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PAUlA A.

fORGIONI

PATRÍCIA AURÉLIA DEl NERO

RENATA MOTA MACIEl DEzEM

SAMANTHA RIBEIRO MEYER-PFlUG MARQUES

Coordenação
''A Qy.artier Latin teve o mérito de dar início a uma nova fase, na apresentação gráfica dos
livros jurídicos, quebrando a frieza das capas neutras e trocando-as por edições artísticas. Seu
pioneirismo impactou de tal forma o setor, que inúmeras Editoras seguiram seu modelo."

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

"Entre os vários méritos da Editora Qy.artier Latin, sobreleva, para mim, o de que suas es-
colhas editoriais levam. em conta muito mais a contribuição científica para o Direito do que,
propriamente, o lucro empresarial, quase transformado em uma espécie de mantra da sociedade
contemporânea. Se a publicação de manuais, cursos e quejandos cumpre função corriqueira do
aprendizado jurídico, não devemos nos olvidar de que são as monografias acadêmicas - con-
quanto na contramão dos resultados puramente mercadológicos - que impedem a petrificação
do pensamento jurídico, impulsionando-o à criação de uma sociedade mais igualitária e sólida
e menos argentária e líquida, como tem se revelado, infelizmente, a nossa." DIREITO EMPRESARIAL, DIREITO
NEWTON DE LUCCA
DO ESPAÇO VIRTUAL E OUTROS
DESAFIOS DO DIREITO
HOMENAGEM AO PROFESSOR NEWTON DE LUCCA

EDITORA QUARTIER LATIN DO BRASil

EMPRESA BRASILEIRA, FUNDADA EM 20 DE NOVEMBRO DE 2001


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OTAVIO LUIZ RODRIGUES JUNIOR - 947

DIREITO AO ESQUECIMENTO E AS SUAS FRONTEIRAS


ATUAIS NO' BRASil E NA EXPERIÊNCIA ESTRANGEIRA

Otavio Luiz Rodrigu~s Junior

1. COLOCAÇÃO DO PROBLEMA E PLANO DO CAPiTULO

O homem erra todos os dias. Seu erro pode causar o mal a si próprio, a seus familiares e amigos ou até
aos estranhos 1. A gradação dos efeitos do erro (desvalor do resultado) e sua valoração intrínseca, como um mal
em si, como uma conduta que deve ser simbolicamente evitada e desestimulada (desvalor da ação), serviu de
parâmetro para o enquadramento dos erros humanos nas molduras jurídicas. Há erros que não interessam
ao Direito, mas apenas à Moral. Para os homens conscienciosos, esses erros deixarão máculas no espírito,
que poderão interditar seu sono, obnubilar sua razão, levá-los a uma permanente ou periódica situação de
desequilíbrio psíquico. Existem ainda os erros que o Direito considera relevantes e atribui sanção às condutas
que os contém. As variedades sancionatórias dependerão do processo de enquadramento das condutas, o que
pressupõe, grosso modo, distribui-las entre os regimes administrativo, civil e penal. A depender dessa qualifi-
cação, ter-se-iam consequências no âmbito da liberdade, do patrimônio e da vida funcional dos sancionados.
É também humano, demasiadamente humano, buscar a expiação do erro. A pena (poena) é uma das formas
mais antigas de se permitir que o erro seja expiado. Fazer o inventário das penas constitui-se uma atividade
complexa, mesmo nos tempos de hoje, época na qual se defende a redução das espécies penais e o contínuo
retraimento do Direito Criminal2 • Os homens, no entanto, desenvolveram uma modalidade de expiação, que
ora se apresentava como efeito acessório da pena, ora como seu antecedente ou como seu sucedâneo, a saber:
a divulgação pública dos próprios erros. As confissões, na Igreja primitiva, eram feitas perante a comunidade.
Os pecadores vestiam uma espécie de saco, borrifavam-se de cinzas e desfilavam perante seus irmãos como
forma de se humilhar e de demonstrar arrependiment0 3 • Tornou-se comum desestimular o ilícito por meio
de cerimônias públicas de suplício e morte dos condenados. Em muitos casos, as partes do corpo do infrator
eram expostas em praças públicas, nas muralhas dos castelos, nas vias e nos mercados, de molde a que todos
conhecessem de seu erro e que se estimulassem a não segui-l04 •
Com o passar dos tempos, associar o erro cometido ao nome do infrator ganhou um novo sentido. O
"rol dos culpados", onde até hoje são lançados os nomes das pessoas condenadas criminalmente, é um exem-
A presente contribuição incorpora textos publicados na revista eletrônica Consultor jurídico, nos dias 27-11-2013,11-12-2013,19-12-2013
e 25-12-2013, os quais foram modificados, acrescidos e tiveram partes suprimidas.
2 Sobre a evolução do conceito de pena e sua relação com o Direito Civil: RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Responsabilidade civil no
Direito Romano. In. RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz, MAMEDE, Gladston, ROCHA, Maria Vital da (Coord). Responsabilidade civil con-
temporânea: em homenagem a Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011.
3 No Antigo Testamento, há uma famosa passagem no Livro dejonas, conhecida como o 'Arrependimento dos Ninivitas", que parece ser a
fonte de inspiração para esse procedimento. Após terem sido alertados pelo profetajonas sobre os planos de Deus para destruir Nínive,
capital da Assíria, a Escritura narra o sucedido: "5 Os ninivitas creram (nessa mensagem) de Deus, e proclamaram um jejum, vestindo-se
de sacos desde o maior até o menor. 6 A notícia chegou ao conhecimento do rei de Nínive; ele levantou-se do seu trono, tirou o manto,
cobriu-se de saco e sentou-se sobre a cinza. 7 Em seguida, foi publicado pela cidade, por ordem do rei e dos príncipes, este decreto: Fica
proibido aos homens e aos animais, tanto do gado maior como do menor, comer o que quer que seja, assim como pastar ou beber. 8
Homens e animais se cobrirão de sacos. Todos clamem a Deus, em alta voz; deixe cada um o seu mau caminho e converta-se da violência
que há em suas mãos. 9 Quem sabe, Deus se arrependerá, acalmará o ardor de sua cólera e deixará de nos perder! W Diante de uma tal
atitude, vendo como renunciavam aos seus maus caminhos, Deus arrependeu-se do mal que resolvera fazer-lhes, e não o executou" On,
111, versículos 5-10).
4 Como esclarece Michel Foucault, no capítulo segundo de seu clássico Vigiare punir: Nascimento da prisão (Tradução de Raquel Ramalhe-
te. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 1999), "[o] suplício penal não corresponde a qualquer punição corporal: é uma produção diferenciada de
sofrimentos, um ritual organizado para a marcação das vítimas e a manifestação do poder que pune: não é absolutamente a exasperação
de uma justiça que, esquecendo seus princípios, perdesse todo o controle. Nos 'excessos' dos suplícios, se investe toda a economia do
poder. corpo supliciado se insere em primeiro lugar no cerimonial judiciário que deve trazer à luz a verdade do crime". Era uma forma
simbólica de se "restaurar" a autoridade do soberano, que havia sido desprezada pela conduta criminosa, inserindo-se no que Michel
Foucault denomina de um dos "grandes rituais do poder eclipsado e restaurado". Ao violar a lei, o infrator ataca a pessoa do príncipe e
este tem o direito legítimo de reagir, sem qualquer preocupação com a proporcionalidade. Eé necessário que todos os saibam, a fim de
que se acautelem e não sigam o exemplo de rebelião que está ínsito no crime e é difundido pela conduta de seu autor.
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pIo dessa prática5 • Com o desenvolvimento da imprensa, tornou-se vulgar a difusão dos grandes crimes, dos errore manere. "Errar é humano, diabólico é permanecer no erro por animosidade (ou, outra tradução possível,
escândalos financeiros e sexuais ou dos casos de corrupção. Antes do término dos juízos oficiais, os meios de por orgulho)". As Corifissães do Bispo de Hipona são precisamente um exemplo de pregação da vi~tude por
comunicação passaram a realizar o escrutínio da vida e da conduta dos envolvidos no incidente criminoso. Em meio da exposição do erro pessoal. A humildade dos que expõem seus pecados pode converter maIS do que
muitos casos, essa atuação foi marcada pelo excesso; em outros tantos, deu-se a ajuda involuntária da mídia a jactância do fariseu, que se pretenqe imune ao tropeço.
à realização da justiça, pois com o estardalhaço dos jornais, as autoridades eram obrigadas a vencer a inércia, Essa tensão entre o erro e o direito de não o ver propagado indefinidamente no tempo está na raiz dos
o instinto de preservação de classe e a deixar de lado a conivência criada por laços sociais. debates sobre o chamado "direito ao esquecimento", um problema teórico de enorme significado para a vida
Nos Estados Unidos, onde persiste até hoje a pena de morte em várias unidades da federação, com processos das pessoas na era da internet.
criminais que se arrastam por décadas, a imprensa, às vésperas da execução do condenado, faz uma ampla cobertura O exame dessa questão, neste capítulo, atenderá ao seguinte plano: a) resenha da literatura nacional
do caso, a fim de relembrar as pessoas sobre o porquê daquela violência estatal legítima. A cadeira elétrica, assim sobre o direito ao esquecimento; b) exame de dois históricos julgados do Superior Tribunal de Justiça, que
como toda forma de sanção pelo Estado, tende a vitimizar o condenado, a despertar um sentimento de solidariedade reconheceram sua existência no ordenamento jurídic09; c) apreciação da experiência estrangeira. Em rela-
social, como demonstrou Michel Foucault em relação aos suplícios no final do Antigo Regime. Com base nisso ção ao item "a", nele serão discutidos os temas: i) a situação dos registros de crimes e de inadimplência, que
é que os norte-americanos tentam reequilibrar a situação e recordar a sociedade do quão violento, facinoroso ou poderiam constituir problemas para condenados e co~sumidores; ii) a na~reza"d~ direito ~o esque~i~ento;
insensível foi o homem que, em alguns dias, irá perder sua vida para expiar sua culpa. c) a possibilidade de se tutelar esse direito ao esqueClmento. Qyanto ao Item b, far-se-a a expoSlçao dos
Hoje, a memória coletiva dos erros humanos não está mais somente na imprensa, nos livros de História elementos descritivos e dos fundamentos dos dois acórdãos. Finalmente, no item "c", o Direito alemão e o
ou nos romances escritos, de modo parcial ou total, com base em acontecimentos históricos. De fato, nos Direito europeu ocuparão o centro das investigações sobre o direito ao esquecimento no estrangeiro.
últimos 200 anos, para não se recuar ainda mais, existem variegados exemplos da ação dessa tríade (memória,
imprensa e literatura) para perpetuar na lembrança das pessoas os crimes, os escândalos e outras modalidades 2. O DIREITO AO ESQUECIMENTO NA DOUTRINA BRASILEIRA
de erros humanos. Truman Capote, o famoso romancista norte-americano da segunda metade do século XX,
imortalizou os assassinos da família de Holcomb, um vilarejo no Oeste do Texas, em seu livro A sangue frio6 • 2.1. CONSIDERAÇÕES GERAIS
O cangaceiro Lampião e seus companheiros de bando, que aterrorizaram o sertão brasileiro na República Embora o direito ao esquecimento tenha sido objeto de dois acórdãos do Superior Tribunal de Justiça em
Velha, ocupam lugar de honra na memória populae. Os crimes de Jack, o estripador, cuja fama se deveu aos 2013, que possuem a primazia histórica de seu conhecimento em um órgão de jurisdição superior no Brasil,
jornais vitorianos, ainda hoje são recordados em livros, filmes ficcionais e documentários. E não devem ser a doutrina nacional já se ocupava do problema desde 1993. Com o incipiente desenvolvimento da internet e
esquecidos os crimes de guerra, os crimes políticos, as torturas e os massacres, eventos esses que também a então rarefeita consciência social da relevância desse problema, é bastante compreensível que somente 20
mereceram (e ainda merecem) ampla difusão por todos esses meios 8 • anos depois o direito ao esquecimento haja alcançado notoriedade na jurisprudência. Qyanto à evolução do
Como dito, não se limitam mais a esses meios (memória, imprensa e literatura) as formas de propagação tema na dogmática, percebe-se a existência de algumas fases. A primeira diz com a afirmação do direito ao
e de perpetuação da lembrança dos erros humanos. O cinema e a televisão não mais imperam isoladamente esquecimento como uma figura parcelar do direito da personalidade à vida privada. Estavam em causa nesse
nesse campo. A internet é a enciclopédia universal, atualizada a cada minuto, com fotos, informações e opi- momento o problema da reabilitação e do "direito a estar só". Em um segundo momento, ganhou importância
niões, sem critério, hierarquia ou prévio controle. Os erros são mais populares que os acertos. Em instantes, a duração dos registros pessoais nos cadastros de inadimplência ou de restrição creditícia. Na última fase, que
milhões de pessoas poderão tomar conhecimento do tropeço de alguém (ou, no velho latim de São Jerônimo, é a atual, o direito ao esquecimento coloca-se em duas importantes vertentes: a) a difusão de informações
de seu peccatum). O depoimento em uma comissão parlamentar de inquérito; uma denúncia não recebida; uma sobre indivíduos em plataformas comunicativas tradicionais (televisão); b) a propagação de informações na
ação civil pública; um crime ou um delito administrativo há muito tempo cometido, apenado e já prescrito; internet. Essa diferenciação é bem nítida após a leitura dos acórdãos do STJ no REsp 1334097/RJ e no REsp
uma briga conjugal ou uma acusação leviana de um subordinado, um aluno ou um empregado. O repertório 1.335.153/RJ. Não é possível deles extrair uma orientação sobre o item "b", cuja complexidade ultrapassa o
é imenso, dir-se-ia inesgotável. O amargor da leitura quase eterna daqueles escritos, facilmente recuperáveis objeto da matéria devolvida ao STJ.
em qualquer motor de busca, tem o gosto ruim da fealdade humana.
É bem verdade que, para alguns, a exposição dos próprios erros pode servir para um propósito superior. 2.2. A PRIMEIRA E A SEGUNDA FASES DO DIREITO AO ESQUECIMENTO NA DOUTRINA NACIONAL

Santo Agostinho afirmou em um de seus Sermões que: Humanum fuit errare, diabolicum estper animositatem in Dando início a essa revisão de literatura, deve-se anotar que, em 1993, Edson Ferreira da Silva10 e, em
5 o lançamento do nome no rol dos culpados é o "primeiro efeito, lato sensu, da condenação", embora, de acordo com o art. 202 da Lei 1996, Luís Alberto David Araújo divulgaram no Brasil o pensamento de Raymond Lindon e incluíram o
de Execução Penal, uma vez cumprida ou extinta a pena, devem ser eliminadas da folha corrida do indivíduo as referências à condena- direito ao esquecimento no conceito de vida privada, ao lado de identidade; lembranças pessoais; intimidade
ção, salvo de for para "instruir processo pela prática de nova infração penal ou outros casos expressos em lei" (REALEjUNIOR, Miguel.
Instituições de Direito Penal: Parte Geral. 4. ed. Rio de janeiro: Forense, 2013. p. 482) do lar; saúde; vida conjugal; aventuras amorosas; lazeres; vida profissional e segredo dos negócios l l . As men-
6 Há uma versão desse livro em língua portuguesa: CAPOTE, Truman.Asanguefrio: relato verdadeiro de um homicídio duplo e suas consequências ções a essa figura parcelar não ocuparam o centro desses textos. No entanto, era reconhecido um estatuto de
Tradução de Sérgio Flaksman.Apresentação de Ivan Lessa. Posfácio de Matinas Suzukijr. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
7 A relevância histórica de Lampião ultrapassou as fronteiras nacionais e a tradição popular do sertão do Norte do Brasil e foi objeto de autonomia ao direito ao esquecimento no âmbito dos direitos da personalidade.
um capítulo do livro do britânico Eric Hobsbawm, intitulado Bandidos (Tradução de Donaldson M. Garschagen. 4. ed. São Paulo: Paz e
Terra,2010.
8 No Brasil, um exemplo clássico de literatura destinada a perpetuar a memória desses episódios é o livro: AA.W. Brasil: nunca mais. Prefácio
de Dom Paulo Evaristo Arns. 33. ed. Petropólis:Vozes, 2003. Outro exemplo, desta vez sobre a ditadura do Estado Novo (1937-1945) é 9 REsp 1334097/Rj, ReI. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 28/05/2013, Dje 10/09/2013, e STj. REsp 1.335·153/ Rj,
o livro seguinte: RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. Supervisão e posfácio de Wander Melo Miranda. 44. ed. São Paulo: Record, ReI. ministro Luis Felipe Salomão, 4 a Turma, julgado em 28/05/2013, Dje 10/09/201 3.
2008. Essa função, muita vez, se desempenha por intermédio de obras de ficção, mas que se baseiam em rigorosos eventos históricos, 10 SILVA, Edson Ferreira da. Direitos de personalidade: Os direitos de personalidade são inatos? Revista dos Tribunais, v. 694, p.21, ago. 1993·
como o relativo aos massacres da ditadura de Floriano Peixoto durante a Revolução Federalista: BARRETO, Lima. Tristeftm de Policarpo 11 ARAÚJO, Luiz Alberto David. A prateção constitucional da própria imagem: pessoa física, pessoa jurídica e produto. Belo Horizonte: Del
Quaresma. Introdução de Lilia Moritz Schwarcz. Prefácio de Oliveira Lima. São Paulo: Penguin: Companhia das Letras, 2011. Rey, 1996·P· 37·
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950 - DIREITO AO ESQUECIMENTO E AS SUAS FRONTEIRAS ATUAIS NO BRASil E NA EXPERIÊNCIA ESTRANGEIRA

No ano de 1994, Sidnei Agostinho Beneti escreveu um artigo sobre as relações entre a Constituição e o siste- b) Os dados pessoais, que se tornem públicos, "não devem ser considerados res nullius, isto porque, mesmo
ma penal. Nesse estudo, ele transcreveu excerto de Francisco Rezek, que apontava a existência "de um dos direitos ue a publicidade seja decorrente da.vontade da lei ou do próprio interessado, a este deve ser assegurado o
importantes adquiridos pela sociedade no decorrer dos séculos - que é o direito ao esquecimento dos delitos por direito de voltar a restringir o acesso, a limitá-lo, no tempo ou a determinadas situações, além de fatos super-
17
intermédio da prescrição"12. Embora o artigo não aludisse diretamente ao atual "direito ao esquecimentd', ali se venientes a uma lei poderem levar à mesma necessidade", como defende Ricardo Perlingeiro .
depositava a ideia de que os malfeitos passados não se poderiam dilatar na memória das gentes de modo eterno. c) Haveria um direito ao esquecimento integrante do campo mais vasto dos direitos da personalidade,
Na década seguinte, ao lado da questão relativa à existência do direito ao esquecimento e de sua utilização onexão com a proteção à intimidade e à privacidade. Nesse sentido, Anderson Schreiber defende que "o
ernc . ,." dd
no Direito Penal, o Direito do Consumidor ganha relevância. É a segunda fase a que se aludiu no princípio direito ao esquecimento não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a hIstona ,em ver a e,
desta segunda seção. ele implicaria "a possibilidade de se discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais ~speci~camente o m~do
e a finalidade com quesão lembrados"18. Paulo R. Khouri apresenta uma leitura maiS partIcular, no sentIdo
Têmis Limberger, em 2002, em palestra proferida no 6° Congresso de Direito do Consumidor, tratou do
de que se deve "ponderar caso a caso os valores em jogo e pode ocorrer que o direito ao esquecimento deva
direito à intimidade do cliente de instituição bancária que armazenava suas informações pessoais. Nesse texto,
a autora analisou, de modo lateral, o direito ao esquecimento. As referências teóricas utilizadas encontravam-se ser sacrificado em prol da liberdade de informação"19.
nas doutrinas italiana (Giovanni B. Ferri), norte-americana e espanhola. Para Têmis Limberger, o direito ao d) Outra visão contemporânea está na divisão dos mecanismos de proteção à intimidade em três planos:
esquecimento integraria o âmbito de proteção normativo conferido à intimidade do cliente bancário. Em sua espacial, contextual e temporal. É o caso de Daniel Bucar, que assinala a im~o~tância.d~ ':controle temporal",
leitura, "[o] direito ao esquecimento é o 'derecho aI olvido', presente no direito espanhol. Constitui-se em um cujos fundamentos normativos já se encontrariam, há bastante tempo, no direito ordinano, como os arts. ~3,
aspecto das prestações do direito à intimidade". No Direito brasileiro, para a autora, seu fundamento, em relação parágrafo 1°, do CDC, e 748, CPP. Para esse autor, "~a] tutela de dados passad~s da pessoa, neste pont~, nao
ao consumidor bancário, estava no art. 43, parágrafo 1°, 2 a parte, do Código de Defesa do Consumidor, que significa revisionismo histórico, como bradam os crítICOS do controle temporal ,mas como uma necessIdade
"d . d' . al"20
limitaria a 5 anos o prazo de armazenamento de informações cadastrais. Desse modo, "( ... ) os dados podem social de se adaptar os controles clássicos às necessidades de um tempo d e emocraCla IgIt .
ser guardados por determinado tempo, mas não utilizados eternamente"13. e) Como último desdobramento da visão doutrinária sobre o tema, encontra-se o Enunciado 531 da VI
No ano de 2004, em comentários à Lei de Imprensa 4, Carlos Affonso Pereira de Souza analisou o
l Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, realizada em 2012, cujo verbete está assim redigido:
"interesse público sobre fatos criminosos e seus autores". Nesse item do capítulo dessa obra coletiva, ele ''A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento".
ressaltou que o jornalista, ao cobrir fatos criminosos, deve levar em conta o "direito ao esquecimento", "que Sobre esse enunciado, deve-se ressalvar que é bastante discutível a invocação da dignidade humana para
favorece o condenado, visando a sua melhor ressocialização depois de cumprida a pena que lhe foi imposta". dar suporte ao "direito ao esquecimento", na medida em que, se houver realmente de ser reconhecido, ele e- rr:
Em reforço a sua tese, o autor citou o art.21, parágrafo segundo, da Lei de Imprensa, que vedava a divulgação lhor se fundamentaria na proteção aos direitos da personalidade, que já possuem enquadramento normatIVO
ou a transmissão de fato delituoso cujo autor já tenha sido condenado e cumprido a pena, com a ressalva do ordinário no artigo 11 do Código CiviPl.
interesse público. O suporte fático desse "direito ao esquecimento", todavia, não seria amplo o suficiente para
açambarcar "crimes históricos, como os grandes genocídios", dado que seus autores e as circunstâncias envol- 3. Os JULGADOS DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTiÇA SOBRE O DIREITO AO ESQUECIMENTO
ventes desses delitos "entraram para os anais da história, sendq assim permitido que a liberdade de expressão
se manifeste de forma mais ampla e explore o evento em prol do interesse público"15. 3.1 • CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Como se percebe, na primeira e segunda fases da evolução desse tema na doutrina, radicada nos direitos O STJ, ao examinar o problema do direito ao esquecimento, valeu-se uma técnica muito apreciada pelo
da personalidade, a questão transitava entre o Direito Penal e o Direito do Consumidor, com fortes conexões Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, que é o julgamento simultâneo de dois casos com elementos
com o prazo de armazenamento de dados individuais. descritivos muito similares, mas que conduzem a resultados diferentes, o que permite expor a sutileza da
fundamentação necessária para decidir situações futuras. Por uma interessante coincidência, ambos os recur-
2.3. A TERCEIRA FASE DO DIREITO AO ESQUECIMENTO NA DOUTRINA NACIONAL
A terceira fase do direito ao esquecimento na dogmática brasileira iniciou-se há poucos anos e passou a a qualquer momento" (ALMEIDA FILHO, José Carlos de Araújo. A segurança da informação no p.rocesso eletrônico e a necessidade de
considerar a internefe a difusão de dados pessoais na imprensa, sem os condicionamentos das fases anteriores. regulamentação da privacidade de dados. Revista de Processo, v.32, n. 152, p. 165-180, out. 2007· Item 1). .
PERLlNGEIRO, Ricardo. O livre acesso à informação, as inovações tecnológicas e a publicidade processual. ReVista de Processo, v. 37, n.
Em estudos mais recentes, é possível encontrar as seguintes manifestações dos autores que se dedicaram ao 17
203, p. 149-180, jan. 2012. item 5·
assunto, não necessariamente uniformes: 18 SCHREIBER Anderson. Direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2011. p. 164·
KHOURI, P~ulo R. O direito ao esquecimento na sociedade de informação e o Enunciado 531 da VI Jornada de Direito Civil. Revista de
a) Os atuais contornos do desenvolvimento tecnológico, relativamente aos dados telemáticos e informá- 19
Direito do Consumidor, v. 89, p. 463 e ss., set. 201 3. . . ' .. .
ticos, não permitem o exercício pleno do "direito ao esquecimento"16. 20 BUCAR, Daniel. Controle temporal de dados: o direito ao esquecimento. Civilistica.com, ano 2, n·3, 2013. Dlsponlvel em <http://clVlhstlca.
com/wp-content/uploads/201 3/10/Direito-ao-esquecimento-civilistica.com-a.2.n.3.2012.pdf>. Acesso em 26/11/2013· .
12 BENETI, Sidnei Agostinho. A Constituição e o sistema penal. Revista dos Tribunais, v. 704, p. 296, jun. 1994.
21 Sobre os excessos na utilização da dignidade humana para resolver conflitos jurídicos, consulte-se: JUNQUEI~ ~E A~E"-ED?, AntOniO
13 LlMBERGER, Têmis. As informações armazenadas pela instituição bancária e o direito à intimidade do cliente. Revista de Direito do Con- Junqueira de. Crítica ao personalismo ético da Constituição da República e d~ Códig? Civil: ~m !av~r de uma etlca blOcen~nc~. ReVista
sumidor, n. 43, p. 273-298, jul./set. 2002. Trimestral de Direito Civil: RTDC, v. 35, n. 9, p. 29-41, jul./set. 2008; VILELA, Joao Baptista. Vanaçoes Impopulares sob;e a dlgnldade?a
14 Lei n. 5.25°, de 9 de fevereiro de 1967, posteriormente declarada totalmente não recebida pela Constituição de 1988 pelo Supremo pessoa humana. Superior Tribunal de justiça: doutrina: edição co~emora~iv~, 20. a~os ..Brasília: .STJ, 2009· p. 5~1~581; Titulo REIS, G~bnel
Tribunal Federal (ADPF 130, Relator Min. Carlos Britto, Tribunal Pleno, julgado em 30/04/2009, DJe-208 6-11-2009). Valente dos. Dignidade da pessoa humana e constitucionalizaçao do Direito Civil: ongens e nscos metodol?glcos. ReVista. de DlreI.to.do
15 SOUSA, Carlos Affonso Pereira de. Arts. 49 a 77. In. CRETELLA NETO, José (Coord).Comentários à lei de imprensa: Lei n. 5.25°, de 09.02.1967 Tribunal dejustiça do Estado do Rio dejaneiro, n. 82, p. 92-109, jan./mar. 2010; RC?DR.IGU~SJUNIOR, Ot~VI? ~UIZ. Esta~uto eP.lstemologlco
e alterações interpretadas à luz da Constituição Federal de 1988 eda emenda constitucional n. 36, de 28.05.2002. Rio deJaneiro: Forense, do Direito Civil contemporâneo na tradição de civillaw em face do neoconstltuclonahsmo e dos pnn~lplos. O o.lrelto (LIS??a), v. 143,
2004. item 202.2. p. 43- 66 , 2011; NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: Princípios e regras como diferen~a r:aradoxal do sls:em,a Jundlco. Braslila: Tese de
16 "Se é certo que a mídia convencional (rádio, TV e imprensa escrita) já causa enormes danos à imagem das pessoas, por possíveis matérias Titularidade, 2011; ASCENSÃO, José de Oliveira. O "fundamento do Direito": entre o direito natural e a dignidade da pessoa. ReVista da
de cunho sensacionalista, ainda háa possibilidade das informações se perderem com o tempo e serem relegadas ao esquecimento. Con- Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, v. 52, n. 1/2, p. 29-43 2011.
tudo, na Internet, esta prática não é possível. Os dados ficam, permanentemente, alocados nos servidores e possíveis de serem analisados
95 2 - DIREITO AO ESQUECIMENTO EAS SUAS FRONTEIRAS ATUAIS NO BRASIL ENA EXPERIÊNCIA ESTRANGEIRA OTAVIO LUIZ RODRIGUESJUNIOR - 953

sos - REsp 1334097/RJ (caso 1) e REsp 1.335.153/RJ (caso 2) originaram-se no mesmo tribunal ordinário sociedade e deve ser lembrado por gerações futuras por inúmeras razões. É que a notícia de um delito, o registro de
e envolveram uma rede de televisão do Rio de Janeiro. um acontecimento político, de costumes Jociais ou até mesmo defatos cotidianos (sobre trajes de banho, por exemplo),
Nesta seção, apresentar-se-ão os dois julgados, com seus elementos descritivos e com a resenha de seus quando unidos, constituem um recorte, um retrato de determinado momento e revelam as características de um povo
fundamentos. na época re t rata doa."
7) A lembrança dos crimes passados "pode significar uma análise de como a sociedade - e o próprio ser hu-
3. 2 • O DIREITO AO ESQUECIMENTO NA CHACINA DA CANDELÁRIA (REsp 13340 97/ RJ, mano - evolui ou regride, especialmente no que concerne ao respeito por valores éticos e humanos, assim também qual
REL. MINISTRO lUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, JULGADO EM 28/05/201 3, foi a resposta dos aparelhos judiciais ao fato, revelando, de certo modo, para onde está caminhando a humanidade e
DJE 10/09/2013) a criminologia".
O relatório do REsp 1334097/RJ informa que um cidadão foi indiciado como "coautov'partícipe da se- 8) Não se pode negar às gerações futuras o direito de conhecer seu passado e o histórico de delitos como
quência de homicídios ocorridos em 23 de julho de 1993, na cidade do Rio de Janeiro, conhecidos como Chacina a Chacina da Candelária, a Chacina do Carandiru, o Massacre de Realengo e os homicídios de Doroty Stang,
da Candelária, mas que, ao final, submetido a Júri, foi absolvido por negativa de autoria pela unanimidade Galdino Jesus dos Santos (Índio Galdino-Pataxó), Chico Mendes, Zuzu Angel, Honestino Guimarães e
dos membros do Conselho de Sentençà'. Mesmo com a absolvição, no ano de 2006, repórteres do programa Vladimir Herzog. Há também a utilidade de se "perpetuar no imaginário de todos" as "tragédias particula-
Linha Direta-Justiça, da TV Globo, procuraram-no para entrevistá-lo sobre esses trágicos acontecimentos22. res", como "forma de reivindicação por mudanças do sistema criminal, fazendo de suas feridas uma bandeira, como
A matéria referiu-se ao mencionado cidadão, informando que ele havia sido um dos envolvidos na foi o caso da biifarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, importante personagem das reformas legislativas
Chacina da Candelária, embora noticiasse sua absolvição. concernentes à punição e prevenção da histórica violência doméstica efamiliar contra a mulher, cuja luta contribuiu
para a edição da Lei 11.3402006 (Lei Maria da Penha)".
A difusão do programa teria reaberto feridas e exposto essa pessoa ao ódio das pessoas de sua comuni-
dade. Ele fora associado à imagem de um autor de chacina. Por essa razão, ele foi obrigado a vender seus bens, 9) É possível distinguir entre crimes históricos e criminosos famosos, de um lado, e, de outro, "crimes
perdeu emprego e não mais conseguiu se recolocar no mercado de trabalho. Como se não bastasse, mudou e criminosos que se tornaram artificialmente históTicos efomosos, obra da exploração midiática exacerbada e de um
de domicílio, a fim de evitar a morte pelas mãos de justiceiros e traficantes. Essá situação levou o cidadão a populismo penal satisjàtivo dos prazeres primários das multidões, que simplifica ofenômeno cTiminal às estigmatizadas
mover uma ordinária, com pedido de reparação moral, contra a TV Globo. figuras do 'bandido' vs. 'cidadão de bem"'.

Em primeiro grau, julgaram-se improcedentes os pedidos do autor. No Tribunal de Justiça do Rio de 10) Faz-se necessário, ainda, destacar a tese de Simone Schreiber, na qual se explicitou a existência de uma
Janeiro, manteve-se a condenação da TV Globo. "lógica empresarial da fabricação de notícia" e da ''constTUção da verdade jornalística", com abusos nesse processo,
A matéria foi levada ao STJ em especial recurso, além do extraordinário interposto. que terminam criar mitos em torno de crimes que abalaram a opinião pública.

O relator, ministro Luís Felipe Salomão, apresentou voto com os seguintes fundamentos: 11) Especificamente sobre a existência de um direito ao esquecimento no ordenamento brasileiro, o
relator ministro Luís Felipe Salomão citou os precedentes norte-americanos e alemães, respectivamente, dos
1) Os precedentes do STJ sobre a violação dos direitos da personálidade em caso de matérias injuriosas
casos "Melvin vs. Reid" (1931) e "Lebach". O relator entendeu que "assim como é acolhido no direito estrangei-
ou difamatórias deram-se no contexto de notícias sobre fatos contemporâneos às edições jornalísticas.
ro, não tenho dúvida da aplicabilidade do direito ao esquecimento no cenário interno, com olhos centrados não só na
2) O caso dos autos apresenta a particularidade de trazer ao Poder Judiciário o elemento da "ausência de principiologia decorrente dos direitos fundamentais e.rfa _dignidade da pessoa humana, mas também diretamente no
contemporaneidade da notícia".
diTeito positivo infraconstitucional'.
3) A questão do direito ao esquecimento já foi objeto do Enunciado 531, da VI Jornada de Direito Civil, 12) Na jurisprudência do STJ, é pacífica a tese do cancelamento dos dados criminais na folha de ante-
que o reconheceu e lhe atribuiu como fundamento a dignidade humana. cedentes, após a absolvição ou cumprimento das penas, com base no art. 748 do CPP. Essa orientação é um
4) "A União Europeia, depois de mais de quinze anos da adoção da Diretiva 4&'1995/CE (relativa à proteção símbolo da "evolução cultural da sociedade" e ''confere concretude a um ordenamento jurídico que, entre a memória
das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação da informação), que - que é a conexão do presente com o passado - e a esperança - que é o vínculo do futuro com o pTesente -, fez clara
foi seguida pela Diretiva 2002/581CE (concernente à privacidade e às comunicações eletrônicas), acendeu, uma vez oPção pela segunda".
mais, o debate acerca da perenização de informações pessoais em poder de terceiros, assim como o possível controle de 13) No caso específico dos autos, a Chacina da Candelária converteu-se em um símbolo histórico, cuja
seu uso - sobretudo na internet. "
divulgação é lícita, no entanto, "nem a liberdade de imprensa saia tolhida nem a honra do autor saia maculada, caso
5) No entanto, "o cenário protetivo da atividade informativa que atualmente é extraído diretamente da se ocultassem o nome e afisionomia do recoTTido, ponderação de valoTes que, no caso, seria a melhor solução ao conflito".
Constituição converge para a liberdade de exPressão, da atividade intelectual, artística, cientifica e de comunicação, 14) Mesmo com o reconhecimento, nos graus ordinários, de que a "reportagem mostrou-se fidedigna
independentemente de censura ou licença' (artigo 5°, inciso IX), mas também para a inviolabilidade da 'intimidade, com a reálidade", deve-se admitir que "a receptividade do homem médio brasileiro a noticiários dessejaez é apta a
vida privada, honra e imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente Teacenda a desco1ifiança geral acena da índole do autor, o qual, certamente, não teve reforçada sua imagem de ino-
de sua violação' (artigo 5°, inciso X)".
centado, mas sim a de indiciado". De tal sorte, "permitir nova veiculação do fato, com a indicação precisa do nome e
6) Sendo certo que "a história da sociedade é patrimônio imaterial do povo e nela se inserem os mais variados imagem do autor, significaria a permissão de uma segunda ofensa à sua dignidade, só porque a primeira já ocorrera
acontecimentos e personagens capazes de revelar, para ofuturo, os traços políticos, sociais ou culturais de determina- no passado, uma vez que, como bem reconheceu o acórdão recorrido, além do crime em si, o inquérito policial consubs-
da época". Por tal efeito, um crime, "como qualquer foto social, pode entrar para os arquivos da história de uma tanciou uma reconhecida 'veTgonha' nacional à paTte".

22 Os excertos do relatório e do voto estão entre aspas.


954 - DIREITO AO ESQUECIMENTO E AS SUAS FRONTEIRAS ATUAIS NO BRASIL E NA EXPERIÊNCIA ESTRANGEIRA
OTAVIO LUIZ RODRIGUES JUNIOR - 955

A decisão colegiada, que foi unânime, teve duas importantes consequências: a) reconheceu a existência c) No entanto, "( ... ) o direito ao esquecimento que ora se reconhece para todos, ofensor e ofendidos,
do direito ao esquecimento no Brasil; b) no caso concreto, definiu que houve excesso na divulgação dos fatos, não alcança o caso dos autos, em que. se reviveu, décadas depois do crime, acontecimento .que entrou para o
deixando o autor da ação em condições de vulnerabilidade no que se relaciona à esfera de proteção de seus domínio público, de modo que se tornaria impraticável a atividade da imprensa para o deSIderato de retratar
direitos personalíssimos. o casO Aída Curi, sem Aída Curi".
d) É possível realizar "caso a caso" o exercício da ponderação sobre se determinado crime "tornou-se
3.3. O DIREITO AO ESQUECIMENTO NO CASO AíDA CURI (STJ. REsp 1.335.153/RJ, histórico", assim pode "o julgador reconhecer que, desde sempre, o que houve foi uma exacerbada ex~loração
REl. MINISTRO lUIS FELIPE SALOMÃO, 4 a TURMA, JULGADO EM 28/05/2013, midiática, e permitir novamente essa exploração significaria conformar-se com um segundo abuso so porque
OJE 10/09/2013) o primeiro já ocorrera".
N a mesma sessão de 28.5.2013, a Qyarta Turma do STJ apreciou também o REsp 1335153/RJ, relativo e) No Caso Aída Curi, todavia, "não ficou reconhecida essa artificiosidade ou o abuso antecedente na
a um célebre caso criminal da segunda metade do século XX, que envolveu a senhora Aída Curi23 . O ministro cobertura do crime, inserindo-se, portanto, nas exceções decorrentes da ampla publicidade a que podem se
Luís Felipe Salomão foi o relator também desse segundo caso. Diferentemente do REsp 1335153/RJ (Chacina sujeitar alguns delitos".
da Candelária), neste julgamento houve votos dissidentes dos ministros Maria Isabel Gallotti e Marco Buzzi. f) O relator também defendeu que "( ... ) o reconhecimento, em tese, de um direito de esquecimento não
Passe-se aos elementos descritivos e, depois, à síntese dos fundamentos dos votos condutor e divergentes. conduz necessariamente ao dever de indenizar".
Em 1958, AídaJ acob Curi, uma jovem de 18 anos, foi vítima de violência sexual e jogada da cobertura de g) A passagem do tempo, em relação a familiares de vítimas de crimes relevantes em ter~os soci~s ou
um prédio da Avenida Atlântica, em Copacabana, no Rio de Janeiro. Dois dos acusad~s (Ronaldo Guilherme históricos, opera um efeito inversamente proporcional: "( ... ) na medida em que o tempo passa e VaI se ad~u~nndo
de Souza Castro e Antônio João de Sousa) foram absolvidos do crime de homicídio, e:nbora tenham recebido um 'direito ao esquecimento', na contramão, a dor vai diminuindo, de modo que, relembrar o fato traglCo ~~
condenações pelos delitos sexuais. Havia um menor (Cássio Murilo Ferreira), o qual foi considerado como vida, a depender do tempo transcorrido, embora possa gerar desconforto, não causa o mesmo abalo de antes .
único responsável pela morte de Aída Curi, mas, evidentemente, não foi alcançado pela extensão da pena, h) A reportagem foi transmitida 50 anos após a ocorrência do homicídio de Aída Curi, o que, para o
dada sua condição de incapaz. relator, negaria a existência de "abalo moral".
Esse crime trágico chocou a sociedade brasileira do final da década de 1950, seja por sua violência, seja i) De acordo com o voto condutor, deve ser afastada a tese do uso indevido da imagem de Aída Curi,
pelo componente social: os réus não receberam as punições que o clamor público esperava, sendo que, um cujo fundamento seria a Súmula STJ 403 24 • Os acórdãos que deram origem a esse enunciando ora "diziam
deles, era de uma família abastada, o que suscitou a velha suspeita de um julgamento à brasileira de réus ricos. respeito a uso degradante ou desrespeitoso da imagem", ora relacionavam-se "ao uso comercial, geralmente,
A falecida jovem é hoje nome de rua em diversas cidades do estado do Rio de Janeiro. no último caso, com exploração direta da imagem e da notoriedade do retratado".
A natureza célebre desse crime fez com que ele fosse explorado na televisão, por meio do programa Baseando-se nas premissas fixadas nas instâncias ordinárias, o relator concluiu que não houve degradação
Linha Direta Justiça, o que levou os únicos irmãos vivos de Aída J acob Curi a promover uma ação ordinária da imagem ou tratamento desrespeitoso da memória dayítima. O trabalho jornalístico simple~mente. repro-
contra a TV Globo Ltda. (Globo Comunicações e Participações S.A.), com pedido de reparação de danos duziu os acontecimentos da época, com a máxima fidelidade, inclusive ressaltando o recato, a mgenmdade e
materiais e morais. a formação religiosa de Aída Curi.
Segundo os autores, a divulgação do crime, década depois de sua ocorrência, reavivou a memória dos No caso 2, houve duas importantes divergências.
fatos, reabriu feridas emocionais e terminou por dar margem à exploração econômica, em favor da emissora,
A dissidência foi inaugurada com o voto da ministra Maria Isabel Gallotti. Em seu voto-vencido, ela
da dor e do sofrimento da família Curi.
observou um aspecto de grande relevo teórico: a relação entre o "direito ao esquecimento" e a noção de uma
Em primeiro grau, os autores tiveram suas pretensões indeferidas. O Tribunal de Justiça do Estado do "censura privada", o que, na espécie não se teria dado, até em razão de que a matéria jornalística foi levada ao
Rio de Janeiro manteve a sentença, ao considerar que "os fatos expostos no programa eram do conhecimento ar. Desse modo, aos interessados só restaria o direito a eventual pretensão ressarcitória.
público e, no passado, foram amplamente divulgados pela imprensa. A matéria foi discutida e noticiada ao
A ministra Maria Isabel Gallotti considerou que, no caso 2, não se questionava "o dever de veracidade
longo dos últimos cinquenta anos, inclusive, nos meios acadêmicos".
da imprensa, mas, sim, o direito à imagem do morto e seus familiares, que viveram os fatos e foram, inclusive,
Os fundamentos do voto-condutor do acórdão do STJ são idênticos a diversos dos utilizados no REsp retratados ao lado do corpo". Como não houve autorização prévia da família, com fundamento no art. 20 do
1.334.097/RJ (caso 1), que reconheceu a existência de um direito ao esquecimento no ordenamento jurídico. Código Civil, e sim recusa expressa, ter-se-ia que a emissora violou essa norma. Como ar~mento de re~orço
Para fins desta resenha, utilizar-se-ão apenas os que interessam especificamente à rejeição desse direito no estaria a obtenção, pela emissora, de lucros com o programa, o que se evidencia pela finalidade comerCIal da
caso dos autos: exposição da imagem de Aída Curi.
a) Os fatos que foram objeto da reportagem, numa clara diferença em relação a outros trazidos ao co- Ademais, "( ... ) a circunstância de ser exibida a foto da vítima, morta, ensanguentada e abraçada com um
nhecimento do ST], timbram-se pela particularidade de não serem contemporâneos à matéria jornalística. dos autores contra a vontade expressamente manifestada por esse autor, faz incidir a regra do art. 20, parte
b) Um programa jornalístico, como o Linha Direta, é pautado pela manipulação do resultado das inves- final, quando dispõe que, se for uma imagem destinada a fim comercial, ela não será exibida sem autorização".
tigações policiais e dos julgamentos. Muita vez, confunde-se o público com reconstituições e simulações de Em razão disso e de outros aspectos, a ministra entendeu ser aplicável à espécie a Súmula STJ 403.
acontecimentos reais.

"Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comer-
23 Os excertos do relatório e do voto estão entre aspas. ciais."
956 - DIREITO AO ESQUECIMENTO E AS SUAS FRONTEIRAS ATUAIS NO BRASIL E NA EXPERIÊNCIA ESTRANGEIRA
OTAVIO LUIZ RODRIGUES JUNIOR - 957

o segundo voto dissidente foi do ministro Marco Buzzi, que seguiu a linha defendida pela ministra um documentário e sua produção apresentaria o caso de modo objetivo e factual. Em grau de recurso, o Tribunal
Maria Isabel Gallotti, porquanto o "dever de informar" não corresponderia "a uma autorização de explorar Superior de Koblenz/° manteve a decisãQ. Nesse segundo acórdão,foram men~onados os f~o:os §22 e 23 da Lei
economicamente um fato de há muito sucedido, que não envolveu pessoas notórias (... )". Não haveria no caso relativa aos Direitos Autorais sobre Belas Artes e Fotografias (KWG), que eX1gem a autonzaçao da pessoa quan-
2 qualquer "interesse público ou histórico" e sua exploração em um programa televisivo seria uma violação do se for utilizar sua imagem, porém, torna esse placet dispensável em algumas hipóteses, quando a circunstância
31
do direito ao esquecimento. histórica do evento prevalecer sobre a proteção da personalidade em sentido estrit0 •
As divergências no caso 2 serviram para conectar o tema do direito ao esquecimento com o problema da Essas decisões foram rejeitadas pelo Tribunal Constitucional Federal. O acórdão do Bundesver-
constitucionalidade do art. 20 do Código Civil, que está em debate no Supremo Tribunal Federal25 • Recordar, fassungsgericht definiu que a liberdade comunicativa das empresas de radiodifusão compreenderia a escolha
divulgar, exibir ou divulgar fatos passados sobre a vida de pessoas, anônimas ou não, sob o fundamento Jsobre (a) o conteúdo; (b) a forma e o (c) tipo de programa a ser levado ao público. Se houver conflito entre
histórico, cultural, antropológico ou sociológico está em forte conexão com a tese de que essa liberdade de essa liberdade, nesses diferentes aspectos, e outros bens jurídicos, é possível que seja necessário o recurso à
pesquisa ou de comunicação não poderia ser controlada ex ante. Esse impedimento fundar-se-ia na vedação ponderação. No caso Lebach-l, existia conflito das lib~rdade~ c~municativa~ com o direito a~ li-:re desenv~l~­
ao cerceamento das "liberdades comunicativas" (terminologia genérica tão ao gosto da literatura alemã) ou, mento da personalidade, embora não se pudesse defimr, a przorz, a supremaC1a de um desses dueltos em colisao.
como tem defendido Joaquim Falcão, na "liberdade de investigação científica". Se a informação de um crime corresponder a seu momento de ocorrência (atualidade dos fatos), preva-
lecerá a liberdade comunicativa sobre a proteção à personalidade. No entanto, se a informação assumir con-
4. DIREITO AO ESQUECIMENTO E A EXPERIÊNCIA DO DIREITO ESTRANGEIRO tornos temporais diversos e não for contemporânea (divulgação de fatos antigos), é possível que a liberdade
comunicativa possa ser restringida, se causar dano considerável e inovado (ou mesmo adicional) à pessoa do
4.1. O DIREITO AO ESQUECIMENTO EM JULGADOS NA LíNGUA ALEMÃ envolvido, de modo especial se isso prejudicar sua ressocialização.

4.1.1. O CASO IRNIGER 4.1.3. O CASO lEBACH-2

No Direito alemão, não há uma regra específica que assegure o direito ao esquecimento, embora se en- O Caso Lebach-l é bastante conhecido no Brasil e já foi citado em dois importantes julgados do Supremo
contrem disposições sobre a proteção de dados, especialmente os ligados aos antecedentes criminais. Tribunal Federal32 , além de ser mencionado em alguns textos da doutrina brasileira33 •
Um exemplo dessa correlação entre esquecimento e condutas criminosas foi objeto de um célebre julga- Há, no entanto, um Caso Lebach-2, de 1999, que é uma espécie de revisitação do problema do direito ao
mento na Suíça, conhecido como Caso Irniger e que teve reflexos na Alemanha, como anota Bruno Glaus 26 • esquecimento, mas com resultados bem diferentes 34 •
que pode ser assim resumido: Paul Irniger foi um criminoso suíço e passou à História como o penúltimo Em 1996, uma televisão alemã produziu uma série sobre crimes que entraram para a História. O delito
homem a ser condenado à pena de morte na Confederação Helvética, o que se deu em 25 de agosto de 1939, ocorrido no arsenal militar de Lebach, com o assassínio dos quatro militares da Bundesweh~5 seria objeto
quando ele foi guilhotinado. Em 1983, um documentário de uma empresa de radiodifusão suíça sobre Paul de um desses programas. Diferentemente do que ocorreu na década de 1970, com o programa da ZDF, os
Irniger foi proibido, em razão de ação movida por seu filho, sob fundamento de que a difusão desse conteúdo produtores da SAT 1 (canal responsável pela série intitulada Verbrechen, die Geschichte machten) mudaram os
geraria danos à privacidade dos parentes do criminos02 ? Veja-se que esse resultado é diametralmente oposto nomes de algumas das pessoas envolvidas e suas imagens não foram exibidas. Além disso, havia comentários
às conclusões do voto-condutor no REsp 1.335.153/RJ (caso Aída Curi). explicativos do ex-chefe de Polícia de Munique.
4.1.2. O CASO lEBACH 1 Uma vez mais, houve contestação da "liberdade comunicativà' da emissora de televisão pelos envolvidos
no crime de Lebach, com argumentos muito similares aos utilizados no Caso Lebach-l.
Outro caso relativo ao conflito entre as "liberdades comunicativas" e a preservação da esfera íntima é o
Lebach-Urteil, de 1973, que foi mencionado nos fundamentos do voto-condutor dos 2 julgados do STJ sobre O Tribunal Constitucional Federal, ao decidir a controvérsia, valeu-se dos seguintes fundamentos:
o direito ao esqueciment028 • Em Lebach, um pequeno distrito do Sarre,houve o assassínio de quatro militares 1) A "liberdade de radiodifusão"36 é assegurada, mas não sem reservas. Cabe aos tribunais, na hipótese
alemães, que guarneciam um arsenal. Os responsáveis pela morte dos soldados pretendiam-se apropriar das de colisão com outros direitos, resolver o caso, tendo em conta o art. 5°, Absatz 2° da Lei Fundamental, além
armas e munições. Eles foram presos posteriormente e condenados a penas diversas. O famoso canal de tele- das normas ordinárias. Sendo certo que a atuação do Tribunal Constitucional, em matéria civil, deve ocorrer
visão alemã ZDF (Zweites Deutsches Fernsehen), poucos anos depois do episódio, produziu um documentário somente se houver violação total aos direitos fundamentais e em caráter de reserva.
sobre o delito, abordando sua preparação, seu planejamento e sua execução pelos envolvidos. Um deles, no
entanto, ingressou em juízo pedindo a não exibição do programa, especialmente porque isso ocorreria muito 30 Oberlandesgericht Koblenz.
proximamente a sua liberação da prisão. 31 Sobre essa importante lei, conferir: MIRANDA, Jorge; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; FRUET, Gustavo Bonato. Principais problem~s
dos direitos da personalidade e estado-da-arte da matéria no direito comparado. In: MIRANDA, Jorge; RODRIGUES JUNIOR, OtavIo
O Tribunal Regional da Mogúncia29 negou o pedido do autor da ação. O fundamento do acórdão estava em Luiz; FRUET, Gustavo Bonato. (Org.). Direitas da Personalidade. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2012, v. 1, p.1-24·
STF. ADPF 13 0 , Relator Min. Carlos Britto, Tribunal Pleno, julgado em 30/04/2009, DJe 6-11-2009; STF; STF. MS 24832 MC, Relator Min.
que o requerente era uma personagem envolvida em fatos históricos e não se poderia escudar na proteção aos di- 32
Cezar Peluso, Tribunal Pleno, julgado em 18/03/2004, DJ 18-08-2006.
reitos da personalidade para impedir a difusão de fatos assim caracterizados. Ademais, o programa de televisão era 33 MENDES, Gilmar Ferreira. Colisão de direitos fundamentais: liberdade de expressão e de comunicação e direito à honra e à imagem.
Revista de Informação Legislativa, v. 31, n. 122, p. 297-301, abr./jun. 1994; BARROSO, Luís Roberto. Colisã~ e~tre I~b.erdade ~e expressão e
25 STF. AD14815, relatora ministra Carmen Lucia, pendente de julgamento. direitos da personalidade: critérios de ponderação: interpretação constitucionalmente adequad.a do Codlgo Civil e_ da Lei de Imp~ensa.
26 GIAUS, Bruno. Das Recht aufVergessen und das Recht auf Korrekte Erinnerung. Untersuchngen und Meinungen/Etudes & réflexions. Media Revista de Direita Administrativa, n. 235, p. 1-36, jan./mar. 2004; MIRAGEM, Bruno. Liberdade de Imprensa e proteçao da personalidade
Lex, Heft 4, S. 79-90, 2004. no direito brasileiro: perspectiva atual e visão de futuro. Revista Trimestral de Direito Civil: RTDC, v. 10, n. 40, p. 17-69, out./dez. 2009·
27 BGE 10911353 - Paullmiger. 34 BVerfG,l BvR 348/98 vom 25.11.1999, Absatz-Nr. (1 - 45)·
28 BVerfGE 35, 202 - Lebach. 35 Literalmente, Defesa Federal, o equivalente nacional às Forças Armadas.
29 Landgericht Mainz. 36 Tradução para Rundfunlifreiheit.
958 - DIREITO AO ESQUECIMENTO E AS SUAS FRONTEIRAS ATUAIS NO BRASIL E NA EXPERIÊNCIA ESTRANGEIRA
OTAVIO LUIZ RODRIGUES JUNIOR - 959

2) O direito geral da personalidade3? é protetivo dos indivíduos em face de circunstâncias como as Na União Europeia, no entanto, tem sido amplamente noticiada a elaboração de um projeto de diretiva
representações da pessoa, que distorçam ou desfigurem sua imagem em público, de modo a impedir o livre que contemple, de entre outras matéJ;ias, o direito ao esquecimento, sob impulso da luxemburguesa Viviane
desenvolvimento da personalidade, o que se revela de modo evidente quando há sério risco de estigmatização. Reding, atual comissária europeia para a Justiça, Direitos Fundamentais e Cidadania42 • Com isso, o art. 17
Outra hipótese de ofensa a esse direito fundamental dá-se quando essas representações ameaçam, de modo da Diretiva 95/46/CE, mais conhec,da como Diretiva de Proteção de Dados (em inglês, Data Protection
efetivo, a reintegração dos delinquentes à sociedade, desde que esses hajam cumprido suas penas. Directive) passaria a contemplar o "direito a ser esquecido", em uma tradução mais fiel à expressão inglesa
3) No Caso Lebach-l, o Tribunal Constitucional preservou o direito geral da personalidade porque ali havia "right to be forgotten".
uma lesão capaz de associar, de modo permanente, o indivíduo a uma condição de agente criminoso. Tratou-se, Há diversas versões desse novo texto, com ou sem emendas, o que pode causar alguma confusão em
portanto, de uma questão de intensidade do ato que interferiu no direito ao desenvolvimento da personalidade. Nos seu estudo. As críticas a essa proposta de nova redação ao art. 17 da DPD fizeram com que fosse adiado
termos do acórdão, é de se recordar que o mero fato de ter cumprido a pena de prisão não significa que o criminoso para 2015 o processo de alteração da diretiva. O texto, em uma de suas últimas versões, não mais contempla
adquiriu o "direito a ser deixado em paz" (ou, mais literalmente, "direito a ser deixado SÓ")38. apenas o "direito a ser esquecido", mas o direito a apagar ("right to erasure") ou a retificar os dados ("right to
4) A intensidade da violação ao direito fundamental dos criminosos, no Caso Lebach-l, era sensível rectification"), este último em um novo art. 16 da DPD.
porquanto o programa de televisão da ZDF conferira um caráter sensacionalista ao fato, com a exposição do A última versão consolidada (e não oficial) do projeto de reforma, datada de 22 de outubro de 2013,
nome e de fotografias dos envolvidos. A veiculação do documentário, à época, prejudicaria e muito a resso- está disponível na internet43 • Em resumo, se aprovada a diretiva, uma pessoa terá direito a: a) exigir que se-
cialização dos condenados. jam retificados seus dados, quando imprecisos, e de complementá-los, quando insuficientes; b) demandar o
5) No programa da SAT 1, no entanto, é inadequado encontrar tal nível de interferência no direito ao de- apagamento de seus dados, em diversas hipóteses, como: i) os dados não são mais necessários aos fins para
senvolvimento da personalidade dos autores da reclamação constitucional. Passaram-se 30 anos da ocorrência do os quais foram recolhidos ou processados; ü) o interessado não mais consentiu com sua permanência, bem
crime (de 1969; o acórdão de Lebach-2 é de 1999) e os riscos para a ressocialização foram bastante minorados. assim quando expirou o tempo de manutenção no ar; iii) os dados foram tratados de maneira ilícita; iv) houve
determinação para sua retirada, com base nas normas europeias. Ademais, caberia a uma autoridade europeia
6) O Tribunal Constitucional Federal anotou ainda que, com base no direito à radiodifusão, a proibição
de supervisão da proteção de dados emitir orientações ou derrogações às regras sobre o "direito de apagar",
de um programa é sempre uma forte violação ao direito fundamental.
podendo, sempre que necessário, consultar representantes da imprensa, autores, artistas e organizações da
Conclusivamente, o acórdão Lebach-2 rejeitou a tese da ofensa ao direito fundamental dos reclamantes,
sociedade civil.
chegando a resultado oposto ao do acórdão Lebach-l.
No âmbito europeu, o "direito a ser esquecido" também foi objeto de impugnação no Tribunal de Justiça
4.1.4. O CASO DO JOGADOR E DA DOMINATRIX da União Europeia. O caso, que já se notabilizou, é o C-131/12 (Google Spain v.Agencia Espanola de Protección
Em 2009, no julgamento de outra reclamação constitucional39 , outra vez o problema da difusão de de Datos), o qual tem os seguintes elementos descritivos: a) em 1998, um periódico em Espanha publicou uma
informações desabonadoras sobre uma pessoa foi discutido. Um ex-jogador de futebol foi condenado pelo notícia sobre uma execução de dívida previdenciária; b) o devedor, no ano de 2009, descobriu a notícia no
Tribunal de Colônia40 , em 2008, a uma pena de 3 anos e 6 meses pela prática de delitos sexuais (estupro). ar, a despeito de haver pagado a dívida; c) ele requereu ao jornal que retificasse a informação, no que não foi
atendido; d) em seguida, o devedor pediu diretamente a Google Espanha que o fizesse e também apresentou
Uma empresa de telemedia, titular de um portal da internet, noticiou o fato e as condenações, divulgando
representação à Agência Espanhola de Proteção de Dados (AEPD); e) a AEPD solicitou que Google Espanha
o nome do atleta, sua passagem pelo futebol e a menção ao uso permanente dos serviços de uma prostituta
aditasse a informação do devedor, o que não foi feito; f) a empresa Google requereu à Audiência Nacional
dominatrix. O jogador pediu liminarmente nos tribunais ordinários a suspensão da divulgação desses fatos
de Espanha, que remeteu o caso ao Tribunal de Justiça da União Europeia.
pelo veículo de mídia digital. A decisão do Oberlandesgericht München 41 foi desfavorável ao atleta.
O procurador-geral do Tribunal de Justiça Niilo Jaaskinen ofereceu um parecer, em junho de 2013, no
O Tribunal Constitucional Federal, em seus fundamentos, declarou que o OL München fez uma adequada
qual examinou a vinculação dos motores de busca (como é o caso do Google) ao "direito a ser esquecido".
ponderação entre os interesses constitucionalmente protegidos, posto que esses se apresentassem em colisão
Para além de outros fundamentos, J aaskinen defendeu que as atuais normas europeias não estabelecem um
direta. Segundo os juízes constitucionais, a proteção das expressões da sexualidade humana ocupa uma zona
direito geral a ser esquecido. Essa prerrogativa não pode ser invocada, com base na diretiva europeia, contra
central na proteção à vida privada, não interessando a terceiros o que o indivíduo faz ou deixa de fazer nesse
os motores de busca. O direito de retificar, apagar ou bloquear dados deve ser exercido em estrita conformi-
âmbito. No entanto, a cobertura jornalística de um fato verídico e criminoso, ainda que na esfera das relações
dade com as normas vigentes, mas, considerados os elementos descritivos do recurso oriundo de Espanha,
sexuais, mesmo que sem uma sentença definitiva, não pode ser obstada sob o fundamento da preservação da
não parece ser esse o caos 44 •
vida privada. Ressaltou-se, ainda, que a cobertura foi permanente e não tópica ou após a conclusão do processo.
Note-se que o precedente do Caso Lebach-l foi expressamente afastado.
6. CONCLUSÕES
5. O "DIREITO AO ESQUECIMENTO" E O ESTADO-DA-ARTE DA MATÉRIA NA UNIÃO EUROPEIA O debate sobre o direito ao esquecimento é tão importante e ainda confuso por efeito da irregularidade
terminológica que o cerca. Veja-se que em inglês (right to beforgotten) ou em alemão (Recht aufVergessenwerden
Se a experiência alemã tem-se revelado de interesse para o estudo do direito ao esquecimento, isso se dá
ou, diferentemente, Recht aufVergessen) não há correspondência exata com o que se usa no Brasil.
em larga medida no plano jurisprudencial.
42 Vide informações em: <http://techcru nch.com/2013/01/08/ european-parliament-d raft-reports-back-ecs-data-protecti on-reform-rei nC
37 Referido no acórdão como" allgemeine Persónlichkeitsrecht". forcing-the-right-to-be-forgotten/>. Acesso em 19 de dezembro de 2013·
38 "A expressão alemã é" allein gelassen zu werden". Disponível em: <http://www.janalbrecht.eu/fileadmin/ material/Doku mente/D PR-Regulation-inofficial-consolidated-LI BE.pdf>. Acesso
43
39 BVerfG,1 BvR 1107/09 vom 10.6.2009, Absatz-Nr. (1- 32). em 19 de dezembro de 2013.
40 Landgericht Kóln, referido pela sigla LG Kiiln. Um resumo do parecer foi divulgado pelo serviço de imprensa do Tribunal de Justiça da União Europeia e pode ser lido aqui: <http://
44
41 OLMünchen, o tribunal superior regional de Munique. curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2013-06/cp130077en.pdf>. Acesso em 20 de dezembro de 2013·
960 - DIREITO AO ESQUECIMENTO E AS SUAS FRONTEIRAS ATUAIS NO BRASIL E NA EXPERIÊNCIA ESTRANGEIRA CELSO ANTONIO PACHECO FIORILLO E RENATA MARQUES FERREIRA - 961

Essa relevância do debate é ainda maior em um país como o Brasil, com instituições jurídicas-políticas SOCIEDADE DA INfORMAÇÃO E A NECESSIDADE DE UMA NOVA INTERPRETAÇÃO
ainda frágeis, a despeito dos 25 anos da Constituição e dos quase 30 anos da redemocratização. O papel da
imprensa de informar é uma das últimas fronteiras da chamada accountability, que se torna mais saliente em JURíDICA PARA A GESTÃO INTEGRADA, BEM COMO GERENCIAMENTO DO liXO
um cenário de enfraquecimento econômico da mídia e de esgotamento ideológico das forças de oposição aos TECNOLÓGICO: A POLíTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓUDOS (lEI 12.30S/10)
governos estabelecidos (em todos os níveis da federação). Ao mesmo tempo, com a internet, a possibilidade do
uso das "liberdades comunicativas" para a prática de verdadeiras políticas de extermínio moral dos indivíduos
q tf
Celso Antonio Fiorillo
foi enormemente amplificada. E esse cuidado faz com que se tragam à luz do solos problemas daí decorrentes.
Renata Marques Ferreira
Outro ponto que necessita ser coerentemente observado está na identificação de fundamentos jurídicos
relativos ao direito ao esquecimento e o debate sobre a constitucionalidade do art. 20 do Código Civil, atual-
mente em curso no Supremo Tribunal Federal. Essa aproximação conceitual está implícita nos votos vencidos Já tivemos oportunidade de aduzir em face de pesquisa realizada1 que uma das pessoas mais articuladas a
do julgamento do REsp 1.335.153/R], quando se mencionou a possibilidade de se restringir ex ante as publi- tratar a denominada "sociedade da informação" teria sido um jovem norte-americano, Marc Porat que publicou
cações, filmagens ou os escritos que afetassem a imagem de um indivíduo ou sua memória, hipótese última um artigo em 1977 denominado, em sua primeira forma, "Implicações globais na sociedade da informação". O
que permitiria a incidência do parágrafo único do art. 20. Observado o famoso Caso Lebach-l, se comparado texto havia sido encomendado pela Agencia de Informação dos Estados Unidos sendo certo que a expressão
o documentário da ZDF a um livro biográfico sobre os assassinos dos soldados alemães, estar-se-ia diante de já havia passado para a linguagem usual durante a década de 1960; na época, também a palavra "informação"
uma hipótese de controle prévio da "liberdade de radiodifusão". Esse raciocínio pode ser também ampliado já havia sido incorporada à expressão "tecnologia da informação"(TI)2, primeiramente usada nos círculos
para um espaço no qual há uma "enciclopédia on line de biografias", que é a Wikipedia, na qual diariamente administrativos e na "teoria da informação" da matemática.
são travados pesados combates entre seus colaboradores em relação à veracidade ou à adequação de dados "O verbo medieval 'enforme, informe', emprestado do francês conforme explicam Briggs e Burke," sig-
informativos (ou biográficos) de vivos e mortos. As soluções, ao estilo Caso Lebach-l, e as que preservariam nificava dar forma ou modelar", e a nova expressão "sociedade da informação" dava forma ou modelava um
a ampla liberdade comunicativa, podem ser coerentemente compatibilizadas? conjunto de aspectos relacionados à comunicação -conhecimento,notícias,literatura,entretenimento - todos
Finalmente, é de ser considerada a dificuldade extrema em se distinguir entre os elementos históricos permutados entre mídias 3 e elementos de mídias diferentes papel,tinta,telas,pinturas,celulóide,cinema,rádio,-
e a proteção à intimidade de vivos e mortos. Não há qualquer julgado conhecido no qual se tenha discutido televisão e computadores.
a exposição de fatos sobre criminosos de guerra (de quaisquer guerras, embora os nazistas ocupem posição "Da década de 1960 em diante, todas as mensagens, públicas e privadas, verbais ou visuais, começaram a
de preeminência nesse campo), muitos dos quais foram condenados a penas não capitais e tiveram longas ser consideradas 'dados'4, informação que podia ser transmitida, coletada e registrada, qualquer que fosse seu
existências após isso. Em relação a eles não houve preocupação com a ressocialização ou com o estigma. O lugar de origem, de preferência por meio de tecnologia eletrônica".
Caso Lebach-l não teve idêntica dimensão de um crime de guerra, mas tratou-se de um ato criminoso que
Assim, conforme desenvolvido anteriormente, a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a
ganhou as páginas da história criminal alemã.
informação da pessoa humana passaram no século XXI, diante de um novo processo civilizatório representa-
É também necessário diferenciar entre a divulgação na internet de fatos sobre indivíduos comuns ou tivo da manifestação de novas culturas, a ter caráter marcadamente difuso evidentemente em face das formas,
célebres, como uma execução fiscal ou a condição de réu em ações civis públicas, em face de grandes delin- processos e veículos de comunicação de massa principalmente com o uso das ondas eletromagnéticas(Rádio e
quentes, cujos casos interessam ao Direito, à Sociologia ou à História. Essa confusão está na raiz das críticas Televisão) conforme amplamente estudado em nossa obra "O direito de antena em face do direito ambiental
(muitas delas severíssimas) que se têm lançado ao projeto de reforma da diretiva europeia de proteção de dados. brasileiro"5 assim como com o advento da rede de computadores de alcance mundial formada por inúmeras
e diferentes máquinas interconectadas em todo o mundo (internet)6.

Curso de Direito Ambiental Brasileiro, 18" edição, Saraiva, 2018.


2 Com efeito. Observada como um "conjunto dos conhecimentos, pesquisas, equipamentos, técnicas, recursos e procedimentos relativos
à aplicação da informática em todos os setores da vida social", segundo Alvin Tofler" a tecnologia da informação é atividade meio; a
atividade fim é a sociedade da informação". Vide Carlos Alberto Rabaça e Gustavo Guimarães Barbosa em Dicionário de Comunicação,
lO" edição, Editora Campos/Elsevier, p. 709.
3 Conforme o Dicionário de Comunicação de Rabaça e Barbosa, mídia, em teoria da comunicação, é o conjunto dos meios de comuni-
cação existentes em uma área, ou disponíveis para uma determinada estratégia de comunicação. Grafia aportuguesada da palavra latina
media, conforme esta é pronunciada em inglês. Media, em latim, é plural de medium,que significa "meio".Em publicidade,costuma-se
classificar os veículos em duas categorias: 1) mídia impressa (jornal, revista, folheto, outdoor, mala direta, displays, etc.) e 2) mídia ele-
trônica (TV, rádio, CD, vídeo, cinema, etc.). Em português diz-se média. Explicam Briggs e Burke que "de acordo com o Oxford English
Dictionary,foi somente na década de 1920 que as pessoas começaram a falar de "mídia" sendo certo que "uma geração depois,nos anos
1950,passaram a mencionar uma "revolução da comunicação". Vide Carlos Alberto Rabaçã e Gustavo Guimarães Barbosa em Dicionário
de Comunicação, lO" edição,Editora Campos/Elsevier, pág-490 bem como Asa Briggs & Peter Burke em Uma história social da mídia - de
Cutenberg à Internet, 2" edição revista e ampliada, Zahar, Rio dejaneiro,passim.
4 Conforme o Dicionário de Comunicação de Rabaça e Barbosa,dados são fatos coletados,analisados e interpretados pelos cientistas
sociais;um conjunto de dados é designado data (do latim data pl. de datum,"dado");na área da informática, dados são representações
de fatos,conceitos ou instruções, através de sinais de uma maneira formalizada,passível de ser transmitida ou processada pelos seres
humanos ou por meios automáticos. Vide Carlos Alberto Rabaça e Gustavo Guimarães Barbosa em Dicionário de Comunicação, lO" edição,
Editora Campos/Elsevier, p. 207.
5 Vide Celso Antonio Pacheco Fiorillo em O Direito de Antena emface do Direito Ambiental Brasileira, Editora Fiúza, 2009, passim.
6 Conforme o Dicionário de Comunicação de Rabaçae Barbosa,naárea da informática, a internet é uma rede de computadores de alcance
mundial,formada por inúmeras e diferentes máquinas interconectadas em todo o mundo,que entre si trocam informações na forma de

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