receber o que
transitória, caberá aos contratantes avaliar se os efeitos ocasionados so- lhe fôra prometido". 55 Ou, em outro exemplo do autor, "o escritor, que
bre a relação obrigacional promoveram a extinção ou a mera suspensão adoeceu, pode escrever após a doença o que havia de escrever até certa
da eficácia do dever de prestar. data; mas, em se tratando, por exemplo, de comemoração da fundação
Como norte conclusivo, deve-se avaliar a utilidade da prestação à da cidade, o escrito que só serviria para se publicar no dia do aniversá-
luz do interesse perseguido pelo credor naquela relação obrigacional, o , . perd eu o mteresse
rio ou centenar10 . que estava a' b ase d a encomend a".56
que exige do intérprete que proceda a uma análise valorativa específi- Sempre que o interesse do credor permanecer firme, o devedor, a
ca, considerando o credor da relação concreta, e não apenas um credor princípio, está obrigado a prestar, salvo se foi estabelecido, explfcita ou
abstratamente considerado. 51 Nessa análise, deve o intérprete ir além implicitamente, que o devedor não poderia prestar depois de certo prazo.
da noção tradicional de um juízo meramente subjetivo, 52 exigindo an- Os negócios jurídicos firmados com prazo fixo têm essa particularidade
de serem atingidos pela impossibilidade temporária como se o fossem
à conclusão [do ajuste]" (MARTINS-COSTA,Judith. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.).
Comentários ao nava código civil. V. 5. T. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 307). pela definitiva, desde que se ultrapasse o dia em que teria de ser cum-
49 Conforme explica a doutrina: "Cada negócio possui uma zona de imunidade ou de tolerância
dentro do qual os efeitos do risco estranhos a troca contratual são compatíveis com a causa. com as circunstâncias, mas sempre tendo em vista o interesse do credor, como, por exemplo,
A partir do momento em que o risco estranho supera esse limite, variável de acordo com cada se alguém encomenda uma árvore de Natal e o devedor pretende realizá-la após decorrido
tipo contratual, altera-se a causa do contrato" (BANDEIRA, Paula Greco. Contrata incompleta, aquele período. A inutilidade pode ainda ser objeto de regulamentação contratual, v.g., se as
cit., p.131). partes assim convencionaram, no caso da prestação deixar de ser realizada tempestivamente.
50 Fazendo referência à teoria da excessiva onerosidade, Paula Greco Bandeira explica que o O ônus da prova da inutilidade incumbe àquele que alegar" (Curso de direito civil: obrigações
desequilíbrio da relação obrigacional necessariamente depende de evento que supere álea em geral. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1955, p. 442).
normal do contrato: "O evento previsível se identifica, assim, com a álea normal ou ordinária 53 Nesse sentido, destaca-se o enunciado nº 162, formulado na Ili Jornada de Direito Civil do
do contrato. Pode-se afirmar, portanto, de início, que a álea normal corresponde aos eventos Conselho nacional da Justiça Federal: "A inutilidade da prestação que autoriza a recusa da
previsíveis de determinada espécie negocial, que irão influenciar suas prestações.Justamente prestação por parte do credor deverá ser auferida objetivamente, consoante o princípio da
por se revelarem previsíveis, os efeitos da oscilação da álea normal do contrato sobre as boa-fé e a manutenção do sinalagma, e não de acordo com o mero interesse subjetivo das
prestações não irão desencadear a aplicação da teoria da excessiva onerosidade, ainda que partes".
acarretem o desequilíbrio das prestações. Cuida-se de fato previsível e ordinário (rectius, álea 54 Essa é também a opinião de Aline de Miranda Valverde Terra: "Não se cuida de perquirir a
normal) objeto da alocação de riscos efetuadas pelas partes no contrato" (BANDEIRA, Paula vontade íntima do credor, sua intenção particular ao celebrar o contrato. Os motivos que
Greco. Contrato incompleto, cit., p. 130). levaram o agente a praticar determinado negócio jurídico, como indica o art. 140 do Código
51 "Sobre o credor incide, assim, o ônus da prova da inutilidade, pois a utilidade da prestação se Civil, são irrelevantes para o direito; não importa para a ordem jurídica que, posteriormente
presume" (SCHREIBER, Anderson.Manuol de direito civil contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2018, à celebração do contrato, se frustre a motivação subjetiva, interna e psicológica das partes.
p. 348). No mesmo sentido: "Caberá, portanto, ao credor o ônus de provar que a prestação Em igual sentido, o rompimento do vínculo obrigacional não pode depender da avaliação
se tornou inútil por causa da mora do devedor e não a este de demonstrar que a prestação arbitrária do credor acerca da utilidade da prestação executada em inobservância à obrigação
continua sendo útil, pois a utilidade da prestação se presume" (BARBOZA, Heloisa Helena; inserida na cláusula resolutiva expressa. O interesse do credor relevante para a configuração
BODIN DE MORAES, Maria Celina; TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Código Civil Interpretado do inadimplemento é aquele objetivado no contrato, deduzível do programa negocial e das
Conforme o Constituição da Repúblico. V. 1. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 719." características do credor" (C!áusu!o resolutivo expressa. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 125).
52 Como observa Serpa Lopes, o ônus da prova da inutilidade incumbe a quem a alega: "Inútil 55 PONTES DE MIRANDA, Francisco. Tratado de direita privado. T. XXIII. São Paulo: Revista dos
para o credor, consoante os termos referidos no parágrafo único do art. 956 [do Código Civil Tribunais, 2012, pp. 188-190.
de 1916], traduz uma noção subjetiva, e a inutilidade tem que ser deduzida pelo Juiz, de acordo 56 PONTES DE MIRANDA, Francisco. Tratada de direito privado. T. XXIII, cit., pp. 188-190.
646 - IMPOSSIBILIDADE TEMPORÁRIA DA PRESTAÇÃO: ENTRE ATRASOS E INCERTEZAS .•. GISELA SAMPAIO DA CRUZ GUEDES E MARIA CAROLINA BICHARA - 647

prida a prestação, ou até quando poderia ser realizada. Qyando não há 7. Ü CARÁTER TEMPORÁRIO DE UMA IMPOSSIBILIDADE À LUZ
termo fixo, o interesse do credor até pode subsistir, mas não ilimitada- DOS INTERESSES DO DEVEDOR
mente no tempo. Há, por assim dizer, um lapso temporal de adimplemen-
to útil, ou prazo do interesse na prestação. Se a impossibilidade alcança Embora avaliar o interesse do credor naquele específico programa
o dia em que se havia de prestar, ou até quando se havia de prestar, ou o contratual seja fundamental para que se possa definir se a hipótese é de
prazo do interesse na prestação, tem-se por definitiva a impossibilidade. impossibilidade temporária ou definitiva, também não é possível relegar
E como já afirmava Pontes de Miranda, "só se pode conhecer o prazo para escanteio o interesse do devedor, sob pena de se renegar o próprio
para adimplemento útil, o prazo do interesse na prestação, conhecendo- conceito de obrigação em sua complexidade. Caso a espera pela supe-
-se a natureza do negócio jurídico, o seu conteúdo e a sua finalidade". 57 ração da impossibilidade consubstancie-se em uma exigência irrazoável
quanto à vinculação do devedor, poderá ele próprio reclamar a conver-
Por hipótese, imagine que um shopping center contratou um gru-
são da impossibilidade temporária em definitiva e, por consequência, a
po de teatro infantil para montar um espetáculo natalino no final de se-
extinção do dever de prestar. Isto porque, o interesse do credor não é ab-
mana anterior ao natal e, assim, promover o entretenimento das crianças
soluto e deve ser conjugado com o interesse do devedor, ainda que esses
enquanto os adultos fizessem compras de natal. Por fato inimputável, o
vetores indiquem sentidos opostos. 59
contêiner com o cenário do espetáculo foi extraviado e só foi encontra-
do após a data marcada para realização do evento, quando não mais in- É evidente que, se o obstáculo temporário é imputável ao devedor
teressava ao shopping promover um espetáculo natalino - seja porque a e ele deixa de cumprir o dever de prestar na data, no local ou na forma
prestação contratada tinha por finalidade fomentar as vendas na véspera acordada, escusando-se sob a falsa alegação de caso fortuito ou de força
de natal, seja porque o cumprimento da prestação tinha um termo fixo maior, ele responderá tal como se estivesse em mora, porque é de mora
estipulado. No caso, tem-se que o impedimento temporário ocasionou mesmo que se trata (ou de inadimplemento absoluto, se a prestação não
a impossibilidade definitiva da prestação. mais interessar ao credor). Nessa situação, em que a mora do devedor
resta configurada, o ordenamento jurídico agrava a posição do devedor,
Situação diversa seria o grupo de teatro que tivesse sido contrata-
fazendo-lhe responder até mesmo pela superveniente impossibilidade da
do para montar um espetáculo não comemorativo ou aleatório, o qual,
prestação, se o caso fortuito ou de força maior ocorrer durante o atraso
diante do extravio do contêiner com o cenário, poderia ser reagenda-
(artigo 399 do Código Civil). Como é fácil notar, o legislador destaca a
do para outro final de semana. Nessa hipótese, a execução do dever de
posição do devedor que está em mora, impondo-lhe regime diferencia-
prestar em momento posterior ao inicialmente contratado possui, em
do mais gravoso.
princípio, aptidão para realizar a finalidade almejada pelo negócio, bem
como satisfazer os interesses dos contratantes. Por outro lado, se o obstáculo temporário não é imputável ao de-
vedor, isto é, se o obstáculo temporário advém verdadeiramente de um
Percebe-se, assim, que, quando o termo para cumprimento da obri-
caso fortuito ou de força maior, não há razão para se supor que o inte-
gação for essencial ao próprio negócio, 58 ou caso a procrastinação, ainda
resse do devedor tem que ser completamente desconsiderado. 60 Ainda
que inimputável, ocasione a inutilidade da prestação contratada para o
credor, o impedimento transitório acaba acarretando a extinção da obri- 59 ~sta hipótese encontra previsão legal expressa no Direito civil italiano: "no ordenamento
1talian?, a impossibilidade temporária, suscetível de determinar a suspensão, mas não a
gação principal, porque a impossibilidade temporária se converte em exclu~ao do ?:ver de prestar, pode ser conservada num estado de quiescente. Porém, pode
definitiva. Avaliar o interesse do credor revela-se, de fato, fundamental ta~bem v~r~f!car-se, n?s_ :asas previstos na norma do artigo 1256º, nº 2, o efeito próprio
da 1mp~s~1b1hdade d~fm1t_1va ª, exclusão da obrigação - às hipóteses de impossibilidade
para que se possa concluir se a impossibilidade temporária foi ou não tempo_rana quando nao sela exig1vel manter o vínculo do devedor ou quando o credor deixe
de ter mter:sse na prestaçao. Assim, são previstas duas situações distintas, de valor idêntico
convertida em definitiva. que poderao, em concreto, revelar sentidos opostos. (... ) não seria aceitável uma leitura do
preceito que fizesse prevalecer o critério do interesse do credor" (PIRES Catarina Monteiro.
Impossibilidade da prestação, cit., p. 228). '
57 PONTES _D~ MIRANDA, Francisco. Tratado de direito privada. T. XXII!, cit., pp. 188-190. 60 Mui_to ~m con?ári_o, Pi:t_ro Perlingieri explica que a concepção contemporânea da relação
58 A essencialidade do termo para cumprimento do dever de prestar poderá ser convencionada obngacmnal ~ao a 1dent1f1:a exclusivamente nos direitos do credor, tratando-se de uma relação
pelas partes ou apenas resultar das objetivas circunstâncias do negócio. de cooperaçao, em que o interesse do devedor também deve ser efetivamente considerado e
648 - IMPOSSIBILIDADE TEMPORÁRIA DA PRESTAÇÃO: ENTRE ATRASOS E INCERTEZAS •.. GISELA SAMPAIO DA CRUZ GUEDES E MARIA CAROLINA BICHARA - 649

que se afume que, diante de uma aparência de descumprimento, a culpa realizar a prestação ou o credor não tenha mais interesse em
do devedor deve ser presumida, o devedor ainda tem espaço para fazer obtê-la. (1174)." 61
a prova contrária, demonstrando que não agiu com culpa e, portanto, Ao fazer uso da expressão "até que( ... ) o devedor não possa mais ser
não deve responder pela impossibilidade. Nessa situação, não há que se considerado obrigado a realizar a prestação" na parte final do dispositi-
falar em inadimplemento - porque inadimplemento pressupõe culpa-, vo, o legislador italiano reconhece que não só o interesse do credor deve
mas antes em autêntica impossibilidade. Diante dessa "verdadeirà' im- ser levado em consideração, mas também o do devedor, porque este não
possibilidade, não imputável ao devedor, não há motivo legítimo para está obrigado a ficar vinculado a uma prestação indefinidamente. Afinal,
simplesmente desconsiderar o seu interesse. se o devedor já fez a prova de que a impossibilidade não lhe é imputável,
Para ilustrar o que foi dito, tome-se o seguinte exemplo: determi- não há razão para se prestigiar o credor em detrimento do devedor. Ao
nada empresa prestadora de serviço firma contrato com o credor, avi- contrário das situações que configuram mora, aqui não há motivo legí-
sando-lhe, na data da contratação, que pretende encerrar em breve suas timo para o legislador agravar a posição do devedor.
atividades no país. A prestação torna-se temporariamente impossível em Assim, em que pese a doutrina atribuir apenas ao credor a capaci-
razão de uma guerra civil. Ainda que, a princípio, se trate de uma im- dade de promover a conversão da impossibilidade temporária em defini-
possibilidade temporária, porque a tendência é que o país não fique em tiva, por vezes caberá também ao devedor argui-la. Afinal, o regramento
guerra indefinidamente, é razoável exigir que o devedor fique vincula- da impossibilidade temporária se faz em analogia ao da impossibilidade
do à prestação até que, finalmente, cesse a guerra, se não se tem ideia definitiva. Como explica Claus-Wilhelm Canaris, a impossibilidade tem-
de quando ela cessará? Pode acontecer de a guerra perdurar por tanto porária não abarca qualquer impedimento ao cumprimento da prestação,
tempo que prejudique os próprios planos do devedor de encerrar suas mas apenas aquelas hipóteses que - para além do seu "carácter tempo-
atividades naquele país - planos esses que foram, de boa-fé, comparti- rário" - correspondam às previstas no art. 275, § 1 do BGB (norma que
lhados com o credor. regula a impossibilidade definitiva no ordenamento jurídico alemão). 62
Atento ao fato de que o regime da impossibilidade temporária só se Como o Código Civil não definiu o que efetivamente caracteri-
aplica quando a impossibilidade não é imputável ao devedor, o Código za uma impossibilidade, esta concepção deve se formar em atenção a
Civil italiano expressamente prevê, no artigo 1.256, o seguinte: um juízo de valor de base social. Assim, o conceito cultural (ou socioe-
"Art. 1.256. Impossibilidade definitiva e impossibilidade tem- conômico) de impossibilidade vai além da viabilidade física ou natural,
porária abrangendo as hipóteses de impossibilidade relativa (subjetiva), em que
A obrigação se extingue quando, por causa não imputável ao de- o cumprimento da prestação em termos absolutos é possível, mas exige
vedor, a prestação se torne impossível (1218, 1463 e seguintes). do devedor esforço extraordinário e injustificado.
Se a impossibilidade for apenas temporária, o devedor, enquanto À luz da boa-fé objetiva e de uma releitura funcional da impossi-
essa persistir, não é responsável pelo atraso no cumprimento. bilidade subjetiva, tem-se que o dever de prestar não pode ser imposto
Todavia, a obrigação se extingue se a impossibilidade perdurar em termos absolutos, tornando-se inexigível a realização da prestação
até que, em relação ao título da obrigação ou à natureza do que demanda do devedor esforços extraordinários, de caráter econômi-
objeto, o devedor não possa mais ser considerado obrigado a
61 Tradução livre. No original: "Art. 1.256 lmpossibilità definitiva e impossibilità temporanea.
L'obbligazione si estingue quando, per una causa non imputabile ai debitore, la prestazione
diventa impossibile (1218, 1463 e seguenti). Se l'impossibilità e solo temporanea, il debitore,
finché essa perdura, non eresponsabile dei ri tardo nell'adempimento. Tuttavia l'obbligazione
protegido: "A obrigação não se identifica no direito ou nos direitos do credor; ela configura-se si estinguese l'impossibilità perdura fino a quando, in relazione ai tito lo dell'obbligazione o alia
cada vez mais como uma relação de cooperação. Isto implica uma mudança radical de perspectiva natura dell'oggetto, il debitore non puo piu essere ritenuto obbligato a eseguire la prestazione
de leitura da disciplina das obrigações: esta última não deve ser considerada o estatuto do credor; ovvero il creditore non ha piu interesse a conseguiria (1174)".
a cooperação, e um determinado modo de ser, substitui a subordinação e o credor se torna titular 62 CANARIS, Claus-Wilhelm. Die einstweilige Unmõg/ichkeit der Leistung. FS für Ulrich Huber zum
de obrigações genéricas ou específicas de cooperação ao adimplemento do devedor" (Perfis siebzigsten Geburtstag, org. Theodoro Baums und Johannes Wertenbruch, Mohr Siebeck,
de direito civil. Tradução: Maria Cristina De Cicco. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 212). 2006, p. 145.
650 - IMPOSSIBILIDADE TEMPORÁRIA DA PRESTAÇÃO: ENTRE ATRASOS E INCERTEZAS ••• GISELA SAMPAIO DA CRUZ GUEDES E MARIA CAROLINA BICHARA - 651

co ou não, à luz do pacto concretamente celebrado e ao equilíbrio por De regra, a impossibilidade temporária apenas suspende o dever
ele estipulado. de prestar. A extinção desse dever pressupõe uma impossibilidade de-
Com efeito, a impossibilidade subjetiva temporária irá inibir provi- finitiva, que será decorrente de manifestação das partes acerca de suas
soriamente o cumprimento da prestação in natura, sendo o remédio de respectivas percepções quanto à suscetibilidade de cumprimento futuro
tutela do devedor contra o agravamento superveniente, inevitável, inim- e à contento da prestação. Extinto o dever principal de prestar, não faz
putável e excessivo acerca do esforço necessário à realização da prestação sentido que ele ressurja tão logo o impedimento cesse, porque aí não se
inicialmente contratada. Ressalte-se, contudo, que em nenhuma hipótese tem um problema de ineficácia temporária da obrigação, mas antes de
o Direito irá proteger a vontade íntima e/ou abusiva de um dos contra- extinção. Promove-se, assim, a segurança jurídica e a estabilização de
tantes, devendo se extrair da própria relação obrigacional e de sua fina- posições no bojo da própria relação obrigacional - que se mantem vá-
lidade os efeitos que o impedimento transitório provocará sob o dever lida e eficaz quanto aos deveres anexos decorrentes da boa-fé objetiva.
primário de prestar. Trata-se de manifestação do princípio geral da boa- Caso, no entanto, a valoração dos efeitos ocasionados pelo impe-
-fé objetiva, que não apenas irá balizar o esforço exigível das partes para dimento temporário se mostre equivocada, em atenção ao princípio da
a realização da prestação contratada, como também poderá dimensio- boa-fé objetiva e dos deveres remanescentes da relação obrigacional pri-
nar a exigibilidade da manutenção do vínculo debitório nos casos em mária, caberá às partes celebrar um novo pacto, se assim desejarem. Não
que se verifique uma impossibilidade transitória de cessação razoavel- necessariamente as bases negociais serão similares, porque as circuns-
mente imprevisível. 63 tâncias podem ter se alterado ao longo do tempo.
Em outras palavras, a conversão da impossibilidade temporária em 9. CONCLUSÃO
definitiva possui como pressuposto a avaliação casuística acerca da via-
bilidade da realização da prestação contratada. Uma vez que se constate A partir da análise dos efeitos ocasionados sobre a relação obriga-
que o impedimento transitório comprometeu a realização total da pres- cional, identifica-se duas espécies de impossibilidades: a definitiva e a
tação, a manutenção do pacto se torna, por isso, irrazoável para qualquer temporária. Enquanto a primeira espécie se refere a um obstáculo per-
um dos contratantes. manente, intransponível, superveniente e inimputável ao cumprimen-
to da prestação contratada - e, justamente por isso, é dotada de aptidão
8. A IRREVERSIBILIDADE DA IMPOSSIBILIDADE DEFINITIVA para conduzir à extinção do dever principal de uma relação obrigacio-
Como visto, a impossibilidade temporária repercute na relação obri- nal -, a impossibilidade temporária apenas suspende ou retarda a exe-
gacional suspendendo o dever principal de prestar, mantendo-se hígida cução da prestação contratada pelo tempo que perdurar o impedimento
e diferida tanto a obrigação do devedor de realizar a prestação contrata- de natureza eminentemente transitório.
da, quanto a do credor de contraprestar. Se, no entanto, o impedimento Exatamente porque não extingue o vínculo obrigacional, há na dou-
transitório ocasiona uma impossibilidade definitiva, em atenção ao in- trina quem questione a natureza jurídica da impossibilidade temporária,
teresse do credor ou do devedor, ainda que tempos depois a prestação percebendo-a como uma figura autônoma e independente à teoria das
volte a se tornar possível, não haverá o renascimento do dever de pres- impossibilidades. No entanto, ainda que ressoe sobre a relação obriga-
tar. Significa dizer que, quando a impossibilidade temporária se converte cional de forma singular, tal como ocorre com uma impossibilidade de-
em definitiva, uma vez realizada a conversão, o dever principal de pres- finitiva, a temporária inibirá, ainda que provisoriamente, o cumprimento
tar é extinto definitivamente. específico do dever primário de prestar.
A impossibilidade temporária sempre se dará em razão da ocorrên-
cia de fato superveniente à formação da relação obrigacional, oriundo
63 Como se sabe, a boa-fé objetiva tem por finalidade, em consonância com solidariedade
inerente à relação contratual, criar "a regula iuris da caso concreta", definindo as obrigações de de eventos transitórios e inevitáveis, que extrapolem a álea normal do
parte a parte à luz da finalidade contratual, do escopo econômico comum pretendido pelos contrato. Independentemente da espécie da impossibilidade, quando o
contratantes e das legítimas expectativas criadas.
652 - IMPOSSIBILIDADE TEMPORÁRIA DA PRESTAÇÃO: ENTRE ATRASOS E INCERTEZAS •••

impedimento for imputável às partes, ter-se-á um problema de incum-


primento (inadimplemento absoluto ou relativo), que poderá originar
uma obrigação indenizatória substitutiva da prestação inicialmente de-
vida. Como a verificação de uma impossibilidade superveniente é um
fator de ineficácia obrigacional e, sendo ela temporária, tem-se o retor-
no imediato dos efeitos da obrigação tão logo cessada a circunstância
que lhe deu causa.
Abordando também uma perspectiva concreta do tema, a qualifi-
cação da natureza transitória do impedimento é algo complexo e exige
uma avaliação casuística acerca da utilidade da prestação à luz do interes-
se perseguido pelo credor naquela específica relação obrigacional, isto é,
um prognóstico acerca da utilidade do cumprimento da prestação quan-
do ocorrer a superação do obstáculo. Assim, sempre que o interesse do
credor permanecer firme, o devedor, a princípio, está obrigado a prestar,
salvo se foi estabelecido, explícita ou implicitamente, que o devedor não
poderia prestar depois de certo prazo. Se assim tiver sido convenciona-
do, ocorrerá a conversão da impossibilidade temporária em definitiva.
Embora avaliar o interesse do credor naquele específico programa
contratual seja fundamental para que se possa definir se a hipótese é de Parte 7
impossibilidade temporária ou definitiva, também não é possível rele-
gar para escanteio o interesse do devedor, sob pena de se renegar o pró- RESPONSABILIDADE CIVIL
prio conceito de obrigação em sua complexidade. Assim, caso a espera
pela superação da impossibilidade consubstancie-se em uma exigência
irrazoável quanto à vinculação do devedor, poderá ele próprio reclamar
a conversão da impossibilidade temporária em definitiva e, por conse-
quência, a extinção do dever de prestar.
De toda forma, caso o impedimento de natureza inicialmente tran-
sitória ocasione efeitos definitivos sob o dever principal, extinguindo-o,
ainda que tempos depois a prestação volte a se tornar possível, não ha-
verá o renascimento do dever de prestar. Significa dizer que, quando a
impossibilidade temporária se converte em definitiva, o dever principal
de prestar é extinto definitivamente. Assim, não adianta dar tempo ao
tempo para a superação do obstáculo transitório ao cumprimento, por-
que, como diria Saramago na epígrafe que abre este artigo, é preciso an-
tes se perguntar se haverá tempo para dar. E, quando a impossibilidade
temporária se converte em definitiva, não há mais tempo para dar: o de-
ver de prestar queda-se extinto.
GUSTAVO BIRENBAUM - 655

1. INSUFICIÊNCIA DO RECURSO ÀS PERDAS E DANOS


EM CASO DE VIOLAÇÃO A DIREITO DE PREFERÊNCIA:
111
NECESSIDADE DE AMPLIAÇÃO DE SUA "EFICÁCIA REAL

Gustavo Birenbaum2

1. COLOCAÇÃO DO PROBLEMA
Direitos de preferência em geral, sejam criados por lei ou pela von-
tade das partes, costumam desempenhar relevante papel socioeconômi-
co, pois buscam, no comum das vezes, evitar o surgimento de potenciais
conflitos oriundos do compartilhamento de propriedades, bem como, a
tutela de certas situações jurídicas dotadas de interesse social. 3
Apesar da utilidade desse mecanismo legal ou convencional, que
visa invariavelmente à preparação de um contrato futuro 4 a efetividade
dos remédios à disposição de seu titular, quando violada a preferência por
Meu sincero agradecimento aos acadêmicos Miguel Martins Fernandes e Maria Carolina
Gonçalves pelo auxílio com parte das pesquisas que embasam este breve artigo.
2 Advogado. Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ.
3 CARLA WAINER CHALRÉO LGow aponta que "[c]om relação às preferências legais, é possível verificar
certa constante em suas funções socioeconômicas: (i) solucionar conflitos de direitos reais,
particularmente de direito de propriedade, extinguindo situações de oneração ou de comunhão
desse direito; (ii) possibilitar um melhor desempenho da função social da propriedade, evitando-
se litígios e desavenças; (iii) funcionar como meio de defesa face à introdução de estranhos; (iv)
manter o patrimônio na titularidade de uma mesma família; além de (v) razões de ordem política."
(Direito de preferência. São Paulo: Atlas, 2013, p. 215). Quanto às preferências convencionais,
AGOSTINHO CARDOSO GuEDES explica que"... diretamente ou como segunda escolha, a preferência
convencional permite prosseguir todos os interesses que historicamente estiveram na base da
atribuição de preferências legais, e ainda quaisquer outros que a imaginação das pessoas e as
circunstâncias concretas determinem.( ... ) Não surpreende, pois, que a preferência convencional
sejaactualmente usada com as finalidades defensivas que a caracterizaram no Império Romano
e na Idade Média, quando os sócios de uma sociedade comercial se atribuem reciprocamente
diretos de preferência na alienação das quotas ou acções, ou até como instrumento de protecção
de sócios minoritários em joint ventures." (O exercício da direito de preferência. Porto: Publicações
Universidade Católica, 2006, p. 76). Em semelhante sentido, Ivo WA1SBERG (Direito de preferência
para a aquisição de ações. São Paulo: Quartier Latin, 2016, pp. 66/67), com foco mais dirigido
às preferências no Direito Societário. Há, porém, quem questione a conveniência dos direitos
de preferência, especialmente os de natureza convencional, por criarem custos adicionais de
transação e desincentivando potenciais adquirentes. Nesse sentido: "Rights offirst refusal are
costly to the contracting parties. At the time of sal e a third party may place the highest value on
the encumbered property. By reducing a third party's expected gain and thus deterring potential
outside bidders, the instrument reduces the seller's realization potential. The impact is most
significantwhen, as in the case of dose corporation shares, the property is relatively unique, an
insider is likely to place an idiosyncratic value on the interest being sol d, and third-party bidders
would be scarce even withoutsuch a restriction." (DAv101. WALKER. Rethinking rights offirst refusal.
Cambridge: Harvard Law School (August 1999), Discussion Paper No. 261, 8/99, p. 73/74).
4 "Com efeito, sob esta multiplicidade de propósitos individuais e concretos haveria uma função
sempre presente em qualquer pacto de preferência, determinado, até, pelas características do
instituto - o pacto de preferência visaria sempre a (eventual)celebração de um contratofuturo, e,
nesta medida, realizaria uma função preparatória desse contrato futuro." (AGOSTINHO CARDOSO
GuEDEs, op. cit., p. 80; itálicos no original).
656 - INSUFICIÊNCIA DO RECURSO ÀS PERDAS E DANOS EM CASO DE VIOLAÇÃO A DIREIT~ DE ••• GUSTAVO BIRENBAUM - 657

quem deveria tê-la observado, é variável, pois depende da circunstância Como sujeito ativo da relação prelatícia8, tem-se o titular do di-
de ser, ou não, o direito de preferência dotado da chamada "eficácia real" reito de preferência (também chamado preferente ou outorgado), aquele
- ou, em termos mais precisos, de ser a violação do direito ineficaz em em favor de quem a lei ou o acordo de vontades confere o poder de con-
relação ao seu titular, em razão de uma eficácia externa da preferência. tratar com precedência, em determinadas circunstâncias. Como sujei-
Sendo a preferência dotada dessa eficácia real, ou externa, é possível to passivo (ou outorgante), tem-se aquele que estará vinculado, pela lei
ao seu titular obter, por meio de execução específica, o resultado práti- ou pelo acordo de vontades, a respeitar o direito do sujeito ativo - um
co equivalente ao adimplemento da prestação inadimplida pelo sujeito direito contingente, cuja eficácia se vincula a uma condição suspensiva,
passivo da relação, isto é, o titular da preferência que tem seu direito vio- que somente se implementa na hipótese de o sujeito passivo engajar-se
lado tem o poder de "haver para si" o bem indevidamente alienado em na celebração de determinado contrato com um terceiro (este, o último
afronta à sua prelação. 5 Colocam-se as partes, assim, no status quo equi- elo da relação), quando então nasce o direito do preferente, uma vez in-
valente à não ocorrência da infração contratual, por meio de uma tutela formado do advento dessa condição, de contratar com o outorgante nas
in natura dos interesses do credor lesado. mesmas bases que este almejava contratar com o terceiro. 9
Mas, se ausente a eficácia real, quando o direito de preferência é Discute-se em doutrina se a concretização do direito de preferên-
dotado de eficácia meramente obrigacional (e portanto relativa), resta- cia - que existe inicialmente em estado potencial- dá-se apenas com a
rá a seu titular, em caso de violação, apenas o recurso a perdas e danos - comunicação do sujeito passivo ao preferente da sua intenção de cele-
que se mostra, nesse nicho em particular, ainda mais acanhado do que brar com terceiro algum tipo de contrato (geralmente compra e venda10),
de costume para a efetiva tutela do direito violado. que faça nascer o direito potestativo do preferente de contratar com o
Porque nem todos os direitos de preferência possuem o atributo da sujeito passivo em substituição ao terceiro. 11 Embora não haja dúvidas
eficácia real6, buscamos defender neste artigo a adoção de certas medi- de que, ordinariamente, é nesse momento que se concretiza o direito de
das de lege lata, além de eventuais ajustes de legeferenda, capazes de con- preferência, ele pode, em certas circunstâncias, nascer também antes ou
ferir maior efetividade a esses direitos, quando violados. depois desse momento, e mesmo se ausente tal comunicação. 12 Afinal,
se assim não fosse, seria facílimo esvaziar tal direito; bastaria o sujeito
2. ASPECTOS DOGMÁTICOS DO INSTITUTO - UM RESUMO passivo deixar de efetuar a comunicação, em desprezo ao correspondente
Para o adequado desenvolvimento do tema objeto de análise, con- 8 Embora haja autores que diferenciam preferência, prelação e preempção (como Ivo WAISBERG,
vém estabelecer quem são os personagens da relação jurídica nasci- op. cit., p. 37/38), adotaremos essas expressões como sinônimas ao longo deste artigo, pois
as mínimas diferenças porventura existentes entre elas não chegam a comprometer a sua
da com a instituição do direito de preferência, descrever brevemente o aproximação para os fins deste estudo. De resto, o próprio artigo 513 do Código Civil parece
modo como ela se desenvolve e pontuar a natureza jurídica deste pecu- equipará-las.
9 "Ao nosso ver, o direito de preferência pode ser definido como: 'o direito que uma parte
liar direito subjetivo. 7 (outorgante ou concedente) outorga a outrem (outorgado ou preferente) para, desejar-se e em
condições de igualdade com terceiro, celebrar eventual futuro contrato no lugar deste'." (Ivo
WAISBERG, Direito de preferência na alienação de ações. Enciclopédia Jurídica do PUC-SP, Tomo
5 Este remédio é comumente empregado também em jurisdições de common /ow: "Once the 4- Direito Comercial/ coord.: Fabio Ulhoa Coelho e Marcus Elidius Michelli de Almeida. São
right is triggered, ifthe holder exercises it, the parties enter into a purchase and sal e agreement Paulo: 2018, p. 3).
on the specified terms, and if the grantor will not execute an agreement on those terms, the 10 Segundo CARLA WA1NER CHALRÉO Lcow (op. cit., p. 35), "[s]ignifica dizer que é razoável dilatar o
holder is generally entitled to specific performance." (CARL]. CIRCO. Purchase Options, ROFRs, conceito de venda, previsto em lei ou no pacto que institui a prelação, para sustentar que a
and ROFOs: Theory and Practice (January 2016). ACREL, Spring 2016. Disponível em <https:// preferência poderá ser exercida em toda situação em que o fim perseguido pelo vinculado
ssrn.com/abstract=2781802>. Consultado em 23/08/20, p. 6). à preferência não seja prejudicado pelo fato de o contrato que pretendia celebrar vir a ser
6 CARLA WAINER CHALRÉO Lcow pontua que"... certos direitos de preferência são dotados de uma celebrado com o preferente.".
oponibilidade especial eficácia real-, o que significa, na prática, que o contrato celebrado 11 "Já na preferência, o terceiro parametriza o negócio entre outorgado e outorgante ao estipular
entre sujeito passivo e terceiro, em desrespeito ao direito do preferente, será ineficaz perante as condições essenciais do negócio, cabendo ao preferente decidirporcelebraro contrato no
este último, de modo que o titular da prelação poderá exercer coercitivamente o seu direito lugar do terceiro igualando as condições. Ou seja, a existência do terceiro é que desencadeia
mesmo após a contratação realizada em violação à preferência, e em consequência haver para o direito do outorgado" (Ivo WAISBERG, Enciclopédia, cit., p. 7).
si o bem objeto do contrato preferível." (op. cit., p. 128). 12 Segundo MAR10 Júuo ALMEIDA CosrA, "... claro que pode exercer-se o direito de preferência ainda
7 Não é objetivo deste artigo aprofundar todos e cada um dos muitos aspectos dogmáticos do que o seu titular tenha conhecimento do projecto de negócio através de um meio diverso da
instituto, mas apenas indicar alguns consensos (ou quase isso) que servirão de diretriz para a comunicação." (Direito das obrigações, 12ª ed. Coimbra: Almedina, 2009, p. 448, apud CARLA
proposta que buscamos apresentar. WAINER CHALRÉO Lcow, op. cit., p. 68, nota 22).
658 - INSUFICIÊNCIA DO RECURSO ÀS PERDAS E DANOS EM CASO DE VIOLAÇÃO A DIREITO OE ••• GU5íAVO BIRENBAUM - 659

dever anexo de informação, para frustrar o exercício do direito titulado a preferência a um direito real (ora um direito real de preferência, 21 ora
pelo preferente, o que evidentemente não se pode admitir. 13 um direito real de aquisição). 22
Convém, ainda, delimitar em que situações o direito de preferên- Embora compreensível a aproximação, o direito de preferência não
cia será dotado de eficácia real. Não há dúvida de que esse qualificativo exatamente "adere à coisa", ou, dito de outro modo, a preferência não
se faz presente em relação aos direitos de preferência (a) do condômi- cria um ius in re, 23 mas um vínculo obrigacional, pessoal e relativo por
no de bem indivisível, de que trata o art. 504, segunda parte, do Código definição, o qual, em certas circunstâncias, torna-se oponível ao terceiro (e
Civil, 14 (b) do locatário de imóvel urbano, na hipótese do art. 33 da Lei não a todo e qualquer terceiro, como no direito real) que contrate com
nº 8.245/91 15 - 16, (c) do co-herdeiro, na situação descrita no art.1.795 do o sujeito passivo em violação à preferência.
Código Civil17 , e (d) do arrendatário rural, previsto no art. 92, § 4°, da Acresce que os direitos reais, por força do princípio numerus clausus
Lei nº 4.504/64. 18 - 19 Há certos traços, comuns a todas essas disposições, (Código Civil, art. 1.225), só podem ser criados como tais por força de
que moldam a sua eficácia real, sendo eles (a) o depósito do preço e (b) lei (ex.: os recém-criados direitos reais de laje e de uso, objeto dos inci-
o prazo (de natureza decadencial) para exercício do direito reipersecu- sos XII e XIII do art. 1.225), o que também não ocorre com as prefe-
tório, consistente em "haver para si" o bem objeto da prelação. rências - mesmo aquelas previstas em diplomas legais. Estas preveem,
Justamente porque, nesses casos (e também em outros, como se nos casos acima descritos, não exatamente a instituição de um novo tipo
verá), pode o titular da preferência "haver para si" o bem indevidamen- de ius in re, mas uma eficácia que transcende os sujeitos ativo e passivo
te alienado em afronta à sua prelação, conferindo-lhe a lei uma espécie da relação prelatícia (ou melhor dizendo: uma ineficácia em relação ao
de "direito de sequela", há autores, e mesmo julgados, 20 que equiparam preferente da alienação empreendida entre sujeito passivo e terceiro em
violação ao seu direito). 24
13 AGOSTINHO CARDOSO GUEDES aponta: "Por todas estas razões, parece razoável considerar que o
Afastada a natureza de direito real do direito de preferência, pare-
direito potestativo de preferência não é consequência da comunicação, mas sim de um facto ce-nos mais acertada a corrente que enxerga nesses direitos (sejam eles
anterior a esta, do facto que, ao fim e ao cabo, torna necessária a tutela dos interesses típicos
do preferente protegidos pelo instituto." (op. cit., p. 357). de origem legal ou convencional) a natureza de um direito potestativo
14 Art. 504. Não pode um condômino em coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se constitutivo de um direito de crédito. De fato, no desenvolvimento da re-
outro consorte a quiser, tanto por tanto. O condômino, a quem não se der conhecimento da
venda, poderá, depositando o preço, haver para si a parte vendida a estranhos, se o requerer lação prelatícia, há primeiramente o exercício de um direito potestativo
no prazo de cento e oitenta dias, sob pena de decadência. constitutiva25 em favor do preferente, consistente em uma opção, à qual
15 Art. 33. O locatário preterido no seu direito de preferência poderá reclamar do alienante as
perdas e danos ou, depositando o preço e demais despesas do ato de transferência, haver o sujeito passivo apenas se submete, de contratar ou não contratar nas
para si o imóvel locado, se o requerer no prazo de seis meses, a contar do registro do ato no
cartório de imóveis, desde que o contrato de locação esteja averbado pelo menos trinta dias bases ofertadas pelo terceiro. 26
antes da alienação junto à matrícula do imóvel.
16 Em Portugal, o art. 116º do Regime do Arrendamento Urbano (RAU) outorga um interessante 21 Nesse sentido, Luiz GASTÃO PAES DE BARROS LEÃES (Do direito de preferência nos condomínios.
direito de preferência "cruzado" também ao senhorio, em caso de o arrendatário de imóvel Pareceres. São Paulo: Editora Singular, 2004, V. 1, p. 62, item 5.5) e FERNANDO NORONHA (Direito
comercial proceder ao trespasse de seu estabelecimento (Cfr. AGOSTINHO CARooso GUEDES, op. das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 280 e sgts.).
cit., p. 204). 22 AGOSTINHO CARooso GUEDES (op. cit., p. 622, nota 94) aponta inúmeros autores portugueses que
17 Art. 1.795. O co-herdeiro, a quem não se der conhecimento da cessão, poderá, depositado o qualificam a preferência dotada de eficácia externa como um direito real de aquisição.
preço, haver para si a quota cedida a estranho, se o requerer até cento e oitenta dias após a 23 AGOSTINHO CAR □ oso GUEDES, com base em lições colhidas de Henrique Mesquita, destaca com
transmissão. precisão que "[s]implesmente (... ), o direito de preferir não incide sobre a coisa objecto da
18 § 4° O arrendatário a quem não se notificar a venda poderá, depositando o preço, haver para prelação, nem mesmo quando é exercido através da acção de preferência" (op. cit., p. 622).
si o imóvel arrendado, se o requerer no prazo de seis meses, a contar da transcrição do ato de 24 Para uma aprofundada análise desse tema, v. CARLA WAINER CHALRÉO LGow, op. cit, p. 37/51.
alienação no Registro de Imóveis. 25 Ivo WAISBERG, Direito de preferência ..., cit., p. 63.
19 Embora o art. 1.373 do Código Civil silencie acerca da eficácia real da preferência titulada 26 O vocábulo "opção" é empregado no texto sob a forma vulgar, não diretamente relacionada
pelo superficiário ou proprietário ("Em caso de alienação da imóvel ou do direito de superfície, o à opção no sentido de contrato preliminar, que com a preferência não se confunde. Apesar
superficiário ou o proprietário tem direito de preferência, em igualdade de condições"), o Enunciado disso, há autores que entendem haver, de fato, uma opção, em sentido jurídico, em certo
nº 510, da V Jornada de Direito Civil, tratou de "criá-la", ao estabelecer, por meio de aparente momento da complexa relação de preferência. Nesse sentido:"... courts agree that when the
analogia ao art. 504 do mesmo diploma, que 'fajosuperficiário que nãofoi previamente notificado owner notifies the rightholder of an acceptable third party offer, the right offirst refusal 'ripens'
pelo proprietário paro exercer o direito de preferência previsto no art. 1.373 do CC é assegurado o into an option contract." (BERNARD DASKAL, Right offirst refusal and the package deal, 22 Fordham
direito de, no prazo de seis meses, cantado do registro da alienação, adjudicarpara si o bem mediante Urban Law Journal 461 (1995), p. 466/467, disponível em <https://ir.lawnet.fordham.edu/ulj/
depósito do preço". vol22/iss2/io>, conultado em 22/08/20). Em semelhante sentido, citando lições de Karl Larenz,
20 STJ, 4ª T., RESP 912.223/RS, Rei. Min. MARCO Buzz1, j. 06/09/12, DJe 17/09/12. Ivo WA1SBERG pondera: "Aqui, a situação jurídica é igual à da opção, pois já há condições de
660 - INSUFICIÊNCIA DO RECURSO ÀS PERDAS E DANOS EM CASO DE VIOLAÇÃO A DIREITO DE ••• GUSTAVO BIRENBAUM - 661

Do exercício desse poder decorre não apenas uma sujeição do vin- com o terceiro - para que, então, o preferente exerça, em determinado
culado à preferência, mas um correspondente dever do sujeito passivo27 , prazo, a sua prerrogativa de preferir (ou de não preferir).
de efetivamente contratar com o preferente nas mesmas bases em que Caso marüfeste o preferente a sua decisão positiva de contratar "tan-
este projetava contratar com o terceiro. 28 Como enuncia AGOSTINHO to por tanto" com o sujeito passivo, em substituição ao terceiro, exsurge
CARDOSO GuEDES, 'o direito de preferência só nasce com a verificação dos então outro dever a cargo do outorgante, agora consistente em efetiva-
respectivos pressupostos definidos no pacto de preferência ou na norma legal mente contratar com o outorgado nas mesmas bases em que cogitava
que o associa a certa situação jurídica, ulteriormente à celebração de tal pac- contratar com o terceiro. 31
to ou ao estabelecimento dessa situação jurídica; verificados esses pressupos-
Ocorre que nem sempre as coisas se passam de forma harmoniosa,
tos, nasce na titularidade do preferente um direito potestativo constitutivo,
de acordo com o panorama acima descrito. A esfera de interesses jurí-
o qual, exercido regular e tempestivamente, tem como efeito a criação a cargo
dicos do titular da preferência pode ser violada pelo sujeito passivo sob
do sujeito passivo do dever de realizar com o preferente o contrato projectado
múltiplas formas dentro deste iter procedimental, sendo as mais comuns
antes ajustado com terceiro, assim se efectivando a tal prioridade em benefí-
(a) a completa ausência de comunicação de que um projeto de contra-
cio do sujeito activo que a locução 'preferência' traduz e que a relação homó-
to foi ajustado com o terceiro, vindo esse projeto a se tornar depois um
nima visa assegurar". 29
contrato já definitivo, à revelia do preferente (o que também pode acon-
Assentados os aspectos dogmáticos elementares da preferência, po- tecer apesar de ter o sujeito passivo realizado a comunicação mas des-
de-se passar à análise dos remédios postos à disposição do preferente prezado eventual resposta positiva do preferente) 32 , ou (b) o envio ao
quando se esteja diante de uma preferência dotada de eficácia real, ou outorgado de um comunicado impreciso, ou de qualquer forma vicia-
quando ela não incorpore essa qualidade. do, que frustre ou obstrua o adequado exercício do seu poder de escolha
3. VIOLAÇÃO AO DIREITO DE PREFERÊNCIA E OS REMÉDIOS À (v.g., a disponibilização de informações insuficientes sobre os elemen-
tos essenciais do negócio projetado, como preço e condições de paga-
DISPOSIÇÃO DE SEU TITULAR
mento, a concessão de prazo inferior ao legal, ou convencional, para o
Uma vez que o outorgante da preferência decide engajar-se em um exercício da preferência etc.).
projeto de contrato com terceiro - um evento futuro e incerto quando do
Enquanto a segunda dessas hipóteses mais se aproxima de um in-
estabelecimento inicial do vínculo30 - , nasce para ele, de plano, um dever
cumprimento relativo, ou de cumprimento imperfeito, ambos remedi-
de conduta, anexo à cláusula geral de boa-fé, de informar o sujeito ativo
áveis, a primeira delas avança no terreno do incumprimento absoluto,
da sua intenção de celebrar um certo contrato, que enseje a preferência,
irreversível por definição, pois já não será possível ao devedor voltar no
tempo para prestar aquilo que deixou de prestar quando a tanto estava
exercício definidas. Daí a menção muitas vezes a um direito de opção e a sua confusão com a
preferência" (Direito de preferência... , cit., p. 61).
obrigado em beneficio do credor. 33
27 No intervalo entre a comunicação e o eventual exercício do poder de preferir, o direito do
preferente já está constituído, mas ainda não está formado o dev1;rdo s_uj~it~ p~ssivo de 7o~t~atai:
com o sujeito ativo. O sujeito passivo encontra-se em uma s1tuaçao 1und1ca de suJe1çao, a 31 "Temos, depois, um dever de contratar que se constitui e vincula o sujeito passivo logo que a
espera da declaração volitiva do titular da preferência. declaração de preferência se torna eficaz." (AGOSTINHO CARDOSO GUEDES, op. cit., p. 579).
Há também quem vislumbre nessa segunda etapa da relação prelatícia a existência de uma 32 "Assim, se o sujeito passivo celebrar com terceiro o contrato projectado sem proceder à
prestação negativa a cargo do sujeito passivo, consistente em não contratar com terceiro sem comunicação devida ao preferente, viola o dever de comunicar e o dever de não comprometer
que antes conceda ao sujeito ativo a preferência. CARLA WAINER CHALRÉO LGow demonstra, com a integridade do direito do preferente. Se proceder a uma denuntiatio perfeitamente regular
razão, que essa visão apequena a preferência: "No seu sentido técnico, bem como no sentido e, sem esperar pela resposta do preferente, contratar com o terceiro nos precisos termos
comum, preferência exprime a ideia de prioridade, e a abstenção do devedor em contratar da comunicação, já não viola o dever de comunicar, mas continua a violar o segundo dever
não cria qualquer situação de prioridade, de modo que não é por meio dessa abstenção que supramencionado." (AGOSTINHO CARDOSO Gumes, op. cit., p. 582).
o vinculado à preferência cumpre a obrigação a que está adstrito (op. cit., p. 57). 33 AGOSTINHO ALVIM leciona que"... a unanimidade dos escritores distingue a mora do inadimplemento
29 Op. cit., p. 348. Para uma aprofundada análise de todas as correntes em torno da natureza absoluto, apontando, como característica da primeira a possibilidade de ainda ser cumprida a
jurídica do direito de preferência, v. AGOSTINHO CARDOSO Gumes, op. cit., p. 291/348. obrigação, e do segundo, a impossibilidade em que fica o devedor de executá-la. Acompanhando
"No momento 1, que consiste no ato inicial, na contratação, não se cria o direito potestativo a doutrina dominante, nós entendemos que o critério para a distinção reside, efetivamente, na
de preferir: apenas as regras para a eventual futura formação deste." {Ivo WAISBERG, Direito de possibilidade ou impossibilidade, mas essa possibilidade ou impossibilidade, com maior precisão,
preferência ... , cit., p. 60) não há de se referir ao devedor, e sim ao credor; possibilidade ou não de receber a prestação, o que é
662 - INSUFICIÊNCIA DO RECURSO ÀS PERDAS E DANOS EM CASO DE VIOLAÇÃO A DIREITO DE ..• GUSTAVO BIRENBAUM - 663

De que remédios, então, se socorrerá o titular da preferência nes- do outorgante. Privilegia-se, aqui, o chamado interesse positivo do cre-
sas situações? Tratando-se apenas de mora, ou de cumprimento imper- dor, equiparável, na espécie, a um interesse no cumprimento. 36 Ademais,
feito, poderá o sujeito passivo corrigir a prestação a que está vinculado esse tipo de solução gera claros incentivos ao cumprimento do ajustado
e, assim, preservar a utilidade e possibilidade de fruição do direito po- - algo sempre desejável em termos de estabilidade das relações -, já que
testativo de preferir titulado pelo sujeito ativo. Ainda assim, a conduta o descumprimento, pelo sujeito passivo (em colaboração com terceiro),
do sujeito passivo, pode ser danosa em alguma medida. Se, por exem- pode ser facilmente tornado ineficaz em relação ao preferente, obrigando,
plo, para fazer valer seus direitos, o outorgado sofrer algum tipo de per- ainda, o outorgante a restituir ao terceiro eventual pagamento recebido.
da patrimonial (v.g., despesas com notificação do sujeito passivo, perda Já no caso dos direitos de preferência dotados de eficácia apenas re-
de rendimento de recursos financeiros resgatados indevidamente a mais lativa, não oponíveis perante terceiros, restará ao seu titular, em caso de
que o necessário etc.), o dever de reparação do outorgante, baseado tan- incumprimento absoluto, como regra geral, tão-somente a via reparatória. 37
to em responsabilidade contratual quanto na tutela da boa-fé, é incon- Ocorre que este remédio, no terreno da relação prelatícia, mostra-se inca-
teste, mesmo que o outorgado venha a posteriormente obter o bem da paz de propiciar um adequado restabelecimento da lesão causada à esfera
vida que almejava (contratar com o sujeito passivo nas mesmas bases em jurídica do preferente, como se passa a expor. E mais: há meios relativa-
que este pretendia contratar com o terceiro). Ou seja, embora o seu in- mente simples para atribuir, a certos direitos de preferência em princí-
teresse último tenha afinal sido alcançado, isso não ocorreu sem eventu- pio dotados de eficácia apenas obrigacional, essa vantajosa eficácia real.
al decréscimo patrimonial durante o itinerário obrigacional. Recorde-se
que se está a tratar de dois deveres jurídicos distintos a cargo do sujeito 4. PERDAS E DANOS: DIFICULDADES E INSUFICIÊNCIAS
passivo: primeiro, um dever de conduta, correspondente a não frustrar Para realçar as dificuldades e insuficiências apresentadas pela via re-
ou dificultar o exercício do poder do preferente de decidir se deseja pre- paratória para a adequada tutela de interesses do outorgado, em caso de
ferir; depois, o dever principal, consistente em contratar com o outor- incumprimento do sujeito passivo em eventual concurso com o terceiro
gante nas mesmas bases projetadas junto ao terceiro. 34 adquirente, suponha-se a seguinte situação: ''.N.', uma sociedade empre-
Mais complexas serão aquelas situações de inadimplemento abso- sária que tem "X" e "Y" como sócios, celebra contrato de locação com
luto do dever jurídico a cargo do outorgante da preferência, consistente "B", tendo por objeto um imóvel de propriedade de "B" onde ''.N.' explo-
em efetivamente contratar com o sujeito ativo, se este assim o desejar,
36 Nas palavras de RENATA CARLOS SmNER, "[n]a medida em que a recomposição dos interesses
nas mesmas bases que contrataria com o terceiro. É justamente nesse violados é o objetivo buscado pela reparação, então o lesado deverá ser reconduzido à situação
momento (por assim dizer, patológico35 ) da relação prelatícia - quiçá o em que estaria não fosse a ocorrência do evento lesivo( ... ). À parte lesada na sua expectativa
de cumprimento do contrato é conferido o direito a obtê-lo, in natura ou pelo equivalente. A
principal momento dessa relação - que fica nítida a diferença entre os recondução, portanto, não se pauta à situação a quo, mas sim ad quem à ocorrência do dano.
Com efeito, recoloca-se o contratante na situação em que estaria se houvesse cumprimento do
direitos de preferência dotados de eficácia real e aqueles cuja eficácia é contrato, e não na situação em que estava anteriormente à ocorrência do descumprimento."
meramente obrigacional. (Interesse positivo e interesse negativo: a reparação de danos no Direito Privado brasileiro. Tese de
Doutorado. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2016, p. 43/44).
Como antecipado, para os titulares de direitos de preferência dota- 37 Note-se que não estamos a tratar da hipótese de incumprimento do sujeito passivo, mas do
qual ainda não resultou a contratação com terceiro de forma definitiva, em caso de preferência
dos de eficácia perante terceiros, o ordenamento lhes confere a prerroga- dotada de eficácia apenas obrigacional. Nessa hipótese, como bem observa Ivo WAJSBERG,
poderá o preferente, em antecipação a um processo de esvaziamento total de seu direito, valer-se
tiva de "haver para si", mediante certas condições, o bem indevidamente da tutela especifica da obrigação a cargo do outorgante para evitar que um inadimplemento
alienado a terceiro em infração à preferência. Trata-se de solução ine- ainda relativo se torne absoluto. Nas suas palavras: "Notemos que, antes da contratação final
com o terceiro, no caso de inadimplemento de uma obrigação de fazer constante da relação
quivocamente eficiente, pois ela na essência coloca o credor na posição jurídica complexa que é a preferência, mesmo um caso de eficácia obrigacional pode dar ao
em que ele estaria diante do cumprimento natural da prestação a cargo preferente a oportunidade de, por via de execução específica, celebrar o contrato. Isto é, ao
tomar conhecimento da proposta de venda, do contrato preliminar, da opção de compra, ou
outro contrato não definitivo e/ou de qualquer outra forma, cabe ao outorgado a execução
diferente. "(Da inexecuçãa das abrigaçães e suas consequências. 3ª ed. atual. Rio de Janeiro: Editora específica da obrigação de contratar com ele. Contudo, não se trata necessariamente do
Jurídica e Universitária Ltda, 1949, p. 45). que chamamos de eficácia real, pois o outorgado estará suprindo, por exemplo, a falta de
34 Cfr. AGOSTINHO CARDOSO GUEDES, op. cit., p. 590/591. comunicação para, por meio da tutela específica, exercer o seu direito na fase seguinte da
35 Expressão cunhada por CARLA WAJNER CHALREO Lcow, op. cit., p. 123. preferência". (Direito de preferência ... , cit., p. 77).
664 - INSUFICIÊNCIA DO RECURSO ÀS PERDAS E DANOS EM CASO DE VIOLAÇÃO A DIREITO DE. ••
GUSTAVO BIRENBAUM - 665

ra um restaurante. O contrato de locação do imóvel não é averbado jun- Longe deste exemplo configurar "hipótese de laboratório"; um caso
to à correspondente matrícula (logo, pela literalidade do art. 33 da Lei com traços assemelhados foi julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado
nº 8.245/91, a preferência inerente ao vínculo locativo não seria dotada de São Paulo. 39 Na ocasião, diante das circunstâncias (em particular, a
de "eficácia real", criando obrigações apenas entre locadora e locatário). inequívoca ciência do terceiro acerca do direito de preferência do locatá-
No curso dessa relação locatícia, surgem desavenças entre os sócios rio), a Corte paulista proclamou que "{a} ausência de a~er~ação do contra~o
"X" e "Y", de modo que "Y" se retira da sociedade ''.N.', a qual se torna de locação não elide o direito do locatário em postular adjudicação compulso-
uma Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI), que ria se o adquirente tem prévio conhecimento da locação".
t em apenas "X" como mtegrante
· . "/\"
.n. , sob a rorma
r: de E IRELI, segue fi gu-
Vê-se que o precedente em questão, embora não o declare expres-
rando como locatária do imóvel locado por"B". Em paralelo, "Y" consti- samente, equiparou, para efeitos de "eficácia real", a ciên~ia ~o terc_eiro_ a
tui uma outra empresa ("C"), também atuante no ramo de restaurantes.
respeito da existência da locação (e da consequ:nte prefer~ncia ex ~i l:gis)
Eis que o locador "B" decide vender o imóvel objeto da locação, à existência de averbação do contrato de locaçao na matricula do 1movel.
on d e "/\"
.n. exp1ora o restaurante, e apresenta a "Y" a oportumºd ad e d e se
Mas, afinal, qual remédio deveria prevalecer: aquele segundo o qual
tornar proprietário do bem (oportunidade que inclui o poder de resi- a preferência violada, carente de eficácia real (mas em situação d~ má-
lir a locação mantida entre "B" e ''.N.', nos termos do art. 8° da Lei nº -fé do terceiro), resolve-se em perdas e danos, ou aquele que permite ao
38
8.245/91 ). "B" e "Y" convergem em torno dos elementos essenciais da
preferente, diante dessas mesmas circ~nstâ~ci~s, alc~nçar a eifer~ jurí-
compra e venda e, sabedores de que o contrato de locação não foi aver- dica do terceiro, para então obter para s1 a coisa mdev1damente alienada
bado no registro competente, decidem prosseguir com a operação, sem a tal terceiro, em demanda não mais reparatória, porém reipersecutória
que "B" tenha cientificado ''.N.' para, querendo, exercer a preferência que (ou de adjudicação compulsória)?
o art. 33 da Lei nº 8.245/91 lhe confere. Como resultado, sem que ''.N.'
soubesse ou pudesse evitar, sua relação locatícia deixa de ser com "B" e Visivelmente optando pela via reparatória, mesmo em caso de má-
-fé do terceiro, tem-se, a título de exemplo, um relevante dispositivo de
passa a ser com "Y", um ex-sócio e agora concorrente, que pode inclu-
lei. Trata-se do art. 518, parte final, do Código Civil, relativo ao pacto
sive extinguir a relação locatícia dali a 90 dias, na forma do já citado art.
de preempção, segundo o qual "{r}esponderá por perdas e danos o compra-
8° da Lei nº 8.245/91. Note-se que, além dessa sujeição, ''.N.' foi priva-
dor, se alienar a coisa sem ter dado ao vendedor ciência do preço e das van-
da da oportunidade de realizar investimento estratégico, consistente em
tagens que por ela lhe oferecem. Responderá solidariamente o adquirente, se
adquirir o "ponto" onde exerce sua atividade empresarial, o que lhe pos-
tiver procedido de má-fé. "
sibilitaria, entre outras coisas (como deixar de pagar aluguel), afastar o
risco a que acabou ficando sujeita (uma oportunidade perdida e que não O dispositivo tem sido alvo de críticas por parte da doutrina - a nos-
é facilmente "precificável"). so juízo, procedentes-, que enxergam certa "timi~ez" na tu;~la ofereci-
da ao preferente preterido, justamente porque a via reparatona (mesmo
Nos termos do art. 33 da Lei de Locações, dado que o contrato de
com o "incremento" da responsabilização solidária do terceiro 40), como
locação não foi averbado junto à matrícula do imóvel, o único remédio
à disposição de ''.N.' seria as perdas e danos - mesmo sendo evidente que
se verá, oferece certas dificuldades (para além do fator tempo) não en-
"Y" não era adquirente de boa-fé, pois sabia da existência da locação (o contradas na via reipersecutória. 41
que tornaria a averbação do contrato na matrícula do imóvel despicien- 39 TJ/SP, 27ª Câmara de Direito Privado, AC 0181952-25.2008.8.26.010?, Rel._Des. Gilberto_ Leme,
da em relação a este terceiro em particular). j. 27/11/12. A locação do caso julgado Pº! es_te proce_dente era res1d:~c1al e n:le havia ~ma
discussão lateral sobre o direito de preferenc1a conferido ao sublocatario pela lei de loca_çoes,
além de ter a inquilina chegado a manifestar sua intenção_ de preferir. Mas o ~raça esse~c1~I d_o
debate é o mesmo: um terceiro que contrata com o senhorio ~bsol_ut~m:nte ciente da :x1stenc1a
38 "Art. 8°. Se o imóvel for alienado durante a locação, o adquirente poderá denunciar o contrato, da locação e do direito de preferência do titular, ap~sa_r da 1~:x1stenc1a da averbaçao.
com o prazo de noventa dias para a desocupação, salvo se a locação forportempo determinado 40 De resto ociosa, à luz da parte final do art. 942 do Cod1go C1v1I. , . .
e o contrato contiver cláusula de vigência em caso de alienação e estiver averbado junto à 41 Nas palavras de MARCOS JORGE CATALAN, "... parece ser p:rfei_tame_nte poss1vel, tambe~ p~r ta~s
matrícula do imóvel." razões, desconstituiro negócio pactuado com conhec1_d? VIOl_açao do pac~o d: preferenc1a, eis
que a conduta do terceiro impediria que o vendedor[su1e1to ativo da preferencial alcançasse sua
666 - INSUFICIÊNCIA DO RECURSO ÀS PERDAS E DANOS EM CASO DE VIOLAÇÃO A DIREITO DE ••• GUSTAVO BIRENBAUM - 667

De modo a fundamentar as razões da nossa predileção pela via da rigor, inclusive, pode ocorrer de a aquisição do outro imóvel, em substi-
execução específica, ou reipersecutória, convém imaginar como se da- tuição àquele objeto da preferência, dar-se por preço inferior ao da alie-
ria, de fato, a recomposição dos danos em hipóteses similares à descrita nação do bem objeto da preferência. Nesse caso, o preferente então não
neste capítulo. Para tanto, cabe de início estabelecer se o bem objeto da terá sofrido danos,já que não teria havido, num enfoque superficial, de-
preferência é fungível ou infungível. Sendo o bem fungível, a via indeni- créscimo patrimonial? 45
zatória mostra-se relativamente simples, e até eficaz, pois é viável estabe- Estas indagações, e muitas outras que se pode formular, dão boa
lecer com alguma dose de precisão o montante do dano experimentado, mostra de como a via reparatória, não raro, mostra-se inábil a efetivamen-
bastando, para isso, comparar-se quanto o titular da preferência preci- te recolocar a parte lesada na posição que deveria ocupar, se não tivesse
sou desembolsar para adquirir, fora do campo da preferência, um bem havido o incumprimento absoluto do sujeito passivo (essa dificuldade,
essencialmente idêntico àquele objeto da prelação, de cuja aquisição te- cabe registrar, se manifesta de igual forma também nos casos de direito
nha sido preterido. Consoante leciona AGOSTINHO CARDOSO GUEDES, de preferência desprovidos de eficácia real, mas que tenham sido por-
"sempre que esteja em causa uma coisa fungível, o preferente deverá ser in- ventura violados com o concurso de um terceiro de boa-fé). Afinal, qua-
demnizado do eventual sacrifício patrimonial em que incorreu par adqui- se sempre que se esteja diante da violação a direito de preferência que
rir um bem idêntico. Por exemplo, se a preferência dizia respeito à venda de tenha por objeto um bem infungível, será necessário supor que, para fa-
um lote de acções cotadas em bolsa por um preço de 100, e se, na sequência do zer jus à reparação, o sujeito ativo deverá necessariamente adquirir bem
incumprimento definitivo do sujeito passivo, o preferente teve de pagar 11 O diverso daquele sobre o qual recaía uma justa expectativa de aquisição,
para comprar um lote idêntico no mercado, o lesado terá direito a uma inde- para então pleitear, sob a rubrica das perdas e danos, eventuais "diferen-
mnização de 10". 42 ças" incidentes sobre bens e situações já, por si, muito díspares (do con-
Mas, e quando se esteja diante de bem infungível, como apurar trário, não caberia o pedido de reparação). 46 Caso o preferente preterido
esse dano Qá que dificilmente conseguirá o preferente adquirir um bem decida por não fazer tal aquisição - não é porque porventura lhe inte-
equivalente àquele cuja aquisição lhe foi impossibilitada pelo incumpri- ressasse adquirir o bem objeto da preferência que ele estará disposto a
mento)?Tomando por base o exemplo que inaugura este capítulo, teria a adquirir todo e qualquer bem do mesmo gênero-, será defensável su-
empresa ''N.' condições práticas de adquirir, em curto espaço de tempo, 43 por que não terá ele sofrido qualquer dano efetivo, que não a perda da
um outro imóvel que reunisse todas as condições necessárias a abrigar o oportunidade de efetivar uma aquisição de seu eventual interesse (um
seu fundo de comércio, que não pode mais ser exercido naquele "ponto" dano claramente hipotético, ou, se tanto, de trabalhosa quantificação). 47
alienado indevidamente por "B" a "Y"? Pouco provável. E o pior, como encontrava sem o dano sofrido" (Programa de responsabilidade cívil, 11ª ed. São Paulo: Atlas,
calcular as eventuais diferenças de preços entre os dois bens, ante a pre- 2014, p. 153).
45 "A dificuldade do preferente está na comprovação da existência de prejuízo concreto, efetivo.
sumível dessemelhança entre eles, a impossibilitar o estabelecimento de Os negócios geralmente são feitos pelo preço de mercado, pelo maior preço encontrado pelo
vendedor, não sendo fácil ao preferente demonstrar que a venda para terceiro lhe foi danosa.
parâmetros de comparação perfeitos, ou minimamente cotejáveis?44 A Só circunstâncias peculiares poderão indicar prejuízo efetivo. Apenas na hipótese - muito
rara - de o valor do preço preferencial já ter sido ajustado no ato da venda primitiva (art. 515,
legítima expectativa de reaver o bem.(... ) Efetivamente, apenas desta forma, autorizando-se a final) é que essa prova pode ficar mais fácil, bastando demonstrar a diferença e menor entre
tutela específica mediante a adjudicação do bem, é que se possibilitará o sonho constitucional o valor ajustado inicialmente e o valor da venda para o terceiro" (JosÉ OsóR10 DE AZEVEDO JúNIOR,
de acesso à ordem jurídica justa, sendo necessário afastar-se a interpretação literal do artigo Compra e venda, troco ou permuta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 103).
518, conjugando a necessária leitura sistemática, para se concluir que as perdas e danos na Como esclarece Ivo WAISBERG, "... na hipótese de conluio do terceiro com o outorgante ou de
regra prevista, devem somar-se à possibilidade conferida ao vendedor de reavera bem alienado ciência inequívoca do terceiro quanto à preferência, é possível que a ação ressarcitória, no
a terceiro em desrespeito à primazia deste, desde que demonstre que o último teve ciência caso da preempção para a aquisição de ações, culmine com a entrega das ações ao outorgado,
da existência da cláusula de preferência." (Do pacto de preferência no contrato de compra e pois obedecendo ao princípio da boa-fé objetiva, e da reparação integral do dano, a reversão
venda: direito pessoal ou obrigação com eficácia real? Introdução critico ao Código Cívil/ org.: do contrato é a única medida possível de ressarcira outorgado, dado que a gama de interesses
Lucas Abreu Barroso. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 395/396). econômicos, que inclui o poder societário, jamais seria integralmente ressarcida de outra
42 Op. cit., p 598. forma, mesmo pecuniariamente." (Direito de preferência ... , cit., p. 81)
43 "A" poderia estar premida pelo prazo de 90 dias para desocupação do imóvel, previsto no art. 47 Advogan_do no sentido da inexistência de perda indenizável em situações como a descrita no
8° da Lei nº 8.245/91. texto, V. ALVARO VILLAÇAAZEVEDO e ROGÉRIO LAURIA Tucc1, em parecer intitulado "Lei do inquilinato.
44 Srnc10 CAVALIERI leciona que "a indenização pecuniária deve ser medida pela diferença entre Exercício do direito de preferência e de apuração de perdas e danos, em virtude de preterição"
a situação real em que o ato ilícito deixou o patrimônio do lesado e a situação em que ele se (RT, São Paulo: Revista dos Tribunais, maio 1981, v. 547, p. 35/36, apud CARLA WAINER CHALRÉO
GUSTAVO BIRENBAUM - 669
668 - INSUFICIÊNCIA DO RECURSO ÀS PERDAS E DANOS EM CASO DE VIOLAÇÃO A DIREITO DE •••

E assim, um ato antijurídico praticado pelo sujeito passivo, em eventual Em ambas essas situações - publicidade registral ou publicidade
conluio com o terceiro, poderá eventualmente passar livre de maiores re- "legal", por assim dizer - o terceiro que contrata com o sujeito passivo
primendas pelo sistema. Cria-se, com isso, um odioso incentivo ao des- a alienação de um bem sobre o qual recai um direito de preferência não
cumprimento do pactuado. Afinal, à mingua de demonstração de efetivo poderá invocar, em seu favor, o desconhecimento da existência de tal
decréscimo patrimonial, requisito de procedência de qualquer demanda direito e, portanto, sujeitar-se-á ao risco de ver a alienação desfeita em
reparatória, a "reparação dos danos" titulada pelo preferente mostra-se benefício do titular da preferência, se este assim o desejar e desde que
um remédio de reduzida serventia. Mas isso não significa, e nem pode preenchidos certos requisitos. A pedra de toque desta eficácia externa da
significar a nosso ver, que o ato antijurídico, especialmente quando rea- preferência, que transcende às partes contratantes e supera o postulado
lizado com conhecimento do terceiro, não seja passível de expurgo, em da força relativa dos contratos, reside na ciência (efetiva ou presumida)
benefício do preferente lesado. do terceiro quanto à existência da relação prelatícia.
Entendemos que, em benefício da estabilidade de situações jurídi-
5. EM DEFESA DA AMPLIAÇÃO DAS HIPÓTESES DE
cas validamente constituídas e também em razão da pouca serventia
EFICÁCIA EXTERNA do recurso à via reparatória quando o objeto da preferência recaia sobre
A justificativa para a atribuição de eficácia real, ou eficácia externa, bens infungíveis (maioria das situações)-, essa ciência presumida deveria
a certos direitos de preferência decorre da presumida ciência do terceiro, ser ampliada, e mecanismos relativamente singelos não faltam para isso.
por força de lei, quanto à existência da relação prelatícia.48 Essa presunção Como ponto de partida, convém considerar que, na relação prela-
de conhecimento do terceiro pode advir tanto de publicidade registral tícia, a figura do terceiro desempenha papel de significativo destaque.
(como é o caso do art. 33 da Lei de Locações, no ponto em que condi- Afinal, geralmente é um ato volitivo desse terceiro, consistente em en-
ciona a eficácia externa à averbação do contrato na matrícula do imó- gajar-se em um projeto contratual com o sujeito passivo, que dispara
vel), quanto da própria natureza da relação jurídica em que se inserem toda a gama de poderes e direitos creditícios do sujeito ativo e equiva-
certas preferências de origem legal (como são os casos da coproprieda- lentes sujeições do sujeito passivo. 49 Vale dizer: o terceiro pode até não
de de bem indiviso, ou da cessão de direitos hereditários, disciplinados manter uma relação direta com o sujeito ativo, mas é induvidoso que
nos arts. 504 e 1.795, respectivamente, do Código Civil). mantém com o sujeito passivo uma relação em princípio bilateral, mas
que, à luz de algumas circunstâncias, pode vir a ser marcada por certa
LGow, op. cit., p. 141): "Por não terem [os autores] pago qualquer importância a esta [ré] não transindividualidade. 50
ficaram aqueles privados de seu capital [...] tendo podido, portanto, aplica-lo onde 'bem
entendessem ... [... ]. Os demandantes só teriam deixado de lucrara valorfixado no ato decisório Apenas essa circunstância peculiar, própria da relação prelatícia, já
sob cogitação e análise crítica se tivessem sido obstados de utilizar o dinheiro destinado à torna bastante questionável, nesse âmbito, uma aplicação excessivamente
negociação programada na aquisição de outros bens; se tivessem ficado com esse dinheiro
retido inde~idamente; ou, ainda, se tivessem pago qualquer soma à demandada, de sorte a vê- restritiva do princípio da relatividade dos direitos de crédito.
la desvalorizada, dada a falta de obtenção dos objetos adquiridos. Por outras palavras, o casal
(... ) nada ~erde~ ou deixou de lucrar[ ...]. Se não h_ouve prejuízo, obviamente não se pode falar Veja-se que, na Itália e em Portugal, todos os direitos de preferên-
em repa~a-lo .... AGOSTINHO CARDOSO GumEs (op. c1t., p. 591) alude, genericamente, a "perda de
?Pºr~um?~d_e para cel~brarcerto contrato". A verdade é que, mesmo existente eventual perda,
cia previstos em diplomas legais são dotados da chamada eficácia real,
e muito d1f1c1l mensura-la. CARLA WAINER CHALREO LGow (op., cit., loc. cit.) indica indiretamente a
ideia da diferença entre as situações experimentadas por terceiro e preferente lesado. Ébem
49 "A operação de preferência, como se observa, tem necessariamente um caráter tripartite,
possível, porém, que essa diferença seja diminuta, ou até tenda a zero em certos casos. Fato é
pois supõe uma competição ou rivalidade na aquisição das quotas ideais do cedente entre
que, no m~is das vezes, ela será imponderável no momento do ajuizamento de eventual ação,
o que obviamente afugenta a parte lesada a buscar a devida reparação. as partes beneficiárias da prelação, à vista da proposta de terceiro, funcionando essa relação
triangular como uma verdadeira 'técnica de evicção' para uma das partes." (Luiz GASTÃO PAES DE
Tratando especificamente da eficácia externa de pactos de preferência inseridos em acordos
de acionistas averbados na sede da companhia, e portanto dotados de publicidade, leciona BARROS LEÃES, op., cit., p. 60, item 3.3).
MARIA ISABEL ALMEIDA DE ALVARENGA: "O terceiro adquirente não pode alegar desconhecimento 50 "Sendo o contrato não apenas um acordo jurídico, mas também um fato social, compreende-
do pacto de preferência (... ) cujos termos estejam averbados nos livros societários e nos se que enseje o nascimento de situações jurídicas novas que podem prejudicar terceiros ou
certificados de ações, ambos dotados de publicidade e de eficácia perante terceiros. A ciência dar-lhes vantagens. Por isso, embora o contrato não 'obrigue' terceiros, as partes podem opor
presumida da existência do direito de preferência o descaracteriza como terceiro de boa-fé .. ." seus direitos a terceiros e estes têm o dever de respeitar os direitos dos contratantes." (JuDJTH
(Direito de preferência para a aquisição deaçães. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito MARTINS-COSTA, Reflexões sobre o princípio da função social dos contratos. Revista Direito CV.
Universidade de São Paulo, 2001, p. 218, apud CARLA WAJNER CHALREO LGow, op. cit., p. 180) ' São Paulo: Maio, 2005, v. 1, p. 56)
670 - INSUFICIÊNCIA DO RECURSO ÀS PERDAS E DANOS EM CASO DE VIOU\ÇÃO A DIREITO DE •.. GU5fAVO BIRENBAUM - 671

por força de lei. 51 Dessa maneira, nessas jurisdições basta que a prefe- do legislador, no sentido de estabelecer, do ponto de vista axiológico ou
rência esteja prevista em lei para que toda e qualquer alienação eventu- de política legislativa, que alguns direitos de preferência deveriam ser
almente pactuada entre sujeito passivo e terceiro, em violação ao direito dotados de uma tutela mais eficaz do que outros. Ontologicamente, em
do sujeito ativo, seja ineficaz em relação a este último, que poderá "haver se tratando de relações puramente privadas, 53 essa assimetria de trata-
para si" o bem indevidamente alienado, mediante pagamento do preço e mento legal não parece ter justificativa adequada. 54
desde que o reclame em certo prazo (de natureza decadencial). Atente- Logo, nada impediria, como solução de lege ferenda, atribuir-se ex-
se que a lei, nesses casos, não cede espaço para discussões quanto à efe- pressamente eficácia real também àqueles direitos de preferência que,
tiva ciência do terceiro. Esse dado é irrelevante para o estabelecimento em razão de aparente desmazelo legislativo, não ostentam atualmente
da eficácia externa da preferência de origem legal. Nesses sistemas, pa- esse predicado (o caso da preferência na relação superficiária é um exem-
rece haver o pressuposto de que, apenas por serem previstos em lei, tais plo representativo dessa incoerência, que se pretendeu sanar por meio
direitos de preferência já gozam de uma dose de publicidade suficiente- do Enunciado 510, da V Jornada de Direito Civil, referido na nota 20).
mente apta a afastar qualquer alegação de boa-fé (no sentido subjetivo) Já quando se está diante de preferências criadas pela autonomia da
do terceiro que venha a contratar com o sujeito passivo em desrespeito vontade das partes (os chamados pactos de preferência), os desafios para
à preferência do sujeito ativo. conferir-lhes eficácia externa são de outra ordem, embora perfeitamente
Esta opção legislativa, a nosso ver, não seria incompatível com as superáveis por meio de mecanismos há muito conhecidos. Referimo-nos,
características atuais do sistema brasileiro - tanto que, aqui, uma grande aqui, aos registros públicos, cuja principal vocação (além da conservação
parcela de direitos de preferência de origem legal já possui essa qualida- de documentos) é a de conferir publicidade a terceiros acerca de deter-
de. Ocorre que o nosso atual panorama legislativo sobre o tema parece minadas situações jurídicas.
ter ficado a meio caminho dos ordenamentos português e italiano, pois A título de· exemplo, o art. 421 ° do Código Civil luso permite que
não são todos os direitos de preferência de origem legal que se revestem as partes atribuam, mediante acordo de vontades, eficácia real a pactos
de eficácia real. Servem de exemplo desta aparente inconsistência do de preferência relacionados a bens imóveis ou a móveis sujeitos a regis-
nosso sistema a previsão legal de preferência em favor do superficiário tro.55 Conquanto não exista no Brasil um dispositivo de idêntica inspira-
e do proprietário do solo (Código Civil, art. 1.373), claramente omissa ção, nada impede que as partes, no exercício de sua autonomia negocial,
em atribuir eficácia real às situações jurídicas ali descritas, ou mesmo o já criem ferramentas capazes de conferir eficácia externa a um pacto de
criticado art. 518 do mesmo código, em sua parte final, quando limita-se preferência que não seja dotado desta qualidade, inclusive se o bem ob-
a prever a responsabilização solidária em perdas e danos do terceiro que jeto do pacto não for imóvel ou móvel sujeito a registro.
contribui, de forma consciente, com o incumprimento do sujeito passi- Há, de fato, uma enorme gama de direitos de preferência pactuados
vo em caso de pacto de preempção adjeto à compra e venda, ao invés de em contratos, típicos ou atípicos, que se distanciam dos modelos para
permitir o desfazimento da alienação, mediante depósito do preço pelo os quais· a lei cria direitos de preferência dotados de eficácia real (v.g.,
preferente preterido. Nesta hipótese em particular, mesmo em caso de ci- preferência para aquisição de propriedades imateriais, como direito au-
ência inequívoca do terceiro, o pacto de preempção, na literalidade do art. toral ou patente de invenção, preferência em caso de alienação de par-
518 do Código Civil, carece de eficácia externa. 52 ticipação em contratos de operação conjunta de blocos exploratórios de
Não nos parece, salvo melhor juízo, que essa aparente contradição 53 O "direito de preempção" previsto no Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01), em benefício da
interna verificada em nosso sistema se deva a uma opção premeditada municipalidade, possui outros contornos, que não são objeto deste artigo, cabendo apenas
ressaltar que, quando violado, a lei outorga como remédio a "nulidade de pleno direito" do
negócio de alienação (art. 27, § 5°), e não sua ineficácia frente ao Município.
54 MARcosJoRGE CATALAN (op. cit., p. 395) indica, quanto ao 518 do Código Civil atual, uma aparente
51 Ivo WAISBERG, Direito de preferência..., cit, p. 75.
repetição irrefletida da norma equivalente que vigia no código anterior.
52 Curioso observar que, no Código de Processo Civil de 1939, seu art.313 previa que "[a]lienada a
55 "O direito de preferência pode, por convenção das partes, gozar de eficácia real se, respeitando
coisa, terá o preferente ação para exigi-la do terceiro que a houver adquirido, ou para reclamar
a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, forem observados os requisitos de forma e de
a indenização correspondente." Ou seja, cabia ao preferente escolher entre reivindicara coisa
publicidade exigidos no artigo 413°."
alienada ou contentar-se com "indenização correspondente".
GUSTAVO 81RENBAUM - 673
672 - INSUFICIÊNCIA DO RECURSO ÀS PERDAS E DANOS EM CASO DE VIOLAÇÃO A DIREll:O DE •..

petróleo e gás, preferência para aquisição de cotas em fundos de inves- Documentos há de ~er apta ~ criar a eficácia externa de que tal pacto em
regra se ressente, pois, a partir do registro, terceiros estranhos ao víncu-
timentos, entre muitos outros). lo não_ poderão invocar desconhecimento de sua existência.58 Ali,as, essa
Nada impede que esses direitos, em princípio passíveis de livre alie-
soluçao p~de ser empregada também para direitos de preferência cria-
nação e não necessariamente sujeitos a um registro específico, possam dos por lei, mas que carecem de eficácia externa expressamente previs-
ser "gravados" com cláusula de preferência. E nada impede, também, que ta, ~orno se passa com o art. 1.3 73 do Código Civil. Na essência, a ideia
tal preferência possa ser dotada de eficácia externa, desde que o aludido aqru propugnada não discrepa, em termos estruturais e funcionais da
"gravame" conste de algum registro público - solução que, como se verá
atri?uiçã~-~e- eficácia externa ao contrato de locação averbado no re~is-
adiante, já ocorre com as preferências previstas em acordos de acionis- tro imobiliar10, na forma do art. 33 da lei de regência.
tas averbados na sede da companhia, ou mesmo com as locações aver-
A _corrob~ra_r a ~alidade desta proposta - de que a mera transcrição
badas na matrícula do imóvel objeto do ajuste.
e~ registro publico e capaz de conferir eficácia externa à preferência -
A Lei nº 6.015/73 estatui em seu art. 127, inc.1, que, no ''Registro
veJa-Se
. . . a evolução . legislativa
. iniciada com a Lei nº 10.303/2001 , que
de Títulos e Documentos será feita a transcrição (. . .) dos instrumentos par-
mstltum mecarusmos simples e eficazes de eficácia externa de todas e
ticulares, para a prova das obrigações convencionais de qualquer valor". O
quaisquer disposições de acordos de acionistas, por expressa disposição
parágrafo único desse mesmo artigo cria uma espécie de "competência
do §1° do ~t. 11~ da Lei nº 6.404/76. A condição para tanto: o pac-
residual" ao Registro de Títulos e Documentos, ao acrescentar que ca-
~o parasso~ial precisa estar arquivado na sede da companhia e averbado
berá a eles "... a realização de quaisquer registros não atribuídos expressa-
JUnto aos liv~os de re~istrns e certificados de ações, se emitidos (ou seja,
mente a outro ofício". desde que hap mecarusmos capazes de conferir publicidade ao acordo). 59
Evidentemente, o interesse jurídico em fazer "prova das obrigações
, . Com efeito, essa i~ovação (em acréscimo aos termos do parágrafo
convencionais", via registro público, só pode ter por finalidade cientifi- u?1co do art. 40 da Lei nº 6.404/76 60 ) foi introduzida na lei acionária
car terceiros não contratantes acerca dessas mesmas obrigações conven- dian~e da constatação de que o recurso às perdas e danos, genericamente
cionais. Afinal, o instrumento particular, se não registrado, já vincula as
refend_o no ~t. l.05~ do Código Civil de 1916 e até então adotado pare
partes signatárias, por força dos princípios da força vinculante e da re- remediar a mexecuçao de acordos de acionistas, simplesmente não era
latividade dos contratos. capaz de re~ompor ~e modo satisfatório a esfera de interesses da parte
Já se viu que a preferência não cria propriamente um direito real em lesada pelo mcumpnmento de obrigações de fazer ou de não fazer co-
favor do outorgado. 56 Ainda assim, seja qual for a corrente que se adote mumente encontradas em acordos de acionistas, como é o caso do direito
sobre a sua natureza jurídica, da preferência resultam, indiscutivelmen- de preferência em caso de alienações de ações vinculadas a tais acordos. 61
te, "obrigações convencionais" (para usar os termos da Lei nº 6.015/73), De fato, como se resolver em perdas e danos, v.g., o descumprimento da
dirigidas, sobretudo, ao sujeito passivo. Afinal, desde o momento inicial 58 Lecion_a WALTER CENEVIVA que, "[e]mbora o art. 127 omita a finalidade de surti refeitos em rela ão
da instituição de uma relação prelatícia, há certas barreiras, no mínimo a te;.c:1r.os, enc_ontrada no art. 189, tal objeto resulta das garantias de autenticidade segura~ça
eL e_~acia ~revista~ n? art.1.º da LRP, apenas excluindo a permissão facultativa do,inciso VII"
ditadas pela boa-fé objetiva,57 que impedem o outorgante de exercer, ( e1 as registros pu?/Jcos ~an:ientada, 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 686/68 7 ) ·
com plena liberdade, o poder de disposição do bem objeto da preferên- 59 Nos ter~os do ~ar_agrafo umco do art. 103 da Lei das S.A., os registros societários equiparam-se
aos registros publicas.
cia. Essa limitação, portanto, uma vez registrada, torna-se (presumida- 60 "Ar~. 40. O usufruto, o fideicomisso, a alienação fiduciária em garantia e quaisquer cláusulas
ou o nus que gravare1;1 a ação deverão ser averbados:( ... ) Parágrafo único. Mediante averbação
mente) conhecida de quaisquer terceiros que almejem contratar com o n?s term?s ?este ar_t1go, a promessa de venda da ação e o direito de preferência à sua aquisição
sujeito passivo a aquisição do bem objeto da preferência. 61
soo oponive1s a terceiros.
~~n~ém diferenc!ar~ preferência usualmente inserida em acordos de acionistas do chamado
Dessa forma, a transcrição de um pacto de preferência - incida te1to ~e prefe~enc1a" para:ubscrição de _ações, de que trata o art. 171 da Lei nº 6. 404176 ("Na
p _oporçao do numero de açoes que possrnrem, os acionistas terão preferência para a subscri-
ele, ou não, sobre bens passíveis de registro - no Registro de Títulos e çao do aumento de capital"). A rigor não se trata exatamente de um direito de preferência (eis
que ausente um~ ~o~petição entre o titular e um terceiro), mas de uma opção de aderir a uma
56 Cfr. nota 24, acima. proposta de aqu1s1çao, fruto da deliberação assemblear. Nesse sentido, com apoio em lições
57 Ivo WAISBERG, Direito de preferência... , cit., p. 60/61.
674 - INSUFICIÊNCIA DO RECURSO ÀS PERDAS E DANOS EM CASO DE VIOLAÇÃO A DIREITO DE ••• GUSTAVO BIRENBAUM - 675

obrigação de proferir voto em assembleia geral em determinado senti- cisará ser declarada judicialmente (com efeitos ex tunc), 67 dando origem
do previsto em acordo de acionistas?62 Com isso, e diante da tendência a uma execução específica (e não a perdas e danos) da obrigação do ou-
iniciada com o advento da Lei nº 8.952/94, 63 e que prosseguiu com o torgante de contratar com o outorgado nas mesmas bases em que con-
art. 475 do Código Civil64, busca-se dar primazia à execução específica tratara com o terceiro (que não poderá ser qualificado como de boa-fé),
das obrigações presentes em pactos parassociais, em detrimento da via mediante depósito do preço e desde que o faça no prazo legal, ou no
reparatória, claramente incapaz de proteger de forma adequada os inte- prazo convencional, conforme o caso. Além disso, considerando que o
resses do contratante não faltoso. 65 bem já esteja no domínio (indevido) do terceiro, será necessário reavê-
Toda essa linha de raciocínio é, a nosso ver, transplantável para o -lo (o bem) e, ainda, desconstituir eventual registro efetivado em nome
regime dos direitos de preferência que não sejam dotados, em princípio, do terceiro. 68 Por essas razões, o terceiro é necessariamente parte legiti-
de eficácia real, mas que possam vir a receber essa qualidade, mediante mada para figurar no polo passivo da relação processual desta ação (que
o emprego de mecanismos que confiram publicidade a eles. A transcri- possui, a nosso ver, natureza hfürida, pois reúne elementos de ação pes-
ção de tais convenções prelatícias em Registro de Títulos e Documentos soal, na relação entre sujeito ativo e sujeito passivo, junto com elemen-
parece-nos suficiente para tal finalidade. tos de ação reipersecutória, na relação entre sujeito ativo e terceiro, além
Presente a eficácia externa da preferência, por meio de registro, a de um traço desconstitutivo frente a eventual registro de transferência
violação protagonizada entre sujeito passivo e terceiro, de que resulte de domínio ao terceiro).
efetiva alienação do bem objeto da preferência, será ineficaz em relação Evidentemente, a solução aqui proposta tem também suas desvan-
ao preferente. Veja-se que o direito do preferente se opera no campo da tagens, mas acreditamos que elas não chegam a superar as vantagens
eficácia, e não da validade do negócio porventura realizado entre sujeito deste modelo, notadamente em razão dos relevantes valores que, regra
passivo e terceiro. 66 Essa ineficácia, contudo, se já alienado o bem, pre- geral, o direito de preferência busca tutelar. 69
Dir-se-á, com razão, que a propagação de pactos de preferência,
de Pontes de Miranda e de Fábio Konder Comparato, Lu1s ALBERTO CoLONNA RosMAN (Direito dos porventura dotados de uma eficácia real somente apurável mediante
companhias. Lamy Filho, Alfredo et oi. (coord.) Rio de Janeiro: Forense, 2009,,,P.· :4_24) ..
Essa realidade não passou despercebida a JosÉ ALEXANDRE TAVARES GuERRE1Ro: E l!CJto dizer-se consulta a registros cartorários, aumentaria os custos de transação da-
62
que a equivalência indenizatória pode s'.? admiti?ª• em tese, como meio ~e reco~p_or o queles que porventura se interessem na aquisição de determinado bem,
equilíbrio entre as partes. Mas, com ela, ~ao se realiza a vonta?e ~ontratual, nao se atm~mdo
o fim objetivado pelas partes ao conclu1rem o acordo de ac1onist~s. Este te~ por objeto_ a além de retardar a agilidade de tais operações. Afinal, ausente essa con-
valorização de situações patrimoniais e políticas, no contexto da sociedade anonima, que nao
se restauram nem se recompõem através das indenizações por perdas e danos, consequentes
sulta, o terceiro assumiria o risco de ver a aquisição desfeita, por força
ao rompimento do acordo" (Execução específica do acord_o de acio~istas._Re_visto de Direito de sua ineficácia frente ao sujeito ativo (ao terceiro não seria dado in-
Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Revista dos Tr1buna1s, Jan./mar. 1981,
V. 41, p. 51, opud CARLA WAINER CHALRÉO LGOW, º~· ~it., p. 180). . . " - vocar em seu favor a boa-fé). 70 Ocorre que, a nosso ver, esse é um custo
Que deu a seguinte redação ao art. 461 ao Cod1go de Proc~sso Civil: . A_rt. 461. Na a_çao que
tenha por objeto o cumprimento de obrigação ~e fazer ou n_ao f~zer, ~ J~IZ ~oncedera a tutela MENEZES CORDEIRO (Direito das obrigações. Lisboa: Associação Académica da Faculdade de Direito
específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinara prov1denc1as que assegurem de Lisboa, 1980, v. 1, p. 496, apud CARLA WA1NER CHALREO LGow, op. cit., p. 13
o resultado prático equivalente ao do adimplemento. 67 Cfr. PINTO LouREIRO.lvlanual dos direitos de preferência. Coimbra: 1944, v.2., p. 273, apud AGOSTINHO
§ 1o A obrigação somente se conver~erá em perdas e d~n_os se o autor o reque,;er ou se impos- CARDOSO GUEDES, op. cit., p. 616.
sível a tutela específica ou a obtençao do resultado prat1c~ correspon~ente. (... ) _ 68 Recorde-se que, no Brasil, ao contrário do que ocorre em outras jurisdições, a transferência do
"Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode ped1r a resolu~ao d~ co~trato, se nao domínio não se dá por meio da simples celebração do negócio jurídico translativo de direitos,
preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, mdenizaçao por perdas mas apenas mediante o registro do título translativo, para bens imóveis, e mediante a tradição
e danos." da coisa, para os móveis (Código Civil, arts. 1.245 e 1.267, respectivamente).
65 O§ 8º do art. 118 da Lei nº 6.404/76 cria um mecanismo poderoso de eficácia do acordo de 69 Cfr. nota nº 2 deste artigo.
acionistas, ao estatuirque "[o] presidente da assembleia ou do órgão colegiado de deli?er~ção 70 Ivo WAISBERG pontua que "o racional da atribuição de eficácia real somente em caso de imóveis
da companhia não computará o voto proferido com infração de acordo de acionistas ou bens sujeitos a registro (conforme dispõe a lei portuguesa) é bem descrito por Ana Prata
devidamente arquivado". _ .. como tendo por base a proteção do terceiro de boa-fé que tem a ignorância desculpável da
66 De fato, o negócio veiculado entre outorgante e terceiro, em regra, nao se ressente d_e v1c1os existência da obrigação e que pode ser prejudicado pelos efeitos do contrato( ... ). Pois bem, a
de validade, embora haja autores que vislumbrem, em certos casos extremos de conluio entre prova da ciência inequívoca da obrigação retira de qualquer terceiro tanto a boa-fé quanto a
terceiro e outorgante, a invalidade por ilicitude de objeto, ou ilicitude causal, ~u mesmo p_or alegação de ignorância ..." (Direito de preferência..., cit. p. 81). Em sentido diametralmente oposto,
dolo. Nesse sentido, respectivamente, MANUEL IGNACIO FEuu REY (EI tanteo convenc10nal. Madnd: parecendo partir do pressuposto de que as preferências legais constituiriam um direito real (o
Editorial Aranzadi, 1997, p. 155 apud Ivo WAISBERG, Direito de preferência ... , cit., p. 78), e ANTÓNIO que não é exato), posicionam-se GUSTAVO TEPEDINO, CARLOS NELSON KONDER e PAULA GRECO BANDEIRA:
676 - INSUFICIÊNCIA DO RECURSO ÀS PERDAS E DANOS EM CASO DE VIOLAÇÃO A DIREITO DE •.. GUSTAVO BIRENBAUM - 677

marginal, mormente quando se trata de adquirir bens de valor mais ex- vez mais, também no fértil ramo dos direitos de preferência, prestigiar
pressivo, assim como o tempo eventualmente consumido com a consul- os meios que habilitem o contratante não faltoso a obter uma tutela de
ta não deve ser apto a comprometer a aquisição, caso se esteja diante de interesses que mais se aproxime da execução in natura do pactuado.
uma operação mais complexa. Obviamente, não se está a defender (até
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
mesmo em função do custo para transcrição em registro) a necessidade
de atribuir-se eficácia real a uma singela preferência sobre bem de me- ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 3ª ed. atual. Rio de
Janeiro: Editora Jurídica e Universitária Ltda., 1949.
nor expressão econômica.
AzEVEDO JúNIOR,José Osório de. Compra e venda, troca ou permuta. São Paulo: Revista
Apenas a título de exemplo, qualquer pessoa que almeje adquirir dos Tribunais, 2005.
o domínio de propriedade imobiliária no Brasil já se vê compelida, sob BANDEIRA, Paula Greco; KoNDER, Carlos Nelson; TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos
pena do ônus de ter sua boa-fé comprometida, a realizar detalhada pes- do direito civil- Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2019, v. 3.
quisa cartorária, tanto em relação à pessoa do(a) alienante quanto em BuFULIN, Augusto Passamani. Breves notas sobre o direito de preferência na locação
relação ao bem objeto de aquisição. No modelo aqui proposto, have- de imóveis urbanos (Lei 8.245/1991). Revista de Direito Privado (versão online).
ria o acréscimo de apenas uma ou duas pesquisas a mais, realizadas no vol. 53/2013.Jan-Mar/2013. p.101/119.
Registro de Títulos e Documentos do domicílio das partes contratantes CATALAN, Marcos Jorge. Do pacto de preferência no contrato de compra e venda:
71 direito pessoal ou obrigação com eficácia real? Introdução crítica ao Código Civil
da preferência (se forem çliversos, a teor do art.130 da Lei nº 6.015/73).
(org.: Lucas Abreu Barroso). Rio de Janeiro: Forense, 2006.
Frente aos riscos que se pode obviar com tal pesquisa, parece-nos que
CAVALIERI, Sergio. Programa de responsabilidade civil, 11 ª ed. São Paulo: Atlas, 2014.
ela continua sendo vantajosa, especialmente, repita-se, quando se tratar
CENEVIVA, Walter. Lei dosregistros públicoscomentada, 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
de aquisição de bens de valor expressivo. Crnco, Carl J. Purchase Options, ROFRs, and ROFOs: Theory and Practice (January
Para além dessa questão financeira, como já exposto ao longo deste 2016).ACREL, Spring 2016. Disponível em <https://ssrn.com/abstract=2781802>.
artigo, busca-se com a presente proposta sobretudo evitar que, ao titular Consultado em 23/08/20.
da preferência que se vê diante de uma violação, reste apenas o remé- DASKAL, Bernard. Right offirst refasal and the package deal, 22 Fordham Urban Law
dio (de pouca serventia na maioria das vezes) das perdas e danos - ao Journal 461 (1995).
mesmo tempo em que se busca, em outra vertente, desestimular o in- GUEDES, Agostinho Cardoso. O exercício do direito de preferência. Porto: Publicações
Universidade Católica, 2006.
cumprimento do sujeito passivo, assim contribuindo para a estabilidade
LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Do direito de preferência nos condomínios.
dessas relações complexas. Pareceres. São Paulo: Editora Singular, 2004, V. 1.
Em conclusão, passados mais de 25 anos do advento da Lei nº LEI, Cheok Ian. A tutela do direito de preferência. Dissertação de Mestrado (Mestrado
8.952/94, que passou a conferir primazia à execução específica das obri- em Direito). Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, 2019.
gações de fazer ou não fazer em detrimento da via reparatória, vê-se que LGow, Carla Wainer Chalréo. Direito de preferência. São Paulo: Atlas, 2013., p. 215).
ainda existem, no código que agora alcança maioridade, resquícios de LôBo, Paulo Luiz Netto. Parte especial: das várias espécies de contratos. In: AzEVEDO,
um passado legislativo que se imaginava distante e superado. Esperamos Antônio Junqueira de (Coord.). Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva,
que este despretensioso artigo aponte para caminhos que permitam, cada 2003, V. 6.
MARTINs-CosTA,Judith. Reflexões sobre o princípio da função social dos contratos.
"Tal não ocorre, contudo, com o direito de preferência previsto no Código Civil ou em acordo São Paulo: Revista Direito GV, Maio 2005, v.l.
de acionistas registrado na sede da companhia, que não é dotado de eficácia real, por ausência
de previsão legal nesse sentido( ... ). Na hipótese d_o ~ireito de pr~fE;r~ncia, a sua oponibilida~e NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, v. 1.
frente a terceiros não quer significar que esse d1re1to tenha ef1cac1a real, o que dependeria PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Atualizado
de previsão legislativa expressa, como sói ocorrer c~m. os direitos ,re~is._ Na au~ê~:ia de
disposição específica, prevalece a natureza pessoal do d1re1to de preferenc1a, 1mposs1b1htando por Claudia Lima Marques. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012,
o desfazimento da venda com terceiros em violação à preferência." (Fundamentos do direito TomoXXXIX.
civil- Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2019, v. 3, p. 182/184).
"Art. 130. Dentro do prazo de vinte dias da data da sua assinatura pelas partes, todos os atos RosMAN, Luis Alberto Colonna. Direito das companhias. Lamy Filho, Alfredo et ai.
71
enumerados nos arts. 127 e 129, serão registrados no domicílio das partes contratantes e, quando (coord.) Rio de Janeiro: Forense, 2009.
residam estas em circunscrições territoriais diversas, far-se-á o registro em todas elas."
678 - INSUFICIÊNCIA DO RECURSO ÀS PERDAS E DANOS EM CASO DE VIOLAÇÃO A DIREITO OE •••
JOSÉ ROBERTO DE CASrRO NEVES - 679

STEINER, Renata Carlos. Interesse positivo e interesse negativo: a reparação de danos no


Direito Privado brasileiro. Tese de Doutorado. Faculdade de Direito, Universidade 11. RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL
de São Paulo, 2016.
WAISBERG, Ivo. Direito de preferência para a aquisições de ações. São Paulo: Qyartier José Roberto de Castro Neves 1
Latin, 2016.
___ . Direito de preferência na alienação de ações, In: Enciclopédia jurídica da PUC- 1. INTRODUÇÃO
-SP, Tomo 4 - Direito Comercial (coord.: Fabio Ulhoa Coelho e Marcus Elidius
Michelli de Almeida). São Paulo: 2018. Tudo começou com uma encomenda de charutos. Uma pessoa de-
WALKER, David I. Rethinking rights effirst refi1sal. Cambridge: Harvard Law School sejava adquirir um quarto de uma caixa de charuto, mas, por equívoco,
(August 1999), Discussion Paper No. 261. acabou por informar que iria comprar quatro caixas. As quatro caixas
de charuto foram enviadas, mas o autor da encomenda se recusou a re-
ceber a mercadoria, informando que sua vontade era a de obter apenas
um quarto de uma caixa.
O tema foi levado à atenção do jurista alemão RudolfVonJhering,
em meados do século XIX. Ele entendeu que havia um erro na mani-
festação da vontade do comprador. O negócio não seria válido, portan-
to, por um vício do conhecimento. Porém, o tema não estava encerrado.
Faltava identificar quem arcaria com as despesas do envio e de retorno
da mercadoria.
Jhering passou a estudar a situação e escreveu suas conclusões, pu-
blicando, em 1860, Culpa in Contrahendo ou Indenização por Contratos
Nulos ou não chegados à peifeição. O próprio Jhering, ao iniciar seu artigo,
advertia o leitor do ineditismo de sua tese. No seu artigo, reconhece que,
mesmo quando se anula um negócio, pode haver alguma responsabili-
dade por reparar danos, notadamente porque a invalidade pode frustrar
justas expectativas. Esses danos, embora não relacionados ao inadim-
plemento (pois o contrato ainda não se formou), merecem a atenção do
mundo jurídico e eventualmente ensejam o dever de indenizar.
A partir daí, passou-se a estudar essa forma de responsabilidade, que
existe independentemente da conclusão do contrato ou do reconheci-
mento de sua invalidade. Esse tema foi levado em consideração quando
da elaboração do Código Civil alemão de 1896 (BGB) e, entre outros,
o Código Civil português de 1966.
Nos países que adotam o modelo da Common Law, entretanto, a
responsabilidade das partes em função de negociações prévias não con-
tou com a mesma importância. Nesse modelo jurídico, a autonomia da
vontade possui maior força e a atuação do Estado nas relações privadas
Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Direito
pela Universidade de Cambridge, Inglaterra. Professor de Direito Civil da Pontifícia Universidade
Católica (PUC-Rio) e da Fundação Getúlio Vargas. Advogado.
680 - RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL JOSÉ ROBERTO DE CASTRO NEVES - 681

ocorre em situações excepcionais, em uma análise comparativa ao sis- princípio da autonomia privada que tem, como um dos seus
tema do Civil Law. consectários, a liberdade de não contratar. Porém a autonomia
privada não é um princípio monadário, antes convivendo com
Durante muito tempo, os juristas separavam, de forma bastante
outros princípios - nomeadamente, para o que aqui concerne,
hermética, a situação na qual havia um contrato formado - com a ine- a boa-fé e a probidade-, de modo que a licitude é tecida no
quívoca convergência das vontades dirigida à concretização do vínculo caso, resultando de uma rede de configurações englobante de
- dos demais casos, nos quais as vontades das partes não se encontravam elementos jurídicos e fáticos em que têm papel determinante o
plenamente em conformidade. Via-se a recusa de se contratar como a adequado preenchimento dos pressupostos da responsabilidade
emanação de um direito: o direito de não contratar. Logo, não concordar civil."3
com a celebração de um contrato seria algo lícito, pois, afinal, ninguém O grande salto nesse particular, contudo, decorre da importância
pode ser responsabilizado se age de acordo com um direito. atualmente dispensada ao respeito de valores éticos, devidamente re-
De outro lado, uma vez verificados os elementos da formação do fletidos no princípio da boa-fé objetiva. O ordenamento jurídico con-
contrato, reconhecia-se o feixe de direitos e deveres assumidos pelas par- temporâneo busca garantir que as partes guardem, na sua conduta, um
tes. Se, entretanto, o vínculo contratual não chegasse a se constituir, ha- comportamento leal e transparente, mesmo durante as negociações, a
via um limbo, um vácuo. Nenhum direito daí poderia surgir. Tratava-se fim de proteger essa justa expectativa. A violação a essa regra de condu-
de uma análise binária. Essa apreciação simplista começou a ser revista, ta leal, por si só, já representa um desvio suficiente para acarretar a res-
embora lentamente, com o referido estudo de Jhering. ponsabilidade pelos danos que o mal eventualmente causar.
Hoje, admite-se uma série de deveres que decorrem do mero fato de
2. Ü FUNDAMENTO LEGAL
se negociar um contrato, mesmo que essa negociação não termine com
a sua celebração. Examina-se o fenômeno sob a rubrica de "responsabi- O artigo 1.337 do Código Civil Italiano, ao cuidar da responsabi-
lidade pré-contratual" ou culpa in contrahendo, numa referência ao estu- lidade pré-contratual, encontrou uma feliz redação: "!e parti, nello svol-
do de Rudolf Von Jhering. 2 gimento dei/e trattative e nellaformazione dei contratto, devo no comportarsi
secondo buona fede". O mesmo se pode dizer do Código Português, se-
O caso de maior repercussão e frequência dessa responsabilidade
pré-contratual se relaciona ao término abrupto de uma negociação, antes gundo o qual, no artigo 227, 1, prevê que, "quem negoceia com outrem para
a conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação
da celebração do contrato, mas no qual uma das partes tinha convicção
dele, proceder segundo as regras de boa-fé, sob pena de responder pelos danos
de que o negócio seria concretizado e adotou uma série de medidas nesse
que culposamente causar à outra parte".
sentido. Essa frustração deve ser amparada pelo ordenamento jurídico?
Mais modernamente, desenvolveu-se uma profícua doutrina para Essa responsabilidade se funda, notadamente, no dever de atuar de
boa-fé, no sentido de que as partes devam guardar, na sua conduta, leal-
examinar essa responsabilidade pré-contratual e o tema ganhou constante
evidência. Em parte, essa evolução se dá pelo desenvolvimento do con- dade e transparência. Em outras palavras, as pessoas ficam responsáveis
pelo que cativam nas outras. Assim, se o comportamento das partes, na
ceito de abuso de direito, ou seja, mesmo nos casos nos quais se admita a
possibilidade de não contratar, esse exercício deve ocorrer de forma legí- fase das tratativas, incutiu na contraparte, de forma justificada, a noção
tima e esclarecida, sopesando as justas expectativas eventualmente cria- de que o negócio seria concretizado, pode haver responsabilidade se,
depois, ocorrer uma desistência sem maior explicação ou fundamento.
das por alguma das partes. Nessa esteira, conclui Judith Martins-Costa:
"Nessa sistematização alguns eixos devem ser considerados. No Direito brasileiro, não há um dispositivo legal específico tra-
Não devemos esquecer que a fase de negociações é regida pelo tando da responsabilidade pré-contratual. Nada havia sobre o assunto

2 Sobre o tema: FRITZ, Karina Nunes. A culpa in contrahendo no direito alemão: um contributo 3 MARTINS-COSTA, Judith. Um aspecto da obrigação de indenizar: notas para uma
para reflexões em torno da responsabilidade pré-contratual. ln: Revista de Direito Civil Sistematização dos deveres pré-negociais de proteção no Direito civil brasileiro. ln: Revista
Contemparâneo, v. 15/2018, Abr-Jun/2018, p. 161-207. dos Tribunais, v. 867/2008, Jan/2008, p. 11-51.
JOSÉ ROBERTO DE CASTRO NEVES - 683
682 - RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL

no Código Civil de 1916, embora Pontes de Miranda tenha defendido pré-contratual demandará a demonstração de culpa, ou seja, de que a
a responsabilidade pré-contratual como um reflexo de as pessoas atua- pessoa deixou de agir corretamente, afastando-se do padrão de condu-
rem com lealdade e honestidade nas tratativas: ta legitimamente esperado.
"( ... ) o que em verdade se passa é que todos os homens têm Durante muito tempo, discutiu-se qual seria a natureza dessa res-
de portar-se com honestidade e lealdade, conforme os usos do ponsabilidade pré-contratual. Embora houvesse a defesa de uma nature-
tráfico, pois daí resultam relações jurídicas de confiança, e não za contratual, ou mesmo de uma espécie híbrida, a corrente majoritária
só relações morais. O contrato não se elabora a súbitas, de modo apontou pela identificação da responsabilidade pré-contratual como de-
que só importe a conclusão, e a conclusão mesma supõe que corrente de um ilícito, ensejando a responsabilidade civil. 6
cada figurante conheça o que se vai receber ou o que vai dar. Esse reconhecimento da natureza aquiliana, além de outros aspec-
Q:µem se dirige a outrem, ou invita outrem a oferecer, expõe ao tos, tem importância para o fim de reconhecer o prazo prescricional para
público, capta a confiança indispensável aos tratos preliminares reclamar algum dano decorrente desse ilícito, que, por força do artigo
e à conclusão do contrato."4 206, § 3°, V, do Código Civil, é de três anos, contados do momento em
O amparo legal do tema entre nós - reconhecido sem maiores em- que ocorre a lesão.
pecilhos pela doutrina mais moderna - se funda na proteção à boa-fé
objetiva, numa recepção implícita por meio do artigo 422 do Código 3. ÜS ELEMENTOS DE SUA CONSTITUIÇÃO
Civil. Como se sabe, a boa-fé objetiva, no Direito contemporâneo, pos- O entendimento dominante é no sentido de que a configuração
sui três funções: como regra de interpretação, como limitação ao exercí- da responsabilidade pré-contratual pela imotivada ruptura das negocia-
cio de deveres jurídicos (notadamente relacionadas ao abuso de direito) ções depende da verificação dos seguintes fatos: (i) a efetiva existência
e, finalmente, como criadora de obrigações (ou deveres anexos). No que de negociações sérias; (ii) a certeza (ou razoável confiança) de que o ne-
se refere à responsabilidade pré-contratual, o princípio da boa-fé fun- gócio seria concluído; e (iii) o rompimento imotivado e surpreenden-
ciona como uma fonte de obrigações. te das tratativas.
O artigo 422 é largo. Tem enorme alcance. Diz a norma: "os contra-
J.1. A EXISTÊNCIA DE NEGOCIAÇÕES SÉRIAS
tantes são obrigados a guardm; assim na conclusão do contrato, como em sua
execução, os princípios de probidade e boa-fé'. Ao impor às partes o dever Cumpre ter presente que a responsabilidade pré-contratual terá lu-
de agir de acordo com os princípios da probidade e da boa-fé na con- gar quando as partes já iniciaram as tratativas visando a uma contrata-
clusão do contrato, cria-se uma obrigação, a quem quer que negocie, de ção, porém não concluíram as negociações. Se já tiverem formalizado
agir lealmente. 5 um contrato preliminar, o seu descumprimento acarretará o inadimple-
mento, examinado como tal pelo ordenamento jurídico, no âmbito da
Vale registrar que a redação original desse dispositivo, tal como cons-
responsabilidade contratual.
tava do Projeto de Lei nº 6.960/2002, falava expressamente que o dever
de atuar com boa-fé se relacionava também às "negociações prelimina- Como se disse, dentre os deveres impostos pela boa-fé, encontra-
res". O texto final, no entanto, suprimiu o termo, mas não o conceito. -se o de fornecer à outra parte as informações pertinentes. Não há mais
lugar para comportamentos "espertos" e sorrateiros em um mundo que
Essa obrigação de atuar de forma honesta, leal e transparente de-
elegeu prestigiar a ética. Qg.em negocia também deve expor à contra-
corre, como se vê, da determinação legal e, logo, quem violar a regra co-
mete um ilícito. Como ato ilícito, a responsabilidade que advirá da fase 6 Para Antonio Junqueira de Azevedo: "A responsabilidade pré-contratual, resultante de prejuízos
causados na primeira fase do processo contratual - fase pré-contratual-, embora resulte de
ato i_lícito, provem de descumprimento de dever específico imposto pela norma da boa-fé;
por isso, obedece às regras da responsabilidade contratual, antes que da responsabilidade
4 MIRANDA, Francisco Pontes de, Tratado de Direito Privado, vol. XXXVIII, Rio dejaneiro: Borsoi,
ex,tr~contratual" (JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antônio. Responsabilidade pré-contratual no
1962, p. 321. Cod1go de Defesa do Consumidor: estudo comparativo com a responsabilidade pré-contratual
5 Nesse sentido: FRITZ, Karina Nunes. A boa-fé objetiva e sua incidência na fase negocial: um no direito comum. Revista de Direito do Consumidor. n. 18. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996,
estudo comparado com base na doutrina alemã. ln: Revista de Direito Privado, v. 29/2007, Jan- p. 23-31).
Mar/2007, p. 201-237.
684 - RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL JOSÉ ROBERTO DE CASTRO NEVES - 685

parte as possíveis deficiências da prestação que pretende oferecer. São ística das situações, socorrendo-se ojulgador de todos os elementos disponíveis
esclarecimentos mínimos que podem evitar, no futuro, frustrações na e para o efeito relevantes, como a duração e o adiantamento das negociações,
entrega da prestação. a natureza e o objeto do negócio, os valores nele envolvidos, a qualidade dos
Assim, por exemplo, quem pretende alienar um automóvel deve contratantes e a sua conduta". 8
informar ao interessado que o carro, se for o caso, já sofreu uma coli- Deve-se levar em consideração, ainda, se as partes faziam ressalvas
são. Esse dever vale também para quem está adquirindo um bem e pos- de que as conversas que travavam tinham o propósito de coletar infor-
sui mais informações do que o vendedor. Imagine-se a situação de uma mações, a fim de fundamentar uma futura decisão negocial. Caso, entre-
pessoa que encontra um livro raríssimo, de enorme valor econômico, na tanto, permitiu-se dar a impressão, à contraparte, de que o negócio seria
posse de uma senhora, que ignora a importância de seu bem. Cabe ao concluído, essa expectativa passa a ter repercussão no mundo jurídico e
interessado na aquisição da obra rara dar à vendedora a noção do va- merece tutela. Como ensina Orlando Gomes, "se um dos interessados, por
lor do bem negociado. Caso contrário, estaria agindo de forma desleal, sua atitude, cria para o outro a expectativa de contratar, obrigando-o, inclu-
o que não se admite. sive, afazer despesas, sem qualquer motivo, põe termo às negociações, o outro
Cumpre, de toda sorte, registrar, como anota o professor da terá o direito de ser ressarcido dos danos que sofreu". 9
Universidade de Lisboa Dário Moura Vicente, "algum grau de malícia Não raro, uma pessoa negocia ao mesmo tempo com várias outras,
tem de ser tolerado nas negociações pré-contratuais". 7 Natural que o vende- com o mesmo propósito, com o intuito de verificar a melhor oferta. Esse
dor enalteça seu produto e o comprador desdenhe o que quer comprar. procedimento não é, por si, irregular, pois se compreende o desejo de
Isso, contudo, deve ser feito dentro da normalidade, das práticas do mer- avaliar possibilidades antes de celebrar o contrato. No entanto, isso deve
cado. O Direito não veda que alguém faça um bom negócio, ou obtenha ser feito sem gerar falsas expectativas, sob pena de restar configurada a
algum lucro em uma operação, desde que esse negócio jamais seja fonte responsabilidade pré-contratual.
de uma vantagem desmesurada. Um tema interessante e estudando pela doutrina é a punctação. Não
Por outro lado, cabe à parte se proteger minimamente. O interven- raro, as partes vão chegando gradualmente ao texto final, firmando, no
cionismo estatal definitivamente não deve atingir patamares a ponto de tempo, acordos parciais. Essa situação tende a ocorrer em negócios com-
o Estado ser uma "babá" do contratante e tratá-lo como um inimputá- plexos, com muitos detalhes. Aos poucos, as partes convencionam alguns
vel, mesmo sem previsão legal específica para tanto. Aqui, o intérprete pontos - e daí vem o nome de punctação. Isso não prova a concretiza-
deve se guiar pelo que costuma ocorrer nas negociações, no qual há es- ção final do contrato, porém demonstra, de forma inequívoca, que as
paço para o chamado dolus bonus, mas não para a maldade. partes estavam discutindo e o contrato passava por uma fase formativa.
A obrigação de atuar de boa-fé enquanto se negocia a celebração Cumpre ressaltar ser natural que a não concretização de um negó-
de um contrato apresenta os mais variados aspectos. Além do dever de cio pelo qual as partes se interessaram, mas acabaram por não concluir
informar, as obrigações mais comuns são as de cooperar e de cuidar. gere, naturalmente, uma frustração. Essa situação, entretanto, embora
Como se mencionou, o primeiro cuidado consiste em apreciar se havia infeliz, faz parte do processo negocial e não acarreta, por si só, o dever
uma negociação e se ela era séria. Naturalmente, quanto mais se avança de reparação, muito menos de natureza moral.
em uma negociação, resta mais consolidada a expectativa de que o con-
trato seja concretizado.
3.2. A TUTELA DA CONFIANÇA
Evidentemente, essa pesquisa demanda a análise da situação con- O segundo elemento para se reconhecer essa responsabilidade pela
creta e as peculiaridades do negócio. Nesse particular, destaca António ruptura indevida das negociações surge como o mais importante deles.
Carvalho Martins que "torna-se necessário proceder a uma apreciação, casu- 8 MARTINS,António Carvalho. Responsabilidodepré-contratual. Coimbra: Coimbra Editora, 2002,
p.79.
7 VICENTE, Dário Moura, A responsabilidade pré-contratual no Código Civil brasileiro de 2002, 9 GOMES, Orlando. ln: FACHIN, Luiz Edson, Repensando fundamentos do direito civil brasileira
in RTDC, vol. 18, 2004, p. 16. contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 259.
686 - RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL JOSÉ ROBERTO DE CASTRO NEVES - 687

Com efeito, acima de tudo, a preocupação do intérprete para aferir essa 3.3. Ü ROMPIMENTO IMOTIVADO
responsabilidade deve focar na tutela da confiança, 10 isto é, se a parte ti- O terceiro elemento para caracterização da culpa in contrahendo é o
nha motivos para acreditar que o negócio seria concretizado. rompimento injustificado e surpreendente das tratativas. A situação con-
O nódulo consiste em identificar o momento no qual a confiança creta e comum consiste nos casos nos quais pessoas negociam o acordo,
se torna forte o suficiente para que a contraparte tenha certeza de que estabelecendo suas bases, seguindo um caminho natural que as permite,
celebrará o negócio. Essa análise, por evidente, também reclama a com- de forma razoável, acreditar que o contrato será fumado. Nessa hora, to-
preensão dos aspectos concretos da situação. davia, sem qualquer explicação (ou sem uma justificativa plausível), uma
Um bom começo para essa pesquisa consiste em avaliar se as partes das partes informa à outra que não irá mais celebrar a avença.
já haviam concordado com os elementos essenciais do negócio, como o Na análise da ruptura surpreendente de uma negociação, Regis
seu objeto e o preço envolvido. Evidentemente, se não existia esse con- Fichtner, ao estudar o assunto, registra que atenta contra a boa-fé quem
senso, fica mais distante a ideia de que alguma parte poderia legitima- prossegue numa negociação sem o real interesse em celebrar o contrato,
mente confiar em que o contrato estava celebrado. Na hipótese de apenas ou mesmo sem condições legais ou comerciais de fechar o acordo. 11 Há,
estar em aberto temas marginais, de menor importância, enquanto tudo nesses casos, condenável abuso da confiança.
mais já se encontrava acertado, parece natural admitir que a parte pos- Naturalmente, aqui também, essa falha de procedimento apenas
suía justa convicção de que o contrato seria fumado. se afere na análise do caso concreto. Aliás, como sublinha Anderson
A análise da quebra da confiança deve estar fundada em elementos Schreiber, "não se deve, entretanto, confundir apresença da legítima corifi,an-
objetivos, tomando-se o homem normal como padrão, sem, entretanto, ça com um estado romântico de crença absoluta e incontestável na atuação de
deixar de apreciar as subjetividades do caso concreto. Deve-se apreciar outrem. Sobretudo em relações de caráterpatrimonial, há sempre um natural
a relação que exista entre as partes e a própria credibilidade de que elas resguardo quanto à efetiva correção no comportamento da contraparte, mas
desfrutam no mercado. isto não impede a objetiva adesão a este comportamento e aformação, diante
Se duas pessoas se conhecem de longa data e fazem negócios há das circunstâncias concretas". 12
tempos, natural que exista entre elas um alto grau de fidúcia. Uma in- Outro aspecto a merecer destaque consiste no dever de a parte in-
formação falsa prestada a outra por uma delas terá um efeito maior, exa- formar à contraparte, com a brevidade possível, qualquer fato que possa
tamente em decorrência da credibilidade que existe entre elas. De outro acarretar o fim das negociações ou a alteração substancial do que vem
lado, se as pessoas que negociam pouco se conhecem, haverá um grau sendo discutido com vistas à celebração do contrato. O cumprimento
menor de confiança entre elas. Assim, a informação prestada de uma a desse dever, no mínimo, atenua o dever de indenizar da parte que rom-
outra será, como ensina a prática, vista com mais reservas, pois menor per surpreendentemente a negociação, frustrando a contraparte. Isso por-
a credibilidade. que, ao menos, a contraparte informada de que o negócio pode não se
Esse eventual abuso da confiança, assim como uma confiança ex- concretizar possivelmente deixará de efetuar gastos que faria, na crença
cessiva e irresponsável, deverá ser objeto de análise pelo intérprete do de que o negócio estaria concluído. Ao agir com diligência, mitiga-se o
fato. G.1iem abusa da credibilidade deve ser responsabilizado, assim como dano da contraparte.
quem ofereceu uma fé excessiva - sem, por exemplo, avaliar rninimen- Vista a questão por outro ângulo, a parte que deixar de informar o
te a correção ou veracidade das informações recebidas - tampouco deve fato que impedirá o seguimento da negociação viola o dever de trans-
receber um amparo especial. parência e terá sua situação agravada no que toca o dever de reparar.

11 PEREIRA, Regis Fitchner, A Responsobilidode Pre-Controtuol, Rio de Janeiro: Renovar, 2001,


p.94.
10 Sobre o tema: ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Contratos I, 4ª ed., Coimbra: Almedina, 2008, p. 12 SCH REI BER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutelo do confionço e venire
219 e seguintes. controfoctum proprium. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 143-144.
688 - RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL JOSÉ ROBERTO DE CASTRO NEVES - 689

Muitas vezes, sobrevêm determinados fatos, alheios à vontade das par- Embora o artigo 402 do Código Civil registre que as perdas e da-
tes, que impedem o prosseguimento de uma negociação. Isso ocorre, para nos abrangem o dano emergente e o razoável lucro cessante, a melhor
citar um exemplo dramático, da pessoa que morre durante as conversas interpretação desse dispositivo no caso da responsabilidade pré-contra-
visando a adquirir um imóvel para a sua residência. A ruptura, no caso, tual é a de limitar essa indenização ao chamado interesse negativo, isto
não foi imotivada. Nesse caso, não há que se falar em dever de indenizar. é, as perdas decorrentes do término injustificado e abusivo das negocia-
O Direito não tolera o ato sem justificativa, ou com uma justifica- ções. Afinal, "o que importa é que tais prejuízos derivados da ruptura das
tiva fútil e tola. Esse comportamento irresponsável, que lesou alguém, negociações se liguem, numa 'relação etiológica' à confiança; quer dize1; devem
sujeita à parte que desistiu de levar adiante o negócio sem uma explica- ter-se verificado depois epor causa da própria confiança do lesado, que alicer-
ção mais profunda a indenizar pelo prejuízo que eventualmente causar. ça a responsabilização pré-contratual do lesante". 15 Fica de fora da indeni-
zação, portanto, o interesse positivo, relacionados aos benefícios que a
4. A INDENIZAÇÃO parte lesada teria se o negócio fosse concretizado.
No seu seminal trabalho,Jhering separa o que chamou de interes- Tome-se o seguinte exemplo: um cantor negocia a gravação e pos-
se (contratual) positivo, que seria o que o lesado teria direito a receber, terior lançamento de um disco com suas canções. Após tomar uma série
a fim de se colocar economicamente no local onde estaria se o contrato de providências, inclusive cancelado apresentações a pedido da gravado-
fosse plenamente cumprido, do interesse (contratual) negativo, consis- ra, tudo a fim de estar disponível para as gravações, a eventual contra-
tente no que o lesado receberia, mesmo se o contrato não fosse adiante. tante, de forma abusiva e injustificada, desiste da contratação. O cantor
Assim, o dano positivo seria composto dos danos pela não imple- pode reclamar da gravadora o dano sofrido, inclusive pelo prejuízo de
mentação do negócio, inclusive com os lucros cessantes. Se, por exemplo, ter cancelado os shows. Pode cobrar os danos decorrentes dos custos que
o devedor deixou de entregar a laranja para quem venderia o seu suco, o incorreu na fase de negociação. Esses seriam seus interesses negativos.
inadimplente ficaria obrigado a indenizar a parte lesada de forma ampla, Contudo, não se admite que receba aquilo que, numa projeção hipoté-
compreendendo o valor que o comerciante do suco deixou de auferir. O tica, seria devido se o disco fosse lançado. Em uma análise técnica, o in-
dano negativo, por sua vez, se resume às despesas que a parte suportou, teresse positivo não se cobra na culpa in contrahendo.
embora o negócio se tenha frustrado. A parte deveria retornar ao status Portanto, garante-se a indenização dos gastos incorridos no perí-
quo. 13 ParaJhering, no caso de nulidade do negócio, apenas o interesse odo das negociações que precederiam a celebração do contrato sempre
negativo deveria ser indenizado. que uma parte é lesada pelo abandono injusto e injustificado das tra-
Com relação ao dano, corretamente entende-se que a indenização, tativas. Não basta, vale dizer, que seja apenas injustificado. Além dis-
verificada a falha ocorrida ainda na fase das negociações, deve limitar-se so, deve haver abuso. Afinal, quem se senta para negociar um contrato
aos danos emergentes os gastos com a negociação em si - e os lucros não fica, apenas por isso, obrigado a contratar. O dever da parte se limi-
cessantes relacionados à perda de outras oportunidades, quando efeti- ta a ser leal. Se for desistir do negócio, deve explicar seus motivos e de-
vamente demonstradas. monstrar sua lisura.
O entendimento dominante é no sentido de que a indenização, na
responsabilidade pré-contratual, corresponda ao interesse contratual ne-
5. Ü COMPORTAMENTO DA JURISPRUDÊNCIA

gativo. A doutrina majoritária não admite que a indenização compreen- O leading case entre nós, tratando do rompimento de expectativa e
da também o interesse positivo, ou seja, os benefícios que o lesado teria estabelecendo uma responsabilidade pré-contratual, é o chamado "caso
se o negócio fosse concretizado. 14 dos tomates",julgado em junho de 1991, pelo Tribunal do Rio Grande
do Sul, num acórdão relatado pelo então Desembargador Ruy Rosado
13 Sobre o tema: STEINER, Renata C., Reparação de Danos: Interesse Positivo e Interesse Negativo,
São Paulo: Quartier Latin, 2018. 15 MARTINS-COSTA, Judith. Um aspecto da obrigação de indenizar: notas para uma
14 Nesse sentido, ver: CHAVES, Antônio. Responsabilidade pré-contratual. 2ª ed. Rio de Janeiro: Sistematização dos deveres pré-negociais de proteção no Direito civil brasileiro. ln: Revista
Forense, 1997; VICENTE, Dário Moura, A responsabilidade pré-contratual no Código Civil dos Tribunais, v. 867/2008, Jan/2008, p. 11-51.
brasileiro de 2002, in RTDC, vai. 18, 2004.
690 - RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL
JOSÉ ROBERTO DE CASTRO NEVES - 691

de Aguiar (depois, este grande professor de Direito Civil tornou-se No entanto, como acima se pontuou, o melhor entendimento parece
Ministro do Superior Tribunal de Justiça). 16 ser aquele que, a fim de identificar essa responsabilidade, não se consi-
Eis os fatos do caso: durante muitos anos, um agricultor vendeu dere fundamental haver um pré-contrato, mas, diferentemente, procure
sua colheita a uma empresa alimentícia do ramo de tomates. Essa rela- proteger a legítima expectativa. Logo, é prescindível a existência de um
ção se dava sempre da seguinte forma: antes do início da fase de plantio, contrato preliminar, porquanto, nesse cenário, já se está na seara da res-
a tal empresa alimentícia fornecia sementes de tomates, a fim de que o ponsabilidade contratual. 19 Importante destacar, ainda, que a noção da
agricultor as cultivasse. Na época da colheita, então, o agricultor vendia responsabilidade pré-contratual tem se estendido também às relações de
o produto semeado e colhido para a empresa alimentícia. Assim ocor- particulares com a Administração Pública. 20
reu por tempos. Contudo, num determinado ano, após ter entregue as Já no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, encontra-se firme
sementes e o agricultor plantado os tomates, a empresa alimentícia, de- orientação da aplicação dessa responsabilidade, como ocorreu do Recurso
pois de colhido o produto, disse que não iria mais adquirir os legumes. Especial nº 1.051.065-AM, de relataria do Ministro Ricardo Villas Bôas
O agricultor, então, que havia suportado enorme prejuízo por conta da Cueva, julgado em 21.2.2013:
desistência da empresa, ajuizou uma ação, reclamando uma indenização "3. A responsabilidade pré-contratual não decorre do fato de a
pela frustração na venda de sua safra. tratativa ter sido rompida e o contrato não ter sido concluído,
O agricultor acabou vencendo a demanda. Entendeu-se que a em- mas do fato de uma das partes ter gerado à outra, além da
presa alimentícia, pela sua conduta, havia incutido no agricultor a justifi- expectativa legítima de que o contrato seria concluído, efetivo
cada crença de que o negócio se concretizaria. Mesmo antes do advento prejuízo material.
do Código Civil de 2002, a boa-fé objetiva foi protegida, tornando-se 4. As instâncias de origem, soberanas na análise das circunstân-
concreta a aplicação de conceitos como o de que não se admite o veni- cias fáticas da causa, reconheceram que houve o consentimento
re contra factum proprium, ou seja, as pessoas são responsáveis pelo que prévio mútuo, a afronta à boa-fé objetiva com o rompimento
cativam na contraparte e não se tolera o comportamento contraditório. ilegítimo das tratativas, o prejuízo e a relação de causalidade
entre a ruptura das tratativas e o dano sofrido.( ... )."
Evidentemente, com o advento do artigo 422 do Código Civil atual,
a obrigação de atuar de acordo com a boa-fé, respeitando os deveres de A partir desse acórdão, foi veiculado o informativo de jurisprudên-
informação e cooperação, tornou-se mais vigorosa e objetiva. Isso teve cia nº 517 do STJ, que dá boa demonstração da importância que o or-
um sensível impacto no reconhecimento da responsabilidade pré-con- denamento confere à confiança despertada entre as partes na fase de
tratual. O Tribunal do Rio Grande do Sul assumiu certo protagonismo tratativas a ponto de gerar a responsabilidade:
na compreensão do instituto após o Código Civil de 2002. 17 "Com o advento do CC/2002, dispôs-se, de forma expressa, a
respeito da boa-fé (art. 422), da qual se extrai a necessidade de
Por outro lado, os Tribunais do Rio de Janeiro e de São Paulo se-
observância dos chamados deveres anexos ou de proteção. Com
guiram com uma visão mais restrita para configurar a responsabilidade base nesse regramento, deve-se reconhecer a responsabilidade
pré-contratual, sobretudo por se considerar como requisito caracteriza- pela reparação de danos originados na fase pré-contratual caso
dor a existência de contrato preliminar (ou pré-contrato), para que reste
comprovada a vinculação das partes nessa "fase negocial". 18 Germano, j. em 16.05.08; TJSP, Ap. 0008393-98.2009.8.26.0453, 8ª Câmara de Direito Privado,
Rei. Des. Salles Rossi, j. em 01.08.12; TJRJ, Ap. 0246115-78.2009.8.19.0001, 11ª CC., Rei. Des.
Adolpho Correa de Andrade Mello Junior, j. em 18.04.12; TJRJ, Ap. 2004.001.09953, Rei. Des.
16 TJRS, Ap. 591028725, 5ª CC., Rei. Des. Ruy Rosado Júnior, j. em 06.06.91. Paulo Gustavo Horta 5ª CC., j. em 01.06.04; TJRJ, Ap. 1991.001.03395, Rei. Des. Elmo Arueira,
17 TJRS, Recurso Cível, 71000531376, 2ª Turma Recursai Cível, Rei. Des. Ricardo Torres Hermann, j. 3ª CC., j. em 26.05.92.
em 08.09.04; TJRS, Ap. 70012118220, 9ª CC., Rei. Des. Marilen Bonzanini Bernardi, j. 24.08.05; 19 Há relevantes julgados no Tribunal de São Paulo também nesse sentido: TJSP, Ap. 0166582-
TJRS, Recurso Cível 71002009942, 3ª Turma Recursai Cível, Rei. Des. Eugênio Facchini Neto,j. 35.2010.8.26.0100, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rei. Des. Francisco Loureiro,
em 16.07.09; TJRS, Ap. nº 70035736206, 20ª Câmara Cível, Rei. Des. Carlos Cini Marchionatti, j. j. em 10.10.13; TJSP, Ap. 1026323-43.2015.8.26.0602, 26ª Câmara de Direito Privado, Rei. Des.
em 02.06.10; TJRS, Ap. 70035756154, 17ª Câmara Cível, Rei. Des. Liege Puricelli Pires, j. 16.12.10; Vianna Cotrim, j. em 13.09.18.
TJRS, Ap. nº 70080215148, 9ª Câmara Cível, Rei. Des. Eduardo Kraemer, j. em 18.12.19. 20 TJSP, Ap. 0139502-81.2005.8.26.oooo, Rei. Des. Gilberto Leme, 27ª Câmara de Direito Privado,
18 TJSP,Ap. 89.432-4/7, 4ª Câmara de Direito Privado, Rei. Des.Jacobina Rabello, j. em 02.03.00, j. em 09.08.11; TJSE, Ap. 2006207680, Rei. Des. Roberto Eugenia da Fonseca Porto, 1ª CC., j.
TJSP, Ap. 9107644-05.2007.8.26.oooo, 24ª Câmara de Direito Privado, Rei. Des. José Luiz em 19.12.06.
692 - RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL JOSÉ ROBERTO DE CASTRO NEVES - 693

verificadas a ocorrência de consentimento prévio e mútuo no REFERÊNCIAS


início das tratativas, a afronta à boa-fé objetiva com o rom- ALMEIDA. Carlos Ferreira de, Contratos I, 4ª ed., Coimbra: Almedina, 2008;
pimento ilegítimo destas, a existência de prejuízo e a relação CHAVES, Antônio. Responsabilidade pré-contratual 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense,
de causalidade entre a ruptura das tratativas e o dano sofrido. 1997;
Nesse contexto, o dever de reparação não decorre do simples FRITZ, Karina Nunes. A responsabilidade pré-contratual por ruptura injustificada das
fato de as tratativas terem sido rompidas e o contrato não ter negociações. ln: Revista dos Tribunais, v. 883/2009, Maio/2009;
sido concluído, mas da situação de uma das partes ter gerado FRITZ, Karina Nunes. A culpa in contrahendo no direito alemão: um contributo para
à outra, além da expectativa legítima de que o contrato seria reflexões em torno da responsabilidade pré-contratual. ln: Revista de Direito Civil
concluído, efetivo prejuízo material." Contemporâneo, v. 15/2018, Abr-Jun/2018;
Vale destacar, no entanto, que o STJ, ao reconhecer a quebra da le- FRITZ, Karina Nunes. A boa-fé objetiva e sua incidência na fase negocial: um estudo
gítima expectativa na conclusão do contrato, e, portanto, a responsabili- comparado com base na doutrina alemã. ln: Revista de Direito Privado, v. 29/2007,
Jan-Mar/2007, p. 201-237;
dade pré-contratual, acertadamente exige, para fins de indenização, que
GOMES, Orlando. ln: FACHIN, Luiz Edson, Repensando fundamentos do direito
tenha havido prejuízos materiais efetivos, não bastando apenas o rom- civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998;
pimento das tratativas e a não conclusão do contrato. JUNQUEIRA D E AZEVEDO, Antônio. Responsabilidade pré-contratual no Código
Por fim, a tutela da confiança ganhou tanta força no ordenamento de Defesa do Consumidor: estudo comparativo com a responsabilidade pré-
jurídico brasileiro que o STJ tem admitido a responsabilidade apenas pela contratual no direito comum. Revista de Direito do Consumidor. n. 18. São Paulo:
quebra da confiança que, apesar de ter a mesma ratio da responsabilida- Revista dos Tribunais, 1996;
MARTINS-COSTA,Judith. Um aspecto da obrigação de indenizar: notas para uma
de pré-contratual, dela se diferencia na medida em que a formalização
Sistematização dos deveres pré-negociais de proteção no Direito civil brasileiro.
de um contrato pode não ser o escopo perseguido por uma das partes. 21 ln: Revista dos Tribunais, v. 867/2008,Jan/2008;
6. CONCLUSÃO MARTINS, António Carvalho. Responsabilidade pré-contratual Coimbra: Coimbra
Editora, 2002;
No caminho para a construção de um ordenamento jurídico mais MIRANDA, Francisco Pontes de, Tratado de Direito Privado, vol. XXXV1II, Rio de
próximo aos valores éticos, a criação de deveres relacionados ao com- Janeiro: Borsoi, 1962;
portamento leal e transparente se revela fundamental. O reconhecimen- PEREIRA, Regis Fitchner, A Responsabilidade Pre-Contratual, Rio de Janeiro: Renovar,
to de responsabilidades a quem deixou de negociar de forma honesta, 2001;
causando danos à contraparte, se insere no modelo jurídico solidário. A SCHREIBER, Anderson.A proibição de comportamento contraditório: tutela da corifi.ança
conduta adotada pelas partes antes mesmo de celebrado o contrato não e venire contra factum proprium. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012;
se encontra num limbo jurídico, mas sujeita à análise do Direito, a fim VICENTE, Dário Moura, A responsabilidade pré-contratual no Código Civil brasileiro
de 2002, in RTDC, vol. 18, 2004.
de apurar responsabilidades.
Há uma famosa frase atribuída a Sigmund Freud, o pai da psica-
nálise. Ele teria dito: "às vezes, um charuto é apenas um charuto". Muito já
se discutiu acerca das várias interpretações dessa afirmação. De fato, um
charuto, como qualquer outra coisa, pode tanto simbolizar muito mais
do que ele é, ou significar apenas isso: um charuto. Para o mundo jurí-
dico, entretanto, não há dúvida: os charutos de Jhering não são apenas
charutos, pois acabaram por abrir portas - dessas que não se fecham
mais - para estudar novos conceitos.
21 Ver, sobre esse tema, o Recurso Especial nº 1.309.972-SP, de relatoria do Ministro Luís Felipe
Salomão, julgado em 27.4.2017.
CARLOS folSON DO RÊGO MONTEIRO FILHO E NELSON ROSENVALD - 695

Ili. CLÁUSULA GERAL Do Risco DA ATIVIDADE:


A MAIORIDADE DO PARÁGRAFO ÚNICO DO
ARTIGO 927 DO CóDIGO CIVIL
Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho 1

Nelson Rosenvald2

1. INTRODUÇÃO
Para além dos pontos que representam o início e o fim do trajeto, há
um percurso. Equívoco comum consiste em se desprezar a trajetória e se
concentrar somente no início e no fim da viagem. A metáfora é inevitá-
vel. Há uma disseminada ideia quanto ao fato de que responsabilidade
subjetiva e objetiva representariam paradigmas antitéticos do direito de
danos. Na verdade, o que existe é um continuum, sendo certo que impu-
tação subjetiva e objetiva consistem apenas em dois extremos de uma
longa linha reta, em um perímetro que acomoda várias figuras interme-
diárias. 3 Dentre esses modelos jurídicos, alguns já são bem assimilados
pela doutrina brasileira. Contudo, algumas hipóteses legais que o senso
comum já. traduziu como incidências de responsabilidade objetiva não
se acomodam verdadeiramente à exatidão que o conceito demanda; em
verdade, são estações que se encontram pelo caminho.
Responsabilidade objetiva é aquela que independe da existência de
ilicito. 4 Tanto faz se o agente adotou comportamento antijurídico ou não,
Professor Titular e ex-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de
Direito da UERJ. Doutorem Direito Civil e Mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Procurador
do Estado do Rio deJaneiro. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior
de Advocacia Pública da PGE-RJ (ESAP). Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de
Responsabilidade Civil (IBERC). Advogado, parecerista em temas de direito privado.
2 Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Procurador de Justiça
do Ministério Público de Minas Gerais. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre
(IT-2011). Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra (PO-2017). Visiting
AcademicOxford University(UK-2016/17). Professor Visitante na Universidade Carlos Ili (ES-2018).
Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos
de Responsabilidade Civil (IBERC).
3 Nesse sentido, Maria Celina Bodin de Moraes observa: "Com efeito, a cada dia tem-se mais e
mais hipóteses de regimes especiais diferenciados, tornando impossível a tarefa de sistema-
tizar a matéria da responsabilidade civil. Para um exemplo, basta pensar em quantos regimes
diferentes temos apenas ao interno do Código Civil". (BODIN DE MORAES, Maria Celina. LGPD:
um novo regime de responsabilização civil dito proativo. ln: civilistica.com, a. 2, n. 3, 2019,
editorial).
4 Na lição clássica de Josserand: "não convém admitir que somos responsáveis, não somente
por nossos atos culposos, mas pelos atos pura e simplesmente, pelo menos, bem entendido,
se causarem um dano injusto, anormal a outrem? O fazedor de danos, como dizem os ame-
696 - CLÁUSULA GERAL DO Risco DA ATIVIDADE: A MAIORIDADE DO PARÁGRAFO ÚNICO ••• CARLOS EDISON DO RÊGO MONTEIRO FILHO E NEtsON ROSENVALD - 697

pois esse debate é infenso ao objeto da sentença. Releva perquirir, aqui, liability) dos patrões por fatos danosos de seus auxiliares é alheia a um
o nexo causal entre a conduta/atividade do agente e o dano. Isto signifi- ilícito do empregador (art. 933, CC). Aplica-se o princípio, let the supe-
ca que a obrigação objetiva de indenizar não consiste em uma espécie de rior answer, desde que o representante esteja agindo em nome do repre-
responsabilidade sem culpa. Os conceitos não se equivalem, não há re- sentado e em benefício deste. Todavia, somente será possível imputar
lação de pertencimento. Tradicionalmente a culpa representa elemento obrigação de indenizar em face da pessoa jurídica, caso seja previamente
psicológico do agente. Contemporaneamente se normatizou, admitin- comprovado o ilícito culposo do funcionário. Se o dano produzido pelo
do-se sua demonstração mediante contraste com padrões objetivos de empregado não corresponde à violação de um dever de cuidado, fecha-
comportamento. 5 Mesmo assim, em jogo uma adjetivação de conduta, -se a via de acesso ao empregador. 7 Alguns denominariam essa obrigação
será possível avançar na perquirição do estado anímico do ofensor, con- de indenizar de responsabilidade objetiva impura, por demandar aferição
forme a cláusula geral do artigo 186 do Código Civil. No entanto, nas de culpa no antecedente (empregado) e a sua dispensa no consequente
reais hipóteses de incidência da teoria objetiva, essa questão não está em (patrão). Em essência, contudo, responsabilidade objetiva requer tão so-
jogo, pois o fator de atribuição da obrigação de compensar danos (nexo mente lesão a interesse jurídico protegido e relação de causalidade, eli-
de imputação) recebe justificação diversa do fato ilícito (v.g. equidade, dindo-se considerações sobre antijurídicidade.
dever de cuidado, risco da atividade). Também não é puramente objetiva a responsabilidade do fornece-
Nada obstante, a precisão técnica é dardejada ao se descrever como dor pelos danos causados por produtos ou serviços defeituosos (arts. 12
hipóteses de responsabilidade puramente objetiva tanto a responsabilida- e 14, CDC). O "defeito" é um fato antijurídico, uma desconformidade
de dos empregadores pelos danos causados por seus empregados contra entre um padrão esperado.de qualidade de um bem ou de uma ativida-
terceiros, 6 como a responsabilidade do fornecedor por danos derivados de e a insegurança a que efetivamente foi exposta a incolumidade psi-
de produtos e serviços defeituosos. Há erros de perspectiva em ambos cofísica do consumidor. O CDC abole a discussão da culpa, mas sem
os casos, mas por motivos diversos. A responsabilidade vicária (vicarious que se evidencie a presença do defeito (sujeita, claro, a inversão do ônus
probatório) inexiste responsabilidade, mesmo se evidenciado eventu-
ricanos, não deve ser responsável por seus atos? Problema capital, que é o da objetivação da al dano patrimonial e/ou moral. 8 Em sentido diverso, no Código Civil,
responsabilidade, da substituição do ponto de vista subjetivo pelo ponto de vista objetivo, da
noção de culpa pela do risco". {JOSSERAND, Louis. Evolução da Responsabilidade Civil. Trad.
Raul Lima. ln: Revista Farense, vai. 86, a. 38, abril de 1941, p. 556). 7 A título de exemplo, v. TJSP, 11ª Câmara Extraordinária de Direito Privado, Apelação 4030103-
5 "Mesmo nos casos de incidência da regra subjetiva, a culpa torna a revelar outro perfil: afasta- 75.2013.8.26.0224, Rei. Des. Kenarik Boujikian, julg. 18.08.2015: "Apelação. Indenização por
-se de sua tendência original moralizadora (ligada à violação de deveres preexistentes na lei dano moral e material e lucro cessante decorrente de ato ilícito, qual seja, atropelamento e
ou no contrato), e conecta-se à figura do desvio de conduta, verificável por meio de standards morte. Depoimentos colhidos não comprovam conduta imprudente do condutor do ônibus,
correlacionados a cada situação específica. Noutras palavras, assume uma feição menos psi- preposto da apelada, de modo a configurar ato ilícito e dever de indenizar, segundo as pres-
cológica e mais objetiva, normativa". (MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. O princípio crições dos artigos 927, 186 e 187 do Código Civil. De rigor no caso dos autos, reconhecer que
da reparação integral e sua exceção no direito brasileiro. ln: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison aos autores incumbia prova de culpa, ônus imposto pelo artigo 333, inciso 1, do Código de
do Rêgo. Rumos contemporâneos do direito civil: estudos em perspectiva civil-constitucional. Processo Civil, mas tal não ocorreu no caso dos autos. Recurso não provido".
Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 105). 8 Assim, ao tratarmos de um defeito do serviço, referimo-nos a uma conduta antijurídica con-
6 "Esta [a responsabilidade civil por fato de outrem] é uma classificação independente da que sistente em introduzir no mercado uma atividade capaz de lesar a legítima expectativa de
distingue as responsabilidades subjetiva e objetiva, vista na seção anterior. Sendo indepen- confiança dos consumidores, vulnerando a saúde ou a segurança de uma coletividade inde-
dentes, a as duas classificações podem ser intercruzadas: assim, em rigor, podemos ter tanto terminada de pessoas, expondo-as a danos patrimoniais e/ou psicofísicos. Exemplificando, a
uma responsabilidade subjetiva como uma responsabilidade objetiva, por fato próprio ou responsabilidade objetiva da clínica médica pelo fato de o paciente contrair infecção hospitalar
por fato de outrem, e até por fato de coisas ou animais". (NORONHA, Fernando. Direito das decorre de um inesperado defeito do serviço de prevenção daquela instituição e não do risco
obrigações, vai. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 491). Ainda sobre o tema, Aguiar Dias anota indistintamente acentuado da referida atividade. Não poroutra razão, poderá o hospital excluir
que, nas hipóteses de responsabilidade por fato de outrem e de respons_abilidade por fato da a obrigação de indenizar se demonstrar que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste (art.
coisa há presunção de causalidade entre o evento danoso e o responsavel. Nas palavras do 14, § 3°, CDC).
autor: "consideramos infundado o vivo debate, travado na jurisprudência francesa, sobre se Nesse sentido, colha-se lição análoga, do direito português: "Não basta que o produtor colo-
tal presunção se refere à culpa ou à responsabilidade: a presunção é de causalidade; o que que o produto em circulação. É necessário que o produto seja defeituoso. O defeito de que
se presume é nexo de causa entre o fato da coisa e o dano" E continua: "O dever jurídico de se cura tem, no entanto, uma abrangência muito mais do que ampla do que aquela com que
cuidar das coisas que usamos se funda em superiores razões de política social, que induzem, somos confrontados ao nível da linguagem corrente ou no quadro de outros regimes privatís-
por um ou outro fundamento, à presunção de causalidade aludida e, em consequência, à ticos. Na verdade, o produto tem-se por defeituoso quando não oferece a segurança com que
responsabilidade de quem se convencionou chamar o guardião da coisa, para significar o legitimamente se pode contar, tendo em atenção todas as circunstâncias, designadamente a
encarregado dos riscos dela decorrentes". (DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11 ª apresentação, a utilização que dele razoavelmente possa ser feita e o momento da sua entrada
ed. Atualizado por Rui Berford Dias. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 588-589). em circulação". (BARBOSA, Mafalda Miranda. Responsabilidade civil do produtor e nexo de
698 - CLÁUSULA GERAL DO Risco DA ATIVIDADE: A MAIORIDADE DO PARÁGRAFO ÚNICO ••. CARLOS EDISON DO RÊGO MONTEIRO FILHO E NELSON RoSENVALD - 699

a responsabilidade objetiva pelo risco (art. 927, parágrafo único) exige tão será renomear o modelo jurídico para imputação objetiva de danos,
apenas que a atividade danosa seja indutora de um risco anormal, exces- obrigação objetiva de indenizar ou responsabilidade independente de
sivo no cotejo com as demais atividades, por ser apta a produzir danos ilícito. Enfim, da responsabilidade subjetiva à imputação objetiva, o país
quantitativamente numerosos ou qualitativamente graves, independen- atravessou longa e sinuosa estrada, sem que nestes 18 anos de vigência
temente da constatação de um defeito ou perigo. Isto é, por mais que do código Civil tenha localizado a estação derradeira. Afinal, na era das
seja exercitada com absoluto zelo, desgarra-se da perquirição subjetiva: tecnologias digitais emergentes, caminha-se do risco da atividade para
não se indaga se A exercia uma atividade de risco, pois pela própria dinâ- o alto risco da atividade.
mica dos fatos, mesmo que exercida por B, C ou D, os danos decorreriam
2. TEORIA OBJETIVA E A CONSTRUÇÃO DA CLÁUSULA GERAL NO
do risco intrínseco da atividade.
Córneo C1v1L DE 2002
No rigor da precisão terminológica, nem mesmo a própria, e
tão difundida, expressão responsabilidade objetiva mereceria aplausos. Há 18 anos - em janeiro de 2003 -, a doutrina objetiva saiu de
Responsabilizar, em sentido lato, significa atribuir a alguém uma san- uma posiç_ão lateral, posto que em inegável expansão, para ocupar papel
ção por um comportamento desviante. Definitivamente, isso é o que de centralidade no ordenamento jurídico.11 O parágrafo único do arti-
ocorre na teoria subjetiva. Entretanto, a teoria objetiva associa-se a uma go 927 do Código Civil merece detalhado exame, pois a partir de seu
discussão finalística, orientada pela necessidade de se assegurar a repa- teor pode-se compreender a real extensão da objetivação da responsa-
ração de danos, que não devem ser suportados exclusivamente pela ví- bilidade civil e o significado concreto da teoria do risco no Brasil em
tima.9 Alguém será convocado a suportar os custos pela violação a um comparação com o seu desenvolvimento no ordenamento jurídico de
interesse merecedor de tutela por diversos fundamentos, sem que ne- outras nações. 12 ·

nhum deles se relacione a ofensa a um dever de cuidado. 10 Melhor en- Proclama o parágrafo único do artigo 927 do Código Civil: "Haverá
causalidade: breves considerações. ln: FIDES - Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especifi-
Sociedade, v. 8, n. 2, jul./dez. 2017, p. 175). cados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do
Na jurisprudência, cite-se, a título ilustrativo, o seguinte julgado: STJ, 3ª T., REsp 1.763.156/
RS, Rei. Min._ Marco Aurélio Bellizze, julg. 05.02.2019: "RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem".
INDENIZAÇAO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. ROUBO COM ARMA DE FOGO
COMETIDO CONTRA HÓSPEDE DE HOTEL EM VIA PÚBLICA. RESPONSABILIDADE CIVIL A melhor forma de compreender as várias nuances do dispositivo
DO ESTABELECIMENTO HOTELEIRO. INEXISTÊNCIA. FORTUITO EXTERNO. ROMPIMENTO é seccionando-o em três partes. A primeira parte estatui: "haverá obri-
DO NEXO DE CAUSALIDADE. AUSÊNCIA DE DEFEITO NO SERVICO PRESTADO. RECURSO
PROVIDO. 1. Discute-se neste feito se o hotel recorrente tem resp~nsabilidade por crime de
roubo cometido com emprego de arma de fogo contra hóspede em estacionamento gratuito, ser co~ple_tamen~e arbitrári~, então é preciso justificá-la com critérios de imputação sobre
localizado em área pública em frente ao respectivo estabelecimento hoteleiro.( ... ) 3. No caso os quais sei a passivei haver d1ssenso, a_~sim como deve ser possível haver dissenso acerca de
em julgamento, não há que se falar em responsabilidade civil do hotel pelo roubo cometido seu emprego cor:reto e adeq_~ado". (GUNTHER, Klaus. Responsabilização na sociedade civil.
com emprego de arma de fogo contra hóspede em via pública, mesmo que a ação delituosa Tra_duç~o_de Fla~1a Porte~la Puschel. In: Revista f'!o__vos Estudos, ed. 63, vai. 2, julho 2002, p. 108).
11 ~aio M~n? da S~lv~ Pereir~ d~screve com prec1sao o processo de objetivação da responsabi-
tenha ocorrido em frente ao respectivo estabelecimento hoteleiro, porquanto, além de não
ter ficado comprovado qualquer defeito no serviço prestado, houve rompimento do nexo lidade civil no dire1to brasileiro a partir da Lei nº 2.681/1912, que estatuiu a responsabilidade
de causalidade na hipótese, em razão da culpa exclusiva de terceiro (CDC, art. 14, § 3°, II), das _estr:adas de ferro por todos os danos causados pela exploração de suas linhas até se che-
equiparado ao fortuito externo. 4. Recurso especial provido". ga_r ~ clau~~la geral da responsabilidade por risco prevista no artigo 927, parágrafo único, do
9 A expansão das fronteiras da responsabilidade objetiva compõe o contexto de avanço tridi- Cod1go Civil de 2002. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 11ª ed. Atualizado
mensional da reparação integral no sistema jurídico brasileiro, do qual também fazem parte a porG~stavo Tepedino. Rio de Janeiro: Forense, 2016, pp. 357-361).
simplificação da comprovação do nexo causal e a o reconhecimento da necessidade de repa-
12 ~!11 artigo publicad_o origin~riamente antes d~ vig_ênciado CC2002 {RTDC, vai. 11, jul/set2002),
ração plena dos danos extrapatrimoniais, dentre outros fatores. Nesse sentido, v. MONTEIRO Jª ~e ?estacava_ a 1':'.1pr?pn~_da~e da~ assoc1a~oes entre responsabilidade subjetiva-regra,
FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Limites ao princípio da reparação integral no direito brasileiro. obJe_t1~a-exceçao: Assim, Jª nao satisfaz a afirmação tantas vezes repetida pela doutrina
ln: civi/istica.com, a. 7, n. 1, 2018, p. 2. tra?1~1onal de que, em regra, a responsabilidade civil é subjetiva, sendo a responsabilidade
10 "A responsabilidade é imputada em comunicações sociais: uma pessoa é feita responsável por objetiva a exce_ção. (... ) Em rigor, a respo~sabilidade por culpa no contexto atual perde o status
algo porporte de outrem ou faz-se responsável a si mesmaperonte outrem. Por meio dessa prática de centro do sistema e passa a se revestir de cunho nitidamente subsidiário, a atuar somente
social de auto ou heteroimputação de responsabilidade estrutura-se o fluxo infinito dos acon- na ausência de ~isposi~ão impondo a resp_onsabilidade objetiva, em um campo cujos confins
tecimentos, de modo que determinados fatos são atribuídos a uma pessoa como conseqüência mostra~_-se mais ~s~re1tos que outrora, eis que o número de normas dispondo sobre a res-
de uma ação ou omissão sua. Entre os diversos fatores que envolvem todo acontecimento, o P?nsab1hdade objetiva encontrou franca progressão". {MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do
complexo e obscuro novelo de relações de causalidade e de probabilidade é reduzido a um R:go. Problemas de responsabilidade civil do Estado. ln: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do
ponto escolhido de modo mais ou menos arbitrário: a uma pessoa agente. A busca de nexos Reg?. Rumos ~ontemporâneos do direito civil: estudos em perspectiva civil-constitucional. Belo
causais é interrompida em um certo ponto, e se a decisão acerca dessa interrupção não deve Horizonte: Forum, 2017, p. 175).
LlRLOS EDISON DO RÊGO MONTEIRO faHO E NELSON ROSENVALD - 701
700 - CLÁUSULA GERAL DO Risco DA ATIVIDADE: A MAIORIDADE DO PARÁGRAFO ÚNICO •.•

gação de reparar o dano, independentemente de culpa". Acertadamente, o censurabilidade pela imposição da sanção reparatória. A outro lado, se a
legislador não adotou as expressões responsabilidade objetiva, responsabi- pretensão do legislador for a de promover o princípio da solidariedade,
lidade sem culpa ou presunção de culpa. O Código Civil precisamente in- mediante a repartição de riscos sociais, direcionará a norma para a te-
seriu a responsabilidade civil no livro dedicado ao estudo das obrigações oria objetiva. O ideal, como vimos, é a convivência entre vários fatores
como uma sanção a um fato jurídico danoso e fonte de prestação devida de imputação de danos, cada qual com os seus próprios fundamentos. 15
pelo autor do fato à vítima. A obrigação de reparar o dano corresponde A restruturação do Código Civil Brasileiro em termos de relação
a uma função primária da responsabilidade civil: a de recompor o patri- entre o artigo 927 do Código Civil (imputação subjetiva) e o seu pará-
mônio do lesado ao momento anterior ao da lesão. 13 grafo único (imputação objetiva) viabilizou aquilo que na Itália gerou,
Ao mencionar que essa reparação se efetiva "independentemente de nas palavras de Luigi Mengoni, 16 um esquema lógico diverso daque-
culpa",faz-se um contraponto ao caput do artigo 927. O legislador se an- le que tradicionalmente operava na base da regra-exceção. A substitui-
tecipa ao anúncio das situações em que a teoria objetiva prevalecerá para ção do princípio da culpa pelo princípio do risco ocorrerá com base nas
peremptoriamente excluir da investigação judicial qualquer relevância considerações das consequências de uma conduta no ambiente social,
sobre a licitude ou ilicitude do fato jurídico danoso. Vale dizer, nas hi- tido agora como critério hermenêutico de escolha de uma regra de de-
póteses em que prevalece a obrigação objetiva de indenizar, o processo cisão. Essa valoração social assumirá uma função não apenas corretiva,
não será palco de controvérsias quanto à antijurídicidade do evento ou mas constitutiva de princípios.
à reprovabilidade do comportamento do agente, seja pela via da culpa A partir das considerações sobre o impacto das atividades huma-
ou do abuso do direito. Destarte, na teoria objetiva os pressupostos para nas sobre o corpo social, a aferição da culpa será valorizada sob o ponto
a aferição da responsabilidade civil serão apenas o fato (ato ou ativida- de vista interpretativo das hipóteses concretas de responsabilidade civil.
de) do agente, o dano e o nexo causal entre ambos. Todavia, sem o recurso tradicional ao antagonismo entre imputação ob-
Inexiste hierarquia normativa ou axiológica entre teoria subjetiva jetiva ou subjetiva, como polos opostos, porém em uma linha de com-
ou objetiva. O Código Civil não concedeu primazia a um ou outro re- plementariedade. A finalidade da conjunção entre o risco da atividade
gime.14 Nas hipóteses em que prevalece a teoria subjetiva (art. 927, ca- e a aferição do comportamento do autor do ilícito é uma atividade de
put), mantém-se firme o substrato moral da responsabilidade civil, sendo fortalecimento de um modelo jurídico fragilizado pelo câmbio das téc-
imperiosa a investigação da falta do agente diante do descumprimen- nicas de imputação que acentuam o esvaziamento da função preventiva
to de um dever de cuidado e a consequente reprovação do ilícito e sua e punitiva da responsabilidade civil.
13 "Propendemos para achar que a função primária da responsabilidade civil não pode deixar de Em sua segunda parte, acresce o parágrafo único do artigo 927: "nos
serressarcitória ou reparadora, para o que se invoca a presença de prejuízos como pressupos- casos especificados em lei". O primeiro local de irrupção da imputação obje-
to indispensável a cada uma das formas de responsabilidade civil. Acresce que o dano surge
sempre como limite e medida da indemnização. Afirmar esta evidência não elimina, porém, tiva de danos consistirá em diplomas legislativos especiais ou em disposi-
todos os nossos problemas. Como adiantamos, uma coisa é considerar que a finalidade ressar-
citória jamais estaria ausente do desenho concreto da responsabilidade civil, outra distinta é tivos localizados no interior do próprio Código Civil que explicitamente
tentar perceberem que medida ela se compagina com outras finalidades". (BARBOSA, Mafalda revelem a sua opção pela responsabilidade independente de culpa. 17
Miranda. Reflexões em torno da responsabilidade civil: teleologia e teleonomologia em debate.
ln: Boletim do Foculdode de Direito do Universidade de Coimbra, v. 51, 2005, pp. 516-519).
14 Caio Mário da Silva Pereira anota que "é a convivência dos dois conceitos - subjetivo e ob- 15 "O conceito de imputação, na responsabilidade civil atual, é mais amplo: pode indicar o
jetivo - que deve inspirar a manutenção de preceitos que atendam às duas tendências, não au_t~r imediato da ação, quando a responsabilidade tiver por pressuposto a culpa, ou um
obstante as reservas que os objetivistas fazem a esta convivência. Entendo eu que, se no plano suie1to remotamente posicionado em relação ao contexto fático da verificação do dano, que
teórico ela é aconselhável, igualmente será no direito positivo". (PEREIRA, Caio Mário da Silva. será responsabilizado pela obrigação de indenizar em função do papel que desempenha,
Responsabilidade Civil. 11 ª ed. Atualizado por Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro: Forense, 2016, ou porque gerou o risco do dano, ou por outro fator que o legislador considerou relevante".
p. 357). Semelhantemente, "(a) ascensão da responsabilidade objetiva, posto tenha conduzido (PASQ_UALOTTO, Adalberto. Causalidade e imputação na responsabilidade civil objetiva: uma
à retração da responsabilidade subjetiva, não a eliminou ou substituiu. Culpa e risco encerram, reflexa o sobre os assaltos em estacionamentos. ln: Revista de direito civil contemporâneo, vol. 7,
contemporaneamente, dois paradigmas sobre os quais se erguem, de um lado, a responsabili- abril-junho 2016).
dade subjetiva, tendo porfonte o ato ilícito, e, de outro, a responsabilidade objetiva, mediante 16 MENGONI, Luigi. Le obbligazioni./ cinquont'annidel Codice Civile. Milano: Giuffre, 1993. p. 242.
opções legislativas de alocação de riscos a certos agentes econômicos ou a certas atividades". 17 Há uma cronologia de normas editadas no século XX que já se prestavam à salvaguarda da
(TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. pessoa humana, eliminando o filtro da culpa para o deslinde favorável em uma pretensão
Fundamentos do Direito Civil, vol. 4. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 114). de reparação de danos. Para além da ressalva à legislação especial, temos uma série de
702 - CLÁUSULA GERAL DO Risco DA ATIVIDADE: A MAIORIDADE DO PARÁGRAFO ÚNICO ••• CARLOS EDISON DO RÊGO MONTEIRO FILHO E NELSON ROSENVALD - 703

Se por acaso a redação do parágrafo único se resumisse às duas par- operabilidade, tão cara ao Código Reale. 20 A diretriz da opera,bilidade
tes já destacadas, certamente seria legítimo concluir que o Código Civil pretende que as normas do Código Civil sejam munidas de concretude,
optara por conceder protagonismo à responsabilidade subjetiva, reser- em razão dos elementos de fato e valor que devem ser levados em con-
vando à teoria objetiva um espaço periférico em leis especiais e disposi- sideração no momento interpretativo-aplicativo.
tivos que excepcionalmente dispensassem os pressupostos do ilícito e da O nexo de imputação da obrigação objetiva de indenizar será du-
culpa. Todavia, não foi esse o sucedido. Assim, caminha-se para a pes- plo: a lei ou o risco da atividade. Lembra-se que o nexo de imputação é
quisa da parte derradeira do parágrafo único do artigo 927 do Código a razão pela qual se atribui a alguém a obrigação de indenizar. Caso se
Civil: "ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano concedesse ao legislador o monopólio da formulação de fattispecies em
implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem". que se dispensasse o ato ilícito como nexo de imputação da reparação de
Trata-se de criação de cláusula geral do risco da atividade. As cláu- danos, a teoria objetiva manteria a sua posição de subserviência perante
sulas gerais, como cediço, são normas de conteúdo vago, impreciso, que a responsabilidade subjetiva. Isso parece evidente. Diz-se que a ciência
remetem o seu preenchimento a princípios e direitos fundamentais. 18 é lebre e o direito, tartaruga; mas não se precisa recorrer às fábulas de
A abertura dessas normas de forte carga semântica permite a constante Esopo para evidenciar que a sociedade tecnológica da pós-moderni-
atualização de seu conteúdo e impede que o passar dos anos deteriore a dade alargou o risco de atividades potencialmente danosas para a so-
sua eficácia social, eis que os "riscos da atividade" invariavelmente serão ciedade. Em paralelo a todos os benefícios e comodidades propiciados
aqueles que a doutrina e os tribunais considerem pertinentes em cada pela capacidade de inovação humana, evidencia-se que a vida humana
contexto, oscilando conforme espaço e tempo. 19 se tornou uma incessante luta contra o impacto potencialmente incapa-
Com efeito, essa cláusula geral possui enorme potencial de reno- citante dos perigos, genuínos ou supostos, que nos tornam temerosos. 21
vação do modelo da responsabilidade civil, pois atende à diretriz da O Estado, explica Bauman, tendo encontrado sua razão de ser e o
direito à obediência dos cidadãos na promessa de protegê-los das ameaças
artigos do Código Civil que guarnecem a obrigação objetiva de indenizar. Nesse sentido,
à existência, não é mais capaz de cumpri-la, nem de reafirmá-la respon-
cumpre citar: (a) art. 931: "Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários savelmente em vista da rápida globalização e dos mercados crescente-
individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados
pelos produtos postos em circulação"; (b) a responsabilidade civil pelo fato de terceiros, mente extraterritoriais. 22 Infelizmente, o legislador é incapaz de prever
corno atos de incapazes e empregados. De acordo com o art. 933, "As pessoas indicadas nos
incisos Ia V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos 20 A_di:etriz da operabilidade, ensina Miguel Reale, é condição necessária para que se "realize 0
atos praticados pelos terceiros ali referidos"; (c) a responsabilidade civil pelo fato da coisa direito em suo concretude, sen~o op_or'.uno lembrar que o teoria do direito do concreto, e não pura-
animal- art. 936: "O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não mente abstrato, encontro apoio de 1unsconsultos do porte de Engisch, Betti, Lorenz, Esser e muitos
provar culpa da vítima ou força maior"; (d) a responsabilidade pela queda de prédio - art. outros, imP_li~ondo maio!participação decisório conferido aos magistrados"(REALE, Miguel. Histório
937: "O dono de edifício ou construção responde pelos danos que resultarem de sua ruína, do novo Cod1go Civil. Soo Paulo: Revista dos tribunais, 2005, p. 41).
se esta provier de falta de reparos, cuja necessidade fosse manifesta"; (e) a responsabilidade 21 Josserand já na década de 1930 identificava o incremento do risco corno urna marca da moder-
pelo fato da coisa inanimada art. 938: "Aquele que habitar prédio, ou parte dele, responde nidade:"~ que se_ d_eve a evol_uç~o constante e acelerada da responsabilidade? Corno explicar
pelo dano proveniente das coisas que dele caírem ou forem lançadas em lugar indevido"; (f) a seu v~o ta? rrod1g1oso? Quais sao as causas profundas, sejam sociais ou individuais, materiais
responsabilidade do transportador-art. 734: "O transportador responde pelos danos causados ou ps1colog1cas? A causa essencial, a mais tangível e que mais toca ao espírito, é ao mesmo
às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer tempo_ de ordem soei?! e mecânica, científica e material; deve ser procurada na multiplicidade
cláusula excludente da responsabilidade". dos acidentes, no caraterc?da vez mais perigoso da vida contemporânea. Antes, ao tempo dos
18 Na definição de Judith Martins-Costa: "Considerada do ponto de vista da técnica legislativa, nossos antepassados, o acidente era raro, ou, pelo menos, apresentava-se sob urna feicão tal
a cláusula geral constitui, portanto, urna disposição normativa que utiliza, no seu enunciado, q~e não era abs~lutarn~nte g;:adorde responsabilidades; as guerras, os assassinatos, as ~pide-
urna linguagem de tessitura intencionalmente aberta, fluida ou vaga, caracterizando-se pela n:11as, a fome faz1?rn muita~ v1~rnas, rna~se suportava então, sem recursos, o que se chamou 05
ampla extensão do seu campo semântico, a qual é dirigida ao juiz de modo a conferir-lhe risco~ da hurnarn~ade, pois nao sepod1a <;og1tarde pe_dir :ºn~as de sua desgraça a quem quer
um mandato (ou competência) para que, à vista dos casos concretos, crie, complemente ou ~u~ f?sse. Numa epoc? _em_ que remava soa pequena mdustna, quando o operário manejava
desenvolva normas jurídicas, mediante o reenvio para elementos cuja concretização pode m?1v1dualm;nte utensil~os inofensivos, quando as viagens, mesmo consideráveis, eram feitas a
estar fora do sistema". (MARTINS-COSTA, Judith.A boojé no direito privado: sistema e tópico no pe ou em ve1<;u_los a traçao animal, os fatos suscetíveis de importara responsabilidade delitual,
processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 303). p~r~mente civ1(, '.;ram pouco freque~tes, e o h_omem se sentia_~m segurança, na rua corno na
19 "Apenas _aguardar a previsão legal, caso a caso, para a conformação do viés objetivo da res- of1c_ma ou na laia . (JOSSERAND, Louis. Evoluçoo do Responsobd1dade Civil. Trad. Raul Lima. ln:
ponsabilização é circunstância que tantas vezes tem atado a percuciência do direito, tem Revista Forense, vai. 86, a. 38, abril de 1941, p. 556).
engessado seu exercício em face do dano concretizado e tem, insuportavelmente, deixado 22 De acordo com B~urnan, "os perigo: dos quais se tem medo podem ser de três tipos. Alguns ameaçam
sem resultado a situação prejudicial enfrentada pela vítima de danos" (HIRONAKA, Giselda o corpo e as propriedades. Outros soo de natureza mais geral, ameaçando a durabilidade da ordem
Maria Novaes. Responsabilidade pressuposto. Belo Horizonte: Dei Rey, 2003, p. 229). social e o confiobilidade nela, da qual depende a segurança do sustento (renda, emprego) ou mesmo
704 - CLÁUSULA GERAL DO Risco DA ATIVIDADE: A MAIORIDADE DO PARÁGRAFO ÚNICO ••• CARLOS EDISON DO RÊGO MONTEIRO FILHO E NELSON ROSENVALD - 705

e controlar normativamente todas as novas atividades evidenciadoras de go a especificação de um razoável número de hipóteses em que haverá
risco. O nexo de imputação apriorístico é um dado frágil em um mundo responsabilidade objetiva, porém delegou à doutrina e aos tribunais a
em rápida mutação. Sabe-se que o processo legislativo é naturalmente tarefa complementar de construir novas situações de obrigação objetiva
vagaroso e incapaz de criar uma redoma artificial plenamente capaz de de indenizar, forjando-se uma atividade conjunta de delimitação das áre-
assegurar incolumidade psicofísica e patrimonial a uma sociedade cir- as de liberdade e risco. A coexistência genérica entre a rigidez de previ-
cundada por riscos difusos, dispersos, desprovidos de endereço ou causa. sões específicas com a cláusula geral do risco defere ao sistema abertura
Mediante a cláusula geral do risco de atividade, surge zona mais para atualização constante das hipóteses de aplicação da teoria objeti-
ampla de proteção em face dos perigos calculáveis emanados de ativida- va.25 Esse é o dado da operabilidade. 26
des potencialmente danosas. Mesmo que o legislador, a priori, não tenha Mas o que exatamente significa a expressão atividade normalmen-
previsto as consequências indesejáveis de certa atividade, poderá a vítima te desenvolvida? De plano compreende-se que o objetivo do legislador
alicerçar a sua pretensão na teoria objetiva, caso reste demonstrado o lia- foi destacar o termo atividade da noção de fato ou ato. O fato do agen-
me de causalidade entre o risco da atividade e o dano sofrido. A cláusula te é um comportamento humano comissivo ou omissivo, normalmen-
geral se abre para acomodar as transformações para o futuro. Conforme te uma conduta isolada, que será negativamente valorada no plano do
disciplina a parte final do parágrafo único do art. 927, para que se con- direito obrigacional quando se tratar de uma atuação ilícita, evidencia-
dene o agente à reparação de danos patrimoniais ou extrapatrimoniais da como a causa adequada para a verificação do dano. Daí surgirá a res-
na ausência de norma, será necessário o preenchimento da cláusula ge- ponsabilidade subjetiva, estampada no caput do artigo 927 do Código
ral a fim de que se evidencie que a atividade normalmente desenvolvida Civil. Aqui se está no terreno da teoria geral do direito privado, no pla-
pelo autor do dano concretamente implica, por sua natureza, risco para no da eficácia dos fatos jurídicos.
os direitos de outrem. As atividades que naturalmente são fontes de ris- A rigor, a noção do exercício de uma atividade se assemelha a um
cos somente poderão ser dessa forma caracterizadas em um determinado processo, ou seja, uma dinâmica de calculada reiteração de atos ao longo
patamar da história, com possibilidade de mudança em razão das trans- do tempo, com os atributos da continuidade em seu desenvolvimento e
formações sociais e tecnológicas que acompanham a humanidade. 23-24 execução, e da predisposição dos meios empregados para a sua efetivação.
A opção metodológica do Código Civil consiste na edificação de
um sistema misto de imputação objetiva, no qual haverá distribuição de
tarefas entre o legislador e o judiciário: àquele, a priori, tomou a seu car- 25 Pietro Perlingieri leciona a respeito da historicidade dos institutos jurídicos: "A relativização dos
conceitos introduz o problema da sua historicidade. Pouco vale definir o direito de proprieda-
de c_omo direito subjetivo: é necessário identificar o seu conteúdo, individuar quais poderes
da sobrevivência no caso de invalidez ou velhice. Depois vêm os perigos que ameaçam o lugar da efetivamente tem o proprietário em uma certa ordem histórico-política. A propriedade pode
pessoa no mundo - a posição na hierarquia sacio!, a identidade (de classe, gênero, étnica, religiosa) ser definida como direito subjetivo, mas é necessário ter presente que em uma determinada
e, de moda mais geral, o imunidade à degradação e à exclusão sociais"(BAUMAN, Zygmunt. Medo ordem normativa e política pode encontrar maiores limites quantitativos e qualitativos. Os
líquido. São Paulo: Zahar, 2008, p. 10). conceitos jurídicos não pertencem apenas à história, mas, com oportunas adaptações, podem
23 "A abertura do sistema jurídico não contradita a aplicabilidade do pensamento sistemático na ser utilizados para realizar novas funções". (PERLINGIERI, Pietro. O direito ciltil na legalidade
Ciência do Direito. Ela partilha a abertura do sistema científico com todas as outras Ciências, constitucional. Trad.: Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 142).
pois enquanto no domínio respectivo ainda for possível um progresso no conhecimento, e, Ou, como obtempera a doutrina, "a responsabilidade objetiva revela um núcleo relacional de
portanto, o trabalho científico fizer sentido, nenhum desses sistemas pode ser mais do que um direitos e responsabilidades de primeira e segunda ordem em relação aos quais, em atividades
projecto transitório. A abertura do sistema objectivo é, pelo contrário, possivelmente, uma de risco, os idealizadores, realizadores e aproveitadores desses empreendimentos devem
especialidade da Ciência do Direito, pois ela resulta logo do seu objecto, designadamente, da suportar todas as perdas imerecidas que causem as pessoas afetadas, tal como se fosse um
essência do Direito, como um fenômeno situado no processo da História e, por isso, mutável". preço a pagar para continuar desempenhando determinados papéis. Em outras palavras, 0
(CANARIS, Claus-Wilhem. Pensamento sistemática e conceito de sistema na ciência da direita. dever de indenizar pode ser aferido preteri tamente à ocorrência do dano como correlativo ao
Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1996, p. 281). direito a não ser lesado em determinados interesses juridicamente protegidos. Tal fundamento
24 "Se aquele que atua na vida jurídica desencadeia uma estrutura social que, par sua própria natureza, relacional também se apoia na ideia de que na responsabilidade objetiva há um desequilíbrio
é capaz de pôr em risco os interesses e direitos alheias, a sua responsabilidade passa a ser objetiva. a~te~ior ~o dano cal~a_do na p~odução de um risc? pelo ofensor em relação às vítimas, que
Em outras palavras, é a noção metajurídica de 'atividade normalmente exercida pela autarda dano, nao e reciproco. As v1t1mas estao expostas a esse nsco desproporcional, de modo que, caso
que implique risco: a ser necessariamente concretizada pela intérprete, que definirá qual a regime esse risco se consume e se materialize, quando de fato o ofensor podia e deveria desenvolver
aplicável à responsabilidade, constituindo esta norma a projeção da diretriz da solidariedade social" medidas adequadas, deve ser obrigado a indenizar de modo a equilibrar uma relação marcada
(MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes teóricas do novo Código Civil · pela injustiça e desequilíbrio em seu nascedouro". (BONNA, Alexandre. Indenização punitiva e
brasileiro, op. cit., p. 75-76, p. 128). responsabilidade objetiva no Brasil, p. 105).
706 - CLÁUSULA GERAL DO Risco DA ATIVIDADE: A MAIORIDADE DO PARÁGRAFO ÚNICO ••• LlRLOS EDISON DO RÊGO MONTEIRO FILHO E NELSON ROSENVALD - 707

Demanda uma organização de fatores de produção incompatível com a to do autor do fato (fator anímico da culpa), como também abdica do
prática de condutas momentâneas ou esporádicas. 27 pressuposto do fato ilícito - cerne da teoria subjetiva -, conforme se
Não se sujeita à responsabilização independente de culpa quem ape- extrai do caput do art. 927 do Código Civil.
nas pratique um ato, posto que de causação de dano a outrem e a despei- Tradicionalmente, a antijuridicidade se limitava à ilicitude. Hoje,já
to até de seu eventual caráter perigoso e de extremo risco. A atividade se reconhecem novas fronteiras da antijuridicidade, para além do exame
requer continuidade e organização dos atos praticados, nunca a prá~i- da ilicitude, no controle de abusividade e no juízo de merecimento de
ca ocasional. Ilustrativamente, pensemos na carona, por mera cortesia. tutela. Porém, na cláusula geral do risco, o Código Civil parte da pre-
Faltaria pressuposto para a incidência do parágrafo único do artigo 927, missa de que mesmo uma atividade lícita e regularmente exercitada po-
justamente pela não caracterização de uma atividade, cuidando-se, antes, derá ser fonte de danos reparáveis, sendo suficiente o liame causal entre
da prática de um ato, ainda que recoberto de risco e mesmo que habitu- o risco inerente ao seu desenvolvimento e as lesões sofridas pela vítima. 29
al ou costumeiro o oferecimento de carona ou a utilização de carro para
A expressão atividade normalmente desenvolvida envolve ainda a
locomoção. Não se configuraria a atividade pela ausência de uma sequ-
questão crucial da alocação de riscos, isto é, da necessidade de somente se
ência coordenada de atos organizados para o alcance de uma dada fina-
imputar objetivamente a reparação de um dano a uma pessoa se o risco
lidade, de um escopo, de um objetivo único juridicamente considerado. 28
for próprio à atividade. Apenas quem tem condições de evitar um risco
Em seguida, "na atividade normalmente desenvolvida", destaca-se ou mitigá-lo de forma eficiente deverá suportá-lo caso ocorra. 30 Ilustre-
o advérbio normalmente. "Normalmente" significa que a atividade é lí- se com o atualíssimo debate respeitante à obrigação dos provedores de
cita, autorizada e regulamentada pelo Estado. Na teoria do risco, não Internet de suprimir conteúdo ofensivo de páginas virtuais e de repa-
mais se indaga a respeito do bom ou mau comportamento do agente rar danos morais causados por ofensas propagadas em sites. Aqui reside
- pois despiciendo localizar um erro de conduta ou infração a um de- um risco inerente à atividade, potencialmente apta a gerar danos exis-
ver preexistente. Na expressão atividade normalmente desenvolvida pelo tenciais a um elevado número de pessoas. Efetivamente, cumpre ao for-
agente, a dicção normativa afasta qualquer discussão sobre a eventual necedor adotar todas as medidas idôneas para excluir prontamente o
anormalidade do ato danoso, tratando-se de atividade lícita, adequada conteúdo ofensivo de sua base de dados, bem como facilitar a identifi-
à ordem econômica e social, que inclusive pode ser fonte de inegáveis cação dos ofensores anônimos e, preventivamente, realizar um controle
ganhos para toda a coletividade. Daí que o dispositivo em comento mínimo para individualizar os participantes do site. Esses são os riscos
rechaça não só a avaliação sobre uma possível falha de comportamen-=- que podem ser alocados ao fornecedor, como intrínsecos à sua ativida-
"Uma atividade é uma série contínua e coordenada de atos e não se confunde com um ato de. Contudo, não se pode considerar como própria a essa atividade a tu-
único ou com atos isolados, que permanecem sob o ãmbito de incidência da culpa. Nesse
caso, a imputação não decorre de alguma 'ação subjetiva' ma: ~a atri~uiç~o a un:i :ujeito da 29 "O regime da responsabilidade está passando por uma revisão importante, e manifestam-se
responsabilidade pelos danos causados pela atividade de que e t1tul~r, isto e, da ~t1v1dade por tendências que o renovam significativamente. A mais interessante mudança de ângulo visual
ele explorada. Assim, a expressão 'atividade normalmente d~senvolv1da' deve se~ interpretad_a é o giro conceituai do ato ilícito para o dano injusto". Econtinua o autor: "Dentre as tendências
como 'atividade organizada': no estágio atual de nossa sociedade,? de:envolv1ment~ c01:t1- renovadoras, salientam-se a que induz à mudança de justificação da obrigação de indenizar,
nuado (não eventual ou errático) de qualquer atividade demanda, e 1mpoe, asuaorgamzaçao. o alargamento da noção de dano, a aceitação ampla do dano moral e a tutela aquiliana do
Nesses casos não tem sentido isolar um comportamento, gerador em concreto do dano, sem crédito". (GOMES, Orlando. Tendências modernas na teoria da responsabilidade civil. ln:
referi-lo à inteira atividade em virtude da qual o dano ocorreu. Confirma esta interpretação o FRANCESCO, José Roberto Pacheco Oi (org.). Estudos em homenagem ao Professor Sílvio
entendimento usual de que a culpa era critério de imp~ta~ão su'.i;ient~ no :mundo d?s_atos'} Rodrigues. São Paulo: Saraiva, 1989, pp. 293-294).
no chamado 'mundo das atividades', ambiente porexcelenc1a dos Jª aludidos danos anommos, 30 Por essa razão, aliás, faz-se a distinção entre fortuito interno e fortuito interno para distinguir
a responsabilidade objetiva faz-se imprescindível" (BODIN ~E MORAES, Maria Celina. Risco, os riscos inerentes à atividade e, por isso, assumido pelo agente, dos riscos que lhe são alheios
solidariedade e responsabilidade objetiva. ln: Revista dos Tnbuna,s, a. 95, vol. 854, deze_mbro e, por isso, são capazes de romper o nexo de causalidade: "Com a entrada em vigor da neces-
2006, pp. 27-28). Nesse mesmo sentido, Cláudia Lim_a Marques, ao se de?ruça~ a res~~1to ~o sidade de proteção aos direitos do consumidor, foi criada uma teoria que, mesmo em situação
termo "que desenvolvem atividade", presen_te no artigo 3º_ do CDC, des:,inado a q~al:f1~a_çao de responsabilidade objetiva, pudesse, ainda mais, favorecer a necessidade de reparação
de fornecedor para fins de aplicação do reg1m: c~nsumensta, ob~erva:_ a expres~ao ~t1v1d~: que passou a andar de mãos dadas à crescente complexidade de relações sociais. Era a teoria
des', no caput do art. 3º parece indicar~ e_xigenc1a de alguma re1~eraçao ou ~ab1tu~hdade : do fortuito interno. Foram, portanto, estabelecidas situações que o nexo de causalidade não
(MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Cod,go de Defesa do Consumidor, vol. 1. 3 ed. Sao Paulo. poderia ser rompido. Assim, danos que tivessem sua origem dentro do círculo de proteção da
Revista dos Tribunais, 1998, p. 163). . empresa não teriam o condão de afastar o nexo, o que, por consequência, manteria intacto
GODOY, Cláudio Bueno de. Responsabilidade civil pelo risco da atividade. São Paulo: Saraiva, o dever reparatório". (CORRÊA, Thiago Pinheiro. Considerações sobre a teoria do fortuito
2006. p. 56-57. externo. ln: Revista Trimestral de Direito Civil, v. 52, out./dez. 2012, p. 157).
708 - CLÁUSULA GERAL DO Risco DA ATIVIDADE: A MAIORIDADE DO PARÁGRAFO ÚNICO ••• CARLOS Eo1SON DO RÊGO MONTEIRO FILHO E NELSON ROSENVALD - 709

tela dos usuários quanto ao risco de lesão à honra ou à intimidade por atividade, como também terceiros, estranhos aos riscos da atividade e
eventuais ofensas advindas de outros usuários do mesmo serviço, mesmo alheios à sua execução, sem se olvidar que os empregados eventualmen-
que de forma anônima. Ademais, exclui-se do risco inerente à atividade te lesados já possuem amparo em termos de imputação objetiva pela le-
do fornecedor a realização de análise prévia do material veiculado pelos gislação previdenciária (Lei n. 8.213/91). Imagine-se uma explosão em
internautas, o que demandaria uma complexidade técnica desproporcio- posto de combustíveis com inúmeras vítimas entre transeuntes e em-
nal, além de um dilema ético de se conferir a um provedor de Internet pregados, ou uma tragédia em festa realizada em um clube, na qual vá-
a função de gestor sobre a liberdade de expressão. 31 Em outros termos, rios sócios se ferem pela má manipulação dos explosivos realizada pelo
de forma segura o STJ se perfilha ao consenso construído em âmbi- encarregado da cerimônia. Realmente, é visando precipuamente à tu-
to global, no sentido de limitar a responsabilidade civil dos provedores tela da sociedade em face dos múltiplos riscos oriundos de empreendi-
de aplicações pelos danos eventualmente causados; consenso do qual se mentos intrinsecamente danosos que o Enunciado nº 445 do Conselho
tem extraído a noção segundo a qual "onde há controle haverá respon- de Justiça Federal proclama que "A responsabilidade civil prevista na se-
sabilidade, mas na falta desse controle o fornecedor não é responsável". gunda parte do parágrafo único do art. 927 do Código Civil deve levar em
Assim, identificando-se uma atividade de mero transporte de informa- consideração não apenas a proteção da vítima e a atividade do efensor, mas
ções, não tendo o provedor qualquer decisão quanto ao conteúdo da in- também a prevenção e o interesse da sociedade".
formação ou à seleção dos destinatários do referido conteúdo, afastada Ademais, ao mencionar o risco para os direitos de outrem, quais direi-
estará sua eventual responsabilização. tos seriam esses? Se se entende que uma cláusula geral desse jaez deva
Adiante, o trecho derradeiro do parágrafo único do artigo 927 estabelecer imediata conexão com a tutela da dignidade da pessoa huma-
enuncia: "risco para os direitos de outrem". Por conseguinte, o termo ou- na e da solidariedade social, como de fato se acredita, nada mais natural
trem abrange tanto as vítimas que participaram do desenvolvimento da do que considerar que o risco da atividade seja suscetível de ofender si-
tuações jurídicas patrimoniais e existenciais do indivíduo. Não se cuida
31 STJ, Informativo n. 55, período: 19 de marco a 6 de abril de 2015. Terceira Turma.
"RESPONSABILIDADE POR OFENSAS PROFERIDAS POR INTERNAUTA E VEICULADAS EM tão somente de uma atividade de inerente potencial lesivo para a incolu-
PORTAL DE NOTÍCIAS. Asociedade empresária gestora de portal de noticias que disponibilize midade econômica ou psicofísica de vítimas em potencial, mas também
campo destinado a comentários de internautas terá responsabilidade solidária por comentá-
rios, postados nesse campo, que, mesmo relacionados à matéria jornalística veiculada, sejam por sua natural aptidão para vilipendiar a honra, intimidade, liberdade
ofensivos a terceiro e que tenham ocorrido antes da entrada em vigor do marco civil da inter-
net (Lei 12.965/2014). Inicialmente, cumpre registrar que, de acordo com a classificação dos
e outros bens jurídicos inerentes à personalidade humana. Nesse dia-
provedores de serviços na internet apresentada pela Min. Nancy Andrighi no REsp 1.381.610- pasão, afigura-se adequado o teor abrangente do Enunciado n. 555 do
RS, essa sociedade se enquadra nas categorias: provedora de informação -, que produz as
informações divulgadas na Internet-, no que tange à matéria jornalística divulgada no site; e Conselho de Justiça Federal: "Os direitos de outrem' mencionados no pará-
provedora de conteúdo-, que disponibiliza na rede as informações criadas ou desenvolvidas grafo único do art. 927 do Código Civil devem abranger não apenas a vida
pelos provedores de informação-, no que tocante as postagens dos usuários. Essa classificação
é importante porque tem reflexos diretos na responsabilidade civil do provedor. De fato, a e a integridadefísica, mas também outros direitos, de caráter patrimonial ou
doutrina e a jurisprudência do STJ têm se manifestado pela ausência de responsabilidade dos
provedores de conteúdo pelas mensagens postadas diretamente pelos usuários e, de outra extrapatrimonial'.
parte, pela responsabilidade dos provedores de informação pelas matérias por ele divulgadas.
Não obstante o entendimento doutrinário e jurisprudencial contrario à responsabilização dos Destarte, com espeque no parágrafo único do art. 927 do Código
provedores de conteúdo pelas mensagens postadas pelos usuários, o caso em analise traz a Civil, estabelece-se a tríade de pressupostos hábeis à eclosão da teoria
particularidade de o provedor ser um portal de notícias, ou seja, uma sociedade cuja atividade
é precisamente o fornecimento de informações a um vasto público consumidor. Essa particu- objetiva quando o nexo de imputação se traduzir no elemento do ris-
laridade diferencia o presente caso daqueles outros julgados pelo STJ, em que o provedor de co: (a) risco da atividade; (b) dano; (c) nexo causal.
conteúdo era empresa da área da informática, como a Google, a Microsoft etc. Efetivamente,
não seria razoável exigir que empresas de informática controlassem o conteúdo das postagens
efetuadas pelos usuários de seus serviços ou aplicativos. Todavia, tratando-se de uma sociedade 3. AINDA A QUESTÃO: RISCO PROVEITO OU RISCO CRIADO?
que desenvolve atividade jornalística, o controle do potencial ofensivo dos comentários não
apenas é viável, como necessário, por ser atividade inerente ao objeto da empresa. Consigne- São sutis as estremas entre as teorias do risco proveito e risco cria-
se, finalmente, que a matéria poderia também ter sido analisada na perspectiva do art. 927,
parágrafo único, do CC, que estatuiu uma cláusula geral de responsabilidade objetiva pelo do.A primeira exigindo a demonstração do proveito auferido pelo agen-
risco, chegando-se a solução semelhante à alcançada mediante a utilização do CDC" (REsp te com a atividade indutora de risco; em contrapartida, a teoria do risco
1.352.053-AL, rei. Min. Paulo de Tarso Sanseverino).
710 - CLÁUSULA GERAL DO Risco DA ATIVIDADE: A MAIORIDADE DO PARÁGRAFO ÚNICO ••• CARLOS EDJSON DO RÊGO MONTEIRO FILHO E NELSON ROSENVALD - 711

criado se satisfaz com a constatação objetiva da relação de causalidade é, com o capitalismo pós-industrial ou financeiro, não se enquadrando
entre o risco de uma atividade e o dano reparável, ou seja, independente- perfeitamente em qualquer das categorias fundamentais da teoria geral
mente da obtenção de qualquer proveito, basta perquirir se, em seu exer- do direito, mas congregando elementos próprios a várias delas. 34
cício e desenvolvimento, a atividade criou risco para terceiros. Seguindo esse raciocínio, para os adeptos da teoria do risco provei-
Em sua parte final, o dispositivo analisado não fornece resposta ime- to, em qualquer processo que se desconecte de um objetivo econômico
diata, veja-se: "ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor e organizado para a produção ou circulação de bens e serviços, todos os
do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem". A te- danos decorrentes do desenvolvimento da atividade não serão remeti-
oria do risco proveito não se compraz com a aferição de um dano pro- dos ao parágrafo único do artigo 927. Ilustrativamente, se uma entidade
veniente do risco de uma atividade qualquer. Ela demanda mais do que beneficente causasse danos a terceiros no desempenho de seus objetivos
isso. Requer a evidência de um proveito para o seu titular. Certo é que institucionais, mesmo que evidenciado o risco da atividade, a solução se
o proveito é inerente a toda e qualquer atividade levada a efeito por um daria no terreno da responsabilidade subjetiva. Da mesma forma, se um
ser humano, exceto se não resultar de um ato de liberdade (se a autode- surfista treina diariamente em uma praia indistintamente frequentada
terminação do agente estiver afetada, ingressa-se no plano dos vícios do por banhistas e em alguns deles provocasse lesões, estas só seriam impu-
consentimento). Esse proveito pode ser de ordem econômica, social ou tadas ao profissional do esporte se evidenciado o ilícito culposo.
particular. Assim, se o legislador realmente desejasse vincular a origem Em termos pragmáticos, sabe-se que a quase totalidade de even-
do proveito do agente com o desempenho da atividade, paradoxalmen- tos lesivos desencadeados por atividades serão emanados de empresas,
te retornaria à teoria subjetiva. A investigação do elemento intencional, seja o agente um empresário individual ou coletivo (pessoa jurídica).
anímico, respeitante às motivações do protagonista da atividade, repre- Decisivamente, o núcleo da empresa é forjado pelo binômio iniciativa/
senta por via oblíqua um resgate da abordagem psicológica que a dou- risco. Sendo sua atuação invariavelmente vinculada a um mercado, su-
trina objetiva justamente quis suprimir. 32 portará o bônus e o ônus, o cômodo e o incômodo. Outrossim, a em-
Então, para a legitimação da teoria do risco proveito no Código Civil presa revela-se o agente econômico que possui as condições necessárias
de 2002, necessariamente teríamos que admitir que o vocábulo provei- para absorver o abalo negativo de obrigações objetivas de indenizar. Pelo
to se ajusta a uma objetiva e rigorosa definição econômica de atividade fato de deter estrutura voltada à introdução massificada e impessoal de
voltada ao lucro, ou melhor, "atividade empresarial". 33 A empresa é uma produtos e serviços no mercado, os danos são estatisticamente previsí-
organização de pessoas, bens e atos voltada para a produção e circulação veis e o impacto das condenações será mitigado ou mesmo neutralizado
de mercadorias ou serviços destinados ao mercado, com o fim de lucro e pela técnica da securitização privada, ou pela internalização dos prejuí-
sob a iniciativa e o comando de um empresário. Constitui-se em estru- zos pela via da socialização dos custos dos produtos.
tura econômica complexa, formada pela reunião e disposição racional de Nada obstante, o acolhimento da teoria do risco proveito na herme-
elementos totalmente heterogêneos, cuja concepção está identificada com nêutica do parágrafo único do artigo 927 provocaria uma fratura entre o
a criação de formas extremamente intensivas de emprego de capital, isto Código Civil e a sua diretriz da eticidade. A teoria subjetiva possui só-
32 Nessa linha também caminha Caio Mário da Silva Pereira: "Muito embora o ideia de proveito haja lido fundamento moralista. A sua intenção é a de reprovar o comporta-
influenciado de maneira marcante a teoria do risco, a meu ver é indispensável eliminá-la, porque a mento do causador do dano quando este se divorcia de bom senso e da
demonstração, por parte da vítima, de que o ma/foi causado não porque o agente empreendeu uma
atividade geradora de dano, porém porque desta atividade ele extraiu um proveito, é envolver, em normalidade. Naqueles casos em que o agente poderia ter optado por
última análise, uma influência subjetiva na conceituação do responsabilidade civil" {PEREIRA, Caio
Mário da Silva. Responsabilidade civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 287).
outra forma de agir, mas não o fez. 35 Em suma, a doutrina subjetiva as-
33 "Para a teoria do risco proveito, construída por Raymond Saleilles, o fundamento da respon-
sabilização objetiva residiria justamente nos benefícios auferidos por aqueles cuja atividade 34 BARBOSA FILHO, Marcelo Fortes. Código Civil comentado. 14ª ed. São Paulo: Manole, 2020,
cria ou agrava o risco, restringindo-se, portanto, as hipóteses de incidência do dispositivo às p.964.
atividades lucrativas cujo desenvolvimento, representando considerável risco, gerasse proveito 35 "Agir culpavelmente significa atuar o agente em termos de, pessoalmente, merecer a censura
econômico para os seus titulares" TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde; ou reprovação do Direito. Mas só merece esse juízo de reprovação, repita-se, o agente que,
GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Fundamentos do Direito Civil, vol. 4. Rio de Janeiro: Forense, em face das circunstâncias concretas, podia ou devia ter agido de outro modo". (CAVALIERI
2020, p. 114). FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Atlas, 2014, p. 43).
712 - CLÁUSULA GERAL DO Risco DA ATIVIDADE: A MAIORIDADE DO PARÁGRAFO ÚNICO ..• CARLOS folSON DO RÊGO MONTEIRO FILHO E NELSON ROSENVALD - 713

sume a responsabilidade como reverso da liberdade somente nos casos si~er~dos, a entidade beneficente e o surfista serão obrigados a reparar,
em que a vítima demonstre que o ofensor irresponsavelmente se serviu obJet1vamente, os danos causados pelo risco da atividade, apesar de em
do livre-arbítrio. Se, sob o ponto de vista da moral cristã, a teoria reflete nenhuma das hipóteses se configurar uma atividade empresarial volta-
a condenação como reprovação social ao pecado, certamente a necessi- da ao mercado de produtos e serviços.
dade de se encontrar um culpado pelo ilícito se ajustava perfeitamente Uma concepção ética de responsabilidade civil requer um neces-
às necessidades de um sistema capitalista em formação, no qual a pre- sário liame entre os objetivos vislumbrados pelo ordenamento ao sis-
servação do status quo da classe em ascensão seria fortemente auxiliada tematizar esse modelo jurídico com a tutela da dignidade da pessoa
por um ordenamento jurídico que cultuasse a "irresponsabilidade civil" .36 humana, viga mestra do ordenamento, nos termos da Constituição de
Contudo, a teoria objetiva parte de uma concepção ética, e não mo- 1988. Em sede de obrigação de reparar danos, o preenchimento do con-
ral. A ética é uma filosofia de resultados. Ela se preocupa com as conse- teúdo da cláusula geral do parágrafo único do artigo 927 do Código
quências das ações assumidas por quem detém o poder. O protagonismo Civil se dará em conexão sistemática com a Constituição Federal, den-
da doutrina objetiva é deferido à tutela da integridade patrimonial e psi- sificando não apenas os princípios da dignidade, como da solidariedade,
cofísica da vítima em detrimento de considerações subjetivas sobre a cen- mediante linha doutrinária que melhor considere a tutela da vítima,
sura ao comportamento do agente. Se a responsabilidade subjetiva foi sopesando o contexto cultural e os problemas concretos da sociedade
eficiente em garantir a segurança jurídica, a propriedade e os privilégios brasileira, majoritariamente excluída do direito fundamental ao acesso
de determinado grupo, a teoria objetiva investe suas energias no acesso substancial ao judiciário e à ordem jurídica justa. 39
a direitos fundamentais. 37 Acesso à cidadania, ao mínimo existencial e, Aliás, se realmente o legislador desejasse a aplicação da teoria do
principalmente, acesso ao judiciário mediante o exercício de pretensões risco proveito, em vez de se referir à atividade normalmente desenvolvida
de reparações de danos, sem que o ofendido seja constrangido a produ- pelo autor (parágrafo único do art. 927), teria seguido a fórmula empre-
zir prova diabólica do ilícito culposo do agente. gada na redação do art. 966 do Código Civil e se servido do conceito de
Sendo assim, para fins de restauração do equiliôrio desfeito pela "atividade econômica", tal como obrou para qualificar o empresário. No
lesão, a teoria objetiva é extremamente positiva no sentido de reduzir a mais, não há qualquer referência na lei à necessidade de lucratividade o
'
que evidencia que o legislador não quis distinguir a atividade remunerada
duração do litígio, barateá-lo e gerar efetividade. Nesses termos, na com-
da não remunerada. Por fim, lembra a doutrina40 que o advérbio de fre-
paração entre a teoria do risco proveito e a do risco criado, em termos de
quência normalmente, indicado na norma, se por um lado indica que não
eticidade, esta última nos parece mais adequada, pois expande a prote-
se pode pensar em atividade que seja esporádica, de outra parte não au-
ção das situações existenciais da pessoa humana, deferindo a obrigação
toriza compreendê-la necessariamente econômica, profissional ou em-
objetiva de indenizar mesmo que os danos não tenham sido produzidos
presarial, em redução indevida do elastério da cláusula geral que ora se
no exercício de uma atividade empresarial. 38 Nos exemplos acima con-
36 ROSENVALD, Nelson.Asfunções da responsabilidade civil. 3ª ed. Saraiva. São Paulo. 2018, p. 12. que resulte e1;1_ lucro ou_ v~nt~gem econômica ~ara o agente para que haja a caracterização
37 "a responsabilidade objetiva 'ocupa espaços que deveriam ser ocupados pela segurança social'; da re_sronsabil_1d~de obJ~t1~a . (GIORDANI, Jose Acir Lessa. Responsabilidade Civil Objetiva
o ônus do dano não imputável, em uma moderna concepção, 'deveria ser, antes de tudo, um Genenca no Dire1t~ ~rasile1:~: 1~0 anos de_ atraso. ln: MARTINS, Guilherme Magalhães (Org).
ônus social, de natureza tributária, inspirado no princípio da capacidade contributiva'. Esta Temas de responsab!l,dade Cwi/. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 258).
tendência, que permitiria o restabelecimento de relações mais homogêneas e corretas entre 39 Observe-se que nao ape~as a responsabilidade objetiva, mas também a subjetiva encontra
civil e penal, partes de um sistema único, idôneo para realizar finalidades preventivas, de fundamento no personalismo e no solidarismo constitucionais: "torna novamente atual 0
desestímulo e, ao mesmo tempo, uma mais equânime distribuição dos ônus" (PERLINGIERI, deb~te, na realidade nun_c_a exaur_id_o, sobre o papel da culpa, ou melhor, do perfil subjetivo
Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad.: Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: do sistema da responsabilidade c1v1I. Elemento este não excluído por quem, identificando 0
Renovar, 2008, p. 155). fundame!1to da responsabilidade civil no principio solidarístico, propugnou 'o deslocamento
"A teoria do risco criado importa em ampliação do conceito de risco proveito. Aumenta os da atençao do _autor do d_ano para a vítima' e atribuiu ao ressarcimento o papel de remédio
encargos do agente; é, porém, mais equitativa para a vítima, que não tem de provar que o para o dano: nao de ~a~çao para a ilicitude. Na realidade, à solidariedade se adapta não ape-
dano resultou de uma vantagem ou de um benefício obtido pelo causador do dano. Deve este nas o conteudo do d1re1to do lesado ao ressarcimento do dano sofrido, mas também o dever
assumir as consequências de sua atividade". (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade de_comrortamen50 do agente. O agir dos sujeitos, por força do cânon solidarista, se deve
Civil. 11ª ed. Atualizado por Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro: Forense, 2016, pp. 357-361). umfo~m1~ar a parametros _cons_tit_ucionai~"- (PER~INGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade
Ainda sobre a teoria do risco criado, José Acir Lessa Giordani anota que a atividade "pode const1tuc1on~I. :rad.: Mana Cnstma de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 155).
ser de cunho profissional, recreativa, de mero lazer, não havendo, assim, necessidade de 40 GOMES, JoseJa1ro. Responsabilidade civil e eticidade. Belo Horizonte: Dei Rey, 2005 p. 325.
714 - CLÁUSULA GERAL DO Risco DA ATIVIDADE: A MAIORIDADE DO PARÁGRAFO ÚNICO ... CARLOS EDISON DO RÉGO MONTEIRO FILHO E NELSON RoSENVALD - 715

agita. Exemplifica com "uma aeronave particular, não usada comercial- va, irremediavelmente restará comprometido o avanço da livre-iniciativa
mente, que, ao pousar num campo, mate uma res, sem que tenha havido e empreendedorismo, fundamentos do enriquecimento material e inte-
culpa do piloto (o animal, assustado, precipitou-se contra o artefato), o lectual das sociedades contemporâneas. Entretanto, não foi isso que se
qual era devidamente habilitado. Em tal caso, poderá o piloto ser res- viu desde a inclusão da cláusula geral de responsabilidade objetiva no
ponsabilizado objetivamente com base na regra em análise". direito brasileiro, tendo havido, na realidade, a incorporação dos custos
Ilustrativamente, se várias pessoas se integram como membros de decorrentes da adoção do modelo do risco "pelo mercado sem prejuí-
uma torcida organizada de uma determinada equipe ou são participan- zo do ressarcimento das vítimas de danos injustos, implementando-se
tes habituais de "rachas" de automóveis, mesmo que inexista intuito de o modelo solidarista de responsabilidade fundado na atenção e no cui-
lucro nos jogos de futebol ou nos "pegas", o simples fato de empreende- dado para com o lesado". 43
rem atividade indutora de especial risco contra terceiros já será funda- Qyal seria o potencial de risco de uma atividade que justifique a
mento suficiente para que eventuais ofendidos se sirvam do parágrafo imputação objetiva de danos ao agente? Qyais serão as circunstâncias
único do artigo 927 do Código Civil. não aleatórias que legitimam o sistema privado a ir além da responsa-
Apesar de sua incompatibilidade com uma cláusula geral do risco bilidade subjetiva para proporcionar às vítimas a superação do requisito
da atividade, o sistema de direito privado não abandonou por comple- da culpa? Qyando o dispositivo legal em comento enuncia que a ativi-
to a teoria do risco proveito. Ela ainda pode ser encontrada em domí- dade implica risco, por sua natureza, oferece importante subsídio. Isso
nios específicos. 41 significa que o risco é um dado da atividade, tratando-se de uma qua-
lidade preexistente e intrínseca a ela. Isso significa que por mais que o
4. À GUISA DE CONCLUSÃO: RISCO CRIADO PELA PARTICULAR
empreendedor atue de forma diligente, a atividade, por sua própria na-
POTENCIALIDADE LESIVA DA ATIVIDADE
tureza ou pela natureza dos meios empregados, produz um alto índice
A insuficiência da expressão teoria do risco criado já fora objeto de de <lanosidade. O responsável pela reparação será a pessoa que empre-
apreciação crítica por Aguiar Dias. 42 Afinal, por deficiência técnica deixa ende, seja por dirigir ou apenas organizar a atividade, disciplinando os
sem resposta a questão capital da causa: por que deve o homem arcar meios e mecanismos de sua execução. Através de seus subordinados -
com o risco, ou, ainda, por que deve suportar o risco que criou? Uma aqueles que desempenhem a atividade mediante ordens ou instruções
cláusula geral que genericamente estipulasse obrigação objetiva de in- -, será possível identificar o responsável e lhe atribuir a obrigação obje-
denizar, pelo simples fato de o agente criar um risco no desenvolvimen- tiva de indenizar.
to de sua atividade, seria contraproducente em sua base teórica e nos
Por aí já se alcança uma primeira conclusão: não é exata a menção
resultados práticos.
à expressão atividade de risco, mas sim risco da atividade. A adoção da -
No aspecto pragmático, poder-se-ia argumentar que, se o risco ge- quela causa a errônea noção de que o agente poderia ter atuado de for-
rado por qualquer atividade se converter em fator de imputação objeti- ma vigilante e responsável, mas deliberou por converter a sua atividade
em uma "atividade de risco". Mais uma vez, por um paradoxo, alcança-
41 Ilustrativamente, asseveraaSúmula492 do Supremo Tribunal Federal que: "A empresa locadora
de veículos responde, civil e solidariamente com o locatário, pelos danos por este causados ríamos a teoria subjetiva. Porém, o risco não se situa no desempenho
a terceiros, no uso do carro locado". Se o locatário se responsabiliza subjetivamente pelos
danos causados à vítima, a pessoa jurídica locadora se submeterá à reparação objetiva pelo
bom ou ruim da iniciativa por A, B ou C, mas no risco inerente à própria
nexo causal entre o proveito econômico de sua atividade e os aludidos danos. No mesmo atividade. Isto é, tanto faz se a empresa é conduzida por uma ou outra
apelo ao risco proveito se consubstancia o inciso IV do art:_932 do Códi?o Civil: "São também
responsáveis pela reparação civil:[... ] IV- os donos de ~ateis, hosped.'.1nas, casas ou e_stabele- pessoa, pois é da própria natureza daquela atividade que se produzam
cimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fms de educaçao, pelos seus hospedes,
moradores e educandos". Daí se dessume que o hoteleiro apenasse vinculará à teoria objetiva
quando exercer atividade econômica voltada a esse serviço. Eventual dano na constância de
hospedagem gratuita será objeto de responsabilidade subjeti~a. . , ,
42 AGUIAR DIAS, José de, Da responsabilidade civil. 11ª ed. Atualizado por Rui Berford Dias. Rio 43 BODIN DE MORAES, Maria Celina. LGPD: um novo regime de responsabilização civil dito
de Janeiro: Renovar, 2006, p. 76. proativo. ln: civilistica.com, editorial, a. 8, n. 3, 2019.
716 - CLÁUSULA GERAL DO Risco DA ATIVIDADE: A MAIORIDADE DO PARÁGRAFO ÚNICO •.•
CARLOS EDISON DO RÊGO MONTEIRO FILHO E NELSON ROSENVALD - 717

danos em escala anormal, em comparação com outras atividades reali- Deve ficar claro que o risco é conceito mínimo. Obviamente, as
zadas no mercado. 44 atividades perigosas, mais do que arriscadas, estão acobertadas ·pelo pa-
rágrafo único do art. 927. Se o menos - o risco - gera a imputação ob-
Com razão, o Enunciado n. 38 do Conselho de Justiça Federal pro-
jetiva de danos, o mais - o perigo - também o faz. Em suma, o risco é o
clama: "a responsabilidade fundada no risco da atividade, como prevista na
piso mínimo para a incidência da norma. A conclusão não seria esta se
segunda parte do parágrafo único do art. 927 do novo Código Civil, corifi-
o nosso Código Civil adotasse o mesmo vocábulo - perigo - que cons-
gura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano
ta dos códigos da Itália e Portugal. Por certo, caso se responda objeti-
causar a pessoa determinada um ônus maior do que aos demais membros da
vamente pelo perigo - conceito maior e mais agravado-, não se pode
coletividade". Sua mensagem é significativa: o risco é especial e inerente
deduzir que se responda da mesma forma pelo risco, que é conceito me-
à particular potencialidade lesiva de uma atividade, pois a despeito de
nor e menos agravado. 47
quem a coordena, o seu simples desenvolvimento induzirá a produção
de danos quantitativamente numerosos ou qualitativamente graves. A Nesse passo, acertado o Enunciado n. 553 do Conselho de Justiça
atividade em si é lícita e tolerada por sua utilidade social, apesar de ser Federal por dispor que "Nas ações de responsabilidade civil por cadastra-
fonte de cometimento de danos. mento indevido nos registros de devedores inadimplentes realizados por ins-
tituições.financeiras, a responsabilidade civil é objetiva". Ilustrativamente,
Aliás, não se pode confundir o risco inerente a certa atividade com o
são milhares os casos de correntistas que sofrem danos a situações pa-
perigo à exposição a essa atividade. Elevada <lanosidade não é consequência
trimoniais e/ou existenciais por negativação cadastral, em face do risco
obrigatória da periculosidade de uma atividade. Certamente, grande parte
inerente à atividade bancária de controle de títulos falsificados ou obti-
dos eventos danosos será atribuída a empreendimentos intrinsecamente
dos por via criminosa (v. g., furto ou roubo). Cuida-se de um risco espe-
perigosos (v. g., atividade elétrica, gás, farmacêutica, explosivos etc.). Nada
cial e anormal induzido pela atividade bancária, independentemente de
obstante, o que avulta não é a periculosidade dos meios empregados pelo
qualquer cautela específica da instituição financeira A, B ou C. Todavia,
agente, mas a potencialidade lesiva de sua atividade. Qyer dizer, exige-
o correntista não está propriamente exposto a um perigo, mas sim a um
-se não um perigo anormal, e nem propriamente um perigo, mas antes
dano econômico e/ou moral. 48
um risco especial naturalmente induzido pela atividade e identificado
de acordo com dados estatísticos existentes sobre danos que lhe sejam
resultantes, ou seja, conforme a verificação da regularidade estatística 47 TARTUCE, :lávio. Respo_nsobilid~de civil objetivo e o risco. São Paulo: Gen/Método, 2011. p. 195 .
48 O correntista tem d1re1to a :er indenizado pela instituição financeira em razão dos prejuízos
com que o evento lesivo aparece como decorrência da atividade exercida. deco~rentes da c~mpen~açao de c~e:iue em valor superior ao de emissão na hipótese em que
Tomem-se exemplos como o da atividade de cobrança de títulos, como esse titulo tenha sido objeto de sof1st1cada adulteração por terceiro. O parágrafo único do art.
39 ~~ Lei 7.357/1985 preconiza que 'o banco sacado responde pelo pagamento do cheque falso,
protesto e negativação, ou da atividade de bancos de dados e de cadas- fals1f1cado ou alterado, salvo dolo ou culpa do correntista, do endossante ou do beneficiário
dos quais poderá o sacado, no todo ou em parte, reaver o que pagou'. Esse dispositivo sinaliza~
tro de consumidores. 45 Foco, ambos os casos, de constante causação de respo~sabilidad': objetiva dos bancos pelo pagamento de cheque alterado, sem fazer nenhuma
danos, mesmo que não se trate propriamente de atividades perigosas. 46 mençao q_uant~ a qual_idade de~sa adulteração. Nesse contexto, no que tange ao falso hábil -
aquele cuia !als1da~e.: perceP_t1ve( s~me_nte com aparelhos especializados de grafotécnica -,
abrem-se tres poss1b1hdades: mex1stenc1a de culpa do correntista, culpa exclusiva do cliente
•~ exi ênc!a da lei, está em que a atividade do agente deva normalmente induzir particular e culpa concorrente. Na primeira hipótese, que retrata a situação em análise, o banco procede
44 9 ao pagamento do cheque habilmente falsificado sem que o correntista tenha qualquer parcela
risco, isto e, por sua natureza deve ser foco de risco a outras pessoas ou seus bens. O risco deve
ser inerente à atividade e não resultar do específico comportamento do agente. Trata-se de de culpa no evento danoso. Nesse caso, a instituição bancária responde objetivamente pelos
uma potencialidade danosa intrínseca do que seja uma atividade organizada. São hipóteses ~anos causados po~ frau~es ou de!itos yraticados por terceiros, porquanto essa responsabi-
em que, mesmo lícita e exercitada regular e normalmente, a atividade por si cria maior risco lidade ?ecorre ?e v1olaç?? da obrigaç~o contrat~almente assumida de gerir com segurança
a terceiros, independentemente de quem a exerça". GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Código as mov1mentaçoes bancarias de seus clientes. Assim, a ocorrência de fraudes e delitos contra
Civil comentado, op. cit., p. 910. o sistema bancário dos quais resultem danos a correntistas insere-se na categoria doutrinária
Súmula 572, STJ: "O Banco do Brasil, na condição de gestor do Cadastro de Emitentes de de fortuito_ i_nterno, ~oi: faz p_art: d? ~róprio ;i~co ~o empreendimento, atraindo, portanto, a
45 respo~sab1hdade obJ:tlva da mst1tu1çao bancaria. Diferentemente, a culpa exclusiva de terceiro
Cheques sem Fundos (CCF), não tem a responsabilidade de notificar previamente o devedor
acerca d_a sua inscrição no aludido cadastro, tampouco legitimidade passiva para as ações de que nao guarde relaçao de causalidade com a atividade do fornecedor, sendo absolutamente
reparaçao de danos fundadas na ausência de prévia comunicação". ~str~n~a- ao pro~~to ou_ s~rviço, é considerada apta a elidir a responsabilidade objetiva da
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Código Civil comentado. 20° ed. São Paulo: Manole, 2020, ms!1tU1çao bancaria, pois e caracterizada como fortuito externo" (STJ, Informativo n. 520, 12
de Junho de 2013, 4ª Turma, REsp 1.093.440-PR, rei. Min. Luis Felipe Salomão).
p.910.
718 - CLÁUSULA GERAL DO Risco DA ATIVIDADE: A MAIORIDADE DO PARÁGRAFO ÚNICO ••. CARLOS EDISON DO RÊGO MONTEIRO FILHO E NELSON ROSENVALD - 719

Tratando-se de potencialidade lesiva intrínseca de uma atividade, Sabe-se que o conceito de "risco da atividade", além de não signifi-
não se pode restringir a irradiação do preceito legal às clássicas atividades car risco integral, é dúctil e cambiante e que, ao longo dos anos, ocorrem
empresariais. Deve-se ir além: pense-se em um espetáculo desportivo, um variações na concretização da cláusula geral do risco. A jurisprudência
show de música ou um parque de diversão. Em comum, locais em que se reflete tais oscilações, mas tem prevalecido o entendimento de que a so-
desenvolvem atividades em que a própria aglomeração de pessoas incen- lução das questões que envolvem colisão entre veículos situa-se no plano da
tiva a disseminação de riscos. Eventos multitudinários em que situações culpa; 51 com menor ênfase, prevalece a modalidade culposa também para
de baixo risco rapidamente podem se converter em tragédias de grandes atropelamentos. 52 Ressalvados, evidentemente, os casos nos quais incide
proporções. Meritório, nesse sentido, o Enunciado nº 447 do Conselho algum regime especial de responsabilidade objetiva, como a do Estado
de Justiça Federal: ''As agremiações esportivas são objetivamente responsáveis ou a do fornecedor de produtos e serviços no mercado de consumo.
por danos causados a terceiros pelas torcidas organizadas, agindo nessa quali- Por fim, além de dispensar o atributo do "perigo" da atividade, a te-
dade, quando, de qualquer modo, asfinanciem ou custeiem, direta ou indireta- oria do risco criado - tal qual projetada no Código Civil - também exi-
mente, total ou parcialmente". me a constatação do elemento "defeito", contentando-se com o maior
Por outro ângulo, discute-se se haveria espaço para a aplicação da risco da atividade desenvolvida. Coloca-se, assim, um passo adiante da
doutrina do risco nos danos causados por veículos automotores. A questão teoria do defeito do produto e do serviço, esposada pelo CDC.
é relevante, tratando-se de um país em que cerca de quarenta mil pesso- Vale dizer, o defeito converte uma atividade em princípio sem po-
as morrem anualmente por essas circunstâncias. Esses números provo- tencialidade danosa em uma atividade com potencialidade danosa!
cam elevada sensação de insegurança e geram um clamor pela extensão Diferentemente, no Código Civil o risco maior de certa atividade é in-
do parágrafo único do artigo 927 do Código Civil a esses eventos lesivos trínseco a ela e não resulta de uma periculosidade anormal, mas de sua
em razão da alta e ínsita potencialidade lesiva de ônibus, automóveis e própria estrutura e funcionamento, a despeito de quem quer que a co-
motocicletas. Observe-se que a teoria do risco proveito acabaria por li- ordene ou execute.
mitar o alcance da imputação objetiva de danos apenas a taxistas e de- Todas as constatações desses tópicos e dos que lhe imediatamen-
mais profissionais das vias públicas. 49 De qualquer sorte, a questão não te precedem remetem ao seguinte enunciado do Conselho de Justiça
se apresenta pacificada, mesmo no limiar da maioridade do CC. Maria Federal: "Enunciado n. 448. A regra do art. 927, parágrafo único, segunda
Celina Bodin de Moraes, em posição intermediária, defende a incidên- parte, do CC aplica-se sempre que a atividade normalmente desenvolvida,
cia do regime objetivo para responsabilização do motorista em face do mesmo sem defeito e não essencialmente perigosa, induza, por sua nature-
pedestre e do regime subjetivo na relação entre motoristas pautada no
51 Como exemplo da aplicação majoritária da responsabilidade subjetiva, pelos tribunais
seguinte raciocínio: ''A aplicação da responsabilidade objetiva aos con- brasileiros, em casos envolvendo acidente de trânsito, v.: TJRJ, 20ª C.C., Apelação 0000340-
dutores de automóveis (... ) deve, todavia, levar em consideração a tese, 50.2014.8.19.0065, Rel.J OS. Ricardo Alberto Pereira, julg. 31.08.2020: "Direito civil e processual
civil. Acidente de trânsito. Colisão. Morte de motociclista. Ação proposta pelos filhos do morto
antes referida, acerca da reciprocidade ou da não reciprocidade do ris- em face de motorista e da proprietária do veículo. Litisconsórcio passivo. Responsabilidade
co". E conclui no seguinte sentido:"( ... ) mantém-se para a relação entre subjetiva e solidária. Dano moral. Indenização bem arbitrada. Dano material reparado. (... )
A responsabilidade civil por acidente de trânsito, como na hipótese dos autos, é subjetiva,
condutores (que configura hipótese de risco recíproco) a teoria da cul- incumbindo aos autores, com espeque no art. 333, 1, do CPC, comprovar o fato constitutivo
de seu direito, ou seja, a culpa do motorista, consubstanciada em violação do dever de cuida-
pa, e adota-se para a relação condutor-pedestre (hipótese de risco não do, o que foi feito. Comprovada a culpa, incumbe ao causador do acidente reparar os danos
recíproco) a teoria do risco". 50 deles decorrentes. RS 50.000,00 por autor, atendeu aos princípios da proporcionalidade e
razoabilidade.( ... ) Conhecimento e não provimento dos recursos".
49 Acresça-se a isso o relevante papel desempenhado pelo seguro obrigatório de veículos 52 Já como exemplo de aplicação da responsabilidade objetiva, menos frequente, em casos
(DPVAT) no sentido de atribuir uma socialização das perdas, gerando uma coletivização da de atropelamento, v.: TJRJ, 12ª C.C., Apelação 0016096-07.2013.8.19.0204, Rei. Des. José
responsabilidade objetiva porfundamento distinto ao risco da atividade e agindo lateralmente Acir Lessa Giordani, julg. 14.07.2020: "APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZACÃO POR
à tradicional responsabilidade subjetiva do eventual culpado pelo dano, mesmo que essa DANOS MATERIAL E MORAL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. ATROPELAMENTO. AUTÓRA QUE
culpa não se confirme ou que o autor do fato sequer seja identificado (Súmula 246, STJ) ou, se ATRAVESSOU A RUA COM SEU FILHO NA GARUPA DA BICICLETA, SENDO ATINGIDA PELO
identificado, não tenha pagado o valor do seguro obrigatório (Súmula 257, STJ). VEÍCULO CONDUZIDO PELO RÉU.( ... ) Responsabilidade civil objetiva. Incidência da norma
50 BODIN DEMORAES, Maria Celina. Risco, solidariedade e responsabilidade objetiva. ln: Revista contida no artigo 927, parágrafo único, do Código Civil. Demonstrada a conduta, o dano e o
dos Tribunais, a. 95, vol. 854, dezembro 2006, pp. 34-35. nexo de causalidade. (... )RECURSO A QUE SE DA PARCIAL PROVIMENTO.
720 - CLÁUSULA GERAL DO Risco DA ATIVIDADE: A MAIORIDADE DO PARÁGRAFO ÚNICO·:·
CARLOS EDISON DO RÊGO MONTEIRO FILHO E NELSON RoSENVALD - 721

za, risco especial e diferenciado aos direitos de outrem. São critérios de ava- contemporâneas-, pode-se admitir a realização da prova da potenciali-
liação desse risco, entre outros, a estatística, a prova técnica e as máximas de
.,. - '' . dade lesiva no interno do próprio processo, em caráter ex post. Pense-se,
experiencza
a propósito, no desenvolvimento da técnica atinente a atividades como
Mas, afinal e diante do exposto, quais seriam os índices utilizados a manipulação de material genético. Ausentes os dados estatísticos a
para a aferição da particular potencialidade lesiva de uma atividade? Já subsidiarem a avaliação, se os meios de demonstração científica não são
que a cláusula geral, em sua fluidez, não é o locus adequado para a prefi- suficientes, há sempre o recurso à experiência comum55 , a bem da rele-
xação de critérios de determinação ou escalonamento de riscos de ativi- vante tarefa de integração do conteúdo normativo da cláusula geral de
dades, cumpre aos tribunais se servir de estatísticas, pesquisas, métodos risco da atividade, informado pelos vetores da dignidade humana, da
científicos ou técnicos que forneçam dados razoavelmente seguros so- solidariedade social e da reparação integral no ordenamento brasileiro.
bre a probabilidade maior de certa atividade produzir danos. Será con-
veniente ainda a nomeação de peritos. O próprio mercado pode ser um
indicador confiável, vide os prêmios estabelecidos pelas empresas de se-
guros. Trata-se de uma análise tópica com base nas noções correntes da
comunidade. Ilustrativamente, da legislação trabalhista e previdenciária
muito se pode inferir em termos de comparação entre as várias ativida-
des distribuídas pelos diversos setores da economia. 53
A propósito, aduz a Súmula 351 do Superior Tribunal de Justiça
que "A alíquota de contribuição para o Seguro de Acidente do Trabalho - SAT
- é aferida pelo grau de risco desenvolvido em cada empresa, individualiza-
da pelo seu CNP], ou pelo grau de risco da atividade preponderante quan-
do houver apenas um registro". O Seguro de Acidentes de Trabalho tem
a :finalidade de custear os benefícios decorrentes de acidentes do traba-
lho e da aposentadoria especial (art. 7°, XXVIII, da CF). Há uma parte
variável da alíquota que é aplicável conforme o grau de risco da ativida-
de preponderante desenvolvida na empresa (leve, médio ou grave). Há
ainda um Fator Acidentário de Prevenção (FAP), que afere o desem-
penho da empresa, dentro da respectiva atividade econômica, relativa-
mente aos acidentes de trabalho ocorridos num determinado período. 54
Se em razão de seu ineditismo, certa atividade causadora do dano
estiver fora das estatísticas de anormal potencialidade lesiva - levando-
-se em conta o extremo dinamismo e caráter de inovação das sociedades
53 "RESPONSABILIDADE CIVIL. SITE DE RELACIONAMENTO. MENSAGENS OFENSIVAS. A responsa-
bilidade objetivo, previsto no ort. 927, parágrafo único, do CC, não se aplico o empresa hospedeiro
de site de relacionamento no coso de mensagens com conteúdo ofensivo inseridos por usuários. O
entendimento pacificado do Turma é que o dono decorrente dessas mensagens não constitui risco
inerente à atividade dos provedores de conteúdo. A fiscalização prévio do teor dos informações 55 "Eventualmente pode ocorrer de a atividade não ser intrinsecamente de risco, mas 05 meios
postados pelo usuário não é atividade do administrador de rede social, f?Ort_o~to seu dever é retirar
do ar, logo queforcomunicodo, o texto ou o imagem que possuem conteudo ,boto, apenas podendo n~I~ ~mpregado~ a tornarem perigosa. Assim, por exemplo, no ãmbito de uma atividade
responder por suo omissão" (STJ, Informativo n. 495, de 9 a 20 de abril de 2012, 3ª Turma, REsp d!dat1ca'.. a ~xpenmentação com elementos químicos. Do mesmo modo, cabe considerar as
1.306.066-MT, rei. Min. Sidnei Beneti). c1rcl;_nstanc1a_s c~n_cretas e~ ~ue se desenvolve a atividade: a instalação de uma rede de baixa
O FAP consiste num multiplicadorvariável num intervalo contínuo de cinco décimos(o,5000) tens~o (emynnc_1p10 umaat1v1dade de natureza inócua) em um depósito de material inflamável
54 configura, mduv1dosamente, uma atividade perigosa" (TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa
a dois inteiros (2,0000), aplicado com quatro casas decimais sobre a alíquota RAT.
Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado, li, p. 809).
RAFAEL PETEFFI DA SILVA - 723

IV. RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA


DE UMA CHANCE NO BRASIL: PRINCIPAIS
REQUISITOS E A CONSOLIDAÇÃO DE UM MODELO
JURÍDICO CONTEMPORÂNEO

Rafael Peteffi da Silva1

INTRODUÇÃO
O desenvolvimento recente da teoria da responsabilidade civil pela
perda de uma chance, no Direito Brasileiro, não foi palco de maiores so-
bressaltos. Com efeito, o que se pode observar em relação aos requisitos
de aplicabilidade da teoria, cerne do presente estudo, foi uma consoli-
dação doutrinária e jurisprudencial dos parâmetros indicados em obras
anteriores, como será indicado no desenvolvimento do trabalho.
Entretanto, apesar de ter sido tratado de forma secundária, não se
pode negar que o debate sobre a natureza jurídica da chance perdida,
tida por muitos como uma modalidade específica de dano, que até en-
tão havia recebido pouca atenção, passou a ocupar local de destaque aca-
dêmico. Destarte, apoiados em Paul Speaker2, afumamos que a teoria
da perda de uma chance era o campo de experimentação mais sofisticado
para a análise dos atuais limites dos conceitos de dano indenizável e de
nexo de causalidade.
Talvez por isso a teoria da perda de uma chance tenha se tornado,
na doutrina internacional, verdadeiro campo de batalha, ocupado por
inúmeras correntes com posicionamentos diversos sobre o mesmo tema.
Anteriormente, afumamos que o epicentro da celeuma relacionava-se
com a própria natureza jurídica da teoria da perda de uma chance: um
pequeno número de doutrinadores acreditava que a noção de chance per-
dida como dano indenizável não possuía consistência e tudo não passa-

Professor Associado da Universidade Federal de Santa Catarina, nos cursos de graduação,


mestrado e doutorado. Doutor em Direito pela USP. Coordenador da Rede de Pesquisa de
Direito Civil Contemporãneo. Coordenador Regional do Cbar (Santa Catarina).
2 SPEAKER, Paul. The applications of the loss of a chance doctrine in class actions. Review of
Litigotion. Spring, 2002, p. 350. "Regardless of whether it is applied in the class action or
individual context, the loss of chance doctrine is a major departure from the state of the law
before its introduction, no matter what justification a court offers. Application of the loss of
chance doctrine requires a complete reconceptualization ofboth the causotion analysis os well as
the measure ofdamoges." [Sem grifos no original].
724 - RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE NO BRASIL: PRINCIPAIS REQUISITOS •••
RAFAEL PETEFFI DA SILVA - 725

va de uma utilização d~ causalidade parcial3; enquanto outros pensavam efeito, vários fatores aleatórios (acaso) poderiam ter sido a causa da re-
que as chances perdidas deviam ser consideradas como danos autônomos provação aludida, tais como a dificuldade da prova ou o despreparo do
e indenizáveis"'. A maior parte da doutrina francesa, contudo, lecionava estudante. Portanto, já que o dano poderia ter sido causado pelo acaso,
que apenas algumas modalidades de utilização da perda de uma chance a vítima (estudante), de acordo com a teoria ortodoxa da responsabili-
utilizam-se da causalidade parcial, sendo a chance perdida representati- dade civil, deveria suportá-lo de maneira integral. Contudo, apesar de
va, na maioria dos casos, de um novo tipo de dano indenizável5. não existir liame causal certo entre a conduta do motorista e a perda da
Interessante notar que, nos últimos anos, esse tema foi revisita- vantagem esperada pelo estudante (o sucesso no vestibular), podemos
do por autores europeus, particularmente ibéricos, os quais aproxima- dizer, com certeza, que esse motorista eliminou as chances que o candi-
ram a teoria da perda de uma chance da noção de causalidade parcial6 • dato tinha de lograr êxito no aludido exame.
Paradoxalmente, autores brasileiros se debruçaram sobre o tema, majo- Como exemplos sempre lembrados de prejuízos atuais, temos os jo-
ritariamente inclinados a circunscrever a chance perdida dentro da te- gos de azar, como na hipótese do cavalo de corrida que é impedido de
oria do dano 7 • correr e perde a chance de ganhar um prêmio 8, ou os casos de perda de
É evidente que o presente trabalho é insuficiente para exaurir toda uma chance em matéria contenciosa, como na atitude culposa de um ad-
a vasta e rica temática envolvendo a responsabilidade pela perda de uma vogado que perde o prazo do recurso de apelação e faz com que seu clien-
chance. Assim, não entraremos em maiores definições sobre a nature- te perca a chance de ver o seu direito reconhecido na instância superior9 •
za jurídica do instituto, mas focaremos nossa análise em questões que Na esfera dos danos futuros, outros casos foram lapidados pela ju-
constituem as balizas mais importantes para a correta aplicação da teo- risprudência francesa, como na antiga decisão sobre a perda da chance
ria, que vêm sendo consolidadas no Direito Civil brasileiro. de melhorar a sua condição social quando, por um ato culposo do ofen-
Primeiramente, é salutar que analisemos alguns casos concretos, sor, se acabaram as probabilidades de uma jovem viúva melhorar seu pa-
para firmar as características básicas da teoria da perda de uma chance. drão de vida pela brilhante carreira de médico que, segundo os padrões
Imaginemos o exemplo do estudante que se encaminha para prestar o normais da época, seu esposo recém-formado em medicina teria1°.
exame vestibular e é impossibilitado de chegar ao local do certame por Nesses exemplos dados, como em outros que examinaremos adian-
culpa de um acidente provocado por um motorista imprudente. Nesse te, podemos observar certas características constantes que nos ajudam
caso, não poderemos imputar o dano representado pela reprovação no a moldar o conceito de dano pela perda de uma chance. Na lição de
exame vestibular ao motorista, tendo em vista que o estudante poderia François Chabas 11, são características principais: (i) a vítima deve estar
não lograr êxito nas provas, mesmo que o acidente não ocorresse. Com em um processo aleatório, (ii) interrompido pelo ato do agente e que, ao
final, (iii) poderia lhe representar uma vantagem. Há, pois uma "aposta"
3 Nesse sentido BORÉ, Jacques. L' indemnisation pour les chances perdus: une forme
d'appreciation quantitative de la causalite d'un fait dommageable. J.C.P, 1974, 1. 2620. e perdida (essa aposta é uma possibilidade de ganho, é a vantagem que a
MAKDISI, John. Proportional Liability: A Comprehensive Rule to Apportion Tort Damages
Based On Probability. North Coralino Low Review, vol. 67, p. 1063, 1989.
vítima esperava auferir - como a procedência da demanda judicial e a
4 Ver, por todos, KINGJR.,Joseph H. Reduction oflikelihood reformulation and otherretrofitting obtenção do primeiro prêmio da corrida de cavalos que normalmente
ofthe loss-of-a-chance doctrine. UniversityofMemphis LowReview. p. 492, Winter1998, p. 492.
5 Para uma análise ampla de todas as teorias, verPETEFFI DA SILVA, Rafael. Responsabilidade civil pode ser enquadrada na categoria de lucros cessantes) e uma total falta
pela perda de uma chance. 3° ed. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 50-114.
6 MOTA PINTO, Paulo. Perda de uma chance processual. ln Estudos em homenagem ao Conselheira
8 O Superior Tribunal de Justiça julgou espécie semelhante, quando decidiu o famoso caso do
Presidente Rui Moura Ramos. Vol. li. Coimbra: Almedina. 2016.; FERREIRA, Rui Cardona.
"show do milhão", que será tratado com maior vagar na última seção.
Indemnização do Interesse Contratual Positivo e Perda de Uma Chance. Coimbra: Coimbra
9 Espécie julgada pela Corte de Cassação francesa em 1998: em}.C.P. 1988, ll.10143 Nota Raymond
Editora, 2011 e MEDI NA ALCOZ, LU IS. La teoria de la perdida de oportunidad. Estudio doctrinal y
Martin. O Superior Tribunal de Justiça ratificou seu entendimento em relação à teoria da perda
jurisprudencial de derecho de danos publico y privado. Madrid: Civitas, 2007. de uma chance nesta decisão: Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. REsp 1.079.185/
7 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. 4° ed.São Paulo: Saraiva.2013, p. 695 e seguintes MG. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 11 de novembro de 2008.
e CARNAÚBA, Daniel. Responsabilidade civil pela perda de uma chance: o álea e o técnica. São
10 Espécie julgada pela Corte de Cassação francesa em 1970. Em}.C.P,. 1970 li. 16456, Notas de
Paulo: Método, 2013. Este autor, apesar de considerar que a teoria da perda de uma chance Le Tourneau.
seria apenas uma espécie de técnica decisória, admite que considerara chance perdida como 11 CHABAS, François. Laperted'unechanceen droitfrançais. Palestra inédita proferida na Faculdade
dano específico seria um requisito lógico da sua abordagem. de Direito da UFRGS, em 26 de maio de 1990.
726 - RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE NO BRASIL: PRINCIPAIS REQUISITOS •••
RAFAEL PETEFFI DA SILVA - 727

de prova do vínculo causal entre a perda dessa vantagem esperada e o dentemente, consenso absoluto entre os autores sobre os pontos mais
ato danoso, pois essa aposta é aleatória por natureza12 • instigantes da teoria. Em alguns sistemas jurídicos, as opiniões doutri-
nárias possuem forte influência na gênese da produção jurisprudencial16 .
Note-se que o desaparecimento da vantagem esperada pela vítima
Mais recentemente se tem observado, em alguns Estados norte-ame-
(lucros cessantes) é sempre possível por intermédio de causas externas,
ricanos, uma influência da doutrina até mesmo na produção legislati-
restando impossível saber se a conduta do agente representa causa ne-
va, contribuindo, portanto, na formação dos modelos dotados de força
cessária para o aparecimento dos lucros cessantes. Portanto, o ato do de-
prescritiva não apenas pela influência que possa ter na jurisprudência.
mandado na ação de reparação não é uma condição sine qua non para a
perda da vantagem esperada. A doutrina estrangeira auxiliou na formação de um modelo herme-
nêutico nacional, além de servir como força argumentativa direta para
Não podemos, portanto, afumar ter sido o ato culposo do ofensor a
muitos precedentes judiciais brasileiros,já se podendo inclusive falar em
causa necessária para a perda do resultado pretendido pela vítima, visto
um modelo prescritivo in .fieri. O recurso, nos julgados, aos autores es-
que o prognóstico retrospectivo que se poderia fazer para saber se o de-
trangeiros talvez se explique pela inércia doutrinária verificada em dé-
mandante ganharia a causa, ou se o cavalo ganharia a corrida é bastante
cadas passadas. Além do mais, a utilização do direito estrangeiro como
incerto, cercado de fatores exteriores múltiplos, como a qualidade dos
fonte direta para produção de soluções domésticas não é novidade para
outros cavalos, a jurisprudência oscilante na matéria da demanda judi-
a tradição jurídica luso-brasileira, representando o que Clóvis do Couto
cial, etc. Entretanto, ainda assim não podemos negar que houve um pre-
e Silva denominava de Bartolismo 17 •
juízo, tendo em vista que o demandante perdeu a chance de obter êxito
em sua demanda judicial, e o proprietário do cavalo perdeu a chance de Demonstrando um típico fenômeno de apreeµsão e solidificação de
ganhar o prêmio 13 , ou seja, o resultado da ayosta nunca será conhecido modelos jurídicos, o aumerito paulatino da densidade doutrinária sobre
por causa da conduta culposa do ofensor. E justamente este o prejuízo a matéria, em nosso país, refletiu virtuosamente na recente produção ju-
que a teoria da perda de uma chance visa indenizar14 . risprudencial, permitindo a formação de modelos prescritivos mais co-
erentes18. O percurso foi - no que toca à responsabilidade pela perda de
A aceitação dessa teoria pela jurisprudência pátria é fenômeno rela-
uma chance - de uma realimentação contínua entre a doutrina, a juris-
tivamente recente. Comprova-a o fato de a imensa maioria dos acórdãos
prudência, e novamente a doutrina.
encontrados em nossa pesquisa referirem-se a julgados dos últimos vin-
te anos. Essa produção jurisprudencial ressalta a criatividade de nossos Para tentar contribuir para um maior rigor na aplicação da teoria da
julgadores; porém, a falta de uma aplicação mais criteriosa dos requisi- perda de uma chance, decidimos dedicar o presente trabalho ao estudo
tos da teoria da perda de uma chance tem levado a soluções perigosas dos requisitos básicos da teoria, bem como à análise da recente admis-
ou, no mínimo, pouco ortodoxas. são doutrinária e jurisprudencial pelo ordenamento jurídico nacional.
Em outros países, com produção doutrinária mais densa, pode-se do Advogado, nº 61, nov./ 2000, p. 75, "Correspondentes, no plano jurídico, às estruturas
identificar modelo hermenêutico 15 bem consolidado, sem que haja, evi- norm~!iva~ v_erifi~adas_na_s est:uturas sociais, os modelo~ são constantemente construídos pela
expenenc1a 1und1ca, d1stmgumdo-se entre modelos jundicos-assim provenientes das quatro
12 PETEFFI DA SILVA, Rafael. Responsabilidade civil pela perda de uma chance. 3ª ed. São Paulo: Atlas, fontes de p~odução jurídica, dotados que são de forçaprescritiva- e os modelos dogmáticos,
2013, p. 12. A inexistência de nexo de causalidade entre ato do agente e perda da "vantagem ou hermeneuticos, cuja elaboração é doutrinária e cuja força é indicativa, argumentativa e
esperada" é fun?amental pa~a a aplicação da teoria da perda de uma chance. O Superior persuasiva."
Tribunal de Justiça bem analisou esse aspecto quando indeferiu pleito para utilização da 16 O fenômeno é recente e não é comum a todos os países do common law, estando restrito aos
teoria exatamente por existir prova clara entre o erro médico do réu e a dano-morte sofrido Estados Unidos. Como referemJamin eJestaz, em alguns aspectos, a doutrina norte-americana,
pela vítima direta. BRASIL. SuperiorTribunal de Justiça. Agravo Interno no Agravo em Recurso formada por estudos de professores, está se aproximando do papel da doutrina francesa na
Especial nº 1.380.905/ES (2018/0267946-2). Relator: Ministro Marco Buzzi. Brasília, DF, 27 de tarefa de orientar e de "racionalizar" as soluções jurídicas.JESTAZ, Philipe;JAMIN, Christople.
maio de 2019. Diário da Justiça Eletrônico. Brasília, 03 jun. 2019. La Doctrine. Paris: Dalloz, 2004, p. 11.
13 Nesse sentido BORÉ, Jaques. L' indemnisation pourles chances perdus: une forme d'appreciation 17 COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. Miguel Reale civilista. Revista dos Tribunais, vol. 672,
quantitative de la causalite d'un fait dommageable.j.C.P. 1974, l.2620 1991, p. 54. Ver também COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. O direito civil brasileiro em
14 PETEFFI DA SILVA, Rafael. Responsabilidade civil pela perda de uma chance. 3ª ed. São Paulo: perspectiva histórica e visão de futuro. RevistaAjuris, vol. 40, 1987, p.138; MARTINS-COSTA,
Atlas, 2013, p. 13. Judith.A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 242.
15 Acerca dos modelos hermenêuticos e da teoria dos modelos de Miguel Reale, confira-se 18 REALE, Miguel. Fontes e Modelos do Direito - para um novo paradigma hermenêutico. São
MARTINS-COSTA,Judith. Direito e cultura: entre as veredas da existência e da história, Revista Paulo: Saraiva, 1999.
728 - RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE NO BRASIL: PRINCIPAIS REQUISITOS ••• RAFAEL PETEFFI DA SILVA - 729

1. PRINCIPAIS CONDIÇÕES DE APLICAÇÃO sentido é a decisão da Corte de Cassação que não concedeu a reparação
A indenização dos prejuízos pela perda de uma chance não esca- a um cliente de uma corretora de valores pela perda da chance de ter
pa das condições elementares de direito comum, como a prova do dano sua carteira de ações auferido melhor rendimento, tendo em vista que
e do nexo causal. Neste sentido, é absolutamente necessário que o de- foi comprovada a gestão fraudulenta da administradora. Apesar de ter
mandante comprove a perda da vantagem sofrida, indicando as proba- sido comprovada a falha, a indenização não foi conferida, pois o julgado
bilidades sonegadas pelo ato culposo do ofensor. Da mesma forma, as considerou que o mercado de ações, mesmo quando gerido por profis-
cortes podem impor como óbice à reparação a falta do nexo causal en- sional diligente, é bastante imprevisível, tornando o dano meramente hi-
tre o ato culposo e o dano. potético21. Em situação fática distinta, mas ainda envolvendo o mercado
de ações, o Superior Tribunal de Justiça entendeu cabível a indenização
Além das condições gerais da responsabilidade civil, condições es-
pela perda de uma chance de vender os valores mobiliários em situação
pecíficas para sistematizar a utilização da noção de perda de uma chance
mais favorável. O dano fora causado pela ação ilícita de instituição ban-
também são observadas. Deste modo, necessária a demonstração da serie-
cária, que havia vendido sem autorização as ações de seu correntista22 •
dade das chances perdidas, a adequação da quantificação à álea inerente
à perda da chance e a perda definitiva da vantagem esperada pela vítima. Nos casos de danos futuros, a existência do dano, medida por meio
do critério da seriedade das chances, consiste na probabilidade que te-
1. CHANCES SÉRIAS E REAIS ria o autor de utilizar-se das chances em um momento futuro, e de essas
A observação da seriedade e da realidade das chances perdidas é o chances alcançarem a vantagem almejada. Na pesquisa dessa probabi-
critério mais utilizado pelos tribunais para separar as chances potenciais lidade, tem-se em conta a proximidade temporal do momento em que
e prováveis e, portanto, indenizáveis, dos danos puramente eventuais e ocorreu o ato danoso que extinguiu as chances e o momento em que
hipotéticos, cuja reparação dever ser rechaçada. essas chances seriam utilizadas, na obtenção da vantagem esperada23 •
Inicialmente vale ressaltar que as chances devem ser apreciadas Nesses casos, a jurisprudência mostra-se mais rigorosa para a con-
objetivamente, diferenciando-se das simples esperanças subjetivas: um cessão da indenização pela perda de uma chance, tendo em vista que
paciente que sofre de um câncer incurável pode manter suas esperan- probabilidade de o recurso obter provimento de mérito, considerou que o não-conhecimento
ças de viver; cientificamente, porém, não existe qualquer chance apre- do recurso, devido à intempestividade, não representava uma chance digna de reparação.
Tribunal ?e Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível 70005635750. Relator: Des. Carlos
ciável de cura. Alberto Alvaro de Oliveira. Julgado em 17 de setembro de 2003.
21 Decisão de 19.02.75, Bull.crim. 1975, nº 59, p. 161. Entretanto, em mais recente acórdão da
A verificação objetiva das chances sérias e reais é muito mais uma Corte de Apelação de Paris (12.04.96, in J.C.P. 1996. li. 22705, nota de Philippe Le Tourneau),
questão de grau do que de natureza19 • Assim, somente a análise dos ca- foi julgado um caso extremamente semelhante que recebeu decisão distinta. Uma pessoa
física intentou ação de indenização contra uma companhia que administrava fundos de
sos concretos possibilitará ao magistrado a verificação da real seriedade ações, com a qual havia firmado contrato de gestão de carteira de ações. A carteira de ações
(portfólio) do demandante sofreu uma perda de mais de 20% em menos de 9 meses, enquanto
das chances. No entanto, pode-se traçar algumas características gerais, o índice "CAC 40" havia aumentado 7%. O demandante não teve sua pretensão acolhida pelas
que auxiliam o aplicador do direito em um discernimento mais seguro instâncias inferiores. Philippe le Tourneau, ao comentar o caso, afirma que, apesar da obrigação
da empresa ser de meios, o tribunal considerou que o demandante comprovou a culpa da
e menos casuístico sobre a eventualidade do dano. empresa por não ter informado de maneira eficiente o cliente sobre o desenvolvimento dos
investimentos e por ter realizado operações absolutamente "amadoras" e sem coerência.
A jurisprudência francesa possui critérios interessantes, utilizando- Deste modo, condenou a empresa pela "perda da chance de encontrar um novo equilíbrio em
-se da diferenciação entre dano presente e dano futuro. Nas hipóteses de uma gestão melhor supervisionada e de efetuar uma estratégia com escopo de limitar as perdas"
sofrida pelo cliente. Para quantificar a indenização, a Corte fixou uma indenização arbitrária
danos presentes, é possível negar (mesmo que de maneira menos fre- de 50.000,00 francos, bem abaixo das perdas econômicas sofridas pelo demandante.
22 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.540153/RS (2015/00822053-9). Relator:
qüente) a reparação pela falta de seriedade das chances perdidas 20 • Nesse Ministro Luís Felipe Salomão. Brasília, DF, 17 de abril de 2018. Diário da Justiça Eletrônico.
Brasília, 06 jun.2018. Colhe-se do voto do relator, "Defato, adespeitodasalegaçõesdorecorrente,
19 CHARTIER, Yves. La réparation du préjudice. Paris: Dalloz, 1996. p. 10 e LETOURNEAU, Philippe; a verdade é que as características do mercado de ações, a imprevisibilidade das valorizações e
CADIET, Loic. Droit de la responsabilité, action dalloz. Paris: Dalloz, 1998, p. 212. depreciações, invocadas pelo recarrentecomo impeditivas da responsabilização, nofundo acrescem
20 Em uma situação de responsabilidade de advogado pela interposição de recurso intempestivo, às razões para a incidência do teoria, porque corroboram a afirmativa de que havia a chance de serem
o Desembargador Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, em decisão de 17 de setembro de vendidas melhor"
2003, realizou coerente análise da seriedade das chances perdidas. Diante da pouquíssima 23 Nesse sentido CHARTIER, Yves. La réparation du préjudice. Paris: Dalloz, 1996, p. 14.
730 - RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE NO BRASIL: PRINCIPAIS REQUISITOS ••• RAFAEL PETEFFI DA SILVA - 731

quanto maior for o lapso temporal aludido, maiores serão as possibilida- vítima, além de outros prejuízos, demandava a perda de uma chance de
des de algum evento externo ter sido a causa da não-obtenção da vanta- auferir, no futuro, melhor posição profissional. Em bem fundamenta-
gem esperada pela vítima, diminuindo as chances perdidas até o ponto do voto, o citado Tribunal entendeu que as chances do funcionário, que
de o dano ser considerado apenas hipotético 24 • ocupava cargo comissionado, eram por demais hipotéticas 28 •
Como exemplo da aplicação desse critério, há o caso em que a Corte Vale lembrar que, apesar do lapso temporal aludido ser de extre-
de Cassação francesa cassou um acórdão de uma Corte de Apelação con- ma importância, a análise da seriedade das chances pode ser muito mais
cessor de indenização pela perda de uma chance de auferir profissão bem complexa. Com efeito, pode haver hipóteses em que o lapso temporal
remunerada para um menino de nove anos de idade, que havia sofrido seja dilatado, mas a indenização concedida seja elevada, tendo em vista
um acidente por culpa de outrem; o acidente comprometera o seu ou- a consideração de outros fatores que determinam a seriedade da chance.
trora bom desempenho escolar e o deixara incapacitado para a realiza- Assim, no aludido caso da perda da chance de conseguir um emprego
ção de certas tarefas manuais. A Corte de Cassação, apesar de conceder após a aposentadoria, a vítima poderia conseguir a indenização, mesmo
indenização pela incapacidade parcial, negou a indenização do prejuízo que ainda distante do período de aposentadoria, se demonstrasse que
advindo da perda de uma chance de obter profissão bem remunerada, na sua profissão este fato é extremamente comum, abarcando a imensa
tendo em vista a falta de comprovação da certeza do prejuízo e sua rela- maioria dos trabalhadores 29 •
ção com o fato danoso 25 • Ao comentar esse aresto, afuma Yves Chartier Oportuno fazer menção ao fato da Corte de Cassação italiana ado-
que a Corte de Cassação já tivera oportunidade de conferir indeniza- tar, em alguns acórdãos, postura peculiar, considerando que o requisito
ção pela perda de uma chance de auferir profissão bem remunerada, de seriedade e certeza das çhances perdidas somente seria alcançado se
mas não em casos em que a vítima era um menino de apenas nove anos. a vítima provasse que possuía, pelo menos, 50% de probabilidade de al-
Considerando esta circunstância, diz Chartier, não se poderia afumar, cançar a vantagem esperada, isto é, que a ação do agente teria aniquilado
com um mínimo de seriedade, que o garoto terminaria os seus estudos 50% das chances da vítima alcançar seu desiderato30 • Parece-nos bastan-
e teria carreira bem remunerada, pois uma gama enorme de fatores po- te compreensível que o direito italiano tenha ficado isolado nesse en-
deriam influir no seu caminho até a idade adulta26 • tendimento,já que existem vários casos em que se pode identificar, com
Em muitos outros exemplos se evidencia a análise do caráter sério e razoável grau de certeza, que a vítima perdeu, por exemplo, 20%, 30%
real das chances perdidas, também instrumentalizado por meio do lapso ou 40% das chances de alcançar determinado objetivo. Nessas hipóte-
temporal entre o momento da perda das chances e da sua potencial uti- ses, não teríamos nenhum argumento sólido para negar o provimento
lização, como na perda das chances de trilhar determinada carreira, em destas ações de indenização com a utilização da teoria da perda de uma
que o prejuízo só é aceito se a pessoa já efetuava estudos preparatórios 28 Oportuno transcrever o fragmento do voto da desembargadora relatora Mara Larsen Chechi:
''.,4 situação de Edinei não se reveste daqueles requisitos. Em primeiro lugar, o titular do cargo em co-
nesse sentido. Em relação à perda da chance de conseguir um emprego missão não tem carreira, que é atributo da organização das cargos de provimento efetivo, conforme
após a aposentadoria, a Corte de Cassação francesa tem sido bastante Lei Complementar nº 10.098/94. Ademais, o autor Edinei encontrava-se na melhor posição a que
suas atribuições poderiam conduzi-lo, não se vislumbrando possibilidade de ascensão a cargo de
rigorosa, devendo a vítima estar bastante perto da utilização da chance27 • nível superior ao que exercia.
Éevidente que as chances, hipoteticamente perdidas, por Edinei, só podem ser consideradas no contexto
Alguns acórdãos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul au- do funcionalismo, já que o ação veio dirigida contra o Estado e não consta nenhum registro de que
xiliaram na fixação de importantes balizas para a identificação da chance tivesse trabalhado em outra atividade privado, com possibilidade de ascensão. Assim, representaria
simples exercício especulativo atribuir-lhe indenização por perda de chance na esfera privada, sem
séria e real em nosso ordenamento. A Apelação Cível n. 70001076986, provo nesse sentido. Se do fato não resultafrustração de expectativa séria de evitar uma perda, não
julgada em 30 de maio de 2001, decidiu um caso de invalidez de funcio- é possível conferir ao apelante Edinei a reparação correspondente."
29 Georges Durry afirma que a Corte de Cassação foi muito rigorosa quando não proveu o apelo
nário público gerada por um motim em uma penitenciária do Estado. A de um policial inválido que requereu a indenização pela perda de uma chance de conseguir um
emprego após a aposentadoria, tendo em vista que as estatísticas mostram que uma enorme
24 VINEY, Geneviéve; JOUIDAIN, Palrice. Traité de Drait Civil. 2ª ed. Paris: L.G.D.J., 1998, p. 82. parte dos policiais exercem funções remuneradas após a aposentadoria. DURRY, Georges. La
25 J.C.P. 1985.II. 20360 note Chartier. Decisão proferida em 9 de novembro de 1983. notion de perte d'une chance réparable. RTDC, 1976, p. 778.
26 J.C.P. 1985.II. 20360 note Chartier. Decisão proferida em 9 de novembro de 1983. 30 Nesse sentido SAVI, Sergio. Responsabilidade Civil Por Perda de uma Chance. São Paulo: Atlas.
27 VINEY, Geneviéve; JOUIDAIN, Palrice. Traité de Droit Civil. 2ª ed. Paris: L.G.D.J., 1998, p. 83. 2006, p.31
732 - RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE NO BRASIL: PRINCIPAIS REQUISITOS ••• RAFAEL PETEFFI DA SILVA - 733

chance. Por esta razão, o Enunciado do Conselho da Justiça Federal31, sido intimados pessoalmente, como determina a lei. Conquanto reco-
recomenda: ''Art. 927. A responsabilidade civil pela perda de chance não nhecendo ser indispensável a intimação pessoal dos devedores acerca da
se limita à categoria de danos extrapatrimoniais, pois, conforme as cir- data designada para o leilão do imóvel hipotecado em processo de exe-
cunstâncias do caso concreto, a chance perdida pode apresentar também cução extrajudicial, realizado nos termos do DL 70/66 (inocorrente, no
a natureza jurídica de dano patrimonial. A chance deve ser séria e real, caso), considerou-se ser "remota e inexpressiva" a chance de ser purgada
não ficando adstrita a percentuais apriorísticos". a mora após a intimação pessoal dos devedores. Em outro acórdão 36 , o
mesmo Tribunal afastou pretensão indenizatória porque a oportunidade
Além de consignar a importância da seriedade da chance perdida
era "fluida'' e não "real". Na espécie, restou consignado que na hipótese
para a correta aplicação da teoria da perda de uma chance, o posiciona-
de condutas negligentes por parte dos advogados, a perda de direitos dos
mento da jurisprudência italiana restou afastado pelo conjunto de ju-
clientes delas decorrentes devem ser entendidas "a partir de uma detida
ristas presentes ao evento, já que se sublinhou que a aplicação da teoria
análise acerca das reais possibilidades de êxito do processo". A verifica-
não está adstrita a percentuais apriorísticos.
ção da seriedade das chances perdidas é fundamental, pois uma simples
A jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça vem pres- perda de prazo não é capaz de gerar a automática condenação pela per-
tando especial atenção ao requisito da seriedade da chance perdida. Ao da de uma chance.
examinar caso em que o Tribunal de origem havia condenado um mé-
Porém, em alguns casos, a jurisprudência brasileira utiliza-se de um
dico por ter feito com que a paciente, que veio a falecer, tivesse perdido
critério muito rígido na análise da seriedade da chance perdida. Vale lem-
uma chance de vida, tendo em vista que os cuidados na fase pré-opera-
brar que não podemos utilizar a teoria apenas nos casos em que é prati-
tória não foram adequados 32 , o Ministro Massami Uyeda proveu o re-
camente certo que a vítima alcançaria a vantagem esperada, pois, nestas
curso especial, para exonerar o médico de qualquer responsabilidade,
hipóteses, se indenizará a própria vantagem esperada, normalmente iden-
pois não havia nos autos prova de que sua conduta houvesse subtraído
tificada com a categoria dos lucros cessantes. Um dos exemplos de ex-
chances sérias e reais, capazes de reverter o estado de saúde da paciente.
tremada rigidez na análise das chances perdidas ocorreu no Tribunal de
Com efeito, a chance cuja perda seja passível de indenização é so- Justiça do Paraná37 , que também usou o requisito da seriedade das chan-
mente aquela qualificada como "séria e real" 33 ou como "significativa ces perdidas para negar a reparação para a vítima que havia efetuado um
ou substancial"34 • Nesse sentido manifestou-se o Superior Tribunal de curso de técnico em enfermagem cujo diploma não era reconhecido pe-
Justiça ao rejeitar alegação de dano moral pela perda de uma chance re- los órgãos oficiais. Acreditamos que, neste caso, o Tribunal citado pos-
querida por proprietário de imóvel arrematado em leilão extrajudicial sa ter sido muito restritivo, ao menos em uma perspectiva comparatista.
de imóveis 35 • A alegação dizia respeito à "perda da oportunidade de pur- Na França, por exemplo, o requisito para que a chance de se alcançar
gar a mora" e, assim, evitar a arrematação, porque os autores não haviam determinada profissão seja séria é exatamente o começo dos estudos es-
31 Enunciado 444. VJornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, Brasília, 2011, por nós
proposto e provado por unanimidade.
32 Superior Tribunal de Justiça. REsp 1104665/RS. Rei. Min. Massami Uyeda. Julgado em
09.06.2009. Disponibilizado em 04.08.2009. Revista Forense, vol. 405 p. 449 RSTJ vol. 216, p. 36 Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. REsp. 1190180/RS. Rei. Min. Luís Felipe Salomão.
464. Do voto do Relator extrai-se: "A chamada "teoria da perda da chance", de inspiração francesa Julgado em 16.11.2010. Disponibilizado em 22/11/2010. No mesmo sentido Superior Tribunal
e citada em matéria de responsabilidade civil, aplica-se aos casos em que o dano seja real, atual de Justiça. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 878.524/SP (2016/0059646-8).
e certo, dentro de um juízo de probabilidade, e não de mera possibilidade. porquanto o dano Relator: Ministro Antonio Carlos Ferreira. Brasília, DF, 16 de maio de 2019. Diário da Justiça
potencial ou incerto, no ãmbito da responsabilidade civil, em regra, não é indenizável; (... )". Eletrônico. Brasília, 23 mai. 2019; Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.758.767/
33 Assim, em regra, na doutrina francesa, v.g., LE TOURNEAU, Philippe; CADIET, Loic. Droit dela SP (2014.0290383-5). Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Brasília, DF, 09 de outurbo
Responsabilité. Action Dalloz. Paris: Dalloz, 1998 p. 212. Utilizou-se essa adjetivação em: PETEFFI de 2018. Diário da Justiça Eletrônico. Brasília, 15 out. 2018.
DA SILVA, Rafael. Responsabilidade Civil pela Perda de Uma Chance. São Paulo, Atlas, 2013, p. 37 Tribunal de Justiça do Paraná. Sétima Câmara Cível. AC 0511948-2. Foro Central da Região
138; e em MARTINS-COSTA,Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Do Inadimplemento das Metropolitana de ~uritiba - Rei.: Des. Ruy Francisco Thomaz. Julgado em 16.09.2008.
Obrigações. Arts. 389 a 420. Vol. V, Tomo li. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 540. Votação Unânime. Ecom bastante apreensão que se lê recente acórdão do SuperiorTribunal
34 "Substancial chance", como está na decisão canadense: Hotson V. Fitzgerald (1985) Q>B>D.1; de Justiça, que parece ter trilhado caminho semelhante ao do Tribunal de Justiça do Paraná.
W.L.R.1036 Veja-se Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.364.526/MS
35 Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. REsp1115687/SP. Rei. Min. Nancy Andrighi.Julgado (2012/0254859-0). Relator: Ministro Raul Araújo. Brasília, DF, 21 de maio de 2019. Diário da
em 18.11.2010. Disponibilizado em 02/02/2011. Justiça Eletrônico. Brasília, 05 jun 2019
734 - RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE NO BRASIL: PRINCIPAIS REQUISITOS •••
RAFAEL PETEFFI DA SILVA - 735

pecíficos correspondentes. Ressalte-se que a profissão almejada pela ví- perdidas, pois não se pode afumar, com certeza, qual seria o resultado
tima possui alto grau de empregabilidade. final da demanda. Entretanto, é o resultado final da demanda que repre-
sentará o valor sobre o qual serão calculadas as chances perdidas. Desta
2. A CONSIDERAÇÃO DA ÁLEA QUE AFETA A CHANCE PERDIDA NA feita, se a demanda julgada favoravelmente traria uma vantagem econô-
CONCESSÃO DA INDENIZAÇÃO-QUANTIFICAÇÃO DE DANOS mica de dez mil reais e se, antes de interpor o recurso, a vítima conta-
Na quantificação do dano e para conceder a indenização, os juízes va com 30% de chances de reverter a sentença que não lhe foi favorável,
terão sempre que levar em conta a álea contida na chance perdida. Desse a indenização final pela perda da chance deverá ser de três mil reais 42 •
modo, imperioso que a indenização concedida pela perda de uma chance Isso não significa de modo algum estar o dano pela perda de uma
seja sempre menor do que a indenização que seria concedida pela perda chance infenso ao princípio da reparação integral: pelo contrário, a in-
da vantagem esperada, caso a perda desta estivesse em relação de causa- denização concedida sempre repara de forma integral as chances perdidas,
lidade com a conduta do agente38 • Foi nesse sentido decisão da Corte de pois, para grande parte da doutrina e da jurisprudência, a perda de uma
Cassação francesa ao anular a decisão da Corte de Apelação de Rennes. chance é um dano específico e independente em relação ao dano final,
Esta havia concluído que a falha de um cirurgião subtraíra apenas as que era a vantagem esperada definitivamente perdida43 • O que se pode
chances de sobreviver da vítima, tendo em vista não haver nexo causal afumar, conforme Jean-Pierre Couturier é ser a "função chance perdi-
da falha médica com a morte do paciente. Porém, a Corte de Apelação da" derivada da "função vantagem esperada (dano final)", variando con-
condenou o cirurgião a indenizar o dano advindo da morte do paciente. forme esta varia44, apesar de manter a sua independência.
De acordo com Paul-Julien Doll, comentarista da decisão, a contradi- A metodologia utilizada pela jurisprudência norte-americana guarda
ção da Corte de Rennes é :flagrante: de um lado, condenou o cirurgião as mesmas linhas seguidas pelos juristas franceses. Destarte, em Falcon
pela perda de uma chance de sobreviver, de outro, conferiu indenização v. Memorial Hospitaf 5 , a Suprema Corte de Michigan julgou o caso de
para reparar a perda da vantagem esperada, sendo essa a sobrevivência uma gestante falecida logo após o parto, devido a uma embolia. Os pe-
da vítima39 • No mesmo sentido manifesta-se Raymond Martin, ao ana- ritos admitiram que a morte era imprevisível, não podendo o médico
lisar a cassação de um acórdão da Corte de Apelação de Bordeaux con- ser responsabilizado. Entretanto, conforme então comprovado, 37,5%
denando um advogado que perdera o prazo recursa! a pagar o valor total das pessoas atingidas pelo mesmo problema sobrevivem, desde que re-
da causa como indenização ao seu cliente40 ; o correto seria somente res-
ponsabilizar o causídico pela perda de uma chance. 42 CHARTIER, Yves. La réparation du préjudice. Paris: Dalloz, 1996, p. 15. Como bom exemplo
de coerente resultado quantitativo temos a Decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo.
É bastante comum encontrarmos na doutrina e na jurisprudência a Apelação Cível 7219871900. Apelante: Uni banco. Apelado: Ricardo Audi. Relator: Des. Moura
Ribeiro, julgado em 27 de novembro de 2008, cujo extrato da ementa segue abaixo, "( ... )
afirmação segundo a qual a reparação da perda de uma chance só poder Evidente responsabilidade do banco-réu, que foi negligente ao firmar e executar contrato que
ter como efeito uma "reparação parcial". Esta utilização apressada dos continha assinatura falsa- Prejuízos morais e materiais ao autor, empresário que teve obstada
a concessão de crédito para o desenvolvimento de projeto em' razão da negativação do seu
termos se explica (mas não se justifica) porque a avaliação do dano ad- nome Dano.moral que independe de comprovação -Verba indenizatória dos danos morais
vindo da perda de uma chance se dá por meio da comparação com a van- mantida, face à repercussão da conduta do. banco réu, da condição econômica das partes,
do abalo sofrido e da quantia pela qual o autor foi demandado - Critério para,a fixação dos
tagem esperada41, cuja indenização ensejaria uma indenização "integral". danos materiais que merece ser reformado em parte -Aplicação da teoria dá "perda de uma
chance"- Foi tirada do autor a oportunidade de obter um provável, mas nãci absolutamente
Assim, se o advogado deixa de interpor um recurso em ação que versava certo, resultado proveitoso - Indenização pela chance perdida e não pelo resultado visado -
sobre matéria controvertida, o juiz deverá indenizar apenas as chances Preliminares rejeitadas - Recurso parcialmente provido" (grifos nossos)
43 SARGOS, Pierre.j.C.P. 1997.ll.22921 eMAZEAUD, Henri; Leon,Jean; CHABAS, François. Leçons
38 Nesse sentido CHARTIER, Yves.j.C.P. 1985. ll,20360, 2ª espécie; MAZEAUD, Henri; Leon,Jean; de Droit Civil. Vol. 1. Tomo li. 9ª ed. Paris: Montchrestien, 1998, p. 428 e ss. Para uma hipótese
CHABAS, François. Leçonsde DroitCivil. Vai. 1. Tomo li. 9ª ed. Paris: Montchrestien, 1998; VINEY, de indenização pela perda de uma chance em que se encontrou o percentual de 20% de
Geneviéve;JOUIDAIN, Patrice. Troitéde DroitCM!. 2ª ed. Paris: L.G.D.J., 1998; LETOURNEAU, chances perdidas de se alcançar o resultado esperado com o possível sucesso da demanda
Philippe; CADIET, Loic. Droitde lo responsabilité, action dalloz. Paris: Dalloz, 1998, p. 213. judicial, veja-se Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial
39 DOLL, Paul-Julien. Gozette du Pala is, Paris, 1973, p. 630. No mesmo sentido decidiu a Corte de nº 1.206.188/DF (2017/0294001-0). Relatora: Ministra Maria lsabela Gallotti. Brasília, DF, 19 e
Cassação em 19.06.96 em Dallaz, 1998. sommaires commentés. 50 obs Claude J. Berr. junho de 2018. Diário da Justiça Eletrônico. Brasília, 01 ago. 2018.
40 MARTIN, Raymond.].C.P, 1998.11.10.143. 44 Nesse sentido COUTURIER, Jean-Pierre. Dallaz. Paris:, 1991, p. 158 e seguintes.
41 Nesse sentido o caso comentado porSAVATIER./.C.P, 1974. li. 17643. 45 Falcon v. Memorial Hosp., 462 N.W.2d 44, 52 (Mich.1990).
736 - RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE NO BRASIL: PRINCIPAIS REQUISITOS ••• RAFAEL PETEFFI DA SILVA - 737

cebam o correto tratamento médico. No caso, foi constatado que a fal- ção, tendo como padrão o valor da vantagem esperada51 • Deste modo, é
ta de uma terapêutica correta por parte do médico retirara as chances possível sugerir que, na análise dos casos, a chance passa pelo "plano da
de vida da Sra Falcon. Foi concedida indenização pelo dano, represen- existência" para, posteriormente, examinar-se a probabilidade da vítima
tando 3 7 ,5% do valor que seria deferido se o médico fosse considerado de obter a vantagem esperada. É, portanto, com a rigorosa observância
responsável pela morte da vítima. das condições referidas 52 que a jurisprudência internacional logra ade-
Kevin J. Willging, ao comentar o caso, afuma que a quantificação quar a utilização da noção da perda de uma chance com a necessidade
do dano deve refletir a porcentagem de chances perdidas46 • Em McKellips de certeza do prejuízo.
v. St. Franceis Hosp 47 , a Suprema Corte de Oklahoma utilizou a mesma 3. PERDA DEFINITIVA DA VANTAGEM ESPERADA - A DIFERENCIAÇÃO
sistemática de quantificação de danos 48 •
DA PERDA DE UMA CHANCE DA SIMPLES CRIAÇÃO DE UM RISCO
Apesar de grande parte dos julgados brasileiros não atentar para
Como até aqui mencionado, a teoria da perda de uma chance é
uma fórmula correta ou, ao menos, mais clara para a quantificação da
utilizada devido à impossibilidade de se saber se a "aposta", isto é, o
chance perdida pela vítima, alguns precedentes demonstram a preocu-
processo aleatório, apresentaria um resultado positivo para a vítima53 •
pação com esse importante aspecto da teoria da perda de uma chance.
Entretanto, a incerteza não pode subsistir em relação à perda definitiva
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina49 julgou espécie em que um
da vantagem que a vítima esperava obter ao final do processo aleatório.
policial militar aposentado irregularmente perdera a chance de galgar
Os irmãos Mazeaud asseveram que a reparação do dano pela perda de
cargos mais importantes na carreira. O Tribunal reconheceu o aspecto
probabilístico da demanda e quantificou a indenização em valor inferior uma chance somente poderá ser concedida quando "não é mais possí-
vel esperar para saber se o prejuízo existirá ou não existirá; a realização
ao total dos salários que ele receberia caso a promoção fosse um aconte-
cimento certo. Na mesma linha, tem-se a decisão do Superior Tribunal do dano não mais depende de eventos futuros ou incertos. A situação
é definitiva; nada mais vai modificá-la; por sua culpa, o réu interrom-
de Justiça, deferindo indenização por dano moral e dano patrimonial
em valores inferiores ao salário de vereador para um candidato que ha- peu o desenvolvimento de uma série de fatos que poderiam ser causas
de ganhos ou perdas"54 .
via perdido considerável chance de se eleger devido à veiculação de no-
tícias falsas por um rádio local5º. De fato, uma sentença judicial não poderá ser reformada depois
Nos casos mencionados, pode-se observar a utilização combinada de o recurso de apelação não ter sido conhecido por culpa do advogado
das duas últimas condições da Corte da Cassação acima referidas: pri- que perdera o prazo de interposição, implicando o trânsito em julgado
meiramente, o fator sério e real é critério para avaliar a existência das
51 Nesse sentido, VINEY, Geneviéve;JOUIDAIN, Patrice. Troitéde Droit Civil. 2ª ed. Paris: L.G.D.J.,
chances perdidas; em um segundo momento, serve para medir o grau de 1998. p. 85. Nas precisas palavras de José Duelos temos "Aussi, en général, une jurisprudence
álea contido na chance e, consequentemente, o valor final da indeniza- constante prend en compte /'a/éa inhérent à la chance perdue, et module l'indemnisatian selan
q1!e cette chance était plus ou moins grande. Le quantum des dommages-intérêts est dane
n~cessairemente inférieur au profit ou à /'absence de perte que la victime aurait connu, si /'espoir
46 WILLGING, Kevin Joseph, 1993, p. 554. "ln Falcon, the Michigan Suprem e Courtfound a solution legitime qu'e/le nourrissait s'étaitfina/ementconcrétisé. En aucun cas, la réparation ne peutégalerce
to the problem ofvaluing Mrs. Fa/con's /oss: becouse the defendants in Falcon were responsiblefor profit ou _cette perte" DUCLOS, José. Le régime de la responsabilité du banquier et la décharge
depriving Nena Falcon ofonlya percentage ofherchance afsurvival, thecourtdetermined thattheir des caut1ons.j.C. P. 1984. ll. 20237 observations. (grifos nossos)
liability should reflect that percentage. Therefore, beca use Nena Falcon had only a 37.5% chance 52 Não podemos deixar de registrar, a este propósito, que as contribuições mais valiosas para
ofsurvival due solely to herpreexisting condition, the physicians were held liable on/yJoran identical a quantificação das chances perdidas pela vítima advêm dos juristas da Common Law. O
percentage of the amount awarded under a wrongful death actian. "[Sem grifos no original] No professo~ ~aul ~peaker, em_ ~riginal trabalho, publicado em 2002, propugna por um padrão
mesmo sentido KINGJR,Joseph H, Reduction oflikelihood reformulation and otherretrofitting de quant1f1caçao que mod1f1ca a forma de calcular o valor da chance perdida nos casos em
of the loss-of-a-chance doctrine. University oJt-.,femphis Law Review, Winter, 1981, p. 1381 e ss. que a caus~lidade parcial é chamada a depor, mas tal estudo vai além dos limites do presente
47 741 P. 2d 467 (Okla. 1987) trabalho. Vide: SPEAKER, Paul. The applications ofthe loss ofa chance doctrine in class actions.
48 BRUER, Robert S. Loss of a chance as a cause of action in medical malpractice cases. Missouri Review of Litigation, Spring, 2002, e os juristas mencionados em: PETEFFI DA SILVA, Rafael.
LawReview, Fali, 1994, p. 983. Respo_nsabilidade Civil pela Perda de Uma Chance. São Paulo, Atlas, 2013, pp 147 e 55.
49 Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível 2007.056997-6. Relator: Des. Pedro 53 BORE, L' indemnisation pour Je5 chances perdus: une forme d'appreciation quantitative de la
Manoel Abreu. Julgado em 12 de fevereiro de 2010. causalite d'un fait dommageable./.C.P, 1974, 1. 2620.
50 SuperiorTribunal de Justiça. Terceira Turma. REsp 821004/MG. Rei. Min. Sidnei Beneti.Julgado 54 MAZEAUD, Jean, Leon e Heni, Traité Theorique et pratique e la responsabilité civile. 6. ed., Paris:
em 19/08/2010. Disponibilizado em 24/09/2010. Montchrestien, 1978, p. 273
738 - RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE NO 8RAS1L: PRINCIPAIS REQUISITOS ••• RAFAEL PETEFFI DA SILVA - 739

da demanda e ocasionando ao seu cliente a perda definitiva do bem da uma simples criação de riscos57 -daquelas objeto da perda de uma chance.
vida que esperava obter se lograsse êxito no aludido recurso; do mesmo Nos casos de simples aumento de riscos, a vítima também se encontra
modo o candidato a um concurso para o cargo de piloto de avião nun- em um processo aleatório que visa alcançar uma vantagem ou evitar um
ca mais poderá atingir a carreira profissional almejada após o aciden:e dano. Entretanto, a vítima ainda não sofreu o prejuízo derradeiro, tam-
no qual os dois braços lhe foram amputados culposamente. Nesses dois pouco perdeu a vantagem esperada de forma definitiva, apenas, devido
casos se vê claramente ter sido definitivamente perdida a vantagem es- à conduta do réu, aumentaram os riscos de ocorrência de uma situação
perada, apesar de não se saber se ela seria alcançad~ sem ª. o_corrência do negativa. Porém, é impossível saber se em momento futuro a perda de-
fato culposo. Portanto, pode-se afirmar que a teona trad1c1onal da res- finitiva da vantagem esperada pela vítima será efetivamente observada58 •
ponsabilidade pela perda de uma chance tem na perda definitiva da van- Imperioso ressaltar que, quando falamos em responsabilidade pelo
tagem esperada um dos seus requisitos fundamentais 55 • Diferentemente, risco criado, não estamos nos referindo à responsabilidade civil objetiva,
porém, na situação em que um aluno é impossibilitado de prestar o exa- que fundamenta a reparação na teoria do risco, e não na da culpa. Com
me vestibular, o dano será a perda de uma chance de não ter passado em efeito, a grande maioria dos casos até aqui citados apresenta a conduta
um único exame determinado, pois o aluno poderá, no futuro, "tentar" a culposa do agente como requisito para a reparação. O que se está a es-
sua chance em um ou em vários outros certames até conseguir a vanta- pecular é se a simples criação de uma situação perigosa, ou seja, um ris-
gem esperada: lograr a aprovação no vestibular. co criado (muitas vezes ocasionado por uma conduta culposa), poderia,
Há hipóteses, contudo, em que a constatação da real abrangência do ou não, constituir o objeto de uma ação de reparação.
prejuízo já não é tão simples. Com efeito, a Corte _de C~ssa~ão francesa Não fazem parte do conteúdo deste singelo estudo maiores apro-
decidiu demanda na qual um segurado postulara mdemzaçao pelo fato fundamentos a respeito da responsabilidade sobre criação de risco. Ainda
de o corretor de seguros contratado tê-lo feito assinar uma apólice que assim parece relevante compreender as suas características básicas para
continha várias cláusulas limitativas do dever de indenizar, mesmo sem bem diferenciar a teoria da perda de uma chance de algumas situações
ter ocorrido nenhum sinistro. A Corte concluiu pelo caráter hipotético limítrofes.
do dano, considerando: se não ocorresse o sinistro e, consequentemen-
te, não aflorassem as hipóteses de isenção de responsabilidade da segu-
11. Ü TRANSPLANTE DO MODELO, E AS SUAS VICISSITUDES
radora, não adviria qualquer dano para o segurado56 • Assim, somente se, Apontadas até aqui as condições mais importantes para a correta
no prazo de cobertura securitária, ocorresse o sinistro o segurado pode- aplicação da teoria da perda de uma chance, alicerçando o que entende-
ria perceber alguma espécie de prejuízo derivado da cláusula limitat~va mos ser o modelo doutrinário a ser seguido, cumpre demonstrar o grau
do dever de indenizar. De outro modo, qual o dano decorrente da clau- de aceitação desse modelo pela jurisprudência.
sula poderia ocorrer, na inexistência de qualquer sinistro?
Note-se que o caso por último apresentado guarda uma diferen-
57 Nesse sentido, LE TOURNEAU, Philippe; CADIET, Loic. Droitde la responsabilité, action dalloz.
ça essencial em relação aos demais, visto que o dano ainda poderia vir a Paris: Dalloz, 1998. p. 213. "On prendro soin de distinguerla perte d'une chance d'un risque qui peut
ser observado se ocorresse, conjuntamente, o sinistro e a hipótese de não survenir. Les choses sont déjà suffisamment complexes pour ne pas les embrouiller encare par un
vocobulaire ambigu. Ansi, il est maladroit de dire {bien que correct selon l'AcadémieJronçaise) qu'à
responsabilização da seguradora. Porém, nesse caso, estar-se-ia indeni- la suite d'un accident, il y a "des chances" que les parents de la victime tombent dons le besoin et ne
puissentplus obtenirdes secours alimentaires: non ilya un risquequecettesituation se présenterNo
zando um dano hipotético, dano que poderia vir a ocorrer - mas não te- mesmo sentido KINGJR,Joseph H, Reduction oflikelihood reformulation and otherretrofitting
ria ocorrido. É importante distinguir essa situação - caracterizada como ofthe loss-of-a-chance doctrine. UniversityofMemphis Low Review, Winter, 1998, p. 502. "Where
the defendant's tortious conductcreated a risk offuture consequences, the operotion ofthe loss-ofa-
chancedoctrineshould be suspended until the harmful effects actuolly materialize." Para um estudo
Alguns doutrinadores provenientes do sistem~ da ~om':1?~ Law incluem_ na teoria "los~ of mais aprofundado sobre a responsabilidade pela criação de riscos ver PETEFFI DA SILVA, 2013,
55 pp.115-137; e THOMPSON, MelissaMoore, Enhanced RiskofDisease Claims: Limiting Recovery
chance" casos nos quais a vantagem esperada nao esta defm1t1vamente perdida: Nesse sentido
verPETEFFI DA SILVA, Rafael. Responsabilidade Civil pelo Perda de Uma Chance. Sao Paulo, Atlas, to Compensation for Loss, Not Chance. North Carolina Law Review, vol. 72, 1994, p. 453.
58 PETEFFI DA SILVA, Rafael. Responsabilidade Civil pela Perda de Uma Chance. São Paulo, Atlas,
2013, pp. 123 e ss. 2013, p. 117.
Decisão de 20 de janeiro de 1930, em: Gaz. Pai. 1930. 1. 413.
RAFAEL PETEFFI DA SILVA - 741
740 - RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE NO BRASIL: PRINCIPAIS REQUISITOS ••••

Mais atual é a decisão, digna de aplausos 60 , que apreciou um caso de


1. ACEITAÇÃO DA TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE NA chance perdida pela falha do causídico em apresentar recurso tempestivo.
JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA A importância desse julgado é inegável, pois bem aprecia as condições e
O momento atual é caracterizado pela ampla aceitação e utilização os efeitos da aplicação da teoria da perda de uma chance. A conclusão é
da teoria da perda de uma chance pelos tribunais pátrios, principalmente que o autor da demanda não faz jus à indenização por danos patrimo-
aqueles situados nas Regiões Sul e Sudeste do Brasil. Vale lembrar que niais, tendo em vista o bem da vida (vantagem esperada) almejado na
esse fato é recente, sendo que a grande maioria dos julgados que se utili- demanda judicial patrocinada pelo réu ter sido alcançado em demanda
zam da teoria foi prolatada no transcorrer da última década. O Superior posterior. Ademais, o acórdão ainda deixa absolutamente claro não estar
Tribunal de Justiça custou a utilizar a teoria da perda de uma chance de a teoria da perda de uma chance circunscrita à seara dos danos morais,
maneira "consciente", ou seja, vinculando os casos concretos aos princí- podendo, em tese, ser considerada como dano patrimonial.
pios e requisitos da teoria e acatando, dessa forma, o modelo doutrinário. Em que pese seguir-se, nessas decisões, o bom caminho, atento
Em meados da década passada, um acórdão paradigmático foi jul- aos requisitos exigidos pela teoria da perda de uma chance, em outras
gado pelo STJ. É amplamente conhecido como o "caso do Show do ocasiões - muito provavelmente pela ausência, por longos anos, de um
Milhão", sendo este espécie de concurso televisivo no qual os candida- modelo doutrinário a oferecer fundamentos sólidos à hipótese - são ve-
tos deveriam acertar determinadas perguntas. No julgamento do caso, rificados alguns problemas.
59
as premissas da teoria da perda de uma chance foram notadas • Mesmo 2. As VICISSITUDES DO TRANSPLANTE: OS JULGADOS E SUAS
silenciando sobre os requisitos e as particularidades da teoria, o Tribunal
IDIOSSINCRASIAS
acatou a tese da defesa, que alegava ter a vítima tido a possibilidade de
lograr êxito na última questão do programa, chance que lhe havia sido A natureza do "dano chance perdida" será a mesma do "dano van-
suprimida pelo fato de uma das questões não ter, deliberadamente, res- tagem esperada": se a vítima esperava ganhar, ao final de uma deman-
posta possível. Como o obstáculo final consistia em uma questão de da judicial, R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), a perda da chance terá,
múltipla escolha, contendo quatro opções, poder-se-ia dizer, estatistica- evidentemente, natureza patrimonial. Do contrário, se a vantagem es-
mente, que a vítima possuía 25% de chances de ganhar os R$ 500.000,00 perada pela vítima, ao final da demanda judicial, fosse obter a guarda
e, portanto, sua chance valeria R$ 125.000,00. dos filhos, o dano terá caráter extrapatrimonial. Infelizmente, porém, a
jurisprudência, consoante linha bastante difundida, nem sempre parece
seguir esse raciocínio essencial61 •
Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 788.459/BA. Relator: Min. Fernando Gonçalves. Encontra-se bom exemplo do equívoco acima apontado em ma-
59
Julgado em 08 de novembro de 2005. Nova ?ecis_ão, recentíssi~a, em caso análogo, reforça
a posição da Corte, nesse sentido ver Superior Tribunal de Justiça. EDcl em :'?Rg 1.19?.9~7/ nifestação do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, quando julgou de-
DF, Relatora Mininstra Maria Isabel Gallotti, Julgado em 10.04.2012. Do relatorio do primeiro
julgado, pelo Min. Fernando Gonçalves, extrai-se: "Cuida-se de ação d~ i~denização proposta manda proposta por pessoa jurídica contra seu antigo advogado, visto
por Ana Lúcia Serbeto de Freitas Matos, per~!1te a 1ª Var? E_spec1alizada de Defesa do que este havia perdido a oportunidade de recorrer de uma sentença pro-
Consumidor de Salvador - Bahia - contra BF Utilidades Domesticas Ltda, empresa do grupo
econômico "Sílvio Santos", pleiteando o ressarcimento por danos materiais e morais, em ferida em uma reclamatória trabalhista, devido à intempestividade do
decorrência de incidente havido quando de sua participação no programa "Show do Milhão",
consistente em concurso de perguntas e respostas, cujo prêmio máximo de R$1.ooo.ooo,oo
recurso interposto 62 • O Relator afirmou: "estabelecida a certeza de que
(hum milhão de reais) em barras de ouro, é oferecid? àquele par~icipa~te que _r:,s~o~~er houve negligência do mandatário, o nexo de causalidade e estabelecido
corretamente a uma série de questões versando conhecimentos gerais. Expoe a pet1çao m1c1al,
em resumo, haver a autora participado da edição daquele programa, na da~a_d: 15 ~e junho je o resultado prejudicial, demonstrado está o dano moral, haja vista que, ·
2000, logrando êxito nas respostas às questões formuladas, salvo _quanto a ultima mdag?ça_o,
conhecida como "pergunta do milhão", não respondida por preferir salvaguardar? pre~1açao 60 Superior Tribunal deJustiça. Recurso Especial 1.079.185/MG Relatora: Ministra. Nancy Andrighi.
já acumulada de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), posto que, caso apontado item diverso Julgado em 11.11.2008.
daquele reputado como correto, perderia o valor em ~eferência. N~ e~tanto, pondera haver 61 Nesse sentido ver PETEFFI DA SILVA, Rafael. Responsabilidade Civil pela Perda de Uma Chance.
a empresa BF Utilidades Domésticas Ltda, em procedimento de ma-fe, elaborado p~r?unta São Paulo, Atlas, 2013, pp. 207-216
deliberadamente sem resposta, razão do pleito de pagamento, por danos materiais, do 62 Tribunal deJustiçado Rio deJaneiro.Apelação Cível nº 2003.001.19138. Relator: Des. Ferdinaldo
quantitativo equivalente ao valor correspondente ao prêmio máximo, não recebido, e danos Nascimento. Julgado em 7.10.2003.
morais pela frustração de sonho acalentado por longo tempo."
742 - RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE NO BRASIL: PRINCIPAIS REQUISITOS ••• RAFAEL PETEFFI DA StLVA - 743

segundo a doutrina majoritária, o dano moral advém do próprio fato". a porta larga do "dano moral" a tudo deixasse entrar. Outras idiossincra-
O fato de a autora da referida demanda ser pessoa jurídica é importan- sias podem ser identificadas nos tribunais pátrios: a confusão co~ceitual
te, pois, mesmo a jurisprudência prevendo a possibilidade de se indeni- existente entre a indenização das chances perdidas e a indenização da
zar o dano moral sofrido por pessoa jurídica63 , indene de dúvidas que tal própria vantagem esperada pela vítima, que seria auferida caso esta lo-
reparação somente ocorre em casos bem específicos, advindos da lesão grasse êxito ao final do processo aleatório em que se encontrava, é um
à chamada honra objetiva. Portanto, além da dificílima tarefa de imagi- dos principais obstáculos.
nar a existência de dano moral na espécie, certa é a existência de dano Destarte, fragmentos de alguns acórdãos 67 parecem indicar que a
patrimonial (representado pela condenação pecuniária na demanda tra- teoria da perda de uma chance estaria sendo utilizada para suavizar o
balhista) decorrente da chance perdida, o que foi ignorado pelo julgado. ônus da prova do nexo de causalidade entre a conduta do réu e a perda
Em outro caso, porém, decidido no mesmo Tribunal64 , a indenização por da vantagem esperada, normalmente identificada com a categoria dos
dano moral foi denegada, alinhando-se com o entendimento expresso lucros cessantes. Essa orientação pôde ser notada no aresto do Tribunal
no Enunciado 444 da V Jornada de Direito Civil65 • de Justiça do Rio Grande do Sul68, em que o réu foi impedido de vender
Sobre o mesmo tema - isto é, a definição da natureza da chance sua quota-parte de um caminhão porque este havia sido, integral e equi-
perdida - o Superior Tribunal de Justiça, em acórdão 66 já antes citado, vocadamente, alienado para um banco. A teoria da perda de uma chance
sublinhou a necessidade de se garantir a correta definição da natureza foi usada para garantir a indenização, mesmo as perdas financeiras so-
jurídica da chance perdida, demonstrando a inadequação de conferir in- fridas pela vítima se encaixando naquilo que ela "razoavelmente deixa-
denização sob o manto do dano moral para prejuízos de natureza evi- ria de ganhar", hipótese típica, portanto, de lucros cessantes.
dentemente patrimonial. O avançar deste entendimento seria um duro golpe na interessante
Como se pôde notar, a identificação dos danos extrapatrimoniais caminhada dogmática acerca da perda de uma chance em nosso ordena-
como única manifestação da teoria da perda de uma chance é um dos mento, pois seria confundida com a categoria dos lucros cessantes,já tão
principais problemas evidenciados pela análise jurisprudencial, como se bem delimitada no art. 402 do Código Civil e tão bem trabalhada pela
doutrina e pela jurisprudência. Devemos ressaltar que a noção de perda
63 Superior Tribunal de Justiça. Súmula 227.
64 Tribunal de Justiçado Rio deJaneiro.Apelação Cível nº 2008.001.25582. Relator: Des. Nametala de uma chance somente pode ser utilizada quando não existe causalidade
Pacheco Jorge, julgado em 25.06.2008. "Civil. Advogado. Responsabilidade. Contrato de
prestação de serviços. Ação de despejo proposta em face de pessoa jurídica. Sentença de necessária entre o fato danoso e a perda da vantagem almejada pela víti-
procedência do pedido. Apelação interposta por intermédio de petição desprovida de ma. Neste sentido, também é considerada abusiva a utilização da perda
assinatura. Intimação do causídico para regularizar a peça recursai. Inércia. Recurso não
recebido. Trãnsito em julgado da decisão de desalijo. Perda de uma chance. Dano moral não de uma chance no caso em que um notário, por sua negligência, deixa-
configurado.A pessoa jurídica pode sofrer dano moral (Súmula227 do STJ), contudo, somente ra de efetuar, tempestivamente, a averbação da partilha dos bens de um
por afronta a sua honra objetiva, vale dizer, a reputação que desfruta perante terceiros, de
modo a afetar o seu bom nome no mundo civil e comercial em que atua. A perda de uma casal, ocasionando a penhora dos bens de um dos cônjuges pelos credo-
chance, contudo e em linha de princípio, somente tem o condão de afetara dignidade humana,
ou seja, a só frustração da justa expectativa de ter sua pretensão recursai apreciada pela res do outro cônjuge. Ora, nesse caso a falha do notário foi muito além
instância superior, em tese, interfere no comportamento psicológico da parte, causando- da subtração de uma simples chance, constituindo-se como conditio sine
lhe angústia, aflições e desequilíbrio em seu bem estar. Relaciona-se, assim, ao dano moral
inerente às pessoas naturais, mas em nada afeta o conceito que a pessoa jurídica goza no seio qua non para o aparecimento do dano sofrido pela vítima, devendo ge-
da comunidade. Não há, pois, falar em dano moral. Sentença reformada."
65 Enunciado 444. "Art. 927. A responsabilidade civil pela perda de chance não se limita à categoria
rar responsabilidade integral pela perda do patrimônio 69 •
de danos extrapatrimoniais, pois, conforme as circunstâncias do caso concreto, a chance
perdida pode apresentar também a natureza jurídica de dano patrimonial. A chance deve ser
séria e real, não ficando adstrita a percentuais apriorísticos.
66 Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. REsp. 1190180/RS. Rei. Min. Luís Felipe Salomão. Para uma completa análise dos acórdãos que suscitam a falta de clareza conceituai aqui aventada
Julgado em 16.11.2010. Disponibilizado em22/11/2010. Extrai-se da ementado referido julgado: ver PETEFFI DA SILVA, Rafael. ResponsabilidadeCivilpela Perda de Uma Chance. São Paulo, Atlas,
"3. Assim, a pretensão à indenização por danos materiais individualizados e bem definidos na 2009, pp. 203-208
inicial, possui causa de pedir totalmente diversa daquela admitida no acórdão recorrido, de 68 Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível. Apelação Cível nº 70001897719.
modo que há julgamento extra petita se o autor deduz pedido certo de indenização por danos Relator: Des. Mara Larsen Chechi.Julgado em 9.10.2002.
materiais absolutamente identificados na inicial e o acórdão, com base na teoria da 'perda de 69 JOURDAIN, Patrice. Perte d'une chance: une nouvelle forme d'abus de l'utilisation de la notion
uma chance', condena o réu ao pagamento de indenização por danos morais". pour réparer un préjudice certain. R.T.D.C., Paris, 1994. p. 110.
744 - RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE NO BRASIL: PRINCIPAIS REQUISITOS ••• RAFAEL PETEFFI DA StLVA - 745

Felizmente,já se pode afumar que muitos dos acórdãos mais recen- BRUER, Robert S. Loss of a chance as a cause of action in medical malpractice cases.
Missouri Law Review, Fali, 1994., p. 971.
tes estão aperfeiçoando a jurisprudência brasileira, livrando-a das idios-
CARNAúBA, Daniel. Responsabilidade civilpela perda de uma chance: a álea e a técnica.
sincrasias mais marcantes 70 •
São Paulo: Método, 2013.
CONCLUSÃO CHABAS, François. La perte d'une chance en droit français. Palestra inédita proferida
na Faculdade de Direito da UFRGS, em 26 de maio de 1990.
Como argutamente observou Rui Cardona Ferreira, "a evidência CHARTIER, Yves. La réparation du prt{judice. Paris: Dalloz, 1996.
da utilidade prática da perda de chance é,justamente, o seu maior inimigo" 71 • _ _.]C.P., 1985,II.20360.
A observação do professor lusitano atesta que a grande aplicabili- COUTO E SILVA, Clóvis do. Miguel Reale civilista. Revista do Tribunais, nº 672,
dade prática da teoria da perda de uma chance e o sentido de equih'brio p. 54 e ss.
e justiça que emana da sua utilização em relação a casos muitas vezes ___ . O direito civil brasileiro em perspectiva histórica e visão de futuro. Revista da
complexos faz aflorar - em países de tradição recente como a Itália e, Ajuris, vol. 40, p.138 e ss.
ajunto eu, o Brasil -- uma aplicação "meteórica" do instituto, destituída COUTURIER,Jean-Pierre. Dalloz. Paris, 1991.
BERR, Claude.}. sommaires commentés Dalloz, 50, 1998. sommaires commentés.
de fundamentação teórica sólida.
DOLL, Paul-Julien. Gazette du Falais, Paris, 1973.
Durante o presente trabalho analisou-se, de maneira sintética, os DUCLOS,José. Le régirne de la responsabilité du banquier et la décharge des cautions.
requisitos de aplicação da teoria da perda de uma chance, como a s~rie- J C.P., 1984. II. 20237. Observations. ·
dade das chances perdidas, a consideração da álea na quantificação da DURRY, Georges. La notion de perte d'une chance réparable. RTDC, 1976, p. 778 e ss.
chance perdida e a perda definitiva da vantagem esperada, que consti- FERREIRA, Rui Cardona. Indemnização do Interesse Contratual Positivo e Perda de
tuem, em nosso sentir, os fatores que podem conferir a referida solidez Uma Chance. Coimbra: Coimbra Editora, 2011.
teórica necessária para uma correta aplicação do instituto da responsa- GOYER III, James L.; GALE III, Fournier J. Recovery for Cancerphobia and
bilidade civil pela perda de uma chance. Increased. Risk ofCancer. Cumberland Law Review, vol. 15, 1985., p. 723.
JOURDAIN, Patrice. Perte d'une chance: une nouvelle forme d'abus de l'utilisation
As considerações sobre as idiossincrasias observadas na aplicação de la notion pour réparer un préjudice certain. R. T.D. C., Paris, 1994, p. 110 e ss.
prática da teoria da perda de uma chance, por nossos tribunais, reve- KING JR.,Joseph H. Reduction oflikelihood reformulation and other retrofitting of
la certo divórcio com a recente doutrina produzida no país. Entretanto, the loss-of-a-chance doctrine. University ofMemphis Law Review, Winter, 1998.
o inegável avanço dos recentes posicionamentos jurisprudenciais, com
- - -. Causation, Valuation, and Chance in Personal Injury Torts Involving
destaque para o Superior Tribunal de Justiça, comprova a importância e Preexisting Conditions and Future Consequences, Yale Law Journal. vol. 90, 1981,
a influência do incipiente modelo hermenêutico nacional. p.1353.
LAPOYADE DESCHAMPS, Christian. Dalloz. 1972, p. 669 e ss.
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_ _ . _ _ .JC.P.1970.II.16456.
70 Em recente decisão, o Superior Tribunal de Justiça bem reformou decisão que não obedeceu às _ _. _ _ .JC.P.1996.II.22705.
fundamentais distinções entre a quantificação da chance perdida e a quantificação da vantagem
esperada, que no caso concreto caracterizava-se como uma hipótese de lucros cessantes. MAKDISI,John. Proportional Liability: A Comprehensive Rule to Apportion Tort
Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.750.233/SP (2018/0155563-0). Relatora: Damages Based On Probability. Noi·th Carolina Law Review, vol. 67, 1989, p. 1063.
Ministra Nancy Andrighi. Brasília, DF, 05 de fevereiro de 2019. Diário da Justiça Eletrônico.
Brasília, 08 fev. 2019. MARTIN, Raymond.JC.P.1988 II.10143.
Ementa: (... ) 7. Assim feita a distinção entre os lucros cessantes e a perda de uma chance, a MARTINS-COSTA,Judith. Comentários ao Novo Código Civil: Do Inadimplemento
conclusão que se extrai, do confronto entre o título executivo judicial - que condenou a ré à das Obrigações. Arts. 389 a 420. Vol. V, Tomo II. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense,
indenização por lucros cessantes - e o acórdão recorrido - que calculou o valor da indenização
com base na teoria perda de uma chance - é a da configuração de ofensa à coisa julgada.(... ) 2009.
71 FERREIRA, Rui Cardona. lndemnizaçãa do Interesse Contratual Positivo e Perda de Uma Chance.
Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 198
746 - RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE NO BRASIL: PRINCIPAIS REQUISITOS •.• TULA WESENDONCK - 747

___ . Direito e cultura: entre as veredas da existência e da história. Revista do


advogado, nº 61, nov./ 2000.
V. A APLICABILIDADE DO ART. 931 DO CóDIGO
_ _ _ . A Boa-Fé no Direito Privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São CIVIL NOS 18 ANOS DO CóDIGO CIVIL
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1994., p. 453. Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2013). Professora
Permanente do Programa em Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio
VINEY, Geneviéve;JOUIDAIN, Patrice. Traité de Droit Civil. 2ª ed. Paris: L.G.D.J., Grande do Sul. Professora Adjunta de Direito Civil na Universidade Federal do Rio Grande do
1998. v.:Les conditions de la responsabilité. Sul. Integrante do Instituto de Estudos Culturalistas, da Rede de Direito Civil Contemporâneo
WILLGING, Kevin Joseph. Falcon v Memorial Hospital: A Rational Approach to e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil. Líder do Grupo de Pesquisa
certificado no CNPq: Direitos da Personalidade e Responsabilidade Civil no Direito Civil
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Spring, 1993. 2 Essa crítica forte e ácida pode ser verificada em: CARNAÚBA, Daniel Amaral. Para que serve o
art. 931 do código civil? Considerações Críticas sobre um dispositivo inútil. Revista de Direito
Civil Contemporâneo, vai. 22/2020, p. 203-239,Jan-Mar / 2020.A esse respeito, cabe ponderar
que num Estado Democrático de Direito a lei existe para ser cumprida. Ainda que se questione
a pertinência ou a necessidade de alteração de um dispositivo legal vigente, etiquetá-lo como
"inútil", além de ser arbitrário, prejudica a averiguação sobre as potencialidades de aplicação
do dispositivo, que incrementa as normas da Responsabilidade Civil, como já defendemos
em obra destinada a explorar as hipóteses interpretativas do dispositivo (WESENDONCK,
Tula. O Regime da Responsabilidade Civil pelo Fato dos Produtos postos em circulação -
uma proposta de interpretação do Art. 931 do Código Civil sob a Perspectiva do Direito
Comparado. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015).
748 -A APLICABILIDADE DO ART. 931 DO Córneo CIVIL NOS 18 ANOS DO Córneo Civil
TULA WESENDONCK- 749

Para compreender o conteúdo, extensão e aplicabilidade do dispositi-


Nesse sentido calha a reflexão feita por Anderson Schreiber, ao cri-
vo, é necessário comparar o regime de responsabilidade pelo fato do pro-
ticar a posi.s:ão defendida por Sergio Cavalieri, direcionada a reduzir o
duto previsto no Código Civil com o Código de Defesa do Consumidor.
parágrafo Unico do Art. 927 à reedição das normas do CDC5 •
Essa comparação depende de um estudo histórico a respeito do
Atualmente, pelo menos no que se refere ao exame do parágrafo único
processo legislativo que culminou na redação atual do Art. 931. Toma-
do Art. 927, o argumento da mera repetição das normas do CDC não tem
se como ponto de partida a sua proposição inicial, originalmente uma
mais a mesma força na doutrina e na jurisprudência e espera-se que esse
norma específica de responsabilidade civil dirigida ao farmacêutico pelos
posicionamento também seja seguido no futuro em relação ao Art. 931.
danos derivados de medicamentos, passando pelas modificações ocor-
ridas ao longo dos mais de 30 anos de tramitação do Código Civil, que A esse respeito, o próprio Sérgio Cavalieri, em artigo jurídico pu-
redundaram na formação de uma cláusula geral da responsabilidade ci- blicado na Revista de Direito do consumidor em 2003 (sem fazer refe-
vil objetiva. rência à posição defendida em publicação anterior), afirmou:
"O intérprete menos avisado poderia visualizar um bis in idem
O enfrentamento da evolução do dispositivo é necessário para afas-
entre o parágrafo único do Art. 927 do CC/2002 e o Art. 14
tar interpretações equivocadas ao seu respeito, como tem sido observado
do CDC, mas, na realidade, isso não ocorre. As duas normas
por parte da doutrina brasileira, que ao examinar o Art. 931, conside-
disciplinam matéria idêntica, não há dúvida, mas cada qual em
ra que a norma nele. contida não teria trazido qualquer novidade para sua área.( ... ) Se estivermos em face de uma relação de consumo,
o ordenamento brasileiro, pois estaria limitada a repetir as disposições vamos continuar aplicando o art. 14 do CDC, porque é a lei
previstas no Código de Defesa do Consumidor3. específica, própria, especial. Não havendo relação de consumo,
Importante salientar, que mesmo em relação ao Parágrafo Único do poderemos e deveremos aplicar, agora, a regra do art. 927, par.
Art. 927 do CCB, na iminência da entrada em vigor do CCB, ou logo ún., norma esta mais abrangente do que a norma do art. 14."6
depois da sua vigência, a doutrina também referia o argumento da re- Entre as duas publicações do autor, a posição referida por último
petição da norma do Código de Defesa do Consumidor relativa à res- parece ser a mais adequada, pois as normas contidas do CCB não são
ponsabilidade objetiva pelo fornecimento de serviços4. mera reedição das normas do CDC e tem sim um conteúdo genérico
podendo ser aplicadas para além das relações de consumo.
Nessa direção, merece destaque a posição de Ruy Rosado de Aguiar
3 Nesse sentido podem ser citados Sergio Cavalieri Filho, Carlos Roberto Gonçalves e Rui Stoco. Júnior para quem as disposições previstas no CDC atribuem responsabi-
Em especial cabe a referência a uma passagem de Sergio Cavalieri Filho, que ao examinar o
conteúdo e extensão do Art. 931 do CC o assemelha ao Art. 12 do COC, mas não deixa de lidade objetiva ao fornecedor no âmbito das relações de consumo e que
considerar o caráter genérico da norma constante no diploma civil, como segue: "O que é as normas de responsabilidade objetiva previstas no CC não pressupõem
isso? É responsabilidade pelo fato do produto, artigo 12 do Código do Consumidor. Só que
esse artigo só é aplicável nas relações de consumo. Mas agora o novo Código Civil dará à a relação de consumo. Ao examinar o conteúdo do parágrafo único do
responsabilidade pelo fato do produto uma dimensão geral. Mais uma vez, para sabermos o
que é fato do produto, para bem aplicarmos este dispositivo, teremos que nos valer da disciplina
que está muito bem desenvolvida no Código do Consumidor e trazer para cá. Quer dizer, 5 Segundo o autor: "o Art. 927 não tem o seu âmbito de aplicação limitado a uma responsabilidade
vamos ter que interpretar o Código Civil novo à luz de preceitos que estão no próprio Código perante o destinatário final, abrangendo todo o campo interempresarial, composto pelas
do Consumidor." CAVALIERI FILHO, Sergio: O novo Código Civil e o Código do Consumidor: relações entre os diversos tipos de fornecedores (fabricante, importador, etc.). Além
convergências ou antinomias? ln Revista da EMERJ, v. 5, n. 20, 2002, p. 111-112. disso, no que tange aos requisitos de incidência, não como negar que a norma contida no
4 Ao comentar o dispositivo Sérgio Cavalieri afirmava: "Atividade é serviço. Então o que temos parágrafo único do Art. 927 dispensa do defeito do (produto ou) serviço como condição de
aqui?Temos a responsabilidade pelo fato do serviço. Exatamente a responsabilidade prevista no responsabilização, fundando-se, mais diretamente, na ideia de socialização dos riscos". Esegue
artigo 14 do Código do Consumidor. Só que lá essa responsabilidade está melhor disciplinada o autor referindo "além das diferenças estruturais entre a norma consumerista e a cláusula
do que aqui: O COC diz que o serviço deve ser defeituoso e diz também quando o serviço tem geral de responsabilidade objetiva contida no Código Civil, resta claro que o fundamento da
defeito. O Código Civil nada diz a esse respeito. Sabem o que vai acontecer? Para aplicarmos tutela, aqui e ali, são inteiramente diversos." SCHREIBER, Andersen. Novos Paradigmas da
bem esse parágrafo único, vamos ter que pegar de empréstimo tudo aquilo que está lá no Responsabilidade Civil-da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos.São Paulo:
Código do Consumidor, vamos ter que ver o que é serviço defeituoso, quando é que não Atlas, 2011, p. 25.
oferece a segurança devida e necessária etc." CAVALIERI FILHO, p. 111. 6 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Responsabilidade Civil no Novo Código Civil. Revista de Direito do
Consumidor. vol. 48, p. 69-84. Out-Oez / 2003.
750 -A APLICABILIDADE DO ART. 931 DO Córneo CIVIL NOS 18 ANOS DO Córneo Ci~IL
TuLA WESENDONCK- 751

Art. 927, Ruy Rosado de Aguiar Júnior defendia que o mesmo "dispõe porém quando for necessário, pode ter sua incidência aplicável às rela-
sobre responsabilidade por ato ilícito; ilícito absoluto, independente- ções de consumo.
mente de contrato". O autor ainda reforçava que esse dispositivo diferia No processo de interpretação e compreensão do conteúdo e dos
de urna "relação de consumo que, em princípio, pressupõe a existência efeitos do Art. 931 do Código Civil, também é preciso considerar que
da relação contratual (tirante os casos de responsabilidade pré-contratu- 0 dispositivo não tem paralelo com o Direito anterior ou com a legis-
al)". Em relação ao Art. 931 o autor afumava que a norma "atribuires- lação estrangeira10 •
ponsabilidade ao empresário que põe em circulação produtos" e alertava Por isso, ao interpretar o dispositivo não é possível pura e simples-
que o dispositivo não se confundia com as disposições do CDC porque mente absorver o pano de fundo apresentado pelos requisitos e elemen-
defendia que o Art. 931 "não se aplica à relação de consumo, porque a tos de outros sistemas de responsabilidade civil, tendo em vista que a
própria disposição legal esclarece que ela será usada se não houver dis- norma do Art. 931 é substancialmente diferente das demais normas de
posição específica de outra norrna'' 7• responsabilidade civil previstas antes ou depois do Código Civil de 2002.
Das lições deixadas pelo autor é possível perceber a defesa clara de Para além de analisar corno tem ocorrido a interpretação e aplica-
que os dois diplomas legais (CC e CDC) são distintos urna vez que se bilidade do Art. 931 no Direito brasileiro, este estudo pretende reforçar
dirigem a regrar situações diversas. A conclusão do autor é acertada no a adequada interpretação do dispositivo que incide para regular hipó-
sentido de não reduzir as normas do CC à mera repetição do CDC. No teses de responsabilização que não seriam reguladas sem a sua vigência.
entanto, cabe urna observação quanto à parte final da afirmação do autor Para esse fim, optou-se por dividir o estudo em duas partes: na pri-
que refere a inviabilidade de aplicar o Art. 931 às relações de consumo. meira examinará a delimitação do Art. 931 do CCB comparando o seu
Nesse sentido, é importante recordar o conteúdo do Art. 7° do CDC, conteúdo com a norma prevista no Art. 12 do Código de Defesa do
que não veda, ao contrário, possibilita e atrai a incidência de outros di- Consumidor; a segunda apresentará urna análise crítica sobre corno tem
plomas legais para situações derivadas de relações de consumo desde que sido a interpretação e aplicação do dispositivo pela jurisprudência pátria.
com isso a proteção do consumidor seja mais efetiva8• Essa disposição
ganha respaldo se for considerado que o CC é norma posterior e pode A. A DELIMITAÇÃO DA INCIDÊNCIA DO ART. 931 DO
ser considerada corno mais efetiva na proteção dos interesses do consu- Córneo C1v1L
midor (especialmente no que se refere à responsabilidade pelos danos O Art. 931 do Código Civil dispõe: "Ressalvados outros casos pre-
derivados dos riscos do desenvolvirnento 9). vistos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respon-
Assim, é possível afumar que o Art. 931 estabelece um sistema de dem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos
reponsabilidade civil do empresário pelo fato do produto posto em cir- postos em circulação." A leitura do dispositivo deveria conduzir o in-
culação, não está destinado a regular somente a relação de consumo, pois térprete à conclusão de que se trata de urna cláusula geral da responsa-
não está submetido ao Código de Defesa e Proteção do Consumidor, bilidade civil objetiva pelo fato do produto. ·
11
Corno já pontuamos em estudo a respeito do dispositivo , a sua
7 AGUIARJÚNIOR, Ruy Rosado de. O novo Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor:
pontos de convergência. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 48, out. 2003.
redação atual não é idêntica a que constava no Anteprojeto do CC de
8 Art. 7°. Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou 1972 cuja redação era a que segue:
convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de
regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que
derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade. 10 Nesse sentido difere do Parágrafo Único do Art. 927 do Código C_ivil, ?ut~a cláusula geral da
9 Nesse sentido importante referir a posição de Cristiane de Marchi que ao analisar o conteúdo responsabilidade objetiva inserida no CC de 2002 que encontra msp1raçao no Art. ~050 do
do Art. 931 do CCB afirma que o dispositivo "amplia o conceito de fato do produto existente Código Civil italiano, norma de responsabilidade civil _bas_ea~o em culpa pres~m1da, mas
no CDC, imputando responsabilidade civil à empresa e aos empresários individuais que paulatinamente passou a se considerada pela do_utrma 1_tahana como um~ clausula geral
vinculados à circulação dos produtos, indo além do CDC, pois contemplou inclusive riscos de da responsabilidade civil objetiva, sobretudo a partir da decada de 60 do seculo passado.
desenvolvimento do produto, passando a enriquecera instituto". MARCHI, Cristiane de A culpa (SCHREIBER, p. 22, sobretudo na nota de rodapé 53) . . . . .
e o surgimento da responsabilidade objetiva: evolução histórica, noções gerais e hipóteses 11 WESENDONCK, Tui a. Art. 931 do Código Civil: repetição ou inovação? ln Revista de Direito CIVIL
previstas no Código Civil. Revista dos Tribunais, vol. 964/2016, p. 215-241, Fev/2016. Contemporâneo, vol. 3, 2015, p. 141-159, Abr-Jun/2015, p. 142 e ss.
752 -A APLICABILIDADE DO ART. 931 DO CóDJGO CIVIL NOS 18 ANOS DO CóDJGO CIVIL _ TuLA WESENDONCK- 753

"Ressalvados outros casos previstos em lei especial, o farma- § 2° - A responsabilidade do fabricante quanto à garantia dos
cêutico e as empresas farmacêuticas respondem solidariamente produtos de sua fabricação será definida em lei especial." 15
pelos danos causados pelos produtos postos em circulação, A emenda teve grande importância para a redação do atual Art.
ainda que os prejuízos resultem de erros e enganos de seus 931 Código Civil, pois fumou no caput do dispositivo responsabilidade
prepostos." 12~13 civil do empresário, numa redação genérica, não mais dirigida somen-
Originalmente, a norma prevista no dispositivo era dirigida à res- te à responsabilidade do farmacêutico ou das empresas farmacêuticas 16 •
ponsabilidade do farmacêutico ou da empresa farmacêutica, tipificada No Parecer Final, o Deputado Ernani Satyro aprovou a Emenda
para um caso específico. Posteriormente foram propostas alterações à re- 530, com a proposição de subemenda passando o artigo a ter a seguin-
dação do artigo que passou a ser destinado a uma regra geral da respon- te redação:
sabilidade civil pela circulação de produtos, 14 possivelmente por conta "Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresá-
da ampliação da circulação de produtos de risco não adstritos ao setor rios individuais e as empresas respondem pelos danos causados
farmacêutico. pelos produtos postos em circulação." 17
A redação que mais se aproxima do texto atual foi apresentada pelo A redação do artigo permaneceu dessa forma até sofrer altera-
Deputado Emanoel Waisman, que propôs ao Art. 96 7 (hoje numerado ção posterior, na qual foi introduzida a expressão independentemen-
como 931) a emenda 530, com o objetivo de dar nova redação ao arti- te de culpa. Essa alteração ocorreu por meio de emenda de redação, na
go, conforme se vê a seguir: fase final da tramitação do Projeto perante a Câmara dos Deputados, 18
''Art. 967 - Ressalvados os casos previstos em lei especial, todo
15 Dados disponíveis no site:<http://www.senado.gov.br/publicacoes/mlcc/pdf/mlcc_v1_ed1.
empresário industrial responde pela garantia dos produtos pdf>.Acesso em: 15 ago. 2012.
postos em circulação. 16 Não se desconhece o teor da justificativa da emenda que revela a preocupação no sentido de
maior proteção ao consumidor, considerado pelo Deputado Waisman como "desassistido
§ 1° - As indústrias farmacêuticas e os farmacêuticos mani- de proteção", e também tinha por finalidade centralizar a espécie de responsabilidade no
fabricante, "aquele responsável por colocar em circulação o produto" como se vê a seguir:
puladores, respondem pelos danos causados pelos produtos em "O processo legislativo é de relevante valor na elaboração de leis, quando estas mesmas
circulação, ainda que os prejuízos resultem de erros e enganos leis, estudadas por doutos e entendidos, são submetidas ao crivo da discussão do Poder
Legislativo constituído, onde recebe a apreciação de quantos se debruçam sobre os projetos
de prepostos. para aprenderem e discutirem.
As leis outorgadas não passam pelo juízo de discussão desapaixonada e por isso, normalmente,
são eivadas de erros na própria elaboração, de omissôes lamentáveis e de enganos grosseiros.
Assim ocorreria com o novo Código Civil se o CONGRESSO NACIONAL não contribuísse com
sua parcela de responsabilidade na elaboração do texto final a sua aprovação.
Respeite-se o trabalho das Comissôes Elaboradora e Revisora. Mas é dever de todos reconhecer
12 Anteprojeto, p. 157. que omissôes existem no projeto, no anteprojeto e nos estudos mais anteriores, pois nenhuma
13 O Anteprojeto transformou-se no Projeto de Lei 634/1975, e passou a recebera numeração do proteção é dada ao maior contingente de brasileiros que se envolve na realização e prática de
Art. 967, permanecendo o dispositivo com a mesma redação. Dados disponíveis no site:<http:// atos jurídicos, no direito das obrigaçôes, os consumidores.
www.senado.gov.br/publicacoes/mlcc/pdf/mlcc_v1_ed1.pdf>. A lei geralmente protege o empresário. Dá força às suas organizaçôes, criando condiçôes de
14 Um estudo a respeito da evolução do processo legislativo do dispositivo mostra que o PL amparo à atividade que desenvolvem, protegendo menos o consumidor, razão de ser do grande
634/75 foi submetido à Câmara de Deputados, e ao Art. 967 (hoje numerado como 931) foram desenvolvimento econômico que o País experimenta. Mas o consumidor fica abandonado à
propostas as Emendas 528, 529 e 530. A Emenda 528 foi proposta pelo Deputado Tancredo sua própria sorte, geralmente tido como o desonesto nas transações. Seu cheque não é aceito,
Neves, e tinha por objetivo suprimir o Art. 967 do Projeto, por entender que a disposição era suas reclamaçôes não são consideradas. Ao consumidor cabe sempre o ônus dos prejuízos nas
casuísta, e a matéria já estaria regulada pela regra genérica da responsabilidade do empregador compras que realiza, pois não tem para onde recorrer.
ou comitente pelos empregados, serviçais e prepostos, disposição que constava do Art. 968, Ili,
Com a nova redação dada ao Art. 967 do Projeto de Código Civil, fica criada a responsabilidade
do Projeto. O Parecer Parcial apresentado pelo Deputado Raymundo Dinizaprovou a Emenda
civil do empresário, abrindo o§ 2° condições para a elaboração de um "código ou estatuto de
528, na mesma direção do argumento já apresentado a respeito da disposição casuística.
responsabilidade do fabricante" quanto aos produtos de sua fabricação."
No Parecer Final apresentado pelo Deputado Ernani Satyro, a Emenda 528 foi considerada
prejudicada, em virtude da subemenda oferecida à Emenda 530. O Deputado Pedro Faria Informação disponível no site: Dados disponíveis no site: <http://www.senado.gov.br/
propôs a Emenda 529 também para suprimir o Art. 967 do Código Civil, defendendo que a publicacoes/mlcc/pdf/mlcc_v1_ed1.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2012.
disposição já estaria regulada no Art. 968, Ili; e, segundo ele, não haveria justificativa para 17 Dados disponíveis no site: <http://www.senado.gov.br/publicacoes/mlcc/pdf/mlcc_v1_ed1.
"tratar em artigo autônomo a responsabilidade de determinado tipo de empresa, como se pdf>. Acesso em: 15 ago. 2012.
diverso fosse o seu tratamento". Para o Deputado Faria, a manutenção do dispositivo poderia 18 Importante referir que em recente estudo realizado pelo Senado Federal intitulado Memória
gerar errôneas interpretaçôes e, por consequência, o dispositivo deveria ser suprimido. A Legislativa do Código Civil disponível no site <http://www.senado.gov.br/publicacoes/mlcc/
Emenda 529 teve o mesmo tratamento dado à Emenda 528. pdf/mlcc_v1_ed1.pdf>, consulta em 15.08.2012, há uma referência expressa a respeito da
754-A APLICABILIDADE DO ART. 931 DO Córneo C1v1L NOS 18 ANOS DO Córneo CIVIL
TULA WESENDONCK -755

passando o dispositivo a ter a redação encontrada hoje no Art. 931 do


Código Civil, a se ver: ocupação de proteger a figura do consumidor como pensado no CDC,
1 mas não somente no diploma consumerista, e é nesse sentido que se in-
"Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os em-
presários individuais e as empresas respondem independen-
sere a grande utilidade do Art. 931: reconhecer a responsabilidade ob-
temente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos jetiva do empresário individual ou da empresa, pelos danos que os seus
em circulação. "19 produtos causem a terceiros; estes podem ser, consumidores ou não 21 •
A inclusão da expressão independentemente de culpa não se trata Para se chegar a essa conclusão, é necessário comparar o regime
somente de uma alteração estilística de redação, é expressão que torna de responsabilidade pelo fato do produto posto em circulação previsto
clara a opção do legislador para a criação de uma cláusula geral de res- no Código Civil com o sistema disciplinado no Código de Defesa do
ponsabilidade civil objetiva20 , e essa matéria, de grande relevância e im- Consumidor como se verá a seguir.
pacto no Direito brasileiro, acabou sendo inserida na legislação na fase O Art. 931 do Código Civil consagra uma cláusula geral da respon-
final de tramitação do projeto. sabilidade civil objetiva pelos danos decorrentes do produto posto em
As palavras que estão no dispositivo não foram inseridas ao acaso, circulação22 • O dispositivo consiste numa cláusula geral de responsabi-
tiveram o propósito de fazer com que a leitura do artigo, por mais su- lidade civil objetiva das empresas e dos empresários individuais.
perficial e apressada que fosse, conduzisse a pelo menos uma conclusão: O Código de Defesa e Proteção do Consumidor é um diploma legal
o dispositivo trata de uma cláusula geral de responsabilidade objetiva. que, como se depreende do próprio nome, tem como finalidade estabe-
O conteúdo da Emenda 530 objetivou proteger o consumidor, não lecer normas que visam proteger o consumidor. Para a sua incidência, é
o consumidor definido no atual Código de Defesa do Consumidor. A necessário que figure de um lado o fornecedor e de outro o consumidor.
expressão consumidor era usada com o sentido aproximado de usuário Essa polaridade é o que irá caracterizar a relação de consumo. O diplo-
de bem adquirido no mercado. Ainda é preciso pontuar que a emenda ma legal é dirigido para regular o regime específico (e não uma cláusula
foi elaborada em período anterior ao Código de Defesa do Consumidor geral) da responsabilidade civil do fornecedor por produtos ou serviços
e, em virtude disso, não considerou a distinção que se faz atualmente defeituosos no âmbito do Direito do Consumidor.
entre consumidor e usuário ou consumidor intermediário (de insumos). Além disso, nesse regime, o fator de imputação de responsabilida-
Enfim, é possível concluir que o Art. 931 foi redigido para prote- de civil é a existência de um defeito: o "fornecedor não é responsabiliza-
ger aquele que é o destinatário do produto colocado em circulação em do pelo simples fato de ter colocado no mercado um produto perigoso
qualquer relação comercial (o Código claramente unificou legalmente a que causou danos, pois, se não houver defeito, não há a obrigação de
disciplina das obrigações civis e mercantis). Isso pode repercutir na pre- indenizar"23 • Essa condicionante é tão forte no CDC que o legislador
consumerista prevê de maneira expressa que o fornecedor pode afastar a
existência de alteração do Art. 931 na fase de tramitação do Código Civil, e que essa alteração responsabilidade civil pela prova de inexistência de defeito do produto.
teria se dado em virtude de emenda de redação, na Câmara dos Deputados, na fase final de
tramitação do Código Civil, mas que essa emenda de redação não teria sido encontrada. Para compreender como funciona o sistema de responsabilidade
19 Essa alteração segue a orientação dada pela Emenda 332, proposta pelo Senado ao Projeto de pelo fato do produto previsto no Código de Defesa do Consumidor
Lei da Câmara n. 118 de 1984, no Parecer n. 842 de 1997, que tem o seguinte conteúdo: "A fim
de adequar o projeto à técnica jurídica, incorporem-se ao seu texto as emendas aprovadas é necessário observar dois sistemas que o influenciaram: o previsto no
e procedam-se as correções de redação e de técnica legislativa recomendadas, e ainda, à
renumeração de seus dispositivos e das remissões, conforme o que consta do texto em anexo." âmbito na União Europeia disciplinado na Diretiva 85/374 que prevê a
(Projeto de Lei da Câmara n. 118 de 1984, no parecer n. 842 de 1997).
20 Essa posição já foi defendida por Cavalieri e Menezes Direito em seus comentários ao Código 21 Esse ~s~ecto _é_ referido por Roger Silva Aguiar que ressalta a grande relevância do Art. 931
Civil. CAVALIERI FILHO, Sérgio; DIREITO, Carlos Alberto Menezes. Da responsabilidade civil do Cod1go C_,vil ato estabelecer a responsabilidade civil do empresário sem condiciona-la
das preferências e privilégios creditórios: art. 927 a 965. ln: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo ao reconhecimento de uma relação de consumo (AGUIAR, Roger Silva. Responsabilidade
(Coord.). Comentários ao novo Código Civil. 2ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2007. Obj~tiva-::_ do_ Risco à Solidariedade. São Paulo: Atlas, 2007, p. 34),
v. 13, p. 209. Segundo os doutrinadores é justamente a expressão "independentemente de 22 A afirmaçao e corroborada por TARTUCE, Flavio, Direito Civil 2. Direito das Obrigacões e
culpa" que demonstra o fato de o Código Civil ter estabelecido no Art. 931 mais uma cláusula Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Método, 8ª ed, 2013, p. 511. '
geral de responsabilidade civil objetiva. 23 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil no Código do Consumidor e a
defesa do fornecedor. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 192.
756 -A APLICABILIDADE DO ART. 931 DO CóDJGO CIVIL NOS 18 ANOS DO CóDJGO CIVIL TuLA WESENDONCK - 757

responsabilidade pelo fato do produto defeituoso e o norte-americano O sistema do Código de Defesa do Consumidor está ligado à. respon-
no qual a responsabilidade civil é objetiva, fundada no risco, a partir da sabilidade pelo fato do produto defeituoso, e o Código Civil está liga-
teoria das garantias implícitas24 • do à responsabilidade empresarial pelo fato do produto29 • Por isso, no
A responsabilidade adotada no sistema norte-americano é baseada Código de Defesa do Consumidor é possível excluir a responsabilidade
na atividade desenvolvida pelo fornecedor no mercado; é uma atividade provando que o produto não é defeituoso (e aqui é importante referir
lícita, porém perigosa. A responsabilidade prevista na Diretiva 85/374 posição de Sanseverino, segundo o qual, mesmo no regime do Código
está concentrada no resultado da atividade que é a introdução no mer- de Defesa do Consumidor o fornecedor é responsabilizado com frequ-
cado de um produto com defeito que representa um ato antijurídico por ência sem que ocorra qualquer defeito 30 - isso provavelmente em virtude
ser contrário ao dever de segurança25 • Todavia, essa responsabilidade não da dificuldade da prova da inexistência do defeito).Já no Código Civil,
é fundada no risco da empresa26 , a responsabilidade é coligada ao fato de a exclusão da responsabilidade ocorrerá nas hipóteses em que ficar pro-
o produtor ter colocado em circulação um produto defeituoso. vado o caso fortuito, força maior, fato de terceiro ou da vítima, ou então
O Código de Defesa do Consumidor foi influenciado pelo modelo quando for provado que o produto não foi colocado no mercado. Dessa
norte-americano no que diz respeito à aceitação de uma teoria da qua- forma, no regime do CCB não há como excluir a responsabilidade pela
lidade na qual nasceria um dever anexo para o fornecedor, uma garantia prova de inexistência do defeito.Nesse sentido, ao interpretar o Art. 931
implícita de segurança razoável. Esse dever anexo é concentrado no bem, é importante sempre lembrar que "não há, no dispositivo, referência ex-
e não somente no contrato a partir do qual o bem foi adquirido. Logo pressa a defeito" 31, como expressamente previsto no Art.12 do CDC32 •
haveria um dever legal de todos os fornecedores que contribuem para o Mesmo guardando esse sinal distintivo os dois sistemas (regido
ingresso do produto no mercado, o que caracterizaria a atividade de ris- pelo CDC ou pelo CC) convergem numa característica: nenhum deles
co. No entanto, no Código de Defesa do Consumidor a responsabilida- representa um modelo de responsabilidade civil objetiva pelo risco in-
de de reparar os danos somente irá incidir quando existir um defeito no tegral, com responsabilidade objetiva absoluta, pois a sua exclusão está
produto, conforme determina o Art. 12, § 3°, II, do Código de Defesa sujeita a certas hipóteses.
do Consumidor, seguindo a mesma orientação da Diretiva 85/375 27 • Muito embora seja inegável o caráter inovador da disposição, parte
Assim, no Código de Defesa do Consumidor a responsabilidade do da doutrina sustenta que o Art. 931 teria o mesmo alcance do Código
fornecedor depende da existência de defeito no produto, o fornecedor
29 A posição que é defendida neste estudo não é acolhida por toda a doutrina, como pode se ver da
tem o encargo de indenizar os danos causados por produtos presumida- lição de Ma rio Frota que ao elaborar artigo comparando o Direito brasileiro com o português,
trata o Art. 931 como um caso de responsabilidade do produtor por produto defeituoso.
mente defeituosos e somente se poderá eximir dessa responsabilidade se Talvez essa associação tenha sido feita pelo autor tendo em vista que no Direito português a
provar que o defeito não existe. Essa necessidade de o fornecedor provar responsabilidade somente se estabelece nos casos de produto defeituoso em conformidade
com a disposição da Diretiva 85/374. (FROTA, Mário. Estudo contrastivo da responsabilidade
que o produto não é defeituoso é considerada pela doutrina como uma civil nos Códigos Civis do Brasil e de Portugal. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo,
opção do legislador de socializar a distribuição dos riscos e não apenas v. 53, jan. 2005).
30 SANSEVERINO, 2010, p. 195.
a mera distribuição da carga probatória28 • 31 BESSA. Leonardo Roscoe. Responsabilidade pelo fato do produto: questões polêmicas. ln
Revista de Direito do Consumidor. vol. 89/2013, p. 141-163, set-out2013. Importante referir,
Essa é a grande diferença entre o sistema de responsabilidade ci- que ainda que o autortenha concluído que no Art. 931 não há referência a defeito, a seguir refere
vil do Código de Defesa do Consumidor e o sistema do Código Civil. que o dispositivo precisa ser interpretado de acordo com o Art. 12 do CDC, como segue: "No
caso, a disciplina do Código de Defesa do Consumidor completa e "corrige" o sentido e alcance
do Art. 931 do CC/2002 para acrescentar o defeito como pressuposto (requisito) necessário
24 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor - o novo regime para caracterizar o dever de indenizar do empresário. Desse modo, "a melhor interpretação
das relações contratuais. 8ª ed, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 1425-1426 e do Art. 931 do CC/2002 é exatamente no sentido de que ele deve ser conjugado com o art. 12, §
especialmente nota 1220. 1.º do CDC, quando estabelece o conceito de defeito do produto, relacionando-o à segurança
25 SANSEVERINO, op. cit., p. 192. legitimamente esperada pelo consumidor"
26 GALGANO, Francesco. Corso di diritto civile -1 Fatti llleciti. Padova: CEDAM, 2008, p. 141. 32 Em estudo a respeito da distinção entre o Art. 12 do CDC e o Art. 931 do CDC, Paulo de Tarso
Aquela responsabilidade que a lei estabelece no Art. 2049 do Código Civil italiano imposta Sanseverino pondera que a exigência de defeito constante no diploma consumerista não é
aos patrões e comitentes. repetida no diploma civilista, mas reforça que o Art. 931 dever(a ser int~rpre'.ado no mesm_o
27 MARQUES, op. cit., p. 1213. sentido do Art. 12 do CDC e conclui que o diploma consumensta contmuana sendo o mais
28 SANSEVERINO, op. cit., p. 195. vantajoso para o consumidor. SANSEVERINO, p. 57-58.
758 - A APLICABILIDADE DO ART. 931 DO Córneo CIVIL NOS 18 ANOS DO Córneo Civil
TULA WESENDONCK - 759

de Defesa do Consumidor, pois estaria destinado a disciplinar somen- bilidade civil objetiva, uma norma genérica, não podendo ser confim-
te as relações de consumo, sendo assim repetição das disposições do dida com o regime de responsabilidade civil apresentado pelo Código
Código de Defesa do Consumidor3 3• No entanto, essa posição não pode de Defesa do Consumidor, que é uma norma especial dirigido às rela-
ser adotada34 • ções de consumo37 •
O Código Civil não se restringe a repetir as disposições do CDC O Art. 931 amplia a responsabilidade civil objetiva pelo fato do pro-
e também não limitou a aplicação do Art. 931 às relações de consumo. duto para qualquer relação jurídica38 , o que atrai a incidência da norma
Por ser uma cláusula geral da responsabilidade civil objetiva pelos da- de responsabilidade civil objetiva para as situações em que a vítima do
nos decorrentes de produtos postos em circulação, regula relações que dano provocado pelo produto é o próprio comerciante ou intermediá-
não eram compreendidas pelo Código de Defesa do Consumidor, com rios de uma relação empresarial.
a finalidade de considerar igualmente objetiva a responsabilidade civil
É bem verdade que no Direito brasileiro o conceito de consumidor
para fora das relações de consumo35 •
não fica restrito à figura do destinatário final: a redação do Art. 17 do
Diante da norma do Art. 931, os empresários passam a responder CDC alarga sua incidência, pois as vítimas de um acidente de consumo,
objetivamente pelos danos causados pelos produtos postos em circula- mesmo que não sejam destinatárias finais, são consideradas como consu-
ção, mesmo que esses produtos não tenham sido alienados numa rela- midores equiparados. Essa orientação encontra razão e coerência, prin-
ção de consumo36 • cipalmente nos casos sob vigência do regime anterior ao CC de 2002,
Assim, com o Art. 931 do Código Civil brasileiro, é inaugurado um no qual a única norma que poderia imputar a responsabilidade pelo fato
novo cenário no qual a responsabilidade civil do fabricante pelo fato dos do produto independentemente de culpa estaria disciplinada no CDC.
produtos postos em circulação será objetiva mesmo que não fique evi- Nesse sentido, antes do CC de 2002 havia um esforço interpreta-
denciada a existência de relação de consumo. Isso é possível porque o tivo, por vezes exagerado, para construir a caracterização da posição de
Art. 931 do Código Civil brasileiro é uma cláusula geral da responsa- consumidor para incidência do Código de Defesa do Consumidor pela
33 CAVALIERI FILHO, Sérgio et Carlos Alberto MENEZES DIREITO, Comentários ao Novo Código alegada vulnerabilidade e hipossuficiência do comerciante.
Civil, V. XIII. Coordenador: Sálvio de FIGUEIREDO TEIXEIRA, Rio de Janeiro, Editora Forense,
2007, p. 182.
No entanto, não é possível perder de vista que Art. 931 do CCB é
34 A própria doutrina consumerista reconhece que a reconstrução do ?ir~ito Pr)vad_o identificou uma norma de responsabilidade civil objetiva do empresário pelos danos
três sujeitos: o civil, o empresário e o consumidor desse modo nao e passivei interpretar o
Art. 931 sem considerar a existência dessa pluralidade de sujeitos. MARQUES, Cláudia Lima. causados pelos produtos que postos em circulação. A partir da constata-
Contratos no Código de Defesa do Consumidor- o novo regime das relações contratuais. 8ª ção de que para a incidência do dispositivo não é exigível a configuração
ed, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 71.
35 IMPARATO, Paula Barcelos. La responsabilitécivile de !'industrie pharmaceutique: le risque de de relação de consumo, a prática comum de tentar forçar esse vínculo
développement,étude compara tive des droits brésilien et québécois. Disponível em: <https://
papyrus.bib.umontreal.ca/jspui/bit~tream/1866/4541/2/lmparato_Paula_B_201o_these. poderá ser relativizada, o que seria muito importante para a ciência jurí-
pdf>. Acesso em: 27 set. 2012, p. 38. "A notre avis, l'intention du législateur au moment de la dica, no sentido de efetivamente aplicar os dispositivos do diploma con-
rédaction de l'Article 931 n'était que de réglementer la responsabilité des entreprises envers
les consommateurs. Considérant cependant que lors de l'adoption du Code civil, en 2002, sumerista às relações que efetivamente forem de consumo.
la regi e était déjà prévue au Code du consommateur, nous croyons que le législateur l'aurait
conservée eu égardauxsituations non comprises parcette derniere, afin d'étendre également la Isso contribui para reduzir a subjetividade das decisões judiciais
responsabilité objective en dehors des rapports de consommatio~_- N?us ~t~yons no~re po~i_tion e evitar a relativização e vulgarização de sua aplicação, o que é nefas-
surle texte de l'Article 931, qui d is pose que [traduction] « sans preiud1ce a d autres d1spos1t1ons
énoncées pa r une loi spéciale,les entrepreneurs individueis et lesentreprises répondent
indépendamment de toute faute pour les dommagescausés parles produits en circulation. » 37 A esse respeito é importante perceber que o Art. 931 do CCB não pode ser encarado como
Or, si l'Article ne restreint pas son application aux rapports fabricant-consommateur, ce n'est uma norma que simplesmente repete as disposições do Código de Defesa do Consumidor.
Nesse sentido: WESENDONCK, Tula. Art. 931 do Código Civil: repetição ou inovação? Revista
pas à la doctrine de le faire. Nous pouvons donc conclure qu'en droit b'.~si_lien, qu~ ce soit
dans le régime du Code civil ou du Code du consommateur, la responsabil1te du fabncant du de Direito Civil Contemporâneo. São Paulo, v. 3, p. 141-159. abr. 2015.
38 Essa orientação também foi adotada no Direito Espanhol através do Texto Refundido, que
fait de ses produits est objective» . _
praticamente repete as disposições da lei LRDP, mas dela difere pelo fato de incluir de forma
Nesse sentido, AGUIAR, 2007, p. 35. O autor cita como exemplo o caso de um empresano que
expressa em seu texto a responsabilidade por produtos defeituosos tanto no que se refere aos
adquire determinado produto como bem de capital, não podendo por isso ser considerado
consumidores como a outros usuários. O Texto Refundido aproxima-se muito da redação que
como consumidor e ainda assim poderá reclamar do empresário alienante pelo fato do produto
existe no Art. 931 do Código Civil brasileiro. DIÉZ-PICAZO, Luís. Fundamentos dei derecho
em virtude dos danos que sofrer sem a necessidade de provar a culpa do alienante.
civil patrimonial. v. 5: La responsabilidad civil extracontratual. Madrid: Civitas, 2011, p. 494.
760 - A APLICABILIDADE DO ART. 931 DO Córneo Civil NOS 18 ANOS DO Córneo CIVIL TULA WESENDONCK- 761

to para um diploma legal como o CDC que tem como função dar um do Código Civil não se confunde com a colocação do produto no. mercado
tratamento especial e diferenciado para proteger o consumidor (pessoa (art. 12, § 3. 0 , I)." 40 •
natural que é destinatária final), tendo em vista a sua condição de vul- Assim, para a incidência da responsabilidade pelo fato do produ-
nerabilidade no mercado de consumo. to, sob o regime do CDC, Leonardo Bessa pontua como necessária "a
Nesse sentido, é importante referir ponderação de Cláudia Lima compra do produto por determinado consumidor ou, ao menos, sua ex-
Marques a respeito do risco de se alargar demasiadamente a incidên- posição ao mercado de consumo." Mais adiante arremata o raciocínio
cia do CDC como pretendem os adeptos da teoria maximalista, o que referindo que:
'transforma o direito do consumidor em direito privado geral". Segundo "só se pode cogitar de terceiro que sofre dano em decorrência
a autora, é necessário questionar "por que proteger o comprador-profis- de defeitos em produtos, o consumidor equiparado previsto no
sional, por que proteger um fornecedor frente ao outro. As relações en- art. 17 do CDC, quando há prévio contrato de consumo com
tre iguais estão bem reguladas pelo Código Civil de 2002"39 • aquisição de produto ou, ao menos, a exposição do bem para
venda no estabelecimento comercial. "41
O CDC é um diploma que deve ser aplicado para as relações en-
tre desiguais próprias das relações de consumo. Não há necessidade ou Essa distinção é importante para determinar o âmbito de atuação
mesmo conveniência de estender o regramento de um diploma legal que ~e ~ada dipl~m_a legal e demonstrar a relevância do Art. 931 do CC que
visa dar tratamento diferenciado a uma parte, em razão das particula- mc1de nas hipoteses de danos que antecedem a exposição do produto
ridades de sua posição de vulnerabilidade, para todos os indivíduos que ao consumidor, abrange assim a responsabilidade pelo fato de produto
sofrem danos. A se confirmar a vulgarização de um diploma protetivo a ante~ de sua exposição ao consumidor e para hipóteses em que, por se-
todas as pessoas, as que efetivamente precisam de apoio e proteção, aca- rem merentes ao desenvolvimento de atividades profissionais dos for-
bam por ficar desassistidas. necedores, os produtos não são colocados à venda42 •
Nesse sentido, a autora esclarece que para resolver esse impasse o A reflexões são fundamentais para definir de maneira adequada o
STJ adota, desde 2004 a teoria finalista, e criou o :finalismo aprofundado, campo de incidência de cada diploma legal e para acentuar a relevância
valorando no caso concreto a noção de vulnerabilidade para delimitar o de não se alargar em demasia a incidência do Art. 17 do CDC, já que
conceito de consumidor. Segue a autora explicando que com a entrada o Art. 931 do CC vem para suprir a falta de regramento a algumas hi-
em vigor do CC 2002 a teoria maximalista teria perdido força em ra- póteses de dano que não seriam originalmente abrangidas pelo diplo-
zão da adoção da teoria finalista aprofundada que avalia a vulnerabili- ma consumerista.
dade (técnica, fática, jurídica e informacional) para delimitar a posição Mesmo estabelecidas as distinções em relação aos modelos de res-
de consumidor, elemento essencial da relação de consumo. ponsabilidade civil previstos no Código Civil e no Código de Defesa e
Ainda no exame da interpretação do Art. 17 do CDC Leonardo Proteção do Consumidor, ainda há muita resistência e confusão na in-
Bessa alerta que em razão da norma disposta no Art. 931, faz-se "ne- terpretação e aplicação do dispositivo, razão pela qual para além de de-
cessário melhor delimitar os campos de atuação dos diplomas". Para ele finir os contornos do artigo da lei é necessário averiguar como ele tem
a norma civilista se aplica nas relações entre os empresários, ficando o
Art. 17 do CDC restrito às hipóteses de responsabilidade do fornece- 40 BESSA, op. cit.
41 BESSA, op. cit.
dor para os danos ocorridos depois da colocação do produto no merca- 42 Leonardo Bessa exemplifica essas situações: "enquanto o produto estiverem transporte entre
o fabricant~ e o comerciante, se houver danos a terceiros decorrente de defeito, não há que se
do. Nesse sentido, o autor afuma que ''A circulação do produto (art. 931) fa_la_r em acidente de consumo, mas sim em responsabilidade objetiva decorrente do Código
Civil (art. 931). Do mesmo modo, não há que se falarem acidente de consumo se o fato gerador
do dano decorrer de questão relacionada a maquinário inerente à atividade do comerciante
já qu~ nesta hip~tese não há sequer exposição do bem à venda. Como exemplo, imagine~
se ac1d~nte ocas!o~ado por forno de determinada padaria, com danos em funcionários e
39 BENJAMIN, Antonio Herman V., MARQUES, Cláudia Lima, BESSA, Leonardo Roscoe. Manual consumidores prox1mos ao local. A responsabilidade do fornecedor, considerando o raciocínio
de Direito do Consumidor. 7ª Ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 106. desenvolvido, decorre do art. 931 do CC/2002 e não do art. 12 do CDC".
762 - A APLICABILIDADE DO ART. 931 DO CóDIGO CIVIL NOS 18 ANOS DO CóDIGO CIVIL TULA WESENDONCK - 763

sido aplicado na prática e propor soluções para os equívocos em torno neira como tem sido aplicado o dispositivo, mas também indicar cami-
de sua aplicação, o que será feito a seguir. nhos para a sua melhor aplicação, como se verá a seguir.

8. A INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO ART. 931 PELA 1) INCIDÊNCIA DO ART. 931 COMO FUNDAMENTO DA
JURISPRUDÊNCIA NOS 18 ANOS DO CCB - COMO TEM RESPONSABILIDADE PELO FATO DO PRODUTO PARA FORA DAS
SIDO E COMO PODE SER A INCIDÊNCIA DO DISPOSITIVO RELAÇÕES DE CONSUMO

A partir da entrada em vigor de uma nova lei, é natural que ocorra Na pesquisa realizada em torno do dispositivo, ganha destaque as
equívoco, inadequação ou até mesmo resistência no estudo necessário hipóteses em que o dispositivo poderia ser utilizado como alternativa a
para compreensão e aplicação de dispositivos que trazem novo regra- uma prática ainda comum no Direito brasileiro, adotada pelas vítimas
menta ou novos institutos jurídicos para determinada matéria, dada a de danos derivados do fato de produtos, na qual se almeja a todo custo
dificuldade que a "novidade" encerra. Em relação ao Art. 931 o que se demonstrar a existência de uma relação de consumo, com a finalidade de
vê é um misto de todas essas hipóteses. alcançar as vantagens de uma norma de responsabilidade civil objetiva.
A pesquisa sobre a incidência do dispositivo foi realizada nos Tome-se como exemplo o caso referido em decisão proferida pelo
Tribunais de Justiça Estaduais e no Superior Tribunal de Justiça. Os Tribunal de Justiça do Paraná que reconheceu a responsabilidade civil
desafios da pesquisa se iniciam pela referência ao dispositivo como fim- em ação indenizatória ajuizada pela comerciante de Coca-Cola contra a
damento da responsabilidade civil, acompanhado de todos os outros ar- Vonpar, pelo abalo moral sofrido em razão do vexame a que foi exposta
tigos que tratam sobre a responsabilidade civil. Para refinar a pesquisa em seu estabelecimento comercial, ao oferecer para um cliente um refrige-
foi feita uma seleção nos resultados e essas decisões foram excluídas do rante lacrado, contendo uma embalagem de salgadinho em seu interior. 43
escopo da avaliação para este estudo por isso não serão referidas. No caso em comento, a estratégia da autora da ação indenizatória
Outro desafio para desenvolvimento da pesquisa foi encontrar deci- (comerciante de bebidas), não fugiu a regra de forçar a caracterização de
sões que tratassem de hipóteses fáticas nas quais caberia a incidência do uma relação de consumo. No entanto, essa construção argumentativa é
dispositivo, sem que ele tenha sido indicado como fundamento da de- desnecessária diante da disposição do Art. 931 do Código Civil brasi-
cisão. Nessas situações, como fundamentos para reconhecer a responsa- leiro, que impõe um sistema de responsabilidade civil objetiva indepen-
bilidade civil são utilizados o Art. 12 do CDC, reconhecendo existente dentemente do fato de ser a vítima consumidora ou não.
uma relação de consumo, e o Parágrafo Único do Art. 927 do CC, em Essa orientação pode ser evidenciada no curso da própria decisão
razão do reconhecimento do risco da atividade. sob exame, pois mesmo referenciando a incidência do Código de Defesa
A inadequação de fundamentação nessas hipóteses é gritante, seja do Consumidor, o julgado adverte que depois do Art. 931 do Código
por reconhecer relação de consumo de maneira artificial e desnecessá- Civil brasileiro a responsabilidade no caso concreto seria objetiva, in-
ria, ou por utilizar dispositivo relativo ao risco da atividade como funda-
mento da obrigação de reparar, quando há no diploma civil dispositivo
43 A autora ajuizou ação indenizatória alegando constrangimento sofrido em decorrência da
que trata de maneira específica da responsabilidade pelo fato do produto. repulsa de seus fregueses ao receber recipiente de refrigerante com uma embalagem de
Passados 18 anos do Código Civil, poucas são as decisões que efe- salgadinho dentro. O dano ficou caracterizado pela reação dos fregueses da autora que
passaram a expressar comentários negativos a respeito do asseio de seu estabelecimento
tivamente utilizam o Art. 931 como fundamento adequado de incidên- comercial, o que teria gerado na autora um abalo moral. A autora foi indenizada pelo
fato do produto indiretamente, tendo em vista que houve defeito no produto e que esse
cia de responsabilidade civil pelo fato do produto. Ao jurista preocupado defeito provocou a reação do freguês. PARANA. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n.
com o desenvolvimento da ciência jurídica, isso não deve ser encarado 892.852-5. Décima Câmara Cível. Relator: Albino Jacomel Guérios. Julgado em: 26 jul. 2012.
Responsabilidade Civil. Dano Moral. Fato que enseja juízo de valor a respeito do asseio da loja
com desânimo, mas sim como um desafio na direção de estabelecer as de empresário individual. Garrafa de refrigerante que continha uma embalagem de salgadinhos.
Comentários desairosos feitos pelo consumidor também a respeito do estabelecimento
bases adequadas para a interpretação do dispositivo, o que inspirou a comercial da autora. Valor da indenização. Responsabilidade objetiva da ré. Apelação principal
análise jurisprudencial que tem como finalidade não só averiguar a ma- não provida. Recurso Adesivo não provido.
764-A APLICABILIDADE DO ART. 931 DO CóDIGO CIVIL NOS 18 ANOS DO CóDJGO CIVIL TULA WESENDONCK- 765

dependentemente de se tratar de relação de consumo ou não, bastando Mesmo afastando a incidência do CDC, a responsabilidade civil
assim a prova do dano para incidência de reparação 44 • pelos danos seria igualmente objetiva pela incidência do Art. 931 do
No caso concreto, a solução mais adequada efetivamente seria a in- CC, posicionamento que foi adotado pelo Tribunal de Justiça do Rio
cidência de responsabilidade civil pelo Art. 931 do CC, porque o dano Grande do Sul ao julgar processo no qual um comerciante de bebidas
alegado pela autora deriva da reação de repulsa de seus clientes ao pro- teve o olho perfurado por estouro de garrafa de cerveja enquanto ma-
duto. Não se trata de um dano direto decorrente do fato do produto em nuseava vasilhames no refrigerador de seu estabelecimento comercial47 •
si, mas sim das consequências do fato do produto em seus clientes que Na oportunidade, o TJRS reconheceu a responsabilidade objetiva
acabou gerando o seu abalo. O TJPR reconheceu responsabilidade civil de uma distribuidora de bebidas pelos danos sofridos pelo comerciante,
pela incidência do Art. 17 do CDC, solução que não é a mais adequada com base no Art. 931 do Código Civil brasileiro e afastou a incidência
tendo em vista a particularidade do caso em si, no qual a ação é assen- do Código de Defesa do Consumidor, sob o argumento de inexistên-
tada no dano que o produto provocou a terceiro e nos reflexos que isso cia de uma relação de consumo. No caso concreto, mesmo sem incidir o
teria causado ao comerciante do produto. CDC, a vítima não ficou sem reparação tendo em vista a incidência do
Mesmo que o dano fosse derivado de um efeito direto do produto, Art. 931 do Código Civil brasileiro. Isso reforça a conclusão de que a
ainda assim, há posicionamento jurisprudencial que reconhece a invia- incidência da responsabilidade objetiva pelos danos decorrentes do fato
bilidade de incidência do Art. 17, em razão de uma relação contratual do produto não depende da configuração da relação de consumo.
antecedente entre as partes. O STJ pronunciou-se a respeito de caso muito semelhante, mas ado-
Nesse sentido, ao apreciar o conteúdo do Art.17 do CDC, um in- tando solução distinta. Na ocasião, reconheceu a existência de acidente
teressante julgado do STJ faz uma análise doutrinária e jurisprudencial de consumo em virtude de danos sofridos pelo comerciante pelo estou-
de sua extensão e incidência45 • ro de uma garrafa de cerveja, enquanto vasilhames eram colocados por
No processo, a Corte Superior posicionou-se pela impertinência ele no refrigerador. A decisão proferida determinou a responsabilidade
do Art. 17 por ser o autor da ação indenizatória um hospital que havia do fabricante pelos danos que o comerciante sofreu ao ter o olho per-
importado um equipamento de Raio X. O autor alegava a condição de furado pelos estilhaços do vidro da garrafa. O posicionamento do STJ
consumidor equiparado em razão dos danos suportados no transporte difere do TJRS, pois reconheceu a incidência do Art. 17 do Código de
do produto. No corpo da decisão fica assentado que a norma prevista Defesa do Consumidor, mesmo tratando-se de vítima comerciante48 •
no dispositivo incide quando as vítimas do evento danoso são caracte- Merece destaque o trecho que segue: "caracterização do consumidor por equiparação possui
rizadas como terceiros alheios à relação de consumo preexistente. Do como pressuposto a ausência de vínculo jurídico entre fornecedor e vítima; caso contrário,
existente uma relação jurídica entre as partes, é com base nela que se deverá apurar eventual
julgado é possível concluir que a caracterização de consumidor por equi- responsabilidade pelo evento danoso. Hipótese em que fornecedor e vítima mantinham uma
paração, tem como pressuposto a ausência de vínculo jurídico entre o relação jurídica específica, de natureza trabalhista, circunstância que obsta a aplicação do
art. 17 do CDC, impedindo seja a empregada equiparada à condição de consumidora frente
fornecedor e a vítima46 • à sua própria empregadora.[...]"
47 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Embargos Infringentes nº 70019255934. Terceiro
44 "Supondo não existir uma relação regulada pelo Código do Consumidor, ela responderia Grupo Cível. Relator: Des. Antônio Corrêa Palmeiro da Fontoura.Julgado em: 16 maio 2008.
independentemente de culpa, nos termos do artigo 931 do Código Civil, cujo sentido é assim Responsabilidade Civil. Indenização. Perda da visão do olho direito decorrente do estouro de
explicado pela doutrina: Fornecimento do produto, prescindindo-se da culpa para desencadear garrafa de cerveja. Inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor ao caso concreto.
a responsabilidade. Não importa que tenham os defeitos dos produtos ou os perigos que lhe ln_cidênci? d? artigo 9~1 do Código Ci~il. Responsabilidade Objetiva. Cabia a ré comprovar
são inerentes, causado algum mal ou prejuízo porque houve culpa dos empresários individuais a mocorrenc1a do defeito no produto, onus do qual não se desincumbiu. Dever de indenizar
ou das empresas que os fabricaram e os colocaram em circulação. Dispensável pesquisar se configurado. Embargos infringentes acolhidos, por maioria.
ocorreu descuido na fabricação, como falha no revestimento das peças internas, de sorte a RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSO CIVIL RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE
não evitar choques elétricos quando conectados com os fios condutores de energia. Basta o CONSUMO. EXPLOSÃO DE GARRAFA PERFURANDO O OLHO ESQUERDODO CONSUMIDOR.
simples dano para desencadear a obrigação de reparação." NEXO CAUSAL. DEFEITO DO PRODUTO. ÔNUS DA PROVA. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO.
45 EDcl no REsp 1.162.649 - 4ª Turma - j. 2/10/2014- julgado por Antônio Carlos Ferreira - DJe RESTABELECIMENTO DA SENTENÇA. RECURSOESPECIAL PROVIDO. 1-Comerciante atingido
10/10/2014 em seu olho esquerdo pelos estilhaços de uma garrafa de cerveja, que estourou em suas mãos
46 Nessa passagem do julgado é referenciado o REsp n.1.370.139/SP, Rei. Ministra NANCY quan_d~ ~ colocava e~ um freezer, causando graves lesões. 2- Enquadramento do comerciante,
ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, DJedeu.12.2013, no qual o empregado do fornecedor, vitimado que e v1t1ma de um acidente de consumo, no conceito ampliado de consumidor estabelecido
numa explosão por vazamento de gás, não foi reconhecido como consumidor por equiparação. pela regra do art. 17 do Código de Defesa do Consumidor("bystander"). Código de Defesa do
TULA WESENDONCK - 767
766 - A APLICABILIDADE DO ART. 931 DO CóDIGO CIVIL NOS 18 ANOS DO CóDIGO CIVIL

Na decisão é interessante consultar o voto-vista do Ministro João po impôs a responsabilidade do fabricante pelos danos suportados pelo
Otávio de Noronha no qual refere a sua preocupação com a extensão produtor em virtude de resultado insatisfatório da colheita50 •
do conceito de consumidor. Segundo o Ministro, essa extensão é muitas O caso foi tratado pelo Tribunal como responsabilidade civil pelo
vezes irresponsável e revela-se desnecessária, pois tem como finalidade vício do produto no qual foi reconhecido o ilícito contratual.
alcançar resultados que poderiam ser igualmente obtidos pela aplicação O conteúdo da decisão revela que o adquirente das sementes ha-
do Código Civil brasileiro, que veio a regular as relações entre iguais. via ajuizado a ação indenizatória contra o comerciante do produto, para
Contudo, no caso concreto, o Ministro entendeu estar presente a vul- responsabilizar pelos danos suportados em virtude da frustração da co-
nerabilidade do pequeno comerciante em face da fabricante de bebidas lheita, decorrente da má qualidade das sementes adquiridas.
e em vista disso se reconheceu a relação de consumo. O pedido formulado pelo autor demonstra que no caso descrito
Ainda que a decisão tenha sido proferida no sentido de reconhe- incide a norma que disciplina a responsabilidade pelo fato do produ-
cer a relação de consumo, a mesma é importante, pela ponderação que to, tendo em vista que a semente defeituosa provocou dano, qual seja a
é feita pelo Ministro João Otávio de Noronha no sentido de questionar frustração da colheita.
a necessidade de caracterizar relação de consumo em alguns casos espe- Além desses aspectos, é necessário salientar que a ação foi movida
cíficos nos quais há a possibilidade de resolver a matéria de forma satis- contra o comerciante, o que motivou o réu a denunciar à lide o fabri-
fatória pelo próprio Código Civil brasileiro49 • ' cante. Houve no processo discussão a respeito da legitimidade passiva
Esse raciocínio serve para demonstrar o campo de incidência au- para a responsabilidade civil.
tônomo do Art. 931 do Código Civil brasileiro, que não é repetição das A sentença reconheceu a responsabilidade do fabricante pelos da-
normas do Código de Defesa do Consumidor e impõe uma responsabi- nos suportados pelo produtor com base no Código Civil, afastando a
lidade objetiva pelo fato do produto, mesmo nos casos em que não pu-
50 APELAÇÃO CÍVEL. AGRAVO RETIDO. RESPONSABILIDADE CIVIL. COMPRA E VENDA.
der ser caracterizada a relação de consumo. SEMENTES DA VARIEDADE DE CENOURA HÍBRIDA. RESULTADO DA COLHEITA
INSATISFATÓRIO. COMERCIANTE. PRODUTOR. VÍCIO. QUALIDADE. PRELIMINAR EMÉRITO.
Com isso, é possível perceber que não há necessidade de "forçar", 1.AGRAVO RETIDO. PROVA PERICIAL. DESNECESSIDADE.Sendo o juiz o destinatário da prova,
contra legem ou por uma interpretação extensiva desnecessária, a carac- bem como sendo sua faculdade a realização de prova pericial, há que se rejeitar o pedido de
decretação de nulidade da sentença em face da não realização da prova postulada. Outrossim,
terização da relação de consumo, pois o Código Civil brasileiro atual a prova pretendida, além de não se mostrar necessária para o deslinde do feito, poderia ser
tem condições de proteger de maneira efetiva a vítima de um dano pro- obtida pela parte autora. Cerceamento de defesa não configurado. 2. INAPLICABILIDADE
DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. O Código de Defesa do Consumidor não tem
vocado por produto. incidência quando inexiste destinatário final do produto, mas utilizado este como insumo.
Exegese do art. 2° da norma consumerista. 3. Inexistindo regra prevendo responsabilidade
O reconhecimento da responsabilidade objetiva, independente- solidária entre produtora e comerciante, improcede o pleito relativamente à ré RIZZI, mera
comerciante das sementes. 4. Aplicação do entendimento jurisprudencial do STJ, segundo o
mente de relação de consumo, também foi seguido em decisão profe- qual uma vez aceita a denunciação da lide e apresentada contestação quando ao mérito da
rida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que reconheceu a causa principal, o denunciado integra o pólo passivo na qualidade de litisconsorte do réu,
podendo, até mesmo, ser condenado direta e solidariamente.(... ) Se o denunciado poderia
responsabilidade civil do fornecedor de sementes de cenouras pelo re- ser demandado diretamente pelo autor, não resta dúvida de que, ao ingressar no feito por
denunciação e contestar o pedido inicial ao lado do réu, assume a condição de litisconsorte.
sultado insatisfatório da colheita. A decisão é importante porque afastou Possibilidade de condenação direta da interveniente denunciada, desde que rigorosamente
a incidência do Código de Defesa do Consumidor, mas o mesmo tem- respeitado o devido processo legal, o que ocorreu no caso. Necessidade de atendimento
da economia processual e ao princípio da razoável duração do processo. 5. Relativamente
à produtora das sementes da variedade de cenoura híbrida, os elementos de convicção são
Consumidor. 3 Reconhecimento do nexo causal entre as lesões sofridas pelo consumidor e o suficientes a demonstrartjue os danos foram causados em função da má qualidade das sementes
estouro da garrafa de cerveja.4- Ônus da prova da inexistência de defeito do produto atribuído adquiridas, não se vislumbrando qualquer fator externo que pudesse ter colaborado para a
pelo legislador ao fabricante.5 - Caracterização da violação à regra d_o inciso_ li d~§ 3º do art. ínfima quantidade aproveitável do produto. 6. Danos materiais emergentes consistentes nos
12, §3º, li do Código de Defesa do Consumidor. 6 - Recurso especial provido, Julgando-se
gastos com plantio e manutenção deferidos. 7. Lucros cessantes pelo valor não auferido com
procedente a demanda nos termos da sentença de primeiro grau. (BRASIL. Superior Tribunal
o produto da plantação. Quantia devida, mas limitada à participação do ~utor no contrato
de Justiça. 1288008 MG 2011/0248142-9. Terceira Turma. Relator: Ministro Paulo de Tarso de parceria agrícola firmado com outros quatro contratantes. APELO DA RE RIZZI PROVDO.
Sanseverino.Julgamento: 04 abr. 2013.Dje, 11 abr. 2013) APELO DA RÉ SAKATA PARCIALMENTE PROVIDO. (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça.
49 Éimportante ressaltar que não se desconhece a vantagem do_C?digo de Defesa do _Consumid?r
Apelação Cível Nº 70051744456. Nona Câmara Cível. Relator: Marilene Bonzanini Bernardi.
em relação ao Código Civil no que se refere ao prazo prescnc1onal para a propositura da açao
Julgado em: 10 abr. 2013)
indenizatória, o que já foi referido.
768 - A APLICABILIDADE DO ART. 931 DO CóDIGO CIVIL NOS 18 ANOS DO CóDIGO CIVIL TULA WESENDONCK-769

aplicação do Código de Defesa do Consumidor e também consideran- Justiça do Rio Grande do Sul reconheceu a responsabilidade do forne-
do inexistente responsabilidade solidária entre a produtora das semen- cedor, pela incidência expressa do Art. 931 do Código Civil brasileiro52 •
tes e a comerciante. Ainda sobre a inadequação do reconhecimento da condição de con-
Impende ressaltar que a decisão afastou a responsabilidade solidária sumidor, calha a referência a interessante julgado proferido pelo STJ
entre o fabricante e o. comerciante, por entender que o Código Civil não que afastou a incidência das normas do CDC para o produtor rural pe-
estabelecia tal regra, e a mesma não poderia ser considerada presumida. los danos suportados pelo uso de defensivo agrícola, por considerar, que
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em caso parecido com o
anterior, deixou de reconhecer a relação de consumo, em ação indeniza- 52 APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. FATO DO PRODUTO. RESPONSABILIDADE
tória movida por produtor rural que alegava ter sofrido grande prejuízo DA EMPRESA FORNECEDORA DE BOTIJÕES DE GÁS POR BOTIJÕES APREENDIDOS NA
REVENDA DOS AUTORES EM DESCONFORMIDADE COM AS PRESCRIÇÕES LEGAIS.
em virtude da utilização de sementes que frustraram a expectativa de RESPONSABILIDADE OBJETIVA. INCIDÊNCIA DO DISPOSTO NO ART. 931 DO CÓDIGO
CIVIL. Os botijões apreendidos porque adulterados, contendo quantidade de gás inferior
produção da lavoura. O Tribunal somente restringiu o exame da maté- à devida, em desconformidade com as prescrições legais foram entregues pela Ré. A prova
ria à questão da inversão do ônus da prova, porque o autor da ação ale- documental, os subsídios ministrados pela documentação produzida, entranhada nos autos,
não deixa margem a dúvida alguma acerca da assertiva autoral assim destacada (nota fiscal, fl.
gava a existência de relação de consumo o que não foi acolhido. O caso 217). Os botijões, assim, deixam incontroversos os dados da probação engastados nos autos,
eram de propriedade da requerida/demandada. Mantida por seus próprios fundamentos
demonstra a importância da diferença de regimes. Ou seja, os efeitos a sentença que reconheceu a responsabilidade da empresa fornecedora pela situação
de se considerar uma relação de consumo vão para muito além dos re- vexatória, constrangedora vivenciada pelos autores, que foram, inclusive, réus em processo
criminal, em razão do fato. 1. PRELIMINAR DE NÃO CONHECIMENTO POR AUSÊNCIA DOS
quisitos da responsabilidade civil e seus efeitos, como por exemplo a in- FUND~MENTOS DE FATO E DE DIREITO NAS RAZÕES DE APELAÇÃO DA DEMANDADA.
versão do ônus da prova que não ocorre no âmbito das relações civis e REJEIÇAO. A demandada forneceu as razões de fato e de direito pelas quais entende deva ser
reformada a sentença recorrida, inocorrendo a hipótese de não conhecimento prevista no inc.
empresariais. 51 li do art. 514 do Código de Processo Civil. 2. DANO MORAL. CONFIGURAÇÃO. Demonstrado
que os autores experimentaram toda sorte de frustrações, angústia, sofrimento, humilhação
Outro caso interessante que revela a incidência do Art. 931 é o pelo fato de sobre eles pesar a suspeita de cometimento de adulteração dos botijões de gás que
descambou, inclusive para acusação criminal. O fato teve repercussão, segundo enfatizaram
da indenização decorrente da adulteração de botijões de gás provocada as testemunhas e, consoante, destacaram os autores, suportaram eles dissabores, angústia,
pelo fabricante. Em razão da adulteração nos botijões, o "o bom-nome, sofrimento, resultando bem dimensionado o dano moral puro, imaterial, com o condão de
atentar contra o direito de personalidade. Não há dúvida que o bom-nome, a fama, a honra dos
a fama, a honra dos autores foi atingida pelas medidas levadas a efeito autores foi atingida pelas medidas levadas a efeito (apreensão dos botijões de gás, suspeita de
adulteração, divulgação dos fatos, aforamento de demanda criminal). Resta evidente o dever
(apreensão dos botijões de gás, suspeita de adulteração, divulgação dos de indenizar. Dano moral amplamente comprovado. Quantum indenizatório. Majoração. Na
fatos, aforamento de demanda criminal)" o que o levou ao ajuizamento fixação da reparação por dano extrapatrimonial, incumbe ao julgador, atentando, sobretudo,
para as condições do ofensor, do ofendido e do bem jurídico lesado, e aos princípios da
de uma ação indenizatória contra o fabricante do produto. O Tribunal de proporcionalidade e razoabilidade, arbitrar quantum que se preste à suficiente recomposição
dos prejuízos, sem importar, contudo, enriquecimento sem causa da vítima. A análise de tais
critérios, aliada às demais particularidades do caso concreto, conduz à majoração do montante
indenizatório fixado na sentença para R$ 20.000,00 (vinte mil reais) para cada autor, que
51 AGRAVO DE INSTRUMENTO - TRANSFORMAÇÃO EM RETIDO - IMPOSSIBILIDADE - deverá ser corrigido monetariamente, pelo IGP-M, a partir da data da sessão, até o efetivo
ORDINÁRIA DE INDENIZAÇÃO C/C NULIDADE DE DUPLICATA - DENUNCIAÇÃO DA pagamento, e acrescido de juros de mora, nos termos do ato sentenciai. Apelo dos autores
LIDE PRECLUSÃO TEMPORAL-APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR provido, em parte, no ponto.3. LUCROS CESSANTES. Hipótese em que os autores deixaram de
- INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA - INTERVENÇÃO DO INSTITUTO DE RESSEGUROS DO auferir lucro, em virtude dos fatos, até porque encerraram a atividade da empresa, vendo-se
BRASIL. A preclusão temporal é aquela que ocorre quando a parte não faz uso do prazo privados de um ganho em virtude dos episódios noticiados. Conforme constou da sentença,
determinado para o exercício da faculdade processual que lhe incumbe. A moldura desse agravo razoável a conclusão de que lucrariam, o bom senso assim está a indicar, acaso houvesse
não comporta a sua transformação em retido, porquanto a decisão não tem consequências normal desenrolar do comércio por eles realizados. Há de se concluir, à vista do apurado no
meramente procedimentais, tratando-se de vários provimentos, envolvendo, inclusive curso da instrução, que um possível aumento patrimonial inocorreu em virtude do evento e
denunciação da lide o que aconselha o processamento e julgamento do agravo como de suas circunstãncias. Montante a ser apurado em liquidação de sentença, nos moldes fixados
instrumento. Consumidor, para efeito do código, é toda pessoa física ou jurídica que adquire no decisum recorrido 3. VERBA HONORÁRIA. MANUTENÇÃO. Honorários fixados em 15%
ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Trata-se de relação de insumo e não de sobre o montante condenatório deferido a título de dano moral, percentual compatível com as
consumo o contrato para aquisição ou utilização, pelo produtor rural, de sementes utilizadas peculiaridades do caso, e aos parâmetros do art.20, § 3° do CPC, observado, especialmente, o
como etapa da produção e não como destinatário final, donde resulta inaplicável o Código tempo de trâmite da ação, ajuizada há mais de quatro anos, e que se mantém. Devem, porém, os
de Defesa do Consumidor, tornando-se impossível a inversão do ônus da prova. Se o Instituto honorários advocatícios serem calculados sobre o total da condenação, nele compreendidos
de Resseguro do Brasil é, em tese, regressivamente responsável pela eventual condenação os lucros cessantes a serem apurados em liquidação de sentença. Apelo dos autores provido,
da companhia de seguro, mostrando-se pertinente a pretensão da denunciada da lide para no ponto. PROVIDA, EM PARTE, A APELAÇAO DOS AUTORES. IMPROVIDO O APELO DA
que a ele seja dado conhecimento da ação. (TJ-MG AGRAVO Nº 1.0702.05.196935-1/001, 9ª DEMANDADA. (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça; Apelação Cível Nº 70022074371.
CÂMARA CÍVEL Relator: OSMANDO ALMEIDA, Data de Julgamento: 27/03/2007) Décima Câmara Cível. Relator: Paulo Roberto Lessa Franz. Julgado em: 10 jul. 2008).
770 -A APLICABILIDADE DO ART. 931 DO Córneo CIVIL NOS 18 ANOS DO CóDIGO Civil
TULA WESENDONCK- 771

na compra e venda de insumos agrícolas, o produtor rural não pode ser ereto seria objetiva, sob fundamento do parágrafo único do Art. 927 do
qualificado como destinatário final53 • CCB. A orientação foi repetida na decisão proferida pelo STJ.
O Julgado afasta a incidência do CDC na relação estabeleci- A decisão foi acertada no sentido de afastar a incidência das normas
da entre um produtor rural e a Bayer S.A., fabricante do fungicida do CDC, considerando que o adquirente do produto não se enquadra
Stratego 250 EC, produto utilizado no combate à ferrugem asiáti- nos moldes de destinatário final. No entanto, em relação ao reconheci-
ca em lavouras de soja. Além disso, no corpo da decisão é possível mento de responsabilidade objetiva com fundamento no Parágrafo Único
verificar a orientação que tem sido adotada pela Corte Superior, no do Art. 927, a decisão é passível de críticas. No caso concreto, o objeto
sentido de afastar a incidência do CDC nos casos de aquisição de
da disputa é a indenização por danos derivados de um produto posto
insumos pelo produtor rural (na decisão é referida posição assenta-
em circulação, por essa razão, fica caracterizado literalmente a hipótese
da pelo STJ nesse sentido 54).
fática descrita no Art. 931 do CC, dispositivo legal que tem no suporte
O caso em comento deriva de ação indenizatória (danos materiais fático em abstrato a hipótese de incidência para a responsabilidade civil
em torno de R$ 988.000,00) em decorrência da perda da safra por ine- objetiva do fabricante de modo exato com o caso concreto.
ficácia do produto. A fabricante do produto alegou a inaplicabilidade do
No corpo da decisão em comento, é possível observar que o
CDC em razão do autor ser grande produtor rural e utilizar o fungici-
Parágrafo único do Art. 927 do CC foi utilizado como alternativa à
da como insumo. Em primeiro grau foi reconhecida a relação de con-
alegação do autor para incidência do Art. 12 do CDC. Para imputar a
sumo e considerada objetiva a responsabilidade civil do fabricante com
responsabilidade independentemente de culpa e afastar a discussão em
fundamento no Art. 12 do CDC.
torno da caracterização da relação de consumo a Corte Superior optou
Em segundo grau, o TJPR entendeu que mesmo que fosse afastada por repetir o argumento utilizado pelo TJPR de que:
a incidência do diploma consumerista, a responsabilidade no caso con-
"mesmo que ao caso não se aplicasse o CDC, a responsabilidade
53 AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. da Recorrente seria objetiva, uma vez que é notório que exerce
QUEBRA DE SAFRA. DEFENSIVO AGRÍCOLA. PRODUTOR RURAL. INAPLICABILIDADE oq coe. dentre outras, a atividade de fabricação de venenos, agrotóxicos,
RESPONSABILIDADE OBJETIVA. PRODUTO POTENCIALMENTE PERIGOSO. OCORRENCIA
DO DANO. QUADRO FÁTICO DELINEADO PELO ACÓRDÃO A QUO. REEXAME DE PROVAS. fungicidas, herbicidas, etc."
INADMISSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. PROVA DO FATO CONSTITUTIVO DO DIREITO DO
AUTOR. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS N. 282 E 356 DO STF. AGRAVO Sob essa ótica, incidiu a cláusula geral de responsabilidade objeti-
DESPROVIDO.
va prevista no Parágrafo único do Art. 927 do CCB para imputar a res-
1. "Esta Corte Superior consolidou o entendimento no sentido de q_ue no contra~o d~ on:ipra
7
e venda de insumos agrícolas, o produtor rural não pode ser considerado destmatario fmal, ponsabilidade de modo objetivo. A decisão apoiou-se no argumento da
razão pela qual, nesses casos, não incide o Código de Defesa do Consumidor" (AgRg no AREsp
86.914/GO, Relator o Ministro Luís Felipe Salomão, DJe de 28/6/2012). periculosidade da atividade do réu, derivada da natureza dos produtos
2. A responsabilidade objetiva da sociedade empresária ficou car~cterizad': por envolver que fabrica.
fabricação de produto potencialmente lesivo a direitos alheios, como ea produçao de venenos,
agrotóxicos, fungicidas e herbicidas. Verificar a periculosidade dos produtos para _afastar a Essa construção argumentativa é artificial e desnecessária. Em
responsabilidade da agravante demandaria reexame das provas dos autos, o que e vedado
nesta instância extraordinária. Súmula 7/STJ. nenhum momento fica assentado no processo que o dano é deriva-
3. A moldura fática delineada pelo Tribunal de origem demonstra a e~istência do ne~o do da periculosidade ou risco da atividade da fabricante. O modo de
causalidade entre a conduta e o dano, tendo sido afastada a culpa do agricultor no maneio
do produto. ln firmar as conclusões do aresto combatido demandariam, necessariamente, o aplicação deu-se como se o Parágrafo Único do Art. 927 fosse uma
revolvimento do conjunto probatório. Incidência da Súmula 7/STJ.
cláusula geral da responsabilidade objetiva sem os condicionantes do
4. Comprovação do fato constitutivo do autor. A ausência de prequestio~amento ~e ev!de~cia
quando o conteúdo normativo contido nos dispositiv~s s~postam~ntev1olado~ nao foi objeto próprio conteúdo da cláusula geral, que exige uma situação de risco
de debate pelo tribunal de origem. Hipótese em que incidem os rigores das Sumulas n. 282 e
356/STF.
da atividade.
5. Agravo regimental desprovido.
A cláusula geral de responsabilidade pelo fato do produto é o Art.
(AgRg no Agem REsp 692.530-3.ª Turma- j. 24/5/2016- Relator MarcoAurélio Bellizze Oliveira)
54 Posição que restou assentada no STJ a partir do julgamento do AgRg no AREsp 86.914/GO, 931 do CCB, incidente quando não aplicável a norma especial do CDC.
Relator o Ministro Luís Felipe Salomão, DJe de 28/6/2012.
772 -A APLICABILIDADE DO ART. 931 DO CóDIGO CIVIL NOS 18 ANOS DO CóDIGO CIVIL TuLA WESENDONCK- 773

Ainda que seja o dispositivo legal mais adequado para fundamentar a No entanto, mesmo se tratando de uma relação de consumo, uma re-
decisão, não foi essa a opção adotada no julgado, isso talvez ocorra pelo ferência às normas do CC não é inviável por força do Art. 7° do CDC57 ,
fato de o dispositivo ser ainda pouco estudado ou pouco compreendido e pode se revelar conveniente e efetiva58 , para refutar os argumentos da
em sua funcionalidade no sistema de responsabilidade civil. doutrina que defende a exclusão da responsabilidade civil pelos riscos
do desenvolvimento no Direito brasileiro pela interpretação que é dada
2) INCIDÊNCIA DO ART. 931 COMO FUNDAMENTO DA
ao inciso, III do § 1° do Art. 12 do CDC. Segundo essa corrente dou-
RESPONSABILIDADE PELOS DANOS DERIVADOS DOS
trinária, os riscos do desenvolvimento seriam considerados como cau-
RISCOS DO DESENVOLVIMENTO sas de exclusão de responsabilidade civil por conta da expressão "época
A fundamentação baseada no Parágrafo Único do Art. 927 para o em que foi colocado em circulação" na qual o fabricante poderia se exi-
reconhecimento de responsabilidade em decorrência de danos deriva- mir da responsabilidade alegando defeito indetectável no momento em
dos de produto também foi a orientação adotada no julgamento de caso que o produto foi colocado em circulação59 .
peculiar que tramitou perante o TJRS, no qual restou reconhecida a res- É importante pontuar que essa corrente que considera viável a ex-
ponsabilidade do fabricante pelos danos derivados dos riscos do desen- clusão da responsabilidade pelos riscos do desenvolvimento é minoritá-
volvimento de medicamento. Trata-se de julgamento da Apelação Cível ria60. No entanto, o argumento justifica a referência às normas do CC,
n. 70072537491, que reconheceu a responsabilidade civil objetiva da fa- com a finalidade de proteger de forma mais efetiva os direitos e interes-
bricante de medicamentos Boehringer Ingelheim do Brasil Q1i.ímica e ses do consumidor, já que o diploma civilista, seja no Parágrafo Único
Farmacêutica Ltda., pelos danos derivados dos efei!os colaterais do me- do Art. 927 ou no Art. 931 (este norma específica da responsabilidade
dicamento Sifrol, com fundamento no Parágrafo Unico do Art. 927. pelo fato do produto), não repete a expressão "época em que foi coloca-
Como já se teve oportunidade de assentar55, ainda que a decisão re- do em circulação" constante do Art. 12 do CDC61 .
presente importante marco para a Responsabilidade Civil em razão do 57 Art. 7°. Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou
reconhecimento da responsabilidade pelos danos derivados dos riscos convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de
regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que
do desenvolvimento, não fica isenta de crítica, pois é fundamentada no derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade.
58 Considerando a vantagem do Art. 931 para a proteção do consumidor, Adalberto Pasqualotto
Parágrafo Único do Art. 927, dispositivo que trata da responsabilidade afirma que na matéria relacionada aos riscos do desenvolvimento o Art. 931 do CC é norma
pelo risco da atividade. mais avançada pois "não exige defeito para a imputação de responsabilidade civil às empresas,
sendo suficiente a colocação do produto em circulação no mercado. Não obstante a
No caso concreto, a relação entre as partes é de consumo, por isso o controvérsia causada por esse dispositivo, inclinando-se muitos a afirmar que o defeito está
implícito na norma, a verdade é que, a ser assim, haverá mera redundãncia com o art. 12 do
Art. 12 do CDC poderia perfeitamente ser utilizado como fundamen- CDC(LGL\1990\40). Entendendo que as duas regras não podem dizer rigorosamente a mesma
coisa, o que contrariaria a hermenêutica, a I Jornada de Direito Civil, promovida em Brasília
to da decisão para imputar a responsabilidade do fabricante pelos danos pelo Conselho Nacional de Justiça em 2003, aprovou dois enunciados, afirmando que o art.
derivados dos riscos do desenvolvimento tendo em vista que, diferente 931 consagra a reparabilidade dos riscos do desenvolvimento." PASQUALOTTO, Adalberto.
Dará a reforma ao código de defesa do consumidor um sopro de vida? Revista de Direito do
do que ocorre na maioria dos países europeus que adotaram como regra Consumidor, vol. 78/2011, p. 11-20, Abr-Jun / 2011.
a exclusão da responsabilidade por força da Diretiva 85/37456 , no orde- 59 MARINS,James. Riscos do Desenvolvimento e a tipologia da imperfeição dos produtos. Revista
de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 6, p. 118-33, abr.-jun. 1993, p. 128.
namento brasileiro não há disposição que exclua essa responsabilidade. 60 Nesse sentido, cabe a referência a Flaviana Rampazzo Soares, que ao analisar a possibilidade
de exclusão da responsabilidade civil pelos riscos do desenvolvimento no Direito brasileiro
adverte essa tanto no CDC como no CDC os riscos do desenvolvimento não são previstos
como causa de exoneração da responsabilidade do fornecedor, como se vê a seguir: "o CDC
é um microssistema baseado na premissa de proteção ao consumidor, e qualquer restrição
55 A análise crítica da decisão pode ser consultada em WESENDONCK, Tula. A responsabilidade nesse sentido seria contrária a esse fundamento, aliado ao fato de que as hipóteses excludentes
civil pelos danos decorrentes dos riscos do desenvolvimento do medicamento Sifrol. Revista de responsabilidade previstas nos artigos 12, § 3°, e 14, § 3°, do CDC, não preveem os riscos
de Direito do Consumidor, vol. 123/2019, p. 161-183, Maio-Jun / 2019. de desenvolvimento como causa de exoneração da responsabilidade do fornecedor, o que
56 Uma análise sobre o desenvolvimento da matéria no Direito brasileiro e europeu pode mais se reforça pelo teor do art. 931 do Código Civil." SOARES, Flaviana Rampazzo. O dever
ser consultada em WESENDONCK, Tula. A evolução da responsabilidade civil pelos danos de cuidado e a responsabilidade por defeitos. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol.
derivados dos riscos do desenvolvimento de medicamentos no Direito brasileiro e nos países 13/2017 1 p. 139-170 1 Out-Dez / 2017.
integrantes da União Europeia. Lex Medicinae - Revista Portuguesa de Direito da Saúde, v. 61 Nesse sentido importante fazer a referência a passagem da doutrina, que ao avaliar a
31-32, p. 85-100, 2019. argumentação favorável à exclusão da responsabilidade civil pelos riscos do desenvolvimento
774-A APLICABILIDADE DO ART. 931 DO (óDIGO (!VIL NOS 18 ANOS DO (óDIGO CIVIL
TULA WESENDONCK - 775

No caso concreto, o TJRS fundamentou a ocorrência da responsa- BILIDADE OBJETIVA DO FABRICANTE CONFIGU-
bilidade pelos riscos do desenvolvimento no Parágrafo Único do Art. RADA."
927. No entanto, considerando que se trata de dano derivado de fato do Mais adiante, ainda na ementa, é feita referência mais incisiva à ex-
produto, mais especificamente, de danos derivados de efeitos desconhe- pressão risco do desenvolvimento como se vê:
cidos do medicamento Sifrol, a norma do diploma civilista que mais se "O risco do desenvolvimento, entendido como aquele que
enquadra à situação é o Art. 931. não podia ser conhecido ou evitado no momento em que o
Nesse contexto, é possível verificar inadequação na fundamentação medicamento foi colocado em circulação, constitui defeito
utilizada pelo órgão julgador, não pelo fato de ter utilizado o regramen- existente desde o momento da concepção do produto, embora
to civilista para fundamentar uma decisão de um conflito dirigido à re- não perceptível a priori, caracterizando, pois, hipótese de for-
lação de consumo, pois isso não é vedado no ordenamento pátrio em tuito interno."
razão do Art. 7° do CDC. A inadequação deriva do fato de o julgador A decisão proferida pelo STJ foi ainda mais dura para a fabricante
ter pinçado do Código Civil dispositivo que não é o mais indicado, pois do medicamento, porque acertadamente afastou o reconhecimento de
refletindo sobre o processo de incidência da norma jurídica, o suporte culpa concorrente da vítima por entender que o medicamento foi to-
fático em abstrato constante no Art. 931 reflete como maior precisão a mado conforme prescrição médica (em advertência feita na bula o fa-
problemática envolvendo o caso concreto: responsabilidade pelo fato do bricante orientava para que o medicamento fosse tomado conforme
produto posto em circulação. orientação médica) e contrariou assim, a posição que havia sido defini-
Ao julgar o Recurso Especial interposto da decisão proferida em da pelo TJRS. Nesse aspecto, a Corte Superior divergiu do posiciona-
segundo grau, o STJ seguiu o posicionamento do TJRS e reconheceu a mento da decisão de grau ínferior63 •
responsabilidade civil objetiva do fabricante pelos efeitos colaterais do 01ianto ao fundamento utilizado no Recurso Especial para impu-
medicamento Sifrol, com fundamento no Parágrafo Único do Art. 92762 • tar a responsabilidade pelos danos derivados pelos riscos do desenvolvi-
De maneira ainda mais contundente, literal e expressa, a Corte mento, cabe aqui a observação de que sistematicamente mais adequado
Superior reconheceu a responsabilidade da fabricante de medicamen- para fundamentar a decisão é o Art. 931 que trata da responsabilidade
to pelos riscos do desenvolvimento. A referência à responsabilidade ci- civil objetiva pelo fato do produto.
vil pelos riscos do desenvolvimento é feita em duas oportunidades na
3) INCIDÊNCIA DO ART. 931 COMO FUNDAMENTO DO EXERCÍCIO DO
extensa ementa da decisão, merecendo destaque os seguintes trechos:
DIREITO DE REGRESSO
"RlSCO DO DESENVOLVIMENTO. DEFEITO DE
CONCEPÇÃO. FORTUITO INTERNO. RESPONSA- Outra hipótese que pode ser citada para incidência do Art. 931 do
CCB está relacionada aos casos de exercício do direito de regresso da-
se apoiava nas lições de João Cal vão da Silva, como se vê a seguir: quele que for obrigado a indenizar a vítima por danos derivados de fato
"Sempre repercutiu muito no Brasil a opinião de João Calvão da Silva, no sentido de que do produto. Pela aplicação do dispositivo, essa responsabilidade se dá de
há carência de imputabilidade sobre o fabricante (ou produtor, como prefere a doutrina
portuguesa) se o defeito deve ser considerado no momento da colocação do produto no forma objetiva, independentemente da ocorrência de culpa.
mercado. Todavia, falando no XIII Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor, o autor
português declarou que sua opinião não se aplica ao Brasil, cuja legislação entende que Como já tivemos a oportunidade de pontuar64 , a aplicação desse dis-
favorece a imputação de responsabilidade ao fabricante. Um dos suportes dessa imputação
é o art. 931, do Código Civil (LGL\2002\400), o que foi proclamado pela I Jornada de Direito positivo tem grande relevância, pois a doutrina consumerista brasileira,
Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal (Brasília, 2002), com o seguinte enunciado: "A
responsabilidade civil pelo fato do produto, prevista no art. 931 do novo Código Civil, também
inclui os riscos do desenvolvimento".A imputação pelo Código Civil (LGL\2002\400) torna-se, 63 Essa concl~s_ão é possí~el o~servar no trecho que segue: "Necessário frisar que em nenhum
dessa forma, mais favorável do que pelo próprio Código de Defesa do Consumidor, uma vez mom 7nt~ e imputado a paciente o comportamento de ingerir, por conta própria, dosagem
que o art. 931 não exige a existência de defeito." PASQUALOTTO,Adalberto de Souza, SARTORI superior a recomendada pel? la_boratóri? ou à prescrita por sua médica. Daí porque não se
Paola Mondardo. Consumo sustentável: limites e possibilidades das práticas de consumo no sustenta o fundamento do acordao recorrido para reconhecer a culpa concorrente da paciente
contexto nacional. Revista de Direito Ambiental, vai. 85/2017, p. 191-216, Jan-Mar / 2017. (...)".
62 REsp 1.774.372-3ª Turma- Rei. Min. Nancy Andrighi, julgamento em 5/5/2020. 64 WESENDONCK, 2015, p. 226.

1
,1
776 -A APLICABILIDADE DO ART. 931 DO Córneo CIVIL NOS 18 ANOS DO Córneo CIVIL TULA WESENDONCK - 777

ao examinar o conteúdo do Parágrafo único do Art. 13 do CDC 65 , de- A empresa autora adquiriu parafusos para utilizá-los na montagem
fende que "a natureza da responsabilidade é então novamente subjetiva, de ônibus. Os parafusos serviam para fixação de assentos de passageiros
nos moldes tradicionais" 66 • A posição é repetida e reforçada por outros no assoalho dos ônibus. Os parafusos não atendiam a finalidade para
autores 67 que além do argumento anteriormente referido, defendem que qual se destinava o produto já que não se mostraram capazes de fixar os
no caso de exercício de direito de regresso a imputação da responsabili- assentos no assoalho. Em virtude da inadequação do produto, a monta-
dade dependeria da "demonstração da prova de culpa por parte do au- dora dos ônibus precisou realizar reparos em ônibus vendidos a tercei-
tor da ação de regresso." 68 ros para substituir os parafusos o que lhe acarretou danos.
Essa posição talvez derive uma construção interpretativa origina- Em vista desse fato, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
da na observação feita pela doutrina de um modelo de responsabilida- reconheceu o dever da fabricante dos parafusos de indenizar a monta-
de civil previsto no Código Civil de 1916, que tinha uma única cláusula dora de ônibus pelos danos suportados com material, mão obra e trans-
geral de responsabilidade civil fundada na culpa, e não contava com as porte dos veículos para o reparo nos mesmos 70 •
cláusulas gerais da responsab,ilidade civil objetiva constantes agora no A responsabilidade civil da fabricante de parafusos foi imposta de
CCB de 2002 no Parágrafo Unico do Art. 927 e no 931. forma objetiva, dispensando a montadora de provar a culpa da ré para
Analisando o sistema de responsabilidade vigente, a solução apre- o exercício do direto de regresso. Muito embora não tenha sido dada
sentada pela doutrina consumerista a respeito da necessidade de provar grande ênfase ao Art. 931 do Código Civil brasileiro, ele foi utilizado
a culpa para o exercício do direito de regresso não é a mais adequada. como fundamento da decisão.
Esse argumento é reforçado pela incidência do Art. 931 do CC, que O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo também reconhe-
por ser uma cláusula geral da responsabilidade civil viabiliza o exercí- ceu a responsabilidade objetiva no exercício do direito de regresso com
cio do direito de regresso sem a necessidade de fazer a prova da culpa fundamento do Art. 931 do CCB.
do fabricante do produto, ou de componentes ou de matéria prima para
Trata-se de caso no qual empresa de frota de caminhões ajuizou
a sua produção.
ação indenizatória contra fabricante de óleo lubrificante por danos que
Um estudo na jurisprudência nessa matéria aponta que em algu- o produto acarretou aos veículos. No processo restou demonstrado que o
mas situações o Art. 931 é utilizado como fundamento dessa responsa- óleo estava em desacordo com as especificações técnicas e que isso teria
bilidade, já em outras hipóteses isso não ocorre, como se verá a seguir. acarretado danos à frota. O Tribunal reconheceu a responsabilidade ob-
Para iniciar a exposição, pode ser citado um caso julgado pelo jetiva da fabricante de óleo lubrificante considerando o risco da empre-
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no qual uma empresa mon- sa e que a mesma seria responsável pelos danos derivados dos produtos
tadora de ônibus ajuizou uma ação indenizatória contra uma fabrican- postos em circulação como determina o Art. 931 do CCB, sem exigir
te de parafusos69 • para a responsabilidade da empresa a comprovação de culpa71 •
65 Parágrafo único. Aquele que efetivar o pagamento ao prejudicado poderá exercer o direito de consumo. A prova produzida demonstrou, suficientemente, a responsabilidade da ré no
de regresso contra os demais responsáveis, segundo sua participação na causação do evento fornecimento de parafusos não adequados à finalidade a que se destinavam. Apelação não
danoso. provida. (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça.Apelação Cível Nº 70045910494. Décima
MARQUES, 2016, p. 1434. Câmara Cível. Relator: Marcelo Cezar Muller.Julgado em: 27 set. 2012)
Paulo de Tarso Sanseverino refere: "Cláudia Lima Marques lembra, corretamente, que A decisão faz um alerta a respeito da necessidade de utilização de material adequado para
nas relações internas entre os fornecedores, no curso da ação de regresso, a natureza da a fixação dos bancos, lembrando trágico caso, ocorrido também no Rio Grande do Sul, no
responsabilidade passa a ser estritamente subjetiva nos moldes do sistema tradicional." qual muitos passageiros ficaram gravemente feridos ou morreram em acidente de trânsito.
SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira, Responsabilidade Civil no Código do Consumidor e a Na tragédia, ficou comprovado que o acidente somente teve consequências mais sérias, em
Defesa do Fornecedor. 3ª ed, São Paulo: Saraiva, 2010, p. 187. virtude do desprendimento de bancos que acabaram esmagando alguns passageiros.
68 MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 6ª ed., rev., atual., e ampl. São Paulo: "Ação de indenização por danos materiais. Autora que adquire óleo lubrificante da ré para
Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 623. empregá-lo em veículos de sua frota. Relação jurídica existente entre as partes devidamente
69 RESPONSABILIDADE CIVIL. INDENIZATÓRIA POR DANOS MATERIAIS. VÍCIO DO PRODUTO. comprovada por nota fiscal juntada aos autos. Prova pericial que comprovou que os produtos
NEXO CAUSALIDADE PRESENTE. RESPONSABILIDADE DO FABRICANTE. O fabricante do adquiridos pela autora estavam em desacordo com as especificações técnicas e que, nesses
produto responde, independentemente da existência de culpa, pe_la re~a~~ção dos danos casos, os danos causados aos veículos são exatamente aqueles descritos na inicial e constatados
causados por vício de qualidade por insegurança dos produtos que d1spon1b1hza no mercado nas peças apresentadas pela autora durante a vistoria. Laudo pericial conclusivo, apto à
778 - A APLICABILIDADE DO ART. 931 DO CóDIGO CIVIL NOS 18 ANOS DO CóDIGO CIVIL TULA WESENDONCK - 779

O caso referido é de extrema importância para o estudo do Art. 931, muitas decisões reconhecem a responsabilidade civil, mas não fazem re-
porque a responsabilidade objetiva da fabricante do insumo (óleo lubri- ferência ao dispositivo, como será visto a seguir.
ficante) foi reconhecida sem forçar a incidência do Código de Defesa e Nesse sentido é interessante referir caso julgado pelo Tribunal de
Proteção do Consumidor, até porque inexistente uma relação de consu- Justiça do Rio Grande do Sul, no qual foi reconhecida a responsabilida-
mo entre as partes do processo. O fundamento da decisão é o Art. 931 de de uma fabricante de motocicletas em virtude dos danos suportados
do CC, com referência à responsabilidade civil pelos danos decorrentes pelas concessionárias dos veículos em decorrência da necessidade cons-
dos produtos postos em circulação. tante de reparo dos produtos que eram de má qualidade 73 •
Outra situação que merece ser referida nesse estudo é a ação inde- N_o ·caso concreto, embora não tenha sido feita referência expressa
nizatória movida por um restaurante contra o fabricante de um refri- na decisão ao exercício do direito de regresso, o caso trata desse tipo de
gerante por dano que alega ter indenizado junto ao consumidor final72 • situação tendo em vista que a concessionária ajuizou ação contra a fa-
O caso é interessantíssimo, pois o Tribunal reconheceu que é ob- bricante para haver, além da indenização correspondente ao dano à sua
jetiva a responsabilidade civil pelo exercício do direito de regresso com imagem perante a clientela (dano decorrente da ofensa à sua honra por
fundamento no Art. 931 do CCB, já que o fabricante é responsável pe- comercializar produtos que sempre apresentavam problemas), os danos
los danos decorrentes dos produtos postos em circulação. No entan- decorrentes das constantes manutenções a que era obrigada a proce-
to, como não foi provado nos autos do processo que o restaurante teria der nas motocicletas, em virtude do exercício da garantia dos produtos.
efetivamente indenizado o consumidor final, a ação indenizatória foi
considerada improcedente. Na decisão é enfatizada a existência deres- 73 APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO INDENIZ~TÓRIA. CONTRATO DE CONCESSÃO COMERCIAL DE
VENDA DE MOTOCICLETAS. RESCISAO DO CONTRATO. CULPA DAS RÉS. SOLIDARIEDADE
ponsabilidade civil objetiva pelo exercício do direito de regresso, porém RECONHECIDA. TE~MO DE RESCISÃO FIRMADO ENTRE AS DEMANDADAS QUE NÃO
REFLETE NA PRETENSAO DA PARTE AUTORA. DEFEITOS DE FABRICACÃO DAS MOTOS PROVA
considera inviável no caso concreto, tendo em vista a falta de prova que ESC~RREITA. DANOS MATERIAIS COMPROVADOS. DANO MORAL. CONFIGURADO ..PESSOA
a autora teria efetivamente indenizado o consumidor. JURIDICA. HONRA OBJ~TIVA. AVILTAMENTO À IMAGEM E CREDIBILIDADE DA EMPRESA.
VALOR D_:1. INDENIZAÇAO MANTIDO. REDISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA SUCUMBÊNCIA
Nos casos referidos acima firma-se a posição de que a incidência '."PLICAÇAO DO ART. 21 DO CPC/73- DECAIMENTO MÍNIMO AFASTADO. 1. Não há com~
isentara apelante da responsabilidade perante à autora, na medida em que o contrato firmado
de responsabilidade civil objetiva ocorre na via regressiva sem a neces- com a codemandad~ nao afasta a sua responsabilidade, apenas lhe assegura eventual direito
sidade de prova de culpa do responsável pelo dano. Os casos são mar- ~e regresso. Ademais, ao tempo da rescisão do contrato entre as rés, os defeitos nas motos já
tinham se apresentado. Port~nto, nã_o há como eximira apelante da responsabilidade solidária,
cantes porque há referência expressa ao exercício do direito de regresso, a qual d~corre da c~ntr~tuahdade fir'.11ada entre aspartes. 2._Há farta prova nos autos quanto
aos defeitos ~e fabncaçao d~s m~toc1<:letas, ta_nto e que apropria demandada, retirou alguns
à responsabilidade objetiva e a à incidência do Art. 931 do CCB como produt?~ de lin_ha e~ face d~ 1~sat1sfaçao dos clientes. A debilidade do produto produzido pela
fundamento da responsabilidade civil. parte re, inclusive, foi matenahzada em ata de reunião realizada entre as contratantes. Diversas
corr~~pond_ências eletrônic~s fora_m trocadas entre as partes, nas quais a requerida reconhece
Essa relação entre o exercício do direito de regresso e o Art. 931 do os _v1~1os_ e_x1stentes. Ade1;1a1_s, muitos consumidores, insatisfeitos com o produto, ajuizaram
açao ~u_d1c1al ou recl_amaçao Junto ao PROCON, relatando os defeitos apresentados nas motos
CCB parece ser a mais adequada, no entanto, embora o dispositivo te- adqumdas. 3- Considerando ~s circunstâncias fáticas, a prova documental apresentada pela
autora, comporta o reconhecimento do dano material e da sua extensão. 4. A configuração de
nha sido introduzido no Direito brasileiro a partir de 2002, nota-se que dan_os mora'.s, em se tratan~o- de pessoa jurídica, somente se dá quando há sua depreciação
social, ~u seia, seu desprest1g10 perante terceiros ou a mácula de sua imagem perante o meio
comercial, comprovaçao esta que aportou aos autos, em face da insatisfacão dos consumidores
com_o produto vendido ~e_la parte autora e fabricado pela parte, que ~presentou inúmeros
formação do livre convencimento. Incidência do Art. 931 do Código Civil. Risco de empresa. defe1t?s, dando azo ao ªJ_u1za~ent? ?e ações judiciais e reclamações junto ao PROCON. 5 _
Responsabilidade objetiva da empresa pelos danos causados por produtos colocados em O ar?1tramento do val?r '.ndenizatono deve atender aos fins a que se presta a indenização,
circulação. Recurso improvido. Apelação Cível n. 00055687320088260565, 29ª Câmara de cons19e~ando ~s pec_uhar:idades de cada caso concreto, de modo a evitar que a repercussão
Direito Privado, Relator: Hamid Bdine, julgamento em 26 de novembro de 2014." econom1c_a d~ 1~d~mzaçao se conver_ta em en~iquec2mento injusto da vítima ou, ainda, que
72 RESPONSABILIDADE CIVIL. RESTAURANTE. PRODUTO COM DEFEITO. DIREITO DE REGRESSO. o va!or,se)a tao inf1mo, que se torne inexpressivo, nao causando qualquer impacto sobre 0
DANO MORAL. A responsabilidade do fornecedor é objetiva, sem exame do elemento culpa. patnmonio do agente caus_ado~ do dano. 6. Na hipótese, considerando os pedidos da autora
No caso, a autora alega defeito no produto e a ingestão pelos consumidores. Contudo, a prova e os ter!11os da condenaçao, ainda que reconhecida a rescisão do contrato de concessão
trazida não concede segurança ao acolhimento do pedido indenizatório. O acordo efetuado C0'!7erc1al por culpa d~s de'.11~ndadas, não houve decaimento mínimo da parte autora e,
pela autora com terceiros não vincula a parte ré. Pedido de indenização não confirmado. assim, observadas as d1spos1çoes do art. 21 do CPC/73, deve ser redistribuída a verba de s
Apelação provida. (Apelação Cível Nº 70069739068, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça P~RCIALMENT~ PROVIDO. (Apelação Cível Nº 70070764394, Décima Quinta Câmara Cível,
do RS, Relator: Marcelo Cezar Muller, Julgado em 27/10/2016) Tribunal de Justiça do RS, Relator: Adriana da Silva Ribeiro, Julgado em 23/11/20 16)
780 - A APLICABILIDADE DO ART. 931 DO Córneo Civil NOS 18 ANOS DO Córneo Civil TULA WESENDONCK - 781

Ainda que não tenha sido referido o exercício do direito de regres- sitivo legal a extensão e efeitos que cabe na moldura definida pelo su-
so e a incidência do Art. 931, a decisão proferida reconheceu a respon- porte fático da norma.
sabilidade civil da fabricante pelos danos sofridos pela concessionária. Além disso, compreender o real conteúdo, efeitos e extensão do
O relato do caso se enquadra perfeitamente na hipótese de incidência Art. 931 do CCB, para além de proceder a distinção entre os sistemas
da responsabilidade do fabricante pelos danos decorrentes dos produ- de responsabilidade civil previstos às relações de consumo e fora delas,
tos que a fabricante coloca em circulação, atendendo assim os requisi- faz com que seja possível também diferenciar o conteúdo do Art. 931
tos do suporte fático do Art. 931. em relação ao Parágrafo Único do Art. 927, o primeiro norma deres-
CONCLUSÃO
ponsabilidade pelo fato do produto e o segundo norma de responsabi-
lidade pelo risco da atividade.
Passados 18 anos de vigência do Código Civil este estudo demons-
De todo o exposto, é necessário concluir que as disposições constan-
tra que o Art. 931 ainda pode ser considerado como uma novidade.
tes na legislação têm (e precisam ter) o seu devido lugar e cabe ao jurista
Ainda que essa norma seja aplicável em diversas hipóteses que fica- não perder de vista que um dos pilares da segurança jurídica é empenhar
riam à descoberto antes de sua vigência, a ausência de uma interpretação esforços para que os fatos sociais tomem assento nas normas que lhes são
sistemática do Código Civil vigente, a tendência de confundir o âmbi- incidentes. Assim, mesmo que o cenário atual, tanto na jurisprudência
to de incidência do Código Civil e Código de Defesa do Consumidor, como na doutrina, tenha apontado para uma aplicação inadequada ou
ou mesmo a postura arbitrária de compreender que a Lei está "errada'' subutilização do Art. 931, estudos em torno da aplicabilidade do artigo
ou contém expressões inúteis, tem deixado inúmeras situações regula- não devem ser abandonados.
das pela norma sem o devido enfrentamento tanto pela doutrina e como
pela jurisprudência pátrias. REFERÊNCIAS

Não raro, há uma associação equivocada entre o Art. 931 do diplo- AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. O novo Código Cívil e o Código de Defesa do
ma civil e o Art. 12 do CDC, norma que lhe é equivalente no âmbito Consumidor: pontos de convergência. Revista de Direito do Consumidor, São
Paulo, v. 48, out. 2003.
das relações de consumo por dispor sobre a responsabilidade pelo fato
AGUIAR, Roger Silva. Responsabilidade Objetiva - do Risco à Solidariedade. São
do produto, mas que deve ficar restrita às relações de consumo. Paulo: Atlas, 2007.
Essa associação equivocada, além de não conduzir o dispositivo ci- BENJAMIN, Antonio Herman V., MARQUES, Cláudia Lima, BESSA, Leonardo
vilista a uma incidência correta, inflaciona o dispositivo consumerista, Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 7ª ed., São Paulo: Editora Revista
gerando como efeito nefasto um sentimento de ser necessário forçar a dos Tribunais, 2016, p. 106.
caracterização da existência de uma relação de consumo, para que seja BESSA,Leonardo Roscoe. Responsabilidade pelo fato do produto: questões polêmicas.
Revista de Direito do Consumidor. vol. 89/2013, p.141-163, set-out 2013.
incidente o CDC, e por consequência o caso seja resolvido sob o mo-
CARNAÚBA, Daniel Amaral. Para que serve o art. 931 do código cívil? Considerações
delo de responsabilidade civil objetiva (não é demasiado lembrar que o
Críticas sobre um dispositivo inútil. Revista de Direito Civil Contemporâneo,
Art. 931 é uma norma de responsabilidade civil objetiva pelo fato do vol. 22/2020, p. 203-239,Jan-Mar / 2020.
produto, que não fica restrita às relações de consumo, por isso todo esse CAVALlERI F1LHO, Sérgio; DIREITO, Carlos Alberto Menezes. Da responsabilidade
esforço além de artificial e inadequado é inútil). cívil das preferências e privilégios creditórios: art. 927 a 965. TEIXEIRA, Sálvío de
A aplicação devida e adequada de cada dispositivo dentro do seu Figueiredo (Coord.). Comentários ao novo Código Civil. 2ª ed. rev. e atual. Rio de
Janeiro: Forense, 2007. v.13.
campo de incidência, definido pelo diploma civil e consumerista, opor-
CAVALIERI FILHO, Sergio: O novo Código Cívil e o Código do Consumidor:
tuniza uma organização na interpretação e aplicabilidade das normas da
convergências ou antinomias? Revista da EMERJ, v. 5, n. 20, 2002, p. 111-112.
responsabilidade civil, o que contribui para o desenvolvimento de uma
CAVALIERI F1LHO, Sergio. Responsabilidade Cívil no Novo Código Cívil. Revista
ciência jurídica mais segura e estável, na qual é atribuído a cada dispo- de Direito do Consumidor. vol. 48, p. 69-84. Out-Dez / 2003.
782 - A APLICABILIDADE DO ART. 931 DO (ó DIGO CIVIL NOS 18 ANOS DO (ó DIGO CIVIL

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