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Universidade Federal de Santa Catarina

Pró-Reitoria de Pós-Graduação

Coordenadoria de Educação Continuada

Centro de Filosofia e Ciências Humanas

Instituto de Estudos de Gênero

Curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola

Coleção Livros Didáticos do GDE/UFSC


MARA COELHO DE SOUZA LAGO
Miriam Pillar Grossi
Olga Regina Zigelli Garcia
Pedro Rosas Magrini
(Editoras)

Especialização em Gênero
e Diversidade na Escola
Livro III – Módulo III

6. A Importância dos Movimentos


Sociais na Luta pela Igualdade de Gênero

7. Sexualidades: dimensão conceitual,


diversidade e discriminação

Tubarão-SC, 2015
Dilma Vana Roussef
PRESIDENTA DA REPÚBLICA

Eleonora Menicucci
MINISTRA DA SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS
PARA AS MULHERES DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA – SPM/PR

Renato Janine Ribeiro


MINISTRO DA EDUCAÇÃO

Paulo Gabriel Soledade Nacif


SECRETÁRIO DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, ALFABETIZAÇÃO,
DIVERSIDADE E INCLUSÃO – SECADI / MEC

Nilma Lino Gomes


SECRETÁRIA DE POLÍTICAS DE PROMOÇÃO
DA IGUALDADE RACIAL – SEPPIR/MEC

Roselane Neckel
REITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL
DE SANTA CATARINA – UFSC

Joana Maria Pedro


PRÓ-REITORA DE PÓS-GRADUAÇÃO DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DE SANTA CATARINA – PROPG/UFSC

Mara Coelho de Sousa Lago


Miriam Pillar Grossi
Zahidé Lupinacci Muzart
COORDENADORAS DO INSTITUTO
DE ESTUDOS DE GÊNERO – IEG/UFSC
Equipe do Curso de Especialização Gênero e Diversidade na Escola – IEG/UFSC –
Edição 2015

Coordenação do Projeto GDE Especialização


Miriam Pillar Grossi e Olga Regina Zigelli Garcia – Coordenação Geral
Marie-Anne Stival Pereira e Leal Lozano – Coordenação de Ambiente Virtual de Ensino e
Aprendizagem (AVEA)
Pedro Rosas Magrini – Coordenação Editorial
Carmem Vera Ramos – Coordenação Financeira
Jonatan Siqueira Pereira – Secretaria do GDE/UFSC

Quadro Docente do Curso GDE UFSC


Professoras/es doutoras/es Adriano Henrique Nuernberg (Departamento de Psicologia
UFSC), Amurabi Pereira de Oliveira (Departamento de Sociologia Política UFSC),
Antonela Maria Imperatriz Tassinari (Departamento de Antropologia UFSC), Carmem
Silvia Rial (Departamento de Antropologia UFSC), Claudia Lima Costa (Departamento
de Letras e Literatura Vernáculas UFSC), Cristina Scheibe Wolff (Departamento de
História UFSC), Fernando Cândido da Silva (Departamento de História UFSC), Janine
Gomes da Silva (Departamento de História UFSC), Jair Zandoná (Departamento
de Língua e Literatura Vernáculas, Leandro Castro Oltramari (Departamento de
Psicologia UFSC), Luciana Patricia Zucco (Departamento de Serviço Social UFSC),
Luzinete Simões Minella (Departamento de Sociologia Política UFSC), Mara Coelho
de Souza Lago (Departamento de Psicologia), Mareli Eliane Graupe (UNIPLAC),
Marivete Gesser (Departamento de Psicologia UFSC), Miriam Pillar Grossi
(Departamento de Antropologia UFSC), Olga Regina Zigelli Garcia (Departamento de
Enfermagem UFSC), Regina Ingrid Bragagnolo (Núcleo do Desenvolvimento Infantil
UFSC), Rodrigo Moretti (Departamento de Saúde Pública UFSC), Tania Welter (Pós-
doutoranda PPGAS), Teophilos Rifiotis (Departamento de Antropologia Social UFSC);
Tereza Kleba Lisboa (Departamento de Serviço Social UFSC).

Revisão de Conteúdo
Mara Coelho de Souza Lago, Olga Regina Zigelli Garcia e Pedro Rosas Magrini
Nota/Gênero e Diversidade na Escola (GDE)
Gênero e Diversidade na Escola é um projeto destinado à formação de profissionais da
área de educação que também permite a participação de representantes de Organizações
Não Governamentais (ONGs) e de movimentos populares, buscando a transversalidade
nas temáticas de gênero, de sexualidade e de orientação sexual e relações étnico-raciais.
A concepção do projeto é da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM/
PR) e do British Council, em parceria com a Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade e Inclusão (SECADI/PR), Secretaria de Ensino a Distância
(SEED-MEC), Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR/PR) e
o Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ).

Polos Presenciais – GDE Especialização 2015

Concórdia
Prefeito – João Girardi
Coordenadora do Polo – Leonita Cousseau
Endereço – Travessa Irmã Leopoldina, n. 136, Centro, Concórdia – SC
CEP: 89700-000
Tel.: (49) 3482-6029

Florianópolis
Prefeito – Cesar Souza Júnior
Coordenadora do Polo – Fabiana Gonçalves
Endereço – Rua Ferreira Lima, n. 82, Centro, Florianópolis – SC
CEP: 88015-420
Tel.: (48) 2106-5910/2106-5900

Itapema
Prefeito – Rodrigo Costa
Coordenadora do Polo – Soeli Uga Pacheco
Endereço – Rua 402-B, Morretes, Prédio Escola Bento Elóis Garcia, Itapema – SC
CEP: 88220-000
Tel.: (47) 3368-2267/3267-1450

Laguna
Prefeito – Everaldo dos Santos
Coordenadora do Polo – Maria de Lourdes Correia
Endereço – Rua Vereador Rui Medeiros, Portinho, Laguna – SC
CEP: 88790-000.
Tel.: (48) 3647-2808

Praia Grande
Prefeito – Valcir Daros
Coordenadora do Polo – Sílvia Regina Teixeira Christovão
Endereço – Rua Alberto Santos,n. 652, Centro, Praia Grande – SC
CEP: 88990-970
Tel.: (48) 3532-1011
Sumário

Apresentação.............................................................................................................11
Mara Coelho de Souza Lago
Olga Regina Zigelli Garcia
Pedro Rosas Magrini

Disciplina 6

A Importância dos Movimentos


Sociais na Luta pela Igualdade de Gênero

Desigualdades de Gênero: movimentos sociais e políticas públicas............. 17


Andreia Barreto
Daniela Manica
Leila Araújo
Sergio Carrara
Vanessa Leite

Teoria dos Movimentos Sociais e Lutas Sociais na América Latina,


Desafios para uma Compreensão Descolonial e Feminista............................ 47
Pedro Rosas Magrini
Mara Coelho de Souza Lago
Os Estudos de Gênero e Michel Foucault............................................................ 77
Tito Sena

Disciplina 7

SexualidadeS: dimensão conceitual,


diversidade e discriminação

Educação, Diversidade e Direitos Humanos: a formação de professoras


a partir da alteridade radical................................................................................. 91
Leandro Castro Oltramari

Sexualidades Femininas e Prazer Sexual: uma abordagem de gênero........101


Olga Regina Zigelli Garcia
Miriam Pillar Grossi

Diversidade Sexual e Atenção à Saúde: os dilemas de um campo em


(perpétua) (des)construção..................................................................................127
Marcelo Viera
Rodrigo Otávio Moretti-Pires

Sexualidades, Estatísticas e Normalidades (Entrevista)................................139


Tito Sena

Sobre as/os autoras/es...........................................................................................147


Apresentação

É com imensa satisfação que apresentamos o terceiro volume da Coleção


Editorial de Livros Didáticos da Especialização a distância em Gênero e Diversi-
dade na Escola (GDE), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), refe-
rente ao Módulo III do curso. Este livro está dividido em duas partes: a primeira,
denominada A Importância dos Movimentos Sociais na Luta pela Igualdade de Gê-
nero; e a segunda, Sexualidades: dimensão conceitual, diversidade e discriminação.
Iniciamos a primeira disciplina com o texto “Desigualdades de Gêne-
ro: movimentos sociais e políticas públicas”, elaborado por acadêmicas/os do
Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/
UERJ) que organizaram a versão 2010 do livro de conteúdo do Curso de Espe-
cialização em Gênero e Sexualidade. É um trabalho que oferece um panorama
dos movimentos feministas nos países do Norte (Europa e Estados Unidos) e
no Brasil e possibilita a análise dos desdobramentos das lutas dos movimentos
feministas de diferentes grupos de mulheres em políticas públicas. O artigo do
CLAM e os conteúdos já ministrados no primeiro módulo deste curso, sobre-
tudo o artigo de Joana Pedro “Traduzindo o Debate: o uso da categoria gênero
na pesquisa histórica”, apresentam e retomam reflexões sobre as categorias mu-
lher, mulheres, feminismo, gênero, em suas implicações para os movimentos e
para os estudos de gênero e de diversidade voltados para a educação.
O segundo texto, “Teoria dos Movimentos Sociais na América Latina: de-
safios para uma compreensão descolonial e feminista”, de Pedro Rosas Magrini,
traz reflexões esclarecedoras sobre movimentos sociais, seus principais teóricos

11
nas academias dos países do Norte e da América Latina, destacando as con-
tribuições de teóricas/os brasileiras/os para os estudos dos Novos Movimentos
Sociais e das Redes de Movimentos Sociais. O texto finaliza analisando os dois
principais movimentos sociais de trabalhadoras e trabalhadores rurais na atuali-
dade, que surgiram de reivindicações de acesso à terra e de questões de classe no
Brasil e no México, o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o
Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), focalizando a incorporação
da equidade de gênero e, sem a mesma expressão, das reivindicações referen-
tes às diversidades étnico-raciais e de sexualidades, em suas bandeiras de lutas.
Questões que serão aprofundadas na segunda disciplina deste módulo e no Mó-
dulo IV do Curso.
Os textos e os conteúdos do Módulo I do curso, corroborados pelos artigos
que os seguem, apresentam também uma sucessão de fundamentos para os estu-
dos feministas e de gênero, que perpassam as teorias do patriarcado, sobre a su-
bordinação feminina; as teorias marxistas focadas na divisão sexual do trabalho
e na discussão da opressão das mulheres encarregadas da reprodução biológica
e social do proletariado; as teorias da subjetividade inspiradas na psicanálise e
nas concepções estruturalistas da linguística e da antropologia. A partir daí, e
retomando o texto de Joan Scott (1990), podemos assinalar a importância das
teorias pós-estruturalistas e da desconstrução para o desenvolvimento dos estu-
dos feministas e de gênero. A figura em destaque, pelos desdobramentos de sua
influência entre as teóricas feministas e de gênero, é Michel Foucault (1985), a
quem se refere o texto de Tito Sena “Os Estudos de Gênero e Michel Foucault”,
trazido para compor os conteúdos desta primeira disciplina do Módulo III.
Na segunda parte deste livro, referente à disciplina Sexualidades: dimensão
conceitual, diversidade e discriminação, encontram-se mais quatro textos. O pri-
meiro, “Educação, Diversidade e Direitos Humanos: a formação de professoras
a partir da alteridade radical”, de Leandro Oltramari, trata dos desafios da for-
mação cidadã pela qual a escola também é responsável, apresentando conceitos
como os de direitos humanos e de alteridade radical.
Em seguida, Olga Regina Zigelli Garcia e Miriam Pillar Grossi apresen-
tam um artigo sobre “Sexualidades Femininas e Prazer Sexual” originado em
uma pesquisa na qual analisaram os relatos sobre práticas sexuais de mulheres

12 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


a partir de uma revisão teórica em torno dos modelos teóricos da sexologia, da
resposta sexual humana, das relações de gênero e de sexualidade e da questão
da identidade e da diversidade sexual humana. Utilizando como metodologia a
análise de conteúdo proposta por Bardin (2000), as pesquisadoras categorizaram
as mulheres estudadas em três grupos: mulheres com relato de práticas heteros-
sexuais, bissexuais e homossexuais, fundamentando sua análise nos conceitos de
reflexividade, de senso comum e de gênero. Elas concluiram o artigo afirmando
que, apesar das conquistas feministas do século XXI, perduram as assimetrias
de gênero, na medida em que o exercício da sexualidade, independentemente da
prática sexual vivenciada, ainda é permeado por conflitos originados nas ques-
tões relativas às construções de gênero e de identidade, à falta de conhecimento
sobre o corpo e à visão heteronormativa incapaz de de transcender a dualismos.
transcender a dualismos.Em artigo sobre Diversidade Sexual e atenção à saú-
de, Marcelo Vieira e Rodrigo Otávio Moretti-Pires fazem uma análise das cons-
truções sociais sobre diversidade sexual no campo da saúde, refletindo sobre a
abordagem de tal temática pelos profissionais dessa área e seus efeitos para as
pessoas não heterossexuais. as autoras defendem que as intervenções em saúde
devem romper com o modelo prescritor de condutas, especialmente no que se
refere ao sexo, permitindo que as pessoas vivam uma vida no gênero que melhor
aprouver a elas.
Por fim, in memoriam de Tito Sena, publicamos também a entrevista dada
por ele à Rádio UDESC falando do lançamento de seu livro (2013), que reco-
mendamos por se tratar de um importante estudo sobre sexualidades no qual
ele analisa, fundamentado em concepções teórico-metodológicas de Foucault,
os grandes relatórios sobre sexualidade publicados no século XX.
Boa leitura!

Mara Coelho de Souza Lago


Olga Regina Zigelli Garcia
Pedro Rosas Magrini

Apresentação 13
Desigualdades de Gênero: movimentos
sociais e políticas públicas1

Andreia Barreto
Daniela Manica
Leila Araújo
Sergio Carrara
Vanessa Leite

Introdução: o contexto brasileiro no século XIX

Como vimos nos módulos anteriores, as desigualdades sociais entre ho-


mens e mulheres são as principais consequências da forma como as concepções
de gênero estruturam a vida social. Os diversos espaços sociais ainda legitimam
relações assimétricas entre homens e mulheres, apesar das conquistas dos movi-
mentos feministas. Um estudo de Maria Betânia Ávila (2009) aponta essa con-
dição, ela afirma que:

É no cotidiano da casa, do bairro, da escola, da empresa, das cidades, que


estão materializados os efeitos da dominação e da exploração e da injusti-
ça social. É aí onde a desigualdade se reproduz como parte da existência
humana, mas é aí também que os movimentos de lutas cotidianas, qua-
se sempre invisíveis, tomam forma como parte dessa existência. (ÁVILA,
2009, p. 63).

1
Material organizado por Andreia Barreto, Daniela Manica, Leila Araújo, Sergio Carrara, Vanessa Leite,
no livro do Curso de Especialização em Gênero e Sexualidade do CLAM/IMS/UERJ.

17
Esses espaços, privados ou públicos, fazem parte do cotidiano e é por eles
que os diferentes atores sociais transitam. Assim, esses ambientes podem ser o lo-
cus de reprodução ou de resistência à produção da desigualdade. As desigualdades
de gênero são o resultado de processos históricos que precisam ser contextualiza-
dos, e compreendidos, de forma a contribuir com as reflexões do presente.
Ressaltar conquistas contemporâneas é reconhecer que a história das mu-
lheres e das lutas feministas se confunde. De forma organizada e coletiva, ou
individualmente, foram inúmeras as mulheres que contribuíram para a constru-
ção de diversas mudanças sociais.
Com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, as prin-
cipais cidades brasileiras passaram por processos de rápida transformação.
Os representantes da nobreza, a corte e a criadagem formaram a sede do império
português, causando profundo impacto em padrões de comportamento da elite,
influenciando fortes transformações políticas e sociais. Nesse período, a popula-
ção era estimada em quatro milhões de habitantes.
Até então o privilégio do acesso a cargos públicos e do ensino era ape-
nas dos homens. Em 1809, foi criado um dos primeiros colégios para me-
ninas de elite. Ministrava ensinamentos que consistiam em boas maneiras,
trabalhos manuais, noções de francês, rudimentos de declamação e música.
Visava uma preparação para a vida dos salões e para a maternidade. Em
geral, ligados aos conventos, esses estabelecimentos ensinavam a rezar para
“afastar os maus pensamentos”.

A vida da mulher da “casa-grande” é bastante conhecida. [...] Sua função


única de procriadora não exigia mais de sua educação do que o domínio
das artes domésticas. São comuns as crônicas de viajantes, relatando a
ignorância das mulheres brancas brasileiras. Raramente sabiam ler e ape-
nas no Segundo Reinado, com a crescente sofisticação da Corte, começam
a se preocupar em dar às suas filhas algumas pinceladas de cultura, para
melhor habilitá-las à frequência dos salões. [...] Convento ou casamento:
esta rima casual resume as perspectivas que aceitavam conformadas as mu-
lheres da classe dominante. (ALVES, 1980, p. 86).

As famílias de elite almejavam igualar-se à aristocracia europeia. Para tanto,


era preciso capacitar para o casamento as filhas da alta sociedade. O matrimônio

18 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


era um negócio entre as famílias, e a educação das mulheres representava, nesse
contexto, um incremento na economia marital, além dos dotes. O processo in-
cluía a habilitação para a vida doméstica, o que significava boas esposas, moças
solícitas e férteis, sendo a principal função da esposa a procriação.
Na primeira escola normal do país, criada em 1835, em Niterói, não eram
admitidas matrículas de moças. Manter meninas e escravos no berço da igno-
rância justificava-se com preconceituosos ditos populares: “Mulher que sabe la-
tim não tem marido e nem bom fim”; “Escravos que sabem ler acabam querendo
mais do que comer”.
A literatura era ofício dos homens. Algumas pioneiras desafiaram o con-
servadorismo de sua época a partir do final do século XIX. Nísia Floresta, inte-
lectual nascida no Rio Grande do Norte, foi personagem marcante desses tem-
pos. Ela escrevia sobre escravidão, sofrimento de índios e qualidade do ensino,
mas, acima de tudo, sobre a mulher. Como aponta Alves, Nísia (1980, p. 87) “[...]
adotou as ideias mais avançadas de sua época e era abolicionista, republicana e
feminista”. Suas reflexões contestadoras foram publicadas no Jornal Pernambu-
cano Espelho das Brasileiras, em 1931.
Nísia, considerada a primeira feminista publicamente conhecida, afirmava,
em seus textos, que as mulheres tinham tanto direito quanto os homens a uma
educação plena. Em 1832, ela lançou o primeiro de seus 14 livros – Direitos das
mulheres e injustiça dos homens, uma tradução adaptada à realidade brasileira do
livro A vindication of the rights of woman (Uma defesa dos direitos da mulher),
da inglesa Mary Wollstonecraft. A defesa da emancipação feminina por meio da
educação a levou a fundar um colégio para meninas, com proposta curricular
avançada, o que a tornou precursora dos ideais de igualdade e de autonomia da
mulher brasileira.
A obra literária denominada Úrsula, escrita pela negra maranhense Ma-
ria Firmina dos Reis, em 1859, é considerada o primeiro romance abolicionista
brasileiro elaborado por uma mulher. Em São Luís (Maranhão), Maria Firmina
fundou uma escola mista e gratuita para crianças pobres (iniciativa considerada
ousada para a época), na qual lecionou até se aposentar, em 1881.
Nas últimas décadas do século XIX, as publicações escritas e dirigidas por
mulheres tratavam dos mais variados assuntos e alcançavam um diversificado

Desigualdades de Gênero: movimentos sociais e políticas públicas 19


público leitor. Um traço comum à imprensa feminina era o de não se ater ape-
nas às temáticas da culinária, da etiqueta e da moda. Os jornais para o público
feminino mesclavam reflexões sobre assuntos fervilhantes, defendendo temas
polêmicos, como abolição da escravatura, queda da monarquia, acesso das mu-
lheres às universidades, divórcio e direito ao voto. A cultura brasileira era pro-
fundamente influenciada pela francesa. Na França, um surto de literatura femi-
nina abriu espaço no Brasil para o ambiente favorável ao trabalho das escritoras
brasileiras que, gradativamente, foram enveredando por temas polêmicos, além
dos textos dedicados às mães e às esposas. Júlia Lopes de Almeida, crítica da
sociedade de seu tempo, como outras mulheres da sua geração, respondeu com
criatividade à resistência que encontrou no exercício do jornalismo e da literatu-
ra, escrevendo sempre sobre assuntos voltados para o público feminino. O mar-
co do sucesso de Júlia Lopes de Almeida foi O livro das noivas, escrito em 1896.
Passado de mãe para filha durante décadas, essa obra tratava dos “mistérios do
casamento”. Foi incorporado ao cotidiano de gerações de brasileiras.
A jornalista Josefina Álvares de Azevedo, irmã por parte de pai do poeta
Manoel Antônio Álvares de Azevedo, nasceu na segunda metade do século XIX,
em 1851. Em 1888, ano da abolição da escravatura no Brasil, ela fundou o jor-
nal A Família. Dedicado ao público feminino, esse periódico defendia a educa-
ção como ferramenta para a construção da emancipação da mulher. Apesar da
destacada atuação na defesa de maior participação da mulher na vida pública,
os últimos anos de vida de Josefina Álvares de Azevedo ficaram (e continuam)
desconhecidos.
De todas as lutas enfrentadas por mulheres na conquista do acesso à educa-
ção, o ingresso nos cursos superiores representou a batalha mais árdua. Em 1875,
Maria Augusta Generoso Estrela e Josefa Águeda Felisbela Mercedes de Olivei-
ra, que, embora capacitadas, foram recusadas no curso de Medicina, decidiram
“exilar-se” nos Estados Unidos para seguir a vocação. A decisão ganhou grande
repercussão na imprensa brasileira, a qual acompanhou passo a passo as suas tra-
jetórias em terras norte-americanas, por meio da publicação A mulher, produzida
por ambas e distribuída periodicamente para os principais jornais do Brasil.
No entanto, eram exceções. As jovens estudantes brasileiras foram obri-
gadas a esperar até 1879, quando finalmente o governo imperial se rendeu e

20 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


permitiu, condicionalmente, a entrada de mulheres nas faculdades. Entretanto,
as solteiras deveriam apresentar licença de seus pais. As casadas, o consentimen-
to escrito por seus maridos.

As Mobilizações Feministas do Final do Século XIX


ao Início do XX

As duas primeiras Constituições Brasileiras, a de 1824 e a republicana de


1891, não mencionavam mulheres no rol dos excluídos ao voto. Contudo, foram
mais de 40 anos de luta na República para conquistar esse direito. Dois episódios
ilustram resistências encontradas por mulheres que exigiram seu direito ao voto,
no final do século XIX.
Em 1885, a cirurgiã-dentista gaúcha Isabel de Souza Matos requereu o alis-
tamento eleitoral. O pedido estava amparado pela Lei Saraiva, que garantia o
direito de voto a portadores de títulos científicos. Isabel Matos conseguiu ganhar
a demanda judicial somente em segunda instância. Com o advento da República
e a convocação de eleições para a Assembleia Constituinte, ela, então moradora
do Rio de Janeiro, procurou a comissão de alistamento eleitoral para fazer valer
sua conquista. A comissão pediu parecer ao Ministério do Interior, do qual par-
tiu negativa contundente – a reivindicação foi julgada improcedente.
A segunda iniciativa foi da baiana doutora Isabel de Mattos Dilon, que
exerceu o seu direito de votar ainda no período monárquico. Sua justificava se
baseava na mesma Lei Saraiva, a qual concedia o direito de voto àqueles maiores
de 21 anos e portadores de títulos científicos, sem menção ao sexo. Com isso,
Isabel Dilon apresentou-se como candidata a deputada na Constituinte de 1891
e foi considerada a primeira mulher na história a reivindicar esse direito. Tor-
nou pública sua candidatura, com o compromisso político de defender a ampla
liberdade de credo religioso e de pensamento e, também, a aprovação de leis
que protegessem a criança, a mulher e o operariado nascente. Em seu manifesto,
enfatizou o entendimento de que:

[...] um governo democrático não pode privar uma parte da sociedade de


seus direitos políticos, uma vez que as mulheres não foram francamente
excluídas da Constituição vigente. (DILON apud ALVES, 1980, p. 91)

Desigualdades de Gênero: movimentos sociais e políticas públicas 21


A nova geração de feministas recepcionou a chegada do século XX trazen-
do na bagagem o justo desejo de exercer a cidadania em toda plenitude. As femi-
nistas, motivadas pelo avanço das mulheres em alguns cenários internacionais,
tentavam popularizar suas reivindicações. Nas primeiras décadas do século, elas
conviveram com os movimentos de esquerda emergentes e com as primeiras
greves operárias.
Às lutas pelo sufrágio somaram-se novas causas. As mulheres enfrentavam
os preconceitos da vida social e da política brasileira. Em 1910, Leolinda de Fi-
gueiredo Daltro sacudiu a cena pública com ideias vanguardistas em defesa das
mulheres e dos índios. Ao ter seu alistamento eleitoral recusado, fundou no Rio
de Janeiro o Partido Republicano Feminino, cujo objetivo era mobilizar as mu-
lheres pelo direito ao voto. Contou com o apoio da primeira-dama Orsina da
Fonseca – casada com o Presidente Hermes da Fonseca (1910-1914) – e da poe-
tisa Gilka Machado que, ao lado de outras cariocas, tomaram as ruas da cidade
numa marcha memorável.
Algumas temáticas tornaram-se pauta pública feminina, desde essa época,
tal como a proteção à maternidade e à infância. A “maternidade higiênica” era
a bandeira da organização Damas da Cruz Verde, organização defensora de um
conjunto de políticas públicas destinadas a proteger a mulher durante a gravidez
que propunha ampla intervenção do saber médico na vida das gestantes e mães.
As Damas da Cruz Verde preconizavam ainda a instituição da obrigatoriedade
de um exame pré-nupcial para a concessão da licença de casamento.
Com o decreto formal abolindo a escravidão no Brasil, no ano de 1888, e
a instauração da República, em 1889, o cenário da sociedade reconfigurou-se
com a chegada da industrialização e de imigrantes que integraram o contin-
gente do operariado brasileiro. As difíceis condições no mundo do trabalho
começaram a fazer parte da pauta de preocupações das mulheres nas primei-
ras décadas do século XX.
A força de trabalho feminina era desvalorizada, as mulheres eram explora-
das e recebiam salários muito inferiores, comparados aos pagos ao trabalhador
adulto do sexo masculino. Diante das restrições e das condições trabalhistas in-
justas, surgiram os primeiros protestos. Anarquistas como Tereza Fabri e Teresa
Carini tiveram destaque em São Paulo na elaboração de um manifesto que

22 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


convocava as costureiras a lutarem pela redução da jornada de trabalho para oito
horas diárias.
A participação das operárias têxteis foi significativa na greve geral de 1917.
Fortalecidas, dois anos depois, elas organizaram uma paralisação histórica noti-
ciada pelo Jornal do Brasil como a “greve das abelhas de luxo”. O movimento foi
liderado por Elvira Boni de Lacerda, uma das fundadoras da União das Costu-
reiras, Chapeleiras e Classes Anexas. As trabalhadoras também puderam contar
com o envolvimento da militante comunista Laura Brandão, que durante anos
escreveu, discursou e panfletou nas portas das fábricas, defendendo as causas
das operárias.
Depois do fim da I Guerra Mundial, após muitos protestos, a proteção ao
trabalho da mulher passou a ser preocupação dos homens públicos em nível
internacional. O Tratado de Versalhes, em 1919, do qual os países que partici-
param do grande conflito mundial eram signatários, recomendou salário igual
para trabalho igual, sem distinção de sexos.
A partir de 1920, grupos batizados de Ligas para o Progresso Feminino,
formaram-se em todo o país. Dois anos depois, a líder dessa emergente e triun-
fante corrente sufragista, a bióloga paulista recém-chegada da Europa, Bertha
Lutz (citada brevemente na primeira unidade desta disciplina), organizou no
Rio de Janeiro o I Congresso Internacional Feminista. Consolidou-se assim a
criação da Federação Brasileira para o Progresso Feminino, unindo em torno de
si as ligas estaduais e exercendo papel central na mobilização das mulheres, na
ocupação de espaços na imprensa e na montagem de estratégias para a conquista
do sufrágio feminino.
Segundo Alves (1980, p. 110), a década de 1920 foi uma época conturbada.
Anunciava as transformações posteriores à revolução de 1930:

A classe operária se organizava, os intelectuais rompiam com o pensamen-


to tradicional, as classes médias buscavam uma forma de ter representados
seus interesses. Em 1922, deu-se a Semana de Arte Moderna, que revolu-
cionou o pensamento artístico brasileiro.

Em função de uma série de acontecimentos históricos, e revolucionários,


as mulheres encontraram um terreno fértil, e propício, para a mobilização e a

Desigualdades de Gênero: movimentos sociais e políticas públicas 23


organização de Congressos, os quais dariam maior visibilidade à causa femini-
na. Todas essas iniciativas foram insuficientes para que a cidadania das mulheres
fosse reconhecida, mas contribuíram para o fortalecimento da luta feminista
pela conquista de seus direitos. As feministas foram constatando, com indigna-
ção, que o engajamento na luta política e suas conquistas no campo da educa-
ção não foram suficientes para que os poderes constituídos reconhecessem seus
direitos de cidadãs. Lideradas por Bertha Lutz, Carmem Portinho, Almerinda
Farias Gama, Josefina Álvares de Azevedo, Maria Eugênia Celso e tantas outras,
elas iniciaram uma campanha aguerrida em várias frentes e cidades. Seminários,
manifestações artísticas e até panfletagem aérea eram armas de mobilização da
opinião pública, dos congressistas e da população.
Em 1918, muitas mulheres que já haviam aderido ao movimento sufra-
gista feminino lotaram o auditório do Palácio Itamarati para assistir a arguição
oral da baiana Maria José de Castro Rebelo Mendes, aquela que seria a primeira
mulher a ingressar no Ministério das Relações Exteriores. Ao inscrever-se para
o concurso, ela teve seu pedido recusado pelo órgão, porém, o fato ganhou re-
percussão pública quando a família procurou Rui Barbosa para examinar juri-
dicamente o caso.
Pressionado, o ministro Nilo Peçanha acabou deferindo o pedido de ins-
crição da candidata, e o seu ato foi amplamente comentado na imprensa. Com
isso, o então ministro recebeu elogios do jornalista Carlos de Laet, em artigo pu-
blicado no dia 26 de setembro de 1818, no Jornal do Brasil. E, também, vorazes
críticas de leitores assim como do vespertino carioca A Rua, que explicitava sua
preocupação com “a marcha do feminismo no Itamarati”. Vinte anos depois, o
então chanceler Osvaldo Aranha proibiu o ingresso de mulheres no quadro do
Ministério das Relações Exteriores.
Somente em 1953, Sandra Maria Cordeiro de Melo obteve na justiça uma
liminar contrária ao veto. Esse processo fez com que, em dezembro de 1954,
fosse aprovada pelo Congresso Nacional a lei que garantiu, definitivamente, o
acesso das mulheres à carreira diplomática.
A pedagoga mineira Maria Lacerda de Moura, que colaborou na fundação
da Federação pelo Progresso Feminino, questionou o discurso das sufragistas,
considerando-o “ameno e reformista”. Ela optou por maneiras mais contundentes

24 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


de atuar na cena política. Uma mulher com ideias “transgressoras” para a época
vigente, Maria Moura era uma adepta da livre expressão amorosa e aproveitou
todas as oportunidades para posicionar-se a favor da educação sexual, contra a
moral vigente e as posições da Igreja Católica. Reconhecia que a relação que as
mulheres mantinham com o próprio corpo, com os homens, no âmbito fami-
liar e no ambiente de trabalho era mal discutida na sociedade. Como pedagoga,
reivindicava a inclusão de uma disciplina denominada “História da Mulher, sua
evolução e missão social” no currículo das instituições escolares femininas.
A escritora e ativista política paulista Patrícia Galvão, conhecida como
Pagu e musa do Movimento Modernista Brasileiro, escandalizou a sociedade
tradicional com roupas extravagantes, cabelos curtos e chapéus, segurando ci-
garros entre os dedos, hábitos imperdoáveis para uma moça de família no con-
texto da época.
As mulheres viviam, se comportavam e se vestiam de forma recatada e
discreta, ou seja, dentro dos padrões sociais e culturais considerados “normais”.
Pagu foi um símbolo de ousadia. Feminista assumida, ela escreveu romances,
crônicas, poesias e dirigiu peças teatrais. Na mistura de militância comunista
com defesa dos direitos das mulheres, Pagu, à frente do seu tempo, é ainda hoje
considerada um ícone das lutas pela emancipação feminina. Seu nome batiza
diversas iniciativas feministas contemporâneas.
Outra figura emblemática da “mulher liberada” foi a jornalista Eugênia
Moreira, considerada a primeira repórter feminina do país. Sua primeira repor-
tagem foi publicada na página principal do jornal Última Hora, do Rio de Janei-
ro, na segunda década do século XX. Eugênia Moreira participou ativamente do
movimento modernista brasileiro, integrou o grupo das sufragistas, defendeu a
renovação e a popularização do teatro brasileiro. Respeitada politicamente, foi
uma das oradoras do célebre comício realizado pelo Partido Comunista do Bra-
sil, em maio de 1945, no estádio do Vasco da Gama, no Rio de Janeiro, ao lado de
Getúlio Vargas, Luís Carlos Prestes, Manoel Campos da Paz e outras lideranças
ligadas aos comunistas.
Com habilidade política e capacidade de articular alianças, as sufragistas
foram conseguindo adesões em vários espaços e cidades. Até que, no ano de 1927,
a lei eleitoral do Rio Grande do Norte concedeu direito de voto às potiguaras.

Desigualdades de Gênero: movimentos sociais e políticas públicas 25


Ao ser eleita para governar a cidade de Lage (RN), Alzira Soriano tornou-se, um
ano depois, a primeira prefeita da América Latina.
Devido a esse fato, as sufragistas de outros estados brasileiros começa-
ram a requerer o alistamento, sendo alguns pedidos deferidos e outros não. Com
a conquista das norte-rio-grandenses, ainda que seus votos tivessem sido cas-
sados, as mulheres continuaram insistindo no desejo de exercer esse direito. Um
abaixo-assinado, contendo duas mil assinaturas, foi entregue aos parlamentares com
o objetivo de pressioná-los a aprovar o projeto de lei que tramitava no Congresso.
O documento, amplamente divulgado pela imprensa, era um retrato da realidade
das brasileiras de então. “Desde que uma só exista, não há motivo para que não se-
jam eleitoras todas as mulheres habilitadas do Brasil”, argumentavam as signatárias:

Reclamando esses direitos, não fazemos mais do que fizeram e estão fazen-
do as mulheres direito de colaborar, direta ou indiretamente, na elaboração
dessas mesmas leis e votação desses mesmos impostos. [...] A economia
doméstica e a organização da família estão inteiramente ligadas à organi-
zação social e econômica do país. São problemas coletivos que não toleram
mais as situações individuais. Não podem deixar indiferentes as donas-de-
-casa, as mães de família, cujos filhos, na frequência diária de jardins da
infância, escolas, oficinas, academias e cinemas, se acham expostos às vi-
cissitudes do meio ambiente. O nosso Código Civil, afastando-se de outros
menos liberais, deu à mulher brasileira uma situação privilegiada, consi-
derando a esposa como companheira do marido e não como sua inferior,
não lhe exigindo na sociedade conjugal obediência, mas sim colaboração.
Sendo a mãe a tutora natural dos filhos, dotada de pátrio poder, elevou-se
legalmente ao nível dos homens, cujas responsabilidades políticas está ha-
bilitada a compartilhar. (SCHUMAHER 2000, p. 220).

O documento ainda ressaltou as conquistas vivenciadas por mulheres no


âmbito internacional. Em meio a tantas polêmicas e embates no Congresso Na-
cional, em 24 de fevereiro de 1932, as mulheres materializaram a maior conquis-
ta feminina do século XX: o direito de votar e serem votadas. O Código Eleitoral
de 1932, elaborado no governo Getúlio Vargas, introduziu o voto feminino e o
voto secreto, instaurando uma nova fase na cultura política brasileira. As elei-
ções para a Assembleia Nacional Constituinte de 1934 foram convocadas para
3 de maio de 1933, inaugurando a era do direito de mulheres ao alistamento,
como eleitoras e como candidatas.

26 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


No entanto, apesar desse avanço no contexto da política permitindo a par-
ticipação cidadã das mulheres, outros ordenamentos jurídicos pareciam retro-
ceder e mesmo fortalecer as assimetrias de gênero. O Decreto n. 3.199, de 1941,
também da era Vargas, proibia que as mulheres praticassem determinadas ati-
vidades esportivas consideradas “incompatíveis com as condições femininas”,
como: “luta de qualquer natureza, futebol de salão, futebol de praia, polo, polo
aquático, halterofilismo e beisebol”.
Somente em 1928, as atletas conquistaram oficialmente o direito de dispu-
tar as provas olímpicas. Coube à nadadora paulista Maria Lenk o papel de ser
a primeira sul-americana a competir em uma Olimpíada, em 1932, abrindo o
caminho para as demais esportistas do continente. Nos jogos de 2004, 76 anos
depois do pioneirismo de Maria Lenk, o público feminino alcançou a expressiva
marca de 44% de participação. O Brasil foi representado por 122 mulheres, num
total de 247 atletas.
No âmbito político, com a criação do Código Eleitoral de 1932, outro desa-
fio se apresentava: promover a candidatura das feministas para a Assembleia Na-
cional Constituinte de 1933. Entre os 254 votantes, contabilizando eleitos e re-
presentantes classistas, duas vozes eram femininas: Carlota Pereira de Queiroz,
médica eleita por São Paulo e primeira deputada federal do Brasil; e a advogada
alagoana, Almerinda Farias Gama, uma das primeiras mulheres negras na polí-
tica brasileira, a qual representou o Sindicato das Datilógrafas e Taquígrafas do
Distrito Federal, por intermédio de uma estratégia bem-sucedida da Federação
Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF).
Nas eleições gerais de 1934, a FBPF retornou ao cenário político, patroci-
nando acirrada campanha nacional para a eleição de mulheres. As propostas das
feministas foram resumidas em documento composto por 13 princípios, com
questões referentes à maternidade, a melhores salários e à licença-remunerada e
à discussão do acesso aos cargos públicos.
Nove mulheres foram eleitas deputadas estaduais: Quintina Ribeiro, por Ser-
gipe; Lili Lages, por Alagoas; Maria do Céu Fernandes, pelo Rio Grande do Norte;
Maria Luísa Bittencourt, pela Bahia; Maria Teresa Nogueira e Maria Teresa Ca-
margo, por São Paulo; Rosa Castro e Zuleide Bogéa, pelo Maranhão; Antonieta de
Barros, por Santa Catarina, sendo esta a primeira deputada negra do Brasil.

Desigualdades de Gênero: movimentos sociais e políticas públicas 27


Até então, a era Vargas havia consolidado um Estado de Direito, com mui-
tas conquistas nos âmbitos: social, político e econômico. No entanto, esse perío-
do supostamente democrático durou pouco, ao ser instaurado, em 1937, um re-
gime autoritário – o Estado Novo. Os parlamentos foram fechados e as ações dos
movimentos sociais, inclusive as mobilizações das mulheres, suprimidas. Nesse
cenário ditatorial, Bertha Lutz afastou-se gradualmente da direção da FBPF até
deixar o cargo de presidente, em 1942, mantendo-se fiel à causa feminista até o
fim de seus dias, em 16 de setembro de 1976. Foi sucedida pela escritora Maria
Sabina de Albuquerque, uma de suas antigas colaboradoras, eleita, no ano de
1979, a mulher de destaque do ano.

A “nova onda” Feminista: a segunda metade do século XX

De 1937, início da ditadura varguista, a 1970, período de grande mobili-


zação contra a ditadura militar, os grupos de mulheres estiveram atrelados aos
partidos de esquerda. Nos anos de redemocratização pós-1945, o cenário polí-
tico brasileiro não comportava organizações que privilegiassem a articulação de
interesses específicos acima dos interesses de classe:

No Brasil, o movimento feminista contemporâneo se organizou ainda sob


o regime militar, e está, desde a sua origem, envolvido no processo de de-
mocratização do país. Neste contexto, o movimento feminista se situou,
historicamente, no campo da esquerda. (ÁVILA, 2008, p. 59).

No mundo ocidental, os anos de 1960-1970 foram marcados por vigorosos


protestos das chamadas minorias na reivindicação de direitos civis. Nos Estados
Unidos, paralelamente a ativistas negros americanos liderados por Martin Lu-
ther King e Malcolm X, em sua demanda por cidadania plena, e a movimentos
políticos contrários à guerra do Vietnã, vimos o ressurgimento das mobilizações
de mulheres. Essa nova “onda feminista” distanciava-se de sua primeira versão
em busca do direito ao voto em fundamentos teóricos e em propostas de luta.
Como vimos no primeiro módulo do Curso, o feminismo apoiou-se, prin-
cipalmente, nas ideias da escritora francesa Simone de Beauvoir, expressas em
O segundo sexo (1949). Referência durante décadas para a nova organização do

28 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


movimento internacional de mulheres, Simone de Beauvoir questionava as re-
lações sociais, estruturadas hierarquicamente e naturalizadas, que sustentaram
durante séculos as desigualdades entre os sexos. De acordo com a análise da
autora, as assimetrias entre homens e mulheres e a condição de subalternidade a
que a mulher foi submetida têm sua origem no patriarcado.
Com a frase “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, a filósofa fran-
cesa promoveu a primeira separação entre sexo e gênero, que fundamentou as
críticas feministas nesse período. Ao retirar da biologia o caráter determinista
do comportamento feminino, Beauvoir abriu espaço para as discussões sobre a
igualdade das mulheres na sociedade e para o surgimento dos estudos de gênero.
Nos EUA, a nova fase do movimento de mulheres teve como ponto de
partida a publicação, em 1963, do livro A mística feminina, de Betty Friedan. Ela
denuncia as inúmeras estratégias de confinamento de mulheres na esfera do-
méstica, propõe novas formulações para a reorganização do feminismo. Friedan
explica o que ela chamou de “o mal que não tem nome”, representando a angús-
tia do eterno feminino, da mulher sedutora e submissa, cujas possibilidades de
realização eram restritas.
Com o surgimento da pílula anticoncepcional, a sexualidade ganhou no-
vos contornos, começando assim um lento processo de separação entre sexo e
reprodução. O uso de contraceptivos promoveu mudanças na família, uma vez
que as mulheres, além de poderem exercer a sexualidade dissociada da gravidez,
também puderam com isso planejar com maior segurança o número de filhos.
Com o uso de métodos anticonceptivos, fazer sexo não estava mais avassalado
pelo medo da procriação, dando espaço maior ao desejo e ao prazer.
O novo método interferiu diretamente nas relações entre homens e mu-
lheres, uma vez que podia ser usado com autonomia, sem o conhecimento do
parceiro, pai ou outros. Se por um lado as mulheres estavam “liberadas para o
prazer”, sua condição legal ainda era bastante restritiva. Até 1962, o Código Pe-
nal brasileiro submetia as mulheres casadas à tutela marital: isto é, aos desejos
e às decisões do marido. A lei não permitia que a mulher trabalhasse fora nem
viajasse sem o consentimento do “chefe da casa”.
A difusão do novo pensamento feminista contribuiu para dar sen-
tido e ampliar a insatisfação relativa ao tradicional papel que as mulheres

Desigualdades de Gênero: movimentos sociais e políticas públicas 29


desempenhavam na sociedade. Alimentadas por novas informações, norte-
-americanas, italianas, francesas, inglesas e suecas ganharam as ruas para entoar
palavras de ordem, como: Nosso corpo nos pertence! O privado também é político!
Diferentes, mas não desiguais! Como resposta à intensa mobilização de mulhe-
res, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o ano de 1975 como o
Ano Internacional da Mulher, promovendo na Cidade do México, grande confe-
rência internacional, com a presença de delegações de diversos países.
No Brasil, esses acontecimentos causaram enorme repercussão. A confe-
rência da Cidade do México e a instituição da Década da Mulher pela ONU
ofereceram alento à reestruturação do movimento feminista com novas bases.
A despeito de o momento político nacional estar marcado pelo cerceamento das
liberdades democráticas – sendo, portanto, impossível promover qualquer orga-
nização social sem o risco de confronto com os militares – o manto protetor da
instituição internacional possibilitou a organização de seminários, nos quais as
mulheres puderam discutir os problemas comuns.
Foi nesse contexto de crise da democracia, mas também de construção de
novos modelos sociais, que emergiu, no país, o feminismo organizado dos anos
de 1970. Se por um lado a nova onda feminista lutou também, como vimos,
contra a ditadura militar, por outro, trouxe para o debate público a questão da
supremacia masculina, da violência sexual e do direito ao prazer. Nesse sentido,
o feminismo é uma lente através da qual as diferentes experiências das mulheres
podem ser analisadas criticamente, com vistas à reinvenção de mulheres e de
homens, fora dos padrões que estabelecem a inferioridade de um em relação ao
outro (BAIRROS, 1995).
O primeiro esboço de organização feminista de que se tem notícia nesse
período foi um grupo de reflexão formado em São Paulo, em 1972, composto,
sobretudo, por professoras universitárias, algumas recém-chegadas dos EUA e
da Europa, onde o movimento de mulheres tinha explodido com muita força.
Elas se reuniram com o objetivo de pensar coletivamente sobre a condição femi-
nina, a partir dos acontecimentos no mundo e no Brasil. Durante três anos, fize-
ram algumas tentativas de ampliação do coletivo. Em 1975, na reunião anual da
Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC) em Belo Horizonte, elas
organizaram uma mesa sobre o tema “mulher”. Esse grupo pioneiro dissolveu-se

30 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


neste mesmo ano, e suas integrantes incorporaram, cada uma à sua maneira, a
temática de gênero.
No Rio de Janeiro, em julho de 1975, sob o patrocínio do Centro de Infor-
mações da ONU, foi organizada, na Associação Brasileira da Imprensa (ABI),
a semana de debates, intitulada “O Papel e o Comportamento da Mulher na
Realidade Brasileira”. Esse evento histórico foi organizado por Mariska Ribeiro,
Branca Moreira Alves, Maria Luiza Heilborn, Maria Helena Darci de Olivei-
ra, Elice Muneratto, Kátia Almeida Braga, Jacqueline Pitanguy, Leila Linhares,
dentre outras, com o objetivo de comemorar o ano internacional da mulher.
O evento acabou por reunir profissionais liberais, estudantes universitárias e do-
nas de casa para discutir os problemas das mulheres brasileiras diante de uma
plateia composta por mais de 400 participantes a cada dia. Do encontro da ABI
as cariocas fundaram o Centro da Mulher Brasileira (CMB), a primeira organiza-
ção feminista do país nessa nova fase. Esse Centro apresentava propostas acerca
da formação de grupos de reflexão, promoção de atividades para tornar visível a
questão feminina e para combater o papel subalterno da mulher na sociedade.
Em outubro do mesmo ano, realizou-se na Câmara Municipal de São Paulo
o “Encontro para o Diagnóstico da Mulher Paulista”. Participaram desse evento
representantes de partidos políticos e da Igreja, sindicalistas, feministas e pes-
quisadoras. Nesse encontro foi elaborada uma carta-documento, subscrita por
38 organizações, para criação de uma entidade que servisse de polo aglutinador
das lutas feministas. Assim sendo, em 1976, nasceu o Centro de Desenvolvi-
mento da Mulher Brasileira (CDMB), com vinculação partidária e semelhança
relativa à entidade carioca apenas no que dizia respeito aos estatutos. Ainda, em
novembro do mesmo ano, aconteceu no Sindicato dos Jornalistas o “Encontro
de Mulheres de São Paulo”. Esse encontro contou com a presença expressiva de
mulheres, principalmente ligadas aos clubes de mães e ao movimento popular
da periferia da capital paulistana. Organizou-se ainda, em 1975, o Movimento
Feminino pela Anistia, que alcançou rápida repercussão por todo o país, e teve
como uma de suas principais articuladoras, Terezinha Zerbine.
As reivindicações das mulheres expressavam-se em encontros estaduais,
regionais e nacionais. As primeiras reuniões nacionais foram promovidas pelas
feministas nos encontros anuais da Sociedade Brasileira para o Progresso da

Desigualdades de Gênero: movimentos sociais e políticas públicas 31


Ciência. Em 1979, em Fortaleza, realizou-se o que atualmente se convencionou
chamar de Encontro Nacional Feminista. Um ano depois, no Rio de Janeiro,
ocorreu o segundo, um marco histórico, contando com a participação de mais
de 1.500 mulheres, entre elas, professoras, estudantes universitárias e militantes
do movimento.
Nos anos de 1970 e 1980, o movimento feminista no Brasil esteve pontuado
pela luta em prol da redemocratização e por direitos de cidadania e igualdade.
Multiplicaram por todo o país dezenas e dezenas de grupamentos autônomos
de mulheres, reunindo as mais diferentes expressões políticas. Esses grupos es-
tavam próximos das organizações de esquerda, embora surgissem como mobi-
lizações sociais novas.
As organizações feministas, embora contassem com aliados nos partidos
políticos, no conjunto, abrigavam mulheres de tendências políticas diferentes
que buscavam autonomia frente aos partidos (GOLDBERG, 1987). Elas defen-
diam, prioritariamente, a ampliação da cidadania e o direito à sexualidade; aspi-
ravam afirmar a identidade feminina, diferenciando-a das visões que pretendiam
sobrepor as lutas gerais da sociedade à especificidade da condição feminina.
As integrantes dos diversos conjuntos formados no contexto dos anos de
1970 vinham quase que na sua totalidade dos agrupamentos de esquerda. Al-
gumas questões orientavam o debate, como: feminismo ou feminino? Luta ge-
ral ou luta específica? Da salvação do povo (ou da classe operária, dependendo
da linha política) para a salvação das mulheres e a derrocada do patriarcado.
Por onde começar? Quais questões abordar? Quais mulheres “salvar”? Todas?
As mais oprimidas? E quem é o inimigo principal: o homem ou o capitalismo?
E, afinal, quem somos? Cadê a nossa identidade e o nosso prazer? O que fazer
com nossa sexualidade? Onde colocamos o afeto, os filhos, os homens? Seremos
todas irmãs na luta pela igualdade? E a liberdade, como encontrá-la?
A confluência dessas ideias entre feministas, mulheres dos movimentos
populares, aquelas que priorizavam os partidos políticos e as donas de casa não
se deu sem conflitos. O debate nesse momento foi caracterizado pela polarização
de posições entre “luta geral”, “luta específica” e o “papel tradicional de mães e
guardiãs da família”.

32 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


A segunda metade dos anos de 1970 caracteriza-se pela centralidade dessa
discussão, certamente necessária e imprescindível, em razão da conjuntura po-
lítica. Até 1979, proliferavam-se inúmeros grupos de mulheres espalhados pelo
país, num amplo leque de posições feministas cujos rótulos eram por vezes reais,
por vezes pejorativos. Havia, por exemplo, as “separatistas”, as “intelectuais”, as
“pequeno-burguesas” preocupadas com sexo, as “proletárias” preocupadas com
a união entre luta geral e específica, as “estrangeiras” (ex-exiladas influenciadas
pelo movimento feminista europeu) e as “defensoras do movimento autônomo”.
Nesse contexto, ocorreu o ressurgimento do movimento negro e de mulhe-
res negras, e ressaltou-se a figura de Lélia Gonzalez, cofundadora do Movimen-
to Negro Unificado, antropóloga e ativista negra, a qual “[...] feminizou o mo-
vimento negro e enegreceu o movimento feminista”2. De acordo com Matilde
Ribeiro (1995, p. 446):

Resguardadas as particularidades, os movimentos feminista e negro res-


surgem no Brasil em meados dos anos 70, em plena ditadura militar, tendo
como eixos básicos a luta pela democracia, a extinção das desigualdades
sociais e a conquista da cidadania. Porém, em ambos os movimentos, as
mulheres negras aparecem como “sujeitos implícitos”: partiu-se de uma
suposta igualdade entre as mulheres, assim como não foram consideradas,
entre os negros, as diferenças entre homens e mulheres.

O reconhecimento das especificidades e das desigualdades sociais existen-


tes abriu espaço para que outros segmentos de mulheres tivessem voz no espa-
ço público. As reuniões setoriais de metalúrgicas, químicas e outras categorias
deram lugar aos “Encontros de Mulheres”, pela primeira vez, despidas de suas
diferenças para descobrir semelhanças. A palavra mágica dessa descoberta foi
autonomia: em relação aos homens, aos partidos políticos e ao Estado.
Essas reuniões pautavam-se por discussões que articulavam a luta por
creche, contra o controle da natalidade e por salário igual para trabalho igual.
As temáticas do aborto, da sexualidade e da violência estavam introduzidas na
pauta de discussões, mas não eram prioridades, como o são atualmente. Nesse
período, buscava-se um caminho a seguir, para alcançar a justiça para as mulhe-
res e construir um futuro mais equânime entre os sexos.

  Sobre a atuação de Lélia Gonzales, ver Barreto (2005).


2

Desigualdades de Gênero: movimentos sociais e políticas públicas 33


Tendo em vista a anistia política conquistada em 1979, rapidamente o país
mobilizou-se para recuperar o direito ao voto. O bipartidarismo – Arena/direita
e MDB/esquerda – que reinava absoluto até então e colocava todas as mulheres,
as da luta geral e as da específica, num mesmo patamar, foi extinto. A chamada
esquerda se reorganizou em vários matizes: social-democratas, socialistas, so-
cializantes, comunistas e revolucionários. A campanha das “Diretas Já” mono-
polizou as ruas, marcando o processo de redemocratização do país. As mulheres
estavam dispersas, ora dentro dos partidos, ora fora deles em razão de defesa da
autonomia, elas passaram a se organizar em movimentos.
Entre 1985 e 1990, destaca-se a atuação de organizações de mulheres ne-
gras. Nesse período, ampliou-se, por todo o país, o número de seminários e de
encontros destinados a fortalecer a organização das mulheres negras e a apro-
fundar a visão específica de subordinação e de discriminação, marcada pelo pre-
conceito racial. Nesse período, os Encontros Nacionais Feministas passam a ser
também um local de articulação política desse segmento. Em 1987, durante o
“8º Encontro Nacional Feminista”, em Garanhuns (PE), mulheres negras de
diversos estados ali presentes decidiram realizar, no ano seguinte, o “I Encon-
tro Nacional de Mulheres Negras”. Esse encontro, realizado em Valença (RJ),
em dezembro de 1988, foi precedido de seminários estaduais nos quais foram
amadurecidos os conteúdos a serem discutidos em âmbito nacional. Estiveram
presentes, aproximadamente, 440 mulheres negras de 19 estados brasileiros. Na
agenda, além da crítica aos festejos do Centenário da Abolição, que marcou o
ano de 1988, as mulheres negras lograram discutir temas como racismo, educa-
ção, trabalho, saúde, organização política, sexualidade, arte e cultura.
Nas últimas décadas, a atuação do movimento de mulheres negras tem
buscado questionar e intervir sobre as relações de opressão e de desigualdade.
Há também o empenho em ampliar a sua participação política e em recuperar
registros de sua atuação nos movimentos sociais e políticos que marcaram a his-
tória brasileira. Acrescente-se que, nesse contexto, a construção da identidade da
mulher negra passa a envolver a busca por referenciais culturais que remontam
ao passado africano e da diáspora. O trecho a seguir, extraído do artigo Nossos
Passos vêm de Longe! Movimentos de mulheres negras e estratégias políticas contra

34 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


o sexismo e o racismo, de Jurema Werneck, é uma ilustração do modo como a
identidade das mulheres negras se constrói nesses novos discursos políticos:

[...] as diferentes possibilidades a que as mulheres negras recorrem, os di-


ferentes repertórios ou pressupostos de (auto) identificação ou de identi-
dade, de organização política. Tais possibilidades partem deste reconhe-
cimento: estamos diante de diferentes agentes históricas e políticas – as
mulheres negras – intensas como toda diversidade. Entre estes repertó-
rios estão alguns mitos sagrados presentes no Brasil desde que a diáspora
africana foi criada. Estes referem-se a figuras femininas que atuaram e
ainda atuam como modelos, como condutores de possibilidades identitá-
rias para a criação e recriação de diferentes formas de feminilidade negra.
(WERNECK, 2008, p. 77).

A partir das estratégias empreendidas e dos compromissos assumidos pelo


País nas Nações Unidas, o movimento passou a atuar fortemente na construção
de políticas públicas. Desde então, o movimento de mulheres negras tem am-
pliado cada vez mais seus espaços de interlocução tanto no âmbito da socieda-
de civil quanto nos organismos estatais. Isso tem permitido construir alianças
estratégicas com outros movimentos de mulheres, com destaque para os mo-
vimentos de mulheres indígenas, que desenvolvem trajetórias semelhantes de
confronto ao racismo e seus impactos sobre as mulheres.
Outra voz que se levanta é a das mulheres não heterossexuais. As lésbicas,
diante dos enormes preconceitos e da violência sofrida na sociedade brasileira,
elas se organizam em grupos de apoio mútuo, de denúncias e de ação política.
Ao longo das últimas décadas produziram inúmeras publicações, realizaram En-
contros e Seminários Estaduais e Nacionais, além de terem sediado, em 1999, no
Rio de Janeiro, o “V Encontro de Lésbicas Feministas da América Latina e do
Caribe”. A incorporação da lesbianidade como questão política foi muitas vezes
ambígua, mesmo que no discurso do movimento feminista esteja garantido o
respeito à diferença e a não discriminação por orientação sexual.
No entanto, resguardadas as especificidades de cada segmento, mulheres
sempre compartilharam as assimetrias de gênero, presentes na sociedade, sobre-
tudo no mercado de trabalho. Além de muitas delas terem sofrido, e sofrerem,
algum tipo de preconceito e até mesmo violência moral e física, em função de
uma cultura machista ainda enraizada no imaginário social. Com isso, grupos

Desigualdades de Gênero: movimentos sociais e políticas públicas 35


de mulheres vêm se mobilizando institucionalmente e criando uma agenda po-
lítica, com demandas e reivindicações próprias.
Diante do fenômeno de mulheres assassinadas por seus companheiros,
outra questão tornou-se pauta política do movimento feminista: a luta contra a
violência doméstica. De pequenas notas nos jornais, essas notícias tornaram-se
destaques nas páginas principais, tendo em vista a indignação e a denúncia do
movimento feminista.
As mortes de Ângela Diniz (RJ), Maria Regina Rocha e Eloísa Ballesteros
(MG) e Eliane de Gramont (SP), na década de 1980, tiveram enorme repercus-
são e tornaram-se exemplos de que o silêncio protegia os assassinos, os quais
permaneciam impunes. O slogan “Quem ama não mata” foi enunciado, primei-
ro, pelas mineiras e logo ecoou em âmbito nacional.
As passeatas, as denúncias públicas e os grupos de atendimento acabaram
impulsionando a criação das Delegacias Especializadas no Atendimento às Mu-
lheres Vítimas de Violência. A primeira foi implementada na capital paulista, em
1985. Em pouco mais de 15 anos contabilizavam-se mais de 300 delegacias em
todo o país. Em 1988, a TV Globo lançou a minissérie “Delegacia de Mulheres”,
levando para a mídia um debate que havia sido impulsionado pelas feministas
dezanos antes.
As discussões sobre a saúde da mulher já faziam parte da agenda feminista,
mas o assunto ganhou maior visibilidade com o regresso das mulheres exiladas
que pertenciam ao Círculo de Mulheres Brasileiras de Paris. Elas trouxeram na
bagagem o polêmico tema do aborto, legalizado na França em 1975, e um dos
eixos de luta do movimento internacional de mulheres.
Em 1980, quando a polícia carioca “estourou” uma clínica clandestina no
bairro de Jacarepaguá e prendeu duas mulheres pela prática do aborto, as femi-
nistas organizaram um protesto e, pela primeira vez, foram a público reivindicar
o direito de escolha. O evento contribuiu para romper o silêncio que envolvia o
assunto e a prática do aborto tornou-se um assunto de domínio público.
Embora o aborto clandestino seja largamente praticado, o Código Penal
de 1940 ainda considera a interrupção da gravidez crime em qualquer hipóte-
se, exceto quando se trata de salvar a vida da gestante ou quando a gestação é

36 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


resultante de estupro. O aborto clandestino e inseguro representa um problema
de saúde pública e é causa de mortalidade feminina. O primeiro projeto de lei
propondo sua legalização foi apresentado ao Congresso Nacional em 1983.
Considerado uma questão essencial para a conquista da autonomia das
mulheres e levando em conta o avanço das manifestações fundamentalistas na
sociedade brasileira, as organizações feministas criaram em 2004 as Jornadas
pelo Direito ao Aborto Legal, com o objetivo de estimular e de organizar a mo-
bilização nacional pelo direito ao aborto legal e seguro.
Desde 2004, o debate sobre aborto ganhou novos contornos: a “I Confe-
rência Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres” aprovou recomendação
de revisão das leis que punem o aborto no Brasil, dando origem à Comissão
Tripartite – sociedade civil, Estado e Legislativo –, que, em 1º de agosto de 2005,
encerrou seu trabalho com a elaboração de um anteprojeto de lei, propondo a
descriminalização do aborto no Brasil. O documento foi encaminhado ao Con-
gresso Nacional em 1º de setembro de 2005, representando 30 anos de luta pela
autodeterminação reprodutiva das mulheres brasileiras.
Nas eleições de 2010, o tema do aborto voltou com grande força, apesar do
nível pouco elucidativo do debate acerca do que significa ser contra ou a favor do
aborto. Setores conservadores alimentam a discussão como uma questão moral,
desviando o foco da abordagem do aborto como uma pauta de saúde pública.

Impactos da Nova Onda Feminista na Reflexão das


(e sobre as) Mulheres

Ainda na década de 1970, o Jornal Brasil Mulher, editado primeiramen-


te no Paraná e depois transferido para a capital paulista, funcionou como um
porta-voz do Movimento Feminino pela Anistia. Aos poucos, a agenda do mo-
vimento feminista tomou conta de suas páginas.
Em seguida, surgiu o Jornal Nós Mulheres, paulista, que circulou de 1976
a 1978, distribuído em âmbito nacional com um total de oito exemplares. Já
no primeiro editorial afirmava suas intenções: “fazer este jornal feminista para
que possamos ter um espaço nosso, para discutir nossa situação e nossos pro-
blemas”. Cabe salientar que inúmeros grupos de resistência e diversos jornais

Desigualdades de Gênero: movimentos sociais e políticas públicas 37


foram criados com o propósito de denunciar a condição subordinada da mu-
lher na sociedade.
Destaca-se, também, o Jornal Mulherio, lançado em março de 1981, que
contou com o suporte de uma equipe de pesquisadoras da Fundação Carlos
Chagas (SP). Esse Jornal foi considerado leitura obrigatória das feministas brasi-
leiras por mais de cinco anos. Outros periódicos regionais seguiram o exemplo:
Libertas, editado por um grupo de mulheres de Porto Alegre (1981); o Chana-
comchana, publicado pelo Grupo de Ação Lésbica Feminista de São Paulo; e o
Maria Maria, pelo grupo Brasil Mulher de Salvador, a partir de 1984.
Essa transformação de paradigmas sociais e de históricos somados à mu-
dança de comportamento das mulheres foi captada pela TV brasileira, no ano
de 1979. No mês de maio, a Rede Globo de Televisão, um dos principais veículos
midiáticos da época, estreou o seriado “Malu Mulher”, protagonizado pela atriz
Regina Duarte. O primeiro episódio exibia a separação entre Malu e seu marido.
A lei do divórcio acabara de ser promulgada. Durante um ano e meio, o público
acompanhou a personagem principal batalhar sozinha por sua sobrevivência e
pelo cuidado com a filha.
Durante seis anos, entre 1980 e 1986, o programa matinal TV Mulher,
exibido diariamente, alterava a abordagem sobre os temas femininos na TV –
substituiu os assuntos relacionados aos cuidados com a família, por conselhos
da sexóloga Martha Suplicy. Nas páginas das revistas femininas, a jornalista
Carmen Silva, autora desde 1963 da coluna A arte de ser mulher, publicada na
Revista Cláudia, incentivava suas leitoras a ingressarem no mercado de trabalho
e a questionarem as atitudes masculinas.
As publicações de mulheres ganharam um reforço, a partir da década de
1990, com o lançamento da Revista Estudos Feministas (REF), iniciativa de um
grupo de mulheres da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que, mo-
tivadas pelas teóricas norte-americanas e europeias, levaram para a academia
brasileira um periódico com discussões sobre gênero, raça, cultura e sociedade.
A REF foi pioneira ao introduzir no âmbito do ensino superior questões
que faziam (e fazem) parte da agenda política das mulheres. Atualmente repre-
senta uma das principais publicações acadêmicas destinadas ao tema. Núcleos
de estudos de gênero surgiram em diversas universidades brasileiras, como a

38 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


Unicamp e a USP (São Paulo), a UFF (Niterói, RJ) e a UFSC (Santa Catarina) –
hoje responsável pela edição da revista.
Embora a temática de gênero faça parte, atualmente, do meio acadêmico,
seja como prioridade de núcleos de estudos ou como uma disciplina, não é de hoje
que as mulheres, por meio de centenas de publicações e coletivamente, verbalizam
as injustiças de gênero presentes na sociedade. É possível destacar diversas contri-
buições de mulheres que promoveram, de distintas formas, a ruptura de paradig-
mas dominantes e que ocuparam espaços que até então lhes eram negados.
Na área literária, Gilka Machado escandalizou os críticos mais conserva-
dores com seus poemas eróticos, publicados na segunda década do século XX.
Nem o grande nome da literatura brasileira, Rachel de Queiroz, escapou dos
preconceitos. Em 1930, quando lançou O quinze, primeiro de uma longa carrei-
ra literária, houve quem, por exemplo, o escritor brasileiro Graciliano Ramos,
duvidasse da obra ter sido realmente escrita por uma mulher.
Quarenta e sete anos após, em 1977, Rachel de Queiroz, considerada uma
das maiores romancistas do movimento regionalista do Nordeste, foi a primeira
representante do sexo feminino a conquistar uma cadeira na Academia Brasilei-
ra de Letras (ABL). Com isso, rompeu a barreira em um ambiente literário cujo
cânone, até então, era hegemonicamente masculino, e abriu caminho para que,
em 1996, ingressasse Nelida Pinõn, a primeira mulher eleita presidente da ABL.
O Dicionário crítico de escritoras brasileiras, da pesquisadora Nelly Novaes
Coelho, relaciona a contribuição de 1.400 mulheres em 300 anos de história li-
terária. E, nessa história, a principal temática passa, progressivamente, da rela-
ção entre homens e mulheres, do amor e seus derivados, para questões ligadas
à existência, à condição humana (em contraposição à condição feminina) e ao
existencialismo.

As Mulheres e o Estado: representatividade e


políticas públicas

Em 1982, com a convocação de eleições diretas para governadores, os


movimentos de mulheres, que contavam com aliados em partidos políticos,

Desigualdades de Gênero: movimentos sociais e políticas públicas 39


reinauguraram sua relação com o Estado. Um grupo de feministas paulistas pro-
pôs a criação de um órgão específico, responsável pela defesa da cidadania femi-
nina e pela implementação de políticas públicas para as mulheres na estrutura
do Estado.
Com isso,foram criados, em 1983, os dois primeiros Conselhos Estaduais
dos Direitos da Mulher do Brasil: o de São Paulo e o de Minas Gerais. As expe-
riências regionais repercutiram nacionalmente até que, no 7º Encontro Nacional
Feminista, realizado em 1985, em Belo Horizonte, a discussão ganhou dimen-
sões nacionais diante da proposta de criação do Conselho Nacional de Direitos
da Mulher (CNDM).
Apesar das suspeitas de algumas feministas em relação ao Estado e suas
múltiplas possibilidades de cooptação, o CNDM foi criado em 1985, trazendo
em seus objetivos, estrutura e composição de seus quadros a marca das propo-
sições do movimento de mulheres. Até a constituição do CNDM, o Estado não
possuía política pública específica para a mulher, com exceção de alguns pro-
gramas na área da saúde. A política do conselho provocou, portanto, alterações
no cenário nacional. Embora essas alterações tenham sido pequenas, pontuais e
fragmentadas, elas fizeram parte de todo um processo histórico.
É possível lembrar-se do nascimento de vários Conselhos Municipais e Es-
taduais, Delegacias de Mulheres, Casas-Abrigo, creches nos locais de trabalho e
mudanças na legislação, entre outros avanços. Sem falar no competente lobby do
batom, que conseguiu garantir no novo texto constitucional 85% das reivindica-
ções das mulheres encaminhadas aos constituintes. Participaram desse processo
26 deputadas federais e seis senadoras.
Quando, em 2003, o governo Lula criou a Secretaria Especial de Políticas
para as Mulheres (SPM), com status ministerial, estrutura técnica e recursos fi-
nanceiros, o CNDM ressurgiu como um colegiado integrante da estrutura bási-
ca da secretaria, de caráter deliberativo. Atualmente, existe em funcionamento
um total de 22 Conselhos Estaduais, 108 Conselhos Municipais e 39 Secretarias
e Coordenadorias, segundo o Documento-base da Secretaria.
Apesar da riqueza e do aumento da participação política de mulheres na
sociedade civil, inseridas nos mais diversos campos dos movimentos sociais, a

40 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


sub-representação feminina nas estruturas formais da política ainda é um dos
principais desafios a ser enfrentado pelos países democráticos. Em todo o mun-
do, as mulheres representam somente 12% dos assentos parlamentares e ocupam
11% dos cargos de presidência dos partidos políticos. De acordo com cálculos
das Nações Unidas, se for mantido o ritmo atual de crescimento da participação
feminina em cargos de representação, o mundo levará 400 anos para chegar a
um patamar de equilíbrio de gênero. O Brasil integra o grupo de 70 países com
o pior desempenho quanto à presença de mulheres no parlamento – menos de
10% nos espaços Legislativos.
Embora a adoção da política de cotas tenha estimulado o movimento de
mulheres a organizar atividades destinadas a uma melhor preparação das can-
didatas – motivando lideranças e discutindo plataformas que priorizem as par-
ticularidades das mulheres – infelizmente, ainda são insuficientes as mudanças
substantivas no cenário político brasileiro.
No âmbito estadual, em 2002, foram eleitas apenas duas governadoras e
133 deputadas, representando 13% do total de cadeiras nas Assembleias. Nas
eleições de 2000, 7.001 mulheres conquistaram mandatos de vereadoras, repre-
sentando 12% das 70 mil candidatas em todo o país. Ao todo, 317 mulheres
elegeram-se prefeitas, representando 6% das concorrentes. Nas eleições de 2004,
subiu para 407 o número de municípios governados por mulheres e foram elei-
tas 6.555 vereadoras.
As mulheres, maioria do eleitorado nacional, respondem por 51,53% dos
votos, mas ainda representam apenas 13,95% do total de mais de 19 mil candida-
tos às eleições de 2006. De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral, nas eleições
de 2006, foram eleitas três governadoras, quatro senadoras, 45 deputadas federais,
119 deputadas estaduais e três deputadas distritais. Para se ter a dimensão do de-
sequilíbrio entre candidatos e candidatas, as mulheres disputaram as eleições em
18 Estados e apenas no Distrito Federal se igualaram em número com os homens.
Nas eleições de 2010, as mulheres corresponderam a 51,8% do eleitorado,
ou seja, mais de 70 milhões de eleitoras, conforme dados do Tribunal Superior
Eleitoral (TSE). Dos 22.555 registros de candidaturas para concorrer às eleições,
apenas 22,4% representam candidatas mulheres, apesar do percentual mínimo
de 30% de candidaturas femininas para os cargos proporcionais, obrigatório
desde 2009.

Desigualdades de Gênero: movimentos sociais e políticas públicas 41


Para o Senado Federal concorreram 32 mulheres de um total de 241 can-
didatos. Destas, foram eleitas oito senadoras, num total de 54, perfazendo 14,8%
dos eleitos. Na Câmara Federal, o número de mulheres eleitas foi inferior ao
pleito passado, pois nas eleições de 2006 foram eleitas 47 deputadas federais e,
em 2010, 45 consagraram seus nomes nas urnas, ou seja, a bancada feminina
caiu para 8,5% do total da Câmara. A composição das duas casas do Legislativo,
no entanto, pode sofrer alterações, dependendo da decisão do Superior Tribunal
Federal (STF) a respeito das candidaturas impugnadas pela Lei da Ficha Limpa.3
Foram considerados aptos para concorrer ao cargo de governador 163 can-
didatos, dos quais 11% eram mulheres, ou seja, 18 candidatas. Duas mulheres fo-
ram eleitas governadoras, no primeiro turno. Dentre os nove concorrentes para
a Presidência da República, duas candidatas eram mulheres. E, pela primeira vez
na história do País, uma mulher foi eleita para o cargo máximo da República.
Tão importante quanto a luta para ampliar a presença feminina na políti-
ca é a luta pela afirmação de suas agendas no âmbito do Estado: a inclusão da
perspectiva de gênero em todas as ações de governo da sociedade e dos partidos
políticos. De certa forma, as plataformas sobre igualdade de gênero e empodera-
mento das mulheres vêm sendo acolhidas de melhor forma.
Para garantir que essas plataformas se convertam em ações, o feminismo
contemporâneo conta com mais de mil grupos espalhados pelo Brasil, atuando
em diferentes setores que vão desde os partidos políticos, estrutura do Estado e
sindicatos, passando por grupos autônomos, organizações não governamentais,
associações de moradores, instâncias de controle social e universidades.
É uma poderosa força política distribuída por uma grande diversidade de
redes: Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos, Articulação
Nacional de Mulheres Negras, Rede de Mulheres Comunicadoras, Movimento
Articulado das Mulheres da Amazônia (MAMA), Fórum Nacional de Mulheres
Negras, Liga Brasileira de Lésbicas, Rede de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher
e Relações de Gênero (REDOR), Jornadas pelo Direito ao Aborto, Rede para
humanização do parto e nascimento (REHUNA), Rede Brasileira pela Integra-
ção dos Povos (REBRIP), Liga Brasileira de Jovens Feministas e Articulação de
Mulheres Brasileiras (AMB).

3
  Disponível em: <www.fichalimpa.org.br>.

42 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


Sobre direitos sexuais e reprodutivos, tanto o movimento feminista quanto
a legislação e as políticas públicas relativas às mulheres sofrem forte impacto
do contexto internacional e, nas últimas décadas, uma série de congressos e de
conferências foi promovida pelas Nações Unidas.
Um dos marcos importantes foi a realização da ECO-92, na cidade do Rio
de Janeiro. Nela, as brasileiras participaram ativamente do Planeta Fêmea, es-
paço privilegiado dentro do Fórum das Organizações Não Governamentais. Tal
acontecimento promoveu o encontro de representantes de vários países e etnias.
A partir de então, foram organizadas Conferências sobre Direitos Humanos
(Viena, 1993) e População e Desenvolvimento (Cairo, 1994), ambas tratando de
assuntos de interesses específicos da agenda feminista. O auge desse processo
de integração internacional da luta das mulheres se deu com a realização da “IV
Conferência Mundial da Mulher”, em Beijing, em 1995.
A preparação preliminar dessas congregações fortaleceu os movimentos e
suas redes de articulações em todo o mundo. No Brasil, a Conferência Mundial
da Mulher abriu oportunidade para a criação da Articulação de Mulheres Bra-
sileiras, reunindo fóruns e articulações já existentes e estimulando a criação de
novos espaços de debate em todo o País. A ação internacionalizada seguiu-se
no século seguinte, em 2001. Organizações de mulheres negras se mobilizaram
para participar da Conferência Mundial sobre Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, em Durban na África do Sul.
A luta para garantir espaço, reconhecimento e respeito na sociedade não
se refere apenas às grandes conquistas que saem nos jornais, como a recente lei
assinada, que pune com mais rigor a violência contra a mulher4. A implementa-
ção de políticas públicas, ações afirmativas, como cotas, e a elaboração de proje-
tos de leis, são medidas integrantes das bandeiras feministas desde a Revolução
Francesa no século XVIII.
Se hoje considera-se natural que as mulheres estudem, trabalhem, deli-
berem sobre seus destinos, sobre o livre exercício da sua sexualidade e sejam
independentes é porque o feminismo produziu uma revolução, social e cultural,

4
  Lei Maria da Penha. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, que cria mecanismos para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher.

Desigualdades de Gênero: movimentos sociais e políticas públicas 43


silenciosa e pacífica, capaz de alterar estruturas de poder masculino e de transformar
o padrão de comportamento de homens e mulheres nas sociedades ocidentais.
As propostas de Betty Friedan nos anos de 1960, as quais versavam que
a mulher poderia conciliar sua vida privada com sua vida pública, seja ela no
âmbito do trabalho, da cultura ou da política, atualmente são senso comum na
sociedade. E consideradas normais até em famílias conservadoras, que incenti-
vam suas filhas a estudar para construírem uma carreira profissional. O que já
foi considerado escandaloso, e transgressor, num determinado contexto sócio-
-histórico, atualmente é desejável e tornou-se absolutamente comum. O modelo
tradicional de mulher, reservada à vida doméstica e aos filhos, entrou em crise
no decorrer do século XX, e uma ou várias novas imagens do feminino passaram
a ser construídas.

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46 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


Teoria dos Movimentos Sociais e
Lutas Sociais na América Latina,
Desafios para uma Compreensão
Descolonial e Feminista1

Pedro Rosas Magrini


Mara Coelho de Souza Lago

As teorias sobre movimentos sociais se constituíram como campo teórico


específico na academia somente na segunda metade do século XX, quando o
termo “movimentos sociais” foi cunhado para designar as novas formas de rei-
vindicações coletivas no mundo. Eram ações estruturadas que clamavam por
mudanças, simbolizadas pelas ações dos movimentos feministas, grupos am-
bientalistas e pacifistas, dos movimentos de gays e movimentos negros. Antes
disso, as abordagens marxistas norteavam as discussões dos movimentos sociais
clássicos, principalmente na Europa. Para Maria da Glória Gohn (1997), soció-
loga brasileira e importante teórica dos movimentos sociais, o marxismo não era
somente uma teoria explicativa, mas uma teoria que orientava, como um guia de
ação, os próprios movimentos sociais. Eram análises que se fundamentavam na
conexão entre classe social e movimento social, mas não de forma linear. Várias/

1
  Texto retirado da tese “Produção acadêmica sobre o MST: perspectivas, tendências e ausências nos
estudos sobre gênero, sexualidade, raça e suas interseccionalidades”, de Pedro Rosas Magrini.

47
os autoras/es se inspiraram na obra de Karl Marx, reinterpretando-a, criando
a matriz referencial dos movimentos sociais marxistas, como Vladmir Lênin,
Leon Trotsky, Rosa Luxemburgo, Antônio Gramsci e, no pós-guerra, com a teo-
ria crítica e iniciados pela influente Escola de Frankfurt2.
Na segunda metade do século XX, difundiram-se severas críticas a essas con-
cepções, gerando revisões que culminaram na proposição de novas abordagens.
Vários autores e autoras buscaram e ainda buscam aglutinar e tipificar as expli-
cações em torno do que seriam os movimentos sociais e de fenômenos dos quais
eles fazem parte. Explicações, que apesar de distintas, podem ser complementares.
Uma categorização muito comum nas Ciências Sociais, segundo Ângela
Alonso (2009), classifica os movimentos sociais a partir de três grandes linhas
teóricas de interpretação: a Teoria da Mobilização de Recursos (TMR), a Teo-
ria dos Processos Políticos (TPP) e a Teoria dos Novos Movimentos Sociais
(TNMS). Dentro dessas três grandes famílias de teorias se tornou usual contras-
tar duas perspectivas: uma baseada nos estudos europeus, acentuando a noção
culturalista das ações coletivas e a outra nos trabalhos de estadunidenses, que fo-
calizam a noção institucional dessas ações. Outras/os correntes reúnem a TMR e
a TPP num único paradigma explicativo, criando a distinção “objetivistas” para
autoras/es identificadas/os com a escola norte-americana e “subjetivistas” para
aqueles/as ligados à escola europeia.
Maria da Glória Gohn utilizou ao longo de sua trajetória duas categoriza-
ções distintas. Num estudo publicado em 1997, a autora faz uma divisão expli-
cativa utilizando critérios geográfico-espaciais, ampliando o leque de possibi-
lidades teóricas propostas por Ângela Alonso e acrescentando uma nova abor-
dagem. A autora subdivide em três grandes blocos paradigmáticos a teoria dos
movimentos sociais contemporâneos: paradigma norte-americano; paradigma
europeu; e paradigma latino-americano. Num trabalho mais recente, Gohn
(2008) subdivide as teorias sobre movimentos sociais em quatro eixos analíticos:
as teorias institucionalizadoras influenciadas por autores como Sidney Tarrow,

2
  A Teoria crítica é uma vertente teórica ampla e duradoura, que surge em 1987, na Alemanha, com
o artigo Teoria Tradicional e Teoria Crítica, de Max Horkheimer, um de seus mais emblemáticos re-
presentantes. Nomeados de neomarxistas, há outros teóricos muito reconhecidos internacionalmente,
como: Theodor W. Adorno e Jürgen Habermas. Atualmente, uma das principais figuras dessa corrente
é Axel Honneth.

48 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


Doug MacAdam e Charles Tilly; as teorias construídas a partir de eixos culturais
e identitários influenciadas pelas obras de Alberto Mellucci e Alan Touraine; as
teorias focadas no eixo da justiça social embasadas por Axel Honneth e Nancy
Fraser; e as teorias da autonomia produzidas pelo Conselho Latino-Americano
de Ciências Sociais (CLACSO).
Entende-se que se tratam de segmentações diferentes, mas não excluden-
tes. Adota-se a tipologia das três correntes subdivididas geograficamente, com
intuito meramente didático, afinal o propósito é mostrar que um intercâmbio
entre os paradigmas favorece a compreensão do campo teórico, principalmente
após os processos globalizantes que modificaram a configuração e as estratégias
de movimentos sociais em todo o mundo, abrindo espaço para uma nova teoria,
a Teoria de Redes de Movimentos Sociais (TRMS).
Na década de 1960, principalmente nos Estados Unidos, surgiram ações co-
letivas pelos direitos civis, pacifistas e pelos direitos das mulheres. O movimento
pelos direitos civis iniciado na década de 1950 foi um dos mais emblemáticos
no mundo. Esse movimento teve um caráter racial, devido à segregação vivida
pela população negra naquele país. Os movimentos Black Power e Panteras Ne-
gras são exemplos de ações coletivas que se organizaram contra o preconceito
e a discriminação racial nos Estados Unidos. Militantes célebres como Martin
Luther King e Malcolm X se tornaram mártires dessa luta e exemplos em todo
o mundo. O Movimento pacifista buscava questionar a necessidade das guerras
empreendidas pelo Estado, sobretudo, a Guerra do Vietnã nas décadas de 1960
e 1970, e os movimentos feministas nos Estados Unidos foram dos mais influen-
tes do mundo, principalmente, no surgimento do que geralmente chama-se de
segunda onda do feminismo, na década de 1960.
Essas ações inspiraram o desenvolvimento de teorias explicativas sobre es-
ses novos fenômenos, como a Teoria de Mobilização de Recursos (TMR). Em
1973, foi recebida com grande impacto a obra Resource mobilization and social
movements: a partial theory, de John McCarthy e Mayer Zald, que tem como
base de suas explicações a dimensão micro-organizacional dos movimentos so-
ciais. Isso significa que essa corrente interpretativa procurava compreender os
movimentos sociais como organizações semelhantes aos partidos, aos grupos
de interesse e às empresas capitalistas, devendo, inclusive, competir entre si por

Teoria dos Movimentos Sociais e Lutas Sociais na América Latina, Desafios para... 49
recursos. McCarthy e Zald utilizavam a categoria “organização de movimentos
sociais” que privilegiava uma visão racional da ação coletiva como fruto de cál-
culos de custos e benefícios, em que a mobilização se viabilizaria por meio da
posse de recursos materiais e humanos disponíveis na sociedade3 (GOHN, 1997;
ALONSO, 2009).
Hegemônica durante quase 20 anos nos Estados Unidos, a TMR foi su-
plantada pela Teoria dos Processos Políticos (TPP). Os trabalhos de Charles
Tilly e Sidney Tarrow, principais nomes da teoria, adotaram uma explicação
macro-histórica que combinava política e cultura, levando em conta aspectos
simbólicos da ação coletiva, fato até então desconsiderado pela TMR. Dentro
dessa perspectiva, alguns conceitos foram fundamentais para compreender a
nova abordagem sobre movimentos sociais, como o conceito de frame (signifi-
cados e símbolos) que apoia a compreensão do contexto cultural em que os mo-
vimentos estão inseridos e as construções simbólicas que orientam a produção
e a manutenção da ação coletiva. Outro conceito fundamental é o de Estrutura
de Oportunidades Políticas (EOP), que seriam os recursos externos ao grupo
(movimento social), como: o nível de participação de uma determinada socie-
dade; o alinhamento ideológico do governo dessa sociedade; as alianças externas
ao grupo; a posição e a influência das elites naquele contexto, etc. É importante
ressaltar que os teóricos dos processos políticos não viam o conflito de forma
monolítica entre “Estado” e “sociedade”, mas entre “detentores do poder” e “de-
safiantes”. Assim, a conjuntura política favorável possibilitaria que o movimento
viabilizasse períodos de mobilizações mais intensas, ou de baixa mobilização
quando as oportunidades fossem escassas (GOHN, 1997; ALONSO, 2009).
No contexto europeu também surgiram novas ações coletivas que deman-
daram novas explicações frente às visões marxistas, até então predominantes.
Encabeçadas pelas obras de Alain Touraine, Alberto Melucci e Manuel Castells,
a Teoria dos Novos Movimentos Sociais (TNMS) surgiu a partir da crítica às
abordagens marxistas mais ortodoxas e da aproximação com as teorias norte-
-americanas, especialmente a TPP. Embora não seja uma escola tão homogênea

3
  Para Gohn (1997), a teoria da escolha racional de Mancus Olson foi fundamental para o desenvolvi-
mento dessa abordagem. Sua compreensão sobre grupos de pressão foi estendida aos movimentos sociais.
Além dele, Herbert Blumer, sociólogo da Escola de Chicago, teve importante contribuição nas teorias de
movimentos sociais na década de 1950, quando realizou trabalhos sobre comportamentos coletivos.

50 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


quanto as norte-americanas, há muitas proximidades nas interpretações das/os
autoras/es frente ao fenômeno dos movimentos sociais. Suas abordagens,

[...] confluem para o mesmo postulado central, o da especificidade dos


movimentos sociais da segunda metade do século XX. Para todas, uma mu-
dança macrossocial teria gerado uma nova forma de dominação, eminente-
mente cultural (por meio da tecnologia e da ciência) e borrado as distinções
entre público e privado, acarretando mudanças nas subjetividades e uma
nova zona de conflito. As reivindicações teriam se deslocado dos itens re-
distributivos, do mundo do trabalho, para a vida cotidiana, demandando a
democratização de suas estruturas e afirmando novas identidades e valores.
Estaria em curso uma politização da vida privada. (ALONSO, 2009, p. 67).

A TNMS nasce para compreender as ações coletivas de uma sociedade em


transformação nomeada por alguns de pós-industrial, quando as mobilizações
se alteraram e perdeu-se a centralidade no trabalho e o caráter classista tradi-
cional dos movimentos sociais, representado pelos emblemáticos movimentos
operários que sucumbiram e cederam lugar para as lutas cotidianas, os “novos”
sujeitos e os “novos” estilos de vida, distintos dos padrões de normalidade social
(ALONSO, 2009). Para Gohn (1997, p. 121-124), a preocupação dessa nova ten-
dência seria a construção de um modelo teórico baseado na cultura, superando
as explicações unívocas sobre os indivíduos e a ação coletiva, defendidas pelo
campo teórico marxista. Ele também propõe a eliminação do sujeito histórico
redutor da humanidade, aquele que detém uma consciência autêntica e redefine
a política como elemento central na análise. Nesse paradigma, os atores sociais
são analisados em dois aspectos: por suas ações coletivas e pela identidade cole-
tiva criada no processo da construção dessas ações.
Os dois paradigmas tiveram ecos diferenciados na América Latina, in-
fluenciando de múltiplas formas o paradigma latino-americano que será o
foco mais adiante. Durante décadas, as teorias norte-americanas foram pou-
co assimiladas e utilizadas para compreender o contexto latino-americano. A
TMR teve irrelevante impacto e a TPP pouco se difundiu, produzindo traba-
lhos relevantes, mas insuficientes. Para Alonso (2009), o trabalho de Renato
Boschi (BOSCHI; SANTOS; DINIZ, 2000) foi um dos poucos que se desenvol-
veu nessa área durante anos.

Teoria dos Movimentos Sociais e Lutas Sociais na América Latina, Desafios para... 51
Para Breno Bringel (2011), a discussão no Brasil sobre as teorias norte-
-americanas esteve caracterizada por ter sido difundida de maneira indireta,
a partir da interpretação de autoras/es brasileiras/os, por ter sido difundida
tardiamente, com a tradução de trabalhos com décadas de atraso, e de forma
parcial/limitada, pois poucos desses trabalhos foram traduzidos para o portu-
guês. Atualmente, vários grupos de estudos sobre teoria de movimentos sociais
estão resgatando as contribuições dos teóricos norte-americanos, enfrentando
um imaginário de difícil rompimento: o anti-imperialismo latino-americano; o
profundo estruturalismo na tradição do pensamento social regional; e a grande
influência de teóricas/os europeus da TNMS, como Alain Touraine.
Como já foi antecipado, as teorias europeias (TNMS) tiveram enorme in-
fluência na produção latino-americana. No Brasil, por exemplo, de acordo com
Alonso (2009, p. 68), a TNMS foi a perspectiva “[...] mais aplicada para a explica-
ção de casos nacionais, durante as décadas de 1980 e 1990, [...]e orientaram a agen-
da para a produção de estudos de casos, concentrados no processo de construção
de identidades coletivas”. Ainda hoje, é muito comum a utilização hierárquica des-
sas teorias, sobrepondo, geralmente, as teorias europeias às estadunidenses.
Considera-se que todas tiveram e ainda têm grande importância nos estudos
dos movimentos sociais, mas também receberam várias críticas. A TMR contri-
buiu muito na compreensão das estruturas organizacionais dos movimentos so-
ciais, contudo, a analogia instrumental de movimentos sociais às firmas e organi-
zações privadas e, principalmente, o desprezo da ideologia como fator relevante,
negando o simbólico na ação coletiva, limitou sua compreensão e sua aceitação no
restante do mundo. A TPP privilegiou o ambiente macropolítico e incorporou de
forma secundária a cultura em suas análises. A TNMS inverteu a lógica da TPP e
acentuou aspectos da cultura (simbólicos e cognitivos), invizibilizando aspectos
materiais, seja no contexto político, seja em demandas por redistribuição.
Além das críticas mais específicas de cada uma das teorias, a contestação
que se julga ser fundamental, mas que muitas vezes passa despercebida a um
olhar menos atento, é a de que a grande maioria das grandes figuras das te-
orias clássicas é homem. Não se trata de uma análise meramente quantitativa
da produção acadêmica, mas de mais um indício da hegemonia da produção
androcêntrica (generizada) de conhecimento dentro de determinadas áreas.

52 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


Outra crítica fundamental a todas, refere-se ao caráter eurocêntrico e estaduni-
dense de suas análises, que impediam a formação de uma visão mais abrangente
desse fenômeno social nas realidades fora do eixo dos Estados Unidos e da Eu-
ropa. Ambas as questões mostram a necessidade de uma visão mais localizada,
menos rígida, mestiza, nas palavras de Anzaldúa (2005).
Essa visão diferenciada, mestiça e de difícil enquadramento nos pressu-
postos das teorias clássicas (TMR, TPP e TNMS) vem amadurecendo e já pode
ser vista em movimentos sociais que combinam lutas por redistribuição e lutas
por reconhecimento (FRASER, 2007). Nessa combinação, não é possível reduzir
a multiplicidade de vertentes teóricas que se propõem a conceituar movimentos
sociais num modelo geral, ainda mais em uma sociedade globalizada, multicul-
tural e complexa, cujos movimentos sociais contemporâneos têm grande capaci-
dade de adaptação, fugindo facilmente de uma tipificação universalista.
Afinal, como dizer que na América Latina as reivindicações teriam se des-
locado dos itens redistributivos, do mundo do trabalho, para a vida cotidiana, ou
seja, por reconhecimento? Impossível. Esse é o ponto de vista também de uma
socióloga que tem contribuído bastante para o debate sobre movimentos sociais:

Se houve avanços teóricos pelo entendimento das opressões e discrimi-


nações que ocorrem em torno de diferenças socioculturais, houve perdas
pela pouca relevância atribuída ao problema das desigualdades sociais e
às raízes históricas dos processos de colonização, que incluem e articulam
dimensões de múltiplas formas de dominação que vão do econômico ao
social, do social ao cultural, do cultural ao ideológico, do ideológico ao
político e vice-versa. (SCHERER-WARREN, 2010, p. 20).

A contribuição de Nancy Fraser (2007) sobre a completude de lutas por re-


distribuição e por reconhecimento será discutida com maior ênfase mais adiante.

A América Latina e a Contextualização de suas


Realidades: por uma abordagem latino-americana,
pós-colonial e feminista

Antes de se aprofundar nas novas abordagens da teoria dos movimen-


tos sociais e desse devir paradigma latino-americano, proposto por Maria da

Teoria dos Movimentos Sociais e Lutas Sociais na América Latina, Desafios para... 53
Glória Gohn, discorrer-se-á sobre a América Latina. Isso porque tal termo é tão
usualmente utilizado que, num primeiro olhar, seria possível pensar numa iden-
tidade cultural que correspondesse a um lugar geográfico que conjugasse todo
o continente americano (excluindo a América Anglo-saxônica, Estados Unidos
e Canadá). Mas que unicidade é essa que permite afirmar que existe um bloco
latino-americano? É possível generalizá-lo como apenas uma configuração geo-
gráfica, nesse continente que combina contribuições culturais extremamente di-
versas de povos indígenas como astecas, maias, quetchuas (incas), aymaras, gua-
ranis, tupis, mapuches, entre várias outras? Que incorporaram povos africanos
como Jalofos, Mandingas, Bamanas, Fulas, Nagôs, Iorubás e Lucumis? De países
ibéricos e europeus? De eslavos, árabes e asiáticos, distribuídos distintamente por
toda a América do Sul, América Central, Caribe e América do Norte? (Sim, o Mé-
xico faz parte da América do Norte). Como seria possível conceituar algo como
latino-americano nesse emaranhado complexo, heterogêneo e contraditório?
Darcy Ribeiro já havia elaborado esse questionamento em seu livro A
América Latina Existe? Segundo ele, sim, existe, mas ele pondera essa afirma-
ção. Existe uma uniformidade sem unidade. Uma uniformidade linguística e
uma homogeneidade cultural e, ele ressalta, que, talvez a única “[...] unidade
no mundo latino-americano, seja a unidade do produto resultante da expansão
ibérica sobre a América e o seu bem-sucedido processo de homogeneização”
(RIBEIRO, 2010, p. 34). Ou seja, o produto de um mesmo processo civilizatório,
que nasce, segundo Otávio Ianni (2005), com o descobrimento do “Novo mun-
do” em 1492, passando por configurações e movimentos como o mercantilismo,
o colonialismo, o imperialismo e a globalização, bem como os nacionalismos
e regionalismos, muitas vezes em configurações mutiladas, frente aos modelos
hegemônicos de análise.

A América Latina transfigurando-se em América, Indo-América,


Afro-América, Hemisfério Ocidental, Nuestra América e Labirinto Lati-
no-Americano; além de outras denominações e transfigurações nacionais
e continentais, revelando-se também nas ilhas e arquipélagos do Caribe,
Antilhas. Parece um fragmento da cartografia mundial, no qual movem-se
espaços e tempos, transformações e retrocessos, realizações e frustrações,
golpes de Estado e revoluções. Parece uma e única, em sendo realmen-
te múltipla e invertebrada, buscando-se contínua e reiteradamente nos

54 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


espelhos da Europa e dos Estados Unidos da América do Norte, do tradi-
cionalismo e da modernidade, do capitalismo e do socialismo. Um labo-
ratório em constante ebulição, sem nunca configurar-se nem realizar-se
plenamente. (IANNI, 2005, p. 2)

A Pátria Grande, de Simon Bolívar, e a Nuestra América, de José Martí, são


derivações ideológicas para a expressão “América Latina”, que surge somente no
século XIX com a ideia de se afastar o nome Hispano-América que ligava o conti-
nente à Espanha. A expressão foi utilizada pela primeira vez no século XIX por um
filósofo chileno, mas Napoleão III, imperador francês, aproveitou a nomenclatura
durante a invasão francesa no México, como forma de incluir a França entre os
países com influência na América (TOURAINE, 1989). A expressão se consolidou
e se tornou sinônimo dos países menos desenvolvidos social e economicamente
do continente. Uma oposição naturalizada de anglo-americanos como América
rica e desenvolvida e de latino-americanos como América pobre e subdesenvolvi-
da. Além dessa visão econômica, o termo surge por meio da ideia de coesão e de
identidade comum, tanto pela origem comum das línguas derivadas do latim, so-
bretudo o espanhol e o português, mas principalmente pela oposição a esse bloco
anglo-americano, fortalecida por ideologias revolucionárias e, obviamente, pelos
séculos de opressão e de colonialismo (RIBEIRO, 2010).
Apesar da dificuldade e da contradição de se universalizar uma América
Latina, correndo o risco de reproduzir uma generalização que se critica, pre-
tende-se apropriar-se dos argumentos de Darcy Ribeiro (2010), cuja afirmação
é muitas vezes contestada, de haver uma unicidade na América Latina que a
constitui em um conjunto, um modo latino-americano de desenvolvimento, que
combina uma racionalidade econômica e uma forma de mobilização política
e social própria desse continente. Essa ideia de conjunto não pretende formu-
lar um culturalismo mítico de um espírito latino-americano essencialista, mas
analisar as semelhanças nos processos de seu desenvolvimento, juntamente com
as especificidades de cada contexto regional. Um dos objetivos é se contrapor
às análises tipicamente eurocêntricas e tantas vezes transpostas diretamente
à realidade latino-americana. Tem-se plena consciência de que não é possível
comparar ou aglutinar realidades distintas como as de Cuba e Colômbia, Bra-
sil e Honduras, México e Argentina, Nicarágua e Uruguai, entre tantas outras,

Teoria dos Movimentos Sociais e Lutas Sociais na América Latina, Desafios para... 55
contudo, há inúmeras tendências que os unem como países de um mesmo bloco
continental e foram essas tendências que marcaram genocídios, ciclos de gover-
nos populistas, revoluções e ditaduras militares.
Por meio dos vícios colonialistas, sempre se buscam conceitos para expli-
car nossa realidade, nossa história, nossas raízes. Contudo, na América Latina
isso permanece um desafio.

No limiar do século 21, a América Latina continua em busca de uma vi-


são de si mesma, algum significado essencial. Conforme tem ocorrido em
várias épocas da sua história, outra vez ela se defronta com mais interro-
gações do que respostas, mais inquietações do que perspectivas. Pode ser
vista como um continente, vasto arquipélago de nações diferentes e estra-
nhas entre si, buscando a integração e vivendo a fragmentação, parecendo
vertebrado e invertebrado. Mobiliza experiências e memórias, façanhas e
derrotas, heróis e santos, monumentos e ruínas, em busca de alguma visão
de si mesmo, significado essencial, conceito. (IANNI, 2005, p. 2).

Essa visão de si mesma, de um conceito latino-americano, demonstra não


apenas a dificuldade de transposição dos modelos eurocêntricos para nossa re-
alidade, mas a própria generalização de uma realidade latino-americana. Uma
realidade poucas vezes assumida, inclusive, pelas/os brasileiras/os. Somos es-
tranhos a essa identidade. É nesse contexto diversificado de culturas e de civi-
lizações, que nunca se configura e se realiza plenamente, que se caracterizará o
paradigma latino-americano, ou o seu devir, correndo o risco, sempre, de uni-
versalizar o impossível e de reproduzir mais um vício colonialista de tipificar,
agrupar, aglomerar e aglutinar conjuntos e de exemplificá-los.
Na América Latina, a teoria dos movimentos sociais foi profundamente
influenciada pelos paradigmas europeus. Durante muito tempo, o marxismo,
em suas diversas vertentes, e a TNMS encabeçaram os estudos sobre ações co-
letivas, por meio de ângulos de análise que limitaram a compreensão das singu-
laridades dos processos sócio-históricos que influenciaram essas ações, levando
os movimentos sociais a possuírem características próprias, peculiares de uma
sociedade não europeia e não estadunidense, e um pluralismo, que dificilmente
se enquadraria nos paradigmas clássicos.
Para Breno Bringel (2011), as teorias estadunidenses, sobretudo a TPP,
ainda têm pouca influência na América Latina exatamente por essa busca de

56 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


novas teorizações para a realidade regional, que renovem a tradição crítica da
teoria social da região. Existe uma obstinação nas interpretações de movimentos
latino-americanos que tenham como foco os movimentos sociais e os sujeitos
sociais e não a ação coletiva de forma mais ampla. Lança-se maior atenção às
discussões sobre a autonomia e a criação de contrapoderes, muito influenciados
pela experiência do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) no Mé-
xico, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Brasil, dos
Piqueteros na Argentina, entre tantas outras.
Nas últimas décadas, vários trabalhos se debruçaram na investigação das es-
pecificidades da América Latina. Na coletânea A Revolução do Cotidiano? Os No-
vos Movimentos Sociais na América do Sul, Ilse Scherer-Warren e Paulo Krischke
(1987) organizaram textos de autoras/es estrangeiras/os e brasileiras/os sobre
as novas formas de mobilização social na América do Sul e a necessidade de se
questionar os paradigmas clássicos e suas interpretações monolíticas. Pioneira
nessa questão, a principal particularidade dessa obra, refere-se às análises, afi-
nal, grande parte dos trabalhos foi produzido na primeira metade da década de
1980, ainda em períodos ditatoriais no Brasil, Chile e Argentina. São trabalhos
que foram escritos durante os processos de redemocratização e que mostram as
mudanças que estavam acontecendo naquele período. Além de uma obra teórica
sobre movimentos sociais, é um documento histórico de um devir movimento
social latino-americano. A coletânea representou um embrião das interpreta-
ções mais recentes sobre a América Latina.
Em Palavra e Sangue, livro pioneiro e rico em detalhes sobre a América
Latina, o emblemático representante da TNMS europeia, Alan Touraine (1989),
realiza uma longa descrição de problemas e atores sociais latino-americanos,
debruçando-se sobre diferentes aspectos da realidade latino-americana, sobre-
tudo, os atores da sociedade civil organizada. Com já foi enunciado, os argumen-
tos do autor pairam sobre um modo latino-americano de desenvolvimento que
une elementos tradicionais com a modernidade, a política e a igreja, entre tantos
outros detalhes e especificidades. Para Touraine, o continente latino-americano
produziu formas específicas de ação política e social, que ele divide em tipos
fundamentais de lutas: as lutas de classe, as lutas nacionais e as lutas por inte-
gração nacional, sendo que vestígios de todas elas são encontrados na América

Teoria dos Movimentos Sociais e Lutas Sociais na América Latina, Desafios para... 57
Latina. As lutas de classe como ação coletiva única, pautadas primordialmente
pelo marxismo-leninismo, tiveram “êxito” na Nicarágua, Cuba e indiretamente
em outros países, mas com menor impacto no continente, ao nível dos grupos
que dominavam as forças públicas. De modo geral, as tendências mais extremas
foram mais representadas nos meios intelectuais e universitários do que no meio
das forças políticas. As lutas por integração nacional e anti-imperialistas marca-
ram grande parte dos governos latino-americanos populistas. Os movimentos
unidimensionais, ou seja, aqueles que não associaram a lutas de classe às lutas
nacionais e às lutas por integração nacional, nunca conseguiram atingir grande
eficácia, sendo essa tridimensionalidade condição fundamental para as ações
coletivas na América Latina.
Para Gohn (1997), os movimentos sociais na América Latina têm especifi-
cidades que os diferenciam dos novos movimentos sociais da Europa e dos Esta-
dos Unidos. Compreendem, sobretudo, movimentos sociais libertários nas áreas
rurais e urbanas que se mobilizam por direitos políticos na redemocratização e,
especialmente, por demandas socioeconômicas, mas que também se articulam
com demandas socioculturais. Há uma enorme diversidade de movimentos em
relação aos mesmos temas e problemas e a maioria deles se transformou em mo-
vimentos populares. Sejam eles, sem terras, sem-tetos, quilombolas e/ou indí-
genas, a luta primordial é pela sobrevivência e pelas necessidades básicas. Esses
movimentos têm raízes próprias, influenciadas pela associação a grupos comu-
nitários e partidos políticos, muitas vezes de cunho populista e clientelista, com
forte conotação religiosa e étnico-racial, dois elementos imprescindíveis para a
compreensão das particularidades dos movimentos sociais na América Latina.
Os movimentos populares sempre tiveram forte conotação religiosa, so-
bretudo, após o Conselho Vaticano II nos anos de 1960, quando a Igreja Católica
adotou uma postura mais progressista em suas ações, com seu discurso em favor
dos oprimidos. A situação da Igreja foi distinta de país para país, contudo, pas-
sou por um processo geral de secularização, resultado de uma adaptação forçada
fruto dos processos de urbanização e modernização dos países do sul. Segundo
Touraine (1989), em alguns países, como no Brasil, Chile e Equador, a Igreja
teve setores mais radicais que apoiaram a reforma agrária, palco de conflitos
violentos. A Teologia da Libertação foi essa vertente mais radical, que criticava

58 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


o pensamento cristão tradicional, acusando-o de a-histórico, baseando-se numa
reflexão marxista que denunciava o imperialismo e a dominação capitalista.
É importante salientar que a Teologia da Libertação não corresponde a uma
orientação única. Muito pelo contrário, ela só pode ser definida sociologicamente
pela presença conexa de dois movimentos que parecem complementares, mas
que são, de fato, profundamente opostos um ao outro. De um lado, grupos
políticos formados, sobretudo por intelectuais diretamente influenciados pelo
marxismo e pelas formas mais radicais da teoria da dependência. De outro
lado, o movimento comunitário de base que se fundamenta nos sujeitos que
estão menos integrados ao desenvolvimento econômico (TOURAINE, 1989).
Ressalva-se, no entanto, que não foi toda a instituição e em todos os países que
a Igreja Católica se engajou na luta pelos oprimidos. Sua base conservadora e
reacionária permaneceu hegemônica, inclusive, apoiando em diversos países os
regimes ditatoriais que dominaram vários deles na segunda metade do século
XX. A importância da Teologia da Libertação se deve mais ao questionamento
desses dogmas hegemônicos da Igreja institucional, do que à sua capacidade de
mobilização social.
Na América Latina, um aspecto relevante que encontra mais embasamento
nos estudos do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) e
nas Teorias dos Processos Políticos, do que nas teorias identitárias europeias,
é a relação entre movimentos sociais, Estado e partidos políticos. Nesse cená-
rio contraditório, o CLACSO e suas/seus pesquisadoras/es representam um dos
polos de produção de conhecimento sobre os movimentos sociais que criticam
sua relação “promiscua” com o Estado. A questão da autonomia se tornaria um
problema-chave, a partir do momento em que as estruturas de poder freiam o
fortalecimento de movimentos sociais, quando eles questionam os poderes es-
tabelecidos. No entanto, Bringel (2011) enfatiza que a possível ausência de auto-
nomia dos movimentos sociais deve ser bem examinada, sobretudo os mecanis-
mos particulares que conectam o Estado, os partidos políticos e os movimentos
sociais, pois os exemplos de movimentos sociais latino-americanos envolvidos
nos esforços por democratização, juntamente com setores do Estado e de par-
tidos políticos, foram fundamentais em todo o continente nos anos de 1980.
No decorrer desses anos visitando e acompanhando a rotina de militantes do

Teoria dos Movimentos Sociais e Lutas Sociais na América Latina, Desafios para... 59
MST, por exemplo, foram detectadas grandes intersecções entre movimentos
sociais e o Estado, sobretudo, depois da chegada do Partido dos Trabalhadores
(PT) ao poder em 2003.
Até aqui utilizou-se um recorte geográfico de paradigmas feito a partir
da proposta de Gohn (1997). Entende-se, porém, que apesar de didática, essa
proposta torna a compreensão estanque e, por vezes, hierárquica. Para Bringel
(2011), fica evidente a necessidade em não se prender a essas amarras e tentar se
apropriar de outras compreensões sobre movimentos sociais.

A construção de uma maior interação teórica é uma tendência que se ma-


nifesta em propostas marcadas pelo sincretismo conceitual onde é difícil
falar de “escolas” (norte-americana, européia, etc.) mais ou menos delimi-
tadas, ou pelo menos diretamente enfrentadas, como antes. Nas últimas
duas décadas produziram-se vários “giros teóricos”, frente às escolas “clás-
sicas” no estudo das ações coletivas e dos movimentos sociais. (BRINGEL,
2011, p. 59)

Assim, é possível incluir nesse emaranhado de teorias, que buscam com-


preender as lutas sociais na América Latina, os estudos que têm como eixo a
dimensão espacial dos movimentos sociais e a importância do território e das
identidades na construção de novas territorialidades. Os estudos da geografia
crítica são recorrentes, sobretudo aqueles oriundos de abordagens que se em-
basam nas contribuições do geógrafo Milton Santos e, mais recentemente, de
Ariovaldo Ubelino de Oliveira e Bernardo Mançano Fernandes.
Nessa leitura geográfica dos movimentos sociais, o intuito é compreen-
der os tipos de espaços e de territórios4 produzidos e conquistados pelos mo-
vimentos sociais. Os movimentos socioespaciais têm no espaço o seu trunfo,
por exemplo, os movimentos sindicais, os movimentos pela preservação do
meio ambiente, pela preservação de áreas tombadas como patrimônio público,

4
  Espaço é uma propriedade que o território possui e desenvolve. Por isso, é anterior ao território.
O espaço social está contido no espaço geográfico, criado originalmente pela natureza e transformado
continuamente pelas relações sociais, que produzem diversos outros tipos de espaços materiais e imate-
riais, como por exemplo: políticos, culturais, econômicos e ciberespaços. O território, por sua vez, é um
espaço transformado pelo trabalho e, portanto, uma produção humana, como países, estados, regiões,
municípios, departamentos, bairros, fábricas, vilas, propriedades, moradias, salas, corpo, mente, pensa-
mento, conhecimento (FERNANDES, 2005).

60 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


associações de bairro, ou seja, são predominantemente grupos de mediação. Em
contrapartida, outros tipos de movimentos socioespaciais, denominados de mo-
vimentos socioterritoriais, são ações coletivas que têm a conquista do território
como principal objetivo, em um constante processo de apropriação do espaço
geográfico como território, que segue uma dinâmica cíclica de territorialização,
desterritorialização e de reterritorialização. Os movimentos camponeses, os in-
dígenas e os sem teto são movimentos emblemáticos dessa luta (FERNANDES;
MARTIN, 2004; FERNANDES, 2005).
Os conflitos pelo passado colonial, devido à exploração de recursos na-
turais, escravização e genocídio de populações indígenas e negras são funda-
mentais para a compreensão do surgimento e para a atuação de movimentos
socioterritoriais. Dentro dessa perspectiva, a interpretação que vem ganhando
corpo nos estudos de movimentos sociais e que buscam compreender os con-
textos do atlântico sul são as abordagens pós-coloniais ou descoloniais, nas pa-
lavras de Grosfoguel (2008). Segundo algumas/alguns autoras/es, como Ilse
Scherer-Warren (2011) e Breno Bringel (2011), as abordagens vigentes, teo-
rias clássicas de tradição marxista, teorias culturalistas (TNMS) e teorias ins-
titucionalistas (TMR e TPP), atribuíram pouca relevância às desigualdades so-
ciais, centrais nas raízes históricas de sociedades coloniais. Assim, os estudos
pós-coloniais, incorporando contribuições das teorias clássicas, direcionaram
suas análises acontextos periféricos, como o da América Latina, criticando o que
Grosfoguel denomina de “sistema mundo europeu/euro-norte-americano mo-
derno/capitalista colonial/patriarcal”, reinterpretando os processos históricos de
opressão e resgatando culturas diaspóricas dos povos nativos.
Segundo Scherer-Warren (2010, p. 20), para isso seria necessário um pro-
cesso de incorporação dos

[...] legados das teorias de classe e das respectivas formas de opressão das
elites coloniais e hegemônicas; das teorias culturalistas, no que diz respeito
às múltiplas formas de opressão e discriminação simbólica em relação aos
segmentos sociais colonizados; e da respectiva exclusão e/ou subalterni-
dade destes segmentos no plano do fazer político, no cotidiano societário
e nas instituições. Portanto, cabe buscar as contribuições que os estudos
pós-coloniais incorporam, ainda que criticamente, das teorias anteriores
das ações coletivas e dos movimentos sociais, que se construíram sob a
égide dos referenciais teóricos da modernidade e da pós-modernidade.

Teoria dos Movimentos Sociais e Lutas Sociais na América Latina, Desafios para... 61
As abordagens pós-coloniais são fundamentais, a partir do momento em
que incorporam a dimensão étnico-racial em qualquer abordagem oriunda da
América Latina, ou de outros países periféricos e colonizados. Outro compo-
nente crucial, que se articula às opressões étnico-raciais e de classe, é a opressão
de gênero. Sabendo disso, compreende-se que incorporar perspectivas feminis-
tas também é essencial aos processos analíticos de movimentos sociais, a partir
do momento em que vários movimentos sociais mistos5 começaram a assumir
questões relativas ao combate às desigualdades de gênero, normatizando princí-
pios internos e linhas políticas de luta.
Essas análises começaram a surgir, mas segundo Jules Falquet (2006), as te-
orias de movimentos sociais ainda não se debruçaram de maneira profunda sobre
essas novas configurações, sobretudo no que tange à discussão de como avançar
além de declarações normatizadoras. Segundo a autora, o debate sobre o conser-
vadorismo subjacente aos movimentos sociais progressistas permanece invisível,
impensado ou insuficientemente pensado, seja em questões como a divisão sexual
do trabalho, o modelo de família e a proposta de outra cultura que alguns desses
movimentos apresentam. De maneira taxativa, Falquet (2006, p. 2013) sustenta
que “[...] há uma grande derrota em se ultrapassar as simples declarações de prin-
cípios [...]” no que concerne as questões de gênero. Ressalta-se a prematuridade
dessa afirmação, mas concorda-se com a problematização da autora, segundo a
qual, existe grande dificuldade dos movimentos sociais incorporarem perspecti-
vas de luta por redistribuição encadeando-as com políticas pelo reconhecimen-
to, como questões cotidianas das desigualdades de gênero, associadas a questões
como classe, sexualidade, raça, geração, etc. Nancy Fraser (2007) analisa essa ques-
tão mostrando que há possibilidades de superação desses embates.
Para ela, existe uma grande polarização política em contextos progressistas
entre proponentes da redistribuição e proponentes do reconhecimento, em que
ambos os lados subsumem a dimensão central do outro. Em termos simplifi-
cados, o primeiro grupo tem o objetivo de redistribuir a riqueza entre ricos e
pobres, ou de proprietários para trabalhadores, ou do Norte para o Sul. O segun-
do grupo tem como meta buscar o reconhecimento de minorias étnico-raciais,

5
  Considera-se uma organização mista aquela composta por homens e mulheres.

62 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


sexuais e de gênero. Essa relação é tensa e mostra um problema profundo que
se reflete em todos os setores sociais progressistas, seja na ciência moderna, nos
partidos políticos, no Estado ou na sociedade civil, há uma polarização de po-
líticas culturais e sociais, de políticas de classe e de identidade; do multicultu-
ralismo e da igualdade social. Reflexo disso foi constatado nas abordagens das
próprias teorias dos movimentos sociais debatidas nos itens anteriores. Para
Fraser (2007), essa polarização é uma falsa antítese, sendo a redistribuição e o
reconhecimento os elementos fundamentais e urgentes na criação de políticas
de justiça social, ampla e abrangente.
A autora salienta que o reconhecimento seria um “remédio” para as injus-
tiças sociais e não a satisfação de uma necessidade genérica. As formas de reco-
nhecimento que a justiça exige em qualquer caso dependem das formas de não
reconhecimento a serem compensadas. Independentemente de ser uma questão
de distribuição ou de reconhecimento, os arranjos atuais impedem pessoas de
participar em condição de igualdade com os outros na vida social. Ao reivin-
dicar redistribuição, é preciso mostrar que os arranjos econômicos existentes
negam condições objetivas para uma paridade participativa. Ao mesmo tempo,
ao reivindicar reconhecimento, deve-se mostrar que os padrões institucionali-
zados de valoração cultural negam as condições intersubjetivas necessárias para
o bem-estar social (FRASER, 2007).
Os desafios das correntes interpretativas de movimentos sociais e dos pró-
prios movimentos sociais não são simples, o que exige conexões interpretativas
profundas. Além das teorias clássicas dos movimentos sociais, fundamentais
para adensar um paradigma latino-americano, da abordagem de movimen-
tos socioterritoriais que os reinterpretam numa visão da geografia; das teorias
pós-coloniais que resgatam as questões étnico-raciais e de classe dos processos
coloniais; e das contribuições feministas que enfatizam a necessidade de superar
visões exclusivamente econômicas, outro fator capital nas análises sobre movi-
mentos sociais são as mudanças ocorridas no mundo a partir do que se conven-
cionou chamar de “globalização”. Sem essa análise, o paradigma latino-america-
no engessaria as realidades regionais, como se a América Latina fosse imune às
influências externas. Mais uma vez cair-se-ia num erro de interpretação.

Teoria dos Movimentos Sociais e Lutas Sociais na América Latina, Desafios para... 63
A Globalização e a Teoria das Redes de Movimentos Sociais

As novas interpretações sobre a atuação de movimentos sociais no mundo


estão sendo fortemente impactadas pelas discussões sobre globalização. Afinal,
as mudanças em escala mundial, fruto dos processos globalizantes, forçaram
a inovação dos movimentos sociais e, consequentemente, a reinterpretação de
suas atuações em todo mundo. Para Octavio Ianni (1999), a globalização na
América Latina resultou em um processo de dissociação entre sociedade civil e
Estado, em que os movimentos sociais e os partidos políticos e sindicatos per-
deram grande espaço para tudo o que é transnacional relativo ao mercado, ou
como o autor denomina, perderam espaço para a “globalização pelo alto”. Como
alternativa a esse processo globalizante pelo alto, seria necessário uma “globali-
zação por baixo” como reação de contestação à nova ordem global, em que clas-
ses e grupos sociais subalternos de diferentes localidades se organizassem para
formular e construir práticas alternativas.
É essa a tese de algumas autoras e autores que utilizam a teoria das redes
na compreensão dos movimentos sociais. Com a globalização, os movimentos
sociais se complexificaram e as explicações clássicas precisaram de revisões e de
releituras frente à emergência de novos conflitos, novas demandas, novas formas
de organização circunscritas nessa nova ordem global. Como efeito dessa nova
conjuntura, surge a Teoria das Redes de Movimentos Sociais (TRMS). Assim, a
noção de sociedade globalizada se tornou essencial nas análises dos movimentos
sociais. Na Europa, o trabalho de Manoel Castells (1999) e, no Brasil, os estudos
Ilse Scherer-Warren (1993; 2006; 2008; 2012), entre outros, ecoaram com enor-
me influência, criando a perspectiva em rede.
Manuel Castells (1999), em sua trilogia Era da informação: economia, so-
ciedade e cultura6, centrou-se nos estudos das novas tecnologias da informação
do século XXI e na influência do uso da comunicação digital na reestruturação
econômica mundial. O livro que mais interessa dessa série é o segundo volume
O poder da identidade, no qual o autor reúne análises de estudos sobre movi-
mentos sociais de diversas identidades. Castells (1999) examina duas tendências

6
  A trilogia é composta pelos seguintes livros: (1) A Sociedade em Rede (1996); (2) O Poder da Identidade
(1997); e (3) O Fim do Milênio (1998).

64 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


conflitantes que moldam o que ele denomina de “sociedade da informação”: a
globalização e as identidades.
No Brasil, a produção sobre movimentos sociais em rede passa necessaria-
mente pelas obras de Ilse Scherer-Warren. A autora desdobra a noção de rede
de movimentos sociais em diversos trabalhos, desde seu estudo pioneiro Redes
de Movimentos Sociais, de 1993, passando por obras como Cidadania sem fron-
teiras: ações coletivas na era da globalização, de 1999, entre vários outros artigos
(SCHERER-WARREN, 2006; 2008) até sua mais recente obra Redes Emancipa-
tórias: nas lutas contra a exclusão e por direitos humanos, de 2012.
Em 1993, a autora antecipa uma tendência que se consolidaria somente
nos anos 2000 como enfoque central das análises de movimentos sociais, as re-
des de movimentos sociais. Naquele período, a autora sugeriu uma tendência
“ainda que de forma hipotética” de que as redes de movimentos sociais se forma-
riam no Brasil, articulando diversos movimentos sociais de diferentes naturezas
(SCHERER-WARREN, 1993, p. 119). Em sua pesquisa mais recente, com mais
subsídios empíricos para se apoiar, ela aponta a formação de redes interorgani-
zacionais complexas no país, criando uma nova forma de ser movimento. Essas
redes são formadas por diversas formas de ações coletivas, como movimentos
ambientalistas, pacifistas, feministas, de indígenas, remanescentes de quilombo-
las, atingidos por barragens, movimentos negros e de luta pela terra. São arti-
culações horizontais, pouco hierarquizadas, pouco formalizadas e que se cons-
tituem por meio da identificação dos pertencentes à rede em torno de valores,
objetivos e projetos (SCHERER-WARREN, 2012).
A partir das reflexões de Scherer-Warren, adotou-se um conceito base do
que seria um movimento social, mesmo que, de certa forma, se incorra em um
reducionismo, devido à diversidade dessas ações.

Movimentos sociais são redes complexas, que transcendem organizações


empiricamente delimitadas e que conectam de forma simbólica, solidária
e estratégica, sujeitos individualmente e atores coletivos, que se organizam
em torno de identidades ou identificações comuns, da definição de um
campo de conflito e de seus principais adversários políticos ou sistêmicos
e de um projeto ou utopia de transformação social. (SCHERER-WARREN,
2012, p. 21).

Teoria dos Movimentos Sociais e Lutas Sociais na América Latina, Desafios para... 65
A autora utiliza um conceito amplo de redes e baseia-se na tipologia clássica
de Alain Touraine, adaptada por Manuel Castells (1999, p. 95-96), cujos movimen-
tos sociais devem ter uma Identidade comum, uma autodefinição sobre o que eles
são e em nome de quem se pronunciam (Mulheres, negros, gays, lésbicas, campo-
neses, operários, etc.). O movimento deve eleger a Oposição ou adversário, sendo
esse o inimigo em torno do conflito central a ser combatido (patriarcado, racismo,
homofobia, capitalismo, ou vários deles). Também deve estabelecer uma Meta so-
cietal, um objetivo almejado numa situação sistêmica. É importante salientar que
essa tipologia demonstra que os movimentos sociais não são fenômenos únicos,
podendo assumir perspectivas bem diferenciadas, podem ser conservadores, re-
formistas, revolucionários, ambos, ou nenhum deles.
Apesar do desenvolvimento dessa tipologia e do campo da teoria dos mo-
vimentos sociais, não há consenso quanto à utilização e à categorização dos tipos
de movimentos sociais e nem quanto à abordagem ontológica. Para algumas/al-
guns autoras/es, a centralidade está na ação coletiva, para outros nos movimentos
sociais, outros, entendem, ainda, que seu foco é a sociedade civil e outros o con-
fronto político. Alain Touraine, por exemplo, utiliza como tema movimento so-
cial; Alberto Melucci, a ação coletiva; Cohen e Arato,sociedade civil; e os teóricos
dos processos políticos (TPP), a categoria confronto político como grande campo
de análise. Como já pode ser percebido, utilizou-se como categoria analítica a
ação coletiva dos movimentos sociais, proposta por Touraine, entendendo que
ela representa uma entre tantas outras ações coletivas da sociedade civil. Segun-
do o autor, reserva-se

[...]o emprego da categoria “movimentos sociais” ao conjunto dos fenôme-


nos que, de fato, receberam esse nome no decorrer de uma longa tradição
histórica [sendo] uma ação coletiva que coloca em causa um modo de do-
minação social generalizada. (TOURAINE, 2006, p. 18).

Todas essas reflexões em torno da teoria dos movimentos sociais subsi-


diarão o que será tratado daqui em diante, pela incorporação de elementos de
cada uma das teorias, como as análises de oportunidades políticas da Teoria
dos Processos Políticos (TPP), a tipologia de Touraine sobre movimentos so-
ciais já descritos e, principalmente, o modus operandi de um movimento social
latino-americano num contexto mundializado.

66 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


Com o advento da globalização, no interior dessa grande variedade de teo-
rias, alguns movimentos latino-americanos se tornaram centro de grande aten-
ção mundial a partir dos anos de 1990, e foram tratados como esperança de
um imaginário revolucionário que perdera seu idealismo com a derrocada das
experiências do “socialismo real”: o MST no Brasil e o EZLN no México.

Luta pela Terra, Questões de Gênero e o Movimento dos


Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)

O MST é um movimento social de luta pela terra, norteado prioritariamen-


te pela busca da reforma agrária, pautada pela luta de classes, apoiado em um
corpo teórico que aliava os princípios da teologia da libertação a um arcabouço
teórico mais amplo, formado majoritariamente por autores marxistas. Contudo,
atualmente, o MST coloca o problema da terra numa perspectiva de transfor-
mação social mais ampla, articulando alianças com outros movimentos sociais,
incorporando demandas socioeconômicas e socioculturais, ou redistribuição e
reconhecimento, segundo Fraser (2007). Seus objetivos vêm sendo ampliados,
já que os focos que se baseavam, inicialmente, em uma luta de natureza econô-
mico-corporativa vêm se modificando e várias outras bandeiras de luta foram e
estão sendo agregadas. Essa transversalidade de ações pode ser observada no site
do MST que apresenta uma pauta heterogênea, representada por nove bandeiras:
(1) cultura, (2) reforma agrária, (3) combate à violência sexista, (4) democrati-
zação da comunicação, (5) saúde pública, (6) desenvolvimento, (7) diversidade
étnica, (8) sistema político, (9) soberania nacional e popular. São bandeiras que
buscam aglutinar políticas de igualdade social e políticas identitárias (MOVI-
MENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA, 2014a).
A incorporação de lutas identitárias, ou por reconhecimento (FRASER,
2007), ocorreu frente a esses conflitos e contradições, mas, sobretudo, pelo gran-
de intercâmbio e amadurecimento do Movimento. Segundo Maria Inez Paulilo
e Cristiane Bereta da Silva (2010), as discussões sobre as questões de gênero no
MST estão presentes desde sua formação, na década de 1980, e foram fortemente
influenciadas pelo Movimento de Mulheres Agricultoras (MMA)7. Inicialmente
7
  A partir de 2004, o MMA/SC se unificou com os demais movimentos de mulheres no Brasil criando
o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), de organização nacional. Conferir mais detalhes em
Salvaro (2010).

Teoria dos Movimentos Sociais e Lutas Sociais na América Latina, Desafios para... 67
no Sul do país, lutas pelo preço mínimo de produtos; ocupações de terras; luta
contra barragens e recuperação de terras indígenas pautavam as reivindicações
de camponesas/es organizadas/os e o MMA começou a estabelecer uma relação
dessas lutas no campo com questões feministas, principalmente no que tange à
aposentadoria para mulheres agricultoras. Símbolo da luta de mulheres campo-
nesas, Luci Choinacki8 foi, talvez, a principal liderança desse processo de reivin-
dicação dos direitos das mulheres do campo, no Sul do Brasil. Naquele período,
tanto o MST quanto o PT e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) passaram
a incorporar questões de gênero como pauta de luta. Na contramão desses avan-
ços, as discussões sobre sexualidade e o racismo poucas vezes foram priorizadas.
Outros fatores contribuíram para abertura maior nos espaços de participa-
ção das mulheres, como a influência do debate acadêmico, a pressão de agências
financiadoras internacionais que solicitavam a contemplação da categoria gê-
nero, tanto na reflexão teórica, quanto nos programas de ação dos movimentos
como condição de aprovação dos financiamentos e, também, os diversos convi-
tes para a participação em congressos e encontros internacionais.
Em 1999, surge pela primeira vez uma proposta mais ampla e que vigora
até hoje. O Movimento criou um Setor de Gênero9 definindo objetivos e a pri-
meira linha política de ação em âmbito nacional. Essa proposta foi ratificada no
4º Congresso Nacional em 2000, com o desafio de

Garantir a participação igualitária das mulheres que vivem no campo em


todas as atividades, em especial no acesso a terra, na produção e gestão,
buscando superar a opressão histórica imposta às mulheres. (MOVIMEN-
TO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA, 2003, p. 21).

Segundo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (2003), sobre


a discussão de gênero, os desafios assumidos pelo Setor de Gênero traçados há
quase 15 anos vigoram até hoje:
1. Garantir que o cadastro e o documento de concessão do uso da terra sejam
em nome do homem e da mulher.

8
  Luci Choinaki é uma importante líder camponesa de Santa Catarina que iniciou sua militância nas
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) no início da década de 1980 até se tornar deputada estadual e
federal, o segundo cargo sendo exercido até hoje.
9
  Atualmente, existem 12 setores organizados: Comunicação, Cultura, Direitos Humanos, Educação,
Formação, Frente de Massa, Gênero, Juventude, Produção, Projetos e Finanças, Relações Internacionais
e Saúde.

68 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


2. Assegurar que os recursos e os projetos da organização sejam discutidos
por toda a família (homem, mulher e filhos que trabalham) e que os docu-
mentos sejam assinados e a execução e controle também sejam realizados
pelo conjunto da família.
3. Incentivar a efetiva participação das mulheres no planejamento das linhas
de produção, na execução do trabalho produtivo, na administração das
atividades e no controle dos resultados.
4. Em todas as atividades de formação e capacitação, de todos os setores do
MST, assegurar que haja 50% de participação de homens e 50% de mulheres.
5. Garantir que em todos os núcleos de acampamentos e de assentamentos
haja um coordenador e uma coordenadora que, de fato, coordenem as dis-
cussões, os estudos e os encaminhamentos do núcleo, e que participem de
todas as atividades como representantes da instância.
6. Garantir que, em todas as atividades do MST, de todos os setores e ins-
tâncias, tenha ciranda infantil [creche do MST] para possibilitar a efetiva
participação da família (homem e mulher).
7. Assegurar a realização de atividades de formação sobre o tema gênero e
classe em todos os setores e instâncias do MST, desde o núcleo de base até
a direção nacional.
8. Garantir a participação das mulheres na frente de massa e Sistema Coo-
perativista dos Assentamentos (SCA) para incentivá-las a ir para o acam-
pamento, participar das atividades do processo de luta e serem ativas no
assentamento.
9. Realizar discussões de cooperação ampla, procurando estimular mecanis-
mos que liberam a família de penosos trabalhos domésticos cotidianos,
como refeitórios e lavanderias, comunitários etc.
10. Garantir que as mulheres sejam sócias de cooperativas e de associações com
igualdade na remuneração das horas trabalhadas, na administração, no
planejamento e na discussão política e econômica.
11. Combater todas as formas de violência, particularmente contra as mulheres
e crianças, que são as maiores vítimas de violência no capitalismo.

Teoria dos Movimentos Sociais e Lutas Sociais na América Latina, Desafios para... 69
EZLN e a Ley Revolucionaria de las Mujeres

Além do MST, a experiência mais emblemática das últimas décadas foi o


Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), movimento mexicano que
tem sido reconhecido mundialmente pela mídia, pela academia e, sobretudo,
pelas esquerdas mundiais como o mais criativo movimento social da história
recente. Segundo Manuel Castells (1999, p. 104),

[...] a capacidade de os zapatistas comunicarem-se com o mundo e com a


sociedade mexicana e de captar a imaginação do povo e dos intelectuais
acabou lançando um grupo local de rebeldes de pouca expressão para a
vanguarda da política mundial.

A partir de 1994, os olhares do mundo direcionaram-se para o “primeiro


movimento de guerrilha informacional” (CASTELLS, 1992, p. 103), que adotava
distintas estratégias de lutas, tanto políticas por redistribuição como por reco-
nhecimento. Em nível econômico contestava a exploração de populações indí-
genas e camponesas, rechaçando as políticas neoliberais do governo mexicano
que excluíam tudo aquilo que não se encaixava num projeto de modernização
econômica. A segunda estratégia dos neozapatistas buscava reconhecimento
institucional dos direitos das populações indígenas. Para tanto, criaram estrutu-
ras próprias de governo10, de produção agroecológica por meio de cooperativas,
de serviços11 e de legislação12.
Depois de 20 anos, diversas áreas do conhecimento permanecem se esfor-
çando para compreender a lógica insurgente de um movimento indígena com
filiações políticas híbridas, tal movimento se tornou exemplo de “globalização
por baixo” (IANNI, 1999) ao utilizar, mesmo estando isolados na região da Selva
Lacandona, a internet como principal ferramenta de divulgação de sua luta, con-
quistando enorme comoção e solidariedade internacional e aplicando, inclusive,

10
  El gobierno autônomo é composto por municípios autônomos divididos em cinco Caracoles ou re-
giões organizativas: Oventic, La Garrucha, Roberto Barrios, Morelia e La Realidad. Cada um deles é
administrado por uma Junta del Buen Gobierno, composta por representantes rotativos dos municípios
autônomos.
11
  Há diversos serviços autônomos, como uma cooperativa de transportes, centros médicos e escolas
zapatistas.
12
  As leis locais são autônomas à Constituição mexicana e coordenadas pelas Juntas del Buen Gobierno,
mas decididas em assembleias gerais, dos rumos estratégicos do movimento às punições de possíveis
crimes cometidos nas comunidades.

70 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


uma lei revolucionária das mulheres. La Ley Revolucionaria de Mujeres surge
com as seguintes propostas:
1. As mulheres, sem importar sua raça, credo, cor ou filiação política, têm o
direito de participar da luta revolucionária no lugar e no grau que sua von-
tade e capacidade determinam.
2. As mulheres têm o direito a trabalhar e a receber um salário justo.
3. As mulheres têm o direito a decidir o número de filhos que podem ter e
cuidar.
4. As mulheres têm o direito a participar dos assuntos da comunidade e a ter
cargos caso sejam eleitas livre e democraticamente.
5. As mulheres e seus filhos têm o direito à atenção primária na saúde e na
alimentação.
6. As mulheres têm o direito à educação.
7. As mulheres têm o direito a escolher seu parceiro e a não ser obrigada a
casar-se.
8. Nenhuma mulher poderá ser agredida ou maltratada fisicamente nem por
familiares, nem por estranhos. As tentativas de estupro e os estupros serão
castigados severamente
9. As mulheres poderão ocupar cargos de direção na organização e ter grau
militar nas forças armadas revolucionárias.
10. As mulheres terão todos os direitos e obrigações indicadas nas leis e nos
regulamentos revolucionários.

Certamente, entre a lei e sua aplicação há um grande abismo. Existe um


grande paradoxo nessas questões de rompimento com a cultura de determina-
das etnias locais e com o centro da valorização zapatista. Ao mesmo tempo, essas
iniciativas vêm mostrando que é possível pautar lutas mais amplas e que as lutas
por redistribuição e por reconhecimento não são irredutíveis.
Os neozapatistas permanecem sendo uma referência dos movimentos
sociais na América Latina, juntamente com o MST. Ambos são movimentos

Teoria dos Movimentos Sociais e Lutas Sociais na América Latina, Desafios para... 71
populares, que têm como base de sustentação as lutas por condições básicas de
sobrevivência (terra, casa, comida, equipamentos coletivos, etc.), influenciado
por grupos progressistas da Igreja católica que, no processo de consolidação
histórica, favoreceram uma forte conotação religiosa. Contudo, cada um detém
nuances que merecem grande aprofundamento e, no caso do EZLN, várias pes-
quisas podem subsidiar informações sobre seu surgimento, sua organização e os
caminhos traçados pelas/os indígenas de Chiapas do que esse texto.

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Teoria dos Movimentos Sociais e Lutas Sociais na América Latina, Desafios para... 75
Os Estudos de Gênero
e Michel Foucault

Tito Sena

Introdução

Os estudos contemporâneos de gênero têm uma história, do ponto de vista


social, político e conceitual. O feminismo, como movimento social, emergiu no
Ocidente no século XIX, principalmente a partir de reivindicações das sufragis-
tas. É possível destacar as lutas pelo direito das mulheres ao voto, na virada do
século, como um marco, muito embora as suecas já o tivessem conquistado em
1862. No Reino Unido,o voto feminino foi conquistado em 1918 (com lutas ini-
ciadas por John Stuart Mill em 1866), nos EUA, em 1920, mas em países como
a Suiça (1971) e Liechtenstein (1976), esse direito foi concedido há menos de 30
anos. No Brasil, o voto feminino em caráter nacional foi aprovado em 1934.
Na década de 1930, o estudo comparativo de culturas, da antropóloga nor-
te-americana Margareth Mead, obteve repercussão, introduzindo o termo papéis
sexuais para mostrar que comportamentos masculinos e femininos eram cons-
truídos e podiam variar de uma cultura para outra.
Apesar de Simone de Beauvoir publicar Le deuxième sexe,em 1949, foi na
década de 1960 (principalmente após o movimento de 1968) que o feminismo,
inclusive radical, retomou suas forças contestatórias, sociais e políticas, sen-
do clássicas as obras, A mística feminina (1963), de Betty Friedmann; Políticas

77
sexuais (1969), de Kate Millet; A mulher eunuco (1970), de Germaine Greer;
A dialética do sexo(1970), de Shulamith Firestone; e A experiência sexual (1970),
de Juliet Mitchell. No decorrer da década de 1970 inicia-se a discussão concei-
tual sobre gênero, nos campos teóricos e de militância prática.

O Texto de Joan Scott

Embora a categoria de gênero não tenha sido diretamente tematizada por


Foucault, seus escritos tiveram ressonância, com desencadeamento progressivo
de pesquisas e de leituras, principalmente a partir do artigo publicado em 1986,
da norte-americana Joan Scott, Gênero, uma categoria útil de análise histórica.
Ancorada em Foucault, a historiadora se posiciona contrária à utilização de uma
perspectiva de oposição binária universal antiética (masculino/feminino) da di-
ferença sexual: “Temos necessidade de uma rejeição do caráter fixo e permanen-
te da oposição binária, de uma historicização e de uma desconstrução genuínas
dos termos da diferença sexual.” (SCOTT, 1995, p. 84).
Scott, especialista no movimento operário francês, do século XIX, e na his-
tória do feminismo na França, afirma que a preocupação em considerar gênero
uma categoria analítica só emergiu no final do século XX, e a trajetória do con-
ceito de gênero passou por sucessivas reavaliações, rupturas e continuidades,
tendo, portanto, como qualquer categoria, sua história.

Minha definição de gênero tem duas partes e diversos subconjuntos que


estão inter-relacionados, mas devem ser analiticamente diferenciados.
O núcleo da definição repousa numa conexão integral entre duas pro-
posições: (1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais
baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma
forma primária de dar significado às relações de poder. (SCOTT, 1995
p. 86, grifos nossos).

Os grifos na citação destacam os nexos com a perspectiva foucaultiana,


pois Scott, além de ampliar o conceito, inserindo-o, seja como categoria social
(e por isso passível de análise para a história) ou como categoria discursiva no
campo das diferenças entre os sexos, refere-se diretamente à questão mais explo-
rada pelas feministas, em Foucault: as relações de poder.

78 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


No pensamento do filósofo francês, a problematização das diferenças
e das desigualdades dos sexos é plural e discursivamente estabelecida, e essa
pluralidade discursiva se opõe à polarização do pensamento e à lógica binária.
A polaridade fixa é, pois, impossível dentro do raciocínio de Foucault. A análise
se processa dentro de uma dinâmica (histórica) plural de poder, não de uma
estática de poder (meramente estruturado). Considerando que os conceitos de
hegemonia, de sujeição, de dominação, de assimetria e de hierarquia referem-se
a relações de poder, a apropriação e o aproveitamento de sua teoria aos estudos
de gênero, remete, no mínimo, a reconceitualizações e a leituras plurais. A con-
cepção de poder no pensamento foucaultiano é instigante, pois ele é desenvol-
vido fora das concepções clássicas: “O poder não é uma instituição e nem uma
estrutura, não é uma certa potência de que alguns são dotados: é o nome dado a
uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada.(FOUCAULT,
1988, p. 89)”.
Scott (1995) propõe o gênero como uma primeira forma de dar significado
às relações de poder, em que as ações históricas afirmaram-se e reafirmaram-se
para objetivar-se numa política sobre as mulheres cuja diferença sexual foi con-
cebida em termos de dominação e de controle sobre elas. A historiadora aponta
para uma possibilidade de mudança iniciada em muitos lugares, para o rompi-
mento da autorreprodução do essencialismo dual masculino/feminino, posto
que tais antagonismos não são características inerentes da espécie humana, mas
constructos históricos subjetivos ou ficcionais.

Finalmente, é preciso substituir a noção de que o poder social é unificado,


coerente e centralizado, por algo como o conceito de poder em Michel Fou-
cault, entendido como constelações dispersas de relações desiguais, discur-
sivamente constituídas em “campos de forças” sociais. (SCOTT, 1995, p. 86).

A Multiplicidade Discursiva

Nessa linha de raciocínio, efetuar uma leitura foucaultiana da categoria


gênero é destacar a construção dos discursos sobre o masculino e o feminino, as
assimetrias e as desigualdades nos blocos de correlações de forças, em oscilações

Os Estudos de Gênero e Michel Foucault 79


de micro e macropoderes nas relações homem/mulher. Nessa concepção, o discur-
so sobre gênero é atravessado e conectado por inúmeros discursos, alguns agru-
pados proximalmente, outros distanciados, mas nenhum deles isolado, unificado.
O discurso sobre gênero articula-se com outros tantos, como o discurso
feminista, os discursos sobre maternidade e paternidade, os discursos sobre a
sexualidade, sobre a família, além de diversos subdiscursos. Pode-se afirmar,
portanto, que não se tem um discurso sobre gênero, mas sim discursos sobre
gênero (múltiplos), açambarcando inclusive contradições, ambiguidades e in-
certezas, tal como em quaisquer outros discursos, já que todos são construídos
histórica e culturalmente (estando, portanto, em contínua transformação).
Dessa forma, considerando que os discursos sobre gênero são carregados
de pluralizações desencadeadoras, sua aparente dispersão e pulverização frag-
mentária nos leva a apreciá-los convergentemente de forma política, histórica e
cultural, principalmente porque seu campo (espaço-temporal) envolve diferen-
ciações, antagonizações, hierarquizações e exclusões.
Os estudos de gênero também privilegiam a concepção foucaultiana de
que cada época e cada cultura têm sua versão particular do que é considerado
desigual nas relações entre os sexos, opondo-se assim, à universalização trans-
-histórica das assimetrias de gênero.
Para Sônia Corrêa (1996, p. 152 grifos nossos), em artigo publicado no
livro Sexualidades Brasileiras:

Foucault, em seus vários trabalhos, desmonta as representações fixas


sobre a sexualidade demonstrando que cada época, cada cultura e até
mesmo cada sub-cultura produz dispositivos específicos no que diz res-
peito ao exercício das práticas sexuais, às formas institucionais de controle
destas práticas e à própria organização social da sexualidade.

As teorias feministas, as teorias sobre gênero e as teorias construcionis-


tas sobre sexualidade passaram justamente a ter em Foucault uma referência
teórica importante, pelo seu questionamento do discurso universalizante da
história convencional. Esse pensar permitiu que fossem desfeitas noções de
identidade única, a-históricas e essencialistas de “mulher” e de “homem”, para
mostrar homens e mulheres, sujeitos e assujeitados em relações de poder/sa-
ber e histórico-culturais.

80 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


O campo interdisciplinar dos estudos de gênero amplia a possibilidade de
diálogos com outras categorias, potencializando a utilização de variadas aborda-
gens teóricas, mas é significativa a recorrência a Michel Foucault.

A Crítica ao Essencialismo

Quanto a possíveis objeções acadêmicas sobre essa multiplicidade discur-


siva interpenetrada em termos teóricos explicativos ou interpretativos, que difi-
cultaria a reivindicação de um território específico para os estudos de gênero e
sua ênfase no combate à desigualdade hierárquica homem/mulher, é oportuno
citar Chantal Mouffe (1996, p. 102 grifos nossos):

Na verdade, é em relação à crítica do essencialismo que podemos estabe-


lecer uma convergência entre as mais diversas correntes de pensamento e
encontrar similitudes no trabalho de autores tão diferentes como Derrida,
Wittgenstein, Heidegger, Dewey, Gadamer, Lacan, Foucault, Freud e ou-
tros. Isto é muito importante, porque significa que uma tal crítica pode
assumir muitas formas diferentes e, se quisermos escrutinar a sua relevân-
cia para a política feminista, temos de nos envolver em todas as suas mo-
dalidades e implicações e não afastá-las rapidamente com fundamento em
alguma de suas versões.

A autora, defensora de abordagens antiessencialistas e de um projeto de-


mocrático radical, na qual inclui uma política feminista, argumenta que o es-
sencialismo “[...] é inelutavelmente deficiente quando se trata da construção de
uma alternativa democrática, cujo objetivo é a articulação das lutas a diferentes
formas de opressão.” (MOUFFE,1996, p. 103).
Judith Butler, em artigo intitulado Variações sobre Sexo e Gênero: Beauvoir,
Wittig e Foucault, apresenta uma comparação sintética entre as elaborações des-
ses autores, que embora sejam divergentes em outros pontos, convergiram em
entender gênero como prescrição e tarefa, como norma que as mulheres lutam
para encarnar. Ele expõe que a teoria de Simone de Beauvoir sobre a natureza
ambígua da identidade de gênero e sua formulação como um projeto (“não se
nasce, mas torna-se mulher”) foi modificada por Monique Wittig no artigo Não
se nasce mulher. Butler afirma que as duas autoras têm em comum o argumento

Os Estudos de Gênero e Michel Foucault 81


de que o gênero torna-se o lugar dos significados culturais sobre as diferen-
ças sexuais biológicas, que são vistas como naturais. E a noção de sexualidade
como constructo é assim tomada emprestada de Foucault:

A teoria de Wittig encontra apoio no primeiro volume de A história da


sexualidade de Foucault, que sustenta improváveis mas significativas con-
seqüências para a teoria feminista. No que Foucault procura subverter a con-
figuração binária de força, o modelo jurídico de opressor e oprimido, ele ofe-
rece algumas estratégias para a subversão da hierarquia de gênero. Para Fou-
cault, a organização binária de forças, inclusive aquela baseada estritamente em
polaridades de gênero, é efetuada por uma multiplicação de formas de poder
produtivas e estratégicas. (BUTLER, 1987, p. 149 grifos nossos).

Nessa linha de combate ao esquema binário hierarquizante e à naturali-


zação dos papéis sociais em torno da diferença biológica, Tânia Swain faz refe-
rências também às reflexões de Foucault, sobre o ordenamento dos corpos em
modelos centrados no sexo. Mas, ela alerta que leituras superficiais, parciais e
críticas de Foucault podem restringir sua adoção pelo debate feminista.

Certas reflexões de Foucault cruzaram-se e alimentaram, em muitos ca-


sos, as teorias feministas na medida [em] que, justamente, desvelam no
histórico-social quadros de disciplinaridade, formas de adensamento polí-
tico sobre os corpos, que produzem, em suas diversas tecnologias, padrões
de funcionamento e utilidade. [...] Entretanto, no caso do feminismo, uma
leitura menos atenta pode ater-se apenas aos grandes traços esboçados por
Foucault que contemplam episodicamente a questão do corpo e do sexo
da mulher, e ver, nestas generalizações, um obstáculo para a decodificação
das táticas e estratégias que investem os corpos femininos. (SWAIN, 2000,
p. 139 grifos nossos).

Percebe-se, em Foucault, os corpos (de homens e mulheres) historicamen-


te alvos de inscrições discursivas, transpassados pela física e microfísica dos po-
deres, objetos de disciplinarização. Nas palavras de Susan Bordo (1997, p. 20
grifos nossos):

Através da busca de um ideal de feminilidade evanescente, homoge-


neizante, sempre em mutação -[...]-os corpos femininos tornam-se o
que Foucault chama de ‘corpos dóceis’: aqueles cujas forças e energias
estão habituadas ao controle externo, à sujeição, à transformação e ao

82 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


“aperfeiçoamento”. Por meio de disciplinas rigorosas e reguladoras sobre a
dieta, a maquiagem, e o vestuário — princípios organizadores centrais do
tempo e espaço nos dias de muitas mulheres — somos convertidas em pes-
soas menos orientadas para o social e mais centradas na automodificação.

O próprio Foucault em Sujeito e Poder, um de seus últimos artigos, inclui a


questão de gênero num rol de outras relações de lutas que têm em comum ata-
car, não tanto uma “instituição” de poder, ou grupo, ou elite ou classe, mas antes,
atacar uma “forma” de poder:

Para começar, tomemos uma série de oposições que se desenvolveram nos


últimos anos: oposição ao poder dos homens sobre as mulheres, dos pais
sobre os filhos, do psiquiatra sobre o doente mental, da medicina sobre
a população, da administração sobre os modos de vida das pessoas.
Não basta afirmar que estas são lutas antiautoritárias; devemos tentar de-
finir mais precisamente o que elas têm em comum. (FOUCAULT, 1995,
p. 234 grifos nossos)

No mesmo texto, ele relaciona seis características que aproximam em mui-


to tais embates: 1) são lutas transversais (não são restritas a um país); 2) são lutas
contra os efeitos de poder enquanto tal; 3) são lutas imediatas por criticarem as
instâncias de poder mais próximas e não esperarem encontrar soluções num
futuro longínquo; 4) são lutas que questionam o governo da individualização;
5) são lutas contra a maneira pela qual o saber circula e funciona por meio de
suas relações com o poder; e 6) estas lutas contemporâneas giram em torno da
questão: quem somos nós?

O Verdadeiro e Único Sexo

Outro texto de Michel Foucault bastante utilizado nos estudos de gênero


é o prefácio de Herculine Barbin: O Diário de um hermafrodita, no qual o filó-
sofo-historiador discute o drama e o trágico final suicida do protagonista da his-
tória ocorrida nos meados do século XIX, que após uma vivência feminina tem
que, por decisão médico-jurídica, trocar legalmente de sexo. O texto é citado por
alguns autores como Jeffrey Weeks (1999), Débora Britzmann (1999) e Judith
Butler (2003), para ilustrar debates sobre a identidade (sexual e de gênero) e

Os Estudos de Gênero e Michel Foucault 83


discutir o estabelecimento dos padrões de normalidade e de anormalidade, por
meio de discursos que emergiam, como ciência no século XIX, e as novas confi-
gurações de poder correlacionadas a esses discursos. A respeito dessas constru-
ções (discursivas) de sexualidade, Foucault (1982, p. 2-3 grifos nossos) afirma:

Do ponto de vista médico [...] trata-se, antes, de decifrar qual o verdadeiro


sexo que se esconde sob aparências confusas. [...] Do ponto de vista do
direito, isso implica evidentemente o desaparecimento da livre escolha.
Não cabe mais ao indivíduo decidir o sexo a que deseja pertencer jurídica
ou socialmente; cabe ao perito dizer que sexo a natureza escolheu, e que
conseqüentemente a sociedade exigirá que ele mantenha.

O mesmo texto também é trabalhado por Didier Eribon (autor de uma das
biografias de Foucault), no capítulo intitulado Precisamos de um verdadeiro sexo?,
do livro Michel Foucault e seus contemporâneos.Para Eribon, a questão abordada
pelo pensador, mais do que uma reflexão sobre hermafrodismo e “identidade
sexual”, é uma reflexão sobre a invenção da categoria “homossexualidade” e o
processo de sua reapropriação discursiva, ocorrida a partir do século XIX.

Se o interesse de Foucault pela questão do hermafrodismo se inscreve no âm-


bito do seu trabalho sobre a história da sexualidade, ele também está ligado
a uma reflexão sobre a identidade sexual [...] e pode-se dizer que o projeto
teórico de Foucault está, nesse ponto, estreitamente ligado a um projeto po-
lítico (de política sexual), visando desfazer as evidências que organizam os
modos de pensar e de agir. (ERIBON, 1996, p. 165-156 grifos nossos)

Para Judith Butler (2003), em seu livro Problemas de Gênero, o prefácio de


Herculine Barbin é oportunidade de ler um Foucault propondo a sexualidade
como um sistema histórico aberto e complexo de discurso e de poder:

Ao editar e publicar os diários de Herculine, Foucault está claramente ten-


tando mostrar como um corpo hermafrodita ou intersexuado denuncia e
refuta implicitamente as estratégias reguladoras da categorização sexual.
[...] Segundo esse modelo foucaultiano de política sexual emancipatória, a
derrubada do “sexo” resulta na liberação da multiplicidade sexual primá-
ria. (BUTLER, 2003, p. 143).

Numa outra ótica, recorrendo a algumas teses de Michel Foucault, o


historiador Thomas Laqueur, em livro intitulado originalmente na edição

84 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


americana1 de 1992, Making Sex – Body and gender from the greeks to Freud, traba-
lha com as complexidades históricas que atravessam o corpo. Ele explora as prá-
ticas médicas ao longo dos últimos dois mil anos e descreve que, até os fins do
século XVIII, prevalecia um modelo de isomorfismo sexual, no qual a mulher
não existia como categoria ontológica distinta, e o homem era a única referência.
O modelo de sexo único tomava o corpo feminino como o inverso do masculino;
e o discurso dominante interpretava os corpos masculinos e femininos de forma
hierárquica e vertical. Laqueur (2001, p. 23 grifos nossos) propõe em seu livro:

Eu não tenho interesse em negar a realidade do sexo ou do dimorfismo


sexual como um processo evolucional. Porém desejo mostrar, com base
em evidência histórica, que quase tudo que se queira dizer sobre sexo– de
qualquer forma que o sexo seja compreendido –já contém em si uma rei-
vindicação sobre o gênero. O sexo, tanto no mundo de sexo único como
no de dois sexos, é situacional; é explicável apenas dentro do contexto da
luta sobre gênero e poder.

Segundo Laqueur, antes do século XVIII, o sexo era uma categoria socio-
lógica e ontológica, pois o modelo de sexo único “colava” biologia com política
de sexo. No final do século XVIII, com os avanços da “ciência” (e do biopoder
conforme explorado por Foucault em A vontade de saber), surgiu um novo mo-
delo de dimorfismo sexual, de divergência biológica, cujas anatomia e fisiologia
passaram a substituir e a sustentar outra hierarquia de representação da mulher,
em relação ao homem. Essa reinterpretação dos corpos está profundamente
marcada pelo poder político de gênero e, essa troca epistemológica é o resul-
tado de desenvolvimentos mais amplos, como osurgimento de novos espaços
públicos, as concepções de matrimônio como contrato, a possibilidade de trocas
sociais abertas pela Revolução Francesa, o feminismo subsequente, o conserva-
dorismo pós-revolucionário, a reestruturação da divisão sexual do trabalho, o
crescimento de uma economia de livre mercado, o nascimento das classes, den-
tre outros acontecimentos múltiplos.
A estudiosa de gênero, Guacira Lopes Louro, uma das muitas brasileiras
seguidoras da perspectiva foucaultiana, insiste na crítica ao investimento e na
produção da sexualidade “normal”.

1
  O título na edição espanhola de 1994 é La construcción del sexo: cuerpo y genero desde los griegos hasta
Freud. Na edição brasileira de 2001, o título é Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos até Freud.

Os Estudos de Gênero e Michel Foucault 85


A despeito de todas as oscilações, contradições e fragilidades que marcam
esse investimento cultural, a sociedade busca, intencionalmente, através de
múltiplas estratégias e táticas, “fixar” uma identidade masculina e femini-
na “normal” e duradoura. Esse intento articula, então, as identidades de
gênero “normais” a um único modelo de identidade sexual: a identidade
heterossexual. (LOURO, 1999, p. 26 grifos nossos).

A apropriação de Foucault pelos estudos de gênero centraliza-se, portanto,


na analítica de poder apresentada pelo pensador francês. Homens e mulheres
estão mergulhados de tal forma em relações de poder, que seus assujeitamentos
são tomados muitas vezes como “naturais”: são naturalizadas a força masculina e
a correlata fraqueza feminina, a maternidade feminina e a exacerbada sexualida-
de masculina, a racionalidade do homem e a emotividade da mulher. São natu-
ralizadas a violência masculina e a passividade feminina, bem como a circulação
em espaços públicos pelos homens em oposição aos espaços domésticos desti-
nados às mulheres. A crítica à naturalização como agente do obscurecimento da
historicidade é uma das ferramentas do feminismo e dos estudos de gênero para
superação da desigualdade entre homens e mulheres.
As inscrições, visíveis e invisíveis, das relações poder/saber são linhas para
releituras e reescritas da história dos corpos. Não se tem apenas o corpo bioló-
gico, “natural” da criança, do idoso, do louco, do preso, do homossexual: tem-
-se o corpo-história-criança, corpo-história-idoso, corpo-história-louco, corpo-
-história-homossexual. Assim também, homens e mulheres (e seus corpos), são
detentores de uma história, ou melhor, de um mosaico ou caleidoscópio de his-
tórias, protagonizadas por vários “masculinos” e vários “femininos” em culturas
diferenciadas e em épocas diferentes.
“No gênero, a prática social se dirige aos corpos” (Robert Connell)

Referências

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86 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


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FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber 11º ed. Rio


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88 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


Educação, Diversidade e Direitos
Humanos: a formação de professoras
a partir da alteridade radical

Leandro Castro Oltramari

Olá tudo bem? Professoras e Professores é um prazer poder entrar em con-


tato com vocês para discutir um pouco mais sobre a formação e a atuação de
vocês no âmbito da diversidade. Como vocês devem ter percebido esta temática
tem sido amplamente debatida em meios de comunicação sociais como rádio e
televisão assim como em redes sociais e internet. A União estável entre pessoas
do mesmo sexo, intolerâncias sobre pessoas que mudam de sexo, debates acir-
rados sobre políticas de cotas para pessoas negras, têm sido alvo de muitas críti-
cas e mesmo violências de tantas ordens. Aqui pretende-se lembrá-los que essas
situações chegam à escola. E o que nós como educadores temos a ver com isso?
Não é novidade para ninguém que a educação tem muitos desafios, mas
aquivolta-se exatamente para o alvo principal do nosso curso que trata da dis-
cussão sobre a diversidade na escola. Diversidade ampla o suficiente para abar-
car aspectos de gênero, raça, deficiências, classes sociais, entre tantos outros.
Sabe-se que a escola é um espaço fundamental de socialização do sujei-
to (BERGER; LUCKMAN, 1997), que possui o importante papel de contribuir
com a sua formação e de sua cidadania, além de ser um vetor fundamental para

91
a entrada do sujeito no mundo do conhecimento produzido pela sociedade
(YOUNG, 2007).
Tratar-se-á aqui da especificidade da formação cidadã pela qual a esco-
la também é responsável, já que constituir sujeitos que compreendam a multi-
plicidade da diversidade humana em sua radicalidade para que possam fazer a
transformação das relações de injustiça das mais variadas ordens é um de seus
objetivos. E esse é um desafio dos mais complexos que a escola tem possibilidade
de fazer no âmbito da formação. Assim, serão discutidos inicialmente quais os
desafios atuais da escola. Depois será apresentado o que se entende como diver-
sidade na escola. Em seguida, o conceito de direitos humanos será apresentado e
por último o conceito de alteridade radical, de Emmanuel Lèvinas (2005).

E a Escola, Como Vai?

Não é novidade para ninguém, muito menos para vocês professoras e pro-
fessores que a escola tem enfrentado desafios dos mais variados nos dias atuais.
Mas a escola teve um propósito muito claro no seu início. A partir da Revolução
Francesa e Industrial, ela foi uma poderosa instituição para difundir tanto os
ideais burgueses quanto a formação de mão de obra para as indústrias que flo-
resciam na época. É claro que também foi a partir da escola que houve a possi-
bilidade de uma socialização maior de conhecimento produzido pela sociedade
(MENDONÇA, 2011). Mas essa escola tem passado por uma série de desafios,
um deles é o de que a realidade social tem mudado e o modelo original, pensado
pelo sistema de ensino, tem sido questionado.
A escola tem enfrentado uma série de novas “materialidades” que propi-
ciam uma série de sentidos e de significados para professores e estudantes. Se
antes tinha-seuma escola apenas para alguns, hoje tem-se para todas e todos. Se
antes existia a família de um casal heterossexual casado por uma vida inteira,
hoje há famílias constituídas por pessoas do mesmo sexo. Se antes pessoas de
outras raças e etnias não possuíam seus direitos de acesso à escolaridade preser-
vados, hoje há uma ampla discussão sobre racismo e preconceito e políticas de
acesso à escola para essas pessoas. Assim, este curso é derivado de muitas mu-
danças. Como vocês percebem o contexto educacional em que trabalham?Essas
discussões estarão presentes em suas escolas?

92 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


O que se tem percebido é que a escola tem tido dificuldades em fazer com
que seus objetivos, sentidos e significados contemplem o que as famílias pensam
e sentem em relação a ela. Ou seja, famílias e realidade acabam vivendo experi-
ências muito distantes daquilo que é proposto pela escola. Aquela máxima que é
“estudando que se sobe na vida” passa a ser cada vez mais questionada por pais
e estudantes. Mesmo que sabendo que realmente é a escola que pode garantir
algum tipo de acesso e de mobilidade social para classes sociais desfavorecidas,
ainda há uma distinção muitas vezes intensa entre família e escola, principal-
mente em camadas populares (THIN, 2006; 2010).
Por que existe esta dificuldade em compreender a diversidade de contex-
tos e de sujeitos que compõem a escola? Como a escola pode compreender essa
diversidade que não é anômala, mas sim a regra? Pois o mundo social e, logi-
camente, a escola não são homogêneos. Aliás é a heterogeneidade que é consti-
tuinte da escola!

Diversidade! Para que Debatê-la?!!

Uma das mais interessantes descobertas feitas por mim nos últimos tem-
pos foi a de um livro de história antiga de Norberto Luiz Guerinello. Simples,
objetivo e talvez sem muitas inovações, mas com argumentações muito interes-
santes para pensar a temática. Guerinello (2014) revela que o que fez as civili-
zações antigas se desenvolverem ao longo de suas histórias foi exatamente por
elas estarem em contato próximo com as outras culturas. Sim! É isso mesmo!
O contato com culturas diferentes fez com que os povos do entorno do Me-
diterrâneo se desenvolvessem. A diversidade de culturas, de religiões, de pen-
samentos fez com que aqueles povos, independentemente do continente em
que vivessem, fossem altamente desenvolvidos para a época. Inclusive, ele cita
que os próprios gregos, símbolos do pensamento ocidental, tivessem produzi-
do seus importantes escritos a partir de viagens que teriam feito pelo contato
com outros povos. Assim, são contestadas as ideias etnocêntricas e eugenistas
muito características dos séculos XIX e XX, em que as diferenças deveriam
ser suprimidas e que existiriam pessoas mais dignas e outras menos dignas de
existirem (vide os ideais nazistas de Adolf Hitler).

Educação, Diversidade e Direitos Humanos 93


Mas será que somos tão tolerantes quanto imaginamos que somos? Não!
A intolerância tem sido uma tônica de diversos espaços sociais, sendo a escola
um desses espaços. É comum ainda, nos dias de hoje, denúncias de transfobia na
escola (ALVES, 2013), discriminações raciais na escola (SANTANA; MULLER,
2012) entre tantas outras formas de preconceito ou mesmo discriminação que a
escola, ou silencia ou exerce, seja com os estudantes, seja com suas famílias, ou
mesmo com professoras e professores.
Entende-se aqui a diversidade como:

[...] respeito aos valores culturais e aos indivíduos de diferentes grupos, do


reconhecimento desses valores e de uma convivência harmoniosa. (p. 51)
[...] A convivência com a diversidade implica o respeito, o reconhecimento e
a valorização do/a outro/a, e não ter medo daquilo que se apresenta inicial-
mente como diferente. Esses são passos essenciais para a promoção da igual-
dade de direitos. (GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA, 2009, p. 57)

Se a diversidade tem tal característica, como é possível exercer o trabalho


de educadores tendo a diversidade como príncipio norteador de nossas práticas e
tendo objetivo a alcançar em nossas atividades escolares? A resposta pode estar no
príncipio dos direitos humanos como fundamental para a efetividade dessa ação.

Direitos Humanos? O que isso tem a ver com a escola?

Tomando a ideia anterior de diversidade e compreendendo que cada ser


humano é singular e um grupo de origem é diferente um do outro, seria preciso
eleger princípios norteadores para as nossas ações, para que elas sejam coeren-
tes com o seu resultado final. Assim discute-se alguns pontos importantes para
reflexão dos educadores.
A partir de uma discussão sobre a atuação de psicólogos em políticas pú-
blicas, a professora Marivete Gesser (2013) aponta para questões fundamentais
que também podem ser pensadas no âmbito das escolas e nas relações entre
estudantes e professores. Ela aponta para a necessidade de pensar as políticas
públicas com ênfase nos direitos humanos a partir de uma perspectiva “[...]
ético-política, que tem como horizonte ético a potencialização do sujeito e o

94 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


reconhecimento de sua humanidade” (GESSER, 2013, p. 74). É preciso enten-
der que se as políticas públicas são endereçadas a todas e a todos os estudantes,
então elas devem ser propositivas tanto de atuação profissional dos professores
quanto de mudança social a partir dessa atuação. Assim, é fundamental que uma
proposta de política pública contemple a diversidade já mencionada, a partir de
uma perspectiva de direitos humanos como direitos universais e inalienáveis de
qualquer ser humano, tenha ele ou ela qualquer característica singular.
Mas é claro que defender os direitos humanos hoje constitui um gran-
de desafio, primeiro porque existe uma série de programas que faz mau uso
desse conceito, além de não tocar em seu objetivo primordial que é defender
qualquer pessoa, em qualquer situação que a desumanize. Aqui é importante
lembrar-se de que quando se trata de uma sociedade que é regida por contrato
social (para lembrar o iluminista Jean Jaques Rousseau),as questões coletivas
devem estar colocadas acima dos princípios individuais, sendo essa uma carac-
terística fundamental de um Estado democrático. Assim fica presente que não
pode existir uma não aceitação dos direitos humanos, seja para quem for, pois
esse é um dos princípios fundadores de um Estado de direitos. Não aceitar isso
é o mesmo que defender a barbárie. É preciso lembrar-se de que, neste caso,
barbárie para um é barbárie para todas e todos. Uma escola que não respeita
diferenças humanas constitucionais não pode ser uma escola que educa. Até
porque a escola que educa necessita estar articulada a princípios humanísticos
e sociais que a façam compreender a diversidade humana e a superação das
diferenças marginalizantes e opressoras. Assim como aponta Gesser (2013),
uma escola que combate o sofrimento da exclusão e que constrói espaços de
potência para a existência de seus estudantes, faz muito mais do que apenas
repassar conteúdos, ela constitui cidadãos e cidadãs que podem fazer e refazer
suas histórias e as de outras pessoas.
Mas não se pode esquecer que para que isso aconteça é preciso compreen-
der o “outro”, este que é alvo de toda a diferenciação aqui discutida, como um
sujeito integral e pleno em seus sentidos e sentimentos; um sujeito de direito à
educação e ao respeito. Para tanto será discutido um pouco sobre o conceito de
Alteridade Radical.

Educação, Diversidade e Direitos Humanos 95


Alteridade Radical? Isso é Possível?

Esse conceito foi criado pelo filósofo Emmanuel Levinas. O autor, nascido
na Lituânia em 1906 e falecido em 1995, de família judia, filósofo muito influen-
ciado pela fenomenologia de Husserl e de Heidegger, tem como suas principais
preocupações a Ética e este sujeito “Outro” que faz com que o ser humano se
desequilibre causando estranhamento a si mesmo.
Aqui percebe-seque é possível realizar relações teóricas para os argumentos
que até agora foram desenvolvidos. É importante compreender uma discussão
sobre ética e alteridade radical para poder fazer frente às opressões e às discrimi-
nações cotidianas. Carvalho, Freire e Bosi (2009) apontam que o mundo chama-
do pós-moderno ou de capitalismo tardio, para muitos, tem se apresentado com
uma moral extremamente individualista e pouco interessada pelo Outro como
sujeito passível de respeito e de admiração. O individualismo contemporâneo
que faz com que cada sujeito esteja mais interessado em alcançar seus “objeti-
vos” tem contribuído para que as pessoas sejam percebidas como “meios” e não
como “fins” em si mesmas. Isso faz com que haja um distanciamento social cada
vez maior de pessoas ou grupos que não se entendam como semelhantes. Vários
autores, fundados na leitura de Levinas, apontam que é preciso compreender o
Outro na plenitude de suas diferenças, a partir da ideia de um sujeito desinteres-
sado. Mas o que significa esse desinteressamento para Levinas e como ele pode
auxiliar nas discussões sobre diversidade na escola?
Para Levinas, o desinteressamento relaciona-se a considerar os sujeitos
da educação como um fim em si mesmo. Ou seja, sujeitos que em sua plenitude
de ser nos colocam face a face como estranhos, com o que nos inquieta e, logo,
pode causar desconforto, inquietamento, e produzir verdades construídas a par-
tir de uma percepção não verdadeira sobre esse próprio sujeito que não é escu-
tado, por isso, acaba sendo objeto de rótulos, dogmas ou mesmo cristalizações
de saberes das mais variadas ordens. A diversidade humana, para esse autor, é
o centro de toda relação ética, que está pautada na alteridade e na compreensão
do outro em sua plenitude do ser. Mas você deve estar pensando: muito fácil
falar! Mas como fazê-lo? Aqui cabe estabelecer uma diferença entre aquilo que
se compreende por moral e o que se compreende por ética, pois ética vai além

96 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


da moral, é um ato reflexivo que questiona inclusive os valores morais do seu
próprio tempo. Para ser ético a partir desses posicionamentos de Levinas, o su-
jeito deve refletir sobre si mesmo, buscando compreender quem ele é e em que
tempo ele vive. “A dimensão ética para Lévinas se traduz, conforme já aludido,
na responsabilidade de ser por, pelo e para o outro.” (CARVALHO; FREIRE;
BOSI, 2009, p. 856).
Assim, partindo desses pressupostos, o respeito à diversidade nada mais
é do que condição fundamental de toda ação humana que se pretenda ética.
A escola deve ser o lócus de ações que valorizem os seres humanos na sua inte-
gridade. Cada família, ou sujeito estudante, merece um acolhimento na escola,
de forma que suas características não sejam desqualificadas ou transformadas
em questões de menor importância.
Reforçando essa questão e também colocando seus pontos de vista a partir
de Levinas, Sidekum (2013) aponta a importância desses pressupostos serem
incorporados ao processo de formação de professores. As discussões que apon-
tam para a ética da alteridade e para o olhar de reconhecimento da diversidade
humana na escola, assim como o reconhecimento de alteridade absoluta deste
Outro posto à margem, faz com que se considere esses pontos como fundamen-
tais para uma educação mais emancipadora. Até porque “O outro possibilita a
intermediação para o reconhecimento de si mesmo, de seu eu.” (SIDEKUM,
2013, p. 90). Esse autor aponta para a transformação de uma “[...] pedagogia do
mesmo para a práxis de uma pedagogia da alteridade: na perspectiva de Direitos
Humanos.” (SIDEKUM, 2013, p. 91).
Mas para tanto há algumas saídas entre as apresentadas por Gesseret al.
(2012), que apontam para a importância de que, nas suas formações os/as pro-
fessores/as sejam convidados a refletir sobre suas condições de sujeitos no mun-
do. Mais do que a utilização de formas prescritivas de conhecimentos aos quais
eles/as são muitas vezes “convidados/as” a se submeter, uma escola que acolhe a
alteridade tem que ser uma escola que consiga dialogar com ela, inclusive envol-
vendo nesse diálogo os professores. Isso porque não é possível fazer uma edu-
cação comprometida com os preceitos aqui defendidos se esses mesmos educa-
dores não tiverem o tipo de “escuta” que se pede para que estejam capacitados
a dialogar com seus estudantes. Preconceitos, estigmas e discriminações devem

Educação, Diversidade e Direitos Humanos 97


ser alvos de reflexão, tanto de educadores quanto de seus educandos. Parte-se do
pressuposto de que ninguém está imune a isso, mas que existem chances de supe-
ração que passam por uma minuciosa reflexão cotidiana sobre quem pensamos
que somos, e quem é o outro com o qual nos relacionamos. O que ele nos traz?
O que ele ou ela representa para mim? O que isso acarretará em minha prática
pedagógica em relação a ele ou a ela? As superações são possíveis ou negociáveis.
Portanto, a partir de Levinas, é possível relacionar a alteridade e a ética,
isso para que todo ser humano possa ter uma relação com “Outro” ser Humano.
Ética que se torna para Levinas (SIDEKOM, 2013) princípio mais importante
para a filosofia que qualquer outro.

Alguns Apontamentos Finais

Então cursistas... Vamos encerrar por aqui, mas esse debate continua.
O que se pretende com esta discussão em um curso que se propõe a debater Gê-
nero e Diversidade na escola? Primeiro, apontar que existe uma responsabilida-
de com essa questão que é ontológica, de qualquer ser humano e que, a partir do
filósofo Emmnuel Levinas, transcende a discussão da escola, mas a coloca como
parte integrante e também responsável por essas problemáticas.
Segundo, que a escola precisa retomar em seus cursos de formação, na
possibilidade de escuta integral e fundamental dos seus professores para que os
próprios educadores possam a partir de sua reflexão, base de toda ação ética,
exercer sua função de trazer conhecimentos e, ao mesmo tempo, formar cida-
dãos capazes de construir uma realidade melhor ou, pelo menos, diferente desta
em que se vive.
Por terceiro e último, ao entrarem contato com as realidades, que devem
enfrentar, os educadores precisam mais do que uma formação de conteúdo, pre-
cisam de uma formação ética que coloque a alteridade como princípio regulador
de suas ações para que as intervenções não tenham caráter meramente morali-
zante e reprodutor da ordem social vigente. Pois apesar dos avanços, ainda exis-
tem na escola discursos das mais variadas ordens: heteronormativa, de discrimi-
nação racial e que não contemplam a multiplicidade das deficiências humanas,
muitas vezes por mero desconhecimento ou falta de reconhecimento delas.

98 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


Com certeza essa não é uma tarefa fácil, mas estando em processo de con-
tínuo fazer, pensar sobre as ações educativas trará mais chances de diminuir as
desigualdades, as discriminações e as opressões, sejam de quais ordens forem.
Boa leitura e bom curso para vocês!

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Educação, Diversidade e Direitos Humanos 99


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100 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


Sexualidades Femininas e Prazer
Sexual: uma abordagem de gênero

Olga Regina Zigelli Garcia


Miriam Pillar Grossi

Introdução

Nos dias atuais, vários saberes sobre a sexualidade são mais socializados,
seja por meio da mídia, da literatura, das conversas informais nas relações de
amizade seja por meio de palestras, de visitas à internet, do diálogo entre ge-
rações, com maior abertura que em épocas passadas. É possível afirmar que a
sexualidade tornou-se um assunto em evidência e todo esse contexto forma, na
modernidade, como diria o filósofo francês Michel Foucault, o dispositivo da
sexualidade, em uma relação dinâmica, em constante movimento, entre a des-
construção e a construção de saberes, normas e valores, a exemplo dos questio-
namentos que se tornaram argumento da obrigatoriedade do orgasmo.
Apesar da importância que a sexualidade humana adquiriu no mundo
moderno, há de se considerar que o seu estudo aponta para a construção, ao
longo da história, de entendimentos unívocos que buscaram na correspondên-
cia entre sexo biológico e gênero social a coerência da identidade de gênero.
Nessa ótica, para as mulheres, espera-se um comportamento sexual único, ou
seja, uma determinada maneira de vivenciar o prazer de uma forma considerada
“tipicamente feminina”. Entende-se que essa concepção sobre o comportamento

101
sexual “tipicamente feminino” está alicerçada em pressupostos historicamente
construídos e difundidos em relação à sexualidade da mulher que ainda conti-
nuam sendo aceitos como verdades.
Na qualidade de profissional da saúde, para atender à lacuna existente no
campo das relações entre sexualidade e assistência à saúde da mulher, estudou-se
e defendeu-se, em 1991, uma dissertação de Mestrado em Ciências da Enfer-
magem, intitulada Orgasmo feminino – da expressão ao início da compreensão,
na qual, pesquisou-se sobre o entendimento do orgasmo feminino na visão dos
autores e das autoras (pesquisadoras/es) e das mulheres por eles/elas estudadas
(GARCIA, 1991).
Como consequência dessa pesquisa, novos estudos foram desenvolvidos e
simultaneamente passou-se a atender a mulheres (num total de 357, entre mar-
ço de 1993 e março de 2003) e, por muitas vezes, seus respectivos parceiros,
em consultas de enfermagem, nas quais eram enfocadas as questões pertinentes
às vivências da sexualidade. Além desses atendimentos individuais, passou-se
também a proferir palestras sobre aspectos multidimensionais da sexualidade
humana na qual eram (e continuam sendo) abordados temas que incluem a his-
tória do estudo da sexualidade; anatomia e fisiologia masculina e feminina fren-
te à excitação sexual; gênero e sexualidade; mitos e tabus relativos às vivências
da sexualidade.
No cotidiano do trabalho profissional, percebeu-se que as mulheres en-
frentavam (e continuam enfrentando) dificuldades para vivenciarem uma vida
sexual prazerosa. Observou-se ainda que, em muitas situações, algumas mulhe-
res buscavam um “padrão de normalidade” e, muitas vezes, comparavam sua
vida sexual com a de outras mulheres. Em várias ocasiões verbalizavam “pro-
blemas” por apresentarem um comportamento sexual diferenciado de outras
mulheres, ou ainda do que haviam lido em determinada revista feminina ou
até mesmo “ouvido falar”. Por outro lado, outras mulheres, a despeito de terem
consciência da diversidade sexual humana, não conseguiam, da mesma forma,
apropriar-se de sua sexualidade.
Aliada a essas constatações, independentemente da forma de socialização
do saber na temática da sexualidade, uma pergunta comum, feita pelas mulhe-
res heterossexuais atendidas ou que assistiam às palestras proferidas, passou a
intrigar: “você poderia repetir tudo que me disse, ao meu companheiro?” “Você

102 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


repetiria esta palestra se trouxéssemos nossos parceiros?” Ou seja, apesar dos
esclarecimentos sobre a temática da sexualidade advindos da palestra ou da con-
sulta ou ainda outras formas de informação, elas manifestavam que necessita-
vam de uma intermediação na negociação de suas necessidades sexuais com o
parceiro. Depoimentos de homens, atendidos também evidenciavam dificulda-
des de outra ordem, como exemplifica a fala de J.B.S. 30 anos: “[...] geralmente,
a questão das preliminares sexuais é colocada como um problema causado princi-
palmente por nós homens. Somos egoístas, impacientes, inaptos, só pensamos no
orgasmo. Contudo, elas também devem assumir a sua parcela de responsabilidade.
As mulheres são tão culpadas quanto nós, por não saberem comunicar (grifos
nossos) as suas próprias necessidades”.
Colaborando com essas falas, ao realizar uma pesquisa de campo com dez
mulheres que mantinham prática sexual homoerótica, a despeito de terem na-
morados do sexo oposto, constatou-se que 60% verbalizaram não comunicar ao
parceiro homem suas necessidades sexuais, seja por não terem abertura, ou por
sentirem vergonha, apesar de conhecerem as áreas do corpo onde gostavam de
ser tocadas (GARCIA, 2004).
Estimulada por essas questões, resolveu-se, pautada na experiência pro-
fissional do momento e da produção acadêmica na temática da sexualidade,
desenvolver um estudo, em uma perspectiva interdisciplinar assim entendida,
uma vez que os conceitos principais que fundamentam a análise, sexualidade e
gênero são interdisciplinares. Por isso mesmo, parte-se dos estudos realizados
em várias áreas disciplinares sobre tais conceitos e suas relações.
Sendo assim, este estudo busca, baseando-se nos testemunhos registrados
durante a prática profissional em consultas de enfermagem em sexualidade reali-
zadas entre 1993 e 2003,analisar, em uma perspectiva interdisciplinar, a vivência
sexual de mulheres residentes em Florianópolis, no contexto contemporâneo, a
partir das contribuições de diferentes tendências e correntes sobre sexualidade e
gênero, que fornecem subsídios teóricos para refletir sobre a sexualidade femi-
nina na contemporaneidade.
Parte-se da premissa de que as mulheres enfrentam problemas relaciona-
dos às assimetrias de gênero, na busca da satisfação sexual. Para responder a
essa premissa, busca-se, por meio do pressuposto da diversidade sexual humana,

Sexualidades Femininas e Prazer Sexual 103


analisar os relatos sobre práticas sexuais em três diferentes grupos de mulheres
– com relatos de prática heterossexual; bissexual e homossexual, obtidos através
de consultas de enfermagem em sexualidade, destacando os seguintes aspectos:
as relações entre gênero e sexualidade; a identidade e a diversidade sexual, as
práticas homoeróticas e os estudos da sexologia, em especial a resposta sexual
humana, segundo William Masters e Virgínia Johnson (1979).
No presente estudo, a reflexividade é utilizada como ferramenta para revi-
sitar e analisar, agora com a contribuição do diálogo com as ciências sociais, par-
ticularmente com as teorias sobre gênero e sexualidade, os relatos das mulheres
por meio dos registros realizados durante dez anos de prática profissional em
consulta de enfermagem em sexualidade, com 357 mulheres, entre 1993 e 2003,
em Florianópolis, Estado de Santa Catarina.
Embora se saiba da impossibilidade de abordar, na análise, todas as impli-
cações envolvidas em frações de falas das mulheres atendidas, ressalta-se nova-
mente que os autores com quem dialogo neste estudo não constituem um bloco
monolítico, na medida em que pertencem a diferentes correntes e representam
diferentes contribuições. Destaca-se, porém, que, na busca de uma visão inter-
disciplinar, procura-se, no corpo do trabalho, promover uma articulação entre
os mesmos, apresentando suas contribuições bem como seus limites em relação
à compreensão do tema em estudo.
Julga-se importante esclarecer que não é objeto deste trabalho o aprofun-
damento da temática da orientação sexual, sendo a categorização nos três grupos
realizada em função das particularidades observadas nos discursos de mulheres
com práticas heterossexuais, bissexuais ou homoeróticas. Assim, foram classifi-
cadas como heterossexuais, as mulheres que relataram práticas sexuais somente
com o sexo oposto (aqui denominadas de grupo 1); bissexuais aquelas que rela-
taram prática com os dois sexos (grupo 2); e homossexuais as que referenciaram
práticas sexuais exclusivamente com outras mulheres (grupo 3).
Há de se destacar ainda a desproporção numérica entre o universo dos
diferentes grupos aqui categorizados, uma vez que a demanda à consulta de
enfermagem era espontânea, o que não impossibilita, porém, a elaboração de
inferências sobre os grupos analisados já que se trata de uma pesquisa qualita-
tiva. Apesar de saber que, numericamente, os grupos de mulheres com práticas

104 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


bissexuais e homossexuais são pequenos em relação ao grupo das mulheres com
práticas heterossexuais, as particularidades de seus relatos de experiências leva-
ram a esta classificação.
Para obedecer aos preceitos da ética na pesquisa e à recomendação propos-
ta por Guerriero et al. (2007) de que anonimato é essencial nas pesquisas, pois a
divulgação da identidade dos pesquisados pode lhes trazer algum prejuízo, a fim
de garantir o anonimato das mulheres, seus nomes foram substituídos, da se-
guinte maneira: nomes de flores para as mulheres do grupo 1; nomes de pedras
preciosas brasileiras para o grupo 2; e nomes de deusas da mitologia greco-ro-
mana para as mulheres do grupo 3. Ao mesmo tempo, o trabalho foi aprovado
pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Catarina.

Perfil das Mulheres Atendidas

A seguir apresenta-se o perfil das mulheres que compõem este estudo res-
saltando que optei por selecionar as variáveis: procedência, escolaridade, idade,
estado civil, renda e religião, por serem estas consideradas padrão para carac-
terização de perfis socioeconômicos e culturais. Ressalta-se que a variável etnia
não foi selecionada uma vez que, nas mulheres estudadas, ela não interferiu nos
dados levantados.
Do total das mulheres atendidas, a maioria era procedente do meio urbano
e de Florianópolis, oriundas das camadas populares e médias. As mulheres deste
estudo, pertencentes ao meio rural, tinham pouco acesso à informação e pouco
ou nenhum conhecimento sobre sexualidade. Não possuíam acesso à internet na
sua residência de origem, sendo a televisão e o rádio os meios de comunicação
mais difundidos.
Não é possível inferir se as mulheres de classe média alta não procura-
vam atendimento em sexualidade ou, ainda, se tinham proporcionalmente me-
nos problemas sexuais, uma vez que este último foi oferecido na modalidade
de extensão universitária, o que implica no seu caráter gratuito e, portanto, na
sua oferta em locais onde é possibilitado o acesso ao atendimento à saúde para
população de baixa renda, como os Hospitais escolas e as Unidades básicas de

Sexualidades Femininas e Prazer Sexual 105


Saúde. Ressalta-se também que Florianópolis não dispõe de serviços públicos de
atendimento em sexualidade humana.
Para efeito deste estudo foram consideradas, com nível superior, as estu-
dantes universitárias, o que explica a predominância deste grupo no dado de
escolaridade.
No conjunto das 357 mulheres atendidas, 236 recebem de um a três salá-
rios mínimos e pertencem, portanto, às camadas populares. Esse dado é impor-
tante na medida em que vários estudos, entre eles o da historiadora e doutora
em antropologia Maria Luiza Heilborn (2006), apontam que o pertencimento
de classe imprime distinções nos valores emitidos e nas condutas em relação à
sexualidade. Esses autores encontraram, em sua pesquisa com jovens brasileiros,
um relativo avanço do igualitarismo entre homens e mulheres de camadas mais
privilegiadas, nas quais as mulheres apresentam uma flexibilização maior das
representações acerca da sexualidade.
Ressalta-se que, no grupo 2 (prática bissexual), somente quatro mulheres
eram usuárias do SUS, e, no grupo 3 (prática homossexual), apenas dez. Esse
dado talvez possa ser explicado por meio dos achados de Heilborn (2006) que,
em inquérito populacional acerca da vida sexual e eventual percurso repro-
dutivo de 4.634 jovens brasileiros, moradores das cidades do Rio de Janeiro,
Porto Alegre e Salvador, mostraram que há uma menor tolerância à homosse-
xualidade no meio popular em que são mais demarcadas as fronteiras entre o
masculino e o feminino.
A maioria das mulheres atendidas – excetuando-se as estudantes universi-
tárias e algumas mulheres das camadas altas – estava inserida no mercado de tra-
balho formal. As profissões encontradas foram as mais variadas destacando-se
a inserção das mulheres nos seguintes segmentos do mercado de trabalho: co-
mércio, bancos, profissional autônomo, funcionalismo público, emprego domés-
tico, professora de ensino fundamental, professora de ensino médio e professora
de ensino superior.
Algumas mulheres contavam com a colaboração dos parceiros, viven-
ciando uma divisão de papéis menos rígida. Porém, esse modelo não pode ser
considerado uma regra – uma vez que a “autonomia”, para muitas, se expressa

106 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


apenas por sua independência financeira, o que pode ser evidenciado na fala
de Miosótis, 21 anos: “[...] eu trabalho fora e ajudo a sustentar a casa. Gosto de
trabalhar fora porque não dependo de meu marido pra ter dinheiro. Mas confesso
que é cansativo trabalhar e cuidar da casa. Meu marido até se oferece pra ajudar,
mas minha mãe me ensinou que é obrigação da mulher e que se eu pedir pra ele
fazer as coisas ele acaba enjoando e vai embora – então, mesmo cansada eu cuido
da casa sozinha”.
É importante destacar que essa dupla jornada acaba interferindo negativa-
mente na sexualidade – principalmente a conjugal: “[...] é complicado manter
o tesão quando se tem que lavar, passar, cozinhar, cuidar de filhos” (Heliconia,
38 anos). Esse cenário faz com que muitas mulheres acabem por encarar a ma-
nutenção de uma vida sexual no casamento como uma terceira jornada de tra-
balho, como ilustra a fala de Flor-do-campo, 30 anos: “[...] eu trabalho em três
turnos: fora de casa, como secretária, na minha casa como doméstica lavando,
passando, cozinhando e ainda na maioria das noites, quando mesmo cansada e
sem um pingo de tesão tenho que estar linda e sedutora para manter o desejo de
meu marido por mim”.
Destaca-se, porém, que apesar desse contexto, todas as mulheres apresen-
taram uma visão positiva de sua atividade profissional, referindo-se ao trabalho
como parte de seu projeto de vida, o que confirma a proposição de Giddens (1996)
no que concerne ao processo de destradicionalização de todo o tecido social, que
hoje busca emancipar-se das normas e reinterpreta por meio da reflexividade so-
cial o seu cotidiano. Contudo, há de se considerar que, se por um lado, o trabalho
tem contribuído para uma redefinição do papel da mulher frente à família e à
própria sociedade; no âmbito do privado, o trabalho doméstico ainda é fortemente
marcado pelas assimetrias de gênero, principalmente nas camadas populares.
Em relação ao estado civil, a maioria absoluta das mulheres atendidas era
solteira/e ou divorciada, sendo que, das 37 mulheres do grupo 3, 32 eram sol-
teiras – número esse que chegou à totalidade no grupo 2, formado por dez mu-
lheres. Destaca-se aqui que este último grupo – o das mulheres que relataram
práticas bissexuais – era formado na sua maioria por jovens universitárias, etapa
da vida em que o casamento não costuma estar nos planos imediatos. No gru-
po das mulheres com relato de prática homossexual, a vida em conjugalidade

Sexualidades Femininas e Prazer Sexual 107


ocorre apenas numa minoria, o que talvez demonstre, entre outros, uma resis-
tência em repetir os padrões dos casais heterossexuais.
Ressalta-se que, para efeitos deste estudo, foram consideradas solteiras
todas as mulheres que declararam não viver, por ocasião da consulta, em con-
jugalidade.
Chama atenção o baixo percentual de mulheres casadas – somente 90, as-
sim consideradas as que declaravam viver em conjugalidade. O que, talvez, pos-
sa ser explicado pelo fato de a maioria ter escolaridade superior e ensino médio,
uma vez que estudos como os de Bozon (2004) demonstram que o aumento do
grau de instrução das mulheres e sua inserção no mercado de trabalho mudaram
o cenário de suas vidas, já que o casamento era visto como única possibilidade
retardando as uniões conjugais. Nos grupos 2 e 3, com maior escolaridade e au-
tonomia financeira, essa tendência à conjugalidade não aparece, apesar de haver
prevalência de vida sexual com parceiros fixos.

Perfil Segundo as Práticas Sexuais Relatadas

A imensa maioria das mulheres atendidas no espaço de consulta de enfer-


magem em sexualidade relatou práticas exclusivamente heterossexuais (87%), se-
guida das mulheres que relataram práticas homossexuais (10%) e bissexuais (3%).
Existe uma grande parcela de mulheres jovens (aqui consideradas aque-
las entre 16 a 24 anos) que procuram atendimento em sexualidade. Esse número
também é significativo para a faixa dos 32 aos 36 anos. Partindo-se da premissa de
que mulheres que buscam atendimento em sexualidade apresentam algum nível
de insatisfação com sua vida sexual, esse dado vem contrariar o senso comum,
indicando que apesar da prevalência dos atendimentos nas duas idades já citadas,
a possibilidade de insatisfação sexual ocorre independentemente da idade.
Observa-se a prevalência de mulheres jovens entre as que relataram prá-
ticas bissexuais. Porém, esse dado não pode ser analisado isoladamente. Há de
se considerar que essas mesmas jovens são, em sua maioria, estudantes uni-
versitárias. Essa combinação de fatores reflete, talvez, uma fase do ciclo vi-
tal de experimentação, em que a transgressão à norma, a rejeição a papéis

108 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


predeterminados e a vivência de novas experiências tendem a ser comuns, como
citado anteriormente.
No grupo das mulheres que relataram práticas homossexuais, percebe-se
a prevalência da idade adulta, de 25 a 30 anos e de 35 a 40 anos. Esse dado deve
ser combinado com o maior poder aquisitivo e a autonomia financeira desses
dois grupos. Para o grupo de 25 a 30 anos, o fato de não morarem mais com a
família (conforme dados apontados nas entrevistas), associado à independên-
cia econômica, parece um fator que pode contribuir para que essas mulheres
assumam uma prática sexual diferente daquela esperada como “padrão” para o
comportamento feminino.
Entre as mulheres com práticas homossexuais, há uma pequena prevalência
de católicas (52%), seguida de um numero similar que se auto declaram sem re-
ligião (24%) ou espíritas (24%).
Como se pode perceber, a religião que predomina nos três grupos é a ca-
tólica, seguida da religião espírita. A religião evangélica só aparece entre as mu-
lheres do grupo 1, ao passo que no grupo 3 aumenta a prevalência do relato de
ausência de religião. A religião espírita aparece de maneira equivalente nos três
grupos. Destaca-se que algumas mulheres denominavam de espírita as religiões
afro-brasileiras, embora não haja informações para desconstruir esse dado que é
bastante significativo para este estudo.
Nos três grupos deste estudo, as mulheres, tanto as que se declararam ca-
tólicas, como as que se declararam espíritas ou evangélicas, foram unânimes em
afirmar que suas religiões encaravam com muita restrição o sexo fora do casa-
mento e da procriação. As falas a seguir expressam o peso desses valores religio-
sos na educação das mulheres da presente pesquisa:

“Sexo só com muito amor, com o homem certo e depois de casada foi o que
minha mãe sempre me ensinou” (Hortênsia 46 anos, espírita).

“Infelizmente fui educada para o sexo só no casamento. Sexo antes do casa-


mento era pecado” (Jade, 29 anos, católica)

“Minha mãe é católica demais e desde pequena aprendi que sexo era só no
casamento” (Héstia, 23 anos, católica)

Sexualidades Femininas e Prazer Sexual 109


Salienta-se que as três religiões predominantes neste estudo (católica, espíri-
ta, evangélica) emanam do cristianismo, portanto, é possível a influência do cris-
tianismo nos valores relativos a gênero e sexualidade, especialmente das mulheres.
Perguntadas se, na vivência da sexualidade, agem de acordo com sua re-
ligião, 214 mulheres afirmaram que não e que, às vezes, isso é fonte de conflito
interior, surgem a “sensação de culpa” e de “de pecado” por não agirem confor-
me os preceitos, mas que nem por isso deixam de viver sua sexualidade, mesmo
que fora do casamento ou do objetivo da procriação, porém elas salientam que
continuam tendo fé e acreditando em Deus.

“Não é porque não sigo o que a Igreja diz sobre sexo que vou deixar de acre-
ditar em Deus e no resto todo que está nos seus ensinamentos” (Violeta, 18
anos, católica)

“Sei que a religião condena a homossexualidade, mas foi nela que encontrei
prazer verdadeiro” (Deméter, 19 anos, sem religião).

Quarenta e três das 47 mulheres categorizadas nos grupos 2 e 3 (com práti-


cas homoeróticas, bissexuais e homossexuais) não concordam e nem agem con-
forme sua religião solicita e afirmam que têm outra noção de pecado.

“Pecado é fazer conscientemente mal aos outros” (Réia, 20 anos, sem religião).

Destas, as que afirmam não praticar qualquer religião alegam a prática ho-
mossexual como motivo para o abandono.

“O catolicismo não aceita, para o espiritismo é um espírito inferior, eu dese-


java e estava me sentindo mal com esse conflito, então resolvi não ter religião
nenhuma porque não encontrei uma que não condenasse de certa maneira”
(Latona, 22 anos, sem religião).

“Não ajo conforme minha religião determina, mas nem por isso não me afas-
to dela nem de Deus” (Deméter, 19 anos, espírita).

Esses relatos sugerem uma distância entre as orientações da religião, os


desejos e os novos paradigmas construídos em relação à sexualidade, uma vez
que alguns preceitos religiosos e morais restringem de tal forma a vivência da

110 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


sexualidade que há possibilidade de ajuste às práticas sexuais das mulheres nos
contextos culturais modernos. Sendo assim, muitas mulheres ao questionarem
e refletirem sobre os valores impostos pela religião fazem com que esses valores
sejam adaptados às suas realidades. Essas mulheres dão novas interpretações
à realidade objetiva, promovendo a construção de novos significados para sua
sexualidade e espiritualidade, possibilitando a reelaboração de suas identidades
religiosas. Destaca-se que seus relatos demonstram que, ao modificarem para si
mesmas os dogmas da religião sobre sexualidade que as incomodam – passando
a agir segundo suas consciências, elas não abandonam a religiosidade preser-
vando os aspectos que lhes dão sentido existencial.
Algumas falas levam a perceber que, no âmbito mais profundo, a prática
sexual dissonante dos preceitos religiosos é fonte geradora de tensão, sentimento
de culpa e conflitos intrapsíquicos.

“[...] Apesar de saber que estava fazendo algo errado” (Turquesa, 31 anos,
católica)

“Eu sei que muitas pessoas condenam o que eu faço” (Ônix, 21 anos, espírita);

“Sinto culpa por não agir de acordo com minha religião” (Camélia, 19 anos,
católica).

Esses sentimentos de transgressão da norma que permeiam a sexualidade,


ainda no século XXI, têm várias expressões na vida dessas mulheres, como a
construção de novos significados para a sexualidade e a espiritualidade, possi-
bilitando a reelaboração de sua identidade religiosa ou a racionalização e a bus-
ca, na própria doutrina, de possibilidades de outras interpretações aproveitando
aquilo que na religião lhes traz sentido de vida. Por fim, foi possível constatar
o abandono da religião ou ainda problemas na experiência da vivência da se-
xualidade para algumas mulheres que não conseguem elaborar esse processo,
em especial, as mulheres do grupo 3 – de práticas homossexuais, que relatam o
abandono da religião por não encontrarem espaço para a diversidade sexual nas
doutrinas religiosas.

Sexualidades Femininas e Prazer Sexual 111


Conclusões Acerca dos Relatos sobre a Vivência da
Sexualidade

Ao iniciar as conclusões, julga-se importante destacar que muitos da-


dos foram apresentados de acordo com sua frequência. Porém, salienta-se,
com inspiração em Ganguilhem (1978), que o levantamento de frequências de
comportamentos das mulheres que procuraram consulta de enfermagem em
sexualidade revela apenas as possibilidades do humano, desde as mais usuais até
as mais raras, apontando para a diversidade sexual humana.
Nessa ótica, os comportamentos referidos, relativos às mulheres estudadas,
levam às seguintes conclusões:
1. A primeira relação sexual se dá ainda na adolescência e reflete uma prática
espontaneísta e pouco reflexiva da sexualidade, o que reforça os estereóti-
pos de gênero.
2. O amor ainda é a motivação maior para as mulheresdo grupo 1 iniciarem a
vida sexual, ao passo que para asdemais, esse amor está associado ao tesão,
o que indica que as mulheres heterossexuais tendem a ser mais enquadra-
das pelas normas de gênero.
3. A declaração de sexo como uma fonte de prazer e de satisfação, assim como
a percepção de que homens e mulheres têm a mesma necessidade de sexo,
é maior entre as mulheres dos grupos 2 e 3, fugindo ao padrão tradicional
esperado para as mulheres.
4. A primeira atividade sexual com homens demonstra a hegemonia da pene-
tração vaginal e a ausência de orgasmo pelas mulheres.
5. A totalidade das mulheres relatou sua iniciação sexual com homens.
6. Assim como os dados encontrados em outros estudos sobre a sexualidade,
a centralidade do sexo vaginal nas relações com homens esteve presen-
te nas mulheres estudadas, ratificando as afirmações de Gagnon e Simon
(1973) de ser essa prática sexual a definidora de heterossexualidade;
7. As sensações experimentadas pelas mulheres durante sua primeira relação
sexual com homens traduzem a relação de gênero, na medida em que a
trilogia dor-medo-nervosismo se faz presente, pois as mulheres têm pouco

112 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


ou nenhum controle sobre o acontecimento, ou seja, não se sentiram pro-
tagonistas da sua iniciação sexual, mas sugeriram que apenas reagiram aos
desejos masculinos.
8. Do total das mulheres atendidas, 236 pertencem às camadas populares.
Tal como os achados de Heilborn (2006), nas mulheres aqui estudadas,
o pertencimento de classe imprime distinções nos valores emitidos e nas
condutas em relação à sexualidade.
9. Nas mulheres das camadas populares existe uma tendência à demarcação
de fronteiras entre masculino e o feminino, o que diminui quando as elas
apresentam um capital educacional demarcado por uma mobilidade esco-
lar ascendente.
10. A vivência da sexualidade é um possível lócus da emergência das assime-
trias de gênero.
11. É comum a permanência de ideias que reforçam as assimetrias de gênero
em relação à sexualidade entre mulheres com menor capital cultural.
12. Nas mulheres de camadas populares, independentemente da categoria es-
tabelecida por este estudo, as necessidades sexuais masculinas são inter-
pretadas como mais fortes e menos controláveis.
13. O aumento percentual das mulheres, em relação às pesquisas já realizadas
sobre o percentual de homossexualidade na população geral, que verba-
lizaram prática exclusivamente homossexual talvez reflita o resultado do
movimento de liberação homossexual, que torna cada vez mais públicas as
relações afetivas e sexuais entre as pessoas do mesmo sexo.
14. A prevalência dos atendimentos entre mulheres jovens e aquelas que estão
adentrando na maturidade contraria o senso comum demonstrando que
a sexualidade não tem endereço fixo e seus problemas podem ocorrer em
qualquer idade.
15. A ausência de orgasmo na prática sexual com homens, a vontade de agra-
dar incondicionalmente ao parceiro e o incremento na vida sexual, asso-
ciados à transgressão à norma, à rejeição aos papéis predeterminados e à
vivência de novas experiências – comuns na juventude, parecem propiciar
a experimentação de práticas bissexuais.

Sexualidades Femininas e Prazer Sexual 113


16. Das 267 mulheres autodeclaradas solteiras, 136 já tinha vivido marital-
mente, o que vai ao encontro da afirmação de Bozon (2004) de que, duran-
te as últimas décadas, o desejo de viver junto não diminuiu, mas ocorreu
um enfraquecimento na organização institucional do casamento.
17. Parece haver uma resistência em repetir os padrões dos casais heterosse-
xuais, para as mulheres com relato de prática homossexual, na medida em
que a vida em conjugalidade ocorre apenas para uma minoria.
18. Independentemente da prática sexual relatada, existe uma distância entre
as orientações da religião, os desejos e os novos paradigmas construídos
em relação à sexualidade.
19. A prática homoerótica aumenta a prevalência do relato de ausência de
religião. Por não encontrar espaço para diversidade sexual nas doutrinas
religiosas, as mulheres homossexuais acabam optando pelo abandono da
religião.
20. Para todas as mulheres deste estudo, a prática sexual dissonante dos pre-
ceitos religiosos é fonte geradora de tensão, de sentimento de culpa e de
conflitos intrapsíquicos.
21. Existe uma tendência a existir maior problema na vivência da sexualidade
nas mulheres do grupo 1, apesar de as dificuldades na vivência da sexuali-
dade também aparecerem nas mulheres dos outros grupos em menor grau,
o que leva a pensar que outros componentes interferem na qualidade da
vida sexual.
22. A conjugalidade torna a vida sexual ruim ou razoável para a maioria das
mulheres com prática heterossexual ou homossexual.
23. Os maiores problemas de comunicação sexual foram manifestados no gru-
po 1, o que significa dizer que, na prática homoerótica, as mulheres se sen-
tem com maior abertura para verbalizar seus desejos/necessidades sexuais.
24. As mulheres ainda sentem necessidade de dar uma resposta social – mais
do que a si mesmas – no exercício da sua sexualidade, uma vez que priori-
zam as expectativas construídas em relação ao gênero e não uma resposta
às suas necessidades sexuais.

114 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


25. O casamento parece inibir a iniciativa sexual das mulheres uma vez que
– ainda que restrita – esta resposta apareceu mais frequentemente nos re-
latos das solteiras.
26. As mulheres do grupo 3 tomam mais a iniciativa sexual do que as mulheres
do grupo 1.
27. As assimetrias de gênero tenderam a ser menos referidas pelas mulheres
das camadas sociais mais altas, uma vez que as mulheres cuja renda fami-
liar era inferior ou igual a um salário mínimo foram as que mais relataram
que a iniciativa é sempre masculina, enquanto aquelas dos segmentos mais
altos referiram que a iniciativa sexual é frequentemente masculina.
28. Existe um conflito entre o script sexual e o desejo das mulheres do grupo
1, uma vez que, em todas as falas, a hegemonia da penetração vaginal e a
necessidade de estimulação clitoriana e de maior tempo de preliminares
foram marcantes.
29. Devido às assimetrias de gênero e à visão da sexualidade como domínio do
masculino, as “preliminares” tendem a ser mais curtas ou por vezes inexis-
tentes na prática heterossexual.
30. O parceiro ou parceira, na conjugalidade, tende a ser visto como algo con-
quistado e que precisa estar sempre disponível para a atividade sexual, o
que leva a uma tendência de diminuição do tempo para as “preliminares”
na conjugalidade.
31. A conjugalidade heterossexual faz com que as mulheres abdiquem da prá-
tica masturbatória, diferentemente da conjugalidade homossexual, em que
essa prática continua sendo praticada. Tal fato leva à inferência de que as
mulheres do grupo 3 revelaram uma tendência a ter uma visão mais in-
dividualista, na medida em que não concebem a atividade sexual como
inerente somente ao casal, permitindo-se viver experiências sexuais que
percebem como uma liberação propiciadora de individuação.
32. Tanto as mulheres do grupo 1 como as do grupo 2 e 3 buscam sentir um
padrão de orgasmo estereotipado pela mídia e se esquecem de “ouvir” seu
próprio corpo. Nos três grupos houve uma ocorrência significativa de mu-
lheres, solteiras ou casadas, que descreviam sensações compatíveis com

Sexualidades Femininas e Prazer Sexual 115


orgasmo, mas não o identificavam como tal, uma vez que suas sensações
não correspondiam às estereotipadas pela mídia.
33. O orgasmo vaginal é percebido e perseguido como signo de normalidade
pelas mulheres com relato de prática heterossexual e bissexual.
34. As mulheres não têm orgasmo somente com a penetração vaginal uma vez
que, independentemente da prática sexual relatada, elas afirmam precisar
da estimulação direta ou indireta do clitóris para o alcance do orgasmo.
35. As mulheres deste estudo tendem a colocar seu orgasmo e sua sexualidade
“na mão do outro” e parecem não se apropriar do próprio corpo ou mesmo
acreditarem que têm capacidade para obter o orgasmo sozinhas.
36. Dentre as mulheres do grupo 1, que procuraram a consulta com queixa
de baixa libido ou ausência de orgasmo, a maioria tinha, de acordo com
os relatos, parceiros homens que não se dedicavam às preliminares, não
respeitavam (na maioria das vezes por desconhecimento) o tempo de exci-
tação da mulher, ou que encerravam o ato sexual concomitantemente com
sua ejaculação.
37. As mulheres tendem a se sentirem fora da “normalidade” por não corres-
ponderem às “normas” prescritas pelo discurso da sexualidade.
38. As mulheres dos grupos 2 e 3 não se veem como patológicas, mas se sen-
tem incomodadas com os estigmas sociais referentes à homossexualidade.
39. As mulheres do grupo 1, muito mais do que as do grupo 2, acreditam que a
mulher sexualmente deva ser passiva. Nas mulheres com relato de prática
homossexual, essa crença inexiste.
40. As mulheres do grupo 3 e uma parcela do grupo 2, não acreditam que a
mulher precise de homem para se satisfazer sexualmente, crença esta pre-
sente na maioria das mulheres do grupo 1.
41. A obrigatoriedade do orgasmo na atividade sexual está presente no imagi-
nário das mulheres, independentemente da prática sexual relatada.
42. Tanto as mulheres do grupo 1 quanto as do grupo 2 e 3 acreditam que a
juventude e um corpo perfeito favorecem a vida sexual satisfatória.

116 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


43. Com maior frequência para as mulheres com relato de prática homossexual,
o sistema classificatório, no que diz respeito às práticas sexuais, não faz
sentido, mas sim o prazer, o gozo e a vivência satisfatória da sua sexualidade.
44. As mulheres vivenciam as contradições existentes entre as informações
que recebem, as comparações que escutam, os mitos que circulam, as re-
presentações que assumem como verdadeiras, a reprodução de conceitos e
os valores e as angústias do exercício sexual quando elas não têm atendidas
suas necessidades sexuais concretamente sentidas e desejadas.
45. A ação do gênero agrega-se à do meio social, modulando normas, repre-
sentações e práticas da sexualidade.

Considerações Finais

Apesar dos movimentos de avanços e dos recuos na história da humanida-


de que nos permitiram chegar ao século XXI em uma condição emancipatória
possibilitando (re) discutir e rever, entre muitas demandas humanas, a condição
da sexualidade, o presente estudo sugere que o exercício da sexualidade pelas
mulheres, independentemente da prática sexual vivenciada, ainda é permeado
por conflitos originados nas questões relativas às construções de gênero, à iden-
tidade, à sua visão heteronormativa e à falta de conhecimento sobre o corpo.
Esse cenário se reflete, de diferentes maneiras e em diferentes graus, no
comportamento sexual-erótico das mulheres, pois como afirmam Heilborn e
Cabral (2006, p. 361):

Reconhecer mudanças no modo de abordar a sexualidade que caracteri-


za a sociedade ocidental contemporânea não implica endossar a idéia de
uma total transformação nos padrões de comportamento e, sobretudo, nas
relações entre sexualidade e gênero e na assimetria que elas comportam.
Embora uma atenção crescente em torno da sexualidade tenha se presen-
tificado, isso tampouco significa que vigore um livre exercício da atividade
sexual. Ela está sempre condicionada por constrangimentos e demarcações
sociais e culturais.

De fato, ao longo deste trabalho, os relatos evidenciaram quanto a criação


da norma institucional do coito regular levou (e continua levando) os corpos

Sexualidades Femininas e Prazer Sexual 117


femininos a serem delimitados em suas práticas sexuais, por meio de ritos de
iniciação e de interdições, definindo sua mobilidade, suas preferências e a ero-
tização em torno do masculino. Diante de tantos argumentos morais e pseu-
docientíficos, muitas mulheres acabam achando que existe algo de errado com
elas, pois faz pouco tempo que, no ocidente, começou-se a tomar consciência e a
divulgar não haver nenhuma razão – a não ser as artificialmente impostas, tanto
pelos estudos científicos como pelo senso comum, para que a mulher não viva
sua sexualidade com intensidade, prazer e liberdade.
Em relação ao gênero foi visto que a heterossexualidade compulsória pas-
sou a ser encarada como regra universal, determinando a integração social nos
papéis de masculino e feminino. Tal hegemonia da heterossexualidade reduziu
a quase zero os limites de tolerância para práticas sexuais diversas. Nessa diver-
sidade de práticas sexuais, estão inscritos aqueles considerados como homosse-
xuais, por não se adequarem a um mundo onde o “normal, natural” é a polariza-
ção das relações no binarismo da oposição macho/fêmea, homem/mulher.
As mulheres com relatos de prática bissexual admitiram que se relacio-
navam com parceiros sexuais do sexo oposto (namorados), mas mantinham
simultaneamente,práticas sexuais com mulheres. Nenhuma delas se considerou
homossexual. Seriam elas homossexuais, lésbicas? Que identidade lhes conferir?
Ao longo da fundamentação teórica foi visto que a taxonomia – a classifi-
cação – decorre de nosso hábito de categorizar os seres e que o lesbianismo não
pode constituir uma identidade, pois essa denominação representa apenas um
amálgama de questões, que pode inclusive mudar de acordo com a cultura.
Portanto, pode-se dizer que a falta de identificação dessas mulheres
com a homossexualidade feminina, a despeito de sua prática sexual com mu-
lheres, faz parte da liberdade individual e da diversidade sexual humana, que
aponta para um novo caminho, livre de definições, pois, como afirma Swain
(2000, p. 68 e 86):

Não há UMA sexualidade lesbiana, pois não há modelo a ser seguido, não
há uma receita, não há mistérios; pressente-se uma busca e um conheci-
mento do próprio corpo que é utilizado no prazer de outrem e de si mesmo
e afirma: em uma nova configuração, os sexos seriam embaralhados e con-
fundidos e eis que surgem pessoas no lugar do gênero binário.

118 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


O depoimento de Jade, 19 anos, uma das mulheres atendidas, ilustra essa
nova perspectiva: “[...] já foi o tempo de papai e mamãe, hoje cada um faz o que
quer com a sua sexualidade, sem necessidade de rotular as pessoas, classificando-as
nisso ou naquilo, afinal o que importa é cada um ser feliz sem machucar os outros”.
No decorrer da reflexividade aqui empreendida, percebeu-se que ao se ins-
titucionalizar o sexo e sua vivência, normatizando-o, obscureceu-se o seu poten-
cial por meioda dialética opressora que associou o sexo não reprodutivo ao pra-
zer, ao pecado e ao erotismo, negando o gozo sexual como valioso instrumento
para se viver melhor.
As falas das mulheres indicam que elas ainda têm dificuldade em se comu-
nicar sobre a sexualidade, na medida em que internalizaram os (pré) conceitos
de “boa moça” que incluem modelos de feminilidade e papéis sexuais reconhe-
cidos em nossa cultura como de passividade e respeito ao desejo masculino.
Essa é, numa percepção, a gênese da maioria dos “problemas sexuais” por elas
vivenciados.
Na busca da solução de seus problemas, algumas, conforme pode ser veri-
ficado neste estudo, procuram ajuda de profissionais especializados.
Aqui pretende-se fazer uma reflexão. Do ponto de vista pragmático, um
dos objetivos da ciência é melhorar a qualidade de vida do ser humano. Nessa
perspectiva, as teorias sobre a sexualidade, sejam elas oriundas da sexologia, da
biomedicina ou das ciências sociais, precisam responder às demandas das pes-
soas que vivenciam problemas na sua sexualidade e, para tanto, buscam ajuda
por meio de atendimento nessa área, o qual é oferecido pela sexologia.
A revisão de literatura apontou que o uso do modelo de Masters e Johnson
é hegemônico no campo da sexologia e da maior parte das terapias sexuais.Nes-
te estudo, foram busca das contribuições do campo das ciências humanas para
tentar compreender, sob um novo ângulo, as representações e as vivências das
mulheres atendidas.
Considera-se, a partir dos dados encontrados, que ao mesmo tempo em
que existe a necessidade de profissionais capacitados para esse atendimento, há
também a necessidade de profissionais que se dediquem a pensar essa prática,
portanto, a sexologia e as ciências sociais não são excludentes, e sim ciências

Sexualidades Femininas e Prazer Sexual 119


distintas, que devem, em um trabalho interdisciplinar, comungar do objetivo de
pensar e de melhorar a qualidade do viver humano.
Uma possibilidade aqui apontada, no caso específico do atendimento em
sexualidade, é a utilização dos achados fisiológicos de Masters e Johnson sobre
a resposta sexual, sem levar em consideração os números, os dados estatísticos,
os conceitos de normalidade e outros “modelos” subliminares encontrados nas
obras desses autores.
Ao se inspirar nesse modelo, percebe-se também que, apesar dos limites
peculiares aos modelos em geral, as clientes relatavam melhoras na vivência da
sexualidade quando esclarecidas sobre a fisiologia da resposta sexual humana,
confrontadas com seus mitos, tabus, representações e paradigmas sobre sexua-
lidade da mulher, respeitadas as suas individualidade diante dos contextos de
cultura, gênero, identidade, diversidade, entre outros. Esse fato aponta para a
importância dos componentes biológicos da sexualidade. Ao abandonar os as-
pectos biológicos, incorre-se no erro do determinismo cultural. Ressalta-se que
nem o determinismo biológico nem tampouco o cultural são adequados para os
estudos da sexualidade, uma vez que, como já citado, os aspectos biológicos da
sexualidade e a cultura não se excluem mutuamente, nem são independentes.
São, pelo contrário, inter-relacionados e interdependentes.
Há de se destacar ainda que ao mesmo tempo em que a sexualidade se
tornou alicerce de um relacionamento, e não mais seu subproduto, como afirma
Bozon (2003), isso não se traduziu em uma revolução nas relações de gênero que
modificasse radicalmente os lugares de cada um. Sendo assim,

[...] a ambigüidade da sexualidade entre os pares deriva de que ela é exer-


cida por homens e mulheres com interpretações distintas, cujos cenários
são progressivamente construídos no curso da socialização, a partir de ex-
periências biográficas socialmente estruturadas. (BOZON, 2003, p. 155)

Para Bozon (2003, p, 153):

A auto-elaboração dos atores produz um sistema de gênero tão rígido


como as injunções e controles sociais antigos. [...] As experiências sexuais
dos indivíduos no mundo contemporâneo continuam a ser estruturadas
por pares de oposição em tensão permanente. À busca pela continuidade

120 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


na relação entre dois parceiros, opõe-se à exigência da espontaneidade
do desejo.

Sublinha-se ainda que, quase meio século depois dos anos 60 do século
XX, reconhecidos pelos movimentos de libertação sexual (e social) das mulhe-
res e dos homossexuais, observa-se, nos relatos das mulheres atendidas, que não
houve mudanças significativas na afirmação da sua individualidade sexual, dos
seus gostos e preferências eróticas.
As falas aqui apresentadas mostram que as mulheres acabaram prisionei-
ras de outros dogmas que ainda ditam a sua conduta moral. No olhar delas, os
homens, direta ou indiretamente, ainda exercem muito controle sobre a sua se-
xualidade e conduta. As falas aqui apresentadas mostram que os clichês sexuais
continuam a ser predominantemente masculinos e arcaicos e que as mulheres
estão presas a scripts sexuais marcados por modelos de pecado e de vergonha.
Muitas vezes, ela se veem à mercê dos scripts masculinos, estes também marca-
dos pela ambiguidade entre discursos progressistas de liberação sexual de ho-
mens e mulheres, e os modelos tradicionais, vinculados a noções como passivi-
dade feminina e atividade masculina.
Esse quadro, tal como foi relatado pelas mulheres do estudo, parece se
agravar após o casamento, pois, segundo elas, ao se casarem tendem a “abafar”
toda a sua sensualidade para vestir o papel de “esposa”. Nesse cenário é compre-
ensível que, apesar da elevação do nível de instrução, da inserção no mercado
de trabalho, da modificação nas condições de existência e da maior facilidade
de acesso à informação, que aumentaram a autonomia da mulher em relação
aos homens, a troca sexual entre homens e mulheres parece não ter sofrido uma
revolução significativa, perdurando as assimetrias de gênero.
Ressalta-se, porém, que as mulheres casadas ou com parceiro fixo busca-
ram atendimento na tentativa de melhora da vida sexual do casal – o que equi-
vale a dizer que assumem a responsabilidade na busca da resolução das tensões
vivenciadas a dois. Mesmo que tenham se mostrado passivas e colocando sua
sexualidade na mão do outro, muitas vezes buscando resolutividade longe de
si, é preciso considerar que, ao buscar ajuda, elas fizeram um movimento que
pressupõe agência e tomada de consciência da importância desse aspecto em
suas vidas.

Sexualidades Femininas e Prazer Sexual 121


Ao desvelar as imbricações históricas que levaram à construção das assi-
metrias de gênero, a revisão da literatura propiciou a percepção da construção da
norma social de um duplo padrão sexual que institui comportamentos sexuais
apropriados para homens e mulheres e tendem a julgar negativamente aqueles
que contrariam o padrão normativo. Na cultura ocidental, esse duplo padrão
sexual encerra a maior permissividade sexual do comportamento masculino em
relação à mulher. Da mesma forma, a homossexualidade feminina é silenciada,
apesar dos relatos desta pesquisa apontarem para maior liberação das mulheres
que declaravam práticas bissexuais e homoeróticas.
Acredita-se que o presente estudo “deu voz” às mulheres na medida em
que procurou publicizar e analisar suas percepções e sentimentos em relação à
vivência da sexualidade. Acredita-se ainda que o estudo evidenciou a necessida-
de de as pessoas, neste início de novo milênio, estarem receptivas para a diversi-
dade de, parafraseando Swain (2000, p. 88) “[...] experiências singulares de um
ser-mulher-no-mundo”, com identidades múltiplas que viriam a construir uma
nova ordem sexual”.
Utopia?
Costa (1992, p. 38) aponta uma possibilidade, quando afirma que:

Não podemos mudar nossos padrões sexuais por decisão de um ou de mui-


tos, assim como não podemos “desaprender” a língua em que aprendemos
a falar. Mas se não podemos ‘desaprender’ nossas linguagens e sexualidades
maternas e paternas, podemos aprender outras línguas.

Ao concluir, salienta-se que todas as análises e reflexões aqui elabora-


das, a partir dos relatos das mulheres, só podem ser válidas no contexto em
que ocorreram. Mudado o contexto, também podem mudar as frequências de
comportamento e as práticas sexuais analisadas. Por isso mesmo, como explica
Canguilhem (1978), nenhum valor deve derivar das frequências dos comporta-
mentos aqui relatados.
Importante também dizer que, mesmo que os saberes sobre a sexualidade
sejam passíveis de generalização, as questões a ela pertinentes, para cada sujeito,
em seus desejos e satisfações, em seus conflitos e incertezas, terão sempre refe-
renciais analíticos individuais, na medida em que – como condição precípua do
ser humano, ela se faz plural e única na pertença de indivíduo.

122 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


Por último, julga-se importante salientar que este texto representa o re-
sumo de uma tese de doutorado e que pela limitação de páginas não foi possí-
vel apresentar todo o processo de reflexividade que compõe o original, no qual
dialogou-se principalmente com autores das ciências sociais como: Michel Fou-
cault; Thomas Laqueur; André Béjin; Michel Bozón; Peter Berger; Pierre Bour-
dieu; Judith Butler; Georges Canguilhem; Boaventura de Souza Santos; Sérgio
Carrara e Jane Russo; Marilena Chaui; Jurandir Freire Costa; Jules Falquet; Jane
Flax; Peter Fry e Edward MacRae; John Gagnon e William Simon; Anthony Gi-
ddens; Erving Goffman; René Grémaux; Sandra Harding; Maria Luiza Heilborn;
Daniela Knauth; Guacira Lopes Louro; Lia Zanotta Machado; Margareth Mead;
Luiz Mott; Linda Nicholson; Sherry Ortner; Richard Parker; Denise Portinari;
Fabíola Rohden; Joan Scott; Bila Sorj; Tania Navarro Swain; Miriam Grossi; Ca-
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Sexualidades Femininas e Prazer Sexual 125


Diversidade Sexual e Atenção
à Saúde: os dilemas de um campo
em (perpétua) (des)construção

Marcelo Viera
Rodrigo Otávio Moretti-Pires

Introdução

O presente texto busca analisar as construções sociais sobre diversidade


sexual no campo da saúde, com a intenção de refletir sobre a abordagem desta
temática pelos profissionais da área da saúde e seus efeitos para as pessoas não
heterossexuais.
Na medida em que os serviços públicos de saúde são fundados sob o signo
da universalidade do acesso, irrestrito a todas as/os cidadãs/ãos brasileiras/os, é
de imensa relevância a discussão da diversidade sexual. Com base nas teorias que
versam sobre a heteronormatividade na sociedade contemporânea atual, uma vez
que a vivencia prática nos referidos serviços implica, por muitas vezes, na exclu-
são e na invisibilidade das “orientações” não heterossexuais, com experiências de
discriminação impetradas por profissionais responsáveis pela atenção à saúde das
pessoas, independentemente de sua orientação e identidade sexual.
Estudos desse fenômeno, em suas variadas formas de apresentação e sujei-
tos, têm figurado entre as pautas acadêmicas mais frequentes nas últimas déca-
das. Existe uma crescente preocupação direcionada, nacionalmente, à relevância

127
e aos impactos dessa temática nas condições de saúde da população. Mesmo
diante dos avanços, como a Política Nacional de Atenção Integral à População
LGBT, ainda persistem lacunas no entendimento de algumas questões concer-
nentes à saúde e seus contornos em relação à temática do gênero.
Para Ramos (2005), apesar de a temática vir ganhando visibilidade e se
consolidado nas pesquisas brasileiras, ainda há necessidade de maiores investi-
gações que se relacionem ao gênero e à sexualidade. Mott (2000) apresenta que
cotidianamente a mídia apresenta casos de violência que, implícita ou explicita-
mente, têm como pano de fundo as dinâmicas da sociedade frente às orientações
sexuais não binárias, a saber, as Lésbicas, os Gays, as/os bissexuais, as/os traves-
tis e as/os transexuais.
Na concepção de Prado e Machado (2012), as universidades ainda apresen-
tam posições mais ou menos conservadoras em relação às orientações sexuais e
a identidades não binárias, justamente porque se trata de uma questão de teor
político importante, em que existe falta de consenso em termos epistemológicos,
o que se reflete no modelo e nos conteúdos de ensino, assim como na formação
dos futuros profissionais.

Diversidade Sexual e Gênero

Segundo Giddens (1993), nas últimas décadas do século XX ocorreram


grandes transformações na ordem social e na intimidade dos indivíduos na so-
ciedade ocidental, particularmente nos questionamentos recorrentes em relação
às normas sociais, às políticas, o que é de domínio público, e ao âmbito privado
da autoidentidade, da identidade sexual (e de gênero) e ao controle exercido
pelo social frente a essas questões íntimas. Para esse autor, as disputas na temáti-
ca de gênero encaminham ao entendimento de que se trata de “[...] algo que cada
um de nós ‘tem’, ou cultiva, não mais uma condição natural que um indivíduo
aceita como um estado de coisas preestabelecido” (GIDDENS, 1993, p. 25). Nes-
se sentido, há de se ressaltar a importância dos meios de comunicação de massa
para a construção das representações sociais da coletividade.
A diversidade sexual configura, portanto, um assunto emergente no trans-
curso das últimas décadas, com gradual ganho de espaço em meios distintos

128 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


da vida pública, política e com crescente apropriação pelo campo científico. No
entanto, notadamente entre as ciências sociais, recebeu maior e árduo empenho
intelectual em aprofundar noções, trazer à tona outras referências a sentidos e
discursos que constroem a diversidade, em face das situações vividas pelos gru-
pos, vistos como minorias, como formadores da diversidade e pela visibilidade
de suas lutas por direitos.
Para tratá-la, recorremos ao conceito de gênero, encarando-o como um
dos componentes do ser humano como membro de sua sociedade. Importante
legado dos estudos feministas (PEDRO, 2005) tem ganhado notoriedade e abor-
dagens variadas com multiplicidade de linhas epistemológicas.
Judith Butler (2001, 2003) afirma que os gêneros são constituídos como
o resultado de performances, ou seja, eles não têm existência em si, mas são
realidades construídas a partir de contextos que são naturalizados, processuais
e contingentes. A autora discorre sobre a insuficiência dos aspectos biológicos
para a constituição do “ser homem” e do “ser mulher”, defendendo que os gêne-
ros são construídos por meio de atos que são continuamente reiterados social-
mente; por exemplo, com a atribuição de nomes e de termos à materialidade de
características específicas do gênero, que constroem tecnologias e funcionamen-
tos para o corpo a partir dessas denominações. Nas palavras de Butler (2001,
p. 167), “A performatividade não é, assim, um ato singular, pois ela é sempre
uma reiteração de uma norma ou conjunto de normas”.
A partir da naturalização dos gêneros, construiu-se a ideia de que a perfor-
mance socialmente aceita é binária, ou seja, homem ou mulher, com parâmetros
instituídos por meio de uma relação de coerência e linha de continuidade de
ações unindo o sexo biológico ao gênero, à prática sexual e ao desejo, construin-
do e legitimando uma matriz heterossexual por meio de discursos (BUTLER,
2003, p. 38). O que escapa desse binarismo é adjeto e repreendido socialmente.
Segundo a autora,

[...] o gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural
de significado num sexo previamente dado [...]; tem de designar também o
aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabe-
lecidos. (BUTLER, 2003, p. 25).

Diversidade Sexual e atenção à Saúde 129


A Ontario Human Rights Comission (2014) define como conceitos-chave
para o entendimento da diversidade sexual o seguinte:
Identidade de gênero: é a experiência interna e individual de cada pes-
soa do sexo. É o seu sentido de ser uma mulher, um homem, ambos, nenhum
dos dois, ou em qualquer lugar ao longo do espectro de gênero. Identidade de
gênero de uma pessoa pode ser a mesma ou diferente de seu sexo atribuído ao
nascimento. A identidade de gênero é fundamentalmente diferente da orienta-
ção sexual de uma pessoa. (ONTARIO HUMAN RIGHTS COMISSION, 2014).
Expressão de gênero: é como uma pessoa apresenta publicamente o seu
gênero. Isso pode incluir comportamento e aparência externa, como vestido,
cabelo, make-up, a linguagem corporal e voz. Nome escolhido de uma pessoa e
pronome também são formas comuns de expressão de gênero. (ONTARIO HU-
MAN RIGHTS COMISSION, 2014).
Trans ou transexual: é um termo referindo-se a pessoas com diferentes
identidades de gênero e expressões que diferem das normas de gênero estereoti-
padas. Ele inclui, mas não está limitado a pessoas que se identificam como trans-
gênero, mulher trans (macho-fêmea), o homem trans (de mulher para homem),
transsexual, cross-dresser, sexo não-binários, variante de gênero ou gênero es-
tranho. (ONTARIO HUMAN RIGHTS COMISSION, 2014).
Discriminação: acontece quando uma pessoa experimenta tratamento ou
impacto negativo, intencional ou não, por causa da sua identidade ou expressão
de gênero. Ela pode ser direta e óbvia ou sutil e oculta, mas prejudicial da mesma
forma. Também pode acontecer em um nível sistêmico maior, como regras ou
políticas que parecem neutras, mas acabam por excluir as pessoas trans organi-
zacionais. Amigos, familiares ou outros que enfrentam discriminação por causa
de sua associação com uma pessoa trans também estão protegidos. (ONTARIO
HUMAN RIGHTS COMISSION, 2014).
Preconceito: é uma forma de discriminação. Pode incluir comentários se-
xualmente explícitos ou outros inapropriados, perguntas, piadas, xingamentos,
imagens, e-mail e mídias sociais, os transexuais, bullying, homofóbico ou outro,
avanços sexuais, tocar e outro comportamento indesejável e contínuo que in-
sulta, rebaixa, prejudica ou ameaça uma pessoa, de alguma forma. Assalto ou

130 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


outro comportamento violento é também uma questão criminal. Pessoas trans
e outras pessoas podem experimentar comportamento de preconceito devido à
sua identidade ou expressão de transgênero (assédio com base no gênero) e/ou o
seu sexo (assédio sexual). (ONTARIO HUMAN RIGHTS COMISSION, 2014).

Preconceito de Gênero

Para Rubin (1984), os sistemas sociais criam hierarquização de valores, re-


produzidas nas práticas sociais compartilhadas, sendo que a sexualidade é cen-
tral na constituição social dessas hierarquias, que retratam posições de inferio-
ridade ou subalternização dentro do que o autor chama de hierarquias sexuais.
Essas hierarquias promovem diversos preconceitos, que, particularmente na
questão de gênero, resultarão em manifestações diversas contra todas as cate-
gorias não heterossexuais, uma vez que se trata de uma disputa por hegemonia
(PRADO; MACHADO, 2012).
O preconceito se traduzirá em atos violentos, segundo Nascimento et al.
(2010), sendo concebido como o “[...] juízo preconcebido de algo ou alguém,
com base em estereótipos. Predispõe a determinadas atitudes em relação ao ob-
jeto do preconceito, que pode ou não se manifestar na forma de discriminação
[...]” (JESUS, 2012) e que são “[...] ideias preconcebidas sobre um indivíduo ou
grupo, ideias que são resistentes à mudança, mesmo ante novas informações
[...]” (GIDDENS, 2012, p. 801).
Entende-se ainda o preconceito, seguindo também uma perspectiva sim-
bólica, como a internalização das leis da sociedade em cada indivíduo, o que
explica motivação dos atos de discriminação e que se pode identificar, no que
Vasconcellos (2002), reportando-se aos conceitos de Bourdieu, enquadra no
conceito de habitus. Este último é constituído pelo acúmulo de bens simbólicos
que se inscrevem nas estruturas do pensamento (também do corpo). Por ele se
elaboram as trajetórias e assegura-se a reprodução social.
Seguindo esse raciocínio, em Warner (2000), é possível ver que o precon-
ceito nasce “pré” ao preconceituoso, não importa o julgado, ainda que o conhe-
ça, o que sucede é a famigerada “aceitação” daqueles alvos de preconceito em

Diversidade Sexual e atenção à Saúde 131


detrimento da desconstrução deste. A desconstrução que se imprime é a da
identidade (e demais características) do julgado, a ponto de se tornarem invisí-
veis os atributos desviantes que o discriminam.
Discutindo essa temática, o autor enfatiza a questão da repressão pelo
modo como a cultura governa as pessoas desde a vida sexual, com domínio so-
bre a mais profunda intimidade de cada ser e discorre sobre a negatividade que
envolve o sexo em nossa sociedade controlando a vida privada das pessoas, sem
que se possa ao menos suspeitar do impacto sobre aqueles de sexualidade des-
viante. A influência das questões políticas construindo a vida íntima dos indiví-
duos também é demonstrada no que Warner chama de “política da vergonha”.
Em decorrência dela, alguns indivíduos correm maior risco de sofrerem
determinadas sanções sociais baseadas conforme as práticas sexuais, se encaixa-
das dentre aquelas classificadas como normais ou não. Assim, segundo o “mora-
lismo”, este entendido como a visão do que é certo para o discurso dominante, o
sexo “normal” é um dos elementos que mantém o status quo, ao classificar como
vergonhoso aquele que difere dele e a determinar quem é passível de ter vergo-
nha merecida na sociedade (WARNER, 2000).
A forma de preconceito aqui enfatizada e suas decorrências de cunho vio-
lento, para sua concretização, “sinalizam” os indivíduos desviantes da norma
materializada em estereótipos, “[...] imagem fixa e preconcebida acerca de algo
ou alguém. É o fundamento das crenças e dos preconceitos” (JESUS, 2012). Des-
se modo, as pessoas marcadas com “selos da vergonha” não são tratadas confor-
me o que realmente são, mas segundo classificações estereotipadas e reduzidas
de suas dimensões humanas.
Acredita-se neste momento que tal tratamento para com os desviantes
emerge diante do que seria uma qualidade da própria sociedade que cria esses
padrões, qualidade que a torna reduzida por abstrair as dimensões do ser hu-
mano que não sejam proveitosas à manutenção das relações sociais e de poder
vigentes. Portanto, Ferreira (2013) traz esta reflexão:

[...] não é o ato sexual “pervertido” ou “imoral” em si, que perturba a socie-
dade, mas o modo de vida de cada um, que não pode ser múltiplo e cria-
tivo, porque é limitado e restrito. Esse limite às várias formas possíveis de

132 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


relacionamento interpessoal foi engendrado no seio das instituições sociais
porque um mundo relacional mais rico seria mais difícil de administrar.

Com este olhar, esse preconceito materializa-se em homofobia, no

[...] medo ou ódio com relação a lésbicas, gays, bissexuais e, em alguns


casos, a travestis, transexuais e intersexuais, fundamentado na percepção,
correta ou não, que alguém vivencia uma orientação sexual não heterosse-
xual. (JESUS, 2012).

A discriminação se expressa em “[...] atitudes negativas e contextualizadas,


locais e situadas, porém goza de certa cumplicidade social e de certo eco em
determinados grupos sociais” (GOMEZ, 2008, p. 91). Sujeitos de identidade não
heterossexual que transparecem características de gênero incongruentes com o
sexo ao nascer, a depender do grau de inconformidade, são mais atingidos por
violência e discriminação (CARRARA; VIANNA, 2006).

Preconceito e Desdobramentos nas Abordagens de Saúde

As implicações do conhecimento dos profissionais em termos de como


percebem e categorizam as pessoas são fundamentais na definição de como e
qual atendimento de saúde prestam aos seus pacientes, conforme defendido por
Davy (2011).
Para a autora, existem dimensões que extrapolam a agência do paciente,
particularmente veiculada ao que a estrutura médico-legal permite ou não per-
mite em termos de procedimentos de saúde e, nesse panorama, a formação mé-
dica está diretamente implicada, uma vez que, em caráter finalístico, os profis-
sionais médicos determinarão quais são as possibilidades ou não dos pacientes
(DAVY, 2011). Nesse sentido, a autora argumenta que os cursos de medicina
são baseados em um conhecimento dos seres humanos em categorias binárias
e heteronormativas, de forma que, ao abordar as/os pacientes, toda diversidade
dessa categorização é considerada desvio e, portanto, doença já que não se ade-
quam aos modelos de saúde em termos de sexualidade.
Um exemplo dessa mesma perspectiva já foi apontado por Hird (2003),
quando ele apresentou historicamente como a Medicina definiu a homossexuali-
dade como doença, com implicações para a vida de pacientes não heterossexuais,

Diversidade Sexual e atenção à Saúde 133


apresentando ainda as mudanças nas classificações da homossexualidade como
doenças entre as versões do Diagnostic and Statistical Manual (DSM) da Ame-
rican Psychiatric, até a supressão das identidades gays e lésbicas do Manual de
Diagnósticos, mas com a preservação dos travestis e transexuais no capítulo de
disforia de gênero.
Segundo Ansarae Hegarty (2014), ao assumir que todas as pessoas obede-
cem à determinada classificação binária, entre homens e mulheres, acontece a
normalização de papéis e funcionamentos sociais que se traduzirão nas práticas
de saúde e, ao se constituírem como profissionais médicos a partir dessas classes
de indivíduos, além da desconsideração de outras modalidades de orientação
sexual como saudáveis, são promovidos esforços para a adequação do desviante
ao “normal”, ou seja, um homem ou uma mulher heterossexual.
As consequências dessa perspectiva de preconceitos que orientam a avalia-
ção, o diagnóstico e a intervenção médicas são amplas e devem ser explicitadas
para uma reorientação da sua formação, numa perspectiva em que as pessoas
não sejam discriminadas e tenham tratamentos adequados, independentemen-
te de serem heterossexuais ou não heterossexuais (ORGANIZAÇÃO DAS NA-
ÇÕES UNIDAS, 2012).
Segundo Davy (2011), os conhecimentos em saúde são frutos de uma
construção histórica das categorias sexuais e de gênero, referendando os estu-
dos de Foucault, Laqueur, Freud e Tijsseling, para os quais o desenvolvimento
dos conceitos médicos sobre a sexualidade (tal como construídos por sexólogos)
formam a base de como o médico e a saúde partem da ideia de que os cuidados
fundamentam-se na concretização da medicalização, quando o indivíduo não se
enquadra na lógica binária.
Na perspectiva da autora, a ideia de sexualidade e suas conexões com o
gênero têm uma “história” e seu estudo é inevitável para a compreensão das
abordagens médicas da sexualidade. As noções contemporâneas em torno dos
corpos transexuais, inclusive de estruturas cerebrais, vêm questionar o biologi-
cismo aplicado nesta abordagem biomédica tradicional.
Nesse panorama há de se defender que as intervenções em saúde rom-
pam com o modelo prescritor de condutas, especialmente no que se refere ao

134 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


sexo, permitindo que as pessoas vivam no gênero que melhor lhes aprouver.
Baseando-se em discursos de direitos humanos, há que se primar pela despa-
tologização das identidadades não binárias e abordagens que primem pela sua
desconstrução.

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Diversidade Sexual e atenção à Saúde 137


Sexualidades, Estatísticas
e Normalidade (Entrevista)1

Transcrição de Olga Regina Zigelli Garcia

Professor Tito você poderia nos falar como surgiu o tema do


livro? Qual a sua ideia central?

Esse livro foi gestado quando eu estava fazendo o curso de especialização em


educação sexual, em 1996 para 97, e na ocasião, inclusive eu fui aluno da profa.
Sonia Melo, eu fiz um estudo sobre as enciclopédias sexuais que foram publica-
das na década de 70 e 80. E no meu estudo, naquela ocasião, eu percebi muitos
aportes com referência a três estudos em especial: um ao Alfred Kinsey, que na
década de 40 fez uma pesquisa com sexualidade humana, o outro foi ao casal
William Masters e Virgínia Johnson que na década de 60 fez uma pesquisa em
contraponto à do Kinsey – uma pesquisa de cunho mais fisiológico, biológico,
médico. E a terceira referência, que se percebia muito nessas enciclopédias, guias
e manuais de sexo, foi à Shere Hite, que na década de 70 também publicou dois
livros falando sobre o comportamento sexual masculino e feminino. Essas três
publicações me causaram uma curiosidade que procurei aprofundar na minha
dissertação de mestrado e culminou com o doutorado, no qual especificamente
pesquisei os livros desses autores/as. Foram objeto de estudo os livros e neles

1
  Entrevista concedida por Tito Sena em 1º de agosto de 2014 ao Programa Educação Sexual em Debate
rádio UDESC, para professora Gabriela de Carvalho.

139
a presença que me saltou aos olhos foi a das estatísticas como ferramenta para
legitimar aquelas conclusões que estavam sendo apresentadas. Essas estatísticas
foram quase uma constante em todas as três publicações, ao longo do século
XX, e não somente esse uso da estatística, como também a forma como ela era
apresentada em comentários sobre os valores, índices, percentuais. Então, em
síntese, eu procurei verificar como essas enquetes sobre as sexualidades e as prá-
ticas sexuais passaram a ser divulgadas como científicas, usando no caso, o apa-
rato estatístico para legitimar as conclusões e os comentários. Com isso, a mi-
nha tese, pode-se afirmar, é justamente sobre quanto os padrões de normalidade
passaram a ser interpretados a partir dos números, como denominadores de
práticas anormais, normais, pouco normais. Na minha tese eu apontei, e o livro
procura trazer esses elementos, quanto as pessoas se apropriam dessas estatísti-
cas e de alguma maneira nelas se enquadram.

Falando nas estatísticas e normalidades. Você poderia falar


um pouquinho de alguma dessas normalidades?

Por exemplo: é muito comum e ainda contemporaneamente não há semana que


não tenha uma estatística sendo divulgada, o IBGE, o nosso Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística só para dar alguns exemplos. Vamos supor que em
uma leitura, você verifique que em uma enquete, pesquisa, em um estudo pu-
blicado pela Folha (jornal), por uma revista, em um semanário, enfim, aparece
uma pesquisa dizendo que 80% dos homens casados, brasileiros, são infiéis, tra-
em as esposas. Qualquer percentual. Vamos supor que em contraponto a esse
dado, diz-se que apenas 30% das mulheres são infiéis. Então aquele homem que
“apronta”, está dentro dos 80%, é considerado normal, pois todo mundo apronta.
Ele é normal porque estar dentro dos 80%, é maioria. Então ele toma essa leitura
do valor como enquadradora, porque ele se enquadra como normal. E aquele
que faz parte dos 20%, do ponto de vista matemático e estatístico, não é normal.
Outro exemplo banal. Eu não tenho facebook. Mas se você disser que 95% das
pessoas têm facebook, estatisticamente eu seria um anormal, porque eu não es-
taria dentro da curva da normalidade que se apregoa. E nós temos uma ânsia,
parece que nossa sociedade pega essa tradição muito estadunidense, de se atrelar
a números. Números não mentem! Mas eles enganam, podem remeter a certas

140 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


interpretações extremamente equivocadas. Então o que o livro procura trazer é
justamente como o ser humano se apropria de uma leitura, de um percentual.
E quero deixar bem claro que eu não critico a estatística descritiva. Aquela que
faz o levantamento, por exemplo, de número de jovens que não usam camisinha,
de garotas que não fazem uso de mecanismos de prevenção, eu não critico este
trabalho estatístico descritivo. Eu critico a estatística inferencial que é essa que
procura generalizar um comportamento a partir de uma amostra, que por si só
é limitada, pode ser parcial, restrita. Então, a forma como eu apresento a crítica
no livro é no sentido de que essas estatísticas,de alguma maneira remetem a uma
classificação, dentro de uma lógica binária: ou é normal ou anormal, ou é certo
ou verdadeiro. Nos livros que eu pesquisei, trazia-se, por exemplo, que 70% das
pessoas têm sonhos eróticos. Então um leigo, as pessoas que lêem, porque fo-
ram publicações divulgadas no mundo inteiro, são reconhecidas cientificamen-
te, mas utilizam uma ferramenta que deve ser utilizada com muito critério, com
muito cuidado, pois nem sempre um leitor pega esse dado, esse percentual e faz
uma leitura cautelosa de que é um dado que não pode ser generalizado, que é um
dado circunscrito. Por exemplo, temos o hábito de pegar às vezes determinadas
estatísticas do século passado ou da década passada e fazer uma análise trans-
-histórica, anacrônica. No livro, eu procuro trazer esses elementos. Eu trago a
história da estatística, como ela se constituiu. Também trago como se formu-
lou o conceito de normal e de anormal, colado ao que é patológico. Então, em
síntese, o que eu procuro apontar no trabalho, modestamente, é esse uso quase
que obsessivo, exagerado da estatística, como se ela desse conta de confirmar as
enquetes, os levantamentos e as pesquisas.

São muito constantes nos meios de comunicação as


pesquisas baseadas em dados. No caso que você falou do
discurso estabelecido por meio da estatística em relação
à infidelidade. Então, se 70% dos homens traem, esse
comportamento ficou padronizado como normal para os
homens e para mulher o normal é ser fiel.

Exatamente! Assim tu poderias pegar qualquer dado estatístico. Por isso, eu


procuro trazer aqueles dados estatísticos, valores (não todos, porque não daria

Sexualidades, Estatísticas e Normalidade (Entrevista) 141


conta na tese), que atingem as atitudes, as práticas e o comportamento sexuais.
Lembrando que essas pesquisas foram feitas com uma faixa etária muito ampla.
Todas as três abrem um leque, desde crianças. O Kinsey estudou crianças com
4 e 5 anos que já se expressavam sexualmente, já se automanipulavam. Ele traz
esses dados: 90% dos homens se masturbam, 10% não. Como é que alguém se
apropria desses 90%? Eu não estou questionando o dado, eu não estou ques-
tionando a amostra, longe disso! Eu estou questionando o valor, a valoração
que se dá ao dado. A interpretação que atribui um status a alguém que vai estar
nos 10 ou 90 ou 70, 80%, principalmente quando esses índices são discrepantes,
90%, 80%. Claro que quando se chega ao índice de 50%, metade faz isso, a outra
metade não faz, aí parece que a pessoa se relaciona com esse dado de uma ma-
neira mais equânime, não se torna uma discrepância, um desvio padrão. Quan-
do eu trago esse desvio padrão, eu procuro resgatar historicamente, justamente
porque certas pessoas foram tratadas como pervertidas, aquela pessoa é uma
pervertida, aquela pessoa tem um desvio sexual, é uma desviante da sociedade.
Ah, é um homossexual. Só 10% da população é homossexual. Então se atribui
aos 90% serem heterossexuais. Então tu já tratas de maneira binária o mundo
homo se opondo ao do hetero, e já trata outro: os 90% heteros é que configuram
normalidade, os 10% que são homos é a anormalidade. O livro aponta justamen-
te essa armadilha binária antagônica, porque ela não é só binária. Porque se ela
fosse binária e não fosse assimétrica, hierárquica, tudo bem. Mas acontece que
as pessoas parecem que acabam lendo o percentual e fazendo um diagnóstico de
si. Eu sou anormal porque eu estou dentro dos 5%, nos 2%. E o percentual é pas-
sível de ser usado por meio de subterfúgios, levantamentos falsos, manipulados,
questionados. Enfim, o trabalho é esse.

As pessoas leem e reproduzem até nas redes sociais como


verdade estabelecida sem nenhum critério. Quando você
fala de padrões, você trabalhou com Foucault né?

Sim, é um dos autores com quem trabalho. Mas trabalho também com Georges
Canguilhem, com Erving Goffman. Eu trabalhei com muitos autores. Claro, eu
já disse várias vezes eu não sou foucaultiano. Eu uso Foucault assim como uso a

142 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


Sonia Mello, a Mara Lago, a Miriam Grossi, pessoas com quem tive interlocução
e foram dando pistas e caminhos e deram apoio porque foi um trabalho muito
cansativo. Essa produção não é minha. É uma produção coletiva.

As temáticas se repetem nas obras que você pesquisou?

Elas se aproximam. Curiosamente. Foi outra constatação que fiz. Na medida em


que o relatório foi feito para se contrapor a outro, salvo alguns aspectos com os
quais quem elaborou o relatório não se preocupou. Kinsey não se preocupou
com os aspectos fisiológicos, porque ele procurou fazer uma pesquisa mais de
cunho comportamental, sociológico: o que as pessoas faziam, o que julgavam
como anormal. Nos EUA, na década de 40, certos comportamentos foram cos-
niderados crimes. Praticar sexo extraconjugal, trair a mulher era crime. Kinsey
desmitificou muitos comportamentos. Foi muito valorizado na época pela pró-
pria imprensa. Disseram que os relatórios dele eram polêmicos porque mostra-
ram comportamento sexual humano por meio de coisas que o americano fazia.
Já o relatório de Masters e Johnson, que trouxe alguns aspectos que Kinsey não
considerou, trouxe outros percentuais. E a Shere Hite, como feminista, e a mi-
nha tese ressalta isso, trabalhou mais os comportamentos permitidos ao homem
e não à mulher. E as estatísticas mostraram isso. Curiosamente, só não hou-
ve variações, em alguns comportamentos, práticas que o sucessor usou e que o
antecessor não se preocupou. Então surgiram algumas questões, por exemplo,
que foram levantadas pela Shere Hite sobre a prática sexual feminina, com que
Kinsey não se preocupou.

Você já escreveu sobre relações de gênero nesses


relatórios?

Já, foi em 2012. Cada um dos relatórios gerou um artigo, porque esses elementos
são muito ricos para que a gente possa trabalhar as questões de gênero e sexua-
lidade. Todos os três relatórios trabalham o comportamento sexual masculino e
o comportamento sexual feminino. Tratam do casal, mas veem a sexualidade de
homens e mulheres em separado.

Sexualidades, Estatísticas e Normalidade (Entrevista) 143


E a questão da orientação sexual?

Também foi levantada por todos os três relatórios. Só que o Kinsey apresenta
uma escala, ele traz um continuum de práticas sexuais em que ele divide em
seis faixas. De zero, totalmente heterossexual, a seis, totalmente homossexual,
e trata alguns intermediários: que é ocasionalmente, incidentalmente. Já o casal
Masters e Johnson defende que existe a homossexualidade e a heterossexuali-
dade como modelo binário e Shere Hite também trabalhou com a questão das
práticas homo e heterossexuais. Mas os percentuais em Kinsey, considerando
esses homossexuais incidentais, ocasionais e pouco frequentes, chegam a 46%
da população. Já o exclusivamente homossexual ficou entre 8, 9, 10% em todos
os três relatórios.

É um levantamento meramente estatístico?

Meramente estatístico! E justamente por ser meramente estatístico e fundado


no universo estadunidense, é um problema pegar esse parâmetro e aplicar em
outro contexto, outro país...Vale para a China? Vale para a Índia? Vale para o Irã?
Vale para o Brasil? Já é um salto extemporâneo, anacrônico e é justamente um
dos aspectos que eu trabalho. Esse uso indiscriminado e abusivo desses estudos.

Professor, você poderia nos falar como surgiu o tema


do livro? Nós sabemos que sua obra foi premiada
nacionalmente. Poderia nos contar um pouco mais sobre o
significado desse acontecimento.

Olha eu me sinto muito constrangido em falar. Nem fui a Brasília receber. Foi o
Prêmio CAPES 2008 menção honrosa na área interdisciplinar, contemplando o
tema. Eu, quando recebi, claro me senti reconhecido pelo trabalho, pelo esforço
e pela tese, e já tinha sido selecionada aqui na UFSC, por isso que ela concorreu
ao prêmio nacional, mas recebi com muita humildade e estendi a todos os meus
colegas por terem contribuído, a Mara Lago e a Miriam Grossi por serem minhas
orientadoras, mas eu não enalteço muito isso não. Eu fico muito incomodado

144 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


com essas coisas de prêmio. Miriam quis que eu participasse de um prêmio na
embaixada dos Estados Unidos, aí eu ganhei lá um registro... enfim... É um livro
que teve a contribuição de muitas pessoas e a cada pessoa dessas eu devo a mi-
nha gratidão.

Professor Tito, poderia nos dar uma visão sintética dos


capítulos de sua obra?

Sim. Primeiro eu faço um aporte teórico aos autores que eu já citei anteriormen-
te: Foucault, Ganguilhem, Goffman, Durkheim e outros da área de sexualidade
e gênero. Depois eu trago os acontecimentos do século XX, por exemplo, o de-
senvolvimento tecnológico e como esse desenvolvimento influenciou na fixação
da mulher que tinha participado da II Guerra Mundial e voltou ao lar cheia
de apetrechos eletrônicos, com os quais ela se deslumbrou. Também traço um
perfil da linha cinematográfica e da postura da mulher que ora era uma mulher
perigosa, ora era tão cautelosa, cuidadora; analiso então como é que o cinema
representou a mulher ao longo desse século XX. Depois eu passo pela questão
das leis de proibições sexuais nos Estados Unidos fazendo um comparativo com
o Brasil também, falo da demografia, do surgimento da ciência demográfica e
o quanto ela contribuiu para o desenvolvimento e a utilização da estatística. A
seguir faço um capítulo em que eu falo da psicometria dessas medições...parece
que nós temos uma métrica, a necessidade de um número. E fecho com a análise
dos três relatórios, trazendo uma crítica à instituição de padrões de normalidade
ou anormalidade por meios estatísticos, fazendo com que o leitor, de uma ma-
neira muito simples, procure refletir sobre essa forma que temos de lidar com a
estatística como se fosse ciência legitimada. Ela não legitima a ciência, legitima
a representatividade, mas não a ciência.

Professor quais as reflexões que o Senhor espera das


pessoas que lerem o seu livro?

Eu espero que as pessoas possam se indagar, quando lerem um texto, mesmo


que simples, uma reportagem de jornal, uma revista, qualquer revista... uma

Sexualidades, Estatísticas e Normalidade (Entrevista) 145


reportagem pequena... que venha com um percentual: cuidado para não se en-
quadrar, porque parece que temos essa tentação. E a gente não diz pra ninguém,
não é? Ih, eu faço isso então eu sou anormal ou normal... Então, é essa cautela
que eu espero que as pessoas tenham.

146 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


Sobre as/os autoras/es

Mara Coelho de Souza Lago

Possui graduação em Pedagogia pela Universidade do Estado de


Santa Catarina (1967), mestrado em Antropologia Social pela
Universidade Federal de Santa Catarina (1983) e doutorado em
Psicologia da Educação pela Universidade Estadual de Campi-
nas (1991). Atualmente é professora titular aposentada da Uni-
versidade Federal de Santa Catarina – UFSC, atuando como
docente voluntária no Programa de Pós-Graduação em Psicologia – PPGP e no
Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas – PPGICH.
Participa da coordenação do Instituto de Estudos de Gênero – IEG/UFSC. Par-
ticipa da coordenação editorial da Revista Estudos Feministas.

Olga Regina Zigelli Garcia

Enfermeira formada pela Universidade Federal de Santa Cata-


rina – UFSC, mestre em Enfermagem e Doutora em Ciências
Humanas, área de concentração: Estudos de Gênero (UFSC).
Professora do Departamento de Enfermagem da UFSC; atua no
Curso de graduação em enfermagem. Pesquisadora do Instituto
de Gênero – IEG/UFSC e do Núcleo de Identidades de Gênero
e Subjetividades (NIGS). Subcoordenadora do curso a distância
de aperfeiçoamento em Gênero e diversidade na escola – GE/Santa Catarina

147
2012/2013. Professora do polo de Florianópolis do GDE 2012/2013 e do Curso
de Especialização a distância em Gênero e diversidade na escola – GDE 2015/16.
É autora, coautora e organizadora de várias publicações.

MIRIAM PILLAR GROSSI

É cientista social formada pela Universidade Federal do Rio


Grande do Sul – UFRGS e doutora em Anthropologie Sociale
et Culturelle – Universite de Paris V, com pós-doutorado no
Laboratoire d’ Anthropologie Sociale do Collège de France,
na University of Califórnia-Berkeley e na EHEES. Professora
do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC) atua nos Programas de Pós-graduação em Antropologia Social e Inter-
disciplinar em Ciências Humanas e nos Curso de graduação em Antropologia e
Ciências Sociais da UFSC. Coordena o Núcleo de Identidades de Gênero e Sub-
jetividades. (NIGS/UFSC) Pesquisadora do Instituto de Gênero (IEG/UFSC).
Coordenadora do curso a distância de aperfeiçoamento em Gênero e diversi-
dade na escola (GDE)/ Santa Catarina 2012/2013. Coordenadora do Curso de
Especialização a distância em Gênero e diversidade na escola (GDE) 2015/16. É
autora, co-autora e organizadora de várias publicações.

Rodrigo Otavio Moretti-Pires

Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Saúde Cole-


tiva da UFSC (2012-2015). Editora-Chefe do Periódico Saúde
& Transformação Social/Health & Social Change (ISSN 2178-
7085). Docente do quadro permanente do Departamento de
Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina. Es-
pecializado em Saúde da Família (Polo de Educação Permanen-
te do Nordeste Paulista/Ministério da Saúde através da EERP/
USP). Mestre em Saúde Pública pelo Departamento de Medicina Social (FMRP/
USP). Doutor em Enfermagem Psiquiátrica pela EERP/USP. Pós-Doutorado em

148 Módulo III - Especialização em Gênero e Diversidade na Escola


pesquisa na temática do uso de Álcool e Drogas pela CICAD/Organização dos
Estados Americanos (através de programa da SENAD e EERP-USP).

Leandro Castro Oltramari

Possui graduação em Psicologia pela Universidade do Vale do


Itajaí (1997), mestrado em Psicologia pela Universidade Fede-
ral de Santa Catarina (UFSC) – 2001 e doutorado em Interdis-
ciplinar em Ciências Humanas pela UFSC (2007). Atualmente é
professor adjunto I da Universidade Federal de Santa Catarina.
Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Proces-
sos Grupais e de Comunicação, atuando principalmente nos
seguintes temas: Psicologia da Educação, gênero e sexualidade. Participante do
Grupo de pesquisa “Psicologia e Processos Educacionais” e participante do gru-
po Instituto de Estudos de gênero. Vice-líder do grupo de pesquisa Clínica da
Atenção Psicossocial e uso de álcool e outras drogas.

Pedro Rosas Magrini

Possui graduação em Administração pela Universidade Fede-


ral de Lavras (UFLA) no ano de 2007, mestrado em Adminis-
tração na área de Gestão social, Ambiente e Desenvolvimento
no ano de 2010 e doutorado do Programa Interdisciplinar em
Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina
(PPGICH/UFSC) na área de concentração de Estudos de Gêne-
ro (EGE) e na linha de pesquisa de Gênero e suas inter-relações
com geração, etnia, classe (GIRGEC). Atualmente é pós-doutorando em An-
tropologia Social na UFSC e membro da Coordenação do Curso de Gênero e
Diversidade na Escola (GDE/UFSC).

Sexualidades, Estatísticas e Normalidade (Entrevista) 149


Tito Sena (in memorian)

Doutor em Ciências Humanas, título obtido em 2007 pelo


Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Hu-
manas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Graduado em Psicologia pela Universidade Federal de Santa
Catarina (1994), e em Engenharia Civil pela Universidade Fe-
deral de Santa Catarina (1982) e mestrado em Psicologia pela
Universidade Federal de Santa Catarina (2001). Foi professor
Adjunto da Universidade do Estado de Santa Catarina. Membro do Instituto de
Estudos de Gênero (IEG) da UFSC.

Marcelo Vieira

Possui graduação em Bacharelado em Nutrição pela Universi-


dade Federal de Santa Catarina (UFSC) – 2012 e atualmente é
mestrando em Saúde Pública no Programa de Pós-Graduação
em Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina.

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