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9788502029934

Césurnar-B biioteca ÊJ
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57804
IIII â
LUIZ ALBERTO DAVID ARAÚJO

CONSTITUCIONAL
DO 'vmmmv,

Este é um estudo so-


bre os princípios constituci-
onais, desenvolvendo, espe-
cificamente, o tema da digni-
dade da pessoa humana. A
partir dessa idéia, o autor
avança sobre os direitos fun-
damentais e centra o trabalho
1451
no direito à felicidade.
A questão do transe-
xual aparece como mote para
a análise dos direitos das
minorias sexuais. Depois de
definir transexual e demons-
trar a possibilidade da cirurgia
de redesignação de sexo co-
mo forma de integração soci-
al, o autor parte para os pro-
blemas práticos decorrentes
da mudança de sexo. Ques-
tões como o nome, a filiação
e o "direito ao esquecimento"
do passado do transexual são
tratadas no livro.
Caso queira, pode o
transexual submeter-se à ci- ASSOCIAÇÃO BBASIIIIRA DE DIREMOS
RíPROGCÁMCOS
rurgia de redesignação de se-
xo, como forma de integrar-se ;
°omnrro*>u

socialmente e de superar a si- EDITORA AFILIADA

tuação ambígua em que vive.


Professor Doutor da Faculdade de Direito da Pontifícia
Universidade
Católica de São Paulo e da Faculdade de Direito de Bauru - ITE
(Instituição Toledo de Ensino)

2000

Eeflãtoira
ISBN 85-02-02993-2 Césurnar-B

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 57804


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Araújo, Luiz Alberto David


A proteção constitucional do transexual / Luiz Alberto David Araújo.
— São Paulo : Saraiva, 2000. Cias / ) \ V
7. A . '
Bibliografia. t i .- : . o
■■■(■
1. Brasil - Constituição (1988) 2. Sexo - Mudança - Brasil 3.
Transexuais - Brasil 4. Transexualismo - Brasil I. Titulo. RpgSTSOM OU

99-2747 CDU-342.4(81)"1988": 613.885

índices para catálogo sistemático:


1. Brasil : Constituição de 1988 e transexualismo :
Direito 342.4(81)"1988": 613.885
2. Brasil : Transexualismo e Constituição de 1988 :
Direito 342.4(81)"1988": 613.885

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ÍNDICE

Introdução......................................................................................... XI

PRIMEIRA PARTE
Noções gerais. O transexualismo, os direitos da
personalidade e o direito à vida feliz.

1. Delimitação do tema: a referência a aspectos médicos e


psicológicos como forma de apoiar as idéias de proteção
ao transexual ............................................................................... 1
2. A sociedade. A multiplicidade de valores da alma humana.
A tolerância como traço de uma sociedade democrática.. 2
3. O direito à vida e os direitos da personalidade ........................... (^9y
4. Sexo e suas classificações. Tipos de sexo: genético, goná-
dico, íenotípico, psicológico e jurídico ....................................... 21
5. O conceito de transexual ............................................................. 28
6. O sexo e seu contexto histórico. A mudança do enfoque:
reprodução x prazer..................................................................... 35
6.1. Sexualidade e sexo: uma abordagem psicológica ............... 35
6.2. Sexo e sexualidade: alguns conceitos básicos ..................... 36
6.3. A evolução histórica do conceito de sexualidade................ 37
6.4. A identidade sexual e o transexual: a questão vista
pelo prisma psicológico ...................................................... 45
7. A situação de desajuste do transexual: a infelicidade ................. 58
8. Infelicidade superável? ............................................................... 64
9. A proteção do transexual como direito da personalidade
mullifacetado .............................................................................. , 68

5
SEGUNDA PARTE 9. O projeto de lei em andamento no Congresso Nacional... 127
10. A autorização para a cirurgia do transexual, a alteração de
O direito positivado
seu registro civil, o direito ao casamento e ao esquecimento 133
1. O direito à vida e os direitos da personalidade na Consti- 11. Alguns aspectos secundários decorrentes do deferimento
tuição Federal de 1988 ................................................................ 7 da alteração do registro civil do transexual após a opera-
2. O direito à felicidade como decorrência dos fins do Estado . 741
ção .............................................................................................. 141
3. Os princípios constitucionais ...................................................... 7
^ I I . Visão renovada de um problema antigo: a tolerância .............. 145
3.1. Os princípios ..................................................................... Conclusões ....................................................................................... 151
3.2. Conceito de princípio ........................................................ 76
3.3. Os princípios na Constituição Federal de 1988: uma Bibliografia ...................................................................................... 153
visão geral ......................................................................... 80
3.4. Normas, regras e princípios ............................................... 81
3.5. Importância das normas-princípio e sua primazia em
relação às regras ................................................................ 83
3.6. A Constituição como sistema aberto de regras e prin-
cípios ................................................................................ 85
3.7. Tipologia dos princípios .................................................... 87
3.8. O papel dos princípios ....................................................... 90
3.9. Características dos princípios constitucionais ............... 90
3.10. Interpretação dos princípios constitucionais ...................... 93
3.11. Efetividade dos princípios constitucionais segundo
Luís Roberto Barroso ........................................................ 96
3.12. Sede dos princípios constitucionais ................................... 97
4. Os princípios na Constituição Federal de 1988: uma visão
específica .................................................................................... 98
4.1. O princípio da dignidade da pessoa humana ..................... 102
4.2.O objetivo fundamental do Estado brasileiro: promo-
ver o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discrimi-
nação ...................... ; ........................................................ 105
5. A cirurgia de redesignação de sexo ............................................. 108
6. A autorização para mudança de sexo como necessidade:
forma de felicidade...................................................................... 110
7. A jurisprudência .......................................................................... 113

IX
6
A questão da transexualidade é apenas um ponto de partida no
trabalho. Apesar de o foco ser conduzido para a transexualidade e
sua proteção constitucional, o objetivo do estudo é fornecer ao intér-
prete uma dimensão da Carta Magna que, a partir da análise dos
princípios constitucionais, provoque uma reflexão sobre a questão
do transexual e dos posicionamentos tradicionais sobre o tema. Essa
nova dimensão passa pelo direito à felicidade, entendido este como a
forma livre de condução da vida do indivíduo dentro de seu contexto
social. Portanto, estudar a transexualidade é o princípio da busca do
conteúdo do direito à felicidade, objetivo fundamental do Estado bra-
sileiro.
A investigação sobre o fenômeno do transexualismo passa, obri-
gatoriamente, do conceito de sexo, de direito à vida, direito à integri-
dade física, direito à privacidade e, por fim, e muito mais marcante,
de direito à felicidade, fim básico do Estado.
Não há duvida de que o transexualismo é uma alteração da psi-
que. Essa alteração, se examinada em cotejo com o padrão de regula-
ridade (identificação do sexo psicológico com o sexo biológico), di-
ficulta a integração social, que deve ser vista sob o prisma do
transexual (como sujeito de direitos e obrigações como todos nós) e
não sob o prisma da maioria, que, num primeiro momento, segrega,
rejeita e impede essa integração.
Para a análise da questão da transexualidade, devemos enten-
der, pelo menos de forma genérica, os diversos conceitos de sexo.
Também devemos entender que o sexo perdeu aquela que, segundo a
Igreja, era sua única função: a procriadora. Sexo é basicamente pra-
zer. E prazer é procriação? Sob esse enfoque, o exame pressupõe o
reenquadramento da noção de sexo, em face da evolução do concei-
to, razão de capítulo específico.

7
De volta ao mote inicial: a pesquisa parle da análise da quente alteração do registro civil, para o novo sexo, sem qualquer
transexualidade, do comportamento do legislador infraconstitucional, restrição.
do Poder Judiciário em suas decisões, e procura demonstrar que não Neste passo, o livro pretende ser inovador quando, modesta-
se pode deixar de proteger o transexual e favorecer-lhe a integração mente, toma a questão do transexual como ponto de partida para a
social. Muitas vezes, essa proteção passará pela cirurgia de alteração análise da função da Constituição e do intérprete constitucional.
do sexo, com o necessário acompanhamento pós-operatório e a
O tema da transexualidade foi escolhido como agente provoca-
averbação do novo sexo nos assentamentos registrais, sem qualquer
dor para uma reflexão sobre a dogmática emancipatória, procurando
restrição.
demonstrar que é possível, a partir dos valores constitucionais, com
Apresentada a questão da multiplicidade de valores e contradi- a aplicação da principiologia, avançar na proteção do indivíduo, sem
ções da alma humana, da sexualidade, do deslocamento do eixo do desatentar aos valores coletivos protegidos pelo Estado.
sexo-procriação para o do sexo-prazer, passamos à pesquisa sobre o
Deve ainda este estudo ser o intérprete de valores para a felici-
transexual e os seus problemas de integração social; em seguida apon-
dade do indivíduo e do grupo social, sem embaraçar-se em funda-
tamos as situações embaraçosas, os dilemas que marcam sua vida no
mentos pouco explicitados, como argumentos morais, de ordem so-
dia-a-dia.
cial ou o direito à integridade física, ou ainda o que se entende por
Delimitado o quadro, enfrentamos a questão sob o prisma cons- felicidade para alguns grupos minoritários.
tilucional-positivo. Os princípios funcionarão como critério seguro
Nosso estudo pretende, portanto, ser um libelo democrático em
na busca da melhor interpretação constitucional para a questão. Ou
defesa de minorias, no caso, os transexuais.
seja, os princípios desempenharão papel importante na adaptação do
transexual à realidade social. A intenção deste libelo provocador é chegar a possibilidades de
Na apresentação desses princípios, deparamo-nos com a noção interpretação constitucional que forneçam ao operador do sistema
um ferramenlal seguro e progressista.
de Estado Democrático de Direito e seus fundamentos, apresentados
pelo constituinte de 1988.
Se entre os objetivos fundamentais do Estado brasileiro há re-
gra clara quanto à busca do bem de todos, é conveniente observar
como a jurisprudência tem tratado o transexual no Brasil. E no direi-
to comparado? Quais seriam, em princípio, as objeções para a
integração social do transexual?
Partindo da premissa básica de que todos gostariam de buscar sua
identificação sexo psicológico — sexo biológico, é claro que, em alguns
casos, isso só será possível a partir da cirurgia de reopção sexual.
Por fim, o trabalho propõe demonstrar que o Texto Constitu-
cional não pode servir de empecilho para a felicidade e que, no caso
específico, nada há a sacrificar quando autorizada a cirurgia de
reopção, para o ajuste social. Há um conflito aparente apenas, e o
sistema deve privilegiar a busca individual da felicidade. Não há fun-
damento concreto para que se impeça a cirurgia assistida e a conse-

XII XIII
PRIMEIRA PARTE

NOÇÕES GERAIS. O TRANSEXUALISMO,


OS DIREITOS DA PERSONALIDADE E O
DIREITO À VIDA FELIZ

1. Delimitação do tema: a referência a aspectos médicos e psicoló-


gicos como forma de apoiar as idéias de proteção ao transexual

Este trabalho não tem qualquer pretensão de estudar profun-


damente a sexualidade, ou mesmo discutir questões médicas que
possam provocar reações de especialistas em áreas específicas. No
entanto, não se pode desprezar, para a conceituação de transexual,
uma visão da sexualidade, seu eixo atual e as classificações sobre
sexo. Sendo assim, sem pretender adentrar área alheia a nosso co-
nhecimento, tomamos alguns conceitos de manuais de Medicina
Legal, de Psicologia e outros trabalhos na área médica. A pesquisa
não poderia deixar de avançar em certos temas, como o cuidado
pós-operatório do transexual, para fazer considerações sobre o sexo
psicológico e o sexo biológico. Não se poderia falar do assunto
sem tratar, ao menos superficialmente, dessas questões. Mas, repe-
timos, foram elas abordadas apenas como base e marco necessário
mínimos para nosso estudo.
Assim é que qualquer avanço na área da Psicologia, da Medici-
na, da Psiquiatria, tem como única e exclusiva intenção buscar pa-
drões para a análise jurídica do tema. Por conseguinte, todos os con-
ceitos técnicos devem ser considerados dentro desse quadro. Con-
ceitos como hermafroditismo, homossexualismo, travestismo são usa-
dos apenas como referências, não constituindo objeto de estudo.
Por fim, o conceito de sexo adotado despreza qualquer conside- Tolerar significa conviver, sem perder a própria convicção. A
ração de outra ordem, pois, para o objetivo deste trabalho, a deno- maioria continua prestigiada, convivendo com a minoria, respeitan-
minação preferida é a de sexo psicológico, como será visto adiante. do-lhe os valores e as crenças.
Fundamentando a análise no sexo psicológico, não há razão algu- As lições de intolerância humana são dramáticas e causam pre-
ma, salvo a de ilustração e delimitação do tema, para avançar em ques- juízos incomensuráveis. Vejamos a passagem trazida por Hendrik
tões ligadas à Medicina e tratadas pela Medicina Legal nos manuais. van Loon:
Essa advertência tem a finalidade de explicar ao leitor a ausên- "No ano 527 Flavius Anicius Justinianus tornou-se o dominador
cia de tratamento científico aprofundado quanto à parte médica e da metade Este do Império Romano.
psicológica da questão. Os temas são apenas referências para o de- Esse camponês servio (ele nasceu em Uskub, a junção de estra-
bate jurídico da questão. das de ferro tão disputada na última guerra) não via qualquer utilida-
de na leitura de livros. Por sua ordem a antiga Escola Ateniense de
Filosofia foi finalmente fechada. E foi ele quem cerrou as portas do
2. A sociedade. A multiplicidade de valores da alma humana. A único templo egípcio que continuava aberto séculos depois da inva-
tolerância como traço de uma sociedade democrática são do vale do Nilo pelos monges da fé cristã.
Esse templo situava-se em Filae, pequena ilha, não muito dis-
A sociedade apresenta uma textura complexa e riquíssima. Há tante da primeira grande queda do Nilo. Desde tempos imemoriais o
uma multiplicidade de situações, valores característicos, que não po- lugar havia sido destinado à adoração de Isis e, por alguma curiosa
dem ser desprezados sob a verdade de um consenso majoritário. A razão, esta deusa sobrevivera onde todos os seus rivais africanos,
maioria, ou os valores da maioria, devem servir de base para a elabora- gregos, e romanos tinham perecido miseravelmente. Finalmente, no
ção do regramento jurídico de qualquer meio social. No entanto, tais sexto século, a ilha era o único lugar onde a velha e sagrada arte
valores não podem ser suficientes para eliminar as formas de vivência hieroglífica ainda era compreendida e onde um pequeno número de
das minorias. Essa reflexão atinge a religiosidade, a política, a opção padres continuava a praticar um ofício que tinha sido esquecido em
filosófica etc. Seja qual for o prisma sob o qual se enfoque a questão, todas as outras partes da terra de Queops.
encontraremos uma maioria com opinião preponderante e uma mino- E, agora, por ordem de um ignorante camponês, conhecido por
ria, que deve ser reconhecida, e, desde que não atente contra a ordem Sua Majestade Imperial, o templo e a escola que lhe estava anexa
ou contra os valores escolhidos pela sociedade, deve ser ouvida como eram declarados propriedades do Estado, as estátuas e imagens man-
forma de alternatividade dos valores escolhidos. A democracia é con-
dadas para o museu de Constantinopla e os padres e os grandes escri-
frrmada na valorização da maioria, sem o desprezo da minoria. Quan-
tores trancados na prisão. E, quando o último deles havia morrido de
do falamos em Estado Democrático, falamos da vontade majoritária,
fome e falta de cuidados, a antiga arte hieroglífica desaparecera.
mas não da ditadura da maioria. No primeiro caso, há prestígio da
vontade majoritária, com consideração das mais variadas correntes E de se lamentar que isso tivesse acontecido.
minoritárias. No segundo, não se encontra uma preponderância da Se Justiniano (maldição sobre ele!) houvesse sido um pouco
maioria, mas apenas a consideração desta, com desprezo pela minoria. menos rigoroso em seu trabalho e tivesse reunido uns poucos da-
Levando em conta que a textura social vem reconhecida na de- queles hábeis escritores antigos em uma espécie de Arca de Noé
mocracia, com sua multiplicidade de crenças, de valores, de convic- literária, teria tornado o trabalho do historiador muitíssimo mais
ções políticas e filosóficas, é certo que a palavra "tolerância" é toma- fácil. Pois, se graças ao gênio de Champolion podemos ler nova-
da como chave para o bom entendimento democrático. mente a estranha escrita dos egípcios, continua terrivelmente difí-

2 10
cil para nós compreender o sentido secreto da mensagem deixada setores organizados da sociedade nos quais se procura um contrape-
por eles à posteridade. so para Q próprio Estado. É, portanto, uma democracia calcada fun-
E isso diz respeito a todas as outras nações do mundo antigo" 1. damentalmente na divisão do poder, não somente na divisão clássi-
A citação longa se justifica para a caracterização da intolerân- ca, que biparte o poder em três órgãos diferentes: Legislativo, Exe-
cia. A falta de respeito pela multiplicidade de valores tem causado cutivo e Judiciário, mas com reconhecimento de diversos outros pode-
prejuízos incalculáveis à Humanidade. Van Loon cita em seu livro res dentro da sociedade: os poderes locais, regionais, municipais, dos
diversos episódios em que a intolerância do homem impede o desen- Estados-Membros, das províncias, aqueles existentes dentro da orga-
volvimento do próprio espírito. O texto mostra, de forma simples, nização econômica, a indústria, assim como das igrejas, das manifes-
como foram destruídas, em homenagem à falta de tolerância, todas tações de defesa do consumidor, enfim, tudo aquilo que possa repre-
as possibilidades de acesso fácil à cultura antiga. í sentar a expressão dos diversos segmentos da vontade popular" 3.
Essa intolerância não é compatível com o Estado Democrático. A necessidade de um conceito democrático atento à noção de
minoria vem presente na doutrina jurídica.
Alexis de Tocqueville já advertia para o governo ditador da
maioria: Sobre o assunto, Roberto D'Alimonte demonstra a fragilidade
do conceito de maioria obtido a partir da votação majoritária, sem
"Que vem a ser uma maioria tomada coletivamente senão um
qualquer outro critério:
indivíduo que tem opiniões e, mais freqüentemente, interesses con-
trários a outro indivíduo ao qual chamamos minoria? Ora, se admi- "Fala-se, neste caso, de maioria hegemônica (ou maioria pre-
tirmos que um homem revestido do poder extremo pode abusar dele dominante). Mas a existência de uma situação decisória deste tipo
contra seus adversários, por que não admitiremos também a mesma tem implicações negativas do ponto de vista da eqüidade dos resulta-
coisa para a maioria? Os homens, ao se reunirem, terão mudado de dos do processo resolutivo. Ela permite o predomínio, dentro do gru-
caráter? Ter-se-ão tornado mais pacientes nos obstáculos, ao se tor- po que decide, de uma parte sobre outras, ou, mais precisamente, da
narem mais fortes? Para mim, não seria possível acreditar nisso; e o maioria sobre uma ou mais minorias"4.
poder de tudo fazer, que recuso a um só de meus semelhantes, eu não Portanto, a idéia de considerar as minorias é característica da
o atribuiria nunca a vários deles"2. democracia, já'que o Estado Democrático é pluralista.
Celso Ribeiro Bastos aponta para a preservação dos demais in- Nesse sentido, a lição de Reinhold Zippelius:
teresses presentes na sociedade, como forma caracterizadora da de-
"A tarefa de alcançar o melhor compromisso possível entre os
mocracia:
diversos interesses e de ponderar os que se apresentem inconciliá-
"A idéia democrática é eminentemente evolutiva e hoje abre veis, desempenha importante papel na teoria sociológica da decisão
muito espaço não só à procura de fazer valer a vontade popular, como (Ch. Lindblom, The intelligence of Democracy, 1965, 205, e segs.
de não buscar a sua representação apenas nos legisladores eleitos, 226 e segs.) e constitui, sob o ponto de vista jurídico, o tema central
mas também nas organizações civis da sociedade, tais como: sindi- da jurisprudência de interesses (Zippelius, Cap. 12). Os desígnios
catos, associações de classe, partidos políticos, enfim, em diversos

4. Celso Ribeiro Bastos, Democracia, in Dicionário de direito constitucional,


1. Hendrik van Loon, Tolerância, São Paulo, Ed. Nacional, 1942, p. 7-8. São Paulo, Saraiva, 1994, p. 38.
2. Alexis de Tocqueville, A democracia na América, Belo Horizonte, Itatiaia 5. Teoria das decisões coletivas, in Dicionário de política (Coord. Norberto
Ed., 1962, p. 194. Bobbio et al.), Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1986.

11 5
políticos aclaram-se c evoluem também no meio da contraposição seus valores e suas idéias. Seus temores também devem ser objeto de
permanente das forças, interesses e ideais sociais (B. Verf. G.E. 5, proteção, do Estado.
135, 198). Confia-se em que será atingido por estes processos 'o O Estado Democrático deve-se caracterizar pelo equilíbrio en-
maior bem do maior número', a 'máxima possibilidade comum de tre a vontade da maioria e o considerar a minoria, acolhendo-a sem-
satisfação de interesses, desejável na vida da sociedade' (Mezger). O pre que possível, desde que tal acolhimento não represente uma ame-
bem comum é considerado dentro de semelhante teoria da democra- aça real aos valores escolhidos pela maioria.
cia, não como algo já definido, mas mais como resultante de con- Dentre as várias maiorias, encontra-se a maioria da opção se-
traposições orientadas dialecticamente (Huber, 17)"5. xual. Como veremos adiante, a maioria é refletida por um comporta-
Resumindo as concepções sobre os fins do Estado, Dalmo de mento heterossexual, com identificação entre o sexo psicológico e o
Abreu Dallari escreve: sexo biológico. Muitas vezes, no entanto, como veremos, isso não ocor-
re. O objetivo deste estudo é justamente fazer uma reflexão sobre a
"Procedendo-se a uma síntese de todas essas idéias, verifica-se
democracia, os valores do pluralismo, para considerar a alma humana
que o Estado, como sociedade política, tem um fim geral, constituin-
com suas variações, suas vontades, suas causas e seus motivos, muitas
do-se em meio para que os indivíduos e as demais sociedades pos-
vezes diferentes dos conceitos predominantes na maioria.
sam atingir seus respectivos fins particulares. Assim, pode-se con-
cluir que o fim do Estado é o bem comum, entendido este como o No campo da opção sexual, estaríamos diante de uma forma de
conceituou o Papa João XXIII, ou seja, o conjunto de todas as condi- veiculação da escolha da maioria, mas, inegavelmente, essa questão
ções de vida social, que consistam e favoreçam o desenvolvimento faz parte da situação da minoria.
integral da.personalidade humana"6. Ao dizer que o comportamento sexual normal se define pela
Darcy Azambuja, apoiando-se em Ataliba Nogueira, não dis- unidade entre o sexo psicológico e o biológico (temas que serão abor-
dados adiante) e que a relação heterossexual é predominante, afir-
corda do conceito:
mamos que asoutras tendências sexuais, com suas variantes etrau-
"O Estado é um dos meios pelos quais o homem realiza o seu mas, no caso, são consideradas minorias.
aperfeiçoamento físico, moral e intelectual, e isso é que justifica a
A tendência minoritária deve ser levada em conta. Como vere-
existência do Estado"7.
mos, a não-consideração dos valores dessa minoria, consubstanciada
Quando falamos em Estado Democrático, referimo-nos, por- pela opção sexual, encontrará respaldo em um valor ainda firme na
tanto, a um sistema que protege o interesse das minorias, quer sejam moral vigente, ou seja, o sexo-procriação.
elas raciais, políticas, econômicas etc.
Com fundamento na idéia de sexo-procriação, o Estado impede
Não se pode conceber um Estado Democrático sem a vontade a integração social do transexual, como veremos mais à frente. Os
da maioria. Seus valores devem prevalecer, suas idéias predominar. valores morais ainda arraigados na sociedade moderna levam o in-
Isso não significa o aniquilamento da vontade dos grupos minoritários, térprete a desconsiderar a questão do transexual (caso que não envol-
ve opção sexual, mas um quadro psicológico, que o leva à busca do
sexo oposto). A tese proposta no trabalho passa, portanto, pelos va-
5. Rcinhold Zippelius, Teoria geral do Estado, 2. ed., Lisboa, Calousle lores democráticos, pela busca do bem comum, pela instrumen-
Gulbenkian, s. d., p. 113. talização do Estado como forma de busca da felicidade e pela resis-
6. Dalmo de Abreu Dallari, Elementos de teoria geral do Estado, 11. ed., São tência injusta e inconstitucional deste no acolhimento dos valores
Paulo, Saraiva, 1985, p. 95. desse grupo minoritário.
7. Darcy Azambuja, Teoria geral do Estado, Porto Alegre, Globo, 1978, p. 122.

12
A orientação8 sexual pode ser respeitada pela maioria, no caso Portanto, a análise fria e excludente de qualquer dos direitos
do transexual, sem atentar contra a ordem vigente, entendida essa constitucionais dentre as liberdades de primeira geração, considera-
das como as que se opõem ao Estado, e as liberdades de segunda
como forma de valoração das condutas?
geração, é posição do liberalismo clássico, incompatível com a com-
A resposta a essa questão obrigará a uma reflexão sobre os moti- plexidade da sociedade contemporânea.
vos pelos quais há resistência à integração do transexual, integração
Este capítulo fala de democracia com permeabilidade para ouvir
esta que poderia ocorrer pela operação de redesignação sexual. O tema
os interesses das minorias, fala de tolerância ou intolerância, como
será analisado quando üatarmos do aparente conflito de direitos.
forma de convívio democrático entre idéias e valores diferentes, e, por
Conviver com a opção sexual do transexual9, permitir a busca fim, apresenta motivos — que serão adiante tratados — para que não
de sua felicidade, é também revelar o grau de democracia da socie- prevaleça a tolerância ou, se as causas alegadas são suficientemente
dade, já que essa felicidade dependerá da identificação do sexo psi- aceitas pelo sistema constitucional, para refutar os valores minoritários.
cológico com o biológico. Os valores morais, que dominam a socie-
dade, permitirão o convívio com o bem-viver do indivíduo transexual?
Com a resposta, chegaremos ao grau de democracia existente em 3. O direito à vida e os direitos da personalidade
nossa realidade jurídica.
Canotilho adverte que a escolha pura e simples das "liberdades Não poderíamos, antes de estudar precisamente o conteúdo do
negativas" sobre as "positivas" é traço do liberalismo político clássico: direito do transexual, deixar de analisar seu contexto dentro dos di-
"A idéia de que a liberdade negativa tem precedência sobre a reitos da personalidade. Para tanto, apresentaremos, mesmo de for-
participação política (liberdade positiva) é um dos princípios básicos ma genérica, um conteúdo mínimo reconhecido pela doutrina, assim
do liberalismo político clássico. como seus desdobramentos, tais como o direito à integridade física,
o direito à imagem, à honra, à privacidade, à intimidade etc.
As liberdades políticas teriam uma importância intrínseca me-
nor do que a liberdade pessoal e de consciência. Não admirará, pois, Assim, nesta seqüência do trabalho, examinaremos os direitos
como salienta um influente cultor actual da filosofia política — que da personalidade, seu conceito pela doutrina, seus característicos e
'se alguém for forçado a escolher entre as liberdades políticas e as seu conteúdo. Adotamos o critério de mencionar o conceito e os ca-
restantes liberdades, o domínio da lei seria preferível'. A segurança racterísticos dos direitos da personalidade por diferentes autores, de
da propriedade e dos direitos liberais representaria neste contexto a forma a ficar preservada a unidade de pensamento de cada um deles.
essência do constitucionalismo. O 'homem civil' precederia o 'ho- Expostas tais premissas, alocaremos o direito do transexual à
mem político', 'o burguês estaria antes do cidadão'" 10. sua integração social naquela categoria que entendermos mais ade-
quada, talvez um pouco distinta das apresentadas.
Em linhas gerais, a doutrina reconhece um conteúdo mínimo
8. Preferimos utilizar a expressão "orientação sexual", pois no caso do
na idéia dos direitos da personalidade.
transexual não se trata de opção. O transexual não escolhe seus caminhos sexuais. Vejamos algumas conceituações.
Diante de seu quadro psicológico, buscará, incessantemente, a mudança de sexo,
Para Adriano de Cupis, podemos entender os direitos da perso-
para adaptá-lo a seu sexo psicológico. Não se trata, portanto, de opção sexual, mas
nalidade e sua extensão a partir de uma análise dos direitos positivados
da orientação cm relação a sua sexualidade.
9. No caso, não se traia de opção, mas de conviver com um quadro psicológi- em cada sistema:
co sobre o qual o indivíduo não tem qualquer controle. "Todos os direitos, na medida em que destinados a dar conteú-
10. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição, do à personalidade, poderiam chamar-se 'direitos da personalidade'.
Coimbra, Livr. Almedina, 1998, p. 93.

13
No entanto, na linguagem jurídica corrente esta designação é reser- "A teoria dos direitos inatos foi, assim, a conseqüência da reacção
vada àqueles direitos subjectivos cuja função, relativamente à perso- contra o superpoder do Estado de polícia. Ela está na base das Decla-
nalidade, é especial, constituindo o 'minimum* necessário e impres- rações dos direitos do homem e do cidadão"15.
cindível ao seu conteúdo"11. "Não pode hoje falar-se mais de direitos inatos, como de di-
E, adiante: reitos respeitantes racionalmente ao homem devido à sua simples
"Por outras palavras, existem certos direitos sem os quais a per- qualidade humana; considerados do ângulo visual do direito po-
sonalidade restaria uma susceptibilidade completamente irrealizada, sitivo, eles não podem constituir mais do que simples exigências
privada de todo o valor concreto: direitos sem os quais todos os ou- de ordem ética. No entanto, a evolução do Estado moderno deu
tros direitos subjectivos perderiam todo o interesse para o indivíduo força jurídico-positiva àqueles direitos que em tempos eram con-
— o que eqüivale a dizer que, se eles não existissem, a pessoa não cebidos como preexistentes ao estado social. E, na verdade, o
existiria como tal. São esses os chamados 'direitos essenciais', com ordenamento jurídico-positivo atribui hoje em dia aos indivídu-
os quais se identificam precisamente os direitos da personalidade. os, pelo simples facto de possuírem personalidade, determinados
Que a denominação de direitos da personalidade seja reservada aos direitos subjectivos, os quais em tal sentido podem, verdadeira-
direitos essenciais justifica-se plenamente pela razão de que eles cons- mente, dizer-se inatos"16.
tituem a medula da personalidade"12. Direitos da personalidade, para Orlando Gomes, são assim en-
O autor italiano inicia a ligação dos direitos da personalidade tendidos:
com o reconhecimento da positivação de tais direitos pelos diversos "Sob a denominação de direitos da personalidade, compreen-
sistemas jurídicos: dem-se direitos considerados essenciais à pessoa humana, que a
'Todo o meio social tem uma sensibilidade particular relativa- doutrina moderna preconiza e disciplina, a fim de resguardar a sua
mente à essencialidade dos direitos. É assim que, mudando a consci- dignidade"17.
ência moral, modificando-se o modo de encarar a posição do indiví-
No entanto, o ilustre civilista aponta as dificuldades da doutri-
duo no seio da sociedade, muda correlativamente o âmbito dos direi-
na, quer na classificação, quer na determinação do conteúdo:
tos tidos como essenciais à personalidade. Ao repercutir-se esta con-
cepção sobre o ordenamento jurídico, os direitos da personalidade "Perduram, não obstante, as hesitações da doutrina quanto ao
adquirem uma determinada figura positiva"13. seu conceito, natureza, conteúdo e extensão. Acirram-se debates na
determinação dos seus caracteres, contribuindo a polêmica para as
O reforço dessa posição vem revelado nas passagens abaixo:
incertezas que se estampam no perfil da nova categoria jurídica. Não
"Por conseqüência, não é possível denominar os direitos da per-
é pacífica sequer sua identificação. Denominam-nos direitos indivi-
sonalidade como 'direitos inatos', entendidos no sentido de direitos
duais (Kohler), direitos sobre a própria pessoa (Windscheid), direi-
respeitantes, por natureza, à pessoa"14.
tos pessoais (Wachter), direitos de estado (Muhlenbruch), direitos
originários, direitos inatos, direitos personalíssimos. Ultimamente,

11. Adriano dc Cupis, Direitos da personalidade, trad. Adriano Vera Jardim e


Antônio Miguel Caeiro, Livraria Morais Ed., Lisboa, 1961, p. 17. 16. Adriano de Cupis, Direitos da personalidade, cit., p. 19.
12. Adriano de Cupis, Direitos da personalidade, cit., p. 17-18. 17. Adriano dc Cupis, Direitos da personalidade, cit., p. 20.
13. Adriano de Cupis, Direitos da personalidade, cit., p. 18. 18. Orlando Gomes, Introdução ao direito civil, 10. ed., Rio de Janeiro, Fo-
14. Adriano de Cupis, Direitos da personalidade, cit., p. 18. rense, 1993, p. 153.

10 14
Para Santos Cimentes, a definição de direitos da personalidade,
porém, acentua-se a preferência pela expressão direitos da persona-
que trata do tema como "direitos personalíssimos", centra-se na
lidade empregada por Gierke"18.
indisponíbilidade:
O autor, por fim, não deixa de ressaltar uma correlação intensa
"... os direitos personalíssimos são 'direitos subjetivos pri-
entre os direitos da personalidade e o tratamento legal no sistema
vados, inatos e vitalícios que têm por objeto manifestações interio-
analisado: res da pessoa e que, por serem inerentes, extrapatrimoniais e ne-
"A teoria dos direitos da personalidade somente se liberta de cessários, não podem transmitir-se nem dispor-se em forma ab-
incertezas e imprecisões se a sua construção se apoia no Direito Po- soluta e radical'"22.
sitivo e reconhece o pluralismo desses direitos ante a diversidade dos Para José Serpa de Santa Maria, os direitos da personalidade
bens jurídicos em que recaem, tanto mais quanto são reconhecida- são assim entendidos:
mente heterogêneos"19. 4
"Em nosso deslustrado entender, consideramos os direitos da
Maria Helena Diniz assim conceitua os direitos da personalida- personalidade, como os atinentes à utilização e disponibilidade de
de, baseando-se em Goffredo Telles Jr.: certos atributos inatos ao indivíduo, como projeções biopsíquicas
"Como pontifica Goffredo Telles Jr., a personalidade não é um integrativas da pessoa humana, constituindo-se em objetos (bens ju-
direito, de modo que seria errôneo afirmar que o-ser humano tem rídicos), assegurados e disciplinados pela ordem jurídica
23
direito à personalidade. A personalidade é que apoia os direitos e imperante" .
deveres que dela irradiam, é objeto de direito, é o primeiro bem da Amoldo Wald conceitua e caracteriza os direitos da personali-
pessoa, que lhe pertence como primeira utilidade, para que ela possa dade da seguinte forma:
' ser o que é, para sobreviver e se adaptar às condições do ambiente "Os direitos da personalidade ou personalíssimos são direitos
' em que se encontra, servindo-lhe de critério para aferir, adquirir e absolutos, aos quais correspondem deveres jurídicos de todos os
-ordenar outros bens"20. membros da comunidade, cujo objeto está na própria pessoa do titu-
E, a seguir: lar, distinguindo-se assim dos direitos reais que recaem sobre coisas
"O direito objetivo autoriza a pessoa a defender sua personali- ou bens exteriores ao sujeito ativo da relação jurídica" 24.
dade, de forma que, para Goffredo Telles Jr., os direitos da persona- Na seqüência:
lidade são os direitos subjetivos da pessoa defender o que lhe é pró- "Há autores que negam o caráter de direitos subjetivos aos di-
prio, ou seja, a identidade, a liberdade, a sociabilidade, a reputação, reitos da personalidade, alegando que o sujeito ativo da relação jurí-
a honra, a autoria etc. Por outras palavras, os direitos da personalida- dica (o indivíduo) e seu objeto (direito à vida, à liberdade etc.) se
de são direitos comuns da existência, porque são simples permissões confundem na prática. Outros juristas vêem no caso direitos sem
dadas pela norma jurídica, a cada pessoa, de defender um bem que a objeto, o que dificilmente se (sic) concede, embora já tenha havido
natureza lhe deu, de maneira primordial e direta" 21.

23. Santos Cifucntes, Derechos personalísimos, 2. ed., Buenos Aires, Ed.


Astrea, 1995, p. 200.
18. Orlando Gomes, Introdução ao direito civil, cit., p. 154-5.
24. José Serpa de Santa Maria, Direitos da personalidade e a sistemática civil
19. Orlando Gomes, Introdução ao direito civil, cit., p. 157.
geral. Campinas, Julex Livros, 1987, p. 33.
20. Maria Helena Diniz, Curso de direito civil brasileiro, 7. ed., São Paulo,
25. Amoldo Wald, Curso de direito civil brasileiro; introdução e parte geral,
Saraiva, 1989, v. l,p. 83.
7. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1992, p. 134.
21. Maria Helena Diniz, Curso, cit., v. 1, p. 83.

15
12
quem vislumbrasse a possibilidade de direitos sem sujeito no caso çosamente o tem em função dos direitos e obrigações de que é sujeito,
da herança jacente"25. considera-se patrimônio uma projeção econômica da personalidade"29.
E, ainda: Ainda do mesmo autor:
"Entendemos que os direitos da personalidade são verdadeiros "A par destes direitos, que se traduzem em uma expressão
direitos subjetivos, pois implicam criar um dever jurídico de absten- pecuniária, o homem é ainda sujeito de relações jurídicas que, despi-
ção para todos os membros da coletividade. Trata-se de bens jurídi- das embora de expressão econômica intrínseca, representam para o \
cos protegidos pela lei não apenas na esfera penal, como também no seu titular um alto valor, por se prenderem a situações específicas do
campo do direito civil"26. indivíduo e somente dele. Nesta categoria de direitos, que se cha- j
mam direitos da personalidade, está o que se refere ao nome de que |
Vejamos a idéia de Silvio Rodrigues:-7 '
o indivíduo é portador, ao seu estado civil, às suas condiçõesfamiliais, )
"Dentre os direitos subjetivos de que o homem é titular pode-se às suas qualidades de cidadão"30.
facilmente distinguir duas espécies diferentes, a saber: uns que são
Verifica-se que, diante das conceituações (mesmo que vistas
destacáveis da pessoa do titular e outros que não o são. Assim, por
sob diversos ângulos), o direito do transexual à integração social en-
exemplo, a propriedade ou o crédito contra um devedor constituem
contra-se perfeitamente delineado entre esses direitos. Sua localiza-
um direito destacável da pessoa de seu titular; ao contrário, outros
ção precisa, no entanto, será tratada adiante. __
direitos há que são inerentes à pessoa humana e portanto a elas liga-
dos de maneira perpétua e permanente, não se podendo mesmo con- / Já se pode retirar da idéia de personalidade a sexualidade e a I ^ r r
ceber um indivíduo que não tenha direito à vida, à liberdade física ou í opção sexual. A sexualidade é componente inerente à vida e, como y
intelectual, ao seu nome, ao seu corpo, à sua imagem e àquilo que ele J tal, pertencerá aos direitos da personalidade. A sexualidade humana í
crê ser sua honra. Estes são os chamados direitos da personalidade" 21. \ deve estar contida no sentido de personalidade, sob pena de extrair- |
Logo em seguida: mos dela, personalidade, elemento essencial e vital. •—

"Tais direitos, por isso que inerentes à pessoa humana, saem da ^ Antes de nos aprofundarmos na identidade do direito do
órbita patrimonial, portanto são inalienáveis, intransmissíveis, impres- transexual com os direitos da personalidade, será importante ouvir a
critíveis e irrenunciáveis"28. palavra de especialistas sobre os característicos desses direitos.

Agora, a posição de Caio Mário: Para Maria Helena Diniz:


/ "Os direitos da personalidade são absolutos, intransmissíveis,^)
"Para a satisfação de suas necessidades e a realização de seus
interesses nas relações sociais, o homem adquire direitos e assume 'indisponíveis, irrenunciáveis, ilimitados, imprescritíveis, impenho-^ '--
obrigações, é sujeito ativo e passivo de relações econômicas, é credor ráveis e inexpropriáveis"31.
e devedor. Ao conjunto das situações jurídicas individuais, apreciáveis Para Orlando Gomes, os direitos da personalidade apresentam
economicamente, chama-se patrimônio, e, como todo indivíduo for- característicos próprios, pois constituem categoria à parte das for-
mas tradicionais do direito privado:

25. Amoldo Wald, Curso, cit., p. 134.


26. Amoldo Wald, Curso, cit., p. 134. 30. Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, 10. ed., Rio de
27. Silvio Rodrigues, Direito civil; parte geral, 18. ed., São Paulo, Saraiva, Janeiro, Forense, 1993, p. 154.
1996, v. l,p. 85. 31. Caio Mário da Silva Pereira, Instituições, cit., p. 155, grifos originais.
28. Silvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 1, p. 85. 32. Curso, cit., v. l,p. 83.

16 L5
"Traços comuns indicam, porém, que constituem categoria à a) intransmissibilidade: impossibilidade de mudança do sujei-
parte das formas tradicionais do Direito Privado, possível não sendo 34
to ; por força do nexo orgânico, o objeto é inseparável do sujeito
classificá-los entre os direitos pessoais, ou reais. Distinguem-se, real- originário35;
mente, por certos caracteres que em todos se encontram" 32.
b) indisponibilidade: os direitos da personalidade não podem,
Segundo esse mesmo autor: "pela natureza do próprio objeto, mudar de sujeito, nem mesmo pela
"Os direitos da personalidade são absolutos, extrapatrimo- vontade do seu titular"36;
niais, intransmissíveis, imprescritíveis, impenhoráveis, vitalícios c) irrenunciabilidade: "os direitos da personalidade não po-
e necessários".
dem ser eliminados por vontade do seu titular"37;
Posteriormente, Orlando Gomes explica essas características,
d) o consentimento : "não constitui uma renúncia o chamado
que, em termos gerais, significam que: a) os direitos da personalida-
'consentimento do titular do direito'(art. 50 Cód. Penal). Na verda-
de opõem-se erga omnes, implicando o dever geral de abstenção; b)
de, este consentimento não produz a extinção do direito, e tem um
os bens jurídicos sobre os quais incidem não são suscetíveis de ava-
destinatário que se beneficia dos seus efeitos"38;
liação pecuniária, embora possam alguns constituir objeto de negó-
cio jurídico patrimonial e a ofensa ilícita a qualquer deles seja pres- e) os direitos da personalidade não são suscetíveis de execu-
suposto de fato do nascimento da obrigação de indenizar, ainda quando ção forçada™.
se trate de puro dano moral; c) os direitos da personalidade são Para Santos Cifuentes, os direitos da personalidade são inatos
inalienáveis, porque o titular não pode transmiti-los a outrem, pri- (porque são conaturais, nascidos com o sujeito mesmo); vitalícios
vando-se do seu gozo, razão por que nascem e se extinguem ope (porque não podem faltar em nenhum momento da vida humana,
legis, com a pessoa. Não se transmitem mesmo mortis causa, embo- sendo inseparáveis da pessoa); necessários (porque não podem fal-
ra gozem de proteção depois da morte do titular; d) da extra- tar); essenciais (porque não são eventuais). O objeto dos direitos da
patrimonialidade decorre a impossibilidade de cumprimento e exe-
personalidade é interior, pois constituem manifestações inseparáveis
cução coativa; e) os direitos da personalidade não se extinguem pelo
do sujeito (não podem ter por objeto o mundo circundante). São
não-uso ou pela inércia na defesa (impenhorabilidade e impres-
intransmissíveis e extrapatrimoniais, pois permitem conseguir bens
critibilidade); f) são necessários porque não podem faltar, o que não
econômicos e exteriores, mas não se identificam com eles40. Apre-
"ocorre com qualquer dos outros direitos; g) jamais se perdem en-
quanto viver o titular33. sentam certa disponibilidade41.
Analisada a questão do conteúdo dos direitos da personalidade
Para Adriano de Cupis, os direitos da personalidade satisfazem
necessidades de ordem física ou moral, nem todas encontradas nas e verificado que, num primeiro momento, o direito do transexual se
pessoas jurídicas, por exemplo. Afirma que não possuem utilidade
econômica imediata, razão pela qual não são direitos patrimoniais.
Esse autor trata os direitos da personalidade como direitos absolu- 35. Cf. Direitos da personalidade, cit., p. 45.
36. Cf. Adriano dc Cupis, Direitos da personalidade, cit., p. 45.
tos. Aponta ele, como características dos direitos da personalidade:
37. Adriano de Cupis, Direitos da personalidade, cit., p. 51.
38. Adriano de Cupis, Direitos da personalidade, cit., p. 52.
39. Adriano de Cupis, Direitos da personalidade, cit., p. 58.
40. Adriano de Cupis, Direitos da personalidade, cit., p. 57.
32. Orlando Gomes, Introdução ao direito civil, cit., p. 157. 41. Cf. Derechos personalísimos, cit., p. 176-83.
33. Orlando Gomes, Introdução ao direito civil, cit., p. 157-8. 42. Cf. Santos Cifuentes, Derechos personalísimos, p. 176-92.

16 17
enquadra nesse grupo de direitos, passemos ao estudo de como o a atributos valorativos (ou virtudes) da pessoa na sociedade (o
referido direito é tratado pela doutrina. patrimônio moral, compreendendo: a identidade, a honra, as mani-
^/"Ora, a opção sexual (ou o direito de perseguir a orientação deri- festações do intelecto)"44.
vada de seu sexo psicológico) faz parte dos direitos intransmissíveis, Fábio Maria de Mattia, acompanhando a posição de Limongi
indisponíveis e inalienáveis, pois forma um conteúdo mínimo dentro França, apresenta o conteúdo dos direitos da personalidade:
do conjunto da personalidade do ser humano. "I — Direito à integridade física:
Iniciemos o estudo do conteúdo dos direitos da personalidade 1) Direito à vida e aos alimentos;
pela exposição de Adriano de Cupis, que o apresenta dividido nos
2) Direito sobre o próprio corpo, vivo;
seguintes temas:
3) Direito sobre o próprio corpo, morto;
"Direitos da personalidade — classificação geral:
4) Direito sobre o corpo alheio, vivo;
— direito à vida e direito aos alimentos
5) Direito sobre o corpo alheio, morto;
— direito à integridade física
6) Direito sobre partes separadas do corpo, vivo;
— direito à liberdade
7) Direito sobre partes separadas do corpo, morto.
— direito à honra
— direito ao resguardo pessoal (direito à imagem) II — Direito à integridade intelectual:
— direito ao segredo (de correspondência, documental, profis- 1) Direito à liberdade de pensamento;
sional, informações sobre terceiros e segredo doméstico) 2) Direito pessoal de autor científico;
— direito à identidade pessoal (direito ao nome) 3) Direito pessoal de autor artístico;
— direito moral do autor"42. 4) Direito pessoal de inventor.
Em linhas gerais, Santos Cifuentes segue a mesma trilha, aprer III — Direito à integridade moral:
sentando os direitos da personalidade entre os direitos à integridade
1) Direito à liberdade civil, política e religiosa;
física, à liberdade e à integridade espiritual43.
2) Direito à honra;
Carlos Alberto Bittar, depois de apresentar o ponto de vista de
3) Direito à honorificência;
diversos autores, afirma:
"... podemos distribuir os direitos da personalidade em: a) di- 4) Direito ao recato;
reitos físicos; b) direitos psíquicos; c) direitos morais; os primeiros 5) Direito ao segredo pessoal, doméstico e profissional;
referentes a componentes materiais da estrutura humana (a integri- 6) Direito à imagem;
dade corporal, compreendendo: o corpo, como um todo; os órgãos;
7) Direito à identidade pessoal, familiar e social"45.
os membros; a imagem, ou efígie); os segundos, relativos a elemen-
tos intrínsecos da personalidade (integridade psíquica, compreenden- Walter Moraes não diverge da classificação acima:
do: a liberdade; a intimidade; o sigilo etc.) e os últimos, respeitantes

44. Carlos Alberto Bittar, Os direitos da personalidade, Rio dc Janeiro, Fo-


rense Universitária, 1989, p. 17.
47. Adriano dc Cupis, Direitos da personalidade, cit. 45. Fábio Maria de Mattia, Direitos da personalidade: aspectos gerais, Revista
48. Derechos personalísimos, cit., p. 229. de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, ano 2, jan./mar. 1978, p. 48-9.

18 18
d) o direito ao recato
"Há pois um direito do físico e um direito do espírito. O direito
do físico inclui a vida, o corpo (o corpo, as partes do corpo, o cadá- e) o direito à imagem
ver) e a psique (enquanto função fisiológica). O direito do espírito f) o direito ao nome
contempla de uma parte o intelecto e de outra a subjetividade em si g) o direito moral do autor"48.
mesma. O direito do intelecto compreende a manifestação do pensa-
Verificado o conteúdo dos direitos da personalidade, passemos
mento e a obra do espírito (autoria, invenção e interpretação artísti-
ao enquadramento do direito do transexual.
ca). O direito da subjetividade compreende a liberdade, o estado de
família, a imagem, a privacidade (intimidade e segredo) e a identida- Antes, no entanto, impõe-se uma breve classificação do sexo.
de (a verdade, o nome, os sinais da personalidade)"46. Para que se possa entender o conceito de transexual e sua localização
entre os direitos da personalidade, quer como direito ao próprio cor-
Fernando Herrero-Tejedor segue a classificação de Beltrán de
po, quer como direito à intimidade, quer ainda como direito à busca
Heredia:
da felicidade, deve-se ter uma noção, ainda que precária, de sexo e
"a) Direito à identificação pessoal, que compreende o uso do suas classificações.
nome, do pseudônimo e dos títulos nobiliários.
b) Direito à vida e à integridade física, que garanta a inviola-
bilidade corporal. 4. Sexo e suas classificações. Tipos de sexo: genético, gonádico,
c) Direito à integridade moral, a honra e a reserva, com suas l fenotípico, psicológico e jurídico
diversas manifestações, como o segredo e a própria imagem.
d) Direito à liberdade, em todas as suas manifestações"47. Já advertimos ao leitor que o objetivo deste trabalho não é
Orlando Gomes assim trata o tema: (nem poderia ser) analisar questões médicas relativas à identifica-
ção do sexo. No entanto, para a apresentação do tema, tomaremos
"Consideram-se atualmente direitos à integridade física:
como referência alguns conceitos básicos retirados dos manuais,
a) o direito à vida; sem os quais não poderemos entrar na questão do transexual e de
b) o direito sobre o próprio corpo. seus problemas.
O direito sobre o próprio corpo subdivide-se em direito sobre o Assim, apresentaremos a classificação de alguns manuais de
corpo inteiro e direito sobre partes separadas, compreendendo os di- Medicina Legal, para os quais os sexos podem ser determinados por
reitos de decisão individual sobre tratamento médico e cirúrgico, vários critérios.
exame médico e perícia médica. Antes de verificar, no entanto, os vários ângulos da classificação
Admitem-se como direitos à integridade moral: do sexo, passaremos ao conceito básico do que se entende por sexo.
a) o direito à honra Para o Dicionário de Medicina Flammarion, "é o conjunto de ca-
b) o direito à liberdade racterísticas estruturais e funcionais que distingue o macho da fêmea" 49.

49. Orlando Gomes, Introdução ao direito civil, cit., p. 158.


46. Walter Moraes, Direitos da personalidade, in Enciclopédia Saraiva do
50. Dictionaire de Medicine Flammarion, Paris, 1975, p. 669, apud Tereza
Direito, São Paulo, Saraiva, 1979, v. 26, p. 32. Rodrigues Vieira, Direito à adequação de sexo no transexual, p. 50, Repertório IOB
47. Fernando Herrero-Tejedor, Honor, intimidad y propia imagen, 2. ed., de Jurisprudência, n. 3, 1996, p. 51-47.
Madrid, Editorial Colex, 1994, p. 59.

19
20
Para Guilherme Oswaldo Arbenz: Dessa forma, para a configuração do sexo cromossômico, o mo-
"O conceito de sexo não pode ser expresso apenas em termos mento importante é a fecundação do novo ser.
morfológicos e funcionais, uma vez que na definição do sexo normal Há ainda outro critério de identificação: o endócrino, gonadal e
intervém vários fatores, dos quais o primeiro é o genético. O fenótipo extragonadal.
sexual, no entanto, depende de certos hormônios responsáveis pelos
Para Odon Maranhão:
referidos aspectos morfológicos e funcionais"50.
"As glândulas reprodutoras (gônadas), representadas pelos tes-
Odon Maranhão assim define sexo:
tículos (masculinas) e os ovários (femininas), definem o chamado
"Não se pode mais considerar o conceito de sexo fora de uma
sexo goncídico. Seriam os elementos mais típicos de cada sexo. Em
apreciação plurivetorial. Em outros termos, o sexo é a resultante de
casos normais, pode-se assim considerar. Contudo, existem glându-
um equilíbrio de diferentes fatores que agem de forma concorrente
las anormais com aspectos mistos (ovo-testis, p. ex.)"54.
nos planos físico, psicológico e social".
Outro critério é o do sexo morfológico. Eis a definição de
E, na seqüência:
Arbenz:
"Assim, fatores genéticos, endócrinos, somáticos, psicológicos e
sociais se integram para definir a situação de uma pessoa em termos "O sexo não se define apenas pelo aspecto morfológico externo
sexuais. As implicações jurídicas serão decorrentes dessa integração" 51. e pela anatomia interna. E certo, porém, que os sexos se distinguem,
em princípio, por estes elementos. A genitália externa e a genitália
Todos os autores mencionados, como visto, trazem a notícia de
interna, assim como os Caracteres sexuais secundários a partir da
que é preciso apresentar uma conjugação de critérios para a determi-
puberdade, diferem de maneira expressiva, o que permite a distinção
nação do sexo do indivíduo.
nos casos normais. Senão vejamos"55.
Veremos, em breve passagem, os critérios de definição de sexo.
A seguir, passa o autor a discorrer sobre os órgãos masculinos e
O primeiro deles é o genético, conhecido como cromossômico
femininos:
ou cromatínico.
"Órgãos genitais femininos: O aparelho genital feminino cons-
Para Arbenz, "O sexo do indivíduo é deterrninado no momento
ta basicamente de dois ovários (gônadas femininas); dois oviduetos
\ da fecundação, momento esse que corresponde à penetração do es-
ou trompas utérinas (tubas uterinas ou trompas de Falópio); útero,
) permatozóide no óvulo, para dar origem à célula-ovo (ou simples-
vagina e genitália externa representada pela vulva. Esta última com-
f mente ovo). Os cromossomos sexuais são os responsáveis por essa
preende: 1) as formações labiais (grandes lábios e pequenos lábios
V determinação"52.
ou ninfas); 2) o espaço interlabial com o vestíbulo, o orifício inferior
Para Emilio Bonnet, "o sexo cromossômico é determinado no
da uretra (meato urinário) e o orifício inferior da vagina; 3) o apare-
momento da fecundação ovular"53.
lho erétil (clitóris e bulbos vaginais)"56.
"Órgãos genitais masculinos: A genitália masculina compreende:
1) os testículos (gônadas masculinas) com os seus envoltórios, as bolsas
50. Guilherme Oswaldo Arbenz, Medicina legal e antropologia forense. Rio
de Janeiro, Alheneu, 1988, p. 409.
51. Odon Ramos Maranhão, Curso básico de medicina legal, 7. ed., São Pau-
lo, Malheiros Ed., 1995, p. 127. 55. Curso básico de medicina legal, cit., p. 129, grifos originais.
52. Medicina legal e antropologia forense, cit., p. 413. 56. Medicina legal e antropologia forense, cit., p. 410.
53. Emilio Fcderico Pablo Bonnet, Medicina legal, Buenos Aires, Lopez 57. Guilherme Oswaldo Arbenz, Medicina legal e antropologia forense, cit.,
p.410.
Libreros Ed., 1967, p. 334.

22 20
escrotais; 2) as vias espermáticas: um canal deferente: vesículas semi- / Por fim, o sexo jurídico, entendido este como o resultante do
nais; canais ejaculadores, que lançam o esperma na uretra; 3) o pênis,
registro civil do indivíduo60. Para a determinação do sexo, os autores
órgão copulador (genitália externa masculina); 4) glândulas anexas: prós-
| ressaltam o conjunto de todos os critérios mencionados.
tata e glândulas bulbo-uretrais (glândulas de Cowper ou Méry)"57.
A apresentação clara feita por Matilde Josefina Sutter 6' leva a
Ao lado desses característicos, o autor arrola caracteres sexuais essa conclusão.
secundários. Assim:
A autora apresenta alguns critérios para a determinação do sexo
"Sexo feminino: desenvolvimento das mamas, deposição adiposa de um indivíduo, demonstrando que a conjugação de tais critérios
nos quadris e nádegas, aparecimento de pêlos axilares, crescimento de será sempre a melhor forma de enquadrá-lo. Dessa forma, o sexo
pêlos pubianos com disposição do tipo feminino (implantação supe- pode ser identificado do ponto de vista genético, endócrino,
rior em linha reta). Do ponto de vista funcional, começa a se manifes- morfológico, psicológico e jurídico. É da análise de todos esses ele-
tar a libido (estro), que é dirigida para o sexo masculino. Sob o aspecto mentos que se pode recolher uma idéia mais precisa do sexo de um
psíquico ocorrem, também, algumas modificações. indivíduo. Por outro lado, podemos afirmar que o quadro de norma-
Sexo masculino: pêlos faciais (barba, bigode), pêlos corporais lidade se desenvolve quando há um sincronismo perfeito das carac-
(axilas, membros superiores e inferiores, tórax), pêlos pubianos com terísticas orgânicas e psicológicas. Merece ser trazida a citação de
disposição do tipo masculino (implantação superior convergente para Farina: "num indivíduo tido como protótipo de normalidade, existe
um ponto mediano mais alto) aumento do volume da laringe, voz um sincronismo perfeito das características tanto orgânicas como
mais grave (de contralto, quase feminina, até baixo, passando por psicológicas de per si, como ainda no confronto delas entre si" 62.
tenor e barítono). A libido se dirige para o sexo feminino. Alterações
A busca da unidade é, portanto, o ponto mais importante da
psicológicas no início da puberdade"58.
identificação sexual de um indivíduo. A identificação entre os diver-
Ainda há que ser mencionado o sexo psicológiccjiia definição sos fatores caracterizadores da sexualidade é que determinará ser ou
de Odon Maranhão: N não uma situação revestida de normalidade.
"É evidente que os fatores constitucionais e endócrinos predis- Em caso de divergência, no entanto, o aspecto psicológico é o
porão alguém a um prevalecente tipo de reação psicológica. Além dis- que deve apresentar maior relevância, como bem analisado por Tere-
so os de ordem educacional, familiar, escolar etc. atuarão até certo za Rodrigues Vieira:
ponto de uma forma orientada a levar alguém a se comportar e a reagir
* "Havendo desarmonia entre eles (os componentes para deter-
como masculino ou feminino. Outras vezes os processos educativos,
minação do sexo), o componente que apresenta maior relevância é o
de aculturamento e de adaptação social serão ineficazes para alcançar
^psicológico"63.
esse ajuste bio-psíquico-social. Nesses casos haverá desvio psicológi-
co-sexual, com grande diversidade de situações patológicas. Geral-
mente, porém, um ajuste ou integração chega a ser obtido e as pessoas
apresentam uma estrutura psicológica própria do seu sexo biológico" 59. 61. Cf. Bonnet, Medicina legal, cit., p. 339.
62. Matilde Josefina Sutter, Determinação e mudança de sexo, São Paulo,
Revista dos Tribunais, 1993.
63. Roberto Farina, Transexualismo: do homem à mulher normal através dos
57. Guilherme Oswaldo Arbenz, Medicina legal e antropologia forense, cit., estados de intersexitalidade e das parafiliais, São Paulo, Novolunar, 1982, p. 22,
p. 410. apud Matilde Josefina Sutter, Determinação e mudança de sexo, cit.
58. Guilherme Oswaldo Arbenz, Medicina legal e antropologia forense, cit., 64. Tereza Rodrigues Vieira, Pelo reconhecimento da legalidade do direito à
p.410. adequação do sexo do transexual, Tese dc Direito Civil, apresentada perante a PUCSP,
59. Curso básico de medicina legal, cit., p. 130. sob a orientação do Prof. Dr. Nelson Luiz Pinto, não publicada, p. 50.

21 25
Antes de entrarmos no conceito de transexual, parece impor- O homossexualismo não deve ser confundido com o travestismo.
tante lembrar alguns desvios da normalidade sexual. Na cpneeiluação de Hélio Gomes:
A título de referência, mencionemos alguns casos de inter- "Travestismo. É um desvio do sexo no qual o indivíduo se sente
sexualidade. atraído pelas vestes do sexo oposto"69.
Para Bonnet, assim se caracterizaria um estado de interse- Existem outras questões que poderiam, num primeiro momen-
xualidade: to, confundir o conceito de transexual, além do homossexualismo e
"... Ia noción requiere mayor concreción, y así es que entende- do travestismo. As variantes são trazidas por Tereza Rodrigues Vieira:
mos por estados intersexuales la concomitância total o parcial en un "Homofobia: A homofobia é o conjunto das atitudes negativas
mismo indivíduo de los caracteres genitales y extragenitales em relação aos homossexuais, somada ao medo de tonar-se homos-
correspondientes a ambos sexos"64. sexual. Os preconceitos, as brincadeiras degradantes, os agravos, o
Odon Maranhão define dessa forma os estados intersexuais: medo de ser suspeito e o desprezo fazem parte do cotidiano do
"São quadros clínicos que apresentam problemas (diagnóstico, homófobo"70.
terapêutico e jurídico) quanto ao verdadeiro sexo da pessoa considerada. "Bissexualismo: A bissexualidade animal refere-se ao desejo
Isto ocorre face a anomalias genitais (principalmente) e extragenitais"65. erótico não exclusivo pelos dois sexos"71.
Como veremos, o transexual não apresenta um estado de "Fetichismo é a perversão em que pessoa se sente atraída eroti-
intersexualidade. Os autores mencionam como exemplo de estado camente por um objeto que, a priori, não tem qualquer conotação
intersexual os hermafroditas66. Algumas observações sobre os tra- sexual"72.
vestis e sobre o homossexualismo devem ser feitas antes de entrar- "'Drag queen' — Não se trata de travestis. Não aplicam silicone
mos no conceito de transexual67. ou hormônios e nem são prostitutas. São homens que se vestem de
Para Orlando Soares68: mulher para sair à noite, nos clubes e não pretendem se fazer passar
"Homossexualismo é a anomalia sexual que consiste na prática por mulheres, querem apenas se divertir"73.
ativa, passiva ou ambivalente, de atos libidinosos, entre indivíduos "'Cross-dressers' — Não tão exagerados como as 'drag queens',
do mesmo sexo. Denomina-se inversão sexual". os 'cross dressers' são pessoas elegantemente trajadas com roupas
do sexo oposto, freqüentadores de clubes do gênero, e se declaram
heterossexuais"74.

64. Medicina legal, cit., p. 385. "'Daddy-boys'—As 'daddy-boys'ou 'female-to-male' (FTM),


65. Curso básico de medicina legal, cit., p. 131. consideradas nos Estados Unidos como fenômeno desde 1991,
66. Cf. Odon Maranhão, Curso básico de medicina legal, cit., p. 132, e Orlando
Soares, Sexologia forense, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1990, p. 86 e s.
67. A distinção é necessária diante da freqüente confusão entre os grupos. A
imprensa, cm não raras oportunidades, confunde os conceitos de travesti, transexual 70. Hélio Gomes, Medicina legal, 31. ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos,
c mesmo homossexual. O Jornal da Tarde do dia 21 de novembro dc 1998 traz 1994, p. 399.
notícia de que um transexual vestia-se de homem para roubar. Noticia o caso de um 71. Pelo reconhecimento da legalidade, cit., p. 47.
ladrão que se teria submetido à cirurgia de alteração de sexo e entrava em bancos 72. Tereza Rodrigues Vieira, Pelo reconhecimento da legalidade, cit., p. 48.
vestido de homem e saía como mulher, driblando a vigilância. Na notícia, há o 73. Tereza Rodrigues Vieira, Pelo reconhecimento da legalidade, cit., p. 54.
emprego das expressões "transexual" e "travesti" como sinônimas (p. 13A). 74. Tereza Rodrigues Vieira, Pelo reconhecimento da legalidade, cit., p. 60.
68. Sexologia forense, cit., p. 91. 75. Tereza Rodrigues Vieira, Pelo reconhecimento da legalidade, cit., p. 62.

26 22
identificam-se, sexual e psicologicamente, de forma masculina. Nas- culina, sente-se psicologicamente mulher, rejeitando seu papel de
cidas mulheres, estas tomam hormônios e se fazem passar por ho- 'gênero' masculino até buscar a alteração de sua anatomia para assu-
mens gays. Com hormônios adquirem barba, músculos e voz grossa, mir aparência física feminina. Correspondentemente, há mulheres
muitas, inclusive, chegam a aderir às cirurgias"75. em situação análoga (Aldo Pereira)"76.
Com essas necessárias diferenciações entre o homossexual e o Vejamos a definição de Aracy Augusta Leme Klabin:
travesti, os estados de intersexualidade e outras hipóteses que pode- "O transexual é um indivíduo, anatomicamente de um sexo, que
riam gerar certa confusão ao leitor, passemos à definição de transexual, acredita firmemente pertencer ao outro sexo. Essa crença é tão forte
objeto de nosso estudo. que o transexual é obcecado pelo desejo de ter o corpo alterado a fim
de ajustar-se ao 'verdadeiro' sexo, isto é, ao seu sexo psicológico" 77.
Sutter aponta que o conceito de transexual está diretamente ligado
5. O conceito de transexual à incompatibilidade entre o sexo biológico e a identificação psicológica:
"A incompatibilidade entre o sexo biológico e a identificação
Como nosso objetivo não é a busca de critérios científicos para
psicológica num mesmo indivíduo é chamada de transexualismo pela
a determinação do sexo, nem o estudo de anomalias diversas em
grande maioria dos estudiosos"78.
relação à sexualidade, abordemos a questão que mais nos interessa,
ou seja, a idéia de transexualismo. Não resta dúvida de que o sentido da palavra "transexual" deve
ser o da não-identidade entre o sexo psicológico e o sexo biológico
A doutrina, em linhas gerais, não apresenta dúvidas sobre o
de determinado indivíduo.
conceito de transexual. A partir da adoção desse conceito, verificare-
mos que a análise do critério de determinação perde relevância, dei- Vejamos outros conceitos a título de ilustração.
xando de lado as noções mais técnicas. Odon Maranhão define os transexuais:
Maria Helena Diniz define transexual: "... fenotipicamente pertencem a sexo definido, mas psicologi-
"Transexual: Medicina legal e psicologia forense. 1. Aquele que camente ao outro e se comportam segundo este, rejeitando aquele".
não aceita o seu sexo, identificando-se psicologicamente com o sexo E, a seguir:
oposto (Hojda), sendo, portanto, um hermafrodita psíquico (H. Ben- "... não obtêm resultado psicoterápico eficiente e buscam ob-
jamin). 2. Aquele que, apesar de aparentar ter um sexo, apresenta sessivamente a 'correção' do sexo morfológico, por meio de cirurgia
constituição cromossômica do sexo oposto e mediante cirurgia passa radical"79.
para outro sexo (Othon Sidou). Tal intervenção cirúrgica para a mu- Para Holdemar Oliveira de Menezes, "o problema residiria na
lher consiste na retirada dos seios, fechamento da vagina e confec- não aceitação da relação homossexual, na não aceitação de identida-
ção de pênis artificial, e para o homem, na emasculação e posterior
implantação de uma vagina (Paulo Matos Peixoto). 3. Para a Associa-
ção Paulista de Medicina, é o indivíduo com identificação psicos-
76. Maria Helena Diniz, Transexual, in Dicionário jurídico, São Paulo, Sarai-
sexual oposta aos seus órgãos genitais externos, com o desejo com- va, 1998, v. 4, p. 604.
pulsivo de mudá-los. 4. Aquele que, tendo morfologia genital mas- 77. Aracy Augusta Leme Klabin, Aspectos jurídicos do transexualismo. Dis-
sertação de Mestrado apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, não publicada, 1977, p. 5.
78. Matilde Josefina Sutter, Determinação e mudança de sexo, cit., p. 105.
75. Tereza Rodrigues Vieira, Pelo reconhecimento do legalidade, cit., p. 63. 79. Odon Maranhão, Curso básico de medicina legal, cit., p. 134.

28 23
de sexual ou obtida por hormônios na busca desesperada pela trans- passa por tratamento hormonal e termina em cirurgia — não é um
formação cirúrgica, na procura insaciável pela harmonia entre o sexo capricho passageiro. E a busca consistente de integração física, emo-
psicossocial e a atividade sexual desejada, como se pertencesse ao cional, social, espiritual e sexual, conquistada a enormes penas pes-
sexo oposto"80. soais. A vontade de ter seu sexo alterado é o ponto mais característi-
Não destoa desse entendimento Javier López-Galiacho Perona: co na psique do transexual. A doutrina reconhece que tal fato ocorre
"Desde el punlo de vista estrictamente jurídico, entiendo por desde cedo. Suas vestes são femininas83, seus modos são femininos
transexualidad el síndrome psicosexual sufrido por quien presenta (e não afeminados). Trazem em seu modo de ser delicado um traço
una discordância entre el sexo que psicologicamente siente como distintivo. São mais sensíveis e pretendem companhia do mesmo sexo
propio y el que anatômica y registralmente le corresponde por sus (no exemplo, masculina, sempre mais velha e mais forte)".
órganos, lo que le hace recurrir, generalmente, a un tratamiento mé- Por essa definição e caracterização, não se podem confundir os
dico-quirúrgico para corregir aquella discordância, procurando pos- transexuais com os homossexuais ou mesmo com os travestis.
teriormente que su nueva realidad sexual psicosomática cobre carta Vejamos a lição de Ramsey:
de natureza en el Registro Civil"81.
"O Manual de diagnósticos e estatísticas declara o seguinte quan-
ParaGerald Ramsey82, os indivíduos transexuais são aqueles que: to à pessoa que define como 'travesti fetichista': Quando travestido,
"1. Buscam tratamento hormonal permanente e/ou cirurgia de usualmente se masturba, imaginando-se tanto o objeto masculino
redesignação sexual; quanto o feminino da sua fantasia sexual. Isto de forma alguma des-
2. Completaram algumas fases de tratamento honnonal e/ou ci- creve o típico transexual, que 1) geralmente não obtém prazer sexual
rurgia de redesignação sexual, e estão satisfeitos com os resultados; em se vestir como o outro sexo, e 2) não se identifica com os seus
3. Aspiram a um tratamento hormonal e/ou a uma cirurgia de órgãos genitais de nascença"8''.
redesignação sexual, mas que — por razões religiosas, políticas, fi- Ao distinguir o homossexual do transexual, Ramsey aponta
nanceiras ou outras — não podem participar ativa, plena ou publica- quatro respostas para a pergunta "Mesmo que diga ser transexual, a
mente neste processo. pessoa não é, na verdade, homossexual?".
Na minha experiência, transexualidade — ao contrário de um "Primeira Resposta: Há uma tendência para se pressupor que,
simples distúrbio de identidade de gênero — não é um fenômeno quando uma pessoa é transexual, ele ou ela acabará por assumir uma
passageiro. Poderia antes ser descrito como 'imutável na maioria orientação heterossexual depois da cirurgia. Embora isto seja verda-
das instâncias'. (É também extremamente raro que psicoses se apre- de na maioria dos casos, não é uma situação universal. Um transexual
sentem como transexualidade aparente.) O processo transexual — a pode ter uma orientação heterossexual, homossexual, bissexual ou
jornada que começa com uma terapia e vestir-se como o outro sexo, até mesmo assexual. Um transexual homem-para-mulher, por exem-
plo, pode estar social ou sexualmente interessado pelo sexo oposto
(neste caso, outro homem), pelo mesmo sexo (uma mulher), por am-

80. Holdemar Oliveira de Menezes, Transexualismo, Revista Femina, maio


1975, v. 3/298, n. 5, apud Murilo Rezende Salvago, O transexual e a cirurgia para a
pretendida mudança de sexo, RT, 491:242. 84. Servimo-nos, a título de exemplo, dc dado estatístico segundo o qual 95%
81. Javier López-Galiacho Perona, La problemática jurídica de la dos casos dc transexualismo ocorrem em homens que desejam se tornar mulheres —
transexualidad, Madrid, McGraw-Hill, 1998, p. 200. cf. Klabin, Aspectos jurídicos do transexualismo, cit., p. 6.
82. Transexuais. Perguntas e respostas, São Paulo, Ed. GLS, 1998, p. 32. 85. Transexuais. Perguntas e respostas, cit., p. 38.

24
Perona86 recomenda, no entanto, a verificação de alguns crité-
bos os sexos ou por nenhum. (É importante lembrar que a mente do
rios para a definição do diagnóstico:
transexual homem-para-mulher é feminina.)
"Como critérios para que el diagnóstico sea acertado, se han
Segunda Resposta: O Manual de diagnósticos e estatísticas afir-
senalado modernamente los seguintes:
ma que homens heterossexuais e bissexuais que se travestem para
obter excitação sexual deveriam igualmente receber um diagnóstico 1) ésle debe durar no mínimo entre uno y dois anos;
de 'travestismo fetichista'. Muitos transexuais hetero-, homo-, bi ou salvo casos excepcionales, el diagnóstico no debe comenzar
assexuais — homem-para-mulher e mulher-para-homem — antes de la mayoría de edad dei paciente;
travestem-se regularmente. Alguns indivíduos transexuais ficam (e debe comprobarse que en el paciente se manifiestan los siguintes
outros não) estimulados sexualmente ao travestirem-se. caracteres:
Terceira Resposta: Assim como um heterossexual não requer sensación de disgusto y de repugnância por los caracteres
um parceiro para ser considerado heterossexual, o homossexual não sexuales primários y secundários dei sexo de nacimiento;
tem de ter um parceiro para ser considerado homossexual. Portanto,
persistente deseo de desembarazarse de los propios genitales
não é a presença de um parceiro sexual que determina a nossa orien-
por médio de una operación quirúrgica que, en general, es lo que há
tação, mas sim quem somos por dentro. Lembro ao leitor que o
transexual pré-operatório é, no máximo, 'hipossexual' (i. e., tem conducido al paciente a solicitar la ayuda dei médico y un compulsi-
baixíssima atividade sexual). Uma libido extremamente alta contra- vo deseo de vivir como miembro dei otro sexo;
indicaria a transexualidade na esmagadora maioria dos casos. percepción de sí mismo como heretosexual aunque su pareja
Quarta Resposta: As pessoas muitas vezes querem saber, ao fa- sea de idêntico sexo genético, anatômico y registrai;
zer esta pergunta, se na relação entre dois homens um dos parceiros antecedentes de travestismo o cross-dressing, en general desde
assume uma instância sexual mais submissa (i. e., tradicionalmente la edad escolar;
feminina). Contudo, que um parceiro seja tipicamente ativo ou pas- que esas manifestaciones resulten continuadas en el tiempo; es
sivo é algo que não está necessariamente relacionado com o gênero.. decir no estean limitadas a períodos de estrés en que pueda encontrase
O fato de um homem, por exemplo, ser um parceiro passivo não la persona;
significa que ele deseje ser uma mulher. Pode simplesmente preferir
ausência en el paciente de situaciones físicas de intersexualidad
tomar uma posição passiva em algumas situações sexuais.
ou de anomalias genéticas;
Se um homem quer ser uma mulher, ele é realmente homossexual?
el cuadro que presente el paciente no debe responder a transtor-
Sim. Talvez. Não. A transexualidade não tem mais ligação com
no mental alguno; a veces, un aparente síndrome transexual puede
a homossexualidade do que com o Q. I., a situação socioeconômica,
esconder una neurosis obsesiva, ciertas ideas delirantes, o una
a religião ou a raça da pessoa"85.
esquizofrenia;
Portanto, podemos afirmar que há diferenças entre o travesti, o
la convicción dei transexual debe aparecer como irreversible.
homossexual e o transexual.
Si hay reversibilidad estaríamos, más bien, ante un cuadro de neurosis;
Quanto a este, há uma profunda falta de identificação entre seu
se debe comprobar el grade de adaptación dei transexual en su
sexo psicológico e o biológico. Essa divergência provoca no indiví-
nueva situación dentro de su âmbito familiar y social;
duo um processo angustioso, conflitivo e delicado.

86. La problemática jurídica de la transexualidad, cit., p. 207, grifos originais.


85. Transexuais. Perguntas e respostas, cit., p. 42-3.

25
32
descarlan en el paciente sintomas de homosexualidad o tra, cirurgião, psicólogo e assistente social, obedecendo aos critérios
travestismo". abaixo definidos, após dois anos de acompanhamento conjunto: diag-
Vê-se, do exposto, que o estado de transexualismo não é algo nóstico médico de transexualismo; maior de 21 (vinte e um) anos;
passageiro ou, mesmo, com possibilidade de se tornar passageiro. ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia; 4.
As cirurgias só poderão ser praticadas em hospitais universitários ou
Maria Helena Diniz adverte para o transexualismo secundário
hospitais públicos adequados à pesquisa; 5. Consentimento livre e
(passageiro):
esclarecido de acordo com a Resolução CNS n. 196-96.6".
"Transexualismo secundário. Psicologia forense e medicina le-
O Conselho Federal de Medicina determina que os característi-
gal. E transitório e traduz apenas uma transhomossexualidade, ou
cos do transexualismo não sejam confundidos com qualquer outra
seja, um transexualismo episódico e fortuito (Roberto Farina)" 87.
anomalia, tampouco sejam episódicos. O transexualismo há de ser
Deve apresentar traço de definitividade, o que será analisado permanente e sem qualquer outra anomalia, quer de caráter psicoló-
durante um período de um ou dois anos. O transexual secundário não gico, quer de caráter de intersexualidade. Respeitadas, portanto, as
pode, portanto, ser visto como passível de operação de redesignação regras impostas na resolução, o Conselho reconhece como correta,
de sexo, pois lhe falta o traço da definitividade. válida e necessária a cirurgia de redesignação de sexo. A questão
Recentemente, o Conselho Federal de Medicina entendeu como será analisada adiante, quando verificarmos a existência ou não da
correta a operação de redesignação de sexo,' permitindo que o figura penal das lesões corporais graves em decorrência da cirurgia.
transexual realizasse a operação. A medida, no entanto, exige certos
cuidados. O diagnóstico para a caracterização de transexualismo tem
seus critérios fixados na Resolução n. 1.482, de 10 de setembro de 6. O sexo e seu contexto histórico. A mudança do enfoque: repro-
1997, que assim disciplina88: dução X prazer
"1. Autorizar, a título experimental, a realização de cirurgia de 6.1. Sexualidade e sexo: uma abordagem psicológica
transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e ou
procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais
Uma advertência metodológica: antes de adentrarmos a ques-
secundários como tratamento nos casos de transexualismo; 2. A de-
tão relativa à sexualidade e ao sexo, vistos sob o prisma da Psicolo-
finição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abai-
gia e da Psiquiatria, é preciso esclarecer mais uma vez o que se pre-
xo enumerados: — desconforto com o sexo anatômico natural; dese-
tende com o capítulo. Não se objetiva, com certeza absoluta, pene-
jo expresso de eliminar os genitais, perder as características primá-
trar nos meandros dessas ciências, trazendo o leitor para conceitos
rias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; per-
específicos e técnicos. Mas o trabalho necessita, ao menos de forma
manência desse distúrbio de forma contínua e consistente por, no
leve e superficial (mas objetiva), de determinados conceitos, que se-
mínimo, dois anos; ausência de outros transtornos mentais; 3. A se-
rão utilizados para a fundamentação da argumentação desenvolvida.
leção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá a
Neste capítulo buscou-se, portanto, apresentar um pouco da evo-
avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico-psiquia-
lução do conceito da sexualidade, sob o prisma histórico, mostrando
a mudança de ótica desde a Antigüidade clássica até os nossos dias.
Sexualidade e função social, sexualidade e vida familiar e sexualida-
87. Maria Helena Diniz, Transexualismo secundário, in Dicionário jurídico, de e prazer foram os temas enfocados, necessários para que pudésse-
cit., v. 4, p. 605. mos, mais adiante, retomar essas questões e desenvolver um ponto
88. Publicada no Diário Oficial da União de 19 de setembro de 1997,
convergente na proteção constitucional do transexual.
p. 20944.

34 26
Rompendo a seqüência do trabalho, escusas aos estudiosos
duo na sociedade. Para tanto, consideramos válido contextualizar o
do direito, pelo capítulo estranho ao quotidiano jurídico, e escu-
conceito.de sexualidade dentro do processo histórico, apontando para
sas aos psicólogos e psiquiatras, pela forma amadora do trata- marcos importantes que, indiscutivelmente, transformaram o pensa-
mento em questão. mento humano em relação a esse tema. Dentre tais marcos, o pensa-
Não poderíamos, no entanto, falar em transexualismo, em es- mento de Aristóteles, na Antigüidade, de Santo Agostinho, na Idade
tados intersexuais e mesmo em sexo sem observar a evolução das Média, e, a partir de Darwin, chegando-se a Freud na Idade Moderna
concepções de sexo, a alteração da função reprodutiva para a rela- e na Contemporânea.
ção de prazer. Esse transformar-se do pensar humano provocou uma
Passemos ao assunto: falar da sexualidade humana é falar das dissociação entre as idéias de prazer e reprodução, dissociação que
origens da humanidade. Em todas as culturas, incluindo as mais pri- levou cientistas a indagar sobre a questão da identidade sexual e ci-
mitivas, a sexualidade sempre esteve presente, permeando todos os vil, e de que maneira ela influi no desenvolvimento do indivíduo, na
setores da vida do indivíduo e do grupo no qual está inserido. O senti- sua plena capacidade de contribuição para a sociedade, e na forma
do da sexualidade sempre variou conforme a época, a cultura e os pela qual esta percebe tal capacidade.
costumes morais vigentes. Numa perspectiva antropológica, "o sexo Pretendemos analisar alguns tipos de sexualidade, enfocando
começou como uma adaptação biológica, mas em todas as culturas em especial a transexualidade, seu significado e sua visão em nossa
humanas tornou-se um ponto focai para códigos sociais e morais, bem sociedade. Por fim, demonstrar quão fundamental é a aceitação da
como gerando temas que passam através da religião e da arte" 89. própria sexualidade, seu significado e sua importância no desenvol-
Os aspectos mais evidentes e comuns entre as diferentes cultu- vimento do ser humano; essa aceitação é indissociável da idéia de
ras, povos e épocas dizem respeito a ser a sexualidade associada à adequação individual, social e cultural. A identificação do indivíduo,
reprodução e à continuidade da espécie, e ao sexo nunca ter repre- socialmente, com seu padrão sexual é ponto de partida para a busca
sentado meramente um ato físico. Esse ato assumiu diversas formas, de sua felicidade e adaptação.
sempre tendo como base a organização da sociedade e a formação de
valores morais e éticos. E nessa busca da felicidade que se funda nosso trabalho.
O tema deve ser abordado minimamente, como necessário ao
entendimento do direito à proteção constitucional do transexual. 6.3. A evolução histórica do conceito de sexualidade
Feita a advertência, passemos ao capítulo sobre o sexo e a se-
xualidade. Michel Foucault, em História da sexualidade, utiliza-se do prin-
cípio do isomorfismo para fazer analogias entre as relações sociais e
as relações sexuais:
6.2. Sexo e sexualidade: alguns conceitos básicos
"... deve-se entender por esse princípio que a relação sexual —
sempre pensada a partir do ato modelo da penetração e de uma polarida-
Este trabalho pretende enfocar a sexualidade como componen-
de que opõe atividade-passividade — é percebida como do mesmo tipo
te essencial e básico para a inserção ajustada e harmoniosa do indiví-
que a relação entre superior-inferior, aquele que domina e é dominado, o
que submete e o que é submetido, o que vence e o que é vencido" 90.

89. E. Gregcrsen, Práticas sexuais — a história da sexualidade humana, São


90. Michel Foucault, História da sexualidade: a vontade do saber, Rio de
Paulo, Rocca, 1993, p. 3. Janeiro, Graal, 1984, v. 2, p. 190.

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É a partir dessa dualidade que desenvolveremos a questão da papel de procriadoras. As escravas eram vendidas ainda meninas, e
sexualidade no processo histórico, social e cultural. muito cedo se prostituíam.
Na Antigüidade greco-romana, a sociedade tinha como modelo E nesse contexto social, cultural e mitológico que surgem os
o escravismo. Como os escravos eram maioria em relação aos cida- escritos de Aristóteles, objetivando estudar o relacionamento entre
dãos livres, tornava-se essencial a relação de domínio, para que fos- os sexos. Em função deles, é considerado o pai da sexologia. Entre
sem preservados os direitos dos que eram livres. O trabalho servil suas principais idéias, postula a formação de casais como relação
natural. A união entre sexos opostos é fundamental para a continui-
destinava-se aos homens inferiores. Aos homens livres, destinava-se
dade da espécie. Admite ainda que a formação de casais possa ter
o acesso ao que era essencial. Ou seja, segundo Aristóteles, "o escra-
outras finalidades, como, por exemplo, formar um patrimônio co-
vo não possui de forma alguma a faculdade de deliberar, enquanto a
mum. Outra idéia é a de que "o acasalamento de pessoas muito jo-
mulher possui, mas sem autoridade plena"91.
vens é mau para a procriação, pois em todas as espécies animais a
Havia necessidade de manifestação sexual, o que se verifica descendência de criaturas jovens é mais imperfeita e predominante-
pelo fato de as mulheres se queixarem da ausência dos maridos, que mente de fêmeas, e de tamanho pequeno"93. Há preocupação com a
ficavam distantes, envolvidos em conversas filosóficas92. descendência sadia, com a acumulação de bens e com a formação
Alguns escritos trazem o relato de um objeto chamado "olisbos", política do filho homem, pois a ele caberia dar continuidade à vida
com formato de pênis, feito de madeira ou couro, que servia para a política do pai. Os preceitos defendem o aborto, para controle
populacional; indicam o emprego de anticoncepcionais, orientando
masturbação e para as relações homossexuais.
para o uso de óleo de cedro ou oliva antes das relações sexuais; de-
O termo "lésbicas" vem da ilha de Lesbos, onde a poetisa Safo fendem ainda que "os filhos de pais muito jovens nascem imperfei-
mantinha uma academia para mulheres jovens. O belo era enaltecido, tos de corpo e alma, e os de pais excessivamente idosos são débeis:
e o amor mais autêntico só poderia ser realizado entre semelhantes, conseqüentemente, esse período deve ser limitado à fase de plenitu-
ou seja, homens. Surge aí uma contradição, pois a pederastia era de mental"94. ■
condenada por leis severas, e só aceita para os gregos adultos que
Essas idéias levam-nos a perceber que havia preocupação com
tutelavam meninos para fins educacionais e de sua inserção no conví-
a descendência e com população sadias, com o futuro garantido por
vio social, o que representava o acesso ao saber. As práticas sexuais
meio de herança, e com o controle populacional. Aristóteles põe o
eram explicadas por meio de mitos, pelos deuses. A pederastia, por
feminino ao lado do irracional e o masculino ao lado da civilização.
exemplo, explicava-se pelo mito de Orfeu, que passa a se apaixonar
Somente o homem, pois, pode alcançar o estado de cidadão livre.
por meninos depois do desgosto da perda de sua esposa, Eurídice.
A idéia central, é, portanto, a de que o sexo é basicamente re-
Há ainda a explicação pelo mito de Thamyris, filho de Philamon e da
produção, procriação.
ninfa Argiope, que foi cativado pelo jovem Hyacinthis.
Em Roma, por volta do século V a.C, o casamento tinha como
As relações heterossexuais começam paulatinamente a ter maior
finalidade a procriação, e estava vinculado aos cidadãos livres. A situa-
espaço na sociedade grega. Tal atividade, em que havia desejo e pra-
ção da mulher, enquanto procriadora e propriedade do marido, era mui-
zer, só era possível com prostitutas. As esposas restava somente o
to semelhante à descrita por Aristóteles. A prostituição era necessária

91. Apud Juçara Tercsinha Cabral, A sexualidade no mundo ocidental, Cam-


pinas, Papirus, 1985, p. 82. 94. Aristóteles, Política, Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1985, p. 259.
92. Juçara Teresinha Cabral, A sexualidade no inundo ocidental, cit., p. 83. 95. Aristóteles, Política, cit., p. 261.

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para preservação das mulheres nascidas livres. Havia também as escra- Se a Antigüidade teve como característica básica o império da
vas, e eram estas as predestinadas à prostituição. Com a decadência do razão, e a Idade Média a da razão de Deus, a Idade Moderna elege a
Império romano e o advento do Cristianismo, passou a predominai - a razão do homem. O estudo da sexualidade, enquanto ciência, surge
necessidade do reconhecimento de uma única moral. A Igreja tomou-se exatamente nessa época.
cada vez mais forte, e assumiu o papel de moralizadora, centralizadora e Retomando alguns pontos importantes, na Idade Média o amor
diretora das funções que seriam inerentes aos Estados, diante de uma estava ligado à fraqueza. O homem tinha de ser forte e bravo. Senti-
sociedade corrompida e enfraquecida. Interferia cada vez mais na vida mentos de bravura e amor eram incompatíveis, a menos que fossem
social e política das sociedades no Ocidente. A moral vigente tem, en- direcionados para alguém inatingível, como, por exemplo, para uma
tão, como eixo central o Bem e o Mal, o Céu e o Inferno. Como reflexo, rainha. Esse sentimento de amor poderia ser transformado em força
há modificações profundas na sexualidade humana. propulsora para lutas e guerras.
O apóstolo Paulo é apontado como um dos responsáveis pela No Renascimento, verificamos um período de profundas mu-
visão dualista entre Corpo e Alma. A moral cristã tem muito que ver danças no pensamento humano. O homem passa a ser visto por sua
com seus pensamentos, e, diga-se por mera curiosidade, até hoje seus capacidade criadora. Criar estava associado ao conhecimento. Essa
escritos sobre o homem e a mulher são lidos nas cerimônias de casa- associação representava a possibilidade de descobrir, criar, produzir,
mento. Com a fusão das culturas judaica e greco-romana, o Cristia- inventar. Há mudanças significativas na relação homem-mulher. As
nismo passa a ter uma ideologia universalista e moralista. No pro- mulheres continuam a ser vistas como menos evoluídas, mas seu
cesso de ocidentalização, o Cristianismo incorpora o dualismo cor-
corpo, antes considerado feio, sujo e pecaminoso, passa a ser
po-alma. O único prazer permitido é o espiritual. A matéria e o pra-
enaltecido nas artes; são exemplos a Vênus de Botticelli, a Galatéia
zer são considerados maus, daí por que a dualidade não é mais entre
de Rafael e outras. O amor passa a ser tema de obras literárias, tendo
o físico e o espiritual, mas entre o Bem e o Mal.
como sua expressão a beleza.
Com o advento da patrística, surge o ideal da virgindade, de
No entanto, a dualidade amor-prazer continua. O amor e a ad-
pureza, a exaltação da continência, a condenação do adultério, a proi- •
miração pelo feminino estão relacionados ao espírito. Prazer e dese-
bicão do divórcio e, aos poucos, o enquadramento da população ru- jo sexual continuam a ser algo "mau", que retira a essência boa do
ral e urbana, rica e pobre, nesses preceitos morais da Igreja. Dentre
amor. A relação entre amor e casamento surge por volta dos séculos
os padres de formação latina sobressaíram Ambrósio, Jerônimo e
XIV e XV, período em que passa a vigorar a moral burguesa. A
Agostinho. O casamento, a sociedade e a sexualidade passam a ter
uma interpretação cristã. Especialmente Agostinho ganha importân- indissolubilidade do casamento, a autoridade do marido sobre a mu-
cia, por se tratar de um filósofo cristão do final da Antigüidade, e por lher, têm como essência a herança. O pensamento em vigor é o de
basearem-se seus pensamentos em Aristóteles. A partir deles, pre- gerar patrimônio, e para tanto toma-se necessário ter herdeiros. A
gou o sexo como algo mau; o prazer seria obra do Diabo. O sexo mulher continua no papel de procriadora, e o ato sexual é mero ato
seria admitido unicamente com a finalidade de procriação. O pecado fisiológico. A prostituição e o concubinato expressam-se enquanto
original seria fruto de uma relação sexual. Por isso, ele é mau. Maria formas de manifestar a virilidade do homem, sendo necessárias para
concebe seu filho sem ter tido relações sexuais; torna-se um modelo manter o casamento preservado de relações sexuais que não estejam
a ser seguido por todas as mulheres. O celibato é o modo pelo qual os associadas à procriação. O casamento torna-se sagrado, por ser con-
homens se redimem do pecado original. A homossexualidade, a pros- siderado o único meio de disciplinar a sexualidade. Persiste a idéia
tituição, a bigamia, a poligamia, são consideradas perversões. Per- de que o prazer entre o casal é uma maneira de transgredir as leis do
versão aqui tem o sentido de degeneração moral e orgânica. matrimônio.

29 41
As mulheres eram cruelmente reprimidas ao cometerem adul- Não se concebia a sexualidade infantil. As crianças eram livres
tério. Do século XIV à metade do século XVIII, essa perseguição foi dos pecados e das tentações. A infância era vista como um período
extremamente sistematizada e incorporada à cultura ocidental. de inocência e pureza. E nesse contexto histórico-social que surge
A herança recebida foi resultante do controle sobre o corpo e a Freud, rebatendo todas as teorias anteriores sobre o assunto.
sexualidade. O comportamento sexual humano chega ao século XV1I1 Freud postula a existência da sexualidade desde o nascimento,
controlado e normatizado. desenvolvendo-se a partir de sua própria constituição. No início, as
A Revolução Industrial e a era vitoriana solidificam a família manifestações da sexualidade são assimiladas às funções fisiológi-
cas de nutrição, eliminação das fezes e urina e de outras atividades
enquanto instituição e tornam-na essencial para a manutenção dos
no berço. As relações com a mãe (ou mãe substituta), o pài, a família
bons costumes e dos tabus vigentes na época. O casal une-se para
e o meio social vão-se integrando como um todo, transformando-se
reproduzir filhos, e estes terão como incumbência a preservação da
num longo processo, que culmina na fase adulta.
moral, a manutenção e o aumento dos bens adquiridos. Permanece o
sexo-procriação. Os instintos sexuais têm base orgânica ligada às zonas erógenas
do corpo, tais como boca, ânus e órgãos genitais, as quais consti-
Assim como nos mostra Foucault:
tuem uma fonte ininterrupta de estímulos, que, surgindo de dentro
"... toda atenção loquaz com que nos alvoroçamos em torno da do organismo, não podem ser eliminados pela fuga, como, por exem-
sexualidade há dois ou três séculos não estaria ordenada em função plo, a fome.
de uma preocupação elementar: assegurar o povoamento, reproduzir A amamentação do bebê tem como objeto específico o leite,
a força de trabalho, reproduzir a forma das relações sociais: em suma, que satisfaz a sua fome. Em termos instintivos, a função de sucção
proporcionar uma sexualidade economicamente útil e politicamente tem por finalidade a obtenção de alimento; ao mesmo tempo em que
conservadora"95 para a manutenção de um sistema. o bebê mama o leite, há uma excitação dos lábios e da língua pelos
Qualquer postura estranha à vigente era considerada perversa. seios maternos, produzindo uma satisfação que vai além de saciar a
Como já mencionado, esse termo tinha o sentido de degeneração fome, apesar de encontrar nela um apoio. Há, no caso, a presença da
orgânica e moral e, portanto, para a época, também psíquica. A socie- pulsão sexual, que se difere do instinto. A primeira busca um objeto
dade condenava as prostitutas, mas as considerava um "mal necessá- específico externo, na hipótese, o seio, e o segundo parte de um obje-
rio" para a preservação do casamento. A culpa e o sentimento de to interno, a fome. A sexualidade, nesse passo, começa a ser vista
transgressão permeavam todos os indivíduos que não podiam ou não por outro ângulo.
conseguiam inserir-se na sociedade. No início da vida do bebê há, portanto, uma sexualidade, ligada
O silêncio do proibido, o fazer de conta da não-existência de às zonas erógenas. Estas são fontes de diversas pulsões parciais. São
marginalizados pela sociedade, permeava de fato a organização dos elas que vão constituir as organizações da libido.
costumes sexuais. Freud usou a palavra "libido" para denominar a energia sexual
A repressão a tudo que fugia à concepção de normalidade fa- existente nos indivíduos, e que não se restringe somente ao prazer
zia-se presente em todas as atividades do indivíduo. sexual. A libido é que impulsiona o indivíduo à realização dos seus
desejos, em busca da realização total do prazer. Nessa busca, encon-
tra barreiras de ordem sociocultural, fazendo a libido procurar ou-
tros caminhos para sua expressão. Ela se canaliza para a busca da
95. Michel Foucault, História da sexualidade: a vontade do saber, cit., 9. ed.,
realização própria, seja ela profissional, artística ou outras.
1989, v. 1, p. 29.

30 43
Atribui-se a Freud o grande mérito de revolucionar o conceito
Quando não é possível a sublimação, a libido direcionada para
de sexualidade num contexto altamente moralista e de abrir cami-
objetos externos, a busca do prazer e a realização de desejos são
nhos para novos estudos sobre a questão da orientação da libido, na
recalcadas no inconsciente. Isso constitui uma instância psíquica,
busca do prazer, na realização pessoal e na integração harmoniosa do
não acessível ao ego. Os conteúdos recalcados no inconsciente po-
indivíduo com a sociedade.
dem surgir mais tarde sob a forma de sintomas.
Embora tenham sido de extrema importância aqueles estudos
As pesquisas de Freud mostraram que a vida sexual humana se em relação à sexualidade, os conceitos morais sobre esta, os tabus, a
desenvolve em duas etapas, com um intervalo entre elas. A primeira influência cultural-religiosa, têm-se apresentado como sérios obstá-
etapa atinge seu ponto máximo no quarto ou quinto ano de vida. culos para uma transformação no comportamento humano.
Nessa altura, começa a atuar o recalcamento; a seguir há um período "O que é próprio das sociedades modernas não é o terem con-
de latência, no qual se processam as inibições exigidas pela vida denado o sexo a permanecer na obscuridade mas sim o terem-se a
social, tais como a moralidade, a vergonha e o pudor. O período de falar dele sempre, valorizando-o como segredo"96.
latência dura até a puberdade, quando os impulsos e as relações com
Essa afirmação de Foucault levanta reflexões sobre o fato de
os objetos dos primeiros anos ficam reativados. Esse conceito de
que as mudanças na maneira de compreender a sexualidade não pro-
período de latência está intimamente relacionado com a amnésia, a vocaram modificações socioculturais significativas.
qual serve para esconder da memória dos adultos as verdadeiras ex-
O sexo ainda se confunde com a sexualidade, e esta ainda é
periências vitais da infância. Após esse período, vem a fase adulta,
discutida à parte da vida, do cotidiano dos indivíduos. Persistem pre-
em que o indivíduo torna-se capacitado para a realização sexual, re-
conceitos, culpas decorrentes de séculos de herança judaico-cristã.
presentada pelo encontro dos genitais.
Embora o século XX tenha sido marcado por profundas mudanças
Nesse contexto, a noção de perversão é modificada completa- de ordem sociocultural e econômica, podemos observar que, na cul-
mente. Perde seu sentido original para englobar as carícias prelimina- tura ocidental, embora o prazer esteja dissociado da procriação, rela-
res ao ato sexual, os beijos, os abraços, o reconhecimento das zonas ciona-se a casais heterossexuais, ficando as tendências sexuais não
erógenas. Todo adulto lança mão das perversidades para alcançar o ato ortodoxas sujeitas à discriminação.
sexual em si. Este se desvincula, assim, da necessidade de procriação, Sobrevive um lastro fortíssimo da concepção de sexo-procria-
que pode ocorrer ou não; o fundamental é a realização do desejo, a ção. Muitos ainda vinculam a atividade sexual à possibilidade de
busca do prazer. Portanto, com o amadurecimento sexual, as perver- procriação, entendendo que esta é necessária para a atividade sexual
sões tomam-se um meio para se alcançar o prazer no ato sexual. (como condição para a realização da vida familiar).
Todas as crianças são perversas polimorfas, ou seja, não che-
gam ao ato sexual, mas buscam o prazer em seu próprio corpo e nas 6.4. A identidade sexual e o transexual: a questão vista pelo prisma
suas relações objetais. Existem adultos que não conseguem alcançar psicológico
o ato sexual por vários motivos, ficando nas perversões; são, por
isso, considerados perversos, na terminologia psicanalítica. "A sexualidade humana apresenta uma variedade de compo-
nentes culturais superpostos a uma estrutura biológica"97.
Freud considera perversos os homossexuais, pois estes não rea-
lizam o ato sexual propriamente dito, ou seja, o encontro de dois
genitais diferentes entre si. Porém, é importante ressaltar que os ho-
96. História da sexualidade: a vontade do saber, cit., p. 36.
mossexuais, os voyeurs, os fetichistas etc. são perversos no sentido
97. Ronaldo Pamplona, Os onze sexos: as múltiplas faces da sexualidade
de que buscam o prazer dentro de uma ótica infantil e não adulta. humana, São Paulo, Gente, 1984, p. 4.

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44
Podemos completar essa afirmação: os componentes psicológi- genitais dá-se a partir das mesmas células e estruturas, que, depen-
cos e sociais também estão superpostos a uma estrutura biológica. dendo da definição do sexo, prosseguirão para uma definição ou para
Segundo Ronaldo Pamplona, a sexualidade só pode ser entendida se outra. Enfim, podemos concluir que a sexualidade é definida desde o
considerarmos os aspectos biológicos, psicológicos e sociais. momento dà fecundação.
John Money, psicólogo clínico norte-americano, estudioso pes- Quando nasce um menino ou menina, mesmo que tenha exter-
quisador de intersexos no Hospital John Hopkins, Universidade de namente os órgãos sexuais bem definidos, não podemos afirmar que
Baltimore, Estados Unidos, afirma que para a formação biológica do essa criança possua uma identificação sexual, ou seja, uma identifi-
indivíduo é necessário passar por quatro etapas, que ele denomina "qua- cação de gênero. Esta depende de fatores psicossociais, que vão sur-
tro encruzilhadas". Utiliza-se desse termo por considerar momentos gindo durante o desenvolvimento infantil. Entendemos a identidade
vitais, de definição sexual para o indivíduo que está em formação. como um "processo psicológico pelo qual o indivíduo assimila um
Não pretendemos aprofundar-nos no aspecto biológico, mas será aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transforma, to-
indispensável falar sobre ele, já que é extremamente tênue o limite tal ou parcialmente, segundo o modelo desta pessoa. A personalida-
entre o biológico, o psicológico e o social. de constitui-se e diferencia-se por uma série de identificações"98.

O indivíduo recebe geneticamente os cromossomos dos pais. A É por meio das identificações que o indivíduo se constitui en-
união cromossômica XX dará origem ao gênero feminino; XY, ao quanto "eu" psíquico e "eu" social. O bebê já nasce como objeto
masculino. Há uma formação de estruturas rudimentares logo nas narcísico, depositário dos desejos e ou das frustrações da mãe, do
primeiras semanas de gestação, responsáveis pelo nascimento ou pai, dos familiares e do meio social a que pertence".
determinação dos órgãos sexuais internos e externos. O embrião con- A consciência que se tem de ser do gênero masculino ou femi-
tém ambas as estruturas, a feminina denominada Muller e a masculi- nino é, portanto, adquirida e induzida pelo comportamento e pelas
na, Wolff. E somente na sétima semana de gravidez que a estrutura atitudes dos pais, dos familiares e do meio social a que se pertence,
Wolff aciona-se quimicamente, formando os órgãos sexuais mascu- além da percepção e interiorização das experiências vividas. Esse
linos, provocando uma retração da estrutura Muller. Nos embriões processo pode sofrer várias interferências, que podem levar a um
femininos, a estrutura Wolff não se manifesta, havendo somente o sério comprometimento na identificação de gênero. Tais interferên-
acionamento da estrutura Muller, formando os órgãos sexuais femi- cias podem ser de várias ordens: desde a psíquica até a social. Há
ninos. Sob o ponto de vista embriológico, esse momento é vital, pois diversos exemplos que levam o indivíduo a não conseguir estabele-
qualquer falha na mensagem cromossômica ocasionará futuramente cer uma identidade de gênero adequada. O mais comum ocorre quando
indivíduos com genitália dúbia ou malformada. a família deseja um menino e nasce uma menina ou vice-versa. Es-
Outro momento vital é o terceiro mês de gestação, quando os sas crianças são criadas de modo dúbio, meninas que se vestem como
hormônios sexuais começam a interagir. Em ambos os sexos há os meninos, meninos que vivem num contexto absolutamente femini-
mesmos tipos de hormônios, cuja dosagem correta é a indicação de
uma boa formação das vesículas seminais, da próstata, do epidídimo
e dos canais deferentes no sexo masculino, e da formação do útero, 98. Jcan Laplanche, Vocabulário de psicanálise, 5. ed., Santos, Martins Fon-
das trompas e da parede superior da vagina no sexo feminino. Entre tes, 1970, p. 295.
o terceiro e o quarto mês há a formação da genitália externa a partir 99. Já apresentamos anteriormente as diversas concepções da palavra "sexo".
Para a caracterização como transexual, escolhemos o traço psicológico predominan-
de uma mesma estrutura, chamada tubérculo genital, para ambos os
te. Vejamos como a Psicologia trata o lema, demonstrando o envolvimento do sexo
sexos. E importante destacar que a formação dos dois aparelhos biológico com o sexo psicológico e as conseqüências de sua não-identificação.

32 47
no, e assim por diante. Em contrapartida, existem relatos de meninos
O menino identifica-se com a mãe e gradativamente há mani-
que foram criados como meninas, mas que, chegando à adolescên-
festações de desejos e fantasias de a querer só para si. Há então uma
cia, com as devidas mudanças hormonais, tornaram-se homens, ou
interdição do superego, e, como conseqüência, passa a se identificar
seja, com uma identificação de gênero absolutamente adequada ao
com o pai. Esse processo permite uma conciliação entre a percepção
meio social em que vivem. Por que, em certos indivíduos, essas in-
terferências são fundamentais e em outros não? Ainda não há con- que o menino tem de seu corpo c o sentir-se masculino. Atitudes e
clusão definitiva. O que há são várias hipóteses, que vão do biológi- regras sociais tomadas e seguidas pelo indivíduo acabam refletindo
co ao social. Pode-se afirmar, porém, que não há uma única causa, e o processo de equilíbrio entre corpo e mente. O bebê menina identi-
sim um conjunto delas, que fazem o indivíduo não ter identificação fica-se com a mãe, instala-se a separação e, conseqüentemente, a
de gênero que corresponda ao seu sexo biológico. Sob o ponto de vista disputa pela figura paterna. Num processo idêntico ao do menino,
biológico, há dois sexos distintos, e, na maioria das culturas, mesmo seus desejos são recalcados e seus sentimentos desejam estabelecer
nas mais antigas, o esperado é a atração entre sexos diferentes. Quan- uma aliança, na medida em que seu objeto de prazer é inatingível.
do isso não ocorre, dependendo da cultura em que se vive, há Com o relacionamento e com o processo de identificação, passa a
marginalização, considerando-se a homossexualidade como doença. procurar alguém do sexo oposto, partindo de um modelo masculino
Quando analisamos os homossexuais, os transexuais, os traves- interiorizado. Há também a correspondência entre a percepção cor-
tis, os bissexuais, deparamo-nos com situações distintas, o que, como poral e o sentir-se feminina.
já visto, não leva a nenhuma conclusão, mas a hipóteses. De qualquer O equilíbrio entre a percepção e a interiorização das experiên-
maneira, todos os referenciais teóricos conhecidos partem de uma cias afetivas é que permite ao indivíduo interagir com os outros e
realidade biológica, uma realidade heterossexual. Várias teorias foram com o grupo social ao qual pertence. Essa interação se dá por meio
desenvolvidas no processo histórico-social. Tais idéias não se isolam de papéis, que é o modo como o indivíduo reage em relação ao outro
ou se contrapõem, mas são desenvolvidas e inter-relacionadas, for- e às situações que o rodeiam. Os primeiros papéis exercidos pelo
mando uma verdadeira teia de conhecimentos. É nesse quadro que indivíduo estão relacionados com a família, dentro de um processo
enfocaremos o desenvolvimento psicossocial do indivíduo. A descri- psicossocial, já visto anteriormente. Com o amadurecimento
ção que vamos desenvolver é a partir de consensos de vários referenciais psicossocial vai ocorrendo uma diferenciação entre a fantasia e a
teóricos da Psicologia, e dentro da nossa cultura ocidental. realidade. O social vai-se interiorizando, com as identificações e trans-
Retomando a questão dos vínculos familiares, denominamos ferências nas relações e no superego, traduzidas como regras e nor-
tais relações como as primeiras, portanto, primitivas. A partir dessas mas, que se instalam no psiquismo do indivíduo. Por volta dos três
relações, utiliza-se do termo "matriz de identidade" para denominar anos, a criança já possui a percepção de "ser" menino ou menina
o núcleo familiar, definido como um grupo de pessoas que convivem com a respectiva interiorização, e com a possibilidade de interagir
no mesmo espaço, estabelecendo vínculos de afinidades, indepen- no seu meio social adequadamente.
dente de laços de parentesco. Durante o desenvolvimento psicossocial, ocorre a incorporação
O relacionamento com a mãe varia de acordo com o sexo da de papéis e a repressão de outros, o que permite ao indivíduo situar-
criança. O estabelecimento de vínculos diferentes geralmente ocorre se consigo e com os outros.
inconscientemente. O primeiro momento psicológico é de identifi- Podemos afirmar que o desenvolvimento da sexualidade é com-
cação total mãe-bebê, formando uma unidade indissolúvel. À medi-
pleto quando há sintonia entre o que se sente e o modo como esses
da que o bebê vai-se dando conta de que existe uma separação entre
sentimentos são exteriorizados. O resultado desse processo é o que
ele e a mãe, inicia-se a construção de outro tipo de vínculo.
vai permitir ao indivíduo dirigir seu afeto a um objeto externo.

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Portanto, embora as relações amorosas na vida adulta sejam de qualquer ponto de vista prévio, o define. Dentre as sugestões de
baseadas em situações primitivas emocionais, com respeito aos pais Weeks, pensamos que existem dois enfoques interessantes do pro-
e à família, os novos relacionamentos não são obrigatoriamente me- blema. O primeiro é o enfoque genético. Nele trata-se de entender
ras repetições de antigos relacionamentos familiares. Um novo rela- como, ao longo do desenvolvimento sexual, o sujeito apropria-se da
cionamento amoroso é permeado por lembranças, sentimentos e fan- 'identidade homossexual' que lhe é oferecida pela cultura. Segundo
tasias inconscientes. Entretanto, a par das influências primitivas exis- Weeks, Plummer distingue quatro estágios no processo de aquisição
tem numerosos outros fatores em ação nos complicados processos desta identidade: 'o da sensibilização', que eqüivale ao sentir-se
que estruturam uma relação amorosa ou uma amizade. diferente; o da 'significação', quando ele ou ela atribui um senti-
Podemos concluir que somente mediante uma análise histórica do crescente a tais diferenças; o da 'subculturalização', que é o
e cultural poderemos entender a sexualidade humana na sua ampli- estágio do reconhecimento de si próprio através do envolvimento
tude e complexidade e que, a partir dessa compreensão, será possível com outros; o de 'estabilização', que é o estágio da plena aceita-
modificar tabus e preconceitos. Retomando a questão da dualidade, ção. Dos próprios sentimentos e modos de vida (Weeks, 1991, pp.
foram ressaltados referenciais históricos importantes, iniciados com 79-80)" ,0°.
Aristóteles, que teve como base de entendimento "sexo-procriação"; Neste parágrafo, Jurandir Freire Costa faz uma análise dos ho-
Santo Agostinho, "sexo-pecado"; e Freud, "sexo-prazer". mossexuais que, na verdade, podemos ampliar para os transexuais,
bissexuais e outros. Nosso enfoque neste trabalho, no entanto, são,
Como já dito, essas idéias se interligam,' formando um verda-
deiro tecido. especificamente, os transexuais. No Manual diagnóstico e estatísti-
co de transtornos mentais, o transexualismo está no capítulo de trans-
A cultura ocidental desenvolveu-se dentro de uma ótica hete-
tornos da identidade de gênero"". O Manual inicia com "caracterís-
rossexual; sob o prisma da natureza, vontade divina ou razão do ho-
ticas diagnosticas", dizendo102:
mem é que as relações amorosas se organizaram através dos tempos.
"... há dois componentes no Transtorno da Identidade de Gêne-
Assim, em todos os períodos históricos, as uniões entre casais visa-
ro, sendo que ambos devem estar presentes para fazer o diagnóstico.
vam legitimar a procriação e representar um meio de continuidade
Deve haver evidências de uma forte e persistente identificação com
das idéias, da tradição e do patrimônio. O prazer só entra posterior-
o gênero oposto, que consiste no desejo de ser, ou a insistência do
mente, num contexto heterossexual.
indivíduo de que ele é do sexo oposto".
Pode-se afirmar que só haverá novos entendimentos sobre a se-
xualidade humana se houver mudanças no pensar. Para tanto, faz-se Segue:
necessário uma revisão histórica que mostre o presente e aponte para "... também deve haver evidências de um desconforto persistente
o futuro. com o próprio sexo atribuído ou de uma sensação de inadequação no
A análise da sexualidade tem sofrido mudanças a partir de cer- papel de gênero deste sexo. O diagnóstico não é feito se o indivíduo
tos filósofos, como Michel Foucault, que, pretendendo mostrar os
tipos de relação, repensou o prazer e o desejo em nosso contexto
histórico-social. 100. J. F. Costa, A inocência e o vício. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1992,
Jurandir Freire Costa, em seu livro A inocência e o vício, co- p. 144.
menta que o "primeiro aspecto a ser desenvolvido neste tópico é da 101. Diagnoslic and statistical manual of mental disorders, 4. ed., D. C,
American Psychiatric Associalion, 1994, p. 504.
definição do sujeito homossexual. Interessa-nos sobretudo saber como
102. Estamos repetindo o conceito já mencionado para reforçar nossa con-
os próprios indivíduos se rotulam e não como o observador, partindo cepção de sexo psicológico.

50 34
tem uma condição intersexual física concomitante (por ex. síndrome heterossexual, também sem um Transtorno da Identidade de Gênero
de insensibilidade aos andróginos ou hiperplasia adrenal congênita). concomitante. As porcentagens correspondentes para a orientação
Para que este diagnóstico seja feito, deve haver evidências de sofri- sexual em meninas não são conhecidas"1"5.
mento clinicamente significativo ou prejuízo no fundamento social ou
A transexualidade pode ser descoberta na fase da adolescência
ocupacional ou em áreas importantes da vida do indivíduo" m.
ou ainda na idade adulta. Nesses casos, segundo pesquisas clínicas, a
O transexualismo pode manifestar-se na infância, na adoles-
transexualidade "tende a um curso crônico, mas há relatos de remis-
cência ou, ainda, na fase adulta. Na infância não há ainda uma rejei-
são espontânea", esclarece Jurandir Freire Costa106 c l07.
ção direta aos genitais. Os meninos mostram preferência em vestir-
se com roupas femininas e nas brincadeiras exercem papéis sociais Os critérios de reconhecimento de um transexual, já citados an-
femininos, por exemplo, querer brincar de mãe. O mesmo sucede teriormente, em síntese, são os seguintes:
com as meninas: recusam-se a vestir-se com roupas femininas, op- "A. Uma forte e persistente identificação com o gênero oposto
tam por brincadeiras socialmente aceitas como masculinas e, nas (não meramente um desejo de obter quaisquer vantagens culturais
brincadeiras, representam papéis sociais culturalmente aceitos por percebidas pelo fato de ser do sexo oposto).
meninos, como, por exemplo, querer fantasiar-se de "Batman". Os B. Desconforto persistente com seu sexo ou sentimento de
heróis dessas crianças correspondem ao sexo oposto ao seu. Tal com- inadequação no papel de gênero deste sexo.
portamento pode surgir muito cedo, mas é somente na idade escolar
C. A perturbação não é concomitante a uma condição intersexual
que os pais procuram profissionais na área da saúde. Essas crianças
física.
geralmente possuem dificuldades de vínculo, são introvertidas e re-
cusam-se insistentemente a ir à escola. Existe uma sensação de hos- D. A perturbação causa sofrimento clinicamente significativo
tilidade em relação ao próprio corpo, com a tendência a entrar em ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras
ostracismo, o que, somado ao isolamento, leva a um sentimento de áreas importantes da vida do indivíduo"108.
profunda baixa estima. Segundo o Manual diagnóstico, "em amos- Observamos que, sob uma ótica absolutamente médica, há des-
tras de clínicas infantis, existem aproximadamente cinco meninos taque para o sofrimento mental e as conseqüências que dele decor-
para cada menina encaminhada com este transtorno"104. rem, ou seja, a existência de indivíduos à margem da sociedade, cujo
Continua ainda: reconhecimento só é feito por meio de sua identidade sexual. Sua
"... a maioria das crianças com Transtorno de Identidade de Gê- capacidade de produção e inserção nos grupos sociais torna-se extre-
nero exibe comportamentos menos manifestos do gênero oposto com mamente difícil.
o passar do tempo, intervenção parental ou resposta de seus pares.
Ao final da adolescência ou na idade adulta, cerca de três quartos dos
meninos que apresentavam uma história infantil de Transtorno de
106. Diagnostic and slatistical manual of mental disorders, cit., p. 507.
Identidade de Gênero relatam uma orientação homossexual ou 107. Diagnostic and statistical manual of mental disorders, cit., p. 508.
bissexual, mas sem um Transtorno da Identidade de Gênero 108. E importante ressaltar que o Manual diagnóstico e estatístico de trans-
concomitante. A maior parte dos restantes declara uma orientação tornos mentais, elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria, tem como ob-
jetivo básico ser um guia prático para o exercício da clínica médica: para tanto,
homogeneiza a nomenclatura, tornando-a oficial, para ser utilizada por médicos,
pesquisadores e profissionais afins. É reconhecido pela comunidade médica de um
103. Diagnostic and slatistical manual of mental disorders, cit., p. 504. grande número de países.
104. Diagnostic and slatistical manual of mental disorders, cit., p. 504. 108. Diagnostic and slatistical manual of mental disorders, cit., p. 509.

52 35
É nesse momento que retomamos Jurandir Freire, quando aponta to humano. Os caminhos que levam um indivíduo a ser heterossexual,
para os "estágios" necessários para que o indivíduo desenvolva a homossexual, bissexual ou transexual são muitos, e a falta de expli-
percepção sobre si e sobre os outros: sensibilização, significação, cações claras leva a sociedade a uma atitude reducionista e
subculturalização e estabilização. Na verdade, é um processo de eliminativista. A existência de sujeitos que não se "encaixam" em
autoconhecimento necessário, para que a personalidade se integre papéis claros e preestabelecidos promove a instabilidade social, ou
como um todo. Podemos observar que, pelo enfoque dado ao seja, os indivíduos não heterossexuais passam a representar o "ser
transexualismo no Manual diagnóstico, trata-se de um "transtorno", diferente", e essa sensação mexe em núcleos profundos de sua per-
que necessita de um "diagnóstico". Na verdade, nem a área médica sonalidade; a tendência será recalcar esse sentimento para que outro
nem a psicológica deram conta de uma "explicação" sobre os indiví- surja: o de hostilidade. O sentimento de hostilidade tem como sim-
duos que não possuem uma orientação heterossexual. Há várias hi- bólico a negação da realidade e a impossibilidade de entrar em con-
póteses, mas nenhuma conclusiva. tato com desejos e fantasias, que acabam sendo projetados nos indi-
Não há comprovações de que haja nos transexuais problemas víduos não heterossexuais. O direito de amar e ser amado parece
de ordem genética ou cromossômica. Do ponto de vista médico, não estar baseado num código moral, impossibilitando outros de exercer
há malformação dos genitais. Do ponto de vista psicológico, pode- plenamente esse sentimento inerente ao ser humano. A tentativa de
mos enveredar pela teoria psicanalítica, com asquestões de identifi- reduzir essa rejeição é um dos propósitos deste trabalho. A análise e
cações, projeções e introjeções, a questão do complexo de Edipo mal a demonstração argumentativa de nossa tese pretendem que a rejei-
resolvido, os vínculos mal estabelecidos. Muitos estudos foram de- ção ao indivíduo não heterossexual seja atenuada, como compreen-
senvolvidos no campo da sociabilidade, demonstrando o conjunto de são dessa realidade.
condições em que o indivíduo está inserido. O que temos de concre- O sofrimento de um transexual é intenso. Ele vive o conflito
to é que se torna impossível compreender os bissexuais, os homosse- permanente de possuir uma genitália estranha às suas sensações, de-
xuais e, em especial, os transexuais se não se levar em conta os fato- sejos e fantasias. Diferente dos travestis, que usam seus próprios
res culturais e antropológicos. genitais para a obtenção de prazer, os transexuais não se imaginam,
Analisar o sujeito sob a ótica heterossexual significa simplifi- não se vêem com a genitália que possuem, sentindo-a como corpo
car a complexidade do ser humano e "recalcar completamente a tese estranho. Há sentimento de repulsa e revolta. Os transexuais mascu-
da pluralidade identificatória do sujeito", afirma Freire109. linos, por exemplo, sentem-se mulheres. Seu psiquismo é feminino,
seus desejos são femininos. Vestir-se como homem é algo estranho e
"Em lugar da multiplicidade, das ambivalências, do narcisismo
constrangedor. Pela experiência clínica, o desejo sexual é voltado
egóico e sua economia libidinal, enfim, do desamparo original e ra-
para o homem, mas é um desejo tipicamente feminino. Não passa
dical do sujeito, surgiu a imagem segura, clara, bem delineada do
pelo seu universo ter relações como homem, pois não se vê e nem se
sujeito 'curado' e 'normal'"110. sente como tal. O desejo é voltado para homens heterossexuais. Exis-
Essa imagem surgiu baseada na dualidade histórico-cultural que tem transexuais que, embora sentindo-se do gênero feminino, acaba-
o homem viveu através dos tempos. A necessidade de certezas, res- ram desenvolvendo um comportamento masculino. São muitas as
postas, referenciais bem estabelecidos parece fazer parte do contex- hipóteses para esses casos: valores rígidos familiares e sociais do
meio a que pertencem, impossibilidade de entrar em contato com
sua realidade interna e assim por diante. Em Os onze sexos — as
múltiplas faces da sexualidade humana, de Ronaldo í^amplona da
109. A inocência e o vício, cit., p. 277.
110. A inocência e o vício, cit., p. 278.
Costa, há o relato de um engenheiro que até os trinta anos teve uma

54 36
vida aparentemente normal. Estudou, formou-se e casou-se. Segun- mente, comprometidos no seu desenvolvimento pessoal e profissio-
do seu depoimento, sentia-se estranho internamente, e essa sensação nal, ou pessoas integradas consigo mesmas e conseqüentemente com
foi aumentando com o decorrer dos anos. Sua vida sexual tornava-se a sociedade?. É inerente ao ser humano a busca de se sentir melhor
cada vez mais difícil e desprazerosa. Sentia-se estranho e, quando se consigo mesmo, de ter integridade e de integrar-se ao meio em que
olhava no espelho, sabia que a imagem refletida não correspondia à vive. Que moral impede a integração dessas pessoas? Quais são os
sua, mas sem entender o que estava ocorrendo. Começou a procurar obstáculos de um sistema jurídico, como o nosso, que não reflete
ajuda, até que esse sentimento se tornou claro: sentia-se mulher. Pas- uma realidade social?
sou por momentos de negação, vergonha, revolta e aceitação. Sepa- "Predizer para controlar ou alterar controladamente os fenôme-
rou-se e, com a ajuda da ex-mulher, começou tratamento com vários nos é a última meta da ciência. Esta finalidade pragmática permite
profissionais, que confirmaram ser ele um transexual. Saiu do em- um acordo na definição dos fatos estudados que os torna passíveis de
prego, por ter a certeza da não-aceitação de sua transformação, e, descrição sob a forma de leis gerais. Isto implica em que os resulta-
atualmente, espera por uma cirurgia de mudança de sexo. Iniciou um dos experimentais podem ser quantificados e as premissas e regras
tratamento hormonal que modificou sua aparência para uma femini- dos métodos de pesquisa, formalizados. A prática da pesquisa cientí-
na. Um caso conhecido, também, relatado pelo mesmo autor, é da fica é, deste modo, menos vulnerável, a curto prazo, às modificações
modelo T. L. Sua mãe, desde o início, percebeu que o filho era dife- sociais da imagem do sujeito, pela própria estranheza de sua lingua-
rente, e aos poucos foi aceitando essa realidade, permitindo que "sua gem em relação à linguagem ordinária.
filha" se desenvolvesse de modo pleno e coerente com seus senti-
Nos discursos sobre o sujeito, ocorre o contrário. Os enuncia-
mentos internos.
dos teóricos visam, sobretudo, ajudar-nos a decidir o que fazer dian-
Para finalizar o relato de conflitos da alma humana diante da te de situações codificadas na tradição ética ou que exigem opções
falta de identificação da sexualidade com o quadro psicológico (ape- moralmente inéditas. A tendência, portanto, é a de criar linguagens e
sar de não se tratar, nesse caso, de transexualismo mas de pseudo- imagens morais do sujeito ao alcance de todos, com vistas à maior
hermafroditismo), conhecemos talvez o mais famoso exemplo, eficiência ética. O impacto sobre as redescrições subjetivas é, por
Roberta Close1". Segundo suas declarações em jornais e revistas de isto, sempre maior. A medicina mental, responsável pela criação da
grande circulação, sempre se sentiu mulher. Submeteu-se a uma ci- sexologia e demais ramos do conhecimento da sexualidade humana,
rurgia no exterior e luta até hoje no Poder Judiciário para que seu era, fundamentalmente, uma medicina voltada para a moralização
nome seja mudado, não tendo obtido nenhum êxito. No exterior e no de condutas, segundo os imperativos culturais hegemônicos. A
Brasil é considerada uma modelo famosa e competente"2. redefinição biológica dos indivíduos como seres originalmente divi-
Em todos os exemplos relatados ficou claro que se trata de pes- didos em dois sexos foi, antes de tudo, uma resposta a interesses
soas que enfrentaram a realidade e os preconceitos e que consegui- sociais, políticos, jurídicos e econômicos""3.
ram refazer suas vidas de modo coerente com seus sentimentos in- Cremos que essa conclusão do autor responde, em parte, às per-
ternos. O que a sociedade espera? Indivíduos desajustados social- guntas feitas anteriormente, ou seja, nosso sistema social, político,
jurídico e econômico segue uma lógica que muitas vezes não repre-
senta as necessidades dos indivíduos na sociedade. E a necessidade
111. Que, na verdade, não constitui caso de transexualismo, mas de pseudo-
hermafroditismo.
112. Cf. Roberta Close & Lúcia Rito, Muito prazer, Roberta Close, Rio de
Janeiro, Record Ed./Rosa dos Tempos, 1998. 113. J. F. Costa, A inocência e o vício, cit., p. 289.

56 37
básica do indivíduo é estar integrado consigo mesmo, pois é somente "Joãozinho. Aos treze anos, Joãozinho está deprimido. Toda a
a partir dessa integração que há possibilidade de se inserir de modo sua vida ele se sentiu como uma garota. Quando era menor, divertia-
harmonioso na sociedade. O indivíduo, para ser (existir com digni- se com bonecas e outros brinquedos tradicionais de meninas. Quan-
dade), tem de ter uma identidade física, mental, moral. O arcabouço do brincava de casinha, queria ser a 'mamãe'. Joãozinho ficou espe-
jurídico, no entanto, como será visto oportunamente, não acompa- cialmente perturbado quando cresceram pêlos à volta do pênis que
nha o enfoque da Psicologia e da Psiquiatria. Mantém o indivíduo ele nunca chegou a aceitar. Invejava as garotas cujos seios ganhavam
com o seu sexo biológico, preso em suas contradições, vivenciando volume, invejava os seus sutiãs e outras peças de roupa. Queria an-
suas angústias, seus medos e suas dificuldades. O sistema jurídico dar de vestido, enrolar os cabelos e continuar a brincar de casinha (o
trata de não permitir sua integração social como indivíduo se possui que fez, secreta e o mais freqüentemente possível).
tendências diferentes da média. Sua "anormalidade" não é reconhe-
Embora Joãozinho tivesse fantasias sobre ser uma garota, sen-
cida pelo sistema como "recuperável".
tia-se culpado. Para agradar seu pai, tentava 'ser um homem' mas
É de importância vital (na expressão mais real da palavra) que o
nunca conseguia ser convincente.
indivíduo viva bem consigo mesmo e, conseqüentemente, com os
Durante o primeiro grau, Joãozinho caiu em uma depressão mais
i outros; não ocorrendo isso, não há possibilidade de ser feliz. Felici-
dade é um sentimento abstrato, mas básico e essencial para qualquer profunda e começou a pensar em se matar. Planejou pôr um vestido
realização. Ser ou estar feliz é perceber-se como pessoa, ser huma- pregueado e saltar de uma ponte alta próxima de sua casa. Já que não
no, poder criar, amar e contribuir com o meio em que se vive, inte- conseguia se adaptar, por que continuar vivendo? As pessoas fica-
grar-se dentro de seus limites pessoais. riam melhor se ele simplesmente desaparecesse.
Joãozinho sofre de disforia de gênero. Uma melhor avaliação
provavelmente irá mostrar que é um transexual"" 4.
7. A situação de desajuste do transexual: a infelicidade
Em outra passagem, o mesmo autor:
"Alexandra. Alexandra tem quinze anos. Os seus amigos cha-
Este tópico tem como finalidade demonstrar, em seqüência, de
mam-na de 'Alex'. Ela é alta, magra, usa cabelos curtos e veste-se
forma inequívoca, o conflito angustiante vivido pelo transexual. Esse
conflito já foi apontado anteriormente: vida dupla, decorrente de sua como um homem. Embora tenha mamas grandes para seu tamanho,
não-identificação sexual. Vive uma situação do sexo oposto ao seu poucos o sabem, porque ela as amarra firmemente junto ao peito
natural. Se é homem, vive (ou gostaria de viver) como mulher; ves- com uma faixa de seda. Essa faixa, embora desconfortável, efetiva-
te-se como mulher, pensa como mulher, quer integrar-se socialmen- mente lhe esconde as mamas.
te como mulher. Se mulher, vive (ou gostaria de viver) como ho- Alex nunca teve um namorado. Jamais foi física ou mental-
mem; veste-se como homem, pensa como homem, quer integrar-se mente maltratada por um homem. No entanto, pensar em beijar ou
socialmente como homem. Não se pode admitir que alguém com tais estar em intimidade física com um homem a deixa doente. Tem uma
característicos seja feliz. A vida do transexual, portanto, é conflitiva, namorada, a quem é muito ligada e com a qual mantém um relacio-
difícil e angustiante. Os casos de transexualismo narrados pela lite- namento sexual e emocional. Alex é a única amante ativa no casal.
ratura médica revelam um grau fortíssimo de angústia, de infelicida- Ela não permite que a sua namorada a beije ou acaricie.
de, de desequilíbrio.
Para apontar tais situações, veremos, primeiramente, algumas
narrativas de Ramsey:
114. Transexuais. Perguntas e respostas, cit., p. 32-3.

38 59
Nas suas fantasias e sonhos, Alex se vê como um homem. Quan- Em seguida, o autor cita, no mesmo parecer, outro caso de
do é sexual com a sua amante, imagina-se possuindo um pênis. Quan- transexualismo, no qual a angústia e a infelicidade são notadas com
do não está fingindo ser um homem, fica deprimida e raivosa. clareza:
"TENHO NOJO DO MEU PÊNIS, É CARNE MORTA.
Alex parece ter distrofia de gênero. São necessárias mais avalia-
ções paia determinar se ela é uma transexual""5. Mariane de Souza Mota, 26, é um nome adotado por um
transexual que está há dois meses em São Paulo esperando ser opera-
Oliosi da Silveira traz, citando parecer de Silveira Neto, alguns
do para receber uma neovagina. Ele faz um tratamento psicológico e
depoimentos de transexuais. Vejamos o grau de angústia registrado
clínico, com hormônios femininos há oito anos. Os médicos em Sal-
nos textos:
vador deram parecer favorável à mudança de sexo em Mariane, mas
"'Minha alma é feminina. Só não saio por aí vestido de saia não quiseram arriscar-se à intervenção por meio da lei.
porque acho ridículo uma mulher que tem um pênis', diz E. N., 25
Depois de viver quatro anos com um companheiro e ser deixa-
anos, que continua a se trajar como homem enquanto não consegue
da 'porque ele queria ter relação sexual com uma mulher', Mariane
fazer a operação para mudar de sexo.
se desesperou e tentou uma automutilação. 'Não tive sucesso porque
E. N. cursa, agora, o colegial e diz já ter passado por 'maus fui socorrida pelos assistentes sociais do hospital onde fiz tratamen-
bocados'.'Desde pequeno eu sabia que era mulher. Não tinha o me- to na Bahia. Continuo com meu pênis e, se não conseguir a operação
nor interesse em brincar com meus amigos. Ficava imaginando usar aqui em São Paulo, juro que vou cortar. Já fiz estudos e sei como
as roupas da minha mãe e poder casar com um homem. Fui criado devo proceder' afirma.
como menina. Todos sabiam do problema lá em casa'. Mariane explica com detalhes como vai fazer para não mutilar
As dificuldades começaram na escola, diz. O jeito afeminado os canais urinários. 'Tenho nojo do meu pênis. Ele é um penduricalho,
fazia com que as brincadeiras fossem intermináveis e forçaram o um pedaço de carne morta'. Seu corpo parece o de uma mulher. Seus
abandono dos estudos por vários anos. amigos não sabem seu segredo. Apenas as pessoas da família e seu
Quando completou 20 anos E. N. começou a procurar auxílio ex-companheiro, além dos médicos e paramédicos que o tratam, co-
médico. 'Eles pensaram que eu tinha algum tipo de doença. Pediram nhecem sua história.
um monte de exames e foram meses até que perceberam que não Aos sete anos, Mariane teve sua primeira atração sexual por um
havia nada de errado. Mandaram-me fazer psicoterapia. É bom, mas menino, em Santa Bárbara, região de Feira de Santana, na Bahia. 'A
não vai mudar minha decisão'. sociedade lá é muito fechada, eu tinha vergonha dos meus sentimen-
E. N. procurou um psiquiatra num momento de desespero. 'Fi- tos. Tentei sufocar o máximo. Chegou uma hora em que não deu
quei muito mal e tive que tomar remédios. Entendi que não havia mais e fui posto para fora. Tinha 18 anos.'
jeito. A cirurgia é proibida no Brasil e eu não tenho dinheiro para Mariane repete dezenas de vezes o seu desejo de se livrar do
pagar uma viagem.' pênis. Afirma que não vai se prostituir.
E. N. voltou à vida habitual mas não quer se vestir como mu- 'Só quero ser mulher como me sinto. Levar uma vida normal.
lher ou ter namorados. 'Posso não ter um corpo de mulher, mas a Cuidar de alguém, dar e receber carinho. Não sou louca por sexo.
minha alma é feminina'"116. Quero fazer a neovagina para poder satisfazer meu companheiro e
não perdê-lo outra vez""17.

115. Transexuais. Perguntas e respostas, cit., p. 36-7.


116. José Francisco Oliosi Silveira, O transexualismo na justiça, Porto Ale-
gre, Síntese, 1995, p. 104-5. 117. José Francisco Oliosi Silveira, O transexualismo na justiça, cit., p. 105-6.

39 61
Verifica-se, pela narrativa, que ambas as personagens apresen- Como vimos, a sexualidade integra a alma humana, faz parte
tam alto grau de conflituosidade, vivendo realidades diferentes do dos direitos da personalidade, como manifestação da mente e do cor-
que a sexualmente apresentada. po. Ou seja, é necessário pensar na sexualidade dos transexuais.
Sua psique, portanto, a identifica com um sexo distinto do bio- Vejamos como se manifesta a Intersex Society ofNorth America
lógico. (ISNA)"9C,2°.
Apesar de constituir um caso de pseudo-hermafroditismo, Luiz "What kind of problems do Intersexuals have?
Roberto Gambine Moreira, conhecido como Roberta Close, sempre Taking a superficial look, adult IS seem to have very diverse
se sentiu mulher, como já foi mencionado. Apesar da questão física problems. Some of us feel we have become the victims of urmecessary
(o que não existe para o transexual), sempre apresentou falta de iden- or even damaging 'corrective' treatments in childhood. Others
tificação entre o sexo psicológico e o biológico. Por conseguinte, desperately wish to be 'put right'. Many of us are living our lives in
viveu o conflito da dualidade sexual. the roles which have been assigned to us, but do not necessarily feel
Assim se manifesta: at peace with them and frequently suffer from identity crises. Many,
"Sempre fui menina. A minha história não é a história de um however, challenge their assignment by becoming androgynes, gender
homem que virou mulher como a mídia insiste em contar. Desde b(l)enders, crossdressers, transvesties, transgenderists, or transexuais.
muito pequena eu me sentia uma menina, embora os meus pais me While the sexual orientation of many of us is heterosexual, the ratio
vestissem e me penteassem como um homem""8. of bisexuals, lesbians, and gays among IS persons is significantly
higher than within the non-IS population. However, almost ali of us
O transexual passa por uma grande angústia, a de viver com um
share a long history of pain and the experience of feeling excluded
sexo que não lhe pertence, já que em toda a sua vida entende que tem
socially to a greater or lesser degree. We generally feel that our
um sexo psicológico distinto do biológico que o caracteriza.
psychological problems have not been addressed, as if our existence
Portanto, possuindo um sexo distinto do biológico, os transexuais
was just one big embarrassment to the word at large" 121.
vivem em permanente conflito. A infelicidade, com a falta de identi-'
ficação com seu sexo, é uma constante nesse grupo de pessoas.
Não se pode perder de vista que o conceito de transexual traz
119. Entendemos que as questões suscitadas em torno da discussão sobre
em si um forte conflito de caráter psicológico. Já vimos que o
intersexualidade (por exemplo, do pseudo-hermafroditismo) podem levar à mesma
transexual fica perturbado e apresenta dificuldades de integração problemática do transexual, já que, para configurarmos a sua existência, devemos
social. estar diante de uma não-identificação entre o sexo psicológico e o biológico. O sexo
Como imaginar alguém que acredita ser mulher (ou homem) e biológico poderá, por exemplo, estar representado por uma anomalia. Ou seja, em-
bora envolvam situações distintas (o intersexual c aquele que apresenta uma anoma-
não consegue atingir seu consciente psicológico?
lia em seus órgãos sexuais, enquanto o transexual possui apenas uma falta de iden-
O drama desse grupo de pessoas é triste e trágico. Elas vivem tificação entre o sexo biológico e o psicológico), a problemática em relação à ques-
uma realidade diferente, pretendendo ser o que não são; querem ser tão do sofrimento individual é a mesma.
120. Mostrando a diferença entre estado intersexual e transexualismo, inte-
do sexo oposto, acreditam ser do sexo oposto, mas encontram uma
ressante o artigo Intersexualidade — retificação de registro civil — quesitos da
realidade sexual-biológica distinta. Curadoria de Família, de Inajá Guedes Barros, Justitia, n. 52(150), abr./jun. 1990,
p. 12-20.
121. Matéria retirada do site da ISNA — Intersex Society ofNorth America —
118. Lúcia Rilo, Muito prazer, Roberta Close, cit., p. 166. na Internet, p. 3.

62 40
Mostrando o sofrimento e a dificuldade de convivência com a Quando se fala em cirurgia de redesignação de sexo não se está
frustração de pertencer a outro sexo (quando quer — e acredita mui- a falar apenas na operação, mas em todo o preparo necessário para a
to — pertencer a outro que não o seu), Perona afirma que: orientação psicológica e psiquiátrica, como, por exemplo, o trata-
"Todo afectado por el síndrome transexual experimenta una mento hormonal que precede e sucede a operação, as plásticas ne-
prccoz, irrefrenable e irrcversible convicción de pertenencia al sexo cessárias, o tratamento fonoaudiológico, enfim, todas as providên-
opuesto a aquél con que nació y que, logicamente, figura inscrito en cias para que a adaptação ao novo sexo seja feita da forma mais
el Registro Civil. La contradicción entre su soma y su psique le hacen íntegra possível, adaptando o indivíduo para que ele possa assumir,
sentirse víctima de un insoportable error de la naturaleza, en tanto com possível tranqüilidade, a nova realidade.
que su verdadera identidad psico-sexual no se corresponde con la de
Dessa maneira, o transexual que sofrer a cirurgia de redesignação
sua anatomia (p. ej., se siente mujer, pero atrapada en cuerpo de
sexual passará por todo um período de adaptação anterior e posterior
hombre, o viceversa)"'22.
à cirurgia propriamente dita. Nesse sentido há determinação do Con-
A realidade do transexual é difícil, pois convive permanente- selho Federal de Medicina: autorizar uma equipe multidisciplinar,
mente com um quadro de infelicidade. Não pode ser feliz enquanto
composta de psicólogo, cirurgião, psiquiatra e assistente social, a
não "corrigir" o erro da natureza.
analisar a questão do transexual123.
São situações de conflito que lhe negam o direito de ser feliz. O
A realidade do transexual não será alterada apenas pela cirur-
transexual permanece integralmente em um universo de infelicida-
gia, mas por todo o cuidado pós-cirúrgico. O indivíduo operado pas-
de, de angústia e tristeza, pois a realidade de não pertencer ao sexo
sará por um acompanhamento psicológico para que mais facilmente
que deseja é constatada quotidianamente. Ele vive diariamente de
se adapte à nova realidade. Esse acompanhamento será também de
forma infeliz, sem a identificação sexual necessária para uma vida
ordem médica, além de ser necessária a assistência de outros profis-
plena e realizada.
sionais. Mesmo a voz do transexual operado deverá ser adaptada ao
seu novo sexo e, para isso, deverá contar com a ajuda de um
8. Infelicidade superável? fonoaudiólogo.
Por essa razão, é passível de crítica a resolução já citada, pois
A infelicidade do transexual é superável? A resposta é positiva, trata apenas da autorização para realizar a operação, desde que seja
na medida em que a cirurgia de redesignação de sexo poderá reduzir feito o acompanhamento por, pelo menos, dois anos, mas não exige
o grau de angústia do indivíduo transexual. Ele pode, desde que queira, que um médico acompanhe o tratamento depois da operação. E evi-
por meio da cirurgia, obter a identidade sexual. Com esta, sua vida se dente que o médico deve acompanhar o quadro do transexual por
tornará mais feliz. O impulso sexual se orientará para o caminho dois anos para decidir pela operação e deve também acompanhar,
sempre indicado por sua psique; toda a sua vida será orientada de junto à equipe multidisciplinar mencionada na resolução, a evolução
forma adequada, dentro da realidade psicológica em que sempre vi- do paciente no pós-operatório. Quando afirmamos, portanto, que a
veu. Assumirá o sexo psicológico, sempre desejado. A junção do cirurgia de redesignação de sexo pode significar a adaptação do
sexo psicológico e do biológico cuidará de reduzir-lhe a infelicida- transexual aos valores dominantes, queremos dizer que a cirurgia
de, permitindo uma vida mais plena e coerente. deve vir, obrigatoriamente, seguida de um intenso acompanhamento

122. La problemática jurídica de la transexualidad, cit., p. 201. 123. Cf. Resolução supramencionada, nota n. 88.

41 65
pós-operatório; além do auxílio do médico, também das áreas de E prossegue:
Fonoaudiologia, Psicologia, Psiquiatria, compreendendo ainda a "Para nós, o escopo curativo da operação exclui que possa fa-
hormonal. E, certamente, com suporte jurídico para a imensidade de lar-se de contrariedade à lei e à ordem pública, visto que objetiva
problemas que poderão surgir dessa operação de adaptação. melhorar a saúde do paciente. Assim, poderá o médico não apenas
A cirurgia de redesignação de sexo tem aparecido, dessa forma, ministrar medicamentos inibidores de características dc um sexo e
como meio de adaptar a realidade do transexual, harmonizando-o estimuladores do sexo oposto, mas também executar a cirurgia de
com o sexo psicológico. adequação, constituindo exercício regular da profissão. O transexual,
por sua vez, exerce direito próprio, sem ofensa a direito alheio" 126.
Com o desenvolvimento tecnológico, a cirurgia de redesignação
Para Luiz Roberto Lucarelli, o direito à cirurgia vem enfocado
de sexo tem apresentado resultados cada vez melhores. O trauma do
como decorrência do direito à saúde:
pós-operatório deixa de existir com a assistência ao transexual, transfor-
mando-o em ser ajustado consigo mesmo e, conseqüentemente, feliz. "O conceito atual de saúde, de acordo com a Organização Mun-
dial de Saúde, compreende o bem-estar físico, psíquico e social. No
Estudos na área médica, com o acompanhamento do pós-ope-
transexual, sua situação lhe acarreta um desajuste psíquico que deve
ratório, vêm demonstrando que o transexual, com a redesignação do
ser reparado"127.
sexo, adapta-se bem, de forma geral. Inicia uma nova vida, relacio-
na-se sexualmente, integra-se à sociedade. O mesmo entendimento, diante do sistema italiano, é adotado
por Bacci128.
A doutrina jurídica entende que a cirurgia é direito do transexual
Poder-se-ia perguntar se as funções sexuais completas seriam
à procura de uma identidade.
entregues ao indivíduo que se submeteu à cirurgia de redesignação
Nesse sentido, Tereza Rodrigues Vieira: sexual. A cirurgia não vai tornar o indivíduo pleno em todos os sen-
"O direito à busca do equilíbrio corpo-mente do transexual, ou tidos, sensações e experiências daquele que traz em si originalmente
seja, à adequação de sexo e prenome, está ancorado no direito ao os órgãos sexuais. O transexual homem-mulher que obteve
próprio corpo, o direito à saúde (arts. 6 2 e 196 da Constituição Fede- redesignação sexual, passando a ser mulher, não terá prazer na rela-
ral), principalmente, no direito à identidade sexual, a qual integra ção sexual como uma mulher. Da mesma forma o transexual mulher-
um poderoso aspecto da identidade pessoal"124. homem. Tal situação deve ficar bem esclarecida no momento da op-
A adequação da cirurgia como meio de busca da felicidade vem ção pela cirurgia.
afirmada pela própria autora: A dificuldade de integração, as angústias, tornam-se tão pre-
sentes na vida do transexual que a redução de alguns sentidos ou
"Trata-se de uma cirurgia em indivíduo que não quer simples-
sensações em nada alterará sua determinação de mudar de sexo. O
mente mudar de sexo; esta adequação lhe é imposta de forma
irresistível, portanto, ele nada mais reclama que a colocação de sua
aparência física em concordância com seu verdadeiro sexo"125.
127. Tereza Rodrigues Vieira, Direito à adequação de sexo no transexual,
Repertório cit., p. 49.
128. Luiz Roberto Lucarelli, Aspectos jurídicos da mudança de sexo, Revista
124. Tereza Rodrigues Vieira, Direito à adequação de sexo no transexual, da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, jun.1991, p. 218.
Repertório IOB de Jurisprudência, n. 3, 1996, p. 50. 129. Cf. Mauro Bacci, Transessualismo: aspetti medico-legali in 7 casi de
125. Tereza Rodrigues Vieira, Direito à adequação de sexo no transexual, richiesta di adeguamento dei caratteri sessuali, Rassegna Italiana di Criminologia,
Repertório cit., p. 50, grifos originais. Milano, Giuffré, 1982, p. 9 e s.

42 67
transexual sabe (e deve ser advertido) que estar-se-á adaptando ao "Que le droit les reconnaisse telles que'elles sont sans vouloir
novo sexo e que não receberá, com a operação, o status completo do les assimiler à l'un ou 1'autre sexe. Cest plus précisément le refus de
novo sexo. A capacidade de procriação ficará prejudicada. la dissimulation, la volonté que la personnalité puisse s'exterioriser
dans as véritable identité sans être contrainte à un camouflage
Portanto, a advertência, para se chegar à autorização da cirur-
humiliant"131.
gia, é necessária, e deverá ser precedida de um trabalho psicológico
de conscientização do candidato. Para Santos Cifuentes, o direito de o transexual possuir identi-
ficação com seu sexo psicológico (antes ou depois da cirurgia) rela-
ciona-se com o direito ao corpo.
9. A proteção do transexual como direito da personalidade Esse autor considera que o direito à cirurgia, assim como a con-
multifacetado seqüente retificação de seu novo sexo, configuram um exercício de
direito ao próprio corpo132. Esse componente da liberdade reforça a
Os problemas do transexual já foram apresentados de forma proteção de outros bens da personalidade, como o direito à identida-
clara. Como se verifica, não estamos diante apenas do direito de de, o direito à imagem e, em grande escala, o direito ao corpo 133.
uma transformação de sexo pela cirurgia, mas da tomada de posi- Simplificar o problema do transexual seria colocá-lo apenas
ção diante da cirurgia, do tratamento hormonal ou não, da assunção dentro da proteção do direito ao próprio corpo vivo, como querem
da sexualidade psicológica ou ainda, se se preferir, da continuidade alguns autores, ou mesmo no direito à intimidade ou no direito à
do conflito. identidade pessoal.
É importante observar que a doutrina e a jurisprudência têm A proteção do transexual inicia-se no direito à intimidade, quan-
alocado o direito do transexual apenas como um dos aspectos dos do se constata sua situação e, diante de sua dificuldade, se ele deve
direitos da personalidade. Vejamos várias opiniões sobre a questão vivenciá-la ou não. Poderá, se assim quiser o transexual, permanecer'
do transexualismo: José Adércio Leite Sampaio129 mostra que a Cor- na ambigüidade de sua vida dupla, conflitiva e angustiante. Trata-se, '
te Européia de Direitos do Homem tem entendido que a questão da então, de seu direito à intimidade, onde define sua orientação sexual.
mudança de sexo e suas conseqüências jurídicas são decorrência do A opção por sua sexualidade, conflitiva ou não, é direito seu e en-
direito à vida privada e à intimidade. Para o autor, assim como para a contra-se no campo do direito à intimidade.
jurisprudência européia, a questão do transexual inclui-se no âmbito O paciente, ao decidir pelo tratamento, exerce o seu direito à
do direito à vida privada e à intimidade. intimidade; quando decide implementar o tratamento, o direito loca-
Para Jacques Robert, o direito de o transexual afirmar-se en- liza-se no campo do direito ao próprio corpo.
quanto cidadão, assumindo seus problemas e encontrando no Estado Não se pode, conforme já verificamos, considerar o direito do
o respaldo necessário, já se inclui no direito à identidade pessoal 130. transexual apenas como direito à saúde, já que ele busca a melhor
Acrescenta o autor: forma para a resolução do seu problema, que pode ser a cirurgia, o

129. Direito à intimidade e à vida privada, uma visão jurídica da sexualida-


de, da família, da comunicação e informações pessoais da vida e da morte, Belo 132. Droits de l'homme et libertes fondamentales, cit., p. 336.
Horizonte, Del Rey, 1998, p. 128. 133. Santos Cifuentes, Derechos personalísimos, cit., p. 303-16.
130. Cf. Jacques Robert, Droits de l 'homme et libertes fondamentales, 5. ed., 134. José Adércio Leite Sampaio, Direito à intimidade e à vida privada, cit.,
Paris, Montchrestien, s. d., p. 336. p. 314.

43 69
tratamento hormonal etc. O que ele deseja, portanto, é tratar-se, adap-
tar-se socialmente, viver mais feliz, além de poder decidir o melhor
para si, visando o direito à saúde física e mental.
O importante é verificar que o direito do transexual ocupa vá-
rios tópicos dos direitos da personalidade. E, como será visto adian-
te, depois da cirurgia, o transexual tem direito à identidade e ao es-
quecimento de sua situação anterior, sob pena de trazer sempre con-
SEGUNDA PARTE
sigo o estigma da transmutação. O direito do transexual relaciona-se
(em cada momento de sua vida e em cada decisão tomada) com os O DIREITO POSITIVADO
direitos da personalidade: direito à vida digna, à identidade, ao pró-
prio corpo, à intimidade etc. Necessitará, pois, de várias proteções,
conforme seu perfil e sua situação naquela circunstância. O direito do
L O direito à vida e os direitos da personalidade na Constituição
transexual pode aparecer sob as mais variadas formas, conforme a si-
Federal de 1988
tuação em foco. Podemos, portanto, afirmar que o direito dos transexuais
se revelará como multifacetado, na dependência da situação concreta
A Constituição Federal de 1988 refletiu a necessidade de
que exija proteção (direito de optar pela cirurgia, direito de escolher o
restabelecimento democrático em diversos de seus dispositivos. Em
tratamento hormonal, direito de alterar seu nome etc).
muitos deles, tratou de explicitar conceitos, tornando muitas regras
repetidas, reforçadas, como o princípio da igualdade, garantido na
regra geral do caput do art. 52 e que vem dirigido especificamente
para diversas situações, como para as relações internacionais (art. 4 2,
V), para relações de trabalho (art. 7 2, XXX e XXXI), para as pessoas
de direito público interno (art. 19, III), para as relações tributárias
(art. 150, II), entre outras. No caso dos direitos da personalidade, o
Texto de 1988 garantiu, na cabeça do art. 5 2, os bens que protegeu:
vida, igualdade, liberdade, segurança e propriedade. O direito à vida
está assegurado no caput do art. 52 e, como direito individual, tem
sua petrificação assegurada pelo § 42 do art. 60.
Estamos, pois, diante de um direito garantido de forma genéri-
ca, com característico de regra importante e imutável. Bastariam es-
ses fatores para entender a extensão do direito à vida. Mas ele não se
limita à garantia do direito à existência física; desdobra-se em direi-
to à integridade física, à integridade moral, à privacidade, à intimida-
de, à imagem, à honra, entre outros.
Nossos comentaristas pouco mencionam sobre os direitos da
personalidade no Texto Constitucional de 1988. Manoel Gonçalves
Ferreira Filho, por exemplo, apenas aponta a dificuldade da distin-

44 71
ção entre vida privada e intimidade1. Há ainda os que se abstêm de
Contudo é bom notar que também não é uma preocupação dos
falar sobre o assunto, como Orlando Soares, que não comenta o dispo-
nossos dias. O problema, já no século passado, se fez eclodir, so-
sitivo2. Será importante, todavia, analisar o comentário de Pinto Ferreira
bretudo na França, com a publicação indiscreta de fotos de artistas
a respeito do dispositivo quando, mencionando Othon Sidou, em rela-
célebres.
ção aos direitos da personalidade na Constituição Federal, pondera:
"O preceito inexistia no direito constitucional anterior, porém a Não obstante isto, na época atual, as teleobjetivas, assim como
ampla publicidade, devassando a vida privada e a intimidade das pes- os aparelhos eletrônicos de ausculta, tornam muito facilmente
soas, bem como desfigurando sua imagem, motivou sua inclusão no devassável a vida íntima das pessoas. E certo que esta intimidade já
texto. A lei americana tutela o direito à intimidade em nível ordiná- encontra proteção em uma série de direitos individuais do tipo
rio, com o nome de right ofprívacy. A norma prevê ademais o direito inviolabilidade de domicílio, sigilo de correspondência etc.
à indenização por dano material ou moral advindo de sua trangressão. Sem embargo disto, sentiu-se a necessidade de proteger especifi-
O documento de Estocolmo alinha cinco ofensas ao direito à camente a imagem das pessoas, a sua vida privada, a sua intimidade"4.
intimidade: penetração no retraimento da solidão da pessoa, incluin- Fiquemos com os desdobramentos do direito à vida, mais liga-
do-se no caso o espreitá-la pelo seguimento, pela espionagem ou dos ao tema, ou seja, direito à existência, à integridade física, ao não-
pelo chamamento constante ao telefone, gravação de conversas e to- tratamento desumano ou degradante, à intimidade e à privacidade.
madas de cenas fotográficas e cinematográficas das pessoas em seu
Como se verifica, a Constituição Federal, preocupada ainda com
círculo privado ou em circunstâncias íntimas ou penosas à sua mo-
ral, audição de conversações privadas por interferências mecânicas o Estado autoritário que se havia instalado no País, tratou de esmiu-
de telefone, microfilmes dissimulados deliberadamente; exploração çar os direitos, para entregar ao intérprete um instrumento completo
de nome, identidade ou semelhança da pessoa sem seu consentimen- e sem qualquer sentido dúbio ou apequenado. Garantiu o direito à
to, utilização de falsas declarações, revelação de fatos íntimos ou vida e tratou de explicá-lo: garantiu o direito à existência, à identida-
crítica da vida das pessoas; utilização em publicações, ou em outros de, à intimidade, à privacidade, entre outros.
meios de informação, de fotografia ou gravações obtidas sub- Portanto, as opções do transexual, acima mencionadas, como o
repticiamente nas formas precedentes"3. de querer ou não querer fazer tratamento hormonal, de pretender ou
Celso Ribeiro Bastos afirma que: não assumir o seu sexo psicológico — assumindo uma postura femi-
"A evolução tecnológica torna possível uma devassa da vida nina quando seu sexo biológico é masculino ou uma postura mascu-
íntima das pessoas, insuspeitada por ocasião das primeiras declara- lina quando seu sexo biológico é feminino —, ou ainda de se subme-
ções de direitos. ter à cirurgia de redesignação de sexo, encontram suporte no sistema
É por isto que o seu aparecimento será um pouco mais tardio. constitucional atual.
Vê-se, assim, que o tratamento dos constitucionalistas ao tema
é restrito e reservado aos aspectos globais, sem adentrar pormeno-
res, quando poderiam enfrentar questões como a proteção do.
1. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Comentários à Constituição brasileira
de 1988; arts. I2 a 43, São Paulo, Saraiva, 1990, v. 1, p. 35-6. transexual.
2. Cf. Orlando Soares, Comentários à Constituição da República Federativa
do Brasil, 7. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1993.
3. Pinto Ferreira, Comentários à Constituição brasileira; arts. Ia a 21, São
4. Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, Comentários à Constituição
Paulo, Saraiva, 1989, v. 1, p. 79.
do Brasil, São Paulo, Saraiva, 1989,. v. 2, p. 62.

72
45
3. Os princípios constitucionais
2. O direito à felicidade como decorrência dos fins do Estado
3.1. Os princípios
Não se concebe a idéia de que o Estado Moderno deva buscar
caminho diferente daquele que pressupõe a felicidade de seus com- O direito é um ordenamento significativo que se projeta num
ponentes. O homem se organiza paia obter felicidade. Submete-se sistema, e como tal possui unidade de sentido e coerência.
ao regramento do Estado, aceita suas regras, paga os impostos, limi- Dessa forma, não poderia restringir-se a um conjunto de diplo-
ta-se, sabendo, no entanto, que os fins dessa associação só podem mas e preceitos mutáveis a qualquer tempo, sem consistência algu-
levar à busca da felicidade. Não foi por outra razão que o constituinte ma, conforme observa Jorge Miranda:
de 1988 tratou de anunciar os princípios fundamentais na Constitui-
"... forçoso se toma reconhecer existir algo de específico e de
ção Federal, inaugurando o texto, logo depois do Preâmbulo. A in-
permanente no sistema que permite (e só isso permite) explicar e fun-
serção do Título I, "Dos Princípios Fundamentais", noticia a preocu-
dar a validade e efectividade de todas e cada uma de suas normas" 5. ^
pação da Lei Maior com os princípios e com sua interpretação. Da
Trata-se dos valores incorporados pelo direito, que são traduzi-
leitura dos princípios fundamentais obteremos material para a análi-
dos em princípios. Estes constituem verdadeiros integrantes desse
se pontual da proteção do transexual e seu direito de redesignação
complexo conjunto significativo, não se colocando acima ou além
sexual (que pode não ser exercido). Os princípios constitucionais
do direito.
ganharam grande importância no texto de 1988, mostrando a grandio-
sidade a eles deferida pelo constituinte, que, desde logo, firmou os Exemplificando, bem salientou Carlos Ari Sundfeld:
compromissos do Estado brasileiro. "O cientista, para conhecer o sistema jurídico, precisa identifi-
Ao arrolar e assegurar princípios como o do Estado Democrá- car quais os princípios que o ordenam. Sem isso, jamais poderá tra-
tico, o da dignidade da pessoa humana e o da necessidade de pro- balhar com o direito"6.
moção de bem de todos, sem qualquer preconceito, o constituinte Será importante para o nosso esclarecimento a opinião de juris-
garantiu o direito à felicidade. Não o escreveu de forma expressa, tas renomados a respeito dos princípios fundamentais da Constitui-
mas deixou claro que o Estado, dentro do sistema nacional, tem a ção portuguesa. Canotilho e Vital Moreira asseveram:
função de promover a felicidade, pois a dignidade, o bem de todos, "Os princípios fundamentais visam essencialmente definir e
pressupõe o direito de ser feliz. Ninguém pode conceber que um caracterizar a colectividade política e o Estado e enumerar as princi-
Estado que tenha como objetivo a promoção do bem de todos possa pais opções político-constitucionais. Daí a sua importância capital
colaborar para a infelicidade do indivíduo. Portanto, a interpreta- no contexto da Constituição da República Portuguesa".
ção constitucional leva à busca da felicidade do indivíduo, não de
E, adiante:
sua infelicidade. E, como veremos adiante, felicidade pressupõe
"Os princípios fundamentais, nas suas múltiplas dimensões e
atenção aos valores da minoria.
desenvolvimentos, formam o cerne da Constituição e consubstanciam
Portanto, a busca da felicidade será o motivo do Estado Demo-
crático brasileiro. As regras constitucionais serão analisadas dentro
desse objetivo fundamental.
5. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, 3. ed., Coimbra, Coimbra
Antes de entrarmos, especificamente, nos princípios constitu- Ed., 1991, t. 2, p. 223.
cionais e nos princípios que tocam diretamente nosso tema, devemos 6. Carlos Ari Sundfeld, Fundamentos de direito público, São Paulo, Malheiros
apresentá-los com sua força e sua extensão. Ed., 1992, p. 137.

46
74
a sua identidade intrínseca. Por isso, todos os princípios fundamentais Na mesma obra, encontramos o verbete "Princípios"; dentre os
estão, em maior ou menor medida, garantidos contra a revisão consti- diversos significados que traz para o vocábulo, um deve ser destacado:
tucional, erigidos em limites materiais de revisão, tanto em si mesmos
como em várias das suas dimensões mais eminentes (art. 288)"7. "Filos. Proposições diretoras de uma ciência, às quais todo o
desenvolvimento posterior dessa ciência deve estar subordinado".
Essa idéia estará presente como condição necessária para a aná-
- lise do tema da integração social do transexual. A principiologia, Vejamos a conceituação de Laudelino Freire:
) V como reflexo valorativo da cultura de um povo, com seu norte de "Princípio, s. m. Lat. Principius. O momento em que se faz /
] escolha, estará presente em todo o trabalho, moldando a atitude do alguma cousa pela primeira vez; 2. A primeira formação de uma cousa; V
/ intérprete e eliminando as possibilidades de interpretação contrária origem; começo; 3. Causa primária; razão, base; 4. O ato de princi- (
aos valores expendidos nos princípios constitucionais. piar ou começar; 5. Elemento ou conjunto de elementos que sob al- j
Verifica-se, dessa forma, que os princípios ocupam espaço de grande gum ponto de vista assume predomínio na constituição de um corpo
importância no estudo do direito constitucional. Vejamos seu conceito. orgânico qualquer; 6. Diz-se de qualquer das causas naturais que
concorrem para que os corpos se movam, operem e vivam; agente
3.2. Conceito de princípio natural; 7. Preceito, regra, lei; 8. Máxima sentença, norma, preceito
moral; 9. Estréia. 10. Opinião, modo de ver"9.
Não é simples a tarefa de buscar um conceito preciso da palavra Cândido de Figueiredo aponta o mesmo sentido:
"princípio". Inicialmente, há de se destacar que se trata de termo
"Princípio, m. Momento em que alguma coisa tem origem. Ori-
plurívoco, apresentando mais de um sentido.
gem. Causa primária. Começo. Elemento que predomina na consti-
Devemos nos preocupar apenas com o seu sentido na expressão
tuição de um corpo orgânico. Teoria, regra: os princípios da filoso-
"princípios constitucionais".
fia. Preceito moral. Preceito. Estréia. Germe. Preliminar. PI. Primícias;
Antes, no entanto, de especificarmos a utilização do termo, de-
rudimento. Antecedentes. Primeira época da vida"10.
vemos apresentar, mesmo que brevemente, a idéia de princípio como
vista pelos dicionaristas. Determinada essa expressão, passaremos No Dicionário de tecnologia jurídica de Pedro Nunes encon- |
aos dicionários técnicos e, por fim, à doutrina especializada na aná- tramos o seguinte: (.
lise dos princípios constitucionais. "Princípio — Regra, preceito. Razão primária. Proposição, ver- (
Ç No Novo dicionário da língua portuguesa , são localizados dois
8 dade geral, em que se apoiam outras verdades, (pl.) Conhecimento^>
\ sentidos para a palavra "princípio " que podem interessar a este estu- fundamental de uma ciência ou arte"11.
) do. O primeiro deles enuncia "princípio " como "preceito, regra, lei". Em Vocabulário jurídico, de De Plácido e Silva, deparamo-nos
) No segundo, temos: "Filos. Proposição que se põe no início de uma com um longo verbete, que merece ser destacado:
dedução, e que não é deduzida de nenhuma outra dentro do sistema
í considerado, sendo admitida, provisoriamente, como inquestionável".

9. Laudelino Freire, Princípio, in Grande e novíssimo dicionário da língua


portuguesa, 2. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, v. 4, p. 4133.
7. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, 10. Cândido de Figueiredo, Princípio, in Dicionário da língua portuguesa de
Coimbra, Coimbra Ed., 1991, p. 71, grifos originais. Cândido de Figueiredo, Rio de Janeiro, W. M. Jackson, Inc., s. d., v. 2, p. 763. ^
8. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo dicionário da língua portu- 11. Pedro Nunes, Dicionário de tecnologia jurídica, 7. ed., Rio de Janeiro,^- \y>
guesa, 2. ed. rev. e aum., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986, p. 1393. Freitas Bastos, 1963, v. 2.

47 77
"Princípios. No sentido jurídico, notadamente no plural, quer premissa maior ao silogismo (Kant); h) aquilo do qual alguma coisa
significar as normas elementares ou os requisitos primordiais insti- procede na ordem de existência ou do conhecimento; i) lei empírica,
tuídos como base, como alicerce de alguma coisa. subtraída ao controle da experiência, que obedece a motivos de sim-
E, assim, 'princípios' revelam o conjunto de regras ou preceitos, ples comodidade (Poincaré); j) característica determinante; k) agen-
que se fixaram para servir de norma a toda espécie de ação jurídica, te ou força originadora ou atuante; 1) proposição inicial, obtida pelo
traçando, assim, a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica. conhecimento, da qual se deduzem outras proposições. 2. Nas lin-
guagens jurídica e comum, pode significar: a) preceito; norma de
Desse modo, exprimem sentido mais relevante que o da própria
conduta; b) máxima; c) opinião; maneira de ver; d) parecer; e) códi-
norma ou regra jurídica. Mostram-se a própria razão fundamental de
go de boa conduta através do qual se dirigem as ações e a vida de
ser das coisas jurídicas, convertendo-se em perfeitos axiomas. uma pessoa; f) educação; g) doutrina dominante; h) alicerce; base"13.
; Princípios jurídicos, sem dúvida, significam os pontos básicos,
Em seguida, a autora aborda os princípios constitucionais:
-que servem de ponto de partida ou de elementos vitais do próprio
"Princípio constitucional. Direito Constitucional. Norma, explí-
Direito. Indicam o alicerce do Direito.
cita ou implícita, que determina as diretrizes fundamentais dos precei-
E, nesta acepção, não se compreendem somente os fundamen- tos da Carta Magna, influenciando sua interpretação. Por exemplo, o
tos jurídicos, legalmente instituídos, mas todo axioma jurídico deri- princípio da isonomia, o da função social da propriedade etc." 14 c l5.
vado da cultura jurídica universal. Compreendem, pois, os funda-
Como se trata de conceitos abrangentes, necessário se faz bus-
mentos da Ciência Jurídica, onde se firmaram as normas originá-
car uma noção mais precisa. Vale, para tanto, citar a lição de Celso
rias ou as leis científicas do Direito, que traçam as noções em que se
Antônio Bandeira de Mello, que define princípio como o "manda-
estrutura o próprio Direito.
mento nuclear de um sistema"16.
Assim, nem sempre os princípios se inscrevem nas leis. Mas,
Os constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira apre-
porque servem de base ao Direito, são tidos como preceitos funda-
sentam outro conceito mais específico: "núcleos de condensações
mentais para a prática do Direito e proteção aos direitos" 12.
nos quais confluem valores e bens constitucionais". Acrescentam
Para Maria Helena Diniz, em seu recente Dicionário jurídico, o ainda que "os princípios, que começam por ser a base de normas
termo assim se explica: jurídicas, podem estar positivamente incorporados, transformando-
"Princípio: 1. Filosofia geral, a) Origem ou causa da ação se em normas-princípios e constituindo preceitos básicos da organi-
(Pascal); causa primária; b) o que contém ou faz compreender as zação constitucional"17.
propriedades ou caracteres essenciais da coisa (Lalande); c) cada uma
das proposições diretivas ou características a que se subordina o de-
senvolvimento de uma ciência (Leibniz, Descartes, Newton e 13. Princípio, in Dicionário jurídico, São Paulo, Saraiva, v. 3, p. 716-7.
Spencer); regras fundamentais de qualquer ciência ou arte; d) norma 14. Princípio constitucional, in Dicionário jurídico, cit., v. 3, p. 717.
de ação enunciada por uma fórmula (Fouillée); e) fundamento; f) o 15. Na obra Dictionnaire constilutionnel, de Olivier Duhamcl e Ives Mény,
que contém em si a razão de alguma coisa (Christian Wolff); g) pro- Paris, PUF, 1992, não há verbete específico nem para "princípios" nem para "prin-
cípios constitucionais".
posição geral que resulta da indução da experiência para servir de 16. Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello, Elementos de direito administrati-
vo, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1986, p. 230.
17. José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Consti-
12. De Plácido c Silva, Vocabulário jurídico, 9. ed., Rio de Janeiro, Forense, tuição, Coimbra, Coimbra Ed., 1991, apud José Afonso da Silva, Curso de direito
1986, v. 3, p. 447. constitucional positivo, 5. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1989, p. 82.

78 48
3.3. Os princípios na Constituição Federal de 1988: uma visão geral Mais adiante acrescenta a autora:
"Os princípios constitucionais são, assim, o cerne da Constitui-
A Constituição, segundo os ensinamentos de Celso Ribeiro
ção, onde reside a sua identidade, a sua alma. A ordem constitucio-
Bastos, "é um conjunto de normas fundamentais dotado de suprema-
nal forma-se, informa-se e conforma-se pelos princípios adotados.
cia na ordem jurídica"18.
São eles que mantêm em sua dimensão sistêmica, dando-lhe
Sendo um sistema de normas jurídicas, funda-se na idéia de fecundidade e permitindo a sua atualização permanente" 23.
harmonia, que tem por base os valores jurídicos fundamentais domi-
nantes na sociedade, que envolvem todas as diferentes partes do sis-
tema, assegurando a unidade sistemática da Constituição. 3.4. Normas, regras e princípios
Os valores fundamentais tratados na Constituição são projetados
A teoria da metodologia jurídica tradicional traçava uma dis-
nos princípios constitucionais. Vale dizer: "princípios constitucionais
tinção entre normas e princípios. Canotilho 24 abandona essa distin-
são aqueles que guardam os valores fundamentais na ordem jurídica" 19.
ção e sugere uma nova, sendo seguido por diversos constitucionalistas,
No mesmo sentido é a lição de Luís Roberto Barroso: "os prin-
entre eles Jorge Miranda25, José Afonso da Silva26, Celso Ribeiro
cípios constitucionais são, precisamente, a síntese dos valores prin-
cipais da ordem jurídica". Bastos e Ives Gandra Martins27.
Para Canotilho, as regras e os princípios constituem duas espé-
Ainda o mesmo autor:
cies de normas jurídicas (normas-princípio e normas-disposição), e,
"Os princípios constitucionais consubstanciam as premissas bá-
portanto, a distinção entre ambos seria uma distinção entre normas
sicas de uma dada ordem jurídica, irradiando-se por todo um sistema.
diversas.
Eles indicam o ponto de partida e os caminhos a serem percorridos" 2".
Como se pode observar, não é simples firmar essa distinção,
' Convém, ainda, lembrar os ensinamentos de Carlos Ari Sundfeld:
mas há inúmeros critérios sugeridos pela doutrina, que foram arrola-
"Os princípios são as idéias centrais de um sistema, ao qual dão
dos por Canotilho28.
sentido lógico, harmonioso, racional, permitindo a compreensão de
seu modo de organizar-se"21. Um primeiro critério seria o grau de abstração: os princípios
teriam um grau bem maior de abstração comparativamente às regras.
Em outras palavras, Cármen Lúcia Antunes Rocha coloca:
"Os valores superiores havidos na sociedade são postos como Outro critério apontado seria o grau de determinabilidade na
raiz e meta do sistema constitucional, encarnando-se nos princípios aplicação do caso concreto. Em outras palavras, as regras seriam
abrigados na Constituição e dotados de normatividade jurídica e efi- suscetíveis de aplicação direta ao caso concreto, ao passo que os
cácia plena"22. princípios, em razão de sua indeterminação, necessitariam de media-
ções concretizadoras.

18. Celso Ribeiro Bastos, Curso de direito constitucional, 14. ed., São Paulo,
Saraiva, 1992, p. 118. 24. Cármen Lúcia Antunes Rocha, Princípios, cit., p. 23.
19. Curso de direito constitucional, cit., p. 143. 25. Direito constitucional, cit., p. 172.
20. Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas 26. Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 224.
normas, 3. ed., Rio de Janeiro, Renovar, 1996, p. 287. 27. José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, cit., p. 82.
21. Fundamentos de direito público, cit., p. 137. 28. Celso Ribeiro Bastos, Curso de direito constitucional, cit., 13. ed., 1990,
22. Cármen Lúcia Antunes Rocha, Princípios constitucionais da Administra- p. 138.
ção Pública, Belo Horizonte, Del Rey, 1994, p. 23. 29. Direito constitucional, cit., p. 172-3.

49 81
Um terceiro critério a ser citado seria o caráter de fundamen- partir dessa ponderação a solução para um eventual conflito entre
tabilidade no sistema das fontes de direito. Os princípios são normas dois princípios de um ordenamento jurídico. Vale dizer, os princí-
com papel fundamental no ordenamento jurídico, em virtude de sua pios podem ser objeto de harmonização.
posição hierárquica no sistema das fontes.
De modo contrário, no que concerne às regras jurídicas, haven-
A proximidade da idéia de direito poderia ser acrescentada como
do conflito entre duas delas, apenas uma deve ser válida e, portanto,
um quarto critério. Os princípios são padrões juridicamente
aplicada ao caso concreto. E insustentável a validade simultânea de
vinculantes, centrados nas exigências da "justiça". Por sua vez, as
regras contraditórias.
regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo simples-
mente formal. Em suma, os princípios suscitam problemas de validade e de
Para finalizar, a natureza normogenética seria o último critério: peso; as regras somente ensejam questões de validade.
os princípios constituem o fundamento das regras, desempenhando,
portanto, uma função normogenética fundamentante. 3.5. Importância das normas-princípio e sua primazia em relação
Diante de tantos critérios, resta claro que a distinção entre prin- às regras
cípios e regras se apresenta bastante complexa. Tal complexidade
pode resultar, segundo Canotilho29, do fato de não se saber qual a Conforme já destacado no item anterior, os princípios encon-
função dos princípios e, ainda, se existe um denominador comum tram-se em posição hierárquica superior em relação às regras. Os
entre regras e princípios. mais diversos autores reconhecem essa característica, da qual pode-
Pois bem, em relação à função dos princípios, temos que são mos retirar algumas conclusões. De outra parte, também salientam a
multifuncionais, ora exercendo função argumentativa, ora funcionan- importância dos princípios.
do como normas de conduta. Pois bem, no que concerne à primeira observação a ser feita a
No que toca à segunda questão, é necessário destacar que os respeito desse tema, lembramos a lição de Celso Antônio Bandeira <■
princípios são verdadeiras normas, bem como as regras jurídicas. de Mello:
Todavia, entre essas duas espécies de normas encontramos diferen- "Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma
ças qualitativas.
norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um
Primeiramente, cabe dizer que os princípios são normas jurídi- específico mandamento obrigatório mas a todo o sistema de coman-
cas impositivas, compatíveis com vários graus de concretização, con- dos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade,
forme os condicionalismos fáticos e jurídicos. Podem coexistir prin- conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência
cípios conflitantes. De outra parte, as regras são normas que prescre- contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais..." 30. "
vem, de modo imperativo, uma exigência, que é ou não cumprida.
Entretanto, não é possível a existência de normas conflitantes: as Para a mesma posição se inclina Carlos Ari Sundfeld:
regras antinômicas se excluem. "O princípio jurídico é norma de hierarquia superior à das re-
Com efeito, em conseqüência, os princípios permitem o gras, pois determina o sentido e o alcance destas, que não podem
balanceamento de valores e interesses, sendo possível encontrar a contrariá-lo, sob pena de pôr em risco a globalidade do ordenamento

30. Celso Antônio Bandeira de Mello, Elementos de direito administrativo,


29. Direito constitucional, cit., p. 172-3. cit., p. 230.

82 50
jurídico. Deve haver coerência entre os princípios e as regras, no titucionalmente impossível e o constitucionalmenle necessário, sem
sentido que vai daqueles para estas"31. quebra da originalidade e do campo de atuação do legislador" 34.
Cumpre ainda registrar o que foi muito bem notado por Cármen Após a exposição do que venham a ser os princípios e as regras
Lúcia Antunes Rocha: e mostrar o relacionamento entre eles, bem como a tendência das
"Em sua natureza jurídica, os princípios constitucionais têm doutrinas nacional e portuguesa em apontar tal relacionamento, Ruy
Samuel Espíndola observa:
normatividade incontestável, quer dizer, contêm-se nas normas ju-
rídicas do sistema fundamental. Estas normas, nas quais residem "Segundo se pode concluir, esta é uma tendência predominante
os princípios constitucionais, são superiores a quaisquer outras, em no Direito Constitucional brasileiro, e, ao que parece, no Direito
razão do conteúdo expressa ou implicitamente nelas formalizados... Constitucional contemporâneo também falar de princípios em ter-
Assim, o princípio constitucional predica-se diferentemente de qual- mos estruturantes — dos princípios mais abertos aos mais densos,
quer outro princípio ou valor prevalente na sociedade, mas não chegando-se ao patamar normativo das regras, reconduzindo-se, em
juridicizado, por carecer da normatividade que o torna impositivo via de retorno destas, progressiva e sucessivamente, até os princípios
ao acatamento integral. Esta qualidade talvez represente o maior mais abstratos (de maior abertura e de menor densidade). Essa con-
avanço a que chegou o constitucionalismo contemporâneo, pois a cepção reforça, como se pode deduzir, a idéia de normatividade dos
normatividade dos princípios alterou a face e o coração do concei- princípios constitucionais, ao emprestar-lhes um sentido articulado-
to de Constituição. A norma que dita um princípio constitucional estruturante e uma dimensão praxiológico-concretizadora, já que toma
não se põe à contemplação, como ocorreu em períodos superados mais plausível a compreensão, a interpretação e aplicação dos prin-
do constitucionalismo; põe-se à observância do próprio Poder Pú- cípios de maior abertura pelos princípios de maior densidade e pelas
blico do Estado e de todos os que à sua ordem se submetem e da regras constitucionais"35.
qual participam"32.
A mesma autora continua mais adiante: 3.6. A Constituição como sistema aberto de regras e princípios
"Pela sua natureza qualificada, aos princípios confere-se uma
superconstitucionalidade. Daí não ser incomum verificar-se serem A Constituição deve ser compreendida como um sistema aber-
eles dotados de uma rigidez constitucional superior às regras consti- to de regras e princípios. Não é possível conceber um sistema jurídi-
tucionais. E, por isso mesmo, sua inobservância tem conseqüências co formado apenas por regras, pois este, embora pudesse ser consi-
jurídico-constitucionais mais sérias que aquelas decorrentes do derado um "sistema de segurança", não permitiria a sua própria
descumprimento de regulações jurídicas, como antes enfatizado" 33. complementação e o seu desenvolvimento.
Romeu Felipe Bacellar Filho adverte para a importância dos Da mesma forma, um sistema exclusivamente constituído por
princípios, mostrando sua utilidade: princípios seria inaceitável, por conduzir à indeterminação e incerte-
"Analisando-se os princípios constitucionais, atinge-se um nú- za, devido à inexistência de regras precisas.
cleo mínimo de exigências constitucionais, de forma a separar o cons-

35. Romeu Felipe Bacellar Filho, Princípios constitucionais do processo ad-


31. Fundamentos de direito público, cit., p. 140. ministrativo disciplinar, São Paulo, Max Limonad, 1998, p. 153, grifos originais.
32. Cármen Lúcia Antunes Rocha, Princípios, cit., p. 26. 36. Ruy Samuel Espíndola, Conceito de princípios constitucionais, São Pau-
33. Cármen Lúcia Antunes Rocha, Princípios, cit., p.59. lo, Revista dos Tribunais, 1998, p. 182-3.

51 85
Diante dessa perspectiva, depreende-se que o sistema constitu- Os princípios estruturantes não são somente "densificados" por
cional deve ser constituído por regras e princípios, e que os últimos, princípios constitucionais gerais ou especiais. Sua concretização pode
em razão de sua referência a valores, são o fundamento das regras dar-se inclusive por regras constitucionais, independentemente de
jurídicas, ligando todo o sistema constitucional de modo objetivo. sua natureza.
Registre-se ainda quão importante foi a inserção, ao lado das
regras, dos diversos princípios no Texto Constitucional, uma vez que 3.7. Tipologia dos princípios
este resultou ampliado e renovado, sem que fossem necessárias mais
regras estáticas e objetivas.
Os autores sugerem diversas classificações a respeito dos prin-
Com o fim de destacar a importância das ampliações necessá- cípios, dentre as quais citaremos apenas algumas.
rias na Constituição, sem alterar as suas regras, Cármen Lúcia Antunes Canotilho desenha uma tipologia, repartindo os princípios em
Rocha observa: quatro espécies38.
"A alteração básica que se observa no conceito e na experiência da . Os princípios jurídicos fundamentais seriam aqueles historica-
Constituição neste final.de século está em sua dimensão principiológica, mente objetivados e progressivamente introduzidos na consciência
que lhe permite ampliar-se em sua matéria, sem estender-se, necessaria- jurídica, encontrando uma recepção expressa ou implícita no Texto
mente, em suas regras, e alargar-se em sua aplicação e re-criação perma- Constitucional. Constituem um relevante fundamento para a inter-
nente, seguindo a senda traçada pelos princípios"36. pretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo.
No seu conjunto, as regras e os princípios constitucionais va- Podem ter função negativa ou positiva, sempre vinculando o legisla-
lem como "lei", pois o direito constitucional é direito positivo. dor no momento legiferante. Exemplos: princípio da publicidade dos
Com efeito, ressalve-se também que as regras e os princípios atos jurídicos; princípio da imparcialidade da administração; princí-
que formam a Constituição apresentam diferentes graus de concre- pio do acesso ao direito e aos tribunais.
tização, consoante salientou Canotilho37. Os princípios políticos constitucionalmente conformadores são
Temos, primeiramente, os princípios estruturantes, constitutivos os que explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador
constituinte, refletindo as opções políticas nucleares e a ideologia
e indicativos das idéias diretivas básicas de toda a ordem constitucio-
inspiradora da Constituição. Em outras palavras, são o cerne político
nal. São as constantes jurídico-constitucionais do estatuto político.
de uma Constituição política. Frise-se também que são reconhecidos
Esses princípios ganham efetivação por meio de outros princí- como limites do poder de revisão e se revelam os princípios mais
pios, também denominados subprincípios, que "densificam" os diretamente visados na hipótese de alteração profunda do regime
estruturantes, iluminando o seu sentido jurídico-constitucional epo- político. Consoante o que acontece com os princípios jurídicos ge-
lítico-constitucional. rais, os princípios constitucionalmente conformadores são normativos,
Por sua vez, os princípios gerais fundamentais podem perma- operantes, devendo sempre ser observados pelos órgãos aplicadores
necer, principalmente, com a confirmação de outros princípios cons- do direito. Exemplos: princípios definidores da forma de Estado, prin-
titucionais especiais, que, da mesma forma, são suscetíveis de cípios estruturantes do regime político.
concretizações especiais para se tornarem permanentes. Os princípios constitucionais impositivos são aqueles que, no
âmbito da Constituição dirigente, impõem aos órgãos do Estado,

36. Princípios, cit., p. 21.


37. Direito constitucional, cit., p. 186-9. 38. Direito constitucional, cit., p. 176-80.

52 87
principalmente ao legislador, a realização de fins e a execução de e operacionalidade. Exemplos: princípio da publicidade das normas
tarefas, sendo, portanto, dinâmicos, prospectivamente orientados. jurídicas; da tipicidade das formas de lei.
Exemplos: princípio da independência nacional; princípio da corre- José Afonso da Silva40, tendo por base os ensinamentos de
ção das desigualdades, da distribuição da riqueza e do rendimento. Canotilho, reúne os princípios constitucionais em basicamente duas
Por fim, resta mencionar os princípios-garantia, que objetivam categorias: os princípios político-constitucionais e os jurídico-cons-
instituir direta e imediatamente uma garantia aos cidadãos. O legisla- titucionais.
dor encontra-se estreitamente vinculado a sua aplicação, devido a sua
Os princípios político-constitucionais são os derivados das de-
grande força determinante, positiva e negativa. Exemplos: princípio
cisões políticas fundamentais concretizadas em normas
do nulla poena sine lege, do non bis in idem, do in dúbio pro reo.
conformadoras do sistema constitucional positivo. Esses princípios
Jorge Miranda39 traz uma classificação diversa, distinguindo os
fundamentais, que são de natureza variada, constituem a matéria dos
princípios em três grandes categorias. De início, divide os princípios
arts. I2 a 42, Título I, da Constituição da República. Traduzem-se em
constitucionais em substantivos, que são os princípios válidos em si
normas-síntese ou normas-matriz.
mesmos e que espelham os valores básicos da Constituição, e instru-
mentais ou adjetivos, que complementam os primeiros e enquadram Analisando de modo minucioso a Constituição de 1988, o mes-
as disposições articuladas no seu conjunto, apresentando sobretudo mo autor faz uma discriminação mais detalhada dos princípios fun-
alcance técnico. damentais. Dessa forma, teríamos: a) princípios relativos à existên-
Em seguida, subdivide os princípios constitucionais substanti- cia, forma, estrutura e tipo de Estado; b) princípios relativos à forma
vos em princípios axiológicos fundamentais e princípios político- de governo e à organização dos Poderes; c) princípios relativos à
constitucionais. organização da sociedade; d) princípios relativos ao regime político
Os princípios axiológicos fundamentais são os que corres- (entre estes está o princípio da dignidade da pessoa humana); e) prin-
pondem aos limites transcendentes do poder constituinte, sendo a cípios relativos à prestação positiva do Estado; f) princípios relativos
ponte de passagem do direito natural para o direito positivo. Exem- à comunidade internacional.
plos: princípio da inviolabilidade da vida humana, da integridade Os princípios jurídico-constitucionais são princípios constitu-
moral e física das pessoas, da irretroatividade da lei penal incrimi- cionais gerais informadores da ordem jurídica nacional, decorrentes
nadora, da dignidade social do trabalho. de certas normas constitucionais e, algumas vezes, resultantes de
Os princípios político-constitucionais são os correspondentes desdobramentos dos princípios fundamentais. Constituem uma teo-
aos limites imanentes ao poder constituinte, aos limites específicos ria geral de direito constitucional, já que envolvem conceitos gerais,
da revisão constitucional e aos princípios conexos ou derivados de relações, objetos, que podem ter seu estudo destacado da dogmática
uns e de outros, que refletem as grandes opções e princípios de cada jurídico-constitucional. Exemplos: princípio da legalidade, da
regime. Exemplos: princípio democrático, da separação de Poderes, isonomia, da proteção social dos trabalhadores.
representativo. Finalmente, deve ser salientado que os princípios gerais,
Os princípios constitucionais instrumentais estão relacionados freqüentemente, cruzam-se com os princípios fundamentais, na me-
à estruturação do sistema constitucional, em moldes de racionalidade dida em que estes podem ser positivação daqueles.

39. Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 229-30. 40. Curso de direito constitucional positivo, cit., p. 82-3.

53 89
3.8. O papel dos princípios Pública47", consoante ela mesma observa, pretende demonstrar que
os princípios constitucionais têm uma natureza peculiar e típica, apre-
Jorge Miranda, em seu Manual de direito constitucional^, muito sentando regime jurídico próprio, que deve ser levado em considera-
bem delineou o papel desempenhado pelos princípios na ordem jurídica. ção quando da aplicação desses princípios.
Em primeiro lugar, destaque-se sua função ordenadora, que se A primeira característica apontada é a generalidade. Significa
revela especialmente importante e presente nos momentos revoluci-
que os princípios constitucionais não pontuam com especificidade e
onários, quando é nos princípios (e não em poucos preceitos mutáveis)
minudência hipóteses concretas de regulações jurídicas. Eles são
que se assenta diretamente a vida jurídico-política do país. Frise-se,
gerais para serem geradores de outros princípios e de outras regras,
porém, que essa função não é menos relevante nas épocas de estabi-
possibilitando a criação e a inovação constante da sociedade estatal.
lidade institucional e normalidade.
A generalidade permite que a Constituição cumpra seu grande
De outra parte, os princípios exercem uma ação imediata, en-
quanto diretamente aplicáveis ou diretamente capazes de conformar papel: ser a Lei Maior e fundamental do Estado. Assim, a sociedade
as relações político-constitucionais. É conveniente observar que eles não permanecerá amarrada a modelos inflexíveis e definitivos. Frise-
exercem ainda uma ação mediata tanto no plano integrativo e cons- se, entretanto, que a generalidade não traz em si a idéia de imprecisão.
trutivo como num plano essencialmente prospectivo, traduzido numa Em segundo lugar, são os princípios constitucionais primários,
função dinamizadora e transformadora. Esta última ação consiste no pois deles decorrem outros princípios. A primariedade desses princí-
fato de funcionarem como critérios de interpretação e de integração, pios contém várias facetas:
porque são eles os responsáveis pela coerência geral do sistema. Dessa
a) a primariedade histórica, a aceitação primeira dos valores
forma, na busca do sentido exato dos preceitos constitucionais, é
necessário conjugar os princípios, e a integração deve ser feita de que se encerrarão em conteúdos a compor esses princípios;
modo que as normas que o legislador constituinte não exprimiu ca- b) a primariedade jurídica, anterior aos princípios constitucio-
balmente se tornem pelo menos explicitáveis. nais. Os fundamentos do direito positivo estão no sistema constituci-
Carlos Ari Sundfeld42, ao cuidar da utilidade dos princípios na onal. Os princípios constitucionais passam a ser o ponto de partida
aplicação do direito, também traçou o papel destes, de modo sim- para a construção de toda a ordem jurídica.
ples, mas completo. Os princípios constitucionais são primários ainda no sentido
Para esse autor, os princípios cumprem duas funções essenci- lógico, uma vez que o complexo de estruturas, instituições e
ais: a primeira com a determinação de adequada interpretação das regulações formadoras do sistema constitucional informa-se e
regras; a segunda, permitindo o preenchimento de lacunas. embasa-se neles.
Deve-se observar que a sua primariedade é também ideológica,
3.9. Características dos princípios constitucionais pois é neles que se esboça a idéia de direito que prevalece no
ordenamento jurídico estabelecido.
O elenco de características elaborado por Cármen Lúcia A terceira característica dos princípios constitucionais anunci-
Antunes Rocha em Princípios constitucionais da Administração ada pela autora é a dimensão axiológica. Tal característica é decor-
rência do conteúdo ético de que se dotam. Isso não quer dizer que

41. Cit., p. 226.


42. Fundamentos de direito público, cit., p. 141-2.
43. Cit., p. 28-43.

54 91
sejam axiomas jurídicos, ou verdades absolutas. Eles têm natureza Por último, como característica contemporânea do direito cons-
própria de criação histórica do direito. titucional, deve ser lembrada a normatividade jurídica dos princípios
A quarta característica é a objetividade dos princípios constitu- constitucionais. Eles são leis, têm eficácia jurídica.
cionais, o que significa que eles não têm conteúdo subjetivo ou alea-
tório, mas substância jurídica própria, cuja tarefa de explicitar per- 3.10. Interpretação dos princípios constitucionais
tence ao aplicador da norma. Tal objetividade impede que o aplicador
do princípio faça livre opção de sentido ao interpretá-lo. Além des- Não nos preocuparemos com a interpretação dos princípios
sas características determinantes dos princípios constitucionais, res-
constitucionais isoladamente, como objeto específico de estudo, mas
salta Cármen Lúcia Antunes Rocha que a transcendência e a atuali-
apenas como instrumento para o entendimento correto do direito à
dade também são características dos princípios constitucionais. A
integração social do transexual, diante dos direitos constitucional-
transcendência está no fato de que superam a elaboração normativa
mente assegurados. Por isso, não desenvolvemos uma conceituação
constitucional formal e penetram no ordenamento estatal como grande
aprofundada da interpretação constitucional e de seus métodos, mas
diretriz política, legislativa, administrativa ejurisdicional.
trataremos dos princípios como meio para chegar ao resultado pro-
Por sua vez, a atualidade guarda relação com a necessidade de posto.
manter a coerência entre os princípios constitucionais, firmados no
Em primeiro lugar, faz-se necessário definir o que seja inter-
sistema fundamental, e os projetos e ideais do povo, estabelecidos
pretação. Nas palavras de Luís Roberto Ban-oso, temos que:
no ordenamento jurídico, no presente momento.
"A interpretação é atividade prática de revelar o conteúdo, o
Outra característica anotada é a poliformia, que possibilita a
significado e o alcance de uma norma, tendo por finalidade fazê-la
multiplicidade de sentidos dos princípios, ressalvando-se que tal
multiplicidade conceituai não pode ser simultânea. Os princípios incidir em um caso concreto"44.
devem ter um só significado institucional e formalmente válido e O tema da interpretação dos princípios constitucionais se inse-
vigente em certo momento histórico. É necessário ainda que se leve re evidentemente na questão da interpretação da Constituição. Sen-
em conta a vinculabilidade e a aderência, outras características do assim, o primeiro ponto a ser assinalado refere-se à natureza da
concernentes aos princípios constitucionais. A vinculabilidade, vi- Constituição.
gor jurídico de que se revestem os princípios, determina que todas as A Constituição apresenta íntima ligação com a política, já que
normas do ordenamento jurídico se liguem ao quanto princípio contém o traçado geral do Estado e dos direitos fundamentais dos
logicamente definido. indivíduos que se vinculam a ele. Portanto, há de ser considerado na
A aderência enfatiza a vinculabilidade, pois impossibilita que realização da interpretação todo o contexto sócio-econômico-políti-
qualquer regulamentação jurídica ou comportamento institucional co da sociedade estatal da época.
torne-se exceção entre as diretrizes dos princípios traçados. Com autoridade, observa Cármen Lúcia Antunes Rocha:
Cita ainda a informatividade dos princípios. Eles são fontes de "Daí ser aceito,,atualmente, que na interpretação dos princípios
todas as ordenações jurídicas, norteando todo o sistema jurídico de um constitucionais o contexto vale tanto ou até mesmo, eventualmente,
Estado. Em síntese, os princípios constitucionais caracterizam-se pela
complementariedade. Todos os princípios devem ser conjugados, for-
mando um todo coordenado, de modo que o entendimento perfeito de
44. Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, São
cada um deles dependa da inteligência extraída do seu conjunto. Paulo, Saraiva, 1996, p. 97.

92 55
mais que a literalidade do texto, se este não for redutível aos valores a) princípio da supremacia, segundo o qual os princípios cons-
socialmente buscados"45. titucionais, por constituírem a essência do modelo constitucional
A mesma autora coloca, mais adiante que: adotado, estão em posição superior em relação às demais determina-
"... a interpretação dos princípios constitucionais haverá que ções normativas inseridas no sistema, incluídas as de nível constitu-
ser progressiva, ou evolutiva, entendendo por esta a que se faz bus- cional;
cando adaptar-se o sentido havido no texto e no contexto à realidade b) princípio da finalidade, que estabelece que os fins da norma
da sociedade estatal no momento de sua aplicação"46. conduzem à interpretação jurídica. Logo, cabe ao intérprete guiar-se
A interpretação evolutiva é, segundo Luís Roberto Barroso, sempre pela finalidade pretendida pela norma; desse princípio de-
"... um processo informal de reforma do texto da Constituição. Con- corre o terceiro,
siste ela na atribuição de novos conteúdos à norma constitucional, c) princípio da resultante social, que se traduz como a necessi-
sem modificação do seu teor literal, em razão de mudanças históri- dade de alcançar a concretização da justiça material, finalidade últi-
cas ou de fatores políticos e sociais que não estavam presentes na ma da norma;
mente dos constituintes"47. d) princípio da proporcionalidade, que pode ser enfocado sob
Pois bem, resta claro que o intéiprete, ao aplicar os princípios dois aspectos: primeiro, analisa-se a proporcionalidade dos valores
constitucionais, deve utilizar os parâmetros definidos pelo contexto protegidos pelos princípios constitucionais, quando é esclarecida a
em que se encontra. sua aplicação; segundo, é enfatizado o aspecto do quanto contido no
Cármen Lúcia Antunes Rocha48 arrolou algumas das regras princípio e a sua aplicação, vedando-se qualquer excesso na prática
norteadoras da interpretação dos princípios constitucionais. do princípio. Para sua adoção, deve ser considerada a existência de
hierarquia entre os princípios constitucionais e a sua complemen-
Todavia, antes de discorrer acerca dessas regras, é fundamental
tariedade e condicionante recíproca.
registrar que as Constituições, de modo geral, não costumam trazer
determinações a respeito de sua própria interpretação. Essas regras Ressalte-se que a Constituição, como sistema harmônico de
podem, porém, ser extraídas do próprio sistema. normas, não pode apresentar disposições que se contrariem. Dessa
forma, se ocorrer, num caso concreto, um conflito aparente entre
Assinale-se também que toda norma precisa ser interpretada; o
duas normas principiológicas, ao se interpretar a Constituição, deve-
que pode variar é a margem de liberdade dada ao intérprete para a
mos nos socorrer do princípio da proporcionalidade.
realização de seu trabalho, tendo em vista a maior clareza ou obscu-
ridade da lei. Voltando à análise de C. L. Antunes Rocha quanto às regras
norteadoras dos princípios constitucionais, cite-se ainda o princípio
Feitas essas observações, podemos iniciar a análise dos princí-
da razoabilidade, que determina dever existir uma perfeita sincronia
pios de interpretação arrolados por Cármen Lúcia Antunes Rocha.
entre o que é posto na norma e o que dela é feito na experiência
Inicialmente, destaque-se: sociopolítica.
Para finalizar destacamos ainda o princípio da especialidade.
Muitas vezes a Constituição enuncia um princípio geral e, posterior-
45. Princípios, cit., p. 47. mente, em outras passagens, reitera-o, conferindo-lhe traços mais
46. Cármen Lúcia Antunes Rocha, Princípios, cit., p. 47.
peculiares, o que determina, para o intérprete, o dever de se ater a
47. Interpretação e aplicação da Constituição, cit., p. 137.
48. Princípios, cit., p. 47-56. esse princípio especial ao cuidar de um fato relativo a ele.

94 56
3.11. Efetividade dos princípios constitucionais segundo Luís Roberto 5. Somente há sentido em inscrever na Constituição princípios
Barroso dotados de eficácia jurídica, e aptos a se tornarem efetivos, isto é, a
operarem concretamente no mundo dos fatos"51.
"Efetividade designa a atuação prática da norma, fazendo pre- Nesse sentido, podemos nos socorrer da observação de Walter
valecer, no mundo dos fatos, os valores por ela tutelados. Ao ângulo Claudius Rothenburg:
subjetivo, efetiva é a norma constitucional que enseja a concretização "O reconhecimento da natureza normativa dos princípios im-
do direito que nela se substancia, propiciando o desfrute real do bem plica afastar definitivamente as tentativas de se os caracterizar como
jurídico assegurado. meras sugestões ou diretivas (desideratos ou propostas vãs), a fim de
Para que possa ser efetiva, uma norma constitucional: a) não que deles possa ser extraído todo o significado dos valores que en-
deve conter promessas irrealizáveis; b) deve permitir a pronta iden- cerram, com o cuidado de impedir que sejam estes tornados inócuos
tificação da posição jurídica em que investe o jurisdicionado; c) por uma retórica 'mitificadora' e enganosa, freqüentemente empre-
deve ter o seu cumprimento assegurado por meios de tutela ade- gada para os princípios"52.
quados"49.
É com essa observação que alertamos para a dimensão que se
Portanto, a efetividade dos princípios constitucionais significa pretende dar aos princípios constitucionais, especialmente no trata-
a aplicabilidade da norma, com os valores determinados por ela com mento da integração do transexual. Não se pretende tratar a
o cumprimento do direito assegurado. Os princípios existem para principiologia como mera sugestão ou diretiva, mas dela retirar sua
serem aplicados, cumpridos, observados. Nesse sentido continua o verdadeira força, capaz de fornecer vetor seguro para o intérprete no
mesmo autor: tratamento do tema do transexual.
"Disto resulta que o Direito Constitucional, tanto quanto os
demais ramos da ciência jurídica, existe para realizar-se. Vale dizer:
3.12. Sede dos princípios constitucionais
ele almeja à efetividade. Efetividade, já averbamos em outro estudo,
designa a atuação prática da norma, fazendo prevalecer, no mundo
Em virtude de sua própria natureza, os princípios não precisam
dos fatos, os valores por ela tutelados. Ela simboliza a aproximação,
de sede fixa no Texto Constitucional. Entretanto, na maioria das Car-
tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da
tas Magnas, eles aparecem enumerados.
realidade social"50.
Deve restar claro também que os princípios constitucionais não
E segue o autor em suas conclusões:
se restringem aos expressos na Constituição. Podem existir princí-
"3. Ainda quando se caracterizam por um maior teor de abstra- pios implícitos.
ção, os princípios constitucionais têm eficácia normativa, e, em mui-
Luís Roberto Barroso, em O direito constitucional e a efetividade
tos casos, tutelam diretamente situações jurídicas individuais.
de suas normas5*, arrolou alguns desses princípios não explícitos,
(-)

52. Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas


49. Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas, cit., p. 308.
normas, cit., p. 231-2. 53. Walter Claudius Rothenburg, Princípios constitucionais, Porto Alegre,
50. Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas Sérgio A. Fabris, Editor, 1999, p. 82.
normas, cit., p. 283. 54. Cit., p. 288-9.

96 57
destacando a sua importância quanto à compreensão e à aplicação do palavras, o Brasil é formado pela "união indissolúvel dos Estados e
Texto Constitucional. São os seguintes: princípio da supremacia da Municípios e do Distrito Federal". Essa forma de Estado implica a
Constituição, da unidade da Constituição, da continuidade da ordem preservação da autonomia dos seus entes políticos, uma vez que há
jurídica e da interpretação conforme a Constituição. uma divisão de competências entre todos os entes, não sendo permi-
tido a nenhum deles invadir a esfera de competência do outro. Nesse
4. Os princípios na Constituição Federal de 1988: uma visão espe- ponto, cabe lembrar os ensinamentos de Celso Ribeiro Bastos: "nada
cífica será exercido por um poder mais amplo, quando puder ser exercido
pelo poder local, afinal os cidadãos moram nos Municípios e não na
A Constituição brasileira de 1988, em seu Título I, que compre- União"53.
ende os seus quatro primeiros artigos, trata dos "Princípios Funda- Em seguida, a Constituição acolheu o princípio do Estado de
mentais". Contudo, ressalve-se que os princípios integrantes do Direito, que se resume na submissão às leis, sejam elas quais forem.
ordenamento jurídico brasileiro não se restringem aos mencionados
O princípio democrático pode ser mencionado como o quarto
no título acima, pois, ao longo do Texto Constitucional, encontra-
princípio. É difícil conceituar precisamente o que seja democracia.
mos muitos outros.
Sendo assim, socorremo-nos da lição de Pinto Ferreira:
Os princípios anunciados no Título I apresentam um traço de
"E essa é a razão pela qual se deve aceitar a seguinte noção de
fundamentabilidade. Foram eleitos, pelo constituinte, pelo traço de
importância, distinguindo-se de outros princípios que, embora pre- democracia: é o governo constitucional das maiorias que, sobre as
vistos expressamente, não receberam a marca da fundamentabilidade. bases de uma relativa liberdade e igualdade, pelo menos a igualdade
São, portanto, mais importantes que outros princípios, por força da civil (a igualdade diante da lei), proporciona ao povo o poder de
escolha do próprio constituinte de 1988. representação e fiscalização dos negócios públicos"56.
Antes de iniciai- uma análise acerca desses "princípios funda- São esses os princípios que podem ser extraídos do caput do
mentais", que tocam o ceme de nosso estudo, necessário se faz des- art. ls da Constituição. Os incisos desse mesmo artigo tratam dos
tacar uma crítica do constitucionalista José Cretella Jr.: fundamentos da República Federativa do Brasil. Aliás, tais funda-
"A expressão 'princípios fundamentais' é redundante, porque mentos nada mais são que princípios, consoante a lição de Manoel
'princípios' são 'proposições que se colocam nas bases dos sistemas, Gonçalves Ferreira Filho:
informando-os, sustentando-os, dando-lhes base, fundamento'. Bas- "Estes fundamentos a que se refere a Constituição são os prin-
taria, assim, o vocábulo 'princípios'"54. cípios básicos que se pretende leve sempre em conta o governo"57.
Como primeiro princípio enunciado pela Carta Magna brasileira Ora, verificamos, assim, que o princípio democrático deve es-
temos o princípio republicano, cujo significado é: o exercício do poder tar presente nas regras fundamentais do Estado brasileiro. Portanto,
pelos agentes públicos deve ser temporário, ou seja, deve haver em relação à questão do transexual, o Estado Democrático pode e
alternância de pessoas entre aqueles que exercem o poder político.
O princípio federativo é o que dispõe que o Estado brasileiro
tem como forma de distribuição do poder a federação. Por outras
55. Curso de direito constitucional, cit., p. 145.
56; Pinto Ferreira, Curso de direito constitucional, 8. ed., São Paulo, Saraiva,
1996, p. 79.
54. José Cretella Jr., Comentários à Constituição brasileira de 1988, Rio de 57. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Comentários à Constituição brasileira
Janeiro, Forense Universitária, 1992, p. 128. de 1988, cit.,v. l.p. 18.

58 99
B78.Q9.lP9.

deve permitir que o indivíduo atinja sua plenitude, enquanto ser hu- Há quem afirme que falta juridicidade ao comando dos incisos
mano, buscando sua felicidade, sua paz, sua integridade, o que nunca do art. 32, exceto o inciso IV, ou seja, "promover o bem de todos, sem
encontrou enquanto transexual, impedido de se integrar socialmen- preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras for-
te, em decorrência da proibição da cirurgia. mas dé discriminação", propugnando que tais normas seriam ricas
Portanto, o Estado Democrático presume a possibilidade de per- em peso moral, ético, mas de pouca eficácia jurídica. Certamente, os
mitir que a minoria (ou minorias) atinja seus objetivos, sob o predo- demais incisos do art. 32 não apresentam a mesma eficácia jurídica
mínio da vontade majoritária. do inciso IV59.
No art. 3S estão arrolados os objetivos fundamentais do País: I Inegável que a juridicidade é pequena, nos incisos I, II e III do
— construir uma sociedade livre, justa e solidária; II — garantir o mencionado art. 32. Mas eles apresentam grande utilidade na inter-
desenvolvimento nacional; III — erradicar a pobreza e a pretação constitucional. Referidos incisos fornecem lume forte para
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV — o operador do direito na aplicação dos dispositivos legais. A inter-
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, pretação deve seguir o vetor propugnado pelo princípio e pelas me-
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. São metas tas escolhidas pelo constituinte. Portanto, toda a atividade da admi-
que a sociedade brasileira se propôs a perseguir e alcançar.
nistração, do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, deve voltar-se
A respeito desse art. 32 da Carta Magna dissertaram Celso Ri- para o cumprimento das metas fixadas pela Constituição Federal.
beiro Bastos e Ives Gandra Martins: Sempre que houver necessidade de decidir, o Poder Judiciário deve
"A distinção entre princípios e objetivos nem sempre fica muito atentar para a necessidade de construir uma sociedade livre, justa e
nítida. Poderíamos dizer que objetivo é a instrumentalização do prin- solidária. O balizamento não pode ser ultrapassado, sob pena de
cípio. Assim, o art. I2 fixa o princípio da soberania nacional, enquan- inconstitucionalidade. Nessa medida, ousamos discordar do ponto
to o dispositivo ora comentado, no seu inciso II, coloca como objeti- de vista apresentado, para apontar grande utilidade jurídica, na cria-
vo garantir o desenvolvimento nacional. ção de vínculos para o operador do direito. Se os vínculos não são
Os objetivos são, portanto, tarefas, metas, que visam tornai" con- seguidos, se não há controle do cumprimento das metas, se deixa-
cretas as mesmas idéias ou propósitos assegurados em forma de prin- mos de cultuar os objetivos do Estado brasileiro, não podemos afir-
cípios pela Constituição"58. mar que tais regras sejam destituídas de juridicidade (ou que apre-
A construção de uma sociedade livre, justa e solidária não sentem pequena densidade). Fornecem base clara de atuação, exi-
pode ter significado sem o atendimento dos anseios de seus indi- gindo do intérprete atenção redobrada para que sejam atendidas as
víduos. O sentido de liberdade, justeza e solidariedade passa pelo metas propostas:
alcance pessoal da felicidade. Os indivíduos têm direito, para al- São os princípios fundamentais as regras básicas do Estado bra-
cançar uma sociedade livre, justa e solidária, a buscar o caminho sileiro, seu cerne, sua identidade. Mas, talvez, de todos os princípios
de sua felicidade. Nesse passo, o transexual teria o direito de bus- anunciados, o princípio da dignidade da pessoa humana e o da pro-
\ car o meio de ser mais feliz, de eliminar a contradição existente moção do bem de todos mereçam nossa maior atenção, quer pelo seu
em sua vida. alcance, quer peía sua clareza. '

58. Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, Comentários à Constituição 59. Cf. Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas
do Brasil, cit., v. 1, p. 444. normas, cit., p. 301.

59 101
4.1. O princípio da dignidade da pessoa humana Portanto, o que ele está a indicar é que é um dos fins do Estado
propiciar as condições para que as pessoas se tornem dignas.
C A dignidade da pessoa humana é um dos princípios constituci- É de lembrar-se, contudo, que a dignidade humana pode ser
) onais fundamentais que orientam a construção e a interpretação do ofendida de muitas maneiras.
) sistema jurídico brasileiro.
(-)
r-r Segundo os ensinamentos de José Afonso da Silva, "é um valor O sentido da vida humana é algo forjado pelos homens. O Esta-
J supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do
do só pode facilitar esta tarefa na medida em que amplie as possibi-
} homem, desde o direito à vida"60.
lidades existenciais do exercício da liberdade"63.
Confirmam-no Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins:
José Afonso da Silva se inclina para a mesma interpretação,
"A referência à dignidade da pessoa humana parece conglobar citando os ensinamentos dos constitucionalistas portugueses:
em si todos aqueles direitos fundamentais, quer sejam os individuais
"Concebida como referência constitucional unificadora de todos
clássicos, quer sejam os de fundo econômico"61.
os direitos fundamentais, observam Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho o mais importante e que
o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação
não pode ser desprezado é a dignidade do ser humano: "o reconheci-
valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-consti-
Tmento de que/para o direito constitucional brasileiro, a pessoa hu-
tucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não poden-
) mana tem uma dignidade própria e constitui um valor em si mesmo,
do reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pes-
que não pode ser sacrificado a qualquer interesse coletivo"62.
soais tradicionais, esquecendo-anos casos de direitos sociais, ou invocá-
E certo que a expressão "dignidade da pessoa humana" tem um Jlos para construir 'teoria do núcleo da personalidade' individual, igno-
forte conteúdo moral, mas os autores constitucionalistas procuram
rando-a, quando se trate de direitos econômicos, sociais e culturais.
deixar claro que não foi esse o aspecto que o legislador pretendeu
Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a
r evidenciarão que se buscou enfatizar foi o fato de o Estado ter como
todos existência digna (art. 170), a ordem social visará a realização da
) um de seus objetivos proporcionar todos os meios para que as pesso-
[JLS possam ser dignas.
justiça social (art. 193), a educação, o desenvolvimento da pessoa e
seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205) etc, não como
Neste passo, cabe citar, mais uma vez, Celso Ribeiro Bastos e
meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo
Ives Gandra Martins:
normativo eficaz da dignidade da pessoa humana"64.
"Em última análise, a dignidade tem uma dimensão também
Entretanto, Luís Roberto Barroso critica a inserção do princí-
moral. São as próprias pessoas que conferem ou não dignidade às
pio da dignidade da pessoa humana no corpo da Constituição. O au-
suas vidas.
tor entende que tal princípio não possui valor jurídico algum, conso-
Não foi este sentido, todavia, o encampado pelo constituinte. O ante se pode depreender do trecho a seguir transcrito:
que ele quis significar é que o Estado se erige sob a noção da digni-
"Dignidade da pessoa humana é uma locução tão vaga, tão
dade da pessoa humana.
metafísica, que embora carregue em si forte carga espiritual, não tem

60. Curso de direito constitucional positivo, cit., p. 93.


61. Comentários à Constituição do Brasil, cit., v. 1, p. 425. 64. Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, Comentários à Constituição
62. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Comentários à Constituição brasileira do Brasil, cit., v. 1, p. 425.
de 1988, cit, v. l,p. 19. 65. Curso de direito constitucional positivo, cit., p. 93.

102 60
qualquer valia jurídica. Passar fome, dormir ao relento, não conse- Manter uma pessoa em tal conflito é condená-la ao martírio,
guir emprego são, por certo, situações ofensivas à dignidade huma- por confirmar a sua condição de marginal. Essa situação atende ao
na. O princípio, no entanto, não se presta à tutela de nenhuma dessas princípio da dignidade da pessoa humana? Seria digno exigir do Es-
situações. Por ter significativo valor ético, mas não se prestar à apre- tado o impedimento da felicidade de um indivíduo? O transexual
ensão jurídica, a dignidade da pessoa humana merece referência no deve permanecer com seu conflito pelo resto da vida? O Estado, en-
preâmbulo, não no corpo da Constituição, onde desempenha papel quanto organização política, tem como finalidade manter esse indi-
decorativo, quando não mistificador"65. víduo em permanente grau de infelicidade?
Não pensamos como o ilustre jurista, como já mencionado nes- As respostas levam à necessidade da busca da felicidade, garanti-
te trabalho. Os princípios fornecerão instrumental para a interpreta- da pelo Estado. A vida em sociedade objetiva permitir que os indivídu-
ção, instruirão o intérprete, transmitirão valores, indicando o cami- os encontrem sua felicidade, seu bem-estar. E, no caso do transexual, a
nho correto do Estado. felicidade só poderá ser conquistada com a cirurgia para mudança de
O intérprete deve retirar do Texto Constitucional os valores para sexo, caso seja do seu interesse. Ao analisar os pedidos, portanto, o
sua tarefa/A dignidade da pessoa humana deverá servir de farol para Poder Judiciário deve interpretar a Constituição, conforme os princí-
a busca da efetividade dos direitos constitucionais. Em relação à pro- pios constitucionais, especialmente o fundamento do Estado Demo-
teção constitucional do transexual, por exemplo, a dignidade da pes- crático de Direito, que tem como objetivo assegurar a dignidade da
soa humana revestir-se-á de princípio necessário e básico para a sua pessoa humana. Decidindo pela possibilidade de "libertação" do
proteção constitucional. transexual, pela cirurgia de redesignação de sexo, com suas conse-
qüências de alteração do registro civil, o operador do direito cuidará
Como se viu, o transexual vive um conflito permanente. Acre-
de decidir conforme o vetor da dignidade da pessoa humana previsto
dita pertencer a um sexo que não é o seu. Tem vontade de viver como
no ditame constitucional. Mantendo o transexual na mesma situação,
mulher, se homem, e como homem, se mulher. Não se trata de algo
angustiado, o Poder Judiciário deixa de operar no sentido da busca da
que permita um tratamento psicológico ou qualquer outro tipo de
felicidade do cidadão, conseqüentemente impedindo o conceito de dig-^
ajuda, salvo a cirurgia, com posterior acompanhamento médico e
nidade da pessoa humana. Não se pode acreditar que alguém possa
psicológico. O transexual poderá optar por outros tratamentos, mas
conviver com a dualidade expressa em sua divisão sexual e imaginar-
não atingirá os anseios de sua alma,qual seja, mudar seu sexo.
se digno. A infelicidade e a angúsüa geram situação de indignidade
Portanto, como imaginar um ser humano que vive sem uma
que só pode ser resolvida pela cirurgia de redesignação de sexo (solu-
identidade sexual, buscando a realização no imaginário e desejando
ção que deve ser aceita pelo indivíduo).
um sexo que não é o seu?
As angústias do transexual já foram mencionadas. Já vimos que
4.2. O objetivo fundamental do Estado brasileiro: promover o bem
ele convive com problemas na escola, no trabalho, na vida social, no
de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
lazer e em suas relações amorosas. Tudo decorrente da falta de iden-
quaisquer outras formas de discriminação
tificação, da impossibilidade de aceitar a própria condição, entre seu
sexo real e o sexo desejado.
Ao lado do princípio da dignidade humana, a Constituição Fe-
deral de 1988 traz o princípio que determina a busca da felicidade.
Que se entende por bem de todos, conforme determina o art. 32
65. Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas
normas, cit., p. 298.
da Constituição Federal? Certamente se está a falar de felicidade. E a

61 105
felicidade, como visto acima, não pode ser uma só, um padrão deter- dimento aos anseios de cada indivíduo e permitir a busca da felicida-
minado por um grupo de pessoas. A felicidade é um estado de ventu- de em projetos pessoais.
ra, que atende à multiplicidade de valores e anseios do ser humano, A busca da felicidade não pode, dessa forma, interferir nem
individualmente considerado. Não se pode falar de felicidade geral, impedir o bem da maioria.
mas da felicidade de cada ser humano. A felicidade geral é a soma No caso em estudo, em que poderia a cirurgia prejudicar ou-
das felicidades individuais atendidas. Portanto, a busca do fim social tros? Que prejuízo poderia causar a terceiros o exercício do direito
do Estado deve, obrigatoriamente, fundar-se na busca da felicidade. ao próprio corpo, a busca da paz e da coerência entre o estado psico-
Os anseios individuais, a captação das mudanças sociais pelo Esta- lógico e o biológico?
do, o atendimento às necessidades básicas do ser humano estão, cer- Poder-se-ia argumentar que haveria uma mutilação do corpo,
tamente, entre os fins objetivados pelo Estado e reconhecidos pelo com a retirada do pênis, no caso da cirurgia do transexual homem-
constituinte de 1988. mulher. Mas o estado de necessidade justifica amplamente a esco-
Passemos agora à interpretação de fim social, uma vez que a lha. E, ademais, a decisão, como já visto, passaria, obrigatoriamente,
sociabilidade humana é bem comum e, conseqüentemente, está re- pelo acompanhamento de uma equipe multidisciplinar que seguiria
lacionada às necessidades sociais; portanto, se a lei é obrigação o caso por, no mínimo, dois anos. Médicos, especialistas em diversas
imposta pela consciência e pela sociedade, adapta-se às necessida- áreas, seriam ouvidos para bem distinguir um caso real de outro liga-
des sociais, em busca do bem e da felicidade do indivíduo. Maria do à neurose ou à esquizofrenia ou a um estado passageiro de entusi-
Helena Diniz anuncia os atributos essenciais e inconfundíveis de asmo inconseqüente. O argumento, portanto, da lesão corporal deve
"fim social": ser deixado de lado, sob pena de não aceitarmos a existência do esta-
"Fim social. Teoria Geral do Direito. 1. É o fim do direito, pois do de necessidade e, portanto, termos de reformular todo o sistema
a ordem jurídica como um todo é um conjunto de normas que visa do Código Penal. Se o estado de necessidade permite a extinção da
tornar possível a sociabilidade humana. Logo, deve-se encontrar nas vida de outrem, em circunstâncias irreversíveis, como não permitir,
normas o seu fim, que não pode ser anti-social (Tercio Sampaio Ferraz com base no estado de necessidade, a retirada de parte do corpo que,
Jr.). 2. Em filosofia social, seu conceito equipara-se ao de bem co- para o indivíduo, não tem função de órgão sexual? O conflito entre a
mum. 3. Objetivo de uma sociedade, encerrado na somatória de atos lesão do corpo e a busca da felicidade é a melhor opção, com larga
que constituem a razão de sua composição. É, portanto, o bem soci- vantagem sobre a mutilação apontada no primeiro caso.
al, que pode abranger o útil, a necessidade social e o equilíbrio de A cirurgia de redesignação de sexo pode configurar-se, assim,
interesses. Conseqüentemente, a lei não pode ser interpretada fora como tentativa de permitir ao transexual buscar melhor integração
do meio social presente, sendo imprescindível adaptá-la às necessi- individual e social. Configura-se, na realidade, como uma das pou-
dades sociais existentes no momento de sua aplicação"66. cas saídas para que o transexual se apresente à sociedade de forma
Já vimos acima, quando analisamos a noção genérica de demo- mais íntegra, eliminando, ao menos em parte, a dualidade que traz
cracia, que o Estado objetiva a felicidade de cada indivíduo. consigo. Advertido dos riscos e dos limites da cirurgia, o transexual
escolhe o melhor caminho a ser seguido. Fica advertido de que a
Assim, os Poderes do Estado devem promover o bem de todos,
cirurgia apresenta riscos e que ele poderá não obter os resultados
a busca da felicidade. Deve este desenvolver mecanismos de aten-
desejados. Feito o acompanhamento a que se refere a resolução do
Conselho Federal de Medicina, com a equipe multidisciplinar, ad-
vertido formalmente dos limites da cirurgia e de seus riscos, o
66. Fim social, in Dicionário jurídico, cit.,.v. 2, p. 554.

62 107
transexual, se decidir submeter-se a ela, deve ter o direito de realizá- para situação onde o paciente nao dispõe de tecido adequado no abdô-
la, inclusive por conta do Estado. Não se pode pretender que o Esta- men ou não deseja ficar com cicatriz ampla no antebraço.
do não financie tal operação. Não se trata de uma intervenção estéti- O terceiro tempo cirúrgico somente é levado a efeito quando há
ca, mas de algo necessário à integridade psíquica do paciente. Por- uma cicatrização perfeita nos tempos anteriores. Demanda aproxi-
tanto, no direito à saúde, não se pode deixar de compreender o direi- madamente três meses. Então, através de pequena incisão na base do
to que o transexual tem de, por meio da cirurgia, tentar aproximar-se neopênis, é introduzido um tubo siliconizado, cujo eixo é composto
da realidade social e de sua integridade psíquica. de uma liga de prata maleável. Esta estrutura, denominada prótese, é
A fim de aclarar a questão da cirurgia, tentaremos, em lingua- fixada no osso do púbis, através de um revestimento com material
gem leiga, descrevê-la. sintético denominado Dracon. A fixação estabiliza o artefato evitan-
do a extrusão futura. A prótese peniana possui rigidez, suficiente para
o coito, e pode, confortavelmente, ser dobrada para baixo, quando
não há interesse em atividade sexual.
5. A cirurgia de redesignação de sexo
No mesmo tempo cirúrgico, são introduzidas no novo escroto
duas estruturas ovóides, com 20 centímetros cúbicos, com silicone
Para que possamos analisar a correção do procedimento cirúrgico
gel no seu interior, simulando testículos.
de redesignação sexual, é necessário mencionar, ao rríenos de forma
genérica, os critérios de modificação utilizados na cirurgia mencionada. O paciente, nestas condições, está autorizado à atividade sexual
somente 90 dias após o implante das próteses peniana e testicular.
Assim, sirvamo-nos dos roteiros apresentados por Oliosi da
Silveira: Após aproximadamente um ano, a sensibilidade cutânea se estabele-
ce em pelo menos 2/3 do falo.
"Feminino para masculino
Masculino para feminino
Uma vez vencidas todas as etapas legais, clínicas e psiquiátri-
cas, o paciente é levado à cirurgia de laparotomia, com anestesia A mudança cirúrgica masculino para feminino é facilmente realiza-
geral ou bloqueio peridural, para retirada do útero, ovários e anexos. da e pode, na maioria dos casos, ser feita em somente um tempo cirúrgico.
Após a sua total recuperação, em um período de tempo não me- O primeiro estágio compreende a amputação do pênis, deixan-
nor de 30 dias, o paciente é submetido ao segundo tempo cirúrgico. do a glande com seu feixe vásculo-nervoso. A glande necessaria-
Consiste na retirada da vagina, usando-se a parede anterior da recons- mente será preservada e colocada, anatomicamente, no local do clitóris
trução da uretra. A mucosa vaginal, tubularizada, se adapta excepcio- Dessa maneira, a sensibilidade não sofre alteração alguma, ensejando
nalmente bem como uretra. A parede posterior da vagina é exteriorizada um resgate do orgasmo mais facilmente.
para fazer parte do escroto. Na hipótese de uma exagerada atrofia de A uretra é amputada, entretanto, deixando-se um segmento mais
mucosa vaginal o escroto é construído com retalho do músculo Gracilis, longo, de tal sorte que a mucosa fique redundante. Se ocorrer necrose
rotado da face mediai da coxa. O pênis é construído com enxerto de ou infecção pós-operatório imediato, sempre teremos tecido dispo-
Chang. O tecido é retirado do antebraço, juntamente com a artéria nível para novo procedimento. Na eventualidade da uretra protusa, a
radial, duplamente tubularizado, respectivamente para a uretra distrai mesma poderá, em um segundo tempo, ser novamente encurtada.
e para acolher futuramente a prótese peniana. Este procedimento, es-
Uma incisão mediana e longitudinal é efetuada no escroto para
pecificamente, requer microcirurgia, entretanto o aspecto cosmético
retirada dos testículos e funículo espermático. Todo escroto, excetu-
peniano perde em qualidade para o enxerto de Chang. O uso do retalho
ando-se a camada vaginal, será usado para a construção da vagina.
com músculos Gracilis, rotado da face interna da coxa, é reservado

63 109
No períneo, entre o ânus e a raiz do escroto, efetua-se uma inci- Aliás, o Texto Constitucional garante a integridade física e mo-
são em cruz ou em V, abordando-se o espaço imediatamente cranial ral, quando assegura a indenização por dano moral ou material, em
ao reto e prosseguindo até a próstata. Este espaço virtual é dissecado, caso de violação dos bens descritos no inciso X do art. 5 2, especial-
e através de dilatadores de Hegar, criado um pertuito que será a nova mente os direitos à intimidade, à vida privada, à imagem e à honra.
vagina. A ablação pilosa escrotal é efetuada com eletrocautério. Nestas Portanto, na busca do bem comum, o Estado deve verificar o
condições, o escroto é invertido e sepultado neste novo espaço, com bem-estar dos indivíduos. O bem comum, em uma sociedade demo-
sutura tão cranial quanto possível. crática, deve considerar as peculiaridades e as necessidades de cada
um, atendendo aos seus anseios de felicidade.
Um molde metálico ou siliconizado é revestido com gaze e in-
troduzido no orifício, de tal sorte a manter a hemostasia e prevenir A cirurgia de redesignação de sexo pode não resolver todos os
eventual colamento da cavidade. problemas do transexual. Evidentemente que a vida sexual deste,
após operado, não será a mesma de um ser integrado sexualmente.
No pós-operatório o paciente, sistematicamente, dilatará a
Mas, para quem vive um conflito como o apresentado por ele, a
neovagina com artefato siliconizado, até sua estabilização"67.
dualidade que gera a infelicidade, pode-se perguntar: ele não terá
nem mesmo o direito a uma aproximação da integridade física e psí-
quica?
6. A autorização para mudança de sexo como necessidade: forma O transexual, na busca de sua felicidade, deve ter a sua disposi-
de felicidade ção todos os meios existentes, desde que dentro de certos limites
aceitos socialmente, para a tentativa de sua integração social, que
Já vimos que a cirurgia de redesignação de sexo pode signifi- passa, necessariamente, pela sua integração psíquica e física.
car, para o transexual, uma forma de integração individual e social. A cirurgia, portanto, surge como forma de redenção para a alma
Integração individual, pois ele procurará eliminar sua dualidade se- infeliz na situação involuntária de transexual — ele não é transexual
xual, afirmando-se na qualidade em que seu sexo psicológico o defi- porque quer ou porque optou. A natureza que traz dentro de si é con-
ne. Assim, o transexual homem-mulher assumirá seu sexo feminino trovertida, daí a amargura e a negação de viver entre ser e não ser. O
psicológico, vivendo de forma mais íntegra, com mais afeto e prazer, Estado precisa promover, caso seja o primeiro interesse do indiví-
podendo conviver com seu corpo na qualidade de mulher. Estará mais duo, a operação de redesignação de sexo, já que é seu dever, com o
íntegro individualmente. Sua alma e seu corpo estarão sintonizados. instrumento da lei, cooperar para a liberdade do homem, e o grande
Como conseqüência dessa integração, o transexual que se transfor- princípio dessa liberdade é a busca da própria felicidade.
ma em mulher viverá mais feliz, com maior integração social, A cirurgia de redesignação de sexo, portanto, surge como uma
interagindo de forma mais harmônica com todos os atores sociais. possível solução para o transexual, devendo ser apoiada e incentiva-
Da mesma forma, caso o transexual seja mulher-homem, ao assumir da pelo Estado, a partir dos requisitos para sua autorização: acompa-
sua feição física de homem, identificando-se com seu sexo psicoló- nhamento por equipe multidisciplinar, nos termos da Resolução n.
gico, poderá viver mais adequadamente com suas vontades, sua cons- 1.482, de 10 de setembro de 1997, do Conselho Federal de Medici-
ciência e sua integridade física." na,-e acompanhamento pós-operatório.
A mudança de sexo, por meio da cirurgia, aparece, dessa for-
ma, como possível solução para a tentativa de integração social des-
67. José Francisco Oliosi da Silveira, O transexualismo na justiça. Porto Ale- se grupo de pessoas. -
gre, Síntese, 1995, p. 138-40.

64 111
Os comandos constitucionais, especialmente de caráter 7. A jurisprudência
principiológico, autorizam tal cirurgia. O médico agirá no sentido de
oferecer ao paciente uma redução do grau de angústia, conforme Diante da exposição feita, verifica-se a necessidade da opera-
determinado pela resolução acima mencionada. Inexistirá, portanto, ção do transexual, quando de seu interesse, na busca de sua integri-
dolo do médico, que agirá no sentido de proteger o paciente, buscan- dade física e psíquica. Vejamos como se tem comportado a jurispru-
do seu bem-estar. Nesse sentido já decidiu o E. Tribunal de Alçada dência nacional. As decisões poderiam tratar de dois temas distintos.
Criminal de São Paulo: O primeiro deles refere-se à possibilidade de cirurgia, autoriza-
"Lesão corporal de natureza grave — Perda ou inutilização de da judicialmente. Importante ressaltar que a resolução do Conselho
membro, sentido ou função. Cirurgia realizada gratuitamente pelo Federal de Medicina é recente. A questão de sua licitude ou não já
acusado na vítima — Transexualismo —Ablação de órgãos genitais foi objeto de análise neste trabalho.
masculinos e abertura, no períneo, mediante incisão, de fenda, à imi- Como a resolução do Conselho Federal de Medicina é
tação de vulva postiça. Correção cirúrgica recomendada por recentíssima, a jurisprudência ainda não teve condições de se mani-
renomados psiquiatras, endocrinólogos, psicólogos e geneticistas e festar sobre o assunto, ou seja, a legalidade ou não da resolução70.
lido como viável, sob o ponto de vista legal, por eminente jurista — Passemos, agora, à análise de como a jurisprudência tem trata-
Ausência, pois, de dolo — Absolvição decretada — Declaração de do da alteração do registro civil do operado.
voto —Voto vencido — Inteligência do art. 129, parágrafo segundo,
O Supremo Tribunal Federal já decidiu sobre o tema, jmpedin--
III, do CP"68.
do a alteração do registro civil daquele que sofreu operação de mu-
Ou ainda, como decidido pelo Tribunal de Justiça de Minas Ge- dança de sexo. Verificaremos que, no caso, não se discutia se o autor
rais: era ou não transexual, mas apenas que se havia submetido à cirurgia^
"Cirurgia plástica reparadora — Disforia de gênero ou de redesignação de sexo. Portanto, a jurisprudência do Pretório
transexualismo — Autorização judicial para sua realização desne- Excelso, no caso, tratava apenas do registro civil do operado, não do
cessária — Competência absoluta da Medicina, que se resolve den- operado transexual.
tro da ética, da necessidade e da conveniência para o paciente —
Lesão corporal resultante da operação sem identificação com a
tipicidade criminosa, dada a falta de dolo específico e a plena justifi- 70. Há decisão, no entanto, do E. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,
cativa de sua realização como meio indispensável ao resultado bené- por meio de sua 3a Câmara Cível, no sentido de exigir autorização judicial para a
operação dc redesignação de sexo, determinando que o juízo de primeiro grau —
fico — Pedido juridicamente impossível — Processo extinto — De-
que havia decidido pela inexistência de legitimidade ativa do candidato à operação
clarações de voto vencedor e vencido"69. — apreciasse o mérito do pedido, diante do interesse jurídico em discussão, seus
Mesmo antes, portanto, da resolução do Conselho competente, reflexos no direito privado c pela impossibilidade de se deixar a questão apenas ao
a operação se revestia de precauções e, em maior de idade, capaz, critério élico-médico. Assim veio ementado o v. aresto:
"Ementa oficial: Jurisdição voluntária. Autorização para operação. A preten-
estaria legitimada pelo sistema penal, já que inexistiria dolo e o com-
são da postulante de obter autorização para submeter-se a intervenção cirúrgica com
portamento não seria objeto de punição. o propósito de alteração de sexo, com extirpação de glândulas sexuais e modifica-
ções genitais, é de ser conhecida pelos evidentes interesses jurídicos em jogo, dados
os reflexos não só na sua vida privada como na vida da sociedade, não podendo tal
fato ficar a critério exclusivamente das normas ético-cicntíficas da Medicina. Apelo
68. José Francisco Oliosi da Silveira, O transexualismo na justiça, cit., p. 119. provido em parte" (Apelação cível n. 37.023, Apelantc: I. B. C/Apelado: Ministério
69. RT, 637:110. Público, Rei. Dcs. Gervásio Barcellüs, RT, 557:205-7).

65 113
Recorde-se, ainda, que não havia sido editada a resolução do Também, à época, o v. aresto trouxe o seguinte fundamento:
Conselho Federal de Medicina reconhecendo como correta, respei- "A incindibilidade total e absoluta de alguns desses atributos,
tadas as condições lá expostas, a cirurgia. tais como o sexo, idade, filiação, é unanimemente proclamada pela
Assim vem ementada a decisão do Agravo de Instrumento n. doutrina e pela jurisprudência"73.
82.517(AgRg)-SP: Esse julgado não pode, portanto, servir de paradigma para a
"Pedido de retificação de assento de nascimento para alteração atual posição do Supremo Tribunal Federal, pelos motivos acima men-
de sexo e nome, em decorrência de operação plástica. cionados. Em primeiro lugar, porque não se discutiu a transexualidade,
Impossibilidade jurídica do pedido. Inocorrência de ofensa ao mas apenas a cirurgia. Não há menção no julgado à situação de
princípio constitucional da legalidade. RE indeferido por duplo fun- transexualidade do interessado. Em seguida, a decisão foi proferida
damento. AgRg improvido"71. há quase vinte anos, quando os estudos sobre a transexualidade ain-
O v. aresto entendeu que o requerente não tinha órgãos genitais da estavam pouco desenvolvidos. A composição da E. Segunda Tur-
femininos e, dessa forma, não poderia pretender a adequação a novo ma do Supremo Tribunal Federal, que decidiu por unanimidade, tem,
sexo. A questão da transexualidade não foi ventilada no acórdão em ademais, no Ministro Moreira Alves seu único remanescente, escla-
questão. Ou seja, a jurisprudência não permitiu a alteração do assen- recendo que o ilustre Ministro não participou do julgamento em co-
tamento do registro civil, mas não enfrentou a questão do mento. Por fim, os princípios constitucionais de 1988 não estavam
transexualismo. Pondere-se que o decisório foi do ano de 1981, por- presentes, deixando de influenciar os julgadores da época.
tanto há quase vinte anos, quando não se dispunha dos elementos Pode-se afirmar, dessa forma, que o julgado não pode constituir
atuais da cirurgia plástica, Psiquiatria, Psicologia e ainda da paradigma para futuras decisões.
principiologia constitucional de 1988. Eram outros tempos, em que Já diante da nova Constituição e atendendo exatamente aos
os valores determinantes da moral vigente impediam fosse determi- proclamos do art. 3-, IV, da Lei Maior, decidiu, em 1992, o
nada a integração social do transexual. Nesse período (que não foi
Meritíssimo juiz Henrique Nelson Calandra, enquanto Juiz da T Vara
tão longo), houve grandes alterações nos valores vigentes.
da Família e das Sucessões de São Paulo, Capital, que o assento do
Além desse fato, todos os ministros que participaram do julga- transexual deveria ser deferido, mantendo-se, no entanto, a expres-
do não mais compõem a E. Segunda Turma do Supremo Tribunal são "transexual" em seus registros, quando fosse designado o sexo.
Federal72.
O ilustre Magistrado, em sentença brilhante, apreende de for-
ma bastante satisfatória quase todo o valor principiológico dos co-
mandos constitucionais.
71. Agravo de Instrumento n. 82.517-SP, Supremo Tribunal Federal, 2a T.,
rei. Min. Cordeiro Guerra, RTJ, 98:193 e s., j. 28-4-1981; participaram do julga- É de grande importância o conhecimento de alguns trechos da
mento os Ministros Leitão de Abreu, Djaci Falcão, Dccio Miranda e o Relator. Vota- decisão74:
ção unânime.
72. Em entrevista a O Estado de S. Paulo, (5 dez. 1998, p. A-16), o Ministro
Celso de Mello defendeu a legalidade da operação do transexual, assim como o
deferimento de seu assentamento civil: "É preciso estabelecer normas que permitam 74. Cf. julgado mencionado, nota n. 71.
compatibilizar o sexo jurídico, definido no registro civil, com o sexo psicológico e 75. Sentença publicada na Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos —
biológico, especialmente daquele resultante das transformações anatômicas", disse Divisão Jurídica da Instituição Toledo de Ensino, Bauru, ago./nov. 1996, 75:227-
o Ministro. 42, grifos originais.

66
"O Direito deve se prestar a servir o ser humano, acomodando- uma pessoa que não pode receber os rótulos até hoje conhecidos em
o em seu seio, dando-lhe a possibilidade de não ser discriminado e matéria de sexo, ou seja, definido como sendo do sexo masculino ou
de ter a sua própria identidade. feminino quando sua realidade corporal e psíquica é diversa. A anoma- •
Para os que consideram um caso como o dos autos uma viola- lia sexual que existe no autor, não pode ser motivo para discriminá-lo
ção às regras sociais, o autor deveria ser mantido como um pária ou fazê-lo infeliz, pois isto atentaria frontalmente contra o artigo 3°,
social, recebendo uma punição, não escrita na lei, ditada aparente- inciso IV, da Constituição Federal.
mente pela moral e pelos bons costumes, mas substancialmente pelo Trata-se de matéria não legislada que deve ser resolvida, com-
preconceito e pelo temor de servir de estímulo a tais transformações. base nos princípios gerais do direito e no direito comparado.
E claro que não basta ao Estado nomear um juiz independente Manter o autor como pertencente ao sexo masculino é algo que
que tenha a tarefa de aplicar a lei objetiva imparcialmente, deve dotá- é falso, uma vez que lhe faltam no campo biológico e psíquico as
lo de autoridade para decidir os assuntos que afetem o comporta- características de tal sexo. Retificar seu assento para o sexo femini-
mento das pessoas, os direitos e obrigações, assim como para definir no, como tem ocorrido em outros países, também seria falso, pois o
as liberdades básicas, de tal maneira que cada indivíduo possa gozar habilitaria para o casamento e induziria terceiros a erro, além do que
de uma esfera de ação que lhe permita exercitar sua liberdade e de- em seu organismo, não estão presentes todas as características de tal
senvolver sua personalidade sem dano para os outros. sexo.
Não pode a Justiça seguir dando respostas mortas a perguntas Creio que o mais acertado, será, diante da omissão legislativa,
vivas, ignorando a realidade social subjacente, encastelando-se no fazer constar o que realmente o autor é à luz da ciência atual, ou seja,
formalismo, para deixar de dizer o direito". transexual. Embora possa até chocar, esta é a realidade do autor, não
E, na seqüência: sendo possível diante da omissão do legislador, negar-lhe amparo,
"A questão da alteração do prenome, enfrenta a barreira da mantendo-o numa condição à margem do direito, ficando a Justiça
imutabilidade (art. 58 da Lei 6.015, de 31-12-73). Todavia, tal petrificada e cega diante da sua situação que, embora possa por al-
imutabilidade cede, quando o prenome exponha o seu portador ao guns ser considerada afrontosa ao que a sociedade considera normal,
ridículo (Lei n. 6.015-73, artigo 55). não pode ser ignorado. Na medida em que a sociedade, através do
Como foi exposto inicialmente, o prenome do autor face às suas Poder Judiciário, reconhece a anormalidade e não trata o seu porta-
condições físicas atuais, a toda evidência o expõe ao ridículo, pois, dor como marginal, terá com certeza melhor condição de encontrar
como se encontra ao se apresentar como João, será com toda a certeza sua própria finalidade, que não é discriminar, mas sim de integrar o
alvo de chacota. Na interpretação da lei, há de se atender ao fim social ser humano, seja qual for sua condição, evitando, por outro lado, que
a que ela se destina (Decreto-lei n. 4.657/42 — Lei de Introdução do o Registro Público, cuja finalidade é espelhar a verdade, fique
C. Civil, artigo 5a), qual seja, o de servir ao ser humano, evitando seja maculado com declaração irreal".
ele discriminado e ridicularizado seja qual for sua condição. O juiz determinou, no entanto, que constasse a expressão
Assim, em que pesem as opiniões em contrário, não vejo qual- "transexual" ao lado do sexo do requerente, no registro civil. Nesse
quer inconveniente em que o autor passe a ostentar o prenome de Joana ponto discordamos do julgado, que discrimina, criando, na espécie,
ao invés de João, pois, com o primeiro, não será ridicularizado, sendo um outro tipo de sexo. Tal posição será explicitada mais adiante.
o mesmo plenamente adequado à sua condição física atual. Outra decisão noticiada pela imprensa fala do transexual mu-
Os estudos e trabalhos referidos permitem ver, corri clareza, lher-homem que teria pedido e obtido, em primeiro grau de jurisdi-
que em razão da evolução dos tempos e da ciência, estamos diante de ção, autorização, sem a operação de redesignação de sexo, para a

116 67
alteração de seu registro civil. Nesse caso, foi autorizada a mudança de te, ademais estaria ausente um dos requisitos para o çasamento,_oual
nome (de feminino para masculino), permanecendo, no entanto, o sexo seja, a diferença de sexos. A lei de Registros Públicos veda a altera-
do requerente como o seu biológico. O Ministério Público, por enten- ção pretendida, tutelando interesses de ordem pública".
der a decisão incompleta, recorreu, para que a alteração do nome fosse Esse acórdão contrasta com a decisão anteriormente menciona-
acompanhada da redesignação do sexo no assentamento civil 75. da. Vejamos seus fundamentos. O primeiro deles é o que acolhe ape-
As sentenças acima citadas confrontam com a decisão da Pri- nas o sexo biológico, como se fosse possível a identificação do ser
meira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná que, por unani- humano, composto de alma e corpo, apenas por este. O aresto men-
midade de votos, acolheu a impossibilidade de assentamento do re- cionado adotou somente a condição física do interessado, despre-
gistro civil do transexual operado. zando seu sexo psicológico. Portanto, sua alma não interessaria para
Vejamos a ementa do v. aresto76: o Poder Judiciário. Apenas seu corpo. Sua integridade física é com-
posta apenas de seu corpo. Sua mente, seus desejos, sua estrutura
"Acordam os integrantes da primeira Câmara Cível do Tribunal
emocional foram totalmente descartados pelo acórdão.
de Justiça do Paraná, por unanimidade de votos, em dar provimento
à apelação, custas pelo apelado. Ementa: retificação no registro ci- De outro lado, a mesma decisão funda sua argumentação na pos-
vil. Conversão de sexo masculino para feminino — inadmissibilidade sibilidade de procriação. Nesse momento, justifica-se a digressão aci-
— transexualismo — cirurgia para mudança de sexo -»— procriação - ma feita pela mudança da relação sexo-procriação pela relação sexo-
impossibilidade — Estado civil — capacidade — casamento — re- prazer. O sexo deixou de ter, há muito, a mera função de procriação. A
quisitos — diferença de sexo — ausência — lei de registros públicos concepção ultrapassada de sexo, como objeto de procriação apenas, já
— vedação — apelação provida. Ação que visa retificação no assen- está longe dos manuais. Sexo, atualmente, é prazer, é relação de afeto,
to de nascimento não pode prosperar — Caracteriza-se o é relação corporal e emocional que se complementam. E, também,
transexualismo quando os genitais afiguram-se como de um sexo pode ser procriação. Com base no argumento de que o casamento seria
mas a personalidade atende a outro — porém os transexuais, mesmo procriação (ou o sexo seria procriação), podemos afirmar que um ca-
após a intervenção cirúrgica, não se enquadram perfeitamente neste sal sem filhos não teria atividade sexual?
ou naquele sexo, acarretando-se problemas graves com tal interven- Portanto, o argumento do sexo-procriação deve ser rejeitado,
ção. Não se constitui, ademais o apelado como sendo do sexo femi- pois de todo fora da realidade atual.
nino uma vez que há impossibilidade de procriação porquanto não O acórdão fincou-se em dois pontos: o primeiro tratou apenas..
possui o mesmo os órgãos internos femininos. Ao se deferir o pedido do sexo, biológico,, desprezando integralmente o psicológico.
do apelado estar-se-ia outorgando a este uma capacidade que efeti- Abandonou a aíma humana, pata-ficar apenas no corpo. Nesse parti-
vamente não possui. /Por outro lado ao permitir-se a retificação do cular, o v. aresto olvidou-se de atentar para a integridade física e
nome e sexo do apelado em possível casamento que venha a se reali- mental garantida ria Constituição Federal, como já afirmado. O se-
zar estaria contrariando frontalmente o ordenamento jurídico vigen- gundo ponto foi o da determinação do sexo como procriação. E o
casamento seria decorrência do exercício sexual para procriação, en-
tendimento que não pode ser aceito e que esta- carregado de larga
75. Notícia publicada no suplemento Revista da Folha, do jornal Folha de S.
axiologia moralista.
Paulo, 9 mar. 1997, p. 16 e 17, sob o título "Mamãe se chama Luiz". É possível duas pessoas manterem um relacionamento prazeroso,
76. Apelação Cível n. 30.019-8, de Jaguapitá, relator Des. Osiris Fontoura, equilibrado e longo sem a existência de filhos? A resposta só pode
Informa Jurídico, ementa n. 53.218, CD-ROM de jurisprudência editado pela Prolink,
ser positiva, negando a argumentação adotada pelo acórdão.
Cuiabá.

68 119
Por fim, o argumento de que poderia haver casamento entre No caso, parece-me que, para ajustar a situação psicológica desta
pessoas do mesmo sexo, e que tal situação afrontaria a ordem públi- pessoa com os dados dos registros oficiais, é de todo imprescindível
ca. Mais uma vez, o argumento adotado foi o do sexo biológico, que se negue provimento à apelação, mantendo a judiciosa e brilhan-
desprezando-se o sexo psicológico. te sentença do eminente Juiz de Direito, Dr. Ari Darcy Wachholz, da
Adotando uma linha exatamente inversa (condizente com a sen- Vara dos Registros Públicos"78.
tença do juízo monocrático paulista), o Tribunal de Justiça do Rio Gran- A obra já citada de autoria de José Francisco Oliosi da Silveira
de do Sul, por sua Quarta Câmara Cível, julgou ação semelhante, de- traz outro caso de deferimento de assento do registro civil de
terminando, por maioria de votos, que fosse feita a alteração do regis- transexual. A decisão, dessa vez por unanimidade, deferiu o pedido
tro do transexual. No caso, a operação de redesignação sexual teria de transexual operado, homem-mulher, que pretendia o registro de
ocorrido no exterior e o requerente era transexual homem-mulher. seu assentamento79.
Vejamos parte do aresto: Do v. aresto mencionado, firmando a posição da Justiça do Rio
"Ementa—Tendo a pessoa portadora de transexualismo se sub- Grande do Sul pelo deferimento do registro civil do transexual, re-
metido à operação para transmutação de suas características sexuais, gistre-se o voto do Desembargador Ruy Armando Gessinger:
de todo procedente o pedido de retificação do assento de nascimento "O que quer o apelante lutando denodadamente, como se pode
para adequá-lo à realidade"77. ver no processo? Quer mudar o nome de... para... Sofreu de tudo, foi
Merece citação o trecho do voto vencedor, da lavra do expulso da casa do pai, perdeu o emprego, e mais: extirpou a genitália
Desembargador Gervásio Barcellos: masculina e submeteu-se a operações cirúrgicas para que o orifício
"Ao contrário do brilhante voto do eminente Relator, do Pro- pretensamente vaginal ficasse mais adequado. Maquila-se e veste-se
curador de Justiça, e da Dra. Promotora de Justiça, em seus bri- como mulher; é maior; já passou dos 40 e busca na Justiça só isso;
lhantes pareceres, entendo que o art. 348 do CC não é obstáculo à quer ser... veja-se que nem há réu propriamente dito neste processo.
pretensão, porque reza esse preceito: 'Ninguém pode vindicar es- É o Estado que resiste a seu pedido. E o que quer a apelante em 'ultima
tado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo pro- ratio'? Quer ser feliz. No Direito, há a possibilidade de ser feliz. Para
vando-se erro ou falsidade do registro'. Essa operação restauradora ser bem visualizado, passa pelo abandono de antigos e terríveis tabus.
e esse problema psicológico desta paciente vieram determinar, ago- É preciso, inicialmente, dizer que homem e mulher pertencem
ra, um erro de registro. De fato, ela não tem mais os caracteres à raça humana. Ninguém é superior. Sexo é uma contingência. Dis-
primários, porque houve aquela alteração que retirou os testículos criminar um homem ou uma mulher é tão abominável como odiar
e, ainda, vamos dizer, possibilitou uma cirurgia reparadora, que um negro, um judeu, um palestino, um.alemão ou um homossexual.
traz, agora, os caracteres secundários femininos dessa pessoa. O As opções de cada pessoa, principalmente no campo sexual, hão de
problema de não dispor a apelada de órgãos primários femininos, ser respeitadas, desde que não façam mal a terceiros"80. -
que seriam ovários e útero, não impossibilitariam a pretensão, numa Vê-se, assim, que aquela Corte de Justiça entendeu que o sexo
só palavra, porque, quantas pessoas, infelizmente, sofredoras e de psicológico deve prevalecer para efeito de registro civil. Deferiu o
males graves, às vezes, precisam extrair esses órgãos e não perdem
sua identidade feminina?

78. José Francisco Oliosi da Silveira, O transexualismo na justiça, cit., p. 61-2.


79. Cf. O transexualismo na justiça, cit., p. 93-101.
77. José Francisco Oliosi da Silveira, O transexualismo na justiça, cit., p. 51. 80. José Francisco Oliosi da Silveira, O transexualismo na justiça, cit., p. 97-8.

69 121
pedido, sem qualquer restrição. Sobre o reflexo a terceiros, assim "Registro civil—Assento de nascimento — Retificação — Mu-
decidiu o Pretório: dança de sexo em decorrência da cirurgia de ablação de genitália
"Ao encerrar meu voto, pego no vôo o argumento desse bri- masculina. Pedido improcedente"84.
lhante advogado para dizer: medo de que alguém seja induzido em "Registro civil — Assento de nascimento — Retificação —
erro? Medo de que um homem se enamore de .. ./a e veja que não é Transexual — Mudança de masculino para feminino —
mulher? E o que dizer se for negada a sua pretensão? Se uma mulher Inadmissibilidade — Sexo genético definido como masculino por
se apaixonar por .../a, verá que de homem não tem quase nada" 81. perícia médica — Recurso não provido"85.
^ A Corte deferiu, portanto, o direito de alteração do registro civil,
"Registro civil—Assento de nascimento — Retificação de pre-
sem qualquer menção ao estado de transexualidade do requerente.
nome e de sexo — Pretensão juridicamente impossível —
Agindo assim, de forma mais liberal do que a sentença Indeferimento — Decisão confirmada — Voto vencedor"86.
monocrática do juízo paulista acima citada, o E. Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul foi ao encontro da moderna jurisprudência "Registro civil —Assento de nascimento — Retificação—Mu-
européia, que determina a correção do registro civil sem qualquer dança de sexo que teria decorrido de ato cirúrgico errado — Ação
menção a seu estado anterior. improcedente — Hipótese em que o interessado jamais poderá ter o
sexo reivindicado — Ação de estado improcedente — Provimento
As decisões favoráveis à alteração do registro civil do transexual,
quer com a anotação de "transexual", quer sem tal menção, são de recurso"87.
minoritárias, mas significativas. No Brasil, como se vê, por falta de uma legislação específica, o
A jurisprudência predominante, no entanto, tem determinado o Poder Judiciário tem encontrado dificuldades para fundamentar a pre-
indeferimento da pretensão. tensão do transexual à averbação de seu novo estado junto ao regis-
tro civil. As decisões são esparsas e caracem de uma diretriz única.'
"Registro civil—Assento de nascimento—Retificação—Mu-
dança de sexo. Admissibilidade apenas quando tenha havido engano O deferimento do novo registro, no entanto, em linhas gerais/
no ato registrai ou após exames e intervenções cirúrgicas para deter- tem sido permitido em países europeus. Na Inglaterra, por exemplo,
minação do sexo correto — Inviabilidade quando há troca de sexo o procedimento se faz de forma administrativa, desde que o interes-
decorrente de ato cirúrgico, com ablação do órgão para constituição sado declare, sob as penas da lei, que houve equívoco em seu assen-
do de sexo oposto aparente"82. tamento inicial. A recusa de tal declaração impede que o transexual
"Registro Civil — Assento de nascimento —. retificação para tenha seu registro averbado, deforma que permanecerá com seu sexo
mudança de sexo e nome — Admissibilidade apenas nos casos de original. ;
intersexualidade — Despojamento cirúrgico do equipamento sexual Na França, as decisões autorizam a mudança do registro civil
e reprodutivo e sexo psicologicamente diverso das conformações e do transexual. Em análise crítica, Salas descreve a alteração da ori-
características somáticas ostentadas que, configurando transe- entação da justiça francesa diante dessa questão. Num primeiro mo-
xualismo, não permitem a alteração jurídica"83. mento, o Poder Judiciário francês tratou apenas de reconhecer o di-

81. José Francisco Oliosi da Silveira, O transexualismo na justiça, cit., p. 99- 84. TJRJ, RT, 712:235.
100, nomes omitidos no original. 85. Julgados do Tribunal de Justiça, 134:213.
82.TJMG, RT, 662:149. 86. TJSP, RJTJSP, 64:151. '
83. T5SP,RT, 672:108. 87.TJSP,493:61.

70
reito de alteração de registro civil, caso não houvesse participação Analisando a jurisprudência espanhola, Perona assinala que:
voluntária do requerente em sua nova situação. Desse ponto de vista, "a) A presumível restrição da capacidade do transexual para
passou-se a entender o sofrimento do transexual e, por conseqüên- poder realizar determinados atos ou negócios dentro de seu novo
cia, a deferir o pedido de alteração do registro civil do transexual sexo legal (casamento, adoção etc.) é uma conseqüência da concep-
operado. O autor lamenta, no entanto, que as decisões dos tribunais ção do Tribunal Superior que, embora pareça convencido de que o
franceses deixem de lado o poder de autodeterminação, que seria, na transexual teve produzido em si uma mudança de sexo psicológico e
realidade, o mote deferidor do pedido, para ancorá-lo no sofrimento anatômico, ainda mantém a idéia de que o sexo cromossômico não
do requerente88. foi alterado e, portanto, não ocorreu uma mudança real em direção a
A jurisprudência francesa tem, portanto, deferido o pedido de outro sexo.
retificação do assentamento do registro civil (de maneira pouco uni- b) O Tribunal Superior entende que o matrimônio é uma insti-
forme), sob o fundamento de que haveria um sofrimento muito gran- tuição natural entre um homem e uma mulher de sexo cromossômico
de do transexual. (biológico ou genético) distinto, diferença essencial que não foi
Comentando a jurisprudência espanhola, Perona, depois de ci- exigida para o Alto Tribunal, por exemplo, entre um transexual mas-
tar casos de instâncias inferiores, traz o posicionamento do Tribunal culino (que passou a ser mulher como um todo, menos em seus
Supremo, firmando-se pela impossibilidade de deferimento do ius cromossomos) e um homem, pois entende que, no caso, haveria um
nubendi do transexual. Afirma que, como na França, as instâncias casamento entre homossexuais.
inferiores, em regra, deferem o pedido de alteração do sexo do c) O Tribunal Superior deixa transparecer seu medo de que, se
transexual. O pedido, no entanto, por determinação do Tribunal Su- autorizado o casamento do transexual, ficaria aberta a porta para um
premo, vem deferido com limitações, ou seja, apenas a mudança de reconhecimento futuro do casamento entre homossexuais.
nome. O transexual não recebe, portanto, pela jurisprudência espa- d) Outra coisa que fica patente nas quatro sentenças é que, quan-
nhola, todos os efeitos da mudança de nome, mas apenas a alteração do o Tribunal Superior se refere à nulidade do futuro matrimônio do
do nome e do sexo. Essa limitação deve constar obrigatoriamente transexual, trata de advertir o Encarregado do Registro Civil (ou o
dos registros do requerente89. Ministério Fiscal) para que tenha em conta as cautelas que foram
Depois de analisar o registro singelo, o autor espanhol passa a estabelecidas quanto a futuros casamentos.
analisar a questão do casamento do transexual operado, com seu re- e) O Tribunal Superior entende que a alteração de registro civil
gistro civil modificado. é apenas mudança de nome.
No entanto, o Tribunal Supremo espanhol tem limitado tal plei- f) O Tribunal Superior fere o direito de o transexual se casar e
to, impedindo o casamento do transexual operado com alguém de constituir família, direito garantido a todos os homens"90.
mesmo sexo biológico. Assim o autor resume as linhas gerais da
A jurisprudência das Cortes européias tem evoluído. A altera-
jurisprudência espanhola.
ção do assentamento do registro civil tem sido autorizada, determi-
nando a mudança de nome. Discute-se, no momento, se deve ou não
haver a autorização para o casamento do transexual operado.
88. Cf. Denis Salas, Sujei de chair et sujei de droit: la justice face au
transsexualisme. Paris, PUF, 1994, p. 53-60.
89. Cf. Perona, La problemática jurídica de la transexualidad, Madrid,
McGraw-Hill, 1998, p. 282. 90. Cf. Perona, La problemática, cit., p. 324-6, tradução livre do texto original.

124 71
E com fundamento em Perona e em Salas que seguiremos, nas A sentença traz o interessante voto do Juiz Martens, no qual
observações, a questão do transexual e do casamento, em face do mostra que a cirurgia adaptou o transexual a seu novo sexo e que o
Tribunal Europeu de Direitos Humanos. entendimento do art. 12 da Convenção deve ser visto de forma am-
pla, a prestigiar o interesse na formação familiar.
A primeira questão foi submetida no caso Van Oosterwijck con-
tra a Bélgica. O Pleno do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, Houve um último caso, Botella contra França, que não teve seu
em 1980, rechaçou a demanda do transexual, por não se haverem mérito apreciado pela Corte européia.
esgotado os meios judiciais internos em seu país. Tratava-se de uma Perona91, criticando os autores que apontam unanimidade nas
transexual que pedia a alteração de seu registro civil e, em conse- conclusões do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, sintetiza:
qüência, o reconhecimento de seu direito ao casamento e de consti- "1) Não existe unanimidade entre a Comissão e o Pleno do Tri-
tuir família. Fundamentou seu pleito no art. 12 da Convenção de
bunal Europeu de Direitos Humanos sobre a denegação do direito ao
Roma, que assim disciplina:
casamento do transexual;
"Art. 12 — A partir da idade apropriada, o homem e a mulher
2) O artigo 12 da Convenção de Roma adverte expressamente
têm direito a casar-se e a fundar uma família, segundo as leis nacio-
que o ius nubendi do homem e da mulher deve ser interpretado a
nais que regem o exercício deste direito".
partir da lei nacional de cada país signatário, pelo que entendemos
Em seguida, surgiu o caso Ress contra o Reino Unido, no qual
que a interpretação — não unânime — feita pelo Tribunal Europeu
um transexual recusava-se a alterar (mediante a alegação de que teria
nesses dois casos pode não ser extensiva a outros ordenamentos como
havido equívoco em seu registro inicial) seu sexo no registro civil.
o espanhol, por exemplo"92.
Na Inglaterra, o procedimento é administrativo e depende apenas da
declaração do interessado. No caso, o requerente, entendendo que
não houve equívoco (mas mudança de sexo), sentiu-se prejudicado
pelas cortes inglesas, ingressando no Tribunal europeu. 8. O projeto de lei em andamento no Congresso Nacional
A Corte européia, por meio da Comissão, entendeu que não
poderia haver casamento, pois seu sexo ainda era o originário. No Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 70-B, de
entanto, no mesmo julgado, cinco dos juizes reconheceram que, al- 1995, da autoria de José Coimbra, que dispõe sobre intervenções
terado seu sexo, pela mudança do registro civil, nada impediria seu cirúrgicas que visem à alteração de sexo e dá outras providências.
casamento. Contrariamente à pretensão, depois de alterado o regis-
Pelo projeto, ficariam alterados dois dispositivos legais.
tro civil, manifestaram-se também cinco juizes. O Tribunal, no en-
tanto, por meio de seu Pleno, em 1986, entendeu que o casamento Vejamos.
protegido pelo art. 12 da Convenção de Roma seria o convencional, Seu art. ls propõe o acréscimo de § 92 ao art. 129 do Código
entre homem e mulher, descartando, portanto, a possibilidade de al- Penal. Assim seria redigido o novo parágrafo:
bergue da pretensão. "Art. 129 ........................................................ : ...................................
Mais tarde, o mesmo Tribunal europeu, por quatorze votos con- Exclusão do crime "1 ',
tra quatro, entendeu, no caso Cossey contra o Reino Unido (um . .. j r .
transexual homem-mulher operado que perseguia há anos um casa-
mento com um homem), que não haveria possibilidade de deferi-
91. La problemática, cit., p. 337-8.
mento do pleito. 92. Perona, La problemática, cit., p. 337-8, tradução livre nossa.

126 72
§ 92 Não constitui crime a intervenção cirúrgica realizada para dem psicológica ou psiquiátrica. Trata, portanto, da cirurgia apenas
fins de ablação de órgãos e partes do corpo humano quando, destina- como uma questão médica. Nesse ponto, o Conselho Federal de
da a alterar o sexo de paciente maior e capaz, tenha ela sido efetuada Medicina foi muito mais cauteloso, determinando que a avaliação
a pedido deste e precedida de todos os exames necessários e de pare- fosse feita por uma equipe multidisciplinar. O projeto de lei fala ape-
cer unânime de junta médica". nas em "todos os exames necessários". Poderia, já que está inovando
a ordem jurídica, tratar do acompanhamento da equipe
Propõe também a alteração do art. 58 da Lei 6.015, de 31 de
multidisciplinar, como determinado pela resolução. A questão da ci-
dezembro de 1973, que passaria a vigorar com a seguinte redação:
rurgia do transexual deixaria, então, de ser um assunto apenas médi-
"Art. 58. O prenome será imutável, salvo nos casos previstos co para ser também médico, com a participação de psicólogos, psi-
neste artigo. quiatras, assistentes sociais etc.
§ ls Quando for evidente o erro gráfico do prenome, admite-se Por fim, a questão da autorização para mudança do prenome. O
a retificação, bem como a sua mudança mediante sentença do juiz, a projeto colocaria fim à discussão da jurisprudência, que, até o mo-
requerimento do interessado, no caso do parágrafo único do art. 55, mento, é desfavorável ao transexual, como mencionado acima. O
se o oficial não houver impugnado. Poder Judiciário, de forma geral, salvo casos isolados, tem negado a
§ 2S Será admitida a mudança do prenome mediante autoriza- alteração do registro civil. E, quando o defere, salvo hipóteses
ção judicial, nos casos em que o requerente tenha se submetido à excepcionalíssimas, determina a inscrição "transexual" no assenta-
intervenção cirúrgica destinada a alterar o sexo originário. mento.
§ 3o No caso do parágrafo anterior deverá ser averbado ao re- Como se vê, o projeto de lei autoriza a alteração do registro,
gistro de nascimento e no respectivo de identidade ser a pessoa mas determina o assentamento de "transexual".
transexual". Aqui o projeto de lei parece equivocado; não exige que o paci-
y O projeto de lei, portanto, pretende que a conduta do cirurgião ente seja transexual para que fique configurada a exclusão da
seja acolhida como excludente da criminalidade, autorizando ainda criminalidade. O médico deve fazer os exames necessários e obter o
a averbação do prenome do operado. parecer de uma junta médica. A questão não se limita, corno visto, %
Quanto ao primeiro aspecto (excludente da criminalidade), a transexualidade; pode incluir situações de intersexualidade.
lei só vem a convalidar o que a jurisprudência já tratou de resolver. Com o parecer unânime da junta médica e com os exames ne-
Terá a função de pacificar as relações sociais, funcionando como um cessários, é possível proceder à operação de alteração de sexo, não
referendador do comportamento. No entanto, diante do só de transexuais, mas também de estados intersexuais. E, desde que
posicionamento jurisprudencial e da própria resolução do Conselho determinado pela junta médica, de forma unânime, em qualquer ou-
Federal de Medicina, não há dúvida de que não existe crime na situ- tra situação de dubiedade ou distúrbio sexual. O projeto de lei trans-
ação da cirurgia. É verdade que a lei determina que seja o paciente fere, portanto, para a ética médica toda decisão sobre a necessidade
maior e capaz (o que a resolução também exige). No entanto, a lei ou não de cirurgia. Poderia fixar os diagnósticos autorizadores da
(apesar de tardia, refletindo a evidente morosidade do legislador bra- cirurgia, mas preferiu deixar a critério de uma junta médica, desde
sileiro) terá a função de ■— se e quando for aprovada — pacificar a que esta decida por unanimidade e requeira os exames necessários.
situação, exigindo, de outra forma, a unanimidade da junta médica. Não há, no projeto, limitação à questão do transexual. Exige-se, pos-
O projeto de lei, em relação ao parecer da junta médica, deixa de teriormente, a inscrição "transexual", mas, para autorizar a cirurgia,
lado qualquer outro acompanhamento, como, por exemplo, o de or- não há expressa menção a ser o paciente transexual.

73 129
Portanto, se aprovado o projeto, ficaria autorizada a cirurgia de excludente não veio limitado, razão pela qual, respeitada a opinião
mudança de sexo do maior capaz, não só do transexual, mas do ho- unânime da junta médica, não há que se falar em crime. Sofrerá a
mossexual, do travesti e de qualquer outro portador de anormalidade cirurgia quem dela necessitar, independentemente da situação de
sexual, desde que o parecer da junta médica fosse unânime e os exa- desvio sexual apresentada.
mes necessários fossem requisitados. Por outro lado, todos os operados que o requererem, indepen-
Mas, quando da averbação no registro civil, seria preciso escre- dentemente de sua situação de opção sexual, terão inscrita a expres-
ver, junto ao assentamento, a palavra "transexual". são "transexual" em seus documentos, o que não corresponde à rea-
Diante da exigência do assentamento da palavra "transexual" lidade médica de cada um. Ao contrário, as conseqüências do conví-
vio com um travesti operado, por exemplo, não são as mesmas de um
no registro civil do operado, podemos chegar a duas conclusões.
transexual. Para o desenvolvimento do raciocínio, a anotação
A primeira seria a de que apenas os transexuais poderiam sofrer "transexual" para todos os operados — transexuais ou não — geraria
a cirurgia de redesignação de sexo. Ou seja, em uma análise sistemá- prejuízos para terceiros, que poderiam estar diante de outros proble-
tica.do texto, só o transexual poderia sofrer cirurgia. A interpretação mas de origem sexual que não o de transexualidade.
sistemática, como colocada, permitiria a leitura do pretendido § 9 2
Portanto, a assinatura como transexual no registro civil do ope-
do art. 129 como se referente apenas ao transexual. O parecer da
rado, independentemente de seu desvio sexual, poderá, isso sim, cau-
junta médica, dessa forma, só a ele autorizaria a realizar a operação.
sar problemas a terceiros, já que, como vimos, a situação psicológica
A segunda conclusão levaria a uma interpretação literal do pre- de cada um apresenta um quadro distinto.
tendido § 9S. Se não há restrição para o transexual realizar a opera-
Em razão dessa argumentação, somos contra a anotação do ter-
ção, já que a excludente é ampla, não se poderia falar em entendi-
mo "transexual", como previsto no projeto. Melhor seria, já que se
mento restritivo. Nesse caso, todos os estados intersexuais e todos
pretende a adoção da terminologia certa para designar o operado,
aqueles que tiveram autorização para mudança de sexo, nas condi-
assinalar a expressão "transexual" ou "intersexual", conforme a situ-
ções previstas pelo projeto de lei, passariam a ser chamados de ação pessoal do indivíduo.
transexuais.
O projeto de lei pretende, dessa maneira, consolidar o compor-
Em tal hipótese, o projeto de lei estaria dando nova conceituação
tamento médico já autorizado pelo Conselho Federal de Medicina e,
à literatura médica, pois, como vimos, o transexual não se confunde
de forma equivocada, determina que o transexual operado tenha essa
com o travesti, nem com o homossexual, nem com o hermafrodita etc. qualidade averbada em seu registro civil. Não avança, portanto. Ao
Para o sistema jurídico brasileiro, todo aquele que passasse por contrário, ratificará um comportamento discriminatório hoje exis-
uma cirurgia de redesignação de sexo transformar-se-ia em transexual. tente. Se aprovado, estará, a nosso ver, viciado de inconsti-
A solução do pretendido § 32 do art. 58 da Lei n. 6.015/73 é de todo tucionalidade, pois a anotação fere o direito à intimidade e à privaci-
deslocada da realidade, pois não atende aos critérios mínimos dade do transexual operado, como já vimos acima. Ao exigir a anota-
adotados pela Medicina. ção "transexual" no novo registro, o projeto se caracteriza pela
Uma última interpretação seria a de que apenas os transexuais inconstitucionalidade, pois marca o cidadão, de forma definitiva,
poderiam ter a averbação de seu assento alterada, o que fere o bom quanto a sua opção sexual, sua condição pessoal e, conforme o caso,
senso e o princípio da igualdade. a situação que não era sua (em caso de outro desvio que não o
Dessa forma, o projeto de lei, com a melhor das intenções, sus- transexualismo). Portanto, o projeto está maculado de inconsti-
cita delicada questão. Para o direito penal, o comportamento da tucionalidade, pois fere a vida privada e a intimidade do paciente.

74 131
Por conseguinte, o legislador nacional poderia servir-se da ex- em sua nova realidade. A menção iria tomá-lo um ser à parte, ou seja,
periência de outros países que trataram o tema, como, por exemplo, definido com o carimbo de uma existência que ele sempre renegou, trans-
a lei italiana n. 164, sobre retificação de sexo, de 14 de abril de 1982, formando-o, mais uma vez, num pária, num ser excluído da sociedade.
que estabelece, em seu art. 52, que as sentenças de retificação de Por fim, não entendemos aplicável ao caso a recente Lei n. 9.708,
sexo do transexual devem conter apenas a indicação de seu novo de 18 de novembro de 1998, que altera o art. 58 da Lei n. 6.015, dc
sexo e seu nome. A idéia é cancelar o passado do transexual93. 3 Ide dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), já que autoriza
A lei sueca de 21 de abril de 1972 não só proíbe a divulgação de a substituição do prenome por apelidos públicos notórios. O pará-
qualquer menção sobre o processo de alteração do sexo como deter- grafo único proíbe a adoção de apelidos proibidos em lei98.
mina a punição de qualquer funcionário que, tendo notícia do fato O transexual não pretende adotar um apelido. Pretende, isso
por dever de ofício, divulgue informações sobre o tema 94. sim, alterar seu sexo, com as conseqüências jurídicas daí decorren-
Para uma visão do quadro genérico da normatividade, a legisla- tes, como o assentamento em seu registro civil. De qualquer forma, o
ção norueguesa de l2 de junho de 1934já admitia a alteração do sexo parágrafo único do art. 58 veda a adoção de apelidos proibidos em
do indivíduo, depois de um laudo médico no qual ficasse constatada lei. No caso, os apelidos serão referência ao sexo psicológico do
a vontade livre do paciente95. transexual, distinto de seu sexo biológico, o que não alterará a situa-
A lei dinamarquesa de 11 de maio de 1935, depois do parecer ção, pois haverá vedação legal. De qualquer forma, a lei não se apli-
de médicos que analisariam aspectos clínicos e eridocrinológicos, ca ao caso, como pretendido na pesquisa, pois o que se busca é de-
autorizava a mudança de sexo. fender o direito à integração social. No caso da adoção do apelido
A lei alemã de 15 de agosto de 1969 admite a alteração de sexo, (ainda que se entendesse permitida), tal situação escapa de nosso
a juízo da ciência médica, para curar ou aliviar o paciente de enfer- objetivo, pois o que se pretende é a integração do transexual à socie-
midades, perturbações e sofrimentos psíquicos graves vinculados com dade, e não a manutenção de seu processo de marginalização.
uma sexualidade anormal96.
Nos Estados Unidos, em Illinois, a autorização vem datada de
1961; na Louisiânia, a partir de 1968; na Califórnia, a partir de 1977;
em Nova York a autorização surgiu em 1971. 9. A autorização para a cirurgia do transexual, a alteração de seu
registro civil, o direito ao casamento e ao esquecimento
No Canadá, a partir de 1973 a operação de mudança de sexo
tornou-se autorizada97.
Pela apresentação do trabalho, já deixamos claro que o transexual
Depois dos exemplos de países que já têm legislação sobre o tema,
tem direito a uma intervenção cirúrgica, caso o deseje. Se entender
deve-se fazer a consideração sobre a menção a "transexual" no projeto de
lei brasileiro. Tal fato causaria prejuízos à integração social do paciente

98. Lei n. 9.078, de 18 de novembro de 1998. Altera o art. 58 da Lei n. 6.015,


de 31 de dezembro de 1973, que dispõe sobre Registros Públicos, para possibilitar a
93. Cf. Carlos Fcrnández Sessarego, Derecho a la identidad personal, Buenos substituição do prenome por apelidos públicos notórios.
Aires, Ed. Asírea, 1992, p. 361. "Art. I2 O art. 58 da Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973, passa a vigorar
com a seguinte redação:
94. Sessarego, Derecho a la identidad personal, cit., p. 363.
95. Sessarego, Derecho a la identidad personal, cit., p. 380. 'Art. 58. O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição
96. Sessarego, Derecho a la identidad personal, cit. p. 380. por apelidos públicos notórios'. (NR)
97. Os modelos dc legislação estrangeira foram retirados de Sessarego, Derecho 'Parágrafo único. Não se admite a adoção de apelidos proibidos em Lei'. (NR)
a la identidad personal, cit., p. 380-1. Art. 22 Esta lei entra em vigor na data de sua publicação".

75 133
que deve passar pela cirurgia de redesignação de sexo, o sistema decisão civil, como o casamento. De imediato, poderia surgir certa
estatal de saúde deve providenciar tal operação como forma escolhi- indignação, no sentido de entender que o direito de terceiros poderia
da de felicidade, para diminuir seu grau de angústia. estar sendo ferido.
A questão que fica pendente é a do assentamento no registro Os argumentos daqueles que entendem que o registro deveria
civil. Ora, como poderia alguém passar por um processo cirúrgico, ser feito com a anotação são da seguinte ordem:
em busca da sua melhor adaptação, tentando a junção do sexo psico-
a) O transexual poderia contrair casamento e, nesse caso, este
lógico com o biológico e, ao mesmo tempo, ser considerado pelo só poderia ocorrer entre pessoas do sexo oposto.
Estado como do sexo originário?
Realmente, o casamento só poderia ocorrer entre pessoas do
Há incoerência evidente. Se a Medicina, a Psicologia e a Psi-
sexo oposto, nos termos do art. 180 do Código Civil. Mas qual o
quiatria entendem que a cirurgia é necessária, como forma de elimi- conceito de sexo que devemos adotar? O sexo biológico? O sexo
nação da angústia, para o direito o indivíduo ainda viverá a mesma psicológico? O sexo gonadal? Enfim, se há vários conceitos, por que
angústia. Questões práticas de vivência mínima levam à imediata devemos utilizar o biológico? E, ademais, há o reconhecimento mé-
revisão do pensamento daqueles que entendem que o registro civil dico da necessidade da cirurgia, já que o paciente tem tendência para
não deve ser alterado. Imaginemos a ida a um banheiro público, por o sexo diferente do biológico, ou seja, para a mudança de sexo. Por-
exemplo. Evidente que a pessoa deverá buscar o banheiro para seu tanto, diante do conflito, por que não afirmar, no caso, que o indiví-
sexo, já que, transformado, vive e pensa como tal. Mas, quando cons- duo pertence ao sexo para o qual foi operado? Realmente, sabemos
tatado seu estado jurídico, poderá sofrer sanções por entrar em ba- que, internamente, a constituição física do indivíduo operado conti-
nheiro feminino, sendo homem. nua a mesma, ou seja, mantém seu sexo de origem. Mas a sociedade
Imaginemos (apesar de não se tratar, como vimos, de transexual) está preocupada com o sexo de origem do indivíduo, ou ele tem di-
que a modelo Roberta Close resolva ir ao banheiro masculino de um reito a uma nova vida, integrado socialmente, participando
restaurante. Sendo uma mulher, espantaria os homens presentes, já integrativamente, de forma saudável? Ou deve sempre trazer consi-
que também se veste de mulher. Não sendo homem, o lugar de mu- go a situação de "transexual"? Este tem direito ao esquecimento de
lher lhe cabe. sua situação. Ao que parece, os defensores da anotação não conse-
guem verificar a dificuldade de viver com ela. Autorizar a operação,
O descompasso entre a realidade e a realidade jurídica choca a
mas manter a inscrição "transexual", é comportamento que não defi-
todos. Não há necessidade de outros exemplos, tamanha a evidência
ne a situação do transexual. Resolve apenas o problema da aparên-
e incoerência da situação. Se o direito deve tratar da realidade, como
cia, assumindo o sexo desejado, mas não a questão da integração
impor uma realidade distorcida como a descrita?
social. Embora tenha a aparência do seu sexo psicológico, na vida
Portanto, o direito de alteração do registro civil é evidente, com civil, ostentará a anotação "transexual", para que fique marcado como
a redesignação do prenome, depois de todas as cautelas necessárias, anormal para sempre. Como se a sociedade, num gesto "magnâni-
como a verificação de certidões etc. mo", lembrasse sempre ao transexual que ele pode parecer-se com o
De acordo com as diretivas da Comunidade Européia, o regis- que pretende, mas nunca será realmente o que pretende. O grilhão
tro, depois da operação de redesignação de sexo, deve ser feito de amarcado ao pé do transexual será sempre exibido, como pena per-
forma singela, sem qualquer menção a "transexual". pétua, impedindo sua integração social.
Há, todavia, contestação daqueles que entendem estar o direito A concepção vigente é a do sexo biológico, sem o reconheci-
de outros em jogo, já que o ato envolve sentimentos e principalmente mento da cirurgia, porque, na verdade, o sistema permite a cirurgia,

76 135
mas não a reconhece, impedindo ao operado o direito de integração cional, dificulta a integração, retira o que foi dado, marca o indivíduo, e
social. Ao exigir que a pessoa carregue, em seus documentos, a ano- a lei se transforma em "madrasta", pois pune e tira a liberdade de ser ao
tação "transexual", o sistema jurídico apenas cuidaria das aparênci- conferir uma condição abominável e não permitir a definição do sexo.
as, deixando a pessoa com os mesmos problemas existenciais sofri- Não existe, assim, qualquer impedimento ao casamento do
dos antes da cirurgia. Aparenta ser mulher, ou homem, mas no seu transexual, pois, na verdade, não se trata de casamento entre pessoas
documento está a anotação de que é transexual. Há integração social, de mesmo sexo, mas entre pessoas de sexos distintos. Trata-se de situ-
direito do cidadão, preservado pelo Estado, se existe discriminação ação excepcionalíssima, justificada pela necessidade de integração do
evidente e clara? transexual. O conceito, portanto, para a hipótese, é o sexo psicológico,
Se o Estado concorda com a cirurgia, por entendê-la necessá- corroborado pelo sexo biológico exterior, modificado pela cirurgia.
ria, uma vez que tem a responsabilidade do acompanhamento médi- b) O transexual não poderia ter filhos, o que inviabilizaria a
co, seria melhor deixar de anotar a transexualidade no documento, relação matrimonial e induziria terceiros em erro.
respeitando o sexo psicológico, já definido pela cirurgia de Esse argumento não tem a menor consistência. Em primeiro lugar,
redesignação sexual? Concordar com a "cirurgia", mas não definir a já apontamos a mudança da relação sexo-procriação para sexo-prazer.
situação do operado, é o mesmo que abonar, dar fiança, sem cumprir Não se pode mais afirmar que a relação sexual visa apenas à procriação.
com a obrigação de quem concorda com a verdade dos fatos. Tal conceito já não prevalece. O sexo é prazer e pode ser procriação.
O argumento geralmente utilizado é o de que poderia haver ca- Dessa forma, o casamento não tem como finalidade a procriação, mas o
samento entre pessoas do mesmo sexo, mas não serão do mesmo convívio entre duas pessoas. Tanto isso é verdade que a impossibilidade
sexo se se admitir outras classificações para este, como a psicológi- de gerar filhos não é motivo para anulação do casamento.
ca, por exemplo. No caso, o transexual tem apenas o sexo biológico, Entre os motivos da nulidade ou da anulabilidade do casamen-
que já foi alterado em conformidade com o seu sexo psicológico. to, encontrados no art. 183 do Código Civil, não se verifica a não-
Este sim, forte e determinante, já foi objeto de decisão médica, acom- possibilidade de procriação. Portanto, o fato de não poder ter filhos
panhada por equipe multidisciplinar, para a conclusão da cirurgia. não significa que o casamento é nulo ou anulável.
O casamento do transexual continuaria a ser, assim, entre sexos Será significativa a opinião de Washington de Barros Monteiro
opostos, pois o sexo psicológico, no caso, prevaleceria sobre o bioló- sobre o tema:
gico (este, como já vimos, alterado sensivelmente pela cirurgia). "A instituição (casamento) não tem exclusivamente por fim a
:
-' A fixação da idéia de sexo em sua concepção biológica fere o procriação; visa também ao estabelecimento de união afetiva e espi-
direito do transexual de se integrar socialmente; marca-o com traço in- ritual entre os cônjuges. Uma vez que essa união não pode ser
delével, perseguindo-o por todo o sempre e dificultando sua nova vida. alcançada, inexistirá motivo para anular o casamento, só porque dele
Do exposto, concluímos que a cirurgia é autorizada, mas o novo não adveio prole, em razão da esterilidade de um dos cônjuges. A
sexo não. A aparência se transforma, mas a realidade jurídica man- jurisprudência é pacífica a respeito, tanto para a mulher como para o
tém-se contrária à realidade psicológica. homem",Wc,(,1,.
Portanto, quando se autoriza a cirurgia, está-se permitindo a felici-
dade do transexual, com a possibilidade de eliminar a dualidade, pelo
menos parcialmente, a fim de facilitar a sua integração social. A fixação, 99. Washington de Barros Monteiro, Curso de direito civil; direito de família,
contudo, no conceito de sexo biológico, encontrada na jurisprudência 32. ed. rev., São Paulo, Saraiva, 1995, p. 99.
majoritária e no próprio projeto de lei encaminhado ao Congresso Na- 100. A doutrina não diverge do posicionamento do ilustre civilista. Cf. Amoldo
Wald, Curso de direito civil brasileiro; direito de família, 9. ed., São Paulo, Revista

136 77
Poder-se-ia anular o casamento diante da impotência de um dos ge enganado. Se sentir que o fato lhe causa tamanho prejuízo que
cônjuges, mas não da impossibilidade de procriação. torne inviável a vida do casal, poderá pedir a anulação. Do contrário,
0 argumento, dessa forma, não pode ser considerado. manterá a relação conjugai. Portanto, quer em relação ao erro essen-
cial em relação à pessoa do cônjuge, quer em relação ao defeito físi-
Passemos ao terceiro.
co, o legislador deixou para o cônjuge a solução.
c) O terceiro que contraísse matrimônio poderia incorrer em
Não entendeu que as pessoas não pudessem casar, mas que o
erro.
casamento poderia ser anulado. No caso do transexual, se o cônjuge
Realmente, nesse ponto, é procedente a argumentação. Verifi-
descobrisse sua condição anterior, poderia, dentro dos prazos deter-
ca-se que o Código Civil colocou a questão entre os motivos de minados pelo Código Civil, requerer a anulação do casamento, caso
anulabilidade e não de nulidade. fosse de seu interesse. Se o fato não lhe causasse incômodo, a rela-
A leitura dos arts. 218 a 220 é clara: ção perduraria por conveniência das partes. Dentro do quadro descri-
"Art. 218. É também anulável o casamento, se houve por parte to, especialmente pela preponderância do sexo psicológico do
de um dos nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do transexual e da cirurgia de redesignação, a possibilidade de anulação
outro. pelo motivo acima explicitado é mínima, pois o fato deveria ser des-
Art. 219. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do cônjuge: conhecido do cônjuge.

1 — o que diz respeito à identidade do outro cônjuge, sua honra Na hipótese do casamento do transexual, assim, o pedido de
e boa fama, sendo esse erro tal, que o seu conhecimento ulterior tor- anulação poderia ser feito tanto com fundamento no inciso I como
no inciso III do dispositivo autorizativo do art. 219 do Código Civil.
ne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado;
II — a ignorância de crime inafiançável, anterior ao casamento Caso o cônjuge se apercebesse da situação do transexual e veri-
e definitivamente julgado por sentença condenatória; ficasse que tal fato impediria a continuação de seu casamento, pode-
ria requerer sua anulação. Portanto, a manutenção do casamento fi-
III — a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico ir-
caria a ser decidida unicamente, nos termos do art. 220 do Código
remediável ou de moléstia grave e transmissível, por contágio ou
Civil, pelo outro cônjuge e não pelo Estado. Se o fato não impedisse
herança, capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge ou de sua a felicidade do casal, poderiam viver em matrimônio sem qualquer
descendência; restrição. Mas, ao contrário, caso houvesse restrição, a anulação do
IV — o defloramento da mulher, ignorado pelo marido. casamento seria deferida.
Art. 220. A anulação do casamento, nos casos do artigo antece- Dessa forma, o Estado deixaria para os interessados eventual pleito
dente, só a poderá demandar o cônjuge enganado". de anulação. Entre obstar a integração social do transexual, impedindo
O legislador entendeu que o erro deveria ser objeto de anulação seu casamento, e deferir a possível anulação a seu cônjuge, o sistema
e de não de nulidade. Ou seja, deixou prevalecer a vontade do cônju- deveria escolher a segunda hipótese, ou seja, a da integração social do
transexual, sem a anotação em seus registros civis101.

dos Tribunais, p. 62 e s.; Silvio Rodrigues, Direito civil; direito de família, 20. ed.
atual., São Paulo, Saraiva, 1994, p. 71 e s.; Orlando Gomes, Direito de família, 7. 101. José Adércio Leite Sampaio (Direito à intimidade e à vida privada, uma
ed.. Rio de Janeiro, Forense, 1994, p. 110 e s.; Pontes de Miranda, Tratado de visão jurídica da sexualidade, da comunicação e informações pessoais da vida e da
direito privado; parte especial, 4. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1983, t. 7, morte, Belo Horizonte, Del Rey, 1998, p. 323) afirma ser possível, deferida a retifi-
p. 383 e s. cação do registro civil, o casamento do transexual.

138 78
Ademais, o convívio anterior ao casamento já poderia permitir, É inconcebível que o Estado tenha interesse em preservar a si-
pelo menos à boa parte dos casais, uma intimidade maior, facilitando tuação de angústia do transexual. Não se trata de não incentivar a
a identificação da situação. De qualquer forma, o próprio transexual felicidade do indivíduo, mas de impedi-la. Ao determinar o registro
poderia (se quisesse) esclarecer sua situação. E, se não o fizesse, como "transexual" em seus assentamentos civis, impedir seu casa-
passando o fato a ser do conhecimento do cônjuge, poderia este, côn- mento, o Estado não deixa de incentivar a felicidade dos indivíduos,
juge enganado, requerer ou não a anulação do casamento. ao contrário, age de forma a impedir a felicidade, o que é um
O que não se pode conceber é que o Estado interfira na relação descumprimento mais grave do seu objetivo fundamental, fixado no
do casal, a título de proteção, e impeça o casamento do transexual, art. 32, IV, da Constituição Federal. Omitir-se, deixando de propiciar
em vez de deixar que o casal, se quiser, discuta judicialmente a ques- a felicidade, seria grave. Agir, por meio do Poder Judiciário, impe-
tão, em processo de anulação. dindo a integração social é mais grave.
O transexual que se submeteu à cirurgia tem direito ao esqueci-
mento de sua situação, como forma de dignidade humana. Não é
obrigado a carregar por toda a vida a situação de dualidade já tão
10. Alguns aspectos secundários decorrentes do deferimento da al-
minorada pela cirurgia.
teração do registro civil do transexual após a operação
O transexual deve, portanto, integrar-se socialmente, sem quai-
squer referência ao seu estado anterior, ou a seu estado de A' exposição argumentativa e a pesquisa fundamentada consti-
transexualidade. A nova vida do transexual deve ser aceita para sua tuem trabalho que propõe o deferimento da alteração do sexo do
integração social. Seu passado deve ser esquecido, como forma de transexual operado, sem qualquer menção a seu estado anterior nem
abandono de sua dualidade. A partir da cirurgia e da retificação do a sua condição de transexual.
registro civil, o transexual tem direito ao esquecimento de sua situa-
Reconhecemos, no entanto, algumas questões que surgirão em
ção anterior, o que ocorre com a impossibilidade de menção a seu
decorrência desse posicionamento; por exemplo, haverá alteração da
estado anterior ou mesmo a "transexual". A omissão dos dados ante-
situação previdenciária do cidadão. Os prazos para a aposentadoria
riores é a única maneira de preservar a dignidade da pessoa humana, são hoje distintos para o homem e a mulher. Com a redesignação
como princípio constitucional a ser seguido. sexual o homem ou a mulher passarão para outro regime previ-
Portanto, o bem-estar de todos, objetivo fundamental do Estado denciário. Antes do mais, não seria imaginável que alguém, sob o
brasileiro, como determinado pelo inciso IV do art. 32 da Constitui- pretexto de melhorar sua situação previdenciária, portanto, no caso,
ção Federal, não pode confirmar-se com a anotação da situação do apenas o transexual homem-mulher, se submetesse a uma cirurgia
transexual em seus assentamentos civis102. de redesignação sexual. Mas, havendo a redesignação sexual, o regi-
me previdenciário passa a ser diferente. No caso, entendemos que,
por procedimento reservado, em segredo de justiça, o juiz deve proce-
102. Antônio Chaves menciona: "Mas Sílvia Ramo Afonso, nascida Severino,
operada na Inglaterra, depois de obter um parecer psiquiátrico confirmando sua
condição de mulher, conseguiu no Recife, perante o Juiz José Fernando de Lemos,
realizando o grande sonho de minha vida, dizia Sílvia ao final da rápida cerimônia
da 3a Vara da Família, autorização para que em seu registro civil, carteira dc identi- realizada pelo Juiz Milton Ncry. 'Eu apenas consumei a união conjugai de um ho-
dade e CPF passasse a constar o novo nome, e, no dia 1.3.1990, segundo noticiava O mem e uma mulher', disse Nery aos repórteres um pouco constrangido. 'Cabe ao
Estado de S. Paulo de dois dias depois, o primeiro casamento entre um transexual e juiz apenas ver a lei como ela é, sem restringir ou estender', explicou" (Tratado de
um homem, no Brasil: Habib Hassen Draief, tunisiano naturalizado italiano. 'Estou direito civil; direito de família, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1993, t. 2, p. 26).

140 79
der à proporcionalidade do tempo de serviço do transexual operado to que identifica o sexo. Aliás, o conceito de sexo para o esporte já
até o momento, passando a contá-lo no novo regime. Assim, sua nova deixou de ser o biológico, o que demonstra que a sociedade vem
realidade será perfeitamente adaptada ao novo sistema previdenciário. aceitando enfoques diferentes para a questão.
Não haveria qualquer prejuízo se houvesse perante a justiça o Desportistas são submetidos a testes hormonais para a determi-
ajuste, mediante a aplicação da regra da proporcionalidade, entre o nação de sua capacidade para disputar competições. São biologica-
tempo de serviço já cumprido e aquele a cumprir (em ambos os ca- mente homens e mulheres que têm a sua sexualidade discutida dian-
sos, homem-mulher e mulher-homem). O processo judicial certa- te dos comitês desportivos. O sexo feminino tem sido verificado, sob
mente tramitaria sob segredo de justiça, e o ofício para o órgão o aspecto hormonal, em competições esportivas. Dessa forma, mui-
previdenciário seria também expedido em caráter reservado. tas mulheres, analisadas sob.o prisma biológico, são recusadas para
Outra questão seria quanto às competições esportivas. A inscri- competições femininas depois dos testes hormonais.
ção, como do sexo feminino, de um transexual mascüÍFno~õperado Ora, para o esporte, o conceito de sexo não é o biológico, mas o
poderia prejudicar outras concorrentes, pelos característicos físicos hormonal. Por que não se pode adotar o sexo psicológico (com o
que o indivíduo poderia ter. sexo biológico alterado pela redesignação)?
A objeção é desde logo afastada. Em primeiro lugar, o transexual Como já visto, não há motivo plausível para a inserção da qua-
operado homem-mulher já vinha vivendo psicologicamente como lidade de transexual nos assentamentos do registro civil.
mulher e, depois da operação, recebeu um corpo de mulher. A juris- Por fim, e talvez seja essa a maior dificuldade, imaginemos que
prudência norte-americana dá notícia de um transexual masculino- o indivíduo transexual, quando se submeteu à cirurgia, já fosse di-
feminino, famoso jogador de tênis. Depois de sua operação de vorciado e tivesse filhos do matrimônio. Devemos fazer uma distin-
redesignação de sexo, decidiu disputar campeonatos femininos, no ção entre filhos maiores e menores. Entendemos que, independente-
que contou com a objeção da federação local. A questão terminou mente da idade, não haveria necessidade de fazer a averbação _do
junto ao Poder Judiciário, que decidiu, por se tratar de mulher, com nome do pai, ou dá mãe, nos assentamentos do filho do transexual.
alteração de seu registro civil, que deveria submeter-se às mesmas
Entendemos ainda que õ transexuaísó poderia pretender a
regras do campeonato feminino. Caso, no entanto, sua alteração
redesignação de sexo se solteiro ou se divorciado.
hormonal identificasse índices superiores ao permitido, não poderia
Recorde-se que a lei italiana admite que o transexual casado
competir (como qualquer outra competidora) 103.
requeira autorização para a operação de mudança de sexo, o que não
De qualquer forma, mesmo que se admitisse a existência de
ocorre com a lei sueca, por exemplo, que exige que seja solteiro e
característicos masculinos em índices superiores em relação às ou-
não possa procriar104. Pensamos que o fato de ter sido casado não
tras concorrentes, a Medicina Esportiva dispõe hoje de testes preci-
impede seu desejo e a necessidade de buscar seu ajuste sexual.
sos para detectar a quantidade de hormônios masculinos em cada
competidora, de forma que, havendo dúvidas, estas serão resolvidas Os registros referentes ao casamento, no entanto, permaneceriam
por índices laboratoriais predeterminados e não mais pelo documen- os mesmos, em defesa do direito do cônjuge, salvo acordo entre as
partes. O direito do transexual a sua nova vida deve ser balizado por
sua história e pelas obrigações contraídas no matrimônio.

103. Cf. Arthur S. Leonard, Sexuality and lhe law - an encyclopedia of major
legal cases, United States, 1993, p. 398-402 (Garland Refercnce Library of Social
Science, v. 1.271). 104. Cf. Sessarego, Derecho a la identidadpersonal, cit., p. 383 e s.

80
Os deveres em relação à filiação permaneceriam, pois não po- haveria sensível prejuízo ao cônjuge e aos filhos, com traumas
- deria haver qualquer alteração da condição filial. O relacionamento inegáveis a eles107.
e as obrigações do pai ou da mãe que se tenha submetido à operação Os direitos do transexual, portanto, como não são absolutos,
não podem sofrer qualquer tipo de mudança. cederiam, neste passo, para os direitos dos familiares.
O convívio do transexual operado com seu filho, no entanto, O argumento poderia seduzir num primeiro instante. O fato de
poderá sofrer certas restrições. O filho pode sentir-se perturbado com ser o pretendente à mudança de sexo solteiro não significa que não
a alteração de sexo de seu pai (ou de sua mãe), e tal situação poderia tenha prole.
causar-lhe um transtorno, inclusive de ordem psicológica. Nesse caso, De qualquer forma, haverá sempre a necessidade de análise do
há que se verificar se a mudança de sexo permitiria o convívio tran- caso concreto. Para determinados núcleos familiares (entendemos
qüilo da criança com seu pai ou sua mãe. Se isso ocorrer, nada impe- que o pretendente deve não estar casado), a alteração de sexo pode
de que haja o direito de visita do pai ou mãe operado. Caso, no en- *)
não produzir efeitos tão danosos e traumatizantes. Nessa hipótese, o
tanto, haja qualquer suspeita de que a mudança de sexo do pai ou da /
direito à identidade sexual deveria prevalecer.
mãe venha a causar transtornos para a criança, as visitas e o contato /
A regra, portanto, dependeria do caso específico, dentro do pro-
poderão ser restringidos por ordem judicial. ___ -—^
jeto pessoal familiar da pessoa que pretende a mudança de sexo. O
A jurisprudência norte-americana descreve' o caso de um
fato de ter sido casado e de ter filhos não pode constituir obstáculo,
transexual homem-mulher que, enquanto se preparava para a opera-
por si, ao direito de felicidade do transexual. Trata-se de fatores que
ção de redesignação de sexo, tratou de conversar com sua filha me-
dificultarão sua nova realidade (especialmente diante da existência
nor, explicando-lhe sua situação, sem avisar sua ex-esposa, de quem
de filhos menores). No entanto, a regra não pode ser proibitiva, de-
estava já divorciado. A esposa e a sogra do candidato à operação
vendo ser analisada dentro do contexto da realidade, com apoio psi-
ingressaram na justiça e obtiveram uma ordem de proibição de visi-
cológico para os filhos. Caso não houvesse prejuízos para estes, se
tas, sob o fundamento de que a situação estaria perturbando a inte-
menores, a cirurgia poderia ser autorizada.
gridade psicológica da criança105. Comentando o julgado, afirma
Leonard que não se pode tomar a decisão como um paradigma para a
aplicação do direito de visita do transexual em relação a seus filhos.
O autor deixa claro que, no caso, houve um trauma comprovado para
11. Visão renovada de um problema antigo: a tolerância
a criança, e, por essa situação, a Corte entendeu de proibir o contato
entre ela e o pai. O trauma não ficou consignado, no julgamento,
Antes do encerramento do trabalho, deve-se destacar que a ques-
como decorrência obrigatória da operação de mudança de sexo 106.
tão do transexual fere um problema suscitado no início do trabalho:
Sessarego, abordando a questão dos filhos menores e dos côn-
a tolerância.
juges, afirma que a legislação sueca e a alemã proíbem a opera-
Quando se fala em autorizar a cirurgia de redesignação de sexo,
ção de redesignação de sexo para quem é casado. Apenas os sol-
diante de um trauma e uma situação psicológica irreversível, com-
teiros, portanto, poderiam submeter-se a ela. O fundamento da
provada por toda a doutrina médica e psiquiátrica, não se pode dei-
proibição de mudança de sexo de casados residiria no fato de que
xar de conceder tal autorização. Como decorrência lógica e natural

105. Cf. Leonard, Sexuality and the law, cit., p. 342-4.


106. Cf. Leonard, Sexuality and the law, cit., p. 342. 107. Cf. Sessarego, Derecho a la identidad personal, cit., p. 370-1.

144 81
da cirurgia (que já é autorizada pelo sistema brasileiro, com o reco- terceiros e eventuais prejudicados com o casamento. De resto, ape-
nhecimento do próprio Conselho Federal de Medicina), surge o di- nas a afirmativa de que o sexo biológico deveria prevalecer sobre o
reito à alteração do registro civil. E esta não pode ser deferida para psicológico. Como vimos, o sexo biológico cede terreno para o
nele constar "transexual". Em primeiro lugar, porque não existe o hormonal, por exemplo, nas competições esportivas. Pouco importa,
sexo "transexual". O sexo ou é masculino ou é feminino. A inserção biologicamcnte falando, no caso dos esportes, seja o competidor ho-
da categoria "transexual" fere o direito à integridade da pessoa, es- mem ou mulher. O importante é a quantidade de hormônios que pos-
tigmatiza-lhe a existência e a discrimina. Se o objetivo da operação sui. Se tiver característicos masculinos, será considerado homem,
de redesignação de sexo era a unicidade entre o sexo psicológico e o não importando qual seja seu sexo biológico.
biológico, a identificação de seu estado de transexualidade, nos do- Dessa maneira, a sociedade, a partir da noção de tolerância, deve /
cumentos, em nada colabora para a solução da questão. deixar de se preocupar com reflexos que pouco importam nas relações'
A cirurgia é necessária, portanto, para o transexual (desde que a J privadas. Se alguém quer transformar-se em mulher ou em homem, f
queira), como forma de buscar a própria felicidade. A retificação de j diante de uma situação de transexualidade determinada por profissio-1
seu assentamento no registro civil é decorrência lógica e natural do \ nais especializados, de forma irreversível, não há qualquer problema,
deferimento da cirurgia. — se tal operação se funda na busca da felicidade do indivíduo.
A identidade do transexual passa a ser a de seu novo sexo. Não O que não se pode entender são os obstáculos gratuitos. Dentre
se pode falar na manutenção de qualquer vínculo anterior (salvo, eles, a idéia de que o sexo biológico não foi mudado internamente;
como já visto, nos registros de paternidade dos filhos, caso os tenha, que poderia haver prejuízos para terceiros; que o casamento só pode-
ou na hipótese de dívidas, processos em andamento, questões que ria ser feito entre pessoas de sexos opostos. Ora, no fundo, a inter-
serão resolvidas quando do assentamento do novo nome e sexo do pretação está lastreada em forte concepção moral, impedindo, na re-
requerente). alidade, a busca da felicidade do indivíduo. Entre os valores protegi-
Quanto ao casamento, não vemos óbice em se tratando do dos para a integração do transexual, sua condição de novo sexo, seu
transexual. Assumido seu sexo psicológico, acomodado pela operação ) registro civil, sua integração social, inclusive com a possibilidade de
de redesignação de sexo, o transexual que pretende casar-se tem direito ) casamento e os argumentos contrários, como os já acima anuncia-
a uma nova vida, a uma nova realidade. Caso haja alegação de que hou- \ dos, não há dúvida de que a sociedade democrática deve optar pela
ve prejuízo de terceiros, com eventual erro essencial sobre a pessoa do/' felicidade do transexual, como forma de integração social e como
cônjuge, o processo de anulação será sempre possível, como visto. forma de obter a efetividade dos comandos constitucionais previstos
Ao assumir tal posição, devemos entender a problemática do nosarts. I2, III, e 32, IV. -. . :
transexual de forma tolerante, despida de preconceitos morais, Buscar a dignidade da pessoa humana e promover o bem de
visualizando o tema como uma questão de dignidade da pessoa humana. todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer ,
O centro da discussão, portanto, deixa de ser um conceito gené- outras formas de discriminação, significa permitir que o indivíduo
rico de proteção de direitos da coletividade (que, em linhas gerais, busque a sua própria felicidade, dentro dos valores que representam
formam o argumento daqueles que tentam obstruir o direito à para ele essa felicidade, desde que tais objetivos não se choquem
integração social do transexual) para se ocupar do indivíduo enquan- com os objetivos sociais. No caso, os objetivos convivem perfeita-
to ser humano. mente com a sociedade como um todo, sem molestá-la. E preciso, no
Não há um interesse genérico da sociedade em impedir a entanto, que elá, sociedade, veja a questão sob a ótica da tolerância,
integração do transexual. Esse interesse poderia estar presente em princípio básico de convívio do Estado Democrático.

82 147
As lições de Pelayo merecem ser citadas; demonstram que a "O direito, não podemos perdê-lo de vista, tem um primário
Constituição deve acompanhar o sentido das mudanças sociais, re- sentido libertador da pessoa. Quer dizer, que está destinado a assegu-
cebendo a adaptação do Estado e dos dados culturais, de maneira rar a cada ser humano, fundado em sua própria dignidade, sua reali-
que refletirá a vontade de seu povo, deixando de cristalizar interes- zação pessoal. O direito, ao regular condutas humanas intersubjetivas,
ses e pensamentos: segundo valores, deve outorgar a cada sujeito, dentro do respeito ao
"a) En primer lugar, en el hecho de que la constitución no sea direito alheio e endereçado ao bem comum, a possibilidade de esco-
una normatividad abstracta, sino la estructura normativa concreta de lher, enquanto ser livre, seu projeto de vida. O direito, criado pelo
un Estado, es decir, de una individualidad histórica que existe en homem, é, assim, um instrumento de sua liberação permanente, uma
cuanto que perpetuamente se renueva, estructura normativa que for- continuada possibilidade de encontrar sua própria identidade, de ser
ma parte integrante de la existência dei Estado y que emerge de esta de acordo com a sua livre escolha"109.
existência. Por consiguiente, la constitución há de participar de esse O direito e sua interpretação não podem, como visto, impedir a
devenir, que es esencial a la vida dei Estado. felicidade de quem o criou: o homem, transexual ou não.
b) En segundo lugar, en una circunstancia fuertemente vin- Fechamos o trabalho retomando seu ponto inicial: a tolerância.
culada a este caracter individual de la constitución y que hemos Tudo o que se falou teve como finalidade demonstrar que existem
destacado anteriormente, a saber: la relación condicionadora y sentidos variados de felicidade e que, para muitos, esta pode ser re-
condicionante de la constitución con Ias restantes estructuras dei presentada por uma tentativa de integração social. Nesse momento,
Estado y de la sociedad. Mas si estas estructuras sociales, o intérprete deve estar preparado para aplicar a Constituição sob a
econômicas, políticas, jurídicas, eStán sujetas a movilidad, es claro ótica da tolerância, entendendo aprincipiologia que determina a busca
que esta movilidad há de proyectarse también sobre la estructura da felicidade e fornecendo vetor inequívoco para o aplicador do di-
constitucional. reito no sentido de facilitar a integração social dos transexuais, como
Toda constitución, rígida o flexible, supone un intento de forma de assegurar sua condição de seres humanos e cidadãos.
solución al aspecto jurídico-político de la existência estatal, solución
que se toma de acuerdo con unos datos dei problema (situación de
poderes sociales, estructura econômica, estado cultural, etc); mas
cuando estos datos cambian, es claro que si la constitución quiere
seguir resolviendo el problema de la convivência há de cambiar, con
reforma o sin reforma formal, el sentido de sus preceptos" 108.
É preciso entender que, nos últimos momentos do século XX,
quando já estamos diante de modificações sensíveis nas ciências, a
questão das dificuldades de integração do transexual à sociedade re-
flete uma âncora moral de difícil remoção.
Lembremos as palavras de Sessarego:

108. Manuel García-Pelayo, Derecho constitucional comparado, Madrid,


Alianza Univcrsidad Textos, 1993, p. 132. 109. Derecho a la identidad personal, cit., p. 338, tradução nossa.

83 149
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação".
9. Com base nos princípios constitucionais, o transexual tem
direito à cirurgia de redesignação sexual, como decorrência de seu
direito à saúde e à integridade física e moral.
10. A jurisprudência tem, no entanto, salvo em raras oportuni- BIBLIOGRAFIA
dades, negado a alteração do registro civil do transexual operado.
11. Projeto de lei que tramita perante o Congresso Nacional
autoriza a cirurgia de redesignação de sexo, mas determina que o ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre
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fundando-se sempre na possibilidade de prejuízos de terceiros, ou de 1988 e o acesso à justiça. Revista do Advogado, n. 5-22, AASP.
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