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Livro 2 – Módulo II
GROSSI, Miriam Pillar; GARCIA, Olga Regina Z.; MAGRINI, Pedro Rosas (org.).
Livro 2 – Módulo II- Gênero, diversidade sexual e religião; As diferenças de
gênero no espaço escolar. Florianópolis: Instituto de Estudos de Gênero / /
Centro de Filosofia e Ciências Humanas / UFSC, 2015. 141p. Livro didático.
Inclui bibliografia
Curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola, modalidade a
Distância.
1. Gênero. 2. Diversidade. 3. Sexualidades. 4. Religião. 5. Escola.
Dilma Vana Roussef
PRESIDENTA DA REPÚBLICA
Eleonora Menicucci
MINISTRA DA SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES DA
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA – SPM/PR
Roselane Neckel
REITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA – UFSC
Revisão de Conteúdo
Olga Regina Zigelli Garcia e Pedro Rosas Magrini
NOTA / GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA - GDE
Gênero e Diversidade na Escola é um projeto destinado à formação de profission-
ais da área de educação que também permite a participação de representantes de
Organizações Não Governamentais (ONGs) e de movimentos populares, buscan-
do a transversalidade nas temáticas de gênero, sexualidade e orientação sexual e
relações étnico-raciais. A concepção do projeto é da Secretaria Especial de Políticas
para as Mulheres (SPM/PR) e do British Council, em parceria com a Secretaria de Ed-
ucação Continuada, Alfabetização e Diversidade e Inclusão (SECADI/PR), Secretaria
de Ensino a Distância (SEED-MEC), Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial (SEPPIR/PR) e o Centro-Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos
(CLAM/IMS/UERJ).
CONCÓRDIA
PREFEITO – João Girardi
COORDENADORA DO PÓLO – Leonita Cousseau
ENDEREÇO – Travessa Irmã Leopoldina. Nº: 136. Centro. Concórdia – SC.
CEP: 89700-000
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LAGUNA
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PRAIA GRANDE
PREFEITO – Valcir Daros
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CEP: 88990-970
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SUMÁRIO
Apresentação........................................................................................................... 13
Miriam Pillar Grossi, Olga Regina Zigelli Garcia e Pedro Rosas Magrini
I. Disciplina 4
Gênero, diversidade sexual e religião
II. Disciplina 5
As diferenças de gênero no espaço escolar
12
Ressaltamos que temos consciência que este livro didático é uma obra inacabada,
uma vez que estas temáticas estão em constante construção e transformação, mas
acreditamos que ele tenha potencial para a provocação do exercício da ação-reflex-
ão-ação nas práticas pedagógicas.
Boa leitura!
13
Ensino, religião e educação
Tânia Welter
Inspirada nessa epígrafe do líder sul africano Nelson Mandela, proponho refletirmos
sobre ensino numa interface com religião e diversidade sexual, tendo como person-
agens principais homens e mulheres, meninos e meninas, jovens e adultos, que sabe-
mos têm históricos, corpos e desejos diferenciados. São sujeitos sociais em constan-
tes e dinâmicos “jogos sérios” com outros sujeitos1.
Falar sobre educação escolar implica reco¬nhecer: (a) as diferenças sócio-históricas
das/os sujeitos que compõem a escola – estudantes e educadoras/es2; (b) que seus
corpos são genereificados, sexualizados, racializados, marcados por especificações
sociais de gênero, orientação sexual, raça, etnia, religião, classe social e outras; e (c)
dessemelhanças nas nomeações, representações e identidades que dizem respeito
a estilos de vida, preferências estéticas, imagens corporais, acesso a bens materi-
ais, entre outras. A partir disso, é possível formular uma primeira constatação: assim
como na sociedade, a diversidade está presente no espaço escolar.
1
A categoria “sujeitos sociais” está sendo apropriada aqui na perspectiva de Shery Ortner (2007, p.
74), ou seja, como agentes inseridos em teias de relações de afeto, solidariedade, poder e rivalidade.
Não são agentes totalmente livres, nem para formular e atingir suas metas, nem para controlar suas
relações, e atuam dentro de teias de relações que compõem seus mundos sociais. Essa categoria
parece adequada para entender os sujeitos-agentes da escola, que sabemos que possuem desejos,
intenções, objetivos e projetos em constantes e dinâmicas disputas com outros sujeitos: estudantes,
educadoras/es, pais e legislações.
2
Por entender sua ação direta na formação de estudantes, estou utilizando o termo educador para
definir o conjunto de profissionais que atua na escola: professoras/es, técnicos em assuntos educacio-
nais, especialistas em educação, agentes de serviços gerais, de vigilância, de segurança e de cozinha,
bibliotecária/o, entre outras.
15
Escola, escolas
A escola, desde sua criação, distinguiu e separou sujeitos: distinguia quem tinha e
quem não tinha acesso a ela e, nela separava adultos de crianças, católicos de prot-
estantes, negros de brancos, ricos de pobres, meninos de meninas (LOURO, 1997).
Importante ressaltar que houve um tempo em que esta distinção era ainda mais seg-
regadora e tinha respaldo na legislação, uma vez que havia, por exemplo, leis que
proibiam que escravos, africanos libertos e mulheres frequentassem as escolas.
(SANTA CATARINA, 2014).
Neste cenário, crianças com deficiências ou com diferenças comportamentais e emo-
cionais foram, por muito tempo, excluídas do convívio com outras crianças. Grupos
étnicos foram proibidos do uso de suas línguas maternas, como nos casos dos indíge-
nas, dos descendentes de africanos ou dos imigrantes de europeus e asiáticos. Além
disto, grande parte dos conteúdos da escola e livros didáticos pautava-se por uma
visão etnocêntrica, masculina e burguesa na qual a liberdade religiosa era restrita
aos praticantes do segmento religioso dominante – cristão.
A transformação nesse modelo não impediu muitas instituições escolares de promov-
erem distinções e desigualdades entre sujeitos sociais, especialmente estudantes3,
mas também educadoras/es, tendo como base: classe social, sexo, gênero, religião,
cor de pele, orientação sexual ou outros atributos. Neste contexto, a escola se apre-
senta muitas vezes como espaço para experiências e relações assimétricas, estímulo
para valores hegemônicos, repressões e opressões sobre padrões não hegemônic-
os, exercícios de poder, promoção de desigualdades, conflitos e violências (macro e
micro)4, as quais nem sempre são penalizadas, e, dessa forma, promoveu e promove
também uma invisibilidade dos conteúdos da diversidade servindo como uma das
estratégias de sua homogeneização.
A escola, portanto, é um espaço contraditório, ao mesmo tempo que é reconhecida
como espaço para produção e socialização de conhecimentos (MENDONÇA, 2011),
servindo para encontros e produções de diferenças, distinções e desigualdades.
Poderia ser ela, um espaço para formação, reflexão, desconstrução e desnatural-
ização das violências e desigualdades?
3
Essa discussão pode ser encontrada em Guacira Louro (1997), Marília Carvalho (2008), Sérgio Carrara
et al. (2009).
4
Ideia inspirada em Miriam Abramovay (2003).
16
O direito à liberdade religiosa e sexual
A afirmativa deste antropólogo sugere ser necessário romper com a ideia monolíti-
ca de religião e esforçar-se para pensar amplamente em perspectivas religiosas ou
religiosidades. Religiosidade6 como uma experiência eminentemente subjetiva, in-
efável e composta pelo conjunto de disposições referentes ao sagrado transcenden-
Para uma análise da complexa e conflituosa relação entre legislação e igreja confessional, ver André
5
Musskopf (2013).
17
te7 (OLIVEIRA, 1999). Apesar de ser subjetiva e individualizada, a identidade religiosa
é constituída a partir das relações sociais e do contato dos sujeitos com princípios,
valores, práticas, símbolos e rituais religiosos que são coletivos. A partir desse conta-
to é que o sujeito pode ou não sentir desejo de ter acesso ao sagrado transcendente.
Esse processo pode ocorrer de forma gradual a partir das relações familiares e comu-
nitárias ou diretamente em perspectivas religiosas, institucionalizadas ou não.
A perspectiva religiosa é um modo de ver, aprender e compreender, uma forma par-
ticular de olhar a vida, uma maneira particular de construir o mundo (GEERTZ, 1978).
Ela difere do senso comum, porque se move além das realidades da vida cotidiana e
da científica, porque questiona as realidades da vida cotidiana e da estética e porque
se preocupa com o fato.
No que tange a liberdade sexual, podemos afirmar que a relação com a diversidade
sexual8 também nunca foi tranquila, nem tampouco sua vivência garantida pela leg-
islação. Cunhado no contexto conhecido como medicalização das relações homoafe-
tivas no século XIX, o termo “homossexualismo” representava as diversas teorias
explicativas sobre orientação sexual e identidade de gênero (termos e conceitos re-
centes) desviantes da heterossexualidade, desenvolvidos com o objetivo de descrim-
inalizar as pessoas, suas identidades e práticas (MUSSKOPF, 2013).
Os discursos médicos sobre a homossexualidade promoveram consequências nefas-
tas sobre indivíduos, mas também fomentaram o surgimento de organizações por
direitos civis homossexuais nos anos cinquenta do século vinte. A substituição do
termo “homossexualismo” (associado a algum tipo de patologia) por “homossexuali-
dade” refletiu uma mudança significativa nas décadas de 1960-70, com a organização
de movimentos sociais e a configuração de uma área de produção conhecida como
Estudos Gays e Lésbicos. Com o aprofundamento das pesquisas acadêmicas sobre
gênero e sexualidade, o desenvolvimento dos estudos queer e a multiplicação das
siglas – GLS, GLBT, LGBT, LGBTTT, LGBTI –, o tema da homossexualidade foi desloca-
6
Religiosidade como o “[...] conjunto socialmente difuso de sentimentos, crenças e práticas referentes
ao sagrado que podem ou não institucionalizar-se em sistemas e organizações religiosas [...]. Cabem
neste campo tanto as formas religiosas institucionalizadas quanto as expressões do sagrado não estru-
turadas, inclusive aquelas que não se reconhecem a si como propriamente religiosas” (OLIVEIRA, 1999,
p. 1).
7
O sagrado é tomado aqui como aquilo que possui um caráter divino, religioso, e, ao adquirí-lo, não
pode ser tocado, violado ou infringido.
8
Forma de descrever populações “não heterossexuais” (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2009).
18
do para uma perspectiva da diversidade sexual, na qual se enquadram as expressões
“orientação sexual” e “identidade de gênero” (MUSSKOPF, 2013).
Os movimentos sociais têm reivindicado leis e políticas públicas visando à proteção
e respeito da população LGBT e à criação de instrumentos de combate à intolerân-
cia, comumente chamada de homofobia, mas também lesbo e transfobia9, sexis-
mo, heterossexismo10, machismo. No Brasil, “a homofobia é um conceito que liga os
movimentos LGBTTT com os Estudos de Gênero e feminismos, bem como com out-
ros movimentos sociais, como, e.g., os movimentos negro ou ambientalista.” (FER-
NANDES, 2011, p. 67). Ela se configurou como “[...] uma categoria capaz de responder
a interpretações sobre as violências individuais e coletivas, materiais e simbólicas,
que orientam as práticas que estão à margem dos padrões hegemônicos de sexuali-
dade.” (FERNANDES, 2011, p. 67-68).
9
Para Daniel Borrilo, a homofobia é um termo que indica atitude de hostilidade, rejeição irracional ou
mesmo ódio para com os homossexuais. Ela “[...] é uma manifestação arbitrária que consiste em quali-
ficar o outro como contrário, inferior ou anormal.” (BORRILO, 2009, p. 15).
10
Heterossexismo é a atitude de discriminação, negação, estigmatização ou ódio contra toda sexual-
idade não heterossexual. Essa atitude está fundamentada na noção de que a heterossexualidade é
superior e mais desejável às demais formas de orientação sexual (BORILLO, 2009).
19
rituais de iniciação católica; não utilizar colares e guias; esconder “curas”; inventar
doenças para justificar a cabeça raspada “para o santo”, entre outras.
Além dos relatos das/os estudantes, a pesquisadora realizou também entrevistas
com as professoras sobre a religiosidade dessas crianças e jovens. A partir das res-
postas, concluiu que elas “não são vistas”, “não existem” ou, “quando existem”, são
encaradas pelas/os professoras/es como um problema, mas “que pode ser resolvi-
do”. Assim, para Stela Caputo, mais do que sincretismo religioso, estas são ações
discriminatórias, formas de silenciamento da diversidade religiosa na escola e ten-
tativas de invisibilização das singularidades praticadas por estudantes, mas também
de educadoras/es.
Em outra pesquisa realizada com mais de 50 mil diretoras/es de escolas no Brasil
(questionário respondido à Prova Brasil, 2011), constatou-se que 51% delas cultivam
o hábito de cantar músicas religiosas ou fazer orações na entrada ou saída da sala
de aula e 22% possuem objetos, imagens, frases ou símbolos religiosos expostos em
ambientes públicos das escolas (SALLA, 2013). Para Luiz Cunha e Ana Maria Mendes
de Miranda11 e Roseli Fischmann (POLATO, 2009), ações como estas desrespeitam o
princípio constitucional da laicidade de Estado12 e são formas discriminatórias contra
religiosidades não hegemônicas.
Luiz Lopes (2008) afirma que a escola é uma das principais agências de (re)produção
e organização de identidades sociais de forma generificada, sexualizada e racializa-
11
Durante sua participação no programa conexão futura, da TV cultura, exibido em 19 de abril de 2013,
cujo tema era religião na escola. A gravação do programa está disponível em http://www.youtube.com/
watch?v=xik6bczluqo.
12
A laicidade é um dispositivo político que organiza as instituições básicas e públicas do Estado (como
cortes, hospitais, escolas) e regula seus funcionamentos quanto à separação entre a ordem secular e os
valores religiosos. Nesse modelo, não há religião oficial e as liberdades de consciência e de crença são
garantias constitucionais, “[...] o que protege o direito de expressão tanto de crentes religiosos quando
de agnósticos. Não é permitido ao Estado estabelecer vínculos com grupos religiosos, uma exigên-
cia que estimula a neutralidade, a igualdade e a não discriminação no funcionamento das instituições
básicas” (DINIZ; LIONÇO; CARRIÃO, 2010, p. 12-13). O dispositivo jurídico da laicidade está presente no
ordenamento constitucional do Brasil, além de ser periodicamente reafirmado pelos acordos interna-
cionais dos quais o Brasil é signatário. (DINIZ; LIONÇO; CARRIÃO, 2010).
20
da e defesa de uma lógica monocultural. Para tanto, recorre, entre outras estraté-
gias, àquela que Rogério Junqueira (2009) denominou de “pedagogia do insulto”,
constituída por piadas, brincadeiras, jogos, apelidos, insinuações e expressões des-
qualificantes diante daquelas/es que não se ajustam aos padrões de gênero e de
sexualidade admitidos na cultura em que vivem, mas minorias sociais, como negras/
os, indígenas, mulheres, seguidoras/es de religiões não hegemônica, camponesas/
es e outros grupos. As práticas discriminatórias são pautadas e repetidas incansavel-
mente no espaço escolar, ora através de mensagens normatizadoras, ora através do
silêncio e do consen¬timento da violência. Por meio da “pedagogia do insulto”, estu-
dantes e educadoras/es aprendem a ser hostis à estes grupos, servindo como poder-
oso mecanismo de silenciamento e dominação simbólica.
Agindo dessa forma, a escola reproduz padrões sociais, perpetua concepções, va-
lores e clivagens sociais, participa ou compactua com a normatização de corpos e
identidades13, legitima relações de poder, hierarquias e processos de acumulação,
estimula a internalização do heterossexismo, misoginia14, negação, autoculpabili-
zação, autoaversão de jovens e adultos com identidades e desejos sexuais não hege-
mônicos. Muitas vezes, isso ocorre com a participação ou a omissão da família15, da
comunidade escolar, da sociedade em geral e do Estado.
Ao defender a lógica monocultural, a escola apóia a homogeneização e não contribui
para o reconhecimento e respeito às diferenças existentes (heterogeneização) e nem
para a problematização das desigualdades (LOPES, 2008).
Durante a realização de pesquisas sobre a disciplina de Ensino Religioso e sobre as
representações de iniciação sexual e homossexualidade em escolas públicas de San-
ta Catarina16, verificou-se o uso recorrente da “pedagogia do insulto” e de discursos
sexistas, homofóbicos, heteronormativos e machistas, muitas vezes, pautados por
argumentos teológicos. A heterossexualidade como “única forma de chegar a Deus”
e o matrimônio heterossexual como “o verdadeiro par” foram utilizados, por exem-
plo, em uma peça teatral numa escola em Santa Catarina. Constatou-se também um
esforço de invisibilização e/ou uso da “pedagogia do armário” por muitos gays, lésbi-
13
Noção inspirada especialmente em Michel Foucault (LOURO, 1997).
14
Sentimento de repulsa ou aversão às mulheres, recorrentemente confundido com machismo.
15
Sobre homofobia familiar, consultar Sarah Schulman (2010).
16
Miriam Grossi, Felipe Fernandes e Fernanda Cardozo (2014) e Miriam Grossi, Maria Amélia Dickie e
Tânia Welter (2014).
21
cas, trans e iniciados em religiões minoritárias (não hegemônicas) como alternativas
para fugir da “pedagogia do insulto”.
As pesquisas apontam que toda forma de discriminação interfere nas expectativas
de sucesso e rendimento escolar; produz intimidação, insegurança, estigmatização,
segregação, isolamento; estimula a simulação para ocultar a diferença; gera desinter-
esse pela escola; produz abandono e evasão, tumultua o processo de configuração e
expressão identitária, levando inclusive a tentativa de suicídio17. Rogério Junqueira
(2009) afirma também que tais dificuldades tendem a ser ainda maiores, se pessoas
homoeróticas, com identidade ou expressão de gênero “fora do padrão convencio-
nal”, forem pobres, iletrados, negros, indígenas, soropositivos, tiverem deficiência
física ou mental e não puderem (ou não quiserem) “[...] manter um estilo de vida
sintonizado com a celebração hedonista do ‘ser jovem’ e ter um ‘corpo sarado’” (JUN-
QUEIRA, 2009, p. 25)18.
Costumeiramente, a escola afirma que estudantes evadem da escola. Berenice Ben-
to (2011) se contrapõe a essa ideia afirmando que estudantes que são submetidos à
“pedagogia do insulto” não evadem da escola, mas sim são “expulsos”. Essa análise
indica que a escola tem responsabilidade sobre essas práticas e como agente impor-
tante na constituição de sujeitos, deve estar à frente, problematizar a naturalização
da vida social, os ideais de normalidade, não contribuir com a homogeneização de
corpos, culturas e discursos (LOPES, 2008).
Para tanto, a escola pode e deve ser espaço para reflexões, desnaturalizações,
formações, resistência e inovações, apesar de estar permeada por conflitos e con-
tradições, ser recorrentemente espaço para experiências e relações assimétricas,
estímulo para valores hegemônicos, realização ou conivência com repressões e
opressões sobre padrões não hegemônicos, tornando-se palco para inúmeras violên-
cias que promovem graves consequências pessoais a estudantes e educadoras/es.
17 Ver especialmente os estudos de Marilia Carvalho (2008), Sérgio Carrara et al. (2009), Fernando Teix-
eira-Filho, Carina Rondini e Juliana Bessa (2011).
18 Kimberly Crenshaw (2002) sugere o uso do conceito de interseccionalidade, a fim de capturar os
aspectos estruturais e dinâmicos da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. A partir desse
uso, pode-se pensar como o racismo, sexismo e homofobia criam desigualdades que posicionam social
e politicamente alguns grupos.
22
Por uma cultura de direitos humanos
Nas últimas décadas, segmentos e movimentos sociais têm demandado, para o Es-
tado brasileiro e seus órgãos federativos, a necessidade de estabelecimento de
políticas públicas, das quais o campo da educação se destaca. Na recente atualização
da Proposta Curricular de Santa Catarina (SANTA CATARINA, 2014), afirma-se a im-
portância na formação de crianças e jovens na representação das identidades plurais
no currículo e cotidiano escolar, o respeito aos marcos históricos e civilizatórios, o
reconhecimento dos processos históricos e sociais diferenciados e o questionamen-
to da ausência de suas especificidades nos currículos oficiais.
Tendo em vista o preconceito e discriminação vivenciada por grupos minoritários,
que, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996) afirma ser
obrigatório o ensino de conteúdos históricos sobre populações afro-brasileiras e
indígenas nas escolas19, o direito à educação e à acessibilidade para indígenas, qui-
lombolas, sujeitos do campo e sujeitos da educação especial; da mesma forma, para
aqueles que se reconstroem em seus direitos, em suas identidades, nos movimentos
de direitos humanos, nas relações de gênero e na diversidade sexual20. É, no entanto,
necessário intensificar ações de combate a violências e discriminações, fortalecer
e ampliar pactos nacionais e internacionais de proteção aos direitos humanos com
medidas e políticas que acelerem a construção de “uma cultura de direitos” em que
se reconheçam as diferentes identidades e sejam garantidos processo de inclusão de
grupos socialmente vulneráveis.
As ações e propósitos firmados no documento (estatal) de Santa Catarina estão rel-
acionados, nas últimas décadas, às lutas históricas, provocações e articulações en-
tre movimentos sociais, seja ele os feministas, LGBTIs, negros, entre outros, e a ac-
ademia brasileira (LOPES, 2008; GROSSI, 2014). Estes movimentos e conhecimentos
acadêmicos demandaram ao Estado brasileiro mudanças nas legislações e criação
de políticas públicas. Com apoio estatal, foram realizadas conferências (municipais,
estaduais e federais) para que a sociedade civil “fosse ouvida” nas demandas e nas
propostas. A partir deste conjunto de fatores e tendo como foco questões de gêne-
Referindo-se, entre outras, às políticas de ações afirmativas (conhecidas por políticas de cotas) e ao
20
23
ro, sexualidade e étnico raciais, observou-se no Brasil, a partir de 2003, a criação de
secretarias especiais em nível federal, como as:
21
Projeto de extensão realizado desde 2007 pelo Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades da
Universidade Federal de Santa Catarina. Com objetivo de problematizar as representações de gênero
e sexualidade com estudantes, professoras(es) e outros profissionais de escolas públicas da Grande
Florianópolis, o projeto Papo Sério possui três subprojetos: Oficinas Papo Sério, Concurso de Cartazes
sobre Homo-Lesbo-Transfobia e Heterossexismo nas Escolas e Iniciação Científica Júnior (PIBIC EM).
Desde seu início, esses projetos envolveram e impactaram milhares de estudantes e educadores(as).
Reflexões sobre esse projeto podem ser encontradas em Mareli Graupe et al. (2011), Ariana Sala e Mir-
iam Grossi (2013). Informações sobre o NIGS e outros projetos podem ser encontradas em www.nigs.
ufsc.br.
24
Médio (PIBIC EM)22, PIBID Ciências Sociais23 e curso Gênero e Diversidade na Escola
(GDE)24 realizados na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, Florianópolis)
e na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS, Chapecó). Estes projetos têm con-
tribuído na formação de inúmeros estudantes e educadoras/es, para problematizar
a naturalização da vida social, na desmistificação das injustiças e desigualdades, na
promoção de uma educação e uma sociedade equitativa e na constituição de uma
cultura para direitos humanos.
Por fim, percebo que “[...] educar para a diversidade não significa apenas reconhecer
as diferenças, mas refletir sobre as relações e os direitos individuais e coletivos”.
(GRAUPE; GROSSI, 2014, p. 29). Considero fundamental “Que a escola seja um lugar
de (re)criar e politizar a vida social, de compreender a necessidade de não separar
cognição e corpo, de se livrar de discursos binários aprisionadores, de se questionar
ininterruptamente e de se preocupar com justiça social e ética!” (LOPES, 2008, p.
144). Desejo que a escola seja o espaço para aprender a superar as representações
negativas sobre os corpos, as religiosidades, os desejos (HOOKS, 2003) e que ela
invista mais na promoção da equidade e do respeito às diferenças do que na sua dis-
criminação.
22
Este projeto foi financiado pelo Programa Institucional de bolsas de iniciação científica no ensino
médio (PIBIC EM/CNPq) e foi desenvolvido na Universidade Federal da Fronteira Sul entre 2013 e 2014.
Com objetivo de fortalecer o processo de disseminação das informações e conhecimentos científicos e
tecnológicos básicos, bem como desenvolver as atitudes, habilidades e valores necessários à educação
científica e tecnológica, esse projeto envolveu estudantes do ensino médio de escolas públicas da Rede
Estadual de Ensino de Santa Catarina, município de Chapecó (SC), além de estudantes e professoras da
Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Chapecó..
23
O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) é financiado com recursos da Coor-
denação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) do Ministério da Educação (Brasil)
e tem como objetivos oportunizar e estimular a iniciação à docência de licenciandos(as), aproximar o
ensino superior da Educação Básica, criar e fortalecer projetos que visem a melhoria da educação públi-
ca. O PIBID de Ciências Sociais foi realizado na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS, Chapecó)
entre 2012 e 2014, envolveu estudantes e professora da UFFS e professor da Rede Estadual de Ensino
de Santa Catarina, município de Chapecó (SC). Dados sobre este projeto, ver pibidsociologiachapeco.
blogspot.com.br.
25
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DINIZ, Débora; LIONÇO, Tatiana; CARRIÃO, Vanessa. Laicidade e ensino religioso no Bra-
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Santa Catarina. Tubarão: Copiart, 2014.
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27
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gia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007.
28
Educação laica e ensino brasileiro
Tânia Welter
Maciel Vieira, 17 anos, estudante de uma escola pública da cidade de Miraí/MG, pro-
duziu e socializou um vídeo na internet, em abril de 2012, como forma de protesto
contra a ação pedagógica da professora de Geografia de sua escola, que iniciava suas
aulas com a oração cristã “Pai Nosso”. Buscou também denunciar ato discriminatório
praticado por colegas de classe e questionar a postura de gestoras/es da Secretaria
da Educação e da direção da escola diante da sua denúncia25. Questionado, o estu-
dante explicou26 que não participava da oração porque era ateu e que só decidiu
reagir e denunciar a ação da professora, quando essa o criticou diante de toda classe
afirmando que “Jovem que não tem Deus no coração nunca vai ser nada na vida” e
colegas de classe (supostamente com a aquiescência da professora) que acrescen-
taram seu nome à frase “livrai-nos do mal”. Contou também que se surpreendeu com
o desconhecimento da professora e das/os gestoras/es (direção e Secretaria da Ed-
ucação) a respeito da legislação nacional (Constituição Federal e Lei de Diretrizes e
Bases da Educação), especialmente do princípio da laicidade.
24
Gênero e Diversidade na Escola (GDE) é um programa pioneiro de formação de profissionais da ed-
ucação básica da rede pública de ensino do Brasil financiado pelo Ministério da Educação (MEC). Fo-
cado nas temáticas de gênero, orientação sexual e relações étnico-raciais, esse curso é oferecido nas
modalidades de educação presencial e a distância e visa capacitar essas(es) profissionais para atuarem
na educação formal promovendo a igualdade e equidade. Segundo Graupe e Grossi (2014, p. 14), essa
formação integra a orientação do governo brasileiro, que, a partir de 2003, criou secretarias e políticas
educacionais “[...] voltadas para o reconhecimento da diversidade cultural, a promoção da igualdade
de todos e todas e o enfrentamento do preconceito e de todas as formas de discriminação.” Em Santa
Catarina foram realizadas duas edições deste curso. Sobre a primeira edição do GDE em Santa Catari-
na, ver Luzinete Minella e Carla Cabral (2009). Sobre a segunda edição, ver Olga Garcia, Miriam Grossi
e Mareli Graupe (2014).
25
Para visualizar os vídeos e a repercussão do caso, visitar www.paulopes.com.br. Acesso em dezembro
2014.
26
Durante o programa Conexão Futura, da TV Cultura, exibido em 19 de abril de 2013, cujo tema foi
religião na escola. O vídeo está disponível em www.youtube.com/watch?v=xik6bczluqo.
29
Para a professora Ana Maria Mendes de Miranda27, a história deste estudante (que
se expôs sozinho) é semelhante a outras ocorridas em escolas estaduais do Rio de
Janeiro. Discentes buscam orientação em secretarias da educação ou direções de
escola, por se sentirem prejudicados por ações pedagógicas proselitistas nas esco-
las onde estudam. Grande parte não obtém respostas satisfatórias, orientações ou
ações eficazes de combate a essas pedagogias28. Esses fatos explicitam, para essa
pesquisadora, uma desqualificação das/os profissionais diante de um direito previsto
por lei. Ela observou que as ações de denúncia e combate da intolerância religiosa no
estado do Rio de Janeiro têm ocorrido a partir de grupos e organizações não gover-
namentais, e isso ocorre porque faltam mecanismos estatais eficazes que garantam
a liberdade de expressão religiosa.
Este breve relato e reflexão nos indica que a educação brasileira é marcada por con-
flitos entre legislação, perspectivas pessoais e ações teórico-metodológicas. A re-
ligião, a religiosidade, os modos ou perspectivas religiosas, mobilizam ou são mo-
bilizados por “sujeitos sociais” (ORTNER, 2007) na defesa de interesses pessoais ou
institucionais. A partir disso, pontuamos algumas questões: os discursos e pedago-
gias proselitistas são utilizados na sua escola? Quais são os impactos destes na vida
de estudantes e educadoras/es? É possível eliminar esses discursos e pedagogias?
Em que medida esses discursos e ações comprometem o princípio constitucional da
laicidade? O que, na sua opinião, caracteriza uma educação laica?
27
Opinião emitida durante sua participação no programa conexão futura, da TV Cultura, que foi ao ar
em 19 de abril de 2013. Para assisti-la, acessar http://www.youtube.com/watch?v=xik6bczluqo.
28
Essa informação está respaldada em uma pesquisa sobre a disciplina de ensino religioso em escolas
públicas do Rio de Janeiro, realizada pelo Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP/UFF) da
Universidade Federal Fluminense.
30
Para exemplificar, transcrevo discursos significativos desse debate reunidos no cur-
ta-documentário “Estado laico?”29. O deputado federal Paulo Rubem (PDT/PE) de-
fende que o Estado brasileiro é um estado laico, que não tem religião, e, por isso,
as políticas públicas devem ser construídas independentes de credo religioso, de
“opções sexuais individuais, de origem, de faixa etária, de nível de renda”. Ele afir-
mou ainda estar preocupado com as/os parlamentares que tentam impor, à maioria
da sociedade, determinadas concepções que considera discriminatórias, preconcei-
tuosas e que tentam intervir na vida privada das/os cidadãs/ãos. O que não cabe ao
Estado em hipótese alguma.
O deputado federal Jean Wyllys (PSOL/RJ) afirma que, desde a Proclamação da
República (1889), Estado e Igreja se separaram. Mesmo assim, desde lá, as igrejas
institucionais vêm renovando suas estratégias para influenciarem o Estado em suas
decisões. Ele percebe que a influência da Igreja Católica Apostólica Romana é inte-
grada e ocupa o espaço do Congresso Nacional realizando missas: “Agora as igrejas
evangélicas realizam cultos e os deputados vão à tribuna dizer que estão a serviço
de Jesus”. Essa postura estaria desrespeitando pessoas de outras religiões e pessoas
que não têm religião. O surpreendente, segundo ele, é que isso ocorre num país que
é multicultural, plurireligioso e com uma formação cultural e religiosa diversa.
O deputado Jair Bolsonaro (PP/RJ) afirma que leva em conta a “palavra de Deus”
para decidir seu voto. Já o deputado João Campos (PSDB/GO) afirma que a primeira
carta de direitos humanos, do ponto de vista universal, é a Bíblia Sagrada. Ele tam-
bém aciona o discurso “oficial”, ao afirmar que o Brasil é um Estado laico, que não
tem uma religião oficial, não financia ou estimula religião institucional específica,
mas garante, assegura e respeita todas. Para este, o estado brasileiro respeita inclu-
sive o cidadão que não tem religião30.
Vemos aqui os diversos aspectos observados na literatura sobre laicidade no Brasil:
o relato histórico (oficial) reafirmando e defendendo o princípio constitucional do
Estado Laico, as dificuldades e os conflitos gerados pelo desrespeito a esse princípio,
29
Curta-documentário produzido, em 2012, pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA)
em parceria com as Loucas de Pedra Lilás, para a campanha “Quanto Vale seu Voto?”. Vídeo disponível
no endereço eletrônico do Observatório da Laicidade na Educação: www.edulaica.net.br.
30
Tanto o deputado Jair Bolsonaro, quanto o deputado João Campos, fazem parte da Frente Parlamen-
tar Evangélica. Segundo o curta-documentário Estado Laico?, esta frente é formada por 79 deputados
federais e 03 senadores (mandato 2010-2014).
31
e a religiosidade orientando escolhas pessoais e institucionais. A afirmação provoca-
dora do filósofo Olavo de Carvalho – “O Estado é laico, a sociedade não”31– teria uma
relação com isso? O que a escola pública tem a ver com isso?
O antropólogo Ari Oro diferencia os termos laicidade (ou laicização) de secularização.
Este é um fenômeno que “abrange ao mesmo tempo a sociedade e as suas formas
de crer”, enquanto aquela “designa a maneira pela qual o Estado se emancipa de
toda referência religiosa” (ORO, 2008, p. 83), ou seja, “secularização expressa a ideia
de exclusão das religiões do campo social, que se encontra, então, ‘secularizado’, as
normas religiosas interferindo cada vez menos nos comportamentos cotidianos, na
maneira de compreender a vida e de se representar a morte” (ORO, 2008, p. 83). Na
laicidade, não há uma eliminação total da religião na sociedade e diz respeito, so-
bretudo ao Estado.
Em sua opinião, o Brasil seria um país secularizado?
No Brasil, desde a edição do decreto 119-A (1890), de provável autoria de Rui Bar-
bosa, o Estado incorporou noções ligadas ao princípio da laicidade e também es-
tabeleceu igualdade de tratamento entre as religiões. Com a Constituição de 1891,
institui-se a separação entre Igreja e o Estado, em que este não mais reconhece ou
financia uma religião oficial (que até então era a católica), mas assume, de forma de-
finitiva, as rédeas da educação (LUI, 2011).
Segundo Giumbelli (2004), a laicidade, concebida como um valor comum necessário
passa por três princípios, que a garantem e limitam. O primeiro, princípio da sepa-
ração, “assegura que as opções espirituais ou religiosas não envolvam o Estado e que
este não se envolva com aquelas” (2004, p. 50). Ele demanda também que o Estado
assegure a expressão religiosa, “assim como postula a renúncia, por parte das re-
ligiões, à sua dimensão política.” (2004, p. 50). A laicidade exige de cada religião um
esforço de adaptação e conciliação dos dogmas com as leis que regem a sociedade.
O segundo princípio é o da igualdade, que comanda um tratamento isonômico por
parte do Estado, “mas exige das religiões que não façam demandas particularistas”
(2004, p. 50). O terceiro princípio, o da liberdade de consciência, “funda o direito à
livre expressão religiosa no espaço e no debate público” (2004, p. 50) e “ impele o
Estado a proteger o indivíduo contra toda imposição religiosa” (2004, p. 50).
O fato de a escola expor objetos sagrados no espaço público ou oferecer a disciplina
de Ensino Religioso fere o princípio estatal da laicidade.
32
Do direito à diferença na legislação brasileira
32
Artigo quinto do capítulo “Dos direitos e deveres individuais e coletivos” do título “Dos direitos e
garantias fundamentais”.
33
Seguindo as indicações do PNDH-3, a Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da Presidência da Repúbli-
ca editou a cartilha “Diversidade religiosa e direitos humanos” (STHÖHER, 2013) reafirmando o com-
promisso do Estado brasileiro “[...] com o direito constitucional à liberdade religiosa e à condenação de
atos de intolerância com base na religião ou na convicção” (STHÖHER, 2013, p. 5).
33
A questão central desses documentos
34
A agenda estatal anti-homofobia foi criada no governo Lula, a partir de 2003 (FERNANDES, 2011).
34
Além disso, o governo brasileiro propôs a inclusão de identidade de gênero e ori-
entação sexual na Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como um posi-
cionamento claro sobre a temática. “Ao longo dos últimos anos, diversas formas de
garantia de direitos foram conquistadas no Brasil, em termos de políticas públicas
e ações governamentais (as mais recentes e importantes no âmbito do poder judi-
ciário).” (MUSSKOPF, 2013, p. 165).
35
giosas, especialmente as evangélicas, para garantir isonomia com a Igreja Católica.”
(BRASIL, 2014). “O texto também prevê o ensino religioso, de matrícula facultativa,
como disciplina do ensino fundamental, respeitando a diversidade cultural religiosa.”
(BRASIL, 2014).
Como visto, a oferta da disciplina de ensino religioso nas escolas brasileiras tem mo-
bilizado reações por parte de pessoas e organizações. Muitos defendem que a laici-
dade do Estado é precondição para a liberdade e igualdade, que é o caráter de laico
ou um Estado que tenha na base a diversidade e liberdade que garantirá os direitos
individuais (FISCHMANN, 2012). Recorrentemente se observa que a religião ou o reli-
gioso se submete a instrumentalização legal com a finalidade de assumir um lugar na
esfera pública (DICKIE E LUI, 2007). No caso da educação pública, muitos defendem
que a disciplina de Ensino Religioso e os símbolos religiosos expostos em espaços
públicos são uma afronta ao princípio da laicidade.
É a posição da equipe do observatório da laicidade na educação35, que concebe a ed-
ucação publica laica entendendo que:
a) a religião não é disciplina, nem é um conteúdo coadjuvante de outras, ou seja, não
existe a disciplina de Ensino Religioso, nem mesmo em caráter facultativo e a religião
não pode ser “referência para sustentação de valores, visões de mundo, comporta-
mentos ou atitudes”;
b) “o ensino é pautado pela atitude crítica diante do conhecimento, ou seja, não há
conhecimento sagrado ou inquestionável”. Todo conhecimento é produzido histori-
camente e, portanto, pode ser questionado;
c) não objetiva “pôr as crianças nos trilhos”, de cujo traçado prefixado jamais sairão;
d) considera e respeita as escolhas religiosas dos discentes e suas famílias, “sem se
prender a critérios estatísticos das religiões dominantes”;
e) não pode incorporar homofobia de origem religiosa;
f) “não abandona práticas nem conteúdos próprios da cultura escolar nem da cultura
popular porque os adeptos deste ou daquele culto podem ficar melindrados”; e
g) não há lugar para o integrismo ou totalitarismo.
Dados sobre este observatório e o texto a seguir disponíveis em: http://www.edulaica.net.br/. Acesso
35
em dezembro de 2014.
36
Esta mesma equipe conclui que “não basta suprimir os elementos mais ostensivos
da presença religiosa na escola pública para que ela seja efetivamente laica”. Mes-
mo sem esses elementos, a escola pode estar preparando indivíduos não críticos.
Para que ela seja laica é necessário investir na formação de professoras/es e outras/
os profissionais da educação para que tenham “uma atenta consciência pedagógica
e ética”. É necessário também dotar as escolas de “recursos materiais adequados
como bibliotecas, laboratórios de ciências e espaços de expressão de artes e lazer”.
Considerações finais
37
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39
Representações e relações de gênero em
diferentes grupos religiosos
Fernando Candido da Silva
40
ação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial,
regional, de gênero e de orientação sexual” foi substituída pela genérica e abstrata
(quer dizer, não corporificada) “superação das desigualdades educacionais, com ên-
fase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”.
Tal alteração é bastante significativa para nossa discussão, em especial, porque foi
fomentada, sobretudo, por grupos religiosos conservadores a partir da condenação
do que chamam de “ideologia de gênero”. Trata-se, pois, de um episódio ilustrativo
bastante revelador de como representações religiosas de gênero – supostamente
sagradas e imutáveis – intervém para perpetuar a assimetria profana das relações de
gênero. Por meio do conturbado debate do Plano Nacional da Educação podemos
entrever a urgência da crítica laica aos discursos religiosos. Como desenvolvê-la em
perspectiva genuinamente republicana e democrática?
Esta é uma questão metodológica que certamente transcende, em nossos tempos
globais, os limites nacionais. Para além deste ou daquele grupo religioso, o princípio
laico moderno encontra barreiras por todo o mundo nas mais diferentes tradições
religiosas, sobretudo porque se engessou em sua resolução ocidental de privatizar
assuntos religiosos. O fundamentalismo religioso – palavra enganosa que sempre
parece se referir ao Outro – se expande em diferentes regiões do globo justamente
por oferecer respostas seguras (já que oferece uma completa mappa vitae como
argumenta Zygmunt Bauman37) a perguntas realizadas desde um cenário repleto
de dúvidas e incertezas quanto à concretização do contrato social moderno e seus
desdobramentos como os direitos humanos. Como diz Boaventura de Sousa Santos
(2013) sobre este cenário, “a grande maioria da população mundial não é sujeito de
direitos humanos; é objeto de discursos de direitos humanos” (p. 15). Nesse aspecto,
deve-se atentar para a indecibilidade do texto fundamentalista que, (re)conectado
ao pré-texto da frustração moderna, abre-se para outras possibilidades de sentido
ao redor dos desejos e expectativas de sua audiência.
Curiosamente, em uma reviravolta interpretativa, o desejo de reconhecimento e
de redistribuição de poder – no interior da profana sacralidade – revela-se como o
sentido diferido/adiado do fundamentalismo e sua usual ‘teologia da prosperidade’.
Efetivamente, a expectativa de transformação da dura condição existencial, espe-
cialmente das mulheres, é levada em consideração pelo fundamentalismo, ainda que
36
Confira Maria José Rosado-Nunes. “Gênero: uma questão incômoda para as religiões”. In: Sandra Du-
arte de Souza e Naira Pinheiro dos Santos (organizadoras). Estudos feministas e Religião: tendências e
debates. Curitiba: Prismas, 2014, p.129-132.
37
O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.229.
41
de maneira limitada e controladora em sua sacralização dos papéis (complementa-
res) de gênero. Não por acaso é possível afirmar que “os inimigos mais temidos e
vigorosamente atacados pelo fundamentalismo são o feminismo e a emancipação
das mulheres” (SILVA, 2006, p. 18). A crítica laica e pública das religiões precisa mov-
imentar-se exatamente nesse espaço de tensão do sentido (entre a resposta funda-
mentalista e a pergunta emancipatória das mulheres) para que amplie o leque de
representações de gênero, ao invés de rapidamente homogeneizar e estereotipar
expressões religiosas contemporâneas como simples explosão de irracionalidade
pré-moderna patriarcal.
Observemos, portanto, que o problema sumamente laico da crítica de gênero não
está em contradição – como argumentam os conservadores – com a Constituição e a
defesa da liberdade religiosa. Bem da verdade, o tipo fundamentalista de religião é
que cotidianamente ataca os valores republicanos com sua forma sectária, legalista e
dogmática de representação38. Por isso é imprescindível, na crítica laica aos discursos
religiosos, avaliar as representações de gênero em conflito no interior dos mais di-
versos grupos religiosos. Apenas após a descrição deste conflito poderemos gestar
novos critérios teológicos que repensem o problema de gênero e religião no bojo da
tarefa de reconstrução e reinvenção do público.
Note-se, portanto, que traçamos uma estratégia unitária acerca do problema de
gênero nos discursos religiosos. Não procuraremos investigar como cada religião
representa e sacraliza as relações de gênero do cotidiano. Até porque cada religião
precisa ser avaliada em sua multiplicidade interna quanto ao assunto, para além das
fáceis representações oficiais e institucionais. Portanto, em se tratando de represen-
tações e relações de gênero, o problema central da religião é: como os diferentes gru-
pos religiosos – em tensão mesmo dentro de uma mesma denominação – concebem
sua intervenção religiosa na organização social e política da sociedade? Seguindo a
estratégia unitária, vejamos alguns grupos religiosos que promovem representações
religiosas conservadoras quanto aos papeis de gênero na sociedade para, logo em
seguida, apresentar representações favoráveis à redistribuição de poder.
38
Veja Ricardo Quadros Gouvêa. “A condição da mulher no fundamentalismo: reflexões transdisciplin-
ares sobre a relação entre o fundamentalismo religioso e as questões de gênero”, Mandrágora, São
Bernardo do Campo, Metodista, n.14, 2008, p.14-19.
42
Representações religiosas conservadoras
Além disso, o destacado número de mulheres, vítimas de violações no meio das igrejas
cristãs, “ressalta a dimensão de gênero também vivenciada nesse segmento” (BAR-
ROS, 2008, p. 153). Esses resultados apontam para a primazia teórico-metodológica
de avaliar (caso a caso) a conotação política dos discursos religiosos, sobretudo, em
representações fundamentalistas – sempre tão bem associadas a partidos e políticas
de extrema direita. Vejamos, por agora, a característica conservadora de alguns gru-
pos religiosos frente aos desafios lançados pela categoria de gênero em três eixos
corporais e cotidianos: (i) na violência contra as mulheres, (ii) na manutenção da mas-
culinidade hegemônica e (ii) na naturalização da heteronormatividade.
A priorização do fundamentalismo cristão no recorte de grupos religiosos parece
ser importante para nosso contexto brasileiro contemporâneo. Como veremos, a as-
censão conservadora no Brasil que prejudica as lutas públicas feministas apóia-se,
em grande medida, em discursos fundamentalmente bíblicos, em uma linguagem
cristã transnacional e interdenominacional que aponta para as questões de gênero
como ponto de encontro de setores religiosos em oposição em outras esferas. Além
disso, seguindo ainda a sugestão da Comissão Nacional da Verdade, as igrejas cris-
tãs possuem um papel destacado “como componente histórico, social e político da
realidade brasileira.” (BRASIL, 2014, p. 152). Ao que parece, tal papel destacado no
mosaico religioso brasileiro guarda, em si, o próprio motivo de se estudar com mais
afinco as estratégias das igrejas cristãs para a conservação do poder masculino, em
particular, sua pedagogia autoritária e hierárquica ao redor da Bíblia e de suas ima-
gens de Deus.
43
1. Violência contra as mulheres
44
Textos como este são fundamentais para as representações religiosas conservado-
ras no que se refere às relações de gênero. São como que a base de sustentação
para posições políticas contemporâneas. E, por isso mesmo, é importante demon-
strar a atualidade dessa pedagogia bíblica que inculca relações de dominação entre
os sexos. Radicalmente oposto aos movimentos pelas causas das mulheres, o avanço
do fundamentalismo cristão no Brasil possui suas próprias estratégias para atualizar
a mensagem bíblica de submissão feminina, mesmo em casos de violência explícita.
Com ampla publicidade de discurso, dado o recurso midiático, vejamos o caso Sarah
Sheeva e o culto das princesas como um exemplo significativo de representação reli-
giosa conservadora sobre a compreensão do lugar da mulher na sociedade39.
Contando com um ministério próprio, Sarah Sheeva divulga sua mensagem por todo
o Brasil como missionária. Ao articular a base teológica da Batalha Espiritual (que
entende as dificuldades materiais da vida como problemas espirituais) à da Teolo-
gia da Cura Interior (que prevê a cura de “traumas do passado”), a missionária faz
uma ligação exemplar entre as expectativas de melhoria concreta no cotidiano de
mulheres e a resposta fundamentalista de santificação a partir do controle do cor-
po feminino objetivando, por fim, o casamento com o ‘príncipe’ – o homem ideal,
cuidador e protetor da ‘princesa’. À semelhança do texto de 1Timóteo, Sarah Sheeva
promove uma pedagogia de obediência e passividade para as mulheres:
Esse caso encontra-se descrito em Magali do Nascimento Cunha. “Gênero, religião e cultura: um olhar
39
sobre a investida neoconservadora dos evangélicos nas mídias do Brasil”. In: Sandra Duarte de Souza e
Naira Pinheiro dos Santos (organizadoras). Estudos feministas e Religião: tendências e debates. Curiti-
ba: Prismas, 2014, p.109-117. Todas as citações diretas do caso encontram-se neste ensaio que contem-
pla trechos etnográficos do trabalho de conclusão de curso em Teologia de Thaina Assis (Gênero, corpo
e teologia: uma abordagem pastoral pela superação da violência simbólica. São Bernardo do Campo:
Metodista, 2013).
45
Além da mensagem para as ‘princesas’, Sarah Sheeva também deixa entrever, em seus
cultos, o papel das mulheres casadas. Aqui, a atitude de tolerância e autopunição do
‘sexo frágil’ frente a situações de violência é ainda mais contundente:
46
coação e perseguição religiosa são um convite à divinização da violência e do homem
violento.” (SCHULTZ, 2006, p. 49). De fato, a Bíblia e a Teologia podem ser matrizes
para a construção social normatizante da experiência masculina.
Como aponta Marcelo Augusto Veloso, particularmente quanto à Igreja Católica
Apostólica Romana, o gênero da religião cristã é masculino: “as mãos que tecem a
teia religiosa são mãos masculinas”(2005, p.78). Nesse sentido, não deveríamos est-
ranhar a hegemonia pedagógica masculina da Igreja: Deus é Pai; o messias é homem;
os discípulos também o são. Por isso qualquer possibilidade de subversão da frágil
coerência da masculinidade bíblico-teológica é prontamente rechaçada por meio de
um discurso sobre a virilidade que se apropria das imagens e símbolos religiosos.
Nesse aspecto, como aponta David Morgan (1999), por exemplo, valeria a pena notar
o processo de masculinização de Cristo, evitando-se retratos efeminados do mesmo
na história do cristianismo ao longo do século XX.
3. Naturalização da heteronormatividade
47
outros, praticando torpezas homens com homens e rece-
bendo em si mesmos a paga da sua aberração.
40
“O Candomblé assume a homossexualidade de forma transparente e tenta compreendê-la dentro
da sacralidade do mundo, através de uma linguagem também religiosa” (Wilson Caetano de Sousa
Júnior. “Monocó, Adé, Mona e Folhas: a homossexualidade nos terreiros do Candomblé”, Mandrágora,
n.5, 1999, p.65.
41
Veja, por exemplo, Nilza Menezes. A violência de gênero nas religiões afro-brasileiras. João Pessoa:
Editora da UFPB, 2012 e Eduardo M. de A. Maranhão Filho. “A aniquilação de uma mulher transexual no
candomblé através do Facebook”. In: Sandra Duarte de Souza e Naira Pinheiro dos Santos (organizado-
ras). Estudos feministas e Religião: tendências e debates, p.269-285.
48
(iii) desnaturalizar a heteronormatividade. Tais representações progressistas encon-
tram-se espraiadas em igrejas tradicionais, em novas denominações explicitamente
inclusivas, em organizações não-governamentais e na própria teologia. Vejamos.
No campo católico, Católicas pelo Direito de Decidir, sobretudo, está à frente de uma
pedagogia pioneira em romper o silêncio acerca da violência contra mulheres. Pri-
orizando os direitos das mulheres, ao invés da estrutura masculina da Igreja, Regi-
na Soares Jurkewicz (2005) desvelou-nos a violência interna da própria instituição,
com os recorrentes casos de abafamento do abuso sexual de mulheres por padres
no Brasil. A hierarquia de gênero, nesses casos, funciona para retirar a responsabi-
lidade masculina da agressão, ao culpabilizar as mulheres. Diante da imunidade da
49
imagem sacerdotal, “as denunciantes foram frequentemente culpabilizadas pelo
ocorrido, por não terem se defendido dos agressores, por traírem a Igreja Católica,
por ameaçarem a reputação ilibada de um sacerdote, por serem irresponsáveis, por
assediarem os padres” (p. 75).
Levar em consideração as análises feministas e os estudos de gênero faz com que,
por vezes, as próprias instituições procurem estabelecer planos de ação para se com-
bater a violência contra as mulheres na Igreja. É o caso, por exemplo, da Federação
Luterana Mundial em seu documento “As Igrejas dizem ‘NÃO’ à violência contra a
mulher”, resultado de um trabalho realizado entre 1990-2001. A mensagem cristã da
cura é aqui primordial, entretanto, não tem qualquer ligação com a teologia conser-
vadora do fundamentalismo cristão. A cura do pecado nomeado – a violência contra
as mulheres – se dá por meio de ações concretas para se erradicar esta violência tan-
to na Igreja quando na sociedade. Entre elas, para uma mudança estrutural e cultural
profunda, certamente está a tarefa de reconhecer criticamente as características pa-
triarcais da Igreja e de seus conceitos teológicos a fim de romper com o condiciona-
mento das mulheres para uma vida de sofrimento, sacrifício e servidão.
50
A violência do modelo é escancarada quando se pergunta sobre a expectativa e a re-
alidade de sua efetivação, em especial, nos corpos de homens empobrecidos de nos-
so continente. Como sugere Diego Irarrazaval (2003), na América Latina grande parte
dos homens possuem pouco trabalho e má remuneração, por isso a masculinidade é
uma carga muito pesada; ser homem é ser frágil e sofrido. Falar sobre tais sofrimen-
tos, descentralizando o poder masculino dominador, é um primeiro passo conscien-
tizador para a construção de masculinidades alternativas e o estabelecimento de no-
vas relações de gênero. Verdadeiramente, é a partir desse espaço de representação
crítica que se pode “recuperar e dinamizar imagens masculinas de Deus associadas
a homens que cuidam, que pensam, que doam e que partilham enquanto caminho
teológico de associação da masculinidade à paz e à justiça” (SCHULTZ, 2006, p. 49).
3. Desnaturalizando a heteronormatividade
Pelo caráter performático que os textos bíblicos possuem nas discussões sobre di-
reitos sexuais com fundamentalistas cristãos, a primeira tarefa de grupos religiosos
ocupados em construir representações inclusivas envolve determinar o contexto pa-
triarcal/heterôcentrico das Escrituras, bem como de sua interpretação. Nesse senti-
do, os “textos de terror” foram o alvo imediato do labor teológico. Recontextualizan-
do textos básicos para a abjeção contemporânea de sexualidades não heterossexuais
(como os de Gênesis 19,1-11; Levítico 18,22; 20,13; Romanos 1,26-27; 1Coríntios 6,9-
10 e 1Timóteo 1,8-10), a teologia retirou do armário a heteronormatividade imposta
como princípio interpretativo conservador. (HANKS, 1999). De fato, os textos utiliza-
dos de maneira fundamentalista para silenciar a homossexualidade, por exemplo,
são textos bastante marginais na literatura bíblica. Igualmente, os contextos espe-
cíficos desses textos são ignorados pela interpretação literal do fundamentalismo
cristão. Para nos atermos apenas ao caso de Levítico, vejamos o parecer do teólogo
luterano Erhard Gerstenberger:
Provavelmente os autores ou compositores de Levítico se
sentiam ameaçados por qualquer atividade sexual. A men-
struação das mulheres para eles era igualmente uma fon-
te de inquietação profunda. Em todos os casos, a reação
extrema deles em Lv 18 e 20, deixa transparecer um medo
enorme da sexualidade em geral....a condenação radical é
um produto do medo e, quem sabe, um instrumento de
poder para os governantes da comunidade ( 1999, p. 86).
51
Em outro modelo de interpretação – não limitado aos “textos de terror” – o próprio
corpo subversivo à heteronormatividade é utilizado como um lugar de leitura (MUSS-
KOPF, 2005). Esse procedimento visa, sobretudo, ao deslocamento da autoridade da
Bíblia: porque insistir no texto, ao invés de em nossa corporeidade? Nesse aspecto, a
pergunta sobre o que a Bíblia diz sobre a homossexualidade perde todo o sentido. A
nova pergunta, feita desde alas progressistas das igrejas cristãs, é: o que gays, lésbi-
cas, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros tem a dizer sobre a Bíblia?
Diversas novas representações religiosas surgem a partir desta pergunta, de modo a
desestabilizar a sutil heteronormatividade das interpretações. Pensemos, por exem-
plo, em personagens bíblicos que abrem a possibilidade de aceitação e convivência
entre pessoas do mesmo sexo: Davi e Jônatas (2Samuel 1,17-27) e Rute e Noemi (Rute
1,16-17) certamente são os símbolos mais recorrentes para apoiar novas relações de
gênero e sexualidade. Ou ainda em representações construídas a partir da experiên-
cia transexual que valoriza, entre outros, os eunucos bíblicos dada a recusa desse
grupo social em construir sua identidade em virtude do binômio dualista de gênero.
Estes são todos exercícios fundamentais para, desde os próprios símbolos religiosos,
subverter a estrutura heteronormativa das igrejas e da sociedade.
52
logias renovadas em prol do debate feminista? Aceitar a proposição de que as rep-
resentações progressistas são exceções elitistas que não têm a força de acolhida
popular equivaleria na renúncia da tarefa utópica e erótica da pedagogia feminista42.
Sem renunciá-la, pois, quais os desafios atuais de tal pedagogia na esfera religiosa?
O primeiro deles certamente envolve a própria divulgação. É sabido que a educação
é fundamental enquanto operação de hegemonia43. As representações religiosas
conservadoras, ao que parece, possuem maior espaço educativo – em especial, nas
mídias brasileiras – justamente por contribuem para com a manutenção local da or-
dem global em que a grande maioria da população mundial não é sujeito de direitos
humanos. Ivone Gebara esclarece, com extrema lucidez, as articulações de tal hege-
monia pedagógica:
42
Sobre a referida pedagogia, veja bell hooks. Teaching to Transgress: Education as the Practice of Free-
dom. Nova York: Routledge, 1994.
43
Para essa relação, veja Joseph Buttigieg. “Educação e hegemonia.” In: Carlos Nelson Coutinho e An-
dréa de Paula Teixeira (organizador@s). Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003, p.39-49.
53
sas progressistas em um labor sociológico que encaminhe tanto ausências quanto
emergências no plano da transformação social44. Esse procedimento encaminharia
a expansão do domínio das experiências sociais já disponíveis e, ao mesmo tempo, a
expansão do domínio das experiências sociais possíveis, fazendo com que os conteú-
dos emancipatórios de representações religiosas não amplamente divulgadas repre-
sentassem, por fim, uma real alternativa religiosa ao debate feminista em torno da
laicidade e da formação de cidadãos e cidadãs.
Nesse aspecto, a Transversalidade da categoria de gênero acabaria por oferecer um
momento oportuno (kairós) para o próprio diálogo interreligioso que, nesse caso,
certamente ultrapassaria os estreitos interesses masculinos institucionais, ao vol-
tar-se para os anseios e resistências de grupos religiosos subalternos . A experiência
(corporal e cotidiana) das mulheres e de outros grupos sociais subordinados às nor-
mas hierárquicas de gênero no interior de sistemas religiosos em que, ironicamente,
são a maioria, deveria ser o elemento-chave na tarefa ética de reconfiguração plu-
ralista e democrática das representações religiosas.
Verdadeiramente, entre o prenúncio e o anúncio de um outro mundo possível – entre
a utopia e a experiência de relações de gênero renovadas – temos grandes desafios
pedagógicos pela frente. No que tange ao Agora, contudo, espaços como este pro-
porcionado pelo curso “Gênero e Diversidade na Escola” podem, exemplarmente,
abrigar e fomentar “mundos simbólicos que expressem de forma mais ajustada para
os tempos de hoje nossa sede de sentido e de amor” (GENARA, 2000, p. 170).
44
Para o aprofundamento metodológico desta sociologia, confira Boaventura de Sousa Santos. “Para
uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências.” In: Luiz Carlos Susin (organizador).
Teologia para outro mundo possível. São Paulo: Paulinas, 2006, p.169-217.
45
Esse aspecto vital de reconstrução das bases do diálogo interreligioso é proposto, entre outros, por
Lieve Troch. “No caminho da resistência e da compaixão. Discursos dominantes e alternativos para o
diálogo entre religiões.” In: Luiz Carlos Marques (organizador). Religiosidades populares e multicultur-
alismo: intolerâncias, diálogos, interpretações. Recife: Editora da UFPE, 2010, p.123-142.
54
Referências Bibliográficas
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vol.2.
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Louro (organizadora). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autên-
tica, 2010.
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conservadora dos evangélicos nas mídias no Brasil. In: SOUZA, Sandra Duarte; SANTOS,
Naira Pinheiro. (Org.). Estudos Feministas e religião. Tendências e Debates. 1ed.Curitiba/São
Bernardo do Campo: Prismas/UMESP, 2014, v. 1, p. 101-126.
GEBARA, Ivone. Rompendo o silêncio: uma fenomenologia feminista do mal. Petrópolis: Voz-
es, 2000.
MORGAN, DaviD. Visual Piety: a History and Theory of Popular Religious Images. Berkeley:
University of California Press, 1999.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. São Paulo:
Cortez, 2013.
55
SCHULTZ, Adilson. Isto é o meu corpo – e é corpo de homem: discursos sobre masculinidade
na Bíblia, na literatura e em grupos de homens. In: Marga Ströher, Wanda Deifelt e André
Musskopf (orgs.). À flor da pele: ensaios sobre gênero e corporeidade. São Leopoldo: Sinodal,
2004.
SILVA, Eliane Moura da. Fundamentalismo evangélico e questões de gênero: em busca de per-
guntas. In: Sandra Duarte de Souza (organizadora). Gênero e Religião no Brasil. São Bernar-
do do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2006.
SOUZA, Sandra Duarte; SANTOS, Naira Pinheiro dos. (organizadoras). Estudos feministas e
religião: tendências e debates. Curitiba: Prismas, 2014.
STRÖHER, Marga; DEIFELT, Wanda; MUSSKOPF, André (orgs.). À flor da pele: ensaios so-
bre gênero e corporeidade. São Leopoldo: Sinodal, 2004.
SUSIN, Luiz Carlos (organizador). Teologia para outro mundo possível. São Paulo: Paulinas,
2006.
VELOSO, Marcelo Augusto. Uma abordagem de gênero a partir da religião – gênero masculino
e cristianismo”. In: André Musskopf e Marga Ströher (org.). Corporeidade, etnia e masculin-
idade. São Leopoldo: Sinodal, 2005.
VILHENA, Valéria Cristina. Pela voz das mulheres: uma análise da violência doméstica en-
tre mulheres evangélicas atendidas no Núcleo de Defesa e Convivência da Mulher – Casa
Sofia. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2009, p.94 (dissertação
de Mestrado).
56
Direitos reprodutivos e religião
Isabel Aparecida Felix
ENSINANDO A TRANSGREDIR46
Historicamente no Brasil a década de 1980 foi marcada pelas lutas dos diversos mov-
imentos sociais pelo retorno da democracia. Dentre esses, segundo Miriam Ventu-
ra (2009), o movimento feminista trouxe reivindicações “em relação à melhoria das
políticas de saúde, especialmente, o acesso às informações e aos meios para o pleno
exercício dos Direitos Reprodutivos” (p. 29). Com isso, o movimento feminista con-
tribuiu para ampliar a discussão sobre a regulação da fecundidade, incorporando-a
“na agenda da saúde e dos direitos humanos” (p. 29).
46
Ensinando a transgredir é o título do livro de Bell Hooks. São Paulo: Martins Fontes, 2013. – o qual me
inspirou muito para escrever este texto, por isso tomei emprestado.
57
Em 1983, em nível Federal foi criado pelo Ministério da Saúde o Programa de As-
sistência Integral à saúde da Mulher (PAISM), indo além do atendimento as questões
reprodutivas que teve também “o desafio de implementar o planejamento familiar.”
(CAVALCANTE & XAVIER, 2014, p. 6). “Atualmente, as ideias centrais do PAISM são
implementadas por meio da Política Nacional de Saúde Integral da Mulher, coorde-
nada pela Área Técnica de Saúde da Mulher, da Secretaria de Atenção à Saúde do
Ministério da Saúde” (VENTURA, 2009, p. 29).
58
O planejamento familiar orienta-se por ações preventivas
e educativas e pela garantia de acesso igualitário a infor-
mações e, meios, métodos e técnicas disponíveis para a
regulação da fecundidade.
Parágrafo único – O Sistema Único de Saúde promoverá o
treinamento de recursos humanos, com ênfase na capac-
itação do pessoal técnico, visando à promoção de ações
de atendimento à saúde reprodutiva.
Vale lembrar que conforme o Código Penal brasileiro de 1940, em seu artigo 128, o
aborto está penalizado. No Brasil o aborto é considerado legal nos seguintes casos:
i- se não há outro meio de salvar a vida da gestante, risco de vida para a mãe; ii- caso
de gravidez resultante de estupro. Em 2012 o Supremo Tribunal Federal aceitou a
solicitação de despenalização também para os casos de anencefalia do feto.
59
Direitos Reprodutivos na esfera internacional
Destacamos aqui apenas alguns acordos e compromissos assumidos pelo Brasil nas
questões de Direitos Reprodutivos incluídos nas Plataformas de Ação das Conferên-
cias Internacionais da Organização das Nações Unidas (ONU) na qual o Brasil é mem-
bro e signatário (VENTURA, 2009).
1- II Conferência Mundial sobre Direitos Humanos de Viena que aconteceu em
1993 na cidade de Viena na Áustria e foi presidida pelo Brasil;
2- Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), mais
conhecida como Conferência do Cairo; aconteceu nos dias 05 a 13 de setembro de
1994, na cidade do Cairo, Egito. Esta Conferência “conferiu papel primordial à saúde
e aos direitos reprodutivos, ultrapassando os objetivos puramente demográficos e
enfatizando o desenvolvimento do ser humano de forma integral.” (CAVALCANTE &
XAVIER, 2014, p. 4).
O resultado desta Conferência foi um acordo internacional assinado em regime de
consenso, mas não isento de interesses contraditórios (VARGAS, 2014, p. 20), por
179 países membros da ONU; inclusive o Brasil, que é signatário. Na agenda política
do Programa de Ação do Cairo a questão de direitos reprodutivos obteve um caráter
primordial e “propiciou uma mudança fundamental de paradigmas: das políticas pop-
ulacionais stricto sensu para a defesa das premissas de direitos humanos, bem-estar
social e igualdade de gênero e do planejamento familiar para as questões da saúde e
dos direitos sexuais e reprodutivos” (CORRÊA, JANUZZI, ALVES, 2014). As questões
relativas à contracepção, maternidade, mortalidade materna, infertilidade, aborto,
DST/AIDS, planejamento familiar, foram colocadas em uma “perspectiva de direito e
empoderamento das mulheres”.
Mais especificamente no Capítulo VII que trata sobre direitos de reprodução e saúde
reprodutiva, encontramos a seguinte definição de direitos reprodutivos:
60
casais e indivíduos de decidir livre e responsavelmente o
número, o espaçamento e a época de seus filhos, e de ter
informação e meios de fazê-lo, assim como o direito de
atingir o nível mais elevado de saúde sexual e reproduti-
va[...]” (Nações Unidas,1994, parágrafo 7.3:41).
61
(CPD), que se deu a revisão e avaliação das conquistas, os resultados, os obstácu-
los e desafios dos compromissos assumidos naquele período. O processo envolveu
delegações governamentais, comunidades, instituições internacionais e setores da
sociedade civil47.
No Documento de Organizações da Sociedade Civil brasileira para Cairo+20, encon-
tramos a seguinte avaliação sobre alguns avanços acontecidos no Brasil referentes a
questões de Direitos Reprodutivos e saúde reprodutiva:
47
Ver o que aconteceu na Conferência no site oficial da UNFPA: http://www.unfpa.org.br/novo/index.
php/cipd-alem-de-2014 e no site das organizações feministas: http://www.cairo20mulheres.org/#st-
hash.GQGecTKi.dpbs
48
Ver em: http://www.dhescbrasil.org.br/attachments/889_documento_cairo+20.pdf, p.3
62
pilares dessa tendência conservadora é a tentativa de aprovação do Projeto de Lei nº
478/2007,” mais conhecido como “Estatuto do Nascituro” – os “ainda-não–nascidos”.
Este Projeto de Lei defende que, “o embrião fica definido como um ser humano a
partir da concepção até mesmo antes de alcançar o útero por meios naturais ou após
a fertilização in vitro.” Este projeto de lei foi aprovado no dia 19 de maio de 2010 na
Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados. Hoje, ele está na
Comissão de Finanças e Tributação da Câmara, sob relatoria do deputado evangélico
Eduardo Cunha (PMDB-RJ) aguardando votação.
As organizações feministas e de mulheres e alguns especialistas apresentam algu-
mas razões pelas quais o Projeto de Lei nº 478/2007 deve ser rejeitado (CFEMEA,
2014):
1.Mulheres de baixa renda, negras, com baixo nível educacional e limitado aces-
so aos serviços de planejamento familiar seriam desproporcionalmente afeta-
das, pois são as mais prováveis de morrer ou sofrer complicações devido a abor-
tos inseguros.
2.Viola as leis constitucionais brasileiras, que protegem o direito à saúde e ao
cuidado à saúde reprodutiva da mulher, que inclui o aborto seguro previsto em
lei.
3.A lei poderia criar um obstáculo ao acesso a contraceptivos, como contra-
cepção de emergência, ou outros contraceptivos hormonais, pois eles poderi-
am ser interpretados como uma violação dos direitos do embrião.
Outro Projeto de Lei que foi alvo do conservadorismo religioso foi o PL 3/2013, após
ter sido aprovado na íntegra tanto no Senado como na Câmara dos Deputados e en-
viado para ser sancionada pela Presidenta. Segundo a ministra Eleonora Menecucci,
63
Porém, lideranças dos grupos religiosos Católicos, Evangélicos e Espíritas tentaram
obter o veto da Presidenta pelo fato de compreender que o termo “profilaxia da
gravidez” estimularia a prática de abortos no Sistema Único de Saúde.
Esses dois fatos mostram o quando algumas lideranças religiosas, que são represen-
tadas no Congresso Nacional e em outras instâncias de poder, tentam impor seus
valores, crenças e visão de reprodução e sexualidade a toda a população brasilei-
ra, principalmente às mulheres. Com esse tipo de estratégia, não contribuem para
fomentar o debate público sobre as questões dos Direitos Reprodutivos. Para uma
questão de esclarecimento, abro um parêntesis como fez Jaris Mujica (2011, p. 94):
“(os grupos conservadores têm o direito de existir e não se trata de um confronto
contra suas crenças, mas sim de um debate em torno aos temas ligados aos direitos)”.
Por outro lado, concordamos plenamente com o sociólogo argentino Juan Marco
Vaggione quando afirma que as manifestações patriarcais e heteronormativas das
religiões são somente uma faceta do fenômeno religioso. Podemos também en-
contrar no interior das religiões, tanto pessoas leigas como membros da hierarquia,
teólogos e teólogas que “denunciam e se mobilizam contra ordens sociais injustas
(como o patriarcado e a heteronormatividade), dotando a religião de conteúdo igual-
itário e de justiça social” (2008, p. 11).
Como bem exemplifica a teóloga feminista Católica Mary Hunt ao comentar que o
Vaticano tentou bloquear o consenso tanto na Conferência do Cairo, como na Con-
ferência da Mulher, em Beijing. Porém em ambas as Conferências o Vaticano teve que
“enfrentar uma coalizão de mulheres progressistas de uma variedade de tradições
religiosas, com forte apoio da Organização não governamental Católicas pelo Direito
de Decidir” (2001, p. 20).
A ONG internacional Católicas pelo Direito de Decidir está presente no Brasil e tem
como um dos seus objetivos: “Contribuir com a construção do discurso ético-teológi-
co feminista pelo direito de decidir que defenda a autonomia das mulheres, a diver-
sidade sexual, a justiça social e o direito a uma vida sem violência” (Católicas pelos
Direito de Decidir, 2014).
49
Nota da ministra Eleonora Menicucci sobre a sanção do PLC 03/2013. Disponível em: http://www.cfe-
mea.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4010:nota-da-ministra-eleonora-men-
icucci-sobre-a-sancao-do-plc-032013&catid=219:noticias-e-eventos&Itemid=154
64
Tanto no Brasil como em outros países da América Latina, o discurso ético-teológico
feminista conta com o apoio de diversas teólogas e teólogos que compartilham dos
objetivos de Católicas pelo Direito de Decidir, como é o caso de Ivone Gebara.
Em 1995, Gebara deu uma entrevista à Revista Veja sobre a questão do aborto. Por
discordar do pensamento oficial da Igreja Católica, o Vaticano decidiu silenciá-la,
obrigando-a a refazer seu doutorado em uma Universidade da Europa, para “corrigir
suas imprecisões teológicas”. Em resposta a atitude autoritária da Igreja, ela respon-
de:
Como podemos perceber, não existe um pensamento único Católico a respeito dos
Direitos Sexuais e Reprodutivos. Isso também acontece dentro de várias outras re-
ligiões e é fundamental atentarmos para isso, pois, do contrário, não estaremos fa-
zendo uma análise unilateral da realidade do pensamento das religiões sobre os Di-
reitos Reprodutivos.
Em sua edição do mês de novembro, a Revista TMP traz a seguinte campanha: “pre-
cisamos falar sobre aborto” e com ela um manifesto assinado por mulheres e homens
de diversas áreas da sociedade. Na introdução da matéria encontramos a seguinte
afirmação e questionamento da apresentadora de TV Marília Gabriela: “Estamos di-
ante de um fato: no Brasil, as mulheres morrem por abortos mal feitos há décadas.
Nós, como sociedade, pretendemos continuar cúmplices dessa mortandade? “Precis-
amos falar sobre aborto”50, podemos aqui engrossar a campanha é conclamar: “Pre-
cisamos falar, conversar, debater sobre Direitos Reprodutivos”.
50
Disponível em: http://revistatpm.uol.com.br/reportagens
65
Algumas pesquisas apontam que a maioria da população não está rezando no cate-
cismo do conservadorismo religioso. A pesquisa feita pelo instituto Bendixen&Ar-
mandi International aponta isso. A pedido do portal de notícias hispano-americano
Univisión com um levantamento realizado com uma amostra de 12.038 católicos
em 12 países dos cinco continentes, concluíram que: “Os dados coletados no Bra-
sil mostram que a maioria das pessoas que professa a fé católica não comunga da
doutrina da Igreja Católica em temas relacionados aos direitos sexuais e direitos re-
produtivos, tais como: o aborto (81%), ao uso de anticonceptivos (93%)”51.
Na mesma linha da pesquisa acima, em 2006, a ONG Católicas pelo Direito de De-
cidir solicitou uma pesquisa ao Instituto Brasileiro de Opinião Pública e estatística
(IBOPE), para saber a opinião da população em relação ao aborto. O IBOPE entrevis-
tou 2002 pessoas em 143 municípios brasileiros, e revelou que:52
•65% da população está de acordo que uma mulher pode interromper a gravi-
dez quando está em risco de morte;
•52% das pessoas entrevistadas afirma concordar com o direito das mulheres
decidirem interromper a gravidez decorrente de estupro;
•61% da população afirma que a decisão sobre uma gravidez não planejada
deve ser das mulheres.
Porém, essa mesma pesquisa aponta que 96% das pessoas brasileiras não têm infor-
mação sobre a que serviços recorrer em caso de violência sexual. E quase metade
dos brasileiros (48%) desconhece as situações em que o aborto pode ser feito legal-
mente.
Se por um lado a pesquisa do IBOPE aponta que em relação às questões relativas ao
aborto, as pessoas entrevistadas transgridem as normativas da Igreja e se posicio-
nam dentro de uma perspectiva de direitos, por outro lado demonstram a falta de
informações necessárias para ter acesso ao direito à saúde reprodutiva e ao aborto
legal.
Tais dados nos dão uma mostra de que há uma lacuna séria de falta de acesso à infor-
mação sobre políticas públicas e legislação sobre os Direitos Reprodutivos no Brasil
e sem informação dificilmente haverá o empoderamento – questões essas defendi-
51
Dados da pesquisa Disponível em: http://catolicas.org.br/biblioteca/artigos/descriminalizacao-abor-
to-revistactb/
52
O resultado completo da pesquisa está Disponível em: http://catolicas.org.br/biblioteca/publicacoes/
opiniao-publica-aborto/ .
66
das pelas Conferências Internacionais, como vimos anteriormente. Entretanto, para
que as mulheres, meninas e homens sejam de fato sujeitos de Direitos Reproduti-
vos e para que estes direitos se tornem efetivos, é de fundamental importância con-
hecê-los, conscientizar-se e empoderar-se.
Tanto o discurso como as estratégias de alguns grupos religiosos conservadores no
espaço político brasileiro, não têm contribuído para o avanço do empoderamento e
nem para o acesso à informação das mulheres, meninas e homens sobre os Direitos
Reprodutivos. Nesse sentido, podemos afirmar que tanto o discurso como a prática
destes grupos se assemelham ao que Paulo Freire (1987) denominou de “Educação
Bancária”, onde o educador é o detentor do conhecimento, enquanto que, os educan-
dos são meros receptáculos passivos deste conhecimento. O educador mantém uma
postura rígida, inflexível, para quem os educandos são simplesmente objetos e não
sujeitos do processo de construção de conhecimento. Com esta postura, rouba-lhes
o direito à autonomia, a capacidade para dialogar e debater e o direito de nomear.
Para contrapor à Educação Bancária, Freire propôs uma educação dialógica, prob-
lematizadora e libertadora. Uma educação onde “ninguém educa ninguém, mas tam-
bém “ninguém se educa sozinho”, onde o processo do conhecimento se dá no diálo-
go, no debate das divergências e confluências de pensamentos e experiências dos
diferentes sujeitos. Uma educação que através das práticas pedagógicas tem em vis-
ta a conscientização e transformação das mais diferentes realidades de dominação.
O processo de empoderamento e de acesso às informações sobre Direitos Repro-
dutivos de mulheres, meninas e homens pode ser pensado também a partir de uma
perspectiva de uma “Pedagogia Engajada”, nos termos de Bell Hooks (2013). Esta
pedagogia nos alerta da importância da criação de estratégias para que tanto educa-
dores, como educandos entrem no processo de conscientização do que são Direitos
Reprodutivos e como fazer para acessá-los enquanto sujeitos de direitos e não “con-
sumidores passivos” das leis e políticas públicas. Para isso é fundamental ver os seres
humanos de forma integral, “com vidas e experiências complexas, e não como meros
buscadores de pedacinhos compartimentalizados de conhecimento” (p. 27).
Para tanto, é necessário possibilitar a criação de espaços participativos para a par-
tilha de conhecimento sobre os Direitos Reprodutivos, priorizando o diálogo e o de-
bate a partir das experiências de cada sujeito do processo. Nesse processo, é funda-
mental estar aberta para a interação social e não somente para os conhecimentos
livrescos, pois essa “práxis é um agir e refletir sobre o mundo a fim de modificá-lo”
(HOOKS, 2013, p. 27).
67
Em seu livro “Medo e Ousadia: o cotidiano do Professor”, Freire defende que “Enga-
jar-se em um processo permanente de iluminação da realidade com os alunos, lutar
contra a falta de nitidez e o ocultamento da realidade tem algo a ver com evitar cair
no cinismo.” Em nossa temática, trabalhada até aqui, pudemos perceber que para
algumas lideranças de grupos religiosos falta nitidez, por ocultarem deles mesmos
e da população as conquistas já alcanças em relação aos Direitos Reprodutivos, che-
gando a cair no cinismo.
68
Referências Bibliográficas
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70
Políticas públicas de gênero no campo da
educação
Mareli Eliane Graupe
Lúcia Aulete Búrigo de Sousa
51
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, Título I, dos Princípios Fundamentais, Art. 3,
IV. Enuncia que “[...] homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Consti-
tuição”. (Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo I, Dos Direitos e Deveres Individuais
e Coletivos, Art. 5º, inciso I).
72
•Politics (processo políticos): refere-se ao processo político, freqüentemente
de caráter conflituoso, no que diz respeito à imposição de objetivos, aos con-
teúdos e às decisões de distribuição;
•Policy (contudo da política): trata dos conteúdos concretos, isto é, da configu-
ração dos programas políticos, aos problemas técnicos e ao conteúdo material
das decisões políticas.
As colocações dessas/es autoras/es nos permitem pensar não somente no conceito,
mas também na questão dos sistemas responsáveis pela elaboração e implemen-
tação do conjunto de leis que nos levam a apreender os limites e potencialidades
de uma política pública. Entendemos que faltam conhecimentos por parte da popu-
lação quanto a isso, o que nos leva aos sistemas políticos e suas ações. Desse modo,
refletimos sobre de que modo podemos contribuir com as lutas em favor daquela/
es que são discriminadas/os, excluídas/os da sociedade, para que possam reconhecer
e exigir direitos, sugerir propostas e acompanhar a execução de ações governamen-
tais. Isso, a princípio, pode ser feito na escola e é nela também que podemos discutir
e trabalhar com as questões de gênero para que a igualdade de direitos nesses casos
seja para todas/os.
Conforme observa Guacira Lopes Louro, as políticas curriculares são alvo da atenção
de setores conservadores, na tentativa de regular e orientar crianças e jovens den-
tro de padrões que consideram moralmente sãos. (LOURO, 1997, p. 130). Rosemberg
(2001) chama a atenção a respeito do quanto precisamos conhecer as políticas públi-
cas educacionais para podermos diminuir as desigualdades de gênero. A autora iden-
tifica que
73
Observamos que isso está condicionado a um contexto histórico, social, político e
econômico. No Brasil, situa-se na década de 1980, marcada pelos embates e mov-
imentos que levaram à abertura política com consequente fim da ditadura militar.
As mudanças que acompanharam o processo de redemocratização da sociedade
brasileira resultaram na garantia, pelo menos na legislação, dos direitos sociais e in-
dividuais. Também oportunizaram eleições diretas para a Presidência da República
e elaboração da nova Constituição Federal, que acolheu desejos da população, um
deles parte de antigas demandas dos movimentos das mulheres.
Referindo-se à questão da cidadania e igualdade de direitos das pessoas54, Carvalho
(2007) afirma que
De fato, através dos movimentos organizados e levados a campo por mulheres reg-
istra-se historicamente suas conquistas e suas lutas para buscar a superação das
desigualdades sociais e políticas produzidas nas diferenças de sexo, gênero, raça e
cor.
A Constituição de 1988 foi elaborada sob a perspectiva de padrões democráticos e
de reformas educacionais, sabendo-se que a política educacional não tem um papel
neutro, separado de preconceitos, dentre eles o de gênero.
54
No ocidente, as mulheres obtiveram gradativamente acesso à educação a partir do século XIX e ao
longo do século XX. No Brasil, elas conquistaram o direito ao voto em 1932. Mas, em um contexto ger-
al, as mulheres brasileiras ainda ganham menos do que os homens, embora sejam mais escolarizadas.
Em janeiro de 2008, segundo dados do IBGE, o rendimento médio das mulheres equivalia a 71,3 % do
recebido pelos homens; e as mulheres com nível superior recebiam 60% do rendimento dos homens
(IBGE, 2008).
74
No contexto da Constituição Federal de 1988, Tatiana Lionço ressalta:
75
de desempenho e fluxo escolar, formação docente e
também aspectos específicos como gênero, raça e dire-
itos humanos. [...] a intersecção das relações de gênero e
educação ganhou maior visibilidade nas pesquisas educa-
cionais somente em meados dos anos 1990, com grandes
avanços na sistematização de reivindicações que visam
à superação, no âmbito do Estado e das políticas públi-
cas, de uma série de medidas contra a discriminação da
mulher. Tais medidas se revelam, porém, plenas de con-
tradições entre a defesa da ampliação dos direitos e a óti-
ca da restrição do papel do Estado nas políticas públicas
sociais, entre elas a educação (VIANNA e HUNBEHAUM,
2004, p. 2).
Admitir a ótica de gênero vem ao encontro das mudanças na educação que ganha-
ram ênfase através de pesquisas educacionais. Outro ponto é o de que no mesmo
momento em que se constituem documentos políticos a partir de reivindicações
para acabar com a discriminação contra mulheres, os mesmos dificultam esse pro-
cesso com negações quanto à expansão de direitos e diminuição das funções a serem
executadas pelas esferas pública e social.
A conquista da igualdade pressupõe a premência de conquista e autarquia das mul-
heres, para desenvolverem o poder de determinação e autonomia sobre o próprio
corpo e vida. Ao reforçar o histórico sobre as conquistas da década de 1990, Mariano
destaca que
76
a implementação do direito à igualdade faz parte de
qualquer projeto democrático, pois democracia signifi-
ca igualdade (no exercício dos direitos civis, políticos,
econômicos, sociais e culturais) e a busca democrática
requer o exercício dos direitos humanos elementares e o
direito à igualdade, que pressupõe o direito à diferença,
inspirado na crença de que somos iguais, mas diferentes
(PIOVESAN, 2006, p. 43).
77
Com a reforma administrativa aconteceu uma síntese das definições nas políticas
para a educação básica, prevalecendo sistemas para avaliação e compra de materiais
didáticos e salários de profissionais, ficando de lado o reconhecimento de impor-
tantes ações do Estado quanto a programas sociais com o objetivo de diminuir dis-
criminações e desigualdades sociais.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação nacional, na forma da Lei Federal n. 9.394,
de 1996, refere que o ensino “deve ser oferecido na base da igualdade de condições
para o acesso e a permanência na escola, reconhecendo e promovendo a multiplici-
dade de ideias e de concepções pedagógicas” (LIONÇO, 2009, p. 6).
78
conferem maior flexibilidade ao trato dos componentes
curriculares, configurando - como o próprio nome diz -
apenas uma referência e, portanto, não se importando
como diretriz obrigatória. Mesmo assim pretendem esta-
belecer uma meta educacional para a qual devem conver-
gir as ações políticas do MEC, tais como as relativas aos
projetos voltados para a formação inicial e continuada de
professores/as, à análise e compra de livros e outros ma-
teriais didáticos e à avaliação nacional (VIANNA e UNBE-
HAUM, 2004, p. 36).
79
a serem adotadas por diversos setores de governo para
reverterem o quadro de marginalização e exclusão social
que caracteriza essa população. Em 1997-8, os Parâmet-
ros Nacionais, incorporam a questão da orientação sexual
nos temas transversais, com sentido de educação sobre
e para a sexualidade. O Ministério da Educação está in-
vestindo muito na qualificação dos professores e profes-
soras em relação ao tema (LIONÇO, 2009, p. 7).
Após esse reconstituir histórico com o propósito de adentrar o universo das esferas
políticas públicas, conhecendo os caminhos percorridos da sexualidade, intenciona-
mos compreender como o trabalho com gênero na educação pode ser importante
para mudanças significativas nas práticas pedagógicas e sociais com o intuito das
práticas discriminatórias preconceituosas no espaço escolar.
No final da década de 1990, a temática gênero ganhou espaço nas propostas educa-
cionais brasileiras, mais especificamente por meio dos PCN. Eles foram elaborados
pelo Ministério da Educação (MEC) e publicados em 1997.
A abordagem das questões de gênero faz parte do tema Transversal “Orientação
Sexual” e justifica-se mediante a necessidade de crianças e jovens refletirem sobre
os estereótipos, os papéis sociais atribuídos para cada sexo na escola. O conceito de
gênero é definido nos PCN como:
80
Os PCN abordam que é “inegável que há muitas diferenças nos comportamentos
de meninos e meninas. Reconhecê-las e trabalhar para não transformá-las em des-
vantagem é o papel de toda/o educador/a (BRASIL, 1998, p. 322). Desde muito cedo
vão sendo transmitidos padrões de comportamentos diferenciados para meninos e
meninas, padrões que afirmam o que é adequado e permitido para cada sexo. Prob-
lematizar estes papéis atribuídos para cada sexo pode contribuir para a construção
de direitos iguais para homens e mulheres, para a oportunidade de acesso e desen-
volvimento em todos os campos.
A pretensão dos PCN é que a perspectiva de gênero seja abordada nas escolas, de
forma que valorize os direitos iguais para os meninos e as meninas, desvinculando
os tabus e os preconceitos. Enfim, o trabalho sobre relações de gênero tem como
propósito combater relações autoritárias, questionar a rigidez dos padrões de con-
duta estabelecida para homens e mulheres e apontar para sua transformação (BRA-
SIL, 1998).
Percebemos que esse documento preocupa-se em desconstruir as generalizações
acerca dos indivíduos de certos grupos que emanam predominantemente. O grande
desafio das políticas públicas é o de simplificar a realidade complexa das diferenças
sexuais nas funções sociais.
Referenciamos os três eixos propostos pelo volume que trata de temas transver-
sais ‘orientação sexual’, para nortear a intervenção das/os professoras/es e da esco-
la: “corpo humano, relações de gênero e prevenção às doenças sexualmente trans-
missíveis/Aids” (BRASIL, 1997, v. 8, p. 28). Considerando o eixo relações de gênero,
destaca-se em sua apresentação que ele “propicia o questionamento de papéis rigi-
damente estabelecidos a homens e mulheres na sociedade, a valorização de cada um
e a flexibilização desses papéis” (BRASIL, 1997, v. 8, p. 28).
Encontramos no documento PCN “orientação sexual” o conceito de sexualidade
como “algo inerente à vida, à saúde, que se expressa no ser humano, do nascimento
até a morte. Relaciona-se com o direito ao prazer e ao exercício da sexualidade com
responsabilidade” (BRASIL, 1997, v. 10.2, p. 81).
O PCN, “orientação sexual”, é relevante para pensarmos que vivemos em constantes
mudanças e isso requer outros olhares na construção da identificação de si e dos out-
ros, no convívio com o outro na escola, na família e na sociedade, no reconhecimento
das diferenças, no respeito ao prazer e ao bem-estar das pessoas na vivência de sua
sexualidade.
81
Sendo assim, devemos considerar que existe uma política nacional, como os PCN,
elaborada com participação de várias/os xs professoras/es, e que os temas apresen-
tados envolvem questões sociais de grande importância a serem discutidas nos es-
paços escolares e fora deles. Nesse sentido, foi formulado quanto à questão ‘orien-
tação sexual’ na escola que se
Aborde as repercussões de todas as mensagens trans-
mitidas pela mídia, pela família e pela sociedade, com as
crianças e os jovens. Trata-se de preencher lacunas nas in-
formações que a criança já possui e, principalmente, criar
a possibilidade de formar opinião a respeito do que lhe é
ou foi apresentado. A escola, ao propiciar informações at-
ualizadas do ponto de vista científico e explicitar os diver-
sos valores associados à sexualidade e aos comportamen-
tos sexuais existentes na sociedade, possibilita ao aluno
desenvolver atitudes coerentes com os valores que ele
próprio elegeu como seus (BRASIL, 1997, v. 10.2, p. 83).
82
A escola, e esse é um de seus desafios, tem a diversidade como parte inerente de
seu espaço, reflexo da sociedade. Desenvolver atividades na superação das discrimi-
nações, como também na valorização quanto ao percurso particular dos grupos que
a compõem revela-se desafio e possibilidade de trabalhar contra a desigualdade e
discriminação.
Nos PCN é possível constatar certa preocupação por parte do governo com essas
políticas públicas na tentativa de desconstrução de comportamentos sociais que
caracterizam as diferenciações de comportamentos entre os sexos e possibilitam as
desigualdades e diferenças entre masculino e feminino. O grande desafio das políti-
cas públicas através de seus programas é o de estar junto à política pedagógica no
combate a qualquer violência.
Consideramos que existe uma política pública direcionada à educação e que con-
templa questões relativas a gênero. Para sua elaboração, segundo o discurso gov-
ernamental, houve a participação de vários professores e os temas apresentados
envolvem questões sociais importantes a serem discutidas nos espaços escolares e
fora deles.
Os Temas Transversais não se constituem em novas áreas de conhecimento, ou seja,
formam um conjunto de temas inseridos na grade curricular das diferentes discipli-
nas. Sobre os PCNs, segundo o Ministério da Educação, objetivava-se uma forma
para a “reorientação curricular” que as/os profissionais de educação realizassem
conforme proposta de construção coletiva do conhecimento no trabalho pedagógi-
co desenvolvidos e a elaboração de técnicas, possibilidades e materiais para desen-
volver atividades com alunas/os e ampliar a qualidade do saber.
Sugerimos a leitura integral do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT
55
83
O plano prevê como seu objetivo principal a orientação para construção de políti-
cas públicas para população LGBT e também, como combater quaisquer formas de
discriminação, promover direitos fundamentais dessa mesma população principal-
mente aos sujeitos em risco social e exposição à violência (BRASIL, 2009).
O Plano acredita que o acesso e a participação social em espaços de poder são impor-
tantes para o fortalecimento de qualquer população minoritária. As políticas públi-
cas possuem um papel importante de apoio e acolhimento aos sujeitos LGBT. Dessa
forma o plano não prevê nada além dos direitos assegurados constitucionalmente,
porém vivemos em um país onde precisamos elaborar inúmeros documentos para
real efetivação da garantia de direitos desses sujeitos segregados.
A hegemonia sexual que existe esta naturalizada e se não for a educação um dos
espaços de mudança para abordar essas práticas, não haverá mudanças efetivas,
como prevê o Plano de 2009, onde se faz necessário a “inserção da temática LGBT
no sistema de educação básica e superior, sob abordagem que promova o respeito
e o reconhecimento da diversidade da orientação sexual e identidade de gênero”
(BRASIL, 2009, p. 15).
Retornando ao foco desse tópico, gostaríamos de apresentar rapidamente o Plano
Nacional que está organizado em dois grandes eixos estratégicos, que se desdobram
em seis estratégias, que possuem diversas ações envolvendo um conjunto de órgãos
e com prazos estipulados. O primeiro eixo estratégico objetiva a “promoção e social-
ização do conhecimento; formação de atores; defesa e proteção dos direitos; sensi-
bilização e mobilização” (BRASIL, 2009, p. 20). O segundo eixo estratégico propõe
a “formulação e promoção da cooperação federativa; Articulação e fortalecimento
de redes sociais; articulação com outros poderes; cooperação internacional; gestão
da implantação sistêmica da política para LGBT”, (BRASIL, 2009, p. 20). Os prazos
estabelecidos para a implementação das ações foram classificados em curto e médio
prazo e neste caso, curto significa que as etapas de execução deviam estar contem-
pladas no Orçamento de 2009 e como médio prazo os anos de 2010 e 2011, que já
se passaram e, portanto, na atualidade estamos colhendo poucos resultados desse
plano.
No mês de maio de 2011, o material didático do “Kit de Combate à Homofobia” que
seria um instrumento importante na formação continuada de professoras/es, pois
proporcionaria subsídios pedagógicos na discussão da temática da diversidade sex-
ual no campo da educação, foi vetado pela presidenta Dilma Rousseff. Esse kit foi
84
produzido pelo Ministério da Saúde e da Educação e era composto por vídeos e um
guia para professoras/es . O Kit poderia ter sido um marco da implementação de
políticas publicas LGBT no campo da educação brasileira, e um desdobramento do
Plano LGBT que objetiva também o combate ao preconceito para com a população
LGBT nas escolas. Estas últimas mantém o padrão sexual hegemônico, porém não há
de se responsabilizar apenas a escola, a família também encontra-se meio de repro-
dução de tais padrões.
Falamos na exclusão dos sujeitos e logo pensamos em homofobia, um conceito co-
mum hoje na área da educação que foi popularizado a partir do Programa Nacional
Brasil sem Homofobia de 2004, criado para promover a cidadania dos sujeitos ho-
mossexuais (FERNANDES, 2011).
A homofobia está em um espaço de constituição de sujeitos a partir do abjeto, onde
há um padrão sexista hegemônico que rechaça o padrão desviante, ou seja, homos-
sexuais, designando esta categoria como anormal ou desviante desse padrão que,
logo é segregado e dessa forma constitui-se nesse campo abjeto (BORGES, 2011, p.
24).
De acordo com o Plano, é importante que a universalidade dos direitos humanos seja
considerada para todos os sujeitos e que qualquer tipo de discriminação e as vari-
adas formas de violência praticadas socialmente devem ser combatidas. Devemos
lembrar que, de acordo com a Constituição, todos os seres humanos nascem livres e
iguais em dignidade e direitos.
85
4.4. Direito à Cidadania (inciso II do art. 1º da Constituição
Federal);
124.5. Direito à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia,
ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à
maternidade e à infância, à assistência aos desamparados
(art. 6º da Constituição Federal);
4.6. Liberdade de manifestação do pensamento (inciso IV
do art. 5º da Constituição Federal);
4.7. Laicidade do Estado: a pluralidade religiosa ou a
opção por não ter uma religião é um direito que remete à
autonomia e a liberdade de expressão, garantidos consti-
tucionalmente;
4.8. Inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da hon-
ra e da imagem das pessoas (inciso X do art. 5º da Consti-
tuição Federal). (BRASIL, 2009, p. 12-13).
Este plano busca garantir o amplo acesso aos direitos civis da população LGBT, pro-
movendo a conscientização de gestoras/es públicas/os e fortalecendo os exercícios
de controle social. As políticas públicas devem ser implementadas com maior equi-
dade e mais condizentes com o imperativo de eliminar discriminações, combater
preconceitos e edificar uma consistente cultura de paz, buscando erradicar todos os
tipos de violência na sociedade (BRASIL, 2009).
Como nas demais políticas públicas que analisamos, encontramos a promoção ao
respeito e inserção da temática na educação, ainda que o Plano Nacional de Pro-
moção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT venha ao encontro disso, prevendo
intersetorialidades, transversalidades, educação continuada em saúde integrando
ações nessas áreas criando políticas que abarquem a temática da orientação sexual
e identidade de gênero, temos ainda um grande abismo entre essa real efetivação e
a produção dessas políticas que ainda não estão sendo implementadas no campo da
educação, de acordo com nossa análise.
86
A distribuição das matrículas, quanto ao gênero, está
equilibrada: feminino, 49,5% e masculino, 50,5%. Esse
equilíbrio é uniforme em todas as regiões do País essa
questão requer correção.. [...] tomando gênero como
sinônimo de sexo, determina, nos objetivos e metas de
gestão, a inclusão “nos levantamentos estatísticos e no
censo escolar de informação acerca do gênero, em cada
categoria de dados coletados” (BRASIL, 2001, p. 11, 97).
56
Documento-referência da política educacional brasileira, para todos os níveis de governo. Contempla
um diagnóstico da educação no país e, a partir deste, apresenta princípios, diretrizes, prioridades, me-
tas e estratégias de ação para enfretamento dos problemas educacionais do país. Tradicionalmente, os
Planos educacionais vêm sendo elaborados de forma centralizada pelos governos brasileiros, a cargo
de gabinetes ministeriais ou de comissões contratadas para esse fim, sem debates ou participação
dos setores sociais envolvidos com a educação. Na atual legislatura, o PNE está referido no Art. 214 da
Constituição Federal de 1988, que determina a sua elaboração de acordo com alguns princípios funda-
mentais. Já a sua regulamentação foi determinada apenas com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional – LDB/1996, que deixou à cargo da União, em colaboração com Estados e Municípios, e incum-
bência de elaborar o PNE, que foi aprovado pela Lei n° 10.172, de 09/01/2001. Historicamente, foi com
o chamado movimento renovador, nos anos 1920-30, que se concebeu, pela primeira vez no Brasil, a
idéia de um Plano Nacional de Educação. O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, assi-
nado por um seleto grupo de educadores, foi o documento que sintetizou as idéias desse movimento e
estabeleceu a necessidade de um plano nesses moldes. Na legislação educacional, foi na Constituição
Federal de 1934, Artigo 150, que apareceu a primeira referência ao PNE, mas sem estar acompanha-
do de um amplo levantamento e estudo sobre as necessidades educacionais do país. Para o estudo
do Plano Nacional de Educação, é fundamental a consulta ao Plano Nacional de Educação – Proposta
87
construção de uma nova ética [...] de modo a incluir, efe-
tivamente os grupos historicamente excluídos: entre
outros, negros, quilombolas, pessoas com deficiências,
povos indígenas, trabalhadores do campo, mulheres, lés-
bicas, gay, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) (BRA-
SIL, 2010, p. 56).
88
do racismo, do sexismo, da homofobia, da negação dos
direitos da infância, adolescência, juventude e vida adul-
ta, da negação do direito à terra”- para corrigir “injustiças
históricas face a determinados grupos sociais: mulheres/
homens, lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transsexu-
ais(LGBT), negros, indígenas, pessoas com deficiências,
ciganos”, e possibilitar acesso e permanência em todos os
níveis e modalidades de educação (BRASIL, 2010, p. 28).
89
da cidadania e na erradicação de todas as formas de dis-
criminação. A Estratégia 3.12 da Meta 3 foi renumerada
para 3.13 e recebeu a seguinte redação: 3.13) implemen-
tar políticas de prevenção à evasão motivada por precon-
ceito ou quaisquer formas de discriminação, criando rede
de proteção contra formas associadas de exclusão. De
volta à Câmara, o projeto foi analisado por uma Comissão
Especial, tendo como relator o deputado AngeloVanhoni
(PT/PR). Fiel ao seu Partido, Vanhoni emitiu um parecer
com complementação de voto pela reincorporação da
ideologia de gênero no PNE. Decidiu assim, 1) rejeitar o
inciso III do art. 2º do Substitutivo do Senado Federal e
retornar em seu lugar o inciso III do art. 2º do texto da
Câmara dos Deputados; [...] 34) rejeitar, na estratégia 3.13
do Substitutivo do SF, a expressão “implementar políticas
de prevenção à evasão motivada por preconceito”, resta-
belecendo em seu lugar a expressão “implementar políti-
cas de prevenção à evasão motivada por preconceito e
discriminação racial, por orientação sexual ou identidade
de gênero”, da estratégia 3.12 do texto da Câmera dos
Deputados.
57
Ideologia de gênero é um termo utilizado, especialmente, por pessoas que não aceitam que gênero
é uma construção social e cultural. Nessa compreensão, os papéis sociais esperados de homens e mul-
heres não podem ser questionados, pois estão embasados na diferença biológica. Segundo Júlio Seve-
ro aideologia de gênero “está sendo introduzida na legislação com o objetivo de destruir o conceito
tradicional da família como a união de um homem e uma mulher vivendo com compromisso de criar e
educar filhos.” (2013, s/p). Disponível online em: http://www.portaldafamilia.org/artigos/PLC122-PNE.
shtml. Esse conceito de família nuclear não representa a diversidade na constituição familiar brasileira.
Para saber maissobre o conceito de família sugerimos a leitura de: FONSECA, Claudia: Concepções de
família e práticas de intervenção: uma contribuição antropológica, Saúde e Sociedade v.14, n.2, p.50-
59, maio-ago 2005.
90
O Plano Nacional de Educação (2010- 2020) foi enviado ao Congresso Nacional em 15
de dezembro de 2010, contendo 10 diretrizes e 20 metas para as políticas voltadas
à educação no próximo decênio. Nessa primeira versão o plano contemplava várias
discussões de gênero no campo da educação. Mas, devido a divergências sobre al-
guns pontos em pauta o plano foi publicado pela Lei 13.005, de 25 de julho de 2014,
com o prazo de 2014 a 2024 com a exclusão das políticas de gênero e diversidade na
educação.
O Plano estabeleceu um total de 20 metas, às quais são associadas 253 estratégias,
a serem cumpridas em seu prazo de vigência. As metas são voltadas para a educação
básica, a educação superior, a valorização, formação e remuneração de profissionais
da educação, além da meta de investimento em educação como proporção do PIB
(BRASIL, 2014)
No plano vigente a expressão gênero aparece somente uma vez, na meta oito, quan-
do se propõe
91
Segundo o documento em questão, que sinaliza as metas para a reforma na edu-
cação, as mudanças relacionadas às políticas de gênero ficaram reduzidas e ineficaz-
es. Observa-se que as políticas públicas educacionais de gênero desenvolvidas pelo
Governo Federal para a educação básica ou superior direcionam-se mais à redução de
ações e financiamentos dos serviços já oferecidos. Quanto à solução dos problemas
que afetam diretamente a escola, principalmente as questões de gênero, aspecto
importante tanto para a formação de sujeitos livres quanto para a amenização das
diferenças em razão da discriminação sexual, o tema permanece, em nosso entendi-
mento, sendo velado ou discriminado nos documentos oficiais do Estado.
Falar sobre direitos humanos nos leva a questionamentos. O que são direitos hu-
manos? Para que servem esses direitos? Lembramos que falar sobre isso envolve
compromisso juntamente com ações. Na prática, o momento atual vem ao encontro
de uma reflexão e discussão quanto aos direitos humanos, sabendo que isso perpas-
sa um longo período de desafios e que somos chamados pela sociedade “[...] para
além do conhecer, pois envolve a tomada de consciência e o compromisso de lutar
para transformar essa realidade” (BRASIL, 2013, p. 35). De acordo com Candau:
92
Entende-se que todas/os têm direito a uma vida com dignidade e justiça, é funda-
mental que sejam orientadas/os a exigir que seus direitos se tornem leis e que as
mesmas sejam cumpridas. Também faz se necessário manter viva a luta pelos direitos
humanos e que esteja no cotidiano a postura crítica frente a toda lei. Conforme o
Plano Mundial, que conceitua Direitos Humanos
93
É na luta que os sujeitos desenvolvem os direitos. Por esta razão há necessidade de
conhecer e refletir o quanto precisamos manter vivos os movimentos populares por
uma vida de qualidade e igualitária. Sentimos também a necessidade de contextu-
alizar as declarações de Direitos Humanos
Este passo na educação é de grande importância para que os sujeitos se tornem livres
de amarras hierarquizadas e ativamente representem a vontade da maioria dentro
da lei e cumprimento dos documentos. Com o Plano Nacional de Direitos Humanos
de 2007, foi formalizada a recomendação da inclusão, nos currículos escolares, da dis-
cussão sobre a discriminação e a necessidade de um tratamento igualitário a todos
os indivíduos.
94
Essas são as diretrizes a serem colocadas em prática, havendo necessidade de se
propor medidas legislativas e políticas que garantam a diminuição das violências e
desigualdades, reconhecendo a equidade de gênero. Podemos destacar ainda os
eixos temáticos contidos no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, “[...]
raça, nacionalidade, etnia, gênero, classe social, região, cultura, diversidade religio-
sa, orientação sexual, identidade de gênero, geração e deficiência (BRASIL/PNEDH,
2007). Ficam com a responsabilidade pela efetivação das diretrizes os sistemas de
ensino e suas instituições, devendo ser adotadas por todas/os as/os envolvidas/os
nos processos educacionais. Assim, ressaltamos as políticas públicas de Direitos Hu-
manos dentro dos planos, programas e diretrizes
95
Parágrafo único. Outras formas de inserção da Educação
em Direitos Humanos poderão ainda ser admitidas na
organização curricular das instituições educativas desde
que observadas as especificidades dos níveis e modali-
dades da Educação Nacional. Art. 8º: A Educação em Dire-
itos Humanos deverá orientar a formação inicial e contin-
uada de todos (as) os(as) profissionais da educação, sendo
componente curricular obrigatório nos cursos destinados
a esses profissionais. Art. 9º A Educação em Direitos Hu-
manos deverá estar presente na formação inicial e con-
tinuada de todos (as) os(as) profissionais das diferentes
áreas do conhecimento (BRASIL, 2013, p.25-39).
96
Esse processo histórico faz-se importante para que se conheça um pouco do univer-
so das esferas políticas públicas e indícios de como o trabalho com gênero e sexu-
alidade na educação pode ser importante para mudanças significativas nas práticas
pedagógicas e sociais. Isso, com o intuito da prevenção da saúde e de práticas dis-
criminatórias preconceituosas no espaço escolar.
A necessidade de discussão nos espaços escolares com estudantes, professoras/
es e família sobre relações de gênero e sexualidade também foi lançada em 2004
a partir do Programa Brasil sem Homofobia - Programa de Combate à Violência e
Discriminação contra GLBT e de Promoção da Cidadania Homossexual, “[...] impor-
tante instrumento político para a visibilidade da necessidade de ações específicas
de enfrentamentos da homofobia” (LIONÇO, 2009, p. 7). Embora esses Programas
estejam em vigor, ainda sentimos a necessidade de serem repensadas e discutidas as
práticas educacionais, portanto acordar discussões na ótica das relações de gênero
e sexualidade com todas as suas implicações nos espaços escolares e para a vida em
sociedade.
Diante dessa realidade, no Programa Brasil sem Homofobia desencadeado pelas
ações do Conselho Nacional de Combate à Discriminação, “estão prescritas ações
intersetoriais envolvendo a Educação, Saúde, Cultura, Trabalho e Segurança Pública”.
Podemos observar que há uma preocupação governamental quanto ao envolvimen-
to de outras secretarias no mesmo tema e linguagem quando se trata de questões
sociais de discriminações e desigualdades. Aqui destacamos a educação, onde se
recomenda “[...] à formação continuada de professoras/es na área da sexualidade,
a estimulação da produção de materiais educativos sobre orientação sexual e iden-
tidade de gênero, e a constituição de equipes multidisciplinares para avaliação dos
livros didáticos” (LIONÇO, 2009, p. 7).
Igualmente importante aos Programas lançados pelo Governo, queremos destacar
outro marco político de 2008: a realização da I Conferência Nacional de LGBT, onde
substanciou-se o compromisso do governo e da sociedade brasileira com o enfrenta-
mento da homofobia. Em 2009, foi lançado o Plano Nacional de Cidadania e Direitos
Humanos LGBT, “sinalizando para as medidas necessárias a serem adotadas por di-
versos setores de governo para reverterem o quadro de marginalização e exclusão
que caracteriza essa população” (LIONÇO, 2009, p.7).
Enfim, é importante conhecermos as políticas públicas na área dos direitos humanos
e educação que contribuem nas discussões sobre gênero e sexualidade no cotidiano
escolar.
97
No Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos a educação em direitos
humanos é definida como um conjunto de atividades que objetivam a capacitação e
a difusão de informação, buscando a criação de uma cultura universal de direitos hu-
manos. Uma educação em direitos humanos não somente proporciona conhecimen-
tos sobre os direitos humanos e os mecanismos para protegê-los, mas, para além
disso, proporciona condições necessárias para a promoção e defesa dos mesmos na
vida cotidiana.
O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos apresenta metas e ações
propostas em cinco eixos: educação básica; educação superior; educação não-for-
mal; educação dos profissionais dos sistemas de justiça e segurança; e educação e
mídia. Esse plano possui uma ampla abrangência e objetiva a formação de uma cultu-
ra de respeito à dignidade humana por meio da promoção e da vivência de valores da
liberdade, da justiça da igualdade, da solidariedade, da cidadania, da compaixão, etc.
Neste contexto, a educação em direitos humanos é entendida como uma possibili-
dade de combate a todas as formas de intolerância, desrespeito, discriminação con-
tra as pessoas e de violação aos direitos humanos. Além disso, a educação em dire-
itos humanos deve promover atitudes e comportamentos necessários para que os
direitos humanos de todos/as os/as integrantes da sociedade sejam respeitados.
O programa está dividido em duas fases: a primeira fase (2005-2009) visa a imple-
mentação da educação em direitos humanos na Educação Básica. A segunda fase
(2010-2014) possui como foco o ensino superior e programas de formação em dire-
itos humanos para professoras/es e educadoras/es, servidores públicos, forças de
segurança, agentes policiais e militares em todos os níveis de formação.
A discussão da temática de direitos humanos no campo da educação é imprescindível
na perspectiva da construção de uma cultura de direitos humanos para todas/os
(homens, mulheres, negros, negras, pobres, ricos, povo da cidade, povo do interior,
moradores de rua, crianças, jovens e adultos), especialmente por meio de espaços
democráticos de debate dentro e fora da escola, que privilegiem uma sociedade in-
clusiva e humanizadora. Segundo Severino “a educação só é humanizadora se for
intencionalizada pelo conhecimento e pela valoração, desde que referidos à signifi-
cação apreendida na existência histórico-social” (2001, p. 9).
98
Plano Estadual de Educação de Santa Catarina (2004-2013)
58
O Plano representa a proposta para o decênio 2004-2013, em consonância com a legislação vigente.
Art. 214 da Constituição Federal, de 05/10/1988:Art.214 – A lei estabelecerá o Plano Nacional de Edu-
cação, de duração plurianual, visando à articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos
níveis e à integração das ações do poder público que conduzam à: I- erradicação do analfabetismo;
II- universalização do atendimento escolar; III- melhoria da qualidade de ensino; IV- formação para o
trabalho; V- promoção humanística, científica e tecnológica do país. Art. 87, § 1º da Lei nº 9.394/96 -
Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB: Art. 87 – [...] § 1º - A União, no prazo de um ano a partir
da data de publicação desta lei, encaminhará, ao Congresso Nacional, o Plano Nacional de Educação,
com diretrizes e metas para os dez anos seguintes, em sintonia com a “Declaração Mundial sobre Ed-
ucação para Todos”. Art. 166 da Constituição do Estado de Santa Catarina, de 1989 Art. 166 – O Plano
Estadual de Educação, aprovado por lei, articulado com os Planos Nacional e Municipais de Educação,
será elaborado com a participação da comunidade e tem como objetivos básicos: VI- erradicação do
analfabetismo; VII- universalização do atendimento escolar; VIII- melhoria da qualidade de ensino; IX-
formação para o trabalho; X- promoção humanística, científica e tecnológica do país. Art 2º da Lei nº
10.172, de 9 de janeiro de 2001: Art. 2º - A partir da vigência desta Lei, os Estados, o Distrito Federal e
os Municípios deverão, com base no Plano Nacional de Educação, elaborar planos decenais correspon-
dentes. Art. 82 da Lei Complementar nº 170, de 7 de agosto de 1998: Art. 82 – O Plano Estadual de Edu-
cação, articulado com os Planos Nacional e Municipais de Educação, será elaborado com a participação
da comunidade catarinense, ouvidos os órgãos colegiados de gestão democrática do ensino, incluído o
Fórum Estadual de Educação, devendo, nos termos da lei que deve aprovar [...].
99
Estadual de Educação acompanharão a execução do Pla-
no Estadual de Educação. § 2º Após as avaliações, cabe a
Assembléia Legislativa aprovar as medidas legais decor-
rentes. Art.4º O Estado instituirá um Sistema Estadual
de Avaliação e estabelecerá os instrumentos necessários
ao acompanhamento das metas constantes do Plano Es-
tadual de Educação. Art.5º Os planos plurianuais do Es-
tado e dos Municípios serão elaborados de modo a dar
suporte as metas constantes do Plano Estadual de Edu-
cação e respectivos planos decenais. Art.6º O Estado e os
Municípios ficarão responsáveis pelo financiamento da
educação pública, conforme as metas constantes deste
Plano. Art.7º Os poderes do Estado e dos Municípios em-
penhar-se-ão na divulgação deste Plano e da progressiva
realização de seus objetivos e metas, para que a socie-
dade o conheça amplamente e acompanhe sua imple-
mentação. Art.8º Esta Lei entra em vigor na data de sua
publicação. (SANTA CATARINA,, 2004, p. 9).
100
Observamos que a educação catarinense apresenta propostas de reformas na garan-
tia da permanência de salunas/os com educação integral e ainda com princípios de in-
clusão, diversidade, identidade, acesso, estada com aprendizagem com socializações
de conhecimento e intervenções pedagógicas.
Em relação à Proposta Curricular de Santa Catarina (Estudos Temáticos, 2005), res-
saltamos a importância deste documento dentro dos espaços escolares estaduais,
pois os conteúdos ministrados têm por base o que a Proposta preconiza.
É importante salientar que na Proposta Curricular usa-se o “termo jovem” para rep-
resentar alunas/os do ensino fundamental e médio. Conforme esse documento, devi-
do à faixa etária frequentada nestes períodos, optou-se por “[...] abordar a juventude
a partir do Ensino Fundamental e no Ensino Médio” (PROPOSTA CURRICULAR, 2005,
p. 70).
Os jovens das escolas públicas estaduais de catarinenses “[...] são indivíduos em for-
mação no seu sentido social, biológico, físico e mental, que se integram às relações
de uma sociedade já estabelecida, assimilando valores éticos, morais e culturais e, ao
mesmo tempo, vivendo transformações pessoais profundas” (PROPOSTA CURRICU-
LAR, 2005, p. 70). Conforme entende Louro,
101
A diferenciação de gênero tem sido historicamente
construída na vida do(a) jovem e que ainda prevalece
em nossa na sociedade. A construção dessa diferença
ainda sofre certa influência da educação de um passado
que definia seu destino futuro com base em modelos
ideológicos e pré-estabeleciam os papéis do homem e da
mulher (SANTA CATARINA, 2005, p. 77).
102
Proposta curricular de Santa Catarina (2014)
103
meninas, a cultura, a sociedade e o atual tempo histórico constroem diferentes
formas de “ser masculino” ou “ser feminino” (masculinidades e feminilidades). O
conceito “gênero” não é o mesmo que “sexo” (nossa biologia). O gênero rejeitará
o determinismo biológico e concederá ênfase cultural na distinção entre os sexos.
Com isso, o conceito de gênero enfatizará “deliberadamente, a construção social e
histórica produzida sobre as características biológicas”. (LOURO, 1997, p. 22).
Por exemplo, todos nós sabemos que os machos mamíferos, assim como os homens
da espécie humana, produzem testosterona (um hormônio relacionado com a
libido e com a agressividade). Essa é uma característica biológica determinante
do sexo. No entanto, não é porque produz testosterona que os meninos, jovens e
homens adultos devem ser “naturalmente” violentos e agressivos. A agressividade
nos homens não é a mesma em todos os países do planeta. Dependendo da cultura
e da organização social, valores educacionais e éticos se sobrepõem à biologia (ao
sexo). Esses diferentes modos de ser homem e essas diferentes possibilidades
de masculinidades (mais ou menos agressivas) exemplifica o gênero masculino e
seu caráter relativo. As condições históricas e culturais de cada sociedade passam
a ser determinantes na construção do gênero. O mesmo raciocínio poderia ser
usado para entender os diferentes modos de ser mulher existentesna sociedade.
Por exemplo, nascer mulher significa ter a capacidade reprodutiva para ser mãe (o
sexo biológico). No entanto, é a cultura que determina os muitos significados que
a maternidade assume na contemporaneidade, assim como os diversos arranjos
familiares hoje possíveis. Esses modos de “ser mulher” são apontados pelos
estudos de gênero como um direito individual e coletivo e como decorrentes das
muitas expressões de gênero, permanentemente em construção na vida humana.
Buscando a igualdade de gênero, o Brasil consolidou o Plano Nacional de Políticas
para as Mulheres (PNPM) (BRASIL, 2004a) no final de 2004, e definiu 4 metas para
as Políticas Públicas: 1. Autonomia, igualdade no mundo do trabalho e cidadania; 2.
Educação inclusiva e não-sexista; 3. Saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos
reprodutivos; 4. Enfrentamento às formas de violência.
No âmbito da educação as prioridades foram e continuam sendo: 1) promoção de
ações no processo educacional para a equidade de gênero, raça, etnia59 e orientação
sexual; 2) ampliação do acesso à educação infantil: creches e pré-escola; 3) promoção
da alfabetização e oferta de ensino fundamental para mulheres adultas e idosas,
especialmente negras e índias; 4) valorização das iniciativas culturais das mulheres;
5) estímulo à difusão de imagens não discriminatórias e não estereotipadas das
mulheres.
104
Ao se falar em gênero, não se fala apenas de macho ou fêmea, homem e mulher,
a partir do olhar biológico. O gênero remete, também, a outros corpos. Remete a
construções sociais, históricas, culturais e políticas que dizem respeito a disputas
materiais e simbólicas que envolvem processos de configuração de identidades
em outros sujeitos. É a partir da categoria gênero que sujeitos LGBT podem ser
compreendidos no mundo social atual, o que torna essa categoria imprescindível
aos sujeitos da diversidade sexual.
Uma Educação para Diversidade Sexual reconhece que, nos sujeitos LGBT, a
identidade de gênero assume ainda mais importância na medida em que estão
sujeitos a discriminações homofóbicas, lesbofóbicas, transfóbicas e exclusão
social. Conforme orienta o PNDH 37 é preciso garantir, em todas as instituições
públicas, o respeito à livre orientação sexual e à identidade de gênero das pessoas,
e desenvolver políticas afirmativas e de promoção de uma cultura de respeito,
favorecendo a visibilidade e o reconhecimento social desses sujeitos.
Em Santa Catarina o Conselho Estadual de Educação, desde 2009, aprovou a
Resolução nº 132 de 15 de dezembro de 2009 (SANTA CATARINA, 2009), a fim de
minimizar os processos de discriminação e preconceitos a travestis, transexuais
e transgêneros, garantindo-lhes o acesso e a permanência na Educação Básica.
Esta normativa dispõe sobre o nome social nos registros escolares internos e dá
outras providências, e passou a vigorar a partir de 2011, afirmando em seu artigo
1º:Determinar, quando requerido, que as escolas/instituições vinculadas ao Sistema
59
Raça/Etnia: Os dois conceitos aparecem frequentemente atrelados nos estudos sobre relações de
gênero e étnico-raciais, contudo, possuem significados diferentes. Raça possui definições aproximadas
da biologia. Embora já tenha sido utilizado para falar, inclusive ideologicamente, dos diferentes tipos
humanos, o conceito de raça, na atualidade, não se aplica à classificação de pessoas. Hoje, sabemos
que os humanos compartilham de inúmeras variantes genéticas e algumas diferenças, como a cor de
pele, por exemplo, que são determinadas por questões geográficas e climáticas. Já etnia refuta as mar-
cações estritamente biológicas e se referencia, também, aos aspectos culturais, linguísticos, religiosos
e semelhanças genéticas. Etnia se relaciona com o conceito de ancestralidade e colabora para com-
preendermos as pertenças ameríndias, europeias e africanas presentes no genoma e, por conseguinte,
na identidade cultural do povo brasileiro.
LGBT - Originalmente a sigla significa Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis. Vista como uma forma
reduzida da chamada comunidade homossexual, o “T” pode ser entendido como uma referência aos
sujeitos “trans” (travestis, transexuais e transgêneros). Diferentes autores, comumente,usam a sigla
LGBTTTI (que, além de visibilizar todos os sujeitos trans, o “I” refere-se aos intersexuais).
105
Estadual de Educação de Santa Catarina que, em respeito à cidadania, aos direitos
humanos, à diversidade, ao pluralismo, à dignidade humana, além do nome civil,
incluam o nome social de travestis e transexuais nos registros escolares internos.
(SANTA CATARINA, 2009, p. 1).
O reconhecimento e o respeito às diferenças sexuais são tão importantes quanto
o respeito à diversidade de crença religiosa. A laicidade do Estado, bem como
a laicidade dos currículos escolares é fundamental para que a escola discuta as
pluralidades, em todas as suas nuances e desdobramentos, como produto da ação
humana e da cultura, a partir do conhecimento científico.
A Proposta Curricular de Santa Catarina centra-se no pressuposto de que o
direito à educação para todos deve ser garantido por meio da efetivação de
políticas contra formas associadas de exclusão, em especial aquelas motivadas
por preconceito e discriminação de natureza étnico-racial, de orientação sexual
ou de identidade de gênero, bem como, qualquer outra decorrente de conteúdos
ou condutas incompatíveis com a dignidade humana. Implementar políticas de
prevenção à evasão motivada por preconceito e discriminação à orientação sexual
ou à identidade de gênero passa pelo reconhecimento desses sujeitos e pelo seu
direito a estar na Educação Básica.
Na Proposta Curricular de Santa Catarina (1998b), temáticas como educação e
prevenção, “relações de gênero”, “diversidade sexual” e “direitos humanos”, mesmo
que superficialmente, foram mencionadas no documento: Educação Sexual.
Constatamos que o texto inicia com pressupostos teóricos para o trabalho de
Educação Sexual, segundo os quais a sexualidade é apresentada como um conceito
que ultrapassa a caracterização simplesmente biológica, para o entendimento de
uma identidade construída na cultura e no meio social.
Consideramos importante avançar nesta análise, ampliando a abordagem ainda
predominante no currículo da Educação Básica, ou seja, relativizar o privilégio
conferido à reprodução: entendemos, por exemplo, que as discussões acerca do
ciclo da vida (nascer, crescer, reproduzir e morrer), podem ser problematizadas
nos currículos, visando apresentar aos sujeitos, desde a Educação Infantil, a
compreensão de que a gravidez é uma questão de escolha futura, e que pode ser
planejada na vida das pessoas. A reprodução não deve ser vista, apenas, como
sinônimo de sexualidade normal, mas sim, como um direito de escolha da pessoa.
106
A Educação Sexual, em toda a Educação Básica, aponta para a necessidade de su-
perar padrões estereotipados das relações de gênero e do modelo familiar único,
pautado na família nuclear. O contexto atual requer o reconhecimento dos diversos
arranjos (organizações, configurações) familiares da contemporaneidade, o que pos-
sibilitará a reflexão e problematização do conceito de família, ampliando os recursos
para discutir gênero, diversidade sexual e direitos humanos. Entende-se, baseado no
direito da pessoa humana da livre expressão de seus afetos e desejos, ser necessário
ampliar o texto para o entendimento das identidades sexuais e de gênero como ex-
pressões legítimas e constituintes existenciais da vida dos sujeitos (SANTA CATARI-
NA, 2014, pp. 57 -61).
107
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110
Gênero e educação
Mareli Eliane Graupe
Lúcia Aulete Búrigo de Sousa
61
Se quisermos recorrer à etimologia da palavra ‘currículo’, que vem do latim curriculum, pista de corri-
da, podemos dizer que no curso dessa corrida que é o currículo acabamos por nos tornar o que somos.
Nas discussões cotidianas, quando pensamos em currículo pensamos apenas em conhecimento, es-
quecendo-nos de que o conhecimento que constitui o currículo está inextricavelmente, centralmente,
vitalmente, envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos; na nossa identidade, na nossa
subjetividade (SILVA, 2002, p. 15). Currículo é um documento que “[...] produz e organiza identidades
culturais, de gênero, identidades raciais, sexuais... [...] o currículo está centralmente envolvido naquilo
que somos, naquilo que nos tornamos, naquilo que nos tornaremos. O currículo produz, o currículo
nos produz” (SILVA, 2002, p. 27). Sob essa abordagem, é crucial reconhecermos e problematizarmos a
importância do currículo no espaço escolar, sendo a escola uma instituição social que consiste em fo-
mentar mudanças, desafiar nos sujeitos reflexões sobre si e o contexto social no qual estão inseridos.
111
são os conceitos, valores e formas de entender o mundo e as pessoas. As desigual-
dades entre homens e mulheres são construídas com base em diferenças de sexo.
Faz-se necessário conhecermos a expansão da construção social do gênero através
da história e da cultura, que nos remetem a questionamentos, valores, relações de
poder, igualdade e justiça em uma sociedade das desigualdades e injustiças.
Nossa história reage fortemente quanto aos conceitos, valores, modelos e padrões
das desigualdades entre homens e mulheres em setores privados e públicos. São
situações que a sociedade organiza e modifica, redundando em características bi-
ológicas, valores, costumes e interpretação própria. Assim, “[...] a noção política de
igualdade inclui o reconhecimento da existência da diferença, pois do contrário, a ig-
ualdade poderia ser definida como uma indiferença deliberada diante das distinções
específicas para um determinado contexto” (SCOTT, 1992, p. 85-104).
Ao pautar a temática de gênero é possível constatar que as pessoas refletem con-
cepções internalizadas sobre homens e mulheres, sobre como homens e mulheres
devem ser e se comportar na escola, na sociedade. Graupe (2009) enfatiza que “estu-
dar gênero significa contemplar o aspecto relacional entre as mulheres e os homens,
entremeados por relações de poder, não sendo possível a compreensão de nenhum
dos dois em um estudo que os considere totalmente separados” (2009, p. 35).
Para combatermos as desigualdades de gênero no contexto escolar, precisamos pri-
meiramente abordar essa temática com todas as pessoas envolvidas no processo de
ensino e aprendizagem, pois o machismo, o sexismo e o heterossexismo são pratica-
dos tanto por homens como por mulheres.
Nesta perspectiva, segundo Saffioti,
112
podem contribuir para a redução dos índices de reprovação e evasão, que muitas vez-
es, são resultado de atitudes, ações explicitas ou veladas de preconceitos e práticas
discriminatórias.
Gênero e Escola
Dialogar sobre gênero no contexto escolar implica, na maioria das vezes, debater so-
bre diferentes posições, conceitos, concepções, opiniões sobre o que esperamos de
cada gênero. É um exercício que exige conhecimento teórico-metodológico sobre a
temática para que possam ser identificados os argumentos pautados em concepções
conservadoras, machistas, sexistas, homofobicas, heterossexistas, racistas, classis-
tas, etc.
Pensar em gênero e escola é considerar construção e desconstrução, lutas, inter-
esses, necessidades, como também conquista da educação como um direito intrans-
ferível do cidadão, da cidadã. Entender a educação conforme as possibilidades de
mudanças, transformações implica em abandonar certos valores, preconceitos, dis-
criminações, portanto ultrapassar análises simplistas e cartesianas da educação.
Neste contexto é importante pensarmos: que tipo de escolas temos e que tipos de
escolas queremos? Que sujeitos temos e que sujeitos queremos? Isso porque a es-
cola, sendo um espaço privilegiado e importante na formação e transformação do
sujeito, tem por função, além da transmissão de conteúdo, ampliar o conhecimento
de todas as/os envolvidas/os na educação. A escola não pode negar-se à reflexão
e discussão de situações do cotidiano, dentre elas as desigualdades de gênero e a
diversidade sexual, e necessita estar aberta a ouvir a demanda de alunas/os e pro-
fessoras/es . De acordo com Sacristán (2000), é nesse contexto que se compreende
a educação do século XX
113
A escola ainda tem como caráter homogeneizador e monocultural a noção de urgên-
cia de romper com os paradigmas existentes e reelaborar práticas pedagógicas e
documentos escolares (Projeto Político Pedagógico) em prol de uma educação na
qual a questão das diferenças e desigualdades se faça permanente. Entende-se que
A escola, nessa perspectiva, não pode se abster das questões culturais e nem correr
o risco de ficar separada do universo simbólico, criatividades, inquietudes e mentali-
dades dos sujeitos que frequentam os espaços destinados à educação. A observância
dessas questões pode oportunizar uma educação mais igualitária e justa para todas/
os.
Há necessidade, portanto, de que a escola e seus profissionais repensem práticas e
também destituam o determinismo biológico presente nos padrões de gênero que
mantém homens e mulheres presos em comportamentos determinados para cada
sexo.
114
A autora refere-se à escola como espaço no qual as desigualdades de gênero acon-
tecem historicamente. Ressalta a necessidade de despertar nas/os profissionais da
educação a importância de repensar e anular conteúdos que configurem discrimi-
nações e ações de violência. “Sendo assim, não há espaço na instituição escolar para
desigualdades sociais, de gênero ou de caráter étnico-racial, ou, ainda, para hier-
arquias de conhecimentos e profissões” (CARVALHO, 2009, p. 14).
Mais do que rever currículos e práticas pedagógicas, a escola precisa retroagir na
questão da ausência de discussão sobre sexualidade e equidade de gênero, como
também de discursos preconceituosos e indiferenças ao tema. Cabe as/aos profes-
soras/es, principais agentes dessa mudança, buscar, conhecer, dominar conteúdos,
refletir e possibilitar as/aos alunas/os , a nova geração, oportunidades de frequen-
tarem uma instituição com valores humanos e respeito individual ou coletivo, ame-
nizando as discriminações e diferenças no espaço escolar e fora dele. Com a falta de
conhecimento e dificuldades de professoras/es em desenvolverem o tema de gênero
nas escolas, torna-se mais difícil o desempenho e a difusão quanto ao fim das violên-
cias e discriminações vivenciadas no cotidiano das escolas.
Compreendemos, assim, a necessidade de que a escola possibilite aos seus profis-
sionais uma formação que lhes permita refletir e discutir temas vivenciados cotid-
ianamente nas salas de aula e os quais não podemos mais fazer de conta que não
existem. Se assim o fizermos, acabamos por aceitar preconceitos, violências de gêne-
ro e a polarização do masculino e feminino referente a modelos apresentados no
âmbito das desigualdades e discriminações.
No que tange à educação, situamos a escola em seu contexto histórico, o que nos
permitiu identificar uma escola pública brasileira fortemente aliada a mecanismos
de exclusão e produção de desigualdades, com a eliminação de sujeitos de determi-
nados grupos sociais nos quais não se enquadram. Na trajetória histórica da escola
identificamos importantes lutas por mudanças nas propostas e práticas pedagógi-
cas. Algumas vitórias foram alcançadas e, conforme Mello e Silva, a escola
115
do tipo “escola para todos”, ainda nas décadas de 30 e 40
do século passado. O acesso universal de crianças e jovens
ao ensino fundamental, combinado a luta pela exigência
de obrigatoriedade de cursar o ensino médio, estão pro-
duzindo um novo cenário em termos de escolarização no
país, embora tenhamos enormes problemas de qualidade
do ensino, o grande desafio do momento. O acesso uni-
versal trouxe a diversidade para dentro da escola, como
assinalado acima. Combinado a outros fatores, como o
esvaziamento dos tradicionais locais de sociabilidade da
juventude, isso trouxe também uma alteração sensível no
papel das escolas e dos professores (MELLO; SILVA, 1991,
p. 108).
Valendo-se das palavras desse pensador, entendemos que a escola necessita se tor-
nar de fato uma instituição social como prática de liberdade, o que implica na im-
portância de as/os profissionais da educação, a família, os sujeitos se autoformarem
e reformularem valores, conceitos, práticas, trabalhos, informações, conhecimentos
e saberes. Isso implica em perceber e aceitar o outro a começar pela escola, situan-
do-a no caminho da liberdade, subsidiada de práticas de enfrentamento quanto às
discriminações de gênero, raça, etnia, cor, sexismo e homofobia.
A escola sendo o melhor espaço para construir relações quanto ao respeito e recon-
hecimento às desigualdades e diferenças em relação a gênero, classe, raça e níveis
de aprendizagem, por exemplo, deve possibilitar um espaço pedagógico plural, que
priorize uma educação na qual educandas/os não sejam reprodutoras/es de papéis
impostos por uma sociedade que reforça um único padrão a ser respeitado.
No âmbito dessa discussão, talvez possamos compreender que gênero não é sinôn-
imo de sexo (masculino, feminino), mas o que condiz ao conjunto de representações
da construção social e histórica sobre as diferenças entre os sexos, porque “[...] é no
ambiente escolar que os/as estudantes podem construir suas identidades individuais
e de grupo, podem exercitar o direito e o respeito à diferença” (MOURA, 2005, p. 33).
Isso pode ocorrer nos espaços escolares, onde crianças, adolescentes e professoras/
es sejam provocadoras/es de transformações, o que abre possibilidades para um país
respeitoso e propagador de direitos igualitários e justiça social.
Os estudos sobre gênero no contexto escolar nos possibilitam refletir as necessi-
dades e potencialidades de uma educação que considere as diferenças. Por isso, é
fundamental trabalhar gênero para possibilitar o desenvolvimento de sua equidade ,
reflexão que contribua no entendimento e no debate sobre o tema.
116
Entendemos que a educação possui um papel essencial na discussão do conjunto de
símbolos e práticas que cada sociedade constrói sobre o que é apropriado para cada
sexo. Para Butler, por exemplo,
117
Assim, podemos dizer sobre a importância da percepção da escola quanto a temas
cotidianos que surgem em seus ambientes e que necessitam ser problematizados,
confrontados para que se possa avançar nas reflexões e ações, ou seja, no campo das
ideias e das práticas sociais e educativas.
Segundo Louro (1997, p. 9), “gênero não pretende significar o mesmo que sexo, ou
seja, enquanto sexo se refere à identidade biológica de uma pessoa, gênero está
ligado à sua construção social como sujeito feminino ou masculino”. Nesse sentido,
o conceito de gênero nos possibilita compreender que se trata de uma categoria
de ligação entre masculino e feminino, considerando as diferenças entre os sexos e
reconhecendo a desigualdade de oportunidade que a sociedade reproduz em relação
ao trabalho, educação e política. Para tanto, é necessário perceber o espaço escolar
como um ambiente de conhecimento e política de conquista de direitos que envolva
uma educação para todas/os, porque
118
A escola e, em particular, a sala de aula, é um lugar privile-
giado para se promover a cultura de reconhecimento da
pluralidade das identidades e dos comportamentos rela-
tivos às diferenças. Daí, a importância de se discutir a ed-
ucação escolar a partir de uma perspectiva crítica e prob-
lematizadora, questionar relações de poder, hierarquias
sociais opressivas e processos de subalternização ou de
exclusão, que as concepções curriculares e as rotinas es-
colares tendem a preservar (SILVA, 1996, p. 49).
É uma necessidade discutir o espaço escolar como o melhor lugar para programar-
mos ações promotoras de equidade de gênero, de identidades e de pluralismos, ou
seja, educar para os direitos humanos, com estímulo para a construção da cidadania.
Neste sentido, Carvalho vem reforçar o papel da escola e professoras/es quanto à
cultura do respeito às diferenças, às diversidades e inclusão social:
119
Referências Bibliográficas
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SCOTT, Joan W. Igualdad versus diferencia: los usos de la teoria postestructuralista. Debate
Feminista, Mexico, v. 5. 1992.
120
Diversidade como princípio pedagógico
inclusivo
Regina Ingrid Bragagnolo
Raquel Barbosa
121
mostra a necessidade de expansão da rede pública, para atendê-las, sobretudo às
crianças na faixa de 0 a 3 anos, uma vez que somente 13,4%, de um total de 11,5 mil-
hões de crianças são atendidas nas creches.
Junto com a necessidade da expansão da rede de atendimento das crianças a esta
etapa da educação básica, algumas indagações nos inquietam: Qual educação se
promove nos espaços de educação infantil? Que projeto de sociedade está sendo
construído nas relações cotidianas? Que sujeitos se produzem? Ao tratarmos das dif-
erenças corpóreas/afetivas e singulares, que discursos reiteramos? O que anuncia-
mos e, contrariamente, o que silenciamos? Em nossas interações com as crianças o
que colocamos em evidencia e o que marginalizamos?
O esforço em responder estas questões nos permite pensar nos discursos e práticas
do cotidiano. Essas relações sociais podem ser consideradas como integrantes do
currículo? Como definir currículo? Tomas Tadeu da Silva (2011) explicita que currículo
pode ser pensado como um processo de racionalização de resultados educaciona-
is, cuidadosamente e rigorosamente especializado. Ao trazer esse conceito, o autor
retoma a etimologia da palavra curriculum, por estar atrelado a uma preocupação
de organização/sistematização do conhecimento e método a ser pensado na prática
pedagógica. Nesse sentido, explicita que no Brasil, desde a década de 60, os movi-
mentos sociais impulsionaram ensaios/teorizações que assinalaram a necessidade
de pensar na estrutura educacional nacional. Importante relembrar que, tanto no
contexto nacional quanto no internacional, movimentos sócio-políticos, dentre os
quais destacamos as lutas pelo fim do colonialismo em países asiáticos e africanos,
luta contra a ditadura civil e militar em diversos países da América Latina; movimento
feminista, movimentos dos direitos civis em países da Europa e América do Norte,
foram fundamentais no alargamento/problematizações da estrutura educacional
tradicional e para a denúncia das injustiças naturalizadas nas práticas cotidianas do
sistema educacional.
Especificamente o movimento feminista em diálogo com o movimento multicultur-
alista, cujas reivindicações estão localizadas na luta pelo reconhecimento das mino-
rias (negras/os, mulheres, homossexuais onde a crítica está localizada no privilégio
da cultura branca, masculina, européia, heterossexual) contribuiu nas discussões
curriculares, no sentido de pensar como os processos discursivos sobre a diferença
são produzidos nos espaços educativos. Esses debates ampliam a noção de currículo
permitindo compreendê-lo a partir da definição de currículo oculto, no qual se recon-
hece que o processo de aprendizagem-desenvolvimento é mediado por práticas mui-
tas vezes sutis, discretas, mas eficientes.
122
Aqui sugerimos retomar o livro Tomaz Tadeu da Silva intitulado “Documentos
de identidade: uma introdução às teorias do currículo”, pois você encontrará
um panorama das teorias do currículo, a partir de vários estudos e autores que
abordam a origem do campo do currículo, iniciando o diálogo sobre as teorias
tradicionais, críticas e pós-críticas. O autor situa as contribuições, por exemplo, do
debate Freireano impresso na sua obra intitulada “Pedagogia do Oprimido”, a partir
da discussão crítica sobre os aparelhos ideológicos do Estado, incluindo a Escola
de Athusser dentre outros autoras/es, que contribuíram com leituras criticas à
estrutura curricular do sistema de ensino a partir de uma análise marxista. Também
retoma as discussões do sociólogo francês Pierre Bourdieu, especificamente o
termo reprodução, para explicitar o funcionamento da escola a partir do domínio
simbólico. A partir dessa leitura a reprodução social se dá pela reprodução cultural,
pois a escola privilegia os privilegiados, através da distribuição do capital cultural.
Os saberes são vinculados a um capital cultural e para ele é importante perceber
como essa lógica meritocrática é naturalizada. A estrutura social perpetua
essas desigualdades, por isso deve-se pensar o capital ampliado (na educação
especificamente o capital cultural). Nesse panorama da teoria do currículo, o autor
retoma as contribuições do multiculturalismo no campo educacional, sobretudo,
pelo debate a partir do conceito de identidade, alteridade e diferença. E aqui é
isso que nos interessa que você possa refletir: como a concepção de currículo foi
ampliada a partir dos estudos culturais, impulsionados pelas demandas políticas
de inclusão para crianças, adolescentes, mulheres, pessoas idosas, lésbicas, gays,
bissexuais, travestis, transexuais, pessoas com deficiência, povos indígenas,
populações negras e quilombolas, ciganos, ribeirinhos, varzanteiros, pescadores,
entre outros (BRASIL, 2011).
123
modelar, corrigir os corpos de meninos e meninas, negras/os, brancos, indígenas a
partir da atribuição de significados sociais às diferenças inscritas no corpo?
Tendo como base essa pergunta pretendemos, nessa unidade, problematizar/mediar
discussões sobre as relações de gênero e sexualidade, acrescentando a variável raça/
etnia a partir do/no cotidiano da educação infantil junto as/os profissionais da edu-
cação, tendo como objetivo central a promoção/implantação de práticas pedagógi-
cas humanizantes e igualitárias.
Vale dizer ainda que as respostas a essas perguntas estão sendo construídas neste
exato momento em uma intervenção pedagógica que está acontecendo em paralelo
a diversas outras! Com isso extraímos um pressuposto teórico-metodológico que é:
A intervenção pedagógica na educação das relações étnico-raciais e de gênero é
singular, é um lócus em que cada grupo cria e recria metodologias de ação.
Logo, a resposta às perguntas do “como fazer” e dos “significados”, fica condicionada
ao fazer político-criativo-cultural de cada organização escolar, isto é, não há uma pre-
scrição. Nossa escola é o nosso ateliê, e nós somos as/os artesãs/aos deste lugar, que
é o lugar por excelência da formação pedagógica das/os professoras/es (ARRROYO,
2000).
Outro pressuposto que completa o anterior é: Compromisso político-pedagógico
com a promoção da igualdade racial, de gênero e com o combate a racialização
das relações sociais.
Entendemos como racialização “discursos e práticas sociais que transformam carac-
terísticas socialmente construídas em aspectos biológicos. São aspectos que atin-
gem todos os grupos socais, causando representações distintas sobre cada grupo:
para alguns, causa subordinação, silenciamento, limitações e constrangimentos; para
outros, confere status, privilégios e poder.” (VIEIRA, 2014, p. 205). O conceito de ra-
cialização é uma “chave”, dentre outros, que nos ajuda a analisar nossas proposições
pedagógicas, os eventos do cotidiano da educação infantil, as relações adulto-cri-
ança, e até mesmo as relações institucionais, com uma abordagem que visa a desnat-
uralização das práticas e relações sociais na organização escolar.
Ao inscrever no corpo a marca da identidade, o sujeito tem a sua subjetividade sub-
metida a uma suposta objetividade biológica. Esse discurso tenta “capturar” a iden-
tidade dos sujeitos, negando a alteridade na construção dos processos identitários.
Alguém ainda poderia perguntar: Qual o problema? O que a educação tem com isso?
Não se trata de mais um conteúdo politicamente correto?
124
Além dos danos psicológicos que os processos de racialização podem causar (e aqui
pensando nos processos de subjetivação que acontecem no âmbito educacional
constituído a partir das relações sociais), eles originam e legitimam processos de ex-
clusão no acesso aos bens materiais e imateriais produzidos por toda a sociedade. Ao
corpo negro e ao corpo da mulher aplicaram-se, ao longo da história da sociedade
brasileira, significados que serviram e ainda servem, para justificar condições de abu-
so, violência, negação de direitos, dentre outros processos de dominação. No caso
especifico da escolarização, mulheres e negros tiveram acesso tardio, por conta de
legislação e também de preconceito. Os efeitos desses processos ecoam até hoje e
estão expressos em diversas pesquisas que apontam as desigualdades de acesso e
permanência na escola e consequente colocação no mercado de trabalho para mul-
heres e negros.
Outro pressuposto que temos é o de que: a diferença é que nos constitui enquanto
grupo. A diferença está inscrita inclusive naqueles que são considerados dentro
da norma. Somos pessoas únicas e em constante transformação em um ambi-
ente, também em constantes transformações.
Ao incluir o tema diversidade nas proposições pedagógicas com crianças pequenas
não estamos restringindo o diálogo sobre grupos considerados excluídos, caracter-
izados como “os diferentes”, “os diversos”, ou seja, como aqueles que não atendem
a norma ou ao padrão estabelecido a partir de uma identidade hegemônica como
referência.
Na tentativa de sistematizar os pressupostos teóricos metodológicos que orientam
a prática cotidiana construída a partir das discussões sobre a identidade e diferença,
importante explicitar que encontramos amparo para a compreensão da diversidade
como princípio educativo nas Diretrizes Nacionais para a Educação Infantil (2011),
que demarcam que as experiências entre as crianças impulsionam o alargamento dos
seus padrões de referência, na medida em que se tenha garantido o diálogo, a valori-
zação e o reconhecimento das diferenças. Como podemos observar, estas Diretrizes
enunciam a necessidade de pensar em uma “prática pedagógica que priorize socia-
bilidades diversas, comprometidas com o rompimento de relações de dominação
etária, socioeconômica, étnico-racial, de gênero, regional, regional, linguísticas e re-
ligiosas nos espaços de educação infantil” (BRASIL, 2011).
Portanto, estas Diretrizes Curriculares ao propor no currículo, para essa etapa da
educação básica, uma intervenção educativa com vistas à ruptura de relações de dom-
inação de gênero e raça evidenciam o acolhimento de demandas produzidas nas lutas
dos movimentos feminista e negro, comprometendo as/os profissionais da educação
125
infantil com uma atuação político pedagógica referente às questões de gênero, sex-
ualidade e raça. A partir da análise dos princípios éticos, estéticos e políticos apre-
sentado nas Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL, 2010), pode-se refletir sobre
os desdobramentos metodológicos no trabalho com as crianças.
As Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil (2011), a Constituição Fed-
eral de 1988 e o Plano Nacional da Educação estão articulados de modo a funda-
mentar todo o trabalho pedagógico para uma orientação de educação inclusiva, não
sexista e não racista, que reconheça a diversidade de orientação afetivo-sexual e/ou
identidade de gênero.
Na versão atualizada da Proposta Curricular do Estado de Santa Catarina editada em
2014, localizamos o debate sobre a valorização das diferenças étnicas e culturais, a
partir da compreensão que uma conduta humana pautada no respeito à diversidade
do outro e isso não significa a aderência ao modo como o outro opera.
126
sobre os temas da vida social, reconhecendo a infância como uma construção
histórica, social e cultural, constituída de acordo com a classe, etnia, gênero, cul-
tura. Tratam-se de desafios que oportunizam as/os professoras/es e crianças a um
encontro pedagógico que, embora baseado na brincadeira e interação, considere os
limites que as brincadeiras de papéis sociais podem traçar. Citamos como exemplo o
“dever ser” que costuma significar nas brincadeiras infantis uma adequação acrítica
aos modelos comportamentais e relacionais presentes na sociedade em que a cri-
ança está inserida. Na maioria das vezes são modelos produzidos por uma sociedade
alienada e alienante, resultantes de concepções baseadas em lógicas mercantilistas
dos papéis sociais, dos corpos, do imaginário e dos sujeitos. (DUARTE, 2006)
Cena 1
127
doméstico. Nesse dia, foi disponibilizado para as crianças sagu e água morna
para a brincadeira. João permanece observando a brincadeira e, na sequencia,
pergunta: – Eu posso ser o filhinho? Sem obter nenhuma resposta, João con-
tinua a observar a brincadeira. Minutos depois resolve pegar a colher de pau
que estava sendo usada e sair correndo. No mesmo instante as quatro meninas
saem correndo atrás de João. Ele para de correr e esconde a colher de pau.
No mesmo instante uma das meninas coloca a mão na cintura, franze a testa
e diz convicta: – Estamos muito bravas, você desarrumou nossa casinha. Pode
devolver a colher para nós! As outras três colegas imitam a colega colocando a
mão na cintura. João, no mesmo instante, deixa a colher cair no chão, franze a
testa e coloca-se na posição de luta, emitindo o som de um leão. Nesse mesmo
instante as meninas recuam, e como professora, medio a situação, já que a in-
tenção de João era entrar na brincadeira. (Registro do cotidiano – crianças de
três anos - agosto 2012)
Cena 2
128
do masculino e do feminino está localizada exatamente nos significados que foram
construídos socialmente atrelando a fragilidade a mulher e a força ao homem, tratan-
do esses aspectos como naturais , imutáveis e universais.
A categoria de gênero, nesse contexto, torna-se uma ferramenta maior que nos per-
mite ver as relações sociais entre as crianças e especificamente numa certa contabil-
idade que nos remete a pensar nas questões de virilidade, explicitada na cena. Tanto
a questão da virilidade como a construção da masculinidade são evidenciadas nes-
tas duas cenas. É recorrente no cotidiano educativo a necessidade dos meninos de
reiterar/demarcar que são fortes, que preferem a cor azul, assim como as meninas
em utilizar os espaços organizados com brinquedos que fazem referência ao espaço
doméstico e o uso quase que exclusivo da cor rosa. O desafio é mediar/possibilitar
que as crianças, independentemente do sexo, se autorizem a transitar, a brincar, a
fazer suas escolhas para além das dicotomias construídas socialmente. Afinal os brin-
quedos não são para as crianças? Por que compreendê-los como brinquedos e cores
para meninos/meninas? Como o currículo está implicado na formação das masculin-
idades?
Outra característica consiste na compreensão do papel dos brinquedos como dis-
positivos que participam da construção das identidades infantis (FINCO, 2007), por-
tanto, aqui a necessidade é problematizar cotidianamente que meninos e meninas
devem/podem ter os mesmos brinquedos.
Corroborando com esta ideia trazemos os resultados de uma pesquisa feita pela pro-
fessora/pesquisadora portuguesa Manuela Ferreira(2013). Utilizando como recur-
so metodológico o desenho da planta baixa da sala de referência das crianças e a
territorialização das mesmas neste espaço, a pesquisadora observou a necessidade
da/o professora/or problematizar/mediar junto às crianças o trânsito nas brincadei-
ras. Esta necessidade observada pela pesquisadora se deu através da constatação de
que, geralmente espaços organizados com utensílios domésticos e brinquedos que
possibilitavam brincadeiras como cuidado (bonecas, berços, banheiras) era ocupado
quase predominantemente por meninas, e espaços/materiais que sugeriam movi-
mento como carrinhos, animais, personagens midiáticos faziam parte das brincadei-
ras dos meninos.
Neste contexto, podemos afirmar que vale pensar na possibilidade de construir
espaços nos ambientes de educação infantil que provoquem outras socializações,
menos “generificadas”. Aqui perguntamos: por que escolhemos construir espaços de
bonecas, casinha, castelo, pistas de carrinho como se fossem demandas das crianças?
Afinal elas não possuem outras referências em seu cotidiano capazes de mobilizar
129
brincadeiras? Será que os espaços não são construídos por nós de maneira alienada
ao nosso próprio fazer, e principalmente ao fazer e experiências das crianças? A par-
tir destas reflexões, gostaríamos de compartilhar nossa experiência como profes-
sora, na qual temos nos desafiado a pensar de outra forma esses espaços, sem con-
tudo, impor outras formas de agrupamento. Como resultado, percebemos que ao
disponibilizar e mediar o brincar com outras possibilidades temos observado outras
narrativas imaginárias das crianças em que ser menina e menino, já não é tão rele-
vante na formulação dos cenários e dos papeis assumidos.
130
teração, permitindo outros modos de relações. Os registros e sistematizações das
observações do cotidiano nos possibilitam perceber os diversos modos de vivenciar
as relações corpóreo-afetivas das crianças, os modos como significam as diferenças
sociais e seus atravessamentos com os marcadores de gênero, raça/etnia, geração,
etc., – questionando certa rigidez, sendo possível perceber o quanto elas não são
sujeitos passivos, significando e resignificando os elementos culturais que se apro-
priam, como podemos observar nas cenas a seguir:
Cena 3
Cena 4
No banheiro Eduardo observa seu amigo Otávio que faz xixi em pé. Eduardo
fica todo encurvado e observa silenciosamente. Pergunto ao Eduardo se ele
quer fazer xixi também em pé (pois usualmente fica sentado), e ele diz: – Não
quero ver isso, apontando para o pênis do colega. Eu pergunto: – O que você está
vendo? Otávio responde: – Meu pinto! Clara sentada no vaso sanitário ao lado
disse: – Professora eu também tenho um pinto. Eu disse: – Será Clara? Ela me olha
seriamente sem nada a falar. Eu pergunto: – o que você tem diferente dos meni-
nos?. Ela responde: –Brinco. E ficamos num diálogo que homens também usam
brincos. (Registro do cotidiano – crianças de três anos - agosto 2012)
Cena 5
Professora arruma seu sutiã enquanto duas crianças estão no vaso sanitário.
O menino olha para a professora e diz: – Mamãe também usa isso. – Isso o que?
pergunta a professora: – sutiã. Letícia diz: – meu papai também usa sutiã e Tales
responde imediatamente: – Seu papai usa cuecas. – Professora minha mamãe usa
sutiã, calcinha e uma fraldinha pequeninha assim para proteger a peleleca. (Regis-
tro do cotidiano – crianças de dois anos - abril 2013)
131
Essas cenas revelam como as crianças reiteram as diferenças em relação a identi-
dades de gênero. É o espaço educativo que as relações de gênero são significadas.
Ao reconhecer as questões corpóreas afetivas das crianças, estamos como professo-
ras/es implicado na crítica da compreensão de que a sexualidade se reduz à repro-
dução (LOURO, 2010), considerando que a descoberta corporal pode ser vista como
um ato de autoconhecimento. As manifestações das crianças revelam suas desco-
bertas corporais, a descoberta sexual-afetiva, bem como as noções de intimidade e
privacidade pessoal. Estas experiências são apreendidas inclusive no contexto edu-
cativo, sobretudo nas relações entre os pares.
Os contextos institucionais de educação são espaços coletivos que permitem in-
úmeras relações sociais e é nestes contextos que as crianças apreendem como lidar
com a diferença, com a desigualdade. As leituras de gênero e diversidade permitem
pensar como qualificar essas diferenças, explicitando-as e, sobretudo, compreender
que gênero não se resume a “papéis” e/ou funções masculinas e femininas.
Temos na área da educação numerosas pesquisas, tais como as de Débora Sayão
(2005), Márcia Gobi (1997) e Daniela Finco (2003, 2007) dentre outras, que nos aux-
iliam na reflexão de como historicamente os processos educativos tinham de modo
explicito ou implícito a participação efetiva da regulação, normatização e controle
dos corpos de meninos e meninas. Do mesmo modo, os estudos feministas têm prob-
lematizado o processo de regulação social dos corpos sobre a base do sexo, do gêne-
ro ou da sexualidade. Cabe a/ao professora/or questionar essas normas culturais que
controlam os corpos como se fossem objetos, classificando-os a partir de estereóti-
pos de classe social, de gênero, étnico/racial, etário, com o intuito de promover o
respeito e valorização da diversidade étnico-racial, de orientação sexual, identidade
de gênero e questões relativas à deficiência.
Contrária a qualquer lógica prescritiva dos modos de ser e vivenciar as relações de
gênero, sexualidade e raça, o mais importante para nós profissionais da educação
são as reflexões sobre a necessidade de mediar junto às crianças situações sociais de
aprendizagens onde se reconheça e se qualifique as diferenças, sem hierarquizá-las.
Como pensá-las no cotidiano com as crianças? Você professora/or registrou quais
são os aspectos presentes nas brincadeiras das crianças que fazem referência a sua
condição social, cultural, histórica e geográfica? E seus modos de compreender/sig-
nificar as diferenças de gênero, geração, raça/etnia, religião? Ensinar a tolerar e re-
speitar é suficiente? Como produzir situações de aprendizagem onde para além de
tolerar e respeitar, as diferenças são colocadas em questão?
132
Temos historicamente demarcado que uma das funções sociais da educação infantil
está relacionada à complementaridade da educação familiar (questão essa construí-
da nos debates da área quando tratamos de educar e cuidar). No entanto, a comple-
mentaridade à referência familiar pode ser exatamente ampliar/complexificar/alar-
gar as referências do espaço doméstico. E quando tratamos de gênero e sexualidade
infantil, essas questões ficam mais evidentes, pois tal com podemos observar nos
registros históricos, a vigilância e o controle de regulação multiplicam-se e se autor-
izam a ditar normas, excluindo as possibilidades de reconhecimento e inclusão dos
diferentes modos de ser e estar no mundo. No entanto, as instituições educativas
devem considerar igualmente válidos os saberes/conhecimento familiar/popular/cul-
tural, já que são expressões da multiplicidade sociocultural.
As crianças experimentam em diferentes contextos, dentre os quais as instituições
de educação infantil, situações que as permitem elaborar as relações de classe, gêne-
ro, etnia se associando à características identitárias. As mediações que configuram
a prática pedagógica de professoras/es de meninos e meninas, os quais podemos
pensar a partir da ideia de currículo oculto, permitem “ registros múltiplos e não nec-
essariamente convergentes, protagonizados pelas próprias crianças quando procur-
am gerir a heterogeneidade de seus ofícios, papéis, identidades e posições sociais”
(FERREIRA, 2004, p.16).
De maneira sintética, tentamos aqui traduzir como, no cotidiano com um grupo de
crianças de quatro anos, realizamos proposições pedagógicas relacionadas à identi-
dade e diferença. Para tanto, realizamos algumas brincadeiras organizadas a partir
desse material, elaborado com as características individuais/identitárias (autorretra-
to, com quem me pareço, onde gosto de receber cócegas, minha brincadeira, cor,
música, comida, lugar preferido etc.) com a intenção de observar, reconhecer, valorar
o que a constitui e ao mesmo tempo em que a diferencia. Ao explorar aspectos rela-
cionados às singularidades, observamos o olhar e a descrição do grupo em relação as
características de cada criança.
133
Nessa imagem, o boi de óculos foi
pensando intencionalmente para
marcar a possibilidade da deficiên-
cia visual. Esse e outros personagem
que possibilitam teatro/música fol-
clórica do Boi de Mamão, foram re-
pensados por profissionais de uma
Fundação de Educação Especial, o
qual se tem a intenção em dar visi-
bilidade/anunciar a diferença. Per-
cebemos no cotidiano o desejo das crianças de compreender a diferença. Observe o
diálogo a seguir:
Cena 6
134
Nesses momentos, dentre tantos outros as crianças evidenciam o desejo de com-
preender suas diferenças. Com objetivo de abordar identidade e diferença, a partir
da ideia de onde cada criança veio e com se parece, iniciamos o diálogo a partir do
autorretrato de artistas plásticos, como Frida Kahlo, Van Gogh, Tarsila do Amaral,
Rembrandt dentre outros. Na continuidade, sistematicamente nos inserirmos no
contexto de vida de cada criança do grupo e a partir dos elementos que surgiram na
aproximação dos seus mundos sociais, com o intuito de destacar e qualificar as subje-
tividades e as idiossincrasias que constituem o humano. Aproveitamos para explorar
alguns aspectos culturais, através de músicas, danças, língua e gastronomia que com-
põem a identidade cultural e social de cada um deles.
Importante também refletir que material é selecionado para as crianças. Procure ob-
servar que discursos são reiterados nas Literaturas Infanto-Juvenil, e o que ensina-
mos ao contarmos certas histórias. Veja nas indicações abaixo o que pode ser abor-
dado com seus/suas alunos/as. E mesmo ao contar uma história, como da Cinderela,
o que podemos falar ao final da história. É possível indicar que nem toda princesa
casa com príncipe na contemporaneidade? Nem toda princesa deseja casar-se? E os
meninos também podem usar saias? Vestidos? Maquiar-se? Veja as histórias abaixo:
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quência recontamos essa história em língua de sinais.
LIBRAS tornou-se, nesse contexto, uma ferramenta que permite mediar experiên-
cias infantis de reconhecimento e inclusão dos diferentes modos de expressão. O
reconhecimento das várias identidades e/ou culturas, como por exemplo, a especifi-
cidade de um sujeito com surdez, ao mesmo tempo que permite criticar as lógicas he-
gemônicas, monoculturais e eurocêntricas, nos auxilia a elaborar sistematicamente
através das brincadeiras com esta linguagem (nome em LIBRAS de cada criança,
cores, frutas, espaços) ações pedagógicas inclusivas, igualitárias, favorecendo assim
o processo de humanização dos sujeitos durante seu percurso formativo.
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Sobre as Autoras
Tânia Welter