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Poder Judiciário

Conselho da Justiça Federal


Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais

PROCESSO Nº 5004000-89.2013.404.7101
ORIGEM: SEÇÃO JUDICIÁRIA DO RIO GRANDE DO SUL
REQUERENTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL
REQUERIDO(A): MARIA VANDERLÉIA DOS SANTOS
RELATOR: JUIZ FEDERAL DOUGLAS CAMARINHA GONZALES

VOTO – EMENTA

INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO INTERPOSTO PELO INSS. PREVIDENCIÁRIO.


MANUTENÇÃO DE PENSÃO POR MORTE A FILHO NÃO INVÁLIDO QUE ATINGIU OS
21 ANOS. ILEGALIDADE. IMPOSSIBILIDADE DE SE CONFERIR INTERPRETAÇÃO
QUE ALBERGUE SITUAÇÃO DE ILEGALIDADE. AFRONTA A PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS DE INTERPRETAÇÃO. DECADÊNCIA INOCORRÍVEL. INCIDENTE
CONHECIDO E PROVIDO.

1. Prolatado acórdão pela Turma Recursal do Rio Grande do Sul que abonou
sentença de procedência de pedido de manutenção de pensão por morte à filha
maior não inválida, sob a assertiva da decadência de se revisar o ato em pauta,
ainda que ilegal.

2. Interposto Incidente de Uniformização de Jurisprudência pelo INSS, com


fundamento no art. 14, § 2º, da Lei nº 10.259/2001. Alega o recorrente que a
decisão contraria a legislação, bem como há divergências de julgados de Turmas
Recursais, trazidos aos autos.

3. Incidente admitido na origem, sendo os autos encaminhados à TNU após


Agravo, e distribuídos a este Relator.

4. Nos termos do art. 14, § 2º, da Lei nº 10.259/01, o pedido de uniformização


nacional de jurisprudência é cabível quando houver divergência entre decisões

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sobre questões de direito material proferidas por turmas recursais de diferentes


regiões ou em contrariedade à súmula ou jurisprudência dominante da Turma
Nacional de Uniformização ou do Superior Tribunal de Justiça.

5. O incidente merece ser conhecido, pois patente a distinção de interpretação


das Turmas Recursais quanto à extensão da decadência para pensão a maior de
idade. A decisão recorrida amplia o alcance interpretativo do art. 103-A para
fulminar o dever poder do INSS de cassar benefício sem amparo em lei, ao passo
que o paradigma confere interpretação de que o art. 103-A não alberga a
decadência de pensão a maior de idade.

6. Quanto ao mérito, o Incidente de Uniformização de Jurisprudência é


procedente. Como é sabido, em sede de antinomias interpretativas, cabe ao
intérprete se socorrer dos princípios constitucionais para alcançar o efeito
interpretativo que agasalhe valores constitucionais de maior magnitude. O caso
apresenta embate entre o princípio da legalidade e o da proteção da confiança.
Eis a questão decidida pelo juízo a quo:

(...)

No caso dos autos, o benefício deveria cessar com a maioridade da


parte autora, em 10/11/1988. Porém, somente foi cancelado em
01/12/2009 - após, portanto, o dia 1º/02/2009, que corresponde a 10
anos da vigência da Lei n. 9.784/1999. Saliento, por fim, que para
efeito de aplicação do instituto da decadência, não há qualquer
distinção entre concessão ou manutenção (indevida) de benefício
previdenciário.

7. Data venia, não se visualiza passível de compreensão que o art. 103-A da Lei
nº 8.213/91 busque sustentar situações de ilegalidade - dada a natureza dos
benefícios que alcança a tutelar – quer por força da ratio interpretativa do artigo
em pauta que não sustentar a extensão apontada pela decisão recorrida; quer

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em face da própria má-fé que se dessume de situações como a presente,


presunção jurídica que se deduz da situação, como regra de direito.

8. Eis a dicção do art. 103-A:

Art. 103-A. O direito da Previdência Social de anular os atos


administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os seus
beneficiários decai em dez anos, contados da data em que foram praticados,
salvo comprovada má-fé. (Incluído pela Lei nº 10.839, de 2004)
§ 1o No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo decadencial contar-
se-á da percepção do primeiro pagamento. (Incluído pela Lei nº 10.839, de
2004)
§ 2o Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de
autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato

9. A doutrina há muito é categórica a repelir interpretações que atentam contra


a natureza das coisas ou que respalde situação de ilegalidade ou má-fé para não
se ir além do razoável à hipótese legal normativa. Nesse sentido, doutrina Daniel
Machado da Rocha e João Baltazar Jr, in Comentários à Lei de Previdência
Social, ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2012, 11º edição, p. 349 (grifei):

O fundamento da regra é o princípio da moralidade administrativa (CF, art. 37),


no particular aspecto de proteção da confiança, ou da boa-fé, de resto
expressamente consagrado no inciso IV do parágrafo único do art. 2º da Lei nº
9.784/99.
Claro está, ainda, que o dispositivo não é aplicável aos casos em que a
própria lei autoriza a revisão, como é o caso da cessação da aposentadoria
por invalidez ou auxílio-doença em caso de recuperação da capacidade do
trabalho. Na mesma linha, o beneficiário de pensão que ostenta essa
qualidade por ser inválido ou menor, poderá ter sua quota extinta quando
cessada a invalidez ou atingir a idade limite, ainda que esse fato se der mais
de dez anos após a concessão.

10. Simples e categórico, o raciocínio traçado pelo jurista Daniel Machado da


Rocha, cuja presença nessa Corte nos honra. Com efeito, a partir da maioridade

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da pensionista não subsiste qualquer resquício de boa-fé ou de proteção à


confiança, pois a partir de então o gozo do benefício é extra legem, situação que
aponta até mesmo, se for o caso, para a restituição dos valores, consoante nova
orientação do Superior Tribunal de Justiça. Em outros termos, não há qualquer
valor constitucional ou previdenciário a ser tutelado para a manutenção do
benefício, nem mesmo a sua essência - a contingência existencial de dificuldade
do pensionista (presente tão somente até a maioridade do beneficiário).

11. A própria Teoria Geral da Interpretação abona essa premissa, segundo


explicito em Dissertação de Mestrado: Competência Legislativa dos Entes
Federados; Conflitos e Interpretação Constitucional, FADUSP, 2011, p. 89/90, ao
explicitar que a interpretação deve-se fincar na razão de sua lógica premida pela
própria ponderação:

Humberto Ávila ratifica essa orientação ao aprofundar o papel da


ponderação para além dos princípios propriamente dito no âmbito do conflito
normativo. Ensina o estudioso que a ponderação não é método privativo de
aplicação dos princípios, enquanto sopesamento de razões e contra-razões que
culminam com a decisão de interpretação, de forma que também é aplicável
entre dispositivos de regras hipoteticamente contraditórios. Defende que a
solução ao conflito situa-se no plano da aplicação, e não da validade, de forma
que a ponderação concreta do caso apontará a solução mais sensata ao caso,
diante das finalidades que estão em jogo1.
Advoga, ainda, que muitas vezes a exceção pode estar prevista no próprio
ordenamento jurídico, hipótese em que o aplicador deverá, mediante ponderação
de razões, decidir se há mais razões para a aplicação da hipótese normativa da
regra ou, ao contrário, para a de sua exceção. Nesse sentido, decidiu a Suprema
Corte brasileira quanto à aplicação de exceção contida na própria lógica do
ordenamento quanto à presunção de violência de estupro (art. 213, CP), ao

1
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed.
Malheiros: 2008. p. 52-54. Exemplifica o raciocínio com o choque de normas abstratas do Código de Ética
Médica que determina que o médico deve dizer para seu paciente toda a verdade sobre sua doença, e outra
estabelece que o médico deve utilizar todos os meios disponíveis para curar seu paciente. Como deliberar o
que fazer no caso em que dizer a verdade ao paciente sobre sua doença irá diminuir as chances da cura, em
razão do abalo emocional daí decorrente ? Casos hipotéticos como esse não só demonstram que o conflito
entre regras não é necessariamente estabelecido em nível abstrato, mas pode surgir no plano concreto, como
ocorre normalmente com os princípios. Esses casos também indicam que a decisão envolve uma atividade de
sopesamento entre razões.

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decidir que essa presunção é relativa, a teor do caso concreto e das


circunstâncias particulares do caso em apreço2.
No esteio desse raciocínio Ana Barcellos observa que em ocasiões de crise
(situações de ruptura) quando a aplicação de regras abstratamente válidas
podem mostrar-se, em determinadas incidências, incompatíveis com outras
disposições constitucionais ou profundamente injustas admite-se a ponderação
dos interesses que ela tutela através da aproximação do parâmetro da equidade.
Ou seja: respeitado o limite do texto e suas possibilidade, o intérprete poderá
empregar uma interpretação conforme a equidade da regra, de modo a evitar a
incidência iníqua 3 (tal como o STF entendeu a interpretação do estupro com
presunção relativa, supra relatado).
Assim, quer em razão da sua relevância ao sistema, quer em razão da sua
força pragmática para solver os conflitos, a ponderação tem-se destacado como
elemento chave, de forma que merece estudo quanto à necessidade de se
estabelecer parâmetros de controle, tanto normativos, como argumentativo.
A ponderação é, pois, um raciocínio jurídico lato, como se denota das
palavras de Dworkin4:
Os princípios, ao contrário das regras, podem ser contrários sem ser
contraditórios, sem se eliminarem reciprocamente. E, assim, subsistem no
ordenamento princípios contrários que estão sempre em concorrência entre si
para reger uma determinada situação. A sensibilidade do juiz para as
especificidades do caso concreto que tem diante de si é fundamental, portanto,
para que possa encontrar a norma adequada a produzir justiça naquela situação
específica. É precisamente a diferença entre os discursos legislativos de
justificação – regidos pelas exigências de universalidade e abstração – e os
discursos judiciais e executivos de aplicação – regidos pelas exigências de
respeito às especificidades e à concretude de cada caso, ao densificarem as
normas gerais e abstratas na produção das normas individuais e concretas – que
fornece o substrato do que Klaus Günther denomina senso de adequabilidade,

2
STF, 2ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, HC 73.662-Minas Gerais, DJ 20.09.96. Considerou o Min. Rezek
expressamente em seu voto ao acompanhar o Ministro Relator, concedendo a ordem de habeas corpus, a
convicção de que não concedê-la, significa proferir, no Supremo Tribunal Federal, uma tese jurídica de
extremo risco: a de que a máquina judiciária está dispensada de raciocinar. Segundo se infere do julgado,
exsurgindo dos autos prova de aparência física e mental de pessoa com idade superior aos 14 anos, impõe-se a
conclusão sobre a ausência da configuração do tipo penal.
3
BARCELLOS, Ana Paula de. “Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional”, in A nova
interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003, p. 102/103. SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil, vol. I,Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 1988, p. 145 observa: Em resumo podem ser fixados os seguintes princípios: a equidade, como
função interpretativa da norma, independe de autorização legal, pois deve ser utilizada para coadjuvar a
inteligência do dispositivo interpretando, de acordo com os dados sociológicos que o envolverem e a
finalidade que tiver.
4
Apud, Menelick de Carvalho Neto. A hermenêutica constitucional sob o paradigma do Estado Democrático
de Direito, in Notícia do Direito Brasileiro, nº 06, p. 245-246.

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que no Estado Democrático de Direito é de se exigir do concretizador do


ordenamento ao tomar decisões.

Daí a conclusão de Menelick de Carvalho Neto de que vivemos um


novo paradigma na tomada de decisões, outrora idealista baseada na aplicação
simplista das regras; agora se exige uma leitura procedimentalista de efetividade
da Constituição e seus princípios, através da análise de senso de adequabilidade
das regras frente aos princípios, ao contexto e as particularidades do caso, para
que assim as decisões judiciais apresentem um nível de racionalidade discursivo,
próprio do Estado Democrático de Direito, onde a cidadania e a participação
popular na criação e aplicação do Direito é inerente ao sistema político e jurídico
do País5.

12. Nesse passo, tenho como iníqua a interpretação que fulmina de decadência o
poder-dever do INSS de cassar a pensão por morte de filho pensionista não
inválido maior de idade, diante da extensão interpretativa do art. 103-A não
albergar essa hipótese, nem tampouco qualquer outro valor constitucional
sufragar essa assertiva. Factível, pois, a racionalidade da Súmula 473 do Supremo
Tribunal Federal ao caso: “A administração pode anular seus próprios atos,
quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam
direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade,
respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação
judicial.”

13. Incidente conhecido e provido para (i) firmar a tese no sentido de que o INSS
tem o poder dever de cassar a qualquer tempo pensão por morte vigente, cujo
filho pensionista saudável atingiu a maioridade (21 anos), pois inaplicável a
decadência, via interpretação extensiva do art. 103-A da Lei nº 8.213/91 ao caso;

5
Também nesse sentido: HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes
da Constituição. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, Editor, 1998, p. 13.

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(ii) reformar o acórdão recorrido para que o INSS casse imediatamente o


benefício em pauta. Expeça-se ofício para tal fim.

14. Julgamento nos termos do artigo 7º, inciso VII, alínea “a”, do RITNU, servindo
como representativo de controvérsia.

ACÓRDÃO

Acordam os membros da TNU - Turma Nacional de Uniformização CONHECER e


DAR PROVIMENTO ao incidente de uniformização interposto, nos termos do voto-
ementa do Juiz Federal Relator.

Brasília/DF, 12 de novembro de 2014.

DOUGLAS CAMARINHA GONZALES


Juiz Federal Relator

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CERTIDÃO DE JULGAMENTO

NONA SESSÃO ORDINÁRIA DA TURMA DE UNIFORMIZAÇÃO

Presidente da Sessão: MINISTRO HUMBERTO MARTINS


Subprocuradora-Geral da República: DARCY SANTANA VITOBELLO
Secretário(a): MARCUS AURELIUS SOARES DE ARAUJO

Relator(a): JUIZ FEDERAL DOUGLAS CAMARINHA


GONZALES

Requerente: INSS
Proc./Adv.: PROCURADORIA-GERAL FEDERAL

Requerido(a): MARIA VANDERLEIA DOS SANTOS


Proc./Adv.: VIVIANE VASCONCELOS

Origem: RS - SEÇÃO JUDICIÁRIA DO RIO GRANDE DO


SUL
Proc. Nº.: 5004000-89.2013.4.04.7101

CERTIDÃO

Certifico que a Egrégia Turma de Uniformização, ao apreciar o processo em epígrafe, em


sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
A Turma, por unanimidade, conheceu do incidente e lhe deu provimento, nos termos do
voto do(a) Juiz(a) Relator(a). Ressalvaram seu entendimento pessoal quanto à
fundamentação o(s) Juiz(es) Paulo Ernane, João Batista Lazzari e Bruno Carrá.
Participaram do julgamento os Srs. Juízes e Sras. Juízas Federais: Paulo Ernane Moreira
Barros, João Batista Lazzari, Boaventura João Andrade, Bruno Carrá, José Henrique
Guaracy Rebêlo, Sérgio Queiroga, Douglas Gonzales, Daniel Machado da Rocha, Wilson
Witzel e Angela Cristina Monteiro.

Brasília, 12 de novembro de 2014.

MARCUS AURELIUS SOARES DE ARAUJO


Secretário(a)

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