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ANO XX - Nº 475

1º DE NOVEMBRO DE 2016

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CONSULEX

10 MEDIDAS CONTRA
A CORRUPÇÃO
IN VOGA TENDÊNCIAS PONTO DE VISTA
LUIZ FLÁVIO GOMES GABRIEL BULHÕES MOZART NEVES RAMOS
ELITE CLEPTOCRÁTICA OU O QUE FOUCAULT TEM A VER COM O ENSINO MÉDIO PEDE
DECÊNCIA? TEMOS QUE A CIÊNCIA ATUARIAL E COM O URGÊNCIA
ESCOLHER DIREITO PENAL DO INIMIGO?
SUMÁRIO
14 CORRUPÇÃO: UM PROBLEMA COM
DIVULGAÇÃO
CAPA
ALTO PODER LUCRATIVO
A Revista Jurídica Consulex, sempre na
vanguarda dos assuntos mais relevantes da
atualidade dos operadores do Direito, nesta
edição publica artigos dos mais renomados
juristas apontando equívocos e acertos
sobre as 10 Medidas contra a Corrupção
que estão em discussão no Legislativo,
onde foram transformadas no Projeto de
Lei nº 4.850/2016, a fim de estabelecer
medidas para coibir os crimes contra o
patrimônio público. Confira! (Página 14)

DIREITO EMPRESARIAL CONTEXTO


O novo marco legal das Algumas reflexões sobre a per- SEÇÕES
ARTIGOS

empresas estatais tinência do Regime Especial de


48  Evane Beiguelman Kramer e Regularização Cambial e 5 Com a Palavra...
Percival José Bariani Junior Tributária (RERCT)
6 Propostas e Projetos
58  André Gomes e Giácomo Paro
TENDÊNCIAS 8 Painel Econômico
O que Foucault tem a ver com a CONJUNTURA
9 Painel do Leitor
ciência atuarial e com o direito Bitcoins: tributação no sistema
penal do inimigo? brasileiro 10 Direito e Bioética
50  Gabriel Bulhões 59  Paulo Henrique S. Freitas e Talita
12 Indicadores Econômicos
F. Ritz Santana
ENFOQUE 13 Destaque
Era só o que nos faltava: PORTAL JURÍDICO
o Ministério Público conspiran- A taxação dos aposentados
do contra a audiência de custó- 60  Amadeu Roberto Garrido de Paula
dia – o caso baiano
52  Rômulo de Andrade Moreira IN VOGA
Elite cleptocrática ou decência?
GESTÃO EMPRESARIAL temos que escolher
Estilos de liderança 62  Luiz Flávio Gomes
55  Eduardo Sehnem Ferro
DOUTRINA
OBSERVATÓRIO JURÍDICO A tutela da(s) vulnerabilidade(s) do
Da incidência dos juros de acusado no processo penal
mora e da correção monetária 63  Maurílio Casas Maia
na multa diária arbitrada
pelo juízo PONTO DE VISTA
56  Luiz Felipe de Oliveira O ensino médio pede urgência
Rodrigues 66  Mozart Neves Ramos
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Gerrit Cornelis van Aggelen
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Colaboradores: Alexandre de Moraes, Alice Monteiro de Barros, Álvaro Lazzarini,


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ANO XX - Nº 474

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15 DE OUTUBRO DE 2016
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Antônio Carlos de Oliveira, Antônio José de Barros Levenhagen, Aramis Nassif,


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Arion Sayão Romita, Armand F. Pereira, Arnoldo Wald, Benedito Calheiros Bonfim,
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Benjamim Zymler, Cândido Furtado Maia Neto, Carlos Alberto Silveira Lenzi, Car-
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los Fernando Mathias de Souza, Carlos Pinto C. Motta, Damásio E. de Jesus, Décio
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de Oliveira Santos Júnior, Edson de Arruda Camara, Eliana Calmon, Fátima Nancy
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BRASIL E NO MUNDO Tereza Rodrigues Vieira, Toshio Mukai, Vantuil Abdala, Vicente de Paulo Saraiva,
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TENDÊNCIAS IN VOGA CONTEXTO
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A JURISPRUDÊNCIA, A
ARTUR RICARDO RATC
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA EM
EDUARDO VIEIRA DE ALMEIDA
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REFORMA TRABALHISTA E O “TEMPOS ROMANOS” – STF – UM E INOVA COM EMENDA
FIM DA UNICIDADE SINDICAL RETROCESSO DE CONQUISTAS E
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COM A PALAVRA

WalterAlexandre Bussamara

TRIBUTAÇÃO FEDERAL SOBRE

ARQUIVO PESSOAL
HERANÇAS E DOAÇÕES

E
m meio à grave crise econômica que assola atualmen- tição de competências tributárias, em meio a materialidades
te o Estado brasileiro, historicamente decorrente de também rigorosamente estabelecidas.
uma ineficiente gestão da máquina pública, não têm Se a aferição de rendas realmente restou destinada à tri-
sido raras as pretensões destemperadas do governo butação federal, via Imposto de Renda, este não foi, em igual
federal para fins de geração, a qualquer custo, de receitas, em proporção, o caminho eleito originariamente pela Constitui-
especial, tributárias. ção no que toca “aos rendimentos”, se assim o chamarmos,
Exemplo disso é o novel projeto de lei enviado ao Congresso advindos de heranças e doações, para os quais, ao contrário,
Nacional, com vistas, dentre outras coisas e, no que aqui inte- foi destinada uma competência impositiva apenas e tão so-
ressa, a alterações na legislação do IRPF, que viabilizem, como mente aos Estados e Distrito Federal (art. 155: Compete aos
se possível fosse (mas não o é) uma tributação federal incidente Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: I- im-
sobre heranças e doações. posto sobre transmissão causa mortis e doação, de quaisquer
Essa iniciativa, via PL, decorre de um anseio governamen- bens ou direitos), o que já impediria, de pronto, a pretensão
tal em poder compensar as perdas de arrecadação que advirão constante do PL ora em questão.
da correção da tabela do IRPF, a partir de 2017. Correção, ali- Uma única possibilidade de tributação das heranças e do-
ás, que, apenas “en passant”, longe de dever ser tratada como ações pela UF, invadindo-se competência originária dos esta-
benesse do Estado, constitui-se, na verdade, como verdadeira dos e DF, considerado nosso modelo constitucional atual, seria
obrigação sua, sob pena de falsa aferição da real capacidade sua ocorrência por meio da chamada imposição extraordinária
contributiva objetiva dos contribuintes. (imposto extraordinário). O que, por seu turno, apenas se jus-
Em épocas de paz, inviável se entremostra a tributação de tificaria na existência de um estado de beligerância da nação,
heranças e doações pela União Federal vale dizer, quando diante de guerra externa ou de sua iminência
No caso da tributação de heranças e doações, por sua vez, e, ainda, assim, apenas enquanto tal estado perdurasse (artigo
que se pretende efetivar por meio da legislação do IRPF (Lei nº 154, II, da CF).
7.713/1988), o referido PL busca a revogação parcial de uma su- Do contrário, ou seja, em épocas de paz, inviável se entre-
posta isenção já existente em seu art. 6º, XVI, segundo o qual, mostra a tributação de heranças e doações pela UF.
“Ficam isentos do Imposto de Renda os seguintes rendimentos Nem mesmo isso seria possível, avançando-se um pouco
percebidos por pessoas físicas: (…) XVI – o valor dos bens ad- mais, no caso de tentativa de alteração do texto Constitucional
quiridos por doação ou herança”. via emenda (Poder Constituinte Derivado), haja vista não poder
De acordo com o PL em referência, a bem da verdade, a isen- ser objeto de deliberação qualquer proposta de emenda ten-
ção do IRPF apenas continuaria nos casos (i) de heranças e do- dente a abolir, dentre outras coisas, a forma federativa de Esta-
ações em adiantamento de legítima, até R$ 5 milhões e, (ii) para do e os direitos e garantias individuais (art. 60, §4º, I e IV, da CF).
outras formas de doações que não superassem R$ 1 milhão. Ora, qualquer tentativa de deslocamento de competência
Como se nota, pois, as heranças e doações já se mostravam tributária dos Estados e DF à UF, via emenda, estaria, em tudo e
presentes, como modalidades de “acréscimo patrimonial”, na por tudo, violando o pacto federativo originariamente estabele-
própria legislação do IRPF, não estando este sendo cobrado até cido, cuja premissa maior reside, justamente, na repartição au-
então, sobre estas, porém, por uma mera questão de ‘vontade tônoma de competências legislativas. E, por ser a competência
legislativa’, em que se optou, nestas situações, até hoje, pela tributária uma delas, qualquer pretensão da UF nesse sentido
concessão de absoluta isenção tributária, a qual, agora, quer-se não encontraria qualquer respaldo jurídico, mormente pelas
ver relativizada. receitas geradas aos estados e DF por conta do imposto a eles
O fato, contudo, de aqueles institutos civis (heranças e doa- imputado viabilizarem a assunção de seus objetivos institucio-
ções) já constarem da legislação do IRPF, nenhuma (ou maior) nais (autonomias financeira e jurídica).
legitimidade dá às intenções do governo. Da mesma forma, no que toca aos direitos e garantias in-
Muito antes de bem performarem em meio à legislação or- dividuais, o texto primário da CF já consignou o direito de os
dinária do IRPF, deverão tais institutos manter coerência plena cidadãos-contribuintes apenas terem suas heranças e doações,
com o que prevê e estabelece nossa atual Constituição Federal, em momentos de paz, tributadas por meio de imposto de com-
sob pena de subversão ao sistema jurídico atual. petência dos estados e DF. O que, também por aqui, derrubaria
Com efeito, a atual Carta da República não criou tributos. qualquer intenção governamental em contrário.
Em contrapartida desenhou, com esmero, suas regras-matrizes Em nosso sentir, portanto, a (bi)tributação federal sobre
(Roque Carrazza), seus orientadores de incidência, consignan- heranças e doações almejada pelo PL em referência, mostra-se
do, expressamente, no que ora nos interessa, uma rígida repar- como absoluto “non sense” tributário.

WALTER ALEXANDRE BUSSAMARA é mestre em direito tributário pela PUC-SP, advogado em SP e sócio de Bussamara e Silveira Advogados.

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REDUÇÃO DA CARGA HORÁRIA
PROPOSTAS E PROJETOS

DE TRABALHO NAS VISÕES


CONSTITUCIONAL E EMPRESARIAL:
BENEFÍCIOS E MALEFÍCIOS
“Se hoje a discussão de redução da carga horária semanal de 44 para 40 horas tem
como base melhorar a saúde do trabalhador, deixá-lo com mais tempo para estudar,
se qualificar e ter mais tempo para o lazer e, certamente, para a maior geração de em-
pregos, por outro lado já temos no Brasil um custo de encargos sociais que ultrapassa
100% do valor do salário, fator que pode levar as empresas a criarem alternativas à
redução de pessoal, como automação e robotização de processos em tudo que for pos-
sível e, então, ter o efeito contrário ao pretendido.”

 POR FERNANDA ROSSI e ANTONIO BAIÃO

H
á mais de 20 anos em discussão, a redução da haver a diminuição de uma hora até o limite mínimo de
carga horária de 44 horas para 40 horas de tra- 36 horas semanais.
balho semanais traz questões relevantes nos Outras propostas que também preveem a diminuição
cenários social e econômico. Em todas as pro- da carga horária são a PEC 89/2015 e a PEC 231/95, a pri-
postas, a redução da jornada trata da dignidade do ser hu- meira de autoria do senador do PT Paulo Rocha, na qual
mano e aponta inúmeros benefícios, entre eles a possível o projeto altera o inciso XIII do art. 7º da CR/88, tendo o
criação de milhões de empregos. De acordo com estudos seu texto prevendo a redução gradativa da jornada até
do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e atingir 40 horas semanais. A jornada, após a aprovação,
Estudos Socioeconômicos), o aumento dos custos totais passaria a ser de 43 horas semanais e, anualmente, redu-
para as empresas seria de menos de 2% e criaria mais de 3 zida até o limite de 40 horas semanais, sendo que o adi-
milhões de empregos, um impacto pequeno dado a pro- cional de hora extra passaria de 50% para 60% do valor
porção dos benefícios apresentados. da hora normal.
A proposta de Emenda à Constituição nº 148, de 2015, A segunda, a PEC 231/95, do senador Inácio Arruda do
apresentada pelo senador Paulo Paim, tem como justifi- PCdoB-CE, traz também em seu texto a redução da carga
cativa o anseio popular e a evolução nas relações traba- horária de 44 para 40 horas semanais e aumenta a hora ex-
lhistas devidamente debatidos nos fóruns nacionais do tra para 75% sobre o valor da hora normal, ao defender a
trabalho. A proposta visa a alterar o inciso XIII do art. 7º aprovação da matéria para a “dignidade do trabalhador”.
da Constituição Federal, para reduzir a jornada de traba- A redução será sempre um tema polêmico, uma vez
lho semanal. que encontra resistência por parte dos empresários que
É um padrão já adotado por vários países, como os Es- apontam inúmeros problemas, mas, sem dúvida, a redu-
tados Unidos, em que a carga horária é de 40 horas se- ção assinala índices de melhora de saúde e de segurança
manais; o Canadá, com jornada de 31 horas semanais; a no trabalho, entre outros benefícios. Em muitos setores da
Alemanha, de 39 horas semanais; a França, com 38 horas economia já é um fato a jornada de trabalho de 40 horas
semanais; a Argentina, com 39 horas semanais; e Chile, semanais, a qual passaria tão somente a ser um modelo
com 43 horas semanais. adotado para melhores condições para os trabalhadores.
A proposta ainda prevê a compensação de horários e A redução da jornada de trabalho, sob o aspecto cons-
a redução da jornada por meio de acordo ou convenção titucional, é totalmente cabível. Ao analisar o artigo 60, §
coletiva de trabalho, além de prever que a jornada não 4º, IV da CR/88 nos deparamos com a seguinte redação:
poderá ser superior a 40 horas semanais e, anualmente, Art. 60 – [...]

6 REVISTA JURÍDICA CONSULEX - ANO XX - Nº 475 - 1º DE NOVEMBRO/2016


[...] Assim, é possível inferir que cada organização e seg-
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda mento sofrerá menos ou mais impacto no seu orçamento.
tendente a abolir: Este fator, por si só, exige grande reflexão do legislador para
[...] que, na hipótese da aprovação, tenha o tempo hábil para
IV – os direitos e garantias individuais. rever toda a programação orçamentária das empresas.
O que se depreende deste trecho constitucional, que Vamos relembrar aqui a EC nº 20/1998, a qual elevou
traz uma limitação explícita material ao poder de refor- a idade mínima para ingresso de jovens no mercado de
ma, é de que não se pode ter emendas à Constituição no trabalho de 14 para 16 anos, com a argumentação de que
sentido de extinguir ou reduzir direitos, no caso “direitos aumentaria a quantidade de empregos, uma vez que iria
e garantias individuais”. Obviamente, uma emenda que retardar em dois anos o ingresso de novos entrantes no
amplie direitos é perfeitamente aceitável. mercado de trabalho.
No instante em que se concebe que os direitos huma- Se hoje a discussão de redução da carga horária sema-
nos são indissociáveis, ao citar no texto supra “direitos e nal de 44 para 40 horas tem como base melhorar a saúde
garantias individuais”, a CR/88, na verdade, está abran- do trabalhador, deixá-lo com mais tempo para estudar,
gendo todos os direitos, dentre eles os sociais, nos quais se qualificar e ter mais tempo para o lazer e, certamente,
se insere a discussão da jornada de trabalho. para a maior geração de empregos, por outro lado já te-
E, sem dúvida, a redução da jornada representa uma mos no Brasil um custo de encargos sociais que ultrapassa
ampliação de direitos. 100% do valor do salário, fator que pode levar as empresas
Em evento realizado pelo Sindicato dos Trabalhadores a criarem alternativas à redução de pessoal, como auto-
em Processamento de Dados e Tecnologia da Informação mação e robotização de processos em tudo que for possí-
do Estado de São Paulo, o economista e professor Marcio vel e, então, ter o efeito contrário ao pretendido.
Pochmann discutiu a mudança dos sistemas produtivo, Ademais, a maioria dos países que fizeram reduções
industrial e de serviços para compensar a desigualdade na de carga horária para exigir menos trabalho dos seus em-
distribuição dos lucros obtidos com o trabalho – a maior pregados são economias fortes e bem fundamentadas,
parte deles concentrada nas mãos das empresas. Afirmou sentindo o reflexo nos custos dos produtos e serviços. O
nesse evento, dentre outros pontos, que a redução da jor- que se pode observar é que, se teve impacto no aumen-
nada de trabalho está ligada ao processo de formação do to de empregos, esse benefício já não é mais percebido,
trabalhador, ao destacar que “É preciso diminuir o tempo pois os países apresentam índice de desemprego bastante
de trabalho para ele ter como estudar e se qualificar, ter elevados.
acesso à diversão e cultura”. Há ainda que pensarmos na competitividade dos pro-
O direito à vida, consagrado em nossa história cons- dutos brasileiros, nos mercados interno e externo, com o
titucional a partir de 1946, justamente pressupõe os possível aumento dos custos produtivos, pois já não somos
direitos ao lazer, à convivência familiar, à qualificação competitivos como os países integrantes do Brics, grupo de
profissional, dentre outras questões. Um trabalhador em países de economia emergente do qual o Brasil faz parte,
jornada menor de trabalho certamente terá a ampliação como ocorre na China e na Índia, países que exigem car-
dessas possibilidades. ga horária semanal dos seus empregados muito superior
Além disso, como bem aponta Pochmann, representa- a carga horária em vigor no Brasil, de 44 horas semanais.
rá um equilíbrio maior entre capital e trabalho, tão apre- Assim, a eventual redução da carga horária para 40 horas
goado na CR/88, em seus arts. 1º, 170 e 193, dentre outros. semanais poderá aumentar o problema da competitivida-
Contudo, sob uma visão empresarial, propor a redução de dos produtos brasileiros na economia mundial.
de carga horária semanal para 40 horas traria impactos di- Por fim, conclui-se que hoje as relações de trabalho no
ferenciados, a depender do funcionamento das empresas, Brasil, em função da idade da CLT (em vigor desde 1943),
pois observa-se que uma empresa que presta serviços ad- na prática são legisladas tendo como base muito mais a
ministrativos, por exemplo, quase sempre funciona ape- CCT (Convenção Coletiva de Trabalho) da categoria pro-
nas de segunda-feira a sexta-feira e, portanto, compensa a fissional que cuida de questões que visam a dar maior
carga horária do sábado no acréscimo durante a semana. equilíbrio à relação capital-trabalho, haja vista a proximi-
Neste caso, talvez o impacto não seria nem percebido. Já dade das entidades sindicais com empresas e trabalhado-
aquela empresa que tenha expediente normal nos finais res. Apesar das discrepâncias existentes na representação
de semana certamente terá maior necessidade de contra- sindical de patrões e empregados, que tanto favorece
tar mais pessoas para repor a carga horária reduzida. Ain- quanto desfavorece seus representados, deixar que as
da aquelas empresas que tenham funcionamento 24 ho- CCTs regulem tais questões é, sem dúvida, um erro. É ne-
ras por dia terão maior impacto nessa possível alteração, cessário relacionar os pontos negativos e positivos e dis-
pois irá perceber a redução da disponibilidade de pessoal ciplinar em lei, uma vez que o ideal seria uma norma de
em cada turno de funcionamento. âmbito federal inserida na CL.
ARQUIVO PESSOAL

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ANTONIO BAIÃO DE AMORIM é conselheiro do CRCMG, membro


FERNANDA CECÍLIA MARTINS ROSSI é Mestre em Direito Privado, da Câmara de Ética e Disciplina do CRCMG, presidente da Baião
professora de Direito da Academia de Polícia Militar de Minas Gerais Consultoria e Contabilidade Ltda., mantenedora da FACISABH e
e da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de BH. professor de Contabilidade e Custos.

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ALTERNATIVA AO CONGELAMENTO
PAINEL ECONÔMICO

DO ORÇAMENTO
 POR LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

O
processo para derrubar a presidente Dilma peachment, não estão felizes com o que aconteceu, mas é
Rousseff e tirar o PT do comando da econo- preciso reconhecer uma coisa. Ao contrário da ortodoxia
mia brasileira teve três atores principais: (1) os liberal, o presidente Temer é um homem que não acredita
economistas liberais que inventaram uma crise em soluções radicais.
fiscal “estrutural”, embora o orçamento público tenha se As loucuras fiscais expansionistas de 2013 e 2014 leva-
mantido razoavelmente equilibrado entre 1999 e 2012, ram o país a uma crise fiscal; a loucura fiscal contracio-
e propuseram uma brutal redução do tamanho do Esta- nista, em 2015, ajudou a levar o país a mergulhar em uma
do; (2) os partidos políticos liberais que representam os grande recessão. Qualquer solução para os dois proble-
interesses da classe rica e da classe média rentista e dos mas passará pelo aumento da receita e por uma disciplina
financistas – todos visando pagar menos impostos – que, fiscal mais firme.
derrotados nas eleições presidenciais, propuseram o im- Para aumentar a receita será necessário aumentar al-
peachment no dia seguinte à sua derrota; e (3) os políti- gum imposto, e, o que é mais importante, é preciso ajudar
cos do PMDB que viram na perda de apoio da sociedade a a economia a sair da recessão – o que significa, essencial-
presidente e na crise econômica que explodiu em 2015 o mente, socorrer as empresas que estão altamente endivi-
momento para ocuparem o poder. dadas e precisam de crédito para poder se reorganizar e
Para chegar ao poder o PMDB precisava obter a con- voltar a investir.
fiança dos liberais, e para isto produziu o documento O governo, entretanto, está imobilizado nesse plano.
“Uma Ponte para o Futuro”, no qual defendeu o liberalis- Tem uma coisa a seu favor: deu continuidade ao trabalho
mo econômico de maneira radical. A estratégia deu certo, que vinha sendo realizado pelo ministro Nelson Barbosa,
o PMDB logrou o apoio necessário, e ocupou a Presidên- de reconhecer o desequilíbrio fiscal e não tentar o impos-
cia. O novo governo tratou, imediatamente, de mostrar sível – resolvê-lo em um ano, como se tentou em 2015.
que estava fiel ao documento que havia preparado, e en- Mas não tem qualquer intenção de socorrer as empresas
viou para o Congresso a “emenda do teto” – a PEC 241, com crédito, e está deixando que o Banco Central conti-
na verdade, o congelamento das despesas do governo, nue com uma política de altos juros, ou seja, de âncora
exceto juros, por 20 anos. Como já em 2017 a economia cambial para controlar a inflação. Se ficamos indignados
brasileira voltará a crescer, ainda que modestamente, na com a ex-presidente Dilma, quando ela segurou os preços
eventualidade dessa emenda ser aprovada as despesas do da Petrobrás para controlar a inflação, devemos também
Estado diminuirão nos próximos anos de forma automá- ficar indignados quando o Banco Central busca reduzir a
tica e irracional. inflação segurando os preços do Brasil: a taxa de câmbio.
Com o crescimento, as demandas de serviços do Esta- E como estabelecer uma maior disciplina fiscal? Ao
do necessariamente aumentarão. Mas os serviços sacrifi- invés da emenda do congelamento é preciso aprovar
cados não serão os serviços do Judiciário e do Legislativo, uma emenda constitucional que estabeleça um limite
nem serão os serviços de segurança do Executivo, mas, para despesa pública em termos de porcentagem do PIB,
sim, os investimentos públicos e os serviços de educação usando-se como parâmetro a porcentagem verificada
e de saúde, já que serão derrogadas as vinculações cons- nos últimos dois anos. E incluir toda a despesa pública
titucionais. nessa porcentagem, inclusive os juros pagos. Teremos,
Mas não creio que o governo não levará integralmen- assim, um verdadeiro teto para a despesa de cada ano,
te adiante essa violência contra os direitos sociais dos definido com base na previsão do crescimento do PIB no
brasileiros, porque a reação popular será muito forte. O ano seguinte, que o orçamento público e sua execução
PMDB não é liberal, e nunca acreditou em ajuste fiscal. deverão obedecer rigidamente. E teremos incentivo para
Ele prometeu à ortodoxia liberal fazer o desmonte do Es- o governo reduzir juros e despesas correntes para poder
tado Social, mas sabe que o custo político de tal projeto é investir mais e atender melhor às necessidades da saúde
inaceitável. Todos os que, como eu, lutaram contra o im- e da educação pública.
ARQUIVO PESSOAL

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA é economista, fundador do PSDB, ex-ministro da Fazenda. Doutor e livre docente em economia pela Universidade de
São Paulo. Foi professor visitante de desenvolvimento econômico na Universidade de Paris, e de teoria política no Departamento de Ciência Política da USP.

8 REVISTA JURÍDICA CONSULEX - ANO XX - Nº 475 - 1º DE NOVEMBRO/2016


QUEIMADAS: PROBLEMA AMBIENTAL E USO

PAINEL DO LEITOR
ANORMAL DE PROPRIEDADE VIZINHA
 POR EZEQUIEL FRANDOLOSO

O
art. 225 da Constituição Federal de 1988 dispõe O que se vê é uma certa passividade dos órgãos locais, res-
que “todos têm direito ao meio ambiente ecolo- ponsáveis pela fiscalização das queimadas e pela aplicação
gicamente equilibrado, bem de uso comum do das penalidades cabíveis, até mesmo em terrenos próximos de
povo e essencial à sadia qualidade de vida, im- enorme vegetação nativa. Apesar de a população denunciá-las
pondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de de- e a autoridade responsável pela fiscalização constatá-las, esta
fendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. “faz pouco caso” e deixa de aplicar a penalidade ao argumen-
E não é só a Carta Magna que disciplina a proteção do to de “não localizar o sujeito causador da queimada”, mesmo
meio ambiente. A Lei nº 9.605/1998, no seu art. 54, também existindo legislação dispondo acerca da responsabilidade do
dispõe sobre o assunto. Esta penaliza a conduta de “causar proprietário, possuidor ou responsável.
poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem Por óbvio, que, quando é realizada a investigação de quei-
ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que pro- mada após denúncia, o agente não encontrará o sujeito que
voquem a mortandade de animais ou a destruição significa- ateou o fogo, a não ser que o órgão esteja fazendo fiscalização
tiva da flora”. de rotina e pegue o indivíduo em flagrante. Agora, dizer que
Saindo da esfera ambiental, o Código Civil, no seu art. não será aplicada nenhuma penalidade ao argumento de não
1.277, agasalha a mitigação do exercício do direito de pro- ter encontrado o causador da queimada é o mesmo que con-
priedade, ao dispor que “o proprietário ou o possuidor de ceder um alvará de liberação de queimada aos proprietários
um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências que querem ter o seu lote, terreno, quintal etc. limpo, sem
prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o ha- empregar muito esforço e ao menor custo possível.
bitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha”. E repita-se: a queimada não é só um problema ambiental.
Significa dizer que a lei impede que o proprietário faça “o Também é caso de uso anormal da propriedade. Sabemos
que bem entender”, pois o exercício do direito de proprie- que o princípio geral a que se subordinam as relações de vi-
dade não é um direito absoluto do dono do imóvel. zinhança é o de que o proprietário, ou possuidor, não podem
É possível frear qualquer conduta humana maléfica ao exercer seu direito de forma que venha a prejudicar a segu-
meio ambiente, inclusive as queimadas, as quais, nesta rança, o sossego e a saúde dos que habitam o prédio vizinho,
época do ano, por conta da baixa umidade do ar, se inten- até porque o direito de exercício da propriedade não possui
sificam. Não só as queimadas acidentais, perpetradas por caráter absoluto, é um direito que pode ser mitigado.
razões naturais ou infortunísticas, se acentuam, mas tam- Iniciar queimadas gera interferências que prejudicam
bém aquelas perpetradas por condutas criminosas, a fim de tais valores, principalmente, a saúde dos vizinhos, de modo
efetuar a limpeza de lotes, terrenos e quintais, em total des- que estes podem acionar o Judiciário para fazer cessar essas
respeito ao meio ambiente e à saúde das pessoas. lesões, no caso de o órgão fiscalizador local nada fazer.
Sem dúvida, as queimadas alteram a diversidade e o equi- O Judiciário paulista determinou, em recentíssima de-
líbrio biológico do meio ambiente, interferindo diretamente cisão proferida em sede de tutela de urgência, que a pro-
na qualidade do ar, no aquecimento global, nas condições prietária de um loteamento e a empresa gerenciadora da
físicas e químicas, podendo, inclusive, afetar os recursos obra realizada em terreno vizinho de reserva ambiental “se
hídricos. Além de serem péssimas ao nosso meio ambien- abstenham de fazer queimadas na área do condomínio de-
te, as queimadas provocam problemas respiratórios graves nominado “Reserva Ermida”, bem como impeçam que ter-
a muitas pessoas, inclusive às mais vulneráveis, como é o ceiros realizem queimadas nos lotes de terreno de sua res-
caso dos idosos, das crianças e das que sofrem com asma, ponsabilidade, sob pena de multa de R$ 5.000,00 por ato de
bronquite, sinusite, renite alérgica, entre outras doenças. queimada”. Esta decisão foi proferida nos autos Processo nº
Vimos que existem normas que regulam a conduta crimi- 1012041-69.2016.8.26.0309, pela 3ª Vara Cível da Comarca
nosa dos proprietários/possuidores que provoquem quei- de Jundiaí/SP, em 18.7.2016.
madas indiscriminadas, como é o caso da lei federal citada Portanto, a responsabilidade pela prática de queimadas
e de normas municipais, porém, na maioria das vezes, não é do proprietário, possuidor ou responsável. Se estes não as
se constata a punição ao infrator. Nesse sentido, o que a so- provocaram, em regra, permitiram, culposamente, que ou-
ciedade quer é maior rigor das autoridades no que se refere à tros assim fizessem, não tendo eles adotado medidas eficien-
aplicação das penalidades existentes, resolvendo o problema tes o bastante para evitá-las, cabendo, portanto, a responsabi-
das queimadas sem prostrar-se acobertando interesses. lidade pela reparação do dano na esfera material e moral.
ARQUIVO PESSOAL

EZEQUIEL FRANDOLOSO é advogado especializado em direito civil, imobiliário e constitucional de Frandoloso Advogados.

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DIVULGAÇÃO
DIREITO E BIOÉTICA

O TRANSEXUAL E O CRIME DE
FEMINICÍDIO
“Pertinente, no âmbito da diversidade sexual enfocado, é o pensamento da filósofa
existencialista Simone de Beauvoir, quando afirma que: “Ninguém nasce mulher: tor-
na-se mulher”, fazendo ver que o sexo não é o fator determinante do gênero, que se
apresenta como a escolha construída de forma consciente pela pessoa. Assim, nada
impede que um corpo masculino possa abrigar o gênero feminino.”

 POR EUDES QUINTINO DE OLIVEIRA JÚNIOR

O
promotor de Justiça Flávio Farinazzo Lorza, É, sem dúvida, a primeira investida a ser dada na in-
que oficia perante o 3º Tribunal do Júri de São terpretação extensiva à Lei Maria da Penha, na conju-
Paulo, ofereceu denúncia, já recebida pelo Ju- gação com o novo tipo penal acrescentado pela Lei nº
diciário, por crime de feminicídio, contra o ex- 13.104/2015, ampliando-a para que abrigue a conceitua-
companheiro de uma transexual por ele assassinada em ção definida como qualificadora do crime de homicídio,
fevereiro de 2016, colocando fim a uma convivência de 10 na modalidade de feminicídio, criada justamente para
anos (2016, online). disciplinar o regramento constitucional que estabelece

10 REVISTA JURÍDICA CONSULEX - ANO XX - Nº 475 - 1º DE NOVEMBRO/2016


mecanismos para coibir a violência no âmbito das rela- com a consequente aplicação do dispositivo penal do fe-
ções familiares (art. 226, § 8º da Constituição Federal), minicídio, cabendo, portanto, denúncia por tal delito. É
focando a mulher como destinatária da tutela específica. interessante observar que o Conselho Nacional de Pro-
No caso relatado, cabe perfeita analogia que, em síntese, curadores Gerais, em recente orientação ao Ministério
pode ser definida como uma autointegração do Direito, Público, recomenda a aplicação da Lei Maria da Penha
levando-se em consideração que, segundo a conceitua- em agressões a mulheres transexuais, mesmo que não
ção legal, “configura violência doméstica e familiar con- tenham se submetido à cirurgia de transgenitalização e
tra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gêne- também não tenham alterado o nome ou o sexo no re-
ro que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual gistro civil.
ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Mais recente ainda e, reprisando a mesma tecla no sen-
A evolução dos costumes sociais, acompanhada da tido de reconhecer a desnecessidade do procedimento ci-
lenta morosidade legislativa, que praticamente muito rúrgico, é o parecer ofertado pelo procurador-geral da Re-
pouco ofereceu aos conviventes de uniões homoafeti- pública Rodrigo Janot, no Recurso Extraordinário 670.422,
vas, teve novo rumo com consideráveis ganhos a partir que teve repercussão geral reconhecida. Acentuou o chefe
da Constituição Federal de 1988, que introduziu, dentre do Parquet que:
muitos outros, os princípios da isonomia e da dignidade
da pessoa humanana convivência harmônica em uma É possível a alteração de gênero no registro civil de tran-
sociedade plural justa e solidária, com a consequente sexual, mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico
abertura para o direito à diversidade. Em consequên- de adequação de sexo, sendo vedada a inclusão, ainda que
cia, abriu-se uma conotação diferenciada com relação à sigilosa, do termo “transexual” ou do sexo biológico nos res-
convivência estável e duradoura entre pessoas do mes- pectivos assentos.
mo sexo, homologando tal união como entidade fami-
liar. Relevantes são também as decisões proferidas pelo Assim, o direito à autodeterminação sexual integra os
Supremo Tribunal Federal na Ação de Descumprimen- direitos fundamentais e faz pensar como Paul Ricoeur
to de Preceito Fundamental nº 132 e na Ação Direta de (1913-2005), um dos maiores filósofos franceses, quan-
Inconstitucionalidade nº 4.277, em que houve reconhe- do trata da hermenêutica de si mesmo ao indagar se as
cimento dos direitos homoafetivos e a posterior Resolu- pessoas são corpos ou possuem corpos, mesmo se con-
ção nº 175, do Conselho Nacional de Justiça, que insti- centrando na mesma identidade. Tal questionamento faz
tuiu o casamento homoafetivo e a conversão da união ver que, na realidade, a pessoa nada mais é do que reve-
homoafetiva em casamento. la a sua manifestação psíquica, social e moral, deixando
O mandamento constitucional apresenta-se como transparecer a adequação sexual assumida, enquanto o
norma protetiva e inclusiva em favor daqueles que, ao se corpo, instrumento deambulatório que é, apresenta-se
referir a determinadas pessoas, a lei cria normas de con- como a revelação física. Muito próximo também do pen-
duta que se tornam incompreensíveis para aqueles que samento de Foucault em que o homem procura dentro de
foram excluídos. Por isso, conforme esclarece Hart (2009, si mesmo um espaço para se conhecer, construir e defi-
p.161): nir e, posteriormente, em contato com o mundo externo,
apresenta-se realmente como é, sem esconder sua verda-
O direito deve referir-se preferencialmente, embora não deira identidade, justamente para que possa desenvolver
exclusivamente, a classes de pessoas e a classes de condutas, seu projeto de vida de acordo com suas preferências.
coisas e circunstâncias; e o êxito de sua atuação sobre vastas Pertinente, no âmbito da diversidade sexual enfoca-
áreas da vida social depende de uma capacidade amplamente do, é o pensamento da filósofa existencialista Simone de
difusa de reconhecer certos atos, coisas e circunstâncias como Beauvoir, quando afirma que: “Ninguém nasce mulher:
manifestações das classificações gerais feitas pelas leis. torna-se mulher”, fazendo ver que o sexo não é o fator
determinante do gênero, que se apresenta como a esco-
Assim, nesta linha de pensamento, embora seja por- lha construída de forma consciente pela pessoa. Assim,
tador de órgãos definidos, o transexual que apresente nada impede que um corpo masculino possa abrigar o
inequívoca intenção pelo sexo oposto, ligado ao gênero gênero feminino.
feminino e a ele plenamente ajustado, pode ser vítima, Parece obre de ficção. Mas é a realidade.

REFERÊNCIAS
HART, H.L.A. O conceito de direito. Trad. Antonio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
MP oferece primeira denúncia por feminicídio de transexual em SP. Disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/10/mp-ofe-
rece-primeira-denuncia-por-feminicidio-de-transexual-em-sp.html. Acesso em: 15 nov. 2016.
ARQUIVO PESSOAL

EUDES QUINTINO DE OLIVEIRA JÚNIOR é promotor de justiça aposentado, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, advo-
gado, reitor da Unorp.

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AGENDA PARA NOVEMBRO/2016
INDICADORES ECONÔMICOS

SEGURIDADE SOCIAL OBRIGAÇÃO – FATOS GERADORES PAGAMENTO APÓS


NOVOS VALORES
DATA DE VENCIMENTO PARA O PAGAMENTO
OCORRIDOS EM OUTUBRO/2016 O VENCIMENTO

COFINS (Contribuição Social para DIA 25 DE NOVEMBRO, SEXTA-FEIRA


Financiamento da Seguridade Social)
PIS/PASEP DIA 25 DE NOVEMBRO, SEXTA-FEIRA
1. Tabela de salários-de-contribuição INSS SOBRE SALÁRIOS DIA 18 DE NOVEMBRO, SEXTA-FEIRA Para pagamento após o vencimento de
obrigação não incluída em notificação fiscal
dos segurados empregado, empregado FGTS DIA 7 DE NOVEMBRO, SEGUNDA-FEIRA de lançamento.
SALÁRIOS DIA 7 DE NOVEMBRO, SEGUNDA-FEIRA
doméstico e trabalhador avulso, para 1. MULTA DE MORA
OBRIGAÇÃO/PERÍODO DO FATO GERADOR DATA-LIMITE PARA O PAGAMENTO a) 0,33% por dia de atraso, limitado a 20%
pagamento a partir de 1º de janeiro de IRRF (TRABALHO ASSALARIADO)
b) 20% a partir do segundo mês seguinte
ao do vencimento da obrigação
DIA 18 DE NOVEMBRO, SEXTA-FEIRA
2016. ALTERAÇÃO DADA PELA LEI Nº 11.196/05 2. JUROS DE MORA
ARTIGO 70, INCISO I, ALÍNEA D a) taxa Selic

IRPF (CARNÊ-LEÃO) ÚLTIMO DIA ÚTIL DO MÊS SUBSEQUENTE


Alíquota para RECOLHIMENTO MENSAL AO DA OCORRÊNCIA DO FATO GERADOR

Salários-de-contribuição (R$) fins de


NOTA: A data de recolhimento de alguns tributos foi alterada pela Medida Provisória nº 449, de 3 de dezembro de 2008.
recolhimento ao
INSS (%)
até 1.556,94 8,00% IMPOSTO DE RENDA NA FONTE TAXA SELIC
A partir do mês de abril ano-calendário 2015
de 1.556,95 até 2.594,92 9,00%
Base de Cálculo Mensal Alíquota Parcela a deduzir MÊS %
de 2.594,93 até 5.189,92 11,00% em R$ % do Imposto em R$ Fevereiro/16 1,00
Março/16 1,16
até 1.903,98 – – Abril/16 1,06
de 1.903,99 até 2.826,65 7,5 142,80 Maio/16 1,11
Junho/16 1,16
2. Os contribuintes individuais con- de 2.826,66 até 3.751,05 15,0 354,80
Julho/16 1,11
de 3.751,06 até 4.664,68 22,5 636,13
Agosto/16 1,22
tribuem, respectivamente, com base na acima de 4.664,68 27,5 869,36 Setembro/16 1,11
Outubro/16 1,05
remuneração auferida durante o mês, em DEDUÇÕES: R$ 189,59 por dependente – R$ 1.903,98 – aposentadoria e pensão.
Dispositivo legal: Lei nº 12.469, de 26.08.11, DOU 29.08.11, IN nº 1.142, de 31.03.11 e Lei nº 13.149, de 21.07.15. Fonte – Secretaria da Receita Federal do Brasil
uma ou mais empresas ou pelo exercício Fonte – Secretaria da Receita Federal do Brasil
TAXA REFERENCIAL (TR)
de sua atividade por conta própria, e no SALÁRIO-MÍNIMO – 2008/2016
DIA TAXA(%) DIA TAXA(%) DIA TAXA(%)
valor por ele declarado, observados os VIGÊNCIA VALOR FUNDAMENTO LEGAL 15.09.16 0,1831 01.10.16 0,1216 16.10.16 0,1269
limites mínimo e máximo do salário-de- 01.02.09 R$ 465,00 Lei nº 12.255/10 (DOU 16.06.10)
16.09.16 0,1524 01.10.16 0,1601 17.10.16 0,1554
17.09.16 0,1232 02.10.16 0,1886 18.10.16 0,1515
01.01.10 R$ 510,00 Lei nº 12.382/11 (DOU 28.02.11)
-contribuição mensal. 01.03.11 R$ 545,00 Lei nº 12.382/11 e Dec. nº 7.655 (DOU 26.12.11) 18.09.16 0,1513 03.10.16 0,1835 19.10.16 0,1902
01.01.12 R$ 622,00 Lei nº 12.382/11 e Dec. nº 7.872 (DOU 26.12.12 19.09.16 0,1883 04.10.16 0,1816 20.10.16 0,1484
A partir de 1º de janeiro de 2016, o 01.01.13 R$ 678,00 Ed. Extra) 20.09.16 0,1606 05.10.16 0,1869 21.10.16 0,1250
01.01.14 R$ 724,00 Lei nº 12.382/11 e Dec. nº 8.166 (DOU 24.12.13) 21.09.16 0,1749 06.10.16 0,1430 22.10.16 0,1291
limite máximo do salário-de-benefício 01.01.15 R$ 788,00 Lei nº 12.382/11 e Dec. nº 8.381 (DOU 30.12.14) 22.09.16 0,1861 07.10.16 0,1054 23.10.16 0,1574
01.01.16 R$ 880,00 Lei nº 12.382/11 e Dec. nº 8.618 (DOU 30.12.15) 23.09.16 0,1334 08.10.16 0,1135 24.10.16 0,1903
será de R$ 5.189,82. 24.09.16 0,0975 09.10.16 0,1510 25.10.16 0,1611
25.09.16 0,1268 10.10.16 0,1877 26.10.16 0,1842
3. O valor da cota do salário-família, DÓLAR COMERCIAL 26.09.16 0,1592 11.10.16 0,1749 27.10.16 0,1264
Cotação média em R$ – Variação de 03.10.16 a 31.10.16 27.09.16 0,1524 12.10.16 0,1836 28.10.16 0,1066
a partir de 1º de janeiro de 2016, será 28.09.16 0,1820 13.10.16 0,1924 29.10.16 0,1145
DIA COMPRA VENDA DIA COMPRA VENDA 29.09.16 0,1697 14.10.16 0,1272 30.10.16 0,1420
de R$ 41,37 sendo devida ao segurado 30.09.16 0,1347 15.10.16 0,1269 31.10.16 0,1885
03.10.16 3,2332 3,2338 18.10.16 3,1868 3,1874
com remuneração mensal não superior a 04.10.16 3,2197 3,2203 19.10.16 3,1794 3,1800 Fonte – Banco Central
05.10.16 3,2353 3,2359 20.10.16 3,1599 3,1605
R$ 806,80, e de R$ 29,16 para o segurado 06.10.16 3,2304 3,2310 21.10.16 3,1587 3,1593 TAXA BÁSICA FINANCEIRA (TBF)
07.10.16 3,2128 3,2134 24.10.16 3,1305 3,1311
que recebe entre R$ 806,80 e R$ 1.212,64. 10.10.16 3,2119 3,2125 25.10.16 3,1187 3,1193 DIA TAXA(%) DIA TAXA(%) DIA TAXA(%)
11.10.16 3,2130 3,2136 26.10.16 3,1213 3,1219 21.09.16 1,0564 04.10.16 1,0031 18.10.16 0,9627
4. O responsável por infração a 13.10.16 3,2081 3,2087 27.10.16 3,1423 3,1429 22.09.16 1,0176 05.10.16 1,0084 19.10.16 1,0118
14.10.16 3,1858 3,1864 28.10.16 3,1809 3,1815 23.09.16 0,9945 06.10.16 0,9542 20.10.16 0,9496
qualquer dispositivo do Regulamento 17.10.16 3,1957 3,1963 31.10.16 3,1805 3,1811 24.09.16 0,9383 07.10.16 0,8962 21.10.16 0,9160
25.09.16 0,9879 08.10.16 0,9044 22.10.16 0,9201
da Previdência Social – RPS, para a qual Fonte – Banco Central
26.09.16 1,0306 09.10.16 0,9522 23.10.16 0,9687
não haja penalidade expressamente 27.09.16 1,0237 10.10.16 1,0092 24.10.16 1,0219
VALORES DE DEPÓSITOS RECURSAIS 28.09.16 1,0035 11.10.16 0,9963 25.10.16 1,0325
cominada, está sujeito, a partir de 1º de RECURSO R$
29.09.16 1,0512 12.10.16 1,0051 26.10.16 1,0157
30.09.16 0,9858 13.10.16 1,0140 27.10.16 0,9775
janeiro de 2016, conforme a gravidade da Recurso ordinário 8.959,63 01.10.16 0,9226 14.10.16 0,9783 28.10.16 0,8974
01.10.16 0,9714 15.10.16 0,9780 29.10.16 0,9054
infração, à multa variável de R$ 2.143,04 a Recurso de revista, embargos, recurso extraordinário
17.919,26
02.10.16 1,0202 16.10.16 0,9780 30.10.16 0,9532
e recurso em ação rescisória 03.10.16 1,0050 17.10.16 1,0268 31.10.16 1,0100
R$ 214.301,53. Fonte – Banco Central
Fonte – TST, Ato nº 326/16, publicado no DJe de 19.07.16.
5. A partir de 1º de janeiro de 2016,
é exigida Certidão Negativa de Débito ÍNDICES DE INFLAÇÃO – VARIAÇÕES PERCENTUAIS MENSAIS
ANO 2015 2016 ACUMULADO
– CND da empresa na alienação ou one-
0,37 últimos 12
MESES OUT NOV DEZ JAN FEV MAR ABR MAI JUN JUL AGO SET OUT meses
ração, a qualquer título, de bem móvel
ICV-SP-DIEESE 0,78 1,02 0,77 1,80 0,71 0,44 0,57 0,67 0,45 0,21 0,36 0,03 0,37 5,73 7,63
de valor superior a R$ 53.574,85, incorpo-
INPC/IBGE 0,77 1,11 0,90 1,51 0,95 0,44 0,64 0,98 0,74 0,64 0,31 0,08 0,17 6,36 8,50
rado ao seu ativo permanente. IPCA/IBGE 0,82 1,01 0,96 1,27 0,90 0,43 0,61 0,78 0,35 0,52 0,44 0,08 0,26 5,78 7,87

6. A partir de 1º de janeiro de 2016, IGP/M/FGV 1,89 1,52 0,49 1,14 1,29 0,51 0,33 0,82 1,69 0,18 0,15 0,20 0,16 6,63 8,78
IGP-DI/FGV 1,76 1,19 0,44 1,53 0,79 0,43 0,36 1,13 1,63 -0,39 0,43 0,03 0,13 6,24 7,99
os benefícios previdenciários não terão INCC-DI/FGV 0,36 0,34 0,10 0,39 0,54 0,64 0,55 0,08 1,93 0,49 0,29 0,33 0,21 5,59 6,05
valor inferior a R$ 880,00. IPC-DI/FGV 0,76 1,00 0,88 1,78 0,76 0,50 0,49 0,64 0,26 0,37 0,32 0,07 0,34 5,65 7,65
IPC-SP/FIPE 0,88 1,06 0,82 1,37 0,89 0,97 0,46 0,57 0,65 0,35 0,11 -0,14 0,27 5,62 7,61
IPCA-E/IBGE 0,66 0,85 1,18 0,92 1,42 0,43 0,51 0,86 0,40 0,54 0,45 0,23 - 5,90 8,78
Fonte – Portaria Interministerial MTPS/MS nº 1, de 08.01.16 – DOU
11.01.16. IPA-AGRO/FGV 0,66 2.49 1,51 2,58 2,02 1,28 1,14 3,31 5,58 -2,01 0,88 -1,56 -0,40 13,33 17,89
Fontes – FGV, IBGE, DIEESE, Fipe.
DESTAQUE

Murillo de Aragão

FRAUDES E VIOLÊNCIA
MARCAM AS ELEIÇÕES DE 2016

ARQUIVO PESSOAL
A
s eleições municipais de 2016 ficaram marcadas co decorrente da falta de fontes tradicionais de recursos.
por algumas novidades e por uma triste consta- Porém, o desafio posto pelas eleições deste ano foi além.
tação: o aumento da violência. As novidades se Provavelmente, nunca houve tantos candidatos impug-
relacionam, sobretudo, ao modo de financia- nados como nesta eleição. O Ministério Público previa,
mento de campanhas, que deixou de contar com dinheiro em agosto, mais de 2 mil candidatos barrados pela Lei da
de empresas. Assim, como era de se esperar, o caixa dois se Ficha Limpa. Em setembro, o número ultrapassava 2.300.
fez presente turbinando doações de pessoas físicas. Em 2012, foram barrados 317 prefeitos com a ficha suja.
A revelação de que beneficiários do programa Bolsa- Este ano, mais de 400 candidatos a prefeito foram consi-
Família doaram milhões é um escândalo. Assim como a derados ficha-suja! Pelo menos metade pôde disputar a
descoberta de que, ao menos, 64 mortos fizeram doações eleição e, adiante, provavelmente será cassado. Quem vo-
este ano. Fraudes no financiamento das campanhas eram, tou neles pode ter perdido o seu tempo. E seu voto.
contudo, mais do que previsíveis em um ambiente de es- Sem as doações empresariais tivemos maior relevância
cassez de doações empresariais. Trata-se daquilo que o dos recursos do fundo partidário. Presidentes de partidos
ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, que só eram importantes até as convenções viraram os
chamou de “laranjal”: as redes de doadores alimentadas maiores financiadores do processo eleitoral. Imaginem,
por recursos de outros ou de origem ilícita. por exemplo, que uma microlegenda de apenas dois depu-
Outra fraude foi o registro de um mesmo eleitor em tados federais que possua milhões de reais no caixa que po-
várias zonas eleitorais. O Tribunal Superior Eleitoral já deriam ser utilizados para financiar candidatos. O dono do
descobriu mais de 19 mil casos em que um mesmo elei- caixa, no caso, o presidente do partido, vira a estrela. Este
tor estava registrado em, pelo menos, duas sessões. Como ano, o fundo partidário ultrapassou R$ 800 milhões.
apenas pouco mais de 1/3 dos eleitores têm o cadas- Por fim, apesar do avanço de se limitar o gasto por tipo
tro biométrico, é possível que a fraude ainda seja muito de candidatura, da vigência da Lei da Ficha Limpa e do
maior. Em especial, nos municípios que não possuem fim das doações empresariais, o sistema eleitoral brasilei-
urna eletrônica. ro continua anacrônico. Agora, ainda mais pela pressão
 As eleições de 2016 podem ser consideradas uma das adicional da violência que se fez presente no processo,
mais violentas da redemocratização. Além do assassinato pelo risco de fraudes nas doações de pessoas físicas e, por
de um candidato a prefeito em Goiás, vários candidatos a último, pela inacreditável fragmentação do sistema parti-
prefeito e a vereador foram assassinados no Rio de Janeiro dário: 35 partidos disputaram as eleições.
e em outros estados. Ao menos, seis candidatos a prefeito  O caminho que se apresenta é óbvio. O sistema precisa
foram assassinados. ser revisto e aperfeiçoado. A Justiça Eleitoral deve ser dra-
 Como tradicionalmente ocorre, milícias e traficantes maticamente robustecida e aparelhada para lidar com os
controlaram o acesso de candidatos a determinadas re- desafios que se apresentam. A biometria deve ser imple-
giões, comprovando que o controle territorial do país pelo mentada em todo o país e o cruzamento de dados dos pro-
Estado não está completamente assegurado. A escalada gramas sociais, Imposto de Renda e doações, ampliado. A
da violência na campanha fez saltar o número de pedidos própria composição do Tribunal Superior Eleitoral deve
de presença das Forças Armadas e da Força Nacional em ser revista, de forma a acelerar os julgamentos. É inadmis-
estados e municípios. Em 2012, 395 municípios em nove sível que decisões sobre questões da Justiça Eleitoral se
estados tiveram a presença de policiamento especial. Este arrastem por anos a fio. Ou mesmo que candidatos ficha-
ano, a ao menos 435 municípios, em 14 estados, recebe- suja sejam eleitos e tomem posse apostando na demora e
ram reforço de policiamento durante o processo eleitoral. na incapacidade de o sistema decidir a sua situação.
O ministro Gilmar Mendes caracterizou essa eleição Ficou claro que o experimento institucional demanda
como um experimento institucional por conta do fim das sérios aperfeiçoamentos e que nossa democracia navega
doações empresariais e da pressão sobre o sistema políti- em águas turvas e turbulentas. 

MURILLO DE ARAGÃO é Bacharel em Direito (UniCeub), mestre em Ciência Política (UnB) e doutor em Sociologia (UnB). Autor dos livros Grupos de Pressão no
Congresso Nacional (Maltese, 1992) e Reforma Política (Civilização Brasileira, 2014).

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DIVULGAÇÃO
MATÉRIA DE CAPA

CORRUPÇÃO: UM PROBLEMA C
“Vivemos um momento histórico no Brasil e uma oportunidade única de transforma-
ção social positiva. A sociedade elegeu a corrupção como a sua prioridade e a inseriu
em sua agenda. Não podemos mais perder uma geração para resolver um problema
que nasceu com a descoberta do país e só faz crescer. É hora de mudar a direção de
nossa história. Precisamos virar essa página, pois poucos lucram com isso.”

 POR RONALDO PINHEIRO DE QUEIROZ

O
estado da arte é o seguinte: o Brasil amarga a
76ª posição no ranking de percepção da cor-
rupção da Transparência Internacional; a ONU
estima que R$ 200 bilhões em recursos públi-
cos são desviados no nosso país, sendo que 67% dos casos
são do orçamento da saúde e da educação; mesmo sendo
a 7ª maior economia o mundo, temos um IDH de 0,699, o
que nos faz ocupar o 73º lugar do ranking mundial; a esca-
la nacional de transparência dos municípios e dos estados
é de 5,21, num parâmetro de 0 a 10.
Esses dados alarmantes fizeram o brasileiro perceber
que a corrupção é o maior problema do Brasil, à frente
da saúde, educação, segurança e desemprego, conforme
pesquisa do Datafolha, até porque é pelo desvio de recur-
sos públicos que o Estado deixa de prover esses outros di-
reitos fundamentais.
A situação ganha contornos dramáticos quando se ve-
rifica que a probabilidade de ser punido por corrupção
no Brasil é de 3,17%, segundo estudo empírico realizado
por Carlos Higino Ribeiro de Alencar e Ivo Gico Júnior,
e a população carcerária de corruptos é de apenas 0,2%,
conforme o último censo feito pelo Ministério da Justiça.
No país com a terceira maior população carcerária do
mundo (622 mil), a quantidade de pessoas presas por cor-
rupção (1.728) é uma gota no oceano.
Esse círculo vicioso existe porque a corrupção é um cri-
me de baixíssimo risco e altos ganhos. Os nossos sistemas
normativo e de justiça, no plano estrutural, não têm mos-
trado uma mínima eficiência e, nesse ponto, sobressai-se
um consenso: precisamos de reformas!
Foi nesse embalo que o Ministério Público Federal
apresentou à sociedade as 10 medidas contra a corrup-
ção, com base na experiência adquirida nos grandes ca-
sos, como a Lava Jato, e em sintonia com as convenções

14 REVISTA JURÍDICA CONSULEX - ANO XX - Nº 475 - 1º DE NOVEMBRO/2016


COM ALTO PODER LUCRATIVO
internacionais anticorrupção (ONU, OEA, OCDE) e as pela conquista de 2,2 milhões de assinaturas em apenas
reformas legislativas mundiais de efetivo impacto na pre- oito meses, um duplo recorde em quantidade de firmas
venção e no combate à corrupção. e tempo de coleta, o que demonstra que o brasileiro tem
As 10 medidas visam a tornar a corrupção um crime de pressa para que esse problema seja enfrentado com um
alto risco, no plano punitivo, trabalha com a melhora do sis- mínimo de qualidade e perspectiva de melhora.
tema para reduzir a impunidade, mas essencialmente mira Além dos cidadãos, mais de mil instituições públicas e
na prevenção, evitando que esse mal maior sequer ocorra. privadas manifestaram expresso apoio ao projeto, como
Esse pacote anticorrupção foi entregue à sociedade, a foi o caso da Transparência Internacional, organização
qual o transformou em projeto de lei de iniciativa popular internacional mundialmente reconhecida pela atuação
na área.
É com essa imensa carga de democracia participativa
que o Congresso Nacional tem o desafio de apreciar o
PL 4850/2016, resgatando a esperança de um sistema de
justiça mais eficiente, uma governança mais ética e uma
cultura de maior intolerância com a confusão entre o
público e o privado.
Críticas construtivas ao projeto são bem-vindas, diver-
gências fundadas são da essência de um debate democrá-
tico, mas os que são contra devem apresentar, pelo me-
nos, um caminho melhor e mais resolutivo.
A crítica vazia, sem apresentação de uma alternativa,
contribui muito pouco para a melhoria deste estado de
coisas. Aliás, manter o status quo é altamente lucrativo
para as pessoas que se beneficiam direta ou indiretamen-
te da corrupção.
O PL 4850/2016 está em total sintonia com a Consti-
tuição, mas não faltam “inconstitucionalistas” para alegar
algum vício. A inconstitucionalidade é uma verdadeira
commodity no mercado jurídico e, é bom lembrar, mui-
tos juristas de renome venderam inconstitucionalidades
para a LC nº 135/2010, a Lei da Ficha Limpa, também de
iniciativa popular, tendo o STF declarado a sua completa
constitucionalidade, em 16 de fevereiro de 2012.
Vivemos um momento histórico no Brasil e uma opor-
tunidade única de transformação social positiva. A socie-
dade elegeu a corrupção como a sua prioridade e a inseriu
em sua agenda. Não podemos mais perder uma geração
para resolver um problema que nasceu com a descober-
ta do país e só faz crescer. É hora de mudar a direção de
nossa história. Precisamos virar essa página, pois poucos
lucram com isso.
ARQUIVO PESSOAL

RONALDO PINHEIRO DE QUEIROZ é procurador da República,


membro do GT Lava Jato/PGR, doutor e mestre em Direito.

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DIVULGAÇÃO
MATÉRIA DE CAPA

AS COMPLEXAS MEDIDAS
CONTRA A CORRUPÇÃO

 POR LUCIANO ANDERSON DE SOUZA

“Ao que tudo indica, as medidas pretendidas contêm mais equívocos do que acertos,
causando apenas a ilusão de que algo positivo poderá ser feito em termos de cercea-
mento à corrupção. Apesar disso, há pontos positivos e esta é uma rara oportunidade de
a sociedade brasileira debater verdadeiramente o tema, que perpassa muito mais por
medidas preventivas do que repressivas. A discussão racional, sem sensacionalismos,
pode nos levar a caminhos de maior eficiência e transparência na máquina pública.”

D
esde a tradição filosófica grega, com Herácli- tério Público Federal brasileiro, ora em discussão por nos-
to, ou chinesa, com o taoismo, a contradição sos representantes políticos.
é uma atitude que desafia a análise dos seres, Como o projeto nº 4.850/2016 parte de uma ideia legíti-
dos fenômenos e das ideias. É impossível não ma e bem-intencionada, contando com inegável e signifi-
se lembrar disso, ou melhor, não se ver diante da perple- cativa simpatia popular, qualquer crítica que se faça – que
xidade que a ambiguidade causa no estudo das chamadas é o que se pretende frisar – merece, antes de tudo, algu-
“10 medidas contra a corrupção”, de iniciativa do Minis- mas ressalvas, evitando-se mal-entendidos. Isso porque

16 REVISTA JURÍDICA CONSULEX - ANO XX - Nº 475 - 1º DE NOVEMBRO/2016


o tema parece despertar paixões, obliterando-se maior representam meios de se contornar a ineficiência das
racionalidade, paradoxo que somente pode ser vencido próprias autoridades repressoras, eternizando-se mais
prevalecendo-se esta última. ainda a morosidade das instâncias de controle, algo nor-
Em primeiro lugar, democracia não significa ditadura malmente esquecido, sendo o fenômeno comumente
da maioria, havendo pilares fundamentais a serem res- imputado à suposta malícia de “advogados muito bem
peitados com vistas à mantença da convivência pacífica pagos”, rotulação meramente ofensiva que fecha olhos à
dos indivíduos em regime plural e igualitário no qual a realidade. Também a perversão da presunção de inocên-
liberdade de cada cidadão é a regra maior. Dito isso, im- cia com a eufemística “execução provisória” – lamenta-
porta notar, mais do que o aceite popular, se o pretendido velmente, por ora consagrada pelo Supremo Tribunal
disegno di legge contribui para nossa conformação socio- Federal – é meio de se combater o incêndio jogando-se
política sem ofender algumas de suas colunas. Em outras a vítima no fogo.
palavras, a justiça da causa não justifica o emprego de Demais disso, as ideias de prisão para se evitar a dis-
qualquer meio para seu atingimento. sipação de valores e de confisco patrimonial indepen-
De se notar, antes da análise meritória geral, que não dentemente de responsabilizações são aberrações cho-
são dez as medidas propostas, mas sim mais, uma vez que, cantes que agridem qualquer ideia de um Direito Penal
sob cada etiqueta, há importantes previsões, algumas das democrático de cunho iluminista. A primeira, nada mais
quais de largo alcance e detalhamento, inclusive. Verdadei- representa do que prisão por dívida presumida, enquanto
ramente, a olhos técnicos, não é possível ser integralmente a outra, sanção penal sem culpa.
contra ou a favor do “pacote” proposto. Há aspectos muito O pretendido estabelecimento de “testes de integrida-
bons e muito ruins nas mais diversas providências preten- de”, isto é, verificação de honestidade a partir de simu-
didas. Algumas representariam avanços no cerceamento lação de situações criminosas para avaliar a conduta do
às condutas desviantes no âmbito da Administração Públi- servidor e sua predisposição para cometer crimes, nada
ca. Outras, consubstanciar-se-iam em graves retrocessos mais significa, a seu turno, do que flagrante provocado de
contra a cidadania. E, frise-se, apontar isso não significa crime impossível, absurdo pretendido em nome de um
em absoluto ser “a favor da corrupção”, rotulação de nível moralismo pragmático desmedido.
futebolístico que somente empobrece o debate público e o Por fim, as polêmicas propostas de alçar a corrupção
desenvolvimento de nossas instituições. à categoria de crime hediondo, de aumento de penas e
Como dito, a ideia de medidas com vistas à maior pro- de criação do crime de “caixa dois” representam apenas
bidade administrativa é legítima e importante, contextua- a exacerbação simbólica do Direito Penal, medidas sen-
lizando-se num momento propício de nossa realidade na- sacionalistas que não têm o condão de evitar práticas
cional. Há propostas positivas no projeto, como, no geral, criminosas já com respostas penais duras, que não con-
as de estabelecimento de responsabilizações de partidos seguem atingir qualquer ideário de intimidação. Mais
políticos, de racionalização de ações de improbidade, de uma vez se faz preciso quanto a isso se lembrar de Cesare
ampliação de prazos prescricionais, de confiscos patri- Beccaria, pai do Direito Penal moderno, que, em 1764,
moniais e de medidas de prevenção e transparência. escreveu de forma clara e definitiva que para prevenir a
Todavia, lamentavelmente, há inúmeras previsões prática delitiva mais vale a certeza de uma punição do
arbitrárias, com meros cunhos moralista e demagógico, que a dureza da pena estabelecida. Lição quase óbvia,
que ferem frontalmente a essência de um Estado De- mas sempre esquecida.
mocrático de Direito. Inclusive, paradoxalmente, tais Portanto, ao que tudo indica, as medidas pretendidas
previsões parecem flertar com simples compensações contêm mais equívocos do que acertos, causando apenas
autoritárias à própria ineficiência dos agentes estatais no a ilusão de que algo positivo poderá ser feito em termos
cerceamento à corrupção. de cerceamento à corrupção. Apesar disso, há pontos
Assim é que, v.g., por não conseguir comprovar atos de positivos e esta é uma rara oportunidade de a sociedade
corrupção, pretende-se criar o tipo penal de “enriqueci- brasileira debater verdadeiramente o tema, que perpassa
mento ilícito”, inversão da lógica da presunção de inocên- muito mais por medidas preventivas do que repressivas. A
cia já rechaçada, com acerto, pela Suprema Corte portu- discussão racional, sem sensacionalismos, pode nos levar
guesa, por exemplo. Ainda, em razão da incompetência na a caminhos de maior eficiência e transparência na máqui-
máquina pública quanto a procedimentos persecutórios na pública. Investimentos em tecnologia e em recursos
céleres, pretende-se que o direito de defesa pague o preço humanos nas esferas policial e judicial, por exemplo, são
dessa ineficiência restringindo-se recursos, que são meios muito mais eficazes contra a corrupção que um simples
legítimos de se insurgir contra decisões questionáveis. E, recrudescimento de penas. A reforma política, ademais, é
lembre-se, a própria sistemática atual já possui meios de o eixo central a guiar o melhor modelo que evita o compa-
se coibirem abusos. drio e a desonestidade pública. Assim, o tema é complexo
Também a extinção da chamada “prescrição retroa- e cheio de contradições, cumprindo a nós debatê-lo livre
tiva” e do reconhecimento de certas graves nulidades de ideias preconcebidas.
ARQUIVO PESSOAL

LUCIANO ANDERSON DE SOUZA é professor Doutor de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Doutor e Mestre
pela USP. Especialista pela Universidade de Salamanca. Autor das obras Expansão do direito penal e globalização (2007) e Direito penal econômico (2012),
dentre outros trabalhos. Advogado sócio-fundador de Souza e Velludo Salvador Advogados e vice-presidente da Comissão de Direito Penal da OAB/SP.

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DIVULGAÇÃO
MATÉRIA DE CAPA

AS DEZ MEDIDAS CONTRA


A CORRUPÇÃO
“O maior mérito de toda a campanha deflagrada pelo Ministério Público é o que se vê
expresso no art. 64, § 7º, do Projeto de Lei nº 4.850/2016, dispondo sobre a obriga-
ção do Ministério da Educação, em conjunto com a Controladoria-Geral da União, em
desenvolver medidas e programas de incentivo, em escolas e universidades, voltados
ao estudo e à pesquisa do fenômeno da corrupção, à conscientização dos danos provo-
cados pela corrupção e à propagação de comportamentos éticos. A palavra “corrupção”
vem do latim corruptus, é a deterioração, o podre, o que se deixou estragar. As origens
da corrupção devem ser pesquisadas e estudadas por todos, tanto aquela que se realiza
com ousadia no campo da ilicitude quanto a que se esconde na sombra da legalidade.”

 POR SERGIO R DO AMARAL GURGEL

E
m 2015, os procuradores da República que atuam mica que o país vem enfrentando, associado ao empenho
na Operação Lava Jato, com o apoio da Procura- dos meios de comunicação em divulgar sucessivos escân-
doria-Geral da República, lançaram uma campa- dalos envolvendo a cúpula do governo – sem entrar no
nha intitulada “Dez Medidas Contra a Corrup- mérito sobre a existência de algum tipo de motivação po-
ção”. A iniciativa envolve um conjunto de providências lítica – permite ao cidadão comum estabelecer a relação
visando alterar a legislação vigente para prevenir e repri- de causa e efeito entre esses dois grandes infortúnios. Seja
mir o desvio de conduta dos agentes públicos e daqueles parado em um sinal, na conversa com taxistas, nas salas
que de qualquer forma se beneficiam dos atos de impro- de reunião das grandes empresas ou nos corredores da
bidade administrativa ou dos crimes funcionais. Nesse Justiça, nota-se o mesmo desalento quanto à inutilidade
sentido, foram propostos uma série de anteprojetos de lei de qualquer intervenção a ser promovida pelo governo,
que promovem a criação de novos tipos penais, aumento legítima ou ilegítima, no sentido de retomar as rédeas da
das penas para determinados crimes, bem como a inclu- economia sem que haja um intransigente combate à cor-
são de alguns deles no rol dos crimes hediondos, entre ou- rupção em todas as suas formas de manifestação.
tras inovações nas esferas penal e extrapenal. Em paralelo A falta de escrúpulos por parte da administração pú-
ao processo legislativo em curso, o Ministério Público Fe- blica e daqueles que dela se locupletam não é particu-
deral vem se empenhando na publicidade das propostas, laridade do nosso tempo, nem tampouco da sociedade
a fim de ganhar o apoio popular, fator que minimizaria as brasileira. É bem verdade que a sensação daquele que se
chances de engavetamento no Congresso Nacional, como aventura no estudo da história do Brasil é a de realizar um
poderiam desejar os seus opositores. minucioso exame dos autos de um inquérito policial, e
Com relação à adesão da maioria do povo brasileiro, não poderia ser diferente, se levarmos em consideração
a meta já tinha sido alcançada antes mesmo de qualquer o processo de colonização que nos deu origem, no qual a
manifestação ministerial. O agravamento da crise econô- colônia deveria ser tão corrupta quanto à metrópole. Não

18 REVISTA JURÍDICA CONSULEX - ANO XX - Nº 475 - 1º DE NOVEMBRO/2016


há como negar que o projeto de concepção da socieda- idem. Além do mais, não se pode definir um crime sem
de brasileira tenha dado certo. A Coroa portuguesa teria que nele esteja revelada uma conduta clara e determinada
ficado muito orgulhosa se pudesse ver seus descenden- em sua descrição.
tes nas terras ultramarinas ocupando a posição de quarto O aumento das escalas penais de certos crimes fun-
país mais corrupto do planeta – segundo o índice de cor- cionais, como os de peculato, inserção de dados falsos
rupção divulgado pelo Fórum Econômico Mundial – per- em sistema informatizado, concussão, excesso de exação
dendo apenas para outras nações que, do mesmo modo, qualificado, corrupção passiva e corrupão ativa, além do
plagiam seus algozes, como Chade, Bolívia e Venezuela. crime de estelionato – que mesmo sendo contra o patri-
Os países conhecidos como representantes do “pri- mônio pode atingir o erário – merece uma série de críticas
meiro mundo”, que muito se beneficiaram e continuam que devem ser ponderadas pelo legislador. A primeira de-
se prevalecendo das práticas autodestrutivas dos seus las no sentido de não se deixar levar pela crendice popular
vizinhos subdesenvolvidos, estimam que, atualmente, a de que a incidência da prática criminosa seja inversamen-
corrupção já movimente cerca de três trilhões de dóla- te proporcional à rigidez da pena. Além disso, não cabe
res, correspondente a 5% do Produto Interno Bruto (PIB) ao legislador usar o clamor público como medidor para
mundial, sem levar em conta a atividade do narcotráfico o encrudescimento das sanções penais, mas sim os parâ-
que, na ausência da corrupção jamais prosperaria, e atin- metros lógicos e racionais da ciência criminal. Aliás, vale
ge, isoladamente, a cifra de dois trilhões de dólares, de lembrar que se dermos ouvido aos discursos proclama-
acordo com o último relatório divulgado pela ONU. Este dos nas ruas, faltará corda para o enforcamento de todos
número equivale a 3% de tudo o que se produz e é con- sobre os quais recaia mera suspeita do cometimento de
sumido no planeta em um ano, ou a quatro vezes o PIB qualquer infração penal. Para aqueles que pregam mais
da Argentina e quase dez vezes o da Colômbia. Para com- penas, devemos perguntar se estariam dispostos a pagar
pletar esse triste quadro de degeneração, há de acrescen- mais impostos para a construção de presídios e manuten-
tar outras práticas ilícitas como a falsificação, o tráfico de ção do sistema carcerário, que hoje abriga a quarta maior
pessoas, o tráfico de petróleo e o tráfico de vida selvagem. população carcerária do mundo, somente perdendo para
Por essa razão, há quem diga que o dinheiro movimenta- a Rússia, China e Estados Unidos, obviamente, pelo fato
do pela corrupção já esteja inserido na economia mundial de possuírem uma densidade demográfica significativa-
e a cessação de suas atividades acarretaria um verdadeiro mente superior. E o mais grave sobre esse aspecto está
colpaso financeiro global, mais devastador do que a Cri- na desproporção entre as penas dos crimes em tela e de
se de 1929. Verdadeiro ou não o prenúncio do caos, não outras de maior gravidade. Quando, por exemplo, esta-
há como negar que a corrupção tornou-se um câncer em belecemos uma escala penal de quatro a doze anos para
evolução rumo à metástase, afetando quase todas as ins- o crime de peculato, equiparamos a sua potencialidade
tituições do mundo. Enquanto isso, o Ministério Público lesiva à do crime de lesão corporal seguida de morte. Nes-
brasileiro busca, por intermédio da legislação, reverter se sentido, pode-se afirmar que a conduta de subtrair um
essa crise moral no cenário nacional. computador da repartição pública (o projeto de lei não faz
A magnitude do problema que envolve a corrupção distinção quanto ao valor do prejuízo causado à adminis-
no Brasil e nos demais países serve para que se atribua tração pública para efeito de aplicação da pena) passaria
ao Ministério Público o justo crédito por tomar a iniciati- a ser tão grave quanto agredir a vítima com a intenção de
va de enfrentá-la, sem entrar no mérito se as respectivas ferir o seu rosto, causando-lhe a morte culposamente, e
propostas teriam ou não o condão de atingir essa preten- a pena máxima cinquenta porcento mais grave do que
são. Mais louvável ainda a atitude daqueles que não ape- a conduta do agente que decepa o órgão genital de sua
nas se preocupam em extirpar esse mal da nossa socie- vítima, praticando, assim, o crime de lesão corporal gra-
dade, como também buscam fazê-lo em total respeito e víssima. Trata-se de flagrante desrespeito ao princípio da
harmonia ao ordenamento jurídico vigente, sem prejuízo individualização da pena, que impõe a proporcionalidade
aos direitos e garantias individuais. da pena diante do bem jurídico tutelado.
Do Projeto de Lei nº 4.850/2016, de autoria do depu- A criação do instituto do chamado “teste de integri-
tado Antônio Carlos Mendes Thame, que materializa e dade”, que permite ao poder público induzir o servidor à
concentriza as medidas de combate à corrupção propos- prática de um ato ilícito apenas para averiguar sua ido-
tas pelo Ministério Público Federal, podemos destacar as- neidade, deveria ser repensado pelo Ministério Público,
pectos relevantes, outros redundantes, e alguns, lamenta- pois não se coaduna com o nosso ordenamento jurídico
velmente, aviltantes. e foge totalmente aos anseios da sociedade no sentido de
Não há quem se mostre a favor do enriquecimento ilí- erradicar a corrupção, punindo aqueles que vêm se entre-
cito, salvo aquele que tenha enriquecido ou favorecido gando a essa execrável rotina. Não pode haver interesse
algum ente querido ao arrepio da lei. Todavia, se opor a do Estado em inculcar na mente das pessoas o desejo de
essa prática não significa apoiar a tipificação desse fato praticar crimes apenas para puni-las. Em primeiro lugar,
como crime. Se o enriquecimento é originado da prática porque a própria condição social do indivíduo pode tor-
de algum delito, deve o agente por este responder, con- ná-lo mais vulnerável às atividades delituosas que poriam
siderados os seus efeitos como um post factum impuní- fim a situação financeira desprivilegiada, sem contar que
vel, evitando, assim, a violação ao princípio do non bis in o Brasil já possui um índice de delinquência muito aci-

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MATÉRIA DE CAPA
ma do que se poderia considerar tolerável. Não é por um sido adquiridos com os proventos da infração; a possibi-
acaso a indignação popular, quando o governo brasileiro lidade de decretação de prisão preventiva para garantia
se recusa a extraditar criminosos. O cenário atual da cri- da ordem pública, conveniência da instrução criminal
minalidade no país nos permitiria até mesmo a exporta- e asseguração da aplicação da lei penal, servindo ao juí-
ção de transgressores da lei, se isso fosse juridicamente zo para conter o continuismo na prática da corrupção,
possível, para quem fizesse questão de abrigá-los. Como bem como a dilapidação do patrimônio por ela obtido e
se não bastasse, há ainda quem sustente a criminalização fuga dos seus autores; e a preservação dos atos proces-
do agente público que sucumbir ao malfadado teste de suais que não foram contaminados por outro eivado de
integridade, fazendo com que o crime impossível, em ra- vício insanável. Na legislação extravagante temos ainda a
zão da atuação do agente provocador, se torne possível, Lei nº 9.807/1999 (Lei de Proteção à Testemunha) e a Lei
devendo o Supremo Tribunal Federal rever o disposto na nº 12.850/2013 (Lei de Organização Criminosa) que dis-
Súmula 145. Caso o referido instituto venha a ser contem- põem sobre a proteção das pessoas que colaboram com
plado, a sociedade brasileira viverá um verdadeiro esta- os órgãos que atuam na persecução penal no combate ao
do policial no qual a presunção de culpa disseminará o crime. Nada mais revelador da eficiência dos institutos
medo e a desconfiança, superando o que atualmente vem processuais vigentes para o desmantelamento das asso-
ocorrendo entre interlocutores em conversa telefônica. O ciações e organizações criminosas que operam no âmbito
número de grampos em curso é tão exorbitante que logo da corrupção do que o sucesso da Operação Lava Jato. A
chegará o dia em que o cidadão sentirá medo até de pedir Polícia Federal cumpriu com sucesso todos os mandados
pizzas por telefone. judiciais, as denúnicas foram devidamente recebidas e
Entre as proposições também não se pode deixar de os processos tramitaram rapidamente à margem do ris-
ressaltar a alteração das regras sobre prescrição estabe- co da prescrição, os inúmeros recursos interpostos foram
lecidas pelo Código Penal. A fundamentação baseia-se julgados em tempo razoável pelos Tribunais Superiores,
no fato de muitos processos serem encerrados em razão grande parte do dinheiro foi recuperada pelo Estado e a
dos efeitos do tempo, agindo sobre o jus puniendi esta- maioria dos envolvidos, julgados ou não, se encontra na
tal. Ocorre que o instituto da prescrição foi criado não cadeia. Se todo esse êxito foi obtido sob a égide da legisla-
apenas para dar aos imputados antes, durante ou depois ção atual, o que justificaria mudá-la?
do processo um mínimo de segurança jurídica, mas para Aplausos para a criminalização da odiosa prática do
que o Estado seja rápido na apuração dos delitos. Não “caixa 2” e a responsabilização dos partidos políticos que
há quem duvide ser a administração pública a principal aderirem a esse artifício. Doações não declaradas para
responsável pela morosidade dos procedimentos crimi- campanha política são incompatíveis com o regime de-
nais. Desde o período colonial, o Brasil não consegue se mocrático e perpetuam o sistema eleitoral fraudulento e
livrar das amarras de um modelo extremamente carto- covarde característico da República Velha. O rastreamen-
rial, no qual quase tudo precisa ser escrito, protocolado, to dos valores endereçados aos partidos políticos sem
reconhecido, assinado, juntado, remetido, concluso e transparência conduzirá o Ministério Público à revelação
publicado. Não foram os indiciados e acusados que ins- de múltiplos nichos de corrupção com raízes profundas
tituíram e perpetuaram o excesso de formalismo. Com nos setores público e privado.
raras exceções, em homenagem ao princípio do favor rei, O maior mérito de toda a campanha deflagrada pelo
os recursos e ações autônomas de impugnação disponi- Ministério Público é o que se vê expresso no art. 64, § 7º,
bilizadas ao acusado se estendem à acusação, e assim o do Projeto de Lei nº 4.850/2016, dispondo sobre a obri-
faz quando lhe convém. Aliás, nada mais contraditório gação do Ministério da Educação, em conjunto com a
do que a pretensão de se criar, além de tantos já existen- Controladoria-Geral da União, em desenvolver medidas e
tes, um recurso exclusivo para o titular da ação penal, programas de incentivo, em escolas e universidades, vol-
voltado apenas para impugnar a concessão de ordem em tados ao estudo e à pesquisa do fenômeno da corrupção,
habeas corpus. à conscientização dos danos provocados pela corrupção e
Como redundantes podem ser apontadas os atos juris- à propagação de comportamentos éticos. A palavra “cor-
dicionais voltados para o confisco de bens provenientes rupção” vem do latim corruptus, é a deterioração, o podre,
de crimes, à ampliação das hipóteses de prisão preven- o que se deixou estragar. As origens da corrupção devem
tiva, aos mecanismos de proteção para quem fornece ser pesquisadas e estudadas por todos, tanto aquela que
informações às autoridades sobre a prática de crimes e se realiza com ousadia no campo da ilicitude quanto a
à alteração da redação de alguns dispositivos pertinen- que se esconde na sombra da legalidade. Karl Menninger,
tes ao sistema de nulidades. Na legislação penal pátria um dos maiores pensadores contemporâneos que o mun-
em vigor, elaborada em 1941, estão disciplinadas as do já conheceu, em sua obra “O Pecado de Nossa Época”
medidas assecuratórias, entre elas o sequestro de bens revela que não raramente a lei pode se tornar a própria
móveis e imóveis sobre os quais haja suspeita de terem fonte do pecado.
ARQUIVO PESSOAL

SERGIO R. DO AMARAL GURGEL é advogado criminalista; autor da Impetus Editora; professor de Direito Penal e Processo Penal; palestrante.

20 REVISTA JURÍDICA CONSULEX - ANO XX - Nº 475 - 1º DE NOVEMBRO/2016


DIVULGAÇÃO

10 MEDIDAS CONTRA A
DESONESTIDADE PÚBLICA
DIREITOS HUMANOS EM
DEFESA DA PROBIDADE
ADMINISTRATIVA

“Cabe especialmente ao Ministério Público atuar de maneira direta e mais rígida na


tutela dos direitos sociais constantemente ultrajados, impedindo condutas desonestas
praticadas por agentes públicos. E isto se justifica pelo fato de o Ministério Público
possuir a titularidade da propositura da ação penal e da ação civil pública, uma vez que
o Tribunal de Contas é órgão auxiliar do Poder Legislativo e não possui função judicial,
propriamente dita. Todos envolvidos na malversação de verbas públicas ficam sujeitos
a responsabilidades administrativa, civil e criminal, por improbidade e ilícitos penais.”

 POR CÂNDIDO FURTADO MAIA NETO, DIEGO DE LIMA SONI, MAGNA CARVALHO DE MENEZES THIELE e
LUIZ GUSTAVO ROSÁ

“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra,


de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus,
o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto”.
Homenagem in memoriam RUI BARBOSA (1849-1923)

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MATÉRIA DE CAPA

A
s “10 Medidas Contra a Desonestidade Pública” Desse modo, a correta prevenção dos delitos de mal-
visam a melhoria e a eficiência de atuação do versação está no controle dos atos dos gestores e servido-
Ministério Público, para impedir e prevenir a res públicos (políticos), via procedimentos administrati-
criminalidade organizada, através da devassa vos (controle efetivo nas licitações, no emprego regular de
recorrente dos improbus admistratores, ou dos políticos verbas públicas essenciais, etc.) e também via Direito Civil
administradores acostumados culturalmente na delapi- (ação popular – Lei nº 4.717/1965 – Ação Civil Pública –
dação do dinheiro público e seu desvio a cofres próprios, Lei nº 7.347/1985 e Lei nº 12.966/2014, Mandado de Segu-
pelo cometimento de atos ilícitos de corrupção em coau- rança – Lei nº 12.016/2009, Ação de Improbidade – Lei nº
toria com particulares (empresários inescrupulosos). 8.429/1992, etc.).
As 10 Medidas Contra a Desonestidade Pública têm Estamos nos referindo às medidas administrativas,
como fundamento a imediata e direta fiscalização do deixando para o segundo plano proposições de ações ju-
Ministério Público, na correta aplicação das verbas diciais micro, que visam resoluções individuais em favor
oriundas de taxas e impostos cobrados pelos governos do cidadão, a exemplo do direito a vagas em creches ou
municipais, estaduais e federal, e ainda, impedir a mal- escolas públicas, direito a leitos, a remédios e tratamentos
versação do erário. hospitalares, sobre as quais o Ministério Público propõe
As 10 Medidas Contra a Desonestidade Pública se refe- ações judiciais quase que diuturnamente (do tipo “enxu-
rem à prevenção, muito mais eficiente e útil à sociedade gar gelo”).
e ao dinheiro público do que a medidas de repressão a A tarefa primordial ou central do Ministério Público
posteriori, já que esta muitas vezes ou, quase sempre, não em prol do interesse da sociedade é prevenir e impedir de
possui resultados práticos eficientes. uma vez por todas o enriquecimento ilícito, e esta tarefa
O Direito Penal não foi elaborado e nem pensado para se dá através da fiscalização direta pelo Ministério Público
punir criminosos do colarinho branco (white-collar cri- dos atos praticados pelos gestores do erário (ordenadores
me), mas para fazer um controle social daqueles que in- de despesas).
fringem a ordem legal, esquecendo ou fechando os olhos O primeiro nível ou instante é o controle administra-
para punições ao tráfico ilícito de influência política. tivo e, na sequência, a proposição de ações judiciais civis
Sabe-se que, na realidade, a grande maioria dos vulne- públicas macro, isto é, para responsabilizar diretamente
ráveis do sistema criminal, e que compõem a massa da os chefes do Poder Executivo (prefeitos, governadores e
superlotação prisional, são indivíduos pobres, excluídos também o presidente da República), acompanhado de
e reprimidos economicamente. É raríssimo ou são pou- seus asseclas e coautores.
quíssimos os presos abastados ou endinheirados no siste- Trata-se do Ministério Púbico Social voltado a ações de
ma carcerário brasileiro. Isto não ocorre porque esta clas- natureza civil para prevenir a criminalidade, posto que a
se está imune à prática de crimes, mas porque tem acesso prevenção dos atos ilícitos é muito mais importante, ra-
à defesa técnica de melhor qualidade, mais preparada, cional e útil para a sociedade do que a repressão crimi-
além de receber tratamento diferenciado, tanto na fase do nal, propriamente dita, como ainda insistem alguns que
inquérito quanto na da persecução. fecham os olhos, fingem não ver, não estudaram ou ainda
As 10 Medidas Contra a Desonestidade Pública são não entenderam nada de criminologia, penitenciarismo e
simples e objetivas, razão pela qual não necessitam de muito menos de vitimologia.
novas leis criminais ou agravamento de sanção, nem de Enquanto o desvio do dinheiro público acontece como
reformas e correções legislativas, uma vez que o ordena- uma torneira que não para de jorrar, o Estado sofre nitida-
mento jurídico brasileiro já contém regras constitucionais mente com a deficiência de todo o sistema de assistência
capazes e adequadas para a prevenção e contenção dos social daqueles que pagam diariamente vultuosas quan-
crimes de corrupção. No entanto, ressaltamos que tais tias de impostos e estas não são destinadas a educação,
crimes, por consequência, deveriam ser configurados ex- saúde, segurança pública, previdência, etc.
pressamente como hediondos pelos gravosos e sérios pre- O Ministério Público é uno e indivisível (leia-se Mi-
juízos ao dinheiro público, que podem ser denominados nistério Público da União e dos Estados), instituição
de lesa cidadania, lesa republica e lesa Direitos Humanos autônoma e essencial à função jurisdicional do Estado,
econômicos e sociais. incumbido da tutela dos interesses da cidadania (leia-se
moralidade, probidade, transparência e eficiência admi-
PREVENÇÃO EFICIENTE CONTRA ATOS ILÍCITOS nistrativas e proteção dos Direitos Humanos Econômicos
VERSUS REPRESSÃO CRIMINAL ESPETACULOSA1 e Sociais, para prevenção dos atos de corrupção e contra
Sabe-se que o Direito Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940 o enriquecimento ilícito), na defesa da ordem jurídica (da
e Lei nº 7.209/84 – Código Penal – Parte Geral), na verda- legalidade) e do regime democrático (art. 127 § 1º e 2º CF).
de, não previne o crime, apenas reprime, e muito mal, Moralidade é, sem dúvida, um dos princípios basila-
bem como não intimida e nem ressocializa o infrator (art. res da administração pública (art. 37 CF), tanto que neste
1º da Lei nº 7.210/1984, de Execução Penal), nem mesmo sentido Simón Bolivar2 acreditava que na estrutura estatal
aqueles que praticam ilícitos comuns ou aqueles que in- deveria existir um órgão capaz de desempenhar o verda-
correm nos crimes de colarinho branco, os quais se en- deiro Poder Moral do Estado, e para ele seria a instituição
contram blindados por seu status sociopolítico. do Ministério Público3.

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Não obstante, para a existência de um Estado-Ético se VI – expedir notificações nos procedimentos administrativos
faz necessário o respeito ao Código de Ética Profissional de sua competência, requisitando informações e documentos
do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal (De- para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva;
creto nº 1.171/1994), e cumprimento das leis e da Carta
da República. Do mesmo modo, expressa a Lei Complementar
Em que pese a questão dos Direitos Humanos, tem-se nº 75/1993 do Ministério Público da União e a Lei nº
o Decreto nº 3.678/2000, que promulgou a Convenção 8.625/1993, Orgânica Nacional do Ministério Público dos
sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públi- Estados, sobre requisições como funções institucionais
cos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacio- do Parquet.
nais (ONU, 1997), e a Lei nº 12.846/2013, sobre respon- Requisição significa ordem, obrigatoriedade, difere de
sabilidade administrativa e civil de pessoas jurídicas pela requerimento, que é um simples pedido ou uma solicita-
prática de atos contra a administração pública nacional ção. A falta ou o não cumprimento de uma requisição mi-
ou estrangeira. nisterial, sujeita a autoridade pública (municipal, estadu-
Por sua vez, a Declaração Universal dos Direitos Huma- al ou federal), após intimada, a prestar esclarecimentos,
nos (ONU/1948), o Pacto Internacional dos Direitos Civis bem como a condução coercitiva (art. 218, CPP), podendo
e Políticos (ONU/1966-BR/1992), o Pacto Internacional ainda o Ministério Público promover junto ao Poder Judi-
dos Direitos Econômicos e Sociais (ONU/1966-BR/1992) cial tutela de urgência antecipada com mandado de bus-
e a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos ca e apreensão (arts. 300 e 305, CPC cc. art. 240, CPP) de
(OEA/1969-BR/1992), dispõem que todas as pessoas têm documentos, papéis ou peças de informações que julgar
direito a segurança social indispensável a uma vida digna, necessárias para instruir investigação civil ou criminal de
trabalho e salário razoável capaz de promover o bem-es- fato específico.
tar familiar, moradia, pagamento justo de tributos para a Incumbe ao Ministério Público promover auditorias
compensação e retorno da prestação de serviços estatais ministeriais independentes (extrajudicialmente), a fim
essenciais e adequados, como saúde, educação, seguran- de controlar o emprego e a correta aplicação das verbas
ça pública, etc.
públicas, para impedir desvio e/ou destinação ilícita, por
Quanto à aplicação dos Direitos Humanos e a atuação
meio de requisições de documentos, informações ou ex-
do Ministério Público, o Código de Processo Civil Brasilei-
pedições de intimações pessoais.
ro (Lei nº 13.105/2015) prevê:
Destacamos as 10 Metas ou 10 Boas Práticas de ato
próprio (“ex oficio”) do Ministério Público, canalizadas
Art. 13.  A jurisdição civil será regida pelas normas proces-
ou dirigidas contra a grande malversação recorrente no
suais brasileiras, ressalvadas as disposições específicas previs-
emprego das verbas públicas arrecadadas pela adminis-
tas em tratados, convenções ou acordos internacionais de que
tração (governos municipal, estadual e federal), a saber:
o Brasil seja parte.
Art. 176.  O Ministério Público atuará na defesa da ordem
ORÇAMENTO PÚBLICO
jurídica, do regime democrático e dos interesses e direitos so-
Fiscalizar diretamente a aplicação das verbas destina-
ciais e individuais indisponíveis.
das à educação e à saúde, por serem áreas essenciais e
Art. 177.   O Ministério Público exercerá o direito de ação
prioritárias e que se encontram sucateadas.
em conformidade com suas atribuições constitucionais.
Art. 178.  O Ministério Público será intimado para, no prazo Assim sendo, cabe ao Ministério Público requisitar o
de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal da ordem jurídica nas hi- orçamento público (municipal, estadual e federal), para
póteses previstas em lei ou nae nos processos que envolvam: verificar a destinação correta das verbas conforme dispõe
I – interesse público ou social; a Lei Orçamentária. Neste sentido, sabe-se que a saúde
precisa obedecer o percentual mínimo de 13, 2% da re-
A utilização de medidas ministeriais para o melhor e ceita líquida.
maior controle da legalidade e da probidade político-admi- Os Estados e o Distrito Federal devem investir o mí-
nistrativa estatal, encontram respaldo no art. 129 da Cons- nimo de 12% de sua receita, enquanto os municípios
tituição Federal, incisos II, III, e em especial no inciso VI, devem aplicar pelo menos 15%, conforme prevê o artigo
em que o Ministério Público requisita dos órgãos públicos 198, § 3º da CF e a Lei Complementar regulamentadora
informações necessárias para a instrução do procedimen- nº 141/2012.
to administrativo. O Ministério da Saúde deve fiscalizar a correta aplica-
ção das verbas e sua real utilização, levando em conta que
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: os hospitais públicos estão com atendimento nitidamen-
II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos ser- te deficitário.
viços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Cons- Na educação é previsto um gasto mínimo de 25% das
tituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia; receitas tributárias de estados e municípios – incluídos os
III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a recursos recebidos por transferências entre governos – e
proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de 18% dos impostos federais – já descontadas as transfe-
de outros interesses difusos e coletivos; rências para estados e municípios.

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MATÉRIA DE CAPA
Ademais, deve-se fazer uma análise no sentido de Assim, mostra-se necessário trabalhar no sentido de
proibir o contingenciamento das despesas, principal- verificar, diuturnamente, quais as condições de recursos
mente nas áreas de educação e saúde, eis que tais dis- humanos e materiais, ou seja, qual o número de policiais
pêndios devem cumprir o previsto no Plano Plurianual (efetivamente) à disposição da sociedade, bem como a si-
(PPA), na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na Lei tuação dos meios adequados ao trabalho, número de via-
Orçamentária Anual (LOA), nos termos do art. 165 Cons- turas, coletes, etc., tudo isso visa a garantir a preservação
tituição Federal. da ordem pública e a prevenção e repressão de crimes,
Neste sentido, há que se questionar a Proposta de nos termos determinados pela Carta Maior (artigo 144,
Emenda a Constituição (PEC) 241/2016, da Câmara dos caput e § 5º, CRFB/19885).
Deputados Federais (agora PS 55 do Senado da Repúbli- Do mesmo modo, é imprescindível perceber que o
ca), que pretende instituir, no âmbito do Ato das Dispo- problema da criminalidade não se restringe apenas às
sições Constitucionais Transitórias da Constituição de ruas, isto é, não se pode ignorar que o cidadão encarce-
1988, o “Novo Regime Fiscal”, por meio do estabeleci- rado será reintegrado, um dia, à sociedade. Hoje, todavia,
mento de teto global de despesas primárias, com prazo de é de conhecimento geral que muitos dos presídios estão
vigência do teto por 20 anos, a partir de 2017. abandonados pelo Poder Público, sendo dominados por
No entanto, ao fixar um patamar de gasto primário por facções e consistindo em verdadeiras “escolas do crime”,
período tão longo e autorizar, nos termos do artigo 1.052 de onde não raramente o sujeito sai mais propenso à prá-
para ser inserido no ADCT, tão somente correção mone- tica de delitos do que quando entrou. Diante disso, para
tária a partir de 2018, as aplicações mínimas em ações e garantir um sistema prisional que assegure reais condi-
serviços públicos de saúde, de que trata o artigo 198 e em ções de dignidade ao preso é mais um interesse social e
manutenção e desenvolvimento do ensino, prevista no um dever do Estado.
art. 212, ambos da Carta Magna, a PEC 241/2016 mitiga o Exemplo interessante de atuação correta do Ministério
custeio que ampara a eficácia dos direitos fundamentais à Público acerca do tema foi no Recurso Extraordinário de
saúde e à educação. nº 592581, com repercussão geral, interposto pelo órgão
Tal proposta vai além de qualquer metodologia para ministerial do Rio Grande do Sul (MP-RS), em face de
um ajuste fiscal, ameaçando a garantia dos direitos fun- acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça local, no qual
damentais e o desenvolvimento dos direitos sociais, eco- pleiteava originariamente, por meio de ação civil pública,
nômicos e culturais, dever esse assumido pelo Brasil em que o Poder Judiciário determinasse que a Administração
diversos tratados internacionais, na forma do art. 5º, § 2º Pública realizasse obras e reformas emergenciais em um
da Constituição Federal, com fundamento na dignidade presídio do Estado, para garantir os direitos fundamentais
da pessoa humana. dos presos.6
A PEC 241 ou PS 55/16, é muito questionada, inclusive No caso, o relator da ação, min. Ricardo Lewandowski,
a OAB – Ordem dos Advogados do Brasil entende ser in- discorreu sobre a crítica situação dos presídios brasileiros
constitucional. Jorge Rubem Folena de Oliveira assevera e, ao final, a Corte decidiu que cumpre ao Poder Judici-
que fere cláusulas pétreas da forma federativa, posto que ário, como guardião da lei e da Constituição, oferecer a
os futuros governos não podem perder suas autonomias devida proteção aos direitos violados, não podendo se fa-
fiscais por 20 anos4. lar em desrespeito ao princípio da separação dos Poderes.
Deste modo, decidiu o Supremo Tribunal Federal ser
SEGURANÇA PÚBLICA lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obriga-
A segurança pública é essencial na política estatal, e ção de fazer, consistente na promoção de medidas e exe-
deve ser analisada sob duas principais facetas, de modo cução de obras em estabelecimentos prisionais.
a enfrentar o problema atual da (in)segurança pública Ante o exposto, não deve hesitar o Ministério Público
no aspecto da prevenção como em relação à repressão em adotar medidas administrativas (auditoria ministerial
da criminalidade. independente e extrajudicial para responsabilizar gesto-
É sabido que o Estado, como forma de organização, res que mal aplicam ou não aplicam os recursos na área
tem por seu principal objetivo garantir o bem-estar social, do sistema penal-penitenciário do Estado) cabíveis para
inclusive tem o dever de promover segurança à sociedade. fiscalizar e assegurar a correta destinação e aplicação do
Para atender à tal necessidade faz-se necessário re- orçamento, a fim de garantir a eficiência dos diversos ser-
cursos materiais e humanos (conjunto de bens e pesso- viços públicos voltados a salvaguardar a segurança públi-
as: viaturas, equipamentos, agentes policiais, etc.), razão ca, que é direito de toda a sociedade.
pela qual é de fundamental importância a atuação direta Recursos das loterias da Caixa Econômica Federal e lo-
do Ministério Público, como aqui propomos. terias estaduais
O órgão ministerial não pode se limitar a atuar apenas Tanto a legislação federal quanto a estadual permitem a
como titular da ação penal, mas principalmente a exer- atividade de loteria. Contudo, os seus recursos são destina-
cer o papel de Ministério Público Social, ou seja, voltado dos, obrigatoriamente, a aplicações de caráter social e assis-
a fiscalizar a correta aplicação do orçamento público de- tência médica ou empreendimentos de interesse público.
signado para a área da segurança pública, prevenindo a Ademais, na própria Constituição Federal há previsão
criminalidade. expressa em relação ao financiamento das seguridades

24 REVISTA JURÍDICA CONSULEX - ANO XX - Nº 475 - 1º DE NOVEMBRO/2016


sociais federal, estadual e municipal por meio de receitas de falência), de acordo com o orçamento do ente público,
oriundas de loterias: a fim de evitar atos de corrupção, extorsões, apropriações
indébitas e desmandos generalizados7.
Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a
sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, me- LICITAÇÕES
diante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Ao contrário do que ocorre na iniciativa privada, em
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes que os particulares possuem ampla liberdade para con-
contribuições sociais: tratar, o Estado, para fazê-lo, deve observar um procedi-
III – sobre a receita de concursos de prognóstico. mento prévio rigorosamente determinado e preestabe-
lecido em lei, fala-se aqui da denominada licitação8 (Lei
Logo, é imprescindível a fiscalização pelo Ministério para “inglês ver”).
Público das verbas arrecadadas pelas loterias do gover- Assim, salvo exceções legais, a Administração Pública
no e destinadas à seguridade social, ao esporte, aos be- está obrigada a realizar licitação para contratar obras, re-
nefícios previdenciários, ao Programa de Financiamento alizar compras, serviços e alienações9, além dos casos em
Estudantil (FIES), ao Fundo Nacional de Cultura (FNC), que o Estado transfere ao particular a prestação do serviço
ao Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN) e ao Fundo público, ocasião em que também deve-se licitar para es-
Nacional de Saúde (FNS). colher o concessionário ou o permissionário10.
São recursos mal aplicados, desviados ou não aplicados. No procedimento licitatório busca-se a proposta mais
Em se tratando do FUNPEN (Lei nº 7.209/1984 – art. vantajosa ao Poder Público e que propicie igualdade de
49) é a fonte de recursos mais representativa, com previ- condições àqueles que desejam apresentar suas propos-
são de arrecadação no artigo 2º, inciso VIII, da Lei Com- tas, sempre possuindo como norte de atuação o interes-
plementar nº 79/1994, destinada a proporcionar recursos se público.
e meios para financiar e apoiar as atividades e programas Os princípios licitatórios pelos quais o Ministério Pú-
de modernização e aprimoramento do sistema penitenci- blico deve zelar pela observância são trazidos no artigo 3º
ário brasileiro, construções e readaptações de presídios e da Lei nº 8.666/199311, sendo que, sem remota pretensão
penitenciárias. de esgotar o tema no presente artigo (mesmo porque não
Segundo o art. 26 da Lei nº 8.212/1991 (anexo II) sobre é esse o objetivo), cabe mencionar de forma sucinta quais
contribuição de Renda Líquida dos Concursos de Prog- são eles e o que significam.
nósticos (da União), destinados ao FUNPEN: Loteria Fe- O princípio da legalidade prescreve que o processo li-
deral 9,86% – Loteria Esportiva 7,72% – Loteria de Núme- citatório é sempre previsto em lei, de modo que as regras
ros 6,87% – Loteria Instantânea 8,57%. preliminarmente delimitadas vinculam os licitantes e o
É preciso salientar, no entanto, que por força das Emen- Poder Público. Deve-se lembrar, ainda, que o princípio
das Constitucionais nº 10/1996, nº 17/1997, nº 27/2000, nº da legalidade é aplicado à Administração Pública de uma
42/2003 e nº 56/2007, 20% (vinte por cento) dos recursos forma geral, sendo permitido ao Estado fazer somente o
de loterias devidos ao FUNPEN sofreram retenção. O que que a lei autoriza.
é um absurdo, posto que o sistema penal-penitenciário O princípio da publicidade determina que o processo
encontra-se falido e sucateado. licitatório seja público, com ampla divulgação do instru-
Incumbe ao Ministério Público da União e dos estados mento convocatório, das decisões, etc. Assim, qualquer
concentrar atenção no quantum da pena de multa aplica- pessoa interessada tem acesso garantido aos atos realiza-
da e paga pelo réu, a fim de fiscalizar a correta destinação dos no procedimento de licitação.
dada pela Justiça Federal e Estaduais, visto que a multa na A moralidade e a probidade administrativa preceituam
ações criminais destina-se ao Fundo Penitenciário. dever de ambas as partes (da Administração Pública e dos
licitantes) de agir de forma legal, proba, de boa-fé, enfim,
PRECATÓRIOS com honestidade no trato da coisa pública, vedando-se
Os denominados “precatórios” referem-se à cobrança qualquer conduta que contrarie esses valores.
de dívida junto a Fazenda Pública (União, estados, muni- O princípio da vinculação ao instrumento convocatório
cípios, autarquias e fundações públicas) por condenação preconiza que tanto os licitantes como a própria Adminis-
judicial com expedição de ordem judicial de pagamento, tração Pública ficam vinculados ao instrumento convoca-
superior a 60 salários mínimos. tório, este entendido como o ato normativo fundamental
Pode ocorrer que o Poder Público, por interesse pes- de uma licitação (ex.: o edital). Em suma, o que se pretende
soal do gestor ou ordenador de despesas, alegue que para é estabelecer que as regras não podem mudar no decorrer
efetuar rapidamente o pagamento do crédito é preciso so- do processo licitatório, por isso a imprescindibilidade de
licitar ao particular uma parte ou um percentual do valor, que as determinações do instrumento convocatório sejam
configurando desta forma enriquecimento ilícito. claras e objetivas, a fim de se evitar subjetivismos.
Por esta razão, é necessária a maior e melhor fiscaliza- A isonomia estabelece que o tratamento entre os lici-
ção pelo Ministério Público, no sentido de averiguar efe- tantes deve ser igualitário. Trata-se de pressuposto para
tivamente a relação de credores e a ordem de pagamento garantir a justa competição e, por conseguinte, a proposta
dos precatórios (como se faz na classificação dos créditos mais vantajosa ao Poder Público.

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MATÉRIA DE CAPA
Por fim, o princípio do julgamento objetivo e da impes- Logo, devem ambos os princípios (da publicidade e da
soalidade, o qual prescreve que, na escolha da proposta impessoalidade) ser harmonizados, sob pena de viola-
mais vantajosa, deve-se utilizar critério impessoal, crité- ção ao artigo 37, § 1º, da Constituição Federal14, no qual a
rio técnico, em suma, um critério objetivo (menor preço, propaganda deve limitar-se a educar, informar e orientar,
melhor técnica, melhor técnica e preço ou maior lance/ sendo defeso ao administrador utilizá-la como meio de se
oferta), de modo que, mais uma vez, o subjetivismo deve autopromover.
ser afastado. Assim, deve o Ministério Público atuar com os pode-
Em vista disso, fica nítida a importância de que os pro- res que lhe são garantidos, inclusive, conforme já men-
cessos licitatórios sejam fiscalizados na íntegra e direta- cionado, requisitando documentos, contratos e demais
mente pelo Parquet (Ministério Público através de audi- informações que entender pertinente, para fiscalizar se
torias independentes) em relação aos valores constantes a publicidade governamental extrapola os parâmetros da
na competição, para dar efetiva transparência e coibir proporcionalidade e da razoabilidade e deturpa o interes-
fraudes licitatórias, como impedir o superfaturamento de se público.
preços.
O Ministério Público fica imcumbido de verificar a re- ITAPU, PETROBRÁS, NUCLEBRAS, MINERADORAS e
gularidade das dispensas de licitações e as complementa- BNDES
ções de contratos (art. 48 da Lei nº 8.666/1993) A Itaipu Binacional, inaugurada em 1984, uma das
E o pior, foi sancionada (30.10.16) a Lei de Responsabi- maiores empresas do mundo, possui orçamento e apli-
lidade das Estatais (PL 555/2016), que prevê a realização cação de recursos sem nenhum controle financeiro, à
de licitações de obras públicas sem projeto, ou seja, via margem do que se considera lícito, seja do Tribunal de
contratação integrada.  Contas, dos Tribunais Superiores e do Ministério Público,
como se constitucional e regular fosse, em total desres-
CUSTO DAS PROPAGANDAS GOVERNAMENTAIS peito aos princípios da legalidade, da transparência, da
A Constituição Federal estabelece, no seu art. 37, publicidade e da moralidade.
caput12, cinco princípios básicos que devem pautar a atu- Por sua vez, a Itaipu recebe bilhões de dólares pela
ação estatal, quais sejam, princípios da legalidade, da im- venda de energia por ela produzida (sistema de transmis-
pessoalidade, da moralidade, da eficiência e, por fim, da são Furnas/Itaipu), e transfere reais convertidos em dóla-
publicidade. res americanos a 16 municípios do Estado do Paraná e um
Diante disso, não se olvida a importância em conceder município do Mato Grosso do Sul, em royalties, de acordo
caráter público às atividades do Poder Público, sendo que com o tratado firmado entre Brasil e Paraguai, em 1973
a publicidade é a principal maneira de assegurar a fiscali- (equivalente a 8 milhões de dólares americanos por mês
zação dos atos da Administração e garantir que eles aten- aos municípios).
dam aos demais princípios constitucionais. Sobre o tema, Pergunta-se: quantas salas de aulas ou postos de saúde
ensina Canotilho: poderiam ser construídos mensalmente, se houvesse o es-
trito controle da aplicação destes recursos originários da
O princípio do Estado de Direito Democrático exige o co- Lei dos Royalties15.
nhecimento, por parte dos cidadãos, dos actos normativos, O Brasil possui a mais alta tarifa de energia elétrica
e proíbe os actos normativos secretos contra os quais não se para o setor industrial, mais cara do que a de todos os pa-
podem defender. O conhecimento dos actos, por parte dos ci- íses do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
dadãos, faz-se, precisamente, através da publicidade.13 Os recursos originários dos royalties (Lei nº
12.734/2012; e a Lei nº 12.858/2013) são destinados para
Ocorre, todavia, que tal princípio deve ser analisado as áreas de educação e saúde de parcela da participação
com temperança, sob de pena de desvirtuar sua real fina- no resultado ou da compensação financeira pela explora-
lidade. Isto é, ao mesmo tempo que a publicidade oficial é ção de petróleo e gás natural, com a finalidade de cumpri-
necessária, esta não pode extrapolar o limite do razoável, mento da meta prevista no inciso VI do caput do art. 214 e
sob pena de se alocar recursos públicos (ressalte-se, es- no art. 196 da Constituição Federal.
cassos) em áreas não prioritárias. De acordo com a Lei nº 12.111/2009, a eletricidade
Deste modo, os valores pagos em propagandas gover- produzida pelas usinas Angra 1 e Angra 2 é comerciali-
namentais aos meios de comunicação (televisão, jornal, zada com todas as distribuidoras de energia do Sistema
rádio, etc.) muitas vezes são maiores que as necessida- Interligado Nacional (SIN), em regime de cotas-partes. A
des emergenciais de outras áreas. Parece ser consenso Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) define anu-
que áreas como saúde, educação e segurança pública almente as proporções destas cotas-partes e os montan-
devem ter prioridade de investimentos em detrimento tes anuais de energia a serem alocados, de acordo com os
de propagandas dispendiosas que visam à autopromo- mercados consumidores de cada distribuidora.
ção governamental. Também uma Compensação Financeira pela Explora-
Neste ponto, verifica-se um outro problema da publi- ção de Recursos Minerais (CFEM), uma espécie de royal-
cidade exacerbada, quando o caráter público não pauta ty pago pelas empresas mineradoras a municípios, esta-
a atuação estatal e viola o princípio da impessoalidade. dos e à União pela exploração de jazidas.

26 REVISTA JURÍDICA CONSULEX - ANO XX - Nº 475 - 1º DE NOVEMBRO/2016


Cumpre, então, ao Ministério Público requisitar infor- por ela circulam; vigiar a quantidade de acidentes e mor-
mações às agências reguladoras para verificar os critérios tes nas rodovias pedagiadas.
utilizados na repartição e destinação dos royalties do pe- Assim, o Ministério Público em nome do interesse pú-
tróleo, gás natural, recursos minerais e energia elétrica, blico, intervém e fiscaliza os contratos administrativos
tarefa do Ministério Público da União e dos Estados, em realizados, a fim de zelar para que os concessionários ob-
relação as companhias de energia elétrica estaduais, gera- servem as cláusulas contratuais, protegendo o interesse
doras e distribuidoras (ex. Copel, Cesp, Eletropaulo, Cerj, da coletividade quanto ao direito de “ir e vir”.
Lights, etc.).
As verbas públicas destinadas a assistência social como JUSTIÇA ELEITORAL
essenciais e específicas, cabe ao agente ministerial verifi- Sabe-se que a Lei nº 9.504/1997 estabelece as normas
car a aplicação do Decreto nº 201/1967, que dispõe sobre a serem observadas nas eleições. Assim sendo, com base
crimes de responsabilidade dos prefeitos e vereadores nela, o Ministério Público Eleitoral fiscalizará efetivamen-
Municipais, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, te (com rigor absoluto) as verbas de campanha eleitoral.
independentemente do pronunciamento da Câmara dos Isto para que não haja aprovações sem a devida com-
Vereadores: provação de despesas, doações e arrecadação, a fim de
impedir o denominado “caixa 2” político, que resulta em
Art. 1º I – apropriar-se de bens ou rendas públicas, ou des- sonegação fiscal, corrupção e lavagem de dinheiro.
viá-los em proveito próprio ou alheio; Incumbe ao Ministério Público, também, a fiscalização
Il – utilizar-se, indevidamente, em proveito próprio ou dos recursos oriundos do Fundo Especial de Assistência Fi-
alheio, de bens, rendas ou serviços públicos; nanceira, o chamado Fundo Partidário, que é constituído
Ill – desviar, ou aplicar indevidamente, rendas ou verbas por dotações orçamentárias da União, multas, penalidades,
públicas;
doações e outros recursos financeiros atribuídos por lei.
A distribuição dos recursos do Fundo Partidário é dis-
IV – empregar subvenções, auxílios, empréstimos ou re-
ciplinada em relação às doações eleitorais, mas não há
cursos de qualquer natureza, em desacordo com os planos ou
nenhuma determinação legal sobre como o dinheiro deve
programas a que se destinam;
ser distribuído internamente aos partidos, o que faz, por-
V – ordenar ou efetuar despesas não autorizadas por lei,
tanto, indispensável a atuação e a fiscalização do Ministé-
ou realizá-Ias em desacordo com as normas financeiras per-
rio Público, no intuito de evitar doações ilegais e a forma-
tinentes;
ção do “caixa 2” e lavagem de dinheiro.
VI – deixar de prestar contas anuais da administração fi-
Nesta mesma ordem de ideias, relevante é a atuação
nanceira do Município a Câmara de Vereadores, ou ao órgão
preventiva do Ministério Público para esclarecimento da
que a Constituição do Estado indicar, nos prazos e condições
população, em geral sobre os partidos políticos, candida-
estabelecidos;
tos e quais são as condutas vedadas pela legislação.

De outro lado, o Ministério Público precisa fiscalizar os


JOGO DO BICHO
contratos financeiros junto ao BNDES – Banco Nacional A origem do jogo do bicho reporta-se ao ano de 1892,
de Desenvolvimento Econômico e Social, especialmente especificamente no antigo jardim zoológico de Vila Iza-
os empréstimos secretos, posto que estes contrariam o bel/Rio de Janeiro, quando a subvenção destinada a ad-
princípio da transparência. No Estado Democrático de ministração do zoo foi cortada, a direção do parque ficou
Direito nada pode ser feito pela administração pública de em difícil situação financeira e, num verdadeiro “golpe de
maneira sigilosa. Somente a Justiça poderá estabelecer mágica”, o Barão de Drumond teve a ideia de cobrar 1 mil
segredo para determinados assuntos (art. 93. IX CF) que o réis pela entrada, que antes era gratuita. Assim, atribuiu a
interesse público exigir. cada bicho um número, fazendo no final da tarde o sor-
teio para premiar com 20 mil réis o portador do bilhete
PEDÁGIOS DE RODOVIAS FEDERAIS/ESTADUAIS premiado. Nunca houve tanta gente no jardim para visitar
Sabe-se que uma das maiores indignações da socieda- os bichos e a invenção expandiu-se para fora dos terrenos
de é em relação aos pedágios, que são caros e que a qua- do zoológico, hoje está presente em todas as esquinas e
lidade das rodovias não condiz com o valor cobrado, em em quase todas as cidades brasileira.
especial se verificada a desproporcionalidade entre as ta- A frase “diga-me qual o seu direito e te direi qual a sua
rifas cobradas de um estado para o outro. sociedade” representa bem o fato de que as escolhas feitas
Várias são as questões a serem analisadas pelo Minis- para levar ao plano jurídico variam em cada sociedade, de
tério Público. Faz-se imperioso controlar qual o custo da acordo com cada cultura, em diferentes temporalidades,
construção por quilômetro de rodovias duplicadas e qual a partir de opções políticas.
o percentual arrecadado; para controlar efetivamente o Nesse sentido, destaca Paolo Grossi, historiador ita-
lucro das concessionárias de rodovias, mediante o acom- liano, que se deve romper com convicções acríticas, a
panhamento patrimonial destas, analisando a quantida- fim de relativizar certezas consideradas como absolutas,
de de veículos que passam na praça de pedágio; e fiscali- instigando problematizações sobre questão vistas como
zar se há um número mínimo de postos de pesagem que verdades indubitáveis e sem uma adequada confirma-
assegurem a incolumidade da via e dos passageiros que ção cultural.16

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MATÉRIA DE CAPA
Partindo-se dessas premissas, verifica-se que legalizar nacional, descontando na população suas agressividades
o denominado “jogo do bicho” não é apenas uma con- em razão da falta de políticas públicas e sociais do gover-
sequência natural, mas necessária, visto que se trata de no, que insiste em continuar explorando economicamen-
uma prática consuetudinária aceita pela sociedade, já há te todos os cidadãos contribuintes com salários indignos.
muito tempo. Os “policiais da cidadania” devem ser bem remunerados
Insta compreender, então, que insistir na proibição é para atuar no estrito cumprimento do dever legal, pois ex-
continuar gerando a corrupção e o “caixa 2” de políticos. põem suas vidas em defesa legítima de terceiros, ou seja,
Como é possível uma instituição financeira oficial do go- de toda a sociedade.
verno (Caixa Econômica Federal) autorizar lojas ou agên- Por sua vez, a taxa de juros elevados configura delito
cias de loterias e ao lado (anexo) existirem pontos de jogos de usura, com ação penal pública incondicionada, vigo-
proibidos (jogos do bicho – ou a denominada “fezinha”), rando os princípios da legalidade, da obrigatoriedade
onde todos os cidadãos sabem que existe, as autoridades do exercício do “ius persequendi” e “ius puniendi”, desta
públicas também e nada é feito, como se todos fechassem forma, o Direito pátrio vigente não permite convenção
os olhos para tal fato? entre partes para fixar um percentual desproporcional
Portanto, não há motivos para continuar a destinar os ou abusivo, uma vez que caracteriza delito e não exime
esforços dos membros do Ministério Público e os finitos a ilicitude.
recursos do órgão em questões como o jogo do bicho, Em observância aos princípios da lei no tempo, da
uma prática que é socialmente aceita e cuja proibição só soberania e da hierarquia vertical das normas, qualquer
fomenta a corrupção e o “caixa 2” de políticos e adminis- taxação, seja por meio de resolução, portaria do Banco
tradores públicos. Central, decisão do Conselho Monetário Nacional (CMN),
do Comitê de Política Monetária (COPOM) ou até mesmo
IMPOSTOS, JUROS E USURA PÚBLICA através de lei inferior (Código Civil) torna-se proibida.
O Brasil é o país que possui uma das maiores cargas A Emenda Constitucional nº 40/2003 “legalizou” (“ofi-
tributárias do mundo, que se mantém ao longo dos tem- cializou”) publicamente os delitos do “colarinho branco”
pos através do legado de uma política fiscal ditatorial e referentes aos abusos financeiros (Lei nº 7.492/1986),
antidemocrática, em flagrante injustiça contra a dignida- aqueles previstos na Lei da Economia Popular e no Có-
de de seu povo. Trata-se de uma verdadeira derrama de digo do Consumidor (Leis nºs 1.521/1951 e 8.078/1990),
impostos desde o Brasil-Colônia, época da Inconfidência e o próprio “crime hediondo de usura”; agora prati-
mineira até os dias atuais, cobranças de impostos que ca- cado abertamente.
racteriza verdadeiro crime de lesa pátria, lesa cidadania e Em que pese o teor da Súmula nº 121: “É vedada a
lesa democracia. capitalização de juros, ainda que expressamente con-
O valor indevido dos impostos é criado pelo governo vencionada”; e da Súmula 596: “As disposições do De-
para custear a máquina pública (e desviar verbas – corrup- creto nº 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos
ção), por sua vez, as taxas são cobradas pela administra- outros encargos cobrados nas operações realizadas por
ção em troca de serviço, e as contribuições especiais para instituições públicas ou privadas que integrem o Sistema
melhoria de algum benefício ao cidadão. Pergunta-se: Financeiro Nacional”, devemos lembrar que foram edi-
quais são os benefícios? Nada tem sido demonstrado com tadas nos anos de 1964 e 1977, respectivamente, período
transparência, eficiência e justiça social, pois o governo de governo ditatorial do regime militar e, portanto, não
oferece o pior retorno em benefícios à população referen- podem ser recepcionadas pela Carta Magna de 1988, por
te aos valores arrecadados por meio dos impostos. meio da qual a República Federativa do Brasil foi consti-
Os impostos ou taxas públicas cobradas no Brasil não tuída pelo Estado Democrático.
retornam em benefício à sociedade, não são aplicadas nas A jurisprudência (digo, as sumulas) são fontes secun-
áreas de políticas públicas essenciais (saúde, educação, dárias do Direito, portanto com valor inferior a fonte
segurança pública ...). primária, ou seja, a Constituição Federal e as leis ordi-
Os serviços públicos essenciais encontram-se na fa- nárias, dentre elas os dispositivos constantes no Código
lência. A mídia e as estatísticas demonstram as péssimas Civil (2002) e no Código do Consumidor (1990). Ade-
condições e o baixo nível da educação brasileira (segundo mais, nos instrumentos de Direitos Humanos contém a
a Unesco, o Brasil se encontra no ranking dos piores paí- denominada “cláusula de proteção”, isto é, não se pode
ses do mundo), professores mal pagos, faltam salas de au- utilizar a legislação interna para descumprir ou menos-
las e colégios, sucateamento completo do ensino público. prezar o expresso nos pactos e tratados aderidos pelo
O desumano Sistema Único de Saúde, sem hospitais, sem governo brasileiro.
ambulâncias, sem profissionais e médicos e a segurança Verdadeiro “aberratio iuris” (aberração jurídica) por
pública como dever do Estado é verdadeira insegurança, infringir princípios gerais (fontes formais mediatas) e o
já que os brasileiros vivem com um aumento assustador direito concreto (jurisprudencial, a exemplo de decisões
da criminalidade hedionda, praticada por menores de 18 democráticas em favor das vítimas do crime de usura),
anos de idade, que vivem em condições sociais inadequa- posto que continua havendo, repetimos, desrespeito
das, roubam e matam pensando na subsistência, em vista grave contra o estabelecido na Declaração Universal dos
da concorrência desleal gerada pelo consumismo inter- Direitos Humanos, no Pacto Internacional dos Direitos

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Econômicos, Sociais e Culturais e no Pacto Internacional O Ministério Público Social17 tem sua atividade voltada
de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, de 1966, para a efetivação das políticas públicas essenciais à cida-
com validade e vigência para o ordenamento jurídico pá- dania, educação, saúde, segurança, trabalho, moradia,
trio desde 1992. etc., como forma de prevenção da criminalidade; propon-
A usura, além de ser crime, é imoral e antiética, razão do medidas cabíveis no juízo cível em beneficio da socie-
pela qual deve ser abominada pela Justiça brasileira em dade em geral (na espécie de macro ações, isto é: coletivas
todos os sentidos e imperdoável a sua prática. Nossa so- e difusas, e não micro, ou seja, individuais, visto que estas
ciedade necessita de segurança jurídica, isto é, respeito à servem para “enxugar gelo”). Ações que efetivem e asse-
Carta Magna, para efetivar o Estado Democrático de Di- gurem as garantias fundamentais indispensáveis e indis-
reito e uma Constituição não meramente de “papel”. poníveis, via mandados de segurança, ações civis públicas
Neste contexto, os objetivos fundamentais da Repúbli- e populares contra agentes governamentais.
ca Federativa do Brasil consistem em garantir o desenvol- Esta contribuição ministerial via trabalhos judiciais e
vimento nacional, erradicar a pobreza e reduzir as desi- extrajudiciais está em áreas alheias ao Direito Penal, mas a
gualdades sociais. única capaz de reduzir e prevenir o crime. Trata-se de um
O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais câmbio social e de mentalidade dos agentes do Ministério
e Culturais das Nações Unidas e a Declaração Universal Público Democrático, da repressão para a prevenção.
dos Direitos Humanos de 1966 e 1948, respectivamente, Ministério Público Social é aquele que assume respon-
expressam que todas as pessoas, em uma sociedade de- sabilidade na defesa da paz coletiva por adesão aos pactos
mocrática, possuem direito a um padrão de vida capaz de internacionais de Direitos Humanos civis, políticos e eco-
assegurar a si e a sua família bem-estar e segurança social, nômicos, prestando, na prática, assistência social huma-
como indispensável à dignidade e ao livre desenvolvi- nitária aos que mais necessitam.
mento de sua personalidade. Assim, o Ministério Público Libertador do Excluído18
É de se observar que as atuais taxas de juros impostas é a instituição ministerial que se liberta da repressão e
pelo Banco Central e pelo CMN ou COPOM violam fla- promove a desalienação política de seus agentes, eman-
grantemente os objetivos fundamentais da nossa Repú- cipando-os para o alcance da verdadeira autonomia fun-
blica e as disposições constantes nos instrumentos inter- cional e ao exercício do livre convencimento, em prol do
nacionais de Direitos Humanos. Estado Democrático.
Os juros impulsionam a dívida pública federal, aumen- Trata-se de pedagogia da autonomia contra impo-
tando o endividamento do país. sições e controle de mercado, que tentam envolver e se
Cabe ao Ministério Público fiscalizar e controlar as ta- imiscuir nos institutos jurídicos democráticos, afetando
xas de juros no país, para coibir ganhos (lucros) ganan- as garantias individuais da cidadania.
ciosos auferidos pelas instituições financeiras privadas, Ministério Público da Libertação visa reconhecer a iso-
públicas, nacionais e internacionais, que exploram e cau- nomia dos direitos e deveres humanos de todos os cida-
sam prejuízos ao desenvolvimento social empobrecendo dãos, especialmente a proteção dos mais fracos, através
a população. de um tratamento jurisdicional igualitário dispensado aos
“cidadãos vips” e “criminosos do colarinho branco”.
CONCLUSÃO O mestre E. Rául Zaffaroni explica que a corresponsa-
Muito embora não se desconheça que o Tribunal de bilidade e a coautoria criminosa partem da sociedade e
Contas (TCU ou TCE) exerce função de fiscalização de do Estado por não garantirem um meio de vida adequado
algumas das atividades mencionadas, cabe especialmen- aos cidadãos, indispensável para o respeito da dignidade
te ao Ministério Público atuar de maneira direta e mais dos excluídos sociais; onde a reincidência criminal ou a
rígida na tutela dos direitos sociais constantemente ul- reiteração de conduta ilícita não é culpa só do autor do
trajados, impedindo condutas desonestas praticadas por delito, mas também e principalmente do Estado, inerte e
agentes públicos. E isto se justifica pelo fato de o Ministé- omisso na aplicação e efetivação de políticas públicas es-
rio Público possuir a titularidade da propositura da ação senciais à cidadania.
penal e da ação civil pública, uma vez que o Tribunal de O Ministério Público não deve retardar ou deixar de
Contas é órgão auxiliar do Poder Legislativo e não possui praticar atos de ofício.
função judicial, propriamente dita. Diante do exposto, são estas as 10 Propostas Contra o
Todos envolvidos na malversação de verbas públicas Desmando, 10 Metas Contra a Corrupção e Malversação
ficam sujeitos a responsabilidades administrativa, civil e do Erário, ou ainda, 10 Boas Práticas do Ministério Públi-
criminal, por improbidade e ilícitos penais. co em prol da legalidade, transparência e moralidade da
Roberto Lyra (1926-1986) conhecido como o “Prínci- República “res pública” (coisa pública) no Brasil.
pe dos Promotores Públicos brasileiros”, utilizou o termo Só para não esquecer e sempre relembrar: mais de 50%
“Ministério Social” para definir a busca pela paz e justiça da população brasileira não possui rede de esgoto (sane-
social, através de posição social, como autor da ação ou amento básico).
como custus legis, sempre em favor dos mais fracos e mais Avante Brasil, avante justiça social contra a roubalheira
necessitados, carentes e esperançosos por uma eficiente pública e a opressão de um povo (cidadão-contribuinte)
prestação jurisdicional do Estado. que só quer ser feliz.

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MATÉRIA DE CAPA

NOTAS
1 Na ação penal nº 470/ STF (“Mensalão”) e nas operações da “Lava Jato” (13ª Vara da Justiça Federal de Curitiba) referentes aos grandes
escândalos de corrupção política do Brasil, a maioria dos condenados “vips” não estão na prisão, cumprem sentença em regime aberto,
ainda que tenham sido condenados com penas superiores a quatro anos, isto é, em casa, em suas mansões e coberturas (uma espécie
de “prisão domiciliar” que contraria a Lei nº 7.210/1984, art. 117), e também já foi concedido até indulto (extinção da punibilidade).
2 Simón Bolivar (1783-1830), militar liberal e líder político que lutou pela descolonização da América Espanhola e independência dos
países latinos. Conhecido como herói visionário, revolucionário e libertador, para alguns historiadores é o “George Washington da
América do Sul”.
3 Ver Maia Neto, Cândido Furtado in Promotor de Justiça e Direitos Humanos. 3. Juruá, Ctba., 2012, p. 40.
4 OLIVEIRA, Jorge Rubem Folena. PEC 241: Atentado à separação de Poderes e ao princípio federativo. Disponível em: http://jornalggn.
com.br/noticia/pec-241-atentado-a-separacao-de-poderes-e-ao-principio-federativo-por-jorge-folena. Acesso em: 13 nov. 2016.
5 Constituição Federal. Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação
da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: [...] § 5º Às polícias militares cabem a
polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe
a execução de atividades de defesa civil.
6 Sobre o caso, cf. RE 592581, Relator(a): Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 13.08.2015, DJe 29.01.2016.
7 Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (art. 78).
Emendas Constitucionais nºs 30/2000 e 62/2009.
Resoluções nsº 115 e 123/2010 do Conselho Nacional de Justiça.
8 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26. ed. rev. e atual. São Paulo, Malheiros, 2009, p. 517.
9 Constituição Federal, Art. 37. XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão
contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que
estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as
exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações
10 Constituição Federal, art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sem-
pre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
11 Lei nº 8.666/1993, Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta
mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita
conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade
administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.
12 Constituição Federal, Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...].
13 CANOTILHO, J.J. GOMES. Direito Constitucional. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 849.
14 Constituição Federal, Art. 37, § 1º – A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter cará-
ter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção
pessoal de autoridades ou servidores públicos.
15 Decreto nº 1, de 11 de janeiro de 1991. Regulamenta o pagamento da compensação financeira instituída pela Lei nº 7.990, de 28 de
dezembro de 1989, e dá outras providências.
Art. 1º O cálculo e a distribuição mensal da compensação financeira decorrente do aproveitamento de recursos hídricos, para fins de
geração de energia elétrica e dos recursos minerais, por quaisquer dos regimes previstos em lei, bem assim dos royalties devidos pela
Itaipu Binacional ao Governo Brasileiro, estabelecidos pelo Tratado de Itaipu, seus anexos e documentos interpretativos subsequentes,
de que tratam as Leis nºs 7.990, de 1989, e 8.001, de 1990, reger-se-ão pelo disposto neste decreto.
16 GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.
17 “Ministério Público Social”, denominação empregada por Maia Neto, Cândido Furtado, in “La Acusación Penal y el Ministerio Publico:
Perspectivas hacia las Garantias de los Derechos Humanos” dissertação de mestrado – 1992 (biblioteca da UNIZULIA, Universidad del
Zulia, Maracaibo-Venezuela); e constante também nas obras publicadas pela editora Juruá-Ctba. 1ª ed. 1999, p. 93; 2. ed. 2007, p. 115,
e na 3. ed. 2012, p. 166 (“Promotor de Justiça e Direitos Humanos”); pela editora Lake-SP, 2005, p. 331 (“Criminalidade, Doutrina Penal e
Filosofia Espirita”; e Revista Consulex, nº 299, 30.06.09, Ed. Consulex, Brasília-DF, p. 48/49: “MINISTÉRIO PÚBLICO SOCIAL E OS DIREITOS
HUMANOS DAS VÍTIMAS DE CRIME”).
18 “Ministério Público Libertador do Excluído”, expressão usada desde o início de 2015, por Maia Neto, Cândido Furtado. Ver ainda: “Teo-
logia da Libertação”, Leonardo Boff “Como fazer Teologia da Libertação. 8aed. Vozes, 2005”; Lola Anyiar de Castro, in “Criminologia da Li-
bertação”, Ed. Del Zulia, Venezuela, 1987. Teologia da libertação, termo cunhado pelo sacerdote dominicano e padre peruano em 1971;
e Freire, Paulo (1921-1997): in “Educação para a Liberdade”,1967; “Pedagogia do Oprimido”, concluído em 1968, publicado em inglês e
espanhol em 1970, e em português somente 1974. Considerado o Patrono da Educação Brasileira, foi preso e exilado durante o regime
militar, porque suas propostas não agradavam os ditadores da época.

CÂNDIDO FURTADO MAIA NETO é Procurador de Justiça do Ministério Público do Paraná expert em Direitos Humanos (Consultor Internacional das Nações Unidas
– Missão MINUGUA 1995-96). Professor Pesquisador e de Pós-Graduação. Secretário de Justiça e Segurança Pública do Ministério da Justiça (1989/90). Condecorado
com Menção Honrosa na V edição do Prêmio Innovare (2008). Cidadão Benemérito do Paraná (Lei nº 15.721/2007). Autor de inúmeros trabalhos jurídicos publicados
no Brasil e no exterior.
DIEGO DE LIMA SONI é advogado licenciado. Assessor jurídico da Procuradoria-Geral de Justiça. Pós-Graduado.
MAGNA CARVALHO DE MENEZES THIELE é advogada licenciada. Assessora Jurídica da Procuradoria-Geral de Justiça. Pós-Graduada.
LUIZ GUSTAVO ROSÁ é assessor jurídico da Procuradoria-Geral de Justiça. Pós-Graduado.

30 REVISTA JURÍDICA CONSULEX - ANO XX - Nº 475 - 1º DE NOVEMBRO/2016


DIVULGAÇÃO

CORRUPÇÃO: PARA ALÉM DAS


DEZ MEDIDAS
“A pergunta fundamental diante dos escândalos, em qualquer lugar do mundo, é: “como
evitar que isso aconteça novamente?”. Certamente, maiores capacidades investigativa
e punitiva têm seu mérito, em especial no que tange a ações envolvendo grandes enti-
dades governamentais. Mas a corrupção, sistêmica, carece ainda de ações mais amplas,
que aumentem também a capacidade de prevenir e gerenciar riscos, privilegiando a
abordagem estrutural, atuando sobre as oportunidades de fraudes e desvios, bloque-
ando a passagem aos atos inconfessáveis da corrupção. As Dez Medidas são uma parte
da solução. Necessárias, mas não suficientes.”

 POR FRANKLIN BRASIL SANTOS, KLEBERSON ROBERTO SOUZA e MARCUS VINICIUS DE AZEVEDO BRAGA

C
orrupção virou fala fácil na imprensa, nas redes mal a ser enfrentado pela sociedade, ainda que essa tarefa
sociais, periódicos e até naquela conversa de bar não seja tão simples.
entre amigos. Segundo o Ibope, em 2016, 65% Pelo seu protagonismo, apelo popular e abrangência
das pessoas apontam a corrupção como prin- as Dez Medidas estão sujeitas a críticas de toda natureza.
cipal problema do país. Superou a saúde e a educação, Suscitam paixões inexplicáveis e ódios inomináveis. Aqui,
tornando-se, assim, um tema emblemático. tentaremos evitar a polarização simplista na expectativa de
Considerada sistêmica, em metástase, enraizada, ela ate- complementar o debate, de agregar elementos essenciais
moriza os cidadãos pela percepção do seu potencial de nau- ao tema, tratando a corrupção como fenômeno complexo
fragar políticas e direitos; e se mostra aviltante por revelar o e multifacetado, que demanda soluções de igual natureza.
lado obscuro do ser humano, que teimamos em negar.
Tratada como um tabu, um pecado que só os outros A CORRUPÇÃO – CONTEXTO E CAUSAS
cometem, a corrupção insiste em se mostrar nesse ad- Corrupção não se limita aos noticiários dos grandes es-
mirável mundo de informações abundantes. Fenôme- cândalos das políticas nacional e internacional. É preciso
no curioso, de rastros sutis, percebida com mais ênfase inserir no mesmo contexto aquele conhecido comporta-
quando atacada, revela-se intrínseca na personalidade mento humano de transgredir as regras para levar vanta-
humana, ainda que se tente exterioriza-la como mal que gem: furar fila, colar na prova, sonegar impostos, estacio-
utopicamente pudesse ser extirpado de forma integral. nar em vaga proibida. Sim, essa ampliação de escopo da
Em meio à efervescência do tema, surgem com força corrupção acaba resvalando, de forma quase inevitável,
as “Dez Medidas” contra a corrupção, patrocinadas pelo em discussões da ética e da moral, como aspecto predo-
Ministério Público e turbinadas pela internet e pela im- minante do fenômeno.
prensa. E a cada novo episódio da chamada Operação Muitos escrevem sobre o tema. Pensadores do Direito,
Lava Jato ou outro escândalo de menores proporções, a da Ciência Política, da Sociologia, da Filosofia, da Psicolo-
proposta se fortalece, convergindo debates e esforços na gia e da Economia. Nesse cabedal de estudiosos, pode-se,
busca de soluções para o problema, que no tempo atual de formas sintética e contingencial, defender que a cor-
contamina qualquer discussão na esfera governamental. rupção é um abuso de poder que quebra as relações do
A despeito de qualquer crítica, há um mérito inegável poder público e as suas partes, alterando finalidades para
na iniciativa das Dez Medidas, por introduzir não apenas interesses pessoais e prejudicando interesses coletivos. É
na pauta do Legislativo, mas também na rotina popular jogar fora as regras que dão sustentabilidade às relações,
a questão da corrupção como um problema coletivo, um em proveito próprio.

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MATÉRIA DE CAPA
Isso implica dizer que a corrupção é mais do que des- 6) Debilidade de órgãos de fiscalização – órgãos de
cumprir a lei. É mais do que uma transgressão moral. controle frágeis e sem independência não podem
Envolve um interesse particular se sobrepondo a um in- detectar, apurar e prevenir atos de corrupção, sen-
teresse público, na maioria das vezes com efeitos concre- do uma deficiência estrutural, de correção morosa e
tos sobre as políticas e direitos sociais, necessitando de complexa, pois a função de controle é técnica e não
mecanismos institucionais, de atores e regras que modi- permite improvisação; e
fiquem a realidade na mitigação deste fenômeno. Assim, 7) Baixa maturidade na gestão de riscos – as fracas
quem comete um ato de corrupção está conspirando con- cultura e práticas de gestão de riscos e controles in-
tra o atendimento das necessidades da sociedade. ternos são uma fragilidade da Administração públi-
Ainda que acompanhe a trajetória da civilização, a cor- ca, tornando o ambiente propício à corrupção, pela
rupção emerge no período recente como um problema ausência de mecanismos de identificação e resposta
relevante, entre outros fatores, pela difusão mais amiúde das ameaças aos objetivos da organização pública.
do ideal democrático, pelo medo do descontrole de capi-
tais que financiam o terrorismo e ainda pela profusão ao DO PROBLEMA ÀS POSSIBILIDADES DE SOLUÇÃO
acesso de informações pela revolução da informática. A corrupção não tem apenas uma causa e, por isso, não
Para ilustrar a tese de que a corrupção é algo multi- se resolve com apenas um remédio. É tentador imaginar
disciplinar, envolto em diversas visões, podemos, então, a solução do problema de uma única vez, com um grande
enumerar algumas causas, fatores que se presentes cola- golpe na raiz do mal. Mas não é assim tão simples. Faz-se
boram para a incidência de atos de corrupção: necessário uma composição, um composto de soluções
1) Desigualdade social – a desigualdade acentuada é para mitigar essa questão, considerando-se sempre os
um fator de incentivo a atos corruptos, pois a ne- custos de transação envolvidos e ainda, que na discus-
gação de direitos fundamentais facilita a raciona- são da Accountability, todos se controlem mutuamente.
lização do ato individualista, dificulta a percepção Curiosamente, a própria concentração de poder em seu
do indivíduo imerso no coletivo, da importância da combate pode gerar mais corrupção.
predominância do interesse público, como fator de Prestigiando o otimismo, não podemos desconside-
uma vivência democrática e que inibe o benefício rar os avanços recentes da Lei de Responsabilidade Fis-
de interesses privados; cal (LC nº 101/2000), da Lei de Acesso a Informação (Lei
2) Questões morais e culturais – em um país de matriz nº 12.527/2011), da Lei de Conflito de Interesses (Lei nº
escravocrata como o Brasil, de uma colonização pre- 12813/2013), da Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) no
datória, ficam marcas na relação com a coisa pública, plano legal, e também de ações concretas, como o empo-
com o interesse coletivo, que afetam valores morais e deramento das Controladorias, dos Tribunais de Contas,
favorecem o patrimonialismo, ou seja, a confusão do do Ministério Público e da Polícia Federal, agindo estes de
público com o privado, que se relaciona diretamente forma articulada para coibir irregularidades, bem como a
com o conceito moderno de corrupção; criação de instrumentos de transparência e as frequentes
3) Custo-benefício e o monopólio da decisão – quan- manifestações populares específicas em relação ao tema.
do o agente conhece a fragilidade nas estruturas de No exemplo estadunidense, o escândalo de Watergate
detecção de seus atos, pela complexidade das ati- teve como consequência uma lei para combater a corrup-
vidades ou por ele dominar o fluxo informacional, ção transnacional, os escândalos financeiros corporati-
por ter monopólio do processo decisório, associado vos do início do milênio trouxeram a Lei Sarbanes-Oxley
à possibilidade de grande ganho, amplia-se a possi- e fortaleceu o modelo de referência para gestão de risco
bilidade de ações corruptas. Trata-se de um reflexo conhecido como COSO – Committee of Sponsoring Orga-
da nossa deficiência de Accountability, de respon- nizations of the Treadway Commission.
sividade dos agentes, de prestação de contas, com No Brasil, o escândalo dos Anões do Orçamento robus-
pequenos poderes que geram grandes corrupções; teceu a Secretaria Federal de Controle Interno no início
4) Impunidade e morosidade dos órgãos de respon- dos anos 1990. Outras denúncias, uma década depois,
sabilização – Beccaria, em seu célebre brocardo ju- fomentaram a criação da Corregedoria Geral da União. A
rídico, dizia que a inibição do crime estava mais na fusão de ambas deu origem ao que é hoje a Controladoria
certeza da punição do que no tamanho da pena. A Geral da União, resultando no fortalecimento da audito-
expectativa de punição remota e incerta reduz o cus- ria interna governamental, agregando outras funções.
to do ato corrupto e aumenta os incentivos daquele Assim como grandes escândalos financeiros catalisa-
agente em posição privilegiada para praticá-lo; ram a institucionalização do combate e da prevenção à
5) Deficiência de transparência e participação social corrupção, espera-se que ações recentes como a Ope-
– a chamada Accountability vertical, da participação ração Lava Jato e outras similares, para além de trazer a
popular alimentada pela transparência, permite ao questão para a mesa de bar, possam incentivar uma cul-
cidadão interferir na gestão pública, evitando des- tura de medidas de redução da corrupção, tanto do ponto
vios do interesse coletivo, na luta pelos seus direi- de vista da repressão aos crimes – ênfase das “Dez medi-
tos. Em uma sociedade opaca e pouco participativa das” –, como também na prevenção, com a implantação
abre-se grande brecha para a corrupção pela atua- e o efetivo funcionamento de estruturas de governança,
ção dos agentes públicos, detentores de mais infor- gestão de riscos, controles internos, transparência e con-
mação e poder decisório; trole social.

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Desse modo, é alvissareiro o destaque que as “Dez me- cessita ser inserido nas discussões dos agentes públicos
didas” têm alcançado em âmbito nacional. São valorosas dos diversos entes e poderes, para a geração e dissemina-
as propostas hoje na discussão legislativa, como a tipifi- ção de conhecimento, experiências e práticas para o for-
cação criminal do enriquecimento ilícito; a responsabili- talecimento das atividades.
zação dos partidos políticos; a criminalização do caixa 2; 4. Fundo Nacional de Prevenção ao Desperdício e
a celeridade nas ações de improbidade administrativa; a Combate à Corrupção – fundo contábil e financeiro, para
Accountability nos Tribunais; e campanhas de conscien- fomentar as ações da Política Nacional de Governança e
tização da população sobre os efeitos da corrupção, entre Integridade. Financiado por percentual de transferências
outras, sabendo-se de temas mais arenosos, carentes de e recursos recuperados de tomadas de contas especiais e
debate, como o teste de integridade dos agentes públicos ações de improbidade.
e o aproveitamento de provas ilícitas. A sociedade não 5. Estruturação legal da rede de controle – visando a
tem se furtado a esse debate! reduzir conflitos e a buscar a cooperação, a sinergia maior,
Mas, para além desses remédios, auspiciosos, que ata- existe a necessidade de se estabelecer regras de integração
cam, substancialmente, as consequências nefastas da e coordenação dos órgãos de Accountability, a exemplo de
corrupção, existe a necessidade de ampliação do debate, ações de sucesso como a Estratégia Nacional de Combate à
para enxergar o sistema de integridade da gestão pública Corrupção e à Lavagem de Dinheiro – ENCCLA.
como o conjunto de normas e atores que permitirão uma 6. Lei de Auditoria Nacional – a exemplo de outros pa-
resposta ainda mais efetiva, contemplando também as- íses, faz-se necessário uma legislação nacional que orga-
pectos estruturais e preventivos dessa questão. nize e formalize as atividades de auditoria governamental,
Relatório da União Europeia, de 2014, apontou como de controles internos e de gestão de riscos como instru-
uma das principais causas da corrupção no bloco conti- mentos de uma gestão proba e eficiente, pautando-se em
nental a fragilidade nos controles internos no âmbito lo- normas aplicadas internacionalmente e em boas práticas
cal. Uma atuação de caráter mais preventivo, que busca nacionais e estrangeiras.
agir sobre as causas estruturantes do problema, além de 7. Portal Nacional de Compras Públicas – estabelecer
ser menos onerosa, vincula a ação ao sucesso das políticas divulgação obrigatória de todas as licitações num único
públicas e os seus efeitos na garantia de direitos sociais e Portal de Compras Públicas Nacional na Internet, criando
na promoção do desenvolvimento. ferramenta de consulta unificada, por CNPJ/CPF, das di-
Riscos, controles internos, transparência e controle versas fontes de certidões e outros documentos obrigató-
social são valores essenciais na redução da corrupção em rios para participação em licitações. Simplifica e raciona-
um contexto democrático e de valorização dos resultados liza processos. Efetiva a transparência, a simplificação e a
das políticas públicas e, se incorporadas de forma inte- racionalização de processos e custos. Potencial de contro-
grada a ações ditas mais diretivas, como as propostas nas le preventivo de falhas e fraudes.
“Dez medidas”, trazem soluções mais sistêmicas e, conse- Como se vê, para além do proposto nas Dez Medidas,
quentemente, mais efetivas. o amadurecimento do sistema de integridade do país, em
Com esse propósito de ampliar os horizontes de medi- suas diversas esferas e poderes, necessita ainda de ações
das contra a corrupção e contra o desperdício de recursos concretas e cotidianas. Ações que contemplem os aspec-
públicos é possível citar algumas iniciativas simples, mas tos preventivos e participativos da gestão pública, que di-
com grande potencial de efetividade: minuam a burocracia sem sacrificar o controle.
1. Lei de Incentivo à Governança – cria parâmetros de A pergunta fundamental diante dos escândalos, em
mensuração do grau de maturidade em governança, integri- qualquer lugar do mundo, é: “como evitar que isso acon-
dade e controles internos nos municípios, oferecendo incen- teça novamente?”. Certamente, maiores capacidades
tivos para o avanço pela redução de penalidades e aumento investigativa e punitiva têm seu mérito, em especial no
de acesso a recursos federais, fomentando a aderência a que tange a ações envolvendo grandes entidades gover-
princípios de governança e controle interno; ética; contro- namentais. Mas a corrupção, sistêmica, carece ainda de
ladoria; transparência; controle social; gestão de riscos; pro- ações mais amplas, que aumentem também a capacida-
fissionalização de servidores; ficha limpa e planejamento. de de prevenir e gerenciar riscos, privilegiando a abor-
2. Lei Orgânica do Controle Interno – iniciativas, como a dagem estrutural, atuando sobre as oportunidades de
PEC nº 45/2009, indicam que a função de controle interno, fraudes e desvios, bloqueando a passagem aos atos in-
jovem em seus 50 anos, necessita de um robustecimento confessáveis da corrupção.
jurídico em sua estruturação, com as autonomias adminis- As Dez Medidas são uma parte da solução. Necessá-
trativa e financeira adequadas, corpo técnico efetivo, quatro rias, mas não suficientes. E podem ser complementa-
macrofunções mínimas: auditoria, ouvidoria, correição e das. Um longo caminho de amadurecimento da integri-
prevenção, entre outras regras que fortaleçam essa função. dade desponta. Eis um debate que a sociedade brasileira
3. Escola Nacional de Controle – o tema do controle e merece incorporar nessa novel mobilização diante
suas diversas áreas, em uma visão ampla e moderna, ne- da corrupção. 

FRANKLIN BRASIL SANTOS é auditor KLEBERSON ROBERTO SOUZA é auditor MARCUS VINICIUS DE AZEVEDO BRAGA
ARQUIVO PESSOAL
ARQUIVO PESSOAL

ARQUIVO PESSOAL

federal de finanças e controle, pesquisador federal de finanças e controle, pesquisador é auditor federal de finanças e controle,
sobre o tema do controle governamental sobre o tema do controle governamental pesquisador sobre o tema do controle gover-
e autor de livros publicados pela Editora e autor de livros publicados pela Editora namental e autor de livros publicados pela
Fórum (Belo Horizonte-MG). Este texto Fórum (Belo Horizonte-MG). Este texto Editora Fórum (Belo Horizonte-MG). Este
representa a opinião pessoal do autor. representa a opinião pessoal do autor. texto representa a opinião pessoal do autor.

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DIVULGAÇÃO
MATÉRIA DE CAPA

ONDA PUNITIVISTA E A
SUPERCRIMINALIZAÇÃO DO
COMBATE À CORRUPÇÃO
“A corrupção no Brasil e os inevitáveis males que dela decorrem são problemas sen-
síveis, que nos incomodam a todos e que demandam o desenvolvimento de novos
instrumentos que possibilitem uma maior efetividade em seu combate. Não se pode,
contudo, deixar-se seduzir pelo fetichismo penal, sob pena de essa espécie de medusa
petrificar-nos ainda mais.”

 POR ABHNER YOUSSIF MOTA ARABI

O
combate à corrupção tornou-se um dos gran- bility e de integridade nas mais diversas esferas – indicam
des reclamos sociais da democracia brasileira a penosa situação enfrentada pelo Brasil nesse campo:
nos últimos anos. A partir da publicização de conforme levantamento de 2015 do Índice de Percepção
esquemas de desvio de verbas públicas no alto da Corrupção, o Brasil ocupa a 76ª colocação dentre 168
escalão dos mais diversos níveis de governo, os olhos da países, atingindo 38 pontos em 100 possíveis, situação
sociedade se voltaram ao assunto. que piorou no comparativo com 2014. O país também não
O problema, que parece assombrar a humanidade des- apresenta bons resultados em outros índices como o de
de suas origens mais remotas, não é exclusivo do Brasil, pagadores de suborno e o barômetro global da corrupção.
apesar de aqui se revelar com especial relevância. Como Há de se ressaltar que há nas práticas de corrupção
exemplo, dados da Transparência Internacional – entida- um elevado custo social – além do político1, econômico
de não governamental que tem como objetivo o combate e outros mais –, especialmente quanto à concretização
à corrupção e a promoção de transparência, de accounta- dos direitos fundamentais e implementação dos direitos

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sociais, sobretudo em tempos de crise, uma vez que sen- sociais pelas quais passa o corpo social sobre o qual in-
do os recursos estatais limitados o custo será ainda maior cide, mostrando-se, igualmente, eficaz em seu campo de
quando as escassas verbas públicas são malversadas pe- atuação, quando sua intervenção se mostrar justificada.
los mais distintos agentes públicos e privados. E o pior: A questão que se coloca, entretanto, é: até que ponto essa
quanto menor o nível de riqueza da população, maior são busca por eficiência e dinamicidade do Direito Penal ser-
os reflexos diretos desses inevitáveis custos. ve como motivo suficiente para justificar a relativização
Diante desse cenário, na tentativa de aprimoramento do de direitos fundamentais e garantias individuais (mate-
combate generalizado da corrupção, exsurgiram diversas riais e processuais)?
propostas de enfrentamento do problema, dentre as quais É claro que a criminalidade moderna – essencial-
se destacam as “10 medidas contra a corrupção”. Como se mente caracterizada por uma estrutura organizacional
sabe, trata-se de iniciativa que surgiu dentro do Ministério complexa, muitas vezes internacionalizada, com divisão
Público Federal, pela qual se propõem diversas modifica- de tarefas específicas entre vários agentes que são facil-
ções legislativas que procuram “implementar mudanças mente substituíveis por novos integrantes e pela qual
sistêmicas e estruturais” na busca de “um Brasil mais justo, circula um alto montante monetário – requer também
com menos corrupção e menos impunidade”2. o desenvolvimento de novas ferramentas de combate e
O projeto foi amparado por mais de dois milhões de as- neutralização. Entretanto, o Direito Penal, que costu-
sinaturas, impulsionadas pelos avanços e resultados ob- ma ser pensado como uma solução de prima ratio pe-
tidos pela Operação Lava Jato. Por certo, representa im- los nossos legisladores, não tem se mostrado eficaz no
portante iniciativa que expõe aos debates público, técnico combate à criminalidade, mesmo em relação aos crimes
e acadêmico – que a presente revista instrumentaliza de naturais5. Tire-se pela situação de nosso sistema penal-
forma célebre – diversas propostas de combate ao mal da -carcerário e manutenção das altas taxas de criminalida-
corrupção, bem como suas eficiência e compatibilidade de em nosso país6.
com o ordenamento jurídico. Entretanto, há que se tecer, Nesse sentido, imagina-se que a resposta específica
desde agora e de forma preventiva, algumas considera- que se faz necessária não perpassa necessariamente pelo
ções críticas. Direito Penal, mas por instrumentos de controle que se
As evoluções históricas do Direito Penal e do Direi- mostrem mais adequados à dinamicidade da criminali-
to Processual Penal representaram verdadeiros avanços dade moderna, na qual está inclusa a corrupção, sem co-
quanto à garantia de direitos dos cidadãos. Partindo de locar em risco as garantias individuais de um Estado De-
um sistema processual inquisitório, em que se confun- mocrático de Direito (e de um sistema acusatório). Nesse
diam as figuras do acusador e do julgador e no qual era sentido é que Hassemer propõe, por exemplo, um Direito
possível o início do processo penal por iniciativa própria de Intervenção7, como intermediário entre os Direitos
do órgão jurisdicional, na qual colocava-se o acusado em Penal e Administrativo, calcado na prevenção de riscos,
posição de objeto da persecução penal, a ele não se as- intervenção prévia e dominação do perigo, desvinculado
segurando garantias ou direitos fundamentais processu- de um aspecto necessariamente encarcerador.
ais, que eram vistos como entraves à eficiência do Direito De outro lado, os vários tratados internacionais que
Penal3. Historicamente, evoluiu-se para o sistema acusa- abordam o tema possuem também como pontos cen-
tório, em que separadas as funções de acusar, defender e trais o fortalecimento de mecanismos de colaboração
julgar – que passaram a ser atribuídas a personagens di- internacional e compartilhamento de informações fis-
versos na constituição do processo como um actum trium cais e financeiras (como o FATCA, acordo internacional
personarum – o acusado é elevado à condição de sujeito promulgado pelo Decreto nº 8.506/2015); estímulo à im-
de direitos, cuja observância se revela essencial à própria plementação de mecanismos de compliance e de respon-
validade do processo-crime. sabilização das pessoas jurídicas (como previsto pela Lei
Faz-se essa digressão quanto à evolução epistemoló- nº 12.846/2013, que decorre de ideia contida no artigo
gica dos sistemas processuais penais porque, dentre as 10 da Convenção de Palermo – Decreto nº 5.105/2004);
dez medidas apresentadas pelo MPF, sete versam sobre o confisco e apreensão de bens, além de outras medidas
matéria penal – processual ou material –, tais como a cri- de caráter patrimonial8; o desenvolvimento de técnicas
minalização de condutas, o recrudescimento de penas, a especiais de investigação (como a colaboração premia-
ampliação do rol de crimes hediondos, reformas nos sis- da, que tem surtido bons resultados em nosso sistema);
temas de nulidades, de prescrição e recursal. Essas pro- a atualização e intensificação de códigos de conduta para
postas, de uma maneira geral, refletem uma tendência funcionários públicos (artigo 8 da Convenção de Mérida
de tratamento da questão por uma onda punitivista, que e, nesse ponto se vê com bons olhos a proposta do teste
pode não ser a melhor, notadamente porque parecem de integridade para o servidor público); medidas educa-
querer flexibilizar garantias processuais penais, em nega- tivas e de prevenção (e nesse aspecto se elogia a proposta
ção ao sistema penal acusatório, o único compatível com nº 1); dentre outras medidas possíveis.
o Estado Democrático de Direito que queremos, em um Não se quer aqui defender qualquer tipo de abolicio-
perigoso retorno a premissas que se aproximam em maior nismo penal ou a descriminalização da corrupção, tam-
medida de premissas inquisitórias4. pouco se rechaça em absoluto a utilização de medidas
Apesar de não se negar a importância de o Direito penais de forma pontual. O Direito Penal é importante
Penal se mostrar dinâmico em relação às modificações instrumento de controle social e de proteção de bens ju-

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MATÉRIA DE CAPA
rídicos relevantes, além de possuir significativa força sim- de emergência, ante ao contexto de forte – e justificada –
bólica – que muitas vezes funciona como indutora do de- repugnância à corrupção.
senvolvimento de outras políticas públicas extrapenais de Por certo, a corrupção no Brasil e os inevitáveis males
enfrentamento aos problemas sociais. O que se rechaça, que dela decorrem são problemas sensíveis, que nos in-
porém, é a supercriminalização do combate à corrupção comodam a todos e que demandam o desenvolvimento
e a adoção de um modelo de Direito Penal máximo ou de de novos instrumentos que possibilitem uma maior efeti-
eficientismo penal, paradigmas que não se revelam como vidade em seu combate. Não se pode, contudo, deixar-se
a melhor forma de tratamento aos problemas sociais e seduzir pelo fetichismo penal, sob pena de essa espécie de
pela qual se possibilita a afirmação de um Direito Penal medusa petrificar-nos ainda mais.

NOTAS
1 Dentre os custos políticos que se pode citar, está a elevada crise de representatividade e de legitimidade democrática formal que en-
frenta o Brasil, conforme já se teve a oportunidade de apontar no Capítulo 3 da obra: ARABI, Abhner Youssif Mota. A tensão institucional
entre Judiciário e Legislativo: controle de constitucionalidade, diálogo e a legitimidade da atuação do Supremo Tribunal Federal. Curitiba:
Editora Prismas, 2015, p. 93.
2 Os trechos citados foram obtidos do objetivo geral das propostas, disponível no sítio eletrônico do projeto: http://www.dezmedidas.mpf.
mp.br/apresentacao/objetivo-geral-das-propostas. Acesso em: 14 out. 2016.
3 A propósito, confira-se os seguintes excertos da Exposição de Motivos do Código de Processo Penal brasileiro (Decreto-Lei nº
3.689/1941): “De par com a necessidade de coordenação sistemática das regras do processo penal num Código único para todo o Brasil,
impunha‑se o seu ajustamento ao objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os que delinquem. As
nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidencia das provas,
um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí
um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da
tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do em comum. O indivíduo, principal-
mente quando vem de se mostrar rebelde à disciplina jurídico‑penal da vida em sociedade, não pode invocar, em face do Estado, outras
franquias ou imunidades além daquelas que o assegurem contra o exercício do poder público fora da medida reclamada pelo interesse
social. Este o critério que presidiu à elaboração do presente projeto de Código. No seu texto, não são reproduzidas as fórmulas tradi-
cionais de um mal‑avisado favorecimento legal aos criminosos. O processo penal é aliviado dos excessos de formalismo e joeirado de
certos critérios normativos com que, sob o influxo de um mal‑compreendido individualismo ou de um sentimentalismo mais ou menos
equívoco, se transige com a necessidade de uma rigorosa e expedita aplicação da justiça penal. As nulidades processuais, reduzidas ao
mínimo, deixam de ser o que têm sido até agora, isto é, um meandro técnico por onde se escoa a substância do processo e se perdem
o tempo e a gravidade da justiça. É coibido o êxito das fraudes, subterfúgios e alicantinas. É restringida a aplicação do in dubio pro reo. É
ampliada a noção do flagrante delito, para o efeito da prisão provisória. A decretação da prisão preventiva, que, em certos casos, deixa
de ser uma faculdade, para ser um dever imposto ao juiz, adquire a suficiente elasticidade para tornar‑se medida plenamente assecu-
ratória da efetivação da justiça penal”.
4 A flexibilização de garantias processuais nos casos de crime de corrupção não é novidade. A propósito, lembra-se de artigo publicado
no jornal O Estado de S. Paulo, em 29 de março de 2015, em que Sergio Fernando Moro – juiz federal que conduz os processos da Opera-
ção Lava Jato no Paraná – e Antônio Cesar Bochenek – então presidente da Ajufe – afirmam que “o problema é o processo”. Valendo-se
de tal afirmativa, os autores defendem que a melhor solução seria a atribuição de eficácia imediata àquelas sentenças condenatórias –
proferidas por juízo de primeiro grau, portanto – exaradas em processos referentes a “crimes graves em concreto, como grandes desvios
de dinheiro público”, independentemente do cabimento ou não de recursos em face de tal decisão. Sobre esse ponto específico, já se
teve a oportunidade de se posicionar contrariamente à proposta, à luz da interpretação da Constituição Federal e de tratados interna-
cionais de Direitos Humanos (como o Pacto de São José da Costa Rica). Destaca-se que o artigo foi escrito anteriormente à decisão pro-
ferida pelo STF no HC 126.292, quando se passou a entender ser possível a execução provisória de pena privativa de liberdade já com
a condenação em segunda instância. A propósito, conferir: ARABI, Abhner Youssif Mota Arabi. O processo não é problema, é garantia. O
casuísmo é que é o problema. In: Consultor Jurídico, 5 de abril 2015, disponível em http://www.conjur.com.br/2015-abr-05/abhner-arabi-
casuismo-nao-processo-problema.
5 Por crimes naturais entende-se àquelas condutas que sempre foram consideradas como criminosas, e imagina-se que sempre serão,
tais como homicídio, furto, roubo, lesão corporal, estupro etc.
6 A propósito, cita-se estudo publicado em janeiro/2016 pela ONG mexicana Seguridad, Justicia y Paz – Consejo Ciudadano para la Se-
guridad Pública y Justicia Penal, segundo o qual se considerou que o Brasil possui 21 cidades dentre as 50 mais violentas do mundo. A
pesquisa levou em conta o número de homicídios por 100 mil habitantes em cidades com, no mínimo, 300 mil, excluídos os países que
vivenciam conflitos bélicos abertos.
7 Cf. HASSEMER, Winfried. Direito penal libertário. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
8 A adoção de medidas patrimoniais se revela importante porque o que determina a perpetuidade da criminalidade organizada não é
propriamente a continuidade de seus membros, mas a circulação do dinheiro. Nesse sentido é que se fala nos follow-the-money me-
thods, que representam meios que guiam a investigação pelos rastros deixados pela circulação de dinheiro, possibilitando alcançar os
escalões mais elevados das organizações criminosas.
ARQUIVO PESSOAL

ABHNER YOUSSIF MOTA ARABI é assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal. Autor do livro: “A Tensão Institucional entre Judiciário e Legislativo:
controle de constitucionalidade, diálogo e a legitimidade da atuação do Supremo Tribunal Federal” (Editora Prismas, 2015); coordenador da obra “Direito
Financeiro e Jurisdição Constitucional” (Editora Juruá, 2016) e autor de diversos capítulos de livros e artigos jurídicos.

36 REVISTA JURÍDICA CONSULEX - ANO XX - Nº 475 - 1º DE NOVEMBRO/2016


DIVULGAÇÃO

TESTE DE INTEGRIDADE E A
INCRIMINAÇÃO DA PRÓPRIA
CONDUTA PRATICADA NA SIMULAÇÃO
 POR JOÃO PAULO ORSINI MARTINELLI e HUMBERTO SOUZA SANTOS

A
primeira das denominadas “Dez Medidas situação de prática de ilegalidade contra a Adminis-
contra a Corrupção” sugeridas pelo Ministé- tração Pública. A previsão desse teste nos termos es-
rio Público Federal, que no PL 4850/2016 está tabelecidos pelo projeto de lei pode permitir que seja
regulamentada nos arts. 48 a 57, abre espaço utilizado com três propósitos diferentes: a) servir de
para uma hipótese que merece ser um pouco mais refle- ferramenta de verificação de que o funcionário pú-
tida e discutida. Os referidos artigos do mencionado pro- blico se conduz com a devida observância aos prin-
jeto de lei tratam da introdução no Direito brasileiro do cípios da administração pública, cuja infração tem
chamado “teste de integridade”, mecanismo existente em como consequências sanções administrativas e civis;
países que adotam o sistema jurídico da “common law” b) servir de ferramenta de investigação de delitos ou
utilizado para a averiguação da honestidade de servidores atos de improbidade que já foram praticados ou estão
públicos a partir de um “teste”, uma simulação, que faça atualmente em execução, de modo que o apurado, em
o indivíduo submetido ao teste acreditar que está numa verdade, consiste em fato distinto daquele encenado;

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MATÉRIA DE CAPA

“A incriminação da conduta praticada pelo funcionário público durante a simulação


do teste de integridade tem um déficit de fundamentação profundo demais para ser
ignorado. Com efeito, um tipo penal nesse sentido contraria a dogmática da tentati-
va; viola os fundamentos e limites da intervenção penal do Estado, não observa o fim
de proteção de bens jurídicos, os princípios limitadores do Direito Penal, bem como
os princípios desenvolvidos no direito anglo-americano, como o harm principle e o
offense principle; vai de encontro a regras de Direito Processual Penal, por implicar
o reconhecimento de validade ao flagrante preparado; e não apresenta necessidade
prática diante dos instrumentos de investigação atualmente já disponíveis.”

c) servir de ferramenta para que se verifique a ocorrên- na ausência de consumação. Na dogmática da tentati-
cia de um crime durante o teste, de modo que a punição va considera-se iter criminis o caminho percorrido pelo
penal se justifique pela conduta praticada durante o pró- agente para atingir um resultado pretendido, que é divi-
prio teste, independentemente da existência ou não de dido basicamente em quatro partes: 1) a cognição; 2) os
outros delitos1. atos preparatórios; 3) os atos de execução; e 4) a consu-
O primeiro propósito, por levar a consequências ge- mação. A cognição é a fase puramente intelectual, pois é
radas nos âmbitos dos Direitos Administrativo e Civil nesse momento que o agente decide o que fazer, desde
não será aqui analisado, por entendermos que é pre- o resultado que quer atingir até os meios que devem ser
ferível que sua análise científica fique legada aos estu- empregados. A etapa cognitiva representa a intenção do
diosos desses respectivos campos. O segundo propósito indivíduo, mas não representa qualquer perigo ao bem
se aproxima mais da atuação de um agente infiltrado, jurídico. Isso porque querer fazer ainda é algo conside-
figura prevista na Lei nº 12.850/2013, de modo que seu rado distante de realmente fazer algo, pois meros pen-
exame é mais adequado se realizado em conjunto com samentos surgem com a mesma facilidade com que so-
os elementos e peculiaridades da referida lei, o que fugi- mem, de modo que o simples “querer fazer” ainda é uma
ria dos limites que pretendemos dedicar a este trabalho. ideia que pode sumir e que não dá garantia de que levará
O terceiro propósito, no entanto, é sem dúvida o mais à continuidade do intuito delitivo2.
polêmico e, devido às suas imensas repercussões, opta- A segunda etapa, os atos preparatórios, caracteriza-se
mos por torná-lo o objeto deste estudo. Com efeito, seu como o início da exteriorização do intuito do agente e
reconhecimento legal levanta diversas questões proble- são os primeiros movimentos dirigidos à consecução cri-
máticas no plano da tentativa, das teorias sobre os fun- minosa3. Assim, por exemplo, adquirir uma quantidade
damentos e limites da intervenção penal do Estado, do de veneno destinado a matar alguém por meio insidioso
processual penal, e, também, no plano prático, diante da ou conduzir alguém ao local da emboscada são atos que,
indagação sobre se realmente compensa introduzir no embora signifiquem os atos iniciais do plano criminoso,
ordenamento jurídico uma incriminação tão polêmica ainda não se encontram no âmbito da execução. Após
com o fim de superar uma eventual lacuna de punibili- essa fase, começam os atos de execução propriamente
dade que talvez possa ser evitada com o desenvolvimen- ditos, que são aqueles diretamente relacionados com o
to dos já existentes mecanismos de investigação e per- núcleo do tipo e imediatamente anteriores à consuma-
secução penal de fatos já praticados. O enfrentamento ção4. Podem ser citados como exemplo o ato de disparar
dessas questões, que é extremamente importante para a a arma de fogo quando o agente quer matar alguém ou a
delimitação do âmbito justificado de intervenção penal retirada da coisa da esfera de disponibilidade da vítima
do Estado, será procedido a seguir. no caso do crime de furto.
Por fim, o iter criminis estará finalizado quando o
PROBLEMAS NO PLANO DA DOGMÁTICA DA agente atingir a consumação5. Diz-se que o crime está
TENTATIVA: PUNIÇÃO DA TENTATIVA INIDÔNEA consumado “quando nele se reúnem todos os elementos
Para se entender as consequências sobre o entendi- de sua definição legal” (art. 14, I, CP). O crime consuma-
mento da tentativa da utilização do teste de integridade do, portanto, é a realização de todas as elementares do
para verificar e punir um delito na forma da conduta pra- tipo, com a produção do perigo ou dano pretendidos pelo
ticada durante o próprio teste, é preciso, primeiramente, sujeito. Já a tentativa, ao contrário, ocorre nas hipóteses
discorrer sobre o crime tentado e os limites da punição em que, iniciada a execução, e por motivos alheios à von-

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tade do agente, o resultado pretendido não ocorre (art. 14, germânica, como é o nosso, é a proteção subsidiária de
II, CP). A punição ao sujeito ativo, desse modo, somente bens jurídicos, que também é entendida como a prin-
é permitida quando, pelo menos, houver ingresso na fase cipal tarefa do Direito Penal6. Bem jurídico, segundo
da execução. Os atos preparatórios e a vontade, vistos iso- Roxin, são “dados ou finalidades necessários para o li-
ladamente, não são puníveis por si mesmos. vre desenvolvimento do indivíduo, a realização de seus
Portanto, o comportamento do agente, por mais re- direitos fundamentais e o funcionamento de um siste-
provável que seja, apenas pode sofrer a reprimenda penal ma estatal estruturado sob estes objetivos”7. Em síntese,
quando ocorrer a efetiva consumação do crime ou, pelo bem jurídico pode ser entendido como todo interesse
menos, quando tiverem início os atos de execução. Isso relevante para a existência de vida harmônica em so-
significa que o mínimo que se exige para que uma con- ciedade. No entanto, bem jurídico-penal é o interesse
duta seja punida é a presença da tentativa, caracterizada que só pode ser protegido pelo Direito Penal porque os
pela não realização do resultado por motivos alheios à outros meios de controle social são ineficazes para esse
vontade do agente. Se o resultado não ocorrer por ine- fim, de modo que, assim como nem todo interesse é bem
ficácia do meio ou impropriedade do objeto é hipótese jurídico, nem todo bem jurídico é bem jurídico-penal. A
da chamada tentativa inidônea (crime impossível). Por- proteção penal de um bem jurídico se orienta, então, por
tanto, somente a tentativa idônea, cujo comportamento dois princípios decorrentes do Estado Democrático de
teria condições de atingir o resultado pretendido, pode Direito: subsidiariedade e fragmentariedade. Segundo o
ser sancionada pelo Direito Penal. princípio da subsidiariedade, um bem jurídico somente
Todavia, o teste de integridade, da maneira como pre- pode ser objeto de tutela do Direito Penal se não houver
visto no projeto de lei, é uma ferramenta de induzimento outros meios de protegê-lo. Assim, o Direito Penal deve
ou instigação do servidor a praticar uma conduta ilícita, sempre ser a ultima ratio na resolução de conflitos, dan-
embora mediante a observação e o domínio de quem o do-se, sempre, prioridade aos outros meios de controle
provocou. Pode-se dizer que é uma ação controlada, pois social8. Já o princípio da fragmentariedade determina
ao longo de sua utilização sabe-se quem, quando e onde o que o Direito Penal não é capaz de solucionar um con-
comportamento será praticado, o que permite a interrup- flito como um todo, ou seja, que cabe ao Direito Penal
ção dos atos antes de o bem jurídico ser atingido. Por isso, cuidar de parcela do conflito9.
também é possível, inclusive, afirmar que o domínio do Por outro lado, outros princípios do Direito Penal são
fato também pertence ao agente instigador ou incitador, essenciais para a limitação do poder punitivo do Estado
uma vez que o executor do delito simulado, ainda que não na tutela de bens jurídicos. O princípio da lesividade le-
saiba, está sob o controle de quem simula a situação e seu gitima a interferência penal somente quando o compor-
comportamento nunca chegará ao pretenso resultado tamento a ser evitado for realmente perigoso ou dano-
lesivo. Assim, embora o objetivo do teste seja verificar a so ao interesse tutelado. A mera intenção de atingir um
probidade do servidor, este permanece o tempo todo sob bem jurídico é insuficiente para a aplicação de lei penal.
vigilância e, mesmo que queira e pratique atos nesse sen- Ademais, o princípio da proporcionalidade orienta que
tido, o bem jurídico não é colocado em perigo, nunca po- a criminalização e a reprimenda sejam sempre procedi-
derá ser violado e nem poderá ser consumado o resultado das na medida em que o comportamento for perigoso ou
danoso. Assim, o teste de integridade claramente adquire lesivo. Isso quer dizer que, quando a intervenção pelo
o aspecto de crime impossível, cuja punição é manifes- Direito Penal se apresentar de maneira desproporcional
tamente vedada pelo art. 17 do Código Penal, que afirma ao comportamento praticado, deve-se recorrer a outros
“Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absolu- meios de resolução do conflito10. Portanto, criminalizar
ta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é a intenção de praticar um ato ilícito, especificamente
impossível consumar-se o crime”. A punição do próprio quando o sujeito for provocado, é medida fora das pro-
comportamento praticado em razão do teste significa, porções, pois o mero pensamento é inofensivo. Sem pe-
nesse contexto, impor uma sanção penal exclusivamente rigo efetivo ao bem jurídico não é legítima a intervenção
em razão da intenção do servidor provocado, de manei- de natureza penal.
ra a contrariar a máxima de que meros pensamentos não No caso específico da punição da conduta praticada
podem ser objeto do Direito Penal. durante o teste de integridade, ainda que se entenda
protegido o bem jurídico “Administração Pública”, não
Problemas no plano dos fundamentos e limites da há evidentemente qualquer possibilidade nem mesmo
intervenção penal do Estado: contrariedade à tarefa de de sua colocação em perigo, devido ao controle e vigilân-
proteção de bens jurídicos, aos princípios limitadores cia determinados pelos agentes provocadores, de modo
do Direito Penal, ao harm principle e ao offense que não há que se falar em contrariedade ao princípio da
principle – natureza de moralismo legal proteção de bem jurídico, já que inexiste bem jurídico
O fundamento e limite da intervenção penal do Esta- sequer colocado em perigo e, por conseguinte, também
do reconhecido pelos sistemas jurídico-penais de matriz se levantam dúvidas a respeito da observância aos de-

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MATÉRIA DE CAPA
mais princípios acima mencionados. Não é possível falar legal. Joel Feinberg explica que moralismo legal é a visão
em observância do princípio da subsidiariedade, pois, de que é legítimo proibir uma conduta sob o fundamen-
diante da inviabilidade de qualquer perigo, não há o que to de que ela é inerentemente imoral, mesmo que não
ser protegido e, por lógica, espaço para discussão sobre cause nem um dano nem uma ofensa a quem age ou a
quais meios seriam mais adequados para tanto. Tam- outras pessoas15. Entretanto, como afirma Husak, o mo-
pouco existe incidência do princípio da fragmentarieda- ralismo legal ignora que o direito do indivíduo de não
de, pois nem mesmo há conflito. Além disso, a própria ser punido não pode ser infringido na falta de um in-
impossibilidade de criação de perigo já afasta o princí- teresse estatal substancial16; não leva em consideração
pio da lesividade e não se vislumbra que a punição de que alguns erros são mais privados do que públicos e
uma conduta inviável para produzir qualquer forma de não merecem uma resposta punitiva estatal17; não apre-
perigo possa ser proporcional, até mesmo porque, como senta o motivo pelo qual se justifica que o Estado puna
não há risco para o bem jurídico. Assim, não é possível os praticantes culpáveis de tais erros18. E, realmente,
nem mesmo verificar em relação a que deve ser medida uma vez que não tem consequência exterior alguma, o
tal proporcionalidade. que sobra de punível na conduta do servidor submeti-
Por outro lado, também os princípios desenvolvidos do à simulação são apenas seus elementos puramente
no Direito anglo-americano não fornecem uma funda- psíquicos, seus dados espirituais internalizados, como
mentação consistente para que se considere um crime sua mera vontade, seus sentimentos, sua propensão
verdadeiro a conduta praticada durante a situação simu- emocional para a prática do delito, cuja existência, por
lada. Analisemos, em primeiro lugar, o harm principle mais que seja moralmente reprovável, é um assunto ain-
ou princípio do dano. Na versão desenvolvida por John da restrito à esfera privada de sua (má) consciência, o
Stuart Mill, o harm principle define que o único propó- que ainda não fundamenta o merecimento de uma san-
sito para o qual o poder pode ser corretamente exercido ção criminal, sob pena de se admitir um Direito Penal
sobre os membros de uma comunidade civilizada con- de puro ânimo. E, de volta à matriz germânica de nosso
tra sua própria vontade é prevenir o dano a terceiros11. Direito, é interessante lembrar da advertência de Roxin,
No caso do comportamento praticado sob a simulação segundo a qual a pura violação da moral não é suficiente
do teste de integridade, não há dano a quem quer que para justificar uma determinação penal enquanto não
seja, nem mesmo à Administração Pública como ente prejudicar a liberdade ou a segurança de alguém, por
coletivo. Já de acordo com a teoria elaborada por Joel não violar bem jurídico algum19.
Feinberg, o harm principle afirma que o Estado apenas
pode interferir no comportamento dos indivíduos de Problemas no plano do Direito Processual Penal:
modo moralmente justificável quando essa interferên- reconhecimento de validade ao flagrante preparado
cia se revelar razoavelmente necessária para prevenir A jurisprudência e a doutrina do Direito Processual
danos ou graves riscos de danos àqueles que não sejam Penal brasileiro predominantemente reconhecem como
o próprio sujeito sob o qual incide a intervenção12. No intolerável a figura do flagrante preparado, no qual as
entanto, como visto, na conduta praticada durante o circunstâncias para a prática do ato supostamente ilí-
teste de integridade não há qualquer dano ou risco de cito são planejadas e vigiadas pelo agente provocador.
dano a nada nem ninguém. Joel Feinberg também de- Nessas hipóteses há verdadeira provocação controla-
senvolveu o denominado offense principle, ou princípio da de quem pretende obter uma situação de flagrante
da ofensa, que sustenta autorizar o legislador a coibir que, provavelmente, não ocorreria por espontaneidade
ofensas que, embora não se apresentem como dano, são do sujeito, ou seja, a pessoa provocada até poderia ter
sérias o suficiente para exigir uma eficiente e necessária praticado espontaneamente um crime, mas não nas
prevenção13, cujas penas devem ser menos graves do que idênticas circunstâncias em que tenha sido provocado.
os danos, e segue alguns critérios, como seriedade, razo- Assim, considera-se o flagrante preparado com o fim de
abilidade, interesse social, bem como extensão e dura- obtenção de provas inaceitável e ilegal, pois se entende
ção do incômodo, do valor social da restrição à conduta que o Estado incitaria ou induziria alguém a praticar um
ofensiva, da eficácia da norma em diminuir ou evitar a comportamento que o próprio Estado deveria evitar por
ofensa, etc.14 Todavia, como o comportamento praticado meio das normas penais.
sob simulação não tem viabilidade para levar a consequ- Lopes Jr, por exemplo, explica que o flagrante pre-
ência alguma, pois é controlado e vigiado, não é possível parado não passa de uma cilada, uma encenação tea-
compreender que chegue a causar alguma ofensa ou in- tral, tendo em vista que o agente é induzido à prática
cômodo a quem quer seja. Ao contrário, pode até gerar de um delito por um agente provocador, geralmente um
satisfação diante do êxito do teste. policial ou alguém a seu serviço. Seria, então, um delito
Em verdade, punir como crime o comportamento putativo (crime impossível) por obra do agente provoca-
praticado pelo servidor público durante o teste de inte- dor, hipótese estudada no âmbito do Direito Penal20. Já
gridade é algo semelhante a uma espécie de moralismo os tribunais compreendem o flagrante preparado como

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hipótese de crime impossível, desde que o agente pro- instrumentos eficazes e legítimos para instaurar proce-
vocador seja decisivo na tomada de decisão pelo sujei- dimentos investigatórios e eventual processo criminal,
to preso em flagrante: “O flagrante preparado acontece sem precisar recorrer a uma problemática incriminação
quando uma pessoa provoca a outra com o intuito de que levaria a uma punição de legitimidade duvidosa. E,
prendê-la. A ocorrência do crime só surge em razão de fato, além de mecanismos policiais, há procedimen-
da provocação daquele que pretende utilizar a prisão tos administrativos próprios, nos quais o contraditório
em flagrante” (TJ-MG, APR 10180120018460001, rel. pode ser exercido, como a investigação perante a Receita
Denise Pinho da Costa Val, j. 15.07.2014). De maneira Federal e sindicâncias internas. Tais instrumentos, por
semelhante: “Se a apreensão da droga foi adquirida por outro lado, não induzem o suspeito à prática do com-
policial portando uma cédula marcada com a qual ele portamento reprovável, mas, ao contrário, apuram-se
fez a compra do produto maldito, a hipótese revela fla- apenas supostos fatos já praticados. Portanto, incrimi-
grante preparado, que tipifica o crime impossível e não nar e punir penalmente o comportamento ao qual o
permite a condenação do agente pelo tráfico” (TJ-MT, servidor público tenha sido induzido, além de todos os
APL 00024921220058110000 2492/2005, rel. Manoel problemas acima apontados, sequer parece necessária
Onellas de Almeida, j. 04.05.2005). O Supremo Tribunal do ponto de vista pragmático. Por outro lado, como o
Federal também já se manifestou com a edição da Sú- Estado já é dotado de ferramentas que permitem ave-
mula nº 145: “não há crime, quando a preparação do fla- riguar atitudes suspeitas de um servidor público, não
grante pela polícia torna impossível a sua consumação”. parece existir uma boa razão para abandonar a tradição
Isso significa que a incriminação e a punição da conduta liberal de se investigar fatos passados em favor da in-
praticada durante o teste de integridade esbarram forte- criminação de uma conduta induzida. E, mesmo que se
mente nesse entendimento consolidado tanto pela dou- entenda que tais meios ainda não são adequados, há a
trina quanto pela jurisprudência processual penal, de possibilidade de se desenvolver novas ferramentas que
modo que, para vingar, demandaria uma revisão radical levem a elucidação de delitos que efetivamente tenham
dessa posição. violado bens jurídicos ou os tenham colocado em peri-
go, seja no âmbito da investigação criminal, com o res-
Problemas no plano pragmático: desnecessidade pectivo processo judicial, ou de uma sindicância.
prática da incriminação da própria conduta praticada
durante o teste CONCLUSÕES
Ainda no âmbito do Direito Processual Penal, há um Assim, a incriminação da conduta praticada pelo fun-
princípio que indica que, para se iniciar uma investiga- cionário público durante a simulação do teste de inte-
ção ou um processo criminal, é preciso existir um las- gridade tem um déficit de fundamentação profundo de-
tro probatório mínimo de autoria e materialidade do mais para ser ignorado. Com efeito, um tipo penal nesse
crime. Assim, sem indícios suficientes ninguém poderá sentido contraria a dogmática da tentativa; viola os fun-
ser submetido ao indiciamento ou à condição de réu. É damentos e limites da intervenção penal do Estado, não
o que Silva Jardim denomina justa causa como condi- observa o fim de proteção de bens jurídicos, os princí-
ção da ação penal condenatória21. A justa causa também pios limitadores do Direito Penal, bem como os princí-
incide para fins de investigação, como pode ser extraí- pios desenvolvidos no direito anglo-americano, como
do, por exemplo, da Lei de Interceptações Telefônicas, o harm principle e o offense principle; vai de encontro
art. 2º, inciso I, da Lei nº 9.296/1996. Isso significa que, a regras de Direito Processual Penal, por implicar o re-
de acordo com esse raciocínio, uma pessoa só pode ser conhecimento de validade ao flagrante preparado; e não
submetida à condição de investigada ou acusada quan- apresenta necessidade prática diante dos instrumentos
do houver indício de autoria e materialidade, de manei- de investigação atualmente já disponíveis. Falta, desse
ra a se permitir ao Estado a persecução para a busca de modo, argumento relevante capaz de sustentar sua le-
provas. E, ao se partir desse pensamento, sempre que gitimidade ou a necessidade de sua implementação. E,
existir indícios de autoria e materialidade de crime pra- por significar a incriminação de uma conduta que não
ticado por servidor público já se tem, a princípio, ele- ameace nem lesione qualquer bem jurídico e não provo-
mentos para iniciar investigações, pois, desde que não que dano ou ofensa alguma a quem quer ou ao que quer
se trate de mera desconfiança completamente infunda- que seja, não parece restar nada mais do que a censura
da, é sempre permitido ao Estado tomar as medidas já à pura moral, como verdadeira hipótese de moralismo
previstas para a apuração de suspeitas. A incriminação legal, o que não é suficiente para justificar um reproche
da conduta praticada pelo servidor durante o teste e sua penal. Por todos esses aspectos, não há dúvida de que é
punição criminal é desnecessária sob o aspecto de pre- preciso refletir bastante se realmente vale a pena a pro-
enchimento de lacunas de punibilidade, pois se há sus- positura de um tão grave e problemático instrumento de
peitas em relação à sua conduta, o Estado é dotado de punição criminal. 

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MATÉRIA DE CAPA

NOTAS
1 CALABRICH, Bruno. Teste de integridade: aplicação, críticas e constitucionalidade, 2016, p. 4 e seguintes. In: Dez medidas contra a corrup-
ção, sítio eletrônico do Ministério Público Federal. Disponível em:<http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/apresentacao/artigos/teste-de
-integridade-bruno-calabrich.pdf/view>. Acesso em: 16. out. 2016.
2 HAFT, Fritjof. Strafrecht Allgemeiner Teil, 9. Auflage, München: C.H. Beck, 2004, p. 227.
3 KINDHÄUSER, Urs. Strafrecht Allgemeiner Teil, 3. Auflage, Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 2008, p. 243.
4 WESSELS, Johannes; BEULKE, Werner. Strafrecht Allgemeiner Teil, 38. Auflage, Heidelberg: C. F. Müller, 2008, p. 213.
5 OTTO, Harro. Grundkurs Strafrecht, 7. Auflage. Berlin: De Gruyter Recht, 2004, p. 250.
6 ROXIN, Claus. Strafrecht Allgemeiner Teil, Band I, 4. Auflage. München: Verlag C.H. Beck, 2006, p. 14.
7 ROXIN, Claus. Op. cit., 2006, p. 16.
8 MARTINELLI, João Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schmitt de. Lições fundamentais de direito penal, parte geral, São Paulo: Editora Saraiva,
2016, p. 154-160.
9 MARTINELLI, João Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schmitt de. Op. cit., 2016, p. 161-162.
10 MARTINELLI, João Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schmitt de. Op. cit., 2016, p. 163-165.
11 MILL, John Stuart. On Liberty (1859), Kitchener: Batoche Books, 2001, p.13.
12 FEINBERG, Joel. Harm to others. Nova York: Oxford University Press, 1984, p. 04 e 05.
13 FEINBERG, Joel. Offense to others. Nova York: Oxford University Press, 1985, p. 02.
14 FEINBERG, Joel. Op. cit., Nova York: Oxford University Press, 1985, p. 07-10.
15 FEINBERG, Joel. Harmless Wrongdoing. Nova York: Oxford University Press, 1988, p. XIX-XX.
16 HUSAK, Douglas. Overcriminalization – the limits of the criminal law. Nova York: Oxford University Press, 2008, p. 198.
17 HUSAK, Douglas. Op. cit., 2008, p. 199.
18 HUSAK, Douglas. Op. cit., 2008, p. 201.
19 ROXIN, Claus. Rechtsgüterschutz als Aufgabe des Strafrechts?. In: HEFENDEHL, Roland (Hrsg.). Empirische und dogmatische Fundamente
kriminalpolitischer Impetus, Symposium für Bernd Schünemann zum 60. Geburtstag. Köln: Carl Heymanns Verlag, 2005, p. 141.
20 LOPES JR., Aury. Direito processual penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2013. p. 815.
21 JARDIM, Afrânio Silva. Um novo conceito de justa causa no processo penal. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/justa-causa-
no-processo-penal/>. Acesso em: 20 out. 2016.

REFERÊNCIAS
CALABRICH, Bruno. Teste de integridade: aplicação, críticas e constitucionalidade, 2016, p. 4 e seguintes. In: Dez medidas contra a corrupção,
sítio eletrônico do Ministério Público Federal. Disponível em:<http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/apresentacao/artigos/teste-de-inte-
gridade-bruno-calabrich.pdf/view>. Acesso em 16 out. 2016.
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FEINBERG, Joel. Harmless Wrongdoing. Nova York: Oxford University Press, 1988.
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HAFT, Fritjof. Strafrecht Allgemeiner Teil, 9. Auflage, München: C.H. Beck, 2004.
HUSAK, Douglas. Overcriminalization – the limits of the criminal law. Nova York: Oxford University Press, 2008.
JARDIM, Afrânio Silva. Um novo conceito de justa causa no processo penal. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/justa-causa-no
-processo-penal/>. Acesso em 20 out. 2016.
KINDHÄUSER, Urs. Strafrecht Allgemeiner Teil, 3. Auflage, Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 2008.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2013.
MARTINELLI, João Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schmitt de. Lições fundamentais de direito penal, parte geral, São Paulo: Editora Saraiva, 2016.
MILL, John Stuart. On Liberty (1859), Kitchener: Batoche Books, 2001.
OTTO, Harro. Grundkurs Strafrecht, 7. Auflage. Berlin: De Gruyter Recht, 2004.
ROXIN, Claus. Rechtsgüterschutz als Aufgabe des Strafrechts?. In: HEFENDEHL, Roland (Hrsg.). Empirische und dogmatische Fundamente krimi-
nalpolitischer Impetus, Symposium für Bernd Schünemann zum 60. Geburtstag. Köln: Carl Heymanns Verlag, 2005.
ROXIN, Claus. Strafrecht Allgemeiner Teil, Band I, 4. Auflage. München: Verlag C.H. Beck, 2006.
WESSELS, Johannes; BEULKE, Werner. Strafrecht Allgemeiner Teil, 38. Auflage, Heidelberg: C. F. Müller, 2008.
ARQUIVO PESSOAL

ARQUIVO PESSOAL

JOÃO PAULO ORSINI MARTINELLI é professor de Direito Penal HUMBERTO SOUZA SANTOS é doutorando em Direito Penal na
da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-Doutor em Direitos Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Ciências
Humanos pela Universidade de Coimbra, Portugal. Doutor e Mestre Penais pela Universidade Cândido Mendes (UCAM). Graduado pela
em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP). Graduado Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Advogado.
pela Universidade de São Paulo (USP).

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DIVULGAÇÃO

MEDIDAS CONTRA A CORRUPÇÃO:


A POLÍTICA NA ERA DA DESCONFIANÇA
“Se a corrupção nasce na mente dos homens é justamente na mente dos homens que
devemos construir as defesas da ética, o que muitas vezes somente é possível fazendo
uso de um Direito Penal não teatral, um caminho pensado e difícil na construção de
uma democracia lado a lado com a liberdade de opinião, que se expressa em uma plu-
ralidade de espaço e transparência. Onde o cidadão possa, de um lado, efetivamente
escolher e distinguir, de tal forma que as posições ideológicas ou políticas ganham o
devido respeito, independentemente dos poderes político e econômico e, de outro,
fiscalizar e fazer cumprir a lei.”

 POR FAUSTO MARTIN DE SANCTIS

A
contrademocracia é um fenômeno que surgiu rios, consultas cidadãs em todos os níveis, mas, antes de
recentemente e a terminologia é atribuída ao qualquer coisa, que as aspirações do povo sejam efetiva-
politólogo francês Pierre Rosanvallon, produto mente ouvidas, percebidas e refletidas. Somente nesta hi-
do que ele próprio designa como a política na pótese pode-se antever a desejada aproximação entre os
era da desconfiança. Não se trata de algo antidemocráti- governantes e os governados, de modo que estes últimos
co, senão uma nova forma de expressão do poder do cida- tenham as suas vozes efetivamente levadas em conside-
dão fora dos canais formais de ação política. Cuida-se de ração para que atitudes, decisões e explicações não sejam
uma democracia informal, diferente da representativa e fruto dos que se consideram “notáveis” para realizar jus-
da participativa. tamente algo que, até pode justificar-se pela teoria, porém
As três formas de expressão da democracia menciona- nada tem a ver com as expectativas legítimas em um Esta-
das podem ser resumidas na vigilância, na denúncia e na do de Direito. Do contrário, a democracia representativa
qualificação. Cuidam-se de formas positivas, mas nelas seguirá questionada e gerando desconfiança. Democracia
surge uma negativa, expressada pelo populismo que, ao define-se pelo que se constrói e não somente por suas for-
contrário do cidadão vigilante, denunciante e qualificador mas ou pela vida de suas estruturas. Cobremos de uma
– ou desqualificador – constitui um poder questionador legislatura extraordinária que seja discutida, além da edu-
da democracia, porém caudilhista, messiânico e autori- cação e da saúde, a luta contra a corrupção.
tário. A desconfiança nas autoridades e outros elementos É neste contexto que se revela a importância das me-
de controle popular tem aumentado graças à ausência de didas contra a corrupção com grande respaldo popular.
uma explicação razoável, porquanto muitas decisões que Que fiquem de lado as brandas penas, razão pela qual
nascem da autoridade formal não são explicadas ao cida- plena justificativa há para o acréscimo da sanção nos deli-
dão ou, se são, carregam certo cinismo, egocentrismo e tos contra a Administração Pública, dada a desproporção
autoglorificação, os quais somente aquele que emerge em flagrante diante da gravidade delitiva per se. Ora, uma uni-
mundo ficcional seria capaz de acreditar. O cidadão, mais formização das penas mínimas que se iniciam, hoje, com
que nunca, exige atitudes, decisões e explicações convin- dois anos, algo ínfimo, mesmo se considerarmos uma
centes e reais para que não reste distante e isolado. corrupção individualizada de alguns reais. O bem jurídico
A constatação da falta daquilo que esperam as pessoas merece proteção, de fato, e não teórica.
como respostas adequadas, no tempo e no espaço, gera re- Que seja dado reforço real a investigações bem reali-
púdio e segregação. De um lado, os governantes e os seus zadas, mesmo se iniciadas com técnicas que se legitimam
protegidos; de outro, os governados e desprotegidos. Em diante da astúcia com que se caracterizam condutas nes-
consequência, generalizam-se diversas formas de manifes- te campo tão vil, que levem em conta a necessidade de
tações de contrapoderes que questionam o poder formal. se dar eficácia a um falido processo constitucional-penal
Na verdade, o que desejam os cidadãos é que o poder, que, a pretexto de defender valores democráticos de mi-
os poderosos, desçam de seu pedestal. O contrapoder norias, consagra a fraude processual. Veja como é curioso
torna-se um poder de obstrução. Na medida em que exis- que no crime de corrupção de testemunhas e peritos, pre-
tam vínculos entre a contrademocracia e a democracia visto no artigo 343 do Código Penal, para fins de negar ou
participativa parece fundamental consolidar atitudes, de- deturpar a verdade, o seu autor receba pena máxima de
cisões e explicações razoáveis das autoridades por meio quatro anos, sujeita à substituição por penas restritivas de
de mecanismos de participação, tais como as audiências direito. A Convenção das Nações Unidas contra o Crime
públicas, os conselhos de desenvolvimento comunitá- Organizado Transnacional deixa evidente a necessidade

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MATÉRIA DE CAPA
da correta criminalização da obstrução da justiça me- de agente público sem qualquer justificativa razoável.
diante uso da força, ameaças, intimidações ou promessa Ora, a implementação deste tipo penal significa a cereja
ou oferta de algo para interferência na atuação da busca do bolo do eficiente combate à corrupção, seguindo-se ao
da verdade (artigo 23). estabelecimento da publicidade das declarações de rendi-
Assim, justifica-se o reforço à figura da testemunha que mento e patrimônio e das incompatibilidades no período
venha a receber um prêmio ao revelar a corrupção, algo de exercício de funções políticas ou públicas, cujos cargos
para além da delação premiada, mas que pode se mostrar em departamentos de licitação devem apenas ser ocupa-
sensivelmente eficaz, bem como a mudança do sistema dos por técnicos da carreira funcional. Não haverá, aqui,
prescricional brasileiro, que não pode abraçar uma pres- de se invocar a inversão do ônus da prova como óbice
crição calculada sobre a pena aplicada quando o processo para a implementação desse crime, uma vez que continua
ainda não transita ao Ministério Público. o Ministério Público com o dever de acusar, de produzir
A postergação do trânsito em julgado, prática comum a prova da incompatibilidade patrimonial, apesar de que
até o julgamento do Supremo Tribunal Federal que per- sobre o réu estará a tarefa da contraprova como, aliás, já
mitiu o cumprimento da pena a partir da decisão dos tri- ocorre no crime de sonegação tributária.
bunais de segundo grau, deve ser evitada mediante uma Obviamente, a punição do chamado caixa dois e a
legislação que expressamente contemple essa forma de responsabilização dos partidos políticos em atos anticor-
execução provisória da pena e limite recursos protelató- rupção são imperiosas, já que aí reside a grande brecha
rios, como reiteração de embargos de declaração débeis. legal, porquanto a corrupção colusiva (collusive corrup-
Caminhamos, com certo e incompreensível movi- tion) atual está centrada no regime político e na sempre
mento de exaltação, para a derrocada do devido proces- presente impunidade. Um sistema eficaz de justiça não
so penal, porquanto o uso inescrupuloso de instrumento pode referendar a chamada “desordem calculada”, ou
do habeas corpus tem servido para barrar o trânsito de- seja, a relação instável entre o legal e o ilegal. Verdadei-
mocrático, legal e constitucional dos recursos. O habeas ro instrumento de dominação em que tolerâncias recí-
corpus, todos sabemos, tem adentrado profundamente procas, alianças e cumplicidades, ao mesmo tempo que
nas provas e na valoração destas, tornando-se instituto comportam um movimento de constante negociação e
a serviço dos que não desejam o julgamento dentro do consentimento das forças em disputa, ameaçam o Estado
curso regular das coisas. Um instrumento constitucional até mesmo em seus fundamentos. Este passa a ser réu e
válido, mas banalizado, com grave risco à normalidade do vítima do crime organizado.
funcionamento de um sistema, aliás, dizem, constituído e Em verdade, enquanto for tratada a evasão fiscal como
consagrado para os abastados. algo pouco relevante, continuará a ideia de que o dinheiro
A absurdez chega ao ponto de instâncias prévias mani- público, apesar de ainda estar na posse do particular, é
festarem-se profundamente sobre provas e sobre a qua- disponível. Daí porque os crimes tributários deviam me-
lidade destas, mesmo que a Corte Constitucional, em vá- recer penas idênticas as dos delitos de corrupção.
rias oportunidades, já tenha consagrado sua validade. Se Todos clamam, hoje, pela reafirmação dos princípios
não conferir espaço adequado e democrático ao habeas da independência, da verdade, e da integridade com o
corpus (casos de relaxamento de prisão ilegal ou, no caso trato público, que constituem a fonte de credibilidade na
de réus soltos, na constatação, qualificada, sobre validade validade das normas, das decisões, da democracia. Espe-
de certas provas, como competência em razão da matéria, ramos daqueles que pensam o Direito uma honestidade
impedimentos, prescrição e violação inconteste de lei), intelectual, um reconhecimento que, por vezes, dói, não
em nada adiantará consagrar o cumprimento imediato de agrada e não exalta.
pena a partir das decisões de segundo grau. Se a corrupção nasce na mente dos homens é justamen-
É certo que as cortes superiores estão tentando alinha- te na mente dos homens que devemos construir as defesas
var um certo padrão para o instituto como forma de evitar da ética, muitas vezes somente possível fazendo uso de um
o que vinha acontecendo, isto é, a elasticidade desse ins- Direito Penal não teatral, um caminho pensado e difícil na
trumento constitucional com a sequência de reformas sis- construção de uma democracia lado a lado com a garantia
temáticas de decisões: perfeita fraude ao devido processo da liberdade de opinião, que se expressa em uma pluralida-
penal, dada a ausência deste e a não aplicação do Direito de de espaço e transparência. Onde o cidadão possa, de um
Penal, que passou a ser perigosamente poupado, com obs- lado, efetivamente escolher e distinguir de forma tal que as
trução da prolação de decisões judiciais de primeiro grau. posições ideológicas ou políticas ganhem o devido respei-
O estabelecimento do crime de enriquecimento ilícito, to, independentemente dos poderes político e econômico
também designado enriquecimento inexplicável, vem a e, de outro, fiscalizar e fazer cumprir a lei.
assumir protagonismo no desenvolvimento de mecanis- Liberdade de opinião e de imprensa para que esta
mos de combate ao fenômeno da corrupção. Aliás, fruto cumpra, de fato, o papel fiscalizador e vigilante que lhe
da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (ar- corresponda, mormente quando inoperantes os canais
tigo 20), instrumento legal complementar à Convenção formais de controle. O resultado da transparência de ma-
das Nações Unidas contra o Crime Organizado e Trans- nifestações, fatos e registros levará ao julgamento legíti-
nacional, significa o aumento significativo do patrimônio mo de um povo que deve ser fonte e fim do poder.
ARQUIVO PESSOAL

FAUSTO MARTIN DE SANCTIS é Desembargador Federal do TRF da 3ª Região.

44 REVISTA JURÍDICA CONSULEX - ANO XX - Nº 475 - 1º DE NOVEMBRO/2016


DIVULGAÇÃO

CAMINHO SEM VOLTA


“O combate à corrupção é um caminho sem volta, mas só vamos percorrê-lo plenamen-
te com o engajamento de toda sociedade!”

 POR ADRIANA VANDONI

O
caminho do combate à corrupção é um cami- jeitinho, do mais esperto, daquele que faz uma tramoia e
nho sem volta. O brasileiro está cansado, mas se dá bem na vida. Nenhuma lei é suficiente para transfor-
está desperto. Nenhuma instituição sobrevive mar uma cultura, se não tiver a ética como alicerce.
mais de aparências. Paulatinamente, os cida- Por mais que a legislação brasileira se modifique e tor-
dãos passam a exigir mais dos governantes, mais dos ór- ne mais severa a punição, melhore seus mecanismos de
gãos de controle e mais até de si mesmos. fiscalização, o que é bom e necessário, ainda assim não
É através de comportamentos éticos que conseguire- vai conseguir impor o comportamento ético por decre-
mos mudar uma cultura cruel que ainda está entranhada to. A mudança cultural necessária para combater a cor-
no cotidiano de todos nós: a cultura do levar vantagem, do rupção requer intensa campanha de divulgação de suas

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MATÉRIA DE CAPA
práticas, seus malefícios, as formas de evitar e combater e como uma doença pouco conhecida, ou daquelas conta-
a certeza de punição a quem a praticar. Essa publicidade, giosas, que as pessoas tendem a esconder e a não comen-
de tão importante, está prevista no pacote das dez medi- tar, por vergonha e medo. Essas atitudes fazem com que a
das apresentadas pelo Ministério Público Federal ao Con- doença se alastre.
gresso Nacional, com a chancela de mais de dois milhões Para combatê-la, precisamos estabelecer a divulga-
de brasileiros. ção de sua existência, disseminar os seus sintomas e
Recentemente, um jovem rapaz decidiu assaltar o pré- males (que no caso da corrupção, são imensuráveis) e
dio onde moro, escalando um a um os andares, até encon- as formas de prevenir e tratar. Isso tudo se traduz numa
trar uma sacada ou janela que estivesse aberta. Ele entrou palavra: conscientização. Falar, falar e falar da corrup-
em sete apartamentos durante a madrugada, inclusive no ção, até que o conhecimento de seus efeitos chegue no
meu, no 5º andar. Dei de cara com ele, já no meu quarto, mais distante rincão.
e o susto foi recíproco: ele sumiu tão de repente que, meio A medida número 1 do MPF, “Prevenção à corrupção,
sonolenta, imaginei ter visto um fantasma. Só durante o transparência e proteção à fonte de informação”, propõe
dia, quando assisti às imagens do circuito de segurança do algumas mudanças legislativas que vêm ao encontro des-
condomínio, soube que não só o fantasma era bem vivo, sa máxima de falar, falar e falar sobre a corrupção.
como eu já o conhecia. A primeira mudança legislativa é a de transparência,
O rapaz é conhecido por cometer pequenos delitos no que para o Executivo e Legislativo está contida na Lei nº
meu bairro e adjacências, ser preso e, logo em seguida, 12.527/2011. Nela, o MPF propõe o estabelecimento de re-
voltar às ruas para cometer outros pequenos delitos. É seu gras de accountability e eficiência do Ministério Público e
modo de vida. Dele não tenho ódio, mas é impossível não do Poder Judiciário, e transparência nos processos de cor-
se indignar. Sei que provavelmente o seu destino será o rupção. A medida é importantíssima para dar agilidade aos
mesmo que o de milhares de jovens brasileiros habitua- processos, através da eficiência e dos olhos dos cidadãos.
dos a cometer delitos, ano após ano: matar alguém, ser A segunda mudança legislativa proposta é a possibili-
morto por alguém, ou ambas as coisas. dade de realização de teste de integridade, ou seja, forjar
A única certeza que tenho é que toda impunidade sem- situações tentadoras para testar a honestidade de agentes
pre acaba custando muito caro. Seja para quem vive de públicos. Sensacional! O desvio de conduta é sedutor. É
pequenos delitos, ou para quem se esbalda do dinheiro muito mais fácil levar a vida cometendo desvios quando
público, a impunidade é talvez o maior mal da sociedade ninguém está observando, do que levar a vida dentro dos
brasileira. Ela revolta e constrange. preceitos de honestidade. O teste de integridade talvez
Cruzamos todos os dias com bandidos, os descamisa- seja uma forma de romper com a “sedução” do crime.
dos – como o invasor do meu prédio – e os de colarinho Já a terceira proposta de mudança, e a mais impor-
branco, e nada podemos fazer, a não ser calcular os pre- tante quando falamos em prevenção, estabelece per-
juízos. Este me custou apenas o susto e a sensação de centuais entre 10% e 20% dos recursos de publicidade
invasão; já aquele que frequenta colunas políticas, que dos entes da Administração Pública em ações e progra-
ri e abraça crianças e que estampa sua foto em urnas mas de marketing voltados a estabelecer uma cultura
eleitorais, custa uma escola pública, um posto de saúde, de intolerância à corrupção, conscientizar a população
um futuro. acerca dos danos sociais e individuais causados por ela,
Entre os dois há uma diferença crucial: a vida costu- angariar apoio público para medidas contra corrupção
ma ser muito dura com quem vive de pequenos assaltos e reportar esse crime.
e, lamentavelmente, muito fácil para quem vive de gran- Como escrevi mais acima, a corrupção ainda é como
des roubos e votos. Quanto mais ambicioso o bandido do uma doença contagiosa e desconhecida. Para combatê-la,
colarinho branco, mais as circunstâncias (ou o sistema) precisamos de campanhas de esclarecimento e conscien-
conspiram a seu favor. tização. É muito difícil levar para a população de baixo
Estado burocrático e inchado, sistema político falido, grau de escolaridade e pouco informada a complexidade
legislação complicada e cheia de brechas, Judiciário len- dos esquemas de corrupção. Logo, essa população não
to e congestionado e um sistema penal ineficiente: tudo entende que o “recurso desviado” é o dinheiro que foi
contribui para a impunidade e a perpetuação no poder roubado da escola de seu filho.
exatamente dos mais corruptos. Isso é básico! Parece simples e desnecessário, mas não
As Dez Medidas de Combate à Corrupção propostas é. Nem todo cidadão tem a compreensão de que o bura-
pelo MPF vêm justamente no sentido de atacar, senão co que estourou o pneu de seu carro naquela rodovia que
todos, pelo menos muitos desses problemas, através não tem manutenção é produto da corrupção.
de mudanças na lei e do aperfeiçoamento de sistemas Por fim, o MPF propôs sigilo da fonte, que já está pre-
de vigilância. visto no art. 5º da Constituição Federal, mas tratando es-
Dentre as medidas propostas entendo como primor- pecificamente de proteção para quem reporta casos de
dial a prevenção e a transparência, pois a corrupção é corrupção e colabora com o seu combate.

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Em resumo, com a primeira das dez medidas, con- entraves. Estamos aqui a propor mudança de cultura, de
templamos os três preceitos do que acho essencial para o comportamento e de atitudes. E isso implica, logicamen-
combate à corrupção: não oferecer; não aceitar; e reportar te, transformação no comportamento, na cultura e nas
quando se toma conhecimento. atitudes. Não no discurso.
Em meu Estado, Mato Grosso, vivemos um momento As dificuldades e resistências internas estamos enfren-
importante, pois estamos implementando políticas pú- tando uma a uma, com a paciência de Jó e a resistência de
blicas que poderiam ter saído desta medida número 1 uma mula empacada.
do MPF. Aguardamos ansiosamente a aprovação das dez me-
Através de um projeto de Lei a ser encaminhado ao Le- didas e, com elas, a destinação de recursos de publici-
gislativo, criamos o Programa de Integridade Pública, que dade, de modo a trazer luz ao trabalho que o Gabinete
prevê a implementação de programas de compliance em de Transparência e Combate à Corrupção do Estado de
todos os órgãos públicos. Mato Grosso, uma secretaria de sete pessoas, vem silen-
Como projeto piloto, a Secretaria Estadual de Trabalho ciosamente fazendo.
e Assistência Social, que nos últimos anos recebeu a visi- Não cortamos laços em inaugurações ou estouramos
ta do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime champanhe em grandes obras, todas por certo importan-
Organizado (Gaeco) algumas vezes, já assinou o termo de tes, mas somos cobrados se algum problema acontecer
adesão ao Programa de Integridade e começou a imple- após o laço cortado e o champanhe estourado. Nem por
mentá-lo. A equipe já foi capacitada e segue sob a orien- isso desanimamos, pois sabemos da importância do nos-
tação do Gabinete de Transparência e Combate à Corrup-
so trabalho para a sociedade e temos a plena convicção
ção, agora na fase de mapeamento de todos os processos,
de estarmos plantando a verdadeira transformação. Não
a fim de colocar na matriz de risco, e assim estabelecer as
se colhe pequi, fruto do cerrado, em um ou dois anos, mas
vulnerabilidades, para criar procedimentos preventivos e
depois da primeira safra, o fruto tende a ser de melhor
minimizar os riscos do cometimento de corrupção.
qualidade a cada ano.
A equipe já fez, inclusive, um teste de integridade na
Logo, plantemos pequis em todo o Brasil para comba-
sede da secretaria, onde se detectou que 5% das fatias de
ter a corrupção!
um bolo colocado à venda, sem vigilância, foram retiradas
Um pensamento atribuído ao filósofo alemão Goethe
sem que se deixasse o valor referente, na caixa ao lado.
(há quem negue que seja de sua autoria) reflete bem o
No início deste ano, inserimos em todos os contratos
momento em que estamos vivendo em Mato Grosso ao
firmados pelo governo, para aquisição de bens, contra-
criarmos uma Secretaria Estadual de Compliance, as difi-
tações de serviços e locação de bens no Poder Executivo
culdades e persistência: “Enquanto não estivermos com-
Estadual, uma cláusula anticorrupção, que prevê o rom-
promissados, haverá hesitação, a possibilidade de recuar,
pimento de qualquer contrato, sem penalidades, com
empresas que se envolverem em atos ilícitos. e sempre, a ineficácia”.
Outra medida é o canal de denúncia disponível a to- Em relação a todos os atos de iniciativa e de criação,
dos os cidadãos, garantindo anonimato e/ou sigilo para existe uma verdade elementar cuja ignorância mata inú-
a proteção tanto do colaborador quanto do denunciado, meros planos e ideias esplêndidas.
até que os órgãos competentes para realizar uma investi- No momento em que definitivamente nos compro-
gação comprovem seu envolvimento. missamos, a providência divina também se põe em mo-
Estamos trabalhando para criar um ambiente mais vimento. Todos os tipos de coisas ocorrem para nos aju-
saudável de negócios e de relacionamentos, para que as- dar, que em outras circunstâncias nunca teriam ocorrido.
sim, prevenindo a corrupção, possamos atender o nosso Todo um fluir de acontecimentos surge a nosso favor
cliente, o cidadão, com mais qualidade. como resultado da decisão, todas as formas imprevistas
Mas nem tudo são flores, já dizia o antigo bordão. Não de coincidências, encontros e ajuda material, que nem
são poucas as dificuldades que encontramos fora e dentro um homem jamais poderia ter sonhado encontrar em seu
do sistema. Resistências geradas por desconhecimento ou caminho. Qualquer coisa que você possa fazer ou sonhar,
comodismo, e também – e estas são as mais desgastantes você pode e deve começar. A coragem contém, em si mes-
–, geradas pela má-fé de oportunistas avessos a controles, ma, o poder, o gênio e a magia.
transparência e probidade. O combate à corrupção é um caminho sem volta, mas
O lado bom é que as barreiras nos impulsionam para só vamos percorrê-lo plenamente com o engajamento de
frente. Não podemos desistir do nosso país, apesar dos toda sociedade!
ARQUIVO PESSOAL

ADRIANA VANDONI é economista, especialista em Administração Pública pela EBAPE/FGV e secretária de Estado do Gabinete de Transparência e
Combate à Corrupção de Mato Grosso.

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DIVULGAÇÃO
DIREITO EMPRESARIAL

O NOVO MARCO LEGAL DAS


EMPRESAS ESTATAIS
“O “Estatuto Jurídico das Empresas Estatais” é, sem dúvida, importante contribuição
do Congresso para a melhoria do controle das empresas estatais exploradoras de
atividade econômica, devendo ser analisada como parte importante do conjunto de
medidas para a recuperação da economia.”

 POR EVANE BEIGUELMAN KRAMER e PERCIVAL JOSÉ BARIANI JUNIOR

48 REVISTA JURÍDICA CONSULEX - ANO XX - Nº 475 - 1º DE NOVEMBRO/2016


A
temática das boas práticas administrativas nas fiscalização interna e responsável pela elaboração e por
empresas estatais e a responsabilidade de seus fazer cumprir o programa de integridade da empresa.
gestores, executivos e acionistas deixou de se Todavia, a Lei nº 13.303/2016 cuidou de tratar das te-
restringir ao debate acadêmico e passou ao ce- máticas da transparência, do código de integridade e da
nário dos debates políticos, às matérias de jornais e, por- gestão de riscos, dispondo sobre as exigências mínimas
que não dizer, a ser uma questão de cidadania, como des- nos seus artigos 8º e 9º.
dobramento da conhecida Operação Lava Jato. Consta, ainda, a previsão, no art. 24, de criação de co-
Nesse contexto, foi sancionada a Lei nº 13.303, de 30 de mitê de auditoria estatutário, cujas atribuições são auxi-
junho de 2016, que dispõe sobre o “estatuto jurídico das liares ao conselho de administração e servem à coleta de
empresas estatais”, resultante dos textos dos Projetos de dados, avaliação e monitoramento dos mecanismos in-
Lei do Senado nº 555/2015 e da Câmara nº 397/205, apen- ternos de controle e integridade.
sados sob nº PL 4.918/2016. O que se pode reafirmar é a importância dos instrumen-
Esse novo diploma disciplina aspectos relacionados à tos de fiscalização, controle e ética corporativa (complian-
criação e à gestão das empresas estatais, normas de licita- ce), os quais, à toda evidência, devem estar presentes no
ção e de contrato, além das de mecanismos de integrida- âmbito das empresas estatais, pois se mostra fundamental
de, sendo certo que a maioria das disposições não inovam para o resgate pleno da moralidade e da probidade.
a ordem jurídica nacional. Quanto à indicação e predicativos dos administradores e
diretores, oportuno é ressalvar que a norma dispõe acerca de
O ESTATUTO JURÍDICO DAS ESTATAIS É, SEM critérios explícitos, contido no art. 16 do diploma legal, exi-
DÚVIDA, UMA IMPORTANTE CONTRIBUIÇÃO DO gindo experiência técnica mínima comprovada ou formação
CONGRESSO PARA MELHOR CONTROLE acadêmica compatível, o que servirá ao afastamento de indi-
Vale destacar que a lei se aplica tanto a empresas es- cações meramente políticas e suas vicissitudes partidárias.
tatais exploradoras de atividade econômicas quanto a Em relação às disposições referentes às licitações nas
prestadoras de serviços públicos, o que pode gerar muitas empresas estatais, o novo “estatuto legal” segue linha muito
controvérsias, haja vista que o regime jurídico aplicado às similar à Lei nº 12.462/2011, que instituiu o Regime Diferen-
primeiras (regime de direito privado) é distinto daquele ciado de Contratações Públicas, trazendo, por exemplo, dis-
aplicado às demais (regime de direito público). posições quanto à inversão de fases, à fase recursal única, à
Em que pese o fato de as propostas legislativas terem etapa de negociação de preços, à possibilidade de remune-
como origem a Petrobras, a norma sancionada regu- ração variável com base no desempenho do contratado e ao
lamentou, após 17 anos de vigência, o art. 173, § 1º, da sigilo temporário do valor do contrato a ser celebrado.
Constituição Federal, acrescido pela Emenda Constitu- A inovação legislativa é a criação da figura da contrata-
cional nº 19, de 1998, bem como disciplinou o regime para ção “semi-integrada”, que consiste em modalidade licitató-
as empresas estatais exploradoras de atividade econômi- ria similar à contratação integrada, mas na qual a licitação
ca, empresas prestadoras de serviço público e as relações para obras e serviços de engenharia é orientada pelo projeto
jurídicas destas entidades com terceiros, destacando básico elaborado pela empresa estatal, de forma a aprovei-
importantes alterações no regime de licitações e contra- tar sua expertise e seu know-how em seu ramo de atividade.
tações, além de dispositivos voltados a aperfeiçoar os me- Disposição relevante consta do art. 38, que amplia,
canismos de controle coorporativos. significativamente, o rol de pessoas físicas ou jurídicas
Com relação aos mecanismos de controle corporati- impedidas de participar de licitações ou de contratar com
vo, a Lei nº 13.303/2016 prevê (i) controle popular me- empresas estatais, estendendo a vedação a qualquer em-
diante previsão expressa contida no artigo 87, §§ 1º e 2º, presa que tenha sócio, administrador ou diretor que já te-
de representação por irregularidade em edital, impugna- nha exercido esses mesmos cargos em empresas suspen-
ção ou acesso aos Tribunais de Contas; (ii) fiscalizações sas, impedidas ou declaradas inidôneas, no período dos
patrimonial, contábil, financeira e operacional, interna fatos que deram ensejo às sanções.
e externa permanente, mediante a disponibilização de Outra inovação salutar diz respeito à obrigatoriedade
banco de dados, relatórios periódicos e auditorias perió- de indicação expressa, no edital e no contrato, da matriz
dicas aos órgãos de controle; (iii) critérios técnicos para de risco do projeto, o que confere maior segurança aos li-
escolha de administradores; (iv) constituição de conse- citantes e aos investidores, pois as responsabilidades de
lho de administração, com membros independentes, cada parte estarão definidas de antemão, viabilizando o
sem vínculos com a empresa, conselho fiscal e comitê de oferecimento de uma proposta mais adequada e evitando
auditoria estatutário, (v) previsão de imputação de res- contratempos durante a execução do contrato.
ponsabilidades civil, criminal e administrativa aos con- Em síntese, o “Estatuto Jurídico das Empresas Estatais”
selheiros e administradores pelos danos que causarem é, sem dúvida, importante contribuição do Congresso para
às empresas. a melhoria do controle das empresas estatais exploradoras
Nota-se, é verdade, a falta da previsão obrigatória de de atividade econômica, devendo ser analisada como parte
organismo de compliance autônomo em cada uma das importante do conjunto de medidas para a recuperação da
estatais, essencial ao bom desempenho das funções de economia.
ARQUIVO PESSOAL

ARQUIVO PESSOAL

EVANE BEIGUELMAN KRAMER é advogada do escritório Dal PERCIVAL JOSÉ BARIANI JUNIOR é advogado do escritório Dal
Pozzo, em São Paulo. Pozzo, em São Paulo.

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DIVULGAÇÃO
TENDÊNCIAS

O QUE FOUCAULT TEM A VER COM


A CIÊNCIA ATUARIAL E COM O
DIREITO PENAL DO INIMIGO?

“Foucault não poderia estar mais certo, e nas suas análises, nos idos do século passado,
foi antecipado todo esse direcionamento político criminal dado hoje em diversas partes
do mundo, a partir de vários setores, em diferentes perspectivas e formas de abordagem:
a utilização dos meios de guerra para o controle social. Nós, na qualidade de advoga-
dos criminalistas, entrincheiramos a última fronteira na linha de contenção do avanço
punitivista, e temos que estar vigilantes e atentos a essas tendências que estão sendo
provocadas a partir da política criminal maximalista. O momento é de atenção total e de
união de esforços em prol da minimização da irracionalidade desse sistema!”

 POR GABRIEL BULHÕES

I
nicialmente, cumpre-me ressaltar que as reflexões Nos Estados Unidos da América (EUA), hoje, existe uma
que se seguem foram originadas a partir das discus- forte tendência nas técnicas e métodos estatísticos da Ciên-
sões e painéis propiciados pelo recente VII Encontro cia Atuarial para realizar uma modificação – nas palavras do
Nacional dos Advogados Criminalistas, promovido professor Juarez – do Estado da Administração do Crime.
pela Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas O governo vem investindo cada vez mais em pesquisas e
(ABRACRIM) na PUC-PR, na cidade de Curitiba, nos dias agências que envolvam o estudo da prognose criminal.
30 de junho e 1º de julho de 2016. Todas as palestras fo- Nessa perspectiva, a política criminal toma uma postu-
ram inspiradoras, mas em especial a do professor Juarez ra prospectiva, através dos prognósticos estatísticos que
Cirino dos Santos me instigou a escrever esta conclusão segmentam a população em grupos (de maior ou menor
tirada a partir de sua fala. risco, maior ou menor propensão à criminalidade). Esse
O evento, sem dúvida, foi providencial e veio a calhar tipo de política, portanto, é uma nova tentativa de objeti-
em um momento de enorme retrocesso nas garantias vização do ser humano e do fenômeno do crime (comple-
processuais penais que chegam a inviabilizar, de certa xos e individualizados por essência).
forma e em certo ponto, o próprio exercício da advoca- É o retorno, com uma nova roupagem, da criminolo-
cia criminal. gia positivista, determinista, na qual as individualidades
Então, entrando no tema de como podemos relacionar e, portanto, os ofícios da advocacia, da Psicologia, da As-
o pensamento de Michel Foucault a utilização das estatís- sistência e do Serviço Social etc., perdem seu lugar para
ticas e prognósticos da Ciência Atuarial e o arcabouço teó- o único saber válido: o da predição da criminalidade por
rico-dogmático (de cunho, na verdade, político-criminal) meio da estatística atuarial.
de Günther Jakobs no Direito Penal do Inimigo? Existem vários meios de utilização da Ciência Atua-
Pois bem. Vamos por partes. rial em termos de política criminal que estão sendo tes-

50 REVISTA JURÍDICA CONSULEX - ANO XX - Nº 475 - 1º DE NOVEMBRO/2016


maior ou menor chance de se enquadrar como cliente do
nosso sistema penal. Indisfarçável, pois, a um olhar su-
perficial e rápido do perfil da população carcerária brasi-
tados pelo governo dos EUA, mas um exemplo usado leira, a política de encarceramento em massa e criminali-
pelo professor Juarez chamou atenção, a saber: listadas zação da pobreza existe no nosso país.
nove características gerais, se o sujeito reunir quatro de- A rotina militarizada da segurança pública opera no
las será considerado de risco para o Estado. A partir daí, cenário brasileiro a lógica de guerra pregada pelo Direito
como se sabe, retorna-se ao conceito de periculosidade Penal do Inimigo; e, portanto, para conhecer nosso ini-
(ou perigosidade), abandonando a perspectiva dogmá- migo basta ver onde são focados os esforços de guerra do
tica da teoria analítica do delito amparada no conceito Estado brasileiro.
de culpabilidade. E, por fim, onde podemos relacionar o pensamento
E o que isso tudo tem a ver com o Direito Penal do Ini- do filósofo francês Michel Foucault nisso tudo? O pro-
migo? A teoria de Jakobs foi formulada na perspectiva de fessor foi titular da cadeira de História dos sistemas de
dividir nossa sociedade, ou qualquer outra população na pensamento, de 1970 a 1984, na Universidade de Paris, e
qual seja aplicada, em dois grandes grupos: os cidadãos e boa parte dos seus cursos (que duravam 26 horas de aula
os inimigos. Para o cidadão, quando da infração da nor- por ano, para exposição das pesquisas originais desen-
mal penal, deve-se aplicar o Direito Penal com o resguar- volvidas ao longo do ano anterior1) foram transcritos e
do de todas as garantias, na perspectiva corretiva – tendo traduzidos para o português do Brasil pela Editora Mar-
em vista que o indivíduo é ressocializável. tins Fontes.
Por outro lado, para os classificados como inimigos, Algumas aulas de Foucault no Collège de France (1975-
verdadeiros outsiders, deve-se aplicar um Processo Penal 1976) deram origem ao livro Em Defesa da Sociedade2.
puramente inquisitivo, com supressão de garantias pro- Nesse momento do desenvolvimento do seu pensamen-
cessuais e materiais, tudo em vista da segurança do grupo to, Foucault se ocupava das relações de poder na socieda-
social, pois o inimigo representa uma ameaça insuperável de, a partir do uso do ius puniendi do Estado. Nessa obra,
à sociedade. há a inversão do teorema de Clausewitz, o qual dizia que
O Direito Penal do Inimigo, pois, é a transmutação da “a guerra é a continuação da política por outros meios”,
lógica da guerra para o cenário interno dos países. Altera- enquanto o pensador francês levantava a tese de que “a
se o pano de fundo, para se importar a lógica do tratamen- política é a continuação da guerra por outros meios”.
to diferenciado do inimigo, que é tido como um corpo es- Foucault não poderia estar mais certo, e nas suas aná-
tranho que representa uma ameaça e, portanto, deve ser lises, nos idos do século passado, foi antecipado todo esse
eliminado/neutralizado/aniquilado. direcionamento político criminal dado hoje em diversas
Nós já vivemos essa lógica na América Latina hoje, partes do mundo, a partir de vários setores, em diferen-
notadamente em todo o território brasileiro. Existe em tes perspectivas e formas de abordagem: a utilização dos
plena vigência uma política de neutralização do “inimi- meios de guerra para o controle social.
go”, construído historicamente e amparado pela forte Nós, na qualidade de advogados criminalistas, entrin-
desigualdade social que nos assola, que é um estereóti- cheiramos a última fronteira na linha de contenção do
po construído com arquétipos múltiplos e sobrepostos, o avanço punitivista, e temos que estar vigilantes e atentos
qual representa toda uma parcela da nossa sociedade. a essas tendências que estão sendo provocadas a partir da
Preto. Pobre. Periférico. Presidiário. Portador de AIDS, política criminal maximalista. O momento é de atenção
deficiência ou qualquer outra moléstia. Analfabeto. De- total e de união de esforços em prol da minimização da
sempregado. São múltiplos os rótulos que determinam a irracionalidade desse sistema!

NOTAS
1 FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva. Ivonne C. Bennedetti (Trad.). São Paulo: Martins Fontes, 2015.
2 FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. Maria Ermantina Galvão (Trad.) São Paulo: Martins Fontes, 2005.
ARQUIVO PESSOAL

GABRIEL BULHÕES é professor na UNI-RN Centro Universitário do Rio Grande do Norte

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ENFOQUE

ERA SÓ O QUE NOS FALTAVA:


O MINISTÉRIO PÚBLICO CONSPIRANDO
CONTRA A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA –
O CASO BAIANO
“A audiência de custódia está prevista em pactos e tratados internacionais assinados
pelo Brasil, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção In-
teramericana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica, já
utilizada em muitos países da América Latina e na Europa, onde a estrutura responsá-
vel pelas audiências de custódia recebe o nome de “Juizados de Garantias”. Na verdade,
nada mais é do que uma audiência de apresentação.”

 POR RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA

A
Primeira Câmara do Tribunal de Justiça do Es- A coisa não seria tão absurda (e, como dizia Manga-
tado da Bahia concedeu uma ordem de habeas beira, na Bahia sempre haverá um precedente para ab-
corpus (Processo nº 0011177-87.2016.8.05.0000, surdos), se não estivéssemos tratando de uma exigência
originário da Comarca de Feira de Santana), imposta pelo Pacto de São José da Costa Rica (a Conven-
atendendo a um pedido do paciente que alegava, dentre ção Americana sobre Direitos Humanos), pelo Supremo
outras ilegalidades, a não realização, oportuno tempore, Tribunal Federal e pelo Conselho Nacional de Justiça. E,
da audiência de custódia. Ressalte-se que o parecer do pior: ainda trabalham com a ideia de nulidade relativa no
Ministério Público na segunda instância foi favorável à Processo Penal.
concessão do writ, exatamente em virtude da ausência da Então, ficamos assim: nulidade absoluta, nulidade re-
referida audiência de apresentação. lativa, mera irregularidade e... dane-se o Processo Penal e
Pois bem. viva a Teoria Geral do Processo! Aliás, sobre nulidades no
Atendendo a uma solicitação da 19ª Promotoria de Direito Processual Penal, seria interessante a leitura de al-
Justiça da Comarca de Feira de Santana, a Procuradoria guma doutrina específica sobre a matéria, especialmente
Geral de Justiça Adjunta, por meio de sua Coordenado- Binder, Pessoa e Maier, para ficarmos entre os latinoame-
ria Especializada em Recursos, instaurou um esdrúxulo ricanos (“El inclupimiento de las formas procesuales”, “La
“Procedimento de Acompanhamento do Processo” e de- nulidad en el Proceso Penal” e “Función normativa de la
cidiu interpor um Recurso Especial contra a decisão da nulidad” – respectivamente).
Câmara, sob o fundamento (dentre outros), de “que a não Vejam que a audiência de custódia foi uma iniciativa
realização da audiência de custódia vem sendo conside- do Conselho Nacional de Justiça, exatamente quando, no
rada nulidade relativa desde que respeitados os direitos dia 6 de fevereiro de 2015, lançou um projeto para garantir
e garantias previstos na Constituição Federal e no Código que presos em flagrante fossem apresentados a um juiz de
de Processo Penal”. Direito, em 24 horas, no máximo. Na verdade, o projeto
Vejam a esquizofrenia a que chegou o Ministério Pú- teve seu termo de abertura iniciado no dia 15 de janeiro,
blico brasileiro (com todo respeito aos esquizofrênicos): após ser aprovado pelo então presidente do Supremo Tri-
impetra-se um habeas corpus em razão da não realização bunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, Ministro
da audiência de custódia (fato inconteste), o procurador Ricardo Lewandowski e tinha como objetivo garantir que,
de Justiça oficiante junto à Câmara Criminal exara um em até 24 horas, o preso fosse apresentado e entrevistado
parecer pela concessão da ordem, o Tribunal de Justiça pelo magistrado, em uma audiência em que fossem ouvi-
acolhe o pronunciamento do Ministério Público e (pas- das também as manifestações do Ministério Público, da
men!) a Procuradoria Geral de Justiça Adjunta recorre da Defensoria Pública ou do advogado do preso. Durante a
decisão, atendendo ao pedido do (indignado) promotor audiência, será analisada a prisão sob os aspectos da le-
de Justiça de primeiro grau. galidade, da necessidade e adequação da continuidade

52 REVISTA JURÍDICA CONSULEX - ANO XX - Nº 475 - 1º DE NOVEMBRO/2016


da prisão ou da eventual concessão de liberdade, com ou § 3º A oitiva a que se refere parágrafo anterior será
sem a imposição de outras medidas cautelares, além de registrada em autos apartados, não poderá ser utilizada como
eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre meio de prova contra o depoente e versará, exclusivamente,
outras irregularidades. sobre a legalidade e necessidade da prisão; a prevenção da
Ademais, a audiência de custódia está prevista em pac- ocorrência de tortura ou de maus-tratos; e os direitos assegu-
tos e tratados internacionais assinados pelo Brasil, como rados ao preso e ao acusado.
o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Con- § 4º A apresentação do preso em juízo deverá ser acom-
venção Interamericana de Direitos Humanos, conhecida panhada do auto de prisão em flagrante e da nota de culpa
como Pacto de San Jose da Costa Rica, já utilizada em que lhe foi entregue, mediante recibo, assinada pela autorida-
muitos países da América Latina e na Europa, onde a es- de policial, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os
trutura responsável pelas audiências de custódia recebe o nomes das testemunhas.
nome de “Juizados de Garantias”. Na verdade, nada mais § 5º A oitiva do preso em juízo sempre se dará na presença
é do que uma audiência de apresentação. de seu advogado, ou, se não o tiver ou não o indicar, na de
A propósito, vejamos o que nos impõe, como norma Defensor Público, e na do membro do Ministério Público, que
supralegal, o art. 7º, 5, do Pacto de São Jose da Costa Rica poderão inquirir o preso sobre os temas previstos no parágra-
ou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos: fo 3º, bem como se manifestar previamente à decisão judicial
de que trata o art. 310 deste Código.
Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida,
sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade au- Não esqueçamos, outrossim, do Projeto de Lei nº
torizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de 8.045/2010, em tramitação na Câmara dos Deputados,
ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, que prevê a figura do Juiz das Garantias. De acordo com
sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode o texto projetado seria ele o “responsável pelo contro-
ser condicionada a garantias que assegurem o seu compare-
le da legalidade da investigação criminal e pela salva-
cimento em juízo.
guarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido
reservada à autorização prévia do Poder Judiciário”,
Igualmente, o art. 9º, 3 do Pacto Internacional sobre
competindo-lhe:
Direitos Civis e Políticos de Nova York dispõe que:
I – receber a comunicação imediata da prisão, nos termos
Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de in-
do inciso LXII do art. 5º da Constituição da República Federa-
fração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença
tiva do Brasil;
do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer fun-
II – receber o auto da prisão em flagrante, para efeito do
ções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável
disposto no art. 553;
ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas
III – zelar pela observância dos direitos do preso, podendo
que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral,
determinar que este seja conduzido a sua presença;
mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que asse-
IV – ser informado da abertura de qualquer inquérito po-
gurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência,
licial;
a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execu-
ção da sentença. V – decidir sobre o pedido de prisão provisória ou outra
medida cautelar;
Tais normas internacionais estão incorporadas em VI – prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar,
nosso ordenamento jurídico desde 1992. bem como substituí-las ou revogá-las;
Aliás, a propósito, tramita no Congresso o Projeto de VII – decidir sobre o pedido de produção antecipada de
Lei do Senado nº. 554/2011, dando a seguinte redação ao provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o
art. 306 do Código de Processo Penal: contraditório e a ampla defesa;
VIII – prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o
[...] § 1º No prazo máximo de vinte e quatro horas após investigado preso, em vista das razões apresentadas pelo de-
a prisão em flagrante, o preso será conduzido à presença legado de polícia e observado o disposto no parágrafo único
do juiz para ser ouvido, com vistas às medidas previstas no deste artigo;
art. 310 e para que se verifique se estão sendo respeitados IX – determinar o trancamento do inquérito policial quan-
seus direitos fundamentais, devendo a autoridade judicial do não houver fundamento razoável para sua instauração ou
tomar as medidas cabíveis para preservá-los e para apurar prosseguimento;
eventual violação. X – requisitar documentos, laudos e informações ao dele-
§ 2º Na audiência de custódia de que trata o parágrafo 1º, gado de polícia sobre o andamento da investigação;
o Juiz ouvirá o Ministério Público, que poderá, caso entenda XI – decidir sobre os pedidos de:a) interceptação telefôni-
necessária, requerer a prisão preventiva ou outra medida cau- ca, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e
telar alternativa à prisão, em seguida ouvirá o preso e, após telemática ou de outras formas de comunicação; b) quebra
manifestação da defesa técnica, decidirá fundamentadamen- dos sigilos fiscal, bancário e telefônico; c) busca e apreensão
te, nos termos art. 310. domiciliar; d) acesso a informações sigilosas; e) outros meios

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ENFOQUE

de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais Nacional com o objetivo de aperfeiçoar a questão. Segun-
do investigado; do Silveira, as audiências de custódia vão ao encontro das
XII – julgar o habeas corpus impetrado antes do ofereci- convenções internacionais, como a Corte Interamericana
mento da denúncia; de Direitos Humanos, que ressalta que o controle judicial
XIII – determinar a realização de exame médico de sanida- imediato é meio para evitar prisões arbitrárias e ilegais.
de mental, nos termos do art. 447, § 1º; Segundo o relatório do citado conselheiro:
XIV – arquivar o inquérito policial;
XV – outras matérias inerentes às atribuições definidas no Nessa linha, o artigo 306 do Código do Processo Penal, que
caput deste artigo. estabelece apenas a imediata comunicação ao juiz de que al-
guém foi detido, bem como a posterior remessa do auto de
O Brasil tem hoje cerca de 600 mil presos, dos quais prisão em flagrante para homologação ou relaxamento, não
40% são presos provisórios – o segundo país que mais en- é suficiente para dar conta do nível de exigência estabelecido
carcera cidadãos em todo o mundo e, segundo o ministro nas convenções internacionais.
Lewandowski:
No que tange ao argumento de que os presos poderiam
Não existem estabelecimentos adequados e nem sufi- ser constrangidos a negar maus-tratos e violências, Silvei-
cientes para abrigar essa superpopulação de presos, que ra foi categórico em afirmar que o projeto é um:
cresce em escala geométrica, razão pela qual as audiências
de custódia podem reduzir o número de detentos encar- [...] marco no sentido da evolução civilizatória do processo
cerados, o que, no seu entender, contribui para resolver o penal brasileiro e humanização do sistema jurídico-penal. Ao
problema do sistema penitenciário brasileiro, que é defi- contrário do mencionado pelo Requerente no ponto 7 da pe-
ciente, anacrônico, gerador de violência e de violação de tição inicial, a referida audiência tem, sim, o condão de inibir
direitos humanos. [...] Algumas unidades prisionais podem a prática de atos de tortura, tratamento cruel, desumano e
ser comparadas a “masmorras medievais, verdadeiras esco- degradante.
las do crime.”
Outras questões apontadas pela Anamages são as difi-
Portanto, há lei, aliás “supra-lei” a autorizar a audiên- culdades logísticas e geográficas que podem ocorrer em
cia de custódia, a fim de assegurar a integridade física do comarcas do interior de cada estado e da região Norte do
presos em flagrante, ora “flagrantemente” ignorada, in- país. O relator refutou tal argumentação, alegando que o
clusive pelo Ministério Público, órgão responsável pelo projeto está em fase piloto. Silveira afirmou ainda que:
controle externo da atividade policial. Ou não?
Combatendo as injustificáveis resistências, o Conse- A adoção do projeto é progressiva e escalonada, e leva em
lho Nacional de Justiça arquivou, no dia 5 de maio de consideração a necessidade de disponibilização de recursos
2015, manifestação da Associação Nacional dos Magis- humanos e estrutura física necessária para sua implantação.
trados Estaduais (Anamages) que criticava a implantação
das audiências de custódia. A entidade apontava várias Também vejamos que, na sessão realizada no dia 9 de
dificuldades para efetivar do projeto. Para a associação setembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal concedeu,
de magistrados, a iniciativa pode afetar a segurança pú- parcialmente, cautelar solicitada na Arguição de Descum-
blica, sob a alegação que a medida iria “retirar policiais primento de Preceito Fundamental nº 347, que pedia pro-
das ruas e delegacias”. Também iria aumentar a judicia- vidências para a crise prisional do país, a fim de determi-
lização e encargos administrativos dos juízes e o número nar aos juízes e tribunais que passem a realizar audiências
de reclamações disciplinares advindas dos advogados de custódia, no prazo máximo de 90 dias, de modo a viabi-
contra juízes que decidirem manter a custódia, além de lizar o comparecimento do preso perante a autoridade ju-
fazer com que o preso se sinta forçado a negar agressões diciária em até 24 horas contadas do momento da prisão.
sofridas entre o momento da detenção e sua apresenta- Enfim, o que esperar até mesmo do Ministério Público
ção ao juiz. O conselheiro Fabiano Silveira apontou que brasileiro em tempos de Operação Lava Jato, de entrevis-
o projeto tem o condão de inibir a prática de tortura e o tas coletivas com Power Point, com citações estrambóti-
tratamento cruel aos presos. cas como uma coautoria insólita entre “Marx e Hegel”,
O conselheiro Fabiano Silveira, relator do caso, afir- com delações premiadas contra legem, etc., etc. Não é
mou que as argumentações da Anamages não prosperam. mesmo de se estranhar que o Ministério Público sabote
Para ele, o atual sistema – sem as audiências de custódia covardemente a audiência de custódia, única possibili-
– não assegura a adequada proteção aos presos, o que é dade de tentar evitar prisões ilegais e a tortura. Estamos,
mostrado nos projetos de lei que tramitam no Congresso realmente, em maus lençóis. 
ARQUIVO PESSOAL

RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA é procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e professor de Direito Processual Penal da Faculdade
de Direito da Universidade Salvador - UNIFACS.

54 REVISTA JURÍDICA CONSULEX - ANO XX - Nº 475 - 1º DE NOVEMBRO/2016


DIVULGAÇÃO

GESTÃO EMPRESARIAL
ESTILOS DE LIDERANÇA
 POR EDUARDO SEHNEM FERRO

T
oda organização depende de um controle e de líder consultivo: é o tipo de líder que se preocupa em ou-
métodos de gestão que permita ter certo tipo de vir atentamente a opinião dos membros da equipe e mantém
influência sobre seus colaboradores. Para isto, as um canal de comunicação sempre aberto com a equipe. Em
empresas utilizam-se de seus gerentes e gestores, geral, este tipo de líder aprimora a sua capacidade de lideran-
como meio para manter o controle e influenciar os cola- ça e testa diversos modelos de liderança e ação, a fim de se
boradores a agirem de tal forma que a empresa atinja seus identificar melhor com um modelo de gestão que seja com-
objetivos e suas metas. patível com o seu perfil.
Liderar envolve muito mais do que mandar e se fazer
líder participativo: é o líder democrático, o que se preo-
obedecer. Daí é que entendemos que nem todo líder é
cupa em atender aos anseios de toda a equipe, buscando um
gestor e nem todo gestor é líder. De qualquer forma, po-
ponto de equilíbrio entre os objetivos da empresa e os objeti-
demos citar três tipos básicos de liderança que encontra-
vos pessoais de cada colaborador.
mos na atualidade:

líder autoritário: é aquele se impõe pelo poder, pela autoridade Somos seres humanos em constante mudança e cres-
que tem devido à sua função ou cargo. Nem todo líder autoritá- cimento, nossa capacidade de liderar e conduzir pesso-
rio é um ser tirano, existem muitos líderes autoritários carismá- as se desenvolve na mesma medida em que aprendemos
ticos. Em geral, este tipo de líder é comprometido com as metas a nos conhecer melhor e a entender os outros que estão
e os resultados da empresa, esquecendo, muitas vezes, do fator ao nosso lado. Sendo assim, o bom líder é aquele que
humano ao traçar seu plano de ação, desconsiderando algumas busca o autoconhecimento e que demonstra equilíbrio
das necessidades mais básicas de seus colaboradores. e sabedoria.
ARQUIVO PESSOAL

EDUARDO SEHNEM FERRO é controller do escritório Giovani Duarte Oliveira Advogados Associados. Contador inscrito no CRC SC-028265/O-7, Pós-
graduado em Docência do Ensino Superior.

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DIVULGAÇÃO
OBSERVATÓRIO JURÍDICO

DA INCIDÊNCIA DOS JUROS


DE MORA E DA CORREÇÃO
MONETÁRIA NA MULTA DIÁRIA
ARBITRADA PELO JUÍZO
“É perfeitamente cabível a incidência dos juros moratórios na multa di-
ária, não havendo que se falar em bis in idem, pois ambos os institutos
possuem natureza jurídica e características distintas. Se a multa diária é
um meio coercitivo que visa obrigar uma determinada parte ao cumpri-
mento de uma medida judicial, os juros moratórios constituem a punição
pelo retardamento do cumprimento efetivo e escorreito da determina-
ção judicial. A multa diária tem como característica própria a intimida-
ção, e não a indenização, e os juros moratórios possuem características
distintas daquela, eis que visa uma indenização e não a intimidação.”

 POR LUIZ FELIPE DE OLIVEIRA RODRIGUES

A
multa diária como medida coercitiva tem a fina-
lidade única e exclusiva de impelir determinada
parte ao cumprimento voluntário de uma obri-
gação, incutindo no seu psicológico a satisfação
de formas célere, efetiva e escorreita da determinação judi-
cial imposta no processo. Em outras palavras, a multa diá-
ria visa obrigar determinada parte do processo ao efetivo
cumprimento de uma obrigação de fazer ou de não fazer,
afastando qualquer pensamento do “devo ou não devo
cumprir”, ou ainda “não cumprirei a decisão, já que não
há qualquer responsabilidade pela minha procrastinação”.
Nessa ótica, verifica-se que o valor atribuído à multa
diária são de extremas importância e relevância, pois ao
mesmo tempo que a cifra atribuída pelo juízo deve pres-
sionar o obrigado ao cumprimento da obrigação o mais
rápido possível, deve também ponderar para que o valor
não enriqueça a parte adversa indevidamente, onerando
em demasia o obrigado (TJPE, 5ª Câmara Cível, Rel. Age-
nor Ferreira de Lima Filho, j. 29 de jul. 2015).
Não por outro motivo, o valor atribuído à multa diária
poderá ser revisto, seja para haver a majoração quando se
tornar insuficiente, seja para haver a diminuição quando
se tornar excessivo. Inclusive, conforme o entendimento
jurisprudencial hodierno, a aplicação da multa diária não
faz coisa julgada material, podendo, assim, ser revista a
qualquer tempo, até mesmo após escoado o lapso tempo-
ral do remédio jurídico extremo, isto é, a ação rescisória.
Com efeito, de acordo com a jurisprudência maciça
dos tribunais pátrios, a fim de evitar o enriquecimento ilí-

56 REVISTA JURÍDICA CONSULEX - ANO XX - Nº 475 - 1º DE NOVEMBRO/2016


cito da parte contrária, não raras vezes a multa diária não a parte de que o não cumprimento da decisão gera efeitos
poderá superar o valor da obrigação principal, ou seja, o adversos ao seu interesse, motiva o obrigado a cumprir o
valor inerente ao da dívida em discussão. Se é certo que mais rápido possível a decisão do juízo. Desta feita, infe-
a multa diária é apenas, e tão somente, uma medida co- re-se que os institutos jurídicos supracitados são medidas
ercitiva, impelindo uma parte ao cumprimento de uma coercitivas, ainda que indiretamente.
determinada obrigação, seja ela de fazer ou de não fazer, A não incidência dos institutos “juros moratórios” ou
o valor atribuído à questão não poderá superar o da dívida de “correção monetária”, quando da liquidação da medi-
objeto da celeuma, sob pena de o interesse jurisdicional da coercitiva delineada pelo juízo no transcorrer da ação
principal passar a ser o valor da multa diária, tornando de obrigação de fazer, traz prejuízos efetivos ao credor,
o da dívida secundário (STJ, 4ª Turma, Relª. Minª. Maria que terá que suportar os prejuízos pela procrastinação
Isabel Gallotti, AResp. 811.418/PR, j. 02 de fev. de 2016). no cumprimento da decisão judicial pelo obrigado. Além
Nessa senda, é certo que a multa diária é um dos meios de trazer prejuízos efetivos ao credor, certo é que a não
coercitivos à disposição do juiz mais efetivo, pois atua prin- incidência dos referidos institutos na multa diária gera
cipalmente na condição econômico-financeira do obriga- uma incongruência, uma vez que, conforme é cediço, a
do, fazendo com que este cumpra a medida a fim de evitar incidência de juros moratórios ou de correção monetária
um maior dispêndio de capital. Deste modo, fica fácil per- é cabível em todas as decisões judiciais.
ceber que, diante da sua força coercitiva, a multa diária é É importante esta digressão processual, pois o Superior
uma das medidas mais utilizadas na prática forense. Tribunal de Justiça tem entendimento assente de que é
Todavia, malgrado a aplicação e efetivação dessa me- possível a incidência de correção monetária na multa di-
dida coercitiva, verifica-se que há aqueles que não cum- ária, não havendo qualquer impossibilidade na sua apli-
prem a obrigação, restando desidioso o trato com a deci- cação. No que tange aos juros moratórios, verifica-se que
são judicial, prolongando por um período considerável de o entendimento da Corte é no sentido da impossibilidade
tempo o cumprimento ou, o que é pior, não cumprindo da referida cumulação. Entende a referida Corte que se
a obrigação, o que acarreta muitas vezes a inocuidade da houvesse a possibilidade de aplicação dos juros morató-
aplicação da medida. Ressalte-se que é comum as grandes rios na multa diária haveria dupla penalização pelo re-
empresas não cumprirem a obrigação imposta pelo juízo, tardo no cumprimento da obrigação, configurando típica
mesmo quando atribuída uma multa diária, pois o valor relação de bis in idem, o que é inadmissível no ordena-
máximo que a medida pode alcançar (o valor da dívida) é mento jurídico pátrio (STJ, 3ª Turma, Relª. Minª. Nancy
pequeno se cotejado com o poderio econômico-financei- Andrighi, Resp. 1.327.199/RJ, j. 22 de abril de 2014).
ro de empresas devedoras. Em que pese o argumento em sentido contrário, ve-
Ora, se é certo que a medida imposta pelo juízo visa rifica-se ser plenamente possível a aplicação dos juros
satisfazer uma obrigação da forma mais célere, efetiva ou moratórios na multa diária. A multa diária é a medida co-
escorreita possível, caso não haja o atingimento desta fi- ercitiva que visa impelir a parte ao cumprimento de uma
nalidade, a multa diária torna-se inócua. obrigação, superando qualquer sentimento procrastina-
A discussão se torna relevante se considerarmos que tório do obrigado, sem qualquer caráter indenizatório.
uma das formas de o credor não sair prejudicado, ou mitigar Por sua vez, os juros moratórios constituem justamente a
os prejuízos causados pela conduta desidiosa no trato com punição pelo retardo no cumprimento efetivo da determi-
a questão judicial, é justamente os encargos oriundos de nação judicial, tendo características indenizatórias.
toda relação processual, que visam especificamente punir a Desse modo, é perfeitamente cabível a incidência dos
procrastinação de uma parte no cumprimento do comando juros moratórios na multa diária, não havendo que se fa-
judicial e, além disso, corrigir o valor do dinheiro, fazendo lar em bis in idem, pois ambos os institutos possuem na-
com que a parte contrária não saia ainda mais prejudicada. tureza jurídica e características distintas. Se a multa diária
Nesse ínterim, por juros moratórios entende-se que é um meio coercitivo que visa obrigar uma determinada
são aqueles que decorrem da imperfeição no cumprimen- parte ao cumprimento de uma medida judicial, os juros
to da obrigação, imperfeição esta no que tange ao tempo, moratórios constituem a punição pelo retardamento do
lugar ou forma determinado, independentemente da pro- cumprimento efetivo e escorreito da determinação judi-
va do efetivo dano sofrido pela parte contrária, pois este cial. A multa diária tem como característica própria a inti-
torna-se presumível. Por sua vez, a correção monetária midação, e não a indenização, e os juros moratórios pos-
visa manter o “valor” do dinheiro pela variação que reflete suem características distintas daquela, eis que visa uma
a inflação do período pelos preços de mercado (SCAVONE indenização e não a intimidação. Logo, é fácil perceber
JUNIOR, 2011, p.131 e 393). que ambos os institutos, apesar da semelhança, possuem
Logo, é fácil perceber a agremiação dos institutos “ju- características e finalidades distintas.
ros moratórios” e “correção monetária” mitigarem o pre- Isto posto, conclui-se ser perfeitamente cabível a inci-
juízo causado pelo não cumprimento efetivo de uma de- dência dos juros moratórios na medida coercitiva da mul-
terminada decisão judicial. Pelo contrário, estando ciente ta diária, não configurando bis in idem a sua aplicação.
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LUIZ FELIPE DE OLIVEIRA RODRIGUES é advogado, bacharel em Direito pela Faculdade Maringá (PR), pós-graduando em Direito Civil e Processo
Civil pelo Instituto Paranaense de Ensino (PR).

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CONTEXTO

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A PERTINÊNCIA DO


REGIME ESPECIAL DE REGULARIZAÇÃO CAMBIAL
E TRIBUTÁRIA ( RERCT )
 POR ANDRÉ GOMES e GIÁCOMO PARO

E
m um país onde as desigualdades sociais são evidentes A OCDE reconhece que a adoção de um programa que per-
é natural que a primeira reação à instituição de um pro- mita aos contribuintes apresentarem voluntariamente informa-
grama de anistia destinado àqueles contribuintes que ções quanto aos bens detidos no exterior não declarados, inse-
mantêm recursos não declarados no exterior seja bas- rido no contexto da implementação de medidas de compliance
tante negativa. fiscal, tais como a adoção de acordo para troca de informações,
Parece ser politicamente correto condenar tal medida e bra- traz benefícios a todos os envolvidos2.
dar contra esse suposto privilégio dado aos “ricos” que, delibera- Isso porque um programa dessa natureza permite que uma
damente, e por tantos anos, infringiram a lei. Também é possível grande parcela de contribuintes, impulsionados pela pers-
compreender aqueles que buscam nomes e se referem a fatos pectiva de maior rigor na fiscalização apresentem-se volunta-
históricos para construir teorias que advoguem contra os obje- riamente perante as autoridades e regularizem sua situação,
tivos da Lei nº 13.254, de 13 de janeiro de 2016, que instituiu o fator que evita maiores gastos com fiscalização e possibilita
Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT). um fluxo imediato de receitas para o país. É importante notar
É preciso, no entanto, que todos nós realizemos uma refle- que a regularização, efetuada por declaração do contribuinte,
xão mais cuidadosa e fundamentada sobre esse tema, sob pena é passível de verificação, que deverá ser realizada pelas auto-
de nos atermos unicamente a esses primeiros impulsos emo- ridades competentes com o efeito de evitar que recursos não
cionais contrários ao RERCT. Primeiro, é preciso dizer que o elegíveis ao regime (ditos recursos ilícitos) sejam “lavados”.
Brasil não está sozinho na instituição de um programa de anis- Os contribuintes que sempre cumpriram com suas obriga-
tia desse tipo.
ções, por sua vez, sentem-se recompensados, na medida em
Com base em pesquisa realizada pela Organização para
que aqueles que aderem ao programa terão que arcar com um
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a qual
custo tributário importante para regularizar sua situação – por
envolveu 47 países, é possível constatar que a grande maioria
vezes, a depender do caso, com um custo tributário que não se-
instituiu programas especiais e temporários, tal como o RERCT,
ria devido caso determinados procedimentos houvessem sido
para possibilitar que os contribuintes voluntariamente infor-
adotados no passado.
massem às autoridades a existência de bens não declarados no
Ao mesmo tempo, isso permite que as autoridades fiscais
exterior, recolhendo o correspondente tributo1.
utilizem seus recursos de maneira mais eficiente para fazer va-
Países como Argentina, França, Dinamarca, Chile, Portu-
gal, para citar apenas alguns dos mencionados na pesquisa da ler as medidas de compliance fiscal instituídas, focando seus
OCDE, adotaram programas especiais com características mui- esforços naqueles que, por qualquer razão, permaneceram à
to parecidas com aquelas presentes no RERCT. margem da lei.
Uma característica marcante na grande maioria desses pro- Nesse sentido, consolida-se a expectativa de que as autori-
gramas é a impossibilidade de o contribuinte vir a ser proces- dades terão condições e irão realizar de maneira adequada e
sado e condenado pelos crimes relacionados à conduta infor- eficiente seu trabalho, fazendo valer as leis e punindo aqueles
mada. É impraticável pensar em um programa de anistia caso que continuam não declarando os bens detidos no exterior e
não exista condições institucionais que permitam assegurar a não recolhendo eventuais tributos devidos.
manutenção dos benefícios – a anistia dos crimes praticados – Em resumo, a instituição do RERCT (i) mostra um alinha-
que estimularam a sua adesão. mento do Brasil com práticas internacionais de combate à eva-
Um segundo e importante elemento é o contexto no qual o são fiscal, sendo plenamente justificável, dado o atual contexto
RERCT está inserido. O Brasil é signatário da Convenção Mul- de instituição de medidas para forçar o compliance fiscal; e (ii)
tilateral sobre Assistência Administrativa Mútua em Assuntos traz benefícios a todos os envolvidos (Estado e contribuintes,
Fiscais, aprovada pelo Congresso Nacional em abril deste ano, incluindo aqueles que sempre agiram de acordo com a lei).
que tem como signatários mais de 90 países. Feita essa reflexão, parece-nos que, embora compreensíveis,
Em resumo, essa Convenção permite a assistência adminis- merecem ser superados os primeiros impulsos contrários à ins-
trativa entre as autoridades fiscais dos países signatários, o que tituição do RERCT, sob pena de permanecermos presos a pen-
compreende a troca de informações, a fiscalização tributária si- samentos de um Brasil distante das tendências internacionais
multânea e a participação em fiscalização no exterior. em matéria fiscal.

NOTAS
1 “Update on Voluntary disclosure Programmes. A pathway to tax compliance.” Disponível em https://www.oecd.org/ctp/exchange-of-
tax-information/Voluntary-Disclosure-Programmes-2015.pdf. Acesso em: 14 nov. 2016.
2 Nesse sentido, ver “Update on Voluntary Disclosure Programmes. A Pathway to Tax Compliance.”, páginas 9 a 11. Disponível em https://
www.oecd.org/ctp/exchange-of-tax-information/Voluntary-Disclosure-Programmes-2015.pdf . Acesso em: 13 nov. 2016.
ARQUIVO PESSOAL

ARQUIVO PESSOAL

ANDRÉ GOMES é sócio de Souto Correa Advogados. GIÁCOMO PARO é sócio de Souto Correa Advogados.

58 REVISTA JURÍDICA CONSULEX - ANO XX - Nº 475 - 1º DE NOVEMBRO/2016


CONJUNTURA
BITCOINS: TRIBUTAÇÃO NO
SISTEMA BRASILEIRO
 POR PAULO HENRIQUE S. FREITAS e TALITA F. RITZ SANTANA

C
om o objetivo de revolucionar o sistema de paga- de riqueza, lícita ou ilícita, as transações com bitcoin têm re-
mento e investimento, em 2008, o empreendedor percussão financeira e, consequentemente, alvo de tributação.
australiano Craig Wright tomou a iniciativa de rein- Dessa forma, em análise ao antecedente normativo, em
ventar a moeda na forma de um código de compu- consonância com sua atualização semântica, conclui-se que
tador, possibilitando a transferência virtual de sua propriedade as criptomoedas são bens aptas a incorporar acréscimo patri-
a um custo nulo e sem depender de um terceiro intermediário. monial ao seu proprietário, em subsunção à norma prevista no
A bitcoin é uma moeda virtual, gerada e transferida entre seus artigo 43 do Código Tributário Nacional, pois denota-se ope-
usuários por meio de uma rede descentralizada (“peer-to-peer”, rações que consagram os elementos típicos do fato gerador do
ou simplesmente, ponto a ponto), sem qualquer intervenção dos Imposto de Renda (IR), em razão da manifestação de riqueza.
governos ou instituições financeiras, por meio de criptografia de Sob esse prisma, é imperioso destacar a necessidade de
chave pública, que gera as primeiras dificuldades de conceitua- poder econômico elevado para participar desse tipo mercado,
ção, do ponto de vista legal. sendo fonte suscetível de atuar no custeio da atividade estatal.
Nesse contexto, os elementos “soberania” e “território” de um Para efeitos da incidência do IR, a verificação do acréscimo
Estado não subsistem, visto que nenhuma organização ou indiví- patrimonial da criptomoeda pode se dar com o ganho de capital
duo pode controlar essa criptomoeda. decorrente de sua alienação, com fulcro no artigo 3º, § 2º, da Lei
As transações com bitcoin têm repercussão financeira e, nº 7.713/1988.
consequentemente, alvo de tributação A Receita Federal do Brasil, inclusive, passou a disponibilizar
Todas as transações que ocorrem na economia virtual são um campo no seu formulário de declaração do Imposto de Ren-
registradas em uma espécie de livro-razão da rede bitcoin e da para a possibilidade de se declarar as criptomoedas de que
são distribuídas no chamado “blockchain”, que nada mais é é proprietário e, se for o caso, pagar o valor do imposto equi-
do que um grande banco de dados público, contendo o histó- valente. Doravante, deve-se selecionar o código “Outros bens
rico de todas as transações realizadas. Novas transações são e direitos” e descrever as quantidades das diferentes moedas
verificadas contra o blockchain, de modo a assegurar que os digitais que o contribuinte tenha. Como não existe uma cotação
mesmos bitcoins não tenham sido previamente gastos, elimi- considerada oficial para o bitcoin e sua emissão não é contro-
nando, assim, o problema do gasto duplo. A rede global peer- lada por nenhum órgão do governo, a saída será usar cotações
to-peer, composta de milhares de usuários, torna-se o próprio como a do Mercado Bitcoin para o cálculo dos ganhos.
intermediário. Para efeitos da incidência do Imposto de Renda, segundo a
Sob a perspectiva econômica, a bitcoin oferece aos usuá- Receita Federal, quando as vendas em um mês forem maiores
rios as vantagens tecnológicas tanto do dinheiro commodity que R$ 35 mil, os ganhos de capital devem ser tributados em
propriamente dito quanto de um substituto de dinheiro (como 15% e o pagamento do imposto deve ser feito até o último dia do
certificados de depósitos, os precursores do papel moeda). mês seguinte ao da transação. Para que seja feito o recolhimen-
A bitcoin surge como uma forma de reduzir os custos de to, o ideal é que seja usado o Programa de Apuração dos Ganhos
transação, permitindo um uso mais eficiente do dinheiro, usos de Capital (GCAP).
que com o dinheiro commodity não seriam possíveis. Algo sem Mesmo quem não obteve ganho de capital está obrigado a
precedentes na história monetária, com a transação da cripto- informar o saldo da moeda bitcoin na declaração, na ficha de
moeda, sem qualquer lastro físico. Rendimentos Isentos e Não Tributáveis.
A posse dos bitcoins está a todo o instante com o dono da Outras operações com bitcoins podem ter efeitos tributários,
carteira (equivalente à conta bancária tradicional), dessa for- tais como doações das criptomoedas (que estariam sujeitas ao
ma o proprietário tem disponibilidade completa e irrestrita ITCMD), intermediações de compra de venda (tributáveis pelo
dos bitcoins, podendo transferi-los a quem desejar a todo ins- ISS), sendo necessária uma análise em cada caso concreto.
tante, sem que nenhuma entidade o impeça de fazê-lo, e de Contudo, é importante ter em mente que referidos posicio-
forma anônima. namentos ainda são preliminares e que a matéria está sendo
Contudo, em que pese não ser moeda do ponto de vista le- discutida pelas autoridades fiscais e monetárias de vários pa-
gal, é fato que à luz do conceito de capacidade contributiva, que íses, razão pela qual poderemos, no futuro, ter um panorama
consagra a incidência tributária sob qualquer forma de geração legal e tributário complexo.
ARQUIVO PESSOAL

ARQUIVO PESSOAL

PAULO HENRIQUE DE SOUZA FREITAS é doutor em Direito TALITA FERNANDA RITZ SANTANA é doutora em Direito Comercial
Comercial (PUC-SP) e especialista em Direito Tributário (IBET-SP); (PUC-SP) e especialista em Direito Tributário (IBET-SP); associada de
sócio de Freitas Martinho Advogados. Freitas Martinho Advogados.

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DIVULGAÇÃO
PORTAL JURÍDICO

A TAXAÇÃO DOS APOSENTADOS

“Cientes e conscientes da crise, devemos aplaudir todas as medidas de austeridade.


Não, porém, as que desbordam de princípios fundamentais de nosso ordenamento
constitucional, geram anarquia institucional e recaem, como sempre, sob aqueles situ-
ados no mais baixo degrau da escala da sociedade.”

 POR AMADEU ROBERTO GARRIDO DE PAULA

O
jornal  “Folha de São Paulo” de 29 de outubro 880,00. Assim, é estimulado a se aposentar. Nenhum tra-
de 2016, “in” “Mercado”, A19, sob o título “Lei balhador recebe apenas seu salário, mas também todos
pode definir contribuição de inativos”, noticiou os benefícios indiretos oriundos das convenções coleti-
o propósito da equipe responsável pela refor- vas e acordos coletivos. Além de outros, o trabalhador de
ma da previdência, subordinada ao presidente Michel Te- salário mínimo recebe o benefício da cesta básica, sem a
mer, intencionar mudar a Constituição para a cobrança qual sequer pode garantir sua alimentação e de sua famí-
de contribuição previdenciária de todos os aposentados, lia, na ativa. Não consta que o INSS entregue cesta básica
entre os quais 90% recebe benefício equivalente ao salário ou, por outra, vale-refeição para seus aposentados. Logo,
mínimo. é manifesta a falácia do argumento de que o trabalhador é
A primeira inconstitucionalidade, ainda que inserida incentivado a se aposentar por aqueles mirrados R$ 70,40.
em texto de emenda constitucional, está em dar-se aos A crítica política se constitucionaliza sem muito esfor-
estados e municípios autonomia para estabelecer a co- ço, em intensidade tal que não seria admitida nem mes-
brança. À União cabe com exclusividade o direito de le- mo Emenda Constitucional para introduzir essa chibata-
gislar sobre previdência social (CF, art. 22, inciso XXII). da no lombo da maioria dos aposentados brasileiros.
Cada estado ou município poderia cobrar o tributo dos O art. 6º da CF proclama os direitos sociais funda-
aposentados, no interior de uma autêntica torre de Babel mentais: “São direitos sociais a educação, a saúde, a
jurídica entronizada no ordenamento jurídico do Brasil, alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o la-
com violação chapada do princípio básico e fundamen- zer, a previdência social, a proteção à maternidade e à
tal inscrito no art. 150, II, da CF, que proíbe tratamento infância, a assistência aos desamparados, na forma des-
desigual de contribuintes que se encontrem em situação ta Constituição”.
equivalente. Veja-se que, segundo o noticiado, cada ente É claro que a proposta não retira o direito à previdên-
poderia estabelecer qual será a alíquota e taxa a quem cia social. Porém, reduz a importância do benefício. Essa
recebe o piso previdenciário.  No entanto, ao tributo, ao redução é ainda mais inconstitucional quando se prevê
menos em tese, deve corresponder uma contraprestação impactar os benefícios já vigentes. Mas fiquemos no nú-
do Estado, e esta é nenhuma em matéria de seguridade cleo duro da inconstitucionalidade, consistente no direi-
social, ao se considerar estados-membros e municípios. to fundamental à proibição de retrocesso, princípio im-
E alíquotas eventualmente confiscatórias, como ficariam, plícito em nossa Carta Política, excelentemente exposto
à luz da proibição de utilizar-se de tributos para efeito de pelo decano do STF, o ministro Celso de Mello, ao proferir
confisco? (CF, art. 150, IV). voto na Corte Suprema:
Outra idiossincrasia. O trabalhador do setor privado
que recebe um salário mínimo paga R$ 70,40 ao INSS Na realidade, a cláusula que proíbe o retrocesso em ma-
(8%) e ao se aposentar fica integralmente (!) com os R$ téria social traduz, no processo de sua concretização, verda-

60 REVISTA JURÍDICA CONSULEX - ANO XX - Nº 475 - 1º DE NOVEMBRO/2016


deira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de estatal  que revogara garantias já conquistadas em tema
natureza prestacional, impedindo, em consequência, que os de saúde pública, vindo a proferir decisão assim resumi-
níveis de concretização dessas prerrogativas, uma vez atin- da pelo ilustre Relator da causa, Conselheiro Vital Morei-
gidos, venham a ser reduzidos ou suprimidos. [...] Lapidar, sob ra, em douto voto de  que extraio  o seguinte fragmento
todos os aspectos,  o magistério de J. J. GOMES  CANOTI- (“Acórdãos do Tribunal Constitucional”,vol. 3/95-131,
LHO, cuja lição, a propósito do tema, estimula as seguintes re- 117-118, 1984, Imprensa Nacional, Lisboa): 
flexões (“Direito Constitucional e Teoria da Constituição”,  p.
320/321, item n. 3, 1998, Almedina):  Que o Estado não dê a devida realização às tarefas consti-
“O princípio da democracia econômica  e social apon- tucionais, concretas e determinadas, que lhe estão cometidas,
ta  para  a proibição de retrocesso social. [...] A  ideia  aqui isso só poderá ser objeto de censura constitucional em sede de
expressa também tem sido designada como proibição de ‘con- inconstitucionalidade por omissão. Mas quando desfaz o que
tra-revolução social’ ou da ‘evolução reacionária’. Com isto quer já havia sido realizado para cumprir essa tarefa, e com isso atin-
dizer-se  que os direitos sociais e econômicos  (ex.: direito dos ge uma garantia de um direito fundamental, então a censura
trabalhadores, direito à assistência, direito à  educação),  uma constitucional já se coloca no plano da própria inconstituciona-
vez obtido  um determinado grau de realização, passam  a lidade por ação. [...] Se a Constituição impõe ao Estado a reali-
constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um zação de uma determinada tarefa – a criação de uma certa ins-
direito  subjetivo.  A  ‘proibição de retrocesso social’  nada tituição, uma determinada alteração na ordem jurídica –, então,
pode fazer contra as recessões e crises econômicas reversibilida- quando ela seja levada a cabo, o resultado passa a ter a prote-
de fática), mas o princípio em análise limita a reversibilida- ção direta da Constituição. O Estado não pode voltar atrás, não
de  dos direitos adquiridos  (ex.:  segurança social,  subsídio pode descumprir o que cumpriu, não pode tornar a colocar-se
de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do na situação de devedor. [...] Se o fizesse, incorreria em viola-
princípio da  proteção  da confiança e  da segurança dos ci- ção  positiva [...] da Constituição. [...] Em  grande  medida,  os
dadãos no âmbito econômico, social  e cultural, e do núcleo direitos sociais  traduzem-se para o  Estado  em obrigação de
essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dig- fazer, sobretudo de criar certas instituições públicas (sistema
nidade da pessoa humana. O reconhecimento desta proteção escolar, sistema de segurança social, etc.). Enquanto elas não
de direitos prestacionais de propriedade, subjetivamente ad- forem criadas, a Constituição só pode fundamentar exigências
quiridos, constitui um limite jurídico do legislador e, ao mes- para que se criem; mas após terem sido criadas, a Constituição
mo  tempo, uma obrigação de prossecução de uma política passa a proteger a sua existência, como se já existissem à data
congruente com os direitos concretos e as expectativas subje- da Constituição. As tarefas constitucionais impostas ao Esta-
tivamente alicerçadas. A violação no núcleo essencial efetiva- do em sede de direitos fundamentais no sentido de criar cer-
do justificará a sanção de inconstitucionalidade relativamente tas instituições ou serviços não o obrigam apenas a criá-los, 
aniquiladora da chamada justiça social. Assim, por ex., será obrigam-no também a não aboli-los uma vez criados.
inconstitucional uma lei que extinga o  direito a subsídio de
desemprego ou pretenda alargar desproporcionadamente o Quer isto dizer que a partir do momento em que o Esta-
tempo de serviço necessário para a aquisição do direito à re- do cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucio-
forma [...]. De qualquer modo, mesmo que se afirme sem re- nalmente impostas para realizar um direito social, o res-
servas a liberdade de conformação do legislador nas leis so- peito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de
ciais, as eventuais modificações destas leis devem observar os consistir apenas) numa obrigação positiva, para se trans-
princípios do Estado de direito vinculativos da  atividade  le- formar (ou passar também a ser) numa obrigação negati-
gislativa e o núcleo  essencial dos direitos sociais.  O princí- va. O Estado, que estava obrigado a atuar para dar satisfa-
pio da proibição de  retrocesso social pode formular-se ção ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de
assim: o núcleo essencial dos direitos já realizado e efetivado atentar contra a realização dada ao direito social.
através de medidas legislativas (‘lei da  segurança social’, ‘lei Este enfoque dos direitos sociais faz hoje parte inte-
do subsídio de desemprego’, ‘lei do serviço de saúde’)  deve grante da concepção deles sobre a teoria constitucional,
considerar-se constitucionalmente garantido,  sendo incons- mesmo lá onde é escasso o elenco constitucional de direi-
titucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação tos sociais e onde, portanto, eles têm de ser extraídos de
de  outros esquemas alternativos ou compensatórios, se tra- cláusulas gerais, como a cláusula do “Estado social”.
duzam na prática numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ À luz desse relevantíssimo princípio jurídico, que se
pura a simples  desse núcleo essencial. A liberdade de con- aplica em várias outras nações, ficamos autorizados a
formação do legislador e inerente  auto-reversibilidade  têm dizer que, cientes e conscientes da crise, devemos aplau-
como limite o núcleo essencial já realizado (grifos nossos). dir todas as medidas de austeridade. Não, porém, as que
  desbordam de princípios fundamentais de nosso ordena-
Bem por isso, o Tribunal Constitucional português mento constitucional, geram anarquia institucional e re-
(Acórdão nº 39/84), ao invocar a cláusula da proibição caem, como sempre, sob aqueles situados no mais baixo
do retrocesso, reconheceu a inconstitucionalidade de ato degrau da escala da sociedade.
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AMADEU ROBERTO GARRIDO DE PAULA é advogado e membro da Academia Latino-Americana de Ciências Humanas. 

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IN VOGA

ELITE CLEPTOCRÁTICA OU
DECÊNCIA? TEMOS QUE ESCOLHER
 POR LUIZ FLÁVIO GOMES

P
arlamentares querem aprovar logo anistia para o precedente, enquanto os crimes posteriores à vigência da
caixa dois (antes das delações da Odebrecht). Nós, nova lei observarão o novo preceito legal.
da cidadania vigilante, temos que nos posicio- Cada crime segue a lei do seu tempo (tempus regit ac-
nar veementemente contra qualquer tentativa de tum). Essa sucessão de leis incriminadoras jamais signi-
anistiar os crimes investigados pela Lava Jato. ficou anistia (porque o crime precedente continua sendo
Na agenda do brasileiro, hoje, existem muitas coisas crime, com nova redação).
inadiáveis. Uma delas, sem sombra de dúvida, consiste
em restaurar a República, em sintonia com elementares e PROPINAS NÃO SÃO CAIXA DOIS
salutares preceitos éticos. A criminalização nova do caixa dois, de outro lado, não
Apesar de toda a descrença nas elites que governam afetará em nada as propinas (arrecadadas normalmente
e dominam a nação, nosso desinteressado afeto por um em contratos com as estatais) transformadas em “doa-
Brasil ético não pode esmorecer, ao contrário, deve ser ções eleitorais”, declaradas à Justiça Eleitoral.
continuamente fortalecido. Isso não é caixa dois (não tem nada a ver com caixa
É justamente nos momentos de crises agudas que não dois), mas, sim, é lavagem de dinheiro (que faz da Justiça
podemos vacilar nem apresentar qualquer tipo de tibieza. Eleitoral uma lavanderia oficial).
Contra a pretensão de se anistiar o caixa dois praticado Toda propina vinda de contratos com o poder público
por setores políticos, empresariais e bancários temos que (as que foram pagas, por exemplo, pela Odebrecht) sem-
reagir com um contundente “não”. pre configuram o crime de lavagem de dinheiro (pouco
Caixa dois significa dinheiro ou bens não contabili-
importando se foram ou não declaradas à Justiça).
zados nem declarados à Justiça Eleitoral. Querem apro-
O crime de caixa dois pressupõe que a doação eleitoral
var a anistia logo, a fim de evitar o aumento da pressão
seja feita com dinheiro ou bens lícitos.
popular após as delações da Odebrecht (a empresa que
Os parlamentares envolvidos com a corrupção sistê-
mais fez doações ilícitas no país). Mais: querem escapar
mica, desesperados com as revelações da Lava Jato, estão
da Lava Jato.
querendo um vergonhoso presente de final de ano.
O tema merece nossa reflexão.
Aliás, mais um presente que as elites dirigentes querem se
O caixa dois hoje já é crime (Código Eleitoral, art. 350).
dar, ampliando as benesses que a cleptocracia brasileira já
A ministra Cármen Lúcia vem dizendo isso desde o julga-
mento do Mensalão. lhes proporciona tradicionalmente (foro privilegiado, impu-
Na onda das dez medidas anticorrupção propostas por nidade, prescrições, repatriações de dinheiro sonegado etc.).
iniciativa popular e pelo Ministério Público Federal vai ser Isso se chama elite-cleptocracia (é a cleptocracia das elites).
aprovado um novo crime de caixa dois, quando a origem A tese da anistia para o mundo político-empresarial une
da “doação” for lícita. praticamente todos os partidos (de esquerda e de direita: PT,
A nova tipificação penal só vale, evidentemente, para PSDB, PMDB, PP, DEM etc.). São pouquíssimas as exceções.
fatos ocorridos após a vigência da (nova) lei. As elites dirigentes metem a mão no dinheiro público e
Entendem alguns políticos e empresários que isso sig- ainda querem que a população seja condescendente com
nificaria a “anistia” para os fatos passados. essa roubalheira persistente.
Nada mais equivocado. A tese está fundada em argu- A autoestima do brasileiro espoliado não pode chegar
mento jurídico falho. ao extremo de tirar férias. O Brasil vale muito mais do que
Quando um crime não desaparece e apenas é redefini- suas elites dominantes supõem.
do em um novo tipo penal, não há que se falar em anistia Não se trata de dispensar ao nosso país uma admiração
(ou abolitio criminis). irrefletida e destemperada.
O fato ilícito continua ilícito. Logo, o crime persiste Todos os que somos diariamente explorados pelos
(com nova redação, novas penas, novas exigências típi- donos corruptos do poder temos sólidas e convincentes
cas, mas continua firme como ilícito penal). razões para nos insurgirmos contra essa promiscuidade
A isso se dá o nome de princípio da continuidade típica dos interesses particulares que regem o destino da nação.
(ou da continuidade normativo-típica). Diga não a todo tipo de anistia para quem praticou pi-
Não há que se falar, nesse caso, em anistia. O que ocor- caretagem com o dinheiro público. Manifeste. Exerça sua
re é o seguinte: os crimes anteriores seguem o tipo penal cidadania vigilante ativa.
ARQUIVO PESSOAL

LUIZ FLÁVIO GOMES é jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Estou no professorLFG.com.br

62 REVISTA JURÍDICA CONSULEX - ANO XX - Nº 475 - 1º DE NOVEMBRO/2016


DIVULGAÇÃO

DOUTRINA
A TUTELA DA ( S )
VULNERABILIDADE ( S ) DO
ACUSADO NO PROCESSO PENAL

“Seja na visualização das típicas vulnerabilidades comunicativa, cognitiva e informa-


cional do analfabeto ou no caso da vulnerabilidade geográfico-financeira, percebe-se
um Poder Judiciário preocupado com fatores de risco ao devido processo legal e à pa-
ridade de armas no processo penal. Com efeito, tais precedentes conduzem ao avanço
institucional no âmbito do processo penal quanto ao respeito à dignidade humana –
fundamento da República (art. 1º, III, CRFB/88).”

 POR MAURÍLIO CASAS MAIA

D
ebatendo a condição geral dos acusados no Entretanto, os estudos sobre a repercussão das vulne-
processo penal, a professora Ada Pellegrini rabilidades humanas impactantes no processo ainda são
Grinover exclamara em determinada ocasião incipientes. A grande referência no tema é a obra “Igual-
que: “O acusado está sempre numa posição de dade e Vulnerabilidade no Processo Civil”, de autoria de
vulnerabilidade frente à acusação” (2014, p. 466). Com ra- Fernanda Tartuce (2012), na qual são apresentadas di-
zão está a professora Grinover. E, em agravante, não raras versas formas de vulnerabilidade incidentes no processo,
vezes a acusação pública mantém preocupantes vínculos como resultado da tese de doutorado apresentado à USP
de proximidade em seu relacionamento com o julgador pela autora. Aliás, a referida obra é tão importante que,
público, inserindo o acusado e sua defesa num quadro superando suas fronteiras iniciais (processo civil), foi uti-
injusto de prejuízo à equidistância almejada para um jul- lizada em prol da tutela da vulnerabilidade humana no
gamento justo e equilibrado. processo penal.

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DOUTRINA

Pensando nas peculiaridades da vulnerabilidade do Na oportunidade, a juíza de direito Patrícia Macêdo


acusado no processo penal, o presente texto expõe alguns Campos (TJ-AM) reconheceu a dúplice vulnerabilida-
casos nos quais a tutela da vulnerabilidade dos acusados de geográfico-financeira do acusado no processo penal,
pelo poder público foi especialmente utilizada para las- como fator desencadeador de especial atenção do magis-
trear decisões em favor debilis, ou seja, em proteção de trado para a preservação das garantias do devido processo
quem sofre a imputação acusatória pelo Estado. legal, da isonomia, do contraditório e da ampla defesa dos
participantes do processo.
O ANALFABETO NA QUALIDADE DE VULNERÁVEL Naquela circunstância, o acusado era residente e do-
No dia 10 de agosto de 2016, o juiz de direito Mauro miciliado em estado diferente de onde era processado
Antony, da 3ª Vara do Tribunal do Júri de Manaus (AM), e – possuindo advogado constituído nos autos – declarou
revogou prisão provisória por reconhecer a vulnerabilida- expressamente suas dificuldades de deslocamento e sua
de processual peculiar dos analfabetos, em legítimo ato de impossibilidade financeira de comparecer à audiência –
constitucionalização e humanização do processo penal bem como de custear a ida e a volta de seu patrono para
em harmonia com a dignidade como fundamento da Re- participação no sobredito ato processual. Ao fim de seu re-
pública (art. 1º, III, Constituição). querimento, o réu postulou sua oitiva por carta precatória.
No referido caso, o réu, artesão, primário e de bons Em sua decisão, a magistrada Patrícia Macêdo Campos
antecedentes fora preso preventivamente por não ter fundamentou suas respectivas conclusões nos estudos
comparecido à sede do juízo para prestar compromisso acerca das vulnerabilidades impactantes no ambiente
de cumprimento de medidas cautelares, incluindo processual – conforme transcrição:
comparecimento mensal à vara judicial.
Todavia, sendo o réu intelectualmente impossibilitado […] considerando assim a notícia de vulnerabilidade geográfi-
de ler os termos do mandado liberatório que lhe concede- ca (réu residente em outro estado) e econômica (réu sem con-
ra a liberdade na cadeia pública, ele jamais tivera conhe- dições financeiras para o deslocamento para ato presencial
cimento de seus deveres junto ao juízo. Segundo o magis- nesta comarca), conforme doutrina extraída da obra “Igualda-
trado judicante Mauro Antony: de e Vulnerabilidade no Processo Civil” da prof. Fernanda Tar-
tuce, que entendo integralmente aplicáveis ao Processo Penal
[...] sendo o autor uma pessoa iletrada […] mais inacessível se neste caso […] Defiro o pedido para determinar a expedição
torna a linguagem jurídica, bem como sua condição inviabili- de carta precatória com vistas ao interrogatório do réu, o fa-
za o discernimento do cumprimento das obrigações proces- zendo com amparo no Princípio da Vulnerabilidade Econômi-
suais, seja lá qual for a matéria jurídica de fundo (penal, con- ca e Geográfica do réu. (TJ-AM, 3ª Vara do Tribunal do Júri de
sumidor, civil, etc). (Juiz de Direito Mauro Antony, Processo n. Manaus/AM, Proc. 0249503-98.2012.8.04.0001, Juíza Patrícia
0231169-11.2015.8.04.0001 – 3ª Vara do Tribunal do Júri de Macêdo Campos, j. 18.08.2016).
Manaus-TJ/AM, j. 10.08.2016).
Nesse contexto, a utilização da carta precatória findou
Nesse contexto, a decisão judicial aqui comentada re- por ser apresentada como instrumento para o abranda-
ferenciou a obra “Igualdade e Vulnerabilidade no Processo mento das consequências negativas da vulnerabilidade
Civil”, de a qual sistematizou diversas formas de vulnera- econômico-geográfica do réu.
bilidades impactantes no ambiente processual.
A alegação de (hiper)vulnerabilidade do analfabeto foi A DEFENSORIA PÚBLICA E A MITIGAÇÃO DA
apresentada em requerimento liberatório formulado pela VULNERABILIDADE
Defensoria Pública do Amazonas (DPE-AM) com lastro No caso mencionado no item anterior, a juíza amazo-
em estudos sobre a vulnerabilidade social dos analfabetos nense observou ainda que a vulnerabilidade geográfico-fi-
em outras áreas do Direito, tais como no processo civil (no nanceira provocava a ausência do réu e seu advogado no
já citado livro de Fernanda Tartuce) e no Direito do Con- relevante ato processual, tornando-o ainda mais vulnerá-
sumidor (em estudos de Cláudia Lima Marques e Bruno vel processualmente.
Miragem – 2014). No referido contexto, a fim de amenizar as nocivas
Com efeito, a decisão avança mais um passo na busca consequências da ausência do réu e de seu advogado no
pela humanização e pela constitucionalização do proces- ato processual por conta da vulnerabilidade noticiada,
so penal, porquanto (re)conhece a peculiar vulnerabili- a juíza intimou o defensor público atuante junto à vara
dade dos analfabetos – de tríplice cunho comunicativo, para  atuação institucional no ato – sem qualquer preju-
cognitivo e informacional –, e seus nefastos impactos na ízo à representação do réu pelo advogado constituído –,
seara processual penal. fazendo-o sob a seguinte fundamentação:

A DÚPLICE VULNERABILIDADE Considerando-se a manifestação do réu por seu patrono


GEOGRÁFICO-FINANCEIRA constituído nos autos, no sentido de não possuir condições
Por outro lado, no dia 18 de agosto de 2016, o tema que financeiras para deslocamento de sua comarca de residência
veio à lume se refere às dificuldades de deslocamento em para se fazer presente em audiência nesta Comarca, caracteri-
função das vulnerabilidades geográficas e financeiras do zando sua vulnerabilidade econômica e geográfica (conforme
acusado obra “Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil”, de Fer-

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nanda Tartuce), foi intimado defensor público atuante junto a 53), compreendido na garantia da atuação do advogado
este juízo com a  finalidade de acompanhar o ato e assim ga- constituído e de confiança da parte, indispensável à ad-
rantir contraditório e ampla defesa ao acusado. ministração da Justiça (art. 133, Constituição). Naquela
oportunidade, visualizou-se respeito à representação via
Com efeito, a decisão judicial implicitamente visu- advogado constituído, quando o defensor público atuou
alizou na Defensoria Pública um fator institucional de em nome institucional – como “Custös Vulnerabilis”
amenização das vulnerabilidades processuais incidentes (CASAS MAIA, 2014-a) –, sem interferir negativamente
sobre a defesa dos vulneráveis, sendo aqui considerada a ou prejudicar a atuação do advogado natural (constituí-
defesa um direito indisponível do réu no processo penal do). Tal situação é harmoniosa com o papel reservado à
brasileiro. O decisório, porém, vai além. Defensoria Pública na visão garantista de Luigi Ferrajoli
Em verdade, ao intimar o defensor público vinculado (2014, p. 537), conforme exposto na edição nº 425 da Re-
à atuação junto à respectiva vara para atuação institucio- vista Jurídica Consulex (CASAS MAIA, 2014-b, p. 57).
nal, ocasionou também o respeito à recente decisão do
Superior Tribunal de Justiça (STJ), datada de 4/8/2016, na NOTAS CONCLUSIVAS
qual se consolida e reforça o princípio do defensor públi- As decisões aqui referenciadas, além de representarem
co natural, nos seguintes termos: um paradigma na luta pela humanização do processo
penal, são permeadas por fortíssimo valor simbólico ao
[…] II – São direitos dos assistidos da Defensoria Pública […] o expor uma fundamentação calcada no reconhecimento
patrocínio de seus direitos e interesses pelo defensor natu- das vulnerabilidades do acusado.
ral  (artigo 4º-A, IV, Lei Complementar nº 80/94). […] IV – Na Seja na visualização das típicas vulnerabilidades co-
linha da jurisprudência do eg. Supremo Tribunal Federal e municativa, cognitiva e informacional do analfabeto ou
desta eg. Corte, ‘O Supremo Tribunal Federal firmou o enten- no caso da vulnerabilidade geográfico-financeira, perce-
dimento de que é nulo o processo quando há nomeação de beu-se um Poder Judiciário preocupado com fatores de
defensor dativo em comarcas em que existe Defensoria Pú- risco ao devido processo legal e à paridade de armas no
blica estruturada, só se admitindo a designação de advogado processo penal. Com efeito, tais precedentes conduzem
ad hoc para atuar no feito quando não há órgão de assistência ao avanço institucional no âmbito do processo penal
judiciária na comarca, ou se este não está devidamente orga- quanto ao respeito à dignidade humana – fundamento da
nizado na localidade, havendo desproporção entre os assisti- República (art. 1º, III, CRFB/88).
dos e os respectivos defensores. Precedente’ (HC nº 337.754/ Por fim, a instrumentalização da carta precatória na
SC  Quinta Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe de 26.11.2015). qualidade de instrumento de mitigação da vulnerabilida-
(…)”. (STJ, RHC 61.848-PA, Min. Félix Fischer, j. 04.08.2016). de geográfica e a percepção da Defensoria Pública, como
interveniente (“Custös Vulnerabilis”), para a restauração
Assim o fazendo, a decisão comentada – além de con- do reequilíbrio processual decorrente dos males da vul-
siderar o princípio do defensor natural (art. 4º-A, IV, LC nº nerabilidade, consubstanciam-se em valorosos expedien-
80/1994) –, respeitou também à concepção protetiva do tes para a efetivação de um processo penal mais justo,
princípio do advogado natural (CASAS MAIA, 2016, p. 52- igualitário e democrático.

REFERÊNCIAS
BARBOSA, Rafael Vinheiro Monteiro; MAIA, Maurilio Casas. Isonomia dinâmica e vulnerabilidade no Direito Processual Civil. Revista de Pro-
cesso, São Paulo, v. 230, 2014, p. 349-365.
CASAS MAIA, Maurilio. Custos Vulnerabilis Constitucional: O Estado Defensor entre o REsp 1.192.577-RS e a PEC 4/14. Revista Jurídica Consu-
lex, n. 417, Brasília(DF), p. 55-57, 1º jun. 2014.
_____. Luigi Ferrajoli e o Estado Defensor enquanto magistratura postulante e Custos Vulnerabilis. Revista Jurídica Consulex, n. 425, Brasília
(DF), p. 56-58, 1º out. 2014. 
______. Os (des)conhecidos princípios do advogado natural e do defensor natural. Prática Jurídica, n. 174, Brasília (DF), p. 52-53, Set. 2016.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. São Paulo: RT, 2014.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Legitimação da Defensoria Pública à Ação Civil Pública. In: _____. BENJAMIN, Antônio Herman. WAMBIER, Teresa
Arruda Alvim. VIGORITI. Vincenzo. Processo Coletivo: do surgimento à atualidade. São Paulo: RT, 2014, p. 457-474.
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações contratuais. 7. ed. São Paulo: Ed. RT, 2014.
______. Estudo sobre a vulnerabilidade dos analfabetos na sociedade de consumo: o caso do crédito consignado a consumidores analfabe-
tos. Revista de Direito do Consumidor, v. 23, n. 95, p. 99-145, set./out. 2014.
______. MIRAGEM, Bruno. O novo Direito Privado e a proteção dos vulneráveis. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2014.
TARTUCE, Fernanda. Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
______. Vulnerabilidade processual no Novo CPC. In: Sousa, José Augusto Garcia de. (Coord.). Defensoria Pública. Salvador: Jus Podivm, 2015.
(Coleção Repercussões do Novo CPC, v. 5. Coordenador Geral: Fredie Didier Júnior).
ARQUIVO PESSOAL

MAURILIO CASAS MAIA é Defensor Público Estadual (AM) e professor (FD/UFAM), Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba
(UFPB) e Doutorando (UNIFOR). Pós-Graduado lato sensu em “Direito Público: Constitucional e Administrativo” e em “Direitos Civil e Processual Civil”.
Colunista no Site Empório do Direito.

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PONTO DE VISTA

Mozart Neves Ramos

O ENSINO MÉDIO PEDE


ARQUIVO PESSOAL

URGÊNCIA

O
ensino médio é a última etapa da educação uma escola chata, como disse Priscila Cruz, do Todos Pela
básica e tem como objetivo proporcionar aos Educação, em sua coluna no UOL Educação. Os jovens
nossos jovens o acesso ao ensino superior e ao querem uma escola que caiba na vida. Portanto, se fizer-
mundo do trabalho. Mas não é isso o que acon- mos a coisa certa, teremos dinheiro para mudar o atual
tece com a grande maioria. Cerca de 1 milhão de jovens quadro, se considerarmos o que se perde com o abando-
entre os 15 e os 17 anos de idade estão fora da escola e sem no escolar.
desenvolver atividade remunerada alguma, entre as per- A boa notícia é que já temos soluções para enfrentar
mitidas pela legislação para essa faixa etária. Esse grupo essa situação. Precisamos agora dar a elas uma escala na-
pode ser considerado o berço dos chamados “nem-nem”, cional. Por exemplo, o Estado de Pernambuco iniciou, há
que nem estudam e nem trabalham. 12 anos, o programa Escolas de Referência de Ensino Mé-
Consideremos, agora, a faixa etária de 15 aos 29 anos dio em Tempo Integral, no qual os alunos têm apresen-
— aquele grupo de jovens que é estratégico para o desen- tado um desempenho escolar bem superior ao daqueles
volvimento de qualquer país, desde que tenham recebido que estudam em escolas de tempo parcial.
uma formação educacional sólida, da educação básica ao Mas não se trata apenas de mais tempo na escola. Esse
ensino superior, podendo incluir a formação para o mun- modelo inclui um currículo de educação integral, com
do do trabalho. No Brasil, temos hoje nessa faixa cerca professores bem preparados e uma gestão escolar quali-
de 10 milhões de jovens, que não estão estudando nem ficada e profissional, assim como o implantado no Rio de
trabalhando, e cuja maioria sequer completou o ensino Janeiro, mas sem a escala de Pernambuco. O abandono
médio. E o pior: dos que concluíram essa última etapa da escolar nessas escolas de tempo integral com educação
educação básica, a maioria o fez com níveis de aprendiza- integral é próximo de zero.
gem extremamente baixos. De cada 100 alunos concluin- Cito apenas esses dois casos cujos resultados são apoia-
tes, apenas nove aprenderam o que seria esperado em dos por avaliações de desempenho. O custo para manter
Matemática, e vinte e sete em Língua Portuguesa. essas escolas é da ordem de 40% a mais com relação àque-
Que futuro podemos esperar para o Brasil diante desse las de tempo parcial. Mas elas funcionam! Esse valor, por
quadro? Sem esquecer que, diferentemente de outros paí- sua vez, é bem menor do que aquele que se perde com o
ses, o Brasil ainda usufrui de um bônus demográfico, mas abandono escolar. Segundo Derek Bock, ex-presidente da
deve perdê-lo até 2030. Estamos diante de uma situação Universidade de Harvard, se você acha que a educação é
extremamente grave – até mais grave do que o atual qua- cara, experimente a ignorância.
dro econômico pelo qual passa o país. A economia pode Felizmente, o Ministério da Educação (MEC), os se-
se recuperar mais adiante, a partir de ajustes e medidas cretários de Educação dos estados, por meio do Conselho
fiscais, equilibrando os gastos públicos com a receita e Nacional de Secretários de Educação (Consed) e a socie-
trazendo de volta a confiança dos investidores. Mas quan- dade civil estão dispostos a enfrentar a atual situação do
do se perde uma geração de jovens está-se diante de uma ensino médio no Brasil. A meu ver, o problema financeiro
situação muitas vezes irreversível e crítica de falta de es- é o menor, pois parece-me que o maior deles é de con-
perança quanto ao futuro. Por isso, não dá mais para es- cepção – tomar a decisão política que interessa aos nossos
perar que algum milagre aconteça para melhorar o nosso jovens e ao Brasil. Os interesses específicos não podem se
ensino médio. sobrepor aos interesses maiores de uma nação. Estamos
Só com o abandono escolar no ensino médio o país diante de uma escolha. Penso que não deve ser difícil fa-
perde por ano cerca de R$ 3,7 bilhões. Isso é o reflexo de zê-la, se quisermos ter um país com futuro. E esse futuro
um ensino que não dialoga com o mundo dos jovens, de só se constrói com jovens bem formados!

MOZART NEVES RAMOS é diretor do Instituto Ayrton Senna. Foi reitor da Universidade Federal de Pernambuco e secretário de Educação do Estado de Pernambuco

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EXEMPLAR DE Pedro Ferreira e Renato Fragelli
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