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Direitos

Humanos
proteção e promoção

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Daniela Bucci
José Blanes Sala
José Ribeiro de Campos
coordenadores

Direitos
Humanos
proteção e promoção

2012

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ISBN 978-85-02-13044-9

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(coords.). – São Paulo : Saraiva, 2012.
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Sumário

7 Prefácio
9 Apresentação
15 Religião e tolerância em face das minorias religiosas:
temas antigos com problemáticas atuais
Antonio Celso Baeta Minhoto

56 Direitos humanos e direitos fundamentais: realidade e


herança da humanidade
Cristiane Vieira de Mello e Silva

85 O sistema interamericano de proteção dos direitos


humanos: considerações sobre o acesso, eficácia e
cumprimento das decisões no Brasil da Corte
Interamericana de Direitos Humanos
Daniela Bucci

105 O direito à felicidade na terceira idade


Eliane HilArio da Silva Martinoff

121 Princípios constitucionais inseridos no art. 5º


da CF/88
Emerson Toro de Abreu

143 Os direitos do deficiente físico e a tecnologia assistiva na


norma internacional e na norma nacional
José Blanes Sala

162 Ações afirmativas e os direitos humanos


José FAbio Rodrigues Maciel

181 História política e direitos humanos: perspectivas para


uma antropologia do Estado
José Luís Solazzi

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198 O Ministério Público do Trabalho na defesa dos direitos
fundamentais trabalhistas
José Ribeiro de Campos

209 Direitos humanos e a dignidade da pessoa com


deficiência
Juliana do Val Ribeiro e Lauro Luiz Gomes Ribeiro

223 Convenção da OIT n. 182 sobre as piores formas de trabalho


infantil: um estudo comparado entre o Brasil e a Itália
Ligia Ramia Muneratti

242 Violência e veículos de comunicação: discussões acerca


da manutenção da dignidade da pessoa humana
Lúcia Helena Polleti Bettini

255 Avanços e dilemas dos direitos humanos no mundo


contemporâneo
Luís Antônio Francisco de Souza

285 Devido processo legal: um exemplo notório de violação


dos direitos humanos
Robinson Henriques Alves

311 A proteção ao meio ambiente e o processo de afirmação


dos direitos humanos no estado de direito ambiental
Robinson NicÁcio de Miranda

323 O direito à vida e o princípio da dignidade humana


Rosana Marçon da Costa Andrade

340 Os direitos humanos e a consecução do conceito de


humanidade
Ruben Cesar Keinert

348 Democracia, direitos humanos e gênero: da política


educacional ao cotidiano das escolas paulistas
Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo

367 Os direitos humanos e o direito penal do inimigo


Ulysses Monteiro Molitor

386 O crime de pedofilia e a tutela dos direitos fundamentais


de crianças e adolescentes
Vander Ferreira de Andrade

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Prefácio

Uma obra como a presente, sobre “direitos humanos: proteção e


promoção”, merece apreciação especial dentre as obras jurídicas, pois as
experiências do que transcorre nestes dias – que se tem denominado “o
mundo atual” – mostram bem a fragilidade e a precariedade desses di-
reitos ante a violência – sutil e encoberta, ou ostensiva e esmagadora –
que o caracteriza.
A luta pelos direitos humanos se desenvolve em variadas trincheiras
– o lar, onde se educa e orienta os jovens; a sala de aula, onde se pregam
as doutrinas do Direito e da Justiça; nas ruas, praças, enfim, em qual-
quer lugar onde um gesto, uma palavra, uma atitude possam expressar
a solidariedade e a opção pela sua defesa.
Nesta obra, cada um dos autores abriu sua própria trincheira de
pensamentos, de reflexões, para efetuar uma defesa formada de palavras
– acreditando na força das palavras – e isto se justifica inteiramente pela
permanência das obras que têm atravessado os séculos pela sua leitura,
ainda hoje provocando sentimentos de tristeza ou alegria, indignação
ou serenidade, consolação.
Os temas desenvolvidos abrangem áreas de interesses voltados para
o foco central dos direitos humanos, tendo como base a qualidade do
“humano”, o que Kant deixa presente na terceira formulação do impe-
rativo categórico, o ser humano e a sua humanidade como um fim em si
mesmo e nunca como um meio ou instrumento do que quer que seja.
Daí a importância e atualidade destes estudos, necessários e pró-
prios a formar uma muralha erguida de ideias, reflexões e convicções
para a defesa dos direitos do homem.
A redescoberta dos direitos humanos, diríamos assim, para expres-
sar esse movimento extraordinário da História do Direito, deu-se, como

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se sabe, a partir dos horrores das duas Guerras Mundiais ocorridas no
século XX, quando a qualidade do humano alcançou seus maiores desa-
fios e descrenças:
Na Apresentação em recente edição da obra de Bobbio, A era dos
direitos (Ed. Elsevier, 2004), Celso Lafer refere “o espírito do tempo”
para interpretar o presente em que o jusfilósofo “aponta, para a catástro-
fe atômica, a catástrofe ecológica e a catástrofe moral” – e como Bobbio
proclama, ao final, (p. 223):

A princípio, a enorme importância do tema dos direitos do homem


depende do fato de estar extremamente ligado aos dois problemas
fundamentais do nosso tempo, a democracia e a paz. O reconheci-
mento e a proteção dos direitos do homem são a base das constituições
democráticas e, ao mesmo tempo, a paz é o pressuposto necessário
para a proteção efetiva dos direitos do homem em cada Estado e no
sistema internacional.
(...) Hoje, estamos cada vez mais convencidos de que o ideal da paz perpé-
tua só pode ser perseguido através de uma democratização progressiva do
sistema internacional e que essa democra­tização não pode estar separada
da gradual e cada vez mais efetiva proteção dos direitos do homem acima de
cada um dos Estados (grifamos).

Direitos humanos: proteção e promoção: esta obra encontra-se nesse


caminho.

Maria Garcia
Livre-Docente pela PUCSP. Professora de Direito Constitucional, Direito
Educacional e Biodireito Constitucional na PUCSP.
Membro-fundadora e atual Diretora-Geral do Instituto Brasileiro de Direito
Constitucional (IBDC). Membro da Academia Paulista
de Letras Jurídicas (Cadeira Enrico T. Liebman).

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Apresentação

Muito se tem publicado em matéria de direitos humanos no Brasil


nos últimos cinco anos. A presente obra não quer incorrer no que se
costuma chamar – popularmente – de “chover no molhado”. Busca-se
uma abordagem minimamente nova que possa enriquecer o leitor.
Hoje a temática direitos humanos tornou-se extraordinariamente
ampla e caleidoscópica. Quer dizer, cada vez mais abrangente e necessi-
tando sempre de óticas diferentes para visualizá-la.
Por um lado, a ampliação dos direitos humanos fica patente com a
descrição do que se conhece hoje como “gerações” de direitos, atendendo
à ordem cronológica da sua teorização e reivindicação, bem como ao di-
ferente valor que os inspira. Os direitos civis e políticos constituem o que
se chamou “primeira geração”. Foram formulados pela escola do direito
natural racionalista dos séculos XVII e XVIII. A “segunda geração” enun-
cia os direitos sociais e econômicos a partir das críticas socialistas origina-
das no século XIX pela contradição entre a igualdade da lei e a extrema
desigualdade econômica do capitalismo. Sobre os direitos da terceira ge-
ração na há um acordo fechado ainda. Costuma-se dizer que são direitos
que reclamam a faculdade de desfrutar de um meio ambiente sadio, não
contaminado, a faculdade de viver em paz, sem guerras, as faculdades cole-
tivas das minorias étnicas, religiosas e linguísticas, bem como a faculdade
dos povos ao desenvolvimento. Por derradeiro, as transformações da socie-
dade da informação e da biotecnologia têm levado alguns teóricos a colocar
a necessidade de avançar em direção a uma quarta geração de direitos1.

1 PULEO, Alicia H. Los derechos humanos, un legado de la modernidad. In: Ciudad y


ciudadania: senderos contemporâneos de la filosofía política. Madrid: Trotta, 2008, p. 186.

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Neste sentido, a presente obra oferece um leque amplo de temáticas
das diversas gerações, que podem ser agrupadas de diversas formas.
Por outro lado, são necessários vários pontos de vista para com­
preender em toda a sua plenitude os direitos humanos. Isto porque, as-
sim como em outros campos novos da ciência jurídica, constata-se a
transversalidade de temáticas e de disciplinas ao analisar os diversos
conteúdos. A transversalidade de temáticas e disciplinas traz consigo a
multidisciplinaridade ou transdisciplinaridade, como preferem outros.
Uma das revoluções conceituais deste século veio da ciência. Em parti-
cular, a física quântica fez explodir a antiga visão da realidade, com os
seus conceitos clássicos de continuidade, de localidade e de determinis-
mo que, no entanto, predominam ainda de modo bastante difundido
no pensamento político e econômico. Ela fez nascer uma nova lógica,
isomorfa em muitos aspectos, antigas lógicas esquecidas. Um diálogo
capital entre ciência e tradição pode, a partir de então, se estabelecer de
modo cada vez mais rigoroso e aprofundado para construir uma nova
abordagem científica e cultural – a transdisciplinaridade. A transdisci-
plinaridade não procura construir um sincretismo qualquer entre ciên-
cia e tradição: a metodologia da ciência moderna é radicalmente dife-
rente das práticas das tradições. A transdisciplinaridade procura pontos
de vista de onde se possa torná-las interativas, assim como espaços de
pensamento que façam ressaltar a sua unidade ao mesmo tempo que
respeitam as suas diferenças, mais particularmente graças a uma concep-
ção renovada de natureza2. Especialmente para o estudo dos direitos da
pessoa humana é fundamental a referida abordagem.
Neste sentido, a presente obra acumula pontos de vista bastante
diferentes, oriundos das diversas formações dos autores de cada artigo.
Embora na sua maioria sejam juristas, alguns deles com passagem por
áreas como relações internacionais ou história, há também pedagogos,
sociólogos, cientistas políticos e antropólogos.
Além disso, não fosse somente a amplidão e a transversalidade, o
título da obra ressalta outros aspectos importantes da singularidade dos

2 Excerto do Comunicado final do Congresso Ciência e Tradição: perspectivas trans-


disciplinares, aberturas para o século XXI (Paris, UNESCO, 2 a 6-12-1991).

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trabalhos: proteção e promoção. São duas realidades diferentes, que, con-
forme o foco de cada colaboração, podemos identificar de forma isolada
ou combinada, em maior ou menor grau. De fato, os direitos humanos
procuram constantemente transcender o seu mero enunciado, para in-
gressar no campo fático, seja de forma promocional ou protetiva.
De forma claramente protetiva se posicionam alguns trabalhos apre-
sentados, podendo eles ser agrupados tematicamente em subgrupos.
É o caso do advogado José Ribeiro de Campos e da sua colega,
também formada em Relações Internacionais, Lígia Ramia Muneratti,
os quais abordam o mundo do trabalho e o correspondente direito so-
cial. O primeiro analisa as atividades do Ministério Público do Trabalho
na defesa dos direitos fundamentais trabalhistas, e a segunda se detém na
corajosa análise da Convenção da OIT n. 182 sobre as piores formas de
trabalho infantil, comparando o Brasil e a Itália.
Noutro subgrupo protetivo podemos situar os trabalhos dos advo-
gados Ulysses Monteiro Molitor, Emerson Toro de Abreu, Vander Fer-
reira de Andrade e Daniela Bucci. Todos eles procuram detalhar, seja
mediante o estudo da tipificação criminal, seja mediante a análise das
condições dos processos e procedimentos institucionalizados, a prote-
ção dos direitos humanos mais essenciais à vida digna do ser humano.
Nesta linha cabe destacar também a seriedade do trabalho denunciató-
rio do jurista e historiador Robinson Henriques Alves que no seu texto
Devido processo legal: um exemplo notório de violação dos direitos humanos
denuncia os recentes abusos cometidos pelo governo dos Estados Uni-
dos em Guantânamo. Já no caso do professor Vander Ferreira de Andra-
de a análise centra-se num tema de grande atualidade, o crime de pedo-
filia e a tutela dos direitos fundamentais da criança e do adolescente. Em
instigante estudo, o advogado Emerson Toro de Abreu procura detalhar
quais são os critérios determinantes para considerar ilícita a prova em
face dos princípios constitucionais inseridos no art. 5º da vigente Constitui-
ção Federal. Num sentido aparentemente oposto, mas complementar, à
preocupação com a protetividade, o jurista Ulysses Monteiro Molitor
enfrenta o delicado tema do Direito penal do inimigo diante dos direitos
humanos. Trata-se de assunto polêmico, que surge como reação ao que
alguns consideram um exagero na proteção do indivíduo em detrimento

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da coletividade a fim de combater aqueles crimes mais graves. Final-
mente, devemos incluir neste subgrupo o excelente trabalho da filóso-
fa do Direito Daniela Bucci, que tece uma série de pertinentes consi-
derações sobre o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos.
Num terceiro subgrupo protetivo entendemos que se encontram
os trabalhos de outros três juristas, os quais focam o seu campo de
pesquisa em áreas que pertencem às últimas gerações de direitos hu-
manos. De um lado, o professor Robinson Nicácio de Miranda traba-
lha com grande perícia a proteção ao meio ambiente e o processo de afir-
mação dos direitos humanos no Estado de Direito Ambiental. De outro
lado, a advogada Rosana Marçon da Costa Andrade apresenta um in-
teressante trabalho sobre o direito à vida e o princípio da dignidade da
pessoa humana, o qual, numa leitura exclusiva do título, nos faria pen-
sar na primeira geração, mas a sua abordagem sobre o direito à vida
nos conduz ao esclarecimento de questões envolvendo transfusão de
sangue, embriões provenientes de reprodução assistida, feto anencefá-
lico, apontando a necessidade de intervenção estatal para que não se
exceda os limites do respeito à vida. E finalmente a professora Lúcia
Helena Polleti Bettini, cujo belo trabalho versa sobre violência e veícu-
los de comunicação, levantando discussões acerca da manutenção da dig-
nidade da pessoa humana no contexto da nova sociedade da comunica-
ção, sendo o seu objetivo principal saber quais são os limites à liberda-
de de informação jornalística.
Outro grande grupo de trabalhos é aquele destinado à ação promo-
cional dos direitos humanos. Ele deve ser iniciado pelo subgrupo mais
emblemático, o das duas prestigiosas pedagogas que colaboram com a
publicação desta obra. A conhecida professora Tânia Suely Antonelli
Marcelino Bravo nos oferece um excelente trabalho sobre democracia,
direitos humanos e gênero: da política educacional ao cotidiano das escolas
paulistas. Trata-se de um texto que merece virar referência na área de
educação pela sua profundidade e riqueza de experiências acumuladas.
Já a educadora Eliane Hilario da Silva Martinoff nos brinda com um
original trabalho intitulado O direito à felicidade na terceira idade. Esta
especialista em musicoterapia nos mostra com grande talento como é
fundamental que o idoso aprenda a respeitar a si mesmo com suas li-

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mitações, mas também com as muitas possibilidades que se lhe apresen-
tam de viver em sociedade.
A seguir, um novo subgrupo sobre a ação promocional é represen-
tado por um promotor de justiça, uma advogada e um professor de re-
lações internacionais, todos na área dos direitos da pessoa portadora de
deficiência. Lauro Luiz Gomes Ribeiro, membro do Ministério Público,
e a advogada Juliana do Val Ribeiro, escrevem sobre direitos humanos e a
pessoa com deficiência, do ponto de vista da luta denodada pela efetiva-
ção das conquistas legais. O professor José Blanes Sala descreve em seu
artigo a necessidade de promover o direito de acesso à tecnologia assistiva
como uma faculdade do deficiente, do ponto de vista tanto da norma inter-
nacional como nacional, enfatizando a necessidade de criação de políticas
públicas.
Ainda na esteira da promoção dos diretos humanos, três artigos de
um novo subgrupo. A visão do antropólogo José Luís Solazzi, ao descre-
ver a relação entre história política e direitos humanos, à procura de uma
nova perspectiva do Estado, uma visão antropológica. Já o jurista Antonio
Celso Baeta Minhoto também passa a navegar pelo fascinante mar da
antropologia, ainda mais para um homem do Direito, quando analisa
com grande percuciência a questão da religião e da tolerância em face das
minorias religiosas, redescobrindo temas antigos com problemáticas atuais.
E não podia deixar de estar presente um trabalho sobre a mais nova e
eficaz forma de promoção dos direitos humanos: as ações afirmativas,
temática analisada pelo advogado José Fabio Rodrigues Maciel.
Finalmente, para completar o panorama caleidoscópico da obra que
ora se apresenta para o leitor. Três trabalhos de cunho prioritariamente
teórico, sem pender nem para a análise da proteção nem da promoção,
mas necessários para ambas as vertentes: o primeiro, de um sociólogo,
Luís Antônio Francisco de Souza; o segundo, de um cientista político,
Ruben Cesar Keinert; e o terceiro, de uma jurista, Cristiane Vieira de
Mello e Silva. O sociólogo nos fala dos avanços e dilemas dos direitos
humanos no mundo contemporâneo, um texto primoroso que nos coloca de
forma completa no panorama da atualidade. O cientista político tam-
bém fala de avanço, especificamente dos direitos humanos e a consecução
da noção de humanidade, reflexão sobre um tema clássico, sob uma ótica

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inusitada. Por derradeiro, a jurista faz um competente repasso de toda a
matéria ao dissertar sobre direitos humanos e direitos fundamentais como
realidade e herança da humanidade.
Esperamos que o leitor possa desfrutar de uma leitura prazerosa se
informando de maneira abrangente e diferenciada, com as diversas vi-
sões oferecidas a respeito desta temática dos direitos da pessoa humana,
cada dia mais necessária e, ao que parece, cada dia menos suficiente.

José Blanes Sala


Mestre e Doutor pela Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo-USP.
Professor Adjunto no Curso de Políticas Públicas
da Universidade Federal do ABC-UFABC.

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Religião e tolerância em face das
minorias religiosas: temas antigos
com problemáticas atuais

Antonio Celso Baeta Minhoto

Doutorando em Direito Público pela Instituição Toledo de Ensino, Bauru – SP.


Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Professor Titular de Teoria Geral do Direito Público, Direito Constitucional e Teoria
Geral do Estado e Ciência Política na Universidade Municipal de São Caetano do Sul
– USCS. Advogado. Autor de obras jurídicas.

1 Introdução

No âmbito do direito, e das pesquisas realizadas dentro do universo


jurídico, cada vez mais o estudo de diversos temas demanda incursiona-
mento em outros campos de pesquisa. É a chamada interdisciplinarida-
de que, com relação ao presente estudo, mostra-se como algo mandató-
rio praticamente.
Isso não significa, contudo, afastamento por completo do campo
jurídico, para a elaboração de algo a ele estranho por completo, mas
apenas a adoção de uma abordagem conscientemente alargada, com vis-
tas a melhor analisar certos aspectos relevantes ou mesmo necessários ao
tema escolhido e acima indicado.
Ponto importante a ser destacado nesta introdução, e que certa-
mente chamará a atenção do leitor, é a tradição das temáticas objeto de
nossa pesquisa. Religião é assunto sabidamente vetusto, tratado e estu-
dado ao longo de praticamente toda a história humana.
Tolerância é igualmente tema tradicional, cuja relevância atraiu es-
tudiosos de peso ao longo de vasto período de tempo, indo, no mínimo,

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de Locke, já na Idade Moderna, chegando até Bobbio, de modo mais
contemporâneo.
Mas tanto a religião quanto a tolerância, e especialmente o inter-
cruzamento entre ambas, são questões das mais atuais, colocando
sempre desafios novos, notadamente quanto à harmonização entre tais
conjuntos de ideias ante uma sociedade cada vez mais multifacetada e
dinâmica.
O presente estudo ainda busca, como ponto adicional, trazer o
entendimento, no Brasil, do Supremo Tribunal Federal sobre a te-
mática, procurando exibir, assim, como a maior corte do país vem
interpretando as várias questões que circundam a religiosidade e as
minorias. Como também trazemos julgamentos da Espanha e dos
Estados Unidos, aquele num viés mais atual e este último numa
abordagem mais histórica, poderá o leitor traçar um quadro compa-
rativo entre as interpretações dos mais altos tribunais de cada um
destes países.
Por fim, destaquemos que o item mais contemporâneo aqui presen-
te, ao menos quanto ao seu trato, digamos, de modo mais positivado ou
formal, é o das minorias. Abordá-las ante os temas anteriores é o desafio
assumido, conquanto, por cautela e parcimônia, devamos alertar não se
tratar o presente estudo de um tratado exaustivo, mas, muito mais, a
busca de novas luzes sobre questões tão tradicionais.

2 Religião e religiosidade

O objetivo do presente trabalho passa longe de um tratadismo,


como já dissemos acima. O tema é extenso, desafiador e é, pelo pró-
prio meio escolhido para veiculá-lo, um estudo como o presente, exi-
gente de uma vital ponderação do autor na abordagem das diversas
questões que intercruzam a questão central, da religião, da tolerância
e das minorias.
Assim, sem pretender esgotar assunto algum, entendemos interes-
sante mencionar algumas ideias sobre o que seria religião ou sobre o
sentimento de religiosidade, de buscar uma conexão com o sagrado,
com o divino, algo importante, imagina-se, para situar questionamentos

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futuros e para podermos aprofundar de modo mais adequado alguns
aspectos aqui abordados.
Schleiermacher, de modo bastante resoluto, afirma ser religião “um
sentimento ou uma sensação de absoluta dependência”1, uma afirmação
que não parece ser inverídica, mas que, ao mesmo tempo, não se mostra
tão completa quanto seria um certo ideal neste campo. Imaginar o sen-
timento de religiosidade apenas e tão somente como uma manifestação
de dependência, de carência e até mesmo de subserviência, de fato soa
incompleto.
Desse modo e buscando essa completude, encontramos Glase-
napp com uma síntese mais ampla, talvez menos formal que a de
Schleiermacher, defendendo ser religião “a convicção de que existem
poderes transcendentes, pessoais ou impessoais, que atuam no mun-
do, e se expressa por insight, pensamento, sentimento, intenção e
ação”2.
A religião, de qualquer maneira, e seja qual for o modo ou forma de
sua manifestação, sempre busca ao menos dois elementos, quais sejam a
transcendência e a conexão (ou reconexão). A transcendência retira o
crente de sua condição humana comum, até mesmo inferior, e o alça a
algo pretensamente superior, elevado, livre das “impurezas” ou das fa-
lhas daquele que busca tal transcendência, o crente.
A conexão é consequência da transcendência. Uma vez elevado de
sua condição humana comum, o rito, o meio, a forma escolhida pelo
religioso, ou crente, visa estabelecer sua conexão com esta esfera supe-
rior, extramundo, com a qual quer manter contato e ligação.
É neste ponto, desta junção dos elementos acima dispostos, que
observamos o surgimento de um elemento importantíssimo na vivência
religiosa que vem a ser a noção do sagrado. Remontando a própria for-
mação morfológica do termo, Gaarder expõe que “sagrado indica algo
que é separado e consagrado; profano denota aquilo que está em frente

1 Apud GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das


religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 17.
2 Idem, ibidem.

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ou do lado de fora do templo”3, mas é Rudolf Otto quem, sobre tal
ideia, traz a observação mais interessante:

O sagrado é aquilo que é totalmente diferente de tudo o mais e que,


portanto, não pode ser descrito em termos comuns (...). É uma força
que por um lado engendra um sentimento de grande espanto, quase de
temor, mas por outro lado tem um poder de atração ao qual é difícil
resistir4.

Por fim, encerrando este nosso breve tópico, comentamos um últi-


mo termo que frequentemente é associado à religião, que vem a ser a
magia. Nem todas as religiões se valem de tal ideia para expressar suas
próprias concepções sobre o sagrado e a busca de conexão com este as-
pecto, mas é, de todo modo, um termo presente neste campo de ideias
e deve ser levado em conta.
Mas, como podemos ver na arguta citação de Gaarder, magia é algo
diverso de religião e pode até mesmo se colocar, dependendo do contex-
to, como algo contrário à religião, especialmente se concebida de um
modo mais ortodoxo ou tradicional:

Magia é uma tentativa de controlar os poderes e as forças que operam na


natureza. Costuma-se encontrar a magia em contextos religiosos, e é difícil
traçar uma linha divisória nítida entre a religião e a magia, entre uma reza e
um encantamento. A distinção que mais sobressai é o fato de, na religião,
o indivíduo se sentir totalmente dependente do poder divino. Ele pode
fazer sacrifícios aos deuses ou se voltar para eles em oração; porém, em
última análise, deve aceitar a vontade divina.

Gaarder arremata a exposição acima, dizendo:

Quando, por outro lado, o ser humano se vale dos ritos mágicos, ele está
tentando coagir as forças e potências a obedecer à sua ordem – que com
frequência consiste em atingir finalidades bem concretas. Desde que os
rituais mágicos sejam realizados corretamente, o mago acredita que os

3 Op. cit., p. 19.


4 Apud GAARDER et al., op. cit., p. 18.

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resultados desejados decerto ocorrerão, por uma questão de lógica. Se ele
falhar, irá culpar um erro em seu ritual, ou o uso de um feitiço mais forte
contra si5.

Sem dúvida, a distinção pode se revelar tormentosa, porque am-


bos os sentimentos, religião e magia, buscam uma conexão transcen-
dental que os une de modo bastante próximo. Agregue-se a isso, ain-
da, a conexão a um espaço comum, um solo ancestral em que rituais
são executados de modo regular e de geração em geração. Além disso,
há o pertencimento de um indivíduo a um grupo que reparte, convive
e participa das mesmas concepções do sagrado, do divino e do mágico,
e teremos, assim, ainda uma terceira situação em que todos esses ele-
mentos se entrecruzam.
No sentido acima apontado, Louth nos relata que “os cantos dos
Germanos, seus costumes e seus deuses, tanto nos fiordes como às mar-
gens do Reno, estão marcados por uma intuição primordial: a grandeza
do homem está em realizar o seu destino no seio do seu clã”6, e Granet,
mencionando a questão do espaço físico, do solo tido por sagrado por
aquela comunidade, afirma que, na China antiga,

nos Lugares-Santos realizavam-se grandes festas que eram também fei-


ras: ali se comunicava com o solo natal; convidavam-se os antepassados
a vir se reencarnar. (...) a cidade nobre é santa; ela contém um mercado,
um altar do Solo, um templo de Ancestrais. A cidade do fundador de
uma dinastia senhorial traz o título de Tsong. Emprega-se, também, esta
palavra para designar os grupos de pessoas unidas pelo culto de um
mesmo ancestral7.

Feitas estas breves considerações sobre a religião e algumas


ideias importantes a ela relacionadas, prossigamos nosso estudo de
modo mais focado nos temas que compõem o objeto central de
nossa análise.

5 Op. cit., p. 25.


6 A civilização dos germanos e dos vikings. Rio de Janeiro: Otto Pierre, 1979, p. 304.
7 A civilização chinesa. Rio de Janeiro: Otto Pierre, 1979, p. 11.

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3 Conceito de minoria8

Filosoficamente, a busca de uma definição é sempre uma empreita-


da mais complexa, eis que, em si mesmo, definir exige colocar limites
mais rígidos no objeto sob análise, ou seja, colocar fins no sentido de lhe
delimitar a existência.
Já conceituar permite uma visão mais pessoal, ainda que se valendo
de aspectos técnicos razoavelmente firmes de informação, tornando a sen-
tença final algo mais plástico, menos rígido e fechado do que uma defini-
ção, sem, contudo, perder seu sentido e utilidade maior que é justamente
o de nortear o pesquisador no manejo dos elementos de seu estudo, con-
ferindo-lhe as principais características do objeto examinado.
Objetivamente, nota-se que o termo minoria não vem sendo tra-
tado de modo propriamente científico pela doutrina existente. Ob-
servam-se algumas pontuações, quase rascunhos direcionados à bus-
ca de uma espécie de apreensão dos itens mais marcantes da ideia em
questão.
Da análise geral dessas disposições doutrinárias postas de modo
mais esparso, chegamos a uma conclusão que, muito embora não possa
ser tomada de modo finalístico, parece indicar um caminho bastante
natural, qual seja o de que o termo em foco é efetivamente polissêmico
e de apreensão conceitual tormentosa, fruto, especialmente, de sua apli-
cação e mesmo natureza extremamente variada em face dos diversos
grupos classificados como minoritários.
De todo modo, de um ponto de vista didático e levando-se em
conta o contraponto acima exposto, podemos dizer que um grupo mi-
noritário apresenta as características a seguir especificadas:

8 Muitas das ideias e dos conceitos expostos neste item foram fruto de intenso debate
no programa de doutorado da Instituição Toledo de Ensino, de Bauru-SP, do qual foi o
autor integrante como aluno até dezembro de 2010, tendo tomado parte em tal debate
Fábio Alexandre Coelho, Cleber Sanfelice Otero e Antonio Borges de Figueiredo, tam-
bém alunos do programa em foco, além do professor Vidal Serrano Nunes Junior, em
cujas aulas se pôde desenvolver a troca de ideias aqui referenciada. A mesma exposição de
ideias consta em outro artigo nosso, já publicado: O federalismo brasileiro e a questão
das competências constitucionais relativas à acessibilidade e inclusão social do portador
de deficiência, Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, 2008, p. 21-35.

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3.1 Incapacidade de autoproteção

As minorias se mostram incapazes, no mais das vezes, ao menos de


se protegerem e de protegerem seus interesses de modo independente
ou autônomo.

3.2 Demandantes de especial proteção estatal

Justamente em decorrência de uma reconhecida e notória incapacidade


de articulação e autonomia na busca de defesa de seus interesses, os inte-
grantes das minorias demandam especial atenção do Estado, manifestada
por meio de mecanismos, de instrumentos, de estruturas cujo escopo final
seja oferecer aos integrantes destas minorias, tal como aqui exposto, as mes-
mas oportunidades oferecidas aos não integrantes destes grupos.

3.3 Vulnerabilidade social

Por diversas e variadas razões, ou por vezes em decorrência de pou-


cos motivos, o integrante de uma minoria encontra-se em situação de
vulnerabilidade social. O que seria, por sua vez, vulnerabilidade social?
Em arguta observação, Muniz Sodré nos informa ser a vulnerabilidade
social caracterizada pelo fato de o grupo minoritário “não ser institucio-
nalizado pelas regras do ordenamento jurídico-social vigente”. Prosse-
gue o mesmo autor:

Por isso, pode ser considerado “vulnerável”, diante da legitimidade institu-


cional e diante das políticas públicas. Donde sua luta por uma voz, isto é,
pelo reconhecimento societário de seu discurso9.

3.4 Distanciamento do padrão hegemônico

Esta outra característica das minorias tem a peculiariedade de gerar


efeitos deletérios aos integrantes das minorias, ainda que estes nenhum

9 Por um conceito de Minoria. In: PAIVA, Raquel; BARBALHO, Alexandre (orgs.).


Comunicação e cultura das minorias. São Paulo: Paulus, 2005, p. 11.

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tipo de ação tomem com relação a si mesmos ante tal padrão. É uma
ação involuntária com relação a tais indivíduos e atuante de modo “au-
tomático” por parte da sociedade majoritária, ou seja, a sociedade como
um todo, excluídas as minorias.
Estar fora de certo padrão (social, comportamental, moral, estético,
econômico, psicológico) é, em si, algo excludente para integrantes des-
tes grupos minoritários e este é pelo menos um dos motivos ou uma das
razões que os torna passíveis de usufruir de proteção especial, bem como
os torna incapazes de suportarem ou gerirem sua própria proteção so-
cial, como já consignamos neste estudo.

3.5 Opressão social

Cujos graus serão variáveis e diferenciados em face de cada grupo


minoritário, bem como em face de diversas variáveis, muitas delas alta-
mente subjetivas e prenhes de aspectos mutáveis, o que torna sua pró-
pria dinâmica movediça e frequentemente imprevisível.
Assim, nos limites do presente estudo e para os fins de discussão
aqui propostos, podemos ofertar um conceito de minoria cujo sentido
de existência é nortear uma ampliação do estudo desta temática e pro-
porcionar, se possível, uma visão cientificamente aceitável, abrangente o
suficiente e útil para uma reflexão dentro deste escopo analítico.
Destarte, minoria é um segmento social, cultural ou econômico
vulnerável, incapaz de gerir e articular sua própria proteção e a proteção
de seus interesses, objeto de pré-conceituações e pré-qualificações de
cunho moral em decorrência de seu distanciamento do padrão social e
cultural hegemônico, vitimados de algum modo e em graus variados de
opressão social e, por tudo isso, demandantes de especial proteção por
parte do Estado.
Convém mencionar, sem embargo do conceito acima, que a Orga-
nização das Nações Unidas – ONU, por meio de Resolução, ainda no
ano de 1954, buscou conceituar o termo minoria e o fez afirmando ser
“aqueles grupos não dominantes dentro de uma população, que pos-
suem e desejam preservar tradições ou características étnicas, religiosas
ou linguísticas marcadamente diferentes do resto da população”.

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Vemos que a ideia expressa pelo conceito acima é ao mesmo tempo
diversa e mais contida no número de elementos que a compõem e, ain-
da, foi confeccionada na década de 1950 do século passado, momento
histórico em que o tema das minorias não exibia os contornos atuais,
mais extremados em sua colocação.
Levando-se, porém, em conta ser referido conceito originário de
um organismo supraestatal tão tradicional e referencial como é o caso da
ONU, pensamos ser sua presença neste estudo de importância no míni-
mo histórica.

4 Minoria Religiosa

Convém fazer aqui, neste ponto, breve digressão histórica, a fim de


melhor situar o tema deste tópico, eis que não se observa um surgimen-
to concomitante de liberdade religiosa e proteção às minorias religiosas,
como se poderia supor, mesmo no âmbito do constitucionalismo e da
proteção estatal ofertada à sociedade no bojo do ideário típico das revo-
luções do final do século XVIII.
Desde o início da Idade Média, pretendia a Igreja a junção do poder
transcendental ou divino com o poder secular, justificando tal entendi-
mento justamente na simples existência do primeiro e de sua alegada
preeminência sobre aquele outro. Nesse sentido, sempre quis a Igreja o
poder terreno e sempre lutou para tê-lo e mantê-lo10, chegando a, tempos

10 As passagens e os acontecimentos envolvendo a Igreja como entidade que chamou


para si de modo exclusivo a titularidade do poder terreno ou secular, especialmente na
baixa Idade Média, são notórios. Os Papas, àquele tempo, defendiam tal postura de
modo expresso: “Como representante de Cristo, la cabeza terrenal de la Iglesia es el titu-
lar de lo que en su origen es un principado unitario sobre la comunidad de los mortales,
él es su sacerdote e su rey, su monarca espiritual y temporal, su supremo legislador y juez
en todos los ámbitos” (Gregório VII, lib. I, ep. 1075, sendo que a mesma ideia foi defen-
dida também pelo Papa Inocêncio III, c. 34, X 1, c. 6, X 1, 3333; c. 13, X 2, 1). Digna
de nota é a observação de que havia efetivamente, também, uma doutrina bastante forte
fora da Igreja que apoiava sua pretensão de acumulação de poder religioso-poder terreno,
os chamados canonistas ou decretalistas. Apenas para citar alguns, podemos destacar
Ptolomeu de Lucca, Egydio Romano, Agustín Trionfo, Pedro de Andlo e Álvaro Pelayo.
Na verdade, não só os Papas, mas os doutrinadores que lhe faziam eco, baseavam-se,
entre outros textos, no próprio evangelho: “Todo reino dividido contra si mesmo acaba

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depois, quando pressionada sobre o exercício, por vezes arbitrário, deste
mesmo poder terreno que efetivamente exercia, lançar mão de preceitos
religiosos no âmbito da esfera política, tais como as afamadas excomu-
nhões que alguns governantes divergentes experimentaram11.
Bem por isso, Jonatas Eduardo Mendes Machado12 nos lembra
que a proteção estatal à liberdade religiosa surgiu numa dinâmica os-
cilante e de disputa entre o poder eclesiástico e o poder político terre-
no, e pouco se assemelhava com a ideia de proteção a este instituto tal
como concebido no seio do constitucionalismo, tempos depois, o que

em ruína e nenhuma cidade ou casa dividida contra si mesma poderá subsistir” (Mt, 12,
25). Egydio Romano, nesse aspecto e como exemplo de defesa da Igreja fora de seu seio,
assevera que “o poder terreno e temporal, como é terreno, como recebe os frutos da
Terra, e como é temporal, como tem os bens temporais, é tributário e censuário do poder
eclesiástico, reconhecendo a este no lugar de Deus, e em reconhecimento da própria
servidão deve apresentar-lhe os dízimos”. Todas as citações desta nota foram retiradas de
GIERKE, Otto von. Teorías políticas de la Edad Media. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1995, p. 78-83.
11 A excomunhão do Rei Henrique IV pelo Papa Gregório VII é bastante ilustrativa.
Vejamos trecho emblemático do édito de excomunhão: “A mim como teu representante
me foi especialmente confiado a mim pela tua graça foi dado por Deus o poder de ligar
e desligar no Céu e na Terra. Apoiando-me pois nesta crença para a honra e defesa da tua
Igreja e em nome de Deus Todo-Poderoso, o Pai, o Filho e o Espírito, por intermédio do
teu poder e autoridade, retiro o governo de todo reino dos germanos e da Itália ao rei
Henrique filho do Imperador Henrique, porque ele ergueu-se contra a tua Igreja com
uma inaudita soberba. E liberto os cristãos do juramento de fidelidade que lhe tiverem
feito ou vierem a fazer, e proíbo a quem quer que seja de o servir como rei, porque é
justo que aquele que procura diminuir a honra da tua Igreja perca a honra que deveria
ter”. A resposta de Henrique não tardou. Veio em 27 de março de 1076 e, dentre outras
afirmações, asseverou o seguinte: “(...) tu pensaste que a nossa humildade era fruto de
temor, daí não receaste em te insurgir contra este poder que nos foi concedido por Deus,
tendo ousado ameaçar que dele nos despojaria como se tivéssemos recebido o reino de ti,
como se na tua mão e não na mão de Deus estivesse o reino ou império. Jesus Cristo,
nosso senhor, nos chamou para o reino, mas não te chamou para o sacerdócio”. O Rei
excomungado ainda tentou, auxiliado por alguns bispos católicos descontentes, criar
uma espécie de antipapa, situação que, inclusive, gerou a chamada Querela das Investidu-
ras, que só foi posta a termo com a Concordata de Worms, em 1122, sendo ali estabele-
cido que os bispos seriam escolhidos pelo clero e o imperador teria o direito de decidir as
eleições que fossem contestadas. Todas as citações desta nota foram retiradas de BAR-
ROS, Alberto Ribeiro. Direito e poder em Jean Bodin: o conceito de soberania na forma-
ção do estado moderno. São Paulo: EDUSP, 1999, p. 150.
12 O regime concordatário entre a “libertas ecclesiae” e a liberdade religiosa. Coimbra:
Coimbra Ed., 1993, p. 7.

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não afastou os conflitos de outrora, mas acomodou-os na forma de pac-
tos, tratados e concordatas, especialmente entre os soberanos ou gover-
nantes e o Papa.
Esses acordos de boa convivência, contudo, jamais conceberam a
inclusão protetiva da tutela estatal em prol de qualquer grupo religioso
minoritário. A liberdade religiosa, objetivamente, focava-se na fé católi-
ca e na chamada fé cristã reformada, advinda dos movimentos religiosos
surgidos no próprio seio da Igreja Católica, especialmente a partir do
século XVI com Lutero e Calvino.
Àquela época, a proteção efetiva do Estado voltava-se a tais
grupos e tão somente a eles. Mais do que isso, essa proteção inicial-
mente até se fundou em razões subjetivas ligadas a concepções es-
piritualistas de harmonia entre crentes de uma mesma árvore reli-
giosa – a exemplo do filósofo Erasmo –, mas, em pouco tempo essa
boa convivência baseou-se, como ensina Henry Kamen 13, em ra-
zões eminentemente práticas e ligadas, elementarmente, ao comér-
cio e à economia.
Desse modo, a ideia de proteção a minorias vai surgir bem mais à
frente com relação ao momento histórico ora destacado, especialmente
com a revalorização do ideal democrático observado, basicamente, do
final da Segunda Guerra Mundial até os tempos presentes, daí por que
se fez o contraponto, logo no introito deste tópico, quanto à relativiza-
ção do constitucionalismo tradicional e setecentista como instrumento
de contemplação ou de trato de tais proteções estatais.

13 Nacimiento y desarrollo de la tolerancia en la Europa moderna. Madrid: Alianza,


1991. Sobre Erasmo, e outros de mesma linha de raciocínio, diz Kamen: “(…) para
Erasmo, como para otros humanistas contemporaneos, la tolerancia no era un ideal; se
trataba únicamente de un médio para asegurar esa armonia religiosa que todos los
cristianos ansiabán”. Acerca das razões comerciais para haver tolerância religiosa, o
mesmo autor cita comentário de Sir William Petty: “(...) para el progreso del comercio,
si es que este es un motivo suficiente, debemos ser tolerantes en cuestiones de opi-
nión”. Mais à frente, é o próprio Kamen quem afirma que “los viajeros protestantes
creían que la pobreza de España e Itália era consecuencia directa de su catolicismo in-
tolerante, y que la creciente prosperidad de Inglaterra provenia de su actitud liberal
hacia los disidentes, en especial desde 1689. La revocación del edicto de Nantes vino a
reforzar esta opinión” (op. cit., p. 27, 216 e 218).

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Prossigamos, pois.
Partindo para as especificidades que circundam o objeto de nosso
estudo, observamos, com Contreras Mazario14, haver uma diferenciação
bastante importante e esta se volta para o fato de que algumas minorias
buscam sua completa aceitação e inclusão na sociedade de um modo
geral, enquanto outras perseguem a preservação de seus valores, não
hegemônicos, num meio que lhes é naturalmente hostil ou pelo menos
não receptivo.
Exemplificativamente, podemos mencionar o exemplo dos negros e
da cultura de origem africana. Já é uma realidade no Brasil a normatiza-
ção, a edição de leis e de regramentos formais, de natureza jurídica, re-
gulando a inserção do estudo da cultura africana como elemento curri-
cular regular no ensino fundamental e médio de nossas escolas. Assim,
tal medida visa gerar uma aceitação e uma homogeneização dessa cultu-
ra afro de modo a torná-la integrante da cultura chamada de dominante
ou normalmente difundida na sociedade de um modo geral.
Desinteressa a este tipo de segmento social, deste modo, uma
postura puramente preservacionista, eis que tal medida poderia ge-
rar um isolamento de suas manifestações, distanciando-a, assim, de
uma virtual (e desejada) junção com a cultura ou com os valores
culturais vigentes.
Quando, no entanto, partimos para uma análise da minoria religio-
sa, observamos justamente o oposto, ou seja, uma busca de diferencia-
ção do padrão hegemônico como forma de obter sua própria preserva-
ção como manifestação social autônoma, independente, possuidora de
valores diferenciados, únicos, autênticos, peculiares. Neste sentido e ci-
tando manifestação da Comissão dos Direitos Humanos da ONU,
Contreras Mazario pontua:

La protección de las minorias consiste en la protección de los grupos que


no son predominantes en un país y que, si bien desean en general ser tra-
tados en pie de igualdad con la mayoria, desean en cierta manera recibir

14 Las Naciones Unidas y la protección de las minorias religiosas. Valencia: Tirant lo Blanch,
2004, p. 147.

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un trato diferente para preservar las características fundamentales que los
distinguem de la mayoría de la población15.

O mesmo autor ainda traz interessante observação sobre o assunto


debatido presentemente. A proteção a que faz jus a minoria religiosa
seria aceitável somente, enquanto e na medida em que esta minoria
religiosa fosse manifestada por intermédio de integrantes do Estado
ou do país em questão. Ou seja, os nacionais ou pelo menos os resi-
dentes do país e, ainda mais, que demonstrassem lealdade ao Estado
envolvido, teriam o direito de reclamar a proteção especial deste mes-
mo Estado em face de seus valores e de sua fé religiosa.
Convém obtemperar a exigência acima, trazida à tona em 1954,
para torná-la mais contemporaneamente aceitável. Imaginando, por hi-
pótese, que um dado país organize Jogos Olímpicos de caráter mundial.
A esse evento certamente acorrerão inúmeros cidadãos – entenda-se
atletas, dirigentes, torcedores, jornalistas – de inúmeros Estados e, por
lógica, com profissões de fé religiosa variadas.
No momento dos jogos, muitos desses indivíduos poderão se en-
contrar em situação de minoria em face da religião preponderante do
país organizador do evento esportivo em questão. Seria razoável aceitar-
-se que a ausência de residência ou lealdade dos integrantes destas hipo-
téticas minorias em face do país recepcionante os tornasse indefesos em
relação a eventuais atos abusivos, autoritários ou limitativos no que con-
cerne ao exercício de sua fé religiosa?
Tudo leva a crer que não. O exemplo em si mostra o descompasso
de tal virtual situação com a evolução dos direitos humanos e do sistema
de proteção real aos direitos das chamadas minorias num plano efetiva-
mente supranacional.
Um último ponto de debate sobreleva-se e deve ser destacado.
Ocorre que, como vimos no tópico anterior, há elementos carac-
terísticos em todo grupo minoritário e, como fica claro após alguma
reflexão sobre o termo, a ideia matemática de minoria como um grupo

15 Idem, p. 148.

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ou conjunto numericamente inferior é inservível quando usamos a
mesma ideia no campo da análise da sociedade humana, especialmen-
te sua dinâmica.
Há exemplos de relevo a endossar esta visão. Os negros, na África
do Sul, sempre foram, numericamente, uma maioria. Contudo, sem-
pre estiveram submetidos a uma minoria branca ou de origem euro-
peia, algo especialmente marcante durante a vigência do chamado
apartheid, regime político segregacionista ali vigorante por largo pe-
ríodo de tempo.
Há situações, prosseguindo, em que as mulheres podem figurar
como um grupo submetido ao controle ou ao poder dos homens, muito
embora sejam, em escala mundial, numericamente mais expressivas que
os homens (53% ante 47%).
Encontramos, no entanto, o já citado Contreras Mazario defenden-
do, no campo do estudo das minorias religiosas, uma postura que não é
exatamente contra o afirmado acima, mas que, ao mesmo tempo, rela-
tiviza, a nosso ver em demasia, a questão em foco e se aproxima do risco
de uma sempre temerária distorção.
Partindo de um texto da própria ONU, o citado pesquisador
destaca as dificuldades “que levantaria a aspiração à condição de mi-
noria de parte de grupos tão pequenos que o tratamento especial de
que fossem objeto poderia, por exemplo, gravar os recursos do Esta-
do com uma carga desproporcionada” e, em seguida, o próprio autor
em foco pondera que, em matéria de tratamento de grupos minori-
tários, “não [se] pode responder exclusivamente a um conteúdo pu-
ramente matemático, nem tampouco maximalista que leve a afirmar
sua irrelevância, ou tão restritivo que suponha sua exclusão”, arre-
matando, por fim, como que fornecendo o norte para se encaminhar
a questão: “(...) se trata, a meu entender, de uma questão essencial-
mente prática que somente pode resolver-se com o exame de cada
caso concreto e que não é possível decidir de forma unívoca em uma
definição como a presente”16.

16 Idem, p. 186.

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Como dito acima, convém ter cautela com este tipo de questiona-
mento. Por outro lado, contrapor número mínimo de integrantes de
uma minoria aos recursos do Estado pode ser inapropriado e até mesmo
perigoso. Perigoso porque cria uma situação de liberação de responsabi-
lidades pelo Estado, uma espécie de salvo-conduto potencial em favor
dos governantes, dos gestores da máquina estatal, postos frente a um
critério numérico-financeiro que claramente se divorcia da ideia de pro-
teção, tão cara ao conceito de minoria.
É também inapropriada tal política, porque se mostra difícil aceitar
e conceber que, se um grupo minoritário é de fato tão diminuto, possa,
de fato, gerar um dispêndio de recursos tal que gere um desequilíbrio
profundo na administração estatal.
O critério numérico, além do exposto, é especialmente danoso no
que se refere às minorias religiosas. De fato, a profissão de uma fé não se
presta a um encaixe do tipo investimento de um lado e lucratividade do
outro, ou a um esquema tipo custo x benefício.
Ainda que numericamente diminuto ou desprezível, por este crité-
rio, merece apoio e proteção o grupo minoritário e isso nenhuma rela-
ção possui com sua quantidade, mas com o valor envolvido, que vem a
ser a proteção ser dispensada pelo Estado para que a liberdade do indi-
víduo se manifeste, no caso em face da sua liberdade de crença e mani-
festação desta crença.

5 Tolerância

Abrindo o presente tópico, convém observar que o sistema ou a


rede de proteção no sentido ora analisado modificou-se de modo inegá-
vel desde os anos 1950 do século XX.
Tal constatação, contudo, não pode servir de anteparo a outra, bas-
tante evidente também, que vem a ser o recrudescimento, especialmen-
te na Europa Ocidental, de um xenofobismo em par lógico com certo
nacionalismo, situando-se exemplos eloquentes nas figuras do líder di-
reitista Jean Marie Le Pen, na França; da Liga Norte-Italiana, na Itália;
ou, ainda, de Jöerg Haider, representante da chamada extrema direita,
na Áustria.

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Coincidentemente a este ressurgimento ou a esta revalorização de
um ideário qualificado por alguns como de direita, surgem eventos cujo
conteúdo denota forte resistência à admissão de uma manifestação
plural no campo das religiões. A França nos dá um exemplo desta-
cado de tal situação com a proibição da exibição de símbolos reli-
giosos nas escolas daquele país, determinação imposta por lei de
março de 2004.
Tal fato, à primeira vista, pode parecer algo de menor relevância
ante a laicidade típica dos Estados modernos, em que se insere a França.
Contudo, tal proibição foi estendida aos alunos, professores e funcioná-
rios numa abordagem pessoal, o que acabou gerando, por exemplo, a
vedação do uso do véu típico dos muçulmanos (chador) pelas meninas,
moças e mulheres, nas escolas francesas, ingressando-se num campo,
portanto, não somente da religião em si, mas verdadeiramente da liber-
dade do indivíduo. A própria ONU pronunciou-se a respeito, externan-
do sua apreensão com a lei francesa:

Relatora de la ONU expresa preocupación por ley francesa que prohíbe


símbolos religiosos en las escuelas
La ley francesa que prohíbe exhibir símbolos religiosos en las escuelas pú-
blicas tiene implicaciones indirectas negativas, afirmó la relatora de la
ONU sobre libertad de religión, Asma Jahangir.
Al completar su visita oficial a Francia, Jahangir dijo que la legislación, apro-
bada en marzo de 2004, tiene un elemento positivo, porque considera la
autonomía de la niña incitada o forzada a cubrirse la cabeza en una etapa
en que no comprende sus consecuencias.
Pero por otro lado, indicó, niega el derecho de los adolescentes que usan
símbolos religiosos porque lo han decidido libremente o que expresan sus
creencias de manera conspicua, como en el caso de los siks.
La relatora se mostró preocupada por los posibles efectos de esta ley a
largo plazo. Señaló que su implementación por las instituciones escolares
ya ha producido una serie de abusos que han provocado la humillación de
las niñas musulmanas.
“Esa humillación sólo puede conducir a la radicalización de las personas
afectadas”, opinó Jahangir. Agregó que la estigmatización del chador ha
desencadenado una ola de intolerancia religiosa contra las mujeres que lo
usan fuera de la escuela, en la universidad o en el trabajo.

30

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La relatora presentará su informe oficial a la Comisión de Derechos Huma-
nos de la ONU el año próximo17.

Partindo do exemplo em relevo e tendo por mote o quadro geral


descrito na abertura desse tópico, somos levados a analisar e nos deter
com mais atenção num importante conceito para o estudo das minorias
em geral, mas com especial relevo para o caso das minorias religiosas: a
tolerância, ou, como parece ter sido o histórico da humanidade neste
campo – agora experimentando uma nova onda crescente, como já dis-
semos antes –, a ausência de tolerância.

5.1 Histórico da ideia: idas e vindas

O tema é de antigo trato e fundamental quando se pretende anali-


sar quaisquer tipos de questões envolvendo religião, especialmente
aquelas ligadas a minorias religiosas, mas está longe de ser algo planifi-
cado e sedimentado desde o seu princípio, ainda que possa parecer uma
ideia simplesmente fundamental para a vivência pacífica não só das
crenças diversas entre si, mas também da sociedade humana.
Já no Mundo Antigo podíamos encontrar pensadores de peso de-
fendendo a tolerância religiosa, algo especialmente desafiador numa
época em que havia até mesmo deuses domésticos (penates e lares, nota-
damente em Roma), razão pela qual devemos tomar essa indicação
como algo pontual apenas.
De todo modo, Tertuliano pugnava pela ausência de qualquer em-
prego de força em temas religiosos, defendendo que “tanto por la ley
humana como por la natural cada uno es libre de adorar a quien quiera.
La religión de un individuo no perjudica o beneficia a nadie más que a
él. Es contrario a la naturaleza de la religión imponerla a la fuerza”18.
Mais à frente, a gênese da Igreja Católica, por sua própria situação
de perseguição perante os romanos, era de buscar a tolerância e a com-

17 Disponível em: <www.un.org/spanish/News/fullstorynews.asp?newsID=5488&crit


eria1=Francia&criteria2=niñas>. Acesso em: 26 ago. 2007.
18 Apud KAMEN, Henry. Op. cit., p. 12.

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preensão entre os crentes de todas as vertentes, fazendo harmonioso este
convívio, daí por que respeitado estudioso, comentando este momento
inicial da Igreja, pontua que

gracias a sua adhesión estricta a estos principios de la Sagrada Escritura, la


Iglesia primitiva logró una reputación de tolerancia y pacifismo que rara
vez será conseguida por las posteriores sectas cristianas heterodoxas19.

Já ali, na Idade Antiga, com a aproximação da Igreja de Roma e a


conversão desta última ao Cristianismo em 333 de nossa era, uma gra-
dativa deterioração nestes princípios foi, contudo, tomando cada vez
mais espaço. Uma vez cristã, Roma aplicou suas próprias razões de im-
pério à propagação do que agora era a sua própria religião e, desse modo,
“los emperadores romanos proscribieron el paganismo y derribaron sus
altares”20.
Mas o “palco” real do embate religioso, de fato, deu-se a partir do
final da Idade Média, momento em que a intolerância experimentou
sensível avanço, com a junção final e duradoura entre Igreja e Estado.
Mas a doutrina, os estudos em si sobre a tolerância aplicada à religião,
experimentou notável desenvolvimento já na Idade Moderna, mais es-
pecificamente no seio do Renascimento.
Neste sentido, John Locke e Voltaire provavelmente foram os pre-
cursores no estudo do tema em tempos modernos. É bastante conhecida
a Carta acerca da tolerância de Locke, em que referido autor afirma que
“cada igreja é ortodoxa para consigo mesma e errônea e herege para as
outras”, indicando que já então se fazia sentir a dificuldade de convívio.
Prossegue ainda o político e filósofo inglês:

Seja no que for que certa igreja acredita, acredita ser verdadeiro, e o contrá-
rio disso condena como erro. De sorte que a controvérsia entre essas igre-
jas acerca da verdade de suas doutrinas e a pureza de seu culto é igual de
ambos os lados; nem existe qualquer juiz, seja em Constantinopla, seja em
qualquer outra parte do mundo, cuja sentença possa resolver a disputa.

19 Idem, ibidem, p. 13.


20 Idem, ibidem, p. 15.

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E arremata:

A decisão dessa questão cabe unicamente ao Juiz Supremo de todos os


homens, a quem também cabe castigar os que erraram. Entrementes, ava-
liem esses homens como pecam odiosamente quando, acrescentando in-
justiça, se não ao seu erro, mas certamente ao seu orgulho, temerária e in-
solentemente atormentam os servos de outro mestre, que de modo algum
estão obrigados a prestar-lhes contas21.

John Locke, contudo, já continha em si mesmo aspectos dúbios e


até mesmo paradoxais acerca da tolerância religiosa. Assim, o notável
pensador inglês podia afirmar, por exemplo, que “la tolerancia era la
característica principal de la verdadera Iglesia (...) se ajusta al Evangelio de
Jesucristo y la genuina razón de la humanidad ”22 e até mesmo emendar
com sua notória retórica:

Haríamos bien en compadecernos de nuestra ignoráncia y esforzarnos


por superarla con todos los médios de información comedidos y pacífi-
cos; y no tratar mal, inmediatamente, a los otros como si fueran obstina-
dos y perversos, por no querer renunciar a sus opiniones y aceptar las
nuestras23.

Sem embargo, de tais afirmações, plenas de compreensão para com


a diversidade de credos e pelas vias pacíficas de defesa de cada profissão
de fé, Locke advertia de modo resoluto e até mesmo violento:

No deben ser tolerados de ninguna forma quienes niegan la existencia de


Dios. Los ateos no se sienten sujetos a las promesas, pactos y juramentos,
que son los lazos de la sociedad humana24.

Assim, se para Locke o entendimento entre os homens devia per-


mear a questão religiosa, o mesmo não se podia dizer dos ateus que,

21 Carta acerca da tolerância. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 9.


22 Apud KAMEN, Henry. Op. cit., p. 223.
23 Idem, ibidem, p. 225.
24 Idem, ibidem, p. 226.

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como vimos acima, não eram dignos de confiança. Esta postura pe-
remptória no campo religioso, porém, não é de modo algum isolada
para aquela época, eis que aquele que é considerado o maior teórico da
Igreja, Tomás de Aquino, igualmente dizia sobre os hereges que “se les
debe obligar, incluso fisicamente, a cumplir lo que han prometido y a
mantener lo que una vez aceptaron”25.
Chama a atenção, ainda mais, que figuras ligadas a movimentos
religiosos perseguidos pela Igreja, mesmo na Idade Moderna, como Lu-
tero e teóricos da época, como Juan de Sajonia e Altusio, igualmente se
mostrassem propensos a admitir a imposição de um só credo num país,
mesmo que com o uso da força, com vistas e obter a unidade e coesão
necessárias. Vejamos algumas ideias de tais pensadores (na ordem em
que foram citados):

Si el campesino se rebela abiertamente, entonces está fuera de la ley de


Dios, pues la rebelión no es simplemente un crimen, es como un gran fue-
go que ataca y devasta a todo un país (...). Nada puede ser más venenoso,
dañino o demoníaco que un rebelde.
(…)
Un gobernante secular no debe tolerar que sus súbditos sean inducidos a
la lucha y al motin por predicadores rivales. En un país solo se debe permi-
tir un tipo de predicación.
(…)
El gobernante debe establecer y tolerar solo una religión en su reino, que
ha de ser la verdadera26.

O que se observou no desenvolvimento das ideias e principalmente


na dinâmica das religiões neste ambiente conflituoso e ao mesmo tempo
de busca de uma unidade, e mesmo de uma planificação com vistas a
tornar um credo como algo único – situação típica da polarização entre
catolicismo e protestantismo no ambiente pós-reforma –, foi que houve
muito mais uma acomodação de interesses que aceitação real do outro e
de sua forma diversa de se conectar com o divino.

25 Idem, ibidem, p. 20.


26 Idem, ibidem p. 33, 34 e 210.

34

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O estabelecimento definitivo do capitalismo, com sua dinâmica
própria, peculiar, naturalmente demandante de um ambiente estável,
não necessariamente pacífico, mas estável e sem grandes contratempos,
foi algo definitivo e bastante importante na sedimentação destas diver-
sas religiões na sociedade, especialmente na Europa27.
Prossigamos.
Voltaire escreveu um alentado ensaio denominado Tratado sobre a
tolerância, cuja razão de existir foram justamente os conflitos em torno
da religião, na França do começo do século XVIII. O ponto de partida
é a morte de Marc-Antoine Calas, filho de Jean Calas, ambos integran-
tes de família protestante numa França majoritariamente católica. Além
de perder o filho, Jean Calas é acusado de ter urdido sua morte, alegação
baseada em boatos de que Jean assim procedera para evitar que seu filho
se convertesse ao catolicismo.
Sumariamente, Jean Calas foi julgado e condenado à morte. Voltai-
re escreve, por vezes, num formato panfletário, exortando a tomada de
medidas concretas a fim de que episódios como o Caso Calas não mais
ocorressem. A tolerância é seu fio condutor:

Temos judeus em Bordéus, em Metz, na Alsácia; temos luteranos, molinis-


tas, jansenistas – não podemos tolerar e admitir calvinistas mais ou menos

27 Lord Acton, no sentido aqui exposto, dizia que “el protestantismo estableció la into-
lerância como precepto imperativo y como parte de su doctrina, pero se vió obligado a
admitir la tolerancia por las exigencias de su situación, después de que los rigurosos cas-
tigos que impuso no hubieran conseguido detener el proceso de disolución interna”. Na
mesma linha, Sir William Petty dizia que “para el progreso del comercio, si es que este es un
motivo suficiente, debemos ser tolerantes en cuestiones de opinión”, no que é secundado por
Henry Kamen que, em dois trechos sintetiza as razões de comércio como forte elemento
de pacificação no convívio religioso entre as várias crenças: “(…) la expansión del capita-
lismo comercial, sobre todo en las dos principales potencias marítimas de Europa, Ho-
landa y Inglaterra, fue un factor decisivo para acabar con las restricciones religiosas. El
comercio solía ser un argumento de más peso que la religión. En el siglo XVI, la católica
Venecia fue reacia a cerrar sus puertos a los barcos de los comerciantes luteranos de la liga
hanseática (…) los viajeros protestantes creían que la pobreza de España e Itália era con-
secuencia directa de su catolicismo intolerante, y que la creciente prosperidad de Ingla-
terra provenía de su actitud liberal hacia los disidentes, en especial desde 1689. La revo-
cacíón del edicto de Nantes vino a reforzar esta opinión”, (apud KAMEN, Henry. Op.
cit., p. 215-218).

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nas mesmas condições que os católicos são tolerados em Londres? Quan-
to mais seitas houver, tanto menos perigosa cada uma será; a multiplicida-
de as enfraquece; todas são reprimidas por justas leis que proíbem as as-
sembleias tumultuosas, as injúrias, as sedições e que estão sempre em
vigor pela força coativa.

O pensador ainda alinhava:

A Alemanha seria um deserto coberto pelas ossadas de católicos, evangé-


licos, reformados, anabatistas mortos uns pelos outros, se a paz de Vesfália
não tivesse proporcionado enfim a liberdade de consciência28.

Assim, e como expusemos noutro ponto deste estudo, a tolerância


é, a um só tempo, necessária, supostamente simples de ser adotada, mas
algo tormentoso na vivência social humana. Vejamos, na sequência, a
evolução na aplicação desta ideia.

5.2 Tolerância e religião: liberdade do indivíduo × limites


do Estado (os exemplos de Estados Unidos e Espanha)

O século XIX pode, talvez, ser descrito como o século que se iniciou
com a mais estável situação social desde o descobrimento da América no
século XV. A Revolução Industrial encontrava-se em seu auge; o libera-
lismo, com a finalização completa dos movimentos revolucionários do
final do século XVIII, estava definitivamente implantado e, no campo
religioso, a separação religiosa dentre as várias crenças – mas especial-
mente entre catolicismo e protestantismo – se mostrava já sedimentada
e a convivência entre os crentes de cada segmento, se não era um exem-
plo de harmonia, tampouco apresentava grandes conflitos.
O que se seguiu, e que procuraremos aqui exibir, foram as situações
específicas e individuadas na vivência das religiões e, por outro lado,
especialmente a partir do século XX, o surgimento de minorias religio-
sas cujo espaço foi gradativamente sendo ocupado, sendo seu futuro,
contudo, incerto em termos de liberdade de manifestação.

28 Tratado sobre a tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 29.

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Alguns casos do século XIX e sua interpretação pela Suprema Corte
dos Estados Unidos podem ser bastante ilustrativos sobre aspectos im-
portantes a serem destacados não somente com relação à tolerância em
si, mas – até com mais intensidade – relativamente à dinâmica da reli-
gião com um todo, no período em questão29.
Sobre a liberdade religiosa, algo que envolve diretamente a ideia de
tolerância, há um interessante caso de 1819, o caso Darthmouth x New
Hampshire, sendo, em verdade, um dos casos mais antigos e emblemáti-
cos sobre o tema.
Resumidamente, um pastor presbiteriano, John Wheelock, foi reti-
rado da presidência de um colégio privado dirigido ou administrado por
um grupo de devotos congregacionalistas. Wheelock apelou ao governa-
dor que, surpreendentemente, removeu o grupo, substituindo-o por
outro de sua indicação, classificando ainda o Colégio Darthmouth de
medieval e dominado por sacerdotes.
O caso chegou à Suprema Corte que, seguindo o voto do famoso
juiz Marshall, confirmou, inicialmente, o caráter de instituição privada
do colégio Darthmouth, bem como atestou terem os devotos dirigentes
do colégio a autoridade e a palavra final sobre a instituição.
Prosseguindo, Marshall ressaltou que o colégio iniciou-se por
meio da coleta de fundos ainda na Inglaterra, com o objetivo de
disseminar o cristianismo – nominado por Marshall como nossa sa-
grada religião – entre os grupos indígenas norte-americanos e, neste
sentido, afirmou que o propósito educacional, pura e simplesmente,
não tornava a instituição pública ou submetida de modo tão profun-
do ao Estado. E o grupo dirigente original foi reconduzido à direção
do colégio.
Há, contudo, casos mais pungentes em seus aspectos elementares
e que, bem por isso, nos mostram os limites da liberdade religiosa ante
o Estado e ante o indivíduo. Esse, aliás, parece ser o mote do caso
Reynolds x United States, de 1879.

29 Todos os casos e exemplos aqui mencionados – exceção aos comentários feitos por nós
– foram retirados de HITCHCOCK, James. The Supreme Court and religion in american
life: the odissey of the religion clauses. Princeton: Princeton University Press, 2004, v. I.

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Trata-se do caso de um mórmon, George Reynolds, processado por
manter um relacionamento poligâmico, o que era vedado por leis fede-
rais norte-americanas. A Suprema Corte foi mais uma vez instada a se
manifestar sobre a questão e, na ocasião, o juiz Morrison Waite afirmou
que o “o Congresso não pode limitar a liberdade religiosa, mas deixou
assentado que esta liberdade só pode ser absoluta em matéria de crença
e não de comportamento”.
Sobre a mesma temática (poligamia), mas em face de outro caso, de
1889, outro juiz da Suprema Corte, Field, confirmou o entendimento
acima e asseverou que “poucas práticas são tão perniciosas como a poli-
gamia” e ainda deixou assente que a Emenda n. 1 jamais teve a intenção
de “permitir a violação de deveres sociais ou subversão da boa ordem”,
além do que, prossegue Field, “liberdade religiosa deve estar subordina-
da à lei penal”.
Por fim, há um caso relevante sobre a temática aqui tratada. É o
caso Vidal x Girard’s Executors, de 1844. O caso em si é simples, mas as
consequências nele contidas e a interpretação adotada pela Suprema
Corte foram importantes para o futuro da liberdade religiosa e seus li-
mites perante a sociedade e o Estado.
Stephen Girard deixou um testamento em que fazia uma substan-
cial doação a um colégio de meninos sob a condição de que nenhum
tipo de sacerdote ou clérigo, de qualquer tipo de religião, pudesse lecio-
nar ali. Após a morte do testador, os parentes de Girard buscaram a
modificação do testamento e este, conquanto julgado como legal pela
Justiça Estadual da Pennsylvania, chegou à Suprema Corte.
Atuando em nome dos autores e fazendo uma apaixonada defesa
do cristianismo, Daniel Webster defendeu que os sacerdotes cristãos
são representantes de Cristo na Terra e excluí-los “equivale a excluir
Cristo” e, além do mais, prossegue Webster, “não há nenhum exem-
plo histórico de caridade genuína sem a presença de uma fundação
Cristã”.
A ação, contudo, foi rejeitada pela Suprema Corte.
O juiz Story acatou o argumento da defesa de que nenhuma lei
exige que uma fundação caritativa ofereça instrução religiosa e, além
disso, o fato de o cristianismo ser aceito como a lei da terra da Pennsyl-

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vania deve ser visto ou interpretado dentro do campo das liberdades
pessoais.
Os exemplos citados são úteis, como já se disse, mas não esgo-
tam a evolução da temática, notadamente com relação a outras na-
ções que igualmente vivenciaram as mesmas questões e as resolve-
ram a seu modo, contribuindo de alguma forma para um melhor
entendimento de variadas pontuações que circundam a problemá-
tica central.
Como um contraponto que se nos afigura útil e interessante a um
só tempo, escolhemos o Supremo Tribunal Constitucional da Espanha
para expor mais alguns aspectos importantes sobre as questões ventila-
das, notadamente com vistas a exibir um entendimento mais atual, mais
contemporâneo de uma corte de índole constitucional num ambiente
europeu. Vejamos, assim, alguns casos e a visão da Corte espanhola so-
bre eles30.
Manifestando-se sobre a liberdade de culto e sobre o dever, no âm-
bito de um Estado Contemporâneo, de haver amparo estatal ao indiví-
duo, possibilitando de forma ampla e sem embaraços sua manifestação
religiosa, decidiu o Tribunal:

El hecho de que el Estado preste asistencia religiosa católica a los indiví-


duos de las Fuerzas Armadas no solo determina lesión constitucional,
sino que ofrece, por el contrario, la posibilidad de hacer efectivo el dere-
cho al culto de los individuos y comunidades. No padece el derecho a la
libertad religiosa o de culto, toda vez que los ciudadanos miembros de
las susodichas Fuerzas son libres para aceptar o rechazar la prestación
que se les ofrece (...)31.

E igualmente se manifesta sobre a liberdade religiosa:

Este Tribunal ha declarado que la libertad religiosa, entendida como un


derecho subjectivo de carácter fundamental, se concreta en el reconoci-

30 LOPEZ CASTILLO, Antonio. La libertad religiosa en la jurisprudencia constitu-


cional. Madrid: Arazandi, 2002.
31 Espanha, STC 24/1982 (RTC 1982, 24).

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miento de un ámbito de libertad y de una esfera de “agere licere” del indi-
viduo, es decir, reconoce el derecho de los ciudadanos a actuar en este
campo con plena inmunidad de coacción del Estado y de cualesquiera
grupos sociales32.

Dentro da chamada liberdade religiosa coletiva, item rigorosamente


fundamental para qualquer minoria religiosa, consignou o Tribunal es-
panhol a ideia de não restrição, assim como consignou a noção funda-
mental da não discriminação, nos seguintes termos:

Una comunidad de creyentes, Iglesia o confesión no precisa formalizar su


existencia como asociación para que se le reconozca la titularidad de su
derecho fundamental a profesar un determinado credo, pues ha de tener-
se en cuenta que la Constitución garantiza la libertad religiosa – “sin más
limitación, en sus manifestaciones, que la necesaria para el mantenimiento
del orden público protegido por la ley”33.
La libertad de creencias (...) tiene una particular manifestación en el dere-
cho a no ser discriminado por razón de credo o de religión, de modo que
las diferentes creencias no pueden sustentar diferencias de trato jurídico34.

Finalmente, num julgado cuja ementa é um pouco mais extensa,


parece ser bastante útil observar a problemática da neutralidade religio-
sa dos centros de ensino e das escolas públicas, algo aparentemente sim-
ples, mas que precisa, de outra banda, conferir o máximo respeito à in-
dividualidade da pessoa humana e de seu direito a professar uma fé
determinada. Segue:

En un sistema jurídico político basado en el pluralismo, la libertad ideo-


lógica y religiosa de los individuos y la aconfesionalidad del Estado, todas
las instituciones públicas y muy especialmente los Centros docentes, han
de ser, en efecto, ideológicamente neutrales. Esta neutralidad, que no
impide la organización en los Centros públicos de enseñanzas de segui-
miento libre para hacer posible el derecho de los padres a elegir para sus

32 Espanha, STC 166/1996 (RTC 1996, 166).


33 Espanha, STC 46/2001 (RTC 2001, 46).
34 Espanha, STC 1/1981 (RTC 1981, 1).

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hijos la formación religiosa y moral que esté de acuerdo con sus propias
convicciones (art. 27.3 Constitución), es una característica necesaria de
cada uno de los puestos docentes integrados en el centro, y no el hipo-
tético resultado de la casual coincidencia en el mismo Centro y frente a
los mismos alumnos, de profesores de distinta orientación ideológica
cuyas enseñanzas se neutralicen recíprocamente. La neutralidad ideoló-
gica de la enseñanza en los Centros escolares públicos regulados en la
LOECE impone a los docentes que en ellos desempeñan su función, una
obligación de renuncia a cualquier forma de adoctrinamiento ideológi-
co, que es la única actitud compatible con el respeto a la libertad de las
familias que, por decisión libre o forzadas por la circunstancias, no han
elegido para sus hijos Centros docentes con una orientación ideológica
determinada y explícita35.

5.3 Tolerância e minorias religiosas

Como vimos, os conceitos de tolerância, liberdade religiosa e liber-


dade de manifestação religiosa seguem os percalços da própria existência
humana, com avanços e retrocessos marcantes de lado a lado.
De meados do século XX até os tempos atuais, inegavelmente o
tema das minorias atraiu, contudo, um espaço cada vez maior nas con-
siderações de qualquer nação. Talvez a Constituição mexicana de 1917
tenha sido o marco, ou o embrião, desta ideia, ao inserir no seu seio
uma série de garantias e tutelas formais aos indígenas, parcela importan-
te de formação do povo mexicano.
No campo da religião, as minorias ocupam lugar de destaque.
Como se sabe, frequentemente conflitos são iniciados ou baseados em
questões religiosas, e os atritos entre grupos dominantes e grupos mino-
ritários marcam forte presença, mesmo e ainda especialmente dentro de
um mesmo credo ou religião. O próprio conflito judaico-palestino, que
muitos defendem como hoje já puramente político, tem fortes raízes
religiosas e sua modificação se mostra muito mais complexa e tormen-
tosa que qualquer tratativa política ou diplomática.

35 STC 5/1981 (RTC 1981,5).

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Assim, a tolerância deve ser um foco de atenção essencial quando se
trata de conjugar minorias e religião. A intolerância, ou ausência de to-
lerância para com tais grupos, é certamente a explicação para muitos
conflitos e situações de embate atualmente existentes em vários pontos
do globo.
O fato é que, estribada em fundamentos oscilantes entre o puro
subjetivismo e outros de racionalidade duvidosa, a intolerância volta-se
de modo direto às minorias, suas primeiras e mais sentidas vítimas. Bem
por isso, possui um forte aspecto desagregador da sociedade em que se
manifesta.
A aceitação das diferenças encontra-se na base da concepção con-
temporânea de sociedade humana, certamente influenciada ou mesmo
inserida no bojo das conquistas sociais e da adoção do princípio demo-
crático na concepção do Estado tal como pudemos ver ao longo, espe-
cialmente, do século XX.
A dinâmica regular, ou pode-se dizer até mesmo sadia, dessa socie-
dade multifacetada e bastante diferenciada funda-se inegavelmente na
tolerância. Isso não significa, nem pode significar, porém, passividade.
Daí por que tolerância não é sinônimo de resignação passiva, mas,
sim, “aplicar uma atitude ativa de confiança na razão ou na razoabilida-
de do outro, uma concepção do homem como capaz de seguir não só
seus próprios interesses, mas também de considerar seu próprio inte-
resse à luz do interesse dos outros, bem como a recusa consciente da
violência como meio para obter o triunfo das próprias ideias”36. Dian-
te de tais palavras, e tomando-se em conta fatos como os ocorridos na
França, com a aprovação da lei comentada e seu impacto sobre um gru-
po étnico e religioso minoritário naquele país, vemos que a questão é
complexa e exige atenção detida.
Aspecto bastante relevante e que merece destaque neste estudo vem
a ser a observação de que minorias estabilizadas ou que em alguns casos
se convertem em maiorias – caso da Reforma Protestante e emigração
em massa de protestantes para a América do Norte no início da Idade

36 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. São Paulo: Campus, 1987, p. 207.

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Moderna – geram ou podem gerar, em seu próprio seio, uma espécie de
movimento segregacionista em face de grupos internos, transformados,
perante o movimento principal, também eles próprios em uma minoria.
É de vulgar conhecimento, neste sentido, que inúmeros desdobra-
mentos internos se sucederam à ação de Ítalo Calvino, além do calvinis-
mo em si: puritanos, batistas, presbiterianos, metodistas, luteranos fo-
ram alguns destes grupos que, assim, de um modo ou outro, também
sofreram restrição e até perseguição dentro da religião protestante. Em
arguto estudo sobre religião e tolerância, um renomado estudioso espa-
nhol bem indica o que acima comentamos:

Las grandes religiones protestantes, luteranismo y calvinismo, no sólo reac-


cionarán con la intolerancia hacia los católicos, sino que, además, reprimi-
rán violentamente a las nuevas religiones o sectas que surgirán en su seno.
Anabatistas, socinianos, arminianos, presbiterianos, puritanos, etc., todos
ellos serán perseguidos como herejes; como consecuencia de lo qual gru-
pos de estas religiones emigrarán a las colonias inglesas de América del
Norte, en alguna de las cuales de establecerán los primeros paraísos de
tolerancia y de libertad de conciencia. Curiosamente, estas nuevas religio-
nes acapararán un primer protagonismo en la defensa de la libertad de
conciencia37.

Pondere-se, contudo, que não se presta este estudo, ante o que


acima se afirmou, à tentação de romantismos ou ingenuidades, forçan-
do-nos a ver, inclusive, que a aplicação da tolerância certamente “pode
abrigar a afirmação e o reconhecimento do outro, desde que ele permane-
ça em condição subalterna e não colida com o núcleo central das identida-
des sociopolíticas, como prega a perversidade relativista e diferencialista”,
mas, por outro lado, essa mesma tolerância pode “significar abertura para
novas conexões, estilos societários e processos de transformação cultural”38 e
é nesse último aspecto que ela aqui toma espaço analítico.

37 MARTINEZ DE PISÓN, José Maria. Tolerancia y derechos fundamentales en las so-


ciedades multiculturales, Madrid: Tecnos, 2001, p. 25.
38 Ambos os trechos mencionados são de CARVALHO, Edgard de Assis. Mal-estar
civilizatório e ética da compreensão. In: Violência e mal-estar na sociedade, Revista Pers-
pectiva, v. 13, n. 3, São Paulo: Fundação Seade, jul.-set. 1999.

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O momento atual, como se sabe de maneira até mesmo vulgar, co-
mezinha, indica uma forte presença de intolerância religiosa no âmago
de muitos conflitos instalados ao longo do planeta.
Já citamos o conflito judaico-palestino. Os palestinos, minoria pe-
rante os judeus e o Estado de Israel, enfrentam evidente intolerância
destes últimos, o que certamente inclui aspectos religiosos. Contudo, os
mesmos palestinos segregam e exibem intolerância com os chamados
árabes-judeus, pessoas de ascendência árabe pelo local de seu nascimen-
to, mas judeus por origem ancestral, genética e religiosa. Sem contar a
própria intolerância com os judeus, com quem mantêm um histórico de
atentados sangrentos já há bastante tempo.
Os judeus convertidos ao cristianismo, os chamados judeus messiânicos,
igualmente se veem obrigados a lidar com a condição de serem minoria den-
tro de seu próprio povo, recebendo reconhecida e ostensiva carga de intolerân-
cia dos chamados judeus ortodoxos ou mesmo de outros grupos judaicos que,
muito embora não ortodoxos, não aceitam o grupo minoritário.
O conflito sérvio-bósnio de 1992 teve boa base de sua existência
creditada a aspectos religiosos. A própria prática de estupros em massa
executada pelo Exército sérvio em face da população bósnia, a chamada
faxina étnica, baseava-se na ideia de eliminação da descendência das
correntes religiosas minoritárias, especialmente os muçulmanos.
No Afeganistão, no início deste século, tornaram-se notórios os mé-
todos violentos empregados pelo regime Taliban – fundamentalismo de
caráter e ideologia islâmica – para combater outras religiões professadas
no país. Grandes esculturas de pedra ligadas ao budismo foram alvo de
ataque, naquele momento, restando completamente destruídas.
Exemplo antigo e candente é o da Irlanda, que vive um conflito
religioso há séculos, conflito este que ainda hoje não está equacionado e
que mostra de modo palmar a dificuldade de se adotar de modo concre-
to a postura tolerante de que aqui tratamos.
Pode-se até dizer que existe tolerância entre católicos e protestantes
na Irlanda, mas, no fundo, todos sabem ser um equilíbrio frágil, move-
diço, sempre precário, abalável por um fato qualquer desencadeador de
concepções odiosas de parte a parte cujo deságue é frequentemente a
morte de algumas ou mesmo várias pessoas.

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Após esta exposição, busquemos um fecho para nosso estudo, fazen-
do algumas últimas reflexões sobre aspectos considerados por nós impor-
tantes relativamente ao tema aqui enfocado.

6 Um olhar sobre a sociedade brasileira: religião,


minorias e a atuação do Supremo Tribunal
Federal no Brasil

A realidade religiosa no Brasil, para os fins deste estudo, deve ter


três bases analíticas elementares: uma, a do catolicismo como crença
majoritária, como grupo majoritário no país (61% da população, em
2011, para a Datafolha, e 65%, em 2010, para o IBGE, este último em
percentual estimado); duas, a da aplicação de uma moral religiosa mes-
clada com outra de caráter laico nas manifestações dos tribunais brasi-
leiros; e três, e por fim, o caráter de tolerância e sincretismo religioso
presente na sociedade brasileira.
Assim, não se registram em terras brasileiras grandes questões de
conflito envolvendo minorias religiosas, como se observa, por exemplo,
na Irlanda ou na Índia. Há fatos pontuais, históricos, como o da Revol-
ta de Canudos, no século XIX, mas o conflito aí existente não era decor-
rente de questões religiosas, mas eminentemente social39.
Estima-se que a formação do povo brasileiro, com contribuição de
vários troncos étnicos, notadamente o europeu, o africano e o indígena,

39 Sucintamente, em 1896, um beato de nome Antônio Conselheiro arrebanhou, no sertão


da Bahia, um verdadeiro séquito de miseráveis, desempregados e sertanejos em geral em torno
de uma ideia de salvação. Ele acreditava que havia sido enviado por Deus para acabar com as
diferenças sociais e também com os pecados republicanos, entre estes o casamento civil e a
cobrança de impostos. Com estas ideias em mente, ele conseguiu reunir um grande número
de adeptos que acreditavam que seu líder realmente poderia libertá-los da situação de extrema
pobreza na qual se encontravam. Devido à enorme proporção que este movimento adquiriu,
o governo da Bahia não conseguiu, por si só, segurar a grande revolta que acontecia em seu
Estado; por esta razão, pediu a interferência da República. Esta, por sua vez, também encon-
trou muitas dificuldades para conter os fanáticos. Somente no quarto combate, quando as
forças da República já estavam mais bem equipadas e organizadas, os incansáveis guerreiros
foram vencidos, em 1897, pelo cerco que os impedia de sair do local no qual se encontravam
para buscar qualquer tipo de alimento, e muitos morreram de fome. O massacre foi tamanho
que não escaparam idosos, mulheres e crianças. Disponível em: <http://www.suapesquisa.
com/historia/guerradecanudos/>. Acesso em 20 out. 2008.

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tenha colaborado fortemente para esta situação em que conflitos motiva-
dos por aspectos religiosos são virtualmente inexistentes. Também como
decorrência dessa mescla étnica e genética, e como elemento auxiliar nes-
ta ausência de conflitos, observa-se uma mescla religiosa, o chamado sin-
cretismo religioso, tão típico de boa parte da população brasileira.
Os nossos tribunais, como veremos nos julgados abaixo, veem na
religião uma referência moral, especialmente quando se trata de aplicá-
-la a grupos sociais minoritários, como, por exemplo, detentos ou presi-
diários. Assim, um interessante julgado do Supremo Tribunal Federal,
de 1981, defende não apenas que o aprisionado ou detento possa exer-
cer sua crença religiosa, mas inclusive defende tal atividade como bené-
fica à reeducação do presidiário, algo que revela a forte influência reli-
giosa, especialmente a católica, na sociedade brasileira; e outro julgado
mais recente, de 2007, transcrito na sequência em resumido trecho, re-
conhece de modo expresso o direito da liberdade religiosa e do exercício
de crença como algo inalienável e inerente ao ser humano, referindo, no
caso concreto, também a um presidiário:

Suspensão condicional da pena. Suas condições. Caso em que se proi-


biu o beneficiário de frequentar, auxiliar ou desenvolver cultos religiosos
(...). A justiça deve estimular no criminoso, notadamente o primário e
recuperável, a prática da religião, por causa do seu conteúdo pedagó-
gico, nada importando o local40.
(...) [o ser humano] Se é parte de algo (o corpo social), é também um
algo à parte. A exibir na lapela da própria alma o bóton da originalidade.
Que não cessa pelo fato em si do cometimento de um crime do tipo
hediondo, seguido ou não de condenação judicial e posterior cumpri-
mento da pena em estabelecimento prisional do Estado. Afinal, não é de
se confundir jamais hediondez do crime com hediondez da pena, visto
que direitos subjetivos outros não são nulificados pela condenação pe-
nal em si, como os direitos à saúde, à integridade física, psicológica e
moral, à recreação, à liberdade de expressão, à preferência sexual e de
crença religiosa (...)41.

40 RE 92.916/PR, rel. Min. Antônio Neder, j. em 19-5-1981.


41 HC 91.874/RS, rel. Min. Carlos Britto, j. em 31-8-2007.

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Há, em outros julgados, um foco mais policialesco e fiscalizatório,
com um viés de cunho moral igualmente pronunciado. Muito embora
sejam julgados mais antigos, mencionamos três exemplos interessantes
do Supremo Tribunal Federal no sentido aqui destacado e um outro,
logo na sequência, que caminha no sentido inverso, relativizando a im-
portância da religião na avaliação da conduta de uma pessoa:

Poder de polícia reconhecido ao Estado para evitar a exploração da credu-


lidade pública. Mandado de segurança deferido em parte, para assegurar,
exclusivamente, o exercício do culto religioso, enquanto não contrariar a
ordem pública e os bons costumes e sem prejuízo da ação, prevista em lei,
das autoridades competentes. Recurso provido em parte42.
Poder de polícia. Livre exercício dos cultos religiosos, assegurado pela
Constituição, não implica a tolerância de ofensa aos bons costumes, na
relegação de disposições do Código Penal43.
Curandeirismo. Qualquer princípio de crença, a serviço do curande-
rismo, é nocivo à saúde física e moral do povo, e, portanto, constitui
crime punível. Ausência de ofensa ou violação de lei federal. Recurso
não conhecido44.
A crença religiosa de pessoa não constitui qualidade essencial da mesma.
Quando não atentatórias das normas da moral social dominante, quais-
quer crenças e práticas religiosas não constituem defeito de honra e boa
fama de quem as segue. Se o cônjuge não consentiu no casamento por
erro essencial sobre a pessoa do outro, não consentiu no art. 218 e 219, i,
do Código Civil, pedir sua anulação. Não se conhece do extraordinário45.

Mesmo em julgados mais recentes, o aspecto religioso é levado em


conta na avaliação da conduta do detento, especialmente para efeito de
avaliação de concessão de benefícios legais:

(...) 2. A despeito dos argumentos expedidos pelo Impetrante, é inviável,


em parte, o presente habeas corpus. (...) Para o acusado Moisés Júlio Gon-
çalves, vulgo “Meio-kilo”: Trata-se de pessoa portadora de personalidade

42 RMS 16.857, rel. Min. Eloy da Rocha; DJ de 24-10-1969; RTJ 51/3.


43 RMS 9.453, rel. Min. Cunha Mello; j. 29-8-1962.
44 RE 38.846, rel. Min. Lafayette de Andrada, j. em 8-7-1958.
45 RE 24.624, rel. Min. Ribeiro da Costa, j. em 5-4-1954, DJ 5-8-1954.

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totalmente distorcida e adversa ao direito e à sociedade, já que demonstra
inclinação para a vida criminosa, ócio e dedicação à violência. A conduta
social não merece melhor sorte, pois se vê em todos os autos que o acusa-
do não tem vida social, familiar ou religiosa condigna, nem tampouco
qualquer histórico no seu passado de trabalho honesto e honrado (...)46.

Os julgados acima contemplam47, além do próprio tratamento con-


ferido pela Corte em apreço ao tema da liberdade religiosa, ainda a visão
ali empreendida sobre tal assunto em face das minorias, nosso objetivo
central neste estudo.
Sem embargo do acima exposto, um caso concreto, ocorrido há
pouco tempo e envolvendo uma minoria religiosa, ilustra bem a dinâ-
mica existente neste relacionamento entre maioria e minoria – pelo me-
nos no Brasil – e mostra que as vicissitudes aí existentes devem ser leva-
das em conta de modo mais aproximado.
Há, no Brasil atual, uma realidade peculiar com relação às minorias
religiosas, de grande importância nos últimos vinte ou trinta anos, que
vem a ser o movimento evangélico, composto de variadas instituições,
cuja estruturação varia de pequenas organizações até outras de grande

46 HC-MC 89.305, rel. Min. Cármen Lúcia, j. em 19-10-2006, DJ 27-10-2006.


47 Com um viés mais técnico, há uma manifestação monocrática do Supremo Tribunal
Federal que trata da questão da liberdade de culto e exercício de crença, a seguir transcrita
de modo parcial: “DESPACHO: 1. O Dr. Juiz Federal da Vara de Execuções Penais da
Seção Judiciária de São Paulo encaminha a esta Corte, por fax, petição formulada pelos
advogados dos extraditandos T. S. e H. D., na qual, alegando-se que a eles, judeus ortodo-
xos, a religião judaica impõe a observância de preceitos rígidos por ocasião do período em
que se comemoram festas religiosas como a de Páscoa, requerem possam os extraditandos
celebrar em suas residências esse evento religioso, de 7 a 15 do corrente, podendo ser con-
duzidos à carceragem, para pernoite, nos dias 10, 11 e 12. 2. Das duas extradições em
causa, sou relator da relativa a T. S., razão por que me compete decidir apenas o requeri-
mento na parte que lhe diz respeito. 3. Tendo em vista que o parágrafo único do art. 84 da
Lei n. 6.815/80 estabelece que a prisão do extraditando persistirá até o julgamento final da
extradição, não se admitindo a concessão de liberdade vigiada, prisão domiciliar ou prisão-
-albergue, nada preceituando em contrário o Tratado de Extradição firmado entre o Brasil
e os Estados Unidos da América, e, ainda, que o art. 5º, VII, da Constituição assegura a
prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva nos
termos da lei, indefiro o presente pedido. Comunique-se ao Dr. Juiz Federal da Vara de
Execuções Penais da Seção Judiciária de São Paulo. Brasília, 6 de abril de 2001. Ministro
Moreira Alves, Relator” (Extr 815/EUA, j. em 6-4-2001, DJ de 24-4-2001).

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porte, como é o caso da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD),
dirigida pelo autointitulado Bispo Edir Macedo.
A IURD adquiriu, já há vários anos, um canal de televisão (Re-
cord), jornais impressos, emissoras de rádio, participações em outras
empresas, além de ter aberto vários templos ao longo do globo. Possui
uma estrutura empresarial com faturamento anual estimado na casa dos
2 bilhões de reais. Perante uma maioria católica, os evangélicos – e den-
tre estes os fiéis e integrantes da IURD – são, ou seriam, uma minoria
religiosa. Mas um evento recente jogou novas luzes sobre esta relação e,
nesse entremeio, em face também do Estado.
Em dezembro de 2007, a Folha de S. Paulo, o jornal de maior circu-
lação no território brasileiro, publicou uma reportagem sobre a Igreja
Universal, sob o título Igreja Universal completa 30 anos com império em-
presarial. O texto questionava a ligação entre atividade empresarial e reli-
giosa da IURD, algo que gerou reação da entidade religiosa em foco48, o
que, só por si, seria perfeitamente aceitável num ambiente democrático
como o da sociedade brasileira contemporânea, até porque, praticamente

48 A IURD fez publicar a seguinte nota à Imprensa: “A Igreja Universal do Reino de


Deus, entidade religiosa há 30 anos no Brasil, com mais de 5 milhões de fiéis e presente em
170 países, vem a público esclarecer que: 1. Fiéis de várias partes do país estão procurando
a IURD para manifestar seu repúdio em relação às notícias classificadas como lamentáveis,
publicadas por veículos de comunicação, especialmente no que se refere à origem e desti-
nação de seus dízimos. 2. O dízimo é um aspecto da liberdade de crença consagrada pela
Constituição Federal. 3. A IURD já ingressou com suas ações judiciais e não tem qualquer
interesse de orquestrar e incentivar processos individuais por parte de seus fiéis. 4. A IURD
respeita a liberdade de Imprensa, os jornalistas e suas entidades representativas, porém, não
admite que reportagens sejam usadas para ofensas de outras garantias constitucionais como
a dignidade da pessoa humana, o acesso à Justiça, à liberdade de crença e à inviolabilidade
da honra. 5. A Imprensa deve atuar com responsabilidade e não prejulgar, manipular ou
condenar precipitadamente. 6. A IURD não está à margem da sociedade. É uma entidade
regularmente constituída, conforme a legislação brasileira, que deve ser respeitada como
todas as outras denominações religiosas no Estado Democrático de Direito. É inaceitável
que, no uso de suas prerrogativas, a mídia utilize denominações ofensivas e preconceituosas
como seita, bando e facção em referência à IURD. 7. A IURD apoia a posição de todas as
entidades de classe quando está em questão a Democracia. A Imprensa, com responsabili-
dade, pode noticiar e os fiéis, da mesma forma, podem acessar a Justiça. 8. Cabe ao Judici-
ário, com a imparcialidade e independência que lhe são inerentes, a palavra final. São
Paulo, 19 de fevereiro de 2008. Igreja Universal do Reino de Deus”. Disponível em:
<http://www.idp.org.br/web/idp/content/view/id/1021>. Acesso em: 16 out. 2008.

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no mesmo dia, a Associação Brasileira de Imprensa também divulgou
nota de apoio à jornalista49.

49 Eis a íntegra da nota da ABI: “Ao longo de sua existência, o país conheceu a fúria
repressiva do poder do Estado contra a liberdade de imprensa, como se deu sob o Estado
Novo e sob a ditadura militar que nos infelicitou entre 1964 e 1985, mas jamais assistira
a uma investida partida da própria sociedade civil contra a liberdade de informação com
a abrangência e o conteúdo desta que se materializa nas ações judiciais armadas contra
esses jornais e contra essa jornalista. Através desse procedimento, buscam os autores de
tais ações obter a cobertura do Poder Judiciário para cercear e condicionar o exercício do
direito de informação. Numa evidência de que há um cérebro e um comando a centrali-
zar a instauração dessas ações judiciais, seus autores estão espalhados por quase 20 Esta-
dos da Federação, no caso da Folha de S. Paulo, e ajuizaram esses feitos em municípios
longínquos, numa clara demonstração de que a ação assim coordenada tem por objetivo
dificultar a defesa da parte adversa. Há a nítida intenção de dificultar o direito de ampla
defesa e do contraditório assegurado pela Constituição, em face da disposição da lei
processual de que o alegado na inicial será tido como procedente se não houver contes-
tação, ainda que se ressalve, nesta hipótese, a formulação de convicção própria pelo juiz.
A existência de um comando na ação liberticida fica patente também em outros aspectos
desse conjunto de ações, que repetem a mesma redação em quase todas as petições, à
exceção de umas poucas, fazendo a mesma descrição, exibindo os mesmos argumentos e
formulando as mesmas postulações, entre as quais a concessão do benefício da justiça
gratuita, para livrar os autores dos ônus materiais de sua iniciativa. Salvo um ou outro
caso, em que se reclama o pagamento de indenizações por danos morais que variam entre
R$ 10.000,00 e 12.000,00, os demandantes fixam o valor do pleiteado em R$ 1.000,00,
para diminuir o montante de seu desembolso na hipótese de negação do pedido de be-
nefício da justiça gratuita pelo juiz da causa. Subscritas por pastores mobilizados pela
Igreja Universal como um encargo de seu ofício religioso ou por fiéis convocados para tal
missão, essas ações constituem em seu conjunto intolerável agressão à ordem democráti-
ca, pelo empenho em substituir o exercício de direitos consagrados pela legislação, espe-
cialmente o direito de resposta, por alternativa que, embora aparentemente abrigada
pelas leis do país, subtrai o direito de ampla defesa estabelecido pela Constituição. É
grave e preocupante que tal se faça sob o pálio de uma confissão religiosa, que se porá
acima do olhar dissonante dos que não a professam e da visão crítica com que estes a
encarem. A ABI dirige-se aos magistrados responsáveis pelo julgamento dessas ações para
alertá-los acerca dos danos que o deferimento do pleiteado pode causar à democracia no
país, objeto de um processo de construção ainda não encerrado e que deixou ao longo da
recente História do Brasil não poucas vítimas e não poucos mártires. Apela também a
ABI aos cidadãos comuns e às instituições representativas dos diferentes segmentos da
sociedade para que manifestem a esses magistrados a sua preocupação com a decisão que
deverão tomar em cada causa, que não afeta apenas a Folha de S. Paulo, A Tarde e a jor-
nalista Elvira Lobato, mas principalmente a integridade da democracia no país. Com esse
fim a ABI divulgará proximamente em seu site (www.abi.org.br) os nomes desses juízes e os
endereços desses juizados, para viabilizar a manifestação dos cidadãos ofendidos por essa
ação antidemocrática. Por fim, apela a ABI à Anistia Internacional para que desencadeie
um movimento mundial de solidariedade com os jornais e a jornalista ora ameaçados. Rio
de Janeiro, 18 de fevereiro de 2008. Mauricio Azêdo, presidente”. Disponível em: <http://
www.idp.org.br/web/idp/content/view/id/1021>. Acesso em: 16 out. 2008.

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A questão a ser analisada foi a estratégia adotada pela IURD na se-
quência dos fatos. Em vez de acionar judicialmente o jornal Folha de S.
Paulo, a IURD teria estimulado seus fiéis e integrantes a entrarem com
ações na Justiça de modo isolado, ao mesmo tempo que incluíam a
jornalista autora da matéria, Elvira Lobato, na ação judicial e não ape-
nas o Jornal. O resultado foi um volume grande de ações por todo o
país, inviabilizando ou dificultando a defesa do Jornal e da jornalista.
Alguns viram nisso uma estratégia condenável, outros entenderam
ser parte do “jogo democrático”, opinião, por exemplo, do ex-presiden-
te da República, Luis Inácio Lula da Silva. De todo modo, fica, para
efeitos de nosso estudo neste trabalho, a noção de que a situação de
minoria religiosa, só por si, pode não representar necessariamente uma
situação de vulnerabilidade ou de especial tutela estatal, submetendo-se
a outros elementos e a uma análise mais ampla.
Destarte, o caso da IURD comentado de modo breve exibiu a arti-
culação de seus fiéis em prol de seus interesses, além de ter-se valido a
instituição religiosa em foco de toda a sua estrutura de comunicação
para cooptar apoios e veicular ideias contrárias à reportagem. Se isso é
aceitável ou não, como forma de atuação num ambiente democrático, é
questão cuja análise não cabe neste estudo, mas mostra – e este é o foco
de nossa atenção – peculiariedades da dinâmica maioria-minorias no
campo religioso que devem ser levadas em conta.

7 Conclusão

Na verdade, talvez a maior das problemáticas envolvendo a ideia de


tolerância divide-se em duas partes. É que, a uma, ela se contrapõe a
algo igual, em sentido contrário e por vezes com força semelhante, ou
seja, a intolerância. Como segundo ponto, constata-se que só pode se
ver na contingência de tolerar algo quem, num primeiro momento, não
tolerou aquela mesma manifestação ou objeto, considerando este últi-
mo termo num sentido filosófico.
A tolerância assim, e há praticamente unanimidade nesta qualifica-
ção, é algo nobre e necessário; contudo, é ela própria fruto da não acei-
tação, constituindo-se um desafio da sociedade adotante da tolerância
introjetá-la na vivência social de modo consciente, caso contrário sem-
pre será necessário um esforço em sentido oposto, ou seja, no de com-
bater a intolerância, criando focos de desgaste muitas vezes constantes.

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Martinez de Pisón, já citado, bem indica o que queremos dizer:

El acto de tolerancia presupone, por tanto, primeramente la existencia de


razones para no admitir una acción, una ideología o una creencia. Sin embar-
go, trás sopesar o ponderar otro tipo de razones éstas se sobreponen a las
primeras de forma que se convierten en un motivo válido para cambiar la
actitud y, en definitiva, permitir, tolerar dicha acción, ideología y creencia.
Con razón se ha señalado que, vistas así las cosas, etimologicamente, “tolerar”
tiene un sentido negativo, implica una valorización negativa50.

O tipo de ponderação acima transcrito se mostra útil ao debate para


fornecer certo senso de profundidade à discussão, evitando, assim, basear-
mos nossas visões em platitudes estéreis cuja aceitação se aguarda seja
concretizada como se fosse a água de um rio que encontra a cachoeira e
fatalmente se lança ao solo. Não há fatalidades aqui nem ideias tão incon-
testáveis que não sejam submetidas a qualquer processo humano singular
adotado para outros tantos projetos e ideias de transformação social.
Igualmente digna de nota é a observação de que estamos, no tema
em destaque, imersos de modo completo na subjetividade. Se se afigura
fácil ou pelo menos muito mais simples trabalhar, por exemplo, pela
abolição da tortura, fundando-se, para tanto, na própria carga de abje-
ção e imoralidade que a conduta em si mesma carrega, o mesmo não se
dá no campo religioso.
Uma mulher que, por razões religiosas, tem seu clitóris extirpado,
causa comiseração e repulsa de um modo geral, mas dolorosa e inegavel-
mente expõe um grupo de valores culturais, pessoais e religiosos que
efetivamente existe e não pode ser, sem mais, extinto ou proibido. Sem
embargo, os exemplos acima configuram-se prova cabal de que a reli-
gião é hoje um foco extremamente importante de conflito numa abor-
dagem mundial. Está no centro ou pelo menos na sequência de fatos e
atos que levam aos conflitos.
Tanto mais paradoxal é se observar tal aspecto quando se verifica que
as religiões, de um modo ou outro, de uma forma ou outra, buscam uma
conexão com o sagrado, um religare, uma abstração em face do mundano
cujo objetivo é imantar-se numa vibração sutil, elevada, celeste.

50 Op. cit., p. 59.

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Desse modo, todas as religiões, sem exceção, defendem valores co-
muns como a paz, o entendimento, a fé e a caridade ou ajuda ao próxi-
mo. No entanto, envolvem-se constantemente em conflitos em que
elementos bem distantes desse ideário puramente religioso, como po-
der, dominação, ideologia e prevalência tomam espaço e marcam a for-
ma dos relacionamentos que, assim, serão bem diversos de algo tão so-
mente ligado à busca do sagrado.
Neste sentido, o ideário liberal buscou, por intermédio do Estado
Social de Direito, num primeiro momento, e do Estado Social Demo-
crático de Direito num momento posterior, criar mecanismos de me-
lhor convivência entre os diversos grupos religiosos. É um projeto de
sucesso duvidoso, ante os exemplos marcantes, alguns aqui destacados,
mas a opção a tal projeto seria, ao menos por ora, o vácuo. Um ideário
de liberdade e de tolerância, aplicável à religião, pode ser de viés liberal,
mas é também de viés humanista puramente considerado.
De outra parte, é preciso situar a religião e o sentimento religioso em
seu campo específico, sem coerção ou embaraço, mas igualmente sem
uma espécie de correspondência direta entre tal campo e a política, por
exemplo, algo que redunda em ações estatais motivadas por fundamentos
religiosos, no mais das vezes com argumentos excludentes e reducionistas
para os não participantes daquela visão de mundo.
Jonatas Eduardo Mendes Machado pontua com bastante clareza
este aspecto e frisa ser vital diferenciar o chamado discurso teológico-
confessional do discurso jurídico-constitucional, algo assim elaborado
pelo autor português destacado51:

... um e outro correspondem a espaços discursivos distintos, situados em


diferentes níveis de generalidade, subordinados a uma diversa teleologia
intrínseca. O primeiro é, naturalmente, um discurso exclusivista, virado aci-
ma de tudo para a defesa de uma concepção de verdade objectiva. O se-
gundo, é naturalmente inclusivo, que não homogeneizante, na medida em
que se apoia num princípio de igual dignidade da pessoa humana e num
conceito alargado de liberdade religiosa.

51 Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade


aos direitos dos cidadãos. Coimbra: Coimbra, 1996, p. 68.

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Prossegue ainda o mesmo autor, detalhando esta diferenciação52:

No primeiro caso, o silogismo de base segue muitas vezes a matriz aquinia-


na, de acordo com a qual, 1) só a verdade tem direitos; 2) só a confissão
dominante é a verdade; 3) logo, só a confissão dominante tem direitos. No
segundo caso, o silogismo é completamente diverso: 1) todos os cidadãos
têm direito a uma igual liberdade; 2) católicos, protestantes, ateus, etc., são
cidadãos; 3) logo, católicos, protestantes, ateus, etc., têm direito a uma
igual liberdade.

Assim, o novo panorama constitucional deve partir de uma base


inclusiva, o que é um conceito relativamente recente, em conjunto com
uma outra base, a tolerância, esta já conhecida há tempos, ao menos na
Idade Moderna. A junção de tais elementos é vital para a proteção e vi-
vência plena, sadia, livre e ampla das minorias no tocante à religião ou
à não religião (ateus e agnósticos), que, claro, devem ter assegurado seu
espaço de existência neste particular de forma digna.

8 Referências bibliográficas

ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de


Estudios Políticos y Constitucionales, 1997.
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Direitos Humanos e Direitos
Fundamentais: realidade e
herança da humanidade

Cristiane Vieira de Mello e Silva

Doutoranda em Direito Constitucional – PUCSP. Mestra em Direito – Universidade


Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito Civil – Faculdades Metropolitanas
Unidas. Professora Universitária da Universidade Municipal de São Caetano do Sul
– USCS. Procuradora do Município.

How many roads must a man walk down


Before they call him a man?
...
How many years can some people exist
Before they’re allowed to be free?
...
How many deaths will it takes’till he knows
Before that too many people are dying?

The answer my friend is blowing in the wind


The answer my friend is blowing in the wind.
(Blowin’ in the wind – Robert Zimmerman,
Poeta do Rock, 1962.)

A linguagem, nessa concepção, que hoje pode dizer-se


dominante, é a grande característica do ser humano,
constituindo mesmo sua humanidade. Democracia e
política têm a ver com ela. Assim, a linguagem geral-
mente é pensada como um artifício primordial, que
recorta o homem da natureza, do mundo do que está
dado, dos fatos. Por um lado, o animal, a natureza, a

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coisa bruta, por outro, o homem, com sua indetermi-
nação e liberdade. Talvez, aliás, assim até se emancipe
o humano do fatum ou destino: com a linguagem se
constrói a liberdade do homem, um ser sem progra-
mação prévia.
Além disso, a linguagem forja a igualdade do homem. O
fato de haver interlocução entre dois seres humanos, de
eles se constituírem mutuamente como partes num diá-
logo, determina que pelo menos formalmente e aqui a
forma é decisiva eles se realizem como iguais.
(A palavra democrática: ou da utopia da necessidade
à utopia poética – Renato Janine Ribeiro.)

1 Introdução

Iniciamos nossa reflexão sobre Direitos Humanos e Direitos Funda-


mentais como uma realidade e herança da humanidade, procurando
traçar seu exato perfil dos objetos de nossa análise delimitando-os.
Isto porque muitos doutrinadores utilizam os termos Direitos Hu-
manos e Direitos Fundamentais como expressões sinônimas, circuns-
tância que, por vezes, enseja problemas na compreensão dos institutos
estudados que, na verdade, retratam realidades diversas.
Apresentamos, neste trabalho, conceituações de vários autores con-
sagrados e estudiosos do Direito, sobre os temas.
Partimos do conceito e da origem dos Direitos Humanos. Destaca-
mos sua importância no tempo e no espaço. Denotamos sua positivação
como Direitos Fundamentais.
Tangenciamos sobre sua origem, tempo, vinculação, foco e veículo
legislativo.
Destacamos também aspectos próprios dos Direitos Fundamentais.
No fim do trabalho ousamos apresentar uma rápida análise do tema
direitos humanos e direitos fundamentais à luz da teoria de Vilém Flusser
para alcançar um único objetivo, o da conscientização.
Para Carlos Aurélio Mota de Souza, “conscientizar o homem para a
Cidadania!” é fundamental. “É o ‘dever-ser’ da doutrina superior dos

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direitos do homem! A dignidade do homem – como ser privilegiado na
natureza – somente se expressa plenamente na convivência pacífica com
os semelhantes e na condução eficaz e igualitária do bem comum, atra-
vés da administração política da coisa pública”1.
Concordamos com o estudioso em sua asserção, principalmente
quando assinala: “O primado da educação deve consistir na formação
do homem para o exercício da cidadania, pois é nesse âmbito que se
pode vislumbrar a concretização dos direitos humanos, em plenitude”2.

2 Dos Direitos Humanos e dos Direitos


Fundamentais

2.1 Conceito

Procuramos conhecer, traçar o perfil do objeto de nossa análise na


elaboração do presente estudo e nesse momento perguntamos: Direitos
do Homem ou Direitos Fundamentais?

2.1.1 Direitos do Homem ou Direitos Fundamentais

O homem é um ser universal.


Ao mencionar homem e direitos “naturais” e “inalienáveis” estamos
nos referindo e justificando a existência de Direitos Fundamentais no
Estado Democrático de Direito?
Não exatamente.
Partimos dessas premissas (Homem, direitos “naturais” e “inaliená-
veis”) para estudar os Direitos Humanos, direitos que acompanham o
homem em sua origem e evolução, direitos que estabelecem raízes em
um processo histórico, social, jurídico e político, dinâmico.
Percebemos, contudo, que os autores, ao elaborarem seus concei-
tos sobre Direitos Humanos, realizam suas análises por ângulos diversos,

1 Direitos humanos, urgente! p. 179.


2 Idem.

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oferecendo maior ou menor atenção à sua natureza, origem, finalidade e
à necessidade de positivação. Por vezes os vincula à sociedade já organiza-
da e é nesse momento que verificamos nascer a ambiguidade, a impreci-
são, ou, até mesmo, a confusão do uso da expressão Direitos Humanos por
Direitos Fundamentais.
Explicamos nossa asserção por meio da apresentação dos conceitos
e tecemos alguns comentários:
“Direitos Humanos são as ressalvas e restrições ao poder político ou
as imposições a este, expressas em declarações, dispositivos legais e me-
canismos privados e públicos, destinados a fazer respeitar e concretizar
as condições de vida que possibilitem a todo ser humano manter e desen-
volver suas qualidades peculiares de inteligência, dignidade e consciên-
cia, e permitir a satisfação de suas necessidades materiais e espirituais”3
(grifamos).
No conceito supra, verificamos a preocupação de Fernando Bar-
cellos de Almeida ao vincular o conceito ao homem enfatizando sua
finalidade (respeito, a concretização e desenvolvimento de sua inte-
gridade material e espiritual e à necessidade de restrição do poder
político). Reporta-se, contudo, às “declarações” sem fazer alusão à
Constituição.
Também João Baptista Herkenhoff conceitua Direitos Humanos
apontando a fundamentalidade destes (porque inerentes ao homem)
sem, contudo, vinculá-los a um documento escrito na origem, reconhe-
cendo que (porque naturais) devem ser garantidos pela sociedade orga-
nizada, como um dever:
“Por direitos humanos ou direitos do homem são, modernamente,
entendidos aqueles direitos fundamentais que o homem possui pelo
fato de ser homem, por sua própria natureza humana, pela dignidade
que a ela é inerente. São direitos que não resultam de uma concessão da
sociedade política. Pelo contrário, são direitos que a sociedade política
tem o dever de consagrar e garantir”4 (grifamos).

3 ALMEIDA, Fernando Barcellos de. Teoria geral dos direitos humanos, p. 24.
4 Curso de direitos humanos: gênese dos direitos humanos, v. 1, p. 30.

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Alexandre de Moraes5, por sua vez, ao estudar os Direitos Huma-
nos e conceituá-los apresenta o relevo do tema e finalidade. Reco-
nhece a existência prévia dos Direitos Humanos à norma constitu-
cional, momento em que ressalta a necessidade de previsão no Texto
Maior vinculando-os, como elemento garantidor da ingerência do
Estado:
“Os Direitos Humanos colocam-se como uma das previsões absolu-
tamente necessárias a todas as Constituições, no sentido de consagrar o
respeito à dignidade humana, garantir a limitação de poder e visar o
pleno desenvolvimento da personalidade humana”6 (grifamos).
J. S. Fagundes Cunha oferece um conceito dentro de um con-
texto organizado e legislado, sem negar a base moral aos Direitos
Humanos.
“Direitos Humanos são uma ideia política com base moral e estão in-
timamente relacionados com os conceitos de justiça, igualdade e demo-
cracia. Eles são uma expressão do relacionamento que deveria prevalecer
entre os membros de uma sociedade e entre indivíduos e Estados. Os Direitos
Humanos devem ser reconhecidos em qualquer Estado, grande ou pequeno,
pobre ou rico, independentemente do sistema social e econômico que essa
nação adota”7 (grifamos).
Denota-se, portanto, que a referida ambiguidade conceitual entre
Direitos Humanos e Direitos Fundamentais não encontra suporte his-
tórico social ou jurídico, pois, na verdade, são instituições diferentes
uma da outra.

5 Autor nacional que enfrenta o assunto realizando fusão entre os institutos na esfe-
ra conceitual, em obra denominada Direitos humanos fundamentais: teoria geral – co-
mentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil – doutri-
na e jurisprudência, entende que “importante é realçar que os direitos humanos
fundamentais relacionam-se diretamente com a garantia de não ingerência do Estado
na esfera individual e a consagração da dignidade humana, tendo universal reconheci-
mento por parte da maioria dos Estados, seja em nível constitucional, infraconstitucio-
nal, seja em nível de direito consuetudinário ou mesmo por tratados e convenções in-
ternacionais” (p. 41 – grifamos).
6 Direitos humanos fundamentais, v. 3, p. 20.
7 Os direitos humanos e os direitos da integração. Jus Navigandi, Teresina, ano 2, n.
26, set. 1998. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1605>.

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A temática, sob nossa ótica, é abordada por vários doutrinadores8.
Ana Maria D’Ávila Lopes, em seu livro, trabalha a diferença
conceitual das expressões Direitos Humanos e Direito Fundamental
com desenvoltura.
Explica a doutrinadora que “direitos humanos são princípios que resu-
mem a concepção de uma convivência digna, livre e igual de todos os seres
humanos, válidos para todos os povos em todos os tempos” (grifamos).
Por outro lado, a estudiosa especifica serem os Direitos Fundamen-
tais “direitos jurídica e constitucionalmente garantidos e limitados espa-
cial e temporariamente”9.
Segue ela a linha transcrita adotada por Habermas, que distingue
entre “droits de l’homme na qualidade de normas de ação moralmente
justificadas e droits de l’homme enquanto normas constitucionais dota-
das de valor de direito positivo”10.
Para Luiz Afonso Heck, “direitos fundamentais constituem-se em
alicerce dos Estados de Direito. Preordenam-se a assegurar na esfera de
liberdade do particular diante da intervenção do poder público e, ou-
trossim, pretendem implantar uma ordem de valores objetivando a pre-
servação da dignidade da pessoa humana ao traduzir-se como principal
sustentáculo de um Estado Democrático e vinculando hermenêutica e
axiologicamente todo o ordenamento jurídico”11.
Interessante é registrar a interpretação que Cruz Villalon confere
tanto aos Direitos Humanos quanto aos Direitos Fundamentais. Destaca

8 Nesse sentido, ver LOPES, Ana Maria D’Ávila. Os direitos fundamentais como limite ao
poder de legislar. p. 41-46; MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional: direitos
fundamentais, t. IV, p. 48-107; MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais:
teoria geral – comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil
– doutrina e jurisprudência, p. 39-41; PEIXINHO, Manoel Messias. Temas de constitucio-
nalismo e democracia – teoria democrática dos direitos fundamentais, p. 117; SARLET, Ingo
Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de
1988, p. 79-107.
9 Os direitos fundamentais como limite ao poder de legislar, p. 41-43.
10 Apud CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição,
p. 353.
11 Apud PEIXINHO, Manoel Messias. Temas de constitucionalismo e democracia – teo-
ria democrática dos direitos fundamentais, p. 119.

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o estudioso que “onde não existir Constituição não haverá direitos fun-
damentais. Existirão outras coisas, seguramente mais importantes, di-
reitos humanos, dignidade da pessoa; existirão coisas parecidas, igual-
mente importantes, como as liberdades públicas francesas, os direitos
subjetivos públicos dos alemães; haverá, enfim, coisas distintas como
foros ou privilégios”. Daí a conclusão do autor: os direitos fundamen-
tais são-no, enquanto tais, na medida em que encontram reconhecimento
nas constituições e deste reconhecimento se derivem consequências
jurídicas”12 (grifamos).
Concordamos com todos os conceitos até então apresentados; con-
tudo, cumpre-nos apontar uma versão, em especial, que muito nos
agrada sobre o tema, até porque acreditamos traçar bem as diferenças
entre Direitos do Homem e Direitos Fundamentais.
Assim, para Canotilho, Direitos do Homem “são esperanças, aspi-
rações, ideias, impulsos, ou até, por vezes, mera retórica política, se não
estruturados sob a forma de normas e consagrados no texto constitucional ”13.
(grifamos).
Resumindo, os Direitos Humanos constitucionalizados adquirem
status de Direito Fundamental e, por sua vez, considerando a importân-
cia da matéria, gozam de uma tutela reforçada14.
Imperioso o cuidado técnico na apresentação de conceitos de insti-
tutos próximos para não desfigurar a sua essência.
Entendemos que a sinonímia terminológica possua fundamentos
históricos dos institutos (Direitos Humanos e Direitos Fundamentais),
circunstância que passamos a tangenciar.

2.2 A ambiguidade terminológica extraída da história

De fato, há proximidade entre realidades retratadas pelos Direitos


Humanos e pelos Direitos Fundamentais no tempo e no espaço.

12 Formación y evolución, p. 41.


13 Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 353.
14 Ver PÉREZ LUÑO, Antonio. Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitución,
p. 48.

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Referimo-nos à Europa, entre os séculos XVI e XVIII15. Berço e
tempo de ideias vanguardistas 16 transformação decorrente de um lega-
do histórico e social 17 muito sofrido.

15 “A Reforma Protestante do século XVI também colabora para o fortalecimento da


autoridade monárquica, pois enfraquece o poder papal e coloca as igrejas nacionais sob o
controle do soberano. Com a evolução das leis, com base no estudo do direito romano,
surgem teorias que justificam o absolutismo, como as de Nicolau Maquiavel (1469-1527),
Jean Bodin (1530-1595), Jacques Bossuet (1627-1704) e Thomas Hobbes (1588-1679).
(...) O Estado absolutista típico é a França de Luís XIV (1638-1715). Conhecido como o
Rei Sol, a ele é atribuída a frase que se torna o emblema do poder absoluto: ‘O Estado sou
eu’. Luís XIV atrai a nobreza para o Palácio de Versalhes, perto de Paris, onde vive em clima
de luxo inédito na história do Ocidente. Na França, o absolutismo termina com a Revolu-
ção Francesa (1789). Com o fim do absolutismo, adentramos ao Iluminismo, que é a cor-
rente de pensamento dominante no século XVIII, que defende o predomínio da razão so-
bre a fé e estabelece o progresso como destino da humanidade. Seus principais idealizadores
são John Locke (1632-1704), Montesquieu (1689-1755), Voltaire (1694-1778) e Rousseau
(1712-1778). Representa a visão de mundo da burguesia intelectual da época e tem suas
primeiras manifestações na Inglaterra e na Holanda. Alcança especial repercussão na Fran-
ça, onde se opõe às injustiças sociais, à intolerância religiosa e aos privilégios do absolutismo
em decadência. Influencia a Revolução Francesa, fornecendo-lhe, inclusive, o lema Liberdade,
Igualdade e Fraternidade” (grifamos).
16 Em Itinerários de Antígona – a questão da moralidade, p. 32-33, Bárbara Feritag nos
apresenta o século XVIII como o mundo das ideias. Narra que o século XVIII é o “Século
das Luzes” na França, Inglaterra e Alemanha. Enfatiza que “a essência da moralidade
Iluminista é buscar princípios orientadores da ação fora da religião (do cristianismo), já
que rejeita a ideia da revelação e a sujeição do indivíduo à lei divina”.
17 Estudando a origem dos direitos individuais do homem, encontramos informações his-
tóricas importantes. Nesse diapasão, constatamos ser uma preocupação antiquíssima. Apre-
sentamos material compilado nas obras de João Baptista Herkenhoff, Curso de direitos huma-
nos: gênese dos direitos humanos, Flavia Martins André da Silva, Direitos fundamentais;
Bárbara Feritag, Itinerários de Antígona – a questão da moralidade, Carlos Aurélio Mota
Souza, Direitos humanos, Urgente!, especialmente no site Dhnet.org.br e no texto de Suzana J.
de Oliveira Carmo, Direitos humanos – trajetória no tempo, fragmentos da história, publicado
no site Direito net em 29-1-2004, que transcrevemos com alguma modificação: “Já no sécu-
lo XVIII a. C., na Babilônia, nos pensamentos do imperador do Egito, Amenófis IV. No
século XIV a.C; as ideias de Platão, na Grécia. No século IV a.C. há registro sobre a necessi-
dade da igualdade e liberdade do homem com a previsão de participação política dos cida-
dãos (democracia direta de Péricles). A crença na existência de um direito natural anterior e
superior às leis escritas, defendida no pensamento dos sofistas e estoicos (por exemplo, na
obra Antígona – 441 a.C. – Sófocles defende a existência de normas não escritas e imutáveis,
superiores aos direitos escritos do homem). No Direito Romano, e em outras civilizações e
culturas ancestrais, eram previstos mecanismos de proteção face o Estado. O Código de
Hamurabi (1690 a.C.) talvez seja a primeira codificação a consagrar um rol de direitos
comuns a todos os homens, tais como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade, a

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Mostra-se inerente à natureza humana a procura ávida do reconheci­
mento e proteção de suas necessidades básicas18, remonta muitos séculos
na busca da construção de uma comunidade igualitária e justa e efetiva-
mente garantidora19 dessas conquistas.
Mister ressaltar o pensamento de Herkenhoff, com o qual con-
cordamos:
“A simples técnica de estabelecer em constituições e leis, a limitação do
poder, embora importante, não assegura, por si só, o respeito aos Direitos
Humanos. Assistimos em épocas passadas e estamos assistindo, nos dias
de hoje, ao desrespeito dos Direitos Humanos em países onde eles são
legal e constitucionalmente garantidos. Mesmo em países de longa esta-
bilidade política e tradição jurídica, os Direitos Humanos são, em diver-
sas situações concretas, rasgados e vilipendiados”20 (grifamos).

família, prevendo, igualmente, a supremacia das leis em relação aos governantes. Não se
pode negar, ainda, a influência filosófico-religiosa com a propagação das ideias de Buda, basi-
camente sobre a igualdade de todos os homens (500 a.C.). O Direito Romano que estabeleceu
um complexo mecanismo de interditos visando tutelar os direitos indivi­duais em relação aos
arbítrios estatais. A Lei das XII Tábuas pode ser considerada a origem dos textos escritos con-
sagradores da liberdade, da propriedade e da proteção aos direitos do cidadão. Tempos depois,
com o Cristianismo, veio o homem se deparar com esta concepção religiosa, que se baseava na
ideia de que cada pessoa é criada à imagem e semelhança de Deus. O que posteriormente será
abordado pelo Iluminismo, desta feita, diante de uma nova visão, destacando a imagem de
Deus criador, apartando-a da figura material da própria igreja, que vincula e propaga a religião
entre os povos. Para o Iluminismo, Deus está na natureza e no homem, que pode descobri-lo
por meio da razão e da ciência, que são as bases do entendimento do mundo, dispensando a
Igreja. Afirma que as leis naturais regulam as relações sociais e considera os homens natural-
mente bons e iguais entre si – quem os corrompe é a sociedade. Cabe, portanto, transformá-la
e garantir a todos liberdade de expressão e culto, igualdade perante a lei e defesa contra o arbí-
tiro. O que importa é que a descoberta de Deus, seu reconhecimento como criador de todas as
coisas, sua latente influência comportamental, nitidamente, não bastaram para impedir que a
sociedade humana vivesse posteriormente períodos extensos e de opressão, tal como o absolu-
tismo, que caracterizou um longo período da história” (destacamos).
18 HERKENHOFF, João Baptista. Curso de direitos humanos – gênese dos direitos
humanos, v. 1, p. 30.
19 No entanto, o próprio Herkenhoff salienta que, não obstante já haver uma preocu-
pação com tais direitos, estes não possuíam uma garantia legal, de forma que eram bas-
tante precários em sua estrutura política, já que o respeito a eles dependia da sabedoria
dos governantes. Apesar de tais fatos, tal contribuição não deixou de ser relevante na
criação da ideia dos Direitos Humanos.
20 Curso de direitos humanos: gênese dos direitos humanos, v. 1, p. 51-52.

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Em que pese o passar dos séculos, há uma marca que serve de fun-
damento para a intersecção dos Direitos Humanos e Fundamentais estru-
turando esse segundo instituto.
O Constitucionalismo21 inglês, americano e francês.
A colonização americana também contribuiu para esse aprimora-
mento do quadro filosófico, político, histórico e jurídico22.

21 O Constitucionalismo inglês é muito antigo. Somente a partir do século XVI, o Direi-


to Constitucional inglês atraiu a atenção de monarquistas como objeto de estudo e admira-
ção. Segundo Suzana J. de Oliveira Carmo, (Direitos humanos: trajetória no tempo,
fragmentos da história, texto publicado no site Direitonet em 29-1-2004), já na Ingla-
terra a postura era diferenciada, pois “elaboram-se cartas e estatutos assecuratórios de
direitos fundamentais, como a Magna Carta (1215-1225), que protegia essencialmen-
te apenas os homens livres, a Petition of Rights (1628), que requeria o reconhecimento
de direitos e liberdades para os súditos do Rei, o Habeas Corpus Amendment Act (1769),
que anulava as prisões arbitrárias, e o Bill of Rights (1688), (Não podemos olvidar que
‘o processo de extinção do absolutismo na Europa começa na Inglaterra com a Revo-
lução Gloriosa (1688), e esse conflito sem batalhas é também chamado de Revolução
sem Sangue. Guilherme de Orange torna-se rei da Inglaterra com o nome de Guilher-
me III, depois de assinar a Bill of Rights (Declaração de Direitos), em 16 de dezembro
de 1689, que institui o governo parlamentar inglês. Na declaração estão os limites de
atuação do monarca. Ele é obrigado a submeter ao Parlamento a aprovação de qual-
quer aumento de impostos e deve garantir a liberdade de imprensa, a liberdade indivi-
dual e da propriedade privada. O anglicanismo é confirmado como religião oficial e
toleram-se todos os credos, menos o católico. O ministério, além disso, deve observar
uma alternância entre a nobreza latifundiária e a burguesia urbana. Dessa forma, a
monarquia absoluta inglesa é substituída pela monarquia constitucional, que limita a
autoridade real com a Declaração de Direitos (Constituição), assinalando a ascensão
da burguesia ao controle do Estado’) o mais importante destas, pois submetia a monar-
quia à soberania popular, transformando-a numa monarquia constitucional, e, sem
esquecer do Act of Settlement (1707), que completa o conjunto de limitações ao poder
monárquico do período”.
22 Suzana J. de Oliveira Carmo comenta sobre o tema: “Outros documentos de
relevância para o estudo das garantias individuais são a Mayflower Campact de
1620, que garantia um governo limitado e também as Cartas de direitos e liberda-
des das Colônias inglesas na América, como: Charter of New England, 1620; Char-
ter of Massachusetts Bay, de 1629; Charter of Maryland, de 1632; Charter of Con-
necticut, de 1662; Charter of Rhode Island, de 1663; Charter of Carolina, de 1663;
Charter of Geórgia, de 1732; Massachusetts Body of Liberties, de 1641; New York
Charter of Liberties de, 1683; e Pennsylvania Charter of Privileges, de 1701” (Direi-
tos humanos: trajetória no tempo, fragmentos da história, texto publicado no site
Direitonet em 29-1-2004).

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É justamente dentro desse período, na Europa, entre os séculos XVI
e XVIII23, que surgem as teorias dos Direitos Humanos e dos Direitos
Fundamentais. Imperioso assinalar que a segunda estrutura-se graças ao
desenvolvimento da primeira.
Contudo, somente no fim do século XVIII, com a Revolução
Francesa24, é que se tem notícia do Constitucionalismo e como conse-
quência emerge a ideia de Constituição (moderna) limitadora do poder
soberano e que passa a salvaguardar a liberdade, os direitos e as garantias
dos cidadãos, sendo sua historicidade característica essencial dos Direitos
Fundamentais.
Com o nascimento da Constituição surge o cidadão, o homem-
-cidadão, daí falar-se em interseção entre Direitos Humanos e Direitos
Fundamentais.
Segundo Ferdinand Lassalle, “a Constituição é a lei fundamental pro-
clamada pela nação, na qual se baseia a organização do Direito público do
país”25. Não pode distanciar-se da realidade. Possui natureza peculiar, por-
tanto é indispensável. Expressa, ao mesmo tempo, um ser e um dever-ser.
A Constituição adquire força normativa26 ao vincular a história (pas-
sado) da comunidade, adaptando-a à realidade e, ao mesmo tempo, man-
tendo íntegra sua força ativa (no presente), transformando-se conforme a
dinâmica e o avanço da comunidade, mostrando-se eficaz (no futuro).

23 “Assim, mister se faz ressaltar que no século XVII foram feitas conquistas substanciais
e definitivas, contudo o surgimento das liberdades públicas tem como ponto de referência
duas fontes primordiais: o pensamento iluminista da França do século XVIII e a Indepen-
dência Americana” (CARMO, Suzana J. de Oliveira. Direitos humanos: trajetória no tem-
po, fragmentos da história, texto publicado no site Direitonet em 29-1-2004).
24 “E, este momento histórico foi acalantado pelo liberalismo, que é zeloso defensor da
liberdade dos indivíduos. Essa liberdade é sempre concebida, porém, de forma negativa: o
indivíduo é tão mais livre quanto menos ele é impedido de realizar seus desejos e objetivos
por fatores externos a ele. A única restrição legítima à liberdade do indivíduo que o libera-
lismo admite é aquela decorrente do princípio de que todos devem ser igualmente livres. A
liberdade de um indivíduo só pode ser restringida, portanto, quando sua não restrição
implique restrição indevida da liberdade de outros. Em suma, a liberdade de um termina
onde começa a do outro” (CARMO, Suzana J. de Oliveira. Direitos humanos: trajetória no
tempo, fragmentos da história, texto publicado no site Direitonet em 29-1-2004).
25 A essência da Constituição, p. 6.
26 HESSE, Konrad, A força normativa da Constituição.

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Assim, para ser considerada uma “Constituição real” e “Constitui-
ção jurídica” deve atender às condicionantes naturais da comunidade,
retratando e organizando o seu modo de ser, atendendo harmonicamen-
te às suas necessidades, transformações.
Portanto, os Direitos Humanos, valores morais, princípios que veto-
ram a convivência digna, livre e igual de todos os seres humanos, válidos
para todas as comunidades em todos os tempos, passam para a categoria
de Direitos Fundamentais quando dotados de valor positivo, isto é, pas-
sam a ser jurídica e constitucionalmente garantidos, espacialmente limi-
tados, assim como no tempo. É nesse momento que há a interseção
harmônica entre os Direitos Humanos e os Direitos Fundamentais sem
que percam suas características estruturantes; natural e construído.
Das conceituações colacionadas e da história apresentada extraímos
marcos diferenciadores entre os Direitos Humanos e os Direitos Funda-
mentais que passamos a apresentar.

2.3 Das características dos Direitos Humanos e dos Direitos


Fundamentais

Passamos agora a considerar as características marcantes dos Direi-


tos Humanos e dos Direitos Fundamentais.

2.3.1 A origem

Entendemos que o estudo da Declaração de Direitos de 1789,


nominada Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, elucida
bem a questão.
Nesse documento resta clara a distinção entre o homem natural e o
homem como indivíduo que vive em sociedade (homem-cidadão).
Assim, os Direitos Humanos extraem da própria natureza humana,
antes da criação de qualquer contrato social, o caráter de inviolável,
imprescritível e universal. Sua validade afeta igualmente todos os povos
em todos os tempos pela dimensão jusnaturalista – universalista.
Os Direitos Fundamentais que também são direitos do homem, as-
sumem, por sua vez, um caráter diferenciado, visto que visualizam esse

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homem integrado na sociedade organizada, titular de direitos positiva-
dos, garantidos e limitados no tempo e no espaço e, pela matéria que
consagram, inserem-se em normas hierarquicamente superiores.
Focam o indivíduo além da esfera privada, reflete-se também no
âmbito público, integrando-o como membro de uma comunidade po-
lítica, que precisa ser por ela reconhecido.
Esse indivíduo que passa a ser membro da comunidade política é
aquele homem natural que mantém seus direitos humanos e conquis-
ta novo status pelo fato de integrar a sociedade organizada e dela par-
ticipar, adquirindo personalidade jurídica, que qualifica sua relação
com o Estado.

2.3.2 O tempo

Os Direitos Humanos são imprescritíveis, não se perdem pelo de-


curso do prazo, perduram no tempo e no espaço e integram o patrimô-
nio pessoal do homem.
Os Direitos Fundamentais são limitados quanto ao tempo, vez
que, positivados em documento escrito, podem figurar como objeto de
revisão no contexto constitucional; no entanto, pode a própria norma
incorporadora do Direito Fundamental tornar-se impermeável e apresen-
tar-se como limite material para sua própria revisão.

2.3.3 A vinculação

Os Direitos Humanos não precisam ser implementados pelo Poder


Público porque naturais, inerentes à essência humana, universal.
Já as normas de Direitos Fundamentais, porque constitucionais, pos-
suem vinculatividade imediata dos poderes públicos, orientando-os
nas escolhas e decisões.

2.3.4 A finalidade

O alvo dos Direitos Humanos é o homem, em sua essência natural


e moral com caráter axiológico.

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As normas de Direito Fundamental focam o cidadão e por via de
consequência, o homem.
Suas normas são dotadas de fundamentalidade formal à medida que
permitem, por derivação, a construção de outros direitos materialmente
fundamentais, mas não necessariamente instruem o diploma constitu-
cional em sua forma.
Também, em uma apreciação aberta, as normas de Direito Funda-
mental propiciam a construção de novos direitos fundamentais.

2.3.5 O veículo legislativo

Os Direitos Humanos sempre foram veiculados por meio de decla-


rações e estas não possuem um caráter de criação de direitos ou de ou-
torga, apenas os reconhece e os declara, até porque referidos direitos são
anteriores a toda lei escrita e a qualquer contrato.
Assim, podemos citar como importantes no processo de estrutura-
ção dos Direitos Humanos a Declaração do Bom Povo de Virgínia
(1776), enfatizando o seu art. 1º27; a Declaração dos Direitos do Ho-
mem e do Cidadão (1789); e a Declaração Universal dos Direitos do
Homem (1948), art. 1º 28.

27 “DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA VIRGÍNIA


Dos direitos que nos devem pertencer a nós e à nossa posteridade, e que devem ser consi-
derados como o fundamento e a base do governo, feito pelos representantes do bom povo da
Virgínia, reunidos em plena e livre convenção.
Williamsburg, 12 de junho de 1776.
Art. 1º Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos
certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem
despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de
adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança”.
28 “DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM
Preâmbulo
CONSIDERANDO que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os mem-
bros da família humana e seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade,
da justiça e da paz no mundo,
CONSIDERANDO que o desprezo e o desrespeito pelos direitos do homem resul-
taram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade, e que o advento de

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Nos textos traduzem a ideologia jusnaturalista, pois todos conce-
bem os Direitos Humanos como Direitos Naturais.
Os Direitos Fundamentais são positivados e não é qualquer forma
de positivação a ser adotada. A positivação dos Direitos Fundamentais é
constitucional e, além da importância do instrumento que os vincula
atenção especial, deve ser conferida à matéria que deve ser interpretada
como norma jurídica vinculante. Essa circunstância se dá ante a ausên-
cia de eficácia das Declarações de Direito.
Repetimos os ensinamentos de Canotilho sobre o assunto: Direitos Hu-
manos “são esperanças, aspirações, ideias, impulsos, ou até, por vezes, mera

um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade


de viverem a salvo do temor e da necessidade,
CONSIDERANDO ser essencial que os direitos do homem sejam protegidos pelo impé-
rio da lei, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a
tirania e a opressão,
CONSIDERANDO ser essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas
entre as nações,
CONSIDERANDO que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé
nos direitos do homem e da mulher, e que decidiram promover o progresso social e melhores
condições de vida em uma liberdade mais ampla,
CONSIDERANDO que os Estados-membros se comprometeram a promover, em co­
operação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades fundamentais do
homem e a observância desses direitos e liberdades,
CONSIDERANDO que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da
mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso,
A Assembleia Geral das Nações Unidas proclama a presente ‘Declaração Universal
dos Direitos do Homem’ como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas
as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre
em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o
respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter
nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância univer-
sais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-membros, quanto entre os po-
vos dos territórios sob sua jurisdição.
Art. 1º Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de
razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.
Art. 2º I – Todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabeleci-
dos nesta Declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião,
opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou
qualquer outra condição” (grifamos).

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retórica política, se não estruturados sob a forma de normas e consagrados no
texto constitucional”29 (grifamos), isso porque Direitos Humanos constitu-
cionalizados adquirem status de Direito Fundamental e, por sua vez, consi-
derando importância da matéria, gozam de uma tutela reforçada30.
Ana Maria D’Ávila Lopes especifica “as consequências que decor-
rem da constitucionalização dos Direitos Fundamentais:
a) normas colocadas no grau superior da ordem jurídica;
b) normas submetidas ao processo agravado de reforma constitucional;
c) normas que limitam materialmente a própria reforma;
d) normas dotadas de vinculatividade imediata dos poderes públi-
cos, constituindo parâmetros de escolhas, decisões, ações e controles dos
órgãos legislativos, administrativos e jurisdicionais;
e) normas protegidas através do controle de constitucionalidade
dos atos normativos infraconstitucionais que pretendem regulá-las.
Esta é, sem dúvida, a consequência mais importante”31.
Acreditamos que o estudo identificador dos pontos de interseção
entre os Direitos Humanos e os Direitos Fundamentais eventualmente
propicie e contribua para que haja a confusão terminológica desses ins-
titutos diferenciados.
Uma vez superada a questão conceitual e histórica relativa aos Di-
reitos Humanos e Fundamentais, passaremos a refletir sobre a natureza
das normas que disciplinam os Direitos Fundamentais, conferindo es-
pecial atenção às garantias.

3 Dos Direitos Fundamentais

3.1 Da natureza jurídica das normas que disciplinam os


Direitos e Garantias Fundamentais

Inicialmente, cumpre-nos destacar a natureza das normas de Direito


Fundamental: constitucionais visto que integram o corpo da Constitui-
ção Federal, portanto, presentes no patamar mais alto do sistema legal.

29 Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 353.


30 Ver PÉREZ LUÑO, Antonio. Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitución,
p. 48.
31 Os direitos fundamentais como limite ao poder de legislar, p. 58.

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Canotilho afirma que “designa-se por constitucionalização a incor-
poração de direitos subjectivos do homem em normas formalmente bá-
sicas, subtraindo-se o seu reconhecimento e garantia à disponibilidade
do legislador ordinário (Satourzh). A constitucionalização tem como
consequência mais notória a protecção dos direitos fundamentais me-
diante o controle jurisdicional da constitucionalidade dos actos norma-
tivos reguladores destes direitos”32.
As normas que estruturam os Direitos Fundamentais são dotadas
de imutabilidade, na medida em que protegidas contra alterações pelo
Poder constituinte derivado.
A eficácia e a aplicabilidade das normas de Direitos Fundamentais
dependem essencialmente de seu enunciado, ou seja, a própria Consti-
tuição, em uma norma-síntese, determina pela redação do preceito se a
norma tem aplicação imediata ou se depende de complementação legis-
lativa para ser aplicável.
Acreditamos, no entanto, que no direito brasileiro sejam todas efi-
cazes desde logo. Pelo menos é o que se extrai do conteúdo do § 1º do
art. 5º da CF33 e, ainda, por meio da previsão de garantias constitucio-
nais, tais como o mandado de injunção e a iniciativa popular.
Canotilho34 aponta ainda como característica a fundamentalidade,
que se subdivide em formal e material.
A fundamentalidade formal se divide em:
a) as normas consagradoras de direitos fundamentais, como nor-
mas fundamentais, são normas colocadas no grau superior da ordem
jurídica;
b) como normas constitucionais encontram-se submetidas aos pro-
cedimentos agravados de revisão;

32 Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 348.


33 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantin-
do-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação ime-
diata” (grifamos).
34 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 373.

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c) como normas incorporadoras de direitos fundamentais, passam,
muitas vezes, a constituir limites materiais da própria revisão; e
d) como normas dotadas de vinculatividade imediata dos poderes
públicos, constituem parâmetros materiais de escolhas, decisões, ações e
controle dos órgãos legislativos, administrativos e jurisdicionais.
A fundamentalidade material, por sua vez, pode fornecer suporte
para:
a) abertura da constituição a outros direitos, também fundamen-
tais, mas não constitucionalizados, isto é, direitos materialmente, mas
não formalmente fundamentais;
b) aplicação a estes direitos só materialmente constitucionais de al-
guns aspectos do regime jurídico inerente a fundamentalidade formal;
c) abertura a novos direitos fundamentais.
Passemos agora a delimitar a função dos Direitos Fundamentais na
comunidade.

3.2 Das funções dos Direitos Fundamentais

Os Direitos Fundamentais exercem diversas funções, que são assim


enumeradas por Canotilho:
1) Função de defesa ou de liberdade: isto é, os direitos fundamen-
tais constituem normas de competência negativa para os poderes
públicos, e implicam o poder de exercer positivamente direitos fun-
damentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes pú-
blicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte destes (liberdade
negativa).
2) Função de prestação social: ou seja, os direitos e prestações signifi-
cam direito do particular de obter algo por intermédio do Estado (saú-
de, educação, segurança social etc.).
3) Função de proteção perante terceiros: muitos direitos impõem um
dever ao Estado (poderes públicos) no sentido de proteger perante ter-
ceiros os titulares de direitos fundamentais.
4) Função de não discriminação: a partir do princípio da igualdade
devem os direitos fundamentais assegurar que o Estado trate os seus ci-
dadãos como fundamentalmente iguais.

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Após elencar as funções implementadas pelos Direitos Funda-
mentais na comunidade, temos como alvo de nossa apreciação seus
titulares.

3.3 Dos titulares dos Direitos Fundamentais

“... el hombre es el sujeto de esos derechos en razón o por causa de


ser un individuo de la especie humana, y que por ello mesmo todo
hombre y cada hombre los titulariza. No uno solo, no unos pocos, no
algunos, no muchos, sino todos y cada uno”35.
Inicialmente, os Direitos Fundamentais, nas primeiras declarações,
eram exclusivamente individuais, titularizados pelo homem, pessoal,
física e singularmente.
Em um segundo momento, entretanto, surgem direitos insuscetí-
veis desse enquadramento, pois titularizados por grupos, como o direito
de reunião e o direito de associação.
No século XX, resta nítida a criação de direitos de dimensão ins-
titucional e coletiva, como o direito à greve, à liberdade sindical e
outros.
Esse fenômeno decorre de duas causas: o homem isolado deu lugar
ao homem situado, na linguagem de Burdeau, e as instituições interme-
diárias assumiram papel de relevo, interpondo-se entre o homem e o
Estado na moderna sociedade.
Assim, podemos classificar os Direitos Fundamentais conforme a
sua titularidade em:
a) Individuais, quando concernentes apenas à pessoa física, indivi-
dualmente considerada; e
b) Institucionais, referindo-se aos grupos, agrupamentos ou entida-
des coletivas.
Bidart Campos anota que “no hay duda de que la doctrina de los
derechos del hombre tuvo en miras titularizarlos y defenderlos en cabe-
za del hombre. Y tampoco la hay de que, actualmente, al menos en el
referido proceso de su internacionalización, es el ser humano – a cada

35 BIDART CAMPOS, Gérman. Teoría general de los derechos humanos, p. 14.

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uno de los cuales muchos tratados lo reconocen y definen sin distinción
alguna como persona – el sujeto activo de tales derechos, por lo que pa-
rece que, en la esfera internacional, los pactos que engloban todo el plexo
integral de derechos humanos presuponen su titularidad exclusiva en el
hombre. Sin embargo, y sin hacer exégesis de los mencionados pactos
internacionales, una doctrina del Estado democrático que se base en la
dignidad del hombre, u en el reconocimiento y tutela de sus derechos y
libertades, no puede ignorar el vastíssimo espectro de grupos u asociacio-
nes surgidos de la sociabilidad del hombre, y de su derecho de libre aso-
ciación, que es uno de los derechos humanos. De aquí en más, se nos
hace evidente que si el derecho o la libertad de asociarse tiene como su-
jeto al hombre (o es un derecho ‘individual’ en la lista clásica de los dere-
chos civiles ‘individualizados’ en el hombre), la entidad asociativa que
surge de su ejercicio ha de tener también derechos ‘suyos’ – como asocia-
ción, mas allá de las formas legales con que se la invista, o de la persona-
lidad jurídica propiamente tal. No tendría demasiado sentido reconocer-
le y garantizarle al hombre como persona física el derecho de formar
asociaciones y/o de ingresar a las ya constituidas, sí tal derecho se agotara
en esa instancia, y no sirviera para que le asociación originada en su ejer-
cicio invistiera a su vez y asimismo – como asociación – el conjunto de
derechos y libertades que le fuera necesario para complir su fin específi-
co, de acuerdo con la llamada regla de especialidad. En esa órbita, la
asociación tiene también un derecho a su autonomia o zona de reserva,
equiparable al derecho a la intimidad o privacidad de la persona física; si
para ésta todo lo no prohibido le está permitido, para las asociaciones
debe quedar exento de prohibición todo lo que es conducente a la reali-
zación de su fin específico”36.
Assim, concluímos que podem ser titulares de Direitos Fundamen-
tais o homem e também os agrupamentos humanos, já que formados
por homens e para a consecução de seus interesses37.

36 Teoría general de los derechos humanos, p. 14.


37 Como já asseveramos no presente trabalho, é necessário que a Constituição cumpra
seu papel, adquira força normativa ao vincular a história da comunidade (passado) adap-
tando-a à realidade e, ao mesmo tempo, mantendo íntegra sua força ativa (no presente),

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Resta, por fim, analisar se também o Estado pode ser titular de di-
reitos fundamentais.
A resposta nos parece forçosamente negativa.
Nosso posicionamento encontra amparo nos ensinamentos de Bi-
dart Campos: “... por de pronto, hay que eliminar la noción de que el
Estado sea titular de derechos análogos a los de los hombres, cuando
pretende hacerlos oponibles a los particulares. Otra cosa distinta ocurre
cuando en el ámbito de la comunidad internacional y del derecho inter-
nacional se habla de derechos ‘de los Estados’ – entre si, uno frente a
otro u otros, o frente a los organismos internacionales – caso en el que
Dabin propicia no renunciar a la idea de derechos subjetivos a propósi-
to de los Estados miembros de la comunidad internacional cuya exis-
tencia previa se supone. Que queda como síntesis? Que en las situa­
ciones exepcionales en que se acepta atribuir un derecho subjetivo ao
Estado dentro de un ordenamiento jurídico, tal derecho subjetivo está
desprovisto de la naturaleza que, con otros fundamentos filosóficos, his-
tóricos, o políticos, revisten los derechos humanos. ... No es correcto
incluir al Estado entre los sujetos activos de eso que denominamos ‘de-
rechos humanos’”38.
Ainda, podemos classificar os Direitos Fundamentais em comuns e
Direitos Fundamentais particulares considerando a posição jurídica do
titular do Direito Fundamental perante o Estado.
c) Direitos Fundamentais comuns são os direitos concernentes a todo
e qualquer membro da comunidade: o direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à propriedade, à segurança.
d) Direitos Fundamentais particulares são direitos atribuídos a certos
e determinados membros, em virtude da especial categoria social em
que se situem. Assim, dentre outros, os direitos dos presidiários, das
mães, dos trabalhadores.

transformando-se, conforme a dinâmica e o avanço da comunidade, mostrando-se eficaz


(no futuro) e, no caso em apreço, atenda aos avanços da sociedade considerando que o
cidadão, isolado, deixa de ser o único titular dos Direitos Fundamentais.
38 Teoría general de los derechos humanos, p. 56.

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A Jellinek se deve uma classificação bastante difundida, conside-
rando a posição jurídica do titular do Direito Fundamental perante
o Estado. Para ele, o indivíduo pode deparar-se diante do Estado em
quatro status: passivo, negativo, positivo e ativo. Prestações ao Esta-
do, liberdade perante o Estado, pretensões em relação ao Estado,
prestações por conta do Estado. As quatro situações encontram-se
em linha ascendente: do indivíduo privado de personalidade à esfera
de autonomia, liberdade do Estado. Em seguida, o Estado assumin-
do obrigações perante o indivíduo e, por último, o indivíduo mesmo
vem a participar do exercício do poder político e participa de seu
poder de imperium.
Por fim, os Direitos Fundamentais contemplam outra classificação
conforme sua condição em face do processo de participação na gestão
da coisa pública em:
e) Pessoais, dependendo se se destinarem à realização individual do
homem – liberdade, segurança e propriedade.
f ) Sociais ou políticos, na qualidade de membro da coletividade, ou,
ainda, à sua condição de cidadão em face do processo de participação na
gestão da coisa pública39.

3.4 Do sujeito passivo dos Direitos Fundamentais

Os direitos humanos originariamente foram criados para a proteção


do homem perante o Estado. Entendemos que o Estado seja o sujeito
passivo em se tratando de uma questão que envolve Direitos Funda-
mentais. Assim, estamos diante da chamada relação vertical dos Direitos
Fundamentais.
Como já exposto, atualmente há o reconhecimento de uma relação
horizontal dos Direitos Fundamentais, ou seja, que também os homens
são sujeitos passivos desses direitos na medida em que devam respeitar o
direito alheio.

39 NALINI, José Renato. Constituição e Estado Democrático, p. 85.

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Nesse sentido a lição de Bidart Campos: “el anterior enunciado se pue-
de verificar en relación con un tema que ya ha sido esbozado, y es el de la
oponibilidad erga omnes (también frente a particulares) de los derechos hu-
manos. Si ello es así, la situacion jurídica de los hombres en su convivencia
sociopolítica se impregna de subordinación a los derechos, tanto en la rela-
ción de alteridad de ‘hombre-estado’ cuanto en la de ‘hombre-hombre’ (o
grupos sociales), de forma que también las relaciones entre personas priva-
das se integran a la unidad coordinada y coherente del orden jurídico total
que preside, constitucionamente, el plexo de los derechos”40.
Norberto Bobbio41, por sua vez, afirma que não pode haver um
fundamento absoluto de direitos que são historicamente relativos.
Assim, para Bobbio, o problema não é filosófico ou jurídico, mas,
em sentido mais amplo, político. Não se trata, pois, de enumerar e in-
dicar precisamente quais são os Direitos Fundamentais, mas garanti-los
efetivamente por meio de sua inserção no direito positivo para impedir
que, apesar de declarados solenemente, sejam desprezados.
Já Pérez Luño entende que os Direitos Humanos são “um conjunto
de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concreti-
zam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as
quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídi-
cos em nível nacional e internacional”42.
Considerando os ensinamentos esposados pelos autores men­
cionados, os Direitos Fundamentais permitem figurar no polo passivo
da relação individual, estatal e ainda admitem, na esfera dos Direitos
Humanos, considerando a constitucionalização do Direito Internacio-
nal, o direito-dever de ingerência43.
Assim sendo, a quem compete garantir a aplicabilidade dos Direitos
Fundamentais?

40 Teoría general de los derechos humanos, p. 74.


41 Apud BIDART CAMPOS, Gérman J. Teoría general de los derechos humanos, p. 97.
42 Los derechos humanos: significácion, estatuto jurídico y sistema. Sevilha: Universida-
de de Sevilha, 1979, p. 43.
43 GARCIA, Maria. Direitos humanos e a constitucionalização do direito internacional o
direito/dever de ingerência.

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3.5 Da garantia de aplicabilidade dos Direitos
Fundamentais pelo Poder Judiciário

Nos termos do inciso XXXV do art. 5º da CF/8844, compete ao Poder


Judiciário garantir e efetivar o pleno respeito aos Direitos Fundamentais, sem
que possa à lei excluir a apreciação qualquer lesão ou ameaça de direito.
Como se sabe, o Poder Judiciário é um dos três poderes, consagrado
como autônomo e independente, de importância fundamental para o
Estado de Direito na medida em que atua como guardião da lei e da
ordem e apresenta definitividade em suas manifestações.
Para o exercício dessa importante tarefa, foi outorgado ao Poder
Judiciário o controle da constitucionalidade, que pode ser exercido pela
forma difusa ou concentrada, sendo que tal instrumento é verdadeira
garantia de supremacia dos Direitos Fundamentais.

4 Conclusão

Finalizamos o presente estudo apoiados nos ensinamentos de Vilém


Flusser45.
Ousamos a realizar uma construção:
Para o filósofo, “a cada língua corresponderia um cosmos diferente.
Aquilo que chamamos de realidade é língua: determinada língua. (...) A
língua não só produz a realidade, como propaga realidade. O intelecto

44 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantin-
do-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: ...
XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
45 Vilém Flusser, segundo Gustavo Bernardo que realizou o prefácio de seu livro Língua e
realidade, foi um filósofo tcheco, poliglota, que “navegava e escrevia entre dois continentes e
entre pelo menos quatro idiomas”. Exilado, em função da perseguição nazista em 1939,
usualmente escrevia em alemão, língua “que desafiava sua mente a não se entregar ao convite
sedutor da profundidade para, então, buscar clareza”, também escrevia em francês, que “desa-
fiava-o resistir ao virtuosismo verbal para obrigar a língua tocar em surdina”. Flusser elegeu o
português como sua terceira língua materna, que para ele seria a “língua das digressões, logo
da indisciplina, convidando-o a conter-se. O inglês, língua síntese, contendo tanta ciência,
técnica, filosofia e kitsch quanto nenhuma outra, desafiava-o a podar a profundidade alemã, o
brilho francês e a genialidade portuguesa, de modo a reduzir o texto ao essencial”.

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dispõe de uma coleção de óculos – as diversas línguas – para observar a
realidade. Toda vez que troca de óculos, porém, a realidade difere...”.
O tempo, a história e as dificuldades frente ao poder (arbitrarieda-
des, opressões, torturas, a exaltação das desigualdades naturais e de di-
versas ordens) exigiram do ser humano a superação das diferenças de
ordem cultural e geográfica, estabelecendo, por meio da linguagem,
uma única realidade, universal e imprescritível, criando os Direitos Hu-
manos, exigindo a limitação do poder e principalmente o respeito à dig-
nidade humana, exigindo o respeito à concretização das condições de vida
que permitam a todo ser humano manter e desenvolver suas qualidades
peculiares de inteligência, dignidade e consciência, assim como a satisfação
de suas necessidades materiais e espirituais”.
Essa mesma língua cria outra realidade no âmbito interno ao esta-
belecer Direitos Fundamentais.
Não podemos olvidar que a criação das normas de Direito Funda-
mental é estabelecida por derivação (decorre das normas atemporais Di-
reitos Humanos) e é limitada no tempo e no espaço.
Perguntamos, contudo, se um Direito Fundamental, consubstan-
ciado em Direitos Humanos, uma vez positivado, pode ser revogado?
Uma vez que passa a integrar o patrimônio do cidadão, pode mesmo
o Estado, ao legislar e positivar por meio do Poder Constituinte,
afastar da esfera do patrimônio daquele cidadão e da própria comu-
nidade referido Direito Fundamental preconcebido nos Direitos Hu-
manos? Os Direitos Humanos não são inerentes ao ser humano?
Uma vez positivado o direito natural, pode ele perder sua eficácia
pelo advento de nova norma constitucional, que se queda silente
sobre o tema?
É forçoso reconhecer a importância que o texto constitucional pos-
sui... tem força normativa de forma a vincular o passado histórico e
cultural da comunidade, adaptando-o à realidade presente, mantendo
íntegra sua força ativa e mais, apresentando um potencial transformador
e dinâmico condensando direitos básicos, para que o cidadão sinta-se
amparado e seguro.
A Constituição de cada comunidade integrante da ordem interna-
cional é o elo convergente das regras morais, universais, imprescritíveis

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e, portanto, fundamentais do homem, por natureza, apesar de seu alto
grau de abstração.
A Constituição da comunidade permite a ordenação desses coman-
dos (naturais, morais, universais, imprescritíveis, atemporais e abstra-
tos) fundamentais do homem, em um sistema de direito que reclama
fechamento e unidade.
A Constituição é a fonte das fontes, elemento de notoriedade e de
força normativa diretiva, garantidora, estabelece os mecanismos de pro-
teção do homem, do cidadão, da comunidade e de seus valores.
Entendemos que a Constituição entregue ao homem – cidadão seja
uma herança rara, histórica, social, política e jurídica, conquistada com
muita luta pela humanidade.
E o homem? Como deve esse homem – cidadão receber essa Cons-
tituição – real, essa Constituição – jurídica?
Entendemos deva recebê-la com honra e orgulho, pois por meio
desse diploma cria e recria a sua realidade, reflexo de uma construção
universal, estrutura e organiza seu cosmos, um belo que se propaga com
a consagração dos valores que merece, de uma vida de qualidade, pauta-
da em direitos, princípios e valores morais organizados e respaldados
por garantias de segurança, de liberdade, de igualdade e, principalmen-
te, observando a dignidade da pessoa humana.

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O sistema interamericano de proteção
dos Direitos Humanos: considerações
sobre o acesso, eficácia e cumprimento
das decisões no brasil da Corte
Interamericana de Direitos Humanos

Daniela Bucci

Mestra em Direito com ênfase em Filosofia do Direito pela Universidade


Metropolitana de Santos – UNIMES. Coordenadora do Observatório de Violação dos
Direitos Humanos na Região do Grande ABC da Universidade Municipal de São
Caetano do Sul – ODHUSCS. Professora da Universidade Municipal de São Caetano
do Sul – USCS. Advogada.

1 Introdução

O escopo do presente artigo é realizar uma análise crítica de um


mecanismo de supervisão e controle de obrigações internacionais de
direitos humanos ao qual o Brasil se submete, enfocando, em especial,
o acesso, a eficácia e o cumprimento de decisões ou orientações relativas
a estas obrigações no território brasileiro.
Para desenvolver esta análise, escolhemos o sistema da Convenção
Americana de Direitos Humanos, que conta com dois órgãos de atua-
ção: a Comissão Interamericana e a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, enfatizando o mecanismo de proteção utilizado pela Corte
Interamericana.
Num primeiro momento, a título de introdução, vamos percorrer o
sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, que servirá
como pano de fundo a um estudo mais aprofundado sobre o mecanismo
de proteção instituído por intermediário da Convenção Americana de
Direitos Humanos. A seguir, abordaremos o papel da Comissão Intera-
mericana de Direitos Humanos e, finalmente, discorreremos sobre o

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papel desenvolvido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, vi-
sando a traçar uma análise crítica do sistema interamericano de proteção
aos direitos humanos e suas repercussões no âmbito jurídico brasileiro,
realçando as principais discussões sobre o tema.

2 SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS


HUMANOS

2.1 Sistemas de proteção da Carta da OEA e da Convenção


Americana de Direitos Humanos: breves considerações
sobre a constituição, acesso e procedimento

A doutrina afirma que existem dois sistemas de proteção1 que


compõem o sistema interamericano de proteção de direitos huma-
nos: (a) o sistema de responsabilização dos Estados americanos da
Organização dos Estados Americanos (OEA); e (b) o sistema da Con-
venção Americana de Diretos Humanos. Esses sistemas são funda-
mentados por diplomas normativos, entre outros, a Declaração Ame-
ricana de Direitos e Deveres do Homem2, a Carta da Organização
dos Estados Americanos3, a Convenção Americana de Direitos Hu-
manos4 (conhecida também como Pacto de São José da Costa Rica) e
o Protocolo de San Salvador5.

1 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparati-


vo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. São Paulo: Saraiva, 2006,
p. 87; RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos: análise
dos sistemas de apuração de violações dos direitos humanos e a implementação das deci-
sões no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 55.
2 Disponível em: <http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/b.Declaracao_Ameri-
cana.htm>. Acesso em: 3 nov. 2008.
3 Disponível em: <http://www.oas.org/juridico/portuguese/carta.htm>. Acesso em: 3
nov. 2008.
4 Assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos,
San José da Costa Rica, em 22-11-1969.
5 Protocolo adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em matéria de
direitos econômicos, sociais e culturais. Conforme RAMOS, André de Carvalho. Direitos
humanos em juízo: comentários aos casos contenciosos e consultivos da Corte Interame-
ricana de Direitos Humanos e estudo da implementação dessas decisões no direito brasi-

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O primeiro sistema tem como fundamento a própria Carta da
OEA e é aplicado a todos os Estados-membros da OEA. A garantia
dos Direitos Humanos na OEA ficou a cargo da Comissão Interame-
ricana de Direitos Humanos, do Conselho Interamericano Econômi-
co e Social, do Conselho Interamericano para a Educação, Ciência e
Cultura, da Assembleia Geral da OEA, e do Conselho Permanente da
OEA6.
Dentre os órgãos mencionados, destacamos a Comissão Interame-
ricana de Direitos Humanos7 que, no início, tinha a finalidade precípua
de promover8 os direitos humanos9 junto à OEA, e, atualmente, consti-
tui um “verdadeiro órgão internacional de supervisão”10. Assim, dentre
suas diversas atribuições, cabe à Comissão promover, inquirir e garantir
os direitos humanos, de forma que os Estados-membros que desrespei-
tem as condutas prescritas na Carta da OEA sejam responsabilizados
pelos demais Estados-membros11.
O segundo sistema de proteção, entretanto, abrange somente países
signatários ou que aderiram à Convenção Americana de Direitos Hu-
manos, uma vez que a Convenção12 estabelece os mecanismos de con-
trole e supervisão internacionais de direitos humanos.

leiro. São Paulo: Max Limonad. 2001, p. 55, e Processo internacional de direitos humanos,
cit., p. 213.
6 RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos, cit., p. 216.
7 Aprovada moção para sua criação na 5ª Reunião de consultas dos ministros de Rela-
ções Exteriores em Santiago, Chile.
8 Cf. Estatuto e Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Disponível em: <http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/t.Estatuto.CIDH.htm>.
9 O art. 1º do Estatuto da Comissão Interamericana de Direitos Humanos estabeleceu que
se entende por Direitos Humanos aqueles disciplinados na Convenção Americana de Direi-
tos Humanos com relação aos seus Estados-membros, bem como aqueles consagrados na
Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem com relação aos demais Estados-
-membros.
10 RAMOS, André de Carvalho. Direitos humanos em juízo, cit., p. 57.
11 RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos, cit.,
p. 217-219.
12 A Convenção foi aprovada na Conferência de São José da Costa Rica em 22-11-
1969, mas o Brasil somente aderiu à Convenção em 1992, por meio do Decreto n. 678,
de 6-11-1992.

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Desta forma, a proteção dos direitos contidos na Convenção13
conta com a atuação de dois órgãos principais que atuam como verda-
deiros mecanismos de supervisão e controle14 de obrigações de direitos
humanos: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para in-
vestigar os fatos que violem as normas da Convenção15; e a Corte In-
teramericana de Direitos Humanos, para julgar os litígios decorrentes
dessas violações16. Portanto, a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos ora atua como órgão da OEA, ora como órgão da Conven-
ção Americana de Direitos Humanos, destacando-se, assim, como ór-
gão de grande relevância tanto na OEA quanto na Convenção17. Nes-
se último caso, a Comissão representa todos os Estados-membros que
ratificaram a Convenção Americana de Direitos Humanos18, e sua
competência atinge todos os Estados-membros da OEA19. Pode, por-
tanto, recomendar medidas visando à proteção dos direitos humanos,
preparando relatórios, solicitando informações dos Estados-membros
sobre as medidas adotadas em matéria de direitos humanos, bem
como fazendo visitas aos Estados-membros com sua anuência ou me-
diante seu convite20.
Em caso de uma possível violação de direitos humanos, é ne­
cessário, dentre os requisitos apontados no art. 46 da Convenção
Americana, indicar na petição encaminhada à Comissão os fatos que
demonstrem tal violação21. A Comissão analisará as condições de admis-

13 O art. 23 do Regulamento da Comissão afirma sua competência com relação às


denúncias sobre violações de direitos humanos contra Estados-membros da OEA que
não sejam parte ou tenham aderido à Convenção Americana, uma vez que referidas
denúncias podem versar sobre os direitos consagrados na Declaração Americana de
Direitos do Homem.
14 RAMOS, André de Carvalho. Direitos humanos em juízo, cit., p. 57.
15 Cf., especialmente, o art. 41 da Convenção Americana de Direitos Humanos.
16 Cf., especialmente, os arts. 62 e 63 da Convenção Americana de Direitos
Humanos.
17 RAMOS, André de Carvalho. Direitos humanos em juízo, cit., p. 59 e 73.
18 Cf. art. 35 da CADH.
19 PIOVESAN, Flávia Cristina. Op. cit., p. 91.
20 Art. 41 da CADH e art. 18 do Estatuto da ComissãoIDI.
21 Art. 47.b da CADH.

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sibilidade do caso, tais como o esgotamento de recursos internos22 e a
inexistência de litispendência internacional – ou seja, que a matéria não
esteja pendente em outro processo de solução internacional23.
Ademais, tendo sido admitida a petição pela Comissão, esta se en-
carregará de estabelecer uma solução pacífica de controvérsia (letra f do
art. 48 da Convenção Americana de Direitos Humanos). Na hipótese
de o resultado alcançar um acordo, a Comissão elabora um relatório que
deve ser enviado ao interessado, aos Estados-membros e ao Secretário-
-Geral da OEA para publicação, contendo um breve resumo dos fatos e
a solução definida, nos termos do art. 49 da Convenção Americana.
Já no caso de a solução amigável restar frustrada, a Comissão emite
um documento confidencial denominado Primeiro Informe, apurando
ou não a violação de direitos humanos24. A Comissão poderá apresentar
suas recomendações ao Estado-membro violador para que este solucio-
ne o caso; e, se o Estado violador não cumprir o disposto no relatório, a
Comissão poderá submeter o caso à Corte Interamericana de Direitos
Humanos (desde que o referido Estado violador tenha reconhecido a
jurisdição obrigatória da Corte), ou poderá elaborar um Segundo Infor-
me, contendo novas recomendações ao Estado-membro e prazos para
seus cumprimentos, sob pena de publicá-lo25.
De acordo com o art. 44 da Convenção Americana de Direitos Hu-
manos26, qualquer pessoa ou entidade não governamental legalmente
constituída pode apresentar uma petição à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos. A petição pode ser apresentada em nome próprio

22 Art. 46.1.a da CADH e art. 31 do Regulamento da ComissãoIDI. Para André de


Carvalho Ramos (Direitos humanos em juízo, cit., p. 66), a Comissão pode solicitar aos
Estados que apontem quais as medidas que adotaram no caso concreto.
23 Art. 46.1.c da CADH e art. 33 do Regulamento da ComissãoIDH. Ler mais a res-
peito em RAMOS, André de Carvalho. Direitos humanos em juízo, cit., p. 77.
24 Art. 50 da Convenção Americana.
25 Art. 51 da Convenção Americana.
26 Art. 44 da CADH: “Qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não governa-
mental legalmente reconhecida em um ou mais Estados-membros da Organização, pode
apresentar à Comissão petições que contenham denúncias ou queixas de violação desta
Convenção por um Estado-Parte”.

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ou em nome de terceiros, o que nos remete à ideia de que não é somen-
te a vítima que pode provocar a Comissão27.
Além da atuação da Comissão, o sistema interamericano de prote-
ção dos direitos humanos prevê a atuação da Corte Interamericana, que
constitui o órgão judicial autônomo28 do sistema da Convenção Ameri-
cana de Direitos Humanos. Sediada na cidade de San José, na Costa
Rica, a Corte é composta por sete juízes representando os Estados-
-membros da OEA. Tais juízes são indicados pelos Estados-membros a
partir de uma lista de candidatos apresentada na Assembleia Geral da
OEA29. O mandato dos juízes é de seis anos, permitida uma reeleição30
e, nos termos do art. 52 da Convenção, os juízes são indicados entre
juristas de alta autoridade moral e reconhecida competência na matéria
de direitos humanos. Não é permitido, entretanto, que haja dois juízes
da mesma nacionalidade atuando simultaneamente na Corte31.
A Corte pode atuar como órgão consultivo ou contencioso32. Cabe
à Corte, portanto, interpretar e aplicar a Convenção Americana de Di-
reitos Humanos, tanto consultivamente como na prática, em casos con-
tenciosos concretos33. Todavia, para que suas decisões concretas sejam
obedecidas, é necessário que o caso que lhe tenha sido submetido envol-
va Estados-membros que tenham reconhecido sua jurisdição34.
Assim, o acesso à Corte Interamericana de Direitos Humanos de-
penderá35 (a) do reconhecimento de sua competência obrigatória36 pelo

27 Nesse sentido, RAMOS, André de Carvalho. Direitos humanos em juízo, cit.,


p. 74. Cf. também as recentes alterações do Regulamento da CorteIDH, em especial o
art. 37. Cf. também Regulamento da ComissãoIDH, art. 23.
28 Art. 1º do Estatuto da CorteIDH. RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacio-
nal de direitos humanos, cit., p. 228.
29 Arts. 3º, 4º e 7º do Estatuto da CorteIDH.
30 Art. 53 da Convenção Americana e arts. 4º e 5º do Estatuto da CorteIDH.
31 Art. 4.2 do Estatuto da CorteIDH.
32 Art. 33 da Convenção Americana e arts. 1º e 2º do Estatuto da CorteIDH.
33 Art. 62.3 da CADH e art. 1º do Estatuto da CorteIDH.
34 Art. 62.3, segunda parte, da CorteIDH.
35 Art. 61 da CorteIDH.
36 Art. 62 da CorteIDH.

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Estado-membro envolvido, bem como (b) da constatação de pretensa
violação de direitos humanos pela Comissão Interamericana de Direitos
Humanos37, que deverá, previamente, averiguar a existência ou não de
violação de direitos humanos, podendo, conforme seu entendimento
do caso analisado, encaminhá-lo à Corte.
No tocante ao processamento dos casos na Corte, assim como ocor-
re na jurisdição consultiva, o Estado terá direito de manifestar-se no
processo, expor suas razões e apresentar provas, desde que indicadas na
petição inicial e na contestação38. A conciliação também é possível, por
intermédio de sua homologação pela Corte, podendo em tais casos ser
ou não arquivada a demanda39.
Encerrada a fase probatória, a Corte decide, de modo que todos os
votos deverão ser apresentados, inclusive os dissidentes ou concorrentes40.
A fase de reparação (não é obrigatória; existirá no caso de a sentença
não ter decidido a reparação41) é o momento em que a vítima e seus repre-
sentantes são ouvidos. A título de reparação, muitas são as medidas que
podem ser adotadas pela Corte: materiais, morais, obrigações de fazer etc.
Por fim, quanto à execução da sentença, o art. 68.1 da Convenção
Americana estabelece que o Estado-membro implicado deva cumprir inte-
gralmente a decisão da Corte, podendo para tanto fixar toda e qualquer
medida interna que garanta sua efetivação42, desde que siga o processo inter-
no de execução de sentença nos termos do art. 68.2 da Convenção.
O modelo da Convenção adotado pelo continente americano apro-
xima-se visivelmente do modelo europeu43, embora existam algumas dife-

37 Art. 61 da CADH.
38 André de Carvalho Ramos esclarece: “Com isso, observo que, perante a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, a Comissão e o Estado-réu têm a possibilidade
de produzir provas e de exercitar todas as faculdades processuais do due process of law”
(Direitos humanos em juízo, cit., p. 92).
39 RAMOS, André de Carvalho. Direitos humanos em juízo, cit., p. 91.
40 Art. 31 e 59.2 do Regulamento da CorteIDH.
41 RAMOS, André de Carvalho. Direitos humanos em juízo, cit., p. 93.
42 Atendendo ao disposto no art. 2º da Convenção Americana.
43 Para Fábio Konder Comparato, “os órgãos competentes para supervisionar o cum-
primento de suas disposições e julgar os litígios referentes aos direitos humanos nela de-

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renças. Uma diferença importante entre os modelos americano e europeu
versa sobre o fato de que apenas a Comissão e os Estados-membros44
podem submeter um caso à Corte Interamericana; diferentemente do
que ocorre na Corte Europeia, em que há o acesso direto de qualquer
indivíduo, grupos de indivíduos ou organizações não governamentais45.
Assim, apesar de que na Comissão é possível que qualquer pessoa ou
entidade não governamental legalmente constituída apresente uma peti-
ção, não se restringindo essa faculdade tão somente à vítima, com relação
à Corte, via de regra, não há o acesso direto de qualquer indivíduo46.
O art. 24 do Regulamento da Corte admite, no entanto, que a víti-
ma e seus representantes devidamente credenciados tenham atuação
direta no processo. Porém, a atuação do indivíduo no sistema interame-
ricano ainda é mínima em relação ao sistema europeu.
Por outro lado, como já salientado, a Corte não tem apenas com-
petência contenciosa. Portanto, com relação à sua competência con-
sultiva, é importante frisar que o acesso pode ser realizado por qual-
quer Estado-membro da OEA. O parecer pode versar sobre
interpretação da própria Convenção Americana ou tratados sobre di-
reitos humanos47 e, ainda, sobre interpretação da compatibilidade de
leis nacionais com a Convenção.

2.2 Eficácia e cumprimento dos documentos emitidos no


sistema de proteção da Convenção Americana de
Direitos Humanos

Para que possamos analisar a eficácia e o cumprimento desses do­


cumentos, é necessário observar se há ou não força vinculante nos rela-

clarados, a Convenção aproxima-se mais do modelo da Convenção Europeia de Direitos


Humanos de 1950” (A afirmação histórica dos direitos humanos. 5. ed. rev. e atual. São
Paulo: Saraiva, 2007, p. 367).
44 Arts. 61 e 62 da CADH.
45 Art. 34 da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Confronte as recentes altera-
ções do Regulamento da CorteIDH, em especial o art. 24.
46 Art. 23 do Regulamento da ComissãoIDH.
47 RAMOS, André de Carvalho. Direitos humanos em juízo, cit., p. 88.

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tórios emitidos pela Comissão e nos pareceres consultivos e decisões
judiciais da Corte.
Restritamente no que tange aos relatórios emitidos pela Comissão,
atualmente, o entendimento da Corte segue no sentido de que o Pri-
meiro Informe não tem força vinculante, pois não é definitivo48, ou seja,
em caso de descumprimento deste Primeiro Informe, a Comissão pode
encaminhar o caso à Corte ou editar um Segundo Informe.
Na hipótese de ser editado o Segundo Informe, o Estado em ques-
tão deverá cumprir as recomendações ali contidas, de forma que,
como bem decidiu a Corte, os Estados, ao aderirem à Convenção,
devem aceitar a “competência da própria Comissão em processar peti-
ções individuais”49, valorizando o princípio da boa-fé50. Mas, se o Se-
gundo Informe não for cumprido, a Comissão poderá remeter o caso à
Assembleia Geral da OEA para que tome as medidas necessárias para
assegurar o respeito aos direitos humanos pelo Estado em questão51.
Com relação à Corte, dois tipos de documentos são emitidos com
características e efeitos diferentes: as opiniões consultivas e as decisões
judiciais.
Como tratado acima, qualquer Estado-membro da OEA52, e até
mesmo a Comissão, pode solicitar uma consulta à Corte, que pode in-
terpretar a Convenção ou qualquer tratado de proteção de direitos hu-
manos, desde que versem sobre casos abstratos.
A opinião consultiva emitida não tem força vinculante53, consti-
tuindo, assim, uma verdadeira orientação jurisprudencial de Direito
Internacional dos Direitos Humanos, podendo ser adotada futura-
mente pela Corte quando de sua manifestação jurisdicional. É notável

48 Idem, ibidem, p. 84.


49 Idem, ibidem, p. 85.
50 Idem, ibidem.
51 Idem, ibidem, p. 68 e 85. Cf. também o art. 18 do Estatuto da ComissãoIDH.
52 Para Flávia Piovesan (op. cit. p. 99), parte ou não da Convenção. Cf. também art. 64
da Convenção Americana.
53 Parecer n. 1, de 24-9-1982, Série A, n. 1, § 51. Nesse sentido, André de Carvalho
Ramos. Direitos humanos em juízo, cit., p. 342.

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sua importância, portanto, na consolidação do sistema interamerica-
no de proteção54.
Diferentemente do que ocorre com as opiniões consultivas, as deci-
sões da Corte têm, por força do art. 68.1 da Convenção Americana,
efeito vinculante, e são consideradas títulos executivos55. Os Estados,
portanto, são obrigados a cumpri-las integralmente.
Com efeito, há diversas medidas de prevenção e de reparação, além
do pagamento de indenização, que podem ser utilizadas pela Corte na
proteção dos direitos humanos a fim de assegurar sua proteção e buscar
garantir a não repetição das violações. Destacaremos a seguir alguns
exemplos trazidos pela doutrina dessas medidas já adotadas pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos.
O primeiro exemplo é a reparação do projeto de vida, uma nova
concepção do dano emergente e lucros cessantes. A reparação do proje-
to de vida engloba “toda realização de um indivíduo, considerando,
além dos futuros ingressos econômicos, todas as variáveis subjetivas,
como vocação, aptidão, potencialidades e aspirações diversas que per-
mitem razoavelmente determinar as expectativas de alcançar o projeto
em si”56.
Outro exemplo é a cessação do ilícito tida como “exigência básica
para a completa eliminação das consequências do fato ilícito internacio-
nal, podendo servir como preservação do comando da norma primária
através da utilização das normas secundárias da responsabilidade inter-
nacional do Estado”57.
Outra possibilidade que podemos destacar é a declaração de ilegali-
dade e manifestação de desculpas, ou seja, o pedido de desculpas público.

54 Nesse sentido, André de Carvalho Ramos: “É inegável a influência dos pareceres na


interpretação do chamado ‘direito convencional dos direitos humanos’ no sistema ame-
ricano (Direitos humanos em juízo, cit., p. 346).
55 PIOVESAN, Flávia. Op. cit., p. 104.
56 RAMOS, André de Carvalho. Responsabilidade internacional por violação de direitos
humanos: seus elementos, a reparação devida e sanções possíveis – teoria e prática do di-
reito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 257.
57 Idem, ibidem, p. 267.

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Na verdade, do Estado pode ser exigida uma “série de atos simbólicos de
reconhecimento da ilicitude de sua conduta”58.
Por último, salientamos as obrigações de fazer e não fazer que con-
figuram medidas para reparar as vítimas das violações sofridas59.

2.3 Críticas ao Sistema Interamericano de Proteção dos


Direitos Humanos

Analisar o sistema interamericano de proteção dos direitos huma-


nos, em especial os mecanismos trazidos pela Convenção Americana,
não é tarefa fácil, mas podemos levantar algumas críticas e questões a
partir da análise de seu funcionamento.
A primeira delas diz respeito ao acesso. O acesso ao sistema ame-
ricano de proteção aos direitos humanos possui várias características
que o distinguem do sistema europeu, em especial impedindo a parti-
cipação direta do indivíduo perante a Corte. O indivíduo pode apre-
sentar sua queixa somente perante a Comissão. Desta forma, a Comis-
são, no que diz respeito à sua legitimidade para decidir sobre quais
casos serão (ou não) remetidos à Corte, atua verdadeiramente como
um “filtro”.
Ademais, a Convenção Americana não proíbe a independência da
Comissão, muito pelo contrário. A própria Corte, no caso Velásquez
Rodríguez60, considerou a independência da Comissão, e, ainda, expôs
seu entendimento sobre o papel e as funções da Comissão no sistema
americano na Opinião Consultiva n. 13/9361.

58 Idem, ibidem, p. 274. Como bem lembrado pelo autor, a Corte Interamericana
entendeu que a própria sentença e a responsabilidade internacional atenderiam ao pleito.
59 CorteIDH. Caso Loayza Tamayo vs. Perú. Reparaciones y Costas. Sentencia de 27
de noviembre de 1998. Serie C, n. 42, e CorteIDH. Caso Aloeboetoe y otros vs. Suri-
nam. Reparaciones y Costas. Sentencia de 10 de septiembre de 1993. Serie C, n. 15.
60 CorteIDH. Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras. Excepciones Preliminares.
Sentencia de 26 de junio de 1987. Serie C, n. 1, §§ 28 e 29.
61 CorteIDH. Ciertas Atribuciones de la Comisión Interamericana de Derechos Huma-
nos (arts. 41, 42, 44, 46, 47, 50 y 51 da Convención Americana sobre Derechos Humanos).
Opinión Consultiva OC-13/93 del 16 de julio de 1993. Serie A, n. 13.

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A Corte, entretanto, não mantém uma postura submissa às decisões
da Comissão62, entendendo que há limites para a atuação da Comissão.
Encontra-se resguardada, portanto, a autonomia da Corte, que pode,
inclusive, reapreciar casos, de forma que não está vinculada à análise
realizada anteriormente pela Comissão, como podemos verificar, por
exemplo, nos casos Fairén Garbi y Solís Corrales vs. Honduras63 e
Godínez Cruz vs. Honduras64, em que a Corte entende ser legítima
para apreciar todas as fases do processo65, o que permitiria posiciona-
mentos contraditórios.
Não podemos deixar de admitir que houve um progresso quanto à
participação da vítima e de seus representantes66.
Vale lembrar que a admissibilidade da petição dirigida à Comissão
está condicionada a certos critérios, como, por exemplo, o esgotamento
de recursos internos67 e a ausência de litispendência internacional68.
Com relação ao primeiro critério, é necessário, portanto, que a de-
manda tenha sido discutida internamente e que os recursos internos
disponíveis tenham sido esgotados para que a petição dirigida à Comis-
são seja admitida.
As exceções a esse critério versam em torno de injustificada demora
processual ou dos casos em que a lei interna não é capaz de prover recur-
sos internos suficientes para reparar os danos causados. De modo que,
incorrendo nessas situações, o Estado responde pela violação e pela

62 Caso Paniagua Morales y Outros contra a Guatemala. Neste caso, a Corte entendeu
que houve violação da Convenção Americana contra a tortura.
63 CorteIDH. Caso Fairén Garbi y Solís Corrales vs. Honduras. Excepciones Prelimi-
nares. Sentencia de 26 de junio de 1987. Serie C, n. 2, §§ 33 e 34.
64 CorteIDH. Caso Godínez Cruz vs. Honduras. Excepciones Preliminares. Sentencia
de 26 de junio de 1987. Serie C, n. 3, §§ 31 e 32.
65 Sobre o assunto, RAMOS, André de Carvalho. Direitos humanos em juízo, cit., p. 78.
66 Sobre o tema, RAMOS, André de Carvalho. Direitos humanos em juízo, cit., p. 93-
94. Vale lembrar as recentes alterações do Regulamento da Corte em 2009, em especial
aquelas estabelecidas no art. 24, que admite a apresentação de petições, argumentos e
provas das supostas vítimas ou de seus representantes devidamente credenciados durante
todo o processo, depois de admitida a demanda.
67 Art. 31 do Regulamento da ComissãoIDH.
68 Art. 33 do Regulamento da ComissãoIDH.

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incapacidade de providenciar recursos internos para a devida reparação
do dano69. A ideia é atribuir ao Estado violador a “oportunidade de re-
parar o dano no âmbito de seu próprio ordenamento jurídico interno,
antes de que se possa invocar a responsabilidade internacional”70.
Neste diapasão, vale mencionar a decisão da Corte Interamericana
no caso brasileiro Damião Ximenes Lopes71, em que o processo brasilei-
ro permaneceu por volta de seis anos sem o pronunciamento do juiz de
primeiro grau, além de outras falhas encontradas nos processos cível e
penal, e que, por conta, especialmente, da impossibilidade de se garantir
localmente o acesso à justiça e a reparação das violações, a Corte conde-
nou o Brasil à reparação de danos materiais, imateriais e emergentes,
bem como a medidas de satisfação e não repetição.
Com relação ao segundo critério, o acesso ao sistema interamerica-
no de proteção de direitos humanos está condicionado à inexistência de
discussão sobre a mesma matéria em outros sistemas coletivos de prote-
ção internacional, visando à defesa da segurança jurídica e à consistência
das decisões dos órgãos internacionais72.
Outra limitação ao acesso que poderá ser suscitada e que representa
uma alternativa para a impunidade é a necessidade de reconhecimento
prévio, conforme disposição contida na Convenção Americana: a Corte
somente poderá analisar os fatos ocorridos após o reconhecimento de
sua jurisdição obrigatória por parte dos Estados, impedindo a delibera-
ção sobre fatos anteriores ao seu reconhecimento, o que pode fazer com

69 RAMOS, André de Carvalho. Direitos humanos em juízo, cit., p. 76.


70 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. El agotamiento de los recursos inter-
nos. In: El sistema interamericano de protección de los derechos humanos. San José: Costa
Rica. Instituto Americano de Derechos Humanos, 1991, p. 12, apud PIOVESAN, Flá-
via. Op. cit., p. 94.
71 CorteIDH. Caso Ximenes Lopes vs. Brasil. Fondo, Reparciones Y Costas. Sentencia
de 4 de julio de 2006. Versão em português. Serie C, n. 149.
72 “Os indivíduos submetidos à jurisdição dos países americanos têm a possibilidade de
apresentar petições contra os Estados perante o sistema universal da ONU ou perante o siste-
ma regional interamericano”, de modo que no caso do Brasil, tendo reconhecido a jurisdição
obrigatória da Corte Interamericana e ratificado o Protocolo Facultativo ao Pacto, pode apre-
sentar perante o Comitê de Direitos Humanos criado pelo Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos (RAMOS, André de Carvalho. Direitos humanos em juízo, cit., p. 77).

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que muitas violações de direitos fiquem sem reparação, e muitos viola-
dores permaneçam impunes.
A segunda questão a ser levantada diz respeito à efetividade das de-
cisões da Corte e da Comissão.
Ressalta-se, em primeiro lugar, que não há previsão para a supervi-
são da efetividade das decisões da Comissão e da Corte. Apesar de exis-
tirem tentativas nesse sentido, não há estrutura suficiente para produzir
uma supervisão eficaz. A respeito do tema, Antônio Augusto Cançado
Trindade afirma que “atualmente, dada a carência institucional do sis­
tema interamericano de proteção dos direitos humanos nesta área espe-
cífica, a Corte Interamericana vem exercendo motu proprio a supervi-
são da execução de suas sentenças, dedicando-lhe um ou dois dias de
cada período de sessões. Mas a supervisão – como exercício de garantia
coletiva – da fiel execução das sentenças e decisões da Corte é uma tare-
fa que recai sobre o conjunto dos Estados-partes da Convenção”73.
Vale ressaltar que a Resolução da Corte proferida no Asunto Bustíos
Rojas vs. Peru deixou que a Comissão74 verificasse o cumprimento da
medida provisória por parte do Peru, muito embora haja também casos
em que a Corte arquiva o processo sem verificar o efetivo cumprimento
da decisão75.
Ainda com relação à eficácia das decisões da Corte, verifica-se que
as condenações de cunho pecuniário, via de regra, são cumpridas, mas
que o mesmo não ocorre com aquelas obrigações76 em que o Estado
deve tomar medidas para apurar fatos, condenar os responsáveis ou,
apenas, garantir a não repetição do dano.

73 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto; ROBLES, Manuel E. Ventura. El


futuro de la Corte Interamericana de Derechos Humanos, p. 434, apud PIOVESAN,
Flávia. Op. cit., p. 115.
74 “3. Devolver las presentes diligencias a la Comisión Interamericana de Derechos
Humanos y dejar en sus manos la verificación del cumplimiento por parte del Perú de las
medidas adoptadas” (CorteIDH. Asunto Bustíos Rojas respecto Peru, Resolução da Cor-
te de 17-1-1991, p. 2).
75 Sobre o tema, RAMOS, André de Carvalho. Direitos humanos em juízo, cit., p. 97.
76 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto; ROBLES, Manuel E. Ventura. El
futuro de la Corte Interamericana de Derechos Humanos, p. 434, apud PIOVESAN,
Flávia. Op. cit., p. 115.

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Igualmente, nota-se que não há nenhum meio previsto na Conven-
ção para atribuir mais efetividade ao cumprimento das decisões proferidas
pela Corte ou pela Comissão. A previsão do art. 65 da Convenção, que
estabelece que os casos cujos Estados descumpram serão encaminhados à
Assembleia Geral da OEA77, tem se mostrado insuficiente.
Para resolver a questão levantada no texto acima, André de Carva-
lho Ramos sugere reformas para que a Assembleia Geral e o Conselho
Permanente da OEA adotem medidas78 para que o Estado cumpra efe-
tivamente as decisões da Corte e da Comissão79, ou, ainda, que a decisão
da Corte seja executada pelos tribunais internos de cada Estado80.
Nota-se que é, de fato, necessária uma maior abertura ao sistema de
proteção americano, com acesso direto do indivíduo, até porque há pa-
íses que não reconheceram a jurisdição obrigatória da Corte ou não
aderiram à Convenção.
É verdade que a Corte tem estimulado os países a reconhecerem sua
jurisdição obrigatória, pois, ao atribuir força vinculante ao Segundo In-
forme editado pela Comissão, como foi discutido acima, fez com que os
Estados desejassem buscar a manifestação jurisdicional que poderá ser
favorável àquele Estado pretensamente violador81.
Assim, para tentar resolver esses conflitos82, Antônio Augusto Cançado
Trindade83 propõe alterações institucionais, como, por exemplo, a remessa
de mais recursos para atender às demandas da Comissão e da Corte, e esta-

77 RAMOS, André de Carvalho. Direitos humanos em juízo, cit., p. 68.


78 Suspensão ou expulsão do Estado que descumprir as decisões internacionais.
(PIOVESAN, Flávia. Op. cit., p. 117).
79 RAMOS, André de Carvalho. Direitos humanos em juízo, cit., p. 98.
80 Idem, ibidem, p. 99.
81 Idem, ibidem, p. 85.
82 André de Carvalho Ramos sugere alterar a Convenção Americana “para permitir o
acesso dos indivíduos à Corte Interamericana de Direitos Humanos, como recurso ao
entendimento favorável da Comissão ao Estado” (Direitos humanos em juízo, cit., p. 82).
83 O sistema interamericano de direitos humanos no limiar do novo século: recomen-
dações para o fortalecimento de seu mecanismo de proteção. In: GOMES, Luis Flávio;
PIOVESAN, Flávia. O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito
brasileiro, p. 143-144.

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belecer uma maior aproximação entre a Corte e a Comissão para facilitar o
acesso a casos e informações, acelerando assim o processamento das deman-
das e encorajando o desenvolvimento uma “sólida jurisprudência”84.
Enfim, sugere CANÇADO a “ratificação universal’ da Convenção no
âmbito do continente americano”. Ademais, defende também o autor que
a “jurisdicionalização dos procedimentos de proteção ... constitui uma
garantia para todos” e “é a que melhor atende o propósito humanitário
dos mecanismos de salvaguarda internacional dos direitos humanos”85.
Com efeito, possibilitar o “acesso direto e o locus standi in judicio”86 pe-
rante a Corte em todas as fases do processo é o único meio de assegurar o
“acesso à justiça em nível internacional, assim como a igualdade das partes
nos procedimentos sob a Convenção americana, sem a qual a posição do
demandante no processo estaria irremediavelmente mitigada”87.

3 Repercussões no Brasil e observações finais

Por intermédio deste artigo analisamos o mecanismo de supervisão


e controle realizado, especialmente, pela Corte Interamericana de Di-
reitos Humanos no Sistema Americano de Direitos Humanos trazido
pela Convenção Americana de Direitos Humanos, ao qual o Brasil
está submetido.
Após a análise do acesso, eficiência e cumprimento das decisões, e
do apontamento das principais críticas, nota-se que há muito a ser feito
em matéria de direitos humanos no sistema interamericano, mas, tam-
bém, que muito já foi conquistado.
Precisamos admitir que o número de diplomas internacionais na
área de direitos humanos, bem como a atuação da Corte Interamerica-
na, em especial, tem contribuído com a construção da jurisprudência
em matéria de direitos humanos, seja no âmbito das opiniões consultivas,
seja no âmbito contencioso, consolidando a cada dia seu sistema de

84 Idem, ibidem, p. 143-144.


85 Idem, ibidem, p. 144.
86 GOMES, Luis Flávio; PIOVESAN, Flávia. Op. cit., p. 146.
87 Idem, ibidem, p. 147.

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proteção. Em que pese o tempo de sua existência, muitos temas ainda
não foram abordados pela Corte; por outro lado, a matéria que por ela
foi discutida já influenciou a formação das leis dos Estados cujo reco-
nhecimento foi efetivado, e nos faz refletir sobre a postura que os países
virão a adotar no seu direito interno levando em consideração tratados
internacionais de direitos humanos.
Nesse sentido, é importante refletir também sobre temas que ainda
fazem parte da realidade brasileira e que, no futuro, poderão ser objeto
de deliberação da Corte Interamericana. Podemos mencionar, como
exemplo, os recentes casos encaminhados à Corte sobre interceptação e
monitoramento ilegal de linhas telefônicas, com a divulgação ilegal de
várias gravações e, até mesmo, a dificuldade do Brasil de fornecer medi-
das efetivas de justiça em diversas circunstâncias88.
É possível, por outro lado, observar a tendência no sentido de ade-
quar o direito interno em relação ao Direito Internacional89, especial-
mente no que tange à efetivação das garantias de proteção de direitos
humanos fundamentais ante as inúmeras decisões da Corte e de sua
orientação na construção do costume internacional. Como se dá a in-
corporação da norma internacional no direito doméstico, e qual o valor
que as normas internas possuem no âmbito internacional, são questões
que também merecem uma reflexão.
Nota-se, nos casos apontados no item anterior, que o Estado res-
ponde internacionalmente quando não garante a proteção dos direitos
humanos, seja porque descumpriu o disposto na Convenção America-
na, seja porque não forneceu mecanismos internos suficientes para que
houvesse a devida investigação, persecução e punição dos violadores90.

88 Disponível em: <http://www.cidh. org/Comunicados/ Port/1.08port. htm>.


89 Para André de Carvalho, o Direito Internacional vê a norma interna como mero fato,
não reconhecendo o caráter jurídico de tais normas (RAMOS, André de Carvalho. O diá-
logo das Cortes: o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Huma-
nos. In: AMARAL JUNIOR; Alberto do; JUBILUT, Liliana Lyra (orgs.). O STF e o direi-
to internacional dos direitos humanos. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 817-819).
90 RAMOS, André de Carvalho. Responsabilidade internacional por violação de direitos
humanos, cit., p. 297.

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Nesse sentido, no Brasil, com o intuito de dirimir as antigas contro-
vérsias sobre a qualificação hierárquica de tratados internacionais sobre
direitos humanos em relação à Constituição Federal, a Emenda Consti-
tucional n. 45 adicionou o § 3º ao art. 5º da Constituição: “Os tratados
e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprova-
dos, e cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos por três quin-
tos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais”. Como exemplo dessa interação, podemos mencionar a
recém-aprovação da Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa
com Deficiência com status de norma constitucional91.
Ademais, a Convenção Americana de Direitos Humanos já tem
ocupado espaço na interpretação do direito brasileiro nas decisões dos
tribunais nacionais: Em 3 de dezembro de 2008, o Supremo Tribunal
Federal julgou a polêmica situação do depositário infiel92 no sentido de
proibir a prisão civil por dívida (prevista no art. 5º, LXVII, da CF/88).
O art. 4º, II, da Constituição, que preconiza a prevalência dos direitos
humanos, foi suscitado e, finalmente, prevaleceu a proibição da prisão
civil por dívida, o que atende ao disposto no art. 6.7 da Convenção
Americana de Direitos Humanos93, restando claro que a interação do
direito interno e do direito internacional de direitos humanos é crucial
para que se garanta nos Estados a eficácia plena da proteção aos direitos
humanos conferida internacionalmente. São ações como essas que, efe-
tivamente, garantirão a proteção desses direitos a todos no Brasil.
Voltando ao sistema interamericano de proteção aos direitos huma-
nos, é importante que as decisões da Corte abarquem cada vez mais
medidas coercitivas que tenham valor para tornar tais decisões eficazes e
garantir a proteção dos direitos humanos. Acrescentamos a isso também
a necessidade de se promover o acesso direto do indivíduo à Corte Inte-
ramericana. Finalmente, a proteção aos direitos humanos também seria
muito mais eficaz se houvesse o reconhecimento da jurisdição obrigatória

91 Decreto-Lei n. 186, de julho de 2008.


92 RE 466.343, RE 349.703 e HC 87.585.
93 “A prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se
constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito.”

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da Corte, bem como a adesão à Convenção Americana de Direitos Hu-
manos, por parte de todos os Estados-membros da OEA.
Sem dúvida, apesar de quaisquer críticas, o sistema interamericano
tem tido grande relevância na proteção dos direitos humanos, sendo
importante instituição contra a impunidade, e até mesmo contra a aco-
modação dos Estados com relação a violações de direitos humanos.
Para encerrar, gostaria de citar Antônio Augusto Cançado Trindade:
“Estamos, em última análise, em meio a um processo de construção de
uma cultura universal de observância dos direitos humanos; neste pro-
pósito, um papel importante está reservado aos sistemas regionais – a
exemplo do interamericano – de proteção dos direitos humanos”94.

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94 O sistema interamericano de direitos humanos no limiar do novo século: recomen-


dações para o fortalecimento de seu mecanismo de proteção, cit, p. 151.

103

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PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e a justiça internacional: um estu-
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Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

104

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O direito à felicidade
na terceira idade

Eliane HilArio da Silva Martinoff

Especialista (e não mestra) em Musicoterapia pela Faculdade Paulista de Artes e


mestra em Música pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(UNESP). Professora do curso de Pedagogia da Universidade Municipal de São Caetano
do Sul – USCS. É colaboradora dos Programas Universidade Sênior e Unimais.

Introdução

Nos últimos cinquenta anos, a Organização das Nações Unidas


(ONU) promoveu uma série de conferências sobre vários temas relevan-
tes, como a defesa da natureza e o meio ambiente, o direito à comuni-
cação e à imagem, a identidade cultural dos povos e das minorias, entre
outros. Uma das consequências dessas reflexões foi que a pessoa humana
deixou de ser considerada de maneira genérica, passando a sê-lo na sua
especificidade e nas suas diferentes maneiras de ser, como, por exemplo,
idoso, mulher, criança, ou portador de necessidades especiais e os dife-
rentes papéis que cada um pode vir a desempenhar na sociedade.
Nestes últimos anos muito se tem falado a respeito dos direitos hu-
manos e da necessidade de uma mobilização por parte de educadores,
governantes, líderes sindicais e da população em geral na busca da paz e
da igualdade social, por meio de diferentes atividades educativas que
desenvolvam conhecimentos, atitudes e práticas que resultem numa
cultura de direitos humanos na escola e na comunidade.
Segundo Vera Maria Candau, professora da PUC do Rio de Janeiro
e membro do Instituto Interamericano de Direitos Humanos, a educação

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em direitos humanos é um processo sistemático e multidimensional
orientado à “formação do sujeito de direito e à promoção de uma cida-
dania ativa e participante, onde se trabalhe no nível pessoal e social,
ético e político, o desenvolvimento da consciência da dignidade huma-
na de cada pessoa”1.
A educação em direitos humanos na América Latina é uma prática
recente, surgindo no contexto das lutas e movimentos sociais de resis-
tência contra o Autoritarismo dos Regimes Ditatoriais e apresentando
certo grau de sistematização na segunda metade da década de 1980.
Segundo Maria de Nazaré Tavares Zenaide, professora do Departamen-
to de Serviço Social e do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da
UFPB, os objetivos da Educação em Direitos Humanos são:

• promover a socialização de uma cultura em direitos humanos;


• afetar a naturalidade e normalidade das violações;
• ter uma intervenção sistemática na formação de valores, hábitos
e atitudes;
• fortalecer as estratégias dos movimentos e a dimensão axiológica
da ação transformadora;
• promover o pluralismo e o regime democrático e erradicar o au-
toritarismo;
• formar sujeitos para o reconhecimento da dignidade e para o
exercício ativo da cidadania democrática;
• promover o respeito à diversidade sociocultural exercitando e es-
timulando convivências e relações de solidariedade2.

Para ela, a educação em direitos humanos ajuda a construir novos


modos de pensar, sentir, agir e relacionar-se, promovendo uma forma-
ção intercultural e valorizando processos comunicativos. Além de edu-
car para a pluralidade e para o respeito à diversidade, promove a afirmação

1 O que é educação em direitos humanos? Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/


educar/textos/candau_oqe_edh1.htm>. Acesso em: 26 mar. 2009.
2 Idem.

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da identidade, sensibiliza para a relação com o outro e cria novos modos
de convivência social. Potencializando uma atitude questiona­dora, des-
vela a necessidade de introduzir e se comprometer com mudanças,
criando vínculos de solidariedade.
Há, por outro lado, que se considerar que a sociedade exige con-
formidade por meio da educação. Cada cultura e os indivíduos que a
compõem criaram certos conceitos e imagens do comportamento so-
cial ideal, ou formas como o indivíduo “deveria” funcionar dentro
desta estrutura de referência. A fim de compactuar com os “deverias”
da sociedade, o indivíduo aprende a ignorar seus próprios sentimen-
tos, desejos e emoções.
Muitas das necessidades individuais se opõem à sociedade. Compe-
tição, necessidade de controle, exigências de perfeição e imaturidade são
características de nossa cultura atual. Daí resulta um comportamento
social neurótico.
O primeiro e último problema do indivíduo é integrar-se interna-
mente e, ainda assim, ser aceito pela sociedade. Quanto mais a socieda-
de exige que o indivíduo corresponda aos seus conceitos e ideias, menos
eficientemente ele consegue funcionar. O ponto crítico durante qual-
quer desenvolvimento é a habilidade para diferenciar entre autorrealiza-
ção e realização de um conceito. Aquele que se autorrealiza, espera o
possível. Exigências de perfeição limitam a capacidade do indivíduo de
funcionar dentro de si mesmo, em família e em outras situações sociais.
Na busca da compreensão do cotidiano, torna-se imprescindível o
conhecimento da trajetória histórica percorrida pela humanidade, pois,
por meio dela, podemos ter princípios de leitura dessa realidade em que

a sociedade passa a ser o espaço da pessoa que, desenvolvendo o todo,


desenvolve a si mesma, recebe o reflexo de sua ação. O conhecimento
histórico, então, implica em identificar os procedimentos que conduzirão
uma história horizontalizada, participada e democrática3.

3 ALMEIDA, M. A. G.; VELLY, M. C.; FERREIRA, D. Educar para a cidadania através


do estudo da história. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/dados/livros/edh/br/rs/cida-
dan/cap12.htm>. Acesso em: 26 mar. 2009.

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Assim, vemos que a educação para os direitos humanos pode e deve
ser desenvolvida desde os mais tenros anos até a idade adulta, contem-
plando todos os segmentos e faixas etárias da sociedade, observando com
muito cuidado e atenção a melhor forma de trabalhar com cada um deles
nessa busca de uma visão crítica e modificadora da realidade social.

O idoso e a educação em direitos humanos

A Constituição Federal, no art. 230, garante a proteção ao idoso,


porque assegura “a sua participação na comunidade, defendendo sua
dignidade e bem-estar e garantindo-lhe o direito à vida”. O dever de
assegurar a participação comunitária, a defesa da dignidade, o bem-estar
e o direito à vida pertence à família, à sociedade e ao Estado, sendo,
portanto, dever de todos.
Dayse Coelho de Almeida comenta que

dignidade é o grau de respeitabilidade que um ser humano merece, o que


difere de caridade, de solidariedade e de assistência que trazem em si um
conteúdo pejorativo de hipossuficiência, de impossibilidade de sobrevi-
vência independente. Precisamos lutar para que os idosos sejam dignos e
assim tratados por todos4.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, a Terceira Idade se ini-


cia aproximadamente aos 60 anos, quando começam a haver algumas
alterações anatômicas, como o enrugamento da pele e a perda da sua
oleosidade; os cabelos embranquecem e caem com facilidade, principal-
mente no homem. O processo de reprodução e divisão das células é
lento, o que torna insuficiente a reparação dos elementos celulares, pró-
prios de cada órgão. As funções específicas dos tecidos vão se tornando
cada vez menos eficientes. Consumindo-se menor quantidade de oxigê-
nio, o ritmo respiratório tem inevitavelmente uma diminuição e com
isso o metabolismo sofre também uma queda.

4 Estatuto do Idoso: real proteção aos direitos da melhor idade? Jus Navigandi, Te-
resina, ano 8, n. 120, 1º nov. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/
texto.asp?id=4402>. Acesso em: 26 mar. 2009.

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Dentre as alterações fisiológicas em geral, nota-se maior lentidão na
frequência do pulso, ritmo respiratório, aparelho digestivo e da assimi-
lação. Em vista da diminuição do impulso nervoso, a atenção e o curso
do pensamento tornam-se mais lentos.
Sabemos que o cérebro, considerado o órgão mais desenvolvido no
homem, comporta-se de modo idêntico ao seu sistema muscular, isto é,
a falta de exercício e a imobilidade levam-no à degeneração e à atrofia.
Se, para nossos músculos continuarem a funcionar corretamente, neces-
sitamos de exercícios físicos apropriados, o nosso cérebro precisa tam-
bém de estimulação, pois a falta de incitação poderá levá-lo a sintomas
degenerativos de envelhecimento, mesmo as células cerebrais de um in-
divíduo de 50 anos. Assim, observa-se que uma atividade mental inten-
sa é frequentemente acompanhada de vida mais longa.
Quanto às alterações psíquicas que se apresentam na idade avança-
da, devem-se principalmente à dissimulação dos anseios e ao impacto
que o conceito pejorativo da velhice exerce sobre o indivíduo, que se
sente temeroso ante a perspectiva de se tornar um inútil e desprezado.
Por esses motivos, não somente as escolas de educação básica têm
trabalhado conceitos de ética em atividades que visam ampliar a con-
cepção de cidadania, mas, da mesma forma, várias Universidades têm
desenvolvido projetos de extensão voltados para a terceira idade, com o
objetivo de conquistar melhor qualidade de vida e cultivar uma atitude
mais participativa nesse segmento da sociedade.

Programa Universidade Sênior

A Universidade Sênior é um programa de convivência e aprendiza-


gem desenvolvido pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul
(USCS) voltado a pessoas da comunidade com idade superior aos 50
anos e com o lema “um lugar especial para aprender e se divertir!”.
Além da convivência com o grupo de estudo, o participante pode
usufruir das oportunidades que a USCS oferece em atividades culturais.
Os objetivos perseguidos são:

• contribuir para a melhoria contínua da qualidade de vida das pessoas;

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• proporcionar oportunidade de convivência, diversão e apren-
dizagem;
• propiciar, aos participantes, acesso às atividades artísticas e cul-
turais que a USCS realiza.

O Programa tem duração de dois anos, com aulas durante quatro


meses por semestre (março/abril, maio/junho e agosto/setembro, ou-
tubro/novembro). A programação semestral conta com dois módulos
de 48 horas, cada um deles composto por duas disciplinas e/ou ofici-
nas de 24 horas cada. As aulas acontecem às terças e quintas-feiras,
entre 14 e 17 horas, nas instalações da USCS – Campus I. Os temas
enfocam aspectos biológicos, psicológicos e sociais por meio de ativi-
dades socioeducativas e culturais. As classes são formadas por 40 estu-
dantes no máximo.
Após a conclusão do módulo básico de dois anos, a Universidade
Sênior oferece outros programas sem duração determinada, com disci-
plinas complementares àquelas cursadas no módulo básico.
A Universidade Sênior iniciou suas atividades em 2004 com sete
alunas e até o final de 2008, 80 pessoas haviam concluído os estudos
básicos, sendo 87% do sexo feminino e 13% do sexo masculino. Em
2009, contou com duas turmas totalizando 60 alunos residentes não
apenas em São Caetano do Sul, mas também em Santo André, Mauá e
São Paulo. A maioria dos alunos tem entre 50 e 60 anos, embora tenha
também uma porcentagem expressiva de estudantes entre 61 e 70 anos,
como se pode observar:

De 51 a 60 De 61 a 70 Acima de
Até 50 anos Total
anos anos 71 anos
9% 50% 32% 9% 100%

O grau de escolaridade dos alunos da Universidade Sênior é bem


diversificado, conforme demonstrado no quadro a seguir:

Fundamental Médio Superior Pós/Mestrado Total


30% 35% 32% 3% 100%

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O Programa da Universidade Sênior oferece as seguintes disciplinas:

• Cinema, música e sociedade;


• Educação Corporal;
• História do Brasil por intermédio da Música;
• Informática I e II;
• Memória, mito e história;
• Motivação e Comportamento;
• Movimento e Saúde;
• Música e História de Vida;
• Música e Saúde;
• Oficina de Arte e Cultura;
• Oficina de Expressão Oral;
• Redação Criativa;
• Segurança e qualidade de vida;
• Workshop I: Saúde e Nutrição;
• Workshop II: Qualidade de Vida e Atividade Física.

O idoso e a música

Desde 2006 temos ministrado a disciplina Música e Saúde, a qual


apresenta alguns aspectos da História da Música, como os estilos carac-
terísticos de cada período e a trajetória de sua aplicação como ferramen-
ta na busca do autoconhecimento, equilíbrio emocional e ampliação da
qualidade de vida.
Pretende-se com este curso conhecer e discutir o curso da música na
história da humanidade e suas aplicações na saúde física e mental, desde os
primórdios até nossos dias. O conteúdo programático aborda aspectos como:

• presença da música na vida humana;


• música e Saúde da Pré-História ao século XXI;
• A influência da música no organismo e na vida humana;
• Benefícios do uso da música na vida diária (parte prática).

Procura-se conhecer o pensamento corrente em cada período histó-


rico sobre as relações entre música e saúde, aproveitando esses conceitos

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no viver diário. Assim, ao mesmo tempo que se buscam conhecimentos
novos, trabalha-se o autoconhecimento por meio de atividades que en-
volvam a música.
Na segunda parte da aula são realizadas atividades vinculadas à mú-
sica erudita e popular e seus diversos tipos de escuta, como, por exem-
plo, a verificação das alterações do pulso mediante a audição de diversos
ritmos ou a descrição de cenas do cotidiano e sua sonorização, pois é
comum as pessoas se recordarem de situações em que não encontraram
palavras suficientemente apropriadas para descrever o que sentiram. Da
mesma forma, todo ser humano pode observar a presença dos mais va-
riados sons em sua história de vida. Dependendo da vivência musical de
cada um, a pessoa poderá ter mais familiaridade com um ou mais aspec-
tos da música.
Assim, procuramos utilizar a música não apenas como uma forma
de lazer, mas considerando também todos os outros aspectos relaciona-
dos com ela, tais como: o sensorial, o motor, o cognitivo, o afetivo, o
social, entre outros. As mudanças almejadas são essencialmente com-
portamentais, ou seja, que os idosos não só fruam Música, mas bus-
quem participar de atividades musicais como Corais, atividades de dan-
ça de salão, concertos, aprendam a tocar instrumentos. Já tem sido
possível visualizar algumas destas alterações de atitudes.
Além da verbalização, são realizadas algumas atividades onde se re-
lacionam as letras das músicas e as experiências vividas, pois podemos
estabelecer uma conexão entre música e texto quando expressamos por
meio da música aquilo que já foi expresso oralmente, ou, ainda, aquilo
que não conseguimos expressar com palavras.
Assim, a música funciona como um “objeto intermediário”, ou seja,
um instrumento capaz de criar canais de comunicação. É o objeto no
qual se projetam lembranças de experiências vividas. Para o musicotera-
peuta e psiquiatra argentino Rolando Benenzon, pode ser definido
como um instrumento por meio do qual se pode estabelecer uma rela-
ção positiva com alguém, sem desencadear estados de alarme intensos.
Podemos citar como exemplo o som da máquina de lavar roupas ou
do motor do carro, ao evocarem a uma mãe as convulsões de seu filho,
que lhe trazem sobressaltos e taquicardia. Assim também,

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uma antiga melodia ou ainda uma pequena parte dela, por seu enorme
poder evocador – da mesma forma que um perfume – podem reavivar
em certas pessoas a recordação de situações e climas afetivos com surpre-
endente força e nitidez5.

Hoje, sabe-se que os benefícios que a música pode trazer às pessoas


de qualquer faixa etária são inúmeros. Embora não existam ainda estu-
dos científicos que possam dizer com precisão quais elementos da músi-
ca (melodia, harmonia, ritmo, letra) são responsáveis pelas reações que
as pessoas apresentam, as pesquisas mostram que a música influi na di-
gestão, nas secreções internas, na circulação, na nutrição e na respiração.
Verificou-se que até as redes nervosas do cérebro são sensíveis aos prin-
cípios harmônicos. O corpo é afetado de acordo com a natureza da
música cujas vibrações incidem sobre ele (há mudanças no pulso e na
respiração).
Segundo Violeta de Gainza,

toda atividade Musical é uma atividade projetiva, algo que o indivíduo


faz e mediante a qual se mostra; permite, portanto, que o observador
treinado observe tanto os aspectos que funcionam bem no indivíduo,
como aqueles aspectos mais incompletos ou em conflito, seus bloqueios,
suas dificuldades6.

Outra atividade realizada é a identificação de palavras que chamam


a atenção em músicas conhecidas do cancioneiro popular, como Luar do
Sertão, de Catulo da Paixão Cearense; O que será?, de Chico Buarque de
Holanda; Como nossos pais, de Belchior; Desesperar jamais, de Ivan Lins
e Victor Martins; Vou deixar, de Samuel Rosa e Chico Amaral; Solidão,
que nada, de Cazuza; Além do horizonte, de Roberto Carlos; Metamorfo-
se ambulante, de Raul Seixas; Upa neguinho, de Edu Lobo e Gianfran-
cesco Guarnieri, entre outras.

5 GAINZA, Violeta Hemsy de. Estudos de psicopedagogia musical. São Paulo: Summus,
1988, p. 35.
6 Op. cit., p. 43.

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Após o levantamento das palavras, têm sido construídas frases como
as que seguem7:

“Na estrada da vida se vai pra lá e pra cá, começando a andar, a apanhar,
crescer. (...) A vida ensina a ser valente, a sentir o amor. A chuva chega,
trazendo novos tempos; é necessário valorizar” (R. M., 68 anos).
“A música agradável aos meus ouvidos, me faz muitas vezes lembrar-me de
momentos felizes ou momentos tristes. Músicas tocadas na sala de aula
onde fala que o amor é uma coisa boa, desesperar jamais. E o que será, será,
que vive nas ideias e o que nunca será. Essas músicas falam e exprimem
sentimentos. (...) A música que fala o canto e o amor é uma coisa boa, sim
é, se soubermos amar e respeitar a todos como a nós mesmos, procurando
ver neles virtudes, tirando até mesmo de algumas de suas falhas, bons
exemplos para nos corrigir. (...) Gostaria de saber o que vive nas ideias dos
poderosos, das pessoas que poderiam amenizar tanto sofrimento e desi-
gualdade. E o que nunca será das pessoas que embora lutem, muitas vezes
ficam desiludidas por não conseguirem ser dignas de afeto e amor. Por isso
temos que despertar e não desesperar jamais, mas sim procurar lutar por
nossos ideais, acreditando que apesar de tudo ainda somos os mesmos
como os nossos pais” (N. S., 63 anos).
“Não tem luar como no sertão, viver em harmonia para continuar-
mos lutando sem desesperar jamais. Temos que renovar e não ficar-
mos presos no passado. Tentarmos consertar o que está errado, mas
o que não tem vergonha nunca terá e o que não tem governo nunca
terá” (M. P. R., 57 anos).
“Para quem nunca estudou e até mesmo pouco frequentou uma escola e
um dia qualquer na sua vida ele tem a oportunidade de voltar a estudar, é
como estar habituado a enxergar pouco e um dia vai ao oftalmologista
que lhe receita uns óculos. Ele passa a ver melhor, sua visão fica mais clara;
vê tudo com mais nitidez. Assim é o entendimento. Depois que se envolve
aprendendo sentirá vontade de aprender mais, passando a entender com
mais clareza assuntos diversos. Mas não é só nas lições escolares que se
encontra nosso aprendizado. (...) É também buscar o conhecimento inter-
no e sentir seu próprio valor. (...) Não ter o ranço de quem é perfeito e
cheirar a mofo, acreditando que já aprendeu tudo o que precisava. (...) Os
anos podem passar, mas permanecerá em nós a beleza de ser um eterno
aprendiz” (E. M. P., 70 anos).

7 A citação das frases tem o consentimento de seus autores.

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“As aparências não enganam jamais, o novo sempre vem. Longe se
vai, sonhando demais, por isso nada se tem a fazer, senão esquecer o
medo e sair sem ter hora para voltar” (J. N., 62 anos).
“O luar de nossa terra é algo que encerra belezas mil, do romantismo ao
paradisíaco. Viver esta beleza é melhor que sonhar; é sentir a emoção e a
ternura da saudade, deixando a vida me levar para onde ela quiser e nada
fazer senão esquecer o medo” (N. G. B., 70 anos).
“Com o luar do sertão vou deixar a vida me levar. Minha dor é perceber
que apesar de termos feito tudo, conheço bem a solidão. Viver é melhor
que sonhar, mas sozinho não enxergo nada” (N. K. A. M., 72 anos).
“Vou deixar a vida me levar por onde ela quiser. Vou descobrir o eu caça-
dor de mim, pois ainda somos os mesmos e vivemos e sentimos saudade
do luar do sertão. A canção é lua cheia que nasce no coração. Então, por
favor, até que o dia amanheça, se você puder, não me esqueça” (M. A. P. P.,
58 anos).
“Olhando o céu é maravilhoso prestarmos atenção na noite. A lua até pa-
rece um sol de prata; por isso é muito bom viver e viver é melhor que so-
nhar. Melhor ainda se pudermos seguir a direção de uma estrela qualquer...”
(M. A. S., 64 anos).
“Abraçado à minha terra vou descobrir o que me faz sentir eu caçador de
mim. Viver é melhor do que sonhar; por isso vou deixar a vida me levar
para onde ela quiser e seguir a direção de uma estrela qualquer. Se você
achar que estou errada é porque você é que é mal passado e não vê” (M. L.
V., 67 anos).
“Luar... viola que ponteia ... o sol de prata, que me lembra a minha terra
com saudades... também me faz lembrar a coragem do negro dando
esperanças de liberdade ao neguinho começando a andar pela vida.
Upa neguinho começando a andar. Realmente é lindo! Assim como a
menina que deixa a boneca quando o coração desabrocha para o amor,
para o qual a medicina não tem remédio, só o bem querer do amado
que vai resolver. E os dois juntinhos... que felicidade! Que bem querer! E
depois os filhinhos em união vão completar a felicidade do coração”
(M. S., 66 anos).

A atividade musical, por mais simples que seja, torna-se mais com-
plexa quando entram em jogo as características emocionais que se atri-
buem à música. Por esse motivo, a música é, para as pessoas, além de
objeto sonoro, concreto, também aquilo que simboliza, representa ou

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evoca. Isso equivale a dizer que quando realizamos uma escuta imagina-
tiva, ou recordamos fatos passados impulsionados pela escuta, ou ainda
quando nos entusiasmamos pelo ritmo, demonstrando o que sentimos,
podemos melhorar nosso autoconhecimento, pela observação atenta de
nossas reações físicas e emocionais à escuta musical.

Considerações finais

A vida humana saudável tem como característica o crescimento


contínuo. De certa forma continuamos dependentes durante toda a
vida. Sempre precisamos de amor e de integração. Ninguém é autossu-
ficiente a ponto de não precisar dos outros. Em algum ponto do cres-
cimento saudável somos capazes de gerar e tomar conta da nossa vida;
isso faz parte da nossa vocação evolutiva. É o equilíbrio entre a depen-
dência e a não dependência.
Segundo o educador popular e professor da UFPB, Giuseppe Tosi,
a educação para a cidadania “constitui uma das dimensões fundamen-
tais para a efetivação dos direitos, tanto na educação formal, quanto na
educação informal ou popular”8. Ele sugere os seguintes princípios nor-
teadores da Educação em Direitos Humanos:

• Ninguém se educa sozinho.


• Ninguém educa ninguém, os seres humanos se educam em
comunhão.
• Todos somos agentes pedagógicos na medida em que praticar-
mos os direitos humanos.
• Os direitos humanos não se aprendem de memória; vivem-se,
praticam-se ou, ao contrário, morrem e desaparecem da consciên­
cia da humanidade.
• Ninguém tem o monopólio dos elementos humanizantes: todos
temos algo a dar e a receber.

8 Por que educar para os direitos humanos e a cidadania. Disponível em: <http://www.
dhnet.org.br/educar/index.html>. Acesso em: 26 mar. 2009.

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• Educar não é apenas informar, mas, sobretudo, formar, trans-
mitir convicções, esperanças, afetos, desenganos e compro-
missos.
• Não educamos com o que sabemos e sim com o que somos (o
professor é aceito ou não por seu comportamento, valor pessoal,
credibilidade e postura ética).
• A liberdade só se ensina com a liberdade.
• O educador em direitos humanos é aquele que, com sua presen-
ça, desafia o outro a ser mais humano.
• A realidade deve ser objeto de estudo e de reflexão crítica, procu-
rando conteúdos significativos que ajudem a explicar e entender
o fato concreto.
• Os conteúdos escolares não são uma finalidade, mas meios que
auxiliam a desvelar o cotidiano, podendo ajudar a modificá-lo.
• Pensar todo o material à luz da interdisciplinaridade.

Assim, segundo esse pesquisador, para transformar a realidade, “é


necessário compreender o cotidiano e a trama diária de relações, emo-
ções, perguntas, socialização e produção do conhecimento que se cria e
se recria continuamente numa perspectiva de educação libertadora,
como ensinava Paulo Freire”9.
Finalizando, gostaria de transcrever as palavras de uma das alunas:

“Eu sempre fui Amélia (como dizem), engoli sapos, sofri traições, humilha-
ções, decepções...
Mas sempre me perguntei: Por quê? A culpa é minha? Sou tão feia? Não
sou inteligente? Não cativo as pessoas?
Casei-me muito cedo, casei-me por amor e sempre me julguei amada,
mas, outra decepção...
Sempre procurei ser boa mãe, boa esposa, era ingênua e sonhadora.
Depois de algum tempo tornei-me amarga, vivi somente para meus filhos,
fechava os olhos para tudo. Era melhor não saber.
O tempo passou, ele morreu...

9 Idem.

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Os filhos cresceram, casaram, comecei a cuidar dos netos. Domingos, fins
de semana, família reunida: filhos, noras, genros, netos. Todos. Eu na co-
zinha... lasanha, pizza, assados, doces... louça na pia. Ninguém ajuda. Es-
tão cansados.
Os anos passaram, fui ficando velha e ninguém viu. Hoje, cansada, dói o
joelho, a pressão sobe.
Continua tudo igual. Fins de semana, fogão, pia e ... reclamações. A lasanha
não está boa, os doces não são mais os mesmos. O tempo passou e nin-
guém viu!
Um dia uma música, uma vontade de cantar. Comecei a sair à noite para
cantar no coral da Igreja. Depois para crianças e finalmente em asilos,
para pessoas infelizes, abandonadas pela família.
Mais adiante voltei à escola. Estou na faculdade! Perguntam-me: Para quê?
Não respondo.
Conheci pessoas que, como eu, precisam de amigos. Solitários como eu,
procurando um pouco de alegria na vida que nos resta.
Um dia uma amiga pediu-me que escrevesse alguma coisa, qualquer coisa
que me viesse à cabeça. E qual não foi minha surpresa ao sentir as palavras
saindo facilmente, coisas que eu jamais dissera a ninguém.
Abri-me então naquela redação e, a partir daí, foi como se tivesse tira-
do a tampa de um cofre de segredos. Nunca mais tapei esse cofre. Hoje
falo tudo e as coisas vão saindo facilmente e meu interior vai ficando
mais leve; não tenho mais medo do que os outros possam pensar,
como antigamente.
Ponho-me a refletir... O que aconteceu? Por que mudei tanto?
Fui sempre tão cobrada e vigiada que demorei quinze anos para abrir os
olhos e pensar um pouco em mim. Pensar que eu existo, que sou gente,
que posso gostar de muitas coisas, tais como não ter que me desculpar
por ir à igreja, ou por querer um sapato novo, querer ir a uma festa, con-
versar com uma amiga, falar ao telefone, ver um filme, ou simplesmente
dormir até às 8 horas num sábado frio e chuvoso, ler um livro, ou não
fazer nada, nem ter que correr e deixar o almoço de domingo pronto até
às 11h30.
Pois é, estou com 70 anos e há trinta meses atrás eu era outra pessoa.
Tudo começou devagarinho. Estou soltando as correntes devagar. Às vezes
fico triste porque não fui corajosa o suficiente para quebrar as amarras que
persistiram em minha vida até há pouco tempo... Amarras que eu mesma
consenti que me pusessem.
Pela primeira vez, faço coisas que me fazem bem!
Dizem:

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– Ela não para mais em casa!
– Ligo e ela nunca está!
– Vamos ter que marcar hora!
Mas mesmo assim continuo. Fogão, pia... Só que agora mais feliz.
Muito, muuuito mais feliz!
Por isso digo aos meus amigos e amigas:
– Não fechem seus corações, soltem suas amarras! Aproveitem a opor-
tunidade que estamos tendo para abrir seus corações e deixar sair toda
dor, angústia, mágoas e decepções. Com isso vocês não imaginam
como irão se sentir bem e as lembranças boas que estavam abafadas
também sairão e vocês se sentirão muito melhores! Sei que não sou
ninguém para aconselhar mas, se quiserem fazer uma experiência,
aproveitem as aulas para começar a soltar as amarras e garanto que
não se arrependerão”.

Esta é a reflexão da aluna A. L., 70 anos de idade, matriculada no


Programa desde 2008.
Assim, acreditamos que não somente é de suma importância ensi-
nar o jovem a respeitar o ancião, como é fundamental que o idoso
aprenda a respeitar a si mesmo com suas limitações, mas também com
as muitas possibilidades que se lhe apresentam de viver em sociedade.
Essa é, a nosso ver, uma forma bastante importante de contribuir de
maneira eficaz para a Educação em Direitos Humanos.

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Dayse Coelho de. Estatuto do Idoso: real proteção aos direi-
tos da melhor idade? Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 120, 1º nov.
2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.
asp?id=4402>. Acesso em: 26 mar. 2009.
ALMEIDA, M. A. G., VELLY, M. C.; FERREIRA, D. Educar para a
cidadania através do estudo da história. Disponível em: <http://
www.dhnet.org.br/dados/livros/edh/br/rs/cidadan/cap12.htm>.
Acesso em: 26 mar. 2009.
CANDAU, Vera Maria. O que é educação em direitos humanos? Dispo-
nível em: <http://www.dhnet.org.br/educar/textos/candau_oqe_
edh1.htm>. Acesso em: 26 mar. 2009.

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GAINZA, Violeta Hemsy de. Estudos de psicopedagogia musical. São
Paulo: Summus, 1988.
TOSI, Giuseppe. Por que educar para os direitos humanos e a cidadania.
Disponível em: http://www.dhnet.org.br/educar/textos/index.htm.
Acesso em: 26 mar. 2009.
ZENAIDE, M. N. T. O que é educação em direitos humanos. Disponível
em: <http://www.dhnet.org.br/educar/textos/index.htm>. Acesso em:
26 mar. 2009.

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Princípios Constitucionais
inseridos no art. 5º da CF/88

Emerson Toro de Abreu

Mestrando em Direitos Difusos e Coletivos pela Unimes. Especialista em Direito


Civil e Direito Processual Civil pela Unisantos. Advogado militante na cidade de
Santos.

1 Introdução

O tema abordado no presente estudo (provas ilícitas) é mais antigo


do que possa parecer. Em um primeiro momento, em face da Constitui-
ção Federal de 1988, a qual, em seu art. 5º e diversos incisos, cuida da
matéria relativa à reparação de danos decorrentes de atos ilícitos, as ga-
rantias visando assegurar os direitos fundamentais, em especial a invio-
labilidade e sigilo dos diversos tipos de comunicação, seja fala ou escrita,
dentre outras situações. Porém, conforme demonstraremos a seguir, a
matéria já vinha sendo abordada no direito americano desde o início do
século passado.
A questão das provas ilícitas teve como marco inicial os estudos de
E. Beling, em 1903, que visava à proibição de prova como limite à des-
coberta da verdade em processo penal, cujos pensamentos foram sinte-
tizados por Isabel Alexandre, seguindo as linhas mestras da exposição do
jurista alemão, a qual se pronunciou no seguinte sentido: “A grande
inovação de Beling consistiu precisamente em conceber as proibições de
prova (absolutas ou relativas, consoante restringissem a prova de certos
fatos ou configurassem como inadmissíveis certos meios de prova; in-
condicionais ou condicionais, consoante não pudessem ser preteridas

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pela manifestação da vontade de certas pessoas) como figuras perfeita-
mente distintas das regras negativas de prova, inseridas no sistema de
prova legal. Ao contrário destas, as proibições de prova não incidem na
sua perspectiva, sobre o momento de apreciação das provas, mas sobre
um momento anterior, dado representarem limites à busca da verdade.
E os seus fundamentos são muito variados, tais como: o bem-estar do
Estado (implicando, por exemplo, a proibição de depoimento de teste-
munha vinculada a segredo de ofício); a proteção da esfera de persona-
lidade dos particulares (que explica a proibição da tortura ou o direito
de recusar a resposta a perguntas incriminatórias do próprio ou de seus
familiares); a proteção das relações de parentesco (que conduz ao direito
dos familiares do arguido se recusarem a depor); o dever de segredo
profissional ou religioso; a proteção do direito de propriedade”1.
O tema, porém, não despertou grande interesse por parte da litera-
tura especializada, fato este que, certamente, em nossa doutrina pátria,
passará a ser visto de outra maneira, levando-se em conta as recentes
alterações no Código de Processo Penal, em especial na parte que envol-
ve a produção de provas, sua licitude e sua validade.

2 Princípios da Legalidade, do Devido Processo


Legal, do Contraditório e da Ampla Defesa

Não podemos discorrer sobre provas ilícitas sem mencionar os prin-


cípios da legalidade, do devido processo legal, do contraditório e da
ampla defesa, todos inseridos no art. 5º da CF/88, que cuida dos Direi-
tos Básicos e Fundamentais.
Assim, iremos escrever algumas linhas sobre cada um desses
princípios.
Princípio da legalidade: possui previsão constitucional no art. 5º,
II. Surge com o Estado de Direito em oposição a toda e qualquer forma
de autoritarismo e antidemocracia.
Segundo o referido princípio, “ninguém será obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

1 RIBEIRO, Luis J. J. A prova ilícita no processo do trabalho. São Paulo: LTr Digital 2.0,
p. 23.

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Princípio do devido processo legal: constitui a base de todos os
demais princípios, estando previsto no art. 5º, LIV: “ninguém será
privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. “É,
por assim dizer, o gênero do qual todos os demais princípios constitu-
cionais do processo são espécies”2.
O Poder Judiciário, ao exercer o poder que lhe foi atribuído, deverá
respeitar determinadas limitações, preservando as garantias e exigências
“inerentes ao Estado de Direito democrático, não podendo ele (poder
estatal exercido pelo juiz) avançar sobre competências de outros juízes e
não podendo, ainda quando eventualmente lho autorize a lei, exercer o
poder de modo capaz de comprimir as esferas jurídicas dos jurisdiciona-
dos além do que a Constituição permite”3.
Trata-se de mais um princípio que visa limitar o poder estatal, evi-
tando-se que o mesmo edite normas que ofendam a razoabilidade,
afrontando as bases do regime democrático.
Princípio do contraditório: possui previsão constitucional, estando
inserido no art. 5º, LV, com a seguinte redação: “aos litigantes, em pro-
cesso judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados
o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Por ele deverá ser dada ao réu ciência da existência do processo, e às
partes, dos atos que nele são praticados, permitindo-lhes reagir àqueles
que lhe sejam desfavoráveis, possuindo as partes direito de serem ouvi-
das, expondo ao julgador os argumentos que pretendem ver acolhidos4.
Em questão de provas, este princípio é amplamente aplicável, pois
a mesma deverá ser realizada sobre o seu crivo. Havendo juntada de
documentos, por exemplo, deverá a outra parte ser intimada para mani-
festar-se a respeito destes.
Princípio da ampla defesa: mais um princípio de ordem constitu-
cional, o qual vem inserido no art. 5º, LIV, a seguir transcrito: “ninguém
será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
É possível, em decorrência deste princípio, o direito ao aproveita-
mento, pelo réu, até mesmo de provas obtidas ilicitamente, cuja intro-

2 Nery Júnior, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal, p. 27.


3 Dinamarco, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil, v. 1, p. 244.
4 Gonçalves, Marcus Vinicius Rios. Novo curso de direito processual civil, v. 1, p. 30.

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dução no processo, em regra, é inadmissível. E isto porque, além da exi-
gência da defesa efetiva, o princípio desdobra-se, dada a sua amplitude,
para abarcar todas e quaisquer modalidades de provas situadas no orde-
namento jurídico, até mesmo aquelas vedadas à acusação, pois não se
pode perder de vista que a ampla defesa é cláusula de garantia individu-
al instituída precisamente no interesse do acusado. Por fim, por tratar-se
de prova destinada à demonstração de inocência, poder-se-á alegar até
mesmo a exclusão de sua ilicitude, impondo-se uma leitura mais ampla
do estado de necessidade5.

2.1 A supremacia dos princípios

Após o estudo dos princípios elencados em tópico anterior, convém


deixarmos claro que no sistema jurídico o princípio ocupa posição hie-
rárquica superior à lei. Entrando em conflito com esta, o princípio de
direito supera a lei, a qual não será aplicada. Sendo os princípios linhas
diretivas, servirão para interpretação, integração, conhecimento e apli-
cação do direito positivo. São instrumentos de solução de conflitos,
principalmente os de difícil solução.
Em matéria de prova aplicam-se os princípios de direito extraídos
das disposições legais, cuja função é a de preencher os vazios legislativos
e auxiliar o intérprete na solução dos casos controvertidos de mais alta
indagação. Sua aplicação não é atividade simples, tendo em vista que o
julgador recebe uma grande margem de liberdade, podendo o juiz na
aplicação da lei se deixar influenciar pela sua história de vida e seus de-
sejos, onde, em muitos casos, não conseguirá ser absolutamente neutro,
por não ser desprovido de sentimentos. Contudo, neutralidade não se
confunde com imparcialidade. Esta última é que é requisito de validade
das decisões. Deverá, ainda, ser afastada qualquer ideia de arbitrarieda-
de, pois, apesar da liberdade conferida ao juiz, está ele constrangido aos
limites da lide (CPC, art. 460), deve respeito à ordem jurídica, e tem de
fundamentar toda a decisão que proferir no processo.

5 Oliveira, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal, p. 34-37.

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Na prática, em casos controvertidos e de alta indagação, o juiz terá
de aplicar um princípio de direito e não a lei. Isto ocorrerá porque: 1º)
nenhuma lei apresenta solução para o caso controvertido (LINDB6, art.
3º); 2º) o conteúdo aberto das normas que regulam o caso problemático
pode exigir que sejam preenchidas de sentido para serem aplicadas (nor-
mas de conteúdo aberto, conceitos vagos ou indeterminados), sendo
completadas de sentido pelo princípio; 3º) podem ser aplicados ao caso,
ao mesmo tempo, várias normas e vários princípios (conflito de elemen-
tos normativos), e o juiz dará primazia ao princípio.
Assim, os princípios dão às normas conteúdos novos, permitindo
que permaneçam sempre atuais, possibilitando solução justa a todos os
casos, pois têm o poder de acompanhar a dinâmica da vida social. Por
sua vez, as legislações mais recentes renunciam à pretensão de discipli-
nar, por meio de regras fechadas e específicas, o infinito conjunto de
possibilidades apresentadas pelo mundo real, conferindo ao juiz ampla
liberdade para construir a decisão de cada caso concreto, com base em
normas de conteúdos abertos que podem ser preenchidas pelos princí-
pios, sendo estes de importância fundamental para a realização de direi-
tos, norteando a produção da prova e a aplicação da norma legal.

3 Das Provas Ilícitas – Conceito, Prova Ilícita e


Prova Inadmissível

Antes de apresentarmos um conceito, deverá ficar claro que o termo


prova ilícita é empregado pela doutrina de forma ampla, querendo
abranger todo tipo de prova inadmissível no processo, seguindo a previ-
são da Constituição Federal de 1988 (art. 5º, LVI), vedando-se a utili-
zação de provas ilícitas no processo de qualquer espécie.
Cumpre mencionar, ainda, que uma prova poderá ser lícita em
determinado processo, mas ilícita em outro, dependendo da forma
como ela foi obtida, devendo ser observado o caso concreto, para ve-
rificar se é lícita ou não. Poderá ocorrer que uma prova poderá ser por

6 Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, atual denominação dada pela Lei
n. 12.376/2010 à LICC – Lei de Introdução ao Código Civil.

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si mesma em qualquer caso sempre ilícita por previsão legal que proí-
ba sua realização, com independência do procedimento seguido para
sua obtenção.
A terminologia mais utilizada quando se fala em prova ilícita é a que
menciona serem provas ilícitas aquelas colocadas como espécie das pro-
vas vedadas ou ilegais. Assim, o gênero prova vedada compreende a pro-
va ilícita e a prova ilegítima.
Segundo Nuvolone, o conceito de prova vedada se identifica com o
de meio de prova vedada. Todo meio por si só idôneo a fornecer ele-
mentos relevantes para a comprovação de fato deduzido no processo, e
que o ordenamento jurídico veda a sua obtenção e a sua utilização. Esta
distinção é de muita importância em relação às proibições que não são
postas diretamente pela legislação processual.
Levando em conta a natureza da norma violada, a prova é vedada
em sentido absoluto (sistema jurídico proíbe sua produção em qual-
quer hipótese) e em sentido relativo (há autorização do ordenamento,
mas com a prescrição de alguns requisitos para sua admissibilidade e
validade da prova [forma]). Será vedada, ainda, sempre que contrariar
norma legal específica ou princípio de direito positivo; quando o di-
reito proibir sua produção em qualquer caso; e quando condiciona sua
legitimidade à observância de regras processuais, embora admitido o
meio de prova.
Por prova ilegítima devemos entender aquela cuja colheita fere nor-
mas de direito processual, e na qual encontramos a sanção na própria
norma processual. Resolve-se tudo dentro do processo, atendendo-se às
formas de sua produção, aplicando-se as sanções decorrentes de cada
transgressão, chegando à nulidade.
As provas ilícitas poderão, ainda, ser classificadas em sentido mate-
rial e em sentido formal. Pela primeira, quando decorrer de um ato
contrário ao direito e pelo qual se consegue um dado probatório (inva-
são domiciliar, violação do sigilo epistolar, quebra do segredo profissio-
nal etc.), diz respeito ao momento formativo dela. Pela segunda, quan-
do derivar de forma ilegítima pela qual ela se produz, muito embora seja
lícita sua origem, dizendo respeito ao momento introdutório da mesma
(José Celso de Mello Filho).

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Outro ponto importante e relevante diz respeito ao momento da
transgressão, essencial para caracterizar a distinção entre as provas ilícitas
e ilegítimas.
A prova ilegítima torna-se ilegal sempre que a produção da prova
estiver inserida na relação processual. Já na prova ilícita, a transgressão
ocorre no momento de sua colheita (anterior ou concomitante ao pro-
cesso), mas sempre externamente a este.
Por fim, o art. 5º, LVI, da CF trata somente das provas ilícitas
stricto sensu, sendo que o ordenamento processual regula as normas
procedimentais para a colheita da prova, com as respectivas sanções
para caso de atipicidades.

4 Teses que Admitem a Prova Ilícita

Os que defendem a prova obtida por meios ilícitos utilizam como


fundamento a verdade real e o livre convencimento. Inicialmente de-
monstrou-se majoritária, dando prevalência à investigação da verdade
em detrimento ao princípio da formalidade do procedimento.
Barbosa Moreira entende que deverá prevalecer em qualquer caso
“o interesse da Justiça no descobrimento da verdade, de sorte que a ili-
citude da obtenção não subtrai à prova o valor que possua como ele-
mento útil para formar o convencimento do juiz; a prova será admissí-
vel, sem prejuízo da sanção a que fique sujeito o infrator”7.
A descoberta da verdade e a celeridade processual são dois fundamen-
tos que encontram eco nas ideias defendidas por Roth, ao afirmar que
“a prova ilícita, sob o ponto de vista daquele que a pretende utilizar,
confirma a sua pretensão, contra a falsidade das alegações da parte con-
trária: daí que, se de um lado existe um comportamento ilícito, materia-
lizado na obtenção da prova, do outro lado surge a violação do dever de
veracidade processual. E, mesmo aqueles casos em que essa falsidade
não é intencional, resulta dela um perigo para a descoberta da verdade.
Ora, assinala o autor, a unidade do ordenamento jurídico pressupõe

7 Apud RIBEIRO, Luis J. J. A prova ilícita no processo de trabalho, p. 28.

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que, em caso de conflito de interesses, prevaleça o superior – na situação
em análise, o interesse público na descoberta da verdade”8.
Outro fundamento utilizado pelos defensores desta tese é o de que
a inadmissibilidade de um ato processual não guarda relação com a ili-
citude material de certa conduta, pois o direito processual se rege por
valores e princípios próprios, gozando de autonomia em face do direito
material. A prova ilícita somente pode ser afastada do processo se o
próprio ordenamento processual assim o determinar. A prova ilícita
apenas encontrará sanção processual quando, a um só tempo, for tam-
bém ilegítima.
Sob a ótica processual, contudo, não cabe discussão em relação à
forma como a prova foi obtida. Eventual ilicitude verificada ensejará a
punição de seu autor no plano do direito material violado (sanção pe-
nal, administrativa ou civil), a ser apurada em processo autônomo.

5 Teses que não admitem a prova ilícita

Para aqueles que inadmitem a prova ilícita, mesmo nos casos em


que a norma processual é omissa a respeito, utilizam-se de fortes argu-
mentos ou fundamentos para defendê-la, que passaremos a analisar.
O primeiro deles consiste na afirmativa de que o ordenamento ju-
rídico é uno. Sendo a conduta considerada ilícita pelo direito material,
também deverá sê-lo pelo direito processual. Ada Grinover, ao criticar
este fundamento, afirma ser ele inaceitável, mesmo existindo a unidade
do ordenamento jurídico, pois inquestionável que a cada ilícito corres-
ponda sanção diversa, sendo este entendimento acompanhando por
Barbosa Moreira.
Outro fundamento desta tese é trazido Kelner9, ao afirmar que é
dever do juiz registrar todas as ocorrências verificadas em audiência que
possam consubstanciar a prática de um crime, e a denúncia obrigatória,
mesmo que os autores não sejam conhecidos.

8 Idem, ibidem.
9 Idem, ibidem.

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Quem traz uma resposta mais satisfatória ao que foi até aqui dis-
cutido é Ada Grinover (tese majoritária), afirmando que deverá a
questão ser analisada numa perspectiva constitucional, pois ao tratar
da inconstitucionalidade da prova esta se subsume em dois momen-
tos: a ilicitude material e a ilegitimidade processual. “Por mais rele-
vantes que sejam os fatos apurados por uma prova ilícita, deve ser ela
banida do processo, uma vez que se subsume nesses casos ao conceito
de inconstitucionalidade, por violar normas e princípios constitucio-
nais – como, por exemplo, a intimidade, o sigilo das comunicações, a
inviolabilidade do domicílio, a própria integridade e dignidade da
pessoa”10.
A vinculação entre a prova ilícita e os direitos fundamentais estabe-
lece estreita convergência e funciona como garantia dos direitos indivi-
duais. Sob este prisma, alguns entendem que a prova ilícita deverá ser
banida do processo por ser considerada ato nulo. Para outros, ainda que
não seja valorada, nada impede sua permanência nos autos. Neste senti-
do, Rui Portanova: “O juiz não pode levar em consideração uma prova
ilícita, seja nas sentenças/acórdãos, seja nos despachos ou no momento
de inquirir testemunhas, embora convenha deixá-la nos autos, a fim de
que a todo momento a parte prejudicada possa tomá-la em considera-
ção para vigiar o convencimento do juiz”11.

6 Teoria da Proporcionalidade

Após a apresentação das duas teorias e levando-se em conta a rigidez


da teoria da exclusão, a doutrina encarrega-se de construir um critério
de admissão da prova ilícita em caráter excepcional. Surge no direito
alemão – no período do pós-guerra –, encontrando eco na doutrina
americana como critério de razoabilidade. Fundamenta-se na admissão
de provas tidas como ilícitas em determinadas circunstâncias, como, por
exemplo, a tutela de interesses superiores ou a legítima defesa.

10 Idem, ibidem.
11 Idem, ibidem.

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Barbosa Moreira afirma: “Há que verificar se a transgressão se expli-
cava por autêntica necessidade, suficiente para tornar escusável o com-
portamento da parte, e se esta se manteve nos limites por aquela deter-
minados; ou se, ao contrário, existia a possibilidade de provar a alegação
por meios regulares, e a infração gerou dano superior ao benefício trazi-
do à instrução do processo. Em suma: averiguar se, dos dois males, se
terá escolhido realmente o menor”12.
Segundo o critério da proporcionalidade, que visa conciliar princí-
pios constitucionais aparentemente antagônicos, valendo-se da teoria do
sacrifício, deverá prevalecer aquele princípio que parece ser o mais im-
portante. Restaura-se a ideia de que nenhuma norma constitucional
possui caráter absoluto.
O objetivo maior do princípio da proporcionalidade é a justiça da
decisão no caso concreto. A proibição da prova obtida por meio ilícito
passa a ser princípio relativo, podendo ser violado quando estiver em jogo
interesse de maior relevância ou outro direito fundamental com ele con-
trastante.
A não aplicação desse critério poderá levar a decisões inusitadas
com resultado desproporcional e injusto, caso não seja valorada a prova
ilicitamente obtida. Deverá, ainda, o limite do livre convencimento do
juiz ser demarcado pela legalidade dos seus atos. Caso contrário, entrar-
-se-á na seara do abuso de autoridade ou do arbítrio judicial.

7 Teoria da proporcionalidade e prova ilícita

Tanto a doutrina quanto a jurisprudência, de forma unânime, reco-


nhecem o princípio da proporcionalidade da prova favorável ao acusa-
do, ainda que colhida com infringência a direitos fundamentais seus ou
de terceiros. A prova ilícita pro reo tem angariado na doutrina nacional
e estrangeira diversos adeptos.
Fundamenta-se no reconhecimento do direito à ampla defesa, à
presunção de inocência ou pelas justificativas de antijuridicidade da

12 Idem, ibidem.

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conduta (ex.: legítima defesa). Não poderá se admitir que um inocente
seja condenado ou um culpado seja absolvido de uma ilicitude maior
tão somente porque a prova que elucida os fatos foi obtida ilicitamente,
estando de acordo com os dispositivos constitucionais vigentes em nos-
so ordenamento jurídico.
Os juristas favoráveis à tese da proibição afirmam que ela não se
aplica de modo automático e indiscriminado sob quaisquer circunstân-
cias, ficando aberta a possibilidade de uma construção jurisprudencial,
atendendo-se às variadas necessidades sociais do momento, tendo em
vista que as normas jurídicas em geral e as normas constitucionais em
particular se articulam num sistema, cujo equilíbrio impõe que certa
medida se tolere em detrimento aos direitos por elas conferidos.
“A possibilidade de provar alegações em juízo é ínsita na de subme-
ter à apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito
(Constituição, art. 5º, XXXV). (...) Daí a conveniência de deixar ao
aplicador da norma restritiva determinada margem de flexibilidade no
respectivo manejo. Só a atenta ponderação comparativa dos interesses
em jogo no caso concreto afigura-se capaz de permitir que se chegue à
solução conforme à Justiça. É exatamente a isso que visa o recurso ao
princípio da proporcionalidade”13.
Em face do que foi até aqui exposto, resta claro que o direito à inti-
midade, bem como as demais liberdades públicas, atualmente, não pos-
suem mais um caráter absoluto, podendo ceder quando em confronto
com outros direitos fundamentais.

8 A prova ilícita por derivação

Tem ampla discussão nos vários ramos do Direito pátrio em face do


dispositivo constitucional. A prova em si é lícita, mas a fonte de onde ela
promanou é ilícita.
Parte da doutrina prega pela invalidação dos meios de prova dire-
tamente derivados de provas ilícitas (prova ilícita por derivação). Esta

13 MOREIRA, José Carlos Barbosa. A Constituição e as provas ilicitamente obtidas.


Revista de Processo, São Paulo, ano 21, n. 84, out./dez. 1996, p. 148-149.

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teoria é conhecida como teoria dos frutos da árvore envenenada, surgin-
do pela primeira vez na Suprema Corte dos Estados Unidos em 1920,
segundo a qual o vício da planta se transmite a todos os seus frutos.
Geraldine de Castro assim se pronuncia a respeito do tema: “A pro-
va derivada de outra obtida ilicitamente deve ser analisada não só sobre
o aspecto da causalidade, mas também da finalidade. (...) Põe-se à aná-
lise dois pontos importantes: o primeiro deles é o de se saber se inadmis-
sível no processo é somente a prova, obtida por meios ilícitos, ou se é
também inadmissível a prova, licitamente colhida, mas a cujo conheci-
mento se chegou por intermédio da prova ilícita”14.
Esta doutrina encontra respaldo em nosso ordenamento jurídico, po-
dendo ser citados os arts. 798 da CLT e 573, § 1º, do CPC, que tratam
da extensão da nulidade dos atos processuais, determinando a contamina-
ção da nulidade aos atos processuais dependentes do ato nulo.
É consenso que a prova viciada também compromete os direitos
fundamentais da privacidade e da intimidade, transmitindo-se o vício
para tudo que se derivar desta.
Esta teoria, contudo, vem sofrendo limitações externa e interna-
mente. O Supremo Tribunal Federal decidiu inicialmente pela inaplica-
bilidade da doutrina dos frutos da árvore envenenada, optando pela
prevalência da incomunicabilidade da ilicitude da prova. A posição ma-
joritária atual consagra o entendimento de que a prova ilícita originaria-
mente contamina as demais provas dela decorrentes, sendo reiterado em
diversos acórdãos, no sentido da comunicabilidade da ilicitude: as pro-
vas ilícitas, bem como todas aquelas delas derivadas, são inadmissíveis
no processo.
A teoria da fonte independente ou autônoma pode ser útil para o
deslinde da questão envolvendo provas ilícitas por derivação, ou seja, se
houver outra fonte que não a ilícita a justificar a obtenção da prova de-
rivada, esta se torna plenamente válida.
Atualmente, o Código de Processo Penal vigente, em face das altera-
ções legislativas, admite de forma expressa a prova obtida de forma ilícita,

14 CASTRO, Geraldine Pinto Vital de. Prova ilícita e a proporcionalidade. Revista Li-
terária de Direito, São Paulo, n. 19, 1997, p. 32.

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desde que fique comprovado que ela foi obtida, mas por outros meios,
no curso da demanda.

9 Direito e Restrições à Prova

Em face do princípio da ampla defesa, no exercício deste, é que


resta o fundamento de que o réu tem direito à produção de prova, o
mesmo ocorrendo com a parte adversa, pois há o exercício da acusação
de uma parte em face da outra.
Mesmo sendo um direito do réu, não está impedido o juiz de exami-
nar a pertinência ou não de sua realização, pois cabe este a condução do
processo, rejeitando as diligências de caráter protelatório.

9.1 A Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada

Embora já mencionada em linhas anteriores, convém fazermos al-


gumas explanações a respeito deste tema.
É conhecida no mundo jurídico exterior como fruits on the poiso-
nous tree, surgindo na jurisprudência norte-americana, conforme já ex-
posto, sendo consequência da aplicação do princípio constitucional na
inadmissibilidade de provas ilícitas.
Com a reforma sofrida pelo Código de Processo Penal, por meio da
Lei n. 11.690/2008, esta teoria passa a integrar de forma expressa nosso
ordenamento jurídico processual penal, por intermédio do seu art. 157,
§ 1º: “São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo
quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou
quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente
das primeiras”.
Na prática esta aplicação mostra-se difícil de ser realizada, em face
de inexistir uma definição clara de derivação da prova, cabendo aos ope-
radores do Direito apresentarem a solução em seus casos concretos e a
própria jurisprudência pátria assim proceder.
Poderão ocorrer situações em que estaremos diante de provas consi-
deradas ilícitas, mas que não irão gerar as nulidades das demais provas
obtidas e surgidas após a sua realização, cabendo o exame detalhado do

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caso, a fim de se verificar se a derivação existiu ou não. Não existindo,
ela será considerada válida, caso contrário, não.
Assim, reiteramos que para a aplicação desta teoria deverá ser veri-
ficado o caso concreto, se as demais provas obtidas derivam da ilícita e
os direitos fundamentais de cada parte envolvida na demanda, para pos-
terior aplicação ou não da prova ao caso em discussão.

9.2 A Teoria do Encontro Fortuito de Provas

Também conhecida como encontro casual de provas.


Fala-se em encontro fortuito quando a prova de determinada infra-
ção penal é obtida a partir da busca regularmente autorizada para a in-
vestigação de outro crime15.
Parte da doutrina entende que sua aplicação deverá ocorrer com
certa reserva, a fim de se evitar que esta teoria transforme-se em
instrumento capaz de salvaguardar condutas ilícitas de criminosos
organizados.
Neste sentido, em julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Fe-
deral, reconheceu-se a ilicitude da prova de outro crime, diverso daque-
le investigado, obtida por meio de interceptação telefônica autorizada,
de início, para a apuração de crime punido com reclusão. Argumentou-
-se, então, que a conexão dentre os fatos e os crimes justificaria a ilicitu-
de e o aproveitamento da prova16.

9.3 O Aproveitamento da Prova com Exclusão da Ilicitude.


Aplicação da Proporcionalidade e vedação ao excesso

Restou demonstrado até este ponto que a prova ilícita é inadmissí-


vel, havendo exceções, permitindo-se que seja afastada a ilicitude, vali-
dando as provas então produzidas, sendo aproveitadas no processo em
que foram realizadas.

15 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Op. cit., p. 322.


16 HC 83.515/RS, rel. Min. Nelson Jobim, Informativo STF n. 361, in OLIVEIRA,
Eugênio Pacelli de. Op. cit., p. 323.

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A exclusão poderá ocorrer em razão da presença de fatos e/ou cir-
cunstâncias que afastam a ilicitude da ação praticada, como também em
razão de nem sequer se ter por configurada a hipótese de violação de
qualquer direito e, por isso, não configurada a hipótese da ilicitude17.
Já no campo constitucional, na prática, muitas vezes torna-se im-
possível a defesa de todos os direitos assegurados na ordem jurídica,
tendo em vista que um poderá esbarrar no direito fundamental de outra
pessoa, surgindo aí um conflito na aplicação de dois direitos fundamen-
tais, cuja proteção é assegurada pela própria Constituição Federal.
Para solução dos conflitos existentes entre os direitos fundamen-
tais igualmente relevantes é que se tem adotado a chamada pondera-
ção de bens e/ou de interesses. Examina-se, no caso concreto, qual a
proteção mais adequada a um dos direitos em risco, devendo isso ocorrer
de forma menos gravosa possível ao outro direito, falando-se, aí, em
proporcionalidade.
O princípio da proporcionalidade vem sendo utilizado na Alema-
nha e em outros países da Europa, permitindo, sempre que possível, a
utilização das provas obtidas de forma ilícita. Já em outros países, como
França e Inglaterra, sua aplicação vem expressa no ordenamento jurídi-
co destes países.
O mesmo ocorre no direito norte-americano, de onde importa-
mos o princípio que veda a obtenção de provas ilícitas, o qual, de
forma excepcional, admite as provas ilícitas obtidas, dentro de um
critério da razoabilidade.
A proporcionalidade poderá ser utilizada nas hipóteses em que não
estiver em risco a aplicabilidade potencial e finalística da norma da inad-
missibilidade. Por aplicabilidade potencial e finalística estamos nos refe-
rindo à função de controle da atividade estatal (responsável pela produ-
ção da prova) que desempenha a norma do art. 5º, LVI, da CF. Assim,
quando não se puder falar no incremento ou no estímulo da prática da
ilegalidade pelos agentes produtores da prova, poderá, em tese, ser apli-
cada a regra da proporcionalidade18.

17 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Op. cit., p. 325.


18 Idem, ibidem, p. 330.

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O critério da proporcionalidade deverá ser aplicado sempre que
houver conflito entre princípios constitucionais da mesma magnitude.
Mas não somente nestas situações. Deverá também elaborar critérios
objetivos os mais claros possíveis, para que se possa escolher um princí-
pio sem o sacrifício do outro que será afetado pela decisão.
Por fim, nossa jurisprudência, em especial do Superior Tribunal de
Justiça, vem acolhendo a tese da proporcionalidade, sobretudo em face
de questões ligadas às gravações de conversas por um dos interlocutores
sem a autorização do outro19.

10 Interceptações e Gravações

Conforme amplamente exposto neste trabalho, nossa Constituição


Federal, em seu art. 5º e incisos, trata dos direitos e garantias fundamen-
tais das pessoas. Em relação ao tema específico, citamos o inciso X,
que cuida da proteção à esfera privada, e o inciso XII, que protege o
direito à intimidade.
Convém trazermos os conceitos de interceptação e gravação clan-
destina, inseridos nos incisos anteriormente expostos, sobre os quais
Ricardo Rabonese assim se manifesta: “A gravação clandestina consiste
no ato de registro de conversação própria por um de seus interlocutores,
sub-repticiamente, feita por intermédio de aparelho eletrônico ou tele-
fônico (gravação clandestina propriamente dita) ou no ambiente da
conversação (gravações ambientais). Já a interceptação é sempre caracte-
rizada pela intervenção de um terceiro na conversação mantida entre
duas pessoas: se a interceptação for realizada em conversa telefônica, e
um dos interlocutores tiver conhecimento, caracteriza-se a escuta telefô-
nica; se não houver o conhecimento por parte dos interlocutores, evi-
dencia-se a interpretação stricto sensu; se a interceptação for feita entre
presentes, com conhecimento de um dos interlocutores, caracteriza-se a
escuta ambiental, ao passo que, se for sem o conhecimento, será consi-
derado como interceptação ambiental”20.

19 RSTJ 109/269; RJDTACrim 39/550.


20 RABONESE, Ricardo. Provas obtidas por meios ilícitos. Porto Alegre: Síntese, 1989,
p. 46.

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Como decorrência dos princípios constitucionais é que a inter-
ceptação telefônica só poderá ser autorizada por ordem judicial, vinda
de juízo criminal, faltando ao juízo cível ou trabalhista competência
para tanto.
Assim, para que a quebra do sigilo das comunicações telefônicas
possa ser considerada prova lícita e admissível, deverá respeitar o prin-
cípio do juiz natural (juiz criminal). Além disso, deverão estar presen-
tes os requisitos previstos na Lei n. 9.296/96, onde na falta de autori-
zação para a interceptação telefônica, de informática ou telemática,
configurar-se-ia crime, nos termos do art. 10 da mesma lei, salvo em
benefício da defesa.

11 Previsão do Tema no Ordenamento Jurídico


quanto à Produção de Prova Ilícita e sua
Validade

A matéria em questão tinha previsão somente na esfera constitucio-


nal, embora a jurisprudência, em diversos julgados, já vinha se posicio-
nando a respeito do tema. Em um primeiro momento, ocorria a veda-
ção total desta prova; com o passar do tempo, esta vedação passou a ser
mitigada, levando-se em conta o caso concreto.
Passados mais de vinte anos após a promulgação da Constituição
Federal de 1988 é que a matéria aqui abordada passa a ser regulamenta-
da de forma expressa. Este fato ocorre com as recentes alterações no
Código de Processo Penal, onde, com a promulgação da Lei n.
11.690/2008, alterando a redação do art. 157, caput, afirma de forma
expressa que são inadmissíveis as provas obtidas de forma ilícita.
Mas, como toda regra possui sua exceção, no caso das provas ilícitas
em matéria processual penal existem exceções, inseridas nos próprios
incisos e parágrafos do art. 157. Como exceção a esta regra, citamos a já
mencionada Teoria do Encontro Fortuito de Provas, a qual permite a
utilização da referida prova, pelos fatos já expostos.
Outro fator utilizado para validar a prova considerada ilícita é a
aplicação da chamada ponderação de bens e/ou interesses, também
mencionado neste estudo em linhas anteriores.

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12 Jurisprudência

PROVA. CRIMINAL. CONVERSA TELEFÔNICA. GRAVAÇÃO


CLANDESTINA, FEITA POR UM DOS INTERLOCUTORES, SEM CO-
NHECIMENTO DO OUTRO. JUNTADA DA TRANSCRIÇÃO EM IN-
QUÉRITO POLICIAL, ONDE O INTERLOCUTOR REQUERENTE
ERA INVESTIGADO OU TIDO POR SUSPEITO. ADMISSIBILIDADE.
FONTE LÍCITA DE PROVA. INEXISTÊNCIA DE INTERCEPTAÇÃO,
OBJETO DE VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL. AUSÊNCIA DE CAUSA
LEGAL DE SIGILO OU DE RESERVA DA CONVERSAÇÃO. MEIO,
ADEMAIS, DE PROVA DA ALEGADA INOCÊNCIA DE QUEM A GRA-
VOU. IMPROVIMENTO AO RECURSO. INEXISTÊNCIA DE OFENSA
AO ART. 5º, X, XII E LVI, DA CF. PRECEDENTES. Como gravação me-
ramente clandestina, que se não confunde com interceptação, objeto de
vedação constitucional, é lícita a prova consistente no teor de gravação
de conversa telefônica realizada por um dos interlocutores, sem conhe-
cimento do outro, se não há causa legal específica de sigilo nem de re-
serva da conversação, sobretudo quando se predestine a fazer prova, em
juízo ou inquérito, a favor de quem a gravou.
A Turma, por votação unânime, conheceu do recurso extraordiná-
rio, mas lhe negou provimento, nos termos do voto do relator21.
AGRAVO REGIMENTAL. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO ART. 5º,
XII, LIV e LVI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. RECURSO EXTRAOR-
DINÁRIO QUE AFIRMA A EXISTÊNCIA DE INTERCEPTAÇÃO TELE-
FÔNICA ILÍCITA PORQUE EFETIVADA POR TERCEIROS. CONVER-
SA GRAVADA POR UM DOS INTERLOCUTORES. PRECEDENTES
DO STF. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. 1. Alegação de exis-
tência de prova ilícita, porquanto a interceptação telefônica teria sido
realizada sem autorização judicial. Não há interceptação telefônica
quando a conversa é gravada por um dos interlocutores, ainda que com
a ajuda de um repórter. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. 2.
Para desconstituir o que afirmado nas decisões impugnadas, seria neces-

21 RE 402.717/PR, rel. Min. Cezar Peluso, j. em 2-12-2008, DJe de 13-2-2009.

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sário amplo exame do material probatório, o que é inviável na via recur-
sal eleita. 3. Agravo regimental a que se nega provimento22.
DIREITO PROCESSUAL PENAL E ELEITORAL. RECURSO ORDI-
NÁRIO EM HABEAS CORPUS. JUSTA CAUSA E PROVA ILÍCITA. GRA-
VAÇÃO. IMPROVIMENTO. 1. O recurso ordinário abrange, fundamen-
talmente, duas questões de direito relacionadas à ação penal instaurada
por supostos crimes eleitorais praticados pelos pacientes: a) falta de justa
causa para a deflagração da ação penal; b) denúncia nula, eis que baseada
em prova ilícita. 2. No contexto da narrativa dos fatos, há justa causa para
a deflagração e prosseguimento da ação penal contra os pacientes, não se
tratando de denúncia inepta, seja formal ou materialmente. 3. A denúncia
apresenta um conjunto de fatos conhecidos e minimamente provados
com base nos elementos colhidos durante o inquérito. 4. É clara a narra-
tiva quanto à existência de fatos aparentemente delituosos na seara eleito-
ral, supostamente praticados pelos pacientes que eram candidatos nas
eleições municipais de 2004. 5. Observo que as condutas dos pacientes
foram suficientemente individualizadas, ao menos para o fim de se con-
cluir no sentido do juízo positivo de admissibilidade da imputação feita
na denúncia. Houve, pois, atendimento às exigências formais e materiais
contidas no art. 41 do Código de Processo Penal. 6. Há substrato fático-
-probatório suficiente para o início e desenvolvimento da ação penal pú-
blica de forma legítima. Não há dúvida de que a justa causa corresponde
à uma das condições de procedibilidade para o legítimo exercício do direi-
to de ação penal. 7. Houve produção de prova testemunhal, além de in-
terrogatórios de corréus, na fase policial, que não se relacionam à gravação
de conversas havidas entre uma das pessoas supostamente contatadas pe-
los pacientes. Ainda que se considere ilícita a gravação realizada, consigno
que a denúncia não se encontra embasada apenas neste meio de prova.
Ademais, tal gravação se refere a apenas um dos fatos narrados na denún-
cia. 8. Recurso ordinário improvido23.

22 RE-AgRg 453.562/SP:, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. em 23-9-2008, DJe de


28-11-2008.
23 RHC 91.306/SP, rel. Min. Ellen Gracie, j. em 9-9-2008, DJe de 26-9-2008.

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Habeas corpus. Constitucional. Penal e proces­
sual penal. Sentença condenatória fundada em pro­
vas ilícitas. Inocorrência da aplicação da teoria dos
“frutos da árvore envenenada”. Provas autônomas.
Desnecessidade de desentranhamento da prova ilí­
cita. Impossibilidade de aplicação do art. 580 do CPP à
espécie. Inocorrência de ofensa aos arts. 59 e 68 do CP.
Habeas corpus indeferido. Liminar cassada. 1. A prova
tida como ilícita não contaminou os demais elementos do acervo pro-
batório, que são autônomos, não havendo motivo para a anulação da
sentença. 2. Desnecessário o desentranhamento dos autos da prova
declarada ilícita, diante da ausência de qualquer resultado prático em
tal providência, considerado, ademais, que a ação penal transitou em
julgado. 3. É impossível, na espécie, a aplicação da regra contida no art.
580 do CPP, pois há diferença de situação entre o paciente e o corréu
absolvido, certo que em relação ao primeiro existiam provas idôneas e
suficientes para respaldar sua condenação. 4. No que se refere aos fun-
damentos adotados na dosimetria da pena, não se vislumbra ofensa aos
arts. 59 e 68 do CP. A motivação dada pelo Juízo sentenciante, além de
satisfatória, demonstrou proporcionalidade entre a conduta ilícita e a
pena aplicada em concreto, dentre os limites estabelecidos pela legisla-
ção de regência. 5. Habeas corpus denegado e liminar cassada24.

13 Conclusão

O leitor tem que ter em mente que este estudo e os argumentos


aqui colacionados não poderão e não deverão ser entendidos como um
ponto final à questão apresentada. Pelo contrário.
Conforme exposto e demonstrado, o tema é antigo, mas pouco dis-
cutido. As primeiras lições e ideias surgem no direito americano em
meados da década de 1920, quando surge a denominada “teoria dos
frutos da árvore envenenada”, cuja discussão a doutrina deixou de lado,
por entender que o tema não seria tão interessante.

24 HC 89.032/SP:, rel. Min. Menezes Direito, j. em 9-10-2007, DJe de 23-11-2007.

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Após algumas décadas a questão ressurge, passando os doutrinado-
res a discuti-la, mas sem chegarem a conclusões fortes ou dominantes,
fato este confirmado pela doutrina pátria, tendo em vista existirem no-
mes de ponta em nossa doutrina favoráveis e desfavoráveis ao reconhe-
cimento da validade de provas obtidas pelos meios chamados ilícitos.
A nossa própria legislação passa a cuidar da matéria, mesmo com o
tema inserido em nossa Constituição Federal de 1988, quando da refor-
ma do Código de Processo Penal, traz de forma expressa a produção e
validade das provas obtidas de forma ilícita.
Nós, particularmente, entendemos que a validade ou não da prova
obtida de forma ilícita deverá ser vista não somente sob a ótica constitu-
cional, mas levando em conta os direitos individuais envolvidos, os efei-
tos desta prova na sociedade como um todo e o próprio caso concreto.
Competirá ao juiz, a quem a prova é dirigida, verificar se há ou não
violação aos direitos e garantias individuais daquele que sofrerá os efei-
tos diretos do resultado desta prova. Além disso, deverá verificar se esta
violação não permitirá que um inocente seja absolvido ou um culpado
condenado por crimes que não tinham sido solucionados até a obtenção
daquela prova. Um estará tendo garantida a sua liberdade e o outro, a
sociedade como um todo estará mais segura com a retirada de um cri-
minoso das ruas.
Reiteramos, ainda, que os direitos e garantias individuais deverão
ser sempre respeitados, mesmo quando há produção de provas. Porém,
neste caso, conforme exposto, entendemos que estes direitos e garantias
poderão ser afastados, quando estiverem afrontando outros direitos e
garantias individuais em igualdade de valores.
A resposta definitiva à questão, se é que existe ou existirá, somente a
doutrina e a jurisprudência poderão nos dar, restando claro que os direitos
e garantias individuais estão, aos poucos, perdendo o status de cláusulas
pétreas, tudo em face do caso concreto e dos direitos em litígio.

14 Referências bibliográficas

CASTRO, Geraldine Pinto Vital de. Prova ilícita e a proporcionalidade.


Revista Literária de Direito, São Paulo, n. 19, 1997.

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DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil.
GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo curso de direito processual
civil: teoria geral e processo de conhecimento (1ª parte). 4. ed. rev.
e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 1.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 5. ed. rev., atual. e
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MOREIRA, José Carlos Barbosa. A Constituição e as provas ilicitamen-
te obtidas. Revista de Processo, São Paulo, ano 21, n. 84, out./dez.
1996.
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição
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OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 11. ed. rev. e
atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
RIBEIRO, Luis J. J. A prova ilícita no processo de trabalho, Biblioteca LTr
Digital 2.0.

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Os direitos do deficiente físico e a
tecnologia assistiva na norma
internacional e na norma nacional1

José Blanes Sala

Mestre e Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo-USP.


Professor Adjunto no Curso de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC-UFABC.

1 Introdução

Qualquer estudo normativo deve pressupor uma assimilação social


e antropológica, se quer ser eficaz. Ainda mais no que diz respeito à
pessoa humana com deficiência. Neste artigo procuraremos mostrar a
evolução, relativamente recente, dos conceitos-chave neste sentido. Ten-
taremos introduzir o novo conceito de tecnologia assistiva no contexto,
mostrando o seu peso na legislação internacional sobre o assunto e, por
consequência, na legislação nacional.
Na verdade, nos dias de hoje, o conceito de deficiência já está ultra-
passado, e os estudiosos e profissionais da área preferem utilizar a deno-
minação “discapacidade”2. Resulta interessante conhecer as obras dos

1 Este artigo é um excerto do Estudo comparado das normas internacionais, nacio-


nais e estrangeiras sobre tecnologia assistiva, que faz parte do projeto Centro Nacio-
nal de Tecnologia Assistiva. Estudos e pesquisas para elaboração de proposta de
implantação. Financiado pelo CNPq e apresentado ao Ministério de Ciência e
Tecnologia. Estudo elaborado com a colaboração de Clara Maria Faria Santos, sob
a coordenação de Jesus Carlos Delgado García, do Instituto de Tecnologia Social
(ITS-Brasil).
2 Na verdade, esta palavra não existe na língua portuguesa, o que representa uma séria
dificuldade para compreender a superação do conceito de deficiência. Em inglês, utiliza-

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autores mais modernos sobre o assunto, como P. Abberley3, D. Marks4,
M. Oliver5 ou C. Barnes6, os quais procuram ir além da concepção mé-
dica tradicional que busca apenas a função de reabilitação, centrando-se
exclusivamente na solução das deficiências individuais, ou até mesmo a
concepção psicológica do deficiente, que se centra no processo de adap-
tação numa tentativa de ir além do modelo médico. Segundo eles, é
necessário pensar a discapacidade “desde dentro”, propondo uma teoria
social para ela.
Para a nova perspectiva, a dependência do deficiente não surge da
incapacidade intrínseca, mas preferentemente da forma como as ne-
cessidades das pessoas são satisfeitas. O modelo social, como é conhe-
cido, defende que a concepção da “discapacidade” é uma “construção
social” imposta, e propõe uma visão da “discapacidade” como classe
oprimida, com severas críticas às funções desenvolvidas pelos profis-
sionais, defendendo uma alternativa de caráter mais político do que
científico.
Mais do que um modelo, trata-se de um movimento que advoga
para que principalmente as pessoas com “discapacidade” sejam as mais
bem “capacitadas” para falar e pesquisar sobre o assunto7. De fato, atu-
almente, o envolvimento dos “discapacitados” nesta área tem sido cres-
cente e significativo. Este movimento, que é conhecido como de “auto-
ajuda”, tem suposto não apenas um incremento nas pesquisas, mas,
principalmente, uma nova forma de olhar a pessoa com deficiência e

-se a palavra disability, que é mais abrangente do que a expressão deficiência, e em espa-
nhol pode-se traduzir por discapacidad. Em espanhol a palavra que se utilizava para de-
nominar o deficiente era minusválido, mas as novas concepções trouxeram a nova
terminologia, o que não aconteceu no português.
3 The concept of oppression and the development of a social theory of disability. Dis-
ability, Handicap and Society, v. 2, n. 1, 1995.
4 Disability: Controversial debates and phsicosocial perspectives. London: Routledge, 1999.
5 The politics of disablement. London: Macmillan, 1990.
6 Exploring disability. A sociological introduction. Cambridge: Polity Press, 1997.
7 VERDUGO ALONSO, Miguel Angel. La concepción de discapacidad en los mo-
delos sociales. Mesa Redonda: “Que significa la discapacidad hoy? Cambios conceptuales”.
Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 2007.

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inclusive de agir com relação a ela8.
Este movimento tem hoje uma organização internacional não gover-
namental (Disabled People’s International) e deve entender-se como uma
elaboração teórica que surge como resultado das lutas pela vida indepen-
dente, cidadania e direitos civis para as pessoas com “discapacidade”.
Em boa parte, foi graças a este movimento que a Organização das
Nações Unidas (ONU) construiu um tratado internacional inscrevendo
esta temática de forma inequívoca no campo dos direitos humanos.
Como define Palacios: “La Comunidad Internacional logró en el año
2006, luego de proceso de negociación sorprendentemente veloz y efec-
tivo, adoptar un instrumento vinculante de derechos humanos denomi-
nado Convención Internacional sobre los Derechos de las Personas con
Discapacidad, que constituye a la discapacidad como un ámbito temá-
tico específico en el sistema universal de protección de los derechos hu-
manos, y que desde la etapa de su elaboración ha respetado muchas de
las consignas del modelo social”9.
A transição do modelo de reabilitação para o modelo social, na ver-
dade, fica clara na evolução do conceito de deficiência que vinha estam-
pado nas Classificações Internacionais da Organização Mundial da Saú-
de (OMS). A primeira classificação refletia uma conceituação do
fenômeno a partir de uma visão estritamente médica – própria do mo-
delo de reabilitação – que assimilava a deficiência com a doença. No
entanto, a referida classificação foi objeto de revisão em 2001. Adotan-
do-se uma nova Classificação Internacional que assume uma visão
“biopsicossocial” do fenômeno da deficiência.
Hoje, sem tirar nem um átimo da importância do modelo social, há
certa tendência nos estudos mais recentes no sentido de evitar polariza-
ções, destacando a necessidade de integrar as perspectivas tanto médicas
quanto psicológicas e sociais, resgatando a visão oferecida pela derradei-

8 SHALOCK, Robert L. Hacia una nueva concepción de la discapacidad. III Jornadas


Científicas de Investigación sobre Personas con Discapacidad. Salamanca: Universidad de Sala-
manca, 1999.
9 PALACIOS, Agustina. El modelo social de discapacidad: orígenes, caracterización y
plasmación en la Convención Internacional sobre los Derechos de las Personas con Dis-
capacidad. Madrid: Cinca, 2008, p. 475.

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ra classificação10. Na verdade, busca-se uma nova perspectiva integrado-
ra, desde a psicologia.
Assim o afirma Verdugo: “La parcelación del conocimiento científi-
co actual en relación con la discapacidad perjudica los avances y benefi-
cios posibles. La psicología de la discapacidad, además de contribuir al
conocimiento científico al máximo posible, ha de asumir la responsabi-
lidad de integrar y dar coherencia a los avances hoy dispersos en distin-
tas áreas y campos de la psicología científica. Todo ello sin perder la fi-
nalidad de mejorar la calidad de vida de los individuos. Y no perdiendo
de vista que aparte de la ciencia, necesariamente en este caso deben estar
los derechos de las personas y su defensa. Y en este último término,
tampoco los derechos son suficientes, sino que los investigadores y sobre
todo los docentes y profesionales deben asumir y transmitir un compor-
tamiento ético y de compromiso en defensa de la población”11.
Feito este prolegômeno, passamos a introduzir o objetivo deste ar-
tigo, que consiste em estabelecer uma iniciação a respeito da tecnologia
assistiva como instrumento decisivo neste campo de aplicação dos direi-
tos humanos, quais sejam as normas internacionais e a sua imbricação
com as nacionais.

2 Tecnologia Assistiva

Quando falamos em tecnologia assistiva nos referimos a um se-


tor da tecnologia orientado à busca de soluções no campo da acessi-
bilidade integral, que tem como usuário um público universal, mas
que, especificamente, orienta-se principalmente para as pessoas com
deficiência e os idosos.
Neste sentido podemos oferecer as duas principais definições. A da
ISO 9.999: “Qualquer produto, instrumento, equipamento ou tecnologia
adaptado ou especialmente projetado para melhorar a funcionalidade

10 Referimo-nos aos trabalhos de R. J. Gregory, J. C. Humphrey, P. Munn, R. Olkin e A.


Tenant.
11 VERDUGO ALONSO, Miguel Angel. La concepción de discapacidad en los mo-
delos sociales, cit.

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de uma pessoa incapacitada”. E a da OMS: “Qualquer produto, instru-
mento, equipamento ou sistema técnico utilizado por uma pessoa inca-
pacitada, especialmente produzido ou geralmente disponível, que evite,
compense, monitore, alivie ou neutralize a incapacidade (...)”.
A tecnologia assistiva é composta por serviços e recursos que visam
proporcionar à pessoa com deficiência mais independência, qualidade
de vida e inclusão social, por meio da ampliação de sua comunicação,
mobilidade, controle de seu ambiente, habilidades de seu aprendizado,
trabalho e integração com a família, amigos e sociedade.
Os serviços são aqueles prestados profissionalmente à pessoa com
deficiência visando selecionar, obter ou usar um instrumento de tecno-
logia assistiva. Como exemplo, podemos citar avaliações, experimenta-
ção e treinamento de novos equipamentos.
De acordo com a legislação nacional, conforme determina o Decre-
to n. 3.298, de 20-12-1999, produtos assistivos são “elementos que per-
mitem compensar uma ou mais limitações funcionais motoras, senso-
riais ou mentais das pessoas portadoras de deficiências, com o objetivo
de permitir-lhes superar as barreiras da comunicação e da mobilidade e
de possibilitar sua plena inclusão social”.
Na compreensão deste artigo, a normativa sobre tecnologia assistiva
abrange muito mais que as leis referentes a equipamentos e serviços que
auxiliam no cotidiano das pessoas com deficiência; abrange também
toda proteção jurídica destinada à inclusão social, à não discriminação,
à equiparação de igualdade legal e de oportunidade, pois são todos me-
canismos destinados à promoção do bem-estar, autonomia e qualidade
de vida destas pessoas.
Na verdade, tanto na normativa internacional quanto na nacional,
a área temática das pessoas com deficiência é bem variada e abrangente:
direito à igualdade e não discriminação, inclusão, direito à assistência
social, direito à saúde, direito à educação, direito ao trabalho, direito ao
lazer, esporte, cultura e recreação, acessibilidade, que inclui locomoção
em meios de transporte, locomoção em edificações e vias públicas e a
acessibilidade à informação em meios de comunicação; além de normas
técnicas, proteção judicial e normas penais.
As análises levam em consideração, inicialmente, as normas inter-

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nacionais sobre o assunto abordado, bem como, posteriormente, no
âmbito interno, as normas constitucionais e infraconstitucionais brasi-
leiras, estas exclusivamente na esfera federal, uma vez que, no Brasil,
existe também ampla legislação estadual e municipal.

3 A Norma Internacional

O primeiro instrumento jurídico internacional que o Brasil assi-


nou e ratificou12 neste sentido foi a Convenção Interamericana para
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pes-
soas Portadoras de Deficiência assinada na Guatemala em 7 de ju-
nho de 1999, promovido pela Organização dos Estados Americanos
(OEA).
A Convenção da OEA define a discriminação contra as pessoas
portadoras de deficiência como toda diferenciação, exclusão ou
restrição baseada em deficiência, antecedente de deficiência, con-
sequência de deficiência anterior ou percepção de deficiência pre-
sente ou passada, que tenha o efeito ou propósito de impedir ou
anular o reconhecimento, gozo ou exercício por parte das pessoas
portadoras de deficiência de seus direitos humanos e suas liberda-
des fundamentais.
Para atingir o objetivo da Convenção da OEA estabelecido no art. 2º,
prevenir e eliminar todas as formas de discriminação contra as pessoas
portadoras de deficiência e propiciar a sua plena integração à sociedade,
os Estados se comprometem a tomar as medidas de caráter legislativo
que sejam necessárias, para a área pública e privada, nas áreas de presta-
ção ou fornecimento de bens, serviços, instalações, programas e ativida-
des, tais como emprego, transporte, comunicação, habitação, lazer, edu-
cação, esporte, acesso à justiça e aos serviços policiais e atividades
políticas e de administração.
Os Estados também se comprometem a cooperar entre si a fim de
contribuir para a pesquisa científica e tecnológica relacionada com a

12 Foi promulgado no Brasil pelo Decreto n. 3.956/2001.

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prevenção das deficiências, o tratamento, a reabilitação e a integração na
sociedade de pessoas portadoras de deficiência.
No art. 6º, para dar acompanhamento aos compromissos assumi-
dos na Convenção da OEA, fica estabelecida uma Comissão para a Eli-
minação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Porta-
doras de Deficiência, constituída por um representante designado pelos
Estados. A Comissão se constitui no foro encarregado de examinar o
progresso registrado na aplicação da Convenção e de intercambiar expe-
riências entre os Estados.
Mas a norma internacional mais recente13, completa e de maior
destaque, é a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência das Nações Unidas e seu Protocolo Facultativo, as-
sinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007. Foram 82 assinatu-
ras à Convenção e 44 ao Protocolo Facultativo, caracterizando o maior
número de assinaturas a uma Convenção da ONU no dia de abertura.
Hoje (outubro de 2011) a Convenção conta com 153 assinaturas. Este
foi o primeiro tratado de direitos humanos a ser aberto para a assinatura
também de Organizações de Integração Regional. A Convenção entrou
em vigor no plano internacional em 3 de maio de 2008.
O propósito da presente Convenção, segundo seu art. 1º, é o de
promover, proteger e assegurar o desfrute pleno e equitativo de todos os
direitos humanos e liberdades fundamentais a todas as pessoas com de-
ficiência e promover o respeito pela sua inerente dignidade. Para a Con-
venção, pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de

13 Nesse sentido, o primeiro documento que deve ser lembrado é a Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, de 10 de dezembro de 1948, segun-
do o qual toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos à vida e à liberdade, sem
distinção de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, ori-
gem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
Outros documentos, que tratam especificamente das pessoas com deficiência, são a De-
claração dos Direitos do Deficiente Mental das Nações Unidas, de 20 de dezembro de
1971, a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes das Nações Unidas, de 9 de de-
zembro de 1975, o Programa de Ação Mundial para as Pessoas Portadoras de Deficiência,
estabelecido pelas Nações Unidas, em 3 de dezembro de 1982, o Dia Internacional das
Pessoas com Deficiência, estabelecido pelas Nações Unidas, a Carta para o Terceiro Milê-
nio, de 9 de setembro de 1999.

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natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com di-
versas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na so-
ciedade com as demais pessoas.
Composta por 50 artigos, a Convenção introduz no sistema inter-
nacional de proteção aos direitos humanos a positivação do modelo so-
cial, que conceitua a deficiência como resultado da limitação funcional
do indivíduo, em face das barreiras arquitetônicas, de comunicação e de
atitude que colocam obstáculos à sua plena inclusão social.
A Convenção, portanto, adota um padrão internacional de catego-
rização da pessoa com deficiência e reafirma que todas as pessoas com
algum tipo de deficiência devem usufruir de todos os direitos humanos
e as liberdades fundamentais. Ela esclarece de que forma cada direito
fundamental se aplica às pessoas com deficiência e identifica áreas nas
quais devem ser feitas adaptações para que as pessoas com deficiência
exerçam efetivamente seus direitos.
Os principais direitos assegurados às pessoas com deficiência pela
Convenção são a promoção da igualdade e da não discriminação, igual-
dade jurídica e garantia de acesso à justiça, direito à vida, proteção da
integridade física e mental, proteção contra exploração e abuso, garantia
da liberdade e do direito de movimentação; promoção da acessibilidade
nos meios de transporte, meio físico e meios de informação, liberdade
de expressão e de opinião, direito à privacidade, promoção da vida inde-
pendente e inclusão na sociedade, respeito pelo lar e pela família, garan-
tia de um padrão de vida e proteção social adequados, direito à saúde,
educação e trabalho; direito à habilitação e reabilitação, garantia de par-
ticipação na vida política, pública, cultural, recreação, esporte e lazer.
No art. 4º, para assegurar e promover a plena realização de todos os
direitos humanos e liberdades fundamentais elencados na Convenção e
para combater a discriminação contra as pessoas com deficiência, os
Estados se comprometem a adotar todas as medidas legislativas, admi-
nistrativas ou de qualquer outra natureza necessárias para tal14.

14 A título de complementação, vale lembrar que a Convenção determina, no art. 5º,


que os Estados reconheçam a igualdade de todas as pessoas perante e sob a lei. Assim,
os Estados proibirão qualquer discriminação baseada na deficiência e garantirão às pes-

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soas com deficiência igual e efetiva proteção legal contra a discriminação por qualquer
motivo.
O art. 8º é dedicado a garantir que os Estados tomem providências para conscien-
tizar toda a sociedade, inclusive as famílias, sobre as condições das pessoas com defi-
ciência e fomentar o respeito pelos direitos e pela dignidade das pessoas com deficiência;
combater estereótipos, preconceitos e práticas nocivas em relação às pessoas com
deficiência em todas as áreas da vida.
A Convenção reforça a proteção aos direitos fundamentais da pessoa com deficiên-
cia, especialmente o direito à vida (art. 10), direito à liberdade e segurança (art. 14).
O art. 14 enfatiza o direito à segurança mesmo nas situações em que as pessoas com de-
ficiência forem privadas da liberdade por motivo de processo judicial, situação na qual
devem fazer jus a garantias de acordo com o direito internacional relativo aos direitos
humanos.
Os direitos da pessoa com deficiência asseguradas na Convenção se estendem à
proteção e à segurança em situações de risco, inclusive situações de conflito armado,
emergências humanitárias e ocorrência de desastres naturais (art. 11), à proteção e pre-
venção contra tortura ou tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes (art.
15), à prevenção contra exploração, violência ou abuso (art. 16), à proteção à integri-
dade física e mental (art. 17).
É assegurado na Convenção às pessoas com deficiência o direito à liberdade de
movimentação e de nacionalidade (art. 18), que se constitui na liberdade de ir e vir e
de escolher sua residência e no direito de adquirir e mudar a nacionalidade e de não se-
rem privadas arbitrariamente de sua nacionalidade por causa de sua deficiência. Especial
menção se faz ao direito de as crianças com deficiência serem registradas imediatamente
após o nascimento e de terem, desde o nascimento, o direito a um nome, o direito de
adquirir nacionalidade e, tanto quanto possível, o direito de conhecerem seus pais e de
serem cuidadas por eles.
A Convenção assegura o respeito à privacidade (art. 22) e o respeito pelo lar e
pela família, eliminando a discriminação contra pessoas com deficiência, em todos os
aspectos relativos a casamento, família, paternidade e relacionamentos (art. 23).
O direito à participação na vida política e pública está assegurado na Conven-
ção, incluindo o direito e a oportunidade de votarem e serem votadas e a garantia de
que os procedimentos, instalações e materiais e equipamentos para votação serão apro-
priados, acessíveis e de fácil compreensão e uso; garantia da livre expressão da vontade
das pessoas com deficiência como eleitores e, para tanto, sempre que necessário e a seu
pedido, permissão para que elas sejam atendidas na votação por uma pessoa de sua
escolha (art. 29).
A Convenção dá especial ênfase à proteção dos direitos das mulheres (art. 6º) e das
crianças com deficiência (art. 7º).
Outros direitos protegidos pela Convenção: vida independente e inclusão na comuni-
dade (art. 19), habilitação e reabilitação (art. 26), padrão de vida e proteção social adequa-
dos (art. 28), saúde (art. 25), educação (art. 24), trabalho e emprego (art. 27), participação
na vida cultural, lazer e esporte (art. 30), acessibilidade (art. 9º), mobilidade pessoal (art.
20), liberdade de expressão e de opinião e acesso à informação (art. 21), reconhecimento
igual perante a lei (art. 12), acesso à Justiça (art. 13).

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Os Estados também se comprometem a realizar ou promover a pesqui-
sa e o desenvolvimento de produtos, serviços, equipamentos e instalações
com desenho universal, destinados a atender às necessidades específicas de
pessoas com deficiência, a promover sua disponibilidade e seu uso e a pro-
mover o desenho universal quando da elaboração de normas e diretrizes.
Os Estados se comprometem a propiciar informação acessível para as
pessoas com deficiência a respeito de produtos assistivos para locomoção,
dispositivos e tecnologias assistivas, incluindo novas tecnologias, bem
como outras formas de assistência, serviços de suporte e instalações.
Os Estados se comprometem ainda a realizar ou promover a pesqui-
sa e o desenvolvimento de novas tecnologias, incluindo as tecnologias
da informação e comunicação, produtos assistivos para locomoção, dis-
positivos e tecnologias assistivas, adequados a pessoas com deficiência,
dando prioridade a tecnologias de preço acessível.
Por fim, os Estados se comprometem a promover a capacitação de
profissionais e de equipes que trabalham com pessoas com deficiência,
em relação aos direitos reconhecidos na Convenção, para que possam
prestar melhor assistência e serviços assegurados por tais direitos.
O Protocolo Facultativo regulamenta o funcionamento do Comi-
tê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, instituído pelo art.
34 da Convenção. O Comitê tem a função de receber denúncias a res-
peito da violação das disposições do tratado por algum Estado parte na
Convenção.
No caso de o Comitê receber informação confiável indicando que
um Estado está cometendo violação grave ou sistemática de direitos es-
tabelecidos na Convenção, este Estado será convidado a colaborar com
a verificação da informação. O Comitê poderá enviar sugestões e reco-
mendações ao Estado para que cesse a violação; e, em caso de urgência,
o Comitê poderá enviar um pedido para que o Estado tome as medidas
de natureza cautelar que forem necessárias para evitar possíveis danos
irreparáveis à vítima da violação alegada.
A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com De-
ficiência e seu Protocolo Facultativo foram aprovados pelo Congresso
brasileiro por meio do Decreto Legislativo n. 186, de 9-7-2008. Em 1º
de agosto de 2009, o Brasil depositou a ratificação da Convenção e do

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Protocolo Facultativo junto ao Secretário-Geral das Nações Unidas e,
em 25 de agosto de 2009, por meio do Decreto n. 6.949, o Presidente
da República promulgou tais atos internacionais.
É oportuno, neste momento, considerar que para o Brasil a norma-
tiva internacional, uma vez ratificada e entrando em vigor internacio-
nal, deverá ser absorvida automaticamente com força de lei infraconsti-
tucional, de forma que revogaria expressamente a legislação de qualquer
ordem que dispusesse de forma contrária ao estabelecido na Convenção
e seu Protocolo. No entanto, no caso em tela esta absorção vai muito
além. Na verdade, os dispositivos da Convenção e seu Protocolo pos-
suem força constitucional, revogando de forma expressa o eventualmen-
te disposto em contrário na nossa Carta Magna. Isto porque estamos
diante do que a Emenda Constitucional n. 45/2004 denominou Trata-
dos de Direitos Humanos.
Efetivamente, a referida emenda acrescentou um § 3º ao art. 5º
(que dispõe sobre os direitos fundamentais) da Constituição Federal
estabelecendo que os tratados e convenções internacionais sobre direitos
humanos aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois
turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equi-
valentes às emendas à Constituição.
Como bem pondera Piovesan15, esse tratamento jurídico diferencia-
do aos tratados de direitos humanos se justifica, na medida em que apre-
senta um caráter especial, distinguindo-se dos tratados internacionais co-
muns. Enquanto estes buscam o equilíbrio e a reciprocidade de relações
entre Estados-partes, aqueles transcendem os meros compromissos recí-
procos entre os Estados pactuantes, tendo em vista que objetivam a salva-
guarda dos direitos do ser humano e não das prerrogativas dos Estados.
Foi, portanto, mediante este tratamento jurídico diferenciado que o
governo brasileiro ratificou a Convenção e seu Protocolo. Fica patente,
desta forma, que a nossa Constituição Federal incorpora integralmente
o seu conteúdo, derrogando todas aquelas normas do seu sistema que
não coadunam com a incorporação.

15 PIOVESAN, Flávia. Reforma do Judiciário e direitos humanos. In: TAVARES, An-


dré R. e outros. Reforma do Judiciário analisada e comentada. São Paulo: Método, 2005,
p. 71.

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4 A Norma Nacional

A legislação brasileira, no entanto, já previa a proteção dos direitos


da pessoa com deficiência e já atribuía ao Estado a obrigação de promo-
ver o bem-estar e a inclusão desses indivíduos. A principal fonte da
proteção dos direitos das pessoas com deficiência é a Constituição Fe-
deral de 5 de outubro de 1988, que apregoa a igualdade entre os indi-
víduos ao mesmo tempo que cuida dos direitos que buscam proporcio-
nar às pessoas com deficiência igualdade de oportunidade16.
A nossa Constituição assegura já desde a sua promulgação, quase
vinte anos antes, o exercício dos direitos elencados na Convenção Inter-
nacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência a todos os brasi-
leiros e prevê direitos especiais às pessoas com deficiência de forma a
garantir-lhes o exercício dos direitos fundamentais da pessoa humana17.
O direito à igualdade perante a lei e os demais direitos fundamen-
tais da pessoa humana, bem como o direito à não discriminação, elen-

16 ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional das pessoas portadoras de


deficiência. Brasília: Corde, 1994.
17 Art. 7º, XXXI – proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e crité-
rios de admissão do trabalhador portador de deficiência. Art. 23, II – cuidar da saúde
e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência. Art.
24, XIV – proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência. Art. 37,
VII – a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas porta-
doras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão. Art. 203, IV – a habilitação
e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à
vida comunitária; V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa
portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à
própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.
Art. 208, III – atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência,
preferencialmente na rede regular de ensino. Art. 227, § 1º, II – criação de programas
de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência física, sen-
sorial e mental, bem como de integração social do adolescente portador de deficiência,
mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos
bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetôni-
cos. Art. 227, § 2º – A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros, dos
edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de
garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência. Art. 244 – A lei disporá
sobre a adaptação dos logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de trans-
portes coletivos atualmente existentes, a fim de garantir acesso adequado às pessoas
portadoras de deficiência, conforme o disposto no art. 227, § 2º.

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cados na Convenção da ONU, estão assegurados no caput do art. 5º da
Constituição, prevendo o inciso XLI a garantia de que a lei punirá qual-
quer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.
Neste sentido, cabe destacar a Lei federal n. 7.853, de 24-11-1989,
que em seu art. 8º define como crime a discriminação à pessoa com
deficiência.
De fato, a posterior criação da referida e importante lei federal pas-
sou a estabelecer diretrizes para a proteção dos direitos das pessoas com
deficiência, reconhecendo-lhes o direito à educação, à saúde, ao traba-
lho, ao lazer, à previdência social, ao amparo à infância e à maternidade.
Assegura a representação dos interesses das pessoas com deficiência
ao Ministério Público, que tem o dever de combater o preconceito e
a discriminação e observar os princípios constitucionais de proteção à
pessoa com deficiência. E, como já apontado, chega inclusive a classifi-
car como crime a discriminação contra a pessoa com deficiência.
Esta lei foi regulamentada pelo Decreto n. 3.298, de 20-12-1999,
que consolida a proteção dos direitos elencados na Lei federal n. 7.853,
de 24-11-1989, reforça a Política Nacional para a Integração da Pessoa
Portadora de Deficiência, e dispõe sobre as atribuições do Conselho
Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência (CONADE),
criado pelo Decreto n. 3.076, de 1º-6-1999, para acompanhar e ava-
liar o desenvolvimento de uma política nacional para inclusão das pes-
soas com deficiência e das políticas setoriais de educação, saúde, traba-
lho, assistência social, transporte, cultura, turismo, desporto, lazer e
política urbana destinadas a elas.
Outra norma regulamentadora importante será o Decreto n. 5.296,
de 2-12-2004, que regulamenta a Lei Federal n. 10.048, de 8-11-2000,
a qual dá prioridade de atendimento às pessoas portadoras de deficiência.
De acordo com o seu art. 5º, § 1º, I, é considerada pessoa portadora de
deficiência quem se enquadra numa das seguintes categorias:
– deficiência física: alteração completa ou parcial de um ou mais
segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da fun-
ção física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, mo-
noplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia,
hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro,

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paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou
adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam difi-
culdades para o desempenho de funções;
– deficiência auditiva: perda bilateral, parcial ou total, de quarenta
e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de
500HZ, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz;
– deficiência visual: cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou
menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa
visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho,
com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida
do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60o; ou a
ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores;
– deficiência mental: funcionamento intelectual significativamente
inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações
associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como
comunicação, cuidado pessoal, habilidades sociais, utilização dos recur-
sos da comunidade, saúde e segurança, habilidades acadêmicas, lazer e
trabalho.
Há diversas outras normas incidentes nesta matéria na legislação
brasileira em vigor, muitas delas anteriores à entrada em vigor da Con-
venção da ONU de 2007. Seguramente, dentre elas, destacam pela sua
importância e pela sua ligação com a tecnologia assistiva as normas per-
tinentes à inclusão social.
O art. 19 da Convenção é dedicado a garantir às pessoas com de-
ficiência uma vida independente e inclusão na comunidade, de forma
que possam escolher seu local de residência e onde e com quem morar,
que tenham acesso a uma variedade de serviços de apoio em domicílio
ou em instituições residenciais ou a outros serviços comunitários de
apoio, inclusive os serviços de atendentes pessoais que forem necessá-
rios como apoio para que as pessoas com deficiência vivam e sejam
incluídas na comunidade e para evitar que fiquem isoladas ou segrega-
das da comunidade.
Segundo o art. 26 da citada Convenção, o Estado deve garantir a
habilitação e a reabilitação para a inclusão da pessoa com deficiência
na sociedade, particularmente nas áreas de saúde, emprego, educação

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e serviços sociais. Ademais, os Estados promoverão a disponibilidade,
o conhecimento e o uso de dispositivos e tecnologias assistivas, proje-
tados para pessoas com deficiência e relacionados com a habilitação e
a reabilitação.
Pois bem, a Constituição Federal brasileira já garantia a integra-
ção social das pessoas portadoras de deficiência no seu art. 24, com
especial atenção às crianças e adolescentes no art. 227, § 1º, III. O art.
203, IV, sobre assistência social garante a habilitação e reabilitação das
pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à
vida comunitária.
A inclusão também passou a estar assegurada na legislação nacional
pelo art. 1º da já citada Lei federal n. 7.853, de 24-11-1989. Esta lei
prevê a instituição da Coordenadoria Nacional para Integração da Pes-
soa Portadora de Deficiência (CORDE) e a formulação da Política Na-
cional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, que hoje
está a cargo da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência
da República, por obra da Lei federal n. 11.958, de 26-6-2009.
De acordo com o art. 12, são atribuições da CORDE, entre outras,
coordenar as ações governamentais e medidas que se refiram às pessoas
portadoras de deficiência; elaborar os planos, programas e projetos sub-
sumidos na Política Nacional para a Integração de Pessoa Portadora de
Deficiência, bem como propor as providências necessárias à sua com-
pleta implantação e seu adequado desenvolvimento, inclusive as perti-
nentes a recursos e as de caráter legislativo; e promover e incentivar a
divulgação e o debate das questões concernentes à pessoa portadora de
deficiência, visando à conscientização da sociedade.
O já citado Decreto n. 3.298, de 20-12-1999, dispõe sobre a Po-
lítica Nacional para a Integração da Pessoa portadora de Deficiência,
instituída pelo Decreto n. 914, de 6-9-1993, cujo objetivo é o acesso,
o ingresso e a permanência da pessoa portadora de deficiência em to-
dos os serviços oferecidos à comunidade; integração das ações dos ór-
gãos e das entidades públicos e privados nas áreas de saúde, educação,
trabalho, transporte, assistência social, edificação pública, previdência
social, habitação, cultura, desporto e lazer, visando à prevenção das
deficiências, à eliminação de suas múltiplas causas e à inclusão social;

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e desenvolvimento de programas setoriais destinados ao atendimento
das necessidades especiais da pessoa portadora de deficiência; forma-
ção de recursos humanos para atendimento da pessoa portadora de
deficiência.
A habilitação e reabilitação da pessoa com deficiência estão regula-
das pelo art. 15, I, do Decreto n. 3.298, de 20-12-1999, que, visando à
equiparação de oportunidades, garante: a reabilitação integral, entendi-
da como o desenvolvimento das potencialidades da pessoa portadora de
deficiência, destinada a facilitar sua atividade laboral, educativa e social;
a formação profissional e qualificação para o trabalho; a escolarização
em estabelecimentos de ensino regular com a provisão dos apoios neces-
sários, ou em estabelecimentos de ensino especial; e a orientação e pro-
moção individual, familiar e social.
Cabe destacar, finalmente, que a Lei federal n. 11.133, de 14-6-
2005, institui o Dia Nacional de Luta da Pessoa Portadora de Deficiên-
cia, em 21 de setembro. Neste mesmo diapasão, o Decreto n. 6.215, de
26-9-2007, estabeleceu o Compromisso pela Inclusão das Pessoas com
Deficiência, com vistas à implementação de ações de inclusão das pes-
soas com deficiência, por parte da União, em regime de cooperação com
Municípios, Estados e Distrito Federal; e institui o Comitê Gestor de
Políticas de Inclusão das Pessoas com Deficiência (CGPD).
Apesar de toda a legislação federal já citada, o Brasil não promove
ainda efetivamente a disponibilidade, o conhecimento e o uso de dispo-
sitivos e tecnologias assistivas, projetados para pessoas com deficiência e
relacionados com a habilitação e a reabilitação, conforme previsto na
Convenção da ONU. Não existe ainda nenhum compromisso em ter-
mos orçamentários neste sentido, que faça do acesso à tecnologia assis-
tiva um verdadeiro direito subjetivo.

5 Conclusões

O Brasil conta com um aparelhamento legal completo, no qual fica


claro que a tecnologia assistiva faz parte da “promoção, disponibilização
e uso das novas tecnologias (...) para as pessoas deficientes” exigidos pela
Convenção da ONU.

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Desta forma, a legislação brasileira, em termos de formalidade,
atende aos requisitos mínimos em matéria de direitos humanos para as
pessoas com diversidade funcional.
Na prática e pelo que se deduz dos termos legais utilizados na legis-
lação, verifica-se, no entanto, que o acesso à tecnologia assistiva não
possui caráter de direito subjetivo. Isto significa que, embora esteja pre-
vista no arcabouço institucional, não há garantia do seu financiamento
pelo sistema para todas aquelas pessoas que a solicitem.
Poderíamos entender o acesso à tecnologia assistiva como direito
subjetivo se a administração pública fosse obrigada a atender à demanda
apresentada. No entanto, a legislação deixa claro que tal atendimento
fica subordinado à disponibilidade orçamentária dos órgãos públicos.
Desta forma, fica evidente que estamos diante de um mero “favor” que
o Estado estará prestando ao deficiente.
Pode-se concluir também que a tecnologia assistiva não pode ser
considerada uma questão precipuamente técnica; na verdade, adquire
todo o seu sentido com a compreensão do modelo social proposto pela
Convenção da ONU, buscando, inclusive – como comentado na intro-
dução deste artigo – uma superação liderada pelos estudos de psicolo-
gia, tendo em conta o fator antropológico na sua completude.
Há, portanto, necessidade de estabelecer políticas públicas orienta-
das pelo direito de acesso à tecnologia assistiva, inscrito na sistemática
dos direitos humanos.
Assumindo, pois, a legislação brasileira o acesso à tecnologia assisti-
va como um direito subjetivo do deficiente, deverá assimilar a mudança
com a política legislativa pertinente que venha a promover as mudanças
necessárias.

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Ações Afirmativas e os
Direitos Humanos

José Fabio Rodrigues Maciel

Doutorando e Mestre em Direito pela PUCSP. Graduado em Direito pela USP.


Professor de História do Direito, Filosofia e Introdução ao Estudo do Direito.
Coordenador da Coleção “Roteiros Jurídicos” da Editora Saraiva; Coautor das obras
História do Direito e Português – bases gramaticais para a produção textual pela
Editora Saraiva. Autor da obra Teoria Geral do Direito, publicada pela mesma editora.
Advogado.

1 Direitos humanos e a igualdade

Ao avaliar o sentido e a evolução dos direitos humanos, Comparato


considera ser esse tema a “parte mais bela e importante de toda a
história”1, isto é, aquele que permite revelar “que todos os seres huma-
nos, apesar das inúmeras diferenças biológicas e culturais que os distin-
guem entre si, merecem igual respeito, como únicos entes no mundo
capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza”2. No que tange ao
pensamento do ilustre mestre, ouso divergir em um ponto, o de que
estudar os direitos humanos seja a parte mais bela de toda a história.
Que é a mais importante não resta dúvida, mas no momento em que se
aprofunda o estudo do tema, mais perceptível fica o enorme desrespeito
aos direitos humanos em todas as épocas civilizatórias, e à parte a imensa

1 A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 21.


2 Idem.

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tristeza que tal fato gera, vem a vontade de batalhar pela solução desse mile-
nar problema da sociedade humana. O que se deseja são gerações mais soli-
dárias e, acima de tudo, menos desiguais. É justamente para atingir esse
objetivo que as ações afirmativas se fazem cada vez mais necessárias.
A busca pela igualdade, principal responsável pelo fim das discrimi-
nações, passa cada vez mais pela necessidade de estabelecerem-se metas
para a redução das desigualdades. Deixar que o curso natural da história
resolva esse problema é, no mínimo, ato desumano, tendo em vista que
as relações de poder que regem as sociedades, na maioria das vezes, con-
tribuem muito mais para perpetuar as discriminações do que propria-
mente para resolvê-las.
Garantir a dignidade humana passa necessariamente por reconhe-
cer a igualdade entre todos os seres humanos, de modo que nenhuma
categoria possa afirmar-se superior às demais, evitando a discriminação
de qualquer natureza. E justamente para evitar essa discriminação as
normas internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos (art. II, 1) e a Convenção Americana dos Direitos Humanos (art.
1º, 1), também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, e
nossa Constituição Federal (art. 3º, IV), se repetem ao afirmar, em li-
nhas gerais, que se devem garantir os direitos e liberdades sem absoluta-
mente nenhuma forma de discriminação, como por motivo de raça, cor,
sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza,
origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer
outra condição social. Importante lembrar que os itens indicados nos
artigos supracitados são meramente exemplificativos, ficando evidente
que nenhuma discriminação é permitida.
Immanuel Kant, responsável direto pela conceituação de pessoa
como sujeito de direitos universais, anteriores e superiores a toda orde-
nação estatal, afirmava categoricamente que todo ser humano tem dig-
nidade e não um preço, como as coisas. A partir desse pensamento en-
tende-se que cada indivíduo é propriamente insubstituível, não podendo
ser trocado por coisa alguma, nem ser utilizado como meio para se atin-
gir determinado fim. Com isso evidencia-se que a essência da personali-
dade humana não se confunde com a função ou papel que cada qual
exerce na vida. Não importa a condição econômica ou social, todos

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merecem igual respeito. E para que esse respeito seja efetivamente atingi-
do, necessário se faz que as oportunidades sejam oferecidas na mesma
proporção. Como determinados segmentos da sociedade são historica-
mente discriminados, não participam da vida social em pé de igualdade
com outros segmentos, advém daí a necessidade de ações afirmativas para
equilibrar as relações sociais e permitir a efetiva dignificação de todos.
Saliente-se que aplicar as ações afirmativas não significa “nivelar por
baixo”, isto é, não se faz negando direitos a determinados setores da
sociedade, mas sim garantindo oportunidades àqueles que sempre as
tiveram negadas pela história. É a utilização de uma das partes que com-
põem o princípio da igualdade, reduzido na máxima de que se deve
“tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de maneira desigual, na
medida de sua desigualdade”.
Como afirma Dalmo de Abreu Dallari, “não existe respeito à pessoa
humana e ao direito de ser pessoa se não for respeitada, em todos os
momentos, em todos os lugares e em todas as situações a integridade
física, psíquica e moral da pessoa. E não há qualquer justificativa para
que umas pessoas sejam mais respeitadas do que outras”3. Da mesma
forma, quando falamos de pessoas, não há razão alguma para se preser-
var desigualdades históricas presentes na sociedade, sendo obrigação de
todos enveredarem esforços para que essas desigualdades sejam supera-
das, tendo em vista que essa superação é condição necessária para o fim
da discriminação, mal maior de nossa sociedade.
É exatamente o disposto no parágrafo anterior que justifica a aplica-
ção das ações afirmativas. Aliás, como aponta Carmen Lúcia Antunes
Rocha, “a expressão ação afirmativa, utilizada pela primeira vez numa or-
dem executiva federal norte-americana (...), passou a significar, desde en-
tão, a exigência de favorecimento de algumas minorias socialmente inferio-
rizadas, vale dizer, juridicamente desigualadas, por preconceitos arraigados
culturalmente e que precisavam ser superados para que se atingisse a efi-
cácia da igualdade preconizada e assegu­rada constitucionalmente na prin-
cipiologia dos direitos fundamentais”4 (grifos da autora).

3 Viver em sociedade, p. 13.


4 Ação afirmativa: o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica, p. 87.

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2 O princípio da igualdade

A Declaração Universal dos Direitos Humanos determina, em seu


primeiro artigo, que “todos os homens nascem livres e iguais em digni-
dade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em re-
lação uns aos outros com espírito de fraternidade”. Percebe-se claramen-
te neste artigo a retomada da trilogia oriunda da Revolução Francesa,
caracterizada pela liberdade, igualdade e fraternidade. As ações afirmati-
vas estão ligadas ao princípio da igualdade, tema que também ganhou
destaque na Constituição Federal e que será objeto de análise específica
neste item.
A Constituição Federal de 1988 trouxe inúmeras conquistas jurídi-
cas, é verdade, mas de nada adianta obtê-las se não se transformarem em
conquistas sociais, políticas, educacionais, culturais, econômicas. A nor-
ma precisa ser dotada de eficácia, e não é possível se contentar com a
eficácia atribuída às normas programáticas da Constituição Federal que
alguns alardeiam, ou seja, de que o simples fato de essas normas existi-
rem já significar que possuem eficácia, porque contribuíram para o apa-
ziguamento social! Não se deve aceitar jamais isso, e para tanto é neces-
sário a busca constante, diuturna, da concretização dos princípios
estabelecidos pela Constituição Federal, em que a dignidade da pessoa
humana é um deles.
Nesse sentido Carmen Lúcia Antunes Rocha afirma, ao discutir o des-
cumprimento de preceitos constitucionais, que “não me venha alguém di-
zer que se trata de uma norma programática, porque não acredito nisso.
Penso que foi um conceito que cumpria um papel que já acabou há muito
tempo. Não entendo que exista sequer a possibilidade de alguém acreditar
que a Constituição, que é lei, tenha dentro dela um cavalo de Troia, uma
especificação de uma ordem que não é para ser cumprida, ou que não pode
ser cumprida, ou que é só uma sugestão, um aviso ou uma cartilha”5.
Não basta que a Carta Magna determine em seu texto que deve
ocorrer o nivelamento das desigualdades materiais. É fundamental que

5 A proteção das minorias no direito brasileiro. In: Seminário Internacional as Mino-


rias e o Direito, p. 85.

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as normas que têm por finalidade combater as desigualdades socioeco-
nômicas, tão presentes na sociedade, deixem de primar pela ineficácia,
como a tão propalada educação pública e de qualidade para todos, bela
em palavras mas que está longe de ser efetivada.
Para os profissionais que atuam no Direito, a obrigação pela concre-
tização dos princípios constitucionais é ainda mais evidente, tendo em
vista que há a obrigação de atuar em conformidade com os ditames da
função social que as profissões forenses exigem, e um dos parâmetros
dessa função social é a defesa do previsto nos incisos do art. 3º, que são
“construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvi-
mento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as de-
sigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem precon-
ceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação”.
A não concretização do previsto constitucionalmente acarreta a per-
manência de uma sociedade desigual e preconceituosa, em que as opor-
tunidades são recusadas a milhões de pessoas. Com base no princípio da
igualdade, e na aplicação das ações afirmativas, é possível melhorar so-
bremaneira o respeito à dignidade, reduzindo as discriminações existen-
tes no seio social.
Como salienta Luciano Mariz Maia, “somos todos iguais, sendo
diferentes; somos todos diferentes, mas essencialmente iguais em digni-
dade e direito”6. Como a diversidade advém da diferença, não da desi-
gualdade, para que aquela seja respeitada é necessário aplicar em todo o
seu esplendor o princípio da igualdade, que traz no seu bojo a soma de
três quesitos: a isonomia, a igualdade substancial de condições de vida
(igualdade material) e o direito à diferença. Como afirmou o grande
mestre José Afonso da Silva, “porque existem desigualdades, é que se
aspira à igualdade real ou material que busque realizar a igualização das
condições desiguais”7.

6 A proteção das minorias no direito brasileiro. In: Seminário Internacional as Minorias


e o Direito, p. 69-70.
7 Curso de direito constitucional positivo, p. 207.

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A isonomia, que estabelece que somos todos iguais perante a lei, é
fundamental para que não ocorra a discriminação, por evitar a feitura
de leis para privilegiar indivíduos de modo particular. Não pode ela ser
confundida com o princípio da igualdade, como muitas vezes ocorre,
pois não garante totalmente a proteção dos indivíduos e dos vários gru-
pos sociais contra os desníveis ocasionados pela condição socioeconô-
mica de cada um deles.
Ser igual perante a lei não significa que materialmente os indivíduos
sejam iguais, daí a necessidade também de proteger, além da igualdade
formal, a igualdade material. O entendimento da igualdade material
deve ser o de tratamento equânime de todos os seres humanos, assim
como a sua equiparação no que diz respeito às possibilidades de conces-
são de oportunidades. Portanto, as chances devem ser oferecidas de for-
ma igualitária para todos os cidadãos, ainda que se tenha de fazer isso
via legislação. É que o desrespeito à igualdade substancial de condições
de vida leva, invariavelmente, à exclusão social.
Como garantir as igualdades formal e material ao mesmo tempo?
Contribui para essa resposta a terceira vertente do princípio da igualda-
de: o direito à diferença. Não há um ser humano igual a outro, portanto
materialmente somos todos diferentes, mas há algo em nossa essência
que nos caracteriza, que faz com que sejamos reconhecidos como “hu-
manos”, e essa igualdade essencial exige que todos tenham direitos e
deveres pelo simples fato de existirem, sem que sejam discriminados.
A lei pode ser um dos instrumentos na busca da igualdade nas suas
vertentes, tanto formal como material, desde que seja capaz de combater a
desigualdade de condições provocadas, no caso do Brasil, por nossa trajetó-
ria cultural de séculos de discriminação. A lei não só pode como deve dis-
tinguir, diferenciar, desde que essas desigualações tenham o propósito de
combater as históricas desigualações socioeconômicas incrustadas em nossa
sociedade. Só é possível concretizar o valor da igualdade ao combater as
desigualdades e, ao mesmo tempo, respeitar as diferenças. As normas que
preveem isso são exatamente as que contêm as chamadas ações afirmativas.
Para ter efetiva igualdade é fundamental melhorar a condição de
competitividade e colocar todos os indivíduos lado a lado, abolindo de
vez a injusta e humilhante exclusão a que muitos são submetidos. Para

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tanto, precisamos respeitar as diferenças existentes nos planos social,
cultural, religioso, sexual etc.
É a diferença que enriquece a humanidade, que permite moldar a
identidade humana, valorizar o indivíduo. É a diferença, a diversidade,
que faz com que sejamos reconhecidos por nossa humanidade, valoriza-
dos pelo simples fato de sermos pessoas, de sermos únicos e, portanto,
dotados de enorme capacidade de contribuir para a dignificação de todos.
É nesse sentido que devemos compreender a grande lição do sociólogo
português Boaventura de Souza Santos, quando afirma que “uma vez que
todas as culturas tendem a distribuir pessoas e grupos de acordo com dois
princípios concorrentes de pertença hierárquica, e, portanto, com con-
cepções concorrentes de igualdade e diferença, as pessoas e os grupos so-
ciais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direi-
to a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza”8. Fica evidente,
portanto, que só é possível concretizar o valor da igualdade ao combater
as desigualdades e, ao mesmo tempo, respeitar as diferenças.
É fundamental que se tenham fortes ações governamentais que ga-
rantam a discriminação positiva, ou medidas afirmativas, como prefiro
chamar. O jurista português J. J. Gomes Canotilho afirma que “existe
uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplina jurídi-
ca não se basear num: (I) fundamento sério; (II) não tiver um sentido
legítimo; (III) estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento
razoável”9. Fica aqui evidente a necessidade de estabelecerem-se, no âm-
bito dos direitos humanos, normas específicas que garantam que sejam
estes respeitados, para evitar que a preocupação apontada por Canotilho
realmente aconteça.

3 Ações afirmativas

As políticas de ação afirmativa, consubstanciadas efetivamente em


leis depois do advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
de 1948, passaram a ser política de Estado nos países ocidentais apenas

8 Por uma concepção multicultural de direitos humanos, artigo online.


9 Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 401.

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na segunda metade do século passado. Mesmo países como os Estados
Unidos, que adotaram esse mecanismo pioneiramente, como a cota racial
para o acesso dos afrodescendentes ao ensino universitário, ainda vivem
imensas desigualdades. Já no Brasil essa prática é bem recente, e ganhou
força apenas após o fim da ignóbil ditadura militar a que fomos submetidos.
Nos países em que surgiu e ganhou estrutura governamental, as
políticas de ação afirmativa tinham (e têm) o objetivo de compensar as
desvantagens oriundas das inúmeras formas de discriminação. Como
diz Carmen Lúcia Antunes Rocha, “a ação afirmativa faz com que a
igualação seja um processo dinâmico na história para vencer uma desi-
gualação posta e imposta historicamente”10.
Paulo Lucena Menezes entende que a ação afirmativa “designa um
conjunto de estratégias, iniciativas ou políticas que visam favorecer gru-
pos ou segmentos sociais que se encontram em piores condições de
competir em qualquer sociedade em razão, na maior parte das vezes, da
prática de discriminações negativas, sejam elas presentes ou passadas.
Colocando-se de outra forma, pode-se asseverar que são medidas espe-
ciais que buscam eliminar os desequilíbrios existentes entre determina-
das categorias sociais até que eles sejam neutralizados, o que se realiza
por meio de providências efetivas em favor das categorias que se encon-
tram em posições desvantajosas”11.
Já o Ministro Joaquim Barbosa define as ações afirmativas como
“conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, fa-
cultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discrimi-
nação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional,
bem como para corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discrimina-
ção praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal
de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e
o emprego”12.

10 A proteção das minorias no direito brasileiro. In: Seminário Internacional as Minorias


e o Direito, p. 88.
11 A ação afirmativa (Affirmative Action) no direito norte-americano, p. 27.
12 As ações afirmativas e os processos de promoção da igualdade efetiva. In: Seminário
Internacional as Minorias e o Direito, p. 103.

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José Carlos Evangelista de Araújo simplifica o conceito, definindo ação
afirmativa como “conjunto de políticas compensatórias e de valorização de
identidades coletivas vitimadas por alguma forma de estigmatização”13.
Para reduzir a desigualdade e pôr fim à discriminação de uma ma-
neira mais rápida daquela que o curso natural da história oferece, se-
guiu-se uma das premissas do princípio da igualdade, dando aos grupos
historicamente discriminados e excluídos socialmente tratamento dife-
renciado. Advém daí uma gama de termos para denominar essa política
pública, como discriminação positiva, ação positiva e ação afirmativa,
por exemplo.
O convívio com a discriminação e com as facilidades que ela ofere-
ce para determinados segmentos sociais, como o fato de ter reserva de
mão de obra de trabalhadores domésticos, serviçais etc., impede a boa
recepção às propostas de leis que busquem superar as desigualdades e
trazer benefícios para os excluídos social e culturalmente. É patente que
as políticas públicas que utilizam discriminação positiva gozam de im-
popularidade em todo o mundo ocidental. Mesmo que sejam provados
por “A mais B” os enormes benefícios de tais políticas, a maioria das
populações brancas se opõe a elas, sempre a partir da tônica individua-
lista de que basta querer que se consegue as coisas, como se o sucesso do
indivíduo na sociedade dependesse única e exclusivamente dele, e não
de todo um aspecto social e histórico.
A garantia constitucional do direito à igualdade não é suficiente
para garantir o fim das desigualdades, sendo necessárias medidas efe-
tivas, inclusive leis específicas, para que a determinação constitucio-
nal, e também o previsto no direito internacional dos direitos huma-
nos, sejam realizados. Joaquim Barbosa manifesta-se sobre o tema da
seguinte forma: “Começa-se, assim, a esboçar-se o conceito de igual-
dade material ou substancial, que, longe de se apegar ao formalismo
e à abstração da concepção igualitária do pensamento liberal oitocen-
tista, recomenda, inversamente, que se levem na devida conta as de-
sigualdades concretas existentes na sociedade, devendo as situações

13 Ações afirmativas e Estado Democrático Social de Direito, p. 17.

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desiguais ser tratadas de maneira dessemelhante, evitando-se assim o
aprofundamento e a perpetuação de desigualdades engendradas pela
própria sociedade. Produto do Estado Social de Direito, a igualdade
substancial ou material propugna redobrada atenção por parte dos
aplicadores da norma jurídica à variedade das situações individuais,
de modo a impedir que o dogma liberal da igualdade formal impeça
ou dificulte a proteção e a defesa dos interesses das pessoas socialmen-
te fragilizadas e desfavorecidas”14.
São as ações afirmativas muito necessárias, tendo em vista que não
basta a previsão legal dos direitos fundamentais na Constituição Federal
e nos textos internacionais de proteção dos direitos humanos. Não basta
reconhecer a igualdade material e o fim de qualquer tipo de discrimina-
ção. É preciso superar a barreira ideológica da discriminação e trazer
efetividade aos preceitos constitucionais15, que infelizmente ainda estão
longe de serem concretizados. E isso se faz com política pública, com a
busca de conscientização, que se dá tanto pela educação como pelo pró-
prio viés imperativo de uma norma estatal.
O ideal é educar no sentido de que tenhamos uma sociedade que não
aceite e não pratique a violência contra a mulher, por exemplo; mas, en-
quanto não se atinge esse grau civilizatório, é fundamental ter dispositivos
legais que punam tal atitude, como previsto na Lei Maria da Penha. Bio-
logicamente a mulher não possui a mesma compleição física que o ho-
mem, e historicamente é o gênero feminino que sofre violência física,
principalmente no âmbito doméstico. Tal fato atenta, e muito, contra a
dignidade humana, portanto nada mais justo e necessário que uma lei que
dê tratamento mais severo ao gênero masculino, para proteger os que
historicamente são aviltados em sua dignidade, no caso a mulher.
Mesmo que a implementação das ações afirmativas sofra críticas, e
sofreu em todos os países em que foi inserida, é inegável que gerou mu-
danças extremamente positivas na inserção social e cultural das minorias

14 Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento


de transformação social, p. 4.
15 Entendo que todo preceito de direitos humanos seja também um preceito consti­
tucional, ainda que faça parte apenas das normas constitucionais materiais, por força do
§ 2º do art. 5º da CF.

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historicamente discriminadas, além de toda a conscientização em torno
dos direitos humanos que propiciou nessas sociedades. É, inclusive, o
que vem acontecendo no Brasil, que além de se tornar signatário de
vários tratados internacionais com esse viés, também passou a estabele-
cer leis com essa prática, que engloba desde o Estatuto da Criança e do
Adolescente até a Lei Maria da Penha.
O acesso à educação é o principal catalisador desse processo, já que
ao capacitar e inserir segmentos que sempre estiveram à margem da so-
ciedade, repercute positivamente nos setores em que essas pessoas forem
atuar, contribuindo inclusive para a melhora da autoestima dos que ain-
da permanecem excluídos, e isso é fundamental para a luta pela supera-
ção do processo discriminatório.
Ao analisar o disposto nos incisos do art. 3º da CF, que trata dos
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, que deter-
minam essencialmente a erradicação das desigualdades e o fim das
discriminações, percebe-se claramente que a política de ação afirmati-
va deve ser imediatamente realizada pelo Estado, atendendo a todo e
qualquer segmento que historicamente tenha sido alvo de discrimina-
ções. Somente com essa implementação é que se conquistará em prazo
razoável a transformação dos comportamentos individuais e das men-
talidades coletivas da sociedade, para que se preocupem com a digni-
dade da pessoa humana.
As ações afirmativas possuem o ideal de concretizar a igualdade de
oportunidades, e a função real de induzir transformações de ordem so-
cial, econômica, cultural, pedagógica e psicológica, com a finalidade de
suprimir do imaginário coletivo a ideia de supremacia de alguns em
detrimento de outros.

4 Ações afirmativas e os tratados internacionais


de direitos humanos

Discriminação significa toda distinção, exclusão, restrição ou prefe-


rência que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o exercí-
cio, em igualdade de condições, dos direitos humanos e liberdades fun-
damentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou

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em qualquer outro campo16. Evidente que discriminação significa sem-
pre desigualdade, e que ocorre quando as pessoas são tratadas como
iguais em situações diferentes, e como diferentes em situações iguais.
Para combater a discriminação, e, consequentemente, a desigual-
dade, o Direito Internacional dos Direitos Humanos, por intermédio
dos tratados internacionais, utiliza-se de duas formas, que são a re-
pressiva punitiva e a promocional. Na primeira, busca-se de maneira
imediata erradicar as várias formas de discriminação, entendendo os
direitos humanos como indivisíveis, ou seja, estabelecem-se normas
que devam coibir a violação de todo e qualquer ato que atente contra
a dignidade da pessoa humana. Mas para obter o melhor resultado
possível, é de suma importância conjugar a vertente repressiva puni-
tiva com a vertente promocional. Advém daí a adoção de políticas
compensatórias que acelerem o processo de busca da igualdade. Evi-
dente que para atingir e manter a igualdade não é suficiente proibir a
discriminação, mediante legislação repressiva. As ações promocio-
nais, responsáveis por estimular a inserção e inclusão de grupos so-
cialmente vulneráveis nos espaços sociais, são também fundamentais.
É que a proibição da exclusão, por si só, está longe de significar que
ocorrerá a inclusão.
E fica evidente que a inclusão acontece a partir da principal discus-
são aqui colocada, a adoção das ações afirmativas. São elas grandes res-
ponsáveis por assegurar a diversidade e a pluralidade social, contribuin-
do na essência para a construção de um Estado democrático. É por
intermédio delas que se abrem as conexões entre a igualdade formal e a
igualdade material e substantiva, garantindo-se, ao mesmo tempo, o
direito à diferença.
Grande marco no processo de valorização das ações afirmativas no
direito internacional dos direitos humanos foi a aprovação pela ONU,
em 1965, da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Dis-
criminação Racial. Logo no preâmbulo, essa Convenção determina que
qualquer “doutrina de superioridade baseada em diferenças raciais é

16 PIOVESAN, Flávia. Ações afirmativas da perspectiva dos direitos humanos, texto online.

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cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e pe-
rigosa, inexistindo justificativa para a discriminação racial, em teoria ou
prática, em lugar algum”.
Em total consonância com a teoria geral do Direito Internacional
dos Direitos Humanos, a Convenção anteriormente indicada conjuga a
vertente repressiva punitiva com a vertente promocional, ao estabelecer
tanto a urgência na adoção de todas as medidas necessárias para elimi-
nar a discriminação racial em todas as suas formas e manifestações e
para prevenir e combater doutrinas e práticas racistas, quanto ao confe-
rir, como compensação, a discriminação positiva àqueles que sofrem
desigual­dades de oportunidades, prevista no item 4 do art. I: “Não serão
consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o
único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais
ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser
necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou
exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que
tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direi-
tos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem
sido alcançados os seus objetivos”.
Muitos entendem, como nós, que esse item da Convenção foi
fundamental para que ações afirmativas passassem a ser utilizadas em
defesa de grupos ou indivíduos que se encontrem em situação de vul-
nerabilidade dentro de seus próprios países 17. Ademais, o entendimen-
to hoje é que a adoção de ações afirmativas não é uma liberalidade dos
países signatários dos tratados internacionais que preveem esse institu-
to, e sim uma obrigação, sendo o caráter dessas normas de natureza
impositiva.
É que, para a concretização do princípio da igualdade em uma so-
ciedade desigual, é de suma importância que a adoção de medidas afir-
mativas seja exigida, e não meramente autorizada, ainda mais quando é
necessário coibir situações que originam ou que facilitam perpetuação
de discriminações atentatórias aos direitos humanos.

17 ALVES, José Augusto Lindgren. A arquitetura internacional dos direitos humanos, p. 91.

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Outro exemplo a ser citado é a Convenção sobre a Eliminação de
todas as formas de Discriminação Contra a Mulher, que da mesma
maneira que a Convenção contra o racismo traz previsão expressa da
obrigação de os Estados-partes adotarem ações afirmativas no intuito
de acelerar o processo de igualdade entre homens e mulheres. É o que
dispõe em seu art. 4º, item 1: “A adoção, pelos Estados-partes, de
medidas especiais de caráter temporário visando acelerar a vigência de
uma igualdade de fato entre homens e mulheres não será considerada
discriminação, tal como definido nesta Convenção, mas de nenhuma
maneira implicará, como consequência, na manutenção de normas
desiguais ou distintas; essas medidas deverão ser postas de lado quan-
do os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento tiverem
sido atingidos”.

5 Ações afirmativas e a Constituição Federal

Não é por acaso que a sociedade, na sua quase totalidade, ainda


confunda isonomia com igualdade. É que as Constituições brasileiras
sempre trouxeram em seus textos a abordagem sobre isonomia, ao passo
que a igualdade aparecia, mas restrita ao seu entendimento abstrato,
formal, exatamente a sua faceta que se confunde com a própria isono-
mia. Resultado direto da influência do pensamento liberal que esteve
presente em nossos textos constitucionais, a começar pela Carta de
1824, na qual apenas mencionava a equidade. Outro exemplo é a Cons-
tituição republicana de 1891, que previu simplesmente que todos se-
riam iguais perante a lei18.
Somente após o advento da Declaração Universal dos Direitos do
Homem, de 1948, é que surgiu norma infraconstitucional tipificando a
discriminação (1951), e mesmo assim como simples contravenção penal.
Essa questão só foi efetivamente solucionada pela Assembleia
Constituinte de 1987-8, que trouxe para o texto constitucional previsões

18 MELLO, Marco Aurélio. Ótica constitucional: a igualdade e as ações afirmativas.


Palestra proferida, em 20-11-2001, no Seminário Discriminação e Sistema Legal Brasi-
leiro, promovido pelo Tribunal Superior do Trabalho.

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legais que iam bem além da mera igualdade formal. Já no preâmbulo da
Carta Magna se fez a opção por uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos. Segue-se, no art. 1º, o reconhecimento da dignidade da
pessoa humana como fundamento da República, e como objetivos traz
o art. 3º, de forma imperativa, a necessidade de se corrigir as desigual-
dades. É desse art. 3º que surge “luz suficiente ao agasalho de uma ação
afirmativa, à percepção de que o único modo de se corrigir desigualda-
des é colocar o peso da lei, com a imperatividade que ela deve ter, a favor
daquele que é tratado de modo desigual. (...) Passou-se, assim, de uma
igualização estática, negativa – no que se proibia a discriminação –, para
uma igualização eficaz, dinâmica, já que os verbos ‘construir’, ‘garantir’,
‘erradicar’ e ‘promover’ denotam ação. Não basta não discriminar. É
preciso viabilizar as mesmas oportunidades. Há de ter-se como ultrapas-
sado o sistema simplesmente principiológico. A postura, mormente dos
legisladores, deve ser, sobretudo, afirmativa”19.
No mesmo diapasão temos o pensamento de outra ministra do Su-
premo Tribunal Federal: “Verifica-se que todos os verbos utilizados na
expressão normativa – construir, erradicar, reduzir, promover – são de
ação, vale dizer, designam um comportamento ativo. O que se tem,
pois, é que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil
são definidos em termos de obrigações transformadoras do quadro so-
cial e político retratado pelo constituinte quando da elaboração do texto
constitucional”20 (grifos da autora).
A Constituição Federal de 1988, no seu corpo, traz vários outros
dispositivos que orientam para a busca da igualdade formal, como o art.
7º, XX, que trata da proteção do mercado de trabalho da mulher me-
diante incentivos específicos, o art. 37, VII, que determina que a lei re-
serve percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas portado-
ras de deficiência, o art. 227, que determina tratamento especial para a
criança e para o adolescente e para os portadores de deficiência, entre
outros dispositivos.

19 Idem, ibidem.
20 ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Ação afirmativa: o conteúdo democrático do
princípio da igualdade jurídica, p. 92.

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6 O caráter temporário das ações afirmativas

Ficou demonstrado nos itens anteriores que as ações afirmativas


caracterizam-se por ser consequência direta de políticas públicas que
tentam, promocionalmente, concretizar a igualdade material. Isso se
tornou possível com a superação, principalmente, da ideologia liberal,
momento em que se questionou com veemência o dogma que entendia
a igualdade formal como único componente do princípio da igualdade.
Basta olhar para a sociedade brasileira para perceber que a igualdade
material está bem longe de ser atingida. Ilustrativo dessa situação foi
artigo publicado em 1996 no jornal Folha de S. Paulo, de autoria do
professor Junqueira: “A Constituição dispõe que o ensino será ministra-
do com base no princípio da ‘igualdade de condições’ para acesso e
permanência na escola; no entanto, dando aulas há 28 anos na Faculda-
de de Direito da USP, para, em média, 250 alunos por ano, e tendo tido
aproximadamente 7.000 alunos, dou meu testemunho de que nem cin-
co eram negros”21.
Inconcebível conviver com a ideia de mais quinhentos anos para
corrigir as injustiças cometidas nos quinhentos anos que se inauguraram
com a exploração dessas terras e desse povo pelos portugueses. Urge
adotar políticas compensatórias para reparar imediatamente todo mal
cometido, principalmente em apoio às comunidades afrodescendentes e
indígenas. Para tanto, não basta deixar toda a responsabilidade para a
sociedade civil, é fundamental que se tenham fortes ações governamen-
tais que garantam a adoção de medidas afirmativas, consubstanciadas
em lei.
Uma das medidas afirmativas que se pode tomar como “ação de
Estado”, principalmente em relação aos afrodescendentes, é a ampla
adoção nas universidades públicas da política de cotas, como já é previs-
to em nossa legislação de defesa dos direitos humanos e absurdamente
ainda não adotada em sua inteireza no Brasil. Ora, o Brasil é signatário,
desde 1969, da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as

21 Apud GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. As ações afirmativas e os processos de


promoção da igualdade efetiva, p. 129-130.

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formas de Discriminação Racial, portanto os dispositivos dessa Con-
venção fazem parte do nosso ordenamento jurídico, e o art. II, em seu
item 2, diz: “Os Estados-partes adotarão, se as circunstâncias assim o
exigirem, nos campos social, econômico, cultural e outros, medidas es-
peciais e concretas para assegurar adequadamente o desenvolvimento ou
a proteção de certos grupos raciais ou de indivíduos pertencentes a esses
grupos com o propósito de garantir-lhes, em igualdade de condições, o
pleno exercício dos direitos humanos e das liberdades fundamentais ...”.
Além do texto exposto, existem inúmeras outras normas que deter-
minam a necessidade da adoção de medidas afirmativas que auxiliem no
fim da discriminação de grupos que historicamente são discriminados
na sociedade. É o que prevê, por exemplo, o item 191 do Decreto n.
4.229, de 13-5-2002, que instituiu o Programa Nacional de Direitos
Humanos II: “Adotar, no âmbito da União, e estimular a adoção, pe-
los Estados e Municípios, de medidas de caráter compensatório que
visem à eliminação da discriminação racial e à promoção da igualdade
de oportunidades, tais como: ampliação do acesso dos afrodescenden-
tes às universidades públicas, aos cursos profissionalizantes, às áreas de
tecnologia de ponta, aos cargos e empregos públicos, inclusive cargos
em comissão, de forma proporcional a sua representação no conjunto
da sociedade brasileira”.
A reserva de vagas em universidades é o reconhecimento de que
existe uma população discriminada socialmente por sua cor. Se o racis-
mo não é institucionalizado no Brasil, ele se apresenta de uma forma
ainda pior, camuflado pelo discurso de igualdade que é desmentido a
cada análise da distribuição dos empregos e da renda na sociedade bra-
sileira. Fica patente que a política de cotas não deve se ater apenas à boa
vontade de alguns, mas sim que deve ser encarada como uma obrigação
nacional com o fim de reduzir as desigualdades sociais, reparando erros
e atrocidades históricas cometidos contra boa parcela daqueles que
compõem a sociedade brasileira.
A escravidão no Brasil vitimou principalmente os afrodescendentes e
os povos nativos (indígenas). Os descendentes desses povos sofrem até
hoje a consequência da barbárie capitaneada pela ganância e pela falta de
compreensão do significado da vida humana. A adoção de cotas é um dos

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instrumentos que permitem minimizar o mal ocasionado, ou seja, a
concentração de renda e de conhecimento que se perpetua nas mãos e
mentes de alguns à custa de enorme sofrimento perpetrado à maioria
da população brasileira. Portanto, não há medida mais justa do que a
reparação.
Evidente que as ações afirmativas constituem-se em catalisadores
para se atingir a igualdade de oportunidades entre as pessoas, distin-
guindo e beneficiando grupos historicamente oprimidos por mecanis-
mos discriminatórios, por intermédio de ações pontuais que devem
ocorrer em determinado tempo e contexto, com o objetivo de modificar
positivamente a situação de vulnerabilidade e desvantagens dos respec-
tivos grupos até então em enorme desvantagem social.
As ações afirmativas devem ser medidas emergenciais e pontuais, de
caráter temporário e parcial, com objetivos específicos, cuja pretensão
maior sempre é, pelos mecanismos promocionais, solucionar problemas
estruturais de discriminação no interior da sociedade. São essas medidas
as principais responsáveis por acelerar o processo de conquista de igual-
dade material referente aos grupos sociais mais vulneráveis, como as
minorias étnicas e raciais, entre inúmeros outros grupos.
Importante ressaltar que as ações afirmativas possuem caráter tem-
porário. É que se permanecerem mesmo depois de ser atingida a igual-
dade de condições materiais, acabarão por ensejar uma das formas de
discriminação, já que passarão a tratar iguais de maneira desigual. Fun-
damental que o Brasil adote cada vez mais medidas caracterizadas pela
discriminação positiva, pois só assim a dignidade da pessoa humana será
efetivamente respeitada.

7 Referências bibliográficas

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humanos. São Paulo: FTD, 1997.
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tico Social de Direito. São Paulo: LTr, 2009.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constitui-
ção. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1998.

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COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos huma-
nos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Viver em sociedade. São Paulo: Moderna,
1995.
GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Ação afirmativa & princípio cons-
titucional da igualdade: o direito como instrumento de transforma-
ção social. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
________. As ações afirmativas e os processos de promoção da igualda-
de efetiva. In: Seminário Internacional as Minorias e o Direito. Brasí-
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MAIA, Luciano Mariz. A proteção das minorias no direito brasileiro.
In: Seminário Internacional as Minorias e o Direito. Brasília: CJF,
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MELLO, Marco Aurélio. Ótica constitucional: a igualdade e as ações
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2001. Artigo publicado no Correio Braziliense, de 20-12-2001.
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Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext
&pid=S0100-15742005000100004>. Acesso em: 12 abr. 2009.
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direitos humanos. Disponível em: <www.dhnet.org.br/direitos/mili-
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SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 34 ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

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História Política e Direitos Humanos:
Perspectivas para uma Antropologia
do Estado

José Luís Solazzi

Bacharel em Ciências Sociais (PUCSP) e em Direito (USP), Doutor e Mestre em


Ciências Sociais (PUCSP). Professor Adjunto do Curso de Ciências Sociais da
Universidade Federal de Goiás, Campus Catalão (UFG/CAC).

Nada se assemelha mais ao pensamento mítico que a


ideologia política.
(C. LÉVI-STRAUSS. Antropologia estrutural I
(1957), Capítulo XI – A Estrutura dos Mitos, p. 241.)

Este artigo aborda correlações entre História Política e Direitos Hu-


manos a partir dos paradigmas atuais das Ciências da Cultura.
Pretende diagnosticar os discursos de verdade contemporâneos
próprios às Ciências da Cultura, para construir análises voltadas à
emergência das “Declarações de Direitos” que procedem dos contex-
tos políticos da Revolução Americana (1774) e da Revolução Fran-
cesa (1789) e à consequente concepção internacional de Direitos
Humanos.
Trata-se de entender estas declarações de múltiplos direitos como
discursos de verdade que têm alicerçado tradições de Estados filosóficos
(États philosophiques) ou “Estados-filosofias” (État-philosophies), “filoso-
fias que são ao mesmo tempo Estado, e Estados que se pensam, refle-
tem, organizam e definem suas coisas fundamentais a partir de posições
filosóficas” (Foucault, Dits et Écrits III, p. 535-538).

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Desta forma, investigam-se questões atuais que nos permitem com-
preender o grande jogo do Estado e a sua construção dos estatutos do
cotidiano razão-desrazão, vida-morte e crime-lei.
No “jogo dos discursos” de conjunturas constitucionais e situações
políticas particulares em que liberdades e direitos constituem-se como
virtualidades permanentes é necessário afirmar possibilidades de des-
centramentos minúsculos e essenciais. Nesse sentido, a “Antropologia
Analítica do Poder”, voltada para a descentralização dos mecanismos de
poder, suas dinâmicas e formas de dominação na Contemporaneidade,
pode tornar-se um instrumento para mais liberdade.

Um Diagnóstico Contemporâneo das Ciências da


Cultura

A Antropologia Contemporânea discute a ultrapassagem de uma


fase histórica das Ciências Sociais que se estruturou a partir de três po-
laridades/dualidades:

• indivíduo – sociedade (a);


• primitivo – civilizado (b); e
• natureza – cultura (c).

A partir da obra de Lévi-Strauss, tem-se desenvolvido um conjunto


de abordagens que elaboram novas práticas discursivas acerca das corre-
lações entre (a) a parte e o todo, (b) eles e nós e (c) o um e o múltiplo.
Descola (2002/1) afirmou que a grande separação de método e de
objeto entre as ciências da natureza e as ciências da cultura, aprofundada
por todo o século XIX, já cumpriu sua tarefa histórica e ontológica ao
efetivar a necessidade de isolamento dos domínios dos objetos positivos:
de um lado, a elaboração universal das explicações nomotéticas; de ou-
tro, a relatividade das interpretações históricas e sociológicas – o que
levou ao progresso científico em seus múltiplos campos e à sua cristali-
zação em diversas formas de saber-poder.
Mas o tempo histórico da divisão empírica do trabalho científico
entre ciências da natureza e ciências da cultura acabou.

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Estamos ante a Antropologia da Natureza. Prática de ciência que
ultrapassa as divisões animado-inanimado, sólido-material, governados
pela natureza-seres de linguagem, sociedades governadas pela lei da razão­
‑sociedades governadas pelo sobrenatural. Nas Ciências da Cultura, li-
quefaz-se o olhar antropocêntrico para surgirem domínios e objetivos
que alcancem o anthropos – toda coletividade humana de viventes deve ser
entendida enquanto forma instituída de presença no mundo.
Descarta-se a perspectiva da continuidade dos fenômenos numa es-
cala evolutiva ascendente que encontra em seu ápice as escolhas históri-
cas e particulares da socialidade capitalista para se alcançar a diversidade
das formas culturais de ser-estar no mundo, com suas propriedades,
usos, diversidade remarcável, mas não infinita.
Consoante a Antropologia da Natureza, trata-se de produzir uma
cartografia dos vínculos e dos modos de compreender a natureza pelas
múltiplas formas de socialidade humanas, por meio do estabelecimento
da “heterogeneidade desconcertante”, com sua trama singular, arranjos,
motivos próprios, forma variante, descontinuidades acessíveis:

(...) a natureza: é o sistema de práticas contratantes de toda natureza que


autoriza (...) reconhece as práticas identitárias e as imputações variadas
que estabelecem a estrutura do mundo (DESCOLA, 2002/1, p. 18).

Trata-se, pois, de abordar cada sistema cultural possuidor de práticas


e arranjos como “totalidade reflexiva autônoma” que nós chamamos “cul-
tura” ou “sociedade”. Possuidora de descontinuidades finitas, proprieda-
des da vida social, diferentes maneiras de estabelecimento das relações nós
e outros. Arranjos que não são arbitrários, que constituem um repertório
de possibilidades humanas que devem ser consideradas em seus princípios
de combinação e inventários de correspondência passíveis de serem diag-
nosticados pela Antropologia Estrutural que nos ofertaria, por sobre con-
ceitos ultrapassados de “sociedade”, “tribo”, “nação” e/ou “classe”, a “cos-
tura substantiva”, a “esquematização da experiência”.
Devemos entender os “contornos de uma coletividade” mediante a
compreensão de sua (1) existência posicional, encarando-a como (2)
“maneira de organizar as relações no mundo”, (3) “coletivo de indivíduos

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possuidores de língua, instituições e/ou práticas passíveis de diferenças”,
mas que constituem uma “cosmologia distintiva”, uma “estilização da
experiência do mundo”.
A Antropologia da Natureza é a forma de “apreender os particula-
rismos dos grupos humanos a partir de características demarcatórias” e
de analisar a proximidade/contraste-distanciamento de formas, conteú-
dos, substância e comportamentos humanos.
Assim, o olhar etnográfico volta-se para o diagnóstico das configu-
rações dos fatos em sociedades marginais, com suas “configurações sin-
gulares dos sistemas cosmológicos”, e sua matéria de investigação são as
expressões e os mecanismos de reconhecimento do outro.
Latour (1994, p. 91-128) analisa os arranjos paradigmáticos pró-
prios à “Antropologia Simétrica” que se vincula ao estudo “do dispositi-
vo central de todos os coletivos” para “estabelecer a igualdade” e “gravar
a diferença” dos “universais relativos”.
A Antropologia seria composta por duas modernas matrizes que
distinguem (1) natureza-cultura e (2) humanos-não humanos.
A matriz natureza-cultura porta uma dimensão de tradução, mistu-
ra, hibridação e mediação dos gêneros de seres novos e híbridos em
“redes”. É espacialidade da instabilidade dos eventos e da imanência das
naturezas-naturantes.
A matriz humanos-não humanos é uma dimensão ontológica e crí-
tica de constituição destas zonas distintas dadas pela purificação e pela
dupla transcendência natureza-sociedade entendidas como essências.
Da imbricação destas duas matrizes decorrem as possibilidades do
conhecimento na Contemporaneidade:
a) a separação das matrizes natureza-cultura e humanos-não huma-
nos levaria à proliferação de máquinas e fatos híbridos;
b) o desvio simultâneo das matrizes levaria ao cruzamento dos hí-
bridos, à “Grande Separação” ou à outra democracia, a democracia es-
tendida às coisas.
Desta maneira, estabelece o contexto da Contemporaneidade:

Não temos outra escolha. Se não mudarmos o parlamento, não seremos


capazes de absorver as outras culturas que não mais podemos dominar, e
seremos eternamente incapazes de acolher este meio ambiente que não

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podemos mais controlar. Nem a Natureza nem os Outros irão tornar-se
modernos. Cabe a nós mudarmos nossas formas de mudar. Ou então o
Muro de Berlim terá caído em vão neste ano miraculoso do Bicentenário,
nos oferecendo esta lição ímpar sobre a falência conjunta do socialismo e
do naturalismo (LATOUR, 1994, p. 143).

Teríamos, em lugar do binômio indivíduo-sociedade, formas de


agenciamento local por redes e global que viabilizariam um “esquarteja-
mento simétrico” de sujeitos-objetos, naturezas-culturas e locais-glo-
bais, num “trabalho de tradução dos coletivos” possibilitador de compa-
rações múltiplas de naturezas-culturas levando ao fim a “natureza
universal” da cultura, própria aos discursos do antropólogo ocidental.

Declarações e Emergências de Direitos

Num texto de 1895, publicado na França em 1902, intitulado La


Déclaration des Droits de l´Homme et du Citoyen: contribuition a
l´histoire du droit constitutionnel moderne, George Jellineck analisa as
hipóteses sobre a procedência das “Declarações de Direitos”: se america-
na e religiosa; ou se francesa e política revolucionária.
Entendidas como “inovação no domínio dos fatos”, “novo credo”,
“Evangelho político dos tempos modernos”, afirma-se, já no prefácio de
Larnaude (Jellineck, 1902, p. I-XIII), que as “Declarações de Direi-
to” promoveram uma “transformação completa das instituições moder-
nas”, estabelecedoras de uma lei de validade permanente (lex in perpetuum
valitura), mesmo num contexto – início do século XX – de socialização
estatal do exército, da justiça, da legislação, do ensino e da produção.
Segundo Jellineck, as proposições de 1789 constituem-se em princípios
eternos da ordem e da organização públicas, estabelecendo os limites de-
marcatórios entre Estado e indivíduos, sendo, ainda, a base da teoria e prá-
tica jurídica francesa de estabelecimento dos direitos subjetivos e dos direi-
tos públicos individuais, disseminadora dos “catálogos de direitos” paralelos
em forma e conteúdo em todas as legislações constitucionais seguintes.
Constitui-se, pois, a “situação jurídica do indivíduo no Estado”
com o valor e o sentido prático que as “declarações de direitos fundamen-
tais expressam, com a fundamentação de práticas e rotinas judiciárias e

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administrativas que reconhecem a situação concreta dos indivíduos atra-
vés de leis precisas, positivas e detalhistas” (Jellineck, 1902, p. 6-14).
A tese de Jellineck recusa a procedência rousseauniana das “De-
clarações de Direitos”, para afirmar que a forma geral (I) Preâmbulo,
(II) Declaração e (III) e Enumeração de Direitos, com suas caracte-
rísticas de brevidade, concisão e exposição enérgica provém das “De-
clarações de Direitos” americanas que, objetivando construir um
instrumento de “garantias práticas para as minorias”, instaura o “go-
verno das leis” e uma “ordem de ideias” acerca da justiça e da impes-
soalidade das leis.
Estas “leis eternas da humanidade” afirmam

a partir das Declarações, (que) o indivíduo não provém do Estado, mas


da sua qualidade humana, e da sua natureza, os direitos que possui são
(portanto) inalienáveis e imprescritíveis (JELLINECK, 1902, p. 50).

Depreende-se, assim, a convicção da existência de um Direito inde-


pendente do Estado (1), a concepção de uma esfera jurídica indepen-
dente do Estado (2) que se efetiva por constituir, ante a instituição esta-
tal, uma organização jurídica de fato (3).
Os direitos absolutos de liberdade, propriedade e segurança consti-
tuem um “Corpo Político” que se fundamenta no princípio da soberania
popular, na Constituição, como pacto constituído por toda a coletivida-
de, que assenta numa “Declaração de Direitos” seu pacto de estabeleci-
mento, sua prática constitucional, sua maneira de viver, seu plano e arma-
dura de governo – seu “Direito do Estado”, numa concepção de lei como
“regra bilateral”: a) leis que conferem ao povo o direito subjetivo de exigir
do príncipe o cumprimento e o respeito às leis; e (b) o direito próprio à
execução do “Direito de Estado” que é a obediência legal por parte do
povo das maneiras de viver estabelecidas pelos pactos constitucionais.
As “Declarações de Direitos” e o plano de governo devem ser enten-
didos como as instituições positivas que reconhecem e constatam, sole-
nemente, os direitos individuais e os direitos do povo a partir da orga-
nização das linhas demarcatórias das esferas de atuação do Estado, que
são correlatas à forma e à matéria do Direito.

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São, portanto, os direitos superiores ao Estado, cabendo-lhe a sua
não violação dada a legislação positiva que os reconhece e constata a sua
emergência e positividade, um birthrigth (Jellineck, 1902, p. 54).

“Estudo sobre os Direitos do Homem na Prisão”

A “Comissão Nacional Consultiva dos Direitos do Homem” (CNCDH)


francesa estabeleceu uma série de proposições adotadas pela sua assem-
bleia plenária em 11 de março de 2004, constituindo as proposições
“Estudo sobre os Direitos do Homem na Prisão” como diretrizes neces-
sárias para a efetivação dos direitos comuns a todos os aprisionados,
condenados ou presos provisórios.
Neste estudo, procura-se afastar o regime prisional francês de um
contexto de exceção jurídica, a partir da Resolução do Parlamento Euro-
peu de 17 de dezembro de 1998, que determina a criação de uma “lei
fundamental sobre os estabelecimentos penitenciários” que defina o regi-
me jurídico, o direito de reclamação, as obrigações dos detentos, a criação
de um órgão de controle independente voltado para a violação de direitos.
Na busca de um “Estatuto Jurídico para o Aprisionado”, pretende-se
uma “harmonização normativa” que, a partir da reescritura do direito
positivo, deve estabelecer a limitação precisa do poder discricionário da
administração e assegurar o respeito ao princípio da legalidade.
Trata-se, assim, de conciliar as dimensões internacionais e constitu-
cionais dos direitos fundamentais à efetividade de direitos possuídos
pelos aprisionados durante o período de privação de liberdade e ao prin-
cípio da proeminência do direito numa sociedade democrática. Ques-
tiona-se o paradoxo reinserção-encarceramento como estratégia política
que não tem mais como afirmar a legitimidade tradicional do encarce-
ramento por meio dos discursos de readaptação, reinserção e/ou reabili-
tação.
Ao se pretender que o princípio da segurança jurídica ofereça aces-
sibilidade e intelegibilidade suficientes, procura-se um “corpo de regras
coerente aplicáveis à prisão e um acesso ao direito efetivo e justo” a par-
tir de três diretrizes:

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a) aplicação do direito comum à administração penitenciária para a garan-
tia do melhor equilíbrio entre o imperativo da segurança e da proteção
dos direitos e liberdades;
b) afirmação de restauração do liame social e da preparação dos condena-
dos para o retorno à liberdade – função essencial do serviço público peni-
tenciário; e
c) instauração de um dispositivo de controle independente e permanente
de garantia eficaz para o respeito dos direitos fundamentais da pessoa
(aprisionada).

Não se deve, pois, aceitar a recusa à pessoa encarcerada de sua con-


dição de “pessoa humana” por afirmações de necessidades de segurança
e controle desta população. Tudo consiste numa “hierarquização das
prioridades”, visto que se trata de um “cidadão” que porta “garantias
organizadas” nos âmbitos dos Direitos Civil e Penal, sendo “usuário de
um serviço público administrativo” com reflexos trabalhistas.
Entendido como “serviço público penitenciário” (Lei de 22 de junho
de 1987), o sentido da execução torna-se primeiro o “reforço da impor-
tância da missão ressocializadora em todos os domínios da atividade car-
cerária” – o que necessita de um controle nacional de “verificação” prisio-
nal, com mediadores regionais e delegados de mediação locais responsáveis
pela observação do cumprimento dos preceitos legais constitucionais para
a concretização dos direitos fundamentais dos detidos.
A afirmação destes direitos fundamentais, vinculada ao princípio da
reintegração, estabelece uma nova dimensão política, jurídica e técnica
para lidar com a conservação de todos os direitos de cidadania, exceto o
de ir e vir. Dado que a execução da condenação deve ser regida por to-
dos e quaisquer princípios de direito comum, adaptados, mas não extin-
tos pela pena de privação de liberdade.
A salvaguarda da dignidade da pessoa humana não deve mais ser
vinculada ao truísmo seguridade-humanização, limitador da dimensão
profunda das proposições dos direitos fundamentais que afirmam o in-
teresse geral: a “humanização das prisões”.
O “Estudo” questiona as revistas corporais, o isolamento prolonga-
do, a utilização de transferências múltiplas, a higiene e as condições de

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detenção, afirmando o princípio do encarceramento celular como “ele-
mento essencial à preservação da dignidade das pessoas e à proteção de
sua integridade física”, já que 55% da população carcerária sofrem “pro-
blemas mentais devidos ao efeito deletério, angustiante, deprimente (...)
de toda vida carcerária”.
Quanto à prevenção de suicídios1, determina-se a necessidade de
preservar e valorizar a dimensão do sujeito e a determinação de sua au-
tonomia para que se possam diminuir os fatores de risco com o melhor
acolhimento dos novos entrantes no sistema carcerário. Com uma roti-
na de visitas de parentes e amigos – o que tem levado à recusa de expe-
riências como o “quarteirão disciplinar”, a “inatividade forçada”, a “pri-
vação de bens” para que, por meio da afirmação da sua autonomia, seja
possível retirar-se do sistema suas características totalitária e desumana
de vigilância reforçada com multiplicação de rondas e verificação de
vida para que se diminuam índices, medidas, correlações e valores que
expressam a completa irracionalidade do sistema carcerário.
Uma das determinações do “Estudo” é a proteção à intimidade,
uma vez que o “clima (é) de persecução terrível” com “inspeção frequen-
te e minuciosa” e censura e/ou limitação das “correspondências escritas
e telefônicas” sem decisão judicial.
Uma das proposições de melhoria das condições carcerárias consiste
nas “Unidades Experimentais de Visita Familiar” (UEVF). São espaços
de recepção dos familiares entre seis e quarenta e oito horas e, uma vez
por ano, de setenta e duas horas, evitando-se “a situação familiar dos
destinatários sempre ignorada pela autoridade administrativa” e a “inge-
rência nos domínios da vida familiar”.
No sentido de “promover o contato com o mundo exterior” deve-se
estender o “regime de visitas” ao menos em dois períodos na semana e,
pelo menos, um aos finais de semana.

1 Os dados de suicídio das prisões francesas são de 1980: 39 acontecimentos, 1990:


130 acontecimentos, 2002: 122 acontecimentos; com os índices de 100 x 100.000, em
1980, 130 x 100.000, em 1990, 2001, 130 x 100.000 e 2001 de 224 x 100.000. No caso
de tentativas, temos 393 em 1980 e 918 em 2000. Em relação à população geral, o coe-
ficiente de “sobressuicídio” (sursuicide) dos encarcerados era 4,0, entre 1980 e 1991 e
cresceu para 6,5.

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Estima-se um contingente entre 70 e 80 mil crianças com genitores
detidos. Indica-se a exceção da detenção de mães de crianças com idade
até 5, 6 anos.
Destacam-se, ainda, as questões vinculadas às atividades profissionais,
físicas, educativas, culturais e esportivas que devem assegurar o retorno
eficaz à vida civil, com o pagamento de, no mínimo, dois terços dos pro-
ventos estabelecidos pelas convenções coletivas da categoria profissional
de vinculação do detido empregado. Sem faltar quaisquer elementos da
relação de trabalho comum, como o direito de greve e a liberdade sindical.
Assinala-se, também, o direito de votar por procuração para que se
efetive o exercício da cidadania e direitos fundamentais expressos em
1789, como a livre expressão, opinião e recebimento e comunicação de
informações e ideias.
Logo, a natureza da sociedade democrática exige que a “defesa da
ordem”, a “prevenção do crime” e a “proteção dos direitos dos outros”
vinculem-se e se limitem a uma “Política de Direitos” dos aprisionados,
com o livre exercício de comitês de detidos, “representantes das pessoas
encarceradas que apresentem demandas e informações da população
carcerária”.

A Lei

A partir do “Estudo”, em 6 de março de 2009, o Senado francês


aprovou a Lei “Conteúdo da Pena de Privação de Liberdade”, objetivan-
do “garantir a todo detido o respeito aos direitos fundamentais inerentes
à pessoa”, cujo princípio do “serviço público penitenciário” é contribuir
para a “inserção ou reinserção de pessoas que lhe são confiadas pela au-
toridade judiciária”, visando a “prevenção da reincidência”, e a “segu-
rança pública”, respeitando os interesses sociais e “assegurando a indivi-
dualização e a distribuição das penas” (art. 1º).
É estabelecido um “Conselho de Avaliação” para as “condições de
funcionamento do estabelecimento” e “propostas de medidas de melho-
ria”, cuja “composição e funcionamento (...) são fixados por decreto”,
um “Mediador da República” que é indicado pelos estabelecimentos
como delegado afeito a esta missão e um “Observatório” para a “coleção

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estatística de infrações, execuções de decisões judiciais em matéria penal
com a produção de um anuário público das taxas de reincidência por
penas para mensuração dos impactos das condições de detenção sobre a
reinserção” (art. 2º, II a V).
Estrutura-se um “código de deontologia do serviço público pe-
nitenciário”, com seus conteúdos, habilitações e formação inicial e
continuada voltados para a “segurança interior”. Sua “missão de se-
gurança” volta-se para a “defesa da integridade física das pessoas pri-
vadas de liberdade” e que devem ter suas “penas individualizadas”
para que se pratiquem as “políticas de inserção e prevenção da rein-
cidência” (art. 4º, II e III).
Há, também, a “reserva civil penitenciária”, “constituída por volun-
tários aposentados, provenientes dos corpos de administração peniten-
ciária” e “destinada a garantir as missões de reforço da segurança nos
estabelecimentos e edifícios relevantes do Ministério da Justiça, como os
de cooperação internacional” (art. 6º).
Há um capítulo que trata das “disposições relativas aos direitos dos
presos”, que determina que “a administração penitenciária garante a to-
dos os presos o respeito aos seus direitos”:

O exercício de seus direitos não pode ser objeto de outras restrições que não
as resultantes dos constrangimentos inerentes à detenção, da manutenção
da segurança e da boa ordem do estabelecimento, da prevenção da reinci-
dência e da proteção do interesse das vítimas. Estas restrições terão em con-
ta a idade, o estado de saúde e a personalidade das vítimas (art. 10).

Também existe a prescrição legal sobre o “direito à liberdade de


opinião, de consciência e religião” (art. 11, II).
Mas ressaltam as prescrições acerca das “obrigações de atividade”,
ainda que mediante consulta aos executores das obrigações, a leitura, a
escritura, o cálculo, a língua francesa, aos que a desconhecem, e as ativi-
dades de trabalho são compulsórias e afirmam-se por um “ato de enga-
jamento” entre o aprisionado e o chefe administrativo penitenciário que
estipulam os direitos e obrigações profissionais e as condições de traba-
lho e remuneração, indexada, por decreto, ao salário mínimo em “taxa
horária” vinculada ao regime prisional (art. 12).

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Deve-se, ainda, constatar a emergência da distinção entre aqueles
que cumprem prisão preventiva e os condenados. Quanto à permissão
de visita, os primeiros podem recebê-las três vezes por semana, já os
condenados, uma.
A recusa da autoridade às visitas só pode estar relacionada à manu-
tenção da ordem, da segurança e à prevenção das infrações, mas no caso
de não aparentados seu poder é discricionário (art. 15).
As medidas correcionais de vigilância interna devem ter por objeti-
vo a “presunção de infração” e o “risco à segurança e à ordem”. Quanto
à natureza, podem ser de “apalpação”, “detecção eletrônica” e as “inte-
grais”. São proscritas as “medidas de vigilância interna com aparato es-
pecial” e sua frequência determina-se pela “necessidade” e “personalida-
de” dos detidos (art. 24).
Dentre outras disposições de direito material e processual, o “Capí-
tulo IV”, sob o título “Disposições diversas”, estabelece que a pena de
aprisionamento vincula-se à “gravidade da infração”, “personalidade” e
à “inadequação de outra sanção”; aqui são estabelecidas as formas de
sanção de (1) “trabalho de interesse geral sem remuneração em benefício
de pessoa moral de direito público” e quando (2) “há possibilidade de
semiliberdade, num local sob vigilância eletrônica ou local exterior com
execução provisória” (art. 33, II).
Já a disposição de processo penal constante do art. 137 recebe a se-
guinte redação:

Toda pessoa posta em exame, presume-se inocente e mantém-se livre.


De toda forma, em razão das necessidades de instrução ou a título de
medida de segurança, ela pode ser constrangida a uma ou várias obriga-
ções de controle judicial ou, se elas se revelam insuficientes, a ser postas
em residência com vigilância eletrônica.
Excepcionalmente, se as obrigações de controle judiciário ou de indicação
de residência com vigilância eletrônica não permitirem o atendimento dos
objetivos, a pessoa pode ser posta em detenção provisória.

Não obstante as proposições reformistas do “Estudo” no que se re-


fere à efetivação dos direitos fundamentais dos aprisionados, é evidente
que a lei está voltada para a ampliação da esfera de atuação das instituições

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judiciais e policiais por meio de medidas de controle eletrônico sobre
parcelas cada vez maiores da população.

História e Política e Novos Contextos

Boireau (2002) assinala que as reflexões de William Godwin podem


ser entendidas como repercussões das questões jacobinas na Inglaterra.
O “jacobinismo inglês” seria o reflexo de sua atenção aos movimentos
políticos revolucionários de 1789-1793.
Dentre as proposições de Godwin, o que aqui nos interessa são as
reflexões sobre o direito punitivo.
Afirma que, no campo do direito internacional, o conflito entre
soberanias nacionais tem como fundamento a guerra, combate sangren-
to entre inimigos de mesmo matiz político e capacidade de violência.
Internamente, estas soberanias utilizam o mesmo recurso sanguiná-
rio para constituir a legitimidade do enfrentamento do inimigo interno,
aos infratores aprisionados, na seletividade inerente ao sistema punitivo,
trata-se de causar violência a um inimigo isolado.
O Direito Penal torna-se, assim, uma instituição de violência públi-
ca que substitui o inimigo externo equivalente em força e potencial des-
trutivo, pela instituição de um inimigo particular, instaurado como
objeto da vingança pública.
Segundo as reflexões de Godwin, o Direito Penal é destruidor do
“juízo pessoal”, pois não viabiliza “a percepção do acordo ou desacordo
que media duas ideias, nem permite captar a verdade ou o erro que
contém uma proposição”:

Que ocorre com a grande maioria humana, que não é tão virtuosa (...) nem
tão depravada? A legislação positiva a converte em uma massa abúlica e
covarde. Com a cera, cede à pressão dos dedos que a moldam. Acostuma-
da a receber como normas de dever as ordens dos magistrados, é demasia-
do torpe para descobrir suas imposições e demasiado tímida para resistir a
elas. É assim como a maioria da humanidade tem sido condenada a viver
na mais absurda estupidez (GODWIN, 1950, p. 323).

Mas como devemos pensar mais sobre o dano sofrido e lutar pela
abolição da violência coercitiva, como assinalam Beccaria e Godwin,

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respectivamente, buscando adotar “um plano racional” para a sua su-
pressão dado ser “sempre incompatível com todo sistema político base-
ado na razão”? (Godwin, 1950, p. 336-337)
Na crise do capitalismo contemporâneo, vemos surgir todo um siste-
ma de seguro público para as falcatruas, desvios, ilegalidades e situações
problemáticas próprias ao que se tem convencionado chamar Delin-
quency-Capitalism, operações de mercado de hipotecas de alto risco
caracterizadas pelo “avançado grau de delinquência” (elevated rates of
delinquency) (Danis & Pennington-Cross, 2002).
A lógica de sustentação do sistema do Delinquency-Capitalism afir-
ma, como mantra, a necessidade política de manutenção, recuperação e
financiamento públicos das práticas corporativas de especulação, por
meio da estatização de empresas dos mais diversos setores econômicos,
assegurando-se, assim, as estruturas de sustentação financeira de fundos
de pensão, corporações internacionais e fundos de investimento para
que se possa debelar o “risco sistêmico”.
Imagina-se que a soma total de aplicação de dinheiro público alcan-
ce a soma de 7 trilhões de dólares.
A presente crise do capital, associada à imaginação antropológica, pode
nos permitir imaginar novas formas de socialidade. Num contexto intelec-
tual e analítico, há, portanto, um imenso debate contemporâneo acerca da
compreensão da cultura e das ontologias de repartição dos binômios indiví-
duo-sociedade, primitivo-civilizado e natureza-cultura que pode nos permi-
tir outras dimensões, entendimentos e formas de solidariedade.
Pensemos, neste momento, apenas nas possibilidades de constitui-
ção de seguros públicos para as vítimas de violência. Se a falência de
corporações como AIG, GM, por exemplo, merece a formação de um
verdadeiro seguro público, o que podemos fazer com as vítimas de pro-
blemas sociais da existência contemporânea? Quanto podemos e deve-
mos investir na solução de problemas e sofrimentos comuns?
Devemos continuar com o fluxo permanente de jovens adolescentes
e adultos para as masmorras e campos de concentração prisionais, se a
cada dia morre um aprisionado nos cárceres do Estado de São Paulo,
agente eficaz de construção civil prisional e de enclausuramento vertigi-
noso da sua população pobre e miserável?

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Se os direitos humanos constituem a “filosofia dos Estados”, isto
é, Estados filosóficos (États philosophiques), “Estados-filosofias” (État-
philosophies) modernos e contemporâneos, como podemos conceber e
justificar que estudos acerca da expansão de direitos fundamentais aos
aprisionados transformem-se na estratégia de ampliação da vigilância
eletrônica?
Como dimensionar as possibilidades de dissolução quer dos “imperia-
lismos culturais” com seu poder de universalizar particularismos, com suas
“noções ou (...) teses com as quais se argumenta, mas sobre as quais não se
argumenta” (Bourdieu & Wacquant), quer do “senso comum
universal” que legitima o gigantismo do Estado penal, por exemplo?
E o que pensar de um coletivo de socialidades em que persecução,
tortura e assassínio públicos são aceitos e até esperados como necessários
pelo senso comum prisional de nossa cultura autoritária?
Guatarri (apud VEDECOQ & PRINCE, 2005, p. 20-30) afirma a
presença de novos patamares de subjetivação e socialidades que se insti-
tuem na cooperação de singularidades, na multiplicidade de desejos e
expressões possíveis em contextos de comunicação transversal. Numa
associação interativa e potencializadora de movimentos coletivos e
agenciamentos subjetivos para o infinito-liberdade.
Pensar a superação do castigo como prática coletiva é um destes
agenciamentos possíveis e oportunos para a reflexão das Ciências da
Cultura acerca do absurdo da coerção e da violência públicas.
Segundo Donegani (2006, p. 9), as Ciências da Cultura, na análise
do Estado, em particular, e na abordagem do político, permitem a cons-
tituição de propostas de reflexões mais gerais acerca dos fundamentos
das relações de poder a partir das diferentes formas de dominação, com
seus processos de legitimação, constrangimentos e imposições assegura-
doras das diversas formas de governo.
Trata-se, pois, de possibilidades analíticas acerca dos sistemas de
pensamento e de suas formas simbólicas de obediência que dão sentido
às instituições, regras e estruturas de dominação que acentuam desigual-
dades, sujeições e socialidades autoritárias.
A Antropologia do Estado assume, assim, a incumbência de esquar-
tejar dissimetrias, a “transcendência do Leviatã”, a sociedade “como ar-

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tefato simétrico da natureza”, estudando dispositivos sujeitadores, práti-
cas individualizantes e seus efeitos de massa com suas táticas, estratégias,
intensidades, embates, articulações, instrumentos, resistências, comba-
tes e lutas para que se possa diagnosticar o grande jogo do Estado.
Ao saber lidar com os gêneros particulares de inserção no mundo,
suas propriedades, práticas e diversidades de cada totalidade reflexiva, as
Ciências da Cultura questionam e iniciam a ruína das concepções mo-
dernas que se fundamentam a partir de categorias, discursos e diagnós-
ticos pautados pelas distinções natureza-cultura, indivíduo-sociedade e
primitivo-civilizado.
Devemos “inventar”, “nietzcheanamente”, novas e outras formas
para lidarmos com as “insurreições da diferença” (Balandier, 2005) com
lutas e posições que se vinculam ao imediato dos embates históricos e de
seus fenômenos que contestam efeitos, positividades ou alguma eficácia
resultante dos múltiplos reformismos. Trata-se, portanto, da “desestabi-
lização dos mecanismos de poder, de uma desestabilização, aparente-
mente, sem fim” (Foucault, 1994, III, p. 547).

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O Ministério Público do Trabalho na
defesa dos direitos fundamentais
trabalhistas

José Ribeiro de Campos

Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –


PUCSP. Membro da Asociación Ibero-Americana de Derecho del Trabajo y de la
Seguridad Social. Professor de Direito Material e Processual do Trabalho na
Universidade Municipal de São Caetano do Sul – USCS, na Escola Paulista de Direito
– EPD e no Curso de Pós-Graduação (stricto sensu) na Universidade Metropolitana de
Santos – UNIMES. Professor Pesquisador do Observatório de Violação dos Direitos
Humanos na Região do Grande ABC na Universidade Municipal de São Caetano do
Sul. Advogado.

1 Introdução

Os direitos fundamentais trabalhistas estão previstos na Constitui-


ção Federal, notadamente nos incisos do art. 7º, além disso, a Carta
Magna ressalta o princípio da dignidade da pessoa humana e o valor
social do trabalho (art. 1º, III e IV).
Para Mauricio Godinho Delgado, “a valorização do trabalho é um
dos princípios cardeais da ordem constitucional brasileira democrática.
Reconhece a Constituição a essencialidade da conduta laborativa como
um dos instrumentos relevantes de afirmação do ser humano, quer no
plano da própria individualidade, quer no plano de sua inserção fami-
liar e social”1.

1 Direitos fundamentais na relação de trabalho, in Direitos humanos: essência do


direito do trabalho, p. 70.

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Lembra ainda, tal doutrinador, que “a dignidade da pessoa humana
passa a ser, portanto, pela Constituição, fundamento da vida no país,
princípio jurídico inspirador e normativo, e ainda, fim, objetivo de toda
a ordem econômica”2.
Os princípios constitucionais protetivos da dignidade do traba-
lhador têm servido de fundamento para as decisões dos Tribunais
Trabalhistas3.
No âmbito das relações de trabalho, mostra-se importante a efetiva-
ção dos direitos fundamentais; neste contexto, o papel desempenhado
pelo Ministério Público do Trabalho merece ser destacado.

2 Do Ministério Público do Trabalho

Foi com o advento da Constituição Federal de 1988 que o Ministé-


rio Público se transformou em uma instituição autônoma e indepen-

2 Idem, p. 77.
3 “revista íntima – colisão de princípios fundamentais – pre­
ponderância dos valores fundamentais inerentes à dignida­
de da pessoa humana – indenização por danos morais – viabi­
lidade. A atividade econômica nas sociedades capitalistas, regidas por princípios do
Estado de Direito Democrático e Social, não se nega ao empresário o soberano poder de
organização, direção e controle de sua atividade. Tais poderes encontram fundamento na
garantia constitucional da liberdade de iniciativa, da livre concorrência (CF/88, arts. 1º, IV,
3º, II, 5º, XXII e 173), como valores essenciais não só ao desenvolvimento econômico,
mas, sobretudo, para a criação e manutenção de postos de trabalho e criar ambiente de
inclusão social. São, ainda, instrumentos que visam a obter melhor qualidade e maior
produtividade de bens e serviços, a disciplina e harmonia no ambiente de trabalho e zelo
pelo patrimônio da empresa. O exercício destes poderes pelo empresário não pode, porém,
acarretar a privação ou a diminuição de bens e valores fundamentais à dignidade da pessoa
humana, ou de valores fundamentais inerentes à personalidade do cidadão trabalhador,
reconhecidos como relevantes pela sociedade na qual está integrado – que são igualmente
tutelados pela ordem constitucional (CF/88, arts. 1º, III, IV, 3º, I, 5º, X, e 7º, XXX). Na
dinâmica da atividade econômica, sói acontecer que o empregador, ainda que de boa-fé,
acabe tendo conduta que colide com os direitos fundamentais do cidadão. Na hipótese, a
conduta patronal, em consequência das revistas íntimas a que foi submetida a reclamante,
inclusive por pessoa de sexo oposto, em que funcionárias eram tocadas ou apalpadas em
seus corpos, ficou patente a agressão à sua intimidade, fazendo jus a uma indenização repa-
radora e que venha inibir, no futuro, a conduta ilícita da empregadora. A cidadã trabalha-
dora tem direito de receber tratamento digno dentro e fora do ambiente de trabalho. Re-
curso ordinário da reclamada a que se nega provimento, no particular” (Processo n.
00181-2005-087-15-00-8, TRT/Campinas, 15ª Região, rel. Des. José Antonio Pancotti).

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dente dos demais poderes, com funções institucionais de extrema im-
portância, conforme se depreende do art. 127 da CF:

O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdi-


cional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Denota-se, assim, que o Ministério Público passou a ser o defen-


sor da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e
individuais indisponíveis e, para garantir a atuação ministerial, desta-
cam-se, ainda, as garantias da autonomia administrativa e funcional,
restrições ao Poder Executivo de nomear do chefe do Ministério Pú-
blico da União, bem como ao Executivo Estadual de nomear os Pro-
curadores-Gerais, garantias para os seus membros de vitaliciedade,
inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios (§§ 2º ao 6º do art.
127 e art. 128, § 5º, I, a a c, da CF).
Segundo o art. 128 da CF, o Ministério Público abrange o Ministé-
rio Público da União, que compreende o Ministério Público Federal, o
Ministério Público do Trabalho, o Ministério Público Militar, o Minis-
tério Público do Distrito Federal e Territórios e abrange, ainda, os Mi-
nistérios Públicos dos Estados.
O Ministério Público do Trabalho é o órgão especializado para
atuar junto à Justiça do Trabalho, como órgão do Ministério Público
a ele são aplicáveis todas as normas constitucionais reguladoras da
instituição.
Assim, diante das funções constitucionais do Ministério Público do
Trabalho, cabe a este órgão especializado defender a ordem jurídica, o
regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis
(art. 127 da CF), além de promover o inquérito civil e a ação civil pú-
blica na defesa dos direitos trabalhistas (art. 129, III, da CF).
Além das normas constitucionais, a Lei Complementar n. 75/93 trata
da organização, atribuições e o estatuto do Ministério Público da União,
cuidando do Ministério Público do Trabalho do art. 83 até o art. 115.
O Ministério Público do Trabalho atua como órgão interveniente
(custos legis) e órgão agente.

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Como órgão interveniente ou como fiscal da lei, atua nas ações
trabalhistas, zelando pelo cumprimento do ordenamento jurídico, por
meio de manifestações, requerimentos, pareceres e recursos nos pro-
cessos perante o Judiciário, conforme os incisos II, VI, VII, XII e XIII
do art. 83 da Lei Complementar n. 75/93.
Atua como órgão agente nas hipóteses elencadas nos incisos I, III,
IV, V, VIII e X do art. 83 da Lei Complementar n. 75/93, ou seja, são
situações em que o Ministério Público atua como parte, no sentido de
fazer valer os direitos sociais.
Como agente, o Ministério Público do Trabalho atua tanto ju-
dicial como extrajudicialmente na defesa dos direitos trabalhistas
fundamentais.
Para os fins do presente artigo, destaca-se a atuação judicial por in-
termédio das ações civis públicas e as ações anulatórias de cláusula de
convenção coletiva ou contrato de trabalho, conforme disposto nos in-
cisos III e IV do art. 83 da Lei Complementar n. 75/93:

III – promover a ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho para


defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais
constitucionalmente garantidos;
IV – propor as ações cabíveis para declaração de cláusula de contra-
to, acordo coletivo ou convenção coletiva que viole as liberdades
individuais ou coletivas ou os direitos individuais indisponíveis dos
trabalhadores.

Na atuação extrajudicial o Ministério Público do Trabalho atua por


meio do inquérito civil e o termo de ajustamento de conduta, na forma
do art. 84, II, da Lei Complementar n. 75/93:

II – instaurar inquérito civil e outros procedimentos administrativos, sem-


pre que cabíveis, para assegurar a observância dos direitos sociais dos tra-
balhadores.

O Ministério Público do Trabalho tem usado dos instrumentos


judiciais e extrajudiciais para defender os direitos fundamentais
trabalhistas.

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3 Da ação civil pública

As normas de direito processual sempre caracterizaram-se por tute-


larem apenas os direitos individuais, sendo certo que os direitos metain-
dividuais não encontravam neste modelo de direito processual instru-
mentos de solução de conflitos coletivos, necessitando de outras formas
processuais para solucionar tais conflitos.
Neste contexto surge, com destaque, a ação civil pública (Lei n.
7.347/85) e o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90). A
Lei da Ação Civil Pública é o principal instrumento apto a tutelar os
direitos metaindividuais.
Conforme o art. 1º da Lei n. 7.347/85, ação civil pública é a ação de
responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados ao meio am-
biente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histó-
rico, turístico e paisagístico, por infração da ordem econômica e da eco-
nomia popular e, destaca-se, qualquer outro interesse difuso ou coletivo.
Segundo Carlos Henrique Bezerra Leite, “a ação civil pública é o
meio constitucionalmente assegurado ao Ministério Público, ao Estado
ou a outros entes coletivos autorizados por lei, para promover a defesa
judicial dos interesses ou direitos metaindividuais”4.
Raimundo Simão de Melo destaca que a ação civil pública “pode ter
por objeto um comando condenatório, cautelar, declaratório, constitu-
tivo (positivo ou negativo), mandamental, de liquidação e de execução
ou qualquer outra espécie, desde que necessário para a tutela dos direi-
tos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos”5.
O Ministério Público do Trabalho é um dos legitimados para a pro-
positura da ação civil pública, conforme se infere pela Constituição Fe-
deral e pela Lei Complementar n. 75/93.
Questão que suscitou debate é se o Ministério Público do Trabalho
tem legitimidade para propor a ação na defesa de quaisquer direitos ou
interesses metaindividuais, ou seja, se a legitimidade abrange os direitos
difusos, coletivos e individuais homogêneos dos trabalhadores, na

4 Curso de direito processual do trabalho, p. 1075.


5 Ação civil pública na Justiça do Trabalho, p. 101.

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medida em que a norma do inciso III da Lei Complementar n. 75/93
faz menção apenas a defesa de “direitos coletivos”6.
Os doutrinadores defensores da possibilidade de o Ministério Público
do Trabalho defender quaisquer direitos metaindividuais lembram que o
inciso III do art. 83 da Lei Complementar n. 75/93 não deve ser interpre-
tado isoladamente, mas em consonância com o art. 84, que determina o
exercício de outras funções institucionais, destacando-se as mesmas atri-
buições do Ministério Público da União e dentre elas se encontra a prote-
ção dos interesse indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos.
Além disso, a jurisprudência tem entendido que o art. 129, III, da
CF faz alusão a “outros interesses difusos e coletivos” e deve ser interpre-
tado de forma extensiva, eis que o constituinte mencionou os direitos
coletivos lato sensu englobando os individuais homogêneos7.
Importante mencionar a atuação do Ministério Público do Traba-
lho no combate ao trabalho em condições degradantes, em situação
análoga ao trabalho escravo, situações que violam o princípio da digni-
dade humana do trabalhador, utilizando a ação civil pública.
Quando se depara com tais condições, o Ministério Público do Tra-
balho tem pedido nas ações propostas, dentre outros, multa condenató-
ria ao infrator e que ele deixe de exigir trabalhos forçados sob pena
culminação de multa diária em caso de descumprimento da decisão.

6 Referida divergência ocorre em face da distinção legal, prevista no art. 81, I, II e III,
do CDC, entre os interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
7 Cabimento da ação civil pública no processo do traba­
lho. Defesa de interesses individuais homogêneos. A ação civil
pública na Justiça do Trabalho decorre da tutela de direitos e interesses individuais ho-
mogêneos, provenientes de causa comum, que atinge uniformemente o universo de tra-
balhadores. O órgão do Judiciário, consciente da relevância social do tema relacionado à
utilização de mão de obra de trabalhadores rurais, de forma fraudulenta, via cooperativas
de trabalho, deve recepcionar a tutela pretendida pelo Douto Ministério Público, cuja
legitimidade para ajuizamento da Ação Civil Pública está prevista tanto na Constituição
Federal, art. 127 c/c art. 129, inc. III, quanto na LC 75/93, que conferiu legitimidade ao
Parquet para a defesa de interesses difusos e coletivos na Justiça do Trabalho. Constatan-
do-se o bem tutelado, direitos trabalhistas negados aos trabalhadores rurais que atuam na
coleta de laranja, é de verificar que encontra-se a matéria inserida naqueles direitos que
visam a defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, o que
torna legitimado o Ministério Público” (TST-RR 724.248/2001.9, Rel. Min. Aloysio
Corrêa da Veiga, publicado no DJU de 14-2-2003).

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O Ministério Público do Trabalho tem proposto, também, ação ci-
vil pública para tutelar o meio ambiente do trabalho.
Sobre o tema, Raimundo Simão de Melo destaca que por meio da
ação civil pública busca-se “o cumprimento de uma obrigação de fazer,
não fazer ou suportar alguma coisa em relação à observância das normas
de medicina e higiene do trabalho, a cominação de multa, pedido de
tutela cautelar (interdição de obras, locais de trabalho ou até toda a
empresa, suspensão de atividades nocivas à saúde do trabalhador) e,
conforme a situação, reparações – materiais e morais – pelos danos cau-
sados ao meio ambiente do trabalho e aos trabalhadores”8.
Destaca-se, ainda, a atuação do Ministério Público do Trabalho no
combate às denominadas terceirizações ilícitas.
Rodrigo Lacerda Carelli informa que “a ação civil pública vem sen-
do a principal arma, com sucesso, devido à resposta satisfatória atual do
Poder Judiciário Trabalhista, no combate às terceirizações ilícitas em
todas as suas formas. Os pedidos realizados nestas ações têm, geralmen-
te, natureza inibitória e difusa, alcançando todos os atuais e futuros
trabalhadores que se encontram na situação relatada nos processos. Não
visam impedir o livre exercício da atividade econômica, mas sim preten-
dem cortar pela raiz as atitudes desrespeitosas ao ordenamento jurídico”9.
Das situações acima destacadas, como exemplos, infere-se a impor-
tância da utilização deste instrumento processual pelo Ministério Públi-
co do Trabalho.

4 Da ação anulatória de cláusula de convenção


coletiva

A possibilidade de o Ministério Público do Trabalho propor ações


anulatórias de convênios coletivos está prevista no inciso IV do art. 83
da Lei Complementar n. 75/93.

8 Ação coletiva de tutela do meio ambiente do trabalho, in Ação coletiva na visão de


juízes e procuradores do trabalho, p. 185.
9 Ações coletivas e o combate às terceirizações ilícitas, in Ação coletiva na visão de juízes
e procuradores do trabalho, p. 217.

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Os interesses dos trabalhadores podem ser defendidos em juízo
pelo Ministério Público do Trabalho, ou seja, além do próprio traba-
lhador e do sindicato representativo de sua categoria profissional (art.
8º, III, da CF) o Ministério Público do Trabalho pode ingressar com
ação para obter a nulidade de cláusula prevista em acordo ou conven-
ção coletiva de trabalho.
A ação anulatória de cláusula de acordo ou convenção coletiva de
trabalho é uma ação coletiva trabalhista, pois atinge a categoria profis-
sional ou econômica, já que visa atacar uma norma coletiva.
Segundo Raimundo Simão de Melo, “o objeto da ação coletiva de
nulidade de contrato, acordo coletivo ou convenção coletiva de trabalho
é a busca de um comando judicial no sentido de afastar do mundo jurí-
dico a cláusula contratual ou convencional violadora das liberdades in-
dividuais ou coletivas ou dos direitos indisponíveis dos trabalhadores”10.
É competente para apreciar e julgar estas ações coletivas os Tribu-
nais Regionais do Trabalho, quando os efeitos da cláusula incidirem em
área circunscrita à jurisdição do Tribunal Regional do Trabalho (TRT)
respectivo, sendo competência do Tribunal Superior do Trabalho (TST)
quando os efeitos da cláusula que se pretende anular extrapole a jurisdi-
ção do TRT.
O TST tem decidido no sentido de declarar nulas as cláusulas nor-
mativas que afrontam os direitos indisponíveis dos trabalhadores. Além
de declarar a nulidade de tais cláusulas, o TST tem determinado que os
infratores se abstenham de renovar as cláusulas consideradas ilegais nos
acordos e convenções coletivas futuras.
Nestas ações têm-se discutido os limites da negociação coletiva,
onde se observa que, em diversas situações, são impostos limites à fun-
ção negociadora dos sindicatos11.

10 Dissídio coletivo de trabalho, p. 172.


11 Recurso Ordinário em Ação Anulatória. A Carta Política do país
reconhece os instrumentos jurídicos clássicos da negociação coletiva, convenções e acor-
dos coletivos de trabalho (art. 7º, XXIV, da CF/88). Entretanto, existem limites jurídicos
objetivos à criatividade normativa da negociação coletiva trabalhista. As possibilidades e
limites jurídicos para a negociação coletiva são orientados pelo princípio da adequação
setorial negociada. Ou seja, os critérios da harmonização entre normas jurídicas oriundas

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Para Ives Gandra Martins Filho, “cláusulas que firam preceitos le-
gais que albergam direitos indisponíveis e não passíveis de flexibilização
pela via da negociação coletiva deverão ser expurgadas da avença, sob
pena de lesão à ordem jurídica. Se o acordo é feito na fase judicial, o
Ministério Público, como fiscal da lei, ao emitir seu parecer, pedirá a
não homologação das cláusulas atentatórias à ordem pública. Se, no
entanto, o acordo é extrajudicial, o meio processual para a defesa da
ordem jurídica lesada é a ação anulatória prevista no art. 83, IV, da Lei
Complementar n. 75/93 para ser exercida pelo Ministério Público do
Trabalho na defesa das liberdades individuais ou coletivas ou dos direi-
tos individuais indisponíveis dos trabalhadores”12.
Estas ações propostas pelo Ministério Público do Trabalho têm
demonstrado os limites da negociação coletiva e da atuação dos
Sindicatos.

5 Do inquérito civil e do termo de ajustamento de


conduta

O inquérito civil foi criado pela Lei da Ação Civil Pública (Lei n.
7.347/85), sendo que o Ministério Público tem a legitimidade exclusiva
para a sua instauração (art. 129, III, da CF). Dentre as atribuições do
Ministério Público do Trabalho previstas na Lei Complementar n.
75/93 consta a possibilidade de instauração do inquérito civil, que se
tornou um dos mais importantes instrumentos para a defesa e cumpri-
mento da legislação trabalhista.

da negociação coletiva (através da consumação do princípio de sua criatividade jurídica)


e as normas jurídicas provenientes da legislação heterônoma estatal. A adequação setorial
negociada não prevalece se concretizada mediante ato estrito de renúncia (e não de tran-
sação). Também não prevalece a adequação setorial negociada se concernente a direitos
revestidos de indisponibilidade absoluta, os quais não podem ser transacionados nem
mesmo por negociação sindical coletiva. Incorporando a CCT impugnada vários precei-
tos supressivos, atenuadores ou modificativos de regras e proteções trabalhistas oriundas
da ordem jurídica imperativa, deve ter seu conteúdo invalidado judicialmente. Recurso
ordinário parcialmente provido” (ROAA 28002/2002-909-09-00, publicado no DJ de
24-10-2008, rel. Min. Mauricio Godinho Delgado).
12 Processo coletivo do trabalho, p. 267.

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É definido por Raimundo Simão de Melo como sendo “um
procedimento administrativo e inquisitorial, informal, a cargo do
Ministério Público do Trabalho, destinado a investigar sobre a ile-
galidade do ato denunciado, a colher elementos de convicção para
o ajuizamento da ação civil pública ou de qualquer outra medida
judicial e, convencido o órgão condutor, da irregularidade denun-
ciada, a tomar do inquirido termo de ajustamento de conduta às
disposições legais”. 13
Chegando ao conhecimento do Ministério Público do Trabalho de
ilegalidades cometidas em face dos trabalhadores, o inquérito é instau-
rado para a investigação necessária, apurando os fatos denunciados e
tomadas as medidas, que pode ser o ajuizamento da ação competente
ou, o que tem ocorrido em diversas situações, a correção da ilegalidade
praticada por meio do termo de ajustamento de conduta.
Segundo doutrina Raimundo Simão de Melo, a “finalidade do ter-
mo de ajustamento de conduta é, pois, buscar o cumprimento da Lei,
de forma espontânea, simples, barata e rápida, sem custo para o Estado,
além de contribuir para o desafogo do moroso Judiciário”14.
Para fazer valer o cumprimento do estabelecido no termo de ajusta-
mento de conduta, a lei atribuiu a este documento a qualidade de título
executivo extrajudicial, conforme consta no art. 876 da CLT.
O inquérito civil, quando deságua no termo de ajustamento de
conduta, constitui-se em um importante instrumento de solução extra-
judicial de conflitos trabalhistas.

6 Considerações finais

A Constituição Federal reservou para o Ministério Público um pa-


pel de destaque para defender os direitos e os interesses da sociedade e,
em específico, ao Ministério Público do Trabalho a função de defender
os direitos fundamentais dos trabalhadores.

13 Ação civil pública na Justiça do Trabalho, p. 59.


14 Idem, p. 78.

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Os instrumentos judiciais e extrajudiciais para esta atuação, além
dos previstos na Constituição Federal, estão elencados na Lei Comple-
mentar n. 75/93.
No âmbito da Justiça do Trabalho, o Ministério Público tem utili-
zado os instrumentos processuais coletivos para os quais está legitima-
do, no sentido de fazer valer o cumprimento das normas que tutelam os
direitos trabalhistas.

7 Referências bibliográficas

CARELLI, Rodrigo Lacerda. Ações coletivas e o combate às terceiriza-


ções ilícitas. In: CAIXETA, Sebastião Vieira; CORDEIRO, Juliana
Vignoli; FAVA, Marcos Neves; RIBEIRO JUNIOR, José Hortên-
cio. Ação coletiva na visão de juízes e procuradores do trabalho. São
Paulo: LTr, 2006.
DELGADO, Mauricio Godinho. Direitos fundamentais na relação de
trabalho. In: FELIPE, Kenarik Boujikian; SILVA, Alessandro da;
SEMER, Marcelo; SOUTO MAIOR, Jorge Luiz (orgs.). Direi-
tos humanos: essência do direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2007.
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito processual do trabalho.
São Paulo: LTr, 2009.
MARTINS FILHO, Ives Gandra. Processo coletivo do trabalho. São Pau-
lo: LTr, 2003.
MELO, Raimundo Simão de. Ação civil pública na Justiça do Trabalho.
São Paulo: LTr, 2002.
________. Dissídio coletivo de trabalho. São Paulo: LTr, 2002.
________. Ação coletiva de tutela do meio ambiente do trabalho. In:
CAIXETA, Sebastião Vieira; CORDEIRO, Juliana Vignoli; FAVA,
Marcos Neves; RIBEIRO JUNIOR, José Hortêncio. Ação coletiva
na visão de juízes e procuradores do trabalho. São Paulo: LTr, 2006.

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Direitos humanos e a dignidade
da pessoa com deficiência

Juliana do Val Ribeiro

Especialista em Direito Público e Defensora Pública do Estado de São Paulo.

Lauro Luiz Gomes Ribeiro

Doutor e Mestre em Direito pela PUCSP. Especialista pela Escola Superior do


Ministério Público. Formado em Direito pela USP. Membro do Ministério Público do
Estado de São Paulo.

1 Introdução

O propósito do texto é trazer à reflexão a questão do direito à dignidade


da pessoa humana com deficiência, os direitos humanos e os desdobramen-
tos daí decorrentes para a fruição dos demais direitos fundamentais, o que
no mais das vezes tem se transformado em um trabalho hercúleo.
Adotamos a conceituação legal de pessoa com deficiência prevista
no art. 4º do Decreto n. 3.298/99 (que regulamenta a Lei federal n.
7.853/89), com a nova redação atribuída pelo Decreto n. 5.296/2005
(que regulamenta as Leis federais n. 10.048 e n. 10.098, de 2000).

2 A dignidade da pessoa humana e os direitos humanos

Pode-se apontar que a noção de direitos inerentes à pessoa humana


tem fronteiras em momentos históricos diferentes, quer se opte pela
matiz da formulação jurídica, cujo marco principal da consagração das

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vitórias do cidadão sobre o poder é a Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948 da ONU, dada sua vocação eminentemente univer-
sal, nada obstante os demais documentos internacionais já conhecidos
(e citamos como exemplo o Bill of Rights da Revolução Inglesa, de 1689,
a Magna Carta de 1215, a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789), quer se analise as raízes do entendimento da prote-
ção internacional dos direitos humanos, hipótese em que retroagimos a
vários e vários séculos, em companhia de movimentos sociais, políticos,
correntes filosóficas distintos1.
Isto nos permite concluir que as ideias sobre os direitos humanos são
tão antigas quanto a própria história da civilização e estão ligadas à dig-
nidade da pessoa humana e à luta contra todas as formas de dominação,
exclusão, opressão e discriminação e, mais recentemente, como resposta
às dramáticas consequências da Segunda Guerra Mundial (1939-1945)
ou, como previsto em várias Constituições: em resposta aos regimes que
“tentaram sujeitar e degradar a pessoa humana” (preâmbulo da Consti-
tuição francesa de 1946); proclamando que “a dignidade da pessoa hu-
mana é sagrada” (art. 1º da Constituição alemã de 1949); afirmando que
“o desconhecimento e o desprezo dos direitos do homem” tinham levado
a “actos de barbárie que revoltaram a consciência da Humanidade”, ou
mesmo no preâmbulo da Declaração Universal de que “o reconheci-
mento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e
dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberda-
de, da justiça e da paz no mundo”2, é dizer, com a concepção de bem
comum que pressupõe a emancipação de todo ser humano e em todas
as suas facetas, independentemente da cultura ou do ambiente físico em
que se encontre, o que se convencionou denominar de a universalidade
dos direitos humanos, é dizer, “inerente a todo ser humano, em meio à
diversidade cultural”3.

1 Neste sentido, cf. TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Tratado de direito inter-
nacional dos direitos humanos, p. 17.
2 Jorge Miranda, A dignidade da pessoa humana e a unidade valorativa do sistema de
direitos fundamentais, in Tratado luso-brasileiro da dignidade humana, p. 116.
3 Idem, ibidem.

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Como “o homem é a medida de todas as coisas”, na feliz defini-
ção de Protágoras, deve ocupar a posição mais proeminente no
mundo dos fatos e para o mundo do direito deve ser o valor supre-
mo da ordem jurídica, preexistindo até mesmo a uma criação cons-
titucional; é fundamento e fim da sociedade e do Estado. É por tal
razão que Miguel Reale 4 adverte que o homem é o valor fundamen-
tal, algo que vale por si mesmo, identificando seu ser com a sua
valia, e Pico Della Mirandola afirma que “nada via de mais admirá-
vel do que o homem” 5.
Esta proeminência pode ser explicada no campo da religião, por
meio da afirmação da fé monoteísta, tendo a criatura humana ocupa-
do posição de destaque na ordem da criação, com poderes sobre “os
peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e
todos os répteis que rastejam sobre a terra (Gênesis 1,26)”; no campo
da filosofia, cuja principal indagação é, exatamente esta: “quem é o
homem?” e cuja formulação já aponta para singularidade deste ser,
“capaz de tomar a si mesmo como objeto de reflexão” e, por fim, a
justificativa científica que se apega à descoberta do processo de evolu-
ção dos seres vivos, tendo o ser humano como “o ápice de toda a ca-
deia evolutiva das espécies vivas. A própria dinâmica da evolução vital
se organiza em função do homem”6.
Em relação às pessoas com deficiência, receberam elas tratamento
que foi da exclusão social total à atual proposta de inclusão, passando
por períodos de institucionalização (quase sempre por toda a vida) e
de integração (a deficiência é tida como um problema da própria pes-
soa que a possua e por isso cabe unicamente a ela capacitar-se para
viver em sociedade).
O pós-Segunda Guerra aqui também foi um marco, especialmen-
te pela legião de mutilados que ela gerou. Com a era da produção in-
dustrial e do consumo, as pessoas com deficiência conviveram com as

4 Filosofia do direito, v.1, p. 210.


5 Discurso sobre a dignidade do homem, p. 49.
6 Comparato, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 1-4.

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concepções de pessoas “úteis” e “inúteis” e com as ideias de habilita-
ção/reabilitação, de paciente/doente, de incapaz e dependente de cuida-
dos de terceiros (como é comum a uma pessoa “doente”).
A partir dos anos 1980 há um avanço qualitativo no trato interna-
cional deste tema, especialmente pelas Nações Unidas e suas agências,
a Organização Internacional do Trabalho e a Organização Mundial de
Saúde, despertando as pessoas com deficiência para uma reivindicação
mais vigorosa de seu papel de cidadão, em igualdade de condições
com seus pares.
Dentre os principais documentos internacionais produzidos a par-
tir de encontros, eventos de pessoas com deficiência e de organismos
nacionais e internacionais de defesa desse segmento e que têm orientado
as políticas públicas brasileiras nesta área, podem ser citados a Declara-
ção dos Direitos do Impedido – 1975; a Carta dos anos 80; o Programa
de Ação das Nações Unidas de 1982; as Normas Internacionais do Tra-
balho sobre a Readaptação Profissional – 1984; a Declaração de Carta-
gena das Índias sobre as Políticas Integrais para as pessoas portadoras de
deficiência, na região Ibero-Americana – 1992; a Declaração de Maná-
gua – 1993; a Primeira Conferência Internacional de Ministros respon-
sáveis pela atenção de pessoas portadoras de deficiência – 1992; Normas
Uniformes sobre a Igualdade de Oportunidades para as pessoas porta-
doras de deficiência (ONU – 1993); a Declaração de Salamanca e Mar-
co das Ações sobre Necessidades Educativas Especiais7. Mais recente-
mente, citamos a Convenção Interamericana para a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de De-
ficiência (Convenção da Guatemala – 1999) e a Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência (2006).
A última Convenção foi adotada em reunião da Assembleia Geral
das Nações Unidas de 13 de dezembro de 2006 e é a primeira Conven-
ção daquele Organismo Internacional do século XXI, dentro do sistema

7 Sobre o tema, consultar Canziani, Maria de Lourdes. Direitos humanos e os


novos paradigmas das pessoas com deficiência, in Defesa dos direitos das pessoas portadoras
de deficiência, p. 252.

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global de proteção aos direitos humanos, cuja pauta é a preservação da
dignidade da pessoa humana e a paz mundial8.
Entrou em vigor em 3 de maio de 2008 (trinta dias após atingir o
número mínimo de ratificações necessárias9) e foi assinada pelo Brasil
em 30 de março de 2007. Foi aprovada pela Câmara e pelo Senado,
em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros,
equivalendo a emenda constitucional, na forma preconizada pelo § 3º
do art. 5º da CF (acrescentado pela Emenda Constitucional n.
45/2004).
No Brasil, o marco é a Constituição Federal de 1988, seguindo-se a
Lei federal n. 7.853/89, que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras
de deficiência, sua integração social, define crimes e dá outras providên-
cias, e também pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, nada obstan-
te haja rara previsão constitucional na Carta de 1967, introduzida pela
Emenda Constitucional n. 12/78.
Dinaura Godinho Pimentel Gomes aborda a dignidade, sob as lu-
zes kantianas, nos seguintes termos: “É nesse contexto que, em seu ver-
bete sobre dignidade, Abbagnano faz direta referência ao aludido filóso-
fo [Kant], para com ele compartilhar o conceito do princípio da
dignidade humana, destacando que ‘a exigência enunciada por Kant
como segunda fórmula do imperativo categórico: ‘Age de forma que
trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer
outro, sempre também como um fim e nunca unicamente como meio’.
Esse imperativo estabelece na verdade de que todo homem, aliás, todo
ser racional, como fim em si mesmo, possui um valor não relativo,
como, p. ex., um preço, entretanto intrínseco, isto é, a dignidade. ‘O

8 Adverte Laís Vanessa Carvalho de Figueiredo Lopes que “a principal contribuição


deste tratado internacional é a mudança de paradigma da visão da deficiência no mun-
do, que passa do modelo médico e assistencialista, no qual a deficiência é tratada como
um problema de saúde, para o modelo social de direitos humanos, no qual a deficiên-
cia é resultante da equação de interação da limitação funcional com o meio” (Conven-
ção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, cit., p. 62).
9 Já ratificaram a Convenção: África do Sul, Bangladesh, Croácia, Egito, Cuba, Espa-
nha, Filipinas, Índia, Jamaica, México, Peru, Tunísia, Hungria, Equador, Panamá, dentre
outros.

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que tem um preço pode ser substituído por alguma coisa equivalente; o
que é superior a todo preço e, portanto, não permite nenhuma equiva-
lência, tem uma dignidade’. Substancialmente, a dignidade de um ser
racional consiste no fato de que ela ‘não obedece a nenhuma lei que não
seja instituída por ele mesmo’. A moralidade, como condição dessa au-
tonomia legislativa, é, portanto, a condição da dignidade do homem;
moralidade e humanidade são as únicas coisas que não têm preço...”10.
Nas palavras de Kant: “Agora eu afirmo: o homem – e, de uma
maneira geral, todo ser racional – existe como fim em si mesmo, e não
apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Em
todas as suas ações, pelo contrário, tanto nas direcionadas a ele mesmo
como nas que o são a outros seres racionais, deve ser ele sempre consi-
derado simultaneamente como fim”11.
Elucidativas as palavras de Rizzatto Nunes, numa retrospectiva
histórica: “(...) se torna necessário identificar a dignidade da pessoa
humana como uma conquista da razão ético-jurídica fruto da reação à
história de atrocidades que, infelizmente, marca a experiência huma-
na. Não é à toa que a Constituição Federal da Alemanha Ocidental do
pós-guerra traz, também, estampada no seu artigo de abertura que ‘A
dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é
obrigação de todo o poder público. Foi, claramente, a experiência na-
zista que gerou a consciência de que devia preservar, a qualquer custo,
a dignidade da pessoa humana. Foi, claramente, a experiência nazista
que gerou a consciência de que se devia preservar, a qualquer custo, a
dignidade da pessoa humana (...). Então, a dignidade nasce com a
pessoa. É-lhe inata, inerente à sua essência”12.

10 Direito do trabalho e dignidade da pessoa humana, no contexto da globalização econô-


mica, p. 24. Canotilho (Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 221) destaca a
dignidade da pessoa humana como base da República, o indivíduo como limite e funda-
mento do domínio político da República, o que ele denomina de reconhecimento do
homo noumenon.
11 Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos, p. 58.
12 O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e jurispru-
dência, p. 50-51. Sobre o tema, consultar também MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco
Antonio Marques da (orgs.). Tratado luso-brasileiro da dignidade humana.

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Abrimos um parêntese: “direitos humanos” e “direitos fundamentais”
serão aqui utilizados com o sentido que lhes tem atribuído a doutrina
dominante, qual seja os direitos humanos, dentro das características já
enumeradas, como aquelas posições jurídicas que se reconhecem a todo
ser humano como tal, sem uma preocupação em relacioná-los com deter-
minada ordem constitucional, sendo, por isso mesmo, de validade univer-
sal, de caráter trans e supranacional, para todos os indivíduos e todos os
povos, via de regra atrelados a documentos próprios de direito internacio-
nal (e podemos citar a Declaração Universal dos Direitos do Homem já
referida) enquanto o termo “direitos fundamentais” aplica-se para aqueles
direitos humanos positivados no direito constitucional de dado Estado13.
Fechado o parêntese e caminhando mais na ideia de dignidade da
pessoa humana, chegamos, em apertada síntese, a uma gama de direitos
fundamentais, que podem ser classificados em civis, políticos e sociais14,
atrelados ao homem: a) como pessoa humana e temos as liberdades clás-
sicas: pessoal, de pensamento, de religião etc. e que obrigam o Estado a
uma atitude de não intervenção, de abstenção; b) como pessoa política
e envolve a liberdade de participação, de associação nos partidos, de
direitos eleitorais, implicando numa liberdade ativa de participação na
definição dos objetivos políticos do Estado, dentro do âmbito da demo-
cracia; e c) como homem social e temos as liberdades positivas ou con-
cretas: direitos econômicos e sociais (direito ao trabalho, à assistência, à
educação, à saúde, dentre outros), o que resulta na exigência de uma
ação ativa do Estado ao garantir ao cidadão estas condições mínimas
para uma vida digna, quer dizer, uma vida que valha a pena ser vivida.
Na base desta discussão está o princípio constitucional da igualda-
de, sobre o qual muito se tem escrito, especialmente a respeito da distin-
ção entre a igualdade formal e a igualdade material15 e por tal razão

13 Neste sentido, Sarlet, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 33.
14 Nicola Matteucci, in Dicionário de política, (org. por Norberto Bobbio, Nicola Mat-
teucci e Gianfranco Pasquino), verbete “Direitos Humanos”, p. 354.
15 É conhecida a noção de igualdade formal como aquela que significa exigência de igual-
dade na aplicação do Direito (as leis devem ser executadas sem olhar as pessoas) e a noção de
igualdade material como a dirigida ao legislador que precisa criar um direito igual para todos

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nossa abordagem será mais específica, da igualdade de oportunidades ou
igualdade no ponto de partida.
A igualdade de oportunidades, pilar do Estado de Direito Demo-
crático e Social, não é ideia nova mas, está em evidência diante da con-
flituosidade global em que está inserida a sociedade na atualidade – e
que se caracteriza como uma grande competição por bens escassos – e
significa a aplicação da regra de justiça diante de uma situação onde se
encontram várias pessoas em competição para a obtenção de um obje-
tivo único.
É explicada por Bobbio nos seguintes termos: “O princípio da
igualdade de oportunidades, quando elevado a princípio geral, tem
como objetivo colocar todos os membros daquela determinada socieda-
de na condição de participar da competição pela vida, ou pela conquis-
ta do que é vitalmente significativo, a partir de posições iguais”16.
A importância da garantia de igualdade do ponto de partida foi
ressaltada por Rousseau, no século XVIII, embora sob a temática edu-
cacional e sem referência à deficiência, na seguinte passagem de Emílio:
“Conhecemos, pois, ou podemos conhecer o primeiro ponto de onde
cada um de nós parte para chegar ao grau comum de entendimento;
mas quem conhece a outra extremidade? Cada qual avança mais ou
menos segundo seu gênio, seu gosto, suas necessidades, seus talentos,
seu zelo e as oportunidades que tem para se entregar a ele. Que eu saiba,
nenhum filósofo até agora foi suficientemente ousado para dizer: eis o
termo aonde o homem pode chegar e que não seria capaz de ultrapassar.
Ignoramos o que nossa natureza nos permite ser; nenhum de nós mediu
a distância que pode haver entre um homem e outro homem. Qual é a
alma baixa que esta ideia nunca excitou e que alguma vez não disse para

(para todos os indivíduos com as mesmas características deve-se prever, por intermédio da lei,
igual situação jurídica, é dizer, tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na
medida das desigualdades, vedado o tratamento desigual arbitrário), estando a primeira con-
templada no art. 5º e a segunda no art. 3º da CF (a este respeito, consultar, dentre outros
vários, Canotilho, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 398;
Comparato, Fábio Konder. Igualdades e desigualdades, Revista Trimestral de Direito
Público, n. 1/93).
16 Igualdade e liberdade, p. 30-31.

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si mesma em seu orgulho: quantos já passei! Quantos ainda posso atin-
gir! Por que meu igual iria mais longe do que eu?”17.
Esta ideia é relevante para eliminar o estigma de se ter a deficiência
como sinônimo de ineficiência, de doença, de incapacidade total e dei-
xar bastante claro que à sociedade e ao Estado cabem instrumentalizar
tais pessoas, compensando-lhes alguns prejuízos, mas não e nunca pre-
tender estabelecer os limites de até onde podem chegar; tal tarefa, como
proclamou Rousseau, é exclusiva da pessoa.

3 A efetivação dos direitos fundamentais pelas


pessoas com deficiência: uma luta hercúlea

Optamos por esta metáfora alusiva aos Trabalhos de Hércules,


como tivemos oportunidade de fazê-lo em outro estudo, parafraseando
conhecido estudo de Lígia Assumpção Amaral18, porque reconhecemos
a dificuldade de se obter a efetividade das normas constitucionais de
proteção às pessoas com deficiência, entendida a efetividade na concep-
ção comum da doutrina de “eficácia social” da norma, ou seja, sua obe-
diência concreta, no plano dos fatos, em contraste com a “eficácia jurídi-
ca” (qualidade de produzir, em maior ou menor grau, efeitos jurídicos) e,
também, pelo simbolismo que carrega e é exaltada pela autora: a necessi-
dade de purificação pelo sofrimento, algo comum na correlação usual
entre deficiência, sofrimento e purificação e a passagem de barbárie para a
civilização (Hércules afasta e remove os grandes obstáculos que lhe são
apresentados pelo caminho na busca do bem-estar dos povos).
Podemos afirmar que o constituinte nacional fez uma clara opção
por uma Constituição mais abrangente e menos sintética e que sinaliza
para a construção de um Estado Democrático de Direito e uma sociedade

17 ROUSSEAU, Jean Jacques. Emilio, ou da Educação. Trad. Roberto Leal Ferreira. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.
18 Conhecendo a deficiência (em companhia de Hércules), p. XVI. Uma das versões indica
que Hércules, filho da infidelidade de Zeus e como tal depositário do ódio eterno de
Hera, sob a influência desta, entra em eventuais estados de loucura e, em um destes
episódios, assassina seus próprios filhos com Mégara, sua primeira mulher, e, para redi-
mir-se deste crime, precisa realizar as doze tarefas (idem, p. XV).

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livre, justa e solidária, sem preconceitos, na qual esteja assegurada a
igualdade, tendo o homem, em sua dignidade, como o centro, o alvo de
maior preocupação e atenção governamental e do próprio corpo social.
Dentro dessa diretriz, as disposições constitucionais (p.ex.: art. 7º,
XXXI, que veda discriminação no trabalho e no salário; art. 23, que
impõe aos entes federados o dever de cuidar da saúde e assistência pú-
blica, da proteção e garantia das pessoas com deficiência; art. 24, XIV,
que atribui à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar sobre a
proteção e integração social destas pessoas; art. 37, VIII, que dispõe
sobre reserva de mercado no serviço público; art. 203, IV, que estabele-
ce como objetivo da assistência social a habilitação e reabilitação e a
promoção da integração da pessoa com deficiência à vida comunitária;
art. 208, II, que garante atendimento educacional especializado; e arts.
227 e 244, que tratam do atendimento à criança e ao jovem com defici-
ência e a garantia de acessibilidade) descortinam uma preocupação com
a inserção das pessoas com deficiência na sociedade, permitindo-se afir-
mar que nossa Constituição Federal é um documento “inclusivo”, ou
seja, prestigia a ideia de pertencimento ao conjunto social, com a cria-
ção de um espaço que possa ser equiparado a um caleidoscópio, que
precisa de todas as peças para o compor, pois sem uma delas o desenho
se torna incompleto, menos rico, na feliz metáfora construída por Maria
Teresa Mantoan19.
Entretanto, entre o mundo do ser e do dever ser temos encontrado
um enorme vácuo.
Podemos exemplificar: a) o texto constitucional é expresso: todos
têm direito à educação de qualidade, visando ao pleno desenvolvimento
da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação
para o trabalho (art. 208). Todavia, é corriqueira a dificuldade encontra-
da pelos infantes com deficiência e suas famílias para terem acesso a esta
educação de qualidade. Como se sabe, ela pressupõe uma tarefa conjun-
ta: os jovens preparam-se para ocupar seus lugares na sociedade escolar,
e a escola regular prepara-se para recebê-los com suas diferenças e eventuais

19 Programa de Capacitação de Recursos Humanos do Ensino Fundamental – Educação Es-


pecial, Caderno de Estudo – MEC, Secretaria de Educação Especial, 1998, p. 145-146.

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necessidades educacionais especiais, ou seja, é uma via de mão dupla.
Invariavelmente há muito mais empenho dos primeiros que dos segun-
dos e isto sob as mais variadas justificativas destes últimos, tais como
falta de acesso físico ao ambiente escolar (p. ex., presença de escadas,
falta de banheiros adaptados); falta de capacitação do corpo docente
para lidar com as necessidades educacionais destes alunos; falta de ma-
terial didático adequado (p. ex., ao aluno cego); inexistência de funcio-
nários capacitados para lidar com estes alunos ditos “especiais”; b) o
direito de ir e vir é dos mais antigos, está lá no inciso XV do art. 5º da
CF e ainda encontram-se barreiras físicas no transporte coletivo (aéreo,
rodoviário, ferroviário e aquático), nas calçadas mal conservadas ou to-
madas por mesas de bares, por placas de publicidade; nas entradas dos
edifícios públicos ou de acesso ao público; c) é livre o exercício de qual-
quer trabalho (art. 5º, XIII), mas o alcance desta regra é quase nenhum
sem transporte público adaptado, sem acesso à educação que qualifique
para tal mister, sem acesso ao meio ambiente de trabalho, com o pre-
conceito que alguns empresários ainda carregam e que resulta na exigên-
cia de o empregado assumir o papel de um super-homem infalível para
garantir a vaga; d) todos são iguais perante a lei (art. 5º, caput), mas que
igualdade de oportunidade, igualdade no ponto de partida é esta se no
final das contas alguns (sem deficiência) acabam sendo “mais iguais do
que os outros” (com deficiência), como retratou George Orwell em sua
obra Revolução dos Bichos? Qual o sentido desta cidadania que não re-
presenta o “direito a ter direito”, ou seja, a garantia ao ser humano do
papel de ser existente e integrante de uma comunidade e da humanida-
de, na conhecida definição de Hannah Arendt20? São respostas que pre-
cisam ser dadas pela sociedade, pelo Estado, enfim, por todos nós.
É tempo de mudanças e somos obrigados a reconhecer que apesar
de já se ter avançado muito na efetivação dos direitos das pessoas com
deficiência, resultado do aprimoramento legislativo e do trabalho her-
cúleo de vários segmentos sociais, precisamos criar a consciência de que

20 Apud LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: diálogo com o pensamen-
to de Hannah Arendt, p. 147.

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estamos no século XXI e que é muito mais agradável e bonito assistir a
um desfile de carnaval, que prima pela diversidade, pela igualdade entre
todos quando pisam na avenida, que a uma monótona parada militar,
uniforme e hierarquizada; que a diversidade é a ordem do dia e que so-
mos todos muito mais que paulistas, cariocas, baianos, brasileiros, pois
somos cidadãos do mundo e como tais devemos afastar os fantasmas do
preconceito e da discriminação negativa para reverenciar a igualdade e
não a uniformidade (“somos o mesmo, mas não os mesmos”, alguém já
disse); a tolerância sem conivência; a solidariedade sem paternalismo e a
diversidade sem desigualdade, na busca pela paz e a felicidade.
Deixamos uma mensagem àqueles que ainda resistem ou duvidam
da excelência da inclusão social de todos os “excluídos” e opõem-se a
mudanças, por misoneísmo, parafraseando famosa passagem de Platão,
na República21:

– não tenhamos à nossa frente apenas a parede da caverna;


– não permitamos que nos coloquem grilhões nos pés e acorrentem
nossos pescoços, impedindo-nos de olhar a nós mesmos e aos outros
em nossa volta;
– não permitamos que em nossa experiência vital nos sejam apenas fran-
queados os ecos e as sombras que passam em nossas costas e que consti-
tuem o nosso mundo perceptível;
– vamos abandonar as correntes e a escuridão da caverna, sem o risco da
imobilidade dolorosa de nossos corpos e o ofuscamento de nossos olhos
pela clareza solar da verdadeira realidade que nos cerca

porque, do contrário, qualquer esperança de libertação será substituída


pela acomodação da escuridão e dos grilhões e nada do que quisermos
ensinar terá crédito perante os outros habitantes da caverna.

21 Referimo-nos ao “Mito da Caverna” em que Platão, utilizando-se de linguagem


alegórica, discute o processo pelo qual pode passar o ser humano que muda da visão
habitual que tem das coisas à “visão das sombras”, unidirecional, condicionada pelos
hábitos e preconceitos que adquire ao longo da vida, até a visão do Sol, que representa
a possibilidade de alcançar o conhecimento da realidade em seu sentido mais elevado
e compreendê-la em sua totalidade (Cf. MARCONDES, Danilo. Textos básicos de éti-
ca: de Platão a Foucault, ed. Zahar).

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4 Conclusões

Do que foi exposto, podemos concluir que

– os direitos humanos são preceitos antigos e que primam pelo reconhe-


cimento da relevância do ser humano, colocando-o a salvo da dominação,
opressão e discriminação;
– neste contexto, sobreleva a importância da dignidade da pessoa huma-
na e o princípio da igualdade de oportunidade;
– todos estes conceitos e ideias aplicam-se integralmente às pessoas com
deficiência, pela simples condição de ser humano;
– a efetivação dos direitos das pessoas com deficiência, apesar do empe-
nho constitucional, ainda requer um trabalho hercúleo, mas este século
reclama o reconhecimento da igualdade sem uniformidade; da tolerância
sem conivência; da solidariedade sem paternalismo, do culto à pluralidade
dentro da singularidade que nos caracteriza.

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TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional
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Convenção da OIT n. 182 sobre as
piores formas de trabalho infantil:
um estudo comparado entre o
Brasil e a Itália

Ligia Ramia Muneratti


Doutoranda em Direito do Trabalho pela Universidade de Roma Tor Vergata. Mestre
em Ciência do Trabalho pela Universidade de Milão. Formada em Ciências Políticas e
Relações Internacionais pela Universidade de Milão e em Direito pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie. Inscrita na Ordem dos Advogados de Milão, Lisboa e São
Paulo. Atualmente também frequenta a Escola de Especialização da Associação dos
Juslaboristas Italianos em Roma.

O trabalho infantil traz consequências sérias que permane-


cem no indivíduo e na sociedade além dos anos da infância.
Os jovens trabalhadores não apenas afrontam condições de
trabalho perigosas, mas também stress físico, intelectual e
emocional. Estes jovens são destinados a uma vida adulta
marcadas pela desocupação e pelo analfabetismo.
Kofi Annan1

1 A proteção dos direitos da infância no contexto


internacional

1.1 A evolução da normativa internacional em matéria de


reconhecimento e proteção dos direitos das crianças e
dos adolescentes

A primeira Convenção da Organização Internacional do Trabalho


– OIT que abordou o tema do trabalho infantil foi publicada em 1919:

1 Texto extraído do discurso de Kofi Annan, ex-Secretário-Geral da Organização das


Nações Unidas, pronunciado durante a abertura do vértice mundial sobre a infância or-
ganizado pelas Nações Unidas em setembro de 1990 em Nova York.

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trata-se da Convenção n. 5, que estabelecia a idade mínima de 14 anos
para o trabalho na indústria2, marcando o início do interesse social e da
preocupação da comunidade internacional na intensa participação de
adolescentes e crianças no mundo do trabalho. E primeira iniciativa se
limitava ao setor industrial e ao perigoso trabalho nas minas.
Durante o período que seguiu a entrada em vigor da convenção
acima citada, principalmente entre 1919 e 1932, foram aprovadas pela
OIT ulteriores convenções que visavam delimitar a idade mínima para
o trabalho nos demais setores da economia. Nesse período foi ainda re-
conhecido o direito das crianças e dos jovens trabalhadores à educação.
Os fatos desastrosos e os crimes contra a humanidade cometidos
durante a Segunda Guerra Mundial revelaram a ineficácia e os riscos
inerentes à aplicação indiscriminada dos conceitos de “não interferência”
e laisser-faire em prática desde os primórdios do direito transnacional, ini-
ciando então uma nova era no Direito Internacional caracterizada pela
maior interferência da Organização das Nações Unidas – ONU na política
interna dos países-membros. Foram, consequentemente, estabelecidos no-
vos paradigmas atinentes aos direitos mínimos e fundamentais, garantidos
a todos os cidadãos, de todas as nacionalidades, religiões, etnias e idades.

2 Convenção n. 5 de 1919 sobre a idade mínima (indústria) ratificada pelo Brasil em


26 de abril de 1934, posteriormente denunciada, como resultado da ratificação da Con-
venção n. 138, em 28 de junho de 2001: “Art. 1. Para os efeitos da presente convenção,
consideram-se ‘empresas industriais’, principalmente: a) as minas, cantarias e indústrias
extrativas de qualquer classe; b) as indústrias nas quais se manufaturem, modifiquem,
limpem, reparem, adornem, terminem ou preparem produtos para a venda, ou nas
quais as matérias-primas sofram uma transformação, compreendidas a construção de
navios, a indústria de demolição, e a produção, transformação e transmissão de eletrici-
dade ou de qualquer classe de força motriz; c) a construção, reconstrução, conservação,
reparação, modificação ou demolição de edifícios e construções de todas as classes, as
ferrovias, rodovias, portos, molhes, canais, instalações para navegação interior, cami-
nhos, túneis, pontes, viadutos, esgotos coletores, esgotos ordinários, poços, instalações
telegráficas ou telefônicas, instalações elétricas, fábricas de gás, distribuição de água e
outros trabalhos de construção, assim como as obras de preparação e cimentação que
precedem os trabalhos antes mencionados; d) o transporte de pessoas ou mercadorias
por rodovia, ferrovia ou por via fluvial, compreendida a manipulação de mercadorias
nos molhes, embarcadouros e armazéns, com exceção do transporte manual. 2. A auto-
ridade competente determinará em cada país a linha de demarcação entre a indústria,
por um lado, e o comércio e a agricultura, de outro. Art. 2. As crianças menores de 14
anos não poderão ser empregadas, nem poderão trabalhar, em empresas industriais pú-
blicas ou privadas ou em suas dependências, com exceção daquelas em que unicamente
estejam empregados os membros de uma mesma família”.

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A ONU, neste novo panorama global, introduziu as primeiras dis-
posições normativas em âmbito internacional, voltadas para a elimina-
ção do trabalho infantil. Dentre as muitas ações normativas realizadas
pela comunidade internacional, podemos citar a promulgação da De-
claração Universal dos Direitos da Criança em 1959, posteriormente
revista e atualizada em 19893.
A Declaração acima mencionada, em um primeiro momento, não
estabeleceu uma idade mínima para o ingresso no mundo do trabalho,
enviando esta decisão à soberania nacional dos Estados-membros, visto
as grandes diferenças sociais, culturais e principalmente econômicas
presentes entre estes.
É interessante observar que, inicialmente, os princípios enunciados
na Convenção de 1959 não criavam vínculos diretos para os países-mem-
bros da Assembleia das Nações Unidas. Com a revisão da declaração e a
sua consolidação, com status de “convenção”, tais preceitos tornaram-se
obrigatórios e vinculantes, admitindo, todavia, a ratificação com reserva4.
Cumpre-nos ressaltar que, não obstante o texto de 1959 não tenha
estabelecido a idade mínima de ingresso no mercado de trabalho, foi in-
serida a proibição da utilização de mão de obra infantil antes da idade
mínima estabelecida pela lei nacional e da ocupação de crianças em qual-
quer tipo de atividade que pudesse ser direta ou indiretamente nociva à
saúde ou que prejudicasse o desenvolvimento psicofísico do menor5.

3 No dia 20 de novembro de 1959 a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou em


votação unânime a Declaração Universal dos Direitos da Criança e do Adolescente, que
foi posteriormente revista em 1989 na ocasião do trigésimo aniversário da declaração,
dando origem à Convenção de Nova York sobre os Direitos da Criança.
4 Convenção de Nova York sobre os Direitos da Criança: “Artigo 51. 1. O secretário­
‑geral das Nações Unidas receberá e enviará a todos os Estados o texto das reservas feitas
pelos Estados no momento da ratificação ou adesão. 2. A reserva incompatível com o ob-
jeto e a finalidade da presente Convenção não será permitida. 3. As reservas poderão ser
retiradas a qualquer momento mediante uma notificação nesse sentido dirigida ao Secretá-
rio-Geral das Nações Unidas, que informará a todos os Estados. A notificação surtirá efeito
na data em que for recebida pelo Secretário-Geral” (tradução livre da autora).
Mesmo com o registro de um aumento do retiro das reservas ainda são muitos os
países que mantêm a(s) reserva(s) feita(s) no momento da ratificação.
5 Declaração dos Direitos da Criança, 1959, Princípio 9º: “A criança gozará proteção
contra quaisquer formas de negligência, crueldade e exploração. Não será jamais objeto
de tráfico, sob qualquer forma. Não será permitido à criança empregar-se antes da idade

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No início da década de 1970, seguindo os princípios ditados pela nova
concepção do Direito Internacional, a OIT adotou uma nova estratégia no
combate ao trabalho infantil, promulgando, em 1973, a Convenção n. 138,
com o propósito de unificar as precedentes convenções sobre a idade míni-
ma em um único texto normativo, estabelecendo uma norma única para a
regulamentação do trabalho do jovem e no combate ao trabalho infantil.
A Diretiva n. 138 sobre a idade mínima de admissão a emprego é um
instrumento revolucionário e vanguardista, pois, além de unificar as
precedentes convenções, estabelece um elaborado e complexo sistema
de aumento gradual da idade mínima ao trabalho, dando aos países em
desenvolvimento a possibilidade de alcançar os padrões internacionais
com maior flexibilidade temporal, tornando, deste modo, mais efetivo
o adimplemento de tais normas em zonas críticas onde os crimes contra
a infância se verificam, ainda com maior frequência.
Apesar da baixa adesão no momento da sua aprovação, o número de
países que aderiram à Convenção n. 138 aumentou nos últimos anos de
modo sensível, sendo atualmente o instrumento internacional de maior
importância na regulamentação e no combate ao trabalho infantil e ao
abuso de menores6.
Nos anos de 1990, a eliminação do trabalho infantil se torna um
dos principais objetivos da OIT, e projetos de grande importância
como, por exemplo, o International Programme on the Elimination of
Child Labour – IPEC começam a ser desenvolvidos em todo o mundo,
conseguindo resultados de grande impacto.
A mais recente ação normativa internacional no combate aos abu-
sos perpetrados contra a infância é a Convenção n. 182 sobre a proibi-
ção das piores formas de trabalho infantil e ações imediatas para a sua
atuação, elaborada e provada pela Assembleia Geral da OIT em 1999.
Até o presente momento, 193 países ratificaram esta diretiva, número

mínima conveniente; de nenhuma forma será levada a ou ser-lhe-á permitido empenhar-se


em qualquer ocupação ou emprego que lhe prejudique a saúde ou a educação ou que
interfira em seu desenvolvimento físico, mental ou moral”.
6 Nos últimos dez anos a Convenção n. 138 passou de 49 ratificações até a primeira
metade dos anos 1980 aos atuais 109 membros. Disponível em: <http://www.ilo.org>.
Acesso em 14 abr. 2009.

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superior ao número de membros da ONU e da própria OIT, demons-
trando a importância deste instrumento no cenário internacional.7

1.2 Definição de “trabalho infantil”, “piores formas de trabalho


infantil” e âmbito de atuação da Convenção n. 182

Os instrumentos jurídicos internacionais que tratam de matérias


relativas à proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes estabele-
cem limites de idade para a admissão ao trabalho que variam de acordo
com a proteção que se pretende dar ao menor.
A Convenção n. 138, por exemplo, estabelece três diferentes limites
mínimos de idade de acordo com o tipo de atividade e a condição socio-
econômica do país. A tabela abaixo, extraída do relatório da OIT de
1996, ilustra em modo simplificado o quanto referido:

Idade mínima (conceito genérico) Atividades leves Atividades perigosas


[art. 2º] [art. 7º] [art. 3º]
Em circunstâncias normais: 15 anos
completos ou mais (não inferior à 18 anos (16 anos
13 anos
idade de conclusão do ensino eventualmente)
obrigatório)
Países em desenvolvimento: 14 18 anos (16 anos
12 anos
anos eventualmente)

É importante ressaltar que aos instrumentos internacionais que não


estabelecem expressamente uma idade mínima para o trabalho é aplica-
da a norma geral ditada pela Convenção Universal dos Direitos da
Criança, segundo a qual devem ser consideradas crianças todas as pesso-
as com menos de 18 anos.
A doutrina define o trabalho infantil lato sensu como a atividade
realizada por menores de 18 anos com a finalidade de contribuir de

7 Atualmente as Nações Unidas contam com 193 membros, informação verificada


no site http://www.un.org/members/list.shtml. A OIT conta atualmente com 177
membros.

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forma direta ou indireta na renda familiar. Esta definição inclui, além
do trabalho externo, qualquer forma de atividade de característica la-
boral realizada, seja em casa (como, por exemplo, con­tribuição do
menor na realização dos trabalhos domésticos ou a cultivação das ter-
ras da família) ou fora do ambiente doméstico, remunerada ou não.
A definição acima, de caráter genérico, dá origem a duas subespé-
cies de trabalho infantil, normalmente definidas pela doutrina especia-
lizada como child labour e child work 8. A primeira, child labour, é utili-
zada na designação de formas de trabalho pesadas caracterizadas pela
intensidade das funções e das atividades solicitadas ao menor, causando
problemas no seu desenvolvimento físico, educacional e psicológico.
Child work, ao contrário, define outras formas de atividades que podem
facilmente ser integradas ou absorvidas na rotina dos jovens e que não
prejudicam o desenvolvimento dos que as exercem.
A Convenção n. 182, por seu lado, atua no combate das atividades
que entram na definição de child labour, ou seja, contra situações de
abusos de crianças e jovens com menos de 18 anos e que causam, na
maior parte dos casos, danos físicos e psicológicos irreversíveis aos me-
nores, refletindo-se em toda a sociedade.
As atividades que compõem o elenco das piores formas de trabalho
infantil foram identificadas e catalogadas durante anos de discussões
sobre o tema e, após uma profunda análise dos problemas, apresentadas
em diversas realidades sociais nos quatro continentes.
O § 3º do artigo 4º, por sua vez, prevê um mecanismo de revisão
periódica, no qual cada país pode propor a introdução de uma nova
atividade9. Deste modo, o elenco apresentado no artigo 3º da Conven-
ção não deve ser considerado taxativo.
Atualmente, as piores formas de trabalho infantil elencadas no arti-
go 3º da Convenção são:

8 A divisão teórica do trabalho infantil em child labour e child work defendida pela
UNICEF não é aceita por todos os operadores do campo, visto que em muitas línguas a
tradução destes conceitos pode gerar grande confusão; todavia, tais definições são ampla-
mente utilizadas na doutrina internacional.
9 Convenção n. 182, Artigo 4º, § 3. “A relação dos tipos de trabalho definidos nos
termos do § 1º deste artigo deverá ser periodicamente examinada e, se necessário, revista
em consulta com as organizações de empregadores e de trabalhadores interessadas”.

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a) todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão,
como venda e tráfico de crianças, sujeição por dívida, servidão, trabalho
forçado ou compulsório, inclusive recrutamento forçado ou compulsó-
rio de crianças para serem utilizadas em conflitos armados;
b) utilização, demanda e oferta de criança para fins de prostituição,
produção de material pornográfico ou espetáculos pornográficos;
c) utilização, demanda e oferta de criança para atividades ilícitas,
particularmente para a produção e tráfico de drogas conforme definidos
nos tratados internacionais pertinentes;
d) trabalhos que, por sua natureza ou pelas circunstâncias em que
são executados, são suscetíveis de prejudicar a saúde, a segurança e a
moral da criança.
É interessante observar que as atividades previstas na Convenção
extrapolam o âmbito do Direito do Trabalho, adentrando o campo do
Direito Penal, unindo estas duas disciplinas jurídicas no combate ao
abuso do trabalho infantil que culmina em crimes contra a infância.
Para completar este breve excursus sobre panorama normativo inter-
nacional no tema do trabalho infantil é importante mencionar a Reco-
mendação n. 190, referente à proibição e ação mediata para a elimina-
ção das piores formas de trabalho infantil, adotada pela Conferência
Internacional do Trabalho de Genebra, em sua 87ª Sessão.
Esta dispõe sobre as principais iniciativas que devem ser adotadas
pelos Governos que a ratificarem no sentido de eliminar as piores for-
mas de trabalho infantil. As disposições desta Recomendação suple-
mentam as da Convenção sobre as Piores Formas de Trabalho Infantil,
e devem ser aplicadas juntamente com elas, dando eficácia aos seus dis-
positivos e definindo os tipos de programas governamentais que, coe-
rentemente com o quanto disposto na Convenção, devem ser pratica-
dos. Define ainda a categoria residual genérica da letra “d” acima
relativa aos trabalhos potencialmente perigosos.

2 As piores formas de trabalho infantil na Itália

2.1 A legislação italiana no âmbito da proteção à criança e


ao adolescente

A Constituição da República italiana, promulgada em 1948 em seu

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art. 34, §§ 1º e 2º, afirma o princípio segundo o qual a escola pública é
aberta a todos e estabelece o ensino fundamental obrigatório de 8 anos10.
No que tange à delimitação da idade mínima para o ingresso no merca-
do de trabalho, o art. 37 constitucional determina que deve coincidir
com a conclusão do ensino obrigatório, estabelecendo ainda a paridade
de tratamento entre o jovem trabalhador e o trabalhador adulto11.
De outra parte, a Lei Complementar n. 977, de 1967, dá efetiva
atuação ao dispositivo constitucional acima mencionado e é o principal
instrumento normativo em matéria de regulamentação do trabalho dos
jovens. Coerentemente com o quanto afirmado pela Constituição, o art.
3º da lei complementar fixa como conditio sine qua non para a admissão
do jovem trabalhador a conclusão do período de ensino obrigatório12.
A Lei n. 977/67, que entre outras disposições determina também a
duração do ensino obrigatório, foi recentemente modificada, resultando no
aumento da duração do ensino obrigatório de 8 para 10 anos. Deste modo,
na Itália, a idade mínima para o ingresso dos jovens no mercado de trabalho
é atualmente de 16 anos. Este aumento faz parte de uma nova política do
Ministério da Educação que tem como objetivo tornar obrigatório o inteiro
percurso escolar até a conclusão do ensino médio, aos 18 anos.
Ressalte-se que a norma complementar, ao estabelecer um período
de ensino obrigatório superior ao determinado pela Carta Magna, não
entra em conflito com a mesma, visto que esta determina o período de
estudo mínimo indispensável, que pode facilmente ser aumentado se-
gundo o desenvolvimento econômico e cultural da sociedade.
É importante, para ilustrar a atuação da União Europeia no âmbito
da proteção da criança e do adolescente, citar o exemplo da Diretiva n.
94/33/CE, que visa harmonizar a regulamentação do tema nos países-
-membros e foi introduzida no ordenamento jurídico italiano por meio

10 “A escola é aberta a todos. A educação fundamental, de pelo menos oito anos, é


obrigatória e gratuita” (tradução livre da autora).
11 “2. A lei determina a idade mínima para a admissão ao trabalho assalariado. 3. A
República tutela o trabalho dos menores com normas especiais e garante aos mesmos, em
iguais condições de trabalho [nota da autora: em relação aos trabalhadores maiores de 18
anos], igualdade de retribuição” (tradução livre da autora).
12 “A idade mínima de admissão ao trabalho coincide com a conclusão do período de
ensino obrigatório e não pode ser inferior aos 16 anos de idade” (tradução livre da autora).

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do Decreto Legislativo n. 345, de 4-8-1999, inserindo diversas altera-
ções na Lei n. 977/67, aumentando ulteriormente as proteções destina-
das a jovens e crianças.

2.2 A legislação contra as piores formas de trabalho infantil


na Itália

Diferentemente do ordenamento jurídico brasileiro, a Itália não


possui um código de defesa do menor como o Estatuto da Criança e do
Adolescente. As normas destinadas a combater o tráfico de crianças, a
prostituição, pornografia infantil etc. foram inseridas diretamente no
Código Penal.
Em tal mérito o parlamento italiano promulgou a Lei n. 269 de
3-8-1998, intitulada Norme contro lo sfruttamento della prostituzione,
della pornografia, del turismo sessuale in danno di minori, quali nuove
forme di riduzione in schiavitù, que introduziu novos artigos no Código
Penal (art. 600 bis ao art. 600 – septies) diretamente relacionados às
piores formas de trabalho infantil.
Foram inseridos, mais precisamente, os crimes de aproveitamento
da prostituição infantil, bem como o seu incentivo direto ou indireto,
pornografia infantil e outros crimes conexos. Nestas fatispécies incor-
rem não apenas quem atua diretamente na obtenção do resultado, mas
também quem corrobora indiretamente, distribuindo, divulgando, co-
mercializando tal material, ainda que a título não oneroso.
Maior relevo deve ser dado ao art. 600 – quinquies do Código
Penal, que qualificou como crime o turismo sexual, adotando o
princípio da extraterritorialidade da jurisdição em âmbito penal, ou
seja, dá competência à Justiça italiana para processar o sujeito que
incorre em tal crime, ainda que o fato a ele imputado tenha sido
cometido em outro país.
A Convenção da OIT n. 182 foi inserida no ordenamento jurídico
italiano por intermédio da Lei n. 148, de 25-2-2000. A inovação desta lei
está na previsão de ações dirigidas e efetivas que devem ser adotadas pelo
governo central, regional ou provincial no combate ao trabalho infantil
em concordância com o quanto disposto no art. 7º da Convenção.

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No caso específico da Itália, a ratificação da Convenção n. 182 deu iní-
cio a um interessante debate parlamentar relativo ao arrolamento de menores
de 18 anos pelas Forças Armadas. A lei que regulava a serviço militar estabe-
lecia a idade mínima de 17 anos13, deste modo, teoricamente, seria possível
que, em caso de conflito armado, adolescentes fossem enviados ao fronte de
batalha com os demais soldados. Já em 1999, quando as Nações Unidas
aprovaram o protocolo facultativo sobre a participação de crianças em con-
flitos armados, opcional à Convenção dos Direitos Universais da Criança,
iniciam-se os debates no parlamento sobre a possibilidade de revogar tal
previsão, fato este que se concretizou em 2001, marcando posição definitiva
do país contra a utilização de menores em conflitos armados.
Sempre no mérito das piores formas de trabalho infantil é impor-
tante mencionar a introdução no Código Penal do crime de accattonag-
gio (mendicância), que penaliza qualquer indivíduo adulto que utilize
– ou em qualquer modo permita ou contribua ao fato – crianças com
menos de 14 anos em atividade de mendicância14.

2.3 A incidência das piores formas de trabalho infantil no


território italiano

Na Itália, estudos e pesquisas sobre o trabalho infantil são raros,


consequentemente os dados oficiais divulgados pelo governo são desa-
tualizados e quase inexistentes.
Em 2007, entretanto, o Centro de Pesquisas UNICEF Innocenti15
realizou um importante estudo sobre a condição de vida de crianças e

13 Art. 3º da Lei n. 191, de 31-5-1975, revogado pelo art. 1º da Lei n. 2, de 8-1-2001.


14 “Utilização de menores em atividade de mendicância – Quem utiliza pessoa menor
de quatorze anos ou pessoa não imputável, submetida à sua autoridade, ou ainda que
esteja sob sua custódia ou vigilância, em atividade de mendicância, ou ainda que permi-
ta que esta pessoa realize atividade de mendicância, ou que outrem a utilize para tal ati-
vidade, é punido com pena de reclusão de três meses a um ano. No caso em que tal fato
seja cometido pelos pais ou pelo tutor ou curador a condenação impõe a suspensão do
exercício do pátrio poder do condenado” (tradução livre da autora).
15 UNICEF INNOCENTI Centro de Pesquisa. A pobreza infantil em perspectiva:
uma visão geral sobre bem-estar infantil nos países ricos. Uma avaliação abrangente da
vida e do bem-estar de crianças e adolescentes nos países economicamente avançados,
Relação do Instituto Innocenti, n. 7, 2007.

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adolescentes nos países economicamente avançados. Segundo esta pes-
quisa, a categoria de maior risco é constituída pelos menores que per-
tencem (a) a famílias monoparentais; (b) monorrenda; ou ainda (c) a
famílias cuja renda total é menor ou igual a renda média nacional.
O mencionado estudo revela que mesmo nos países ricos perma-
nece a correspondência, ainda que parcial, entre o trabalho infantil e
a condição socioeconômica do núcleo familiar onde está inserida a
criança.
A pesquisa do Instituto Innocenti mostra que entre os países
estudados a Itália apresenta o maior índice de crianças e adolescen-
tes em condição de pobreza, quase 17%, sendo ainda o país onde é
mais difuso o ingresso precoce de jovens com menos de 15 anos ao
trabalho.
A confederação sindical CGIL (Confederazione Generale Italiana
del Lavoro), em parceria com o IRES (Istituto di Ricerche Sociali) e
com a ONG internacional Save the Children, realizou em 2006 uma
abrangente pesquisa no campo do trabalho infantil.
Segundo os resultados apresentados por esta pesquisa, o quadro
que emerge demonstra que as situações patológicas de abuso de me-
nores acorrem nas famílias de imigrantes provenientes de países ex-
ternos à União Europeia e, ainda nota-se, que o percentual de crian-
ças trabalhadoras é mais elevado entre os meninos com idade entre
11 e 14 anos.
As formas de trabalho infantil que se apresentam na sociedade ita-
liana, todavia, são consideradas como child work; em apenas 1% dos
casos verificados a atividade exercida por crianças e adolescentes pode
ser considerada incompatível com as atividades escolares, gerando pro-
blemas no desenvolvimento psicofísico dessas crianças e desses jovens.
Ressalte-se que os casos graves verificam-se com maior frequência
nas famílias com baixa renda, nas quais ambos os pais são desocupa-
dos ou quando a família é muito numerosa. As formas mais críticas
de trabalho infantil, ao contrário do que se poderia pensar, não au-
mentam mesmo com maior oferta de trabalho local, permanecendo
apenas a correlação inversamente proporcional entre trabalho infantil
e renda familiar.

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Um aspecto muito interessante destacado nesta pesquisa é o fato
que, ao contrário do que poderíamos esperar, o percentual de trabalho
infantil nas regiões centro e sul (zonas menos industrializadas e com
maior índice de desocupação) não é superior ao quanto revelado nas
regiões do norte do país. As regiões do nordeste da Itália (Veneto, Friu-
li Venezia Giulia, Trentino-Alto Adige) apresentam o maior índice efe-
tivo de trabalho precoce, principalmente entre os jovens na faixa etária
de 11 a 15 anos.

2.4 Políticas ativas contra o trabalho infantil e suporte aos


projetos contra as piores formas de trabalho infantil

Na Itália, muitas são as iniciativas voltadas para a proteção dos di-


reitos das crianças e adolescentes, porém medidas especificamente desti-
nadas ao combate das piores formas de trabalho infantil não fazem par-
te do programa do atual governo. Muito se deve à baixa incidência das
formas de abuso de menores na sociedade e da imediata intervenção da
polícia nos casos identificados.
Na Europa, as forças policiais de todos os países combatem conjun-
tamente a pornografia infantil, o tráfico de menores e a prostituição de
crianças e adolescentes, sendo estas as formas mais difusas no território
europeu de comportamentos delituosos previstos no âmbito da Con-
venção da OIT n. 182.

3 As piores formas de trabalho infantil no Brasil

3.1 O trabalho infantil e a legislação brasileira

3.1.1 Garantias constitucionais

A Constituição democrática de 1988 garante o direito à infância e


o acesso gratuito à educação, ao estabelecer direitos sociais no seu Capí-
tulo II do Título I e, especificamente no seu art. 7º, inciso XXXIII, veta
aos jovens entre 16 e 18 anos o trabalho noturno, em razão de promover
a sua atividade formativa essencial, bem como o seu desenvolvimento

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profissional, vetando, também, pelas mesmas razões, a realização de ati-
vidades consideradas perigosas ou insalubres16.
No mesmo art. 7º, inciso XXX, a Constituição proíbe a discrimi­
nação salarial fundada na idade do trabalhador17. Neste sentido a Lei n.
10.097/2000 suprimiu na legislação específica a antiga distinção econô-
mica entre o jovem trabalhador e o trabalhador adulto. Atualmente, a
lei nacional não permite um salário menor ao aprendiz que tem direito
ao salário mínimo e à jornada de trabalho de seis horas. Sobre o presen-
te argumento, também se manifestou o Tribunal Superior do Trabalho,
na Orientação Jurisprudencial n. 26, da SDC18.
A idade mínima para o ingresso no mercado do trabalho fixada pela
Constituição de 1988 era de 14 anos, entretanto, devido aos avanços da
normativa internacional para adimplir aos novos padrões exigidos tanto
pela OIT quanto pela ONU, em 1998 a idade mínima para o trabalho
foi aumentada para 16 anos.
A Emenda Constitucional n. 20, que alterou o limite acima men-
cionado, não obstante tenha sido aprovada pelo Congresso Nacional,
gerou grande polêmica na opinião pública, que vê o trabalho como uma
alternativa válida para crianças que vivem em situação de pobreza.
Além dos direitos sociais elencados no art. 7º, é mister ressaltar,
também, a importância do art. 227 da CF, base para a legislação de
tutela do menor, afirmando o dever constitucional da família, da so-
ciedade e do Estado de assegurar à criança e ao adolescente, com ab-
soluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação,
ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à li-
berdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a

16 “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melho-
ria de sua condição social: (...) proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a
menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condi-
ção de aprendiz, a partir de quatorze anos.”
17 “São direitos dos trabalhadores (...) proibição de diferença de salários, de exercício
de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.”
18 “Os empregados menores não podem ser discriminados em cláusula que fixa salário
mínimo profissional para a categoria.”

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salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violên-
cia, crueldade e opressão.
O art. 227, ora citado, ressalta ainda a específica obrigação consti-
tucional do Estado em realizar programas de prevenção e atendimento
especializado à criança e ao adolescente dependente de entorpecentes e
drogas afins, e a previsão de normas que punam com rigor os casos de
abuso, violência e exploração sexual da criança e do adolescente19.

3.1.2 O Estatuto da Criança e do Adolescente, a


Consolidação das Leis do Trabalho e o Código Penal

Uma importante conquista foi a promulgação da Lei n. 8.069, de


13-7-1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA)20.
O ECA se inspira nas diretrizes fornecidas pela Constituição Fede-
ral de 1988, internalizando muitas das normativas internacionais ratifi-
cadas pelo Brasil como a Convenção de Nova York sobre os Direitos da
Criança de 1989.
O ECA dispõe normas especiais aplicáveis aos jovens até os 18 anos
incompletos. Excepcionalmente, nos casos expressos em lei, este Estatuto
pode ser aplicado às pessoas entre 18 e 21 anos de idade21.

19 “§ 3º O direito à proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: I – idade


mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto no art. 7º,
XXXIII; II – garantia de direitos previdenciários e trabalhistas; III – garantia de
acesso do trabalhador adolescente à escola; IV – garantia de pleno e formal conheci-
mento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa téc-
nica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica; V
– obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição
peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida
privativa da liberdade; VI – estímulo do Poder Público, através de assistência jurídi-
ca, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de
guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado; VII – programas de preven-
ção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependente de entorpe-
centes e drogas afins. § 4º A lei punirá severamente o abuso, a violência e a explora-
ção sexual da criança e do adolescente.”
20 “Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.”
21 O Código do Menor entrou em vigor em 1979, com a aprovação da Lei n. 6.698, e
era aplicado apenas aos menores não assistidos pelos pais ou tutor.

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O Estatuto divide os menores de 18 anos em duas categorias: crian-
ças, que são as pessoas com idade entre 0 e 12 anos incompletos, e
adolescentes, cuja faixa etária vai dos 12 aos 18 anos.
Os arts. 60 e seguintes da Lei n. 8.069/90 versam sobre matéria
justrabalhista concernente à formação profissional do jovem, com refe-
rimento específico aos aprendizes e estagiários, estabelecendo os princí-
pios gerais que devem ser seguidos pelo empregador e deixando que os
aspectos práticos da regulamentação sejam estabelecidos pela legislação
trabalhista específica.
No que tange à legislação trabalhista propriamente dita, encontra-
mos na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT diversas normas que
regulam e delimitam o trabalho realizado por adolescentes na faixa etá-
ria que vai dos 16 anos até a maioridade civil.
Em particular, podemos mencionar o art. 403, que proíbe o traba-
lho aos menores de 16 anos, salvo nos casos dos aprendizes (como refe-
rido no parágrafo anterior), e, que mesmo em tal condição, o jovem
deve ter completado ao menos 14 anos. Assim, podemos afirmar que
segundo a legislação ora em vigor é proibido aos menores de 14 anos o
acesso ao mercado de trabalho.
Ressalte-se, ainda no âmbito da CLT, a importância e particularida-
de do art. 407, que da à “autoridade competente” a possibilidade de
avaliar a condição e a tipologia de trabalho exercida pelo menor. Verifi-
cando-se situações de abuso ou exploração de adolescentes, o inspetor
ou ainda o magistrado pode decretar a irregularidade da situação e exigir
que o empregador tome todas as medidas necessárias para que tal abuso
cesse imediatamente, mudando o jovem de função.
O termo “autoridade competente” utilizado pelo legislador não é
claro e deixa margens para interpretação. Entendemos ser coerente com
a ratio legis da norma ora analisada a interpretação lato sensu do termo,
considerando competente para a aplicação do quanto disposto no art.
407 seja o juiz de direito que no decorrer de um processo deva afrontar
a questão, seja o Inspetor da Delegacia Regional do Trabalho que duran-
te o ato de fiscalização apure a existência da situação irregular à qual é
submetido o jovem.
A partir de 1988, com a promulgação da Constituição democrática,
foram introduzidas diversas normas de conteúdo social e penal destinadas

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à proteção da criança e do adolescente, consequentemente o ordena-
mento jurídico brasileiro atual está em conformidade com os novos pa-
radigmas internacionais atinentes à regulamentação do trabalho dos
jovens e à proteção dos direitos da infância.

3.2 A legislação específica no combate às piores formas de


trabalho infantil

O combate contra as piores formas de trabalho infantil é realizado


principalmente por intermédio da inserção no ECA das fatispécies
específicas previstas pela Convenção n. 182, como, por exemplo, a
aliciação de menores no tráfico de drogas e a punição dos menores que
participam ativamente em funções relacionadas ao tráfico de substân-
cias entorpecentes.
Acompanhando a tendência internacional, as piores formas de tra-
balho infantil, como definidas na Convenção n. 182, ultrapassam, tam-
bém no Brasil, a fronteira do Direito do Trabalho propriamente dito e
ingressam no ramo do Direito Penal, deste modo, além das normas de
conteúdo penal previstas no ECA, outras foram inseridas no Código
Penal, tipos penais ad doc22, bastando lembrar o crime de prostituição

22 “Mediação para servir a lascívia de outrem Art. 227. Induzir alguém a satisfazer a
lascívia de outrem: Pena – reclusão, de um a três anos. § 1º Se a vítima é maior de 14
(catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, ou se o agente é seu ascendente, descendente,
cônjuge ou companheiro, irmão, tutor ou curador ou pessoa a quem esteja confiada para
fins de educação, de tratamento ou de guarda: Pena – reclusão, de dois a cinco anos.
Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual Art. 228. Induzir
ou atrair alguém à prostituição ou outra forma de exploração sexual, facilitá-la ou impe-
dir que alguém a abandone: Pena – reclusão, de dois a cinco anos. § 1º Se o agente é
ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou cura-
dor, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obriga-
ção de cuidado, proteção ou vigilância: Pena – reclusão, de três a oito anos. Rufianismo
Art. 230. Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros
ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça: Pena – reclusão, de um
a quatro anos, e multa. § 1º Se a vítima é menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze)
anos ou se o crime é cometido por ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado,
cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou por
quem assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância:
Pena – reclusão, de três a seis anos, e multa.”

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infantil ou o tráfico de crianças, que não podem ser considerados traba-
lhos no sentido literal da palavra, visto que são atos ilegais definidos pela
lei pátria como crimes.

3.3 A eficácia dos projetos realizados pelo Governo para a


eliminação das piores formas de trabalho infantil

Nas faixas sociais mais baixas é maior a incidência de crianças que rea-
lizam atividades remuneradas que podem ser consideradas nocivas para sua
formação e seu desenvolvimento. Desta forma, podemos concluir que o
trabalho infantil como definido no termo child labour tem direta correlação
com o nível econômico e cultural do contexto onde o menor se encontra.
A legislação brasileira não considera o trabalho infantil em si um cri-
me. No nosso país, como referido em precedência, o trabalho infantil,
desde que não interfira nas atividades escolares e não cause danos psico­
físicos à criança, é tolerado pela legislação nacional e pela sociedade civil e
em muitos casos é considerado uma “oportunidade” para os menores que
provêm de uma realidade social marcada pela pobreza.
O Governo, portanto, para desincentivar a utilização de mão de
obra infantil, adotou a estratégia da redistribuição de renda destinada a
famílias que, comprovando o estado de pobreza, demonstrem manter as
crianças na escola.
O Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à educação, ou
simplesmente “Bolsa Escola”, instituído pela Lei n. 10.219, de 11-4-
2001, é um exemplo de política de redistribuição de renda utilizado no
combate ao trabalho infantil, abrange todo o território nacional e atual-
mente é o programa social com maior número de beneficiários.
Trata-se de parceria entre o Governo Central e os Municípios, que
visa a redistribuição de renda vinculado a medidas socioeducativas,
como, por exemplo, a criação de programas após o horário escolar que
incluam atividade esportiva, recreativas ou ainda de suporte escolar.
Os beneficiários do programa são as famílias com renda per capita infe-
rior a meio salário mínimo que possuam sob sua responsabilidade crianças
com idade entre 6 e 15 anos, regularmente matriculadas em estabelecimen-
tos de ensino fundamental, com frequência igual ou superior a 85%.

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Em 2001, 855 mil famílias puderam contar com o subsídio econô-
mico do “Bolsa Escola”; o sucesso do projeto e o sensível aumento dos
fundos governamentais destinados a medidas assistenciais e à facilitação
do procedimento de registro ao projeto (pode ser feito diretamente com
um terminal eletrônico) levaram a um grande aumento dos beneficiá-
rios e atualmente se estimam 11 milhões de famílias escritas no projeto.
No contexto da eliminação das piores formas de trabalho infantil é
importante mencionar o Programa Nacional de Erradicação do Traba-
lho Infantil – PETI, destinado apenas crianças que se encontram em
situação de degradação e que na maioria dos casos executam trabalhos
perigosos e nocivos.
O PETI foi desenvolvido durante o Fórum Nacional de Preven-
ção e Erradicação do Trabalho Infantil em 1996 e é destinado a crian-
ças e adolescentes entre 7 e 15 anos; a única condição para que a famí-
lia seja considerada idônea ao benefício é a comprovação de renda
inferior a meio salário mínimo. As crianças e os jovens cadastrados no
projeto devem abandonar qualquer forma de atividade laboral exercida
e devem dedicar-se exclusivamente às atividades escolares.
Para garantir que o menor não volte a trabalhar, as famílias cadas-
tradas recebem uma bolsa-auxílio mensal. O PETI oferece ainda ativi-
dades culturais e esportivas no turno contrário ao da escola. Atualmen-
te, estima-se que o programa beneficia 930.824 crianças e adolescentes.
Os organizadores do projeto almejavam alcançar até o fim de 2008 1
milhão de meninos e meninas.
O forte sucesso que os programas de redistribuição de renda têm na
sociedade brasileira demonstra claramente o vínculo intrínseco entre o
trabalho infantil e a pobreza, principalmente no que tange às piores
formas de trabalho infantil.

4 Conclusão

O problema do trabalho infantil, principalmente as suas piores for-


mas, é uma questão muito importante na sociedade contemporânea,
sobretudo nos países que apresentam um maior déficit na distribuição
de renda e um baixo nível de escolaridade da população.

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Esta é a premissa da qual parte a Organização Internacional do
Trabalho ao elaborar a Convenção n. 182, reconhecendo que o trabalho
infantil é devido, em grande parte, à pobreza e que a solução a longo prazo
reside no crescimento econômico sustentado, que conduz ao progresso social,
sobretudo ao alívio da pobreza e à educação universal.
Ante o quanto ilustrado, podemos verificar como o Brasil se tornou
atualmente um polo de referência mundial no combate à exploração de
crianças, sendo o único país a adotar política específica contra a utiliza-
ção dessa mão de obra, atuando ainda por meio de importantes campa-
nhas publicitárias destinadas à conscientização da população, no esforço
de mudar não apenas a lei, mas também a cultura e o pensamento difu-
so na sociedade quanto aos efeitos benéficos do trabalho precoce.
Os programas criados pelo Governo brasileiro obtiveram ótimos
resultados e se tornaram ponto de referência para muitos países que
desejam adotar medidas eficazes no combate ao trabalho infantil.
Na Itália, ao contrário, o problema do trabalho infantil não é muito
sentido pela população, e o Governo não adota procedimentos específi-
cos para combatê-lo. Mesmo com o resultado alarmante da pesquisa
UNICEF – Innocenti23, que revelou na Itália a presença do mais elevado
índice de trabalho infantil de toda a Europa, poucas foram as iniciativas
do Governo central ou ainda das províncias e dos municípios.
Na Itália, o programa mais importante no âmbito do combate ao
trabalho infantil é o Programa Internacional para a Eliminação do Tra-
balho Infantil, organizado e promovido pela Organização Internacional
do Trabalho juntamente com a UNICEF.
Para concluir, é importante lembrar que, atualmente, estima-se que
em todo o mundo cerca de 220 milhões de crianças trabalhem exercen-
do diversos tipos de atividade. Muito pode ainda ser realizado em âm-
bito nacional e internacional para garantir a essas crianças não apenas
uma condição de vida justa, como também uma real prospectiva de um
futuro livre de situações de abuso e miséria.

23 Maiores informações a respeito da pesquisa realizada pelo Istituto Innocenti em par-


ceria com UNICEF e Save the Children no site www.istitutoinnocenti.org.

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Violência e veículos de comunicação:
discussões acerca da manutenção da
dignidade da pessoa humana

Lúcia Helena Polleti Bettini


Doutora e Mestre em Direito do Estado – Direito Constitucional, pela PUCSP.
Professora da Escola de Direito da Universidade Municipal de São Caetano do Sul
– USCS. Coordenadora e Professora do Curso de Direito do Centro Universitário
Assunção – UNIFAI. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional – IBDC.
Advogada.

1 Liberdade de Informação Jornalística e Democracia

O tratamento constitucional da liberdade de informação jornalística


em Estados Democráticos de Direito possui a condição de ser apresenta-
do como direito constitucional preferencial, ou seja, além do status jurídi-
co de direito fundamental, constitucional1, é direito que ganha importân-
cia diferenciada diante dos demais, pois instrumental da maior relevância
na sustentação dos regimes democráticos2. Somente por meio da proteção
da liberdade de informação jornalística é que se mantém o regime demo-
crático3, viabiliza-se a formação da opinião pública e se confere a manu-
tenção do processo educacional, em especial no aspecto político4.

1 Cf. art. 220, § 1º, de nossa atual Constituição.


2 Cf. NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. A proteção constitucional da informação e o
direito à crítica jornalística. São Paulo: FTD, 1999.
3 Nesse sentido: Luis Alberto David Araújo, Vidal Serrano Nunes Júnior, José Afonso
da Silva, Aluisio Ferreira, dentre outros.
4 José Afonso da Silva (Comentário contextual à Constituição, p. 823) destaca o ante-
projeto da Comissão Afonso Arinos e as premissas essenciais no que diz respeito ao tema
comunicação social, portanto, o entendimento de que deve existir o respeito à função

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Cabe, portanto, identificar a questão da democracia e suas conse­
quências, seja na esfera da vida individual ou da vida coletiva. Da pre-
missa adotada, destaque-se Norberto Bobbio5 em diferenciação do sen-
tido de democracia para os antigos e para os modernos, qual seja o poder
do povo, do demos, e o poder dos representantes do povo, ou ainda, a
possibilidade de decidir ou por meio de processo eletivo escolher quem
decidirá por você e por todos os demais integrantes, sem descuidar, da
importância em tal discussão, da informação jornalística e sua veiculação.
O mesmo autor, ao conceituar democracia como o “poder em
público”6, dá o destaque necessário à ideia de sustentabilidade de regimes
democráticos por meio da liberdade de informação jornalística, sucessora
da liberdade de imprensa, ou seja, pela informação transparente de toda
tomada de decisão que afete a comunidade, sem adoção de versões oficiais
ou mais interessantes a determinados segmentos da população7.
Na democracia, a informação é o direito prevalecente do cidadão,
pois a mesma lhe traduz a condição de verificação do atuar da represen-
tação, ou seja, é ela que possibilita o exercício do papel de guardião da
gestão da coisa pública, uma vez que o sigilo ou a limitação da informa-
ção é instrumento típico das autocracias.
Ainda no regime democrático e inerente à liberdade de informação
jornalística, ressalte-se a ideia de autodeterminação de cada um dos in-
tegrantes da comunidade do povo, ou, nos dizeres de Hannah Arendt8,
a possibilidade de agir, mas que deve ser cuidadosamente conciliada
entre todos. Tal conciliação ocorre no Estado brasileiro por intermédio
dos limites constitucionais à liberdade de informação jornalística, pois o

social da atividade jornalística que integra o referido sistema, ainda que não venha de
maneira expressa, integrou sua motivação e se retira de uma interpretação da Constitui-
ção que preserve sua unidade e harmonização.
5 Teoria geral da política. Org. por Michelangelo Bovero. Rio de Janeiro: Eselvier, 2000,
p. 371 e s.
6 Idem, p. 386.
7 Celso Lafer faz referência às autocracias eletivas aquelas que inutilizam o parlamen-
to... (O Estado de S. Paulo, de 19-4-2009).
8 A condição humana. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 199: “Os homens são livres –
diferentemente de possuírem o dom da liberdade – enquanto agem, nem antes, nem
depois; pois ser livre e agir são uma mesma coisa”.

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atributo de direito preferencial, somado à sustentabilidade do regime
democrático, implica no reconhecimento da clareza e da transparência
também nos parâmetros das possíveis limitações.
A análise proposta, portanto, será explicitada por meio da identifi-
cação de um direito fundamental9 que se diferencia dos demais, com o
destaque à sua condição intrínseca ao regime democrático10 e que, por
ser o poder em público seu fim, suas limitações11constitucionais devem
ser destacadas e respeitadas, sob pena de não se vivenciar a democracia
ou a liberdade.
A questão crucial vem por intermédio de situação fática constante-
mente repetida, qual seja a informação como elemento essencial para
vida em sociedade e quesito fundamental para se afirmar a liberdade, a
possibilidade de agir, ceder espaço às notícias escolhidas e reiteradas pe-
los e nos veículos de comunicação a ponto de nos retirar a “escolha de
nos informarmos”, pois a violência passa a ser identificada como a pau-
ta obrigatória, repetida e estendida por toda a mídia, seja ela decorrente
de uma catástrofe causada por evento natural, ou oriunda de um crime
que tenha sido cometido com requintes de crueldade, ou ainda um aci-
dente que nos dê a sensação da estagnação, do choque, são as informa-
ções que irão nos acompanhar durante todo o dia, algumas vezes duran-
te um prazo tão alargado que o papel da informação se perde.
A missão da informação é possibilitar o convívio adequado em so-
ciedade e as escolhas de nossas vidas, individuais ou coletivas, ou seja, há
função social a ser respeitada e os limites são postos diretamente pela
Constituição ao trazer a dignidade da pessoa humana como princípio
fundamental de nosso Estado.

9 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. Coim-


bra: Almedina, 2003, p. 379-380. Canotilho, ao cuidar do tema, referiu a fundamenta-
lidade material como a que “insinua que o conteúdo dos direitos fundamentais é decisi-
vamente constitutivo das estruturas básicas do Estado e da sociedade”.
10 Para Hannah Arendt (op. cit., p. 191-192), o campo de atuação da liberdade é a vida
política, sendo indissociáveis – prossegue a filósofa – na afirmação de que a política tem por
motivação a liberdade, por meio dela é que se chega à organização política da sociedade.
11 Hannah Arendt (op. cit., p. 192) afirma que tais limitações só não ingressam na li-
berdade interior, portanto, não se reconhece como locus político.

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2 Direitos fundamentais: conceito e principais
características

Os direitos fundamentais em um Estado Democrático de Direito ga-


nham relevância e espaço de proteção constitucional12 juntamente com a
estrutura do poder, logo há que se conceituar e reconhecer características
que permitam sua identificação13. Portanto, estejam descritos de maneira
expressa no texto constitucional14, sejam eles decorrentes do sistema ou de
tratados internacionais, eles existem para sustentar os Estados Democráti-
cos de Direito, e a dignidade da pessoa humana que, conforme doutrina
majoritária, existe não só como limite de atuação estatal, mas, também,
por ele deve ser reconhecido como uma tarefa a ser realizada.
Vale repetir, a maioria dos estudiosos do tema afirmam os direitos
fundamentais como elementares à manutenção da dignidade da pessoa
humana15 ou como forma de se concretizar as exigências do princípio
constitucional em destaque16.
As características dos direitos fundamentais nos permitem agrupá-
-los a um elenco de direitos que tem por finalidade essencial garantir a
dignidade da pessoa humana, portanto uma tarefa aos intérpretes da
Constituição. Grande parte da doutrina reconhece como características

12 “Designa-se por constitucionalização a incorporação de direitos subjectivos do ho-


mem em normas formalmente básicas, subtraindo-se o seu reconhecimento e garantia à
disponibilidade do legislador ordinário. A constitucionalização tem como consequência
mais notória a proteção dos direitos fundamentais mediante controlo jurisdicional da
constitucionalidade dos actos normativos reguladores destes direitos. Por isso e para isso,
os direitos fundamentais devem ser compreendidos, interpretados e aplicados como nor-
mas jurídicas vinculativas e não como trechos ostentatórios ao jeito das grandes ‘decla-
rações de direito’” (CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 378).
13 Vale ressaltar que a Constituição não esgotou os direitos fundamentais em único
título, uma vez que é possível identificar outros direitos fundamentais além dos previstos
de maneira expressa em seu texto, de acordo com a previsão do art. 5º, § 2º.
14 Os direitos fundamentais devem ser reconhecidos como normas constitucionais
dotadas de status de superioridade no ordenamento jurídico.
15 Nesse sentido: Luis Alberto David Araujo, Vidal Serrano Nunes Júnior, José Afonso
da Silva, Aluisio Ferreira, Edílson Pereira de Farias, Vieira de Andrade, dentre outros.
16 Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livr.
do Advogado, 2004.

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intrínsecas17 a Universalidade, a Historicidade, a Limitabilidade, a Irre-
nunciabilidade e a Concorrência.
Universalidade implica no reconhecimento de que são os direitos
fundamentais universais, ou seja, o que irá identificá-los e uni-los a um
grupo de direitos é a condição humana, portanto, sua existência decorre
da natureza humana.
A Historicidade demonstra, nos dizeres de Norberto Bobbio, que
tais direitos “emergem gradualmente das lutas que o homem trava por
sua própria emancipação e das transformações das condições de vida
que essas lutas produzem”18, ou seja, são decorrentes de um processo de
proteção do ser humano com sua externação por meio de documentos
escritos19, sejam eles declarações20 de direito e, atualmente, por Consti-
tuições. Vale lembrar que a Declaração de 1948, identificada como bí-
blia política da humanidade, é entendida como ponto de partida para a
progressiva proteção dos direitos do homem21. Conclui-se que o caráter
histórico implica na constante busca de tal proteção.
Os direitos fundamentais são irrenunciáveis, ou seja, tal mandamento
decorre da característica da Irrenunciabilidade dos direitos fundamentais,
portanto, pode-se até deixar de exercê-los, mas não renunciá-los valida-
mente, pois lhe é atributo inerente que garante tal proteção22.

17 Cf. ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito
constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 118-126. Ao lado das características intrínsecas
dos direitos fundamentais, ou seja, aquelas que nos permitem identificar quais são os direi-
tos fundamentais, há o que a doutrina costuma designar de características extrínsecas, que
representam o regime jurídico peculiar descrito por meio das Constituições.
18 A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 32.
19 “... o advento do Cristianismo, que preconizava o homem à imagem e à semelhança
de Deus, consolidou-se definitivamente a ideia de que, semelhante ao Criador, o ser
humano, por si, era dignitário de direitos mínimos, naturais, que lhe preservassem a
essência humana, a autodeterminação etc.” (ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES
JÚNIOR, Vidal Serrano. Op. cit., p. 118).
20 Para o Ocidente, a Magna Carta de 1215 é a primeira, sendo que há várias outras
que devem ser lembradas, em especial a Declaração Francesa de 1789, pois tem como
destinatário o ser humano.
21 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 33.
22 Nesse sentido: José Afonso da Silva, Luiz Alberto David Araújo, Vidal Serrano Nu-
nes Júnior, dentre outros.

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Da Concorrência se retira a possibilidade de acumular-se mais que
um direito fundamental em um mesmo ato, ou seja, a doutrina aponta
como exemplo típico o jornalista que, ao usar da liberdade de informar,
pode também realizar a liberdade de opinião, sem nenhum prejuízo
para ambos os direitos.
A característica da Limitabilidade dos direitos fundamentais tem
por premissa o fato de esses direitos não serem absolutos, mas sim li-
mitáveis, portanto, enquanto no plano abstrato podemos até ter a im-
pressão equivocada de sua condição absoluta, no plano concreto, ou
seja, no exercício de direitos fundamentais por mais de uma pessoa,
em contato com a proteção que também têm outros direitos funda-
mentais, vamos encontrar o que a doutrina denomina de colisão de
direitos fundamentais.
O reconhecimento da limitabilidade dos direitos fundamentais de-
termina a seguinte consequência, qual seja no momento de sua aplicação
pode haver uma limitação ou restrição no que diz respeito ao âmbito de
sua proteção23. Gilmar Ferreira Mendes24 chama a atenção aos limites de
tais restrições que possam sofrer os direitos fundamentais, sendo que to-
dos eles decorrem do próprio texto constitucional com a intenção explíci-
ta de proteção do núcleo essencial do direito fundamental25.

23 Nesse Sentido: Luiz Alberto David Araújo, Vidal Serrano Nunes Júnior, Edílson
Pereira de Farias, Gilmar Ferreira Mendes, dentre outros.
24 Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 347-349. Gilmar Ferreira
Mendes afirma que há Constituições que de maneira expressa tratam da proteção do
núcleo essencial dos direitos fundamentais, como a Lei Fundamental de Bonn, a Cons-
tituição portuguesa de 1976 e a Constituição espanhola de 1978, sob pena de seu esva-
ziamento por agir do legislador. O autor afirma que nossa Constituição não fez qualquer
menção à proteção expressa do núcleo essencial, mas tal ideia decorre de modelo adotado
pelo legislador constituinte.
25 Cf. FARIAS, Edílson Pereira. Colisão de direitos: A honra, a intimidade, a vida privada e
a imagem versus a liberdade de expressão e informação. Sérgio Antônio Fabris Ed., 1996, p.
79 e s. O autor cita uma decisão do Tribunal Constitucional espanhol que traça parâmetros
importantes para o seu reconhecimento, quais sejam: a sua composição por elementos míni-
mos que impeçam a extinção do direito ou sua transfiguração; para sua determinação há de
se socorrer dos conceitos jurídicos aceitos pela sociedade, e que todo núcleo essencial deve ser
reconhecido como valor absoluto. Prossegue ainda o autor na apresentação das teorias que
irão orientar o estudo do núcleo essencial dos direitos fundamentais, a teoria absoluta, pela
qual há núcleo próprio inatacável de cada direito e a teoria relativa, que se apresenta por meio
da aplicação do princípio da proporcionalidade e, tem como principal autor Robert Alexy.

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Canotilho afirma: “... existir uma colisão autêntica de direitos
fundamentais quando o exercício de um direito fundamental por
parte de seu titular colide com o exercício do direito fundamental
por parte de outro titular”. Prossegue o autor a indicar a existência
de colisão de direitos impróprios, ou seja, “quando o exercício de
um direito fundamental colide com outros bens constitucionalmen-
te protegidos”26.
Gilmar Ferreira Mendes27 também indica dois tipos de colisão de
direitos, a que envolve dois direitos fundamentais e a denomina em
sentido estrito, e a que implica no choque entre um direito fundamental
e outros valores albergados constitucionalmente, em sentido amplo.
Edílson Pereira de Farias28 confirma o posicionamento e afirma que
a colisão de direitos fundamentais pode se dar de duas formas, a que
envolva o conflito entre dois direitos fundamentais, ou, ainda, no en-
contro de um direito fundamental e outros valores constitucionais. A
aplicação da ponderação deve dar a orientação a tal solução, com espe-
cial apreço ao mínimo sacrifício dos direitos envolvidos no plano da
concretude. A Hermenêutica Constitucional29 irá traçar os parâmetros
para tais decisões e, dentre esse instrumental a ser aplicado na interpre-
tação do caso em concreto, há o princípio da concordância prática ou
cedência recíproca30. Portanto, o que se pretende por meio de sua apli-
cação é a preservação máxima dos direitos fundamentais ou valores ali
discutidos e não o aniquilar de um dos direitos31.

26 Op. cit., p. 1270.


27 Op. cit., p. 376-377.
28 Op. cit. p. 93-94.
29 “De evidentes implicações a fundamentar o caráter distintivo da interpretação cons-
titucional é o fato de ser a Constituição o fundamento de validade último de todas as
demais normas do ordenamento jurídico” (BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e in-
terpretação constitucional. São Paulo: Celso Bastos Ed., 2002, p. 50 e s.).
30 Cf. ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Op. cit., p.
87-88. Os autores, ao comentar o princípio, afirmam seu desdobramento e repetem Cano-
tilho ao descrever sua aplicabilidade, ou seja, na dúvida deve-se agir em prol da liberdade.
31 Nesse sentido: Edílson Pereira de Farias, Luiz Alberto David Araújo, Vidal Serrano
Nunes Júnior, dentre outros.

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3 Limites à liberdade de informação jornalística

O regime constitucional da informação jornalística no Estado


brasileiro lhe confere o status de direito fundamental preferencial aos
demais e encontra capítulo próprio para seu desenvolvimento. O ca-
pítulo da Comunicação Social, que inicia com o art. 220 da Consti-
tuição, permite levantar a discussão que envolve as limitações consti-
tucionais. Destaque ao art. 220, caput e § 1º, e ao art. 221, pois
respectivamente traçam as dimensões constitucionais acerca da liber-
dade de informação jornalística e princípios que devem ser observados
pelos veículos de comunicação32.
O núcleo essencial da liberdade de informação jornalística, em ra-
zão de sua relevância aos regimes democráticos, vem protegido consti-
tucionalmente, uma vez que o legislador constituinte afirmou por meio
do art. 220, caput e § 1º, a impossibilidade de que a manifestação do
pensamento sofra restrições, mas há o dever de observação aos demais
direitos e valores constitucionalmente protegidos e que a liberdade de
informação jornalística também não sofrerá embaraços por meio de ati-
vidade legiferante, mas não a afastou do conciliar com a proteção dos
direitos fundamentais expressos no próprio artigo e demais valores e
princípios constitucionais.

32 “Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob


qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o dispos-
to nesta Constituição.
§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberda-
de de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o
disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
(...)
Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão
aos seguintes princípios:
I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente
que objetive sua divulgação;
III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentu-
ais estabelecidos em lei;
IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.”

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Houve, portanto, a manifestação explícita do legislador constituin-
te de não permitir ao legislador infraconstitucional33 e à administração
pública um atuar que pudesse desconfigurar direito que sustenta regime
democrático e, por consequência, proteger seu núcleo essencial, qual
seja a participação ativa na vida de cada cidadão para que seu desenvol-
vimento possa se dar de forma completa e não truncada ou manipulada,
pois o mesmo, quando tem acesso às informações, passa a ser capaz de
emitir juízo valorativo e ter a autonomia necessária e imanente ao pro-
cesso democrático34.
Os limites a tal liberdade encontram-se no texto constitucional, de
maneira expressa ou decorrentes do próprio sistema constitucional, e
são aferíveis por meio da interpretação da Constituição que preserve sua
Supremacia e Unidade. Portanto, ainda que não haja a manifestação
expressa de conciliação com os princípios fundamentais do Estado bra-
sileiro, é a forma de se permitir concreta proteção da Constituição e de
sua harmonização35. Segundo Konrad Hesse36, é a interdependência dos

33 Em 30 de maio de 2009, no julgamento da ADPF 130 Supremo Tribunal Federal,


por maioria de votos, revogou a Lei de Imprensa, Lei n. 5.250/67, o que demonstra a
impossibilidade de a atividade legislativa infraconstitucional atribuir limitações à liberda-
de de informação jornalística. Os votos proferidos pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes
e pela Ministra Ellen Gracie são compatíveis com a tese de que somente os locais em que
a Constituição reservou ao legislador infraconstitucional a manifestação e regulação é
que poderiam ser mantidos artigos da Lei de Imprensa, em especial o direito de resposta
que, apesar de descrito de maneira expressa pela Constituição, conferiu tal possibilidade
de regulação por meio de lei, e a mesma trazia os parâmetros de sua execução.
34 A Informação deve ser analisada em seu tríplice aspecto, ou seja, o direito de infor-
mar, de se informar e de ser informado, sendo que nenhuma dessas facetas pode ser
afastada, sob pena de não termos uma informação que corresponda com a realidade fáti-
ca e que nos permita escolher os caminhos de nossas vidas, individual ou coletivamente.
35 “Desse modo, caracterizada a colisão, cumpre ao exegeta conciliar os valores em
confronto. Segundo esse raciocínio, a interpretação não poderá negar vigência e aplica-
bilidade a nenhum dos direitos em colisão, pois que sempre haverá uma esfera mínima
para seu exercício legítimo. Ademais, o sacrifício de parcela do significado semântico
de um direito fundamental só pode ter sua razão de ser depositada na necessidade de
preservação de outro direito ou valor constitucional...” (ARAUJO, Luiz Alberto Da-
vid; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Op. cit., p. 124).
36 Escritos de derecho constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales,
1992, p. 48.

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elementos constitucionais e uma interpretação que evite contradições
entre as disposições da Constituição o que deve prevalecer, pois de tal
maneira se preservam direitos fundamentais e valores constitucionais
que possam, no plano concreto, colidir.
Edílson Pereira de Farias repete o pensamento de Robert Alexy e
afirma que “a afetação de um direito só é justificável pelo grau de impor-
tância de satisfação de outro direito oposto”37, portanto, o juízo de pon-
deração sempre deve ser realizado no plano fático, que envolva uma si-
tuação concreta em autêntica colisão de direitos, local de aplicação do
princípio da hermenêutica constitucional denominado concordância
prática ou cedência recíproca38.
Há duas formas de colisão com o direito fundamental da liberdade
de informação jornalística. São elas previstas de maneira expressa pelo
texto constitucional, ou seja, os direitos fundamentais explicitados no
§1º do art. 220, (os do art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV, com destaque à
proteção da informação, ao dever da informação e aos direitos da perso-
nalidade), ou por meio da fórmula genérica do caput do art. 220, qual
seja nenhuma informação é passível de sofrer restrições, mas deve-se
observar o disposto na Constituição. Também à informação jornalística
tal limite deve se impor.
Os parâmetros expressos ficam mais fáceis de serem aferidos pelo
intérprete da Constituição, mas trabalhar-se com uma cláusula genérica
torna, em princípio, dificultada a tarefa do exegeta, mas tal dificuldade
deve ser afastada pelo pensamento de manutenção da unidade e harmo-
nização da Constituição. Uma possível solução a tal cláusula que impli-
ca em observar-se o disposto constitucionalmente seria um olhar atento
aos princípios e valores fundamentais adotados por nosso Estado, den-
tre eles o princípio democrático e os fundamentos da cidadania e digni-
dade da pessoa humana.
Ao se afirmar como princípio fundamental do Estado brasileiro o
princípio democrático, deve-se evidenciar sua íntima conexão com a

37 Op. cit., p. 98-99.


38 Cf. ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Op. cit.,
p. 86-87.

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liberdade de informação jornalística e publicizar seu grande papel na
forma­ção do cidadão, em especial no aspecto político, em sua autode-
terminação. Somente por meio de informações que efetivamente cor-
respondam à realidade fática é que se afirma a democracia e conse-
quente proteção da cidadania e dignidade de cada um de nós. Houve
reforço pelo próprio texto constitucional ao afirmar de maneira ex-
pressa a todos o acesso à informação39, portanto, há o dever de infor-
mar e de maneira correta e adequada.
Todos os atores devem estar em condições de participação no pro-
cesso democrático de maneira equilibrada, que propicie a igualdade efe-
tiva em suas escolhas, para tanto o processo educativo formal e o infor-
mal não devem falhar. Tanto nos bancos da escola40 quanto no
ambiente social41, e também por meio da informação jornalística, deve
haver a premissa do acesso à informação que permita o viver em socie-
dade de maneira harmoniosa, com o reconhecimento do consenso.
Violência exacerbada que ocupa parcela tão volumosa das informa-
ções, algumas vezes ultrapassando dias e semanas, deve chamar a atenção
para seu efeito maior, “a não informação” e o desrespeito não só ao direito
fundamental em apreço, como, também, ao princípio democrático, am-
bos em seu núcleo essencial. É o macular-se a possibilidade de agir e da
consequente proteção da cidadania e dignidade da pessoa humana.
Se não foi permitida, constitucionalmente, a criação de embaraços
ou a possibilidade de censura42, com muito menos razão foi dado aos
responsáveis pela veiculação das informações escolhas que nos levem ao
não acesso de todas as informações, ou, ainda, às versões que dão inte-
gridade à cidadania e democracia, há o dever de informar e de maneira

39 Art. 5º, XIV: “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardo do sigilo da


fonte, quando necessário ao exercício profissional”.
40 Anísio Teixeira afirma os bancos da escola como o “grande atelier da educação”, mas
devemos lembrar que o processo educativo ocorre em todos os momentos de nossas vidas.
41 “Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promo-
vida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento
da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”
42 Nesse sentido: Celso Ribeiro Bastos, Ives Gandra da Silva Martins, Vidal Serrano
Nunes Júnior, Aluísio Ferreira, dentre outros.

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que respeite a completude das informações e não versões. Ressalte-se
que a atividade judiciária tem o papel de identificar e chamar à respon-
sabilidade aqueles que ofenderam ao regime constitucional da informa-
ção, portanto, não é cabível em regime democrático, aos veículos de
comunicação ou aos donos das empresas jornalísticas, controlar o que
deverá ser veiculado, especialmente se tal controle decorre da preten-
são do alcançar mais pontos no ibope e publicidades lucrativas, ou
pela motivação comercial da venda de mais jornais. Não há dúvidas de
que em tal circunstância deve haver intervenção estatal por meio da
atividade judiciária, pois houve um deslocar do dever da informação
para regras de consumo.
Cabe a cada intérprete da Constituição privilegiar o princípio de-
mocrático com a chamada à responsabilidade dos agentes violadores
de tal princípio, e não a falta de informação decorrente de supervalo-
rização de violência e catástrofes. Também ao cidadão é possível a ma-
nifestação em sua defesa, no caso, excesso de violência e falta de infor-
mação que, pela uniformidade e exclusividade na veiculação, são
capazes de desviar grande parcela de nossa atenção a todo restante que
ocorre em nossa volta.
Destaque aos princípios da radiodifusão descritos de maneira ex-
pressa no art. 221 da Constituição, que afirmam a preferência às finali-
dades educativas e informativas e o respeito aos valores éticos e sociais
da pessoa e da família.
A efetiva proteção do núcleo essencial dos direitos fundamen-
tais, especificamente da liberdade de informação jornalística, e a
consequente manutenção dos princípios fundamentais do Estado
brasileiro, democrático, cidadania e da dignidade da pessoa humana,
só se concretiza por meio da participação de tal proteção, no plano
concreto, de todos os envolvidos, sejam os responsáveis pela infor-
mação com o real assumir da função social de sua atividade, espe-
cialmente a educativa, de formação do cidadão, e aos intérpretes da
Constituição, sejam eles os integrantes de todas as funções do poder
e os cidadãos, a missão de manter a integridade da Constituição que
elevou o ser humano a seu valor maior, como o fim último de todo
agir em nosso Estado.

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4 Referências bibliográficas

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Avanços e dilemas dos direitos
humanos no mundo contemporâneo

Luís Antônio Francisco de Souza

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (1998), com Estágio Sanduíche
na Universidade de Toronto, Canadá (1995-1996). Mestre em Sociologia pela
Universidade de São Paulo (1992). Pesquisador na área de Polícia, Violência Policial,
Controle Externo sobre Polícia, Políticas de Segurança Pública, Violência e Direitos
Humanos. Professor Assistente Doutor – Departamento de Sociologia e Antropologia
da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp, campus de Marília.

Hoje, o próprio conceito de democracia é inseparável do con-


ceito de direitos do homem. Se se elimina uma concepção in-
dividualista da sociedade, não se pode mais justificar a demo-
cracia do que aquela segundo a qual, na democracia, os
indivíduos, todos os indivíduos, detêm uma parte da sobera-
nia. E como foi possível firmar de modo irreversível esse con-
ceito senão através da inversão da relação entre poder e liber-
dade, fazendo-se com que a liberdade precedesse o poder?
(Norberto Bobbio, A era dos direitos, p. 101.)

1 Introdução

Acabamos de comemorar sessenta anos da Declaração Universal


dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas. É sem dúvi-
da uma data significativa para a comunidade internacional e para os
diferentes atores sociais. Ela permite um momento de balanço e reflexão
em torno dos avanços conquistados e também uma visada para o futuro
diante dos enormes desafios que ainda persistem em diversos países do
mundo em relação às violações de direitos humanos e à persistência de

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diversas formas de tirania. Evidentemente, o quadro político internacional
mudou um pouco e uma nova era de afirmação dos direitos humanos pode
se anunciar, embora sempre seja necessária uma certa dose de cautela.
No mundo de hoje, os direitos humanos estão fortemente legiti-
mados e fazem parte de todos os acordos multilaterais nas mais dife-
rentes áreas de atuação dos Estados e da comunidade internacional.
Organizações internacionais fazem balanços periódicos dos avanços e
cada vez mais os direitos humanos são exigidos nos acordos multilate-
rais. Os direitos humanos continuam sendo ampliados e seus instru-
mentos mais importantes continuam sendo aperfeiçoados para fazer
face aos desafios que emergem, sobretudo, no contexto da globaliza-
ção da economia mundial, que aponta para maior integração econô-
mica e maior mobilidade social.
Os desafios ficam por conta das violações sistemáticas dos direitos
humanos e da persistência de imensas desigualdades entre países e regiões.
Ao mesmo tempo, vários países de democracias consolidadas, no con-
texto de luta contra o terrorismo e do medo em torno da criminalidade
crescente, têm tormado iniciativas no sentido de restringir os direitos,
principalmente de imigrantes, estrangeiros e suspeitos de terrorismo.
Nos países de democracia recente ou pouco consolidada, persistem os
velhos problemas sociais ligados à desigualdade e à ineficiência do Esta-
do em tornar efetivas as proteções e garantias do Estado de Direito e as
regras constitucionais vinculadas aos direitos fundamentais.
O presente artigo procura apontar para uma perspectiva positiva
em relação ao futuro, ressaltando a importância histórica dos direitos
humanos e de novos instrumentos disponíveis para sua ampliação e
efetivação. Mas também ressalta as dificuldades e dilemas para essa
mesma efetivação já anunciados na obra de alguns importantes teóri-
cos da modernidade.

2 Direitos individuais como fonte dos direitos


humanos

O surgimento do Estado Moderno foi consentâneo ao surgimento


de um discurso jurídico no qual o indivíduo tornou-se fonte de poder e

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titular de direitos. Os direitos naturais, e não mais os deveres, passaram
a ser considerados fundamento da vida política e jurídica. Essa foi a base
da ideia de Estado de Direito, na qual a relação fundamental entre go-
vernante e governados passou a privilegiar o ângulo dos governados.
Assim nascem os chamados direitos públicos subjetivos, que caracteri-
zam o Estado de Direito, completando-se a passagem final do ponto de
vista do príncipe para o ponto de vista dos cidadãos (Bobbio, 1992).
As primeiras noções concernentes aos direitos dos cidadãos emer-
gem na Inglaterra, por volta da Revolução Gloriosa (1685-1689), afir-
mando liberdades políticas, as franquias presentes no habeas corpus e a
instituição do Júri, consubstanciadas na Bill of Rights (1689). O pensa-
mento de John Locke (1632-1704), principalmente o Segundo tratado
sobre o governo, originalmente escrito em 1690, foi fundamental para a
fundamentação política da noção de direitos como defesa dos cidadãos
contra a monarquia. No contexto do século XVIII, a Declaração dos
Direitos do Estado da Virgínia, na independência americana de 1776, e
a própria Constituição dos Estados Unidos (1791) incorporam artigos
sobre direitos fundamentais. A Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão (1793), elaborada no contexto da Revolução Francesa
(1789), de forma mais abrangente, declara a universalidade desses di-
reitos. Nas declarações há a afirmação de uma noção de direitos natu-
rais e imprescritíveis do homem e do cidadão. Elas irradiam noções
presentes no pensamento filosófico das Luzes, particularmente Jean-
Jacques Rousseau (1712-1778) e Immanuel Kant (1724-1804) e
constituem exemplos de direitos de cidadania como anteparo ao po-
der excessivo das monarquias absolutistas. Elas fundam-se em princí-
pios de autonomia e de aperfeiçoamento humano. Nestas declarações
fundamentais, os direitos referem-se à liberdade, à propriedade e à
resistência contra a opressão. As duas declarações também reconhece-
ram a igualdade e o direito ao voto, como componentes indispensáveis
à vida política (Bobbio, 1992).
Evidentemente, os primeiros direitos dos indivíduos foram os direi-
tos civis e políticos, conhecidos como direitos de primeira geração. A
partir dos séculos XVIII e XIX, a proteção dada pelo Estado à proprie-
dade e à vida alarga-se e abrange novos direitos. Esses direitos emergem

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no contexto conturbado da Revolução Industrial enquanto princípios
que refletiam as lutas das classes trabalhadoras, exploradas pelas fábricas
capitalistas. Diferentemente dos direitos civis e políticos, esses direitos
pressupunham a ação e o reconhecimento do Estado junto às condições
de vida dos operários urbanos, pressionados pelos salários baixos, pela
precariedade das condições de vida e pelas altas taxas de doenças e mor-
talidade. Esses direitos econômicos e sociais, considerados de segunda
geração, aparecem como prolongamento dos direitos cívicos, mas man-
têm um contraste com eles à medida que apontam para uma noção
nova de direitos coletivos.

3 Direitos coletivos e multiplicação dos direitos


humanos

Os conceitos que emergiram ao longo dos séculos XVII, XVIII e


XIX de igualdade, de liberdade, propriedade e de bem-estar articulam
nossa concepção atual de direitos humanos, pois estão na base de nossa
convivência social. Há uma longa discussão sobre as dificuldades em
conciliar os direitos da primeira geração com os direitos da segunda.
Essa situação não se resolve completamente com a emergência dos direi-
tos de terceira geração (direito à paz, à autodeterminação dos povos e ao
meio ambiente), no contexto do pós-Segunda Grande Guerra.
Ao contrário, os conflitos entre essas noções contraditórias de direi-
tos humanos ficaram inscritos na história dos documentos da Organiza-
ção das Nações Unidas (ONU), particularmente no Pacto Internacional
sobre Direitos Civis e Políticos e no Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966. A discussão sobre es-
ses dois pactos afirma que os direitos neles consagrados são de espécies
distintas. Os primeiros são de aplicação imediata. Os segundos são pro-
gressivos. Ou, ainda, que os primeiros contemplam liberdades (são au-
toaplicáveis) e os segundos implicam em poderes (dependem do papel
desempenhado pelos Estados e pelas políticas públicas).
Apesar da polêmica, é inegável que desde 1945 o mundo experi-
menta um importante período de reconhecimento dos direitos huma-
nos. Os direitos humanos foram inicialmente fundados no direito natural.

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Em seguida, os direitos humanos foram fundamentados na especial
concessão dos Estados-membros, partícipes da comunidade internacio-
nal. Após a Segunda Grande Guerra, os direitos humanos, embora per-
manecessem ligados à ideia do direito de nascimento, passaram cada vez
mais a ser considerados direitos históricos, afirmados pela via política,
em convenções e tratados multilaterais, tendo na ONU sua principal
fiadora (Lafer, 1999).
A Declaração Universal dos direitos humanos da ONU, de 1948,
articula, na verdade, quatro níveis de princípios: (a) à dignidade natu-
ral das pessoas, (b) à proteção das leis e à não discriminação, (c) ao
exercício da cidadania política, bem como (d) ao bem-estar, à educa-
ção e à cultura.
Exemplo do primeiro princípio está no artigo 1º : Todos os ho-
mens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de ra-
zão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de
fraternidade.
Exemplo do segundo pode ser visto no artigo 7º: Todos são iguais
perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da
lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação
que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal
discriminação.
Exemplo do terceiro está no artigo 21: I- Todo ser humano tem o
direito de tomar parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio
de representantes livremente escolhidos. II- Todo ser humano tem igual di-
reito de acesso ao serviço público de seu país. III- A vontade do povo será a
base da autoridade do governo, esta vontade expressa em eleições periódicas
e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente
que assegure a liberdade de voto.
Exemplo do quarto pode ser visto no art. 25, I: Todo ser humano tem
direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e
bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e
os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desempre-
go, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de
subsistência em circunstâncias fora de seu controle. E no art. 26, I- Todo ser
humano tem direito à instrução.

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Os direitos humanos, portanto, deixaram de estar referidos ao
direito natural e ao direito dos Estados, passando a compreender
uma cidadania global. A partir dessa definição dos direitos humanos
como fundamento do Estado e mesmo das relações internacionais, a
Declaração Universal dos direitos humanos afirma a universalidade
dos direitos humanos. A afirmação da universalidade trouxe como
consequência certa resistência aos direitos humanos como sendo
uma imposição dos países ocidentais, os mesmos países que assumi-
ram fortemente políticas imperialistas que colocaram muitos povos
em condições subumanas. Entretanto, o fato é que a Declaração co-
locou obstáculos à perpetração de violações contra pessoas e povos,
como havia ocorrido durante a Segunda Grande Guerra. Adicional-
mente, ela abriu espaço para uma nova gramática de direitos que
permitiu aos povos e às pessoas do mundo todo exigir tratamento
digno, humano e igual por parte de seus Estados e de outros Estados
(Alves, 1997).
Diante da resistência, o debate que emergiu caminhou na direção
da afirmação da relatividade das culturas diante da universalidade dos
direitos humanos. Esse debate não foi totalmente superado, embora a
afirmação da diversidade cultural não deva ser considerada como obstá-
culo para a defesa incondicional da dignidade humana em todo e qual-
quer lugar em que ela estiver ameaçada (Santos, 1997).
Os direitos consagrados na Declaração Universal, de fato, compre-
endem um momento histórico de enorme significação na história hu-
mana e, dando razão a Norberto Bobbio (1992), eles coroam uma ver-
dadeira era dos direitos. É importante reforçar essa constatação. Os
direitos humanos não são apenas mera expansão dos direitos nacionais.
Os direitos humanos expressam um tipo muito peculiar de direito, pois:
1) os sujeitos não são os Estados, mas os cidadãos do mundo; 2) a inte-
ração entre os governos visa proteger os interesses coletivos; 3) o trata-
mento internacional dos direitos humanos permite modificar a noção
de soberania (Alves, 1994, p. 43).
Dando razão a Norberto Bobbio (1992, p. 20), para quem a afirma-
ção moderna dos direitos humanos implica um tipo de escolha que so-
mente pode ser plenamente moral:

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[São] bem poucos os direitos considerados fundamentais que não entram
em concorrência com outros direitos também considerados fundamen-
tais, e que, portanto, não imponham, em certas situações e em relação a
determinadas categorias de sujeitos, uma opção. Não se pode afirmar um
novo direito em favor de uma categoria de pessoas sem suprimir algum
velho direito, do qual se beneficiavam outras categorias de pessoas: o reco-
nhecimento de direito de não ser escravizado implica a eliminação do di-
reito de possuir escravos; o reconhecimento do direito de não ser tortura-
do implica a supressão do direito de torturar. Nesses casos, a escolha
parece fácil; e é evidente que ficaríamos maravilhados se alguém nos pedis-
se para justificar tal escolha (consideramos evidente em moral o que não
necessita ser justificado).

Não apenas a universalidade vem sendo defendida como um dos


grandes pilares dos direitos humanos, mas também e complementar-
mente a ideia da sua inclusividade, à medida que os direitos humanos
são afirmados como grande antídoto contra toda e qualquer forma de
tirania, opressão e violência. Essa ideia já foi expressa de forma bastante
persuasiva por Hannah Arendt, na ideia de direitos humanos como
direito a ter direitos (Lafer, 2006).

4 Direitos humanos como antídoto à violência

Qualquer discussão sobre direitos humanos deve levar em conta o


problema da persistência da violência e dos obstáculos à democracia
(Caldeira, 2001; O’Donnell, 1999). A afirmação de direitos de
cidadania, a reconstituição da ética na administração pública e o processo
de legitimação dos direitos humanos são focos de uma nova concepção de
política, presente nas discussões sobre formação do Estado desde fins do
século XVII. A discussão, presente nos clássicos da política (e em autores
diversos como Friedrich Nietzsche, Karl Marx, Sigmund Freud e Max
Weber), é uma forma complexa de discutir o processo (os limites e as im-
possibilidades) de conversão da violência em conflito, em política e em paz.
O debate sobre direitos humanos é amplo e aqui não é o caso de
retomá-lo. Por enquanto, bastaria dizer que os direitos humanos remontam
a uma lógica política segundo a qual a base de sustentação do poder

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político não é o Estado, mas, antes, são os cidadãos. Nesse sentido, os
cidadãos devem ser protegidos e essa proteção deve ser integral, na for-
ma de uma plêiade de direitos civis, políticos, sociais, culturais e econô-
micos. E mais ainda, os direitos humanos não devem ser compreendi-
dos de forma fragmentária, um direito limitando necessariamente
outros direitos. Ao contrário, todos os direitos, por mais excludentes
que possam parecer, concorrem para o crescimento das sociedades e
para o amadurecimento da política (Lafer, 2006).
Por isso, a democracia é condição essencial para a realização e satisfa-
ção das necessidades e dos direitos das pessoas, em todos os aspectos da
vida. O poder político, nessa lógica, não faz uso desnecessário da força,
pois ele é espaço de controle da violência. O poder político não pode ser
fonte de violência e, assim, precisa corrigir as dissimetrias sociais e as dife-
renciações de direitos. Os direitos humanos são instrumentos políticos
por excelência na medida em que têm como função primordial, ao prote-
ger os cidadãos contra os excessos do Estado, limitar o poder e expulsar a
violência da lógica do sistema democrático. O exercício do poder, nas
democracias, exige controles democráticos efetivos e a ampliação do re-
pertório de direitos. A violência não pode ser contida pelo aumento do
poder do Estado sobre a sociedade. A ampliação da força não leva à disso-
lução da violência (Wacquant, 1999; Bauman, 1999). A violência
somente pode ser contida mediante o reconhecimento e a aplicação dos
direitos humanos (Lafer, 2006; Arendt, 2004).
Toda e qualquer forma de enfrentamento da violência depende da
articulação entre Estado e sociedade, entre as diferentes esferas de gover-
no, entre as diferentes organizações que compõem a máquina burocrática
do Estado. A contenção da violência, nas suas mais contraditórias formas,
depende da valorização dos aspectos participativos da cidadania e um
compromisso efetivo com a valorização dos direitos humanos como com-
ponente essencial de qualquer sociedade democrática (Mbaya, 1997).

5 Teoria dos direitos humanos como teoria do poder

Os desafios que a comunidade internacional enfrenta para consoli-


dar os direitos humanos impõem a necessidade de rever brevemente a

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teoria social sobre a violência na modernidade (Wieviorka, 1997).
Uma das principais contribuições para a discussão sobre a violência foi
de Hannah Arendt (1970). Para a autora, o que define e separa violência
de poder é a dimensão política, ausente na primeira, presente no segun-
do. Para ela, é preciso fazer várias distinções até chegarmos a uma defi-
nição minimamente satisfatória de violência. Por exemplo, poder é
uma ação humana orquestrada, baseada no princípio da representação
e delegação políticas e se consubstancia no poder político do Estado
soberano. O poder não pode ser confundido com a potência. A potên-
cia é, digamos assim, a força de um homem e de uma coletividade e
que pode se voltar contra o poder e pode, inclusive, ser útil para a
ampliação do poder. A potência, no entanto, é facilmente suplantada
pelo poder. A potência é, sem dúvida, uma energia que pode ser utili-
zada, mas o fato mais marcante é que está em forma latente. A força é
a energia liberada pelas forças da natureza, sempre lembrada em mo-
mentos de catástrofes naturais, mas rapidamente esquecidas. No coti-
diano, a força da natureza surge como a energia capaz de produzir
coisas que são benéficas à sociedade. A força também é a energia li­
berada pelos movimentos coletivos quando estes desejam que suas
reivindicações sejam ouvidas e quando clamam por reconhecimento
político. A potência e a força são costumeiramente consideradas sinô-
nimos de violência.
A autoridade, que é uma força política, caracteriza-se pela possibili-
dade de ausência do uso da força, pelo reconhecimento do poder por
parte daqueles que têm a obrigação da obediência. A autoridade pode
ser passada de uma pessoa ou de uma instituição para outra, não é en-
carnada na figura de uma única pessoa, que governa com base no poder
carismático, por exemplo. A autoridade, em seu exercício, não requer o
uso sistemático e necessário da coerção. O poder difere da potência e da
força na medida em que está intimamente articulado à autoridade e,
assim, tem como característica a contenção da potência e da força e sua
transferência, digamos assim, para fins úteis e controlados. A violência
nesse sentido e por exclusão nada mais seria do que a instrumentalização
da força com vistas à sua ampliação. A violência sempre tem um ele-
mento disruptivo, é sempre uma ameaça à autoridade e ao poder.

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Em outros termos, essas distinções operadas por Arendt servem
para afirmar que na essência de todo governo está o poder, mas sua
eficácia está na recusa em usar o poder como força, como potência ou
como violência. A característica básica do poder é a persuasão, o uso da
linguagem como meio de convencimento e esclarecimento mútuos. O
poder é a essência do governo, há uma relação intrínseca entre poder e
governo, entre autoridade e poder. A violência é ameaça, ela não cons-
titui a política, ao contrário, ela é o fim da política. Nesse sentido, o
poder, que não pode ser mais considerado símile de repressão, é neces-
sário para a constituição do social e, assim, é justificável e legítimo. A
violência, como antípodas do poder, pode até ser utilizada com o fim
de aumentar o poder, mas ela invariavelmente corrompe o poder e o
assimila à força pura e simples. A violência pode ser justificável (dentro
da lógica que os fins justificam os meios, como no caso de uma guerra,
da ação contra revoltas ou contra criminosos armados), mas nunca le-
gítima (porque sempre é um excesso indevido da lógica do direito)
(Arendt, 2003).
Para Hannah Arendt (2004), portanto, a forma mais extrema de
poder é “todos contra um” e a forma mais extrema de violência é “um
contra todos”. Nessa definição, sentimos a ressonância da ampla pesqui-
sa histórica sobre as origens do totalitarismo. O poder de um tirano
converte-se em violência, pois é justificável manter o poder contra quem
pretende usurpá-lo. A violência de um movimento revolucionário (no
caso mais patente das grandes revoluções do século XVIII) pode ser
convertida em poder. A luta pela justiça tem o privilégio de fazer com
que a violência torne-se justificável e legítima, desde que rapidamente os
revolucionários abram mão da violência, dos meios violentos, em prol
da autoridade reconstituída mediante processo de delegação e legitima-
ção. Evidentemente, tanto o poder político como a violência de um
déspota podem ser passíveis de ampliação, mas a violência cessa quando
entra no mundo do direito e o poder cessa quando abre mão do direito.
Outro autor que deu importante contribuição para essa discussão
foi Michel Foucault (1987; 1999). Para ele, as relações sociais são carac-
terizadas como relações de poder (toda relação social é permeada por
estratégias de dominação, de controle, por tentativas de interferir sobre

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a ação de outras pessoas ou mesmo sobre o pensamento de outras pes-
soas). O poder não pertence à política, no sentido da política estatal. O
poder pertence ao mundo cotidiano, às relações entre os indivíduos.
Entre um pai e um filho, entre um professor e um aluno, entre um ho-
mem e uma mulher há relações de poder. As relações de poder são de
certa forma esquecidas pela nossa sociedade porque nós tendemos a
acreditar nas ideias e nos saberes produzidos a partir dessas relações. As-
sim, não vemos poder na relação entre pai e filho porque acreditamos
que a relação é dada pela natureza ou pela vontade de Deus, assim, a
relação é mistificada e considerada sagrada. Não vemos relações de po-
der entre homem e mulher porque acreditamos que as diferenças sexuais
são naturais, e o homem foi provido de um maior quantum de força do
que a mulher, o que dá a ele certas vantagens e certos direitos etc. O
mesmo vale para outras relações que até são constituídas por saberes
mais especiais, produzidos pela ciência, como é o caso do poder do mé-
dico sobre o paciente, do juiz sobre o condenado, do educador sobre o
educando etc. Os saberes reforçam as práticas de poder e ampliam o
poder de uns sobre outros. Nesse sentido, o poder não reprime, não si-
lencia, não elimina as pessoas. Foucault e Arendt coincidem nesse pon-
to, o poder é constitutivo do social. Somente há relações de poder entre
pessoas livres. A violência, se pode ser considerada como algo diverso do
poder, é um instrumento utilizado em relações sociais desiguais: ela so-
mente ocorre quando um dos polos da relação não está gozando de uma
situação de liberdade. Assim, a relação entre senhor e escravo, entre o
torturador e o torturado, entre o soldado e a vítima de um campo de
concentração são relações de violência. A violência requer a supressão
de direitos, a desumanização do outro. A relação violenta pode ser con-
vertida em relações de poder, desde que um dos polos da relação ganhe
status jurídico de liberdade. Afinal, não é esse o caso nos dias de hoje
nas relações entre diferentes atores, grupos e indivíduos? Os presos, as
crianças, as mulheres não são considerados escravos, ao contrário, são
livres e pela via do poder apenas precisam ser tutelados. Não somente
há afinidade entre poder e violência, entre guerra e política, como tam-
bém o poder é extensão da violência e a política é extensão da guerra,
por meios diferentes.

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O que está em jogo, portanto, são as formas por intermédio das
quais se obtêm a sujeição e a domesticação dos outros. Em termos mais
atuais, o que está em jogo é o direito de punir e não a segurança do
corpo social e muito menos a garantia de direitos. O problema das prá-
ticas jurídicas (soberania) e das práticas punitivas (disciplina ou norma)
é que elas estão relacionadas com a constituição de pessoas obedientes e
não apenas de pessoas autônomas. Assim, a política moderna nasce sob
o signo de uma visceral contradição entre liberdades jurídicas (poder e
direitos) e práticas disciplinares (controle, segregação e violência). Para
Foucault, o que está na base das teorias da soberania é o poder de punir
e esse poder era compreendido como poder de morte (do condenado,
do criminoso, do escravo). Na soberania, o poder é representado como
poder de morte, de multiplicação das mortes. Nas democracias, o poder
se volta para o direito de vida, enquanto biopoder. Trata-se de mudar a
qualidade da vida, de tirar proveito das energias vitais, de ampliar as
capacidades da vida para dar aos indivíduos uma utilidade social. As
pessoas são vistas como uma massa de seres viventes que têm como ca-
racterística a força produtiva, a força de trabalho, a capacidade de pro-
dução de riquezas. O biopoder inclui as pessoas, enquanto coletividade,
nos cálculos do poder político. As pessoas passam a ser governadas para
que se possa obter o máximo de suas energias vitais. O que considera-
mos violência é parte integrante desse processo no qual o poder se con-
verteu em biopoder. O poder sobre a vida é um dos enigmas das socie-
dades democráticas. Não se trata de ampliar o poder do governo por
meio da eliminação física do súdito. Trata-se agora da ampliação do
poder pela via da ampliação da capacidade produtiva dos indivíduos. O
poder no mundo moderno é um poder que pretende dizer às pessoas
como elas devem viver suas vidas e pretende oferecer a elas os meios por
intermédio dos quais essa vida é possível e desejável.
Giorgio Agamben (2002) afirmou que a concepção de Michel Fou-
cault deve ser articulada às ideias de Hannah Arendt. As duas concep-
ções se iluminam mutuamente. A noção de poder disciplinar e de bio-
poder pode ser ampliada quando considerada na perspectiva do resgate
da teoria do poder político. De qualquer forma, a tensão existente entre
os dois autores reforça a ideia de que a violência não pode ser totalmente

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convertida em poder político e que o poder político não pode abrir mão
de forma absoluta da violência como instrumento de pacificação. Con-
tradição das contradições: a paz é instaurada mediante a guerra, ou, em
outros termos, a política é a extensão da guerra por outros meios. Entre
poder e violência, há mais semelhanças e afinidades do que gostaríamos
de pensar nos dias de hoje. A política é constituída não como pacifica-
ção da violência, mas sim como esquecimento da violência fundadora.
No cerne da operação que transformou a água em vinho, na história
do Ocidente, estão os mecanismos de sofrimento corporal expressos nos
sacrifícios e nos rituais de sagração.
Em outros termos, na base da vida política ocidental, está o cruza-
mento entre o poder soberano e a sacralização do corpo. Há uma parti-
lha entre o corpo nu, a vida nua, desprovida de qualidades e consequen-
temente de proteções, e a biopolítica, o corpo constituído enquanto
parte integrante da política. A condição da vida política implica reque-
rer a definição de uma vida que vale a pena ser vivida, de uma vida
qualificada. A noção contrária de uma vida nua, que não merece ser vi-
vida, está presente na reflexão filosófica da Antiguidade Clássica. Entre
os gregos, enquanto zoé remetia à vida natural, bíos indicava uma vida
qualificada. A vida natural era excluída do mundo da política, local da
bíos. Agamben argumenta que o poder soberano no Ocidente explicitou
e aprofundou o vínculo secreto que, paradoxalmente, se estabeleceu na
simetria entre a soberania e a vida nua. A soberania emerge na medida
em que precisa definir uma vida politicamente desqualificada, sobre a
qual a violência precisa ser exercida. O soberano deixa de praticar vio-
lência, e cria o poder político, na medida em que cria em torno da vida
qualificada todo tipo de proteção, proteção essa negada aos portadores
de uma vida politicamente nua. É como se a política sempre implicasse,
para sua existência, mecanismos de exclusão e de segregação. O lado
oculto, mas nem por isso menos essencial da constituição do poder po-
lítico, é a violência que incide sobre o corpo dos súditos desprovidos de
direitos. Parece que esse paradoxo não foi resolvido nem mesmo pelas
modernas democracias ocidentais, que continuam produzindo formas
cada vez mais mortíferas e terríveis de suplício dos corpos de seus cida-
dãos, constantemente rebaixados à condição de homine sacri.

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O autor encontra, numa figuração do direito romano arcaico, a
alegoria mais acabada dessa condição contraditória: o homo sacer, o
homem sagrado, com seu corpo santificado, protegido. O homem sa-
grado é protegido e ao mesmo tempo expulso de qualquer proteção.
Aquele que assassinasse o homem sagrado, contraditoriamente, não
seria passível de sofrer condenação por homicídio! O desamparo do
homo sacer, não sacrificável e impunível, é uma das chaves para a com-
preensão da soberania moderna. O paradigma da política, o espaço de
exceção por excelência, onde os corpos santificados podem ser sacrifi-
cados sem que isso seja considerado uma afronta ao Direito Penal, é o
campo de concentração. O campo é a lembrança terrível desse proces-
so de inclusão exclusiva que levou à fundação da soberania e das socie-
dades modernas. Elevar o corpo à condição de elemento sagrado, pa-
radoxalmente, não garante a sua proteção, ao contrário, parece ser a
via mais rápida para o reconhecimento de que o corpo protegido per-
tence a alguém desprovido de vida qualificada. A sagração do corpo é
o primeiro passo para a morte do inocente, é o primeiro passo para a
desqualificação política dos sujeitos.
A morte, a dor, o sofrimento, os campos de concentração, as pe-
nitenciárias não são produtos de uma sociedade autoritária. O autor
lembra que os primeiros campos de concentração da Alemanha fo-
ram criados por governos socialdemocráticos. O campo sempre foi
situado fora de qualquer parâmetro. A própria Hannah Arendt afir-
mou que o campo não encontra precedente em nossa história políti-
ca. Agamben quer mostrar que o campo de concentração é um dos
fundamentos da política da soberania. A política se forma a partir de
um estado de exceção e depende da existência de corpos nus para re-
forçar seu domínio, seu poder e sua força. Hoje, parece que os cam-
pos estão se disseminando, ao contrário do que a ingenuidade quer
crer. Todos os espaços institucionais e sociais em que vidas são des-
qualificadas, em que os corpos são violados, em que as pessoas são
convertidas em corpos matáveis, teriam o estado de exceção como
referência e paradigma. Nesses espaços, a morte, a dor e a violência
não resultam em condenação dos agressores. O Estado moderno nas-
ce ao instituir regras de exceção, nasce ao partilhar os corpos dos ci-

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dadãos e ao incidir sobre esses corpos direitos ou violência, dupla
mortalha, dupla fatalidade.
Nos antigos e nos novos campos de concentração, as estratégias de
poder e os discursos normalizadores restringem os direitos de cidadania.
Quem tem uma vida que não merece ser vivida torna-se objeto da vio-
lência. A violência, portanto, é uma cunha que desenha os limites de
inclusão/exclusão da política. Inquietante então pensar que os instru-
mentos jurídicos do poder de estado têm como produto principal exa-
tamente a violência que julgamos ser excessiva, desnecessária, que deve
ser abjurada. Descoberta inquietante, que faz a crítica da teoria políti-
ca do contrato social e da razão iluminista presente no discurso jurídico:
o alvo da política não é a liberdade, é o corpo, sobre o qual incide uma
violência considerada necessária!
O conceito de violência deve ser deslocado do senso comum,
pois não somente reforça o quadro cognitivo de referência (segundo
o qual a violência é expulsa da política e quem comete atos de vio-
lência é por natureza violento), mas principalmente porque acena
para as mesmas estratégias que merecem ser criticadas: a violência
que merece repressão penal (a punição deve ser certa e implacável),
alguém que merece ser punido (e banido do convívio social) e al-
guém que merece compaixão (silenciado, pois sua dor não pode ser
compartilhada, nós podemos ser vítimas, mas não aceitamos essa
situação de fragilidade subjetiva).
A diminuição ou contenção da violência deve ser obtida median-
te práticas de direitos humanos incorporadas nas políticas públicas.
Os processos tradicionais de tomada de decisões e de implementação
de políticas devem ser repensados com base numa crítica à violência
e na aceitação de que os direitos humanos são seu principal antídoto.
É um longo caminho que pode levar à aceitação de que a não violên-
cia está ligada a todo um novo repertório de direitos e à conversão
desse repertório em políticas acessíveis a uma grande maioria. Não se
pode deixar que os contextos sociais façam emergir como solução
para o problema da violência a ampliação da força do Estado, na
forma do atual estado punitivo, e na deslegitimação dos direitos hu-
manos (Mesquita & Pinheiro, 1997).

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6 Direitos humanos e ações propositivas

O período posterior à Declaração Universal dos Direitos Humanos


foi marcado por guerras, por disputas de territórios, por conflitos étni-
cos e religiosos e pelo crescimento do crime organizado transnacional.
Mas também foi um período em que muitos povos passaram a reivindi-
car o direito à liberdade, à justiça, à autodeterminação, à democracia e
à igualdade étnico-racial. Durante sessenta anos, os direitos civis, políti-
cos, sociais, econômicos, culturais e ambientais passaram a ser conside-
rados imperativos dentro da comunidade internacional, como afirma a
Declaração e Plano de Ação da Conferência Mundial sobre direitos hu-
manos de Viena, de 1993, em seu artigo 1º:

A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma o compromisso


solene de todos os Estados de promover o respeito universal e a observância
e proteção de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais a todas
as pessoas, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, outros instru-
mentos relacionados aos direitos humanos e o direito internacional. A natu-
reza universal desses direitos e liberdades está fora de questão.
Nesse contexto, o fortalecimento da cooperação internacional na área dos
direitos humanos é essencial à plena realização dos propósitos das Nações
Unidas.
Os direitos humanos e as liberdades fundamentais são direitos naturais aos
seres humanos; sua proteção e promoção são responsabilidades primor-
diais dos Governos.
Todos os povos têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito,
determinam livremente sua condição política e promovem livremente o
desenvolvimento econômico, social e cultural.

Os direitos humanos, apesar das contradições, afirmam uma lógica


política segundo a qual a base de sustentação do poder político é a cida-
dania. Os cidadãos devem ser protegidos e essa proteção deve ser integral.
É nesse ponto que reside a importância da Conferência Mundial sobre os
Direitos Humanos de Viena, realizada em 1993. Na Declaração e no Pla-
no de Ação, elaborados pela Conferência, os direitos humanos não devem
ser compreendidos de forma fragmentária. Não é possível conceber um
direito limitando o exercício e a proteção de outros direitos.

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Ao contrário, todos os direitos, por mais excludentes que possam
parecer, concorrem para o crescimento das sociedades, para o amadure-
cimento da política e para o desenvolvimento humano. Os direitos hu-
manos, fundamentados no direito positivo interno e internacional,
tornaram-se instrumentos político-jurídicos cuja função primordial é
proteger os cidadãos contra os excessos do Estado, contra as injustiças
sociais, contra a discriminação, limitando o poder e expulsando a vio-
lência do sistema democrático.
Na concepção moderna de direitos humanos, o enfrentamento da
violência e das injustiças sociais deve ser feito mediante ações propositivas
e afirmativas, incorporadas nas leis e nas políticas públicas. Por último,
os direitos humanos afirmam a não violência, a paz, a tolerância univer-
sal e a aplicação de políticas acessíveis a todos os povos do planeta.
Ainda há muito dissenso em relação ao real significado e à amplitude
dos direitos humanos no âmbito das diferentes culturas e sociedades. No
entanto, é possível conceber que grande parte da humanidade tem aspira-
ções legítimas em torno das mudanças e em torno de uma ordem social
justa e equitativa. Essas aspirações estão cada vez mais sendo traduzidas no
esforço internacional de tornar os princípios dos direitos humanos instru-
mentos políticos de controle dos Estados e de aprimoramento da demo-
cracia, com desenvolvimento, justiça e liberdade (Alves, 1997).

7 Sistema internacional dos direitoS humanos

O sistema internacional de proteção dos direitos humanos, corpo-


rificado na Organização das Nações Unidas e em seus subsistemas regio-
nais, desde 1946, trabalhou no sentido de elaborar normas de direitos
humanos; procurou esclarecer as obrigações dos Estados em relação às
normas; pretendeu estabelecer mecanismos de controle sobre os Esta-
dos; tendeu a estabelecer formas e políticas contra violações. Nesse perí-
odo, além disso, o sistema procurou definir a ligação entre os direitos
humanos, o desenvolvimento humano e a busca da paz.
A partir daí, aos poucos, foi-se afirmando a concepção de que os
diferentes direitos (corporificados na noção de gerações de direitos hu-
manos) podiam ser integrados num sistema de normas e instrumentos

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internacionais que resultou na afirmação da universalidade, da indivisi-
bilidade e da interdependência entre direitos de primeira, de segunda e
de terceira gerações e entre os direitos individuais e coletivos.
Mais do que a afirmação de que no âmbito dos direitos humanos
não pode haver privilégio de uma geração em detrimento de outra, o
sistema internacional tem caminhado na direção de afirmar o direito à
demo­cracia e ao pluralismo como direitos de quarta geração. “A de-
mocracia é, desse modo, o princípio contemporâneo pelo qual a legiti-
midade é conferida a todas as formas possíveis de relações; poder-se-ia
mesmo dizer o único princípio que legitima a cidadania e a internacio-
nalidade” (Mbaya, 1997, p. 34).
A democracia, nesse sentido, é o parâmetro a partir do qual não
apenas podem ser avaliadas as condições de realização dos direitos hu-
manos, como também e, sobretudo, é o fundamento sociopolítico para
a plena existência da gramática dos direitos humanos. Onde ocorrer a
democracia, deve também ocorrer a proteção integral aos direitos hu-
manos. Assim, o avanço da democracia é indicador fundamental de
adesão aos direitos humanos. Onde há a violação sistemática de direitos
humanos, a democracia também está em risco.
Por essa razão, é necessário, como foi estabelecido na Convenção
Mundial dos Direitos Humanos, de Viena, de 1993, a implementação
de estratégias e planos de ação para não apenas acompanhar a aplicação
dos direitos humanos, mas também para ampliar o repertório de direi-
tos protegidos pelas instâncias subnacionais, nacionais e internacionais.
Sabe-se, no entanto, que a ONU não tem poder de sanção sobre os
Estados. Ela pode constrangê-los e pode vincular certas decisões no pla-
no internacional à adesão às normas dos direitos humanos. Em todo
caso, o Conselho de Segurança, os Tribunais Ad Hoc, o Tribunal Penal
Internacional e a Corte Interamericana que detêm poder de sanção.
Mesmo a sanção emanada das decisões da Corte Interamericana de Di-
reitos Humanos não tem força para que os Estados-membros se subme-
tam. Embora se admita que, nas violações de direitos humanos, o que
está em jogo é a soberania popular e os Estados são os maiores perpetra-
dores de violações, a condenação às violações emerge da opinião pública
(Alves, 1994, p. 44).

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Não obstante, mais recentemente, no sistema internacional de
proteção aos direitos humanos, vários mecanismos foram sendo elabo-
rados para fazer com que os direitos humanos ganhassem força de lei
internacional e, nesse sentido, os Estados nacionais teriam a obrigação
de protegê-los.

O sistema internacional de proteção dos direitos humanos construído pe-


las Nações Unidas tem caráter complementar e subsidiário. A responsabi-
lidade primeira permanece com os Estados. Salvo casos excepcionais, de-
correntes de situações bélicas, envolvendo ameaças à paz e à segurança
internacionais, de competência do Conselho de Segurança, o sistema é
necessariamente cauteloso em relação às soberanias nacionais. Tem ele
atividades de supervisão e controle, mas não de tutela. E a tutela interna-
cional dos direitos humanos somente existirá quando uma jurisdição in-
ternacional legítima se sobrepuser às jurisdições nacionais. (...) Para que tal
jurisdição internacional pudesse concretizar-se, seria imprescindível uma
mudança qualitativa na natureza da comunidade internacional existente,
e, consequentemente, nas relações internacionais. Por mais que o idealis-
mo e a utopia tenham auxiliado o estabelecimento do sistema de prote-
ção dos direitos humanos na ONU, os Estados ainda interagem principal-
mente movidos por interesses em relações de poder. Uma jurisdição
internacional legítima requereria um ordenamento internacional equâni-
me e democrático, muito distante da realidade atual (Alves, 1994, p. 70).

Não obstante essas afirmativas que exigem cautela, afirma-se que há


uma interação entre o direito internacional e o direito interno. No sis-
tema internacional, portanto, concebe-se a primazia da norma mais fa-
vorável aos seres humanos protegidos. Não importa se essa norma mais
favorável seja o direito internacional ou o direito interno. Ao reivindicar
seus direitos, os indivíduos ou grupos são igualmente sujeitos do direito
interno e do direito internacional. Em ambos direitos, os indivíduos e
grupos são reconhecidos como personalidades jurídicas.
Evidentemente, os Estados têm responsabilidades substanciais na
proteção dos direitos, na medida em que devem respeitar as regras jurí-
dicas vigentes no direito interno e ao mesmo tempo as regras dos trata-
dos por eles assinados e ratificados. É sempre bom lembrar que os trata-
dos internacionais têm força de lei. Os tratados e convenções vinculam
os Estados-membros e ao fazê-lo colocam a proteção dos direitos humanos

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como parte integrante das políticas públicas estatais e não apenas obri-
gações de determinados governos individuais.
Segundo Trindade, o sistema interamericano de proteção dos direi-
tos humanos tem dado amplo apoio ao direito de petição individual.
Isto é, os indivíduos e/ou grupos que se sentem lesados em seus direitos
podem (e devem) peticionar a Corte Interamericana de Direitos Huma-
nos para terem esses direitos protegidos. Não apenas esse instrumento
tem sido usado com sucesso em relação a casos individuais de violações
de direitos, mas também para casos que envolvem “violações maciças e
sistemáticas de direitos humanos” (Trindade, 2002, p. 23-28).
Em outras áreas de atuação dos Estados, a regra das relações interna-
cionais caminha na direção da reciprocidade de interesses. No caso dos
direitos humanos, os Estados assumem obrigações internacionais para a
defesa de seus cidadãos contra omissões e abusos cometidos pelo próprio
Estado. Não é apenas um sistema no qual os Estados criem autolimites. É,
sobretudo, um mecanismo que permite que suas ações sejam monitoradas
por órgãos internacionais. Na política democrática dos últimos decênios,
é a busca por legitimidade que obriga os governantes a aderirem aos trata-
dos internacionais de direitos humanos (Alves, 1994, p. 43).

8 Direitos humanos e sociedade civil

Todas as declarações recentes dos direitos do homem compreen-


dem, além dos direitos individuais tradicionais, que consistem
em liberdades, também os chamados direitos sociais, que con-
sistem em poderes. Os primeiros exigem da parte dos outros
(incluídos aqui os órgãos públicos) obrigações puramente ne-
gativas, que implicam a abstenção de determinados comporta-
mentos; os segundos só podem ser realizados se for imposto a
outros (incluídos aqui os órgãos públicos) um certo número de
obrigações positivas. São antinômicos no sentido de que o de-
senvolvimento deles não pode proceder paralelamente: a reali-
zação integral de uns impede a realização integral dos outros.
Quanto mais aumentam os poderes dos indivíduos, tanto mais
diminuem as liberdades dos mesmos indivíduos.
(Norberto Bobbio, A era dos direitos, 1992, p. 21.)

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No contexto brasileiro, a Constituição Federal de 1988 contempla
uma verdadeira carta de direitos, conforme rezam o art. 5º e seus inci-
sos. Mais ainda, desde 1988, o Brasil tem sistematicamente ratificado
todos os tratados internacionais relativos aos direitos humanos e, mais
do que isso, tem assumido uma posição de protagonista internacional
na afirmação e defesa dos direitos humanos. Por essa razão, as Organi-
zações da Sociedade Civil (OSCs) voltadas para a defesa dos direitos
humanos vêm ganhando importância e acabam tendo de enfrentar de-
safios crescentes. Elas estão sendo instadas a realizar ações propositivas e
um protagonismo sem paralelo na história recente do país (Gohn,
1995). Elas são fundamentais na ampliação dos canais de participação
política e para o esclarecimento popular sobre a relevância do tema dos
direitos humanos (Sachs, 2002; Keane, 1988).
As organizações de direitos humanos têm um papel complementar
aos Estados e governos nacionais. O desafio atual da comunidade de
direitos humanos é manter seu papel tradicional de crítica aos desman-
dos do Estado e responder a novas demandas por participação política
(Portantiero, 1999).
Mais ainda, no Brasil, é fundamental que as OSCs que trabalham
com direitos humanos preservem o espaço social alcançado nas duas
últimas décadas e se afirmem como movimentos independentes de go-
vernos e de partidos. Isso quer dizer que as OSCs têm um papel predo-
minante no atual processo de ampliação do terceiro setor e de privatiza-
ção da prestação de serviços públicos, mas não devem ocupar um espaço
que é próprio da esfera governamental.
É evidente que, num contexto de cidadania ampliada, as OSCs de-
vam ser parceiras dos órgãos governamentais na implementação de po-
líticas baseadas na responsabilidade social, mas sem assumir seu papel.
A tendência moderna aponta para uma ampliação da responsabilidade
partilhada entre governos e sociedade civil.
No que diz respeito às novas demandas sociais, as organizações têm
procurado desenvolver pesquisas relevantes, advogado em prol de refor-
mas institucionais, particularmente aquelas do sistema judicial e da po-
lícia, e trabalhado com entidades governamentais. Essas atividades estão
sendo realizadas no mesmo momento em que as organizações passam a

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refletir sobre como implementar reformas e como transferir este conhe-
cimento para a sociedade mais ampla.
É essencial que as OSCs sejam capazes de mobilizar, organizar e
lutar pela realização dos direitos sociais, econômicos e culturais. Garan-
tias constitucionais e princípios democráticos básicos, tais como liber-
dade de expressão, de associação e de reunião, são o fundamento de uma
sociedade civil ativa. Portanto, a sociedade civil desafia o poder do Esta-
do da mesma forma que somente uma sociedade civil democrática pode
preservar um Estado democrático (Messner, 1999). Não por menos, al-
guns autores chegam a entender a esfera de atuação da sociedade civil
como a emergência de uma nova esfera pública não estatal.
A importância da sociedade civil foi reconhecida em diferentes
Conferências Mundiais, estando explicitamente consagrada no artigo
38 da Declaração e Plano de Ação da Conferência de Viena, de 1993:

A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reconhece o importan-


te papel desempenhado por organizações não governamentais na pro-
moção dos direitos humanos e em atividades humanitárias em níveis
nacional, regional e internacional. A Conferência Mundial sobre Direitos
Humanos aprecia a contribuição dessas organizações no sentido de tor-
nar o público mais consciente da questão dos direitos humanos, desen-
volver atividades de educação, treinamento e pesquisa nessa área e pro-
mover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.
Reconhecendo que a responsabilidade primordial pela adoção de nor-
mas cabe aos Estados, a Conferência aprecia também a contribuição ofe-
recida por organizações não governamentais nesse processo. Nesse con-
texto, a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos ressalta a
importância da continuidade do diálogo e da cooperação entre Gover-
nos e organizações não governamentais. As organizações não governa-
mentais e seus membros efetivamente ativos na área dos direitos huma-
nos devem desfrutar dos direitos e liberdades reconhecidos na
Declaração Universal dos Direitos Humanos e gozar da proteção da le-
gislação nacional. Esses direitos e liberdades não podem ser exercidos de
forma contrária aos propósitos e princípios das Nações Unidas. As orga-
nizações não governamentais devem ter liberdade para desempenhar
suas atividades na área dos direitos humanos sem interferências, em con-
formidade com a legislação nacional e em sintonia com a Declaração
Universal dos Direitos Humanos.

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9 Da denúncia para a proposição

Para uma melhor defesa dos direitos humanos, as organizações da


sociedade civil devem ir além do papel mais tradicional da mobilização
da vergonha e da denúncia contra os governos. Novos papéis devem ser
definidos na parceria com as instituições estatais, tais como Ministérios
Públicos, Procuradorias, Ombudsmen e as Ouvidorias de Polícia, dan-
do a elas informação confiável, pressionando-as a agir, reforçando seu
trabalho e, mais importante, monitorando suas atividades. Um formato
para essa parceria pode ser a criação de focal points (temas, fóruns, redes
e eventos), locais onde as instituições estatais e as OSCs possam formar
parcerias e manter um diálogo para ampliar o acesso aos direitos e pro-
mover a luta contra a impunidade (Messner, 1999).

10 Responsabilização e sistema de alarmes

A democracia brasileira tem dificuldades em promover sistemas


e práticas de accountability (responsabilização). As organizações da
sociedade civil ainda precisam pressionar os Estados para que estes
promovam mecanismos de responsabilização, quer pela via da res-
ponsabilização legal, política, ou da parceria. A responsabilização é
um dos principais caminhos para a diminuição da corrupção e da
impunidade. Mas é também caminho para a melhoria da eficiência
dos serviços públicos e da proteção aos direitos humanos. Elas tam-
bém devem pressionar os políticos para que eles aprendam a lidar
com um contexto de participação democrática. As OSCs podem
também funcionar como early warning systems, agindo como senso-
res que recebem denúncias, acompanham a imprensa, percebem a
opinião pública e se procuram introduzir visões diferenciadas dentro
do processo político e institucional.

11 Adequação às normas internacionais

As OSCs de direitos humanos devem se estabelecer melhor como


monitores da adequação das políticas públicas dos Estados nacionais aos

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padrões internacionais ratificados pela maioria dos países. Elas devem
ajudar a promover mudanças nas instituições do Estado e a desafiar as
políticas públicas para que defendam integralmente os direitos huma-
nos. Ao mesmo tempo, a sociedade civil pode e deve dar suporte à im-
plementação das normas internacionais e ao uso de mecanismos inter-
nacionais e regionais para a proteção dos direitos humanos.

12 Controle social local

Uma das necessidades básicas das novas democracias é a ampliação


dos controles sociais sobre as políticas públicas. A sociedade civil deve
monitorar as graves violações dos direitos humanos e acompanhar a
atuação das instituições estatais. Um dos problemas é que, como resul-
tado da corrupção, da ineficiência e da ausência de accountability, o in-
vestimento social frequentemente não alcança a população mais vulne-
rável. A descentralização do poder do Estado abriu novas possibilidades
para esse controle social, desde que haja a participação integral dos cida-
dãos nesse esforço de controle do uso dos recursos públicos e das políti-
cas estatais. Para a sociedade civil é importante definir quais são os me-
canismos de controle, treinar entidades para desempenhar essa tarefa e
ajudar a melhorar a qualidade do monitoramento.
O controle social local pode ser atingido por meio de Radares de
Desenvolvimento Humano, por meio do qual é possível aumentar a
capacidade das instituições locais para realizar o controle social, cons-
truindo parcerias e estabelecendo um ambiente favorável para o desen-
volvimento humano sustentável. Por exemplo, os dados oficiais existem,
mas não estão disponíveis para a comunidade, no nível local. Conse-
quentemente, a maioria da população não conhece qual é a situação de
sua cidade, região ou Estado em termos de direitos humanos. As infor-
mações devem ser democratizadas, os dados confiáveis devem estar dis-
poníveis para os agentes públicos locais e para a população em geral.
Isso vale para aqueles que são responsáveis pela tomada de deci-
sões e pela implementação de políticas no nível local (prefeitos, conse-
lheiros municipais, membros de associações, professores, jornalistas e
organizações de base). Para verificar o grau de confiança das informações

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oficiais e para ir além de suas limitações, o acesso democrático deve ser
estimulado e garantido. As novas tecnologias de informação (incluin-
do o acesso via Internet) e de comunicação são importantes não so-
mente para atingir este propósito, mas também para tornar todo o
processo mais barato.
É impressionante o efeito que a democratização do acesso à infor-
mação pode ter no nível local. No Brasil, a disseminação do Atlas de
Desenvolvimento Humano no Brasil mostrou que a publicação de da-
dos desagregados e simplificados é importante para efeito da criação de
parâmetros seguros de comparação e de tomada de decisão. As pessoas
estão interessadas não somente em compreender o que significa um in-
dicador de taxa de mortalidade infantil, mas também desejam saber
qual é o nível internacionalmente aceitável.
Os radares de desenvolvimento humano contribuirão para aumen-
tar a capacidade dos agentes locais em influenciar a concepção e imple-
mentação das políticas, das ações e dos gastos públicos. Eles podem
permitir também que as OSCs monitorem melhor as violações de direi-
tos humanos e criem parcerias com as instituições existentes para exer-
cer um controle social sobre sua performance. Os Radares trabalharão
junto com as agências responsáveis pela fiscalização dos gastos governa-
mentais e podem eventualmente ajudar estas agências na definição de
mecanismos para a avaliação dos resultados finais dos gastos sociais.

13 Indicadores de desenvolvimento humano

As organizações da sociedade civil de direitos humanos podem tam-


bém contribuir para a definição de indicadores para o conjunto de di-
reitos definido pelos instrumentos internacionais. Tais indicadores são
uma ferramenta básica para analisar o processo de desenvolvimento hu-
mano e de implementação de direitos humanos para a consolidação da
democracia.
Os indicadores devem conter informações qualitativas e quantitati-
vas que sejam consistentes e mensuráveis e que permitam comparações
no nível local. Elas devem ser dinâmicas a ponto de refletir as mudanças
permanentes na realização ou negação dos direitos humanos, sobretudo,

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para as parcelas mais vulneráveis da população. Devem ainda mostrar as
relações entre direitos e desenvolvimento humanos.
O uso dos indicadores contribuirá para a análise do processo de
democratização e servirá de referência para esclarecer os princípios que
regem a democracia, levando em consideração as particularidades e di-
ferenças regionais. Não há um processo universal de democratização
que siga um único modelo ou uma única racionalidade. Cada cultura e
história fornece proposições e respostas em torno de aspirações e princí-
pios comuns, que são diferentes e únicos.

14 Observatórios de Direitos Humanos

Os Radares de Direitos Humanos ajudarão a construir banco de


dados voltados para os direitos. Esses dados poderão ser monitora-
dos por Observatórios de Direitos Humanos. A Declaração da Con-
venção Mundial sobre Direitos Humanos de Viena, de 1993, consi-
derou que a democracia é a forma de governo mais adequada ao
respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. Ela tam-
bém consagrou o princípio da interdependência entre democracia,
desenvolvimento e direitos humanos. Todas as democracias moder-
nas e consolidadas devem não somente promover os direitos huma-
nos, como também assumir o compromisso com a responsabilização
e transparência de suas instituições.
Os Observatórios de Direitos Humanos aumentarão, indubitavel-
mente, a capacidade da sociedade civil para pressionar os governos, as
corporações privadas e os indivíduos. Com eles, as OSCs habilitar-se-ão
para monitorar os orçamentos dos governos, para concretizar a imple-
mentação dos direitos econômicos e sociais e para promover mecanis-
mos democráticos de governo.
Todos esses instrumentos podem ampliar a percepção pública sobre
os direitos humanos e podem dar voz às preocupações do público. Em
relação aos direitos humanos, todos os instrumentos internacionais afir-
mam a importância em dar visibilidade aos diferentes pontos de vista
presentes da comunidade. Eles devem gradualmente ser incorporados à
agenda política atual. A sociedade civil deve provocar a exposição polí-

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tica e a transparência, contribuindo para o controle do poder político.
Para a defesa integral dos direitos humanos é importante que haja o
respeito à lei e às regras democráticas.
Os Observatórios e os Radares de Direitos Humanos poderão, ain-
da, permitir que haja maior conhecimento das condições de vida dos
mais vulneráveis, deixando de considerá-los mero objeto das iniciativas
governamentais. Os mais vulneráveis devem ser agentes ativos das polí-
ticas públicas. Para tanto, é importante a adoção de Citizen’s Reports
(Relatórios dos Cidadãos), em que as pessoas relatem as violações de
direitos humanos e façam esses relatos chegar aos meios de comunicação
e aos órgãos de controle.

15 Conclusão

Para realizar a cidadania participativa, a sociedade civil tem


como principais instrumentos de intervenção o monitoramento das
graves violações dos direitos humanos e da performance das institui-
ções públicas; a disseminação dos relatórios sobre desenvolvimento
humano; capacitação das organizações da sociedade civil para pro-
mover os direitos humanos; alcançar os grupos sociais mais desmo-
bilizados, sobretudo aqueles que sofrem mais as consequências das
violações de direitos humanos; e a implementação de programas de
direitos humanos e sua utilização como forma de pressionar os go-
vernos e a iniciativa privada.
Nos últimos anos, uma rede dinâmica de organizações surgiu e per-
mitiu a divulgação de experiências sociais e de desenvolvimento num
verdadeiro espaço global de encontros, trocas e de articulação. A presen-
ça das organizações no cenário local, nacional e internacional, portanto,
chamou a atenção dos organismos internacionais para esta nova realida-
de da democracia mundial. O que é urgente, na agenda do mundo
globalizado, não é apenas a extensão da já existente democracia política
para a área econômica, mas são as reformas substantivas para remover os
obstáculos que impedem o exercício pleno da cidadania.
Evidentemente não pode haver cidadania e efetivação dos direitos
humanos sem democracia. As violações estruturais de direitos e o modelo

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da democracia sem cidadania ainda persistem no Brasil atual. As políti-
cas governamentais e a reforma das instituições terão poucas chances de
sucesso sem a mobilização e a organização popular. A proliferação de
organizações da sociedade pode ser vista como um avanço democrático
da sociedade brasileira.
O Estado democrático e os direitos humanos devem ser fortaleci-
dos. Uma nova cultura democrática está emergindo em vários países,
inclusive no Brasil, a despeito das resistências e da persistência do atraso
e da impunidade. Para o futuro do Brasil, vale a frase de Norberto Bob-
bio (1992, p. 24): “O problema fundamental em relação aos direitos do
homem, hoje, não é o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de
um problema não filosófico, mas político”.

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Devido processo legal: um
exemplo notório de violação
dos direitos humanos

Robinson Henriques Alves


Doutorando em História da Ciência pela PUCSP. Mestre em Direito pela
Universidade Metropolitana de Santos. Professor da Universidade Municipal
de São Caetano do Sul. Advogado.

1 Introdução

A ascensão de Barack Obama à presidência dos Estados Unidos da


América trouxe novamente à tona a situação das pessoas detidas na Base
Naval americana de Guantánamo, em Cuba, desde o final de 2004.
Fosse uma prisão ordinária, talvez não houvesse qualquer tipo de
indagação; entretanto, seus presos não contam com um dos direitos
humanos há séculos reconhecido: o devido processo legal.
Num primeiro momento, serão abordados o conteúdo dos direitos
humanos, o histórico da Declaração Universal dos Direitos do Homem
e o devido processo legal, para, em seguida, trazer à luz modalidade
contemporânea de sua violação.

2 Conteúdo dos Direitos Humanos

O estudo dos direitos humanos sempre enseja dificuldade no tocan-


te ao seu conteúdo, já que se molda com o passar do tempo e o desen-
volvimento da sociedade.
De forma breve, pode-se dizer que o conteúdo dos direitos huma-
nos divide-se em quatro categorias, que a doutrina hesita em denominar
como gerações ou dimensões.

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Normalmente, os direitos humanos são classificados em primei-
ra geração (direitos individuais e políticos), segunda geração (direitos
sociais), terceira geração (direitos coletivos ou de solidariedade) e
quarta geração (direito à democracia, bioética e direito a outras no-
vas tecnologias).
Jorge Miranda, com aguçada percepção, formula sua crítica ao ter-
mo geração porque

geração de direitos afigura-se enganador por sugerir uma sucessão de


categorias de direitos, umas substituindo-se às outras – quando, pelo
contrário, o que se verifica em Estado social de direito é um enriqueci-
mento crescente em resposta às novas exigências das pessoas e das so-
ciedades. Nem se trata de um mero somatório, mas sim de uma interpe-
netração mútua, com a consequente necessidade de harmonia e
concordância prática...1.

De outra sorte, “a ideia de ‘gerações’, contudo, é equívoca, na me-


dida em que dela se deduz que uma geração se substitui, naturalmente,
à outra, e assim sucessivamente, o que não ocorre, contudo, com as
‘gerações’ ou ‘dimensões’ dos direitos humanos. Daí a razão da preferên-
cia pelo termo ‘dimensão’”2.
Para o presente artigo, feitas as ressalvas acima, será utilizado o ter-
mo “geração”, por assente na doutrina, bem como por significar o sur-
gimento, a detecção e a existência de direitos humanos diversos ao lon-
go do tempo.
Dizem-se de primeira geração os direitos individuais, oriundos do
processo de repulsa ao poder absoluto dos monarcas, que não contem-
plavam seus súditos em igualdade e em liberdade, e “esses direitos sur-
gem como reação aos excessos do regime absolutista com a pretensão de
impor controles e limites à abusiva atuação do Estado...”3.

1 Manual de direito constitucional, p. 24.


2 André Ramos Tavares, Curso de direito constitucional, p. 358.
3 Dinaura Godinho Pimentel Gomes, O processo de afirmação dos direitos funda-
mentais: evolução histórica, interação expansionista e perspectivas de efetivação, Revista
de Direito Constitucional e Internacional, n. 45, p. 122-123.

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Em outros termos, “os direitos de primeira geração seriam aqueles
decorrentes do jusnaturalismo racional, cujo pensamento influenciou as
revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII, fazendo com que seu
conteúdo privilegiasse as liberdades individuais, concebidas em função
do ser humano abstrato, descontextualizado”4.
Ademais, “foi a primeira categoria de direitos humanos surgida, e
que engloba, atualmente, os chamados direitos individuais e políticos”5.
Os direitos de segunda geração decorrem historicamente dos mo-
vimentos de cunho social e visam, dessa forma, a favorecer a prote-
ção dos direitos de primeira geração, principalmente o direito à
igualdade, ou seja, “os direitos de segunda dimensão são os direitos
sociais, que visam a oferecer os meios materiais imprescindíveis à
efetivação dos direitos individuais. Também pertencem a essa cate-
goria os denominados direitos econômicos, que pretendem propi-
ciar os direitos sociais”6.
Busca-se, a partir dos anos 1970, a satisfação de necessidades mais
abrangentes que aquelas protegidas pelos direitos individuais e sociais,
mas que a eles continuam ligadas: a terceira geração de direitos huma-
nos, os direitos coletivos ou de solidariedade, fase em que “são reco-
nhecidos os direitos coletivos ou difusos, como aqueles referentes ao
desenvolvimento dos povos e ao meio ambiente de maior relevância,
entre tantos outros”,7 assim como “o direito do consumidor”8 ou, ain-
da, “o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, (...) o direito de
propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito de
comunicação”9.

4 Carlos Weis, Os direitos humanos contemporâneos, p. 41.


5 André Ramos Tavares, Curso de direito constitucional, p. 359.
6 Idem, ibidem, p. 359-360.
7 Dinaura Godinho Pimentel Gomes, O processo de afirmação dos direitos funda-
mentais: evolução histórica, interação expansionista e perspectivas de efetivação, Revista
de Direito Constitucional e Internacional, n. 45, p. 124.
8 André Ramos Tavares, Curso de direito constitucional, p. 361.
9 Dinaura Godinho Pimentel Gomes, O processo de afirmação dos direitos funda-
mentais: evolução histórica, interação expansionista e perspectivas de efetivação, Revista
de Direito Constitucional e Internacional, n. 45, p. 125.

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Nova modalidade de direitos humanos estaria em gestação, em de-
corrência também da globalização e da facilidade dos meios de comuni-
cação, o que, por vezes, pode ocasionar efeito perverso para as pessoas.
Por esse motivo, “tem-se falado, recentemente, em direitos humanos de
quarta dimensão, entre os quais se compreenderiam os direitos das mi-
norias, cuja proteção é de enorme importância na verificação do nível
democrático de um país”10.
Depreende-se que, da mesma forma que o direito, os direitos hu-
manos são um produto cultural da sociedade e, como tal, evoluem, ou
se transformam no tempo, sem que, para tanto, seja preciso abandonar
o quanto conquistado até então. Resta claro, pois, que, “de qualquer
forma, o reconhecimento de uma nova geração de direitos deve servir de
fortalecimento da geração ou dimensão anterior, que adquire uma nova
roupagem, que passa a interferir na sua interpretação, eis que representa
o desencadeamento de mais uma faceta desses mesmos direitos, consen-
tânea com as aspirações e exigências decorrentes da realidade histórica
compatíveis com a dignidade da pessoa humana”11.
Não se perde de vista, dessa forma, que o reconhecimento de novos
direitos humanos aumenta o número de necessidades a satisfazer para
que o homem tenha uma vida digna. Também, nesse sentido, Dinaura
Godinho Pimentel Gomes12.
Talvez, à vista do quanto exposto, mais adequada fosse a utilização do
vocábulo expansão, pois, a partir da ideia de uma geração, a primeira, o con-
teúdo dos direitos humanos foi sofrendo um alargamento, sem que houvesse
o sentimento ou a noção de abandono ou troca de uma geração por outra.
Apreendida a teoria dos direitos humanos, deve-se passar à sua apli-
cação no sistema inaugurado com a Declaração Universal dos Direitos do
Homem.

10 André Ramos Tavares, Curso de direito constitucional, p. 361.


11 Dinaura Godinho Pimentel Gomes, O processo de afirmação dos direitos funda-
mentais: evolução histórica, interação expansionista e perspectivas de efetivação, Revista
de Direito Constitucional e Internacional, n. 45, p. 128.
12 O processo de afirmação dos direitos fundamentais: evolução histórica, interação
expansionista e perspectivas de efetivação, Revista de Direito Constitucional e Interna-
cional, n. 45, p. 129.

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3 Breve escorço histórico da Declaração
Universal dos Direitos do Homem

No presente artigo, pretende-se tão somente analisar-se a questão


do devido processo legal, direito de primeira geração, como um dos di-
reitos humanos cujo marco atual continua sendo a Declaração Universal
dos Direitos do Homem, cujas raízes históricas já podem ser encontradas
na Magna Charta Libertatum, de 1215.
Com a Magna Charta Libertatum, inicia-se a noção de que as
pessoas têm de ser respeitadas por essa própria qualidade, por se-
rem pessoas.
Por isso, “a cláusula 3913, geralmente apontada como o coração da
Magna Carta, desvincula da pessoa do monarca tanto a lei quanto a
jurisdição. Os homens livres devem ser julgados pelos seus pares e de
acordo com a lei da terra. Eis aí, já em sua essência, o princípio do devido
processo legal (due process of law), expresso na 14ª Emenda à Constituição
norte-americana...”14 (grifamos).
Ainda na Inglaterra, seguiram-se outros atos que atualizaram e am-
pliaram o rol de direitos reconhecidos, como a Petition of Rights (1628),
o Habeas Corpus Amendment (1679) e o Bill of Rights (1688).
Ao discorrer sobre os instrumentos que asseguram direitos funda-
mentais ao homem, comenta José Afonso da Silva que “a primeira de-
claração de direitos fundamentais, em sentido moderno, foi a Declara-
ção de Direitos do Bom Povo de Virgínia, que era uma das treze colônias
inglesas na América. Essa declaração é de 12.1.1776, anterior, portanto,
à Declaração de Independência dos EUA. Ambas, contudo, inspiradas
nas teorias de Locke, Rousseau e Montesquieu, versadas especialmente
nos escritos de Jefferson e Adams, e postas em prática por James Madi-
son, George Mason e tanto outros.

13 Cláusula 39. Nenhum homem livre será detido ou preso nem privado de seus bens
(disseisiatur), banido (utlagetur) ou exilado ou, de algum modo, prejudicado (destruatur),
nem agiremos ou mandaremos agir contra ele, senão mediante um juízo legal de seus
pares e segundo a lei da terra (nisi per legale iudicium parium suorum vel per legem terre).
14 Fábio Konder Comparato, A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 80.

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A Declaração de Virgínia consubstanciava as bases dos direitos do
homem, tais como: (...) assegurado o direito de defesa nos processos criminais,
bem como julgamento rápido por júri imparcial, e que ninguém seja
privado de liberdade, exceto pela lei da terra ou por julgamento por
seus pares...”15 (grifamos).
Por outro lado, a Constituição Americana, “aprovada pela Con-
venção de Filadélfia, em 17.9.1787, não continha inicialmente uma
declaração dos direitos fundamentais do homem (...) dando origem às
dez primeiras Emendas à Constituição de Filadélfia, aprovadas em
1791, às quais se acrescentaram outras até 1975, que constituem o Bill
of Rights do povo americano, em que se asseguram os seguintes direi-
tos fundamentais: (...) direito a julgamento público e rápido por júri
imparcial do Estado e distrito em que o crime tenha sido cometido,
com direito a provas de defesa e assistência de um advogado (Emenda
6ª), (...) proibição de bill of attainder, lei de proscrição, que significa
considerar ilegítima qualquer medida legislativa colocando pessoas fora
da lei, proibindo-as de gozar qualquer direito (constante do corpo da
Constituição, n. 3 da Seção IX do Art. I)...”16 (grifamos).
Saliente-se que é na XIV Emenda17 que se encontram as garantias
jurídicas, a cláusula do devido processo legal.
Pouco após a Declaração da Independência dos Estados Unidos da
América, é proclamada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cida-
dão e, em decorrência, Gérard Conac afirma que “as declarações america-
nas influenciaram, sem dúvida, o curso dos acontecimentos franceses,
pois eram conhecidas dos revolucionários, que muito as apreciavam...”18.

15 José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, p. 153-154.


16 Idem, p. 155-156.
17 Emenda XIV. 1. Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e
sujeitas à sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde tiver resi-
dência. Nenhum Estado poderá fazer ou executar leis restringindo os privilégios ou as
imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem poderá privar qualquer pessoa de
sua vida, liberdade, ou bens sem processo legal, ou negar a qualquer pessoa sob sua
jurisdição a igual proteção das leis.
18 L’élaboration de la déclaration des droits de l’homme et du citoyen. In: Gérard Co-
nac, Marc Debene e Gérard Teboul, La déclaration des droits de l’homme et du citoyen,

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Tal declaração foi a ruptura com o Ancien Régime, que se firmava na
ideia de que o poder real era divino, tendo a Igreja Católica, por seu
Alto Clero, sustentado essa fundamentação do poder que não dava ao
indivíduo muitos direitos, em razão, sobretudo, da impossibilidade de
evolução – política inclusive – da burguesia.
A Declaração de 1789, contrariamente às Declarações America-
nas, traz em seu bojo “uma ambição universalista e uma vontade de
abstração tão clara que podemos o qualificar de messiânico (segundo
Goyard-Fabre). São proclamados direitos gerais independentemente
da sua finalidade, das suas condições de aplicação e das suas garantias
jurídicas. A intenção deixada clara aqui é a busca da felicidade do
homem e a afirmação dos direitos do gênero humano dentro do res-
peito da transcendência divina (...) direitos naturais e imprescritíveis:
liberdade, propriedade, segurança e resistência à opressão (...). Os tex-
tos anglo-saxões são, antes de tudo, pragmáticos, enquanto a declara-
ção francesa é ideológica (...)”19.
Ideológica porque pretendia revolucionar não só a França, mas to-
dos os povos que se sentissem aptos e ainda por estar fundamentada no
pensamento filosófico, cujas obras (Montesquieu e Rousseau, por exem-
plo) “foram as que mais influíram sobre o espírito dos revolucionários
de 1789: aquele, pela ideia da necessidade de uma limitação institucio-
nal de poderes dos governantes, e este, pelo princípio de que a vontade
geral do povo é única fonte de legitimidade dos governos”20.

Economica: Paris, 1993, p. 7 e s., apud Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Direitos
humanos fundamentais, p. 20.
19 Philippe Ségur, La dimension historique des libertés et droits fondamentaux, p. 14:
“… une ambition universaliste et une volonté d’abstraction si remarquables qu’on peut
le qualifier de messianique (selon Goyard-Fabre). Ce qui est proclamé, ce sont des droits
généraux indépendamment de leur finalité, de leurs conditions d’application et de leurs
garanties juridiques. L’intention affichée est la recherche du bonheur de l’homme et
l’affirmation des droits du genre humain dans le respect de la transcendance divine (…)
droits naturels et imprescriptibles: liberté, propriété, sûreté et résistance à l’oppression
(…). Les textes anglo-saxons sont avant tout pragmatiques, alors que la déclaration fran-
çaise est idéologique …” (tradução do autor).
20 Fábio Konder Comparato, A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 146.

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Era, também, de tendência universal porque o pensamento dos fi-
lósofos franceses estava impregnado da razão e lógica cartesianas, difi-
cultando, assim, variações no espaço e no tempo, podendo os ideais nela
contidos servir a vários povos21.
Em razão disso é que, contrariamente a vários entendimentos,
José Afonso da Silva22 sustenta que a Declaração dos Direitos do Ho-
mem e do Cidadão não foi consequência dos documentos anteriores
americanos. Ao contrário, sua elaboração era muito anterior, devido
ao movimento dos pensadores franceses (Rousseau e Montesquieu,
sem esquecer-se do inglês Locke) desde o início do século XVIII, ou,
como indica Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “esta (...) teve por si o
esplendor das fórmulas e da língua, a generosidade de seu universalis-
mo. Por isso, foi preferida e copiada, ainda que frequentemente seus
direitos ficassem letra morta”23.
O antecedente mais próximo da Declaração Universal dos Direi-
tos do Homem encontra-se, entretanto, na Organização das Nações
Unidas, cujo “marco histórico inicial é a Carta de São Francisco, tra-
tado internacional que criou a Organização das Nações Unidas em
1945...”24.
De fato, a Carta da ONU, em cujo preâmbulo “reafirma-se a fé nos
direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa
humana, na igualdade de direitos de homens e mulheres”25, funda essa
nova instituição mundial, segundo testemunha o teor de seu texto (Pre-
âmbulo, artigos 55, c, e 56).
Conquanto abarque a Declaração Universal dos Direitos do Ho-
mem todas as gerações de direitos do homem, para o escopo do presen-
te artigo verifica-se apenas aquela tocante ao devido processo legal.

21 Idem, ibidem, p. 129.


22 Curso de direito constitucional positivo, p. 157.
23 Direitos humanos fundamentais, p. 20.
24 André de Carvalho Ramos, Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional,
p. 50.
25 Idem, ibidem, p. 50-51.

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4 O devido processo legal

Como acima estabelecido, “são direitos de primeira dimensão aque-


les surgidos com o Estado Liberal do século XVIII. Foi a primeira
catego­ria de direitos humanos surgida, e que engloba, atualmente, os
chamados direitos individuais e políticos”26. Arrolados nos artigos VIII
a XI da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que determinam
a observância do devido processo legal, incluindo-se, aí, o acesso à Jus-
tiça e, consequentemente, o acesso ao direito, uma vez que “o acesso ao
direito é uma preocupação maior desde que a garantia das prerrogativas
das pessoas não se baseia mais sobre o poder bondoso do Estado, mas
sobre o próprio direito, o que implica então ‘o direito ao direito’...”27.
Retirado o acesso à justiça, retira-se o acesso ao direito.
O devido processo legal encontra sua raiz histórica no artigo 39 da
Magna Charta Libertatum, já citado, ao prever a necessidade de um
julgamento por seus pares, segundo as leis do local, ou seja, a garantia
de que o indivíduo será julgado por tribunais preestabelecidos, com
base em leis preexistentes.
Posteriormente, com a Revolução americana e consequente inde-
pendência dos Estados Unidos da América, ampliou-se essa noção his-
tórica inglesa do due process of law, ressaltando que “os diplomas legais
dos países de common law adotaram alguns desdobramentos do due pro-
cess, fazendo-os constar de modo explícito nas normas legais. Exemplo
disso nos dá a Constituição norte-americana, que, pelo seu art. 1º, Sec-
ção 9ª, n. III, proíbe o bill of attainder, espécie de ato legislativo que
considerava cidadão culpado sem prévio julgamento, bem como veda a
edição de leis penais com efeito retroativo (ex post facto law)”28.
Entretanto, somente com as Emendas à Constituição americana é
que os direitos fundamentais do cidadão foram protegidos, como se

26 André Ramos Tavares, Curso de direito constitucional, p. 359.


27 Marie-Anne Frison-Roche e Jean-Marie Coulon. Le droit d’accès à la justice, p. 441:
“L’accès au droit est une préoccupation majeure dès l’instant que la garantie des préroga-
tives des personnes ne repose plus sur la puissance bienveillante de l’État mais sur le droit
lui-même, ce qui implique dès lors ‘le droit au droit’…” (tradução do autor).
28 Nelson Nery Júnior, Princípios do processo civil na Constituição Federal, p. 35.

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pode notar com “a promulgação da 14ª emenda, em 1868. Declarou-se,
então, que ‘nenhum Estado fará ou executará nenhuma lei, com efeito de
reduzir as prerrogativas ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos;
nem tampouco Estado algum privará uma pessoa de sua vida, liberdade ou
bens, sem o devido processo jurídico (without due process of law); nem dene-
gará a alguma pessoa, dentro de sua jurisdição, a igual proteção da lei”29.
Para Canotilho, o devido processo legal é “o processo previsto na lei
para a aplicação de penas privativas da vida, da liberdade e da proprie-
dade. Dito ainda por outras palavras: due process equivale ao processo
justo definido por lei para se dizer o direito no momento jurisdicional de
aplicação de sanções criminais particularmente graves”30.
Frederico Marques, de seu lado, aduz que ao garantir o processo e
não o procedimento “alude-se, sem dúvida, a formas instrumentais
adequadas, a fim de que a prestação jurisdicional, quando entregue
pelo Estado, dê a cada um o que é seu...”31.
O devido processo legal não se restringe exclusivamente à legalidade do
procedimento, mas também àquela da elaboração das leis. Por isso, pode-se
dizer que “o devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo,
atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade e
propriedade quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de
condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa...”32.
Foi a jurisprudência das cortes americanas que ampliou a noção de
devido processo legal, pois “logo após o término da guerra civil, assen-
tou que, além dos efeitos processuais (notadamente o direito a uma
ampla defesa em todo processo-crime), a cláusula tem também um ele-
mento substancial: toda vez que uma lei restringe ou suprime indevida-
mente a liberdade individual, ela viola um direito inato da pessoa, cuja
proteção constitui a finalidade de toda a organização estatal”33.

29 Fábio Konder Comparato, A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 120.


30 Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 461.
31 O artigo 141, § 4º, da Constituição Federal, p. 71, apud José Afonso da Silva, Curso
de direito constitucional positivo, p. 432.
32 Alexandre de Moraes, Direitos humanos fundamentais, p. 260.
33 Fábio Konder Comparato, A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 121.

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O devido processo legal substancial, nas palavras de Manoel Gon-
çalves Ferreira Filho, “alcança a razoabilidade, a justiça da norma. Com
base neste, o juiz exerce um verdadeiro controle sobre o conteúdo da
norma que vai aplicar. E, como o devido processo legal está inscrito no
direito constitucional americano (emenda n. 5/1971), alegando viola-
ção desse princípio, o tribunal pode declarar inconstitucional a norma,
com a consequência de a considerar nula e de nenhum efeito”34.
Por outro lado, prelecionam Nowak, Rotunda e Young: “Em sentido
processual, a expressão alcança outro significado, mais restrito, como é
curial. No direito processual americano, a cláusula (procedural due process)
significa o dever de propiciar-se ao litigante: a) comunicação adequada
sobre a recomendação ou base da ação governamental; b) um juiz impar-
cial; c) a oportunidade de deduzir defesa oral perante o juiz; d) a oportu-
nidade de apresentar provas ao juiz; e) a chance de reperguntar às teste-
munhas e de contrariar provas que foram utilizadas contra o litigante; f )
o direito de ter um defensor no processo perante o juiz ou tribunal; g)
uma decisão fundamentada, com base no que consta nos autos”35.
No que concerne especificamente ao artigo X da Declaração Uni-
versal dos Direitos do Homem, proíbem-se “os odiosos julgamentos
secretos, bem como os não menos odiosos tribunais de exceção. Talvez
nada, neste mundo, mereça mais o vômito da revolta, o escarro do pro-
testo do que os ‘falsos tribunais’, que encenam uma ‘falsa justiça’, desti-
nada unicamente a sacramentar com a solenidade de uma toga enlame-
ada uma sentença prostituída”36.
Sobre o artigo XI da Declaração Universal dos Direitos do Homem,
acrescenta ainda João Baptista Herkenhoff que “a pessoa acusada de um
crime tem sempre o direito de ter ampla defesa, ainda que se trate de um
crime muito grave. E até diríamos mesmo: quanto mais grave o crime,
mais necessária a defesa, como garantia de que se fará Justiça”37.

34 Direitos humanos fundamentais, p. 125.


35 Constitutional law, Saint Paul, 1986, p. 484, apud Nelson Nery Júnior, Princípios do
processo civil na Constituição Federal, p. 38.
36 João Baptista Herkenhoff, Direitos humanos: uma ideia, muitas vozes, p. 174-175.
37 Direitos humanos: uma ideia, muitas vozes, p. 177.

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5 Hipótese de violação: Guantánamo

Neste momento, parece simples a afirmação de que o devido processo


legal não é objeto de violações, ao menos no Ocidente, em decorrência
de estar tal direito em sedimentação há mais de 700 anos. Tal afirmação
não resiste, contudo, diante das atrocidades cometidas38 na prisão ame-
ricana da Base Militar de Guantánamo, em Cuba, ocupada desde 1903,
por meio de arrendamento.
Nessa Base, em sua maioria, encontram-se presos capturados pelos
americanos, ou seus aliados, durante a guerra contra o Taliban, no Afe-
ganistão, decorrente do ataque de 11 de setembro, mas ali também se
encontram prisioneiros da guerra no Iraque. São eles originários do
Oriente Médio e praticam o Islã e encontram-se num limbo jurídico,
vez que até o momento não foi determinado pelo governo americano
qual seria o regime jurídico aplicado a essas pessoas más, consoante de-
clarações do antigo presidente George W. Bush.
Mas essa escolha não é inocente, em decorrência de um memorando
de dezembro de 2001, do Departamento de Justiça, endereçado ao De-
partamento de Defesa, informando que, na forma da jurisprudência da
Suprema Corte, por ser Cuba soberana mediata sobre Guantánamo, os
estrangeiros lá detidos não poderiam ter acesso às Cortes americanas39.
Valendo-se do raciocínio de Hannah Arendt40 acerca dos refugiados
que perambulavam pela Europa após a Primeira Guerra Mundial, pode-
-se dizer que os prisioneiros da Base Naval de Guantánamo, em razão da
operação americana, perderam seus direitos; por terem perdido seus di-
reitos humanos, tornaram-se refugo da terra.
Por se tratar de prisões decorrentes de guerra, eclode a evidência de
que incidiriam as regras contidas na Convenção de Genebra relativas ao
tratamento de prisioneiros de guerra de 1949, redigida justamente para

38 Convido os leitores à consulta do sítio da Anistia Internacional, que traz riqueza de


detalhes.
39 Anistia Internacional. Guantánamo and beyond: the continuing pursuit of unchecked
power. Disponível em: <http://web.amnesty.org/library/Index/ENGAMR510632005>.
Acesso em: 20 out. 2006.
40 Origens do totalitarismo, p. 300.

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impedir que dirigentes submetidos a pressões políticas suspendessem
direitos fundamentais e a proteção dos prisioneiros de guerra41.
Para afastar a incidência da aplicação da Convenção de Genebra,
que, em seu artigo 4, define quem são os prisioneiros de guerra, o gover-
no Bush criou uma nova categoria, enquadrando os detentos durante o
conflito no Afeganistão e, posteriormente, no Iraque, como “combaten-
tes inimigos”, categoria até então desconhecida e dissociada quer do
direito americano, quer do direito internacional. Fazia-se necessário
“achar uma forma de receber aqueles que o presidente americano iria
qualificar de inimigos combatentes, inaugurando um novo conceito,
estranho ao direito americano como ao direito internacional...”42.
Dessa forma, segundo “a Ordem inicial, entre outras coisas, estipula
que um combatente inimigo poderia ser inculpado e sentenciado à morte
com base em prova secreta, por maioria de dois terços dos membros da
comissão e que os procedimentos de julgamento não poderiam ser
públicos”43, o que é corroborado pela afirmação do Conselho da Casa
Branca de que existem pessoas não legalmente habilitadas ao tratamento
humano, podendo passar por cima das proibições contra a tortura44.
Neste ponto, verifica-se um imenso paradoxo, já que, de acordo
com o Departamento de Estado americano, em seu último relatório
acerca dos direitos humanos em outros países, promover os direitos

41 Courrier international, Guantanamo sous l’œil de la cour suprême, p. 48 : “La Conven-


tion de Genève a été rédigée précisément pour empêcher les hauts dirigeants soumis à des
pressions politiques de suspendre les droits fondamentaux et la protection des prison-
niers de guerre” (tradução do autor).
42 Augusta” Conchiglia, Dans le trou noir de Guantanamo, Le Monde Diplomatique,
jan. 2004, p. 21 “fallait trouver une astuce pour recevoir ceux que le président américain
allait qualifier d’ennemis combattants, inaugurant un nouveau concept, étranger au
droit américain et au droit international” (tradução do autor).
43 Leonard Cutler, Enemy combatants and Guantanamo: the rule of law and law of
war of post-9/11, Peace and Change, v. 31, n. 1, p. 38: “The initial Order, among other
things, provided that an enemy combatant could be convicted and sentenced to death
based upon secret evidence, and on a vote of two thirds of the members of the commis-
sion, and that trial proceedings might not be public” (tradução do autor).
44 Anistia Internacional, Guantánamo and beyond: the continuing pursuit of unchecked
power. Disponível em: <http://web.amnesty.org/library/Index/ENGAMR510632005>.
Acesso em: 20 out. 2006.

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humanos não é somente um elemento de sua política externa, mas o
fundamento de sua política, seu interesse primordial. No entanto, o que
se depreende é que os Estados Unidos condenam violações aos direitos
humanos nos demais Estados, mas não os respeitam quando são os pró-
prios agentes de tais violações, como fazem com relação, por exemplo, à
China, à Coreia do Norte, ao Iraque, a Israel, a Miamar45, o que ocasio-
na enorme mal-estar, sobretudo porque “os Estados Unidos, como Es-
tado mais poderoso e como autointitulado campeão dos direitos huma-
nos, têm um profundo impacto na forma como os direitos humanos são
interpretados e aplicados através do mundo”46.
Nesse paradoxo é que se encaixa a atitude governamental de evitar a
existência de tribunais competentes para apreciar as situações oriundas das
detenções na Base Naval de Guantánamo, bem como do direito aplicável.
Um dos objetivos do Executivo americano ao estabelecer a prisão
dos combatentes inimigos em Guantánamo foi retirar os detentos da
jurisdição de suas cortes.
Foram criadas, então, comissões militares, que são corpos executi-
vos – não tribunais independentes e imparciais –, cujas regras são deter-
minadas pelo Executivo, cujo pessoal é selecionado pelo Executivo e
cujas decisões finais o Executivo controla, inclusive se o condenado vi-
verá ou morrerá: o preso não tem direito à assistência judiciária, tam-
pouco conhece as razões que o fazem estar lá47.
Para Leonard Cutler, “tribunais militares, conselhos e comissões
não podem negar aos detidos o privilégio de utilizar um remédio jurídi-
co perante uma jurisdição competente dos Estados Unidos”48.

45 Idem.
46 Julie Mertus, The new U.S. human rights policy: a radical departure. International
Studies Perspectives, n. 4, p. 371: “The United States, as the most powerful state and as
the self-appointed champion of human rights, has a profound impact on the way human
rights norms are interpreted and applied throughout the world” (tradução do autor).
47 Anistia Internacional. Guantánamo and beyond: the continuing pursuit of unchecked
power. Disponível em: <http://web.amnesty.org/library/Index/ENGAMR510632005>.
Acesso em: 20 out. 2006.
48 Enemy combatants and Guantanamo: the rule of law and law of war of post-9/11.
Peace and Change, v. 31, n. 1, p. 46: “Military tribunals, boards, and commissions cannot

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Parece evidente, dessarte, que “a administração optou em favor des-
ses tribunais especiais no lugar dos tribunais penais por várias razões
práticas, (...) alguns direitos considerados fundamentais perante um tri-
bunal civil não serão aplicados no âmbito desses tribunais especiais. (...)
Os juristas da administração redigiram sozinhos as regras de funciona-
mento, da composição do tribunal aos critérios de admissibilidade das
provas, passando pela definição do que é crime de guerra. Do Poder
Judiciário também foi tirada a competência para os recursos: as contes-
tações serão examinadas não por um tribunal recursal, mas por um co-
legiado de três membros escolhidos pelo ministro da Defesa”49.
E não é só: tendo em vista que, além dessas “práticas legais”, relata
a Anistia Internacional que o governo dos Estados Unidos mantêm ou-
tras que feririam o devido processo legal, por meio de manobras para
minar a relação entre o advogado e o detento, como, por exemplo, ao
submeter o detento a maus-tratos após a entrevista com o advogado, de
maneira a dissuadi-lo a rejeitar a assistência jurídica, ou, ainda, ao decla-
rar que os advogados que os assistem são judeus50.
Para suavizar a doutrina governamental americana, pode-se utilizar
a teoria do paradoxo da virtude, criada por Reinhold Niebuhr, segundo
a qual, independentemente do bem que se procura fazer, o resultado
será sempre o mal. A teoria surgiu após a Segunda Guerra e confortava
aqueles que se preparavam para praticar grandes crimes: “Como dirigir

deny detained individuals the privilege of seeking a remedy in an appropriate court ju-
risdiction of the United States” (tradução do autor).
49 Courrier international, Guantanamo sous l’œil de la cour suprême, p. 48: “administra-
tion a opté en faveur de ces tribunaux spéciaux en lieu et place des cours d’assises améri-
caines pour plusieurs raisons pratiques. Tout d’abord, certains droits considérés comme
fondamentaux devant une cour civile ne s’appliqueront pas dans le cadre de ces tribu-
naux spéciaux.(…) Les juristes de l’administration ont rédigé seuls leurs règles de fonc-
tionnement, de la composition du tribunal aux critères d’admission des pièces à convic-
tion, en passant par la définition de ce qu’est un crime de guerre. Le pouvoir judiciaire
s’est également vu dessaisi du processus d’appel: les verdicts contestés seront examinés
non par une cour d’appel fédérale, mais par un panel de trois membres choisis par le
ministre de la Défense” (tradução do autor).
50 Anistia Internacional, Guantánamo and beyond: the continuing pursuit of unchecked
power. Disponível em: <http://web.amnesty.org/library/Index/ENGAMR510632005>.
Acesso em: 20 out. 2006.

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o mundo vai obviamente implicar enormes crimes, eles pensam: ‘Como
é bom estarmos apoiados por essa doutrina. É claro que somos especial-
mente bons e humanos, mas o paradoxo da virtude...’”51.
Toda vez que um litígio deve ser dirimido, perquire-se a respeito do
direito aplicável e, consequentemente, sobre sua aplicação, sendo “regra
explícita do art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
que ‘qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direi-
tos, nem estabelecida a separação dos poderes, não tem constituição”52.
Para os presos de Guantánamo, todavia, esse direito não foi conce-
dido, conduta que permite entrever “o conflito, tradicional em direito
bem como em todas as instituições humanas, entre o formalismo, a fide-
lidade à regra e à tradição e o pragmatismo, que exige, acima de tudo,
que se levem em consideração consequências da interpretação do texto
num ou noutro sentido”53.
Os Estados Unidos, ao prender em Guantánamo, estariam pragma-
ticamente negando direitos universalmente reconhecidos aos presos,
mormente porque a negação desses direitos não estaria fundamentada,
dado que uma regra nova sempre “se inspira em alguns princípios mais
gerais que ela precisa e estrutura, toda decisão é fundamentada em algu-
ma regra que a justifica: assistimos a uma dialética constante entre a
razão e a vontade, entre as estruturas que fixam os âmbitos de uma ação
e as decisões que precisam, adaptam e até modificam esses âmbitos, se
forem incompatíveis com regras mais assentes”54.
Em decorrência desse ideário, verifica-se que “os prisioneiros foram
subtraídos ao mundo do direito por uma administração Bush que quer
agir como bem entende, confeccionando seu próprio modus operandi,
fora de qualquer obrigação democrática legal, fora de qualquer tratado
internacional”55.

51 Noam Chomsky, A minoria próspera e a multidão inquieta, p. 112.


52 André Ramos Tavares, Curso de direito constitucional, p. 366.
53 Chaïm Perelman, Ética e direito, p. 369.
54 Idem, ibidem, p. 371.
55 Marie-Agnès Combesque, Violences et résistances à Guantanamo, Le Monde Di-
plomatique, fév. 2006, p. 6: “Les prisonniers ont été soustraits au monde du droit par

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Esse modus operandi não é unanimidade, nem mesmo entre os mi-
litares americanos, a exemplo da opinião do “Contra-Almirante Ronald
Guter, que, no ano passado, aposentou-se como chefe da Justiça militar
da Marinha. Devido a essa função, tinha participado das decisões de
usar a Base de Guantánamo para interrogar os detentos: ‘trazer os pri-
sioneiros para Guantánamo fazia sentido, visto os imperativos de segu-
rança, mas agora corremos o risco de testemunhar a condenação à pri-
são perpétua de alguns deles, sem que um processo justo aconteça’,
declarou ele em 9 de outubro de 2003...”56.
O afastamento do governo Bush das determinações inseridas nos
instrumentos internacionais comprova a lição de Perelman, segundo
a qual “a diversidade das leis é prova de nossa ignorância da verdadei-
ra justiça. Pois o que é conforme à razão não pode ser justo aqui e
injusto ali, justo hoje e injusto amanhã, justo para um e injusto para
outro. O que é justo com razão deve, como o que é verdadeiro, sê-lo
universalmente. Todo desacordo é sinal de imperfeição, de falta de
racionalidade”57.
E a imperfeição, aqui, reside justamente em não estarem as medidas
adotadas pelos Estados Unidos de acordo com os princípios fundamen-
tais válidos para todos os Estados.
Se se afirma que o direito é racional, ele é “sempre uma forma de
continuidade: conformidade a regras anteriores ou justificação do novo
por meio de valores antigos. O que não tem nenhuma amarra com o
passado só pode impor-se pela força, não pela razão...”58.

une administration Bush qui souhaite agir à sa guise, en confectionnant son propre
mode opératoire hors de toute contrainte démocratique légale, hors de tout traité in-
ternational” (tradução do autor).
56 Augusta Conchiglia, Dans le trou noir de Guantanamo, Le Monde Diplomatique,
jan. 2004, p. 21: “Le Contre-Amiral Ronald Guter, l’année dernière, a pris sa retraite de
chef de la justice militaire marine. A ce titre, il avait participé aux décisions d’utiliser la
base de Guantanamo pour y interroger les détenus. «Amener les prisonniers à Guanta-
namo avait un sens pour des impératifs de sécurité, mais nous risquons maintenant
d’assister à une condamnation à vie pour certains d’entre eux, sans qu’un procès équi-
table ait pu avoir lieu» a t-il déclaré le 9 octobre 2003” (tradução do autor).
57 Chaïm Perelman, Ética e direito, p. 374.
58 Idem, ibidem, p. 381.

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Poder-se-ia dizer que os Estados Unidos romperam com o passado
em Guantánamo, já que não se vislumbra ligação alguma com o passa-
do na manutenção da Base Naval, seja de conformidade, seja de perma-
nência de valores antigos. Se não se impuseram pela razão, pelo direito,
fizeram-no pela força, estabelecendo uma relação de submissão, na qual
estão presentes dois sujeitos, quais sejam o dominador e o dominado,
aquele submete, oprime este e “quando se oprime alguém, precisa alegar
alguma coisa. A justificativa acaba sendo o nível de depravação e vício
moral do oprimido”59.
A opressão existe e se justifica sempre de maneira a desculpar o
opressor: “Uma das técnicas de formação de crenças combina com a
opressão – não importa se significa jogar as pessoas em câmaras de gás
ou cobrar a mais delas na loja da esquina, ou qualquer coisa entre esses
dois extremos. A reação sempre será dizer: ‘É por causa da falta de moral
deles, é por isso que estou agindo assim. Talvez eu até esteja fazendo
bem a eles’ ”60.
Nega-se que “o racismo esteja em nossos gens. O que está em nosso
gens é a necessidade de proteger nossa autoimagem”61. E nessa tentativa
de proteção da autoimagem, o homem, ou seu conjunto, cristalizado no
Estado, é capaz de cometer as maiores violações, as maiores atrocidades
e, na hipótese em estudo, é a privação do ser da pessoa a pior de todas,
pois, como ensina Hannah Arendt, “a calamidade dos que não têm di-
reitos não decorre do fato de terem sido privados da vida, da liberdade
ou da procura da felicidade, nem da igualdade perante a lei ou da liber-
dade de opinião – fórmulas que se destinavam a resolver problemas
dentro de certas comunidades –, mas do fato de já não pertencerem a
qualquer comunidade. Sua situação angustiante não resulta do fato de
não serem iguais perante a lei, mas sim de não existirem mais leis para
eles; não de serem oprimidos, mas de não haver ninguém mais que se
interesse por eles, nem que seja para oprimi-los. Só no último estágio de
um longo processo o seu direito à vida é ameaçado; só se permanecerem

59 Noam Chomsky, A minoria próspera e a multidão inquieta, p. 100.


60 Idem, ibidem, p. 101.
61 Idem, ibidem, p. 112.

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absolutamente ‘supérfluos’, se não se puder encontrar ninguém para
‘reclamá-los’, as suas vidas podem correr perigo”62.
Ou, como doutrina Derek Gregory, “destrói-se o status legal de pri-
sioneiro de guerra quando se nega aos prisioneiros da guerra contra o
terror essa sua condição. Eles não são sujeitos legais, mas ‘seres legal-
mente inclassificáveis e inomináveis’, ‘objeto da pura regra de facto’ ou
do ‘poder cru’, modalidades ‘completamente afastadas da lei e da super-
visão jurídica’. No detento de Guantánamo conclui Agamben, a fragili-
dade da vida atinge a máxima indeterminação”63.
Como não poderia deixar de ser, a situação fática em que se encon-
tram os presos de Guantánamo provoca reações jurídicas, sobretudo no
que concerne à ausência de tribunais imparciais, ao desconhecimento
das acusações que pesam sobre eles e a impossibilidade de contar com
um defensor.
O Judiciário americano foi chamado a se manifestar, em pedidos de
habeas corpus, com fundamento na ilegalidade das prisões desses “com-
batentes inimigos”.
Já em 2003, a Corte Suprema americana foi chamada a estatuir em
recurso interposto pelas famílias de dezesseis detentos e, “em 10 de no-
vembro de 2003, a mais alta jurisdição dos Estados Unidos aceitou
apreciar se a justiça americana era competente ‘para arbitrar sobre a lega-
lidade de detenções de estrangeiros, capturados fora do país em conexão com
as hostilidades, detidos na Base Naval de Guantánamo’...”64.

62 Origens do totalitarismo, p. 329.


63 The black flag: Guantanamo Bay and the space of exception. Geografiska Annaler
series B., v. 88, 4, p. 406-407: “Prisoners of a war on terror who are denied the status of
prisoners of war, Agamben argued that their legal status is erased. They are not legal
subjects but ‘legally unnameable and unclassifiable being[s]’, ‘the object of a pure de
facto rule’ or a ‘raw power’ whose modalities are ‘entirely removed from the law and from
judicial oversight’. In the detainee at Guantánamo, he concludes, ‘bare life reaches its
maximum indeterminacy’” (tradução do autor).
64 Augusta Conchiglia, Dans le trou noir de Guantanamo, Le Monde Diplomatique,
jan. 2004, p. 21: “... le 10 novembre 2003, la plus haute juridiction des Etats-Unis a
accepté de déterminer si la justice américaine était compétente ‘pour arbitrer la légalité de
détention d’étrangers, capturés à l’étranger en connexion avec les hostilités, qui sont détenus
sur la base navale de Guantanamo’” (tradução do autor).

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Ao aceitar pronunciar-se sobre a legalidade, a Corte Suprema come-
ça a pôr em dúvida a política Bush no sentido de que as jurisdições
americanas não podem ser completamente descartadas da realidade ju-
rídica vivida pelos presos de Guantánamo.
O primeiro grande sucesso somente veio à luz em 28 de janeiro de
2004, quando “a Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso Rasul
contra Bush, decidiu em favor dos detentos de Guantánamo, reconhe-
cendo a competência dos tribunais federais americanos para o exame
dos recursos dos prisioneiros de nacionalidade estrangeira detidos na
base militar. Porém, esta decisão ainda não foi aplicada pelas autorida-
des militares...”65 (grifo nosso).
Nesse processo, a Suprema Corte determinou que fosse respeitado
o devido processo legal, mas, em atendimento à determinação judicial,
a administração criou os Tribunais de Revisão do Status dos Combaten-
tes, formados por três oficiais, para determinar quem deveria ser rotula-
do como “combatente inimigo”. Apesar das imposições da Suprema
Corte, os Estados Unidos continuam a seguir uma política que nega os
direitos humanos fundamentais.
Agindo dessa forma, resta patente que a administração americana
procrastina o mais que pode a situação, mantendo em limbo legal os
prisioneiros, sem direitos processuais ou substantivos66, ou num estado
de exceção, materializado pelo campo estabelecido na Base Naval de
Guantánamo, nos mesmos moldes dos campos de concentração nazis-
tas, com os detentos em situação formalmente equivalente67.

65 Marie-Agnès Combesque, Violences et résistances à Guantanamo, Le Monde Diplo-


matique, fév. 2006, p. 6: “le 28 juin 2004, la Cour Suprême des Etats-Unis, dans l’arrêt
Rasul versus Bush, a rendu une décision favorable aux détenus de Guantánamo en recon-
naissant la compétence des tribunaux fédéraux américains dans l’examen des appels des
prisonniers de nationalité étrangère détenus sur la base militaire. Mais cette décision n’a
jusqu’à présent pas été appliquée par les autorités militaires” (tradução do autor).
66 Anistia Internacional, Guantánamo and beyond: the continuing pursuit of unchecked
power. Disponível em: <http://web.amnesty.org/library/Index/ENGAMR510632005>.
Acesso em: 20 out. 2006.
67 Giorgio Agamben, State of exception, University of Chicago Press: Chicago, 2005, p.
86-87 apud Derek Gregory. The black flag: Guantanamo Bay and the space of exception.
Geografiska Annaler series B., v. 88, 4, p. 406.

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As estatísticas demonstram que 93% dos 558 presos foram considera-
dos combatentes inimigos; 86% dos 38 restantes, antes não considerados
combatentes inimigos, ganharam esse status após a Juíza distrital Joyce Hens
Green ter declarado que o processo estabelecido nos Tribunais era ilegal.
No caso Hamdan contra Rumsfeld, seus advogados alegaram que o
governo Bush, “criando unilateralmente tribunais especiais, dando a sua
própria definição dos crimes de guerra e decidindo sozinho a composição
dessas comissões, não só recusa um processo justo aos acusados, mas
também passa por cima de alguns dos princípios fundamentais da
Constituição americana”68.
Em novembro de 2004, ao decidir esse processo, o juiz James Ro-
bertson estatuiu que a decisão de Bush pela não aplicabilidade da Con-
venção de Genebra aos prisioneiros do Afeganistão não está revestida do
privilégio de não ser revista pelo Judiciário. Segundo ele, o Tribunal de
Revisão do Status dos Combatentes não é o tribunal competente preten-
dido pela Convenção de Genebra. Rejeita a tese de que a Convenção de
Genebra não seria autoexecutável, já que a administração nunca lhe ar-
guiu anteriormente tal condição. Declara, pois, que são ilegais as regras
das comissões militares, especialmente no que concerne a poder o de-
tento ser excluído dos procedimentos e provas serem alegadas sem que
jamais o detento as tenha visto. Afirma, ainda, que o direito a um tribu-
nal é estabelecido pelos direitos humanos69.
Essa decisão foi muito importante, pois impediu que continuassem
as audiências perante o Tribunal de Revisão do Status dos Combatentes,
em Guantánamo, já que “o juiz, James Robertson, antigo oficial da Ma-
rinha, se pronunciou em favor [de Handam], declarando os tribunais
ilegais e dando fim de maneira repentina a essas audiências prelimina-
res, meia hora depois do seu início. Porém, em julho de 2005, uma

68 Courrier international, Guantanamo sous l’œil de la Cour Suprême, p. 48: “en créant
unilatéralement des tribunaux spéciaux, en donnant sa propre définition des crimes et en
décidant seul de la composition de ces commissions, ne fait pas que refuser un procès
équitable aux accusés, il foule aussi aux pieds quelques-uns des principes fondamentaux
de la Constitution américaine” (tradução do autor).
69 Anistia Internacional, Guantánamo and beyond: the continuing pursuit of unchecked
power. Disponível em: <http://web.amnesty.org/library/Index/ENGAMR510632005>.
Acesso em: 20 out. 2006.

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instância recursal, composta de três juízes, um deles John G. Roberts Jr.,
hoje Presidente da Suprema Corte, anulou a decisão do juiz Robertson”70.
Recentemente, segundo Leonard Cutler, uma decisão da Suprema
Corte americana determinou que as pessoas presas “nos Estados Unidos
ou numa base americana no exterior têm o direito à revisão pública de
sua detenção por uma autoridade judicial independente”71.
A eventual consagração da tese governamental americana implicaria
a supressão dos direitos humanos dos presos na Base Naval de Guantá-
namo e “o direito que corresponde a essa perda, e que nunca sequer foi
mencionado entre os direitos humanos, não pode ser expresso em ter-
mos das categorias do século XVIII, pois estas presumem que os direitos
emanam da ‘natureza’ do homem – e, portanto, faz pouca diferença se
essa natureza é visualizada em termos de lei natural ou de um ser criado
à imagem de Deus, se se refere a direitos ‘naturais’ ou a mandamentos
divinos. O fator decisivo é que esses direitos, e a dignidade humana que
eles outorgam, deveriam permanecer válidos mesmo que um ser huma-
no seja expulso da comunidade humana”72.
A dignidade da pessoa humana deve tornar-se um “conceito jurí-
dico usado para designar o que há de humano no homem. Eis por que
é inerente a todos os membros da família humana, e tudo aquilo que
tende a desumanizar o homem será considerado um atentado a essa
dignidade.
Nas circunstâncias da época, admite-se que não seja uma lei par-
ticular que deve proteger a dignidade, mas uma lei do gênero huma-
no. É, então, todo um processo jurídico singular que se instalou,

70 Courrier international, Guantanamo sous l’œil de la Cour Suprême, p. 48. “le juge,
James Robertson, un ancien officier de la marine, statua en sa faveur, déclarant les tribu-
naux illégaux et clôturant abruptement ces audiences préliminaires une demi-heure après
leur début. Pourtant, en juillet 2005, une instance d’appel formée de trois juges, dont
John G. Roberts Jr., aujourd’hui Président de la Cour Suprême, annula la décision du
juge Robertson” (tradução do autor).
71 Enemy combatants and Guantanamo: the rule of law and law of war of post-9/11,
Peace and Change, v. 31, n. 1, p. 39: “…whether they are held at home or at an offshore
U.S. base, they must be provided access to public review of that detention by an inde-
pendent judicial authority” (tradução do autor).
72 Hannah Arendt, Origens do totalitarismo, p. 331.

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traduzindo a sinistra descoberta. A esse ato de lesa-humanidade cor-
responde uma infração nova – que viola um direito que não é com-
petência de soberania nacional – o direito penal internacional – e
que constitui a base da competência ratione materiae de um tribunal
específico – o tribunal penal internacional...”73.
Encontra-se, contudo, longínqua a época em que todos os países se
submeterão a um tribunal internacional para responder por seus atos
perante a sociedade internacional.

6 Conclusão

Os direitos humanos abarcam muitas categorias de direitos, do in-


dividual, como o devido processo legal, até aqueles mais amplos, como
a proteção dos direitos da minoria.
No que concerne ao devido processo legal, existe a tendência em
considerá-lo um dos direitos mais bem consolidados, em decorrência de
seu antigo histórico, desenvolvendo-se ao largo de grande período.
Fatos históricos e políticos recentes, entretanto, indicam o equí-
voco dessa assertiva, considerando-se a emblemática situação dos pri-
sioneiros dos Estados Unidos da América detidos em Guantánamo,
sem que lhe sejam concedidos os direitos e tribunais decorrentes da
aplicação do secular princípio do devido processo legal, o que, em se
tratando de atitude de potência hegemônica, leva-nos à indagação
acerca de real proteção dos direitos humanos até então desenvolvidos
e reconhecidos.

73 Marie-Luce Pavia. La dignité de la personne humaine, p. 143: “… concept juri-


dique opératoire pour désigner ce qu’il y a d’humain dans l’homme. C’est pourquoi
elle est inhérente à tous les membres de la famille humaine et tout ce qui tend à dés-
humaniser l’homme sera considéré comme une atteinte à cette dignité. Dans les cir-
constances de l’époque, il est admis que ce n’est pas une loi particulière qui doit
protéger la dignité, mais une loi du genre humain. C’est donc tout un processus juri-
dique singulier qui s’est mis en place, traduisant la sinistre découverte. A cet acte de
lèse-humanité correspond une infraction nouvelle – qui viole un droit qui ne relève
pas de la souveraineté nationale – le droit pénal international – et qui constitue la
base de la compétence ratione materiae d’un tribunal spécifique – un tribunal pénal
international…” (tradução do autor).

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A proteção ao meio ambiente e o
processo de afirmação dos direitos
humanos no estado de direito ambiental

Robinson Nicácio de Miranda

Mestrando em Direito Ambiental pela Universidade Católica de Santos. Pós-


-graduado em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional.
Professor de Direito Constitucional, Direitos Difusos e Coletivos e Direito Urbanístico
na Universidade Municipal de São Caetano do Sul – USCS.

1 Considerações iniciais

Como a preocupação em relação à manutenção dos recursos am-


bientais é uma clara opção de continuidade de vida, as discussões em
torno do meio ambiente como bem juridicamente a ser protegido im-
plicam em seu enquadramento na categoria de interesses que ultrapas-
sam a esfera puramente individual na medida em que os efeitos danosos
ao meio ambiente possuem reflexo coletivo.
Desta colocação decorre que o patrimônio ambiental há de ser ne-
cessariamente protegido tendo em vista seu uso coletivo e, com efeito, o
propósito da norma ambiental será o de assegurar a sadia qualidade de
vida, ou algo próximo a isso.
Em razão do progressivo quadro de alteração ambiental em face
da existência do que hoje se denomina sociedade de risco, a ascensão
dos conflitos ambientais trouxe à reflexão o valor da proteção ao
meio ambiente para que seja desenhado um novo quadro de forma-
ção de direitos fundamentais baseados na ideia de equilíbrio ecoló-
gico necessário à manutenção da qualidade de vida fundado na soli-
dariedade intergeracional.

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A defesa do meio ambiente implica na análise das expressões preser-
vação e conservação ambientais1 e reforça uma nova orientação da ciência
jurídica a partir de uma perspectiva multidimensional.
É neste sentido que o Direito vai buscar respostas para os problemas
jurídicos além do seu próprio campo de atuação e, buscando resguardo
em outros segmentos do conhecimento humano, apresenta ao seu ope-
rador uma nova configuração.
A qualidade do ambiente influencia na qualidade de vida. Sendo
assim, o meio ambiente, destaca José Afonso da Silva2, torna-se um pa-
trimônio3, cuja defesa é um imperativo ao Poder Público4 para que en-
tão seja possível assegurar a todos a qualidade de vida, bem como o de-
senvolvimento de sua personalidade.
Assim, o desenvolvimento direciona a análise para o princípio da
dignidade da pessoa humana como um fundamento do Estado Demo-
crático de Direito.
Nas palavras de Paulo Bonavides5, a dignidade da pessoa humana
deixou a muito tempo de ser uma expressão meramente conceitual para
transformar-se em princípio do mais elevado grau como próprio funda-

1 Refletindo os direcionamentos internacionais, o ordenamento jurídico brasileiro,


por meio da Lei n. 9.985/2000, ao tratar das Unidades de Conservação, as subdivide em
duas categorias que importam a compreensão do binômio preservação/conservação. Ao
mencionar as Unidades de Proteção Integral irá construir seu regime jurídico com o
objetivo de preservação, de modo a admitir apenas o uso indireto dos recursos naturais.
Já com relação às Unidades de Uso Sustentável, a dinâmica é diferente, pois o objetivo já
não é de preservar e sim conservar, permitindo a compatibilização do recurso natural
com sua utilização, evidentemente de modo racional.
2 Direito ambiental constitucional, p. 24.
3 Patrimônio entendido não como direito de propriedade. Quando a Constituição
de 1988, por exemplo, faz menção a macrorregiões que contemplam alguns dos gran-
des biomas brasileiros e lhes confere o status de patrimônio nacional, não o faz em ra-
zão do instituto da propriedade privada e sim em razão de sua importância ecológica a
fim de que seja possível proporcionar a sadia qualidade de vida sob um prisma transin-
dividual. Neste sentido, foi a decisão do Recurso Extraordinário de relatoria do Minis-
tro Celso de Mello (RE 134.297-8/SP).
4 Acrescente-se aqui também da coletividade, conforme reconhecimento constitucio-
nal (CF, art. 225, caput).
5 Apud Ingo Wolfgang Sarlet, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na
Constituição Federal de 1988.

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mento do Estado, ao lado de outras bases de importância notável, como
os princípios da soberania e da cidadania.
Por conta disso, notadamente a variável ambiental deve ser levada
em consideração no processo de tomada de decisões, especificamente
quando se trata da estruturação de políticas de desenvolvimento.
Esta construção, por sua vez, depende da avaliação e do tratamento
jurídico dado ao direito à informação como um mecanismo de constru-
ção e afirmação do direito humano fundamental ao meio ambiente eco-
logicamente equilibrado.

2 A informação como base de construção do


Estado de Direito Ambiental

O tratamento jurídico dado à informação comporta dois aspec-


tos, segundo Albino Greco6: o direito de informar e o direito de ser
informado.
Freitas Nobre7 justifica que os conceitos relacionados ao direito de
informação exigem uma análise dos regimes políticos, pois se verifica
uma manifestação de um direito de natureza coletiva.
Esclarece, ainda, citado autor, que o direito de informar como as-
pecto da liberdade de manifestação do pensamento revela-se um direito
individual, porém contaminado com o sentido coletivo em virtude das
transformações dos meios de comunicação em massa.
No tocante a esta matéria, a Declaração do Rio, de 1992, afirma
em seu décimo princípio que em “nível nacional, cada indivíduo deve
ter acesso adequado a informações relativas ao meio ambiente de que
disponham as autoridades públicas, inclusive informações sobre mate-
riais e atividades perigosas em suas comunidades”.
A Convenção de Aahrus, assinada na Dinamarca em 25 de junho de
1998, ao dispor sobre o acesso à informação, a participação do público no
processo decisório e o acesso a justiça em matéria de meio ambiente,

6 Apud José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, p. 248.


7 Idem, ibidem.

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prevê no item 3 de seu artigo 2º que ao tratar da expressão informação
sobre meio ambiente o dispositivo reforça a designação de toda e qualquer
informação disponível sob forma escrita, visual, oral ou eletrônica.
Cite-se, ainda, a 1ª Conferência Europeia sobre Meio Ambiente e
Saúde (Frankfurt, 1989), que reafirma o direito de cada indivíduo bene-
ficiar-se do meio ambiente sadio, o que lhe permitirá a realização do nível
mais elevado possível de saúde e bem-estar e, para isso, deve o indivíduo
ser informado e consultado sobre os planos, as decisões e atividades susce-
tíveis de afetar ao mesmo tempo o meio ambiente e a saúde.
Também a Declaração de Limonges, ao colocar em pauta a ideia de
acesso à informação, o faz para sustentar que a mesma se torna indis-
pensável para o procedimento de autorização ambiental8.
No âmbito do direito positivo brasileiro, a Constituição Federal
também aponta o caminho. Sobre este assunto, o inciso VI do § 1º do
art. 225 destaca como incumbência do Poder Público o fomento à edu-
cação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização públi-
ca para a preservação do meio ambiente.
Com efeito, a educação é um passo necessário que segue à infor-
mação. Quanto maior o acesso à informação, com qualidade e veraci-
dade, melhor será o cumprimento da etapa de construção educacional
em favor do meio ambiente, solidificando, assim, o princípio da dig-
nidade da pessoa humana no processo de construção do Estado de Di-
reito Ambiental.
Neste contexto, a Lei n. 6.938/81, recepcionada pela Constituição
vigente, disciplina em seu art. 9º, VII, a obrigação do Estado em produ-
zir um cadastro de informações ambientais de modo a assegurar ao pú-
blico a prestação das mesmas.
A Lei federal n. 10.650/2003, que dispõe sobre o acesso público aos
dados e informações existentes nos órgãos e entidades integrantes do
Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA, prescreve que os
órgãos e entidades da Administração Pública, direta, indireta e funda­
cional, integrantes do Sisnama, ficam obrigados a permitir o acesso

8 Apud Paulo Affonso Leme Machado, Direito ambiental brasileiro, p. 92.

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público aos documentos, expedientes e processos administrativos que
tratem de matéria ambiental e a fornecer todas as informações am-
bientais que estejam sob sua guarda, em meio escrito, visual, sonoro
ou eletrônico, especialmente as relativas à qualidade do meio am-
biente; políticas, planos e programas potencialmente causadores de
impacto ambiental; resultados de monitoramento e auditoria nos sis-
temas de controle de poluição e de atividades potencialmente polui-
doras, bem como de planos e ações de recuperação de áreas degrada-
das; acidentes, situações de risco ou de emergência ambientais;
emissões de efluentes líquidos e gasosos, e produção de resíduos sóli-
dos; substâncias tóxicas e perigosas; diversidade biológica e organis-
mos geneticamente modificados (art. 2º).
A percepção do ideal normativo prescrito é importante para a afirma-
ção da dignidade da pessoa humana e depende, como afirma Willis San-
tiago Guerra Filho9, do engajamento maciço daqueles que fazem parte
deste processo, sendo que somente assim é possível se falar em Estado
Democrático de Direito, ou seja, aquele que abre espaço à participação.
Isso significa dizer, adotando as palavras de Guido Fernando Soares,
que “o direito à informação tem uma interface necessário com o direito
do indivíduo ser conscientizado da relevância dos temas relacionados à
proteção do meio ambiente, e, enfim, com o direito subjetivo de parti-
cipar nas decisões político-administrativas do Estado, sob o qual se en-
contra jurisdicionado”10.
A melhor maneira de tratar as questões ambientais é assegurar a
participação, em nível apropriado, de todos os cidadãos interessados11.
Ao se tratar da participação, ou, como preferem alguns autores co-
operação12, há um indicativo de que não se trata de princípio exclusivo
do Direito Ambiental, pois faz parte da estrutura do Estado Social,
segundo Cristiane Derani.

9 Processo constitucional e direitos fundamentais, p. 20.


10 Direito internacional do meio ambiente, p. 582.
11 Princípio 10 da Declaração do Rio, 1992.
12 Neste sentido, Cristiane Derani, Direito ambiental econômico.

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Destaca a autora que como expressão do genérico princípio do
acordo da doutrina alemã (Kompromissprinzip), “o princípio orienta na
formulação de políticas relativas ao objetivo de bem comum, inerente à
razão constituidora deste perfil de Estado Social”13.
Logo, a participação popular, conforme esclarece Paulo Affonso
Leme Machado14, quando tem por finalidade a conservação do meio
ambiente, encontra-se inserida num quadro mais amplo da participação
dos interesses difusos e coletivos da sociedade.
Sendo assim, o melhor modo de tratar a questão ambiental é asse-
gurar a participação de todos os cidadãos, o que fomenta a tomada de
decisões, pois, como salienta Blanca Lozano Cutanda15, este princípio
da participação cidadã é próprio das democracias pluralistas modernas
em que se permite a intervenção direta dos cidadãos nas funções do
Estado e na defesa do interesse público que tradicionalmente era mono-
pólio do Poder Executivo.
Isso faz com que haja uma alteração comportamental do ser huma-
no para que se afaste de uma postura passiva e assim possa se integrar e
se entregar à partilha de interesses comuns, assumindo, portanto, a res-
ponsabilidade na gestão dos interesses da coletividade.

3 O Direito Internacional do Meio Ambiente

A preocupação com as questões ambientais decorreu principalmente


de grandes acidentes ocorridos no século XX (Fundição Trail, Amoco Ca-
diz, Minamata, Lago Launux, Bophal, Chernobyl) e a mudança do pró-
prio perfil do Direito Internacional contribuiu para isso, dado que o ser
humano passa a integrar o conceito de sujeito de direito internacional16.

13 Direito ambiental econômico, p. 141.


14 Direito ambiental brasileiro, p. 95.
15 Derecho ambiental administrativo, p. 126.
16 Não é demais lembrar que a preocupação com o meio ambiente começa a ser cons-
truída após a Segunda Guerra Mundial, quando os valores humanitários são resgatados a
partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, ressalta Hamilton Alon-
so Jr. (Direito fundamental ao meio ambiente e ações coletivas. São Paulo: Revista dos Tri-
bunais, 2006, p. 29).

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Assim, a questão ambiental passa a ter influência decisiva na forma-
ção das políticas internacionais, pois direcionam a discussão a um ponto
de vista global, a exemplo do Painel Intergovernamental de Mudanças
Climáticas.
Já em 1972, os resultados da Conferência das Nações Unidas sobre
o Meio Ambiente Humano proporcionaram o nascimento do Programa
das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA, o que resultou
na aprovação da Declaração sobre Meio Ambiente Humano denomina-
da Declaração de Estocolmo.
A harmonização do desenvolvimento econômico com a proteção
ambiental foi ponto de reflexão até que se chegasse a uma assunção de
um compromisso político: a Agenda 21, resultado da Conferência das
Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD),
no Rio de Janeiro, em 1992.
Desta forma, o Direito Internacional vem servindo de ponto de
apoio para o debate em torno dos complexos conflitos ambientais, e a
construção de mecanismos de governança global em matéria de meio
ambiente tem sido fundamental para a estruturação dos regimes jurídi-
cos internacionais ligados à matéria.
É importante destacar que o modelo tradicional de Estado, funda-
do nas bases do século XVIII, não mais corresponde às expectativas so-
ciais e aos novos desafios que são colocados frente a uma atual sociedade
cada vez mais complexa.
Os novos modelos de atuação estatal reclamam uma solução não só
inovadora, mas precisa e eficiente em relação aos conflitos, o que impli-
ca na concepção de uma estrutura estatal diferenciada.
Ao se tratar de globalização, por exemplo, é preciso lembrar, conforme
lição de Octávio Ianni, que a mesma “não apaga nem as desigualdades nem
as contradições que constituem uma parte importante do tecido da vida
social nacional e mundial. Ao contrário, desenvolve umas e outras, recrian-
do-se em outros níveis, com novos ingredientes. As mesmas condições que
alimentam a interdependência e a integração alimentam as desigualdades e
contradições, em âmbito tribal, regional, nacional, continental e global”17.

17 A sociedade global, p. 125.

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No mesmo sentido, destaca Alexandre Ratner Rochman: “Nota-se,
desta maneira, que a discussão cultural da globalização está impregnada
de relações dialéticas. O indivíduo e a sociedade são agora colocados
frente a um novo plano de relacionamento, o global. Da mesma manei-
ra que os dois primeiros apresentam elementos que se projetam no nível
internacional, também as movimentações internacionais afetam o de-
senvolvimento cultural das comunidades e a imagem que o indivíduo
possui – e mantém – de si e sua forma de atuação com base nisso (se
promove a mudança, se rejeita ou se processa uma adaptação relativa
quanto as suas percepções e valores)” 18.
Em linhas gerais, no mundo globalizado o espaço geográfico e a
percepção da política ganham novos contornos.

4 A constitucionalização do Direito Ambiental e o


reconhecimento do direito fundamental ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado como
premissa da construção da solidariedade
intergeracional

Ao afirmar que todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente


equilibrado, o legislador constituinte ressaltou a importância do tema,
colocando-o como um direito fundamental de titularidade coletiva.
A locução “todos têm direito”, completa Paulo Affonso Leme Ma-
chado19, cria um direito subjetivo, oponível erga omnes, que é comple-
mentado pelo direito ao exercício da ação popular ambiental, nos ter-
mos do art. 5º, LXXIII, da Constituição.
O enquadramento do meio ambiente como direito fundamental
vislumbra o reconhecimento do ambiente sadio como essencial ao ser
humano na medida em que visa proporcionar o bem-estar para as pre-
sentes e futuras gerações.
Encontra-se neste contexto a consagração do princípio da dignidade
da pessoa humana, cujo esforço conceitual do espectro deste fundamento

18 Globalização: uma introdução, p. 62.


19 Direito ambiental brasileiro, p. 123.

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constitucional não se dirige a um indivíduo, mas se projeta a todos os
seres humanos. A consequência desta percepção leva o Poder Público a
obrigar-se na manutenção das bases da igualdade entre os indivíduos
(igualdade perante a lei e igualdade na lei) como forma de efetivação
deste princípio. No mais, cumpre ressaltar o caráter universalizante do
princípio, posto que é inviável a distinção entre brasileiros e estrangei-
ros, salvo no tocante àqueles atos vinculados ao exercício da cidadania.
Ressaltando as discussões da Conferência de Estocolmo (1972), im-
põe-se destacar que se trata, conforme lição de José Afonso da Silva20, de
um prolongamento da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Ao encontro desta perspectiva, assim dispôs a Declaração de Esto-
colmo logo no seu Primeiro Princípio: “O homem tem o direito funda-
mental à liberdade, igualdade e ao desfrute de condições de vida ade-
quada em um meio ambiente cuja qualidade lhe permita uma vida
digna21, e tem solene responsabilidade de proteger e melhorar o meio
ambiente, para a presente e as futuras gerações”.
E continua o Princípio 8: “O desenvolvimento econômico ou social
é indispensável para assegurar ao Homem um ambiente de vida e traba-
lho favorável e criar na Terra condições favoráveis para melhorar a qua-
lidade de vida”.
Os princípios como mandados de otimização, de acordo com as li-
ções de Robert Alexy22. Sendo assim, é possível lapidar as ideias que
norteiam a base conceitual de desenvolvimento sustentável como meca-
nismo de operacionalização dos direitos humanos.
A construção dos direitos humanos reflete um processo histórico de
afirmações. E justamente por conta disso a ampliação da noção de dig-
nidade humana passa pela conscientização dos valores ambientais.

20 Direito ambiental constitucional, p. 58.


21 Entre nós, a Lei n. 6.938/81 reconheceu o princípio da dignidade da pessoa humana
ao estabelecer, no artigo 2º, que “a política nacional do meio ambiente tem por objetivo
a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando
assegurar, no País, condições ao desenvolvimento socioeconômico, aos interesses da se-
gurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana”.
22 Teoría de los derechos fundamentales, p. 86.

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Enfatize-se que o ser humano é o centro das preocupações das ques-
tões relacionadas com a construção da vida saudável e produtiva num
processo de harmonização constante com o ambiente em que vive.
A formação de uma política educacional que contemple o debate
acerca do meio ambiente passa a contribuir não só para o pleno desen-
volvimento da pessoa, mas principalmente para prepará-la para o exer-
cício da cidadania.
Oportuno ressaltar que a inclusão dos interesses de fundo ambiental
e sua conexão com a base principiológica da solidariedade entre as gera-
ções implica reconhecer como ponto de partida a noção de precaução.
Considerado como princípio fundante e primário, destaca José
Joaquim Gomes Canotilho, “é ele que impõe prioritariamente e anteci-
padamente a adoção de medidas preventivas e justifica a aplicação de
outros princípios como o da responsabilização e da utilização das me-
lhores tecnologias disponíveis”23.
É possível, no entanto, discutir a afirmação de um Estado de Direi-
to Ambiental. Dotado de abstratividade, não se restringindo, portanto,
ao Direito, sua construção e principalmente sua afirmação não se tradu-
zem como tarefas fáceis.
José Rubens Morato Leite, ao citar os ensinamentos de Boaventura
de Sousa Santos, aponta que o Estado de Direito Ambiental é “uma
utopia democrática, pois a transformação a que aspira pressupõe a repo-
litização da realidade e do exercício radical da cidadania individual e
coletiva, incluindo nela uma Carta dos direitos humanos da natureza”24.
É necessário, portanto, saltar de uma postura individualista para
uma postura coletiva que compreenda o problema do equilíbrio ecoló-
gico como essencial à qualidade de vida de todos.

5 Síntese conclusiva

O planejamento para a sustentabilidade e respectiva afirmação de


um Estado de Direito Ambiental ainda demanda uma mudança signifi-
cativa no modo de pensar.

23 O direito constitucional ambiental português e da União Europeia, p. 9.


24 Sociedade de risco e Estado, p. 149.

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Oportunas são as lições de Ignacy Sachs ao retratar que o obje-
tivo do desenvolvimento vai além da riqueza material. O cresci-
mento é uma condição necessária, mas de forma alguma suficiente
para alcançar a meta de uma vida melhor, mas feliz e mais completa
a todos.
Neste sentido é possível afirmar, com Amartya Sen, que o desenvol-
vimento só pode ser alcançado a partir de um processo de expansão das
liberdades democráticas.
Ou seja, quanto maior a informação, maior será a participação no
processo decisório, maior será a afirmação democrática e melhor será a
orientação e implementação das ações estatais que visem a compartilhar
e a corresponder às expectativas comuns.
Desta forma, a harmonização dos interesses é premissa orientadora
das ações do Estado e da sociedade.
A efetivação do direito fundamental ao meio ambiente ecologica-
mente equilibrado tem como pano de fundo a compreensão de um ro-
teiro que minimiza o individualismo próprio do ser humano e o coloca
em contato com uma nova perspectiva, qual seja a do solidarismo, que
ultrapassa, inclusive, a noção de espaço e tempo.
Buscar o mínimo para o alcance do que seja sustentável a partir do
estabelecimento de metas que envolvem medidas de concretização da
capacidade decisória dos envolvidos é tarefa essencial para o fortaleci-
mento dos regimes democráticos, que deve apontar como resultado um
maior alcance dos direitos humanos, pois desenvolver é condição básica
para a promoção da justiça social.

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O direito à vida e o princípio
da dignidade humana

Rosana Marçon da Costa Andrade

Mestra em Direito Econômico pela Universidade Bandeirante de São Paulo –


UNIBAN. Especialista em Direito Empresarial pelas Faculdades Metropolitanas
Unidas – FMU. Coordenadora do Núcleo de Assistência Jurídica e do Escritório de
Orientação Jurídica da Universidade Municipal de São Caetano do Sul. Professora da
Universidade Municipal de São Caetano do Sul – USCS, e da Universidade
Bandeirante de São Paulo – UNIBAN. Advogada.

1 Introdução

O homem é a razão de ser de toda tutela jurídica; o direito, a justi-


ça, a ciência devem ter como base o ser humano, tudo almejando uma
única finalidade – a dignidade da pessoa humana, que é o fundamento
da Constituição Federal de 1988 (art. 1º, III), possuindo uma delimita-
ção ampla em razão de suas múltiplas concepções, caracterizando assim
um atributo da pessoa humana (ANDRADE, 2007, p. 67).
O direito à vida compõe os direitos do homem, mostrando-se
indissociável à dignidade da pessoa humana, razão pela qual a prote-
ção constitucional à vida ser conferida desde a concepção, passando
pelo direito de uma gestação respeitada, pelo nascimento, chegando
até o direito de uma morte digna, momento este que se impõe como
o fim da vida.
Desponta, assim, a necessidade de se refletir sobre as consequências
jurídicas decorrentes da evolução da ciência médica e biomédica e a respeito
de situações como a recusa de transfusão de sangue pelas Testemunhas de

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Jeová, o feto anencefálico, a morte encefálica, os meios de reprodução
assistida (inseminação artificial, fertilização in vitro, inseminação post
mortem), que muitas vezes colocam à prova os direitos fundamentais.
Neste diapasão, analisamos, sob o contexto atual em que emergem
novas técnicas científicas, o momento da aquisição e perda da persona-
lidade civil, que definem respectivamente início e fim da caracterização
da pessoa de direito. Assim se fará possível responder aos questionamen-
tos referentes à inviolabilidade do próprio corpo, à antecipação do parto
de feto anencefálico frente à morte encefálica, a proteção ao nascituro e
aos embriões excedentes provenientes de reprodução assistida.
Após estas abordagens genéricas, podemos acenar que a evolução da
ciência é necessária para o bem de toda a humanidade, mas traz o surgi-
mento de novas relações jurídicas que não podem ser ignoradas pela
sociedade, tampouco pelo legislador, porque merecem respeito e limita-
ções para que não venham a agredir direitos tutelados.

2 Breves considerações sobre o direito à vida

O direito à vida humana encontra-se constitucionalmente protegi-


do (art. 5º), significando o primeiro direito do ser humano, anteceden-
do a existência da própria pessoa. Ao proteger a vida, a Constituição
Federal impede a utilização de mecanismos que resultem na interrupção
espontânea do processo vital (ARAÚJO, 2005, p. 127).
Trata-se do maior bem do homem e, portanto, indisponível, deven-
do prevalecer em regra sobre qualquer outro direito, às vezes até mesmo
sobre a vida de outrem, é o que embasa os casos de admissão de aborto
previsto na legislação penal1.
Os debates sobre o direito à vida são conduzidos por percepções
que vão desde a concepção do ser humano até o momento da morte,
abrangendo também o direito à própria existência.

1 CP: “Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico: I – se não há outro meio
de salvar a vida da gestante; II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido
de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”.

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Sobre o direito de existir, José Afonso da Silva afirma: “Consiste no
direito de estar vivo, de lutar para viver, de defender a própria vida, de
permanecer vivo. É o direito de não ter interrompido o processo vital
senão pela morte espontânea e inevitável” (2003, p. 201).

3 Direito à vida diante da liberdade de crença

A sobreposição do direito à vida em relação aos demais direitos se


apresenta imperativa, posto que sem vida humana não há falar nas de-
mais tutelas jurídicas. É o que justifica a impossibilidade do aborto e da
pena de morte, mas sua prevalência nem sempre se aplica. A recusa de
transfusão de sangue pelas Testemunhas de Jeová mostra-se como situa-
ção notória e incompreendida pela sociedade em geral.
As pessoas desta crença não aceitam nenhum tipo de tratamento
com sangue armazenado (de outra pessoa ou de seu próprio), nem
quando sua vida está em risco Em que pese privilegiarmos a vida, a li-
berdade de crença é tal qual a vida: um direito fundamental.
Então, qual destes direitos deve prevalecer diante da iminência de
morte e a recusa do referido tratamento médico? Pode o médico realizar
o tratamento contra a vontade do paciente para salvar-lhe a vida? Neste
campo, Maria Helena Diniz levanta a seguinte questão: “Forçar alguém
a violar sua consciência não seria um rude golpe à dignidade humana?”
(2009, p. 268-269) – (grifo nosso).
As pessoas desta religião aceitam tratamentos alternativos hoje
existentes que são isentos de sangue, possibilitando que suas vidas se-
jam salvas em alguns casos sem contrariar a convicção religiosa. Esta
não é uma situação fácil. Diante da recusa da transfusão de sangue, o
médico se vê impotente no cumprimento de suas funções e de seu
juramento de salvar vidas. Não se trata aqui de procedimento de roti-
na, é um tratamento usado em regra em casos de emergência e tam-
bém de estados críticos de saúde, devendo o médico buscar todos os
meios alternativos de qualidade para o tratamento de seu paciente
(DINIZ, 2009, p. 269).
Diante da recusa do paciente plenamente capaz e lúcido ou de re-
presentante formalmente nomeado para assuntos relativos a tratamentos

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médicos, pode o médico obrigá-lo a submeter-se a tal tratamento? Pare-
ce-nos que tal ato feriria não apenas seu direito à crença religiosa, mas
toda uma ideologia que fundamenta sua vida e seus atos. A saúde não
pode ser vista apenas na forma física, envolve também um conjunto,
incluindo nele o fator psicológico, com o restabelecimento da saúde fí-
sica. Como ficaria o estado psicológico do paciente ao saber que recebeu
sangue armazenado? Como passaria a ser sua aceitação no grupo desta
crença sabendo que ele havia desrespeitado a “santidade do sangue”?
A dignidade da pessoa humana alcança a finalidade de a pessoa ter
uma vida digna. Nesta seara, levantamos a questão: é digna a vida de
alguém que não aceita a si próprio por sentir-se impuro e é rejeitado
pelas pessoas de sua crença por ter sido submetido a tratamento que
contraria a religião?
Esta decisão, em respeitar ou ignorar a vontade do paciente ou de
seu representante por ele nomeado, torna-se ainda mais difícil por parte
do médico, pela possibilidade de responder por perdas e danos.
Impasse ainda maior dá-se quando a recusa do tratamento é feita por
pais ou responsáveis de menores ou incapazes, colocando o direito à vida de
terceiro em risco. Destacamos aqui a aplicação do direito mais relevante,
neste caso a vida, pois para que a pessoa possa exercer sua liberdade consti-
tucionalmente garantida, é-lhe indispensável a vida (DINIZ, 2009, p. 273).
Muitas vezes, os médicos, diante do conflito entre a vontade do
paciente e o seu compromisso em salvar vidas, recorrem à obtenção de
autorização judicial para realizar tal tratamento, a fim de cumprir sua
função e se isentarem de responsabilidade civil e até mesmo penal pe-
rante a consumação de omissão de socorro.
Entendemos que as pessoas plenamente capazes que seguem a refe-
rida crença devam poder optar por tratamentos alternativos pela recusa
da transfusão de sangue. Nesse contexto, os avanços médicos devem
ajudar a tornar a posição do médico e dos tribunais menos penosa.
Por mais conflitante que possa parecer, todavia, não é esse o nosso
juízo em relação à vida de terceiros. Não nos parece aceitável que pesso-
as responsáveis por outrem tenham o poder de ceifar-lhes a vida me-
diante a não autorização da transfusão de sangue. O homem na atuali-
dade é entendido como um ser autônomo. Não estamos na era romana,

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em que os membros da família eram obrigatoriamente seguidores da
crença do pater familias. Tendo então sua individualidade, não se pode
admitir a presunção de que a criança, ao se tornar adulta, teria a mes-
ma crença. Seria esta uma presunção absoluta nos casos de óbito pelo
não tratamento necessário. Em que pese o poder familiar, a liberdade
de crença não existiria se os filhos fossem obrigados a seguir a religião
dos pais.

4 Embriões gerados por reprodução assistida

Nos casos de impossibilidade ou grande dificuldade de engravidar


naturalmente, casais buscam as formas de reprodução assistida para al-
cançar o desejo de gerar um filho. As técnicas de reprodução assistida
aplicadas são: a inseminação artificial intrauterina homóloga (sêmen do
marido) e heteróloga (sêmen de outra pessoa) e a fertilização in vitro.
A inseminação artificial dá-se pela inserção do sêmen no útero da
mulher. Este processo busca aumentar a probabilidade de gravidez, por
ser esta inserção feita após a seleção e preparação do material genético
masculino e durante estimulação da produção de ovários. Este método
de reprodução assistida não obriga mudança de conceitos pelo fato de a
fecundação ocorrer no ambiente uterino.
Na fertilização in vitro, o procedimento é mais complexo que o
método anterior. Para sua realização, são coletados os materiais genéti-
cos do homem e da mulher para obter uma fecundação extrauterina (in
vitro). Por este método, são concebidos vários pré-embriões, mas apenas
quatro deles poderão ser transferidos para o útero da mulher2. Esta es-
colha não é aleatória, os pré-embriões são analisados visando identificar
aqueles que apresentam maior viabilidade, sempre com a anuência dos
doadores do material genético. Por diversas razões, também podem

2 Conselho Nacional de Medicina, Resolução CFM n. 1.358/92, que dispõe sobre as


normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida, limita o número de
pré-embriões transferidos em quatro, e todos os demais embriões excedentes (fecundados
mas não transferidos para o útero da mulher) devem ser criogenizados, não podendo ser
descartados ou destruídos.

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ocorrer intervenções antes da transferência, com finalidade exclusiva-
mente diagnóstica de viabilidade ou identificação de anomalias e predis-
posições genéticas, não sendo permitido que se façam alterações genéti-
cas de qualquer tipo.
Como se nota, a fertilização in vitro merece tratamento legal ade-
quado, sendo imprescindível a identificação do momento em que se
inicia a vida. A razão pela qual fazemos tal afirmação é que se faz ne-
cessário identificar em que braço do direito estão os embriões que não
são transferidos para o corpo da mulher. Uma vez fertilizados e não
introduzidos, qual a espécie de proteção legal dada a estes embriões?
Frisamos que a polêmica não reside em ter ou não proteção legal, por
haver tratamento na Lei de Biossegurança (Lei n. 11.105/2005), mas
a ótica desta proteção.
São esses embriões coisas3? O requisito da viabilidade de vida apli-
cado no Direito Romano aplica-se aos embriões não transferidos? Se há
fecundação extrauterina e esta é sinônima de concepção, já existe vida
fora do útero?
Sobre o momento no qual se inicia a vida muitos são os entendi-
mentos: a) o momento da concepção é um deles, entendendo ser o
momento no qual o óvulo é fertilizado, ou seja, o momento da fusão do
óvulo com o espermatozoide4; b) outra corrente, e a mais expressiva,
afirma que a vida surge com a chamada nidação, que é a aderência, a
fixação do embrião no corpo da mulher, o que se defende pelo entendi-
mento de que o desenvolvimento do embrião só é viável com um corpo

3 “A discussão travada na ADIn 3.510 do Supremo Tribunal Federal, que conclui pela
constitucionalidade do art. 5º da Lei de Biossegurança, enfatiza a responsabilidade civil
de todos os intervenientes ou partícipes da pesquisa com células-tronco embrionárias
(...). Quer se sustente a personalidade do embrião pré-implantatório, isto é, aptidão
para ser titular de direitos, obrigações e status, quer não se a reconheça, ele não se
confunde com res (coisa), não se lhe podendo aplicar o regime das coisas. A dignidade
do embrião pré-implantatório é inequívoca, não se confundindo com coisa, mercadoria,
produto” (MACHADO, 2009, p. 28).
4 Dá-se a concepção quando se efetiva no aparelho reprodutor da mãe, ainda que o
embrião tenha resultado de manipuação em laboratório (in vitro). Somente a partir da-
quele instante incide a norma do art. 2º do CC, relativamente à ressalva de direitos po-
tenciais do nascituro (LÔBO, 2009, p. 2001).

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feminino para se desenvolver, tendo em vista que os avanços da genética
permitem que a concepção aconteça fora do corpo humano, mas ainda
não atingiu o ápice da evolução permitindo que o embrião se desenvol-
va até completa formação fora do corpo da mulher5; c) ainda, há a cor-
rente que segue estritamente a orientação civilista, associando vida à
inspiração do ar atmosférico6.
Com todo o respeito, esta última posição não merece acolhida se-
não para atribuição da personalidade civil; caso o início da vida tivesse
como marco o nascimento seguido de respiração, não haveria razão para
a proteção constitucional à vida intrauterina, muito menos para puni-
ção da interrupção voluntária do desenvolvimento daquele ser pela tipi-
ficação penal do aborto. Ademais, o próprio legislador reconhece a vida
intrauterina quando põe a salvo os direitos do nascituro.
Não podemos deixar de registrar a teoria que defende ser o 14º dia
após a fecundação o momento do início da vida em razão da afirmação
que daí se inicia a formação do sistema nervoso central7.
Momento não menos controverso e importante é o da aquisição
da personalidade civil. A personalidade civil é a aptidão da pessoa hu-
mana para contrair direitos e deveres, é atributo da dignidade do ho-
mem, é o que faz sua figura viva se distinguir da dos outros seres,
atribuindo ao homem a condição de sujeito de direitos e de deveres
(NERY JÚNIOR, 2007, p. 185).

5 “Na literatura médica costuma-se afirmar não se saber ao certo quando um embrião
se torna humano, muito embora alguns considerem os embriões de 7 a 8 semanas como
seres humanos em formação. No Brasil, a medicina adota entendimento de que o início
da vida humana se dá com a nidação. Argumentando-se que o embrião fecundado em
laboratório morre se não for implantado no útero da mulher” (SÁ, 2002, p. 337-338).
“É obvio que o embrião não possui condições de se desenvolver por si só fora do útero,
entretanto, sabemos que o espermatozoide também não fecunda o óvulo, por si só, fora
do corpo da mulher” (SÁ, 2002, p. 340).
6 “A vida do novo ser configura-se no momento em que se opera a primeira troca
oxicarbônica no meio ambiente” (PEREIRA, 2004, p. 219).
7 “(...) as teorias que consideram o 14º para identificação como pessoa, pois aparece aí
a formação do plano construtivo do embrião e rudimentar organização do sistema ner-
voso central” (SÁ, 2002, p. 338).

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No Direito Romano, para ser considerado pessoa e consequente-
mente sujeito de direito, o homem devia atender a diversos requisitos
naturais e civis. Os atributos físicos exigidos eram: nascimento com
vida, forma humana e viabilidade fetal. Já os civis referiam-se ao status
de ser livre, cidadão romano e pertencer a uma família romana (CRE-
TELLA JÚNIOR, 2003, p. 53-57).
No direto moderno, todo homem ao nascer com vida já se torna
sujeito de direitos. O Código Civil dispõe que a personalidade é adqui-
rida a partir do nascimento com vida (art. 2º), esta entendida como o
fato de a criança respirar voluntariamente o ar atmosférico, não exigin-
do qualquer outro requisito senão a vida. Todavia, já coloca os direitos
do nascituro a salvo desde a concepção, o que comprova o reconheci-
mento jurídico da existência de vida antes do nascimento.
As teorias sobre a aquisição da personalidade apresentam-se na dou-
trina em lista tríplice, cada qual estabelecendo um momento diverso
para que o ser humano adquira a personalidade. Vejamos: a natalista
defende ser o momento do nascimento, a condicional, também enten-
dida como falsa teoria da concepção, prega ser o nascimento com vida
condição suspensiva para aquisição da personalidade, concedendo ex-
pectativas de direitos ao nascituro e, por fim, a teoria da concepção, que
atribui personalidade desde a fecundação.
O Direito Civil adotou a teoria natalista para atribuir a personalidade
civil, mas não se pode negar, também adotou a falsa teoria da concepção
para conceder ao nascituro proteção legal. Esta proteção é exclusividade
do Direito Civil. No Direito Constitucional e no Direito Penal também
se protege o nascituro. No campo constitucional, garantindo-lhe o direito
de nascer e, portanto, preservando-lhe a vida; no campo penal, punindo
o aborto daquele que se encontra no útero materno; no campo civil, con-
cedendo-lhe direitos patrimoniais e até mesmo a alimentos8.

8 Neste sentido destacamos o comentário de Silmara Juny Chinellato: “A recente Lei


n. 11.804, de 5 de novembro de 2008, que trata dos impropriamente denominados
‘alimentos gravídicos’ – desnecessário e inaceitável neologismo, pois alimentos são fixa-
dos para uma pessoa e não para um estado biológico da mulher – desconhece que o titu-
lar do direito a alimentos é o nascituro e não a mãe, partindo de premissa errada, o que
repercute no teor da lei” (MACHADO, 2009, p. 29).

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Nota-se que esta proteção decorre de sua natureza humana, o que
garante ao nascituro direitos relativos à sua humanidade, sendo o direito
à vida o primeiro a ser adquirido por ele. Por nascituro entende-se aque-
le que está para nascer e se desenvolvendo no ventre materno9.
Resumidamente, temos que os embriões gerados por reprodução
assistida não podem ser equiparados a nascituros, vez que são gerados
exteriormente ao útero materno (in vitro), mas já foram concebidos
(fecundados). Desse modo, faz-se imperativo voltarmos à questão: em
que momento se inicia a vida humana?
Se os embriões não são considerados nascituros, não gozam da mes-
ma proteção legal, não tendo direito a serem donatários de doação pura
e simples, serem adotados, ao reconhecimento de paternidade, a ali-
mentos, ao nome. Isto porque o nascituro é protegido em razão de ser
visto pela sua humanidade, ou, ainda, por sua viabilidade humana, pos-
to que se encontra fixado e desenvolvendo no útero materno. Então o
que são os embriões ainda não implantados – meras coisas?
Concordamos com parte da doutrina que entende que não se pode
simplesmente reduzir os embriões ao estado de coisa. Estaríamos assim re-
duzindo-os a um bem móvel suscetível a aquisição de propriedade, com
todos os atributos a ela relativos – usar, gozar, dispor. A preocupação pri-
mordial aqui estabelecida se dá em relação ao tratamento dado aos embriões
não transplantados (excedentes na reprodução assistida): uma vez reduzidos
a coisas, podem ser objeto de descarte, como comida, estragada ou sobrada.
Não negamos, não têm os embriões forma humana nem a viabilida-
de fora do útero materno, mas o estágio embrionário é uma fase da
formação do ser humano e não uma peça de automóvel ou um compu-
tador: é um ser em seu primeiro estágio de formação, merecendo respei-
to e proteção legal.
Sob a ótica da viabilidade, devemos não apenas pensar que fora do
útero os embriões certamente morrerão, mas que se já há vida concebi-

9 Sobre o nascituro: “Designa, assim, o ente que está gerado ou concebido no útero,
tem existência no ventre materno: está em vida intrauterina. Mas não nasceu ainda, não
ocorreu o nascimento dele, pelo que não se iniciou sua vida como pessoa” (De Plácido
e SILVA, 2000, p. 549).

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da, a mesma se torna viável com a transferência para o útero materno,
pois foi para isto que eles foram concebidos. Como vimos, no proces-
so de reprodução assistida pela técnica de fertilização in vitro, vários
são os embriões fecundados, mas conforme determina o Conselho
Federal de Medicina, apenas quatro deles poderão ser transplantados
na mulher.
Inegável o fato de que esta técnica é muito mais agressiva fisicamen-
te do que a inseminação artificial, em razão da coleta dos óvulos e da
transferência do embrião para o útero, como também é inegável que a
primeira transferência pode não resultar em uma gravidez, ou seja, os
demais embriões não transferidos podem ser utilizados para uma nova
tentativa se forem eles conservados e não simplesmente descartados. A
implantação do embrião no útero feminino também não é sinônimo de
viabilidade humana. O que torna viável o desenvolvimento do ser hu-
mano, acreditamos ser a nidação.
Neste contexto, concluímos que o Código Civil, ao conferir prote-
ção legal ao nascituro, assim entendido aquele se desenvolvendo intrau-
terinamente, não apenas elegeu a nidação como sendo o momento de
início da vida humana, mas também demonstra inegável resgate da es-
trutura romana de viabilidade humana.
Em que pese o entendimento de que a vida se dá com a fertilização,
sua viabilidade real ocorre tão somente com a transferência para o útero
feminino, sendo ainda necessário aderência a ele (nidação).
O regramento que pune a prática de aborto se justifica pela prote-
ção à vida, que ainda é intrauterina. Sobre isto, Luiz Alberto David
Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior apresentam justificativa:
“É que a vida, iniciada com a concepção, não pode sofrer solução de
continuidade não espontânea, fazendo com que o direito a ela também
se estenda ao nascituro” (ARAÚJO, 2005, p. 127-128).
O Direito Penal também utiliza o requisito de viabilidade para au-
torizar alguns casos de aborto. Afirmarmos que, se a vida se inicia pela
concepção in utero ou in vitro, traria como consequência a admissão de
assassinatos em série no que tange ao descarte de embriões, requerendo
do legislador alteração penal, incluindo mais esta situação nos casos de
admissibilidade de aborto.

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Consoante entendimento supramencionado, não seria admissível
que os embriões a serem transferidos e os excedentes não recebessem
tutela diferenciada de bens móveis em geral em razão de haver uma ex-
pectativa de viabilidade humana.
Esta proteção foi dada. Atualmente, qualquer procedimento na es-
colha dos embriões para a transferência ao útero materno só pode ser
feita com objetivo exclusivamente diagnóstico, não se permitindo alte-
rações genéticas de qualquer tipo, nem ultrapassar catorze dias o tempo
de desenvolvimento embrionário in vitro. Nesta seara, há a obrigatorie-
dade de criogenização dos embriões excedentes, o que nos parece se
alicerçar na viabilidade humana, pois, após três anos de criogenização, o
descarte é admitido em função de sua inviabilidade.
Este descarte legalmente autorizado não caracteriza aborto, ao con-
trário, tais embriões poderão ser utilizados em pesquisas de desenvolvi-
mento de células-tronco, visando melhorar a vida de milhões de pessoas
no mundo portadoras de doenças no futuro curáveis em razão destas
pesquisas. Pontuamos, sobretudo, que a utilização destes embriões só
pode ocorrer com a autorização dos doadores dos gametas masculino e
feminino e de forma extremamente criteriosa. Os embriões poderão ser
imediatamente doados para pesquisa quando se mostrarem inviáveis ou
após terem sido criogenizados, desde que já estejam nesta condição há
mais de três anos.
A utilização deste material, entretanto, não pode ser para realização
de qualquer pesquisa, caso contrário o tratamento a eles conferido não
seria adequado frente ao respeito inegável que se deve ter pelos embriões.
A permissão para pesquisar, contudo, não é indiscriminada: não se pode
utilizá-los na pesquisa de clonagem humana e muitas outras, sendo
prioritariamente utilizados para pesquisas de células-tronco.

5 Anencefalia

Ao contrário do Direito Romano, que exigia viabilidade de vida


somada a ausência de deformidades, o nosso ordenamento jurídico con-
fere àquele que nasce com vida o status de sujeito de direito indepen-
dentemente do tempo de vida, bastando que se prove a entrada de ar

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atmosférico nos pulmões. Abraça todos, mesmo os portadores de ano-
malias e sem viabilidade10 de continuar a viver após o parto, incluindo,
portanto, os bebês anencéfalos.
A adoção da teoria natalista contida no Código Civil (art. 2º)
não exclui a concessão da personalidade civil ao sujeito de direito
que nasce com qualquer espécie de deficiência, seja ela física ou
mental. A polêmica no que tange ao feto anencéfalo reside na busca
da antecipação do parto destes fetos e na caracterização ou não deste
ato na prática de aborto.
A respeito de ambas as abordagens, a doutrina divide-se, não havendo
consenso para uma ou outra situação. Entendemos que a resposta a uma
e outra questão deve resultar da análise sobre a morte, principalmente
da morte encefálica, momento que determina a perda da personalidade
e do status pessoa de direito, aplicando-se a partir daí apenas aqueles
direitos post mortem 11.
Perda da personalidade se dá com a morte. É o que determina o art.
º
6 do CC. Mas qual o momento da morte? Na história da humanidade
já houve até a morte civil. No Direito Romano havia também a possibi-
lidade de deixar de ser sujeito de direito pela capitis deminutio máxima,
que era para o romano a perda da liberdade, o que transformava a pes-
soa em coisa, equivalendo à morte.
O momento da morte num passado mais recente era determinado
pela parada respiratória, logo, não respirava estava morto. A evolução da
ciência trouxe à baila a necessidade de modificação de conceitos, pela
descoberta de que é possível fazer o coração voltar a bater com massa-
gens cardíacas e aparelhos de reanimação, além da constatação de que se

10 A viabilidade de continuar a viver após o parto não pode ser confundida com aque-
la abordada como referência para se considerar o início da vida humana. Esta se dá com
a nidação. A partir daí já se considera vida humana juridicamente protegida.
11 O natimorto, mesmo não tendo respirado e consequentemente não adquirido per-
sonalidade, goza de alguns direitos da personalidade, como nome, sepultura e até mesmo
registro de nascimento, imagem, moral, inclusive a sua vontade por meio de testamento.
No mesmo sentido, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (2007, p. 86);
Lei de Registros Públicos (Lei n. 6.015, de 31-12-1973), art. 53: “No caso de ter a
criança nascido morta ou no de ter morrido na ocasião do parto, será, não obstante,
feito o assento com os elementos que couberem e com remissão ao do óbito”.

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o cérebro voltar a receber oxigênio em poucos minutos em regra não há
lesão, tudo isso fez com que a morte tivesse como marco a parada car-
diorrespiratória. Na atualidade, o fim da vida é estabelecido pela morte
encefálica, sendo este o momento em que o ser humano deixa de ser
juridicamente visto como pessoa. A alteração mais uma vez ocorreu de-
vido à evolução da ciência na realização de transplantes com a devida
autorização legal12, mas para tanto há a necessidade de que os órgãos
continuem a funcionar até o momento de sua retirada. A morte encefá-
lica assim decretada é sinônima da existência de uma lesão irreversível
no encéfalo, fazendo com que ele pare de funcionar.
Mas fica a situação do feto anencéfalo. Nesta circunstância, é ele
considerado um feto natimorto? Em caso positivo, a antecipação de seu
parto caracteriza aborto?
Segundo Resolução do CFM n. 1.752/2004, os fetos anencéfalos
são considerados natimortos cerebrais desde o útero materno, daí insur-
ge a polêmica sobre a possibilidade de antecipação do parto deste feto.
Ao entendermos que se trata de feto com morte cerebral já não existe
qualquer possibilidade de tornar-se sujeito de direitos e, portanto, não
haveria falar em aborto, pois levando em consideração o momento da
morte encefálica como extinção da personalidade, quando muito po-
der-se-ia dizer a ocorrência de um aborto retido (morte do feto no útero
materno), pois não há interrupção de vida quando já se constatou de
forma inquestionável a morte cerebral do feto, o que torna juridicamen-
te inviável o raciocínio de assassinato de um ser já morto. Seria o que o
Direito Penal caracteriza de crime impossível.
Se pensarmos no momento de aquisição da personalidade estabele-
cida no art. 2º do CC, só podemos pensar em óbito fetal se já não
houvesse batimentos cardíacos, pois enquanto esta condição de ordem
física ocorrer, haverá a possibilidade de nascimento com vida, indepen-
dentemente do tempo de vida.
A anencefalia, segundo toda a doutrina médica, inviabiliza a vida
fora do útero materno, sendo que a grande maioria vem a óbito ainda

12 Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos


e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento.

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no útero materno. Mas ficou mundialmente conhecido o caso da meni-
na brasileira que colocou em xeque todos esses posicionamentos ao nas-
cer com anencefalia e viver por mais de um ano, superando qualquer
expectativa médica.
Entendemos, conforme já defendido, que a vida juridicamente tute-
lada se dá a partir do momento da nidação (fixação do embrião no útero
materno, tenha sido gerado por meio natural ou in vitro), sendo ela pro-
tegida e legalmente reconhecida. Todo ser em formação tem o direito de
nascer; este direito, se atacado, tipifica ilícito penal, o que nos parece ra-
zoável para não autorização da antecipação do parto do feto anencéfalo.
Como qualquer outro feto em desenvolvimento no ventre materno, é ele
um nascituro que recebe tutela jurídica e possui expectativa de direitos.
Parece no mínimo ambíguo o entendimento referente à morte en-
cefálica e ao feto anencéfalo. Entendida a morte cerebral como uma le-
são irreversível no encéfalo, que o faz parar de funcionar, como pode o
anencéfalo ser considerado um feto morto cerebral? Um órgão que ja-
mais existiu por má formação não é passível de sofrer uma lesão que o
faça parar de funcionar. Ora, para parar de funcionar primeiramente
precisaria ele se formar para ser objeto de tal lesão irreversível. Pontua-
mos novamente a necessidade de repensar os conceitos já estabelecidos.
Não se pode apenas decidir aplicando a hermenêutica aos casos que
envolvem a vida humana.
Emerge novamente o fato de o problema dever ser analisado de forma
mais abrangente, na esteira de que são duas as vidas em questão, a da mãe e
a do feto. Como já abordamos, como fica a saúde psíquica da mulher ges-
tante de feto anencéfalo? Merece ela também proteção ao ter opção de in-
terromper ou levar a termo a gestação de um feto que ela sabe ter o coração
batendo, mas que não irá sobreviver no mundo exterior? Qual seria aqui o
melhor direito? Em caso de conseguir sobreviver no mundo exterior por
período de tempo mais prolongado, é digna esta vida sem cérebro?
Em razão da teoria adotada pelo legislador civil na proteção do nas-
cituro e não obstante o amor incondicional dos pais pelos filhos, enten-
demos que a gestação deve seguir até seu termo, senão exclusivamente
em razão da expectativa de direitos que existe em relação ao nascituro,
que seja para os pais deste bebê, movidos pelo sentimento de perda e

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compaixão, doem os órgãos para salvar a vida de outras crianças. Desde
o ano de 2004 já existe autorização ética para o uso de órgãos e/ou teci-
dos de anencéfalos para transplante mediante autorização prévia dos
pais, o que nos parece ser o melhor direito, pois, ao menos, é possível
salvar centenas de bebês com outras insuficiências sanáveis pelo trans-
plante que só pode acontecer com órgãos compatíveis com os deles.

6 Considerações finais

Muitas são as dúvidas que insurgem quando contrapomos a vida e


sua dignidade frente aos avanços da ciência, isto é certo, mas ainda não
se tem uma resposta exata para elas, o que nos parece ser decorrente de
algo, por natureza, polêmico – a vida humana e os limites dos atos pra­
ticados para: obtê-la (reprodução assistida), mantê-la (transfusão de
sangue, pesquisa em células-tronco e doação de tecidos e órgãos), pror-
rogá-la (permitir que os órgãos continuem funcionando após a morte
encefálica para a doação de órgãos, levar a termo a gestação de feto
anencéfalo). Todas as polêmicas estão intrinsecamente ligadas à religião,
à emoção, aos preconceitos, enfim, está nas entranhas da afetividade, do
amor à vida própria e do próximo.
Preferiu o Código Civil atual omitir-se acerca da situação dos em-
briões fertilizados in vitro, de fetos anencéfalos. Mesmo já sendo situa-
ções difundidas quando de sua edição, são estas omissões que causam
tantas discussões em torno desses questionamentos, uma vez que nem a
doutrina jurídica nem a médica parecem ter bases sólidas para estrutu-
rar suas teses. A vida deve sempre ser protegida, é fato irretorquível. Mas
quais os limites desta proteção?
Propomos um repensar destas questões sob a ótica não apenas do
direito à vida, mas de uma vida digna a quem se visa de fato proteger.

7 Referências bibliográficas

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SANTOS, Fernando Ferreira. Princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana. São Paulo: Celso Bastos Ed., 1999.
SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 17. ed. Rio de Janeiro: Fo-
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SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed.
São Paulo: Malheiros, 2003.
SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1993.

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Os direitos humanos e a consecução
do conceito de humanidade

Ruben Cesar Keinert

Doutor e Mestre em Ciências Sociais pela USP. Professor de Metodologia Científica


da USCS. Antigo professor de Sociologia e Ciência Política da EAESP/FGV (1969-
2006). Autor de O que é Parlamentarismo, da Editora Brasiliense. Pesquisador em
Projetos da FAPESP.

No processo evolutivo do homem, durante milhares de anos o Ou-


tro sempre foi o inimigo por antecipação, a ameaça a ser neutralizada o
quanto antes ou da qual se deveria escapar buscando refúgio seguro. O
Outro, o Diferente deveria ser abatido ou cuidadosamente evitado.
Com a gradativa estabilização das sociedades e a cristalização das
culturas respectivas, a hostilidade multiplicou-se por incontáveis esferas.
O Outro usava linguagem incompreensível, tinha crenças ininteligíveis,
costumes exóticos, hábitos esdrúxulos. Sendo assim, só poderia ter uma
origem completamente diferente daquela do povo que o estava avalian-
do e, portanto, não deveria dispor de um estatuto que o considerasse
um igual. Era um ser distinto e, desta forma, passível de tratamento
violento ou mesmo cruel, de ser destituído de suas posses, família e tí-
tulos e submetido a condições infames de vida.
Esse é o resumo da racionalização que está por trás das justificativas
dos preconceitos que sustentaram as várias formas de discriminação e
mesmo de ações hostis de uns povos contra outros, conduzindo ao escra-
vismo, ao apartheid e às “limpezas étnicas” por meio dos genocídios, confi-
namentos e criação preventiva de barreiras à imigração. O elemento co-
mum é sempre a visão de inferioridade, da condição subumana do Outro.

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A despeito da recorrência dessas manifestações de intolerância e
hostilidade para com os Diferentes, a compreensão da igualdade antro-
pológica dos povos foi gradativamente aumentando, confinada, porém,
aos segmentos intelectuais, artísticos, científicos e religiosos das respec-
tivas sociedades.
Este artigo tem como objetivo mostrar, ainda que resumidamente,
a trilha cumprida até que os direitos humanos fossem fixados como um
valor universal. A partir dessa deliberação, tornou-se injustificável alegar
qualquer diferença em termos de estatuto humano a quem quer que
seja. E, mais, foi possível caracterizar crimes contra a humanidade e, em
nome disso, indiciar e punir transgressões cometidas por governantes
que se imaginavam escudados pela soberania nacional.

1 As faces da contribuição humanística

A longa trilha que veio dar na fixação dos direitos humanos foi feita
por um emaranhado de caminhos que tinham em comum a compreen-
são, talvez a intuição de alguns grupos de que os seres humanos tinham
a mesma origem e a mesma condição antropológica. Não foi fácil, no
entanto, enunciar essa compreensão e obter adesão à ideia.

1.1 A contribuição das relações econômicas

Possivelmente, os primeiros reconhecimentos de alguma semelhança


do Outro à condição humana tenham sido os circuitos econômicos que os
antropólogos denominaram de economia do dom. Povos nômades aproxi-
mavam-se do território de outros povos e tomavam a iniciativa de depositar
presentes em locais por onde transitavam os vizinhos, com o intuito de
neutralizar possíveis reações belicosas por parte deles. Quando os vizinhos
gostavam das doações, retribuíam com outros presentes deixados no mes-
mo local. Com a repetição destas ações, obtinha-se uma coexistência amis-
tosa que, de modo implícito, revelava uma aceitação do Outro como igual,
pois os dois povos reconheciam compartilhar as mesmas necessidades.
O escambo, ou seja, a troca direta de mercadorias tendo em vista
quantidades e valores atribuídos a elas, pode ser entendido como outro

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modo de aproximação pacífica entre povos. E que também revelou a
mútua percepção de igualdade de condições entre eles.
Outro fenômeno reconhecível como fator de mudança nas relações
belicosas entre povos diferentes é o comércio. O estabelecimento de re-
lações de troca por meio de uma moeda ou um produto que cumpra
essa função é até hoje visto como um fator de aproximação pacífica e,
deste modo, de reconhecimento do Outro como igual.

1.2 A contribuição da arte

Reconhecer a capacidade artística de outros povos é um passo deci-


sivo para reconhecer a sua humanidade. A arte é o maior atestado da
condição humana. O prazer estético é um privilégio de espíritos cultiva-
dos, pois transcende as ações que correspondem às necessidades vitais.
Portanto, quem é capaz de desenvolver habilidades corporais, dramáti-
cas, sonoras, de representação gráfica, de expressão poética, literária e
outras, obviamente passa um claro atestado de inteligência e sensibilida-
de inegavelmente humanas.
Essa constatação não impediu que preconceitos fossem usados con-
tra as manifestações artísticas de outros povos, porém sem a força argu-
mentativa que estava disponível quando ainda não havia conhecimento
de suas habilidades no campo.
Não por acaso, até hoje as iniciativas de aproximação entre povos se
dão pelo intercâmbio artístico, para passar para eventos esportivos,
apoio tecnológico e assim por diante.

1.3 A contribuição religiosa

A religião desenvolveu posições contraditórias em relação ao reco-


nhecimento do Outro: de um lado, fortaleceu o sentimento de superio-
ridade de cada povo ao cumprir o papel de narradora da sua escolha
como povo eleito. De fato, a religião sempre exerceu a função de cimen-
tadora do tecido social de cada sociedade, ao dar a explicação da sua
existência e guiá-la em direção a um estágio superior de vida ou a um
lugar destinado apenas para aqueles, entre seus membros, que haviam

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seguido suas orientações com rigor e determinação. Como os outros
povos não a professavam, não poderiam ser escolhidos e, assim, perdiam
o reconhecimento de igualdade, passavam a ser designados de forma
discriminatória (infiéis, ímpios, pagãos etc.).
De outro lado, ao assumir dimensões universais, ou seja, ao deixar
de representar apenas a ligação de um determinado povo com o campo
espiritual, as religiões fortaleceram suas mensagens de paz entre os po-
vos. Contribuem, portanto, para criar um clima de compreensão e tole-
rância, ainda que em certas circunstâncias permaneçam como pretexto
para a discórdia e a xenofobia.
Nesse contexto, a contribuição do cristianismo não pode deixar de
ser destacada, apesar de erros históricos incompreensíveis cometidos
pela Igreja Católica. No entanto, o cristianismo destacou-se não só pela
sua pregação de solidariedade, de comunitarismo e de tolerância, mas
também pelo fato de que durante o feudalismo, se entendido como o
regime de organização social e política que expressou o pensamento
cristão, aceitavam-se os direitos humanos ou os direitos naturais da pes-
soa. Mesmo com o apoio espiritual ao deplorável movimento das Cru-
zadas e com a (posterior ao feudalismo) tentativa de evangelização for-
çada dos povos americanos e africanos e outros “pecados menores”, é
possível contabilizar um saldo positivo à contribuição do cristianismo à
causa do reconhecimento da ideia de humanidade.

1.4 A contribuição dos pensadores e cientistas

Na Grécia antiga, o cultivo dos métodos de pensamento e da dis-


cussão de ideias elevou ao máximo a capacidade de abstração humana.
Nem por isso os gregos se destacaram no campo do reconhecimento da
igualdade entre os povos.
Os pensadores do Iluminismo fizeram bem mais, não só pela suas
obras, mas, sobretudo, por terem aberto o caminho para colocar todas
as questões sob o tratamento da razão. Livrar a razão da subordinação à
fé, à tradição e aos mitos (o que ainda perdurava) ensejou um notável
impulso ao pensamento e à ação voltados para reconhecer a marca da
humanidade em todos os povos e em todos os indivíduos aculturados.

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Além do uso da razão como instrumento preferencial na busca da
verdade, outra contribuição do Iluminismo foi colocar o indivíduo
como centro da reflexão, livrando-o das amarras do pertencimento a
determinada categoria social ou territorial típicas do feudalismo (o que,
ao seu tempo, como foi afirmado acima, representou alguma forma de
proteção). Esse foi um passo lógico essencial para a compreensão inte-
lectual da igualdade entre os seres inteligentes e portadores de cultura
que habitavam o planeta. Se os indivíduos eram iguais, podia-se pensar
numa coletividade formada por pares.
A terceira grande contribuição do Iluminismo foi o impulso dado à
ciência, elevando a experimentação ao grau de marco definidor da verdade.
Sob essa orientação, aos olhos da comunidade intelectual, a desigualdade
deveria ser evidenciada para sustentar qualquer tratamento discriminatório
em relação a outros povos. Evidentemente, as coisas não se passaram desse
modo: por coincidência, os grandes descobrimentos territoriais havidos um
pouco antes e a exploração colonial subsequente mostram que a influência
intelectual e mesmo religiosa a respeito de evitar o tratamento desigual para
os povos que habitavam aquelas terras foi, na prática, inócua.
Mas a contribuição foi marcante. As pesquisas dos médicos anato-
mistas dando a conhecer o funcionamento do corpo humano, um equi-
pamento comum a todos os povos; as pesquisas dos arqueólogos e gene-
ticistas demonstrando a origem comum de todos os povos; e dos
antropólogos, psicólogos e sociólogos mostrando como o comporta-
mento humano obedece a padrões muito assemelhados quando se trata
de suprir necessidades básicas, foram demonstrações muito fortes de
haver um substrato comum entre todos os povos. Portanto, era possível
defender a existência da humanidade.

1.5 A contribuição jurídico-política

O campo jurídico-político consolida o movimento intelectual das


ideias sociais transformando-as em princípios normativos de conduta.
Nesse sentido, vale lembrar que o primeiro processo a ser observado foi
o que levou ao reconhecimento da igualdade interna nas sociedades po-
liticamente organizadas.

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Esse processo foi longo até se chegar ao conceito de cidadania, ou
seja, o reconhecimento de que todos os nascidos dentro de um território
nacional teriam obrigações e direitos iguais em termos políticos. As di-
ferenças seriam individuais.
Foram séculos de conquistas para se chegar à divisão dos poderes, à
Constituição, ao sistema representativo, à democracia com direito de vo-
tar e de ser votado. A igualdade política interna foi uma contribuição
decisiva para fixar a igualdade entre todos os indivíduos de uma nação.
No campo das relações internacionais, no entanto, o passo final
ainda estava por ser dado.

2 Os direitos humanos e o conceito de humanidade

A noção de humanidade ou de comunidade humana, como se viu,


surgiu da confluência de várias iniciativas que tinham objetivos especí-
ficos e localizados em diversos campos do pensamento e da ação. Em
paralelo, elas contribuíram para construir uma nova coletividade que
não se conhecia ou não se vislumbrava como possível.
No final da I Guerra Mundial, o pacifismo, movimento voltado para
evitar a eclosão de novos conflitos bélicos entre as nações, ganhou amplitu-
de. A Liga das Nações, organização multilateral que brotou desse grande
movimento, foi uma experiência pioneira no sentido de se criar um espaço
institucional para a negociação, ajuda e intercâmbio de recursos técnicos e
culturais entre as nações, de modo a garantir a paz e a sobrevivência. A I
Guerra Mundial foi assustadora em termos de perdas de vidas humanas nos
campos de batalha e mesmo fora deles. Reagia-se, portanto, ao que poderia
acontecer à sociedade civil com o uso de armas químicas e bombardeios
aéreos contra portos, fábricas, quartéis e edifícios públicos nas cidades, estas
cada vez mais povoadas com a industrialização a pleno vapor.
A tentativa de agir sobre possíveis causas das guerras foi evidente. O
grande desígnio era poupar a população civil, ou seja, a humanidade do
perigo de uma guerra de proporções muitas vezes maior (o que veio a
acontecer mais tarde) e para isso convocavam-se as sociedades de todos
os países. Salvar a humanidade, porém, era difícil de ser aceito, era difí-
cil conceber tal coletivo, o conceito não estava consolidado.

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Ao final da II Guerra Mundial, nova tentativa de se estabelecer
uma organização multilateral para preservar a paz foi empreendida. A
Organização das Nações Unidas foi criada em 1945 e sua estratégia de
intervenção diversificou-se, buscando-se, explicitamente, proteger os
direitos humanos fundamentais e alcançar o progresso econômico-
-social, com a criação do Banco Internacional para a Reconstrução e o
Desenvolvimento (BIRD), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e
o projeto de criação de uma Organização Internacional do Comércio,
que só viria a ser instituída formalmente em 1995 como Organização
Mundial do Comércio (OMC). Em 1948, a Declaração Universal de
Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais foi redigida e acoplada
à Carta das Nações Unidas. A experiência nefasta dos totalitarismos
nazista e fascista, que buscaram negar ou desconhecer os direitos hu-
manos, havia mostrado a importância de se dar ampla consciência
daqueles direitos.
Em paralelo, ainda em 1948 foi criada a Organização dos Estados
Americanos (OEA), seguida em 1949 pelo Conselho da Europa, em
1954 pela Comissão Europeia dos Direitos Humanos, em 1959 pela
Corte Europeia dos Direitos Humanos, em 1963 pela Organização da
Unidade Africana, em 1983 pela Organização Árabe dos Direitos Hu-
manos, o que indica o avanço do movimento por todos os continentes.
Intercaladas a essas datas foram criadas inúmeras organizações não go-
vernamentais voltadas para a observação de abusos aos direitos huma-
nos, destacando-se a Anistia Internacional, em 1961, a Pontifícia Co-
missão de Justiça e Paz, em 1967, a Helsinki Watch, em 1978, além de
organismos da própria ONU e de alcance continental.
Mais ainda: a ONU criou instrumentos para cercear abusos aos
direitos humanos, os quais têm obtido considerável ratificação por par-
te dos países-membros. São eles: a Convenção Internacional sobre Di-
reitos Civis e Políticos e a Convenção Internacional para a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965; o Acordo Inter-
nacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966; a
Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Contra a Mulher, de 1979; a Convenção contra a Tortura e Outros
Tratamentos ou Punições Degradantes, Inumanos ou Cruéis, de 1984;

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e a Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989. E criou, ainda,
comissões que monitoram cada um desses tratados.
O efeito concreto da Declaração Universal de Direitos Humanos e
de todo aparato descrito acima para colocá-la em ação pode ainda não
ter tido o alcance que se esperava. Mas ela teve um significativo efeito
no fortalecimento e na universalização da noção de humanidade.

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Democracia, direitos humanos e
gênero: da política educacional ao
cotidiano das escolas paulistas

Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo

Pós-Doutora em Educação pela Universidade do Minho-Braga-Portugal. Doutora em


Sociologia pela Universidade de São Paulo (2003). Mestra em Educação pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP. Professora
Assistente Doutora efetiva da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
– Departamento de Administração e Supervisão Escolar – Faculdade de Filosofia e
Ciências, campus de Marília-São Paulo/Brasil.

A experiência democrática no Brasil, desde o fim da ditadura mili-


tar, tem sido marcada por muitas conquistas e, ao mesmo tempo, difi-
culdades de concretização de uma sociedade mais equitativa, humana e
justa. Uma das deficiências da democracia brasileira reside na debilidade
da cultura de direitos humanos. O país ainda continua marcado pela
desigualdade social, política e econômica, atingindo principalmente os
grupos mais vulneráveis, as mulheres, os negros, os homossexuais, os
índios, os pobres. Para a consolidação da democracia, há necessidade de
um processo de aprendizagem do viver democrático e de criação de uma
cultura de direitos. Esta aprendizagem se dá na vida em sociedade nos
seus diferentes âmbitos, dentre eles, na escola.
Nas sociedades democráticas capitalistas, as escolas vivem os refle-
xos desta contradição, pois foram organizadas com base em sistemas de
igualdade política e de direitos, dentro de um sistema de desigualdade
que exclui alguns grupos sociais de seus direitos. O ideal de formar
cidadãos e cidadãs emancipados, que assimilaram valores democráti-
cos, parece não ter se realizado plenamente; as relações interpessoais,

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nas escolas e fora dela, no geral, também não se democratizaram. A es-
cassa importância que o currículo atribui à diversidade de saberes que a
humanidade tem elaborado na esfera da privacidade, ou mesmo no que
se refere à história não registrada da esfera pública, como dos movimen-
tos sociais, dentre eles a do movimento feminista, faz com que os estu-
dantes não tenham a possibilidade de aprender, na escola, os conheci-
mentos básicos para resolver adequadamente os problemas da vida
privada e da vida pública.
Temos como pressuposto que a democracia, para se concretizar na
educação, demanda investimento: na concepção de escola, que deve
ser entendida como locus de participação democrática e no currículo,
que deve contemplar os valores da democracia, os direitos humanos e
a questão de gênero. Nessa perspectiva, consideramos que tanto a Su-
pervisão de Ensino quanto a Administração Escolar têm um papel
essencial para que esse projeto se desenvolva, portanto, enfocamos
também como esses profissionais concebem, se e como trabalham as
questões objeto deste artigo.
A pesquisa, em andamento desde o ano 2000, está sendo realizada
em escolas públicas da cidade de Marília, no Estado de São Paulo, Bra-
sil, com o objetivo de observar como a democracia é vivenciada no seu
cotidiano, nos órgãos colegiados (Conselho de Escola, Associação de
Pais e Mestres – APM) e no Grêmio Estudantil. Outro objetivo é co-
nhecer a concepção de democracia, direitos humanos e gênero que pre-
domina entre os agentes da educação, se e como estes temas aparecem
no currículo e nas relações interpessoais que acontecem nesses órgãos.
Está sendo realizada nos moldes de uma pesquisa qualitativa, por meio
da observação das relações que se estabelecem entre os atores do proces-
so educacional (professores, alunos, a Coordenação Pedagógica, a Ad-
ministração e a Supervisão), de entrevistas e da análise do Projeto Polí-
tico-Pedagógico das escolas.
Abordaremos aqui parte do que temos observado no desenvolvi-
mento dessa pesquisa, iniciando as reflexões à luz da literatura a respeito
da temática e de parte dos documentos legais que abordam as questões
estudadas para, na sequência, apontar as constatações apreendidas na
observação do cotidiano das escolas públicas.

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Das normas ao currículo: democracia, direitos
humanos e gênero

No Brasil, até os anos de 1970, o modelo de gestão pública se


pautava na concentração das decisões políticas e administrativas na
esfera federal. Nos anos de 1980, com o processo de redemocratização
do país, busca-se a descentralização da administração pública. Ao
mesmo tempo, com o declínio da economia e a crise fiscal em curso,
o Estado investe na descentralização das ações públicas com novas
formas de se relacionar com a sociedade civil. Embora nosso processo
histórico tenha sido marcado pela busca da democracia, há dificulda-
des para sua consolidação. Dentre outros condicionantes, conforme
Scheinvar e Algebaile (2004, p. 90), ao mesmo tempo em que consta-
tamos avanços no que diz respeito à participação democrática, obser-
vamos a continuidade de “práticas clientelistas, assistencialistas e cor-
porativistas, que têm comprometido o processo de democratização do
país, principalmente no que tange à escolha de representantes políti-
cos para as diferentes instâncias de poder”.
Como contraponto a essa prática política, principalmente após a
promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil (BRA-
SIL, 2000), alguns governos de tendências mais progressistas têm ado-
tado a participação popular como forma alternativa aos modelos tradi-
cionais: no orçamento participativo, criando conselhos de direitos,
parcerias comunitárias; entretanto, coexistem com o desejo de cultura
democrática, a cultura política centralista e autoritária que, conforme
Scheinvar e Algebaile (2004, p. 90), impõe para as “comunidades locais,
o que elas devem fazer”, assim, a participação democrática acaba por
não acontecer. Isso contribui “para gerar descrença nas iniciativas locais
e nos sujeitos sociais. Também tem fortalecido as práticas paternalistas e
clientelistas, camufladas num discurso democrático e participativo”.
Ainda de acordo com as autoras e com o que temos constatado nas
escolas, estas também estão influenciadas por esta cultura política que
condiciona as relações de poder que ocorrem em seu cotidiano. A esco-
la, responsável pelo ensino sistematizado e acumulado pela humanida-
de, tem incorporado os discursos da descentralização, contudo, vive a
contradição de também adotar práticas centralizadoras.

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As autoras ainda argumentam que é necessário compreender a
questão do poder nas relações entre os sujeitos participantes da prática
social que acontece na escola, na perspectiva da microfísica do poder de
Foucault (apud SCHEINVAR; ALGEBAILE, 2004, p. 94), “que envol-
ve a análise de vários fatores e de diferentes ações do processo educativo:
a gestão, a avaliação, o currículo, a cultura, o imaginário social etc.”.
Paro (2000) argumenta que é preciso verificar, na atualidade, em
que condições a participação ocorre investigando as potencialidades e os
obstáculos à participação, presentes tanto na Unidade Escolar quanto
na comunidade, tendo em mente que tanto uma quanto a outra são
resultado de determinações econômicas, sociais e políticas mais amplas.
É preciso ter consciência de que os avanços que ocorrerem visando a
democratização das relações no interior da Unidade Escolar ocorrerão
também em função das lutas que se fizerem em toda a sociedade civil.
É preciso relembrar, na escola, o que expõe Bernardes (2008, p. 202):

(...) a mobilização política popular na esfera pública não apenas contribuiu


para o fim do regime militar, mas também tornou possível que grupos
antes invisíveis – como mulheres, negros e homossexuais – conseguissem
incluir na agenda política assuntos do seu interesse, tais como ações afir-
mativas, violência doméstica e liberdade de orientação sexual.

Ao mesmo tempo, há que se considerar o que Silva (1999, p. 13-


14) afirma. Nas últimas décadas, apesar do ideal democrático,

estamos presenciando um processo amplo de redefinição global das esfe-


ras social, política e pessoal, no qual complexos e eficazes mecanismos de
significação e representação são utilizados para criar e recriar um clima fa-
vorável à visão social e política liberal. O que está em jogo não é apenas
uma reestruturação neoliberal das esferas econômica, social e política, mas
uma reelaboração e redefinição das próprias formas de representação e
significação social. O projeto neoconservador e neoliberal envolve, central-
mente, a criação de um espaço em que se torne impossível pensar o eco-
nômico, o político e o social fora das categorias que justificam o arranjo
social capitalista.

Silva (1999, p. 14) ainda argumenta que, para entender as estra­


tégias do projeto neoliberal para a educação brasileira, é importante

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compreender que esse é parte de um processo internacional mais amplo
no qual “se insere a redefinição da educação em termos de mercado”.
De acordo com Anderson (apud Enguitta, 1999, p. 117), as
ditaduras latino-americanas criaram “as condições para o retorno a uma
institucionalidade democrática controlada, uma democracia da derrota
ou, mais paradoxalmente, uma democracia ‘não democrática’”.
Foi neste contexto que começou a expandir-se, no começo dos anos
de 1980, um movimento por reformas democratizadoras no campo
educacional. Segundo Gentili (1999, p. 121), em uma década, passa-
da a “euforia democratizadora” do primeiro período pós-ditatorial,
“democratizar a educação” constituiu-se num tema esquecido.
Nesse processo de redemocratização do país, entretanto, a gestão
democrática da educação constituiu-se num princípio da Constituição
da República Federativa do Brasil (BRASIL, 2000), da Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (CURY, 2000) e está contemplada nas
Normas Regimentais Básicas (SÃO PAULO, Estado, 1998) para as es-
colas públicas do Estado de São Paulo.
Diante dessa perspectiva, o que se apreende, tanto da teoria a res-
peito do tema quanto da observação do cotidiano, é que a sociedade se
democratizou formalmente e em alguns aspectos. Em países como o
Brasil, que não chegou a atingir o Estado do Bem-Estar Social, é real o
aviltamento de direitos e também a não democratização de instituições
como a família, os partidos políticos, a escola, entre outros.
Apesar de termos assegurado, em termos legais, os mecanismos de
participação democrática reivindicados desde a década de 1980, acredi-
tamos que, no cotidiano, estamos ainda vivendo o processo de demo-
cratização. Portanto, na escola, para formar cidadãos e cidadãs no seu
sentido pleno, temos de proporcionar condições para que a cidadania
seja vivenciada no seu cotidiano, promova a politização dos(as) estudan-
tes e leve ao conhecimento acerca das injustiças sociais, conforme se lê
em Anyon (2011).
Concebendo que a cidadania democrática, conforme afirma Be-
nevides (2004, p. 50) pressupõe “igualdade diante da lei, a igualdade
de participação política e a igualdade de condições socioeconômicas
básicas – o que garante a vida com dignidade”, nos anos de 1990 a

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cidadania ativa tornou-se a meta, podendo ser exercida nos partidos
políticos, nos sindicatos, nas ONGs, nas associações de base e movi-
mentos sociais, em processos decisórios na esfera pública ou nos con-
selhos de direitos.
Na Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional, art. 32,
observamos que o objetivo maior do Ensino Fundamental é propiciar a
todos formação básica para a cidadania, a partir da criação na escola de
condições de aprendizagem para

o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo por meios básicos o


pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo; a compreensão do am-
biente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos
valores em que se fundamenta a sociedade; o desenvolvimento da capaci-
dade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e
habilidades e a formação de atitudes e valores; o fortalecimento dos víncu-
los de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca
em que se assenta a vida social (CURY, 2000, p. 94).

Conforme afirmamos, para a efetivação dos objetivos apontados


acima, há que se adequar a educação aos ideais democráticos e à busca
da melhoria da qualidade do ensino nas escolas brasileiras. Nas décadas
de 1970 e 1980 a tônica da política educacional brasileira recaiu sobre a
expansão das oportunidades de escolarização, havendo um aumento ex-
pressivo no acesso à escola básica, contudo a qualidade do ensino não
ocorreu, não correspondeu às demandas da clientela que naquele mo-
mento adentrara na escola pública.
Tendo em vista as normas colocadas pela Lei de Diretrizes e Bases
para a Educação Nacional (CURY, 2000), as Normas Regimentais Bá-
sicas para as Escolas Estaduais (SÃO PAULO, Estado, 1998) foram ela-
boradas também reafirmando o projeto de gestão democrática. Elas
dispõem sobre os aspectos: organização e funcionamento das escolas,
gestão democrática, processo de avaliação, organização e desenvolvi-
mento do ensino, organização técnico-administrativa e organização da
vida escolar.
No que se refere à Gestão Democrática, o art. 7º diz que “a gestão
democrática tem por finalidade possibilitar à escola maior grau de auto-

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nomia, de forma a garantir o pluralismo de ideias e de concepções peda-
gógicas, assegurando padrão adequado de qualidade do ensino minis-
trado”. Afirma a responsabilidade dos órgãos centrais e locais pela
Administração e pela Supervisão da rede estadual de ensino no processo
de construção dessa gestão e, no art. 9º, mostra como conseguir tal ob-
jetivo: por meio da participação dos profissionais da escola na elabora-
ção da proposta pedagógica, do envolvimento de todos (direção, profes-
sores, pais, alunos e funcionários) nos processos consultivos e decisórios,
nos órgãos colegiados e nas instituições escolares. Dispõe, também, so-
bre a autonomia da gestão pedagógica, administrativa e financeira.
No Capítulo II, aborda as atribuições da Associação de Pais e Mes-
tres e do Grêmio Estudantil, vistas como Instituições Escolares que de-
vem ter maior envolvimento na escola. Mostram as Normas (SÃO
PAULO, Estado, 1998, p. 6-7), no art. 11, que as instituições escolares
“terão a função de aprimorar o processo de construção da autonomia da
escola e as relações de convivência intra e extraescolar”. No seu parágra-
fo único traz a incumbência, para a direção da escola, de “garantir a ar-
ticulação da associação de pais e mestres com o conselho de escola e
criar condições para organização dos alunos no grêmio estudantil”.
No art. 64, as Normas (SÃO PAULO, Estado, 1998) estabelecem a
responsabilidade do diretor em fazer com que a equipe tome conheci-
mento da legislação e que ela seja cumprida. É esperado que exerça dife-
rentes papéis: de autoridade escolar, de educador e de administrador. É o
responsável por tudo o que acontece na escola; deve orientar suas ações e
a de todos os sujeitos envolvidos no processo para a concretização do
projeto pedagógico e, além do mais, tem o compromisso de assegurar o
cumprimento das normas que garantem o funcionamento da Unidade
Escolar.
No que se refere às funções do corpo-docente, explicitadas no Ca-
pítulo VI, art. 68, também é afirmada a necessidade do seu envolvimen-
to tanto na elaboração e desenvolvimento do projeto pedagógico quan-
to na articulação da escola com as famílias e a comunidade.
Nesse caminhar, que tem como ideal a democracia, as políticas
educacionais deveriam também contemplar os valores democráticos
no currículo pois há que se considerar o que afirma Costa (2001, p. 52),

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que as teorias do currículo são uma forma especial de “tecnologia de
governo que trata do nexo entre pontos importantes – como os indiví-
duos são (Psicologia, Sociologia), como deveriam/poderiam ser (Proje-
tos Político-Filosóficos) e quais saberes são adequados para produzi-los
(Teoria do Currículo)”.
Nessa perspectiva, o Estado democrático, para formar para a cida-
dania meninos e meninas, no seu sentido pleno, deveria implementar
políticas educacionais que incluíssem, no currículo, os direitos huma-
nos e a questão de gênero. No que se refere aos direitos humanos, obser-
vamos que esse ideário está presente nos documentos analisados, inclu-
sive nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs (BRASIL, 1997).
Contudo, há que se fazer ressalvas com relação à forma como as ques-
tões de gênero são tratadas na Constituição Federal, de 1988, na LDB,
de 1996, e até no Plano Nacional de Educação, de 2001. De acordo
com Vianna e Unbehaum (2004, p. 89), nestes documentos, o gênero
aparece “velado”, com três características distintas: na linguagem utiliza-
da, com ênfase na forma masculina; na referência aos direitos, nos quais
gênero está subentendido e quando aparece brevemente em alguns tópi-
cos desses documentos.
Conforme as autoras argumentam, nos PCNs (BRASIL, 1997, p. 96),
as questões de gênero aparecem em “aspectos relativos aos significados
e às implicações de gênero nas relações e nos conteúdos escolares”.
Além disso, trazem como eixo central da educação escolar o exercício
da cidadania apresentando “a inclusão de temas que visam resgatar a
dignidade da pessoa humana, a igualdade de direitos, a participação
ativa na sociedade e a corresponsabilidade pela vida social” (VIANNA;
UNBEHAUM, 2004, p. 89).
Numa análise mais cuidadosa, entretanto, verificamos que há um
tratamento breve da questão de gênero nesses documentos e, além disso,
é discutível associar gênero com sexualidade e doença. Nos temas trans-
versais, gênero é trabalhado, na Orientação Sexual, juntamente à Preven-
ção de Doenças Sexualmente Transmissíveis/Aids (BRASIL, 1997). Apesar
disso, podemos afirmar que, nos PCNs, há um certo avanço em relação
à questão de gênero, contudo, a temática deveria estar contemplada em
todo o documento de forma clara e mais incisiva.

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É preciso considerar o que Carvalho, Rabay e Brabo (2010, 259)
afirmam no que se refere às políticas do período:

As proposições contidas nesses marcos legais e políticos, no sentido de inclu-


são de novos sujeitos de direitos, expressam novas visões, sentimentos e valo-
res e requerem novas relações e práticas sociais; implicam, assim, mudança
cultural, o que não se dá sem a reeducação das gerações adultas (educação ao
longo da vida) concomitantemente à educação das novas gerações.

A importância de tais temas na escola se justifica, pois, além de se-


rem pressupostos da democracia, conforme Bourdieu (1998, p. 18), “de
todos os fatores de mudança, os mais importantes são os que estão rela-
cionados com a transformação decisiva da função da instituição escolar
na reprodução da diferença ente os gêneros”. Além disso,

só uma ação política que leve realmente em conta todos os efeitos de domi-
nação que se exercem através da cumplicidade objetiva entre as estruturas
incorporadas (tanto entre as mulheres quanto entre os homens) e as estru-
turas de grandes instituições em que se realizam e se produzem não só a
ordem masculina, mas também toda a ordem social (a começar pelo Estado,
estruturado em torno da oposição entre sua “mão direita”, masculina, e sua
“mão esquerda”, feminina, e a Escola, responsável pela reprodução efetiva de
todos os princípios de visão e de divisão fundamentais, e organizada tam-
bém em torno de oposições homólogas) poderá, a longo prazo, sem dúvida,
e trabalhando com as contradições inerentes aos diferentes mecanismos ou
instituições referidas, contribuindo para o desaparecimento progressivo da
dominação masculina (BOURDIEU, 2005, p. 139).

É preciso considerar também o que aponta Louro (2001, p. 87-88),


que é por intermédio de um aprendizado eficaz, continuado e sutil, que,
na escola,

meninos e meninas, jovens, mulheres e homens aprendem e incorpo-


ram gestos, movimentos, habilidades e sentidos; simultaneamente, eles
e elas respondem, reagem, acatam e rejeitam. Envolvidos/as por inú-
meros dispositivos e práticas, os sujeitos constituem suas identidades
“escolarizadas”, nelas integrando as marcas que confirmam e produzem
as diferenças e as hierarquias.

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E, nesse ambiente, “currículos, normas, procedimentos de ensino,
teorias, linguagem, materiais didáticos, processos de avaliação consti-
tuem-se em espaços da construção das ‘diferenças’ de gênero, de sexua-
lidade, de etnia, de classe” (LOURO, 2001, p. 88).
Além do mais, conforme Silva (1999, p. 28) afirma, os educado-
res e educadoras precisam assumir “sua identidade como trabalhado-
res/as culturais envolvidos/as na produção de uma memória históri-
ca e como sujeitos sociais que criam e recriam o espaço e a vida
social”. Além disso, devem considerar que o campo educacional é
cruzado por relações de poder que conectam “poder e cultura, peda-
gogia e política, memória e história”. Tais questões, bem como os
temas aqui trabalhados, devem estar presentes também no currículo
dos Cursos de Formação inicial de profissionais da educação e nos de
Formação Continuada para docentes que já estão inseridos no siste-
ma educacional.
Silva (1998, p. 220) relembra Hannah Arendt, quando afirma que
a “cidadania é a consciência que o indivíduo tem do DIREITO A TER
DIREITOS”. Este é um dos desafios da escola, fazer com que crianças,
jovens e adultos adquiram esta consciência de que são sujeitos de direitos.
A autora, relembrando Paiva (1997 apud SILVA, 1998), ainda aponta
que “assegurar os direitos humanos dentro das escolas depende, portan-
to, do nível em que a sociedade logra assegurá-los fora da escola”. Ainda
conforme a autora, argumentamos que um projeto de escola que tenha
como compromisso a formação da cidadania deve considerar, antes de
tudo, que a educação é um direito e

1. que a educação formal, enquanto direito de todos, é condição essencial


à formação da cidadania e tem na escola o seu espaço privilegiado. Lutar
pela conquista da escola pública de qualidade é antes de tudo lutar por
uma sociedade democrática;
2. que a escola, de fato, cumpra o seu papel e sua função social, enquanto
locus de construção e socialização do conhecimento. É, portanto, tarefa da
escola garantir que todo aluno aprenda. O acesso ao conhecimento deve
ser entendido como um instrumento de luta, pois sabemos que em uma
sociedade como a nossa, conhecimento é antes de tudo poder (SILVA,
1998, p. 220).

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Além do mais, que o projeto de escola democrática e a formação
para a cidadania é um processo contínuo de aprendizagem de todos os
agentes do processo educacional, não só de alunos e alunas, portanto, o
trabalho coletivo voltado para o mesmo ideal de escola democrática é
mais uma necessidade. Nesta perspectiva, pensar

3. que trabalhar os direitos humanos e a formação da cidadania deve ser


projeto global da escola, isto quer dizer, com a participação de todos os
atores que nela atuam;
4. o desenvolvimento de um processo de conscientização contínuo e per-
manente dos direitos e deveres que regulam o conjunto da sociedade,
através, por exemplo, do estudo das leis e dos mecanismos para a materia-
lização dos direitos. Esta conscientização deve ser calcada no princípio da
solidariedade e na perspectiva da mudança de mentalidade;
5. o respeitar às diferenças individuais sem perder de vista o coletivo (SIL-
VA, 1998, p. 220).

Nesta escola, deve-se pensar que também o currículo deve ser traba-
lhado na perspectiva dos direitos humanos e da cidadania, além de se-
rem inspiradores das relações sociais que na escola acontecem cotidiana-
mente, porque

6. os conteúdos que dão materialidade ao currículo, tendo como eixo inte-


grador os conteúdos dos direitos humanos e da cidadania, sob as diferen-
tes formas de expressão: a música, o teatro, a dança, o texto individual e
coletivo, a poesia, as artes plásticas (SILVA, 1998, p. 221).

A questão da participação não pode ser menosprezada, pois só se


aprende a democracia e a cidadania vivendo-as na vida em sociedade e
na escola, assim, há necessidade ainda de investimento para que os órgãos
colegiados na escola sejam realmente espaços públicos de participação
democrática, a ponto de que

a vivência na escola de práticas que possibilitem a todos os seus agentes a


gestão democrática de forma participativa com instituição de mecanis-
mos tais como: conselho escolar, conselho de classe, organização estudan-
til, grêmios livres, cujas práticas devem ser pautadas no respeito ao outro,
no respeito às diferenças e o estímulo à solidariedade (SILVA, 1998, p. 221).

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Enfim, a politização do trabalho pedagógico deve acontecer em to-
das as práticas, transformando a escola “em palco permanente de discus-
são de temas da atualidade: reeleição, eleição, partidos políticos, formas
de participação direta e violência, entre outros, possibilitando ao aluno
informações necessárias à vivência de práticas que contribuam para o
exercício da cidadania” (SILVA, 1998, p. 221). Diante destas considera-
ções, com as quais corroboramos, passaremos a relatar parte do que
observamos nas escolas estudadas.

Democracia, direitos humanos e gênero: as


políticas educacionais no cotidiano da escola

Por intermédio do estudo exploratório, verificou-se que a docência,


a Administração, a Supervisão, bem como o cargo de Dirigente Regio-
nal de Ensino das escolas estaduais do município estudado, estão sendo
exercidas por mulheres, em sua maioria. Em trabalho anterior, empre-
endido no período de 1994 a 1997, que teve como objeto de estudos
uma escola estadual, observou-se que as questões de gênero faziam par-
te do imaginário das professoras, mas não de sua prática docente. Na-
quele período em que a pesquisa fora realizada, não se observara nenhu-
ma ação ampla que contemplasse a questão de gênero e nenhuma
mudança desta realidade naquela Unidade Escolar, excetuando-se 1986,
quando ocorreu o debate nas Escolas Estaduais paulistas sobre o papel
da mulher na sociedade (SÃO PAULO, Estado, 1987). Nessa ocasião, a
Secretaria Estadual de Educação aderiu à campanha do Conselho Na-
cional dos Direitos da Mulher, incentivando às escolas para que discu-
tissem a questão da mulher na sociedade (BRABO, 2005).
Nesse período, no Estado de São Paulo, nos anos de 1980, adotan-
do como lema descentralização e participação, pressupostos de um Esta-
do federado, o governo implantou, na área da educação, medidas des-
centralizadoras que objetivavam maior eficácia e eficiência, redução de
custos, respeito à cultura local e valorização da economia do município
e da região, com o programa de municipalização da merenda escolar e
das construções escolares. A Proposta Curricular para a educação paulis-
ta, embora não abordasse claramente os direitos humanos e a questão de

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gênero, trazia em seu bojo o incentivo à participação de todos na escola
(nos Conselhos, na Associação de Pais e Mestres, nos Grêmios Estudan-
tis) visando ao desenvolvimento de práticas de participação democrática
e a construção da cidadania.
Conforme Aredes (2002), até 1978, o Conselho de Escola tinha
caráter consultivo e suas atribuições eram definidas pelo Poder Exe-
cutivo; era, portanto, um órgão sem poder de decisão na área relati-
va à parte pedagógica que afetasse o processo educacional. O mesmo
pudemos observar no cotidiano das escolas naquele período pós-di-
tatorial: havia resistência por parte de administradores das escolas
para a criação do Grêmio Estudantil e a participação dos professores
nos Conselhos de Escola se dava como uma formalidade. Tal consta-
tação nos leva a reconhecer o que Bobbio (1992) afirma, que conse-
guimos, nos anos de 1980, a democracia política e não a democracia
social. Tal problema constitui-se num círculo vicioso difícil de rom-
per. Daí veio a necessidade, anseio dos anos de 1990, de exercermos
uma cidadania ativa.
Embora sejam várias as críticas à LDB, elaborada e aprovada à luz
da CF/88, ela garante avanços em relação à questão de se ter uma escola
mais democrática e de melhor qualidade. Conforme afirmamos, no
Estado de São Paulo já havia um investimento em termos legais e de
políticas educacionais nesse sentido, nos anos de 1980. Da mesma
forma, no final dos anos de 1990, no bojo das mudanças implementa-
das pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, as Normas
Regimentais Básicas representam um avanço no sentido de concretiza-
ção da escola democrática e autônoma.
Entretanto, ainda são muitas as dificuldades para o vivenciar defi­
nitivo de uma gestão democrática: inexistência de canais eficazes de co-
municação; resistência de segmentos da escola; ausência histórica de
uma cultura de participação na sociedade brasileira; a forma dos enca-
minhamentos das políticas públicas pelos órgãos intermediários de co-
ordenação da educação Secretaria de Estado da Educação e Diretorias
de Ensino; o acúmulo de atividades sob a responsabilidade do adminis-
trador e supervisor de ensino, bem como as exigências burocráticas.
Embora já se possa observar mudanças com relação à atuação de muitos

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administradores e supervisores rumo à construção coletiva da cultura
democrática, não é realidade em todas as escolas (BRABO, 2004).
Uma das obrigações legais da Administração e da Supervisão diz
respeito a facilitar a comunicação entre os diferentes segmentos dentro
da escola, entre estes e a comunidade, e entre a comunidade e as instân-
cias administrativas. Contudo, ela ainda não foi concretizada na escola.
Corroborando com Aredes (2002), observamos que o Conselho de Es-
cola, a APM e o Grêmio Estudantil agem como se não tivessem relação
uns com os outros, como se fossem espaços de participação isolados
dentro da unidade. Outra responsabilidade da Administração é levar o
conhecimento da legislação que organiza esses órgãos, contudo, a maio-
ria dos pais não tem conhecimento dela nem da importância de sua
participação neles. Apesar disso, o Conselho é o órgão mais respeitado
na escola.
Quanto ao Grêmio, observamos que há interesse dos jovens em
participar nesse órgão. A atuação ocorre no sentido de ajudar a escola,
de atender à demanda dos alunos, de melhor aproveitar o tempo e o
espaço escolar. Não se observaram atividades conjuntas com o Conse-
lho ou com a APM. Neste sentido, não houve o aprendizado político
coletivo de refletir e opinar sobre o desenvolvimento do projeto de
gestão da escola. Entretanto, ocorreu interlocução junto à Direção, à
Coordenação Pedagógica e aos professores e professoras, o que, de
certa forma, possibilitou um aprendizado de diálogo democrático
para os jovens que faziam parte do Grêmio. Por meio da observação
das reuniões, acompanhamento do processo eleitoral para eleição de
seus membros e entrevistas, foi possível constatar que as reuniões eram
momentos de diálogo entre todos, meninos e meninas. O processo da
campanha eleitoral, desde a elaboração da proposta de trabalho até o
debate com o restante dos alunos e das alunas, foram momentos de
aprendizagem de diálogos democráticos e das normas legais que orga-
nizam o pleito. Depois de eleitos, tomaram conhecimento das normas
legais que organizam qualquer instituição.
Observamos também que ainda há resistência por parte de alguns
segmentos com relação ao avanço da prática da democracia na escola
que, em alguns casos, vem por parte da administração. Aparentemente,

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há o receio de compartilhar o poder, mesmo nos casos em que a admi-
nistração afirmava que promovia o trabalho coletivo e que era favorável
à democratização da escola. Vale considerar que o trabalho baseado nos
princípios democráticos exige mais responsabilidades da direção da es-
cola para o bem comum. Além disso, exige transparência, honestidade,
paciência e, sobretudo, o diretor não pode ter uma postura rígida e au-
toritária ou a de um dono do cargo (BRABO, 2009).
A ausência de uma cultura de participação é uma característica tan-
to da comunidade escolar como da sociedade brasileira em geral. Apesar
de nas políticas educacionais e na legislação haver a ênfase à participação
da comunidade, dos professores e dos alunos na gestão democrática da
escola pública, na realidade, os profissionais do ensino pouco decidem,
a autonomia da escola não ocorre e a forma como os profissionais da
educação são tratados pelo Poder Público são fatores que dificultam a
participação democrática. Além do mais, a escola parece não confiar na
capacidade da população de emitir opiniões e tomar decisões em relação
aos seus problemas, conforme Aredes (2002) também observou.
A dificuldade de participação democrática diz respeito a todos os
profissionais da educação, conforme constatamos em depoimentos de
supervisoras. Atualmente, não há abertura, o sistema educacional está
mais centralizador ainda do que em décadas passadas. Além do mais, a
estrutura escolar e os Projetos Político-Pedagógicos ainda dominantes
nas escolas não respondem aos desafios que estão postos para a educação
da juventude contemporânea, conforme observa Dayrell (2003).
Podemos afirmar, entretanto, que também observamos avanços,
pois algumas escolas públicas estão caminhando para a concretização da
gestão democrática, apesar de todos os problemas e dificuldades viven-
ciados por muitas das escolas da rede estadual de ensino (violência, dro-
gas, gravidez precoce, indisciplina), das agressões entre eles e dos alunos
e alunas para com os professores e as professoras e, em alguns casos, destes
para com alunos, o que mostra que a violência simbólica está presente
no fazer pedagógico. Acrescente-se, ainda, que o profissional da educa-
ção se vê cada vez mais desrespeitado, desestimulado, desconsiderado e
violentado nos seus direitos, conforme Silva (1998, p. 220) também
constatou. Vemos hoje um agravamento provocado por políticas gover-

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namentais que “vêm contribuindo para sucatear a profissão docente e
desmoralizar os educadores de um modo geral, com medidas que aca-
bam com conquistas históricas da categoria”.
Apesar de todos estes problemas que contribuem consideravelmen-
te para a dificuldade de concretização da cultura em direitos humanos e
democrática na escola, aos quais devem ser acrescentados os condicio-
nantes históricos, políticos e sociais do processo de constituição da so-
ciedade brasileira, há aquelas escolas que conseguem realizar a constru-
ção coletiva do projeto pedagógico visando à melhoria da qualidade do
ensino e têm caminhado no sentido da cultura democrática. Entretanto,
encontramos também uma visão distorcida sobre direitos humanos e
cidadania, cujos depoimentos trazem a necessidade hoje de se pensar
também em deveres, pois “os direitos eles já conhecem muito bem, mas
esquecem dos deveres”, conforme afirmaram alguns docentes.
Há, também, os casos de escolas nas quais nem sempre as pessoas con-
seguem unir-se em torno de objetivos comuns, pois a própria legislação deli-
mita as funções de cada segmento ou de cada pessoa, de modo que perma-
nece o trabalho individual em detrimento do coletivo (BRABO, 2004).
A democratização da escola pública, a formação em direitos huma-
nos ainda é um projeto em construção. Os projetos que versavam sobre
a temática dos direitos humanos, estimulados pela Secretaria Estadual
de Educação nos anos de 1990, nem todos tiveram continuidade. E,
também, não ocorreram cursos de formação continuada com essa temá-
tica para todos os profissionais da educação, a não ser em alguns mo-
mentos pontuais, mas que não provocaram transformação nas práticas
vivenciadas nas escolas.
Um avanço para a educação em direitos humanos em todos os ní-
veis de ensino foi a proposta do Plano Nacional de Educação em Direi-
tos Humanos (BRASIL, 2006), lançado em 2006, que contempla a
questão de gênero e a diversidade, além da questão étnico/racial. Propõe
que a educação em direitos humanos seja trabalhada em todas as áreas
do conhecimento, envolvendo também a formação dos profissionais da
segurança pública e a mídia.
No que se refere à questão de gênero nas escolas estudadas, consta-
tamos que ainda é um tema praticamente não conhecido e não trabalha-
do. Geralmente, as pessoas desconhecem o tema continuando o reforço
à visão androcêntrica de mundo, aos estereótipos de gênero e ao sexis-

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mo. Apesar disso, o incentivo à participação nos órgãos colegiados tem
contribuído para relações sociais de gênero mais igualitárias entre os
jovens, contudo, ainda não aparece a preocupação com essa questão no
Projeto Político Pedagógico, embora algumas escolas promovam alguns
debates pontuais sobre a temática. Assim, as alunas têm maior dificul-
dade para identificar-se com um currículo que esquece as contribuições
femininas na sociedade, impondo a elas a aceitação de uma identidade
cultural que lhes atribui meia cidadania ou uma cidadania imperfeita.
Podemos afirmar, concordando com Louro (2001) e com Moreno
(1999) que a escola e o currículo, seja pelo silêncio ou pela fala, seja
pelas práticas pedagógicas cotidianas, ainda são responsáveis pela trans-
missão de modelos segregacionistas e contribuem para a construção de
identidades de gênero, de classe e de etnia marcadas pela desigualdade e
pela hierarquia. Pelas questões brevemente apontadas, podemos afirmar
que a educação em direitos humanos ainda é um ideal e que a escola
realmente democrática é um projeto em construção.

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Os direitos humanos e o
direito penal do inimigo

Ulysses Monteiro Molitor


Mestre em Direito pela UNIMES. Especialista em Direito. Professor da Universidade
Municipal de São Caetano do Sul e da Faculdade Anhanguera. Assistente Jurídico da
Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Coordenador do Núcleo São
Caetano da Escola Superior de Advocacia da OAB/SP. Advogado.

1 Introdução

Com o advento da era do Terror, iniciada com os ataques às Torres


Gêmeas de Nova York em 11 de setembro, ao Metrô de Madri em 11 de
março, à sede da Organização das Nações Unidas no Iraque, entre ou-
tros, não podemos ignorar a situação de que medidas enérgicas devem
ser tomadas contra grupos terroristas que atuam independentemente
das fronteiras das nações.
A criminalidade agora age de maneira silenciosa e paciente, sendo
que, quando os ataques são realizados, atingem uma expressiva quantida-
de de bens jurídicos, contabilizando-se o número de vítimas aos milhares.
E como fator mais alarmante ainda, os autores dos crimes sequer se
preocupam com as próprias vidas, já que diversas das ações ofensivas são
realizadas de maneira suicida.
Diante de tais barbáries perpetradas, o Direito Penal que até então era
considerado o mecanismo máximo e voraz de combate à lesão de bens
jurídicos, àquele que causava temor perante os homens, que atuava como
elemento de coerção pela imposição de medidas privativas de liberdade e
de direitos, restou agora apenas na simbologia, tornando-se incapaz de
produzir qualquer resultado efetivo frente aos danos ocorridos.

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O Direito Criminal, no entanto, não pode simplesmente ficar silen-
te frente à indústria do medo, enquanto grupos considerados terroristas,
como o Hezbollah, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, o
basco ETA, o islâmico Al-Qaeda e até o Primeiro Comando da Capital,
oriundo de São Paulo, espalham o terror e praticam delitos contra as
massas de maneira covarde.
Não se pode, porém, simplesmente criar um Estado de Exceção no
combate ao terrorismo, sem a presença da legalidade e do Estado de Direito,
devendo inclusive os postulados de Direitos Humanos se harmonizar com
a necessidade de medidas mais enérgicas contra tais agentes criminosos.
A doutrina se manifesta ainda de maneira pacata, apresentando
mais questionamentos do que respostas. A grande missão do Direito
Penal na atualidade se faz presente diante dos crimes de maior gravidade
que devem ser punidos e evitados de maneira mais drástica, mas desde
que dentro da legalidade sem abusos de direito, sob pena de termos que
admitir e aceitar a volta dos selvagens períodos bárbaros.
A criminalidade grave ou contra as massas deve ser evitada, mas não
se utilizando de mecanismos idênticos aos usados pelos delinquentes.

2 Direitos Humanos e Dignidade da Pessoa Humana

No que se refere à origem normatizadora dos Direitos Humanos,


Eugenio Raúl Zaffaroni esclarece que “no auge do horror bélico, em 10
de dezembro de 1948, a Assembleia das Nações Unidas proclamou a
Declaração Universal dos Direitos do Homem, como ‘ideal comum a ser
alcançado por todos os povos e todos os homens’. A Declaração repre-
senta uma baliza ou limite aos ‘direitos naturais’. Não em vão se havia
observado que devia plasmar uma ‘ideologia prática’ (Maritain). Desde
então a Declaração e todos os alicerces em plena construção de um sis-
tema internacional de garantias aos Direitos Humanos vão configuran-
do o limite positivo do que a consciência jurídica universal pretende
impor às ideologias que regem o controle social em todas as nações. Por
certo que ainda está muito longe de aperfeiçoar-se, mas, indiscutivel-
mente, vai se criando uma baliza jurídica positiva que serve de referência”1.

1 Manual de direito penal brasileiro, v. 1, p. 63.

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Desta forma, o processo de criação de normas pelas mais diversas
nações deixou de ser considerado ilimitado, devendo os países em todas
as suas condutas atentar à submissão dos postulados de defesa dos Di-
reitos Humanos na busca de um bem maior que atinja a coletividade
global.
Os documentos orientadores internacionais, tais como a Declaração
Universal dos Direitos Humanos e a Convenção Americana de Direitos
Humanos, devem ser utilizados como norteadores no processo interno de
produção e interpretação de todas as normas, mas principalmente no que
se refere à legislação pertinente ao Direito Penal material e processual.
E é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e pro-
clamada pela Resolução n. 217-A (III) da Assembleia Geral das Nações
Unidas, em 10 de dezembro de 1948, que tem como principal objetivo
a promoção de direitos e liberdades para a pessoa humana.
Seu primeiro e mais importante princípio é o da dignidade da pes-
soa humana. Conforme o artigo I, “todas as pessoas nascem livres e
iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e
devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”.
O artigo apresenta a liberdade e a igualdade frente não só aos di-
reitos, mas também à dignidade, impondo-se o dever de atuação com
espírito de fraternidade. Aceitando o homem a vida em sociedade,
tem como dever a obrigação de tratar todos sem qualquer sentimento
de hierarquia, sem criar qualquer espécie de diferenciação, como a um
irmão.
No nosso ordenamento jurídico pátrio, o princípio da dignidade da
pessoa humana se apresenta como postulado capital da Constituição
Federal, exposto no inciso III2, juntamente com os demais fundamentos
constantes do art. 1º, que, nos termos da lição de Rizzatto Nunes, deve
ser elemento norteador do operador do Direito na sua atuação social
tendo em vista tratar-se de princípio superior a todos os princípios e
normas constitucionais e infraconstitucionais.

2 “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Esta-
dos e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito
e tem como fundamentos: (...) III – a dignidade da pessoa humana.”

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Afirma esse autor que “não pode o Princípio da Dignidade da Pes-
soa Humana ser desconsiderado em nenhum ato de interpretação, apli-
cação ou criação de normas jurídicas. O esforço é necessário porque
sempre haverá aqueles que pretendem dizer ou supor que Dignidade é
uma espécie de enfeite, um valor abstrato de difícil captação. Só que é
bem ao contrário: não só esse princípio é vivo, real, pleno e está em vi-
gor, como deve ser levado em conta sempre, em qualquer situação”3.
Defende ele o dever de dar-se aplicabilidade ao princípio no proces-
so de criação, aplicação e interpretação da norma, temendo o equivoca-
do mas presente raciocínio que não raras vezes vislumbramos estampa-
dos nos noticiários de jornais escritos e televisivos de que os Direitos
Humanos são apenas uma teoria, uma abstração que não se aplica a
qualquer realidade.
Ensina ainda que “a busca da justiça deve ter como base o ser huma-
no. É este que se pretende satisfazer e respeitar”4.
A justiça não deve ser buscada apenas como um fim em si mesmo
sob pena de não apresentar proficuidade qualquer, tal qual um ato
burocrata, mas sim com o escopo de dar satisfação e utilidade ao ser
humano.
Conclui o eminente professor que “desse modo, é fundamental que
se compreenda o pressuposto de toda decisão e o fim que ela deve alme-
jar: a dignidade da pessoa humana. No atual estágio de desenvolvimen-
to do pensamento jurídico não se poderia olvidar esse aspecto extraor-
dinário de avanço que encontrou na dignidade das pessoas o marco de
luta a ser alcançado”5.
Sobre o direito à dignidade da pessoa humana, o jurista argentino
Agustín Gordillo assevera que “además, el derecho a la dignidad huma-
na puede igualmente entenderse en el sentido que ampara el derecho de
las personas a que se respete su salud y su habitat no ejerciendo sin su
consentimiento menoscabos arbitrarios a ella; por extensión, que es un
tratamiento no acorde ni respetuoso a su condición de personalidad

3 O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, p. 51.


4 Manual de filosofia do direito, p. 365.
5 Idem.

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jurídica, que hasta importa en último análisis desconocerle su condición
de sujeto de derecho”6.
Deve sempre ser buscado o reconhecimento dos direitos fundamen-
tais em favor da pessoa humana, sob pena de negar-lhe a própria digni-
dade, pois tal, considerada como um valor e um princípio normativo
fundamental, direciona para si todos os direitos fundamentais, impon-
do seu reconhecimento por todas as gerações7.
A Dignidade da Pessoa Humana é fundamento que se traduz na
impossibilidade de mensurá-lo economicamente, não ficando alheio a
esta condição o nosso ordenamento jurídico.
Ainda que nada fosse previsto na Constituição Federal, o Estado não
poderia ficar alheio ao postulado tendo em vista tratar-se de norma supra-
constitucional. Conforme ensina o professor doutor Tailson Pires Costa,
de rigor é a normatização, já que “a Ciência do Direito se torna positivada
a fim de atender as aspirações do ser humano. A maior aspiração é a pre-
servação da dignidade da pessoa humana, caracterizada como direito”8.
Fica aclarada assim uma imposição de se normatizar os Direitos
Humanos como uma garantia contra arbitrariedades e imposição do
poder pelo uso da força.

3 Direito Penal

Em linhas gerais, o Direito Penal pode ser conceituado como o


conjunto de normas e regras que visam à proteção de bens jurídicos,
bem como o exercício do jus puniendi no caso de lesões a esses bens tu-
telados.
As normas a serem criadas devem sempre guardar consonância com
os postulados da legalidade, da igualdade e do Estado de Direito, junta-
mente com todas as premissas de direitos humanos.
O Princípio da Legalidade está fundamentado no art. 5º, em seus
incisos XXXIX e XL, da CF, que estabelecem respectivamente que “não

6 Derechos humanos, p. XII-2.


7 Ingo Wolfgang Sarlet, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Cons-
tituição Federal de 1988, p. 87.
8 Meio ambiente familiar: a solução para prevenir o crime, p. 62.

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haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia comina-
ção legal” e que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”9.
A igualdade em nosso ordenamento jurídico vem exteriorizada no
caput do art. 5º da Carta Magna, em consonância com o art. 7º da De-
claração Universal dos Direitos do Homem, que enuncia a igualdade de
todos perante a lei, bem como o direito a todos, sem qualquer distinção,
da igual proteção da lei, complementando ainda que “todos têm direito
a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente De-
claração e contra qualquer incitamento a tal discriminação”.
Quanto à aplicação da pena, merece reprodução a lição de Miguel
Reale no sentido de que “sanção é toda consequência que se agrega, inten-
cionalmente, a uma norma, visando ao seu cumprimento obrigatório”10.
Complementou Miguel Reale Junior afirmando que “a pena cons-
titui uma privação de direitos cominada pela lei penal e aplicada pelo
juiz ao condenado, que a ela deve se submeter”11.
No que diz respeito às penas aplicadas, deve ser observado o princí-
pio da humanidade em face de pessoas físicas e que, conforme ensina
Nilo Batista12, busca a aplicação de uma pena racional e proporcional,
pois esta não visa o sofrimento do condenado, conforme a observação
de Fragoso, e não pode desconhecer a figura do réu enquanto pessoa
humana, como assinala Zaffaroni.
Outro princípio de direito penal que guarda consonância com este
estudo é o princípio da pessoalidade da pena, da responsabilidade pes-
soal ou ainda da intranscendência da pena, previsto no inciso XLV do
art. 5º da Carta Magna, enunciando que “nenhuma pena passará da

9 Neste sentido, a Declaração Universal dos Direitos do Homem enuncia no Artigo XI:
“1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até
que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no
qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. 2. Ninguém
poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam de-
lito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta pena mais forte do
que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso”.
10 Filosofia do direito, p. 260.
11 Instituições de direito penal: parte geral, v. I, p. 43.
12 Introdução crítica ao direito penal brasileiro, p. 99.

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pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decre-
tação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos su-
cessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio
transferido”13.
Deste modo, a pena não pode ultrapassar os limites da pessoa do
condenado, não podendo haver ataques contra seus familiares ou pesso-
as de seu relacionamento.
Já o princípio da culpabilidade impõe a individualização da con-
duta daquele que é processado. Conforme a lição de Nilo Batista14,
significa dizer que não pode ser atribuída penalmente qualquer res-
ponsabilidade apenas pelo resultado, figura que se exterioriza na res-
ponsabilidade objetiva. A pessoa somente será punida na medida de
sua culpabilidade, de acordo com a conduta praticada, exigindo-se
ainda que a pena não seja atribuída apenas quando a conduta do
agente seja reprovável.
O estudo dos Direitos Humanos na seara penal traz à baila a maté-
ria de Direito Penal Internacional que possui como bem jurídico tutela-
do a vida social internacional, tendo, entre diversos bens jurídicos, a
busca pela respeito à dignidade da pessoa humana nos tempos de guer-
ra15. Se em tempos de guerra, a dignidade da pessoa humana está em
primeiro plano, de igual modo, em tempos de paz, o Direito Penal deve
protegê-lo, seja quem for o agente criminoso.
Flávia Piovesan, numa ponderação sobre o combate ao terrorismo
em face da preservação dos direitos e liberdades públicas, encara tal per-
gunta como um desafio dos direitos humanos na ordem internacional
contemporânea, propondo a reflexão diante das seguintes indagações:
“Como preservar a Era dos Direitos em tempos de terror? Em que

13 Nesse sentido manifestou-se o Supremo Tribunal Federal: “A intransmissibilidade da


pena traduz postulado de ordem constitucional. A sanção penal não passará da pessoa do
delinquente. Vulnera o princípio da incontagiabilidade da pena a decisão judicial que
permite ao condenado fazer-se substituir, por terceiro absolutamente estranho ao ilícito
penal, na prestação de serviços à comunidade” (HC 68.309, rel. Min. Celso de Mello, j.
em 27-11-1990, DJ de 8-3-1991).
14 Introdução crítica ao direito penal brasileiro, p. 103.
15 Sérgio de Oliveira Médici, Teoria dos tipos penais, p. 71.

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medida os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos podem
servir como salvaguarda do aparato civilizatório de direitos e liberdades,
sendo capazes de fortalecer a ótica multilateralista e o protagonismo da
sociedade civil internacional?”16.
Sobre os Direitos Humanos e a internacionalização do Direito Pe-
nal na esfera processual, Antonio Scarance Fernandes aduz que esta se
manifesta de duas maneiras: “1ª) a atribuição de status constitucional às
normas de direitos humanos dos tratados regionais e internacionais; 2ª)
o trânsito do direito interno para o direito internacional”17.
Nos crimes de maior gravidade, Günther Jakobs propõe a criação
de um critério diferenciador dentro do Direito Penal, um a ser aplicado
para o cidadão, ou seja, para aquela pessoa sem personalidade criminosa
que eventualmente comete um delito, e outro, direcionado para o que
o nobre autor germânico denomina de inimigo, isto é, aquele que co-
mete condutas delitivas graves como se estivesse praticando comporta-
mentos normais de seu cotidiano.
Aludida proposta se coaduna com o princípio da intervenção míni-
ma na medida em que os bens jurídicos em discussão são de suma im-
portância, sendo de rigor sua penalização.
No Direito Penal, o princípio da intervenção mínima encontra seu
fundamento na garantia da liberdade como direito fundamental do ho-
mem e como valor elevado da vida em sociedade, considerada como
imprescindível num Estado Democrático de Direito18.
José E. Sáinz-Cantero Caparrós preleciona que “o setor punitivo
somente deve ocupar-se das agressões mais intoleráveis aos bens jurí-
dicos mais transcendentes, porque é o setor que impõe as mais trau-
máticas sanções”19.
Tal princípio também é conhecido como princípio da ultima ratio,
“regulando o poder incriminador do Estado, apregoando que a tipificação

16 Direitos humanos e justiça internacional, p. 31.


17 Processo penal constitucional, p. 27-28.
18 Edis Milaré, Direito do ambiente: doutrina – jurisprudência – glossário, p. 847.
19 Apud Rogério Greco, Curso de direito penal: parte geral, p. 53.

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penal de uma conduta somente pode ser realizada se esta for o modo
indispensável para a defesa de um bem jurídico”20.
Hassemer, falando sobre um Direito Penal Funcional, particular-
mente sobre a moderna criminalidade, reflete que “nestas áreas, espera-se
a intervenção imediata do Direito Penal, não apenas depois que se tenha
verificado a inadequação de outros meios de controle não penais. O vene-
rável princípio da subsidiariedade ou da ultima ratio do Direito Penal é
simplesmente cancelado para dar lugar a um Direito Penal visto como sola
ratio ou prima ratio na solução social de conflitos: a resposta surge para as
pessoas responsáveis por estas áreas cada vez mais frequentemente como a
primeira, senão a única saída para controlar os problemas”21.
Muñoz Conde assinala que “o poder punitivo do Estado deve estar
regido e limitado pelo princípio da intervenção mínima. Com isto, que-
ro dizer que o Direito Penal somente deve intervir nos casos de ataques
muito graves aos bens jurídicos mais importantes. As perturbações mais
leves do ordenamento jurídico são objetos de outros ramos do Direito”22.
Assim, prestadas algumas considerações necessárias no que tange
aos Direitos Humanos e ao Direito Penal, passamos a analisar a possibi-
lidade de aplicação destes postulados com a tese denominada “Direito
Penal do Inimigo”.

4 Direito Penal do Inimigo

Segundo a proposta de Günther Jakobs, na obra Direito penal do


inimigo, utilizada aqui como referência de estudo, aquele que comete
crimes não poderia ser considerado um cidadão, na medida em que
perde seus direitos por quebrar o contrato social.
A sua tese tem amparo em três máximas que devem ser aplicadas.
Em primeiro lugar, deve ser buscada a antecipação da punição do inimi-
go, exteriorizando o momento consumativo antes da completa lesão ao

20 Cezar Roberto Bitencourt, Tratado de direito penal: parte geral, v. 1, p. 13.


21 Idem, ibidem, p. 14.
22 Apud Rogério Greco, Curso de direito penal: parte geral, p. 53.

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bem jurídico, punindo-o imediatamente. Em segundo lugar, que as pe-
nas devem ser maiores dos que as usualmente aplicadas nos crimes co-
muns, relativizando ou suprimindo ainda garantias constantes no pro-
cesso penal. Por último, clama por um processo legiferante mais
agressivo com penas e procedimentos mais severos para os criminosos
que cometem crimes mais graves, como o terrorismo e o tráfico de dro-
gas, por exemplo.
Apresenta ele seu fundamento com base na doutrina de Thomas
Hobbes e Immanuel Kant, afirmando que devem existir diferenças para
aquele que comete o crime por princípio, isto é, pratica infrações penais
de modo cotidiano sem qualquer senso de reprovação quanto às suas
condutas realizadas, não merecendo então um tratamento igual ao que
deve ser dado ao cidadão que não realiza crimes de maneira rotineira.
Enuncia Jakobs que “Hobbes e Kant conhecem um Direito Penal
do cidadão – contra pessoas que não delinquem de modo persistente
por princípio – e um Direito Penal do inimigo contra quem se desvia
por princípio. Este exclui e aquele deixa incólume o status de pessoa”23.
Em seus estudos sobre o Direito Penal do Inimigo, pondera sobre a
necessidade de antecipação do momento consumativo do crime, não
mais aguardando a lesão ao bem jurídico tutelado; sobre a majoração
das penas a serem impostas para o agente que perpetua tais condutas
típicas; e pela relativização ou exclusão de garantias processuais penais.
Finaliza afirmando que “a função manifesta da pena no Direito Penal
do cidadão é a contradição, e no Direito Penal do inimigo é a eliminação
de um perigo. Os correspondentes tipos ideais praticamente nunca apare-
cerão em uma configuração pura. Ambos os tipos podem ser legítimos”24.
Em sentido oposto, visando afastar a validade dos postulados do
Direito Penal do Inimigo, Manuel Cancio Meliá aponta que seus pres-
supostos de validade são inconstitucionais, que não há contribuição
para a “prevenção policial-fática dos delitos” e, por fim, que o Direito
Penal do Inimigo não estabiliza normas fazendo uso da prevenção geral

23 Direito penal do inimigo: noções e críticas, p. 29.


24 Ibidem, p. 49.

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e positiva, mas, sim, nomeia certos grupos de criminosos, sendo, na
verdade, um direito penal do autor e não um direito penal do fato25.
Não se pretende aceitar também a máxima apresentada por J. H.
Fichte no sentido de que aquele que viole as condutas sociais não deve
mais ser considerado um cidadão sem qualquer espécie de direitos, tal
qual uma morte civil26.
Tratar-se-ia de afronta direta do art. VI da Declaração Universal dos
Direitos do Homem, que dispõe que “toda pessoa tem o direito de ser,
em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei”.
Tal situação não deve prevalecer como regra geral, tendo em vis-
ta que, mesmo diante da prática de um crime com sentença penal
condenatória transitada em julgado, o criminoso não pode ter exclu-
ída a sua condição de detentor de direitos, possuindo, por um lado,
a oportunidade de reinserção na sociedade, sem se olvidar da obriga-
ção de reparar o dano27.
Mencionada reinserção não se limita apenas a retirar o indivíduo do
cumprimento da pena privativa de liberdade, mas sim prestar ações po-
sitivas para que o criminoso, tendo cumprido sua pena, volte à socieda-
de com efetivas condições de ser nela incluído na condição de cidadão.
Para Manuel Cancio Meliá, afirmando objetivamente, “aquilo que
pode denominar-se ‘Direito Penal do inimigo’ não pode ser ‘Direito’”28.
Segundo a lição de Vicente Greco Filho, analisando a obra basilar
deste estudo de Günther Jakobs, “o cidadão, porém, não se transforma
em inimigo pela prática de um crime eventual, impulsivo, ocasional,
circunscrito a determinadas condições fáticas. O inimigo é o criminoso
que rejeita a ordem jurídico-social e que quer impor sua conduta como
outra estrutura de poder”29.
Damásio Evangelista de Jesus, acreditando que tal tendência trata-
-se de uma realidade na moderna lei penal e o que o jurista deveria

25 Ibidem, p. 73-75.
26 Ibidem, p. 26.
27 Ibidem, p. 26-27.
28 Ibidem, p. 13.
29 Manual de processo penal, p. 70.

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construir uma barreira entre tais tendências, assevera que “Jakobs con-
trapõe duas tendências opostas no Direito Penal, as quais convivem no
mesmo plano jurídico, embora sem uma distinção absolutamente pura:
o Direito Penal do Inimigo e o Direito Penal do Cidadão. Ao primeiro,
cumpre a tarefa de garantir a vigência da norma como expressão de uma
determinada sociedade (prevenção geral positiva). Ao outro, cabe a mis-
são de eliminar perigos”30.
Complementa ainda afirmando que “o próprio Jakobs, abando-
nando o enfoque meramente descritivo que inicialmente propõe sobre
o Direito Penal do Inimigo, i.e., deixando de simplesmente tratá-lo
como uma realidade que precisa ser ‘domada’, fundamenta-o e busca
sua legitimidade em três alicerces: 1) o Estado tem direito a procurar
segurança em face de indivíduos que reincidam persistentemente por
meio da aplicação de institutos juridicamente válidos (exemplo: medi-
das de segurança); 2) os cidadãos têm direito de exigir que o Estado
tome medidas adequadas e eficazes para preservar sua segurança diante
de tais criminosos; 3) é melhor delimitar o campo do Direito Penal do
Inimigo do que permitir que ele contamine indiscriminadamente todo
o Direito Penal”31.
Luiz Flávio Gomes rejeita a tese do penalista alemão ao afirmar que
“não podemos concordar com a tese de que o Direito Penal do Inimigo
seja inevitável, sob pena de assumirmos postura idêntica àqueles que
acobertaram ou apoiaram o Direito Penal nazista, que procurou elimi-
nar todos os ‘estranhos à comunidade’, mandando-os para os campos de
concentração ou para o forno”32.
Diante da respeitável corrente doutrinária contrária ao Direito
Penal do Inimigo, Larissa Leite afirma que “inúmeros são os críticos
do Direito Penal do Inimigo e vultosas as críticas que ainda podem e
devem ser feitas sob os aspectos do Direito Penal, do Direito Proces-
sual e da Criminologia, mas parece que todas elas sempre estarão

30 Direito penal do inimigo: breves considerações. Disponível em: <www.damasio.com.br>.


31 Ibidem.
32 Muñoz Conde e o direito penal do inimigo. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/
doutrina/texto. asp?id=7399>.

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vinculadas ao mínimo ético irredutível felizmente reconhecido no ce-
nário internacional”33.
Eugenio Raúl Zaffaroni rejeita a proposta do Direito Penal do Ini-
migo, concluindo, entre outros aspectos, que “a discussão atual em tor-
no do direito penal do inimigo não pode se limitar à recusa de uma
proposta de legitimação parcial nem à demonstração de que se trata de
um caminho errado de contenção deste. Na medida em que a doutrina
penal legitime ou ignore, com o nome que for, o tratamento diferencia-
do dos inimigos ou estranhos, esse comportamento está atingindo o Es-
tado de Direito concreto, real ou histórico e, ao mesmo tempo, está
invalidando o princípio diretor do Estado de Direito, porque toda ra-
cionalização doutrinária nesse sentido implica uma quebra do instru-
mento orientador da função política do direito penal”34.
Entendendo como um risco que pode levar à abolição do Estado de
Direito, o estudioso argentino Eugenio Raúl Zaffaroni indaga se é pos-
sível “saber se os direitos dos cidadãos podem ser diminuídos para indi-
vidualizar os inimigos, ou seja, passa-se a discutir algo diferente da pró-
pria eficácia da proposta de contenção”35.

5 Aspectos Penais e Processuais no nosso


ordenamento jurídico

Observando os argumentos apresentados por Günther Jakobs, não


obstante as consideráveis vozes em sentido contrário, rejeitando inte-
gralmente sua tese, sem prejuízo de diversos princípios constitucionais e
penais e sem conflito aparente com os institutos de Direitos Humanos,
vislumbramos em nosso ordenamento jurídico várias normas penais e
processuais penais que guardam harmonia com a lição do jurista alemão
e que merecem aplausos por sua eficácia no combate ao crime organiza-
do, entre outros.

33 O direito penal do inimigo e a internacionalização dos direitos humanos. Disponível


em: <www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/bh/larissa_leite2.pdf>.
34 O inimigo no direito penal, p. 190.
35 Ibidem, p. 193.

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À Lei dos Crimes Hediondos, fundamentada na Constituição Fede-
ral, não se pode negar a característica de exercício do Direito Penal do
Inimigo. Muito embora nesse caso se façam presentes as mais diversas
garantias constitucionais ao processado e ao condenado, possui diversos as-
pectos penais e processuais que tratam o delinquente de maneira diferente
do tratamento dispensado àquele que comete crimes não hediondos.
Segundo João José Leal, crimes hediondos são aqueles em que as
condutas delituosas “se revelam como a antítese extrema dos padrões
éticos de comportamento social e de que seus autores são portadores de
extremo grau de perversidade, de perniciosidade ou de periculosidade.
Em consequência, o autor de um crime hediondo deve merecer sempre
o grau máximo de reprovação ética por parte do grupo social e do pró-
prio sistema de controle”36.
A própria Constituição Federal admitiu a diferenciação de crimes
de acordo com a gravidade destes delitos. Segundo o raciocínio de Sér-
gio de Oliveira Médici, “depreende-se do texto constitucional de 1988
que se pretendeu estabelecer três categorias de crimes: os hediondos e
assemelhados, os de menor potencial ofensivo e todos os demais, que
podem ser considerados como intermediários”37.
Acerca desse tratamento diferenciado para as diversas formas de cri-
minalidade, Antonio Scarance Fernandes também apresenta estas três
categorias de crime, esclarecendo que “o campo mais problemático para
o legislador e para a doutrina é o da criminalidade grave e/ou organiza-
da. Têm os países dificuldade em enfrentá-la. Não sabem mesmo como
criar um corpo legislativo que, outorgando eficiência ao sistema repres-
sivo, não fira os direitos e garantias individuais assegurados nas Consti-
tuições e Convenções Internacionais”38.
Trata-se de consagração ao disposto no inciso XLIII do art. 5º da
CF, que estabelece que, quando da prática de crimes hediondos de asse-
melhados, sejam estes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia.

36 Crimes hediondos, p. 37.


37 Teoria dos tipos penais, p. 46.
38 Processo penal constitucional, p. 26.

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O preceito constitucional, “atendendo ao anseio de proteção legal
do povo brasileiro, atendeu em parte à pretensão de conceder maior
severidade à forma de aplicação da sanção penal, restringindo a inova-
ção a certos delitos, denominados ‘hediondos’, correspondendo àque-
les de maior gravidade objetiva, contra os quais a resposta penal não
pode ser liberal”39.
Em consequência deste mandamento constitucional surgiram a Lei
dos Crimes Hediondos e assemelhados, Lei n. 8.072, de 1990, a Lei do
Crime Organizado, Lei n. 9.034, de 1995, a Lei sobre Tortura, Lei n.
9.455, de 1997, a Lei de Lavagem de Dinheiro, Lei n. 9.613, de 1998,
e, por último dentre as de maior relevância para o tema em estudo, a Lei
de Drogas do ano de 2006 e editada sob o número 11.343.
De maneira excessiva e fugindo aos preceitos de Direitos Humanos,
a Lei dos Crimes Hediondos chegou, entretanto, a prever a imposição
aos condenados nos crimes considerados hediondos ou assemelhados o
cumprimento da pena em regime integralmente fechado, situação am-
plamente defendida pelo Ministério Público no início da vigência da
norma, mas que veio a ser declarada inconstitucional pelo Supremo
Tribunal Federal sob o argumento de que o regime integralmente fecha-
do feriria o princípio da individualização da pena.
Diante deste julgamento, o legislador alterou a Lei dos Crimes He-
diondos, não mais admitindo o regime integralmente fechado, permi-
tindo a progressão da pena, mas, ainda assim, de maneira mais gravosa
do que a permissão dada ao criminoso comum.
Em outra situação, tendo em vista o crescimento espantoso do cri-
me organizado, no Estado de São Paulo, foi editada em maio de 2001 a
Resolução n. 26 do Secretário de Administração Penitenciária, que
criou o denominado Regime Disciplinar Diferenciado, isolando o de-
tento por trezentos e sessenta dias de acordo com as necessidades carce-
rárias, sendo aludida resolução declarada constitucional pelo Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo40. Após, com o advento da Lei n.
10.792, de 1º-12-2003, foi alterada a Lei de Execução Penal, enuncian-

39 Damásio Evangelista de Jesus, Novas questões criminais, p. 25.


40 Renato Marcão, Curso de execução penal, p. 38-39.

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do no art. 52 que “a prática de fato previsto como crime doloso consti-
tui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina in-
ternas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção
penal, ao regime disciplinar diferenciado”.
As consequências da inserção nesse regime podem prevalecer numa
duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição
da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um
sexto da pena aplicada, impondo-se o recolhimento em cela individual,
o direito de visitas semanais mitigado para duas pessoas, sem contar as
crianças, com duração de duas horas, a redução da saída do preso da cela
para duas horas diárias para banho de sol, podendo ser imposto para
presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apre-
sentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal
ou da sociedade, ou sobre os que recaiam fundadas suspeitas de envol-
vimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas,
quadrilha ou bando.
Trata-se de clara hipótese de aplicação dos enunciados do Direito
Penal do Inimigo à medida que visa a eliminação de perigo e impõe
condições mais severas àqueles presos que cometem novos crimes du-
rante sua permanência carcerária.
Damásio Evangelista de Jesus aponta outra situação que se amolda na
lição em comento ao afirmar que “inspirando-se num exemplo de Jakobs,
pode-se notar essa tendência no Brasil, onde uma tentativa de homicídio
simples, que pressupõe atos efetivamente executórios, pode vir a ser puni-
da de modo mais brando do que a formação de quadrilha para prática de
crimes hediondos ou assemelhados (art. 8º da Lei n. 8.072, de 1990), na
qual se tem a incriminação de atos tipicamente preparatórios”41.
Apresenta-se ainda como exemplo de utilização do Direito Penal do
Inimigo a possibilidade em nosso ordenamento jurídico no que se refere
à autorização legal de que se efetue a prisão em flagrante de modo prorro-
gado, em momento posterior ao da visualização do crime, a fim de que se
possam prender mais pessoas envolvidas na conduta criminosa.

41 Direito penal do inimigo: breves considerações. Disponível em: <www.damasio.com.br>.

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Na Lei do Crime Organizado, vislumbramos dispositivo que per-
mite ainda a inclusão de agentes policiais em organizações criminosas,
desde que com a competente ordem judicial.
Afastar estas leis que tratam de forma mais rígida os criminosos
contumazes seria o mesmo que negar validade à legislação que instituiu
as chamadas penas alternativas (que substituem as penas privativas de
liberdade para os denominados crimes de menor potencial ofensivo). Se
uma lei trata de modo mais benéfico aquele que nunca cometeu crime
anteriormente e praticou delito de pouca lesividade social, está, na ver-
dade, excluindo o direito do criminoso mais perigoso de benefícios pro-
cessuais e penais.
Trata-se apenas de uma questão de ponto de análise. Tanto os con-
ceitos de Direito Penal do Inimigo quanto os de penas alternativas tra-
zem, em última instância, o mesmo efeito, consistente na diferenciação
do processo punitivo com base na lesividade do crime cometido e na
periculosidade do agente infrator.

6 Considerações Finais

O conceito de direitos humanos constitui fonte inegável de prote-


ção dos direitos e das liberdades dos seres humanos normatizando um
ideal para muitos provenientes dos direitos naturais.
Reconhecida globalmente com o advento da Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 1948, tem por escopo a dignidade como fun-
damento da igualdade, da liberdade, da justiça e da paz mundial.
O Direito Penal do Inimigo trabalha numa linha de raciocínio na
qual devem ser afastados certos direitos àquele criminoso contumaz,
que pratica crimes por princípios e que não pode ser tratado de modo
igual aos demais.
Trata-se de raciocínio universal a análise do princípio da igualdade,
que afirma que todos devem ser tratados como iguais na medida de suas
igualdades e como desiguais na medida de suas desigualdades.
Não podemos admitir a utilização de meios insidiosos na tutela de
crimes insidiosos, mas, de igual forma, não podemos tratar com todos
os direitos de um cidadão aquele que não dá valor ao ser humano.

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Aceitar o Direito Penal do Inimigo de forma plena seria ignorar toda a
evolução da espécie humana enquanto seres racionais. Porém, rejeitá-la de
forma dogmática traduz retrocesso ao bem-estar dos povos, que não podem
se tornar reféns da criminalidade moderna e de grandes proporções.
Há que se buscar harmonia entre os preceitos de Direitos Huma-
nos e do ideal de Direito Penal do Inimigo, sob pena de não termos
no futuro uma humanidade a proteger, vitimizada por guerras santas
e cartas protetivas.

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de Janeiro: Revan, 2001.
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JESUS, Damásio Evangelista de. Novas questões criminais. São Paulo:
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________. Direito penal do inimigo: breves considerações. São Paulo:
Complexo Jurídico Damásio de Jesus, jul. 2006. Disponível em:
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O crime de pedofilia e a tutela
dos direitos fundamentais de
crianças e adolescentes

Vander Ferreira de Andrade

Especialista em Direito Penal, Mestre em Filosofia do Direito e Doutor em Direito do


Estado pela PUCSP. Diretor de Área (Direito e Pedagogia) e Gestor do Curso de
Direito da Universidade Municipal de São Caetano do Sul – USCS. Consultor especial
do Ministério da Justiça (Secretaria Nacional de Segurança Pública – SENASP),
através do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD.
Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Ciências Criminais do INEP (Unidades
Campinas e São José dos Campos), onde atua como Professor de Direito Penal,
Direito Administrativo e Legislação Penal Especial. Professor Titular de Direito Penal
da Universidade Municipal de São Caetano do Sul – USCS e de Direito Penal
Empresarial das Faculdades de Direito Damásio de Jesus – FDDJ. Professor Titular de
Direito Penal da UNAR. Advogado.

1 Introdução

Em 25 de novembro de 2008 ocorreu a edição da Lei n. 11.829,


que altera a Lei n. 8.069 de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescen-
te), estabelecendo novos tipos penais centrados na questão da conduta
antissocial denominada “pedofilia”.
A pedofilia, enquanto conduta humana atentatória aos direitos
fundamentais de crianças e adolescentes, descortina-se como uma
espécie de transtorno de personalidade da opção sexual, caracteri-
zando-se pela eleição sexual por infantes, quer se trate menores do
sexo feminino ou do sexo masculino, mormente meninos ou meni-
nas pré-púberes ou que se encontram na puberdade incipiente, re-
conhecida com o status de estado doentio pela Organização Mundial

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de Saúde (OMS), inclusive com previsão de CID específico1.
Classifica-se ainda como espécie do gênero “parafilia”2, cujo âmbito
engloba expectativas fantasiosas, anseios, ou comportamentos sexuais
recorrentes e intensos que envolvem objetos, atividades ou situações in-
comuns.
Um dos mecanismos de auxílio utilizado com maior frequência
pelos agentes delituosos de tal infração criminal é a rede mundial de
computadores (Internet), pelo que houve o legislador contemplar
modelos penais voltados para essa nova e recente realidade da con-
temporaneidade.
No ambiente da Internet pululam condutas diversas que incidem
diretamente ou que gravitam no entorno da figura da pedofilia, seja pela
movimentação de expressivas somas em dinheiro captadas por sites des-
tinados à divulgação de fotografias, vídeos, imagens diversas, com ou
sem recursos de interatividade, seja para o fim de acessar crianças ou
adolescentes por meio de “salas de bate-papo”, chats, “comunidades in-
tegrativas” (Orkut e congêneres), por mecanismos de conversação direta
(MSN), ou ainda para o fim de promover turismo sexual ou mesmo
visando a perpetração de tráfico de pessoas de tenra faixa etária.
Os sujeitos passivos diretos, assim e especialmente as crianças pré-
-púberes ou que se encontram na fase inicial da puberdade, são escolhidos
por meio de diversos níveis etários, todavia, a maior concentração se apre-
senta por volta dos 13 anos de idade ou próximo dessa idade, para menos.
De outro norte, o sujeito ativo, portador dessa anomalia sexual,
de acordo com pesquisas realizadas pela Associação Americana de

1 Código Internacional de Doenças – CID-10 – Classificação Estatística Internacio-


nal de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde.
2 Segundo Helena Daltro Pontual, “as parafilias envolvem preferência sexual por ob-
jetos não humanos, sofrimento ou humilhação, próprios ou do parceiro, crianças ou
outras pessoas sem o seu consentimento. Além da pedofilia, são consideradas parafilias
transtornos como exibicionismo, fetichismo, masoquismo, sadismo e voyeurismo... são
conhecidas também por perversões, definidas, particularmente pela Psicanálise, como
transtornos de uma estrutura psicopatológica caracterizada pelos desvios de objeto e fi-
nalidade sexuais. A pessoa portadora de perversão sente-se atraída por aquilo que é pes-
soalmente ou socialmente proibido e inaceitável” (Psicanálise em foco. Diário de Aracaju,
22 set. 2010).

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Psiquiatria3, costuma possuir mais de 16 anos, ou em regra, cinco anos
mais velho que a criança, conquanto no Brasil se possa verificar a pre-
sença de autores de tal crime em faixas etárias diversas, até mesmo
entre idosos, e de todas as classes sociais, não sendo raro encontrarmos
pessoas de elevado nível socioeconômico, cultural e educacional.
Quando se cuida de vítimas posicionadas dentre o sexo feminino, a
preferência dos criminosos recai em crianças cuja idade gira no entorno de
10 anos; já quando se trata da opção por vítimas do sexo masculino, a pre-
ferência ocorre em meninos de idade mais avançada. Seja por força do stre-
pitus judici, seja ainda em decorrência da repercussão social negativa que o
relato de tais eventos acarreta, a divulgação de envolvimento com vítimas do
sexo feminino é bem mais significativa estatisticamente se comparada com
a violência moral e de ordem sexual que envolve meninos.
De acordo com a cartilha de combate à pedofilia, editada pela Uni-
versidade Federal de Mato Grosso do Sul em meio à “Campanha MS
contra a Pedofilia”4, os meios de abordagem mais utilizados pelos pedó-
filos virtuais são:
Mensageiro instantâneo – programa que permite a comunicação
instantânea entre pessoas, individualmente ou em grupo, por intermé-
dio de textos ou voz, ferramenta que permite o intercâmbio de vídeos e
fotos (MSN).
Chat – canal de um determinado site que é utilizado, exclusivamen-
te, para conversas com pessoas desconhecidas. As salas de “bate-papo”
são divididas por temas e idade, porém, é impossível garantir a veracida-
de das informações fornecidas pelos usuários.

3 Em conformidade com a classificação dos transtornos mentais e os critérios estabe-


lecidos pelo DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders). Segundo o
DSM-IV, “o transtorno de pedofilia começa, geralmente, na adolescência, embora alguns
indivíduos portadores relatem não ter sentido atração por criança até a meia-idade. A
frequência do comportamento pedófilo costuma flutuar de acordo com o estresse psicos-
social e seu curso é crônico, especialmente nos indivíduos atraídos por meninos. A taxa
de recidiva para portadores do transtorno de pedofilia que preferem o sexo masculino é,
aproximadamente, o dobro daquela observada nos que preferem o sexo feminino”.
4 CopyRight 2007. Campanha MS contra a Pedofilia. Desenvolvido por Hercules da
Costa Sandim. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Pró-Reitoria de Extensão,
Cultura e Assuntos Estudantis. Cidade Universitária, Campo Grande-MS, Brasil.

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Blog e Fotolog – registro divulgado na Internet, como se fosse um
diário, onde o usuário escreve suas ideias, angústias, desejos, e também
pode incluir informações pessoais e fotos.
E-mail – serviço de correio eletrônico, que permite aos usuários
enviar e receber mensagens (textos, fotos etc.).
Redes de relacionamento – espaços virtuais capazes de reunir indi-
víduos e instituições com afinidades ou objetivos comuns, mantendo e
ampliando relacionamentos interpessoais (Orkut).

2 A Internet e a pedofilia

De acordo com dados coligidos pela ONG Safernet, cerca de 90%


das denúncias de pedofilia registradas no Brasil em 2008 tinham relação
com o conteúdo do Orkut; de acordo com a organização, a postura
adotada pelo Google, responsável pelo site de relacionamentos, quanto
à demora na entrega às autoridades de dados relativos aos agentes deli-
tuosos que operam na rede potencializa a conduta criminosa daqueles
que operam valendo-se do ambiente Internet.
Assim, e conquanto a fala do Google discorra que não há qualquer
tipo de inércia ou criação de obstáculo na disponibilização de dados ou
na invalidação de comunidades, desde que para tanto exista expressa
ordem judicial, representantes do Ministério Público afirmam que o
Google se nega a fornecer informações sobre dados de usuários, utiliza-
das para investigar crimes no site de relacionamentos.
Em contraposição a esse posicionamento, o Google se comprome-
teu perante o Poder Judiciário, a pedido da polícia ou do Ministério
Público, mas sempre mediante prévia determinação judicial, a liberar
informações sobre condutas, nomes e demais registros de operadores e
usuários do sistema de relacionamento, sempre que tal se fizer necessá-
rio para a investigação de possíveis delitos.
A questão ganha vulto no Brasil, especialmente pelo fato de que, em
nosso país, o número de usuários do Orkut está posicionado em primeiro
lugar quando cotejado com qualquer país do globo, bem ainda por haver
incentivo do provedor no sentido de que as empresas devam denunciar a
prática de crimes dessa natureza que venham a ocorrer no ambiente virtual.

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No total, a Safernet recebeu 267.089 denúncias sobre pornografia
infantil em 2007, uma alta de 126% em relação ao ano anterior. Para a
Safernet, essa alta se deve a uma maior conscientização dos internautas
em comunicar a ocorrência desse tipo de crime e ao aumento na base de
usuários da rede no país.

3 Comentários à Lei n. 11.829 de 25-11-2008

Na ementa da Lei n. 11.829, verificamos o precípuo desiderato da


edição legal, qual seja o de “alterar a Lei n. 8.069, de 13 de julho de
1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, para aprimorar o comba-
te à produção, venda e distribuição de pornografia infantil, bem como
criminalizar a aquisição e a posse de tal material e outras condutas rela-
cionadas à pedofilia na internet”.
De fato, parece-nos que o surgimento de novo tipos penais na refe-
rida seara se tornou imprescindível, especialmente a partir da constata-
ção do surgimento de novos comportamentos humanos, denotadamen-
te antissociais e de elevada repercussão no âmbito das relações humanas,
a partir do momento em que a tecnologia começou a ser utilizada para
fins ilícitos referindo-se a delitos praticados por intermédio do ambien-
te virtual contra crianças e adolescentes.
As muralhas e as barricadas criadas por pais e mães na tentativa
frustrada de proteger seus filhos sob todos os aspectos, tanto a partir de
reclusões em condomínios, de escoltas no itinerário e no caminho de ida
e volta às escolas (cada vez mais guarnecidas de agentes de segurança),
aos shopping centers, templos contemporâneos do consumo de massa,
além da crescente e cada vez mais sofisticada utilização de sistemas di-
versos de proteção física e eletrônica, guarda extrema vulnerabilidade
quando o assunto é crime praticado por meio da Internet, até porque as
conversas, os diálogos e os múltiplos, bem ainda as diversas formas de
relacionamento telemático, ocorrem no espaço virtual, não raro, de for-
ma dissimulada, fazendo-se o agente criminoso passar por uma criança,
um coleguinha que deseja fazer amizade, conhecedora das preferências,
dos locais de frequência costumeira, dos amigos e familiares, até porque

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tais dados costumam estar francamente disponibilizados nas próprias
redes de relacionamento, como ocorre, por exemplo, com o Orkut.
Destarte, o advento de nova legislação penal nessa direção, conquan-
to possa merecer alguma crítica no que diz respeito à forma de técnica de
redação legislativa empregada, comprometendo a eficácia e o sentido pro-
filático e repressivo da norma, deve ser por nós elogiado, como avanço
significativo da tutela de interesses de alta importância, como devemos ter
os direitos fundamentais das crianças e adolescentes5.
Nova redação do art. 240 da Lei n. 8069/90 (Estatuto da Criança e
do Adolescente):

Art. 240. Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por


qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo crian-
ça ou adolescente:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas quem agencia, facilita, recruta, coage,
ou de qualquer modo intermedeia a participação de criança ou ado-
lescente nas cenas referidas no caput deste artigo, ou ainda quem com
esses contracena.
§ 2º Aumenta-se a pena de um terço se o agente comete o crime:
I – no exercício de cargo ou função pública ou a pretexto de exercê-la;
II – prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospita-
lidade; ou
III – prevalecendo-se de relações de parentesco consanguíneo ou afim até
o terceiro grau, ou por adoção, de tutor, curador, preceptor, empregador
da vítima ou de quem, a qualquer outro título, tenha autoridade sobre ela,
ou com seu consentimento.

Trata-se de crime comum que não exige uma qualidade especial do


agente, ao contrário, pode ser cometido por qualquer pessoa; todavia,
haverá a exasperação da pena se porventura o sujeito ativo, tratando-se
de funcionário público (inspetor de casas de internação, policiais, pro-
fessores da rede pública etc.) venha a praticar o delito no exercício de
cargo ou função pública, ou a pretexto de exercê-la; obviamente, espera-
-se daqueles que servem ao Estado comportamento irrepreensível no

5 Clipping Safernet – 2009.

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trato com crianças, dada a necessidade de proteção integral que inspira
o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente.
Igualmente há de ser majorada a pena do agente que venha a se
prevalecer de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade;
lamentavelmente, guarda razão o legislador ao assim proceder; não raro
os crimes de pedofilia (atentado violento ao pudor, estupro, constrangi-
mento ilegal, corrupção de menores, entre outros delitos), tendo crian-
ças ou adolescentes como alvos, ocorrem dentro das paredes da convi-
vência doméstica (por meio de empregados, amigos, circunvizinhos,
agregados etc.), dificultando a sua descoberta, investigação e conse-
quentemente prevenção e/ou repressão; o mesmo se há de dizer quando
se trate o sujeito ativo de pessoa que tenha se prevalecido de relação de
parentesco; há notícias registradas nos anais policiais e judiciais de en-
volvimento direto de pais e mães, de tutores, curadores, preceptores,
empregadores, professores, monitores, enfim, de pessoas que possuam
autoridade sobre o menor, implicando o acato e a subserviência do in-
fante ou do adolescente aos caprichos e vontades espúrias do criminoso.
Também haverá de responder pelo cometimento do delito o agente
que venha a agenciar, facilitar, recrutar, coagir, ou de qualquer modo
intermediar a participação de criança ou adolescente nas cenas referidas
no caput do artigo transcrito, ou ainda que venha a contracenar nesse
ambiente com menor de 18 anos; a nosso ver, tal disposição é despicien-
da e inócua, posto que, na hipótese, há de ser reconhecida a aplicabili-
dade da regra do concurso de agentes prevista no caput do art. 29 do CP,
de aplicação subsidiária à espécie, segundo a qual, e de acordo com o
conteúdo doutrinário descerrado pela teoria monista, haverá de respon-
der pelo crime todo aquele que colaborar material ou intelectualmente
para o advento da infração penal, tanto o partícipe como o autor, natu-
ralmente, cada um, na medida de sua culpabilidade.
As condutas proibidas estão descritas nos verbos ínsitos no caput
(produzir, reproduzir, filmar ou registrar), de qualquer forma, cena de
sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente. A
tutela específica se justifica em face da peculiar condição de pessoa em
desenvolvimento, que pode ter comprometido a sua desenvoltura pessoal
a partir do contato precoce com um ambiente imoral ou desregrado,

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próprio de filmagens ou produções dessa categoria; todavia, não se pune
apenas a filmagem “profissional”, mas qualquer outra que, em desres-
peito ao estado de desenvolvimento da personalidade do infante ou do
adolescente, promova o registro de sua imagem em filmagem amadora
ou análoga situada em caráter de pornografia ou de cunho erótico.
A especial proteção se recomenda tanto pelo fato do prejuízo indis-
sociável ao desenvolvimento da criança e do adolescente como pelo fato
do uso indevido de sua imagem acarretar a impossibilidade da recupera-
ção total do dano causado; a divulgação por todo e qualquer meio (tele-
visão, cinema, vídeo, dvd, Internet etc.) e a reprodução de tais ima-
gens ganham potencial infinito de replicação e de multiplicação,
incentivando e viabilizando a sua profusa e objetiva difusão, seja pela
rede mundial de computadores, seja por meio de cópias desautorizadas
ou clandestinas das imagens coligidas e registradas.
Nova redação do art. 241, caput, da Lei n. 8.069/90 (Estatuto da
Criança e do Adolescente):

Art. 241. Vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que
contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou
adolescente:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

Tem o dispositivo penal como objeto jurídico, tal como no delito


anteriormente comentado, a integridade física e psicossocial da crian-
ça e do adolescente, com fundamento finalístico e teleológico em sua
condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e no princípio da
proteção integral6. Sendo vedada a produção fotográfica ou filmagem

6 A respeito do princípio da proteção integral e o da condição peculiar da criança e do


adolescente como pessoas em desenvolvimento, assim dispõe a Lei n. 8.069, de 1990
(Estatuto da Criança e do Adolescente):
“Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.
Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até 12 (doze) anos de
idade incompletos, e adolescente aquela entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos de idade.
Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatu-
to às pessoas entre 18 (dezoito) e 21 (vinte e um) anos de idade.

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envolvendo criança ou adolescente em cena de sexo ou pornográfica,
há de ser, por consectário lógico, igualmente proibida e apenada a sua
comercialização. Isso vale tanto para o comércio regular como para
aquele que opere na informalidade e/ou clandestinidade, dado que as
condutas proibidas são objetivas e independem da condição de em-
presário do agente que tanto pode ser qualquer pessoa (crime comum)
como pode fazê-lo uma única vez, não se falando aqui na imprescin-
dibilidade de repetição e/ou reiteração no ato de venda ou de exposi-
ção à venda como requisito para o cometimento do delito, pelo que se
há de reconhecer a sua característica de crime não habitual. A pena é
estabelecida de modo a impedir o seu processamento por intermédio
dos Juizados Criminais Especiais, sendo competente para o seu julga-
mento a Justiça Estadual. Abre-se a possibilidade de que qualquer ou-
tro registro além da fotografia ou do vídeo venha a ser comercializado,
em face do emprego da interpretação analógica contida na expressão
“ou outro registro”.

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais ine-


rentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, asse-
gurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim
de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições
de liberdade e de dignidade.
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Públi-
co assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignida-
de, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção
à infância e à juventude.
Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligên-
cia, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei
qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se
dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a
condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento”.

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Novo tipo penal: redação do art. 241-A da Lei n. 8.069/90 (Estatuto
da Criança e do Adolescente):

Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou


divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática
ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de
sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:
I – assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias,
cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo;
II – assegura, por qualquer meio, o acesso por rede de computadores às
fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo.
§ 2º As condutas tipificadas nos incisos I e II do § 1º deste artigo são puní-
veis quando o responsável legal pela prestação do serviço, oficialmente
notificado, deixa de desabilitar o acesso ao conteúdo ilícito de que trata o
caput deste artigo.

Conduta lamentavelmente recorrente no ambiente virtual é a que


se encontra associada à propagação de imagens registradas em fotogra-
fias e vídeos contendo cena de sexo explícito ou pornográficas envolven-
do criança ou adolescente; ademais, a Internet é um espaço democrático
e globalizado, sedo comum a troca e difusão de textos e imagens diver-
sas. Ciente dessa prática deletéria da dignidade humana, houve o legis-
lador tipificar como crime a conduta daquele que venha a fazer a oferta,
permutar, colocar à disposição, repassar ou tornar públicas de qualquer
forma (válida aqui a interpretação analógica) tais imagens.
Outra preocupação do legislador foi a de alcançar a responsabilida-
de daquele que, mercê de seu poder de controle (provedor de acesso)
pode impedir tal difusão ou obstaculizar condutas que venham a se
pautar nessa direção. Daí a repressão penal dirigida àqueles que venham
a assegurar os meios ou serviços para o armazenamento de fotografias,
cenas ou imagens de crianças e adolescentes, ou assegurar o acesso por
intermédio de qualquer forma à rede de computadores (inovando aqui
no alcance, podendo atingir não apenas a Internet, mas as “intranets”,
ou as redes internas de empresas, estabelecimentos comerciais diversos
ou até mesmo residência).

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Há ainda a previsão de um delito omissivo puro, cujo sujeito ativo
deverá ser pessoa determinada (crime próprio) consubstanciado pelo
comportamento negativo do agente que, na qualidade de responsável
legal pela prestação do serviço (garantidor, portanto da não ocorrência
do resultado), uma vez oficialmente notificado (condição objetiva de
punibilidade), deixa de desabilitar o acesso ao conteúdo ilícito envol-
vendo as imagens de crianças ou adolescentes em cenas eróticas, de sexo
ou pornográficas.
Novo tipo penal: redação do art. 241-B da Lei n. 8.069/90 (Estatu-
to da Criança e do Adolescente):

Art. 241-B. Adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia,


vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou
pornográfica envolvendo criança ou adolescente:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
§ 1º A pena é diminuída de um a dois terços se de pequena quantidade o
material a que se refere o caput deste artigo.
§ 2º Não há crime se a posse ou o armazenamento tem a finalidade de
comunicar às autoridades competentes a ocorrência das condutas descri-
tas nos arts. 240, 241, 241-A e 241-C desta Lei, quando a comunicação for
feita por:
I – agente público no exercício de suas funções;
II – membro de entidade, legalmente constituída, que inclua, entre suas
finalidades institucionais, o recebimento, o processamento e o encaminha-
mento de notícia dos crimes referidos neste parágrafo;
III – representante legal e funcionários responsáveis de provedor de acesso
ou serviço prestado por meio de rede de computadores, até o recebimen-
to do material relativo à notícia feita à autoridade policial, ao Ministério
Público ou ao Poder Judiciário.
§ 3º As pessoas referidas no § 2º deste artigo deverão manter sob sigilo o
material ilícito referido.

Na prática da atividade policial, não raramente se descobre, em


meio a uma busca domiciliar ou no interior de um veículo, a posse de
fotografias, vídeos, registros diversos, contendo cena de sexo explícito
ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente; até o advento dessa
nova norma penal, tal conduta servia apenas no sentido de dirigir as
investigações para a verificação da existência de algum tipo de abuso

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sexual infantil, sendo certo que, com base exclusiva nesse tipo de indí-
cio, nada se podia fazer em termo de responsabilização criminal.
Houve assim o legislador estabelecer como crime autônomo, disso-
ciado eventualmente da prática do efetivo ato sexual, tão somente as
condutas de adquirir (comprar, receber a qualquer título, inclusive por
meio de doação ou através de arquivos baixados da Internet), possuir
(ter, guardar, ser possuidor ou proprietário) ou armazenar (guardar em
qualquer tipo de arquivo, digitalizado ou impresso), por qualquer meio
(interpretação analógica), fotografia, vídeo ou outra forma de registro
dessa natureza.
Reconheceu o legislador que, na hipótese de delito mínimo (não
incidente aqui a noção de “crime bagatelar”), assim aquele identificado
pela posse, guarda ou armazenamento de pequena quantidade de mate-
rial (imagens ou vídeos diversos, a serem verificados casuisticamente),
tem o agente do crime direito público subjetivo à aplicação de uma
causa obrigatória de redução de pena, devendo o magistrado infligi-la à
pena obedecendo à banda de um a dois terços, cuja fixação deverá ser
materializada dentro de parâmetros discricionários.
Foi criada uma hipótese de excludente da ilicitude, assim disposta
como a conduta daquele que, a partir do elemento subjetivo, ainda que
possua o material referido ou que o tenha armazenado, direcione o seu
dolo para o fim de comunicar às autoridades a prática de crime relacio-
nado à criança ou adolescente.
Não há crime se a posse ou o armazenamento tem a finalidade de
comunicar às autoridades competentes a ocorrência das condutas des-
critas nos arts. 240, 241, 241-A e 241-C da Lei n. 8.069/90, condicio-
nada ao fato de a comunicação haver sido feita através de determinadas
pessoas, das quais se exige expressamente a manutenção de sigilo com
referência ao citado material.
Novo tipo penal: redação do art. 241-C da Lei n. 8.069/90 (Estatu-
to da Criança e do Adolescente):

Art. 241-C. Simular a participação de criança ou adolescente em cena


de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem
ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de repre-
sentação visual:

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Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda,
disponibiliza, distribui, publica ou divulga por qualquer meio, adquire, pos-
sui ou armazena o material produzido na forma do caput deste artigo.

Não se pune nesse delito a efetiva participação de criança ou adoles-


cente em cena de sexo explícito ou pornográfica, mas, sim, a produção
de caráter técnico que venha a adulterar (transmudar, falsificar), montar
(reunir elementos com vistas à formação de uma outra imagem ou se­
quência de imagens) ou modificar (alterar) fotografia, vídeo ou qualquer
outra forma de representação visual. É cediço no campo da realidade vir-
tual a amplitude de possibilidades que se abre para aquele que domine as
ferramentas de tecnologia digital, podendo inserir fotografias ou imagens
diversas de outras crianças ou adolescentes no “corpo” daqueles que apa-
recem efetivamente filmados ou registrados, ou ainda criar tais imagens a
partir de ícones materializados ou concebidos artificialmente.
Também haverá de responder pelo mesmo crime o coautor ou par-
tícipe que venha a vender, expor à venda, disponibilizar, distribuir, pu-
blicar ou divulgar por qualquer meio, adquirir, possuir ou armazenar o
citado material produzido ou fabricado na forma do caput do artigo.
Novo tipo penal: redação do art. 241-D da Lei n. 8.069/90 (Esta-
tuto da Criança e do Adolescente):

Art. 241-D. Aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de


comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem:
I – facilita ou induz o acesso à criança de material contendo cena de sexo
explícito ou pornográfica com o fim de com ela praticar ato libidinoso;
II – pratica as condutas descritas no caput deste artigo com o fim de indu-
zir criança a se exibir de forma pornográfica ou sexualmente explícita.

Outra conduta que tem chamado a atenção dos estudiosos da pedo-


filia é a que diz respeito ao comportamento do agente que, comunican-
do-se no ambiente virtual com criança ou adolescente, tanto por e-mail,
MSN, como de blogs ou comunidades interativas, mormente fazendo-se
passar por um “coleguinha” com linguagem incipientemente pueril e

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infantilizada, culmina por aliciar (seduzir), assediar (cercar, perseguir),
instigar (estimular, incentivar) ou constranger (obrigar a fazer o que se
não quer ou a não fazer o que se quer) o sujeito passivo especial para o
fim de, com ele, praticar ato libidinoso.
Daí haver o legislador se preocupado em tipificar tal conduta, acres-
centando à mesma ordem de responsabilidade penal o agente que venha
a facilitar ou induzir o acesso à criança de material contendo cena de
sexo explícito ou pornográfica com o fim de com ela praticar ato libidi-
noso, ou que venha a praticar as condutas descritas no caput do artigo
em comentário, com o desiderato de induzir criança a se exibir de forma
pornográfica ou sexualmente explícita.
Preceito explicativo: redação do art. 241-E da Lei n. 8.069/90 (Es-
tatuto da Criança e do Adolescente):

Art. 241-E. Para efeito dos crimes previstos nesta Lei, a expressão “cena de
sexo explícito ou pornográfica” compreende qualquer situação que envol-
va criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simula-
das, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para
fins primordialmente sexuais.

Por derradeiro, em nota explicativa, entendeu necessário o legislador


descrever o que se deve ter por “cena de sexo explícito ou pornográfica”.
De acordo com a atenta observação de Guilherme de Souza Nucci,
referindo-se ao citado dispositivo legal, “é um conceito amplo, que, em-
bora passível de captação pela vivência cultural, tornou-se legalmente
explicitado. Entretanto, a busca pela definição perfeita não foi atingida.
A pornografia pode envolver atividades sexuais implícitas e poses sensu-
ais, sem a expressa demonstração dos órgãos genitais, constituindo situ-
ações igualmente inadequadas. (...) Infelizmente, a tentativa de tornar
mais clara a redação dos tipos penais incriminadores trouxe a redução
do conceito de pornografia. Teria sido melhor permitir a interpretação
dos operadores do Direito em relação às cenas de sexo explícito e, sobre-
tudo, à cena pornográfica”7.

7 Leis penais e processuais penais comentadas. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2009, p. 270.

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4 Conclusão

O advento da Lei n. 11.829, de 2008, resultou de uma indiscutível


necessidade de conferir efetividade ao Estatuto da Criança e do Adoles-
cente, especialmente no que toca à prática altamente reprovável de con-
duta assim denominada como de “pedofilia”. Conquanto não olvide-
mos que, etimologicamente, a expressão “pedofilia” se afaste de qualquer
concepção que se possa ter de conduta antissocial (pedo = criança; filia
= amizade: logo, pedófilo seria “amigo de crianças”), inegável constatar
que, mercê da mutação conceitual, o termo originário passou a conce-
ber significado diametralmente diverso, de modo a se subsumir à ideia
de um comportamento grave e repugnante, assim verificado como o
que se consubstancia por intermédio de abusos de ordem sexual perpe-
trados em criança ou adolescente, seja por contato físico, onde se deno-
tam crimes de estupro e atentado violento ao pudor, entre outros, como
os praticados por intermédio do ambiente virtual, que, até então, nave-
gavam livremente no oceano da atipicidade penal.
Assim, e conquanto se possa perceber ictu oculi algumas sérias e
graves falhas de redação/técnica legislativa na novatio legis, como aquela
que, a pretexto de explicitar o significado de cena sexual ou pornográfi-
ca, culmina por reduzir o seu alcance, ao menos devemos reconhecer
que habemus lege, contemplando como figuras delituosas, e com penas
elevadas, comportamentos humanos positivos ou negativos que cami-
nham na direção do abuso ou da exploração sexual de infantes ou de
jovens. O tempo dirá se a lei encontrará espaço fértil para sua real apli-
cabilidade e eficaz concreção.

5. notas bibliográficas

(1) Código Internacional de Doenças – CID-10 – Classificação Es-


tatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde.
(2) Segundo Helena Daltro Pontual, “... as parafilias envolvem pre-
ferência sexual por objetos não humanos, sofrimento ou humilhação,
próprios ou do parceiro, crianças ou outras pessoas sem o seu consenti-
mento. Além da pedofilia, são consideradas parafilias transtornos como

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exibicionismo, fetichismo, masoquismo, sadismo e voyeurismo... são co-
nhecidas também por perversões, definidas, particularmente pela Psicaná-
lise, como transtornos de uma estrutura psicopatológica caracterizada
pelos desvios de objeto e finalidade sexuais. A pessoa portadora de perver-
são sente-se atraída por aquilo que é pessoalmente ou socialmente proibi-
do e inaceitável” (Psicanálise em foco. Diário de Aracaju, 22 set. 2010).
(3) Em conformidade com a classificação dos transtornos mentais
e os critérios estabelecidos pelo DSM-IV (Diagnostic and Statistical
Manual of Mental Disorders). Segundo o DSM-IV, “... o transtorno de
pedofilia começa, geralmente, na adolescência, embora alguns indiví-
duos portadores relatem não ter sentido atração por criança até a meia-
idade. A frequência do comportamento pedófilo costuma flutuar de
acordo com o estresse psicossocial e seu curso é crônico, especialmente
nos indivíduos atraídos por meninos. A taxa de recidiva para portado-
res do transtorno de pedofilia que preferem o sexo masculino é, apro-
ximadamente, o dobro daquela observada nos que preferem o sexo fe-
minino”.
(4) CopyRight 2007 – Campanha MS contra a Pedofilia – Desen-
volvido por Hercules da Costa Sandim – Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul – Pró-Reitoria de Extensão, Cultura e Assuntos Estudan-
tis. Cidade Universitária, Campo Grande, MS, Brasil.
(5) A respeito do princípio da proteção integral e o da condição
peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento,
assim dispõe a Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente):
“Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao
adolescente.
Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até
doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e de-
zoito anos de idade.
Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcional-
mente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade.
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos funda-
mentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral
de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios,
todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvi-

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mento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liber-
dade e de dignidade.
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e
do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos
direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte,
ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liber-
dade e à convivência familiar e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstân-
cias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevân-
cia pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais pú-
blicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relaciona-
das com a proteção à infância e à juventude.
Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omis-
são, aos seus direitos fundamentais.
Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins so-
ciais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e de-
veres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do ado-
lescente como pessoas em desenvolvimento”.
(6) Clipping Safernet – 2009.
(7) I – agente público no exercício de suas funções; II – membro de
entidade, legalmente constituída, que inclua, entre suas finalidades insti-
tucionais, o recebimento, o processamento e o encaminhamento de notí-
cia dos crimes referidos neste parágrafo; III – representante legal e funcio-
nários responsáveis de provedor de acesso ou serviço prestado por meio de
rede de computadores, até o recebimento do material relativo à notícia
feita à autoridade policial, ao Ministério Público ou ao Poder Judiciário.
(8) NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais
comentadas. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2009, p. 270.

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