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REVISTA DE DIREITO MERCANTIL

INDUSTRIAL, ECONÓMICO E FINANCEIRO


Nova Série - Ano XXXV • n. 101 • janeiro-março de 1996

Fundadores
1." Fase: Waldemar Ferreira
Fase Atual: Prof. Philomeno J. da Costa (t)
Prof. Fábio Konder Comparato
Supervisor Geral: Prof. Waldírio Bulgarelli
Comité de Redação: Mauro Rodrigues Penteado, Haroldo D. Verçosa,
José Alexandre Tavares Guerreiro, Antonio Martin
I n i; (■; t o Z a cí 2 n 212
Bibliot3ca Cecrge Alexander
Direito

REVISTA DE DIREITO MERCANTIL


INDUSTRIAL, ECONÓMICO E FINANCEIRO

Publicação do
Instituto Brasileiro de Direito Comercial Comparado
e Biblioteca Tullio Ascarelli
e do Instituto de Direito Económico e Financeiro,
respectivamente anexos aos
Departamentos de Direito Comercial e de
Direito Económico e Financeiro da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Edição da
Editora Revista dos Tribunais Ltda.

ANO XXXV (Nova Série) n. 101 Janeiro-Março/1996


REVISTA DE DIREITO MERCANTIL
INDUSTRIAL, ECONÓMICO E FINANCEIRO
Nova Série - Ano XXXV • n. 101 • janeiro-março de 1996

© Edição e distribuição
RDTTORA RRVTSTA DOS TRIBUNAIS LTDA.

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Campina do Monte Alegre - São Paulo, SP, Brasil. — Impressão: EDITORA PARMA LTDA., Av. Antonio
Bardella, 280 — CEP 07220-020 - Guarulhos, SP, Brasil.

Impresso no Brasil
Instituto Macksnzio
Biblioteca George Alcxander
Direito

AVISO AOS LEITORES


Havendo dirigido a Revista ininterruptamente desde o pri­
meiro número de sua nova série, em 1971, deixo agora as
funções de Diretor Executivo, esclarecendo que não parti­
cipei da redação do n° 100 (outubro-dezembro/1995).
Fábio Konder Comparato
SUMÁRIO

DOUTRINA

Distribuição secundária no Brasil e no exterior de ações pertencentes à administração


pública — Luiz Gastào Paes de Barros Leâes 9
A teoria dos grupos de sociedades e a competência do juízo arbitrai — Arnoldo
Wald 21
A debênture como instrumento de aplicação e captação dc recursos — Durval José
Soledade Santos 27
Emissão de debentures — Nelson Eizirik 37
Os débitos tributários das empresas. Responsabilidade dc diretores, sócios-gerentes
e controladores — João Luiz Coelho da Rocha 49
As hipóteses de recesso na Lei das Sociedades Anónimas — Renata Brandão
Moritz 56
As instituições financeiras e a taxa de juros — Pedro Frederico Caldas 76

ATUALIDADES

Inquérito administrativo CVM e recurso de ofício — Luiz Alfredo Paulin 97


Notas sobre a desconsideração da personalidade jurídica: a experiência portuguesa —
Luiz Antonio Soares Hentz 109
Representação comercial e distribuição comercial — Importância dos traços distintos
— João Luiz Coelho da Rocha 114
Criação e desenvolvimento de uma sociedade de capital — Investimento: as lições
do modelo francês — Françoise Monod 119

JURISPRUDÊNCIA

As cooperativas e o direito dos cooperados retirantes ao valor atualizado de suas


quotas-partes — Jorge Eduardo Prada Levy 122

NOTICIÁRIO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO COMERCIAL COM­


PARADO E BIBLIOTECA TULLIO ASCARELLI 133

ÍNDICE ALFABÉTICO REMISSIVO 135


CURRICULUM DOS COLABORADORES
DESTE NÚMERO

ARNOLDO WALD
Advogado em São Paulo c Paris; Professor Catedrático de Direito Civil da UERJ; Presidente
do grupo brasileiro da Association Henri Capitant; Ex-Presidente da Comissão de Valores
Mobiliários — CVM; Ex-Membro do Conselho Monetário Nacional.
DURVAL JOSÉ SOLEDADE SANTOS
Advogado; Consultor Jurídico e Superintendente de Operações da BNDES Participações S.A.
— BNDESPAR.
FRANÇOISE MONOD
Master of Laws da Universidade de Harvard e advogada em Paris (associada de Sokolow,
Dunaud, Mcrcadier & Carreras).
JOÃO LUIZ COELHO DA ROCHA
Advogado no Rio de Janeiro.
JORGE EDUARDO PRADA LEVY
Advogado em São Paulo.
LUIZ ALFREDO PAULIN
Procurador da Fazenda Nacional junto ao Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional;
Doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo.
LUIZ ANTONIO SOARES HENTZ
Mestre e Doutor em Direito; Professor de Direito Comercial da UNESP; Juiz de Direito da
9." Vara Cível de Ribeirão Preto.
LUIZ GASTÃO PAES DE BARROS LEÃES
Professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
NELSON EIZIRIK
Advogado no Rio de Janeiro. Ex-Diretor da Comissão de Valores Mobiliários — CVM.
PEDRO FREDERICO CALDAS
Advogado em São Paulo.
RENATA BRANDÃO MORITZ
Advogada no Rio de Janeiro.
DOUTRINA

DISTRIBUIÇÃO SECUNDÁRIA NO BRASIL E NO EXTERIOR


DE AÇÕES PERTENCENTES À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

LUIZ GASTÃO PAES DE BAR.ROS LEÃES

Sumário: 1. Preliminares — 2. Exigibilidade e dispensa de licitação — 3. A


dispensa de licitação na venda de ações — 4. A oferta no mercado externo, através
de ADR — 5. A concessão de deságio no preço de venda.

1. Preliminares e americanas, registradas nos respecti-


vos livros ao longo do período que
1.1. Empresas públicas ou de econo­ antecede a oferta, são reunidas pelo
mia mista estaduais vêm procurando coordenador global da oferta em Nova
estruturar ofertas globais de ações no Iorque, que, após as devidas pondera­
mercado de capital. Essas “ofertas glo­ ções, cálculos e eventuais realocações,
bais” compreendem uma oferta em estabelece um único preço de oferta
mercados externos (EUA e Europa), para todos os mercados.
através do mecanismo de ADR.S
("'American Depositary Receipt”), e uma 1.4. Este preço pode ser igual, inferior
oferta no mercado de balcão local. (desconto) ou superior (prémio) em
relação à cotação do mercado local de
1.2. Em ambos os casos, as negoci­ bolsa. A experiência com papéis seme­
ações entre ofertante e ofertados ocor­ lhantes na América Latina tem mostrado
rerão fora do pregão da bolsa, e, por­ uma tendência de que ocorra desconto
tanto, serão concluídas a partir de ne­ na determinação do preço da oferta.
gociações via telefone entre agentes de
colocação do ofertante e os potenciais 1.5. Em razão do acima exposto e em
investidores de mercado. O mercado de virtude da natureza pública do ofertante,
oferta via balcão é determinado nos surgem as seguintes questões:
mercados internacionais pela prática e
no mercado local pela necessidade de (i) sendo as empresas públicas ou de
economia mista estaduais pessoa jurídi­
que o preço local seja exatamente igual
àquele que seja fixado nos mercados
ca de direito público interno, e, conse-
internacionais. qúentemente, sujeito às normas contidas
na Lei 8.666/93 para alienação de bens
1.3. Para maior precisão, a fixação do de sua propriedade, consulta-se se o
preço da oferta resulta da composição processo de venda aqui descrito atende
ponderada (as alocações no mercado aos pressupostos da referida lei;
local e internacionais proporcionalmente (ii) na eventualidade de ser necessária
serão diferentes) das cotações obtidas no a concessão de deságio no preço de
Brasil, EUA e Europa. Em termos de venda, em relação ao preço de mercado
mecânica, as cotações locais, europeias no dia da realização do negócio, tal fato
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encontra proibição de algum tipo para ao princípio da isonomia previsto, como


sua efetivação? regra geral, no art. 5.°, inc. I, e, como
regra específica, no próprio art. 37, inc.
1.6. A resposta a essas perguntas XXI, ambos da Lei Maior; ao determi­
exige o exame prévio de algumas ques­ nar a sujeição dos concorrentes aos
tões preliminares, relativas ao regime de termos da policitação e à publicidade do
licitação pública e à legislação de certame, a licitação garante a obediência
mercado, o que passaremos a fazer nas aos reclamos de moralidade administra­
próximas secções. tiva imposta expressamente pelo art. 37,
caput, da Carta Magna brasileira.
2. Exigibilidade e dispensa de licitação
2.3. Esses princípios gerais, a que se
2.1. A palavra “licitação” (do lat. soma um elenco de princípios correlatos,
licitatione) comporta vários significa­ oriundo de outros dispositivos constitu­
dos, quase todos ligados à ideia centrai cionais, foram expressamente agasalha­
de disputa de lances de preço. No dos pelo art. 3.° da Lei 8.666, de 21 de
contexto da legislação brasileira, a lici­ junho de 1993, que “regulamenta o art.
tação é encarada como o processo de 37, inc. XXI, da Constituição Federal,
disputa de lances a que a Administração institui normas para licitações e contra­
Pública deve recorrer para a aquisição tos na Administração Pública e dá outras
ou alienação de bens e serviços, como providências”. Assim, dispõe o caput
condição de obter o melhor proveito desse dispositivo que, verbis, “a licita­
coletivo. Sobre constituir um mecanis­ ção destina-se a garantir a observância
mo técnico de seleção, a licitação do princípio constitucional da isonomia
consubstancia, assim, na estruturação do e a selecionar a proposta mais vantajosa
regime jurídico das contratações admi­ para a Administração e será processada
nistrativas, um procedimento prévio e julgada em estrita conformidade com
indispensável, que recebeu, aliás, ex­ os princípios básicos da legalidade, da
pressa consagração no inc. XXI do art. impessoalidade, da moralidade, da igual­
37 da Constituição Federal de 1988. dade, da publicidade, da probidade
administrativa, da vinculação ao instru­
2.2. Ao impor a exigibilidade do mento convocatório, do julgamento
processo de licitação pública como objetivo e dos que lhe são correlatos”.1
formalidade preparatória impostergável
de todos os contratos administrativos, 2.4. A falta de licitação, ou a ausência
esse dispositivo atendeu a três exigên­ de um desses princípios informadores
cias públicas, também de matriz cons­ no procedimento licitatório, acarretará,
titucional: a proteção aos interesses por conseguinte, a invalidade do contra­
públicos, o respeito ao princípio da to administrativo por ele gerado. Ou
isonomia e a obediência aos reclamos seja, as licitações são procedimentos
de probidade administrativa. Com efei­ administrativos, vinculados e prepositi-
to, ao procurar a oferta mais satisfatória, vos, de todos os contratos celebrados
o processo licitatório atende aos interes­
ses da coletividade, que são sempre os
objetivos finais da atividade administra­ (,) Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello,
Elementos de Direito Administrativo, I.a
tiva (CF art. 3.°, IV); ao assegurar a ed., 6.a tiragem, RT, 1987, p. 100 ss.;
igualdade de condições a todos os con­ Adilson Abreu Dallari, Aspectos Jurídicos
correntes, o processo licitatório satisfaz da Licitação, Ed. Juriscredi, 1973, p. 28 ss.
DOUTRINA 11

pela Administração, à míngua das quais razão de conveniência administrativa,


não logram eles adquirir validade e seja porque a pequena relevância eco­
eficácia universais, perante as partes e nómica da contratação não justifica os
terceiros. Mas embora constituam, como gastos de uma licitação, seja porque
regra geral, antecedente necessário e situações excepcionais, como estado de
inafastável dos contratos administrati­ guerra, calamidades ou grave perturba­
vos, os processos de licitação pública ção social, impossibilitam o exercício
não são de exigibilidade absoluta,2 posto, normal das funções públicas, seja ainda
que, em certos casos, eles podem ser porque a licitação formal, dadas as
material e juridicamente inviáveis. Por peculiaridades da pessoa contratada, ou
outro lado, se a obrigatoriedade da as do objeto que se busca obter, frus­
licitação responde a esses vetores fun­ traria a própria consecução dos interes­
damentais citados — isonomia, probida­ ses públicos.4
de e interesse público — é perfeitamente
admissível a sua dispensa em determi­ 2.7. Como se vê, a inexigibilidade da
nados casos, em que não se afrontam licitação tem um perfil diferente daquele
esses pressupostos fundamentais. da dispensa. Dispensa-se o procedimen­
to licitatório quando, sendo ele de início
2.5. Com efeito, o direito positivo exigível, outros valores, em cotejo, re­
brasileiro — como o estrangeiro — comendam o seu afastamento. Já na
consagra várias situações de inexigibi­ inexigibilidade, a licitação é eliminada
lidade e de dispensa do processo pela impossibilidade concreta de com­
licitatório. Há inexigibilidade quando petição. Na inexigibilidade, ocorre im­
ocorrem, em casos concretos, circuns­ possibilidade material ou jurídica do
tâncias especiais, de fato e de direito, certame; na dispensa, ocorre inconve­
as quais, porque inviabilizadoras de niência administrativa. A supremacia do
competição, afastam peremptoriamente interesse público — que fundamenta a
a licitação. A Lei 8.666, de 1993, que exigência, como regra geral, da licitação
disciplina a matéria, cuida de várias prévia para as contratações administra­
hipóteses de inexigibilidade de licitação tivas — justifica, também, tanto a apli­
no seu art. 25, baseadas na exclusivi­ cação, em certas hipóteses, de procedi­
dade do fornecedor ou na notória espe­ mentos licitatórios simplificados, como
cialização do prestador de serviços, nas a dispensa do regime formal do processo
singularidades da pessoa contratada ou de licitação pública.
do bem que se procura obter?
2.8. É claro que a aferição do inte­
2.6. Há dispensa do processo licitatório resse público, que fundamenta a dispen­
quando ocorrem, em casos concretos, sa de licitação, não fica entregue à
circunstâncias especiais, previstas em discrição de cada agente público, mas
lei, que facultam a não realização da depende de expressa previsão legal,
licitação, que era, em princípio, impres­ ditada sempre por razões de conveniên­
cindível. Também aqui, a Lei 8.666 cia administrativa. É ao legislador que
prevê, em seu art. 24, diversas figuras caberá avaliar as situações em que,
de dispensa de licitação, ditadas por embora viável a licitação, numa relação
de custos e benefícios, afigura-se obje-
<2) Adilson Abreu Dallari, ob. cit., p. 42.
(3) Lúcia Vallc Figueiredo e Sérgio Ferraz, (O Marçal Justcn Filho, Comentários à Lei das
Dispensa e Inexigibilidade de Licitação, 2.® Licitações e Contratos Administrativos, 2.®
cd., 1992, RT, p. 32 ss. cd., Aidc, 1994, p. 132 ss.
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tivamente inconveniente ao interesse Pública, a qual poderá promover a


público a sua instauração. 5 Assim, contratação direta, independentemente
contratações de pequeno vulto não jus­ de qualquer procedimento prévio. Essa
tificam gastos com uma licitação co­ dispensa da licitação não significa,
mum. Bens que se sujeitam a processos porém, a inaplicaçào, nas negociações
especiais de negociação, com as ações diretas, dos princípios básicos que o
ou os títulos públicos, não recomendam regime da licitação administrativa im­
igualmente a adoção de um processo põe, visto que a atuação administrativa,
formal de licitação. inclusive por determinação constitucio­
nal, sempre “obedecerá aos princípios
2.9. Advirta-se que, sendo as dispo­ de legalidade, impessoalidade, morali­
sições legais, que estatuem a dispensa dade e publicidade” (CF art. 37, caput)?
de licitação, de direito estrito, a enume­
ração legal é, consequentemente, 2.11. Com efeito, nessas contratações
taxativa, não se admitindo a criação de diretas, onde a licitação já não é neces­
outros casos por via interpretativa, ca­ sária, continua, obviamente, a prevale­
bendo ainda dizer que nem sequer lei cer, com todo o rigor, a exigência de
estadual pode ampliar as hipóteses de obediência aos princípios jurídicos fun­
dispensa, já que a disciplina da licitação damentais de isonomia, moralidade e de
é de competência privativa de lei federal supremacia do interesse público, que
(CF art. 22, inc. XXVII).6 Por outro conduzem à melhor contratação possí­
lado, é oportuno registrar que a evolu­ vel, que deve ser o objetivo central da
ção da legislação brasileira tem revelado Administração. O pequeno vulto do
tendência de alargar o número de hipó­ contrato, por exemplo, que autoriza a
teses de dispensa.7 dispensa de licitação (Lei 8.666/93, art.
24, inc. I e II), não justifica que a
2.10. A consequência da dispensa da Administração pague mais do que faria
licitação, nas estritas hipóteses capitula­
das em lei, é, assim, a eliminação dessa (8) “A dispensa não afasta, cm princípio, e
formalidade preparatória como requisito fatalmcntc, a incidência do requisito da
necessário ao processo de formação da licitação.” (...) “A licitação existe, cm
vontade contratual da Administração termos de embasamento constitucional, para
a realização dos princípios vetoriais, dos
princípios fundamentais da Lei das Leis. A
(5) Como diz Eros Roberto Grau, embora tra­ Constituição aponta princípios fundamen­
tando especificamentc da situação de inc- tais, que fazem da licitação a regra, c a
xigibilidade, “a verificação de determinado contratação direta, a exceção: os princípios
caso de inexigibilidade de licitação não é da igualdade e da moralidade. E impres­
operada no circulo da formulação de um cindível licitar, porque não sc pode fazer
juízo de oportunidade, discricionário, pela uma discriminação entre iguais...” (...)
Administração, mas sim mediante a formu­ “Todavia, se a conveniência administrativa
lação, por ela, de um juízo de legalidade” in concreto comprovada, aliada ao compro­
(in “Inexigibilidade de Licitação: Aquisição vado interesse público específico, ambos
de bens e serviços que só podem ser concomitantcmcnte encartáveis em uma das
fornecidos ou prestados por determinado hipóteses do art. 22 do Dcc.-lci 2.300,
agente económico,” Rev. de Direito Públi­ apontarem excepcionalmcnte para a prefe­
co, n. 100, p. 37). rência à diretriz da contratação direta, a
(6) José Afonso da Silva, “Licitações”, in Rev. licitação pode ser dispensada, não se pondo
de Direito Público, n. 7, p. 58. em xeque ou em choque, então, os aludidos
<7) Carlos Pinto Coelho Motta, Eficácia nas princípios de isonomia e de moralidade” (in
Licitações e Contratos, ed. Del Rey, 1994, Lúcia Valle Figueiredo c Sérgio Ferraz, ob.
p. 124. cit., p. 38/39).
DOUTRINA 13

se contratasse com um terceiro, nem ficado” e de “avaliação prévia”, as


privilegie alguns particulares. Não há alienações acima elencadas se formali­
como justificar, frente ao tratamento zariam através de transações de direito
igualitário, à moralidade administrativa comum.
e ao interesse público, que a Adminis­
tração efetive contratação abusiva. 3.3. Assim, no caso de alienação de
ações pertencentes às entidades de Di­
3. A dispensa de licitação na venda de reito Público, a lei dispensa a licitação,
ações permitindo a negociação direta, inde­
pendentemente de qualquer outra con­
3.1. E aqui chegamos ao tema objeto dição, com a ressalva, porém, de que
do primeiro ponto. Na seção relativa às seja “observada a legislação específica”.
alienações de bens móveis da Adminis­ Ora, a legislação específica, depois de
tração Pública (Seção VI), a Lei 8.666 distinguir as ações de companhias aber­
alinha, no art. 17, inc. II, várias hipó­ tas das fechadas, “conforme os valores
teses de dispensa de licitação, incluindo, de sua emissão estejam ou não admi­
na alínea “c”, a venda de ações, nos tidos à negociação em bolsas ou no
seguintes termos: mercado de balcão” (Lei 6.404/76, art.
"Art. 17. A alienação de bens da 4.°; Lei 6.385/76, art. 22), estabelece a
Administração Pública, subordinada à regra de que: (a) a venda de ações de
existência de interesse público devida­ companhia fechada — que não podem
mente justificado, será precedida de ser negociadas em bolsas, nem em
avaliação e obedecerá às seguintes mercado de balcão, porque essas com­
normas: (...) panhias não estão devidamente registra­
II — quando móveis, dependerá de das na CVM (Lei 6.385, art. 21, § l.°)
avaliação prévia e de licitação, dispen­ — deverá ser realizada diretamente pela
sada esta nos seguintes casos: (...) Administração através de “negociação
c) venda de ações, que poderão ser privada” (tal como definida pela Deli­
negociadas em bolsa, observada a le­ beração CVM 20, de 15.2.85); e (b) a
gislação específica; (...)” venda de ações de companhias abertas,
detidas pela Administração Pública,
3.2. Seis são as figuras de dispensa poderá, facultativamente, ser realizada
de licitação para alienação de bens ou diretamente, através de negociação
móveis da Administração, previstas no privada, ou através do mercado de bolsa
dispositivo acima reproduzido: a) doa­ ou de balcão.
ção de bens para fins e uso de interesse
social; b) permuta de bens entre enti­ 3.4. A venda de ações de companhias
dades públicas; c) venda de ações da abertas, de propriedade da Administra­
Administração; d) venda de títulos ção, passará, no entanto, a ser obriga­
públicos; e) comercialização de bens toriamente negociada em bolsa ou em
produzidos por entidades da Adminis­ balcão, em “situações que configurarem
tração Indireta; e f) alienações de ma­ distribuições secundárias, sujeitas a pré­
teriais e equipamentos entre entidades vio registro na CVM”, tais como “a
da Administração Pública. Em todas venda de ações ordinárias ou preferen­
essas hipóteses, a dispensa da licitação ciais que correspondam a mais de 5%
conduz à “contratação direta”, indepen­ de ações da mesma espécie ou classe em
dentemente de qualquer outra formali­ circulação no mercado'’, ou simples­
dade preparatória. Salvo as exigências mente quando correspondam a “qual­
de “interesse público devidamente justi- quer quantidade de ações, quando tra-
14 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

duzam esforço de venda superior ao cogitada se enquadre nas hipóteses de


normal ao intermediado nesse mercado vendas “que envolvam quantidade sig­
secundário” (Instrução CVM 88, de 3 de nificativa” de valores mobiliários, quan­
novembro de 1988, arts. l.° e 2.°, ines. do, então, conforme manda a Instrução
I e IV). 88/88 da agência reguladora, deverão
elas ser negociadas obrigatoriamente
3.5. Essas hipóteses de venda, que através do sistema de distribuição, sem,
envolvem alienação significativa de contudo, impor que essa negociação se
ações, na medida em que “asseguram opere exclusivamente em bolsa.
acesso ao público investidor e objetivem
maior dispersão acionária” deverão, por 3.7. Anteriormente a essa Instrução, em
lei, ser obrigatoriamente realizadas “pelo 14 de julho de 1988, e ainda no império
sistema de distribuição no mercado de do revogado Dec.-lei 2.300, de 1986, que
capitais, inclusive no mercado de bal­ tratava do estatuto das licitações públicas,
cão” (Instrução CVM 88/88, art. 8.°). a Comissão de Valores Mobiliários deu
a público a Deliberação CVM 66, que veio
3.6. Ora, é dentro do contexto dessa dispor sobre a alienação de ações “de
legislação de mercado que deve ser propriedade de pessoas jurídicas de direi­
interpretada a dicção do art. 17 da Lei to público e de entidades controladas
de Licitação, acima reproduzido, que direta ou indiretamente pelo Poder Públi­
dispõe que, dispensada a licitação na co”. Nessa Deliberação, o Colegiado da
venda das ações de propriedade da CVM recomendava: (a) que a venda das
Administração, estas “poderão ser nego­ ações representativas do capital de com­
ciadas em bolsa”. A venda dessas ações panhia aberta, com registro para negocia­
em bolsa é, assim, prevista, como uma ção em bolsa, fosse realizada “mediante
faculdade, não como uma imperiosa leilão no recinto das bolsas de valores”;
determinação legal,9 dependendo evi­
e (b) que a venda das ações representativas
dentemente de sua caracterização como do capital de companhia fechada, ou de
ações de companhias abertas, já que às
companhia aberta com registro para ne­
ações de companhias fechadas é vedado
gociação no mercado de balcão, fosse
o acesso ao sistema de distribuição no
mercado de capitais (cf. Instrução CVM realizada também “através de leilão espe­
60, de 14.1.87, art. l.°). Em suma, a cial, sem interferência de vendedores”.
venda em bolsa ou no balcão de ações
representativas de companhias abertas é 3.8. Tratava-se, porém, como dizia a
facultativa, a não ser que a operação própria Deliberação, de uma “recomen­
dação”, para que se utilizasse na
contratação direta de ações de compa­
<9) A Lei Estadual 10.395, de 17 de dezembro nhia fechada, ou na negociação de ações
de 1970, relativa às contratações e licita­ de companhia aberta, realizada no
ções da Administração centralizada e
autárquica do Estado de São Paulo, previa mercado bolsístico e de balcão, proce­
a dispensa de licitação no caso de alienação dimentos de natureza licitatória, sem, no
“ações, sempre vendidas em bolsa” (art. 18, entanto, consubstanciar propriamente
II, “c”). Na Lei federal 8.666, a dispensa uma obrigação legal. Recomendações
da licitação no caso de ações, ao contrário desse naipe são aliás muito frequentes
da lei estadual, tem outra redação, estabe­ em certos pronunciamentos da CVM,10
lecendo mera faculdade, “observada a le­
gislação específica” (cf. Antônio Marcello
da Silva, Contratações Administrativas, RT, <‘°> “A CVM em várias ocasiões ressaltou o
1971, p. 50). aspecto “didático” de certas normas da Lei
DOUTRINA 15

e, na espécie, só viriam a adquirir de capitais”, aí também sem privilegiar


caráter de cogência, e no que tange o mercado de bolsa.12
exclusivamente à distribuição secundá­
ria através do mercado de bolsa, a partir 3.10. A recomendação da Deliberação
da Instrução CVM 88, supramenciona­ CVM 66/88, no sentido de que a. venda
da, de novembro de 1988, que impôs o das ações pertencentes à Administração
sistema de “leilão especial” nesse tipo Pública se fizesse através de leilão
de negociação, sem estendê-lo, porém, especial, seja nos casos de ações de
às distribuições no mercado de balcão, companhia fechada ou aberta, com re­
visto ser procedimento incompatível com gistro no mercado de bolsa ou de bal­
esse tipo de mercado (art. 10).11 cão, era motivada, segundo explica nos
seus considerando, pelo fato de que a
alienação dos bens da Administração
3.9. Cumpre ainda frisar que essas deve orientar-se no sentido do interesse
disposições aplicam-se a todas às com­ público e em obediência aos princípios
panhias abertas, que se encontram nas da moralidade, da publicidade e da
situações referidas. Em nenhum mo­ plena transparência. Ora, ao admitir a
mento, aliás, a lei das sociedades anó­ dispensa do regime formal da licitação,
nimas ou a Lei 6.385 estabeleceram um para a alienação de ações, a Lei de
regime diferenciado para a negociação Licitação não a afasta, por certo, dos
de ações pertencentes a órgãos públicos. princípios vetoriais do instituto, posto
A única previsão legal existente diz que os vê preservados mesmo quando
respeito à venda de ações de sociedades ausente o procedimento prévio licitatório,
de economia mista, pertencentes à União fato devidamente apreciado pelo legis­
Federal, as quais, de fato, dispõem de lador quando admitiu a exceção.
um regime próprio, instituído pelos arts.
60 e 61 da Lei 4.728, de 1965, que 3.11. Por outro lado, em nenhuma das
impõem sejam elas negociadas “através hipóteses do seu art. 17, a Lei 8.666
do sistema de distribuição no mercado condiciona a dispensa da licitação a
procedimentos alternativos, porventura
previstos em legislação específica, que
das S.A. ou mesmo dos regulamentos
administrativos, mencionando o caráter de possuam também natureza licitatória, e
‘recomendação’ que estaria contido cm que lhe assegurariam, por essa razão,
alguns de seus atos normativos” (Nelson idêntico respeito aos princípios que
Eizirik, “As Lições do Caso Vale”, in norteiam a licitação pública. A obser­
Revista Brasileira de Mercado de Capitais, vância dos princípios da legalidade,
v. 6, n. 16, 1980, p. 20. moralidade, impessoalidade e publicida­
Ou talvez se possa dizer que toda oferta de continua a ser permanente e obriga­
pública, via bolsa ou mercado de balcão,
já reveste, por si só, natureza licitatória, tória em todos os casos em que a
como se pronunciou o E. Tribunal Federal licitação é dispensada, na medida em
de Recursos. De fato, o TFR, cm decisão
de sua 2.® Turma, já se pronunciou no (,2> Amoldo Wald mostra que a Lei 4.728/65,
sentido de que a oferta pública “é proce­ como lei especial, criou um regime próprio
dimento licitatório, onde as normas obri­ para a venda de ações de sociedade de
gam a todos, desde quando prevalecentes economia mista, não revogado pela legis­
(AMS 98.060, Relator Min. Willian lação geral posterior (Lei 6.404/76 e 6.385/
Pattcrson, cit. por Amoldo Wald, “in” “A 76) in “Do regime legal da venda de ações
oferta pública e a uniformidade de trata­ de sociedades de economia mista perten­
mento dos acionistas”, publicado na Revista centes à União Federal”, Revista de Direito
da CVM, 1/71-74, jan. 1983. Mercantil, n. 39, p. 23 ss.
16 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

que eles constituem os fundamentos da espécie, da realização de uma operação


validade de toda e qualquer ação admi­ de distribuição, global e simultânea, de
nistrativa.13 O leilão especial, imposto ações, compreendendo tanto uma oferta
pela legislação de mercado para o pro­ no mercado de balcão local, quanto uma
cesso de distribuição secundária através oferta em mercados externos (EUA e
da bolsa, nada tem a ver, pois, com o Europa), através do mecanismo dos ADR
leilão previsto como modalidade de American Depositaiy Receipts”), emi­
licitação pública na Lei 8.666, de 1993, tidos com base na Regra 144 A da
em seus arts. 22, alínea V, e 53, do qual “Securities and Exchange Comission”
a venda de ações da Administração (CVM), dos Estados Unidos.
Pública está, repita-se, expressamente
dispensada. 4.2. O ADR, como se sabe, é um
certificado negociável de depósito, re­
3.12. Nessas condições, podemos presentativo de um certo número de
afirmar, em conclusão, que, dispensada ações de empresa aberta, não sediada
de licitação pela Lei 8.666/93, nada nos Estados Unidos, que são deposita­
obriga a que a venda pública das ações das em instituição financeira norte-
representativas do capital de empresas americana, a fim de que possam ser
públicas ou de economia mista estadu­ negociadas, por via indireta, no mercado
ais, deva necessariamente ser realizada americano, mediante essa incorporação
através de pregão em bolsa, mediante em papéis que propiciam uma “ameri-
leilão especial. Registrada, como está, canização”, digamos assim, dos títulos
na CVM, para a negociação de seus estrangeiros. Assim, o titular do ADR
valores em bolsa, a oferta pública das tanto poderá vender o certificado, no
ações preferenciais da companhia, de mercado norte-americano ou internacio­
que ora se cogita, poderá perfeitamente nal, como, se preferir, receber os títulos
ser realizada fora dos recintos das bol­ originais depositados, e negociá-los no
sas, no mercado de balcão, através das mercado nacional respectivo.14
entidades que compõem o sistema de
distribuição dos valores mobiliários, sem 4.3. Os ADR surgiram, pela primeira
o recurso a qualquer procedimento vez, em 1927,15 mas foi tão-somente em
licitatório alternativo. Basta que, na
forma da lei, sejam obtidos previamente (M) Cf. Amoldo Wald, “Da constitucionalidadc
o registro e a autorização da CVM, que c licitudc da emissão dc ADR dc ações
legitimam o desencadeamento dessa preferenciais dc instituição financeira bra­
operação no mercado secundário de sileira”, in Rev. de Direito Mercantil, n. 92,
balcão (Lei 6.385, art. 21, § 3.°; Instru­ p. 7 ss.
ção CVM 88, arts. 2.°, caput, e 8.°). (,5) “...the Guaranty Trust Company of New
York (now merged into the Morgan
Guaranty Trust Co. of N.Y.), in coopcration
4. A oferta no mercado externo, atra­ with a number of leading brokcragc firms
vés de ADR in New York and abroad and with sevcral
stock cxchanges, devised in 1927 an
American Dcpositary Reccipt (ADR). This
4.1. Cumpre, ainda, tocar em outro instrument is a ncgotiablc reccipt, registered
ponto. Ocorre que, tal como está expos­ in the owner’s name, for a statcd number
to no preâmbulo deste, cogita-se, na of sharcss of a forcign Corporation issucd
by the trust departments of the largc New
York City commcrcial banks...” (Jules I.
í,3> Hcly Lopes Meirelles, Direito Administra­ Bogcn, Financial Handbook, N. York, 4.a
tivo Brasileiro, 15.® cd., 1990, p. 77. cd., 1964, p. 3/29).
DOUTRINA 17

1955 que assumiram um papel relevante Títulos e Bolsa de 1934 admitindo,


no mercado, quando a “Securities and destarte, uma colocação privada (private
Exchange Comission” (SEC), a agência placenient) peculiar, em que as ações
reguladora do mercado de capitais nor­ estrangeiras são negociadas com um
te-americano, os disciplinou, baixando a limitado número de compradores e in­
regulamentação denominada Form S-12. vestidores institucionais, elencados no
As vantagens dos ADR sobre os títulos diploma citado como “qualified institu­
estrangeiros, por eles representados, para cional buyers (QIB)”.
efeito desse acesso ao mercado norte-
americano, decorrem do fato de que eles 4.5. São qualificados como QIB, ou
são emitidos na moeda norte-americana seja, compradores institucionais ou in­
e são regidos pelas leis dos EUA. Para vestidores profissionais dessas ações
as empresas estrangeiras, as vantagens (ações essas objeto de depósitos ADR,
desses certificados defluem do fato de e isentas dos registros impostos pela
que os mesmos lhes permitem o acesso legislação, nos termos do parágrafo 4(2)
ao mercado norte-americano, sem que as da Lei de 1933 e da Rcgulation D, razão
suas ações fiquem submetidas às forma­ pela qual são denominadas “restricted
lidades dos registros na CVM, ou as securities”), são qualificadas como QIB,
companhias ao sistema de informação repita-se, justamente as instituições que
permanente (“integrated disclosure compõem o sistema de distribuição de
systeni'), imposto pelas leis norte-ame­ valores no mercado, conforme se obser­
ricanas de mercado. va da lista constante da secção(a), (i) a
(iii), da mencionada “Rule 144A”.'1
4.4. Esses certificados adquiriram sua
forma atual com a adoção pela SEC da 4.6. Daí a natureza singular de dis­
chamada Ride 144A, de 23 de abril de tribuição quase-pública dessa colocação
1990, dando nascimento às chamadas privada de ações, como é expressamente
“Rule 144A American Depositary insinuada no “prefatory release” (Sec.
Shares” (“Ride 144A ADSs”), incorpo­ Act Rei. 6862) e no item 7 das
ráveis nos certificados denominados “preliminary notes” da Regra 144a,
“Rule 144A American Depositary constituindo o mercado correspondente
Receipts” (“Ride 144A ADRs”).'b Dita — o chamado “Ride 144A inarket” —
regra tem por fim propiciar uma exceção um primeiro passo no sentido da oferta
à secção 5 da Lei de Títulos, de 1933, pública.18
que requer o registro da companhia e
da distribuição na SEC, assim como às
exigências de informação integrada da (,7) Há uma tendência a ampliar o número
Lei de Títulos de 1933 e da Lei de desses QIBs, como aliás há uma tendência
de ampliar esse “private placenient market".
Nos Estados Unidos, essas colocações pri­
(,6) A Rule 144A (Private Resales of Securities vadas aumentaram de SI8 bilhões de dó­
to Institutions) foi originalmcnte proposta lares cm 1981 para $139 bilhões cm 1987
através do Securities Act Release N. 6806, c $202 bilhões cm 1988 (cf. “SEC Rule
42 SEC Docket (CCH) 76, em 25 dc 144A: The Rule Heard Round thc Globe
outubro dc 1988; reproposta através do — or thc Sounds of Silencc?” in The
Securities Act Release N. 6839, 43 SEC Business Lawyer, v. 47, Nov. 1991, p. 333
Dockct (CCH) 2027, cm 11 de julho dc ss).
1989, c adotada mediante o Securities Act ti») “However, it is clear from the language in
Release N. 6862, 46 SEC Dockct (CCH) the prefatory release and the Preliminary
26, dc 23 dc abril dc 1990, c codificada Note 7 to thc Rule that, in combination
no 17 C.F.R. par. 230.144A (1991). with eithcr Rcgulation D or par. 4(2), thc
18 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

4.7. Ora, essa distribuição secundária 5. A concessão de deságio no preço de


fora de bolsa, com investidores e inter­ venda
mediários profissionais, se aproxima
muito da distribuição secundária de 5.1. E aqui passamos ao último ponto:
balcão. Ademais, a adoção, para a ne­ na eventualidade de ser necessária a
gociação e cotação desses certificados, concessão de deságio no preço de ven­
do sistema “PORTAL” (acróstico de da, em relação ao preço de mercado
“Private Offerings Resale and Trading local no dia da realização do negócio,
through Automated Linkages”), como tal fato encontraria proibição de algum
mercado computadorizado fora de bolsa, tipo para sua efetivação? A resposta a
instituído em 15 de junho de 1990 pela essa pergunta recomenda que voltemos
NASD (“National Association of a examinar a operação, já descrita na
Securities Dealers”), encarregada da consulta.
regulação do mercado de balcão, apro­
xima ainda mais essa distribuição no 5.2. Como está imaginado, a oferta
mercado de ADR da oferta implementada global, compreende uma oferta em
através do mercado de balcão. É uma mercados externos (EUA e Europa) e
forma engenhosa de introduzir as ações uma oferta local, via ADR e balcão,
estrangeiras no mercado norte-america­ orientadas ambas pela necessidade de o
no, sem autorizar que as mesmas fun­ preço local ser exatamente igual àquele
cionem como expediente hábil para que vier a ser fixado nos mercados
levantar recursos oriundos da poupança internacionais. Nesses mercados exter­
pública, visto que só os QIBs podem nos, as ADS, representando, cada uma,
participar do “PORTAL”.’9 várias ações das empresas, corporifica-
das em certificados ADR, serão ofere­
4.8. Ora, tudo isso nos habilita a cidas, nos EUA, através de adquirentes
concluir que a operação global de ações iniciais, e na Europa através de gerentes
de empresas públicas ou de uma mista, internacionais, a compradores institucio­
fora de bolsa, através do mecanismo nais (QIBs) e a um limitado número de
simultâneo de ADRs e do mercado de investidores institucionais. A esses in­
balcão local, atende a todos os pressu­ vestidores iniciais e intermediários, é
postos tanto da Lei 8.666/93, quanto da assegurada uma opção de compra de
legislação específica de mercado, a que títulos suplementares.
a lei de licitação referida se reporta, não
havendo a obrigatoriedade de que essa 5.3. Em princípio, o preço inicial da
distribuição se faça através de leilão oferta será determinado, com base na
especial da bolsa. cotação das ações na Bolsa de Valores
brasileiras, levando, porém, em conta
fatores do mercado no Brasil e no
Rulc 144A market is opcn to initial public exterior, assim como outras condições.
offerings, assuming thc first sale is to an
underwriter” (Joseph W. Bartlctt, Venture Tendo em vista que as ADS representam
Capital, 1993 Cumulative Supplement, John várias ações das empresas brasileiras, o
Wiley & Sons, Inc, New York, p. 91). preço a prevalecer na oferta local
(l9) Cf. Kulkosky, New Market in NASD's corresponderá uma cifra, em reais, equi­
Window of Opportunity, Dcalers’ Dig. Inc., valente a um-duzentos e sessenta avos
set. 1990, p. 8: “Absent an automated do preço a viger na oferta de ADS. Para
market such as the PORTAL system, thc maior precisão, a fixação do preço da
private placement market is “disjointed and
manual, with transactions often negotiatcd oferta global resultará da composição
over the telephone or face-to-face (nota 97). ponderada das cotações obtidas no Brasil,
DOUTRINA 19
EUA e Europa, entendido sempre que ção que o mesmo venha instruído, entre
as alocações nos mercados local e in­ outros documentos, com uma minuta do
ternacionais serão diferentes. “anúncio” do início da distribuição (art.
10, “a”), que necessariamente deverá
5.4. Em termos de mecânica, a deter­ conter o valor dos títulos a serem ofe­
minação desse preço será feita do se­ recidos e o “preço inicial de venda” dos
guinte modo: ao longo do período que mesmos (Anexo II, inc. 4.1 e 4.2).21
antecede a oferta, as cotações locais,
européias e americanas serão registradas
5.7. Contudo, nenhuma disposição
e reunidas pelo coordenador global da
existe estabelecendo que esse preço não
oferta combinada em Nova Iorque que,
após as devidas ponderações, cálculos e possa ser inferior ou superior ao preço
eventuais realocações, estabelecerá um de cotação no mercado local de bolsa.
único preço de oferta para todos os Na verdade, a experiência tem demons­
mercados. Esse preço poderá ser igual, trado de que, via de regra, é estabelecido
inferior ou superior em relação à cota­ um desconto na determinação do preço
ção do mercado de bolsa. inicial de oferta, visto que, envolvendo
um volume de papéis sensivelmente
5.5. Na eventualidade de ser neces­ superior à demanda normal negociada
sária a concessão de “deságio” no preço nos pregões da bolsa, o preço de oferta
de venda, cm relação ao preço de tende a ser inferior ao de cotação, que
mercado no dia da realização do negó­ reflete o fluxo normal de negociações.
cio, tal fato não encontrará proibição de
nenhuma espécie para sua efetivação, na 5.8. Aliás, na própria Instrução CVM
legislação brasileira. Com efeito, o pre­ 88, ao tratar da questão da distribuição
ço de mercado reflete sempre o jogo da de ações emitidas por “companhias
oferta e da procura, e a distribuição de fechadas”, que pertençam a acionista
um volume significativo de ações atra­ controlador ou a pessoas a ele equipa­
vés dos intermediários do sistema sem­ radas, e que serão distribuídas ao públi­
pre pode gerar uma redução na deter­ co através do mercado de balcão, são
minação do preço de oferta. previstas expressamente as hipóteses de
deságios e prémios, até “posteriormente
5.6. Como se sabe, as distribuições ao pedido de registro” (art. 2.°, II,
secundárias através do mercado de
combinado com o art. 10, III, “g”). Por
balcão, “que tenham por objeto valores
que não seria possível estabelecê-las na
mobiliários admitidos à negociação em
bolsas de valores”, são disciplinadas
pela Instrução CVM 88, de 1988, já
(2I) Por outro lado, a Instrução CVM 42, de
tantas vezes citada (art. 8.°).20 Para 28.2.85, estabelece que as operações no
efeito do pedido de registro dessas dis­ mercado secundário de balcão com ações
tribuições no mercado de balcão, a ser admitidas cm bolsa obrigam as sociedades
requerida à CVM, determina essa Instru­ que integraram o sistema de distribuição a
manterem arquivadas, à disposição da CVM,
informações a respeito do “preço de com­
(20) É prevista a negociação fora de bolsas de pra e/ou venda” (art. 2.°, V), ocorrido,
valores mobiliários nelas admitidas quando devendo remeter, outrossim, à CVM, sema­
“destinadas à distribuição pública” e “quan­ nalmente, demonstrativo consolidado das
do relativas a negociações privadas” (Re­ negociações realizadas nesse mercado, es­
solução n. 1.656, de 26 de outubro de 1989, pecificando “preços mínimos e máximos”
art. 36, ines. II e III). (art. 3.°, caput).
20 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

distribuição de ações de companhias já condutas repelidas pela legislação de


admitidas em bolsa? mercado (Lei 6.385, de 1976, arts. 4.°,
V e VIII e 18, II, “b”). Mas essas figuras
5.9. De resto, na disciplina dos pro­ só ocorrem quando comprovadamente
cedimentos especiais de negociação em se constata a existência de dolo e simu­
bolsa para as operações que representem lação na determinação do preço da
quantidades de ações superiores à média oferta (cf. Instrução CVM 8, de 8 de
diária negociada nos seus pregões (as outubro de 1979). No caso, a fixação do
chamadas “blocktrades”), a Instrução preço inicial da oferta, aliás com base
CVM 168, de 23 de dezembro de 1991, no preço de cotação, resultará de uma
expressamente prevê a possibilidade de prévia e atenta consulta ao mercado
a fixação do preço-base do leilão se externo, feita pelos membros do consór­
concentrar numa cifra inferior às últimas cio de distribuição e registradas pelo
cotações, tomando por base cotações- coordenador.
médias (art. 8.°, § l.°, alínea II), o que
legitimaria plenamente se adotassem 5.11. Essa mecânica nos autoriza,
parâmetros análogos na distribuição assim, a concluir que, na eventualidade
secundária de balcão. de ser necessária a concessão de dcságio
no preço de venda, em relação ao preço
5.10. Na verdade, a fixação de um de cotação bursátil no dia da realização
preço inferior aos de cotação em bolsa do negócio, tal fato será perfeitamente
só seria ilegítimo caso viesse a confi­ legítimo, já que não encontra proibição
gurar preço “criado em condições arti­ de tipo algum na legislação para sua
ficiais”, “manipulação de preço” ou “uso efetivação, nem vem tisnada por condu­
de práticas não-equitativas”, que são ta maliciosa.
DOUTRINA

A TEORIA DOS GRUPOS DE SOCIEDADES E A


COMPETÊNCIA DO JUÍZO ARBITRAL

ARNOLDO WALD

1. A partir da década de 80, alguns incluído, sob a influência do direito


julgados proferidos por árbitros da Câ­ anglo-saxão e de vários autores germâ­
mara de Comércio Internacional (CCI) nicos, a chamada teoria da desconside­
admitiram, com caráter excepcional, a ração, em virtude da qual o magistrado
extensão da competência do Juízo pode, em determinados casos excepcio-
Arbitrai a empresas que não tinham nais, especialmentc havendo fraude,
assinado a cláusula compromissória. Jus­ desprezar ou relegar a um nível secun­
tificaram a sua decisão pelo fato das dário a existência de uma pessoa jurí­
mesmas se identificarem com uma das dica, para identificar o seu controlador,
partes, pertencendo ao mesmo grupo levantando o véu (piercing the veil) ou
societário e tendo participado, de uma afastando o biombo protetor de quem
ou outra forma, na negociação, execu­ detém o controle, chamando-o ao feito
ção ou rescisão do negócio jurídico, que e responsabilizando-o simultaneamente
ensejou o conflito de interesses, provo­ com a empresa controlada.
cando, assim, a sujeição da pendência
aos árbitros. 5. A teoria da desconsideração tem
sido adotada no Direito Inglês, desde o
2. Essa jurisprudência pode parecer caso Salomon, ainda no século passado,
estranha, em virtude da natureza essen­ e ensejou uma ampla jurisprudência, em
cialmente contratual da sujeição das matéria de responsabilidade societária,
partes aos árbitros e do caráter excep- nos Estados Unidos e em outros países,
cional da competência dos mesmos, em tendo sido objeto de alguns julgados e
relação à Justiça comum. de importantes obras doutrinárias em
nosso país, a partir dos trabalhos dos
3. Ocorre, todavia, que as partes, ao eminentes professores Rubens Requião,
se sujeitarem aos árbitros da CCI, acei­ Lamartine de Oliveira e Fábio Konder
tam, presumidamente, e até aderem ao Comparato, este em tese com a qual
regulamento da mesma (“ICC Rides") concorreu à cátedra de direito comercial
que dá competência aos árbitros para da Faculdade de Direito da USP, em
decidirem se são ou não competentes, memorável concurso, no qual tivemos o
em cada caso, e que permite que os ensejo e o prazer de examiná-lo.1
mesmos possam interpretar construtiva­
mente as cláusulas contratuais de acordo o) Rubens Rcquião, Abuso de Direito e Fraude
com os usos comerciais relevantes (art. através da Personalidade Jurídica, in RT,
401/12; Fábio Kondcr Comparato, O Poder
13, 5). de Controle na Sociedade Anónima, tese,
São Paulo, 1975 c J. Lamartine Corrêa de
4. Entre os usos comerciais relevan­ Oliveira, A dupla crise da Pessoa Jurídica,
tes, a doutrina e a jurisprudência têm Sào Paulo, Saraiva, 1979.
22 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

6. Mais recentemente, o legislador conduta das empresas, que participavam


brasileiro, após ter tratado da teoria dos do mesmo, mas não tinham firmado o
grupos, na legislação societária em 1976, documento contendo a cláusula compro-
consagrou a teoria da desconsideração missória, comportamento que demons­
na legislação de proteção ao consumi­ trava, pelas atitudes tomadas em relação
dor, que também foi objeto de estudos ao contrato ensejador do litígio, a ade­
específicos na bibliografia brasileira.2 são efetiva, embora tácita, dos terceiros
(empresas do mesmo grupo) à vontade
7. Na jurisprudência arbitrai, algumas de sua coligada ou controlada de sujei­
poucas decisões ampliaram, ou interpre­ tar-se à arbitragem.
taram extensivamente, a competência
dos árbitros, num primeiro caso, a pedido 9. A interpretação, dada pelos árbi­
de algumas das partes, que embora não tros, à vontade das partes não aderentes,
tivessem subscrito a cláusula compro- se baseou, na arbitragem proferida no
missória, tinham participado, em nome caso Dow Chemical v. Isover Saint
próprio, do conjunto de operações que Gobain, que data de 23.9.82, no fato da
ensejaram a pendência submetida ao “holding" norte-americana ter controle
Juízo Arbitrai, de tal modo que, em absoluto de suas subsidiárias (que fir­
certo sentido, não poderia haver solução maram a cláusula compromissória), no
para o litígio sem que todos os interes­ tocante à realização, execução e rescisão
sados dele participassem, numa situação do contrato firmado com a Saint-Gobain.
que envolveria uma forma de litiscon- Entenderam os três árbitros, professores
sórcio necessário. Berthold Goldman, Michel Vasseur e
Pieter Sanders (os dois primeiros fran­
8. Entendeu-se, no mencionado caso, ceses e o último holandês, exercendo a
que a extensão da competência decorria presidência do Juízo Arbitrai) que as
da existência de dois pré-requisitos: a) várias empresas do Grupo Dow consti­
um grupo societário funcionando como tuíam, no caso, um verdadeira unidade
verdadeiro sistema integrado e b) a económica, agindo nas relações contra­
tuais com a outra parte, como se todas
elas participassem do contrato e, conse-
<2) Luciano Amaro, Desconsideração da Pes­ qiientemente, estivessem vinculadas à
soa Jurídica no Código de Defesa do cláusula compromissória.
Consumidor, Revista de Direito do Consu­
midor, São Paulo, n. 5, p. 162-82, jan./mar.
1993. Alberton Genacéia da Silva, A Des­ 10. Na ocasião, baseando-se no Re­
consideração da Pessoa Jurídica no Códi­ gulamento da CCI, concluíram os árbi­
go de Defesa do Consumidor, aspectos tros que a lei escolhida pelas partes,
processuais. Ajuris, Porto Alegre, n. 54, p. para dirimir o conflito, não se aplicava
146-179, mar. 1992. Rafael Sztajn, Descon­ no tocante à interpretação da competên­
sideração da Personalidade Jurídica, Re­
vista de Direito do Consumidor, São Paulo, cia dos árbitros em decorrência da clá­
n. 2, p. 67-75, 1991. Simone Gomes usula compromissória, matéria que de­
Rodrigues, Desconsideração da Personali­ via ser interpretada livremente, pelos
dade Jurídica no Código de Defesa do árbitros, aos quais cabia “tomar toda e
Consumidor, Revista de Direito do Consu­ qualquer decisão sobre a sua própria
midor, São Paulo, n. 11, p. 7-20, jul./set. competência” (art. 8.°, inc. 3.° do Re­
1994. Domingos Afonso Krigcr Filho, As­ gulamento da CCI de 1975), indepen­
pectos da Desconsideração da Personali­
dade Societária na Lei do Consumidor, dentemente do que pudesse dispor a lei
Revista de Direito do Consumidor, n. 13, estatal aplicável ao litígio (que só incide
78/86, jan./mar. 1995. em relação ao mérito da discussão).
DOUTRINA 23

11. Assim, a interpretação da cláusula Considérant, en particulier, que la


compromissória passou a ser definida clause compromissoire expressément
pela Lex Mercatoria — e não pela lei acceptée par certaines des sociétés du
escolhida pelas partes — não devendo, groupe, doit lier les autres sociétés qui
todavia, conflitar com a ordem pública par le rôle qu’elles ont joué dans la
internacional do país no qual deverá ser conclusion, /’exécution ou la résiliation
aplicada a decisão arbitrai, a fim de se des contrats contenant les dites clauses,
garantir a boa execução da sentença dos apparaissent selon la commune volonté
árbitros no lugar em que deve produzir de toutes les parties à la procédure,
os seus efeitos. comme ayant été de véritables parties
à ces contrats, ou comme étant
12. No caso, decidiram os árbitros, concernées, au premier chef, par ceux-
por unanimidade, a requerimento das ci et par les litiges qui en peuvent
empresas não signatárias da cláusula découlés;
compromissória, que elas podiam — e Considérant que c’est en ce sens que
até deviam — ser partes na arbitragem, se sont déjà prononcés des tribunaux
por terem participado, em nome próprio, arbitraux institués dans le cadre de la
de todas as fases contratuais, a partir de CCI (v. sentences dans L’affaire n. 2.375
sua negociação, durante sua execução e, de 1975, Clunet, 1.976.973; et dans
até, no momento de sua rescisão, tanto Faffaire 1434 de 1975, Clunet 1.976.97);
mais que não se opunham à sua sujeição que les décisions de ces tribunaux
ao juízo arbitrai e que a sua presença forment progressivement une jurispru-
era condição de eficácia da decisão a ser dence dont il échet de tenir compte, car
proferida. elle déduit les conséquences de la réalité
économique et est conforme aux besoins
13. Adotou, finalmente, para este fim, du commerce intemationai, auxquels
o Juízo Arbitrai, a chamada teoria dos doivent répondre les règles spécifiques,
grupos societários, invocando alguns elles-mêmes progressivement élaborées,
precedentes e rejeitando outros, em de 1’arbitrage intemationai;
sentido contrário, que não considerou Considérant, certes, que dans une
análogos, para concluir que: autre sentence (aff. n. 213 de 1974,
“Considerant qu’il n’est ni contestable, Clunet 1975.934) le Tribunal arbitrai a
ni contesté, que Dow Chemical Company écarté Textension de la clause compro-
(USA) possède et exerce le controle missoire de 1’une des sociétés d’un
absolu de scs filiales qui ont soid signé groupe à une autre mais s’est fondé, à
les contrats en cause, soit, comme Dow cet effet, sur ce ‘qu’il n*était nullement
France, effectivement et personnellement établi que la société X” (au sujet de
participé à leur exécution et leur laquelle le tribunal avait constaté qu’elle
résiliation: n’était ni signataire ni partie au contrat)
Considérant qu’un groupe de sociétés “aurait accepté la clause compromissoire
possède, en dépit de la personnalité si elle avait signé le contrat elle même’;
juridique distincte appartenant à chacune Considerant que cette preuve n’étant
de celle-ci, une réalité économique pas rapportée, le tribunal n’a pas admis
unique dont le Tribunal arbitrai doit 1’application de la clause compromis­
tenir compte lorsqu’il statue sur sa propre soire, mais que dans la présente espèce,
compétence, en application de 1’article les circonstances et les documents précé-
13 (version de 1955) ou de Farticle 8 demment analysés montrent que cette
(version de 1975) du Règlement de la application est conforme à la commune
CCI; volonté des parties.
24 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

Qu’il n’est pas sans intérêt de rappeler exprimée sur ce point par les parties et
que c’est dans le même sens que s’est des usages du commerce;
récemment prononcé un Tribunal arbitrai Considérant qu’avec raison, les arbi­
américain se référant à des décisions tres ont observé en la cause que la loi
étatiques américaines, en observant 'qu ’il applicable pour la détermination de la
n ’est ni raisonnable ni pratique d 'exclure portee et des effets de la clause
(de la compétene des arbitres) des compromissoire instituant un arbitrage
demandes de sociétés qui ont un intérêt international ne se confondait pas
dans FaJJaire et sont membres de la nécessairement avec le droit applicable
même famille de sociétés' (Society of au fond du litige;
Maritime Arbitrators, Inc. New York, Considérant que par une interprétation
Partial Final Award n. 1.510, 38 nov. souveraine des conventions susvisées et
1980, Yearbook Commercial arbitration, des documents échangés lors de leur
VII (1982), American awards, p. 15 négociation et de leur résiliation, les
1)”? arbitres ont jugé, au terme d’une
motivation pertinente et exempte de
14. A Corte de Apelação de Paris, em contradiction, que, suivant la volonté
acórdão de 21.10.83, rejeitou recurso de commune de toutes les sociétés intéres-
anulação contra a decisão supramencio­ sées les sociétés Dow Chemical France
nada, adotando os fundamentos da et Dow Chemical Company avaient été
mesma e concluindo que a lei nacional parties à ces conventions bien que ne
escolhida pelas partes para a solução de les ayant pas matériellement signées, et
litígios não se aplicava na interpretação que la clause compromissoire leur était
da cláusula compromissória, no tocante dés lors applicable;
à incidência que poderia ter sobre de­ Qu 'ils ont aussi fait accessoirement
terminadas sociedades do mesmo grupo, appel à la notion de ‘groupe de sociétés’
que tinham efetivamente participado do dont 1’existence à titre cTusage du
negócio, embora não tivessem aderido commerce international n ’est pas
explicitamente ao compromisso. sérieusement contestée par la deman-
deresse. ”4
15. Nos seus considerandos, a Corte
firmou os seguintes princípios: 16. Mais recentemente, a Corte de
“Considérant que, par 1’éffet de la Apelação de Paris, no caso S.A. Kis
clause compromissoire ci-dessus rappe- France contra Société Générale e outros,
lée, les parties aux contrats de distribution rejeitou recurso de anulação contra
de 1965 et 1968 se sont soumises aux sentença arbitrai, de 27.1.89, que tam­
dispositions du Règlement de conciliation bém ampliou, por interpretação, a com­
et d’arbitrage de la CCI; petência do Juízo Arbitrai, a fim de
Considérant qu’il résulte de la submeter, ao mesmo, empresas do grupo
combinaison des articles 8, 11 et 13 in litigante, que não tinham assinado o
fine de ce Règlement que, pour statuer documento no qual constava a cláusula
sur sa compétence, 1’arbitre doit compromissória, consagrando a teoria
notamment tenir compte de la volonté do grupo societário, considerada como
constituindo uso do comércio interna­
cional, que não conflitava com a lei
O) Case 4131-ICC, in Revue de 1’Arbitrage,
1984, p. 137 c, cm versão inglesa, in francesa, que, por sua vez, o consagrava
Collection ofl.C.C. Arbitrai Awards, 1974-
1985, Paris-New York, I.C.C. Publishing, (4) Acórdão in Revue de /'Arbitrage, 1984, p.
1990, p. 146 ss. 99-101.
DOUTRINA 25

— sob outra forma e com outros fins todas as dívidas e obrigações do esta­
— na Lei 82.915, de 28.10.82 (art. 439, belecimento comercial, conforme por
1). ele teria sido reconhecido perante os
tribunais ingleses.6
17. Acrescentou a decisão da Corte
de Paris que as conclusões de Juízo 19. Há, pois, uma tendência dos ár­
Arbitrai tanto mais se justificavam bitros da CCI, de ampliar a doutrina do
quando fundamentadas na análise das grupo societário, para fazê-la incidir em
convenções das quais se extraía a inten­ matéria de sujeição à arbitragem, que,
ção comum das partes de realizar uma inclusive, foi recentemente suscitada em
operação económica única, da qual Juízo Arbitrai, cuja constituição foi
participavam todas as entidades, cons­ provocada pela Brasoil, com pleitos
truindo um conjunto de instrumentos contra várias empresas líbias, em virtude
contratuais no qual as filiais permane­ de contrato de pesquisa e construção de
ciam num estado de estreita dependên­ poços artesianos, contrato este que foi
cia de suas controladoras, que manti­ rescindido pelos contratantes líbios,
nham o poder de decisão e deviam, ensejando, uma arbitragem em Paris.
portanto, ser consideradas partes no pleito
sujeito à arbitragem.5 20. No mencionado processo, que se
tomou público em virtude de notícias da
18. No mesmo sentido, também existe imprensa brasileira, a parte líbia preten­
outra decisão da Corte de Apelação de deu chamar ao pleito a controladora da
Paris, pela sua Primeira Câmara, Seção Brasoil, invocando tanto a teoria dos
C, datada de 11.1.90, numa operação grupos, como a própria legislação bra­
entre a empresa Elf Aquitaine e um sileira que, nas sociedades de economia
grupo de pessoas jurídicas e físicas mista, considera o controlador co-res-
oriundas da Arábia Saudita, denominado ponsável pelas obrigações e responsabi­
conjuntamente Grupo Orri. Neste julga­ lidades assumidas pela controlada (art.
do, os árbitros decidiram que o contro­ 242 da Lei 6.404).
lador das empresas signatárias do termo
de compromisso estava pessoalmente 21. Tratava-se, pois, de compatibilizar
sujeito à cláusula compromissória em os princípios da Lex Mercatoria, do
virtude das circunstâncias especiais do direito brasileiro e, eventualmente do
caso. Na realidade, entendeu a decisão direito líbio, que era aplicável à solução
arbitrai, mantida pela Corte de Paris, do mérito do litígio, em virtude de
que os negócios eram realizados pelas cláusula contratual. Alegaram os inte­
várias sociedades, todas controladas, ressados líbios que havia uma jurispru­
pessoalmente, pelo Sr. Mohamed Abdul dência consolidada, nos casos anterior-
Rahman Orri, que, assim, não podia mente citados — e em particular no
alegar não estar vinculado ao Juízo processo da Dow Chemical —, reconhe­
Arbitrai, em virtude da existência de cendo o poder dos árbitros de ampliar
contratos coligados, uns aos outros, tanto a sua competência para chamar ao feito
mais que, pela lei saudita, se tratava de quem não tivesse assinado o instrumen­
comerciante individual, que usava uma to no qual constava a cláusula compro-
razão social, para explorar o comércio missória. Em defesa dos seus interesses,
marítimo, obrigando-se pessoalmente por a Brasoil não só comprovou a diferença

<5) Recuei! Dalloz Sirey, 1990, 40ème cahier, (6) Journal de Droit Internacional, 1991, 1, p.
informations rapides. 144.
26 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

existente entre o seu caso e os anteriores 23. Essa compatibilização da Lex


decididos por árbitros, em processos Mercatoria com a lei brasileira, que
submetidos à CCI, como ainda eviden­ encontramos na última decisão referida,
ciou que o direito brasileiro não dava é da maior importância num momento
à teoria dos grupos societários a exten­ em que se multiplicam, de um lado, no
são pretendida, para permitir a amplia­ plano económico, as operações de project
ção da competência do Juízo Arbitrai financin^ e de joint-venture, e, no plano
em relação a terceiros não signatários da jurídico, as subsidiárias e as special
cláusula compromissória e muito menos purpose companies, ambas constituindo
do compromisso, especialmente quando instrumentos úteis e preciosos, especi­
o terceiro não tinha participado do almente em certas condições, nas quais
conjunto de contratos e se opunha à sua as empresas querem limitar a sua res­
sujeição à cláusula compromissória, à ponsabilidade contratual. Prevalece, as­
qual não tinha aderido nem explícita sim, aliás, a posição do direito brasilei­
nem implicitamente, não se tratando, ro, que, somente, em caráter excepcio-
outrossim, de litisconsórcio necessário nal, admitiu a responsabilidade do
unitário. controlador por atos e débitos da em­
presa controlada. É evidente que a
22. No caso, os árbitros decidiram generalização da incidência da teoria
reconhecer a inviabilidade da extensão dos grupos, em todos os casos, poderá
da sua competência, para chamar ao ensejar um verdadeiro retrocesso econó­
feito as empresas que controlam, direta mico e jurídico, transformando as sub­
e indiretamente, a Brasoil, por faltarem sidiárias em verdadeiras empresas em
os requisitos legais e processuais para comandita por ações, nas quais caberia,
tanto. Pode ter, inclusive, influenciado sempre, uma responsabilidade ilimitada
os árbitros, a informação de acordo com ao controlador, o que talvez viesse inibir
a qual os tribunais brasileiros não ho­ determinadas atuações pioneiras no
mologariam a decisão arbitrai, se viesse campo industrial e empreendimentos im­
a abranger pessoas jurídicas que não portantes no campo financeiro.
tinham firmado o compromisso, não
tendo aceito expressamente a competên­
cia do Juízo Arbitrai para dirimir con­
flito que os viesse alcançar patrimonial­
mente.7
(f) Jean Pierrc Mattout, Le financement de
projet ou la puissance du contrai, in O
ro Decisão proferida no caso ICC 7.307/FMS, Direito na Década de 1990: Novos Aspec­
em caráter preliminar, em relação ao cha­ tos, Estudos em Homenagem ao Professor
mamento ao feito de terceiros por uma das Arnoldo Wald, São Paulo, RT, 1992, p. 347
partes litigantes, com a oposição da outra. ss.
DOUTRINA

A DEBÊNTURE COMO INSTRUMENTO DE APLICAÇÃO E


CAPTAÇÃO DE RECURSOS
DURVAL JOSÉ SOLEDADE SANTOS

Sumário: Introdução — 1. Exemplos de “montagens financeiras” — 2. Experiência


brasileira — 3. Aspectos jurídicos — 4. Emissão de debêntures — 5. Características
das debêntures — 6. Derivativos — 7. Cédula pignoratícia de debêntures — 8.
Observações finais.

Introdução Quanto ao prazo, ele pode ser tanto de


curta duração, quanto de duração inde­
A debênture é, certamente, dentre os finida como em operações em que não
títulos de dívida — regulamentados no haja vencimento em determinada data,
Brasil — o mais interessante. só ocorrendo no caso de um desempe­
É de se notar, que pelo sistema legal nho estipulado não ser alcançado, quan­
brasileiro, a relação débito/crédito so­ do são consideradas como quase-equity.
mente pode ser consubstanciada em Permite ainda a debênture que sobre
títulos, em sentido lato, devidamente ela sejam lançados derivativos, tais como
regulados por legislação pertinente. opções (Instrução n. 193, de 20.7.92, da
Diferentemente do que ocorre, por exem­ CVM), “warrants” (Instrução n. 223, de
plo, nos E.U.A, onde qualquer tipo de 10.11.94, da CVM), “swaptions”, etc.
operação pode ser representado em tí­ São também passíveis de compor as
tulos que são negociados no mercado — carteiras de Fundos: a) de Conversão
independente de qualquer regulação ou, (Instrução n. 91, de 6.12.91, da CVM);
até, de auto-regulação. Sobre esse as­ b) de Mútuos de Investimento (Instrução
sunto, deve ser ressaltado que — devido n. 215, de 8.6.94, da CVM); c) de
aos acontecimentos recentes envolvendo Mútuos de Investimento — Carteira
derivativos nos chamados mercados Livre (Instrução n. 215, de 8.6.94, da
globais — os seis maiores bancos de CVM); e d) de Investimento em Empre­
investimento americanos estão propon­ sas Emergentes (Instrução n. 209, de
do a primeira auto-regulação de suas 25.3.94, da CVM). Nos dois últimos a
atividades no setor. legislação permite, inclusive, que as
Os aspectos jurídicos das debêntures carteiras componham-se exclusivamente
serão explicitados após algumas consi­ desses títulos.
derações de ordem financeira.
No que se refere a “montagens finan­ 1. Exemplos de “montagens financei­
ceiras”, não há dúvida que é a debênture ras”
que permite a maior flexibilidade. É
possível nela representar de um simples Como um exemplo de “montagem”,
débito até operações bastante comple­ poderia ser criada uma debênture, subor­
xas, nas quais a debênture conjugue dinada, conversível, com um juro fixo,
aplicações de renda fixa e variável. outro variável vinculado ao preço de seu
28 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

produto, e uma participação no lucro — debêntures como forma de aplicar seus


calculada como se a debênture fora uma recursos —, neste caso a emissão terá
ação. O vencimento seria referenciado que ser pública, conforme a Resolução
com um ou mais eventos e não com uma n. 1.777, de 19.12.90, do CMN e a
data. Os eventos poderiam ser — no Circular n. 545, de 18.6.90, do BACEN.
caso de uma companhia fechada — a Além das vantagens passíveis de constar
abertura de capital após a implantação das emissões, há ainda a liquidez de seu
de uma expansão e o produto alcançar crédito, podendo as instituições negociar
um preço previamente estabelecido. os títulos de sua carteira no Sistema
Quais as vantagens: 1) para a emis­ Nacional de Debêntures — SND, quan­
sora, um juro fixo baixo enquanto es­ do desejar.
taria fazendo a expansão e, após esta, A instituição financeira entendendo,
um juro variável referenciado ao aumen­ por exemplo, que uma debênture con­
to do preço de seu produto e uma versível possa vir a ter significativo
participação vinculada a sua rentabilida­ ganho de capital e dela, por isso, não
de; não teria uma data de vencimento, queira desfazer-se, necessitando, entre­
desde que cumprisse sua obrigação de tanto, de recursos para outras operações,
abrir capital e o preço atingisse o pa­ poderá lançar Cédulas Pignoratícias
tamar estabelecido. Durante esse perío­ lastreadas em tal debênture.
do — por ser uma debênture subordi­ Esses são apenas poucos exemplos de
nada — sua capacidade de endivida­ uma enorme quantidade de variações
mento bancário não estaria limitada por possíveis.
falta de garantias;
2) para o investidor, teria a possibi­ 2. Experiência brasileira
lidade de ter uma remuneração de renda
variável sem ter comprometida sua A experiência brasileira na utilização
liquidez caso a empresa não abrisse seu das debêntures podia ser classificada até
capital, quanto a renda fixa, estaria meados da década anterior como rela­
garantido que teria uma determinada tivamente pequena, apesar de a primeira
rentabilidade, pois — em caso contrário legislação a elas referir-se datar de 4 de
— o não alcance do desempenho esta­ novembro de 1882 — Lei 3.150. O
belecido acarretaria o vencimento da termo debênture foi utilizado pela pri­
obrigação. meira vez no decreto (n. 8.821, de
Caso a empresa abrisse seu capital, 30.12.82) que regulamentou esta lei.
registrasse suas ações em Bolsa de Como curiosidade, segundo alguns
Valores e mantivesse a rentabilidade comentadores de títulos de crédito, a
oferecida, o debenturista poderia esperar debênture foi inventada pelos empreen­
— recebendo sua renda fixa além da dedores ingleses responsáveis pela aber­
variável — até que a cotação da bolsa tura do Canal de Suez, como forma de
atingisse um valor que considerasse captação de recursos para seu financi­
ideal, para, só então, converter suas amento.
debêntures e vender as ações decorren­ Durante os últimos cinco anos houve
tes. Conta, ainda, com as possibilidades um enorme incremento na emissão desses
de lançar derivativos sobre suas debên­ títulos, tomando-se a principal alterna­
tures e vender a debênture sem convertê- tiva aos recursos do Banco Nacional de
la. Desenvolvimento Económico e Social
Outra “montagem” possível seria as — BNDES nos financiamentos de longo
instituições financeiras subscreverem prazo.
DOUTRINA 29

Ressalte-se que o Sistema BNDES, 3. Aspectos jurídicos


principalmente através de sua Subsidi­
ária BNDES Participações S.A. — As características e o perfil dessas
BNDESPAR, é também importante debêntures são detalhados no quadro
subscritor de debêntures. mostrado após as Observações Finais.
A carteira de debêntures da Atualmente a legislação pertinente às
BNDESPAR, no valor de cerca de USS debêntures está contida basicamente nas
500 milhões, é composta unicamente de Leis 6.385/76 e 6.404/76, Resoluções do
debêntures conversíveis. Além dessa Conselho Monetário Nacional — CMN,
característica, são em sua maior parte: Circulares do Banco Central e Instru­
subordinada, nominativas, corrigidas por ções da Comissão de Valores Mobiliá­
IGP-M, com juros de 12% a.a. e prémio rios — CVM.1
de ANBID — Associação Nacional de A debênture, segundo o art. 2.° da Lei
Bancos de Investimentos e Desenvolvi­ 6.385/76, é um valor mobiliário repre­
sentativo de uma fração do empréstimo
mento mais juros de 3% a.a.; portanto,
coletivo — geralmente a longo prazo —
como se verá a seguir, dentro dos lançado pública ou privativamente por
padrões do mercado. sociedade anónima; que, pela legislação
Para confirmar a atual importância da brasileira, é o único tipo societário
debênture como instrumento de capta­ autorizado a emiti-la. Para utilizar um
ção, pelas empresas que necessitam de termo ora em voga, ela é uma dívida
recursos, e aplicação, pelos investidores “securitizada”.
— notadamente os institucionais — A partir desse ponto, as referências à
serão demonstrados a seguir os dados legislação, quando não expressamente
até abril de 1995 sobre emissões desses mencionadas em contrário, são à Lei
títulos, apurados dos registros do Siste­ 6.404/76.
ma Nacional de Debêntures — SND, da
Associação Nacional de Instituições de 4. Emissão de debêntures
Mercado Aberto — ANDIMA:
a) 136 companhias emissoras; A emissão de debêntures é precedida
de algumas formalidades legais:
b) 180 emissões, em 350 séries, com
79,21 milhões de títulos, dos quais 1) Decisão em assembléia — a com­
71,03 milhões de debêntures deposita­ petência para a deliberação sobre a
das no SND; e emissão é privativa da Assembléia-Ge-
ral — arts. 59 e 122.
c) com o valor atual do estoque de É interessante notar que o § 1,° do art.
R$ 10,81 bilhões. 59 admite, à semelhança da autorização
Dentre estas, 9 séries, totalizando de capital, a delegação ao Conselho de
cerca de R$ 300 milhões, foram reali­ Administração para estabelecer as con­
zadas somente de janeiro a abril de dições financeiras da emissão, inclusive
a oportunidade da emissão. O § 2.°, do
1995. mesmo artigo, autoriza ainda que sejam
Tais dados referem-se a quase todas estabelecidos pela AGE os limites de
as debêntures emitidas, exceto, basica­ séries e valor, deixando ao Conselho de
mente, as da carteira da BNDESPAR;
ressalvada uma parte em que possa (l) Instruções: n. 13, 30.9.80; n. 88, de 3.11.88;
existir uma dupla contagem, por estima­ n. 168, de 23.12.91; n. 182, de 13.2.92; n.
tiva, cerca de RS 150 milhões. 194, de 3.8.92; n. 202, de 6.12.93.
30 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

Administração o exame do detalhamento quase inteiramente revogada pela Lei


das séries e do valor de cada uma. 6.404/76 que, entretanto, em seu art. 63
2) Escritura de Emissão — declaração manteve as mesmas formas: portador e
unilateral, por instrumento público ou endossável. A debênture escriturai —
particular, firmado pela emissora e o bastante utilizada atualmente — não
agente fiduciário, se houver — art. 61. consta deste artigo, mas do art. 74, que
Por oportuno, a emissão de debêntu­ normatiza a extinção de debêntures.
res distribuída ou admitida à negociação Por sua vez, a Lei 8.021, de 12.4.90,
pública terá obrigatoriamente agente veda — em seu art. 2.°, item II — a
fiduciário. “emissão de títulos e a captação de
Todas as condições das debêntures depósitos ou aplicações ao portador
deverão constar da Escritura. nominativos-endossáveis”.
A Companhia pode efetuar tantas Aparentemente estaria vedada a emis­
emissões de debêntures quanto desejar, são de debêntures endossáveis; entretan­
desde que não ultrapasse os limites to, o art. 4.°, do mesmo diploma legal,
estabelecidos no art. 60. ao referir-se à Lei 6.404/76 somente
Entretanto, não pode efetuar nova menciona a alteração do art. 20 — que
emissão antes de colocadas todas as trata das formas das ações — que
debêntures das séries da emissão ante­ passou a vigorar com a seguinte reda­
rior ou canceladas as séries não colo­ ção: “Art. 20. As ações devem ser
cadas (§ 3.° do art. 59). nominativas.” O Parecer de Orientação
Séries são como são chamadas as da CVM — de n. 26, de 7.4.92 —
divisões da emissão. Deve ser ressalta­ também só se refere às ações.
do, porém, que nos casos de emissões Utilizando-se da regra de interpreta­
com mais de uma série, a igualdade de ção que cita que não cabe ao intérprete
direitos está limitada a cada série, con­ restringir o que a lei não o faz, é
forme disposição do parágrafo único do possível concluir que as debêntures ao
art. 53. portador e as endossáveis estão em
vigor?
A resposta é negativa no que se refere
5. Características das debêntures às ao portador e endossáveis em branco
e positiva àquelas que têm endosso em
Características do certificado — preto.
Devido à própria inclusão da debênture Essa resposta baseia-se no art. l.° da
como título de crédito, seu certificado retromencionada Lei:
— no caso das endossáveis — deve Art. l.° “A partir da vigência desta
conter requisitos legais, no caso, os Lei, fica vedado o pagamento ou o
fixados no art. 64. resgate de qualquer título ou aplicação,
O art. 63, em seu § 2.°, autoriza que bem como dos seus rendimentos ou
as debêntures sejam objeto de depósito, ganhos, a beneficiário não identifica­
com emissão de certificado e, para do”. (grifos do autor)
tanto, remete ao art. 43. A prática, como demonstrada no
quadro final, consagrou esta interpreta­
Formas de circulação — Até o ad­ ção.
vento da Lei 4.728, de 14.7.65, a única Apesar de não mais constar na Lei a
forma de emitir debênture era ao por­ endossável como forma de ação, suas
tador. Esta lei criou, em seu art. 40, a normas de transferência não foram
debênture endossável — mantendo a revogadas, pois, em caso contrário, os
forma ao portador. A Lei 4.728/65 foi demais títulos endossáveis — Debêntu-
DOUTRINA 31

res, Cédulas Pignoratícias, Partes validade da estipulação — que o rea­


Beneficiárias e Bónus de Subscrição — juste seja anual (art. 28 e § l.°).
aos quais a lei remete à essas normas, A Taxa de Juros de Longo Prazo —
sem estabelecê-las de per si — ficariam TJLP, criada pela Medida Provisória n.
inaplicáveis. 684, de 31.10.94, apesar de tecnicamen­
Por outro lado, no caso das debêntu- te não ser considerada como correção
res escriturais, deve-se utilizar, nova­ monetária, também pode compor a re­
mente, o art. 74 — que estipula, “(man~ muneração das debêntures.
terá arquivados) — (...) os recibos dos No que se refere à variação cambial,
titulares das contas das debêntures es­ depois de idas e vindas, a atual legis­
criturais”. Portanto, usando-se o sistema lação a permite. A alínea “c”, do § l.°,
da lei, pelo § l.° do art. 35 tem-se que do art. 27, da Medida Provisória acima
a transferência da debênture escriturai referida, ao tratar das exceções à cor­
opera-se: pelo lançamento efetuado pela reção por IPC-R, autoriza àquelas tra­
instituição depositária em seus livros, a tadas em lei especial. Com isso, já
débito da conta de debêntures do bastaria a menção à variação da taxa
alienante e a crédito da conta de debên­ cambial contida no parágrafo único do
tures do adquirente a vista de ordem art. 54 da Lei das S.A. para que seja
expressa do vendedor. admitida sua utilização.
Em ambos os casos, para o exercício Como reforço, citamos o art. 6.°, da
dos direitos decorrentes da titularidade Lei 8.880, de 27.5.94 — que dispõe
das debêntures é necessário que a trans­ sobre o Programa de Estabilização
ferência esteja averbada nos livros pró­ Económica. Este artigo estabelece que:
“É nula de pleno direito a contratação
prios.
de reajuste à variação cambial, exceto
quando expressamente autorizada por
Remuneração — Como já visto, a Lei lei federal (...)” (grifos do autor). E o
em vigor é bastante flexível com relação caso das debêntures.
a esse capítulo, permitindo a emissão de
debêntures que remunerem os seus titu­ Prazo, Amortização e Resgate — K
lares com juros — fixos e/ou variáveis Lei não fixa prazo mínimo ou máximo
— e/ou com participação no resultado para o vencimento do título. Portanto,
do exercício, calculada após a provisão pode ser fixado qualquer um, desde que
para o imposto de renda — art. 187, inc. o mesmo conste da escritura de emissão.
VI. Usualmente são exigíveis de longo pra­
Por expressa referência do § l.° do zo. O diploma em vigor admitiu, inclu­
art. 54, a debênture poderá ter correção sive, a debênture sem prazo de venci­
monetária, inclusive com base em va­ mento. Neste caso, o vencimento so­
riação cambial. mente ocorrerá no caso de inadimple-
Quanto à correção monetária, estabe­ mento de condições pactuadas — finan­
lece a legislação em vigor — Medida ceiras ou não — ou de dissolução da
Provisória n. 911, de 21.2.95 — que companhia. Dentro da mesma série,
somente poderá dar-se pela variação do porém, o tratamento deve ser igual para
IPC-R (caput do art. 27) ou, por ser todas as debêntures: o mesmo ou ne­
valor mobiliário, pela Taxa Referencial nhum prazo para todas.
— TR (§ 5.°, do art. 27). A estipulação A Lei deu liberdade para a escritura
que não seja feita por estes índices não de emissão fixar amortizações parciais,
tem qualquer efeito (§ 2.°, do art. 27). resgates parciais ou totais e aquisição de
Além disso, é necessário — para a debêntures.
32 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

A diferença é que I) as amortizações permanecer com a debênture que lhe


reduzem, no percentual estabelecido, o assegura renda fixa.
valor nominal de todas as debêntures; Não há restrição ao uso de cupons
II) no resgate parcial, que é feito por destacáveis — inclusive pela remissão
sorteio, uma parte das debêntures é contida no art. 63 — para o recebimento
retirada de circulação mediante o paga­ de remuneração convencionada — ju­
mento de seu preço unitário — PU ros, participação nos lucros, correção
(valor nominal atualizado + remunera­ monetária etc.
ção); e III) a compra é realizada em
Bolsa, se houver cotação, por preço Espécies de garantias — No art. 58,
inferior ao valor nominal ou fora de a Lei classificou as espécies de debên­
Bolsa por valor igual ou inferior ao tures em função de terem ou não ga­
valor nominal, em qualquer desses casos rantias. Portanto, para a Lei, existem as
não é necessário o cancelamento das seguintes espécies de debêntures:
debêntures adquiridas. a) Debêntures com garantia real —
As garantias podem ser constituídas na
Cupons e bónus de subscrição — Os própria escritura de emissão ou em
cupons eram expressamente tratados no separado, sendo, inclusive, permitida a
§ 8.° do art. 44, da Lei 4.728/65. Ela constituição progressiva de garantias,
estabelecia, ao se referir às debêntures uma vez que os bens a serem adquiridos
conversíveis em ações, que o direito de com recursos da emissão podem acres­
subscrição poderia ser negociado sepa­ cer às garantias anteriormente prestadas.
radamente. A nova Lei não reproduziu
b) Debêntures com garantia flutuante
tal disposição. Mas, em contrapartida,
— A garantia flutuante assegura privi­
ao tratar da emissão de bónus de subs­
légio geral sobre o ativo da companhia,
crição, citou-os como vantagem adicio­
sem impedir, entretanto, negociação
nal aos subscritores de debêntures —
art. 77 —, substituindo, portanto, os
normal. Da mesma forma, é possível
antigos cupons destacáveis. que, em grupos de sociedades — art.
O bónus de subscrição, criado pela lei 265 —, a garantia seja dada sobre o
atual e regulamentado pelos arts. 75 a ativo de duas ou mais sociedades do
79, mereceria um escrito a parte. grupo.
Simplificadamente, ele é a “securiti- c) Debêntures sem preferência —
zação” do direito de preferência, ou Sem gozar de preferência, seus titulares
seja, quem o detém possui o direito de equiparam-se aos demais credores co­
subscrever ações em aumentos de capi­ muns ou quirografários.
tal, independente de ser sócio da com­ d) Debêntures subordinadas — Essas
panhia. É negociável livremente. preferem apenas aos acionistas.
Ele pode ser utilizado como vantagem Independente da espécie, o § 5.° do
adicional tanto na emissão de debêntu­ art. 58 permite que seja estabelecido na
res conversíveis como na simples. Mas escritura de emissão a obrigação de não
é nestas que se mostra mais atraente. alienar ou onerar bem imóvel ou outro
Ao invés de emitir uma debênture bem sujeito a registro de propriedade.
conversível que desaparece obrigatoria­ Segundo a lei, desde que averbada no
mente ao convertê-las em ações, a registro competente, tal obrigação é
debênture simples conjugada ao bónus oponível a terceiros.
de subscrição dá liberdade ao possuidor É bom ressaltar que o capítulo garan­
de utilizar o bónus para subscrever tia está diretamente ligado ao inadim-
capital — ou vender o bónus — e plemento de condições estabelecidas na
DOUTRINA 33

escritura de emissão, sendo expressa­ 2. °) Garantia Flutuante: total da emis­


mente facultado ao agente fiduciário, são não superior a 70% do valor contábil
neste caso, promover a execução das do ativo da companhia, diminuído do
garantias reais ou requerer a falência da montante das dívidas garantidas por
emissora (art. 68, § 8.°). Neste último direitos reais.
caso, obedecendo à classificação dos 3. °) Emissão de debêntures subordi­
critérios nas falências, as espécies de nadas (não há limites).
debêntures obedeceriam à seguinte or­ Conversibilidade em Ações — Se­
dem de preferência: em quarto, debên­ gundo o art. 57, as condições de con­
tures com garantia real; em quinto, as versibilidade podem ser livremente
com garantia flutuante; em sexto, as sem convencionadas, desde que atendidas as
preferência; e em sétimo, as subordina­ normas legais sobre o seguinte:
das. a) Bases de conversão — Desde que
Pela legislação sobre falência, a pri­ claramente estabelecidas as bases de
meira preferência é do crédito trabalhis­ conversão, pode ser utilizada qualquer
ta, a segunda do crédito tributário e a fórmula. Deve ser esclarecido, no entan­
terceira das despesas da massa. to, que, qualquer que seja a fórmula, ela
Apesar de a Lei ser omissa, as de­ deve levar em conta os critérios esta­
bêntures, como qualquer título de cré­ belecidos para o preço de emissão de
dito, admitem garantias fidejussórias. O ações (art. 170) e sua relação com o
aval é aposto diretamente nos certifica­ valor nominal das debêntures.
dos, conforme os princípios dos títulos b) Espécie e Classe — No que se
refere à espécie e à classe de ações em
de crédito. Apesar de estranha aos títu­
que podem ser convertidas, cabe ressal­
los de crédito, é possível — e até mais tar que, nos casos de emissão de debên­
comum — a fiança prestada na Escritura tures conversíveis, o estatuto deve pre­
de Emissão. ver a criação de ações preferenciais ou,
se for o caso, o aumento de classe
Limite — A legislação brasileira tem existente sem guardar proporção com as
vacilado quanto aos limites de emissão demais. Caso contrário, além da eficácia
de debêntures. O primeiro diploma legal da medida ficar condicionada à aprova­
a estabelecer limitações foi a Lei 3.150, ção da classe atingida — art. 136, § l.°,
de 04 de novembro de 1892, que, em para permitir a inclusão no estatuto, a
seu art. 32, dispôs que a importância do aprovação da reforma estatutária
empréstimo não poderia ser superior ao ensejaria o direito de retirada de qual­
capital social. Esse limite, baseado no quer acionista — art. 137.
capital social, foi mantido até a criação c) Prazo ou época para o exercício do
da Lei 4.728/65, quando foi estabelecido direito à conversão — Deve ser levado
que, nos casos de debêntures com cláu­ em conta, no estabelecimento do prazo
sulas de correção monetária, o limite ou época, se a companhia tem ou não
. seria o património líquido da compa­ reservas, se pretende ou não capitalizá-
nhia. las antes da conversão etc.
A lei atual voltou a determinar que d) Demais condições — Podem ser
a limitação é o capital social, excetuados estabelecidas, entre outras, cláusulas
os seguintes casos: sobre o desempenho da companhia
l.°) Constituição de garantias reais, emitente.
próprias ou de debêntures: valor da
emissão igual ou inferior a 80% do valor Direito dos acionistas — A nova Lei
dos bens gravados. estabeleceu, como defesa dos acionistas,
34 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

o direito de preferência destes nas acompanhou a lei, o modelo adotado foi


emissões de debêntures conversíveis em o do Trustee do direito anglo-saxão,
ações — art. 109, IV, 171. Com a adaptado a nossa técnica jurídica. Bas­
ressalva que o art. 172 permitiu — tante adaptado dir-se-ia, pois o trustee
desde que atendidas todas as condições pressupõe a transferência fiduciária das
que estabelece — a exclusão do direito debêntures, o que — a despeito da
de preferência. denominação Fiduciário — não ocorre.
Outra defesa é a obrigatoriedade de, As disposições sobre Agente Fiduciá­
nos casos de conversão em ações, a base rio estão contidas nos arts. 66 a 69 e
de cálculo ter que respeitar os requisitos nas Instruções ns. 28/83 e 123/90, ambas
do preço de emissão — art. 57, I e 170, da CVM.
§ l.°. Como defesa de acionistas pode
ser considerado, também, o rigor da Lei Emissão Pública — Uma vez que a
quanto às formalidades necessárias à debênture consta da enumeração previs­
emissão, ressaltando-se que a delibera­ ta no art. 2.° da Lei 6.385, de 7.12.76»
ção desta é matéria privada da Assem- que a alinhou entre os valores mobiliá­
bléia-Geral. rios, sua emissão pública está sujeita às
normas do art. 19 dessa Lei. Em vista
Direito dos Debenturistas Os do art. 21 da mesma Lei, somente
debenturistas têm os direitos estabeleci­ companhias abertas registradas na CVM
dos na Escritura de Emissão e na própria podem emitir debêntures para subscri­
Lei. ção pública.
Entre estes, por exemplo, está o di­
reito dos titulares de debêntures conver­ 6. Derivativos
síveis de, reunidos em Assembléia —
convocada e realizada nos moldes da­ Do ponto de vista financeiro, os
quelas de acionistas — aprovar a mu­ derivativos são entendidos como aque­
dança de objeto da companhia e a les ativos que têm seus preços relacio­
criação ou a modificação de ações pre­ nados a outros preços que lhe são
ferenciais que prejudiquem seus direitos exógenos. São usados tanto para prote­
(art. 57, § 2.°). ger as carteiras de títulos, como para
Há o reconhecimento legal da comu­ melhorar a rentabilidade e/ou a liquidez
nhão de interesses entre os debenturistas, dos valores mobiliários.
podendo ser considerada — portanto — O que interessa no caso das debên­
como sujeito de direitos. tures é que elas podem ser ativos
Caberia a pergunta, qual o interesse referenciais para lançamento de opções
prático desta afirmativa? A resposta é — de compra ou venda.2
simples — sem isto não haveria a As debêntures podem ser utilizadas,
possibilidade de modificação das condi­ também, para lastrear a emissão de
ções da emissão ou da série, conforme warrants ou, como são denominadas
o caso. pela Instrução n. 223, de 10.11.94, da
Para exercitar esses direitos, além da CVM, Opções Não Padronizadas.
assembléia, criou a lei a figura do
Agente Fiduciário; obrigatório nas emis­
sões públicas (art. 61, § l.°) e facultativo
(2) Sobre o assunto do ponto de vista financeiro
ver artigo Derivativos: Panorama Geral e
nas de natureza particular. Possibilidade de Uso pelo Sistema BNDES,
Sua caracterização jurídica é a de um da autoria de Henrique Amarante Costa
administrador de bens de terceiros. Pinto, no n. 2 da Revista BNDES, dezem­
Segundo a Exposição de Motivos que bro de 1994.
DOUTRINA 35

Do ponto de vista jurídico, esses dois n. 1.825, de 28.5.91, do Conselho


tipos de derivativos podem ser concei­ Monetário Nacional.
tuados como sendo valores mobiliários Consultada informalmente, a CVM
que concedem aos seus titulares o di­ não reconheceu a Cédula Pignoratícia
reito de exigir de seus emitentes a como valor mobiliário. É verdade que
realização da compra ou venda — ela não consta do elenco de títulos do
conforme o caso, em se tratando de art. 2.°, da Lei 6.385/76, que — como
“warrant” só a compra — das debên­ já mencionado — determina os valores
tures previamente definidas, pelo preço mobiliários.
preestabelecido. Como sugestão para a reforma da Lei
O exercício desse direito pode ser das S.A., ora em estudo, propõe-se a
efetivado durante um determinado prazo retirada tanto do termo Pignoratícia da
ou numa data prefixada, no primeiro denominação da Cédula quanto da ex­
caso são conhecidos como americanas pressão “garantidas pelo penhor de de­
e no segundo como européias. bêntures” constantes do art. 72 da men­
A diferença entre os “warrants” e as cionada lei. Essa modificação aumenta­
opções é que estas últimas são padro­ ria significativamente a flexibilidade da
nizadas e sujeitas às regras estabelecidas Cédula, tomando sua utilização ainda
pelas Bolsas e têm uma data única de mais atrativa. Por decorrência, as alíneas
exercício; sendo consideradas como “c” e “g” deste mesmo artigo também
mercado secundário. Os “warrants” são sofreriam as alterações pertinentes.
lançamentos primários e, como o pró­ Por estar a Cédula na atual legislação
prio nome diz, não são padronizados, umbilicalmente ligada ao penhor, não é
portanto, passíveis de qualquer estipu­ permitido ao seu titular a opção de
lação. receber as debêntures que a lastreiam
como pagamento de seu crédito — ao
invés de esperar seu vencimento, uma
7. Cédula pignoratícia de debêntures
vez que o art. 765 do Código Civil
Brasileiro declara nula qualquer cláusu­
Como já demonstrado no início, a la que permita ao credor ficar com o
Cédula Pignoratícia é um excelente meio objeto em garantia.
de instituições financeiras, que dete­ Caso modificada, a Cédula se asse­
nham debêntures em carteira, mobiliza­ melharia a um “warrant” com a vanta­
rem recursos sem se desfazerem de gem de que seu titular, enquanto vigesse
ativos que possam representar ganhos a Cédula, poderia receber juros, tendo,
adicionais. portanto, as vantagens de compor uma
A negociação da Cédula Pignoratícia renda fixa com uma variável — caso as
pode ser realizada pelo Sistema Nacio­ debêntures-lastro sejam conversíveis.
nal de Debêntures — SND, da AND1MA. A instituição financeira, por sua vez,
A emissão é simples e não requer teria a possibilidade de — caso exercida
nenhuma formalidade, bastando que a a opção do titular por ficar com as
instituição financeira esteja entre os debêntures — não mais ter os encargos
tipos autorizados a emiti-las pelo Banco financeiros da Cédula.
Central — que é, pelo art. 72, o órgão As alterações propostas seriam sim­
competente para essa finalidade. ples, bastando que a Cédula passasse a
A circular n. 1.967, de 28.5.91, é que ter outra denominação como, por exem­
contém essa regulamentação. As condi­ plo, Cédula Derivada de Debêntures e
ções para a emissão de Cédulas se trocasse “garantidas pelo penhor” por
Pignoratícias estão fixadas na Resolução “lastreada em”.
36 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

Neste caso, a alínea “g”, do art. 72, É ela, por sua flexibilidade, que dá
também sofreria uma modificação para a liberdade necessária para atender tanto
acrescentar a expressão “se for o caso”. às necessidades de quem precisa captar
Esta mudança não impediria que a recursos, como os desejos de quem quer
debênture, altemativamente, continuasse aplicá-los.
a ter o penhor como garantia real — tal
como as debêntures. Com o penhor sendo Quadro das características das emis­
sões registradas no SND/ANDIMA
uma faculdade, e não uma obrigação, o
emitente teria essa possibilidade ao lan­ Os números referem-se, em cada caso,
çar o título. Claro está que, neste caso, à quantidade de séries.
haveria a impossibilidade de o titular
optar pelas debêntures que lastreiam a FORMA
Cédula como uma forma de pagamento. ENDOSSÁVEL 274
De qualquer forma, ainda que não ESCRITURAL 76
sofra alteração, a cédula permite que a ESPÉCIES
instituição financeira compatibilize suas REAIS 48
aplicações — subscrições de debêntures FLUTUANTES 138
— com a sua captação — emissão de QUIROGRAFARIAS 7
cédulas. SUBORDINADAS 157
Essa afirmativa é válida tanto para os TIPO
encargos quanto para o prazo. CONVERSÍVEIS 82
No que se refere a encargos, os juros SIMPLES 268
seriam certamente menores nas cédulas PAGAMENTO
do que nas debêntures que as lastreariam. VENCIMENTO 203
O “spread" se justifica porque, no mais AMORTIZAÇÃO 100
das vezes, o risco da instituição é menor RESGATE 5
que o do emitente das debêntures. PRAZO
Quanto ao prazo, não é difícil que 5 ANOS 62
sejam semelhantes, devido ao entendi­ 10 ANOS 49
mento geral de menor risco e maior 3 ANOS 40
liquidez dos títulos emitidos por insti­ _____________ INDETERMINADO 45
tuições financeiras. ATUALIZAÇÃO
1GP-M 175
8. Observações finais TR 103
IPC-R 35
DÓLAR 20
A retomada do processo de desenvol­
vimento, advindo da estabilização eco­ JUROS
nómica, demandará um volume expres­ 12% a.a. 142
VARIANDO ENTRE
sivo de recursos. 6%/30% a.a. 182
A infra-estrutura, por exemplo, além
da quantidade de recursos, irá necessitar No que se refere à remuneração,
de fórmulas bastante criativas para sua existem ainda:
mobilização — devido às particularida­ a) 26 que detêm participação nos
des do setor. resultados;
A debênture — como se espera ter b) 104 que, altemativamente à remu­
demonstrado — é o título que permite neração fixada, retêm prémios, dos quais
a maior criatividade para montagens 56 são da taxa divulgada pela ANBID
financeiras. acrescida de 3% a.a.
DOUTRINA

EMISSÃO DE DEBÊNTURES
NELSON EIZIRIK

Sumário: 1. Introdução — 2. Finalidade económica c natureza jurídica da debênture


— 3. Emissão e subscrição de debêntures — 4. Competência para deliberar a
emissão de debêntures — 5. Autonomia plena da companhia para emitir debêntures
— 6. Subscrição a vista ou parcelada — 7. Registro na CVM da emissão pública
de debêntures — 8. Poder vinculado da CVM para aprovar o registro — 9.
Caracterização legal da emissão pública de debêntures — 10. Taxa de registro
da emissão pública de debêntures — 11. Consequências da falta de registro na
CVM — 12. Participação obrigatória de instituição financeira underwríter na
emissão pública — 13. Distribuição secundária de debêntures — 14. Negociação
das debêntures no mercado.

1. Introdução diferenças entre emissão pública e pri­


vada de debêntures; papel das institui­
As debêntures, embora constituindo ções financeiras na emissão pública de
títulos há muito regulados entre nós debêntures; funções da Comissão de
(desde 1893, mediante o Decreto 177- Valores Mobiliários na emissão pública
A) passaram a ser, a partir da promul­ de debêntures; negociação de debêntu­
gação da Lei 6.404/76 — Lei das S.A., res no mercado secundário.
utilizadas cada vez mais intensamente
pelas companhias, no processo de sua 2. Finalidade económica e natureza
capitalização. jurídica da debênture
Atualmente, são as debêntures os
valores mobiliários de maior uso por Nos termos do art. 52 da Lei das S.A.,
parte das companhias abertas, no pro­ a companhia poderá emitir debêntures
cesso de captação de recursos do públi­ que conferirão aos seus titulares direito
co investidor. de crédito contra ela, nas condições
Tal se deve, em grande medida, ao constantes da escritura de emissão e do
adequado tratamento que foi conferido certificado.
à sua regulação, contido na Lei das S.A. Conforme a redação expressa da Lei,
e em alguns dispositivos da Lei 6.385/ a debênture constitui um título que
76, que criou a Comissão de Valores confere ao seu titular um direito de
Mobiliários — CVM e disciplinou o crédito contra a companhia emissora,
mercado de capitais. cujas condições devem ser objeto de
Trataremos, no presente artigo, de precisa estipulação na escritura de
examinar o tratamento legal da emissão emissão e no certificado.
de debêntures, com ênfase especial nos A finalidade económica da debênture
seguintes tópicos: competência dos ór­ é a de permitir à empresa emissora a
gãos de administração da companhia captação de recursos; ou seja, trata-se de
para emitir debêntures; distinção entre instrumento que possibilita o financia­
emissão e subscrição de debêntures; mento da companhia, mediante emprés-
38 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL 101

timos distribuídos no mercado de capi­ tam sua aceitação à oferta da companhia


tais, conforme a Exposição de Motivos emissora, pagando o preço e tomando-
n. 196, de 24.6.76, do Ministério da se, a partir daquele momento, credores
Fazenda, ao então Anteprojeto de Lei da companhia.3
das sociedades anónimas. A emissão das debêntures constitui a
Da função económica da debênture, sua criação e oferta aos interessados. A
que é a de servir como instrumento de palavra emissão (do latim emissione)
financiamento da companhia emissora, significa o ato de produzir e mandar
decorre a sua caracterização, pratica- para fora, designando, portanto, a emis­
mente consensual na doutrina, como um são de debêntures, o ato da companhia
contrato de mútuo mercantil.1 Trata-se, de criá-las e colocá-las à venda.
na realidade, de um mútuo de natureza Já a subscrição das debêntures desig­
especial, uma vez que a quantia mutuada na o ato mediante o qual os tomadores
é dividida em frações, correspondentes dos títulos, isto é, os destinatários da
ao número de debêntures subscritas.2 oferta, manifestam a sua aceitação, as­
Cada debênture constitui um documento sinando o boletim de subscrição e tor-
de legitimação, mediante o qual o nando-se, a partir daquele momento,
debenturista pode exercer seu direito de debenturistas.
crédito frente à companhia emissora. A Lei das S.A. distingue os dois
momentos, apartando a emissão das
3. Emissão e subscrição de debêntures debêntures, enquanto manifestação de
vontade da companhia (arts. 53, 59 e 60)
Distingue-se, no negócio jurídico da da subscrição (art. 58, § l.°), enquanto
debênture, duas fases: a da emissão, manifestação, por parte dos tomadores,
propriamente dita, na qual produz-se da aceitação da oferta da companhia.
uma manifestação de vontade da com­ Tal distinção não ocorre, porém, no
panhia, necessariamente formada de sistema da Lei 6.385/76, que disciplina
acordo com as normas legais e o mercado de valores mobiliários. As
estatutárias, cujo momento essencial é o debêntures, nos termos expressos do art.
da deliberação da Assembléia Geral que 2.°, § l.° da Lei 6.385/76, constituem
autoriza a emissão e estabelece as suas valores mobiliários, submetendo-se as
características; e a da subscrição, na companhias abertas que procedem à sua
qual os tomadores dos títulos manifes- distribuição no mercado à fiscalização
exercida pela Comissão de Valores
Mobiliários, conforme analisaremos em
Carvalho de Mendonça. Tratado de Direito seguida.
Comercial. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, A referida Lei 6.385/76, repetindo as
1969, v. IV, p. 96; Waldemar Ferrcira. imprecisões terminológicas da Lei 4.728/
Tratado das Debêntures. Rio de Janeiro,
Freitas Bastos, 1944, v. I, p. 225; Antonio
Brunctti. Trattato del Diritto delle Società. (3) Angulo Rodrigues. La Financiaciación de
Turim, 1948, v. II, p. 432; Franceso Galgano. Empresas Mediante Tipos Especiales de
La Società per Azioni, le Altre Società di Obrigaciones. Bolonha, 1968, p. 14 ss. Para
Capitali, le Cooperative. Bolonha, 1981, p. Tulio Ascarclh, porém, a manifestação da
197; Jean Guyénot. Cours de Droit empresa de emitir as debêntures constitui
Commercial. Paris, 1977, v. 2, p. 634. uma oferta ao público c a subscrição
<2> Edmur de Andrade Nunes Pereira Neto. consiste na aceitação da oferta, momento
Aspectos Jurídicos da Emissão de Debên­ em que se aperfeiçoa o negócio de emissão
tures Conversíveis em Ações. Dissertação {Problemi in Tema de Titoli Obbligazionari
de Mestrado na Faculdade de Direito da in Banca, Borsa e Titoli di Credito, 1951,
Universidade de São Paulo, 1986, p. 35 ss. parte I, p. 33.
DOUTRINA 39

65, as quais foram alvo de severas emissão, conforme o § l.° do art. 59.
críticas doutrinárias,4 utiliza, em seu art. No caso, a Assembléia aprova a emis­
19 (tanto no caput como nos seus são, em tese, fixando as características
parágrafos) as expressões emissão, dis­ básicas das debêntures, que estão
tribuição e colocação para designar o elencadas nos números I a V do art. 59
mesmo ato de oferta pública de valores da Lei. Cabe ao Conselho decidir qual
mobiliários aos investidores do merca­ o momento mais adequado para proce­
do. O caput do art. 19 chega a dizer que der à efetiva emissão e colocação das
nenhuma emissão pública de valores debêntures, tendo em vista as condições
mobiliários será distribuída no mercado do mercado.
sem prévio registro na Comissão, como A delegação ao Conselho de Admi­
se fosse possível a existência de uma nistração, na Cia. Aberta, da deliberação
emissão pública não distribuída no sobre o momento mais oportuno para
mercado, ou seja, uma emissão pública proceder à efetiva criação e colocação
distribuída privadamente. Tal expressão dos papéis constitui praxe bastante
emissão pública, embora evidentemente comum, flexibilizando o processo
imprópria, conforme as críticas da dou­ decisório e permitindo à companhia
trina, acabou consagrada pelo uso, sen­ escolher, com maior rapidez, qual o
do de larga utilização na regulamenta­ tinúng mais adequado para o sucesso da
ção administrativa da CVM.5 operação.
A possibilidade de delegação ao
4. Competência para deliberar a Conselho de Administração das delibe­
emissão de debêntures rações acima referidas somente existe
no caso de companhias abertas, sendo
A competência para deliberar a emis­ nula tal delegação na companhia fecha­
são das debêntures é privativa da As­ da. Tratando-se de companhia aberta, a
sembleia Geral, nos termos expressos do delegação é possível tanto no caso da
art. 59 da Lei das S.A. Porém, tratando- colocação pública, realizada no mercado
se de Companhia Aberta, a Assembleia de capitais, como no caso da colocação
Geral pode delegar ao Conselho de privada, posto que genericamente auto­
Administração a deliberação sobre: a rizada, nos termos do § I.° do art. 59.
época e as condições de vencimento,
amortização e resgate; a época e as 5. Autonomia plena da companhia
condições do pagamento dos juros, da para emitir debêntures
participação nos lucros e do prémio de
reembolso, caso existente; o modo de Ao longo de sua existência, a com­
subscrição ou colocação — se pública panhia pode realizar o número de
ou privada; e o tipo das debêntures (art. emissões de debêntures que considerar
59, VI a VIII e § l.°). conveniente. Trata-se de decisão interna
Pode ainda a Assembléia-Geral dele­ corporis, relativa ao grau de endivida­
gar ao Conselho de Administração a mento considerado adequado pelos acio­
deliberação sobre a oportunidade da nistas e administradores. A companhia
não pode, porém, emitir debêntures em
<4) Heitor Gomes de Paiva. O Código Penal de valor total superior ao seu capital social
1969 e as figuras penais de Direito Comer­ (art. 60, caput). Tal limite pode ser
cia, Revista Forense, n. 232, p. 5 ss.
(5) Nelson Eizirik. Aspectos Modernos do Di­
excedido até alcançar: 80% do valor dos
reito Societário. Rio de Janeiro, Ed. Reno­ bens gravados, próprios ou de terceiros,
var, 1992, p. 13 ss. tratando-se de debêntures com garantia
40 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

real; 70% do valor contábil do ativo da do. Deve a companhia, porém, por
companhia, diminuído de suas dívidas razões de cautela, promover a transfe­
garantidas por direitos reais, tratando-se rência gradual da propriedade das de­
de debêntures com garantia flutuante bêntures, condicionando-a ao efetivo
(art. 60, § l.°). Observados tais limites, pagamento das parcelas por parte do
deve ser enfatizado que inexiste qual­ adquirente.
quer possibilidade de controle, por parte Na prática, verifica-se que a CVM
da CVM ou do Poder Judiciário, sobre tem aceito, em emissões de debêntures
a quantidade de emissões de debêntures divididas em séries, que o pagamento
e sobre a oportunidade de seu lançamen­ seja feito parceladamente. Assim, por
to. Não pode a CVM, mesmo no caso exemplo, podem ser emitidas debêntures
do lançamento público das debêntures, das séries A, B e C, integralizadas as
proceder a qualquer exame sobre o da série A a vista, no ato da subscrição,
mérito do empreendimento económico e as demais em datas futuras, fixadas na
que a companhia deseja desenvolver escritura de emissão. Em emissões de
com os recursos captados com a emissão debêntures destinadas ao financiamento
dos títulos. de empreendimentos imobiliários (cons­
Assim, a companhia tem liberdade trução de shopping centers, hotéis,
para proceder às emissões de debêntures hospitais etc.) tem sido utilizado o
que considerar convenientes. Não pode expediente, plenamente lícito, de emitir-
porém a companhia efetuar nova emis­ se várias séries de debêntures, cuja
são antes de colocadas todas as debên­ subscrição ocorre de forma vinculada ao
tures de séries anteriormente emitidas, cumprimento do cronograma de execu­
ou antes de canceladas as séries não ção das obras.
colocadas (§ 3.° do art. 59).
7. Registro na CVM da emissão pú­
6. Subscrição a vista ou parcelada blica de debêntures

A subscrição pode ser realizada a As debêntures, conforme a disposição


vista ou parceladamente. No passado, do art. 2.°, I, da Lei 6.385/76, consti­
entendia-se que o pagamento das debên­ tuem valores mobiliários. Em nosso
tures deveria ocorrer obrigatoriamente a sistema legal, seguindo a orientação do
vista. Tal concepção decorria basica­ direito societário francês,7 a expressão
mente do fato de serem as debêntures valores mobiliários apresenta uma fei­
títulos ao portador.6 Nesse sentido, o ção mais estreita do que aquela de
Decreto 177-A, de 1893, estabelecia, em securities do direito norte-americano
seu art. 1.°, que as companhias ou designando, conforme a Lei 6.385/76 e
sociedades anónimas poderão emitir a regulamentação do mercado de capi­
empréstimos ou obrigações ao portador tais, os títulos emitidos por sociedades
(debêntures). Vedada a emissão de tí­ anónimas, ou representativos de direitos
tulos ao portador, com o advento da Lei sobre tais títulos, passíveis de distribui­
8.021/90, ficando juridicamente impos­ ção e negociação em massa, seja em
sível a emissão de debêntures ao por­ Bolsa de Valores, seja no Mercado de
tador, não há, em princípio, impedimen­ Balcão.
to à colocação de debêntures nominativas
ou escriturais com pagamento parcela­
(7) Veja-sc, a propósito: Albcrt Rabut. Le Droit
de Bourses de Valeurs et des Agents de
<6) Waldemar Ferreira, ob. cit. p. 194. Change. Paris, 1983, p. 30 ss.
DOUTRINA 41

Nos termos do art. 19, da Lei 6.385/ verdadeiro controle de qualidade com
76, que disciplina o mercado de capitais, relação às companhias abertas e aos
toda e qualquer emissão pública de valores mobiliários de sua emissão;
valores mobiliários deve ser registrada ademais, a disponibilidade das informa­
na Comissão de Valores Mobiliários, ções relevantes sobre os negócios das
previamente à sua distribuição no mer­ companhias coloca os investidores em
cado.8 Assim, a companhia, para proce­ posição de relativo equilíbrio frente aos
der à emissão pública de debêntures, acionistas controladores e administrado­
que constituem valores mobiliários para res da companhia.9
os efeitos da Lei 6.385/76, deve regis­
trar a referida emissão na CVM. Nos 8. Poder vinculado da CVM para
termos expressos do art. 4.°, parágrafo aprovar o registro
único da Lei das S.A., somente os
valores mobiliários das companhias No Direito Comparado, assim como
registradas na CVM, ou seja, das com­ em nosso sistema legal, a atuação da
panhias abertas, podem ser objeto de entidade fiscalizadora do mercado de
distribuição no mercado e de negociação capitais concentra-se na promoção do
em Bolsa de Valores e no Mercado de processo de disclosure', assim, não se
Balcão. comete ao Estado o poder de aprovar
O registro da emissão pública de ou recusar o registro de uma emissão
debêntures objetiva basicamente prote­ pública de ações ou debêntures por
ger os tomadores dos valores mobiliá­ razões de conveniência, oportunidade ou
rios, impondo à companhia a obrigação mérito do empreendimento económico.
de prestar as informações previstas na O princípio básico da política de
lei e na regulamentação administrativa disclosure é de que o exame do mérito
da CVM. do empreendimento cabe unicamente
Nos termos da Lei 6.385/76 (art. 19, aos investidores; uma vez conveniente­
§§ 6.° e 7.°, e art. 20), cabe à CVM mente informados, podem decidir cons­
subordinar o registro de emissão de cientemente se desejam ou não adquirir
valores mobiliários à divulgação das os valores mobiliários publicamente
informações necessárias à proteção dos ofertados pela companhia.
investidores. Ou seja, considera-se, em O princípio do disclosure, como ins­
nosso sistema legal, que a transparência trumento de proteção aos consumidores
de informações (o disclosure do direito de produtos distribuídos em massa, como
norte-americano) constitui a melhor são os títulos vendidos no mercado de
forma de se prevenir abusos e fraudes capitais, foi originalmente desenvolvido
que poderiam ser cometidas contra os nos Estados Unidos. Já em 1914, o
investidores. então Ministro da Suprema Corte daque­
O disclosure, com efeito, permite aos le país, Louis D. Brandeis, pregava, para
investidores do mercado, a partir da o mercado de capitais, uma regulamen­
análise das informações, exercer um tação inspirada no Pure Food Law, nos
termos da qual os fabricantes de alimen­
(8) A Resolução n. 1.777, no Conselho Mone­
tos ficavam obrigados a divulgar os
tário Nacional, de 19/12/90, dispõe, no
mesmo sentido, em seu art. l.° que a
emissão de debêntures para subscrição (9) Eddy Eymmersch. L 'Information Societaire,
pública, prevista no art. 52, da Lei 6.404, in Convcgno Intcmazionale di Studi sull
de 15.12.76, dependerá de prévia anuência Informazione Societária, Foundazione
da Comissão de Valores Mobiliários. Giorgio Cini, Veneza, 1981, p. 14 ss.
42 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

ingredientes utilizados em seus produ­ A CVM pode indeferir o pedido de


tos, possibilitando ao consumidor ava­ registro da emissão pública apenas nas
liar a sua qualidade. A legislação federal seguintes hipóteses: 1. caso a compa­
sobre títulos norte-americana, baixada nhia não apresente as informações con­
inicialmente em 1933 e 1934, com a sideradas necessárias à correta avalia­
edição do Securities Act e do Securities ção, por parte dos investidores, sobre o
and Exchange Act, incorporou o prin­ mérito do empreendimento, as quais
cípio do disclosure para as emissões de estão minuciosamente descritas nas
securities em âmbito interestadual, obri­ normas administrativas baixadas pela
gando o emissor dos títulos a divulgar CVM, ou caso a companhia apresente
todas as informações relevantes, que tais informações de maneira incompleta
permitissem aos investidores aquilatar o ou insatisfatória (Instrução CVM n. 13/
mérito do empreendimento. Tal legisla­ 80, Anexo I); 2. caso o estatuto social
ção jamais conferiu à Securities and da companhia contenha dispositivos ile­
Exchange Commission (entidade fisca- gais, ou os atos societários que prece­
lizadora do mercado, na qual inspirou- deram a emissão sejam irregulares ou
se o legislador brasileiro para criar a viciados. Em tais hipóteses, o deferi­
Comissão de Valores Mobiliários) o mento do pedido do registro é condicio­
poder de examinar a qualidade dos nado ao atendimento das exigências
títulos ofertados publicamente aos in­ formuladas pela CVM, inclusive quanto
vestidores. Conforme referido, ainda que às necessárias alterações no Estatuto
não pudesse a legislação sobre títulos Social da companhia para adaptá-lo à lei
retirar do cidadão o seu inalianable riht (Instrução CVM n. 13/80, art. 13, b).
to make a fool of himself (ou seja, seu O ato da CVM de aprovar ou desa­
direito analinável de fazer bobagens),
provar o pedido de emissão pública de
deveria ela, por outro lado, voltar-se
debêntures (ou de ações) é necessaria­
para preventing others from making a
fool of him (isto é, evitar que o fizessem mente vinculado, uma vez que a lei e
de bobo).10 a regulamentação administrativa estabe­
lecem os requisitos e as condições para
Entre nós, da mesma forma, não
compete à CVM realizar qualquer exa­ a sua prática. Não há no caso poder
me sobre- a qualidade dos títulos discricionário da CVM; não pode esta
ofertados, sobre a empresa emissora, ou autarquia indeferir o pedido de registro
mesmo sobre a conveniência da emissão da emissão por razões de conveniência
pública. A única hipótese de exame de ou de oportunidade. O eventual indefe­
mérito da emissão por parte da CVM é rimento do pedido do registro de emis­
aquela prevista no art. 82 da Lei das são deve necessariamente ser fundamen­
S.A., relativo à constituição da compa­ tado, podendo ocorrer apenas nas hipó­
nhia mediante subscrição pública de teses em que as informações prestadas
ações, de raríssima ocorrência na prá­ pela companhia sejam incompletas,
tica. omissas ou falsas, ou ainda caso se
Assim, por ocasião da emissão públi­ verifiquem irregularidades nos atos
ca de debêntures, a CVM não pode societários ou no estatuto da companhia.
entrar no exame do mérito dos títulos, Se a CVM nega o registro de emissão
nem da qualidade da companhia, nem alegando que o momento não é o mais
da conveniência da colocação pública. adequado, ou que o empreendimento
económico que a empresa deseja finan­
<I0) Lous Loss. Securities Regulation. Boston, ciar é inviável, caracteriza-se o abuso de
Little Brown and Company, 1961, p. 128. autoridade, ficando comprometida a
DOUTRINA 43

eficácia de seu ato e cabendo ao Poder Com relação aos meios utilizados
Judiciário decretar a sua nulidade. pelo emissor, verifica-se que foram eles
elencados no § 3.° do art. 19 da Lei
9. Caracterização legal da emissão 6.385/76. Assim, caracterizam a emis­
pública de debêntures são pública: 1. a utilização de listas ou
boletins de subscrição, folhetos, pros­
A diferenciação entre a emissão pri­ pectos e outros documentos de publici­
vada e a emissão pública de valores dade, bem como anúncios destinados ao
mobiliários não foi fixada de maneira público, por intermédio da imprensa; 2.
sistemática e precisa em nossa legisla­ a procura dos subscritores realizada por
ção. empregados do emissor ou por agentes
Na realidade, a Lei 6.385/76, ao invés ou corretores contratados pelo emissor;
de estabelecer uma distinção conceituai 3. a negociação feita em loja, escritório
entre a emissão privada e a emissão ou estabelecimento aberto ao público,
pública de valores mobiliários limitou- desde que precedida da utilização, pelo
se a enunciar algumas hipóteses em que ofertante, de serviços públicos de comu­
se caracteriza esta última, repetindo, nicação.
aliás, as confusões terminológicas exis­ Os meios utilizados pela emissora
tentes na vigência do § 2.°, do art. 16, para a colocação dos papéis, que carac­
da Lei 4.728/65, que regulava a matéria terizam a emissão como pública, estão
até o advento da Lei 6.385/76." elencados exemplificativamente no § 3.°
Nos termos do § 3.°, do art. 19, da Lei do art. 19, da Lei 6.385/76. Quaisquer
6.385/76, caracterizam a emissão pública outros instrumentos de apelo à poupança
de valores mobiliários: 1. a utilização de popular, desde que não estejam indivi­
listas ou boletins de venda ou subscrição, dualizados os ofertados, podem também
folhetos, prospectos ou anúncios destina­ ser considerados como caracterizadores
dos ao público; 2. a procura de subscritores da emissão pública.
ou adquirentes para os títulos, por meio O ofertante é, em regra, a companhia
de empregados, agentes ou corretores; 3. emissora dos títulos. Também são con­
a negociação feita em loja, escritório ou siderados ofertantes as pessoas físicas
estabelecimento aberto ao público, com (como os agentes autónomos de inves­
a utilização dos serviços públicos de timentos) ou jurídicas (como as institui­
comunicação. ções financeiras aptas a atuarem como
A caracterização de uma emissão underwriters) contratadas pela emissora
como pública ou privada, conforme a para venderem os valores mobiliários ao
doutrina, deve levar em consideração público.
três elementos básicos: 1. o ofertante; 2. Equiparam-se à companhia emissora,
os destinatários da oferta; 3. os meios nos termos do § 2.°, do art. 19, da Lei
utilizados pelo ofertante para a coloca­ 6.385/76: 1. o acionista controlador da
ção dos títulos.12 companhia, ou pessoa por ele controla­
da; 2. o co-obrigado nos títulos; 3. as
instituições financeiras integrantes do
Sobre a matéria: Ariadna Bohomolctz Gaal. sistema de distribuição de valores mobi-
Da Caracterização da Emissão Pública de
Valores Mobiliários: uma análise compa­
rativa. Rio de Janeiro, 1982, Dissertação de Nelson Eizirik: Aspectos Modernos do Di­
Mestrado para o Departamento dc Ciências reito Societário, cit. p. 15; Caracterização
Jurídicas da PUC-RJ. jurídica da emissão pública de valores
(l2) Samuel F. Linarcs Brctón. Operaciones de mobiliários. Revista dc Direito Mercantil,
Bosa. Buenos Aires, Dcpalma, 1980, p. 53; v. 83, p. 55.
44 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

liários; 4. qualquer pessoa que tenha Além dos dois elementos anterior-
subscrito os valores mobiliários para o mente mencionados, há que se perquirir
fim de colocá-los no mercado. sobre a qualificação dos ofertados.
Já os destinatários da oferta consti­ Considera-se que podem ser entendidas
tuem o elemento decisivo para a carac­ como privadas aquelas emissões que são
terização da emissão como pública ou colocadas apenas junto a investidores
privada. Com efeito, para distinguir-se sofisticados, com elevado poder de bar­
a emissão privada da pública, deve-se ganha frente à emissora e plenamente
analisar a situação dos destinatários da capazes de assumirem conscientemente
oferta, tendo em vista quatro elementos os riscos do empreendimento. Assim,
essenciais: 1. o fato de serem eles, por vendas realizadas unicamente para um
ocasião do lançamento da oferta, pesso­ reduzido número de investidores insti­
as indeterminadas; 2. o fato de inexis- tucionais ou instituições financeiras,
tirem vínculos entre eles e a emissora; altamente sofisticados, que podem até
3. a sua qualificação como investidores mesmo condicionar a subscrição dos
sofisticados ou não; 4. o acesso que têm títulos a eventuais modificações nas
às informações sobre a emissora, inde­ condições originalmente planejadas pela
pendentemente do registro na CVM. emissora, devem ser consideradas emis­
Inicialmente, considera-se que um dos sões privadas, ainda que nelas presentes
traços caracterizadores da oferta pública os meios de colocação elencados no §
é o fato de ser ela dirigida a pessoas 3.°, do art. 19, da Lei 6.385/76.
indeterminadas, ou seja, não individua­ Deve também ser considerada como
lizadas.13 Quando a oferta é realizada, privada, dispensado conseqúentcmente
há uma indeterminação dos destinatá­ o registro na CVM, a emissão na qual
rios, qualquer pessoa podendo aceitá-la; os destinatários têm acesso a informa­
na emissão pública existe, por definição, ções do mesmo tipo que teriam caso a
emissão fosse objeto de registro. Como
oferta dirigida à generalidade dos indi­
o registro tem uma natureza basicamen­
víduos.
te instrumental, se os investidores estão
No caso da emissão pública, em
de posse de informações que lhes per­
segundo lugar, inexistem quaisquer vín­ mitem uma tomada de decisão conscien­
culos entre a companhia emissora e os te, não há porque obrigar-se a emissora
destinatários da oferta. Quando a subs­ a proceder ao registro na autoridade
crição dos valores mobiliários decorre governamental, com custos desnecessá­
do exercício do direito de preferência rios.15
(subscrição de ações ou debêntures con­
versíveis em ações por acionistas da 10. Taxa de registro da emissão pú­
companhia) não se pode cogitar de blica de debêntures
emissão pública, dado o relacionamento
já existente entre a emissora e os
Nos termos do art. l.°, da Lei n.
subscritores, sendo, portanto, desneces­
7.940, de 20.12.89, foi instituída a Taxa
sário o registro na CVM.14 de fiscalização do mercado de valores
mobiliários. Dispõe o art. 2.° da mesma
(,3) Modesto Carvalhosa. Oferta Pública de Lei que constitui fato gerador da Taxa
Aquisição de Ações. Rio de Janeiro, IBMEC,
1979, p. 23.
<I4) Parecer da Superintendência Jurídica da (l5) Cari Schneider. The Statutory Law ofPrivate
CVM n. 005/86; Nota Explicativa CVM n. Placements. The Review of Securities
19/80 Regulation, v. 14, 1981.
DOUTRINA 45

de Fiscalização o exercício do poder de necessariamente registrada na CVM,


polícia atribuído à CVM. ocasião em que serão prestadas e colo­
São considerados contribuintes da cadas à disposição do público investidor
Taxa de Fiscalização as pessoas naturais todas as informações relevantes, na forma
e jurídicas que integram o sistema de da regulamentação administrativa.
distribuição do mercado de valores Se a emissão pública não for regis­
mobiliários, as companhias abertas, os trada, a CVM pode determinar a sua
fundos e as sociedades de investimento, suspensão. Idêntica providência pode
os administradores de carteiras e depó­ ser adotada pela CVM na hipótese em
sitos de valores mobiliários, os auditores que, embora registrada a emissão, seja
independentes, os consultores e analistas ela fraudulenta ou ilegal, ou ainda es­
de valores mobiliários e as sociedades tejam a oferta, a promoção e os anún­
beneficiárias de recursos fiscais obriga­ cios publicitários ocorrendo em condi­
das a registro na CVM (Lei 7.940, art. ções diversas daquelas constantes do
3.°). registro (Lei 6.385/76, art. 20).
Trata-se, a taxa de fiscalização, de Os efeitos da suspensão determinada
instrumento legítimo, visando dotar a pela CVM operam ex tunc, ocasionando
CVM dos recursos necessários ao pleno a ineficácia dos atos de distribuição
desempenho de suas funções de pública dos títulos, desde o seu início.
regulação do mercado de valores mobi­ Tratando-se de emissão pública sem o
liários. Vale notar, a propósito, que, em necessário registro na CVM entende-se
princípio, a doutrina considera plena­ que o ato da subscrição é nulo. A
mente válida a cobrança de taxas pelo nulidade, no caso, decorre da preterição
exercício, por parte da autoridade admi­ de formalidade essencial — o registro
nistrativa, do seu poder de polícia.16 na CVM — à realização de uma oferta
A jurisprudência de nossos tribunais pública de títulos no mercado de capi­
vem igualmente considerando válida a tais, com a captação da poupança po­
cobrança da taxa de fiscalização insti­ pular.18 í

tuída pela Lei 7.940/89, uma vez que Caracterizada a emissão pública sem
não estaria caracterizada qualquer vio­ registro, a CVM pode determinar a
lação ao art. 77 do Código Tributário instauração de inquérito administrativo
Nacional e ao art. 145, § 2.° da Cons­ para apurar a responsabilidade discipli­
tituição Federal.17 nar das pessoas envolvidas, como os
administradores e acionista controlador
da companhia, instituições underwriters
11. Conseqiiências da falta de registro etc.
na CVM
12. Participação obrigatória de insti­
Caracterizada determinada emissão de tuição financeira underwriter na emis­
debêntures como pública, deve ser ela são pública
(,6) Hely Lopes Mcirellcs. Finanças Munici­
pais. São Paulo, RT, 1979, p. 12. Nenhuma emissão pública de debên­
<l7) Tribunal Federal da 5.a Região, Apelação tures pode ser realizada sem a partici­
em Mandado de Segurança n. 5.585, julgada pação de uma instituição financeira
em 31.3.92; Tribunal Regional Federal da atuando como underwriter. Conforme as
5.* Região, apelação cm Mandado de Se­ disposições dos arts. 82 e 176, § 5.°, da
gurança n. 2.367, julgada em 29.2.92;
Tribunal Federal Regional da 5a Região,
Apelação cm Mandado de Segurança n. (,8) Parecer n. 88/79, da Superintendência Ju­
2.893, julgada em 6.7.91. rídica da CVM.
46 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL --- 101

Lei das S.A. a emissão pública de underwriter assume o risco integral da


valores mobiliários deve ser necessaria­ colocação; com efeito, subscreve os
mente realizada com a intermediação de títulos, paga à companhia o seu valor
instituição financeira. e depois passa a colocá-los no mercado.
Vale observar, a propósito, que, nos No underwriting com garantia de
termos da regulamentação vigente, as sobras (stand by ou residual) a institui­
instituições financeiras e demais insti­ ção financeira assume a obrigação de
tuições autorizadas a funcionar pelo subscrever as sobras, após a colocação
Banco Central somente podem subscre­ dos títulos no mercado. No caso, o
ver, adquirir ou intermediar debêntures underwriter realiza um esforço de venda
destinadas à subscrição pública. Excep- dos papéis, subscrevendo posteriormen-
ciona-se da regra a subscrição de debên­ te aqueles que não foram adquiridos
tures conversíveis em ações decorrentes pelo público.
do exercício do direito de preferência.19 Já no underwriting de melhor esforço
Estão habilitadas a atuar como (best effort) a instituição financeira não
underwriters as instituições financeiras garante a subscrição dos títulos emitidos
integrantes do sistema de distribuição de pela companhia. Com efeito, compro-
valores mobiliários, nos termos dos arts. mete-se apenas a realizar seus melhores
15 e 19, § 4.°, da Lei 6.385/76 e do art. esforços para vender os papéis junto ao
8.° da Instrução CVM n. 13/80, e que público, não tendo a obrigação de ad­
são: os bancos de investimentos; os quiri-los no caso de insucesso da colo­
bancos múltiplos com carteira de inves­ cação. Trata-se, assim, o “underwriting”
timentos; as sociedades corretoras; e as de melhor esforço, de um mero contrato
sociedades distribuidoras de títulos e de distribuição dos títulos, conforme
valores mobiliários. referido doutrinariamente,21 agindo o
O contrato de undenvriting pode ser underwriter não como garantidor, mas
firmado com uma ou com várias insti­ como mandatário da companhia emisso­
tuições financeiras. Na segunda hipótese ra.22
caracteriza-se o consórcio de under­ Nos dois primeiros casos — com
writers, aplicando-se, conseqúentemen- garantia firme e com garantia residual
te, as disposições constantes nos arts. — a obrigação do underwriter tipica­
278 e 279 da Lei das S.A.20 mente é de resultado, na medida em que
Há três modalidades de underwriting, existe, para o credor da prestação (a
tendo em vista as obrigações assumidas companhia emissora) a certeza de que
pela instituição financeira: a) firme; b) os títulos serão todos subscritos, ou pela
com garantia de sobras; c) de melhor instituição financeira ou pelo público. O
esforço. underwriter está, assim, comprometido
No underwriting firme (straight, ou com o resultado da operação, ou seja,
com garantia de subscrição total) a com a efetiva subscrição da totalidade
instituição financeira compromete-se a da emissão. Já no underwriting de melhor
subscrever todos os valores mobiliários esforço a obrigação do underwriter ante
emitidos pela companhia para posterior-
mente vendê-los ao público. No caso, o
(2,) Modesto Carvalhosa. Comentários à Lei
das Sociedades Anónimas. São Paulo, Sa­
(,9) Resolução n. 1.777, do Conselho Monetá­ raiva, v. 5, p. 300.
rio Nacional, de 19.12.90, art. 3.°. (22) Georgc Ripert. Traité Elementaire de Droit
<20) Nelson Eizirik. Aspectos Jurídicos do Commercial. 7.“ e., por Rcnc Roblob, Paris,
Underwriting. Revista de Direito Mercantil, Librairie Générale dc Droit et de
n. 66, p. 19. Jurisprudence, 1973, v. II, p. 20.
DOUTRINA 47

a companhia emissora é de meio, uma A regulamentação exige o prévio


vez que não se compromete com o registro na CVM de distribuição pública
sucesso da operação, ou seja, com a que envolva a venda, promessa de venda,
efetiva subscrição de todos os títulos.23 oferta à venda ou aceitação do pedido
de venda, dentre outros títulos, de de­
13. Distribuição secundária de debên- bêntures emitidas por companhias fe­
tures chadas, que estejam em tesouraria ou
pertençam ao acionista controlador ou
pessoas equiparadas e que venham a ser
Seguindo o exemplo da legislação distribuídos ao público subseqúentemente
federal sobre títulos norte-americana,24 a ao processo de registro, na CVM, da
regulamentação administrativa da CVM companhia emissora.
disciplinou as chamadas distribuições É igualmente considerada distribuição
secundárias de valores mobiliários. secundária, sujeita portanto ao prévio
Com efeito, conforme a Nota Expli­ registro na CVM, a venda, promessa de
cativa CVM n. 88, de 3.11.88, a distri­ venda, oferta à venda ou aceitação do
buição de valores mobiliários pode ser pedido de venda de debêntures já emi­
primária ou secundária. Na distribuição tidas por companhia aberta mediante
primária ocorre a criação de títulos subscrição particular, por quem quer
novos (debêntures, ações, bónus de que pretenda distribuí-las publicamente
subscrição etc.), destinando-se os recur­ (Instrução CVM n. 88/88, art. 2.°, II e
sos obtidos à companhia emissora. Já a III).
distribuição secundária apresenta carac-
terísticas diversas, uma vez que: a) não 14. Negociação das debêntures no
há destinação de recursos para a com­ mercado
panhia, uma vez que os títulos foram
objeto de emissão no passado; b) os Constituindo valores mobiliários, as
valores mobiliários não estão em nego­ debêntures, uma vez registradas na CVM,
ciação no mercado, posto que trata-se de podem ser objeto de livre e irrestrita
um bloco que permanece nas mãos de negociação no mercado de capitais.25
intermediários financeiros, do acionista O mercado de debêntures, primário e
controlador ou mesmo de investidores. secundário, é constituído predominante­
Como a recolocação no mercado de mente por investidores institucionais,
uma quantidade significativa de tais notadamente pelos fundos fechados de
títulos, emitidos no passado, pode oca­ previdência privada (os fundos de pen­
sionar uma alteração nas condições são)', com efeito, não é muito expressivo
normais de preço, a CVM, nos termos o número de investidores individuais
da sua Instrução n. 88, de 3.11.88, exige ativos nesse mercado.
o seu prévio registro, com a conseqiiente Embora a Lei das S.A. mencione
prestação de informações que permitam expressamente a possibilidade de serem
aos investidores avaliar os riscos da
transação. <25) Até o ano de 1990 era permitida a utili­
zação de debêntures como lastro para a
realização de operações compromissadas
(2J) Nelson Eirizik. Aspectos Jurídicos do no mercado aberto (ppen market). A Cir­
Underwriting, cit. cular n. 1.773, de 10.7.90, do Banco Cen­
<M> Louis Loss. Fundamentais of Securities tral, vedou a realização de operações
Regulation. Boston, Littlc Brown and compromissadas tendo por objeto debêntu­
Companny, 1988, p. 353 ss. res emitidas a partir daquela data.
48 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL --- 101

as debêntures negociadas em Bolsa de implementação, ocorrida em 1988, maior


Valores (art. 55, § l.°; art. 60, § 3.°; art. segurança às negociações com debêntu­
61, § 3.°; art. 67, parágrafo único)26 na res, tanto no mercado primário como no
prática do mercado brasileiro não ocor­ mercado secundário. O SDT simplificou
rem transações de compra e venda de o processo de colocação primária de
debêntures nas Bolsas. Com efeito, tais debêntures, permitindo a liquidação fi­
títulos são, entre nós, negociados no nanceira das operações via reserva ban­
Mercado de Balcão, que constitui um cária das instituições financeiras parti­
mercado secundário de valores mobili­ cipantes, sem a necessidade de assina­
ários, em que as transações são realiza­ tura de cheques e preenchimento de
das fora das Bolsas de Valores, mas boletins de subscrição, os quais são
intermediadas por instituições financei­ emitidos automaticamente pelo próprio
ras integrantes do sistema de distribui­ Sistema. No SND são negociadas as
ção, nos termos do art. 21, § 4.° da Lei debêntures via computador, além de
6.385/76. processados automaticamente todos os
A negociação das debêntures no eventos relativos às debêntures registra­
mercado ocorre basicamente no Sistema das no Sistema (pagamento de juros,
Nacional de Debêntures — SND. Trata- repactuação, resgate, etc.), sendo os
se de um sistema automatizado de recursos creditados ou debitados direta­
negociação, custódia e liquidação finan­ mente na conta dos participantes.27
ceira de debêntures, que funciona, em Os sistemas SND e SDT são disci­
termos nacionais, através da rede de plinados mediante normas de auto-
terminais de computadores da CETIP — regulação, de conteúdo corporativo,
Central de Custódia e de Liquidação contidas nos respectivos Regulamentos
Financeira de Títulos e é administrado de Operações. Embora não exista trata­
pela ANDIMA — Associação Nacional mento legislativo a respeito do seu
de Instituições do Mercado Aberto. funcionamento, o SND foi ofícialmente
O Sistema de Distribuição de Títulos reconhecido pelas autoridades fiscais e
— SDT, também administrado pela monetárias, com a edição da Instrução
ANDIMA, permite a colocação de de­ Normativa n. 56, de 6.4.88, da Secre­
bêntures no mercado primário, mediante taria da Receita Federal, e da Resolução
o processamento eletrónico das opera­ n. 1.883, de 26.6.91, do Conselho
ções. Monetário Nacional.
Os referidos sistemas — SND e SDT
— proporcionaram, a partir de sua

<26> A regulamentação administrativa da CVM


admite, prcscntcmentc, nos lermos da ins­ (27) Até abril de 1993 haviam sido registradas
trução n. 193/92, a utilização de debêntures no SND 155 emissões de debêntures, no
conversíveis cm ações como ativo referencial valor total acumulado de cerca de 6.5
para negociação no mercado de opções, bilhões de dólares norte-americanos, o que
desde que sejam emitidas por empresas significou um crescimento do mercado de
registradas cm Bolsa e cujas ações apresen­ debêntures de 3.000% de junho de 1988 a
tem elevado grau de liquidez no mercado abril de 1993. (Cf. dados do Caderno de
a vista. Debêntures, publicado pela ANDIMA.)
DOUTRINA

OS DÉBITOS TRIBUTÁRIOS DAS EMPRESAS.


RESPONSABILIDADE DE DIRETORES, SÓCIOS-GERENTES E
CONTROLADORES
JOÃO LUIZ COELHO DA ROCHA

A obrigação tributária, quaisquer que cotas (e o teto aqui é o valor total do


sejam suas peculiaridades, se subsume, capital, se não integralizado), se qual­
no que lhe é essencial, no modelo típico quer empresa, no exemplo desses dois
do vínculo obrigacional, que vem do tipos societários hoje maciçamente
Direito Civil. prevalentes na nossa ordem, encontra-se
Assim, ali convivem, como elementos em estado de insolvência, acarretando o
essenciais, tais como decodificados pelos não-pagamento de seus débitos tributá­
estudiosos como Antunes Varela (“Di­ rios, a seus sócios ou acionistas não se
reito das obrigações”, Forense, 1.® ed., repassa, a princípio, a responsabilização
p. 57), a relação jurídica, o sujeito ativo por esses débitos em aberto.
(credor), o sujeito passivo (devedor) e E, no entanto, o próprio Código
a prestação. Tributário Nacional traz a disposição do
Existe, pois, na estrutura da obrigação seu art. 128, segundo o qual a lei pode
tributária, uma relação jurídica, derivada atribuir a responsabilidade pelo débito
da lei, de sujeição de cada contribuinte tributário a uma terceira pessoa.
(sujeito passivo) perante o Fisco (sujeito Naturalmente que, como se deduz dos
ativo) demandando o pagamento do princípios mais elementares de direito e
tributo (prestação). ainda do trivial bom-senso, para que tal
Em relação às pessoas jurídicas, e à responsabilidade de uma certa pessoa,
vista do princípio essencial que norteia possa ser imputada a terceiro, tudo
a existência no campo do Direito desses dependerá (a) de lei expressa, (b) de
entes abstratos, o que se segue obvia- vinculação desse terceiro ao fato gera­
mente é que cada uma delas, por si só, dor do débito.
responde pelo cumprimento de suas Pois que não teria cabimento algum,
obrigações tributárias, a menos que se em qualquer ordem jurídica moderna,
cuide de sociedade de responsabilidade que se deferisse a alguém totalmente
ilimitada, hipótese em que seus sócios estranho aos fatos o dever de responder
ficam, por conceito, envolvidos subsi- pelos ónus tributários de outra pessoa,
diariamente pelos débitos, quaisquer nascidos da ocorrência daqueles fatos,
débitos, da empresa, tributários, comer­ como ensina, aliás, Carlos Rocha Gui­
ciais, previdenciários, trabalhistas etc. marães, “in” “Rev. de Direito Tributá­
É assim que, diante dos princípios rio” n. 35, p. 94 ss.:
basilares que informam a limitação de “Mas a lei evidentemente não pode
responsabilidades dos acionistas na so­ atribuir o ónus de recolhimento do tri­
ciedade anónima (e o limite aqui é o buto a terceiro arbitrariamente”.
valor de integralização de suas ações) E assim que o próprio CTN passa a
ou dos quotistas nas sociedades por especificar hipóteses dessa responsabili-
50 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

zaçào tributária extensiva, transbordante se o devedor principal se vir insolvente,


da pessoa originalmente devedora, agru- como a dos pais pelos tributos devidos
pando-as ou como “responsabilidade dos pelos filhos, o inventariante pelos do
sucessores” (arts. 129 a 133), ou como, espólio, o síndico e o comissário pelas
mais simplesmente, “responsabilidade de obrigações tributárias da massa falida ou
terceiros” (arts. 134 e 135). do concordatário etc., terminando pela
Ali se incluem as hipóteses de impos­ responsabilização dos sócios “no caso
tos sobre a propriedade, domínio útil ou da liquidação de sociedade de pessoas”.
a posse de bens imóveis, cujas respec- O que se vê aí são hipóteses diversas,
tivas obrigações tributárias são tipificadas já visivelmente desvinculadas de qual­
como propter rem, aderentes ao bem, e quer limitação quantitativa — ao con­
assim extensivas aos sucessores na trário daquelas anteriores — pois que
titularidade dominial sobre tais bens. pais, tutores, inventariantes etc., respon­
Essa mesma qualificação de obligatio dem ilimitadamente pelos débitos de
propter rem é deferida no art. 131, I, outros (filhos, tutelados), espólio, mas
àquelas pertinentes aos tributos sobre também hipóteses todas centradas em
bens adquiridos ou remidos, extensivas condições especialíssimas que deman­
pois aos adquirentes ou remitentes. dam um vínculo todo particular entre os
Já cuidando da sucessão pessoal, e devedores originais e os devedores
não real, o CTN prevê (art. 131, II e adventícios, vínculos que sinalizam para
III) a responsabilidade dos herdeiros, uma dependência ou um controle extre­
legatários, meeiros e do próprio espólio, mos, de uns perante outros.
aí sempre sob o limite do valor do O único caso, ali, distinto dessa
espólio. peculiaridade, é o da responsabilização
A sucessão empresarial também é dos sócios (art. 134, VII) pelas dívidas
contemplada, ou provendo o dever das da sociedade de pessoas, em caso de sua
empresas resultantes de fusão, incorpo­ liquidação, mas esse é o campo das
ração, transformação — e mesmo cisão sociedades onde há, por conceito, ilimi-
— de outra, pelos débitos tributários de tação de responsabilidade dos sócios por
suas antecessoras, ou determinando tal qualquer espécie de dívidas da pessoa
ônus à sociedade ou pessoa física que jurídica.
adquirir o fundo de comércio ou esta­ As sociedades de capitais, aquelas
belecimento de outra, e continuar igual que modemamente prevalecem, onde
atividade, mesmo sob outra denomina­ seus sócios ou acionistas aparecem de
ção (art. 133). modo abstrato e distante da pessoa
São até aqui hipóteses muito estritas, jurídica, com esta não se confundindo,
onde a vinculação do terceiro ao fato nem a termos de responsabilização
gerador daqueles débitos tributários subsidiária, estas só começam a encon­
decorre da sua aquisição por compra, trar alguma interferência das normas do
por doação, ou até por sucessão here­ CTN no dispositivo do art. 135, III,
ditária, de determinados bens, de certas onde a seus diretores, gerentes ou repre­ È
empresas, de certos aviamentos comer­ sentantes, se aplica a responsabilização
ciais, que trazem assim, por expressa pessoal pelos débitos tributários decor­
criação legal, embutidos em si, onerações rentes de “atos praticados com excesso
fiscais flutuantes que naturalmente se de poderes ou infração de lei, contrato
limitam ao valor desses próprios bens social ou estatutos”.
ou direitos e dali não podem passar. Queremos afastar desde logo enten­
Já no art. 134 o código nomeia casos dimentos como os de Carlos Rocha
típicos de responsabilização subsidiária, Guimarães (“Rev. Dir. Trib.”, n. 35, p.
DOUTRINA 51

94) pretendendo que também o art. 134, pois, para sua real compreensão, dentro
III, do CTN se aplicaria iguaimente aos do contexto axiológico daquela norma»
diretores de empresa, por serem eles ou seja, qual o padrão de comportamen­
administradores de bens de terceiros. to do diretor, gerente ou representante
Essa concepção peca por afrontar que a lei quis categorizar como grave­
desde o início o próprio conceito da mente ofensivo à ordem tributária, de
pessoa jurídica e de seus diretores, pois um modo tal que se desconsiderasse a
estes não são em rigor jurídico, como pessoa jurídica e se o atingisse pesso­
administradores, terceiros em relação a almente.
ela, mas sào os seus próprios órgãos A imediata pergunta que decorre dessa
exteriorizadores de sua vontade, os normatividade é se o não-pagamento, a
“presentantes” do ente abstrato, societá­ falta de recolhimento dos tributos devi­
rio, como queria Pontes de Miranda. dos, a inadimplência da sociedade na
Assim, o art. 134, III, se destina e satisfação de suas obrigações de paga­
objetiva aos gestores comuns de bens de mento de tributos configura uma “infra­
terceiros, pelas vias contratuais de uso, ção legal”, de modo a acarretar a res­
donde sua responsabilização objetiva, ponsabilização dos diretores ou gerentes
independente de culpa, pelos tributos ou representantes.
imputáveis a esses representados. E por isso que falamos acima na
O absurdo seria, com desvio de apro­ vagueza da expressão “infração legal”,
priação técnico-jurídica, extrapolar esse pois que, em extremo rigor, não pagar
preceito aos diretores de sociedades, um débito fiscal na data devida, é um
deferindo-lhes responsabilização, sem descumprimento, e pois uma infração, à
culpa, sem desvio de poder, sem infra­ lei que assim determina. Mas, não pagar
ção legal, pelos ónus tributários da uma obrigação comercial qualquer no
empresa. seu vencimento também é uma ofensa
Definitivamente, pois, é apenas no à lei, em sentido lato, com todo ato não
art. 135, III, que o CTN concede trato cumpridor de ditames legais ou
à responsabilidade dos diretores de obrigacionais é infrator da lei, até do
sociedades, e aí se demanda para tal as princípio genérico que determina cum­
condições necessárias referidas no caput primento das obrigações.
do artigo. É então que vemos como contempla­
A esse respeito, a principal questão do nessa norma matriz do art. 135, do
I se circunscreve à efetiva determinação CTN o princípio de que, a infração à
do que representa a infração legal, uma lei que configure um “ato ilícito” estrito
das condições que a lei estabeleceu para senso, esta sim qualifica e proporciona
que surja a responsabilidade do diretor, a responsabilidade dos diretores, geren­
gerente ou representante. tes e representantes.
Sim, porque mais fácil será se deli­ Pois de outra forma teríamos desapa­
mitar onde há a prática de atos com recida a natureza das sociedades de
excesso de poderes, ou afronta aos responsabilidade limitada, e a distinção
estatutos ou ao contrato social, pelos arcaica, clássica, entre a pessoa jurídica
termos necessariamente definidores des­ e as pessoas físicas que a compõem e
ses atos societários, onde se fixa até a dirigem, pois que o simples não-
onde os representantes das pessoas ju­ pagamento de débitos, tributários e outros
rídicas podem agir. da sociedade, configura um deslize
Mas, “atos praticados” com “infração comercial, mas não propriamente um
de lei”, já é um conceito delimitador um ilícito, e suas seqiielas ficam, pois,
tanto difuso, que precisa ser entendido, limitadas à própria pessoa jurídica.
52 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

Assim entende Hugo de Brito Macha­ os julgados estampados na ADV/81, n.


do (“Curso de Direito Tributário”, 10.a 14, 189,310, 1.041, 1.042, 1.275, 1.380,
ed., p. 110/111), ou ainda, Elcio Reis 1.381, 1.497, 1.498 e 2.222 a 2.448.
in Revista de Direito Tributário”, n. 7/ “Os bens particulares do sócio, ainda
8, p. 269 ss. que gerente, não respondem pelas obri­
“A possível responsabilidade dos gações da sociedade se não foi feita a
sócios-gerentes e diretores pelo não- prova de que ele interveio culposamente
cumprimento de dispositivos de leis, para a prática do ilícito tributário.”
que importem em débito da sociedade (TJRJ, Ac. un. da 2.a C. Cív., reg. em
para com o poder público não resulta 1.7.81, Ap. 12.925, ADV n. 4.475).
nem se confunde com a impossibilidade “Os bens particulares dos sócios da
da sociedade pagar devido à sua insol­ sociedade por cotas de responsabilidade
vência, mas é necessário demonstrar e limitada ordinariamente não respondem
convencer que o sócio contribuiu pes­ pelas dívidas sociais, salvo se, em sendo
soal e dolosamente para a violação da eles gerentes, se houverem conduzido
lei em prejuízo de terceiro”. com excesso de poderes, com violação
O Dr. Alberto Nogueira, Procurador da lei, do contrato ou do estatuto; por
da Fazenda Nacional, em artigo publi­ isso, não se justifica também a penhora
cado na Rev. de Dir. Adm. n. 4, p. 77, sobre tais bens” (TJMS, Ac. un. da T.
ensina sobre a responsabilidade dos Cív., em 10.5.82, AI 386/82, ADV n.
administradores, prevista no art. 135, 6.562).
III, do CTN que ele tipifica como “Sem prévia demonstração, em pro­
“responsabilidade subsidiária especial”: cesso judicial ou administrativo, de que
“Na configuração dessas circunstân­ ocorreu ato irregular do sócio, não pode
cias fáticas, tomar-se-ia indispensável a este ter seus bens penhorados em pro­
presença do elemento subjetivo, pois a cesso de execução contra a sociedade”
simples falta de recolhimento do tributo, (TJSP, Ac. da 12.“ C. Cív., em 31.8.82,
quando não dolosa, por si só, não deve AI 46.508-2, ADV n. 7.181).
ser entendida como infração à lei”. Contudo, verifica-se que algumas
Já observamos alguma vacilação decisões, como a do STF, pela sua 2.a
jurisprudência! a respeito, mas cremos T., em 10.11.83, publicada na RTJ n.
que de tempos para cá firmou-se a 106/878, sendo relator o Min. Francisco
tendência de restringir essa responsabi­ Rezek, proclamou que essa responsabi­
lização a hipóteses de ilícitos tributários, lização dos diretores, gerentes ou repre­
tais como fraudes ou sonegação. sentantes, pela própria previsão no CTN,
Veja-se os acórdãos abaixo: já os coloca como réus na execução
“É de jurisprudência pacífica do STF fiscal, à vista do art. 568, V, do CPC,
que não responde o sócio pelas obriga­ cabendo a eles, no foro da execução, no
ções de natureza fiscal da sociedade por ensejo dos embargos, discutir a “veri­
cotas de responsabilidade limitada sem ficação de ocorrência inequívoca das
a prova de que tenha ele praticado ou circunstâncias de fato, aludidas no art.
participado de ato prejudicial à Fazenda 135, caput, do CTN”.
Pública, com infração de lei ou do O que temos notado em decisões
contrato social, o que não se presume como essa, do STF, é que se admite a
pela simples dissolução da entidade; citação, o chamamento a juízo, dos
impõe-se, nesse caso, a prova idónea diretores, gerentes e representantes,
daqueles pressupostos” (TJMG, Ac. un. mesmo sem terem sido eles previamente
da 3.“ C., em 8.10.81, Ap. 55.583, ADV figurados no procedimento administra­
n. 3.443). Confirmaram-se, sobre o tema, tivo e nem sequer constado da certidão
DOUTRINA 53

de dívida ativa, abrindo-se-lhes ensejo etapa no exercício do direito de defesa


para provarem ausência de atos ilícitos do dirigente”.
somente no corpo dos embargos, o que Sim, o art. 568, V, do CPC, define
de toda forma envolve uma inversão como sujeito passivo na execução, “o
clara e insustentável do ónus da prova, responsável tributário, assim definido na
por isso que não existe responsabilida­ legislação própria”.
de, nem culpa, presumida, nessas hipó­ Tal será o caso dos pais, pelos tribu­
teses acima, devendo o credor estatal, tos dos filhos menores, ou do inventa-
ele sim, fundamentar a prática de ato riante pelos encargos tributários do
ilícito pelos responsabilizados. espólio, como já vimos. Mas aí a lei
Esse o ensinamento do Dr. Alberto tributário, o CTN, é simples e direta,
Nogueira, Procurador da Fazenda (ob. concedendo-lhes tout court, tal respon­
cit., p. 77): sabilização, sem outras demandas
“A responsabilidade (subsidiária) es­ tipológicas. Ora, no caso dos diretores,
pecial do administrador, estando condi­ gerentes ou representantes de socieda­
cionada à incapacidade económica ou a des ou associações fundações privadas,
inidoneidade económica ou financeira (e de igual modo, mandatários, prepostos
do principal obrigado, será ela apurada e empregados, art. 135, II) eles não são,
e determinada na via administrativa. em princípio, responsáveis pelos débitos
Significa isso que a responsabilidade, tributários das pessoas jurídicas a menos
embora determinada na via administra­ que tenham agido com excesso de
tiva, possa vir a ser dcscaracterizada na poderes ou infração da lei, contrato
via judicial, cabendo ao interessado o social ou estatutos.
ónus da prova. Ficam um tanto estranhas essas de
Em outras palavras, o responsável cisões do STF:
subsidiário especial deveria apontar as “Não se exige a inscrição do nom
falhas e os vícios ocorridos no processo do sócio-gerente, ou responsável, pará
administrativo, com o objetivo de de­ que contra ele se exerça a ação fiscal.
monstrar a ausência dos pressupostos Mas só se admite a responsabilização
legais que sirvam de base para a exi­ dele ou do responsável se agiu com
gência administrativa”. excesso de poderes ou infração de lei,
Ou também Carlos da Rocha Guima­ contrato social ou estatuto (art. 135 do
rães (ob. cit., p. 94): CTN) (l.a T., 22.10.93, RTJ 116/419).
“O problema é saber se, numa ação “Incabível a penhora em bens dos
iniciada contra o contribuinte (devedor), sócios indistintamente, sem prova de
pode a certidão de dívida ser emendada sua responsabilidade solidária. O que
ou substituída (art. 2.°, § 8.°, da Lei tem admitido a jurisprudência do STF
6.830) para o fim de prosseguir contra é a possibilidade da penhora em bens
o dirigente responsável pelo débito. do sócio-gerente, independentemente de
A nosso ver, essa emenda ou subs­ ter ele figurado na certidão de inscrição
tituição, para efeito de inclusão do nome da dívida da sociedade, desde que haja
do dirigente como responsável pelo alegação de que agiu com excesso de
débito, só pode ser feita se o dirigente poderes ou infração de lei ou do con­
tiver sido intimado, como responsável, trato social (2,“ T., 6.9.83, RTJ 109/
na fase administrativa. 1.079).
Sem que essa providência tenha sido Que a responsabilização do sócio-
tomado, estar-se-ia, com a emenda ou gerente, diretor ou responsável só exista
substituição da certidão, eliminando uma se tiver ele agido com infração legal ou
54 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL 101

estatutária ou com excesso de poderes to, dentro de normas de proceder a que


é uma evidência clara, decorrente da se submete a própria administração”.
expressão legal categórica. (Rubens Approbato Machado. “Pro­
Também o chamamento a juízo de cesso Tributário Administrativo e Judi­
qualquer sócio, como aqueles não diri­ cial”, “in” “Curso de Direito Tributá­
gentes, é alguma coisa fora de propó­ rio”, Edições CEJLJP, 2.a ed., p. 383).
sito, por absoluta falta de prescrição Aliás, se de início tais registros de
legal e afronta evidente ao princípio que convicção de atos de gestão irregulares
norteia a existência e a independência não forem aparentes, no curso do pro­
das pessoas jurídicas. Até aí, portanto, cedimento administrativo fiscal haverão
impecáveis as manifestações do STF. de ser demonstrados, e tal é a função
Contudo, essa confessada admissão e o dever de ofício dos procuradores
jurisprudencial de penhora dos bens do fazendários.
sócio-gerente mesmo sem ter ele figu­ O que não é razoável, nem jurídico,
rado na inscrição da dívida da socieda­ nem compatível com aquela norma de
de, pela simples “alegação de que agiu responsabilização, é que, só pelo fato de
com excesso de poderes ou infração de ser diretor, sócio-gerente ou represen­
lei ou do contrato social” se revela, data tante da pessoa jurídica, alguém seja
vénia, como sensivelmente afrontosa aos sujeito passivo de uma execução, de
bons princípios de direito, além de uma constrição patrimonial, sem que
fugidia da tipificação legal do caput do qualquer evidência de algum daqueles
art. 135, do CTN. atos ilícitos culposos, seja-lhe compro-
Pois que se não existe ali presunção vadamente, mesmo em sede administra­
de responsabilidade, expressa que teria tiva, imputada, mas tão-somente alegada
que ser, a condição categórica inafastável, in abstrato.
da responsabilização pessoal dos direto­ Algumas decisões, como o acórdão
res, gerentes e representantes, é a de que unânime da 2.a T. do SF (BJA n. 93.143,
tivessem agido de modo afrontoso à lei 1.983) declaram que esse chamamento
ou aos estatutos ou com excesso de de tais pessoas a juízo, como réus, em
poderes. execução, se daria “independentemente
Para isso a autuação administrativa de processo judicial prévio para a ve­
deve de se dirigir à sociedade e a seus rificação da ocorrência inequívoca das
diretores ou sócios-gerentes ou repre­ circunstâncias de fato aludidas no art.
sentantes, se os elementos iniciais de 135, caput, do CTN.”
sua formação já sinalizam no sentido de Outros decisórios ressalvam a neces­
atos de gestão eivados de tais vícios, sidade de prévia comprovação, de vio­
para que ali, no corpo do procedimento lação da lei ou do estatuto para que se
administrativo tributário, se evidenciem proceda à penhora, mas se reportam a
ou não esses elementos condicionantes sócio não gerente:
daquela responsabilização solidária. “Os bens particulares dos sócios não
Essa é parte da função própria do respondem por dívida fiscal da socieda­
procedimento tributário administrativo. de, salvo quando o sócio pratica ato com
“Assim, interessa à administração excesso de poderes ou infração da lei,
pública que essa obrigação seja cumpri­ contrato social ou estatuto (STF, 2.a T.,
da nos termos da norma legal positiva, 6.9.83, RTJ 109/1.079).
não sendo pró-fisco e nem pró-contri­ Ora, sócio não gerente não é sequer
buinte. Para que tal ocorra, abre-se, no de ser cogitado, até porque de regra, não
campo administrativo, a possibilidade possui ele poder algum de gestão, inad­
de discussão da legalidade do lançamen­ missível em princípio qualquer causali-
DOUTRINA 55

dade dolosa entre ato seu e a elisão Se, e somente se os dirigentes, con­
tributária. troladores ou representantes das empre­
Melhor decidiu o TJSP (acórdão da sas houverem agido de modo estrita­
12.a C. Cível, 31.8.82, ADV n. 7.181). mente ilícito no trato da matéria em
“Sem prévia demonstração, em pro­ questão, afrontando a lei o contrato
cesso judicial ou administrativo, de que social ou estatuto — cometendo fraude
ocorreu ato irregular do sócio, não pode ou sonegação fiscal em termos claros e
este ter seus bens penhorados em pro­ estritos — serão eles igualmente respon­
cesso de execução contra a sociedade”. sáveis por tais débitos.
Em igual sentido o TJMS (acórdão Para isso, ao autuar a sociedade, o
unânime do T. Cível em 10.5.82, ADV credor tributário deve necessariamente
n. 6.562). estender a autuação a seus dirigentes, se
“Os bens particulares dos sócios das sinais houver desde logo desses ilícitos,
sociedades por cotas de responsabilida­ de modo a que no ensejo do procedi­
de limitada ordinariamente não respon­
mento administrativo — que afinal vai
dem pelas dívidas sociais, salvo se, em
conceder poder de inscrição e título
sendo eles gerentes, se houverem con­
duzido com excesso de poderes, com executivo ao crédito fiscal — essa res­
violação da lei, do contrato ou do ponsabilização fique apurada.
estatuto; por isso não se justifica tam­ Aí sim, a execução fiscal, processo
bém a penhora sobre tais bens”. judicial revestido de qualificações de
Em síntese, o credor tributário, credor eficácia e de força próprios à demanda
estatal, a princípio corre o mesmo risco compulsória das prestações tributárias,
que qualquer um de nós, credor comum, poderá ser dirigida contra a sociedade
corre em relação aos débitos comuns, e contra esses terceiros envolvidos, pela
quanto aos débitos que as empresas gestão ilícita, na insatisfação dos débitos
(débitos tributários) têm para com ele. fiscais.

i
DOUTRINA

AS HIPÓTESES DE RECESSO NA LEI DAS SOCIEDADES


ANÓNIMAS
RENATA BRANDÃO MORITZ

Sumário: 1. O direito dc retirada na Lei 6.404: 1.1 A Lei 6.404/76 e os pressupostos


de recesso; 1.2 Hipóteses para seu exercício; 1.3 Prazo para exercer o direito dc
retirada; 1.4 Valor de reembolso das ações — 2. A Lei 7.958/89: 2.1 Alterações
no caput do art. 137 da Lei 6.404/76; 2.2 A reação às mudanças; 2.3 Acórdãos
e pareceres sobre a “Lei Lobão” — 3. Novas propostas dc alterações — 4.
Conclusão.

Neste trabalho abordaremos as hipó­ do cada vez um número maior de


teses e pressupostos para o exercício do investidores para fornecerem o capital
direito de recesso na Lei 6.404/76. Ana­ social da companhia.
lisaremos a Lei 7.958/89, as consequên­ Na Lei 6.404/76 são basicamente dois
cias da sua promulgação e também a os pressupostos para o exercício do
recente Medida Provisória n. 1.179/95. direito de retirada. O primeiro é ter
Finalmente teceremos comentários so­ havido deliberação eficaz da assembléia
bre as últimas propostas de alteração geral sobre uma das matérias especifi­
para a Lei das S.A. Procuramos, ao cadas em lei que permitem tal exercício
longo deste trabalho, dar ênfase às (hipóteses taxativas que analisaremos a
questões práticas, utilizando pareceres seguir). O segundo é não ter ocorrido
da CVM e jurisprudência sobre o tema. consentimento do acionista à alteração.
Se ocorrer o consentimento, o acionista
1. O direito de retirada na Lei 6.404 não poderá se arrepender e exercitar o
direito de retirada.
1.1 A Lei 6.404/76 e os pressupostos de Em tese, qualquer acionista poderá
recesso exercê-lo, independentemente da espé­
cie, classe ou forma de suas ações. No
A Lei 6.404 foi promulgada em 15 entanto, existe o pressuposto de que o
de dezembro de 1976 com o objetivo interesse do acionista tenha sido atingi­
de atender às novas necessidades gerais do.
do setor empresarial em expansão, não Para que o acionista exerça o direito
mais socorridas pelo Dec.-lei 2.627/40. de retirada, bastará comprovar que era
Devido ao seu objetivo de promover titular das ações na data da assembléia
grandes empresas privadas e expandir o que aprovou a deliberação da qual dis­
mercado de capitais, a nova lei ampliou cordou e pedir o reembolso dentro do
o direito da retirada como uma forma prazo legal (art. 137). Os acionistas que
de proteção aos acionistas, proporcio­ se abstiveram de votar ou os ausentes
nando uma maior segurança para novos à assembléia também poderão exercer o
investidores. A preocupação resumia-se direito de retirada.
em garantir à minoria condições para Cabe ressaltar que no direito brasilei­
que investissem nas empresas, angarian­ ro não há recesso parcial, ele é exercido
DOUTRINA 57

sobre todas as ações da espécie ou Art. 136 (...) I: “Criação de ações


classe possuídas pelo acionista. Tal preferenciais ou aumento de classe
restrição evita que acionistas portadores existente sem guardar proporção com as
de grande número de ações se aprovei­ demais, salvo se já previstos ou auto­
tem de determinadas situações, para rizados pelo estatuto”.
exercer o direito de retirada apenas de Aqui são duas as hipóteses. A primei­
parte dessas ações, garantindo um resul­ ra refere-se a criação de ações preferen­
tado patrimonial em dinheiro, mas per­ ciais. Esta alteração estatutária interfere
manecendo na companhia. diretamente nos direitos patrimoniais
A Lei 6.404/76 trouxe uma inovação dos acionistas portadores de ações or­
importante no § 2.° do art. 137. A lei dinárias, pois implica conferir aos por­
faculta aos órgãos da companhia con­ tadores das novas ações vantagens
vocar, nos dias subsequentes ao término pecuniárias tais como prioridade na
do prazo para exercer o direito de distribuição dos dividendos, prioridade
retirada, uma assembléia geral para no reembolso do capital, ou a cumulação
reconsiderar ou ratificar a deliberação de ambas as vantagens (conforme o art.
que ensejou o direito de retirada dos 17). Portanto elas conferem aos seus
acionistas dissidentes. Assim, se enten­ portadores maiores direitos económicos.
i-
derem que o pagamento do valor de A decisão de criação destas ações é
reembolso a estes acionistas será preju­ tomada em assembléia geral extraordi­ I
dicial à companhia, então poderão re­ nária com a aprovação de acionistas que
considerar, desistindo da deliberação representem metade do capital votante.
anteriormente aprovada. Os portadores das ações ordinárias, que
não concordarem com tal alteração, ’
poderão exercer o direito de se retirar
1.2 Hipóteses para seu exercício
da sociedade, desde que não haja pre­
visão no estatuto da companhia.
Na Lei 6.404/76 vários são os dispo­ Entretanto, há jurisprudência em con­
sitivos que tratam da matéria, e muitas trário, como na Apelação Cível n.
vezes de forma repetitiva. As delibera­ 16.312-1, julgada pelo Tribunal de Jus­
ções da assembleia geral que permitem tiça de São Paulo, em l.° de outubro de
o direito de retirada aos acionistas são 1981, mantendo a decisão de primeiro
determinadas principalmente pelo caput grau que não concedeu o reembolso à
do art. 137. autora, portadora de ações ordinárias,
A antiga redação do caput do art. 137 quando deliberaram em assembléia criar
dispunha: três classes de ações preferenciais na
“Art. 137. A aprovação das matérias sociedade. Foi decidido que no caso não
previstas nos números I, II e IV a VIII houve prejuízos para a autora e manti­
do art. 136 dá ao acionista dissidente veram a decisão de primeiro grau, ne­
direito de retirar-se da companhia, gando-lhe o direito de retirada.1
mediante reembolso do valor de suas A segunda hipótese apresentada no
ações (art. 45), se o reclamar à compa­ inc. I do art. 136 trata do aumento das
nhia no prazo de 30 (trinta) dias con­ ações preferenciais sem guardar propor­
tados da publicação da ata da assem- ção com as demais. Quando é decidido
bléia-gerai”.
Vamos iniciar a análise de cada um to
dos artigos pertinentes à matéria pelas Eizirik, Nelson e Bastos, Aurélio Wander,
Mercado de Capitais e S/A — Jurispru­
hipóteses do art. 136 indicadas pelo dência, Rio de Janeiro: CNBV, 1987, 2v.,
antigo caput do art. 137. p. 110.
58 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

o aumento do número de preferenciais, outras classes), não só os acionistas


tanto os acionistas dissidentes portado­ dissidentes portadores das ações ordiná­
res de ações ordinárias, como os por­ rias, mas os portadores das ações pre­
tadores de preferenciais já existentes são ferenciais de outras classes também
atingidos, podendo exercer o direito de teriam o direito de se retirar da socie­
se retirar. dade. Isto porque tal alteração aumen­
Interessante observar que a só inclu­ taria os privilégios patrimoniais dos
são de cláusula estatutária prevendo ou portadores das ações da classe aumen­
autorizando a emissão de ações prefe­ tada, em detrimento das ações ordinárias
renciais sem guardar proporção com as dos primeiros e das preferências dos
demais classes existentes, dá ao acionis­ segundos.
ta dissidente o direito de se retirar da Mas cabe ressaltar que, segundo
sociedade, desde que manifestado no entendimento da Comissão de Valores
prazo legal, como reconhecido pela Mobiliários, também os acionistas por­
Comissão de Valores Mobiliários no tadores das ações da classe a ser aumen­
Parecer da Superintendência Jurídica n. tada podem exercer o direito de se
21/79. retirar, embora à primeira vista soe
Esta posição é confirmada também estranho. A justificativa para tal estaria
pela jurisprudência, conforme o julga­ no fato de que o aumento desproporcio­
mento da Apelação Cível n. 37.797, em nal da classe representa um risco maior
7 de abril de 1981, no Tribunal de dos lucros serem insuficientes ao paga­
Justiça do Rio Grande do Sul, no qual mento integral dos dividendos ou do
decidiu-se que a simples alteração acervo social ser insuficiente para cobrir
estatutária que importa em permissão de o reembolso. Caso o aumento fosse
aumento do número de ações preferen­ proporcional, esse risco não aumentaria,
ciais desproporcional ao de ordinárias conforme Parecer da Superintendência
autoriza o acionista dissidente a retirar- Jurídica da Comissão de Valores Mobi­
se. Isto porque, “embora a diferença liários n. 72/83.
entre ações preferenciais e ordinárias Desta forma, não só os acionistas
seja de espécie, e não de classe, a lei portadores de ações ordinárias e das
não pode ser visualizada literalmente, ações das classes desfavorecidas com a
porque a desproporção no aumento de alteração estatutária poderiam se retirar,
ambas afeta de tal forma o equilíbrio da mas o das classes aumentadas também.
relação societária, que, numa interpre­ Art. 136 (...) II: “Alterações nas pre­
tação finalística, só se pode entender ferências, vantagens e condições de res­
que ela esteja abrangida pela necessida­ gate ou amortização de uma ou mais
de de aprovação em votação qualificada, classes de ações preferenciais, ou cria­
permitindo o reembolso de valor de suas ção de nova classe mais favorecida”.
ações à minoria dissidente”.2 A Lei 6.404/76 não restringiu as
Quando a companhia possui capital vantagens e privilégios das ações pre­
formado por ações ordinárias e ações ferenciais aos benefícios pecuniários,
preferenciais de mais de uma classe e como por exemplo à percepção de di­
seus acionistas deliberam aumentar uma videndos. Em seu art. 18, permitiu que
das classes, em total desproporção quan­ lhes fossem asseguradas também vanta­
to à outras ações já existentes (tanto as gens políticas, tais como o direito de
ordinárias, como as preferenciais de eleger, em votação separada, um ou
mais membros dos órgãos de adminis­
(2) Eizirik, Nelson e Bastos, Aurélio Wander, tração. A nova lei societária tomou os
obra já citada, p. 106. conceitos de vantagens e preferências

í
DOUTRINA 59

mais abrangentes, não se restringindo O resgate, segundo o § 1.°, do art. 44,


apenas a valores pecuniários, como a consiste em pagar o valor das ações para
legislação anterior.3 retirá-las definitivamente de circulação
A alteração nas preferências e vanta­ com redução ou não do capital social.
gens de determinada classe de ações Sendo mantido o valor do capital social,
poderá afetar não só os interesses dos será atribuído, quando for o caso, novo
acionistas portadores das mesmas, mas valor nominal às ações remanescentes.
também dos outros acionistas. Tal As ações resgatadas são, portanto, reti­
modificação altera uma das bases do radas definitivamente de circulação, de­
estatuto da companhia, pois a lei, em vendo ser inutilizadas ou incineradas.
seu art. 19 determina que caberá ao A amortização, segundo o § 2.° do
estatuto especificar as vantagens e pre­ mesmo artigo, consiste na distribuição
ferências atribuídas a cada classe de aos acionistas, a título de antecipação e
ações preferenciais. Portanto, o estatuto sem redução do capital social, de quan­
assegura tais direitos patrimoniais ao tias que lhes poderiam tocar em caso de
acionista titular de ações preferenciais, liquidação da companhia. A amortiza­
e, em caso de alteração, os acionistas ção pressupõe que a companhia esteja
dissidentes prejudicados poderão exer­ em boa situação financeira, podendo
cer o direito de se retirar da sociedade. antecipar tais pagamentos e, por isso,
Se a alteração for para diminuir as não implica em redução do capital social.
preferências de determinada classe, então Tal operação, como dispõe o § 3.°, pode
apenas os acionistas dissidentes titulares ser integral ou parcial e pode abranger
desta classe serão prejudicados e apenas todas as classes de ações ou só uma
estes poderão se retirar. No Parecer da delas. Tanto o resgate como a amorti­
Superintendência Jurídica n. 60/78 a
zação que não abrangerem a totalidade
das ações de uma mesma classe serão
Comissão de Valores Mobiliários con­
firma tal entendimento, esclarecendo que feitas mediante sorteio (§ 4.°), evitando
qualquer forma de manipulação da
“a alteração para menos das preferências
maioria que pudesse prejudicar a mino­
de uma classe de ações preferenciais em
nada afeta aos interesses das demais
ria.
Quando ocorrem alterações nas con­
classes de preferenciais, beneficiando, dições de resgate ou amortização de
ao contrário, a situação das ações ordi­ ações preferenciais, deve-se analisar
nárias” e concluindo que só os titulares quais os acionistas prejudicados, poden­
das ações prejudicadas poderão exercer do estes então exercerem o direito de
o direito de recesso. se retirar. Determinadas alterações atin­
Se a alteração determinar um aumen­ gem apenas uma parcela dos acionistas
to das vantagens ou preferências de uma preferenciais, enquanto os restantes não
classe, então os acionistas dissidentes são atingidos. Muitas vezes a alteração
portadores das ações de outras classes atinge apenas a classe de ações que
e das ordinárias podem se retirar. sofreu a modificação, mas isto deve ser
O texto fala em resgate e amortização analisado com cuidado. No caso de
de uma ou mais classes de ações pre­ melhorias na condição de resgate ou
ferenciais, tomando necessário uma breve amortização de determinada classe de
explicação destas operações, ambas dis­ ações fica claro que esta alteração afe­
ciplinadas no art. 44, da Lei 6.404. taria todos os outros acionistas, que
sairiam prejudicados. Neste caso estes
(3) Comparato, Fábio Kondcr, Direito Empre­ também poderiam exercer o direito de
sarial, São Paulo: Saraiva, 1990, p. 218. se retirar da sociedade.
60 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

Quanto à criação de nova classe mais Para que os acionistas dissidentes


favorecida de ações preferenciais permi­ possam exercer o direito de retirada é
tir o exercício do direito de retirada necessário que a alteração seja prejudi­
pelos acionistas dissidentes, as razões cial aos seus interesses. Logo, para que
são as mesmas. A emissão destas novas isto ocorra, a deliberação geral extraor­
ações interfere diretamente nos interes­ dinária deverá implicar diminuir o di­
ses dos titulares de ações ordinárias e videndo obrigatório.
dos portadores de ações preferenciais de Nestes casos, são titulares desse di­
outras classes, representando perda ou reito os portadores de ações ordinárias,
diminuição patrimonial para ambos. pois o dividendo obrigatório, na maioria
Tanto os titulares de ações ordinárias das vezes, refere-se a estes acionistas.
como os titulares das ações preferenciais Os acionistas de ações preferenciais
mais antigas são prejudicados com a normalmente tem prioridade para rece­
criação de uma classe mais favorecida. berem seus dividendos. Mas deve-se
No caso de criação de classe menos observar cada estatuto, pois há empresas
favorecida, apenas os acionistas porta­ em que os dividendos das ações prefe­
dores de ações ordinárias sairiam pre­ renciais são fixos e outras em que se
judicados, podendo então se retirar. estabelece uma porcentagem do valor
Art. 136. (...) IV: “Alteração do di­ das ações e uma participação também
videndo obrigatório”. no dividendo obrigatório. No caso do
O dividendo obrigatório é a parcela dividendo fixo não há participação nos
dos lucros auferidos pela companhia ao lucros em igualdade de condições com
final de cada exercício, que cabe a cada as ações ordinárias, mas no segundo
um dos seus acionistas. A sociedade tem caso há.
obrigação legal, havendo lucros no Logo, quando o dividendo das ações
exercício financeiro, de distribuí-los aos preferenciais for fixo e houver alteração
acionistas. É o direito que cada acionista nos dividendos obrigatórios, os acionis­
tem de receber uma parcela dos lucros tas atingidos serão apenas os portadores
líquidos da companhia e esta parcela de ordinárias. No segundo caso, sendo
deve ser definida no estatuto da melhor o dividendo das preferenciais mínimo
forma possível, esclarecendo os critérios sobre o valor patrimonial e participando
para seu cálculo, evitando dúvidas fu­ com as ações ordinárias do dividendo
turas. Quando não houver esta estipu­ obrigatório, claro que se for diminuído
lação estatutária, a própria lei define a este dividendo, os portadores de ações
forma como os dividendos devem ser preferenciais também serão atingidos.
calculados (art. 202). Neste caso tanto os titulares de ordiná­
O inciso ora comentado trata da al­ rias como os de preferenciais poderão
teração do dividendo obrigatório. A se retirar da sociedade, recebendo o
hipótese aborda o caso em que há a valor de reembolso por suas ações.
previsão estatutária e deseja-se então Art. 136. (...) V: “Mudança do objeto
alterá-la. Essa alteração dependerá de da companhia”.
aprovação pela assembléia geral extra­ O objeto social da companhia é o
ordinária, por maioria qualificada. fator que delimita, no momento da sua
Caso a alteração seja apenas para constituição, qual a atividade económica
definir melhor os critérios de distribui­ que será desenvolvida pela empresa. O
ção de dividendos, então não há que se estatuto, segundo o art. 2.° da Lei 6.404/
falar em direito de retirada, pois não 76, deve defini-lo de modo preciso e
haverá prejuízo para qualquer dos acio­ completo, delimitando a atividade socie­
nistas. tária. Por ser uma das bases fundamen-
DOUTRINA 61

tais do contrato social, sua alteração A incorporação, como determina a lei


depende da aprovação de maioria qua­ no art. 227, é a operação pela qual uma
lificada, visto que alterará a vida social ou mais sociedades são absorvidas por
e permite aos acionistas dissidentes outra, que lhes sucede em todos os
exercerem o direito de se retirar. direitos e obrigações. Nesta operação
A alteração para tanto deve ser sig­ desaparece uma ou mais sociedades,
nificativa, a simples ampliação ou dimi­ chamadas incorporadas, e permanece a
nuição quantitativa do objeto social sociedade incorporadora, sem qualquer
muitas vezes não caracterizará uma alteração na sua pessoa jurídica, mas
verdadeira mudança do objeto. sucedendo às incorporadas em seus
A Comissão de Valores Mobiliários direitos e obrigações.
no Parecer da Superintendência Jurídica Na incorporação, os acionistas da
n. 125/78 analisou um caso em que incorporada que discordarem da opera­
determinada companhia aprovou pro­ ção poderão exercer o direito de retira­
posta de aumento do capital social, da. Isto se deve ao fato de que, com a
mediante subscrição particular, para operação, a sociedade à qual pertencem
integralização de bens que não estavam será extinta e eles, se quiserem, poderão
diretamente relacionados com a realiza­ fazer parte da nova sociedade (a
ção do objeto social da companhia e um incorporadora), recebendo novas ações.
acionista dissidente de tal deliberação, Desta forma a lei permite que aqueles
desejando exercer o direito de retirada, que não concordem com esta mudança
consultou a CVM sobre o assunto. Tal exerçam o direito de retirada. O mesmo
acionista entendeu que os bens integra- não se dá com os acionistas da socie­
lizados eram fazendas que se prestavam dade incorporadora, já que a alteração
a uma exploração completamente dife­ para esta representa um aumento no seu
rente dos interesses sociais da empresa, capital social. Assim, não há razão para
e portanto houve alteração do objeto os acionistas da incorporadora dissiden­
social. A CVM, no entanto, entendeu
tes da operação poderem neste caso
que a Lei 6.404/76 não vincula a incor­
exercer o direito de recesso.
poração de bens à necessidades destes
A fusão é a operação pela qual se
estarem ligados ou relacionados direta­
mente com a atividade social, conclu­ unem duas ou mais sociedades para
indo que nestes casos não há alteração formar uma nova, que lhes sucederá em
do objeto da companhia e portanto não todos os direitos e obrigações (art. 228).
há que se falar em direito de recesso. Aqui desaparecem as sociedades envol­
Em tese, todos os acionistas dissiden­ vidas na operação criando-se uma intei­
tes poderão exercer o direito de retirada, ramente nova, porém assumindo todas
já que a alteração do objeto representa as obrigações das sociedades fusionadas.
uma alteração drástica na vida da socie­ A fusão se dá em assembléia geral em
dade. Muitas vezes o acionista subscre­ que se resolverá a constituição da nova
ve ações de uma companhia baseado na sociedade, após a aprovação dos laudos
sua atividade económica e, após a al­ de avaliação do património líquido das
teração desta, não mais se identifica sociedades elaborados por peritos. Os
com a sociedade. Nada mais justo nestes acionistas de todas as sociedades envol­
casos que permitir o exercício do direito vidas na operação que divergirem da
de recesso. decisão de realizar a fusão poderão
Art. 136. (...) VI: “Incorporação da exercer o direito de retirada, já que a
companhia em outra, sua fusão ou ci- sociedade da qual eram acionistas será
— » extinta com a fusão, não podendo serem
sao
62 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL 101

eles obrigados a participar da nova da empresa que absorve a parcela da


sociedade. sociedade cindida, não havendo prejuízo
A cisão, segundo o art. 229, é a para a receptora.
operação pela qual a companhia trans­ O direito de retirada dos acionistas
fere parcelas do seu património para dissidentes destes tipos de operações é
uma ou mais sociedades, constituídas garantido pelos arts. 225, inc. IV e 230,
para esse fim ou já existentes, extinguin­ e 264, §§ 3.° e 4.°. Este último trata da
do-se a companhia cindida, se houver incorporação ou fusão, pela controladora,
versão de todo o seu património, ou de sociedade controlada, e por sua di­
dividindo-se o seu capital, se parcial a versidade será abordado mais adiante.
versão. Art. 136. (...) VII: “Dissolução da
Na cisão total a sociedade cindida é companhia ou cessação do estado de
extinta e por isso aos seus acionistas liquidação”.
dissidentes permite-se o direito de reti­ A primeira hipótese neste inciso é a
rada. Tanto faz se a cisão será feita com da dissolução da companhia. A disso­
duas ou mais sociedades constituídas lução “é um processo, que leva à extinção
para esse fim, ou com sociedades já da sociedade; ocorrendo uma causa para
existentes. O fato é que aos acionistas que tal processo se inicie, serão reali­
da companhia cindida não se pode negar zados os atos necessários para liquida­
o direito de retirada, visto que a socie­ ção do património social e, enfim, a
dade a que se ligaram anteriormente não extinção da pessoa jurídica”.5 A disso­
mais existirá. lução é portanto uma das fases neces­
No caso de cisão parcial, a sociedade sárias para o processo de liquidação da
cindida não será extinta, mas haverá sociedade. Nesta fase apura-se o
uma diminuição do seu capital social. património social e encerra-se a ativi­
Permite-se neste caso que seus acionis­ dade normal da companhia.
tas dissidentes se retirem da sociedade A dissolução pode se dar em várias
mediante o valor de reembolso das suas hipóteses, todas elencadas no art. 206 da
ações. Lei das S.A. Ocorrendo uma dessas
Quanto aos acionistas das sociedades hipóteses a sociedade encerra suas ati­
já existentes que absorverão partes do vidades normais e promove a sua liqui­
património da cindida a doutrina toma- dação. Somente após o último ato do
se divergente. Neste caso a lei determina processo de liquidação, a partilha do
que a cisão deverá obedecer às dispo­ ativo entre os acionistas e o pagamento
sições sobre incorporação (art. 229, § do passivo, ocorre a extinção da socie­
3.°) e como na incorporação a doutrina dade.
dominante não permite que os acionistas Uma das hipóteses do art. 206 é a de
da incorporadora exerçam o direito de dissolução de pleno direito da sociedade
retirada, o mesmo se dá na cisão. por deliberação em assembléia geral de
Certos doutrinadores, como Anna acionistas (inc. I). Tal decisão afeta
Luiza Prisco Paraíso,4 entendem que profundamente a sociedade, necessitan­
estes acionistas não são prejudicados em do ser aprovada por quorum qualificado.
seus interesses, pois tais operações Declarando-se sua dissolução, a socie­
representam um aumento no património dade deixará de perseguir seu fim lu­
crativo, tentará pagar suas obrigações
<4) Prisco Paraíso, Anna Luiza Gayoso e
Almendra, O direito de retirada na socie­ (5) Fran Martins, Comentários à lei das S.A.,
dade anónima, Rio de Janeiro: Forense Rio de Janeiro: Forense, 1978, 3v., v. III,
Universitária, 1985, p. 89. p. 3.
DOUTRINA 63

sociais e repartir o seu ativo líquido dantes exercerem o direito de retirada.


entre todos os acionistas. Os acionistas O exercício deste direito é permitido
dissidentes desta deliberação poderão tendo em vista a perda da autonomia das
exercer o direito de retirada, tendo em sociedades participantes com a criação
vista as mudanças radicais na compa­ do grupo, prevalecendo o interesse deste
nhia, advindas com sua aprovação. último, em detrimento dos próprios
A segunda hipótese deste inciso trata interesses das sociedades. Além disto,
da deliberação da assembléia que cessa em alguns casos a formação do grupo
o estado de liquidação da companhia. pode prejudicar os acionistas minoritários
Tal dissolução pode ser revertida por de algumas sociedades subordinadas, já
decisão em assembléia-geral, permitindo que estas, deixando de perseguir seu
que a companhia volte a perseguir seu próprio interesse para perseguir o da
fim social. Tendo em vista a importân­ sociedade a que estão subordinadas, ou
cia da decisão, que permitirá que a do grupo, podem acabar diminuindo
companhia continue sua vida social, tal seus lucros, ao invés de mantê-los ou
decisão deverá ser adotada por quorum aumentá-los.
qualificado, e caberá aos acionistas O direito de retirada aos acionistas
dissidentes exercer o direito de retirada. dissidentes da aprovação de formação
E por último, art. 136, VIII: “Parti­ de grupos, mediante o recebimento do
cipação em grupo de sociedades (art. valor de reembolso de suas ações, é
265)”. garantido pelo parágrafo único do art.
O art. 265 da Lei 6.404/76 dispõe: “A 270.
sociedade controladora e suas controla­ Além destas causas, a Lei 6.404/76
das podem constituir, nos termos deste prevê a retirada dos acionistas em outras
capítulo, grupo de sociedades, mediante hipóteses, consubstanciadas nos arts. 221,
convenção pela qual se obriguem a 236, 252 e 256, § 2.°.
combinar recursos ou esforços para a O art. 211 trata da retirada dos acio­
realização dos respectivos objetos, ou a nistas ou sócios, nos casos de transfor­
participação de atividades ou empreen­ mação da sociedade. A transformação,
dimentos comuns”. segundo o art. 220, “é a operação pela
São, portanto, grupos formados por qual a sociedade passa, independente­
sociedades que, embora mantenham suas mente de dissolução e liquidação, de um
próprias personalidades jurídicas, pas­ tipo para outro”. A sociedade não se
sam a atuar em conjunto para obter um extingue, apenas modifica seu tipo,
fim económico comum. Este fim eco­ permanecendo os mesmos sócios ou
nómico comum que passam a perseguir, acionistas, com os mesmos direitos
muitas vezes não coincide com o inte­ patrimoniais.6
resse da sociedade controladora, ou ainda Por representar uma alteração profun­
das controladas. Muitas vezes a ativida­ da na sociedade, que deverá ser
de a ser realizada pelo grupo difere das reestruturada de acordo com seu novo
realizadas pelas sociedades que compõe, tipo, caberá o direito de recesso aos
mas de qualquer forma prevalecerá acionistas ou sócios dissidentes. A lei
sempre o interesse do grupo, em detri­ admite a transformação de sociedade
mento aos interesses individuais de cada anónima em outros tipos e vice-versa.
sociedade. No caso da transformação de outras
A participação em grupo de socieda­ sociedades em sociedades anónimas, os
des deve ser aprovada em assembléia
geral extraordinária, com quorum qua­ (6) Prisco Paraíso, Anna Luiza Gayoso e
lificado, podendo os acionistas discor- Almendra, obra já citada, p. 101.
64 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

sócios poderão renunciar ao direito de O art. 252 trata da conversão de uma


retirada, mas o mesmo não ocorrerá na sociedade em subsidiária integral de
situação inversa, pois nas anónimas o outra, através da incorporação de todas
direito de retirada não pode ser renun­ as suas ações. Tal operação deverá ser
ciado, conforme já visto. submetida à assembléia-geral em ambas
O art. 236, em seu parágrafo único, as sociedades para aprovação.
trata da desapropriação de ações por O § l.° do art. 252 trata dos proce­
pessoa jurídica de direito público, ad­ dimentos a serem realizados após a
quirindo o controle da companhia. Nesses aprovação da operação pela assembléia
casos, a sociedade passaria a ser de geral da incorporadora e autoriza seus
economia mista, possuindo como acio­ acionistas dissidentes a exercerem o
nistas de um lado a entidade pública direito de retirada na forma do art. 230.
expropriante (pessoa de direito público) Tal permissão nestes casos causa estra­
e de outro, acionistas minoritários que nheza, já que a lei não permite aos
não tiveram suas ações expropriadas. acionistas dissidentes de operações de
Neste caso não há uma assembléia entre incorporação e cisão parcial o mesmo
os acionistas para deliberarem sobre o direito, conforme já abordado. O direito
assunto, mas um ato unilateral emanado de retirada é concedido em determina­
de pessoa jurídica pública. O exercício das hipóteses legais onde a estrutura da
do direito de retirada neste caso provém da sociedade sofre mudanças profundas
do ato de desapropriação e não de que possam prejudicar os interesses dos
deliberação da assembléia-geral. seus acionistas. No caso da conversão
Estes acionistas, segundo a lei, terão em subsidiária integral através da incor­
sessenta dias contados da publicação da poração, a mudança estrutural da incor­
primeira ata da assembléia-geral realiza­ poradora não prejudica os interesses dos
da após a aquisição do controle da seus acionistas, nem acarreta qualquer
companhia, para exercer o direito de prejuízo patrimonial. Trata-se de uma
incoerência da lei.
retirada, salvo se a companhia já se
O § 2.° do referido art. 252, por sua
achava sob controle, direto ou indireto, vez, aborda a aprovação da operação
de outra pessoa jurídica de direito pú­ pela assembléia-geral da incorporada e
blico, ou no caso de concessionária de os procedimentos necessários para con­
serviço público.7 cretizar a operação. Aos seus acionistas
Os acionistas minoritários nestes ca­ dissidentes também é permitido o direito
sos têm seus direitos protegidos, já que de retirada, mediante o valor de reem­
o controle da companhia será exercido bolso na forma do art. 230. Esta per­
pelo Estado e não mais pelos acionistas missão é natural, tendo em vista que,
majoritários, passando a companhia para com a transformação da companhia em
o âmbito público. Ressalte-se que em subsidiária integral pela incorporação,
nosso país tal prática é incomum, não as ações de seus acionistas serão subs­
há uma tradição em estatizar compa­ tituídas por ações de outra companhia,
nhias através deste mecanismo. De qual­ diversa daquela em que investiu.
quer forma, a lei permite nestes casos O art. 256 aborda a compra, por uma
o exercício do direito de recesso aos companhia aberta, no controle de qual­
minoritários dissidentes, mediante o valor quer sociedade mercantil. Tal operação
de reembolso das ações. dependerá de aprovação de assembléia-
geral especialmente convocada para tal
<7) Prisco Paraíso, Anna Luiza Gayoso e sempre que, segundo o inc. I, o preço
Almendra, obra já citada, p. 105. de compra constituir um investimento
DOUTRINA 65

relevante para a compradora, ou segun­ que as resultantes da avaliação do pa­


do o inc. II, o preço médio de cada ação trimónio líquido das duas sociedades, a
ou quota ultrapassar uma vez e meia o preço de mercado. Portanto, neste caso
maior destes três valores: a) a cotação não basta o acionista discordar da ope­
média das ações em bolsa; b) valor do ração como no caso da incorporação
património líquido da ação ou quota, entre companhias independentes, tem
avaliado o património a preços de que se comprovar que as relações de
mercado; c) valor do lucro líquido da substituição de suas ações Ihes-trouxe-
ação ou quota. ram desvantagens.
Da deliberação que aprovar a compra, Assim, “se as relações de substituição
mesmo sendo um investimento relevan­ das ações dos acionistas minoritários,
te para a companhia (inc. I) não caberá previstas no protocolo da incorporação,
direito de retirada para os acionistas trouxerem para esses menos vantagens
dissidentes. Tal direito só será permitido que as resultantes da comparação pre­
quando o preço da aquisição ultrapassar vista neste artigo, os acionistas que
uma vez e meia o maior dos três valores dissentirem da deliberação da assem-
de que trata o inc. II. Nestes casos os bléia-geral da sociedade controlada que
acionistas dissidentes terão o direito de aprovar a operação terão direito de ser
se retirar mediante reembolso, nos ter­ reembolsados do valor de suas ações”.8
mos do art. 137, do valor de suas ações. A lei só permite o exercício do direito
O direito de retirada nestes casos de recesso aos acionistas da controlada.
consubstancia-se no fato da operação Aliás o raciocínio aqui é o mesmo
prejudicar os interesses patrimoniais dos utilizado nas incorporações de socieda­
acionistas minoritários, tendo em vista des independentes, onde não se permite
o valor significativo da compra. Neste o direito de retirada aos acionistas das
caso não há alteração estrutural na incorporadoras porque a operação resul­
sociedade compradora, apenas a inten­ ta em aumento do capital da companhia
ção de evitar a aquisição de ações com e, portanto, benefícios para todos. Não
valor muito superior ao devido, privile­ há prejuízo para a sociedade controla­
giando terceiros, em detrimento dos dora e para seus acionistas nesta ope­
interesses dos acionistas minoritários. ração, portanto não há que se falar em
O último artigo a ser analisado é o direito de retirada para eles.
264, que trata da incorporação e fusão As normas deste artigo são aplicáveis
de sociedades controladas. Estas opera­ também à fusão de companhia contro­
ções diferem das incorporações e fusões ladora e controlada, e não se aplicam
entre sociedades independentes, pois não aos casos em que as ações do capital
haverá duas maiorias acionárias distin­ da controlada tenham sido adquiridas no
tas aprovando a operação, apenas o pregão da Bolsa de Valores ou mediante
grupo acionário da controladora, que oferta pública (§§ 4.° e 5.°).
também atua na controlada. Por isso a
lei incluiu regras especiais para estas
1.3 Prazo para exercer o direito de
operações, visando proteger os acionis­
retirada
tas minoritários da sociedade controla­
da.
O direito de retirada será permitido O prazo para exercer o direito de
aos acionistas da controlada discordan­ recesso conta-se sempre da data da
tes da operação quando as relações de publicação da ata da assembléia-geral,
substituição das ações dos acionistas
controladores forem menos vantajosas (8) Fran Martins, obra já citada, p. 424.
66 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ----- 101

e conforme a lei determina no art. 137, de balanço atualizado; além de um


este prazo é de trinta dias. Mesmo que prazo maior para substituir o acionista
o acionista exerça desde logo, na própria reembolsado, evitando-se redução do
assembléia, o seu direito de retirada, capital social. Além disto, permite que
este somente se tomará eficaz perante a Assembléia reconsidere sua decisão
a companhia pela publicação da respec- nos casos em que esta toma-se preju­
tiva ata da qual deverá constar a decla­ dicial à companhia.
ração do dissidente. Também o acionista O exercício do reembolso em certos
que logo após a assembléia-geral fizer casos poderá ser prejudicial à compa­
a comunicação à companhia de sua nhia, pois poderá ocasionar a redução do
retirada deverá aguardar o decurso dos capital. Quando um grupo de acionistas
trinta dias após a publicação para obter minoritários decide se retirar da compa­
o reembolso de suas ações. A única nhia, pode provocar uma redução drás­
exceção encontrada na lei é para os tica no capital social da empresa, repre­
casos de aquisição de controle da com­ sentando prejuízos para a mesma. Por
panhia por desapropriação de parte de isso a Lei 6.404/76 faculta aos órgãos
suas ações (art. 236), onde o prazo será da companhia convocar nova assem­
de sessenta dias a contar da publicação bléia geral para reconsiderar a delibe­
da ata da assembléia-geral da compa­ ração que provocou o exercício do direito
nhia já desapropriada.9 de retirada.
Uma das questões mais controverti­
1.4 Valor de reembolso das ações das com relação ao reembolso é a
referente ao cálculo do seu valor. Se­
gundo o § l.° do art. 45, “o estatuto
A questão do reembolso na Lei 6.404
poderá estabelecer normas para determi­
é tratada no art. 45. O seu caput escla­
nação do valor de reembolso, que, em
rece que o reembolso é a operação pela
qualquer caso, não será inferior ao valor
qual, nos casos previstos em lei, a
de património líquido das ações, de
companhia paga aos acionistas dissiden­
acordo com o último balanço aprovado
tes de deliberação da assembléia-geral pela assembléia-geral”. A dívida surge
o valor de suas ações. Toda a matéria no momento da apuração do valor. Deve
referente ao pagamento do reembolso ele ser apurado mediante avaliação do
foi disciplina neste artigo, que estabe­ património líquido a preços de mercado,
lece as regras a serem seguidas. ou apenas mediante divisão do patrimó­
O reembolso será requerido pelo nio líquido da companhia pelo número
acionista dissidente e a companhia não de ações em circulação, chegando-se ao
poderá recusar-se a reembolsá-lo. A valor das ações?
companhia caberá receber as ações de O valor do reembolso não representa
volta, e após, vendê-las novamente a uma indenização aos acionistas dissi­
terceiros, ou mantê-las em tesouraria dentes, mas apenas um remédio jurídico
(art. 200), ou ainda extingui-las, redu­ para proteger o interesse dos minoritários.
zindo o capital da empresa. Não se pretende com ele ressarcir pre­
A lei determina um valor mínimo de juízos individuais, mas compensar os
reembolso, que não será inferior ao interesses dos minoritários, sacrificados
valor de património líquido das ações (§ pelos interesses da maioria. Por isso o
l.°); concede o direito a levantamento valor deve ser fixo, obedecendo critérios
e cálculos determinados pelo estatuto ou
<9) Prisco Paraíso, Anna Luiza Gayoso e pela lei, e conhecidos de todos os
Almendra, obra já citada, p. 105. acionistas.
DOUTRINA 67

O art. 45 da Lei 6.404 não fala em Dessa forma, o art. 45 determina que
qualquer avaliação do património líqui­ o valor de reembolso, salvo previsão
do a preços de mercado, mas sim, em diversa no estatuto da companhia, deve
valor de património líquido das ações. ser calculado com base no valor do
A avaliação a preços de mercado toma- património contábil, operação esta mui­
se perigosa, pois impede que todos to mais simples e segura para os acio­
tenham conhecimento de quanto a com­ nistas e a companhia, do que a avaliação
panhia deverá pagar aos acionistas dis­ do valor das ações a preços de mercado.
sidentes, antes que se realize a avalia­ Procedendo desta forma, toma-se mais
ção. Tal indefinição prejudica o acionis­ fácil imaginar quanto será pago pela
ta minoritário, que, desconhecendo o companhia aos minoritários dissidentes
valor que poderá vir a receber, não terá e conseqúentemente avaliar se, para ela,
certeza se a retirada será conveniente. a deliberação foi vantajosa ou não. Se
E também afetará a companhia, pois não foi vantajosa, pode reconsiderar sua
esta não conseguirá estimar o seu inte­ decisão anterior e desistir da operação
resse em reconsiderar a decisão anterior- anteriormente aprovada. O mesmo raci­
mente tomada.10 Além disso, se o valor ocínio é válido para os acionistas que
de reembolso correspondesse ao valor optaram por exercer o direito de retira­
de mercado das ações, talvez muitos da.
dissidentes saíssem da companhia com Em um país com uma economia
lucro, o que poderia favorecer uma inflacionária como a nossa, toma-se
atuação dos minoritários contra os in­ imperativo corrigir-se monetariamente
teresses sociais. qualquer dívida, seja de valor ou de
Na realidade, o § 2.° do art. 15 da dinheiro, sob pena de possibilitar um
Lei 6.404 fala em um “balanço” espe­ enriquecimento ilícito por parte do
cial, mas esse nada tem em comum com devedor e em detrimento do credor.”
O acionista dissidente permanece sócio
a avaliação do valor das ações a preços
da companhia até o pagamento total do
de mercado. A lei, com esta medida, valoj do reembolso e como tal, continua
procurou solucionar o problema da com seus direitos políticos ou de natu­
correção monetária, permitindo que o reza patrimonial.
acionista dissidente requeira um balanço Assim, como sócio, tem direito à
atualizado, no caso da deliberação ter correção monetária total do valor de
ocorrido a mais de sessenta dias do suas ações, desde o momento em que
último balanço aprovado. Nestes casos suas ações foram avaliadas até o mo­
a companhia deverá pagar imediatamen­ mento do pagamento do seu reembolso,
te ao acionista 80% do valor do reem­ conforme decisão do Supremo Tribunal
bolso calculado com base no último Federal, no julgamento do RE n.
balanço e, depois de levantado o balan­ 108.188-SP,12 e também conforme deci­
ço especial deverá, então, pagar os 20% são unânime da 2.a Câmara Civil do
restantes no prazo de cento e vinte dias, Tribunal de Justiça de São Paulo.13
a contar da data da deliberação da
assembléia-geral, conforme determina a Mello Franco, Vera Helena de, A correção
lei e conforme orientação da Comissão monetária no valor de reembolso do reces­
de Valores Mobiliários no Parecer da so societário, Revista de Direito Mercantil,
Superintendência Jurídica n. 93/78. S. Paulo: RT, n. 89, p. 83.
(l2) Revista Trimestral de Jurisprudência, n.
123, p. 658.
(l0) Comparato, Fábio Konder, obra já citada, (,3) “Transpostas essas questões prévias, cum­
p. 227. pre examinar os pontos substanciais da lide.
68 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

Considerando tais decisões e também público que errara ao sancionar a lei,


que a correção monetária tem por fina­ embora o tivesse feito com boa-fé.
lidade apenas atualizar o valor do dé­ Denúncias a parte, a lei continua em
bito, evitando que a sociedade enriqueça vigor, causando certos transtornos no
em detrimento do acionista dissidente, âmbito societário.
faz-se necessário que a correção seja
feita a partir da data do laudo de 2.2 A reação às mudanças
avaliação.
A nova lei suscitou as mais variadas
2. A Lei 7.958/89 críticas. Até os dias de hoje há dúvidas
se realmente suprimiu o direito de re­
2.1 Alterações no caput do art. 137 da tirada nestas hipóteses ou não.
Lei 6.404/76 A corrente favorável à nova lei
manifesta-se a favor de uma pretensa
O art. 137 da Lei 6.404/76 estabelecia modernização da legislação, evitando “a
as hipóteses do art. 136 que permitiam indústria da dissidência, que favorecia
o exercício do direito de recesso. Mas os que vendiam ações pelo valor patri­
em 20 de dezembro de 1989 a Lei 7.958 monial”14 e favorecendo as fusões, in­
foi promulgada, dando uma nova reda­ corporações e cisões, que não seriam
ção ao caput do art. 137. Excluiu os mais atravancadas pelos minoritários.
incisos VI e VIII do art. 136 como A corrente contrária baseia-se no fato
hipóteses para exercer o direito de re­ de que operações como as incorpora­
cesso. E a primeira vista, teria restrin­ ções, fusões e cisões provocam mudan­
gido este direito nas hipóteses de incor­ ças radicais na companhia, conforme
poração, fusão e cisão da companhia e abordado no capítulo anterior, e por isso
na participação em grupos de socieda­ é absurda a restrição dos direitos de
des. retirada nestes casos, encerrando arbitra­
A nova lei, também conhecida como riamente com uma importante proteção
“Lei Lobão” — por ser seu Relator o aos interesses dos acionistas minoritários.
Senador Edison Lobão — foi promul­ Na realidade a grande dúvida é se ao
gada ao final do ano de 1989, e logo revogar os dois incisos do art. 136, a
cercada de grande polêmica. Alguns lei revogou também os outros artigos,
chegaram mesmo a insinuar que havia acima referendados, que tratavam do
sido feita “sob encomenda” para favo­ direito de recesso nestas hipóteses
recer algum grupo em especial, levando revogadas.
o Presidente da República a declarar em Alguns, como o advogado Jorge Lobo,
acreditam que a nova lei é correta, que
E entre eles avulta o da fixação do exato basta retirar o dispositivo-mãe, para que
valor de reembolso das ações do autor. Esse os dispositivos acessórios também sejam
valor é de ser apurado tomando-se como retirados. A corrente que apóia a “Lei
termo a data de 31.10.77, em que se Lobão” afirma que o mercado deve ser
levantou o balanço especial. (...) Essa regido pelo princípio da vontade da
quantia daria ao autor o adequado reembol­ maioria se sobrepondo à vontade da
so de suas ações, se paga em outubro de minoria e que os minoritários não po-
1977. A partir de então é devida a correção
monetária, para que não se desfalque o
quantum que, com natureza indenizatória, <M) Lobo, Jorge, Direito de retirada nos casos
e pois de divida de valor, se há de pagar de fusão, incorporação, cisão e participa­
ao sócio dissidente1' (grifos meus) RTJ, n. ção em grupos de sociedades, RT, n. 664,
123, p. 660/661. p. 44.
DOUTRINA 69

dem atravancar as decisões majoritárias Também essa é a opinião do ilustre


e o desenvolvimento da companhia. Professor Mauro Rodrigues Penteado,
Segundo Jorge Lobo, entre o art. 137 e em artigo publicado na Revista de Direito
os demais artigos não mencionados na nova Mercantil,18 onde afirma que a Lei 7.958/
lei, há uma relação de dependência. O pri­ 89 não modificou a disciplina do direito
meiro seria o principal e os demais acessó­ de retirada contido na Lei 6.404/76, mas
rios, portanto, retirando-se o primeiro aca­ apenas acabou com a repetição das
ba-se por excluir os acessórios.15 hipóteses sobre fusão, incorporação e
Mas, a corrente contrária à lei afirma cisão, antes existentes na Lei das S.A.
que para a lei vigorar, deveria ter ex­ Também Rubens Aprobato Machado
tinguido todos os outros artigos sobre a se manifestou sobre o assunto em artigo,
matéria, evitando assim a confusão ins­ afirmando que o direito de retirada é um
talada. Muitos são os juristas que enten­ direito essencial do acionista que não se
dem que a lei é inócua, entre eles restringe às hipóteses previstas no art.
Modesto Carvalhosa, Mauro Rodrigues 137, é extensivo a todas as hipóteses
Penteado e Nelson Eizirik. A própria previstas na lei.19 Portanto, como há
Comissão de Valores Mobiliários refor­ outros artigos que prevêem o direito de
ça a opinião destes advogado, em pa­ retirada para as hipóteses de incorpora­
recer onde afirma que a nova lei não ção, cisão, fusão e formação de grupos
extinguiu o direito de recesso.16 de sociedades, tal direito não foi supri­
O legislador por certo não conhecia mido. Afirma que “o direito de recesso
bem o diploma legal a ser alterado e
falhou em seu propósito. Suprimiu dois (,8) o transcrito art. 137, quando sc
incisos do art. 136 citados no art. 137 reporta aos itens I, II c IV a VIII do art.
e não retirou outros artigos que manti­ 136 nào esgota as hipóteses legais de
veram intocado o direito de recesso. recesso. Outras existem, na própria lei e
aquelas mesmas estão, em certos casos,
Alguns, esquecendo o vigente art. sujeitas a peculiaridades que iremos desta­
230 da lei societária, concluíram que o car (...) o recesso as hipóteses de incorpo­
direito de recesso na incorporação, fu­ ração, fusão e cisão está disciplinado, com
são e cisão havia sido revogado. Porém, suas peculiaridades, no art. 230 da Lei
nem mesmo o Senador Edison Lobão, 6.404 (...) As peculiaridades de algumas
autor do projeto, que resultou na refe­ das hipóteses de recesso, como bem obser­
vou Lucas Resende, levou o legislador a
rida lei, assim entendeu. O eminente contemplá-las novamente, reiterando c rea­
Senador, em artigo publicado no jornal firmando o direito e explicitando as normas
“Folha de São Paulo”, asseverou que especiais a que estão sujeitas. (...) Sc a
“não houve, portanto, revogação do disciplina do recesso, nas hipóteses exami­
direito de recesso nos casos de cisão, nadas, era “dupla e coincidente”, pecando
fusão e incorporação (...). Eliminou-se pela “desnecessária repetição”, a Lei 7.958
— e é isso que alguns pretendem res­ ao menos teve o mérito de remover esses
defeitos, fazendo com que o direito de
taurar — o direito de recesso na forma­ retirada fosse tratado apenas nos capítulos
ção de grupo brasileiro de sociedades”.17 dedicados aos institutos a que se refere”.
Penteado, Mauro Rodrigues, A Lei 7.958/
89 e a pretensa modificação do direito de
(15) Lobo, Jorge, obra já citada, p. 48. retirada dos acionistas: uma discussão
(16) Lobo, Cláudia, Minoritários sem vez. Re­ inócua, Revista de Direito Mercantil, S.
vista ABAMEC, Rio de Janeiro, Outubro Paulo: RT, n. 77, p. 47.
de 1992, p. 25. (,9) Machado, Rubens Aprobato, Sociedades
(i7) “A verdade sobre a lei da sociedade por por Ações — Incorporação, Fusão e Cisão
ações”, jornal “Folha de São Paulo”, de 24 — Direito de Retirada, Revista de Direito
de janeiro de 1990. Mercantil, São Paulo: RT, n. 82, p. 46.
70 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

existe e está em vigor, quando a assem- O Poder Judiciário também já concor­


bléia geral deliberar sobre incorporação. dou com a tese de que a Lei 7.958/89
Ao acionista dissidente cabe exercitar, “não eliminou o direito de retirada do
querendo, esse direito, obedecidas as sócio dissidente, permanecendo íntegro
normas procedimentais constantes da o direito de recesso do acionista
lei”.20 minoritário conforme decidiu a ilus­
Fato é que a nova lei trouxe muita tre magistrada Dra. Heloisa Helena de
polêmica ao meio jurídico, provocando Ruiz Combat, em sentença confirmada
uma onda de tensões entre os acionistas por unanimidade pela 2.a Câmara Cível
minoritários, que desejam ver seu direi­ do Tribunal de Alçada de Minas Ge­
to de retirada assegurado nos casos rais.22
pretensamente excluídos pela Lei Lobão, Esta decisão — a primeira que abor­
e as companhias. dava o assunto — foi obtida em favor
de um acionista minoritário contra uma
2.3 Acórdãos e pareceres sobre a “Lei empresa telefónica. Esta última havia
Lobão” incorporado outra duas companhias te­
lefónicas, das quais o sócio dissidente
Devido à confusão instaurada com a também era acionista minoritário. Ocor­
promulgação da Lei 7.958/89, algumas re que, apesar deste acionista ter exer­
ações foram iniciadas na justiça e hoje cido o direito de retirada no prazo
já há decisões sobre o assunto. A cor­ previsto por lei, a companhia incorpo-
rente contrária à Lei Lobão já obteve radora não quis reembolsá-lo, levando-
não só duas sentenças favoráveis, como o a entrar com uma ação judicial contra
também o apoio da Comissão de Valo­ a mesma. Alegou a companhia incorpo-
res Mobiliários. radora em sua contestação que a Lei
A Comissão de Valores Mobiliários Lobão havia excluído o direito de re­
já decidiu em duas oportunidades que tirada nos casos de incorporações de
o direito de recesso na incorporação não companhias. Mas não foi isso que en­
foi revogado pela Lei 7.958/89.21 tendeu a ilustre magistrada, e em con­

<20) Machado, Rubens Aprobato, obra já citada, de 1976 (...). A grande discussão que
p. 57. perdurou foi se o direito de retirada estava
(2,) “o Colegiado da Comissão de Valores mantido ou não. A CVM entende que sim.
Mobiliários (CVM) defendeu o direito de Segundo seu diretor, José Arthur Escodro,
retirada dos acionistas minoritários dissi­ a CVM seguiu “o princípio de que uma lei
dentes da incorporação da Sulina Alimentos específica não é revogada por uma lei
S.A. pela Perdigão Agroindustrial S.A. A geral. No caso, a lei trata da questão em
decisão foi tomada em reunião do Colegiado, um capítulo específico pois o direito está
realizada em outubro, e comunicada, na inserido no art. 230. O fato gerador está
terça-feira, ao representante dos minoritários, no 230”. Tanto a área técnica como o
Arthur Celso Dias de Souza, da corretora Colegiado da CVM concordaram nesse
Dias de Souza. Na mesma reunião, a CVM ponto, pois, anteriormente, a superintendên­
também se posicionou favoravelmente ao cia de relações com empresas já havia se
direito de recesso dos minoritários dissiden­ pronunciado a favor dos minoritários da
tes da ação parcial da Panex S.A. (...) A Sulina”. (Grifos meus) Carvalho, Maria
Perdigão, ao negar o direito de retirada aos Christina, CVM defende direito de retirada
minoritários, baseou-se na Lei Lobão, a Lei dos acionistas, jomal Gazeta Mercantil, 21
7.958, de dezembro de 1989, do senador de novembro de 1991.
Edison Lobão. Essa lei suprimia o direito (22) Apelação Cível n. 116.737-1, decisão
previsto no art. 137, que se referia ao 136, publicada no “Minas Gerais” de 26 de
da Lei das Sociedades Anónimas, a 6.404, setembro de 1991.
DOUTRINA 71

sonância com a opinião de Mauro companhia de promover sua cisão par­


Rodrigues Penteado em seu artigo já cial, e ainda, incorporar outra empresa
citado, afirmou em sua decisão que "... telefónica e desejou exercer o seu di­
a Lei 7.958/89 não logrou eliminar o reito de retirada, o que lhe foi negado
direito de retirada nas operações de pela companhia. A assembléia-geral foi
incorporação, fusão, cisão e constituição realizada em 5.9.90, e a companhia
de grupos de sociedades”. entendeu que a partir da Lei 7.958/89,
E segundo o voto do Sr. Juiz José não havia mais possibilidade de exercer
Brandão, da Segunda Câmara Civil do o direito de recesso nestes casos. O
Tribunal de Alçada do Estado de Minas acionista ao propor a ação ordinária
Gerais, relator da apelação: “Não impor­ obteve decisão favorável, o que levou
ta se a incorporação ultimou-se após a a companhia Ré a interpor uma apelação
edição da Lei 7.958/89 vez que esta não com o objetivo de reformar a decisão
eliminou o direito de retirada do sócio de primeiro grau.
dissidente, permanecendo íntegro o di­ Mas, segundo voto da ilustre Desem­
reito de recesso do acionista minoritário”, bargadora Dra. Jurema Brasil Marins,
voto este, acompanho na íntegra pelos Relatora da apelação em questão, "... o
demais Juízes. pedido formulado pelo apelado, em
Conforme comentários de Paulo Sal­ abstrato, é tutelado pelo art. 230, da Lei
vador Frontini sobre o acórdão da Se­ 6.404/76, que não foi revogado, nem é
gunda Câmara Civil do Tribunal de incompatível com o art. l.° da Lei
Alçada do Estado de Minas Gerais, “o 7.958/89, conforme se verá, mais por­
argumento central da decisão comentada menorizadamente, quando do exame do
localiza-se no tópico da sentença que, mérito”.24 E ao analisar o mérito ela
adequadamente, transcreveu o ensina­ prosseguiu, “De sorte que, não há que
mento de Rodrigues Penteado. Em re­ se afirmar que a lei posterior revogou
sumo: suprimiram-se dois incisos no a anterior, nem que o art. 137 deve
texto do art. 137 da Lei 6.404/76. Mas prevalecer sobre o art. 230, da Lei
não foram suprimidas outras cinco 6.404/76”. E assim, negaram provimen­
disposições da Lei das Sociedades to ao Recurso da companhia telefónica,
Anónimas que mantiveram intocado o confirmando entendimento anterior do
direito de recesso”?3 (grifos meus) mesmo Tribunal.
O segundo acórdão reiterando o en­ O legislador, por não observar toda
tendimento de que a Lei 7.958/89 não a lei, mas apenas o art. 137, falhou no
suprimiu o direito de retirada nos casos seu propósito de restringir o direito de
de fusão, incorporação e cisão, foi pro­ recesso, criando grande controvérsia entre
ferido pela 7.a Câmara do Tribunal de juristas e acionistas das S.A., e ocasio­
Alçada de Minas Gerais, na Apelação nando inúmeros litígios. O Poder Judi­
Cível n. 187.636-4. ciário, no entanto, vem se posicionando
Neste segundo caso, a ação ordinária no sentido de manter o equilíbrio entre
foi proposta por um acionista dissidente, acionistas minoritários e majoritários,
minoritário de outra companhia telefó­ através do exercício do direito de reti­
nica, que discordou da deliberação da rada, conforme determinou — e ainda
determina — a Lei das S.A.
(23) Frontini, Paulo Salvador, Sociedade Anó­
nima — Direito de Retirada — Recesso de (M) Acórdão proferido pela 7.“ Câmara Cível
Dissidente — Lei Lobão: um precedente do Tribunal de Alçada de Minas Gerais, na
judicial, Revista de Direito Mercantil, S. Apelação Cível n. 187.636-4, publicado no
Paulo: RT, n. 86, p. 76. “Minas Gerais” de 15 de março de 1995.
72 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

Recentemente, com a edição da minoritário sob a argumentação de que


Medida Provisória n. 1.179, de 3 de muitos deles poderiam prejudicar o
novembro de 1995, que trata do forta­ processo de concentração das institui­
lecimento e da reestruturação do Siste­ ções financeiras, ao exercerem esse
ma Financeiro Nacional, obtivemos mais direito.
um exemplo de que a Lei Lobão não Se a Lei Lobão tivesse realmente
restringiu o direito de recesso nos casos restringido tal direito, não haveria ne­
já abordados. cessidade do Governo Federal se preo­
O objetivo da Medida Provisória n. cupar em enumerar diversos artigos da
1.179 é instituir o Programa de Estímulo Lei 6.404/76 que tratam do direito de
à Reestruturação e ao Fortalecimento do recesso nos casos de fusões, incorpora­
Sistema Financeiro Nacional, garantir a ções, cisões e constituição de grupos de
liquidez e solvência do Sistema, além de sociedades, para assim, tentar evitar as
defender os interesses dos investidores demandas dos minoritários, que certa­
e depositantes. Para tal, incluiu entre mente ocorrerão.
estas instituições àquelas porventura sob
os regimes especiais previstos na Lei 3. Novas propostas de alterações
6.024/74 e no Dec.-lei 2.321/87.
Na realidade trata-se de uma reação A Comissão de Valores Mobiliários
do Governo aos recentes casos de in­ vem se mobilizando para criar um pro­
tervenções em bancos estaduais e priva­ jeto de reforma da Lei das Sociedades
dos que vêm atingindo o mercado desde Anónimas que proporcione uma moder­
o início deste ano. Com a instituição nização na legislação atual e, conse-
deste Programa, o Governo espera pro­ qiientemente, uma maior democratiza­
teger o mercado de novas intervenções ção e fortalecimento do mercado de
incentivando a união de instituições em capitais.
dificuldades com outras mais fortes. Em 6 de março de 1992, o colegiado
Como incentivo instituiu um tratamento da Comissão de Valores Mobiliários pôs
tributário especial à essas instituições em audiência pública uma proposta de
que sejam promover incorporações (art. reforma que propiciaria o visado forta­
2.°), favorecendo assim a desejada con­ lecimento, embora estivesse eivada de
centração do sistema financeiro. defeitos técnico-jurídicos. Tal proposta,
Além da previsão de tratamento tri­ no entanto, foi logo substituída por
butário especial, a referida Medida Pro­ outra, em janeiro de 1993.
visória em seu art. 3.° determina que os No que concerne ao direito de reti­
acionistas minoritários das instituições rada, a proposta de 1992 indicava a
pertencentes ao Sistema Financeiro revogação da Lei 7.958/89.25 Tratava-se
Nacional não poderão exercer o direito de uma vitória dos acionistas minoritá­
de retirada nos casos de reorganização rios, pois como foi abordado no capítulo
societária: anterior, esta lei visou suprimir o direito
“Art. 3.° Nas reorganizações societá­ de recesso aos acionistas dissidentes nos
rias ocorridas no âmbito do Programa de casos de fusão, incorporação, cisão e
que trata o art. l.° não se aplica o participação em grupos de sociedades,
disposto nos arts. 230, 254, 255, 256, para isso, alterando a redação do art.
§ 2.°, 264, § 3.°, e 270, parágrafo único, 137 da Lei 6.404/76, já estudado.
da Lei 6.404, de 15 de dezembro de
1976”.
Trata-se de uma nova tentativa de (25) Edital dc Audiência Pública da CVM de
restringir o direito de retirada do 6 de março de 1992.
DOUTRINA 73

Na realidade, como já visto, uma I — nos casos dos números I e II do


análise mais profunda levou os intérpre­ art. 136 somente terá direito de retirada
tes a concluírem que o direito de recesso o acionista titular de ações da classe ou
nestas hipóteses não foi revogado pela classes prejudicadas pela deliberação;
Lei 7.958/89, pois não foram alterados II — o reembolso da ação deve ser
ou retirados os outros artigos que tra­ reclamado à companhia no prazo de
tavam do assunto e que asseguravam trinta dias contados da publicação da ata
este direito aos minoritários dissidentes. assembléia; e
Portanto, a visão dominante sobre o a) no caso de deliberação previamente
assunto é de que permanece eficaz o aprovada por assembléia especial, o
direito de recesso nas hipóteses preten­ prazo dos dissidentes desta assembléia
samente retiradas pela Lei 7.958/89. será contado da publicação da ata da
Mas de qualquer modo, sua revogação assembléia geral;
pelo penúltimo projeto da Comissão de b) no caso de deliberação sujeita a
Valores Mobiliários era louvável, pois ratificação por assembléia especial, o
encerraria um período de dúvidas sobre prazo dos dissidentes da assembléia
a matéria e tranquilizaria os acionistas geral será contado da publicação da ata
minoritários, evitando que entrassem com da assembléia especial”.
novos processos na Justiça para verem Importante esclarecer que a redação
seus direitos reconhecidos e garantidos. do art. 136 também foi bastante altera­
Esta no entanto, foi a única alteração da, portanto, faz-se necessária a repro­
com relação ao direito de recesso apre­ dução dos incisos que são citados no art.
sentada por aquele projeto. 137 proposto, como ensejadores do
A última proposta de alteração veio direito de recesso:
logo a seguir, com a mudança da dire­ “Art. 136 — (...)
tória da Comissão de Valores Mobiliá­ I — alteração nas preferências, van­
rios, e foi colocada em audiência públi­ tagens e condições de resgate ou amor­
ca em 18 de janeiro de 1993.26 tização de uma ou mais classes de ações
Este projeto, embora do ponto de preferenciais, ou criação de nova classe
vista técnico-jurídico seja melhor elabo­ mais favorecida;
rado, não favorece em nada os inves­ II — aumento de classe de ação
tidores do mercado, ao contrário do preferencial em proporção maior do que
anterior, que proporcionaria um revigo- a do aumento das demais espécies e
ramento no mercado de capitais. classes, salvo se já previsto ou autori­
Quanto ao direito de recesso, várias zado pelo estatuto;
foram as alterações propostas, inclusive III — redução do dividendo obriga­
a revogação da Lei 7.958/89. tório;
A primeira alteração a ser analisada IV — fusão da companhia, ou sua
é a da redação do art. 137, que passaria incorporação em outra;
a ser a seguinte: V — participação em grupos de
“Art. 137 — A aprovação das maté­ sociedades (art. 265);
rias previstas nos números I a VI do art. VI — mudança do objeto da compa­
136 dá ao acionista dissidente o direito nhia;”
de retirar-se da companhia, mediante Podemos observar que esta proposta
reembolso do valor das suas ações (art. volta a permitir expressamente o direito
45), observadas as seguintes normas: de recesso nos casos de incorporação,
fusão e participação em grupos de
(26) Edital de Audiência Pública da CVM dc sociedades, que a Lei 7.958/89 pretendia
18 de janeiro de 1993. proibir.
74 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

No entanto esta última proposta da “Art. 45 — O reembolso é a operação


Comissão de Valores Mobiliários con­ pela qual, nos casos previstos em lei, a
tinuou insistindo em negar o direito de companhia paga aos acionistas dissiden­
retirada nos casos de cisão da compa­ tes de deliberação da assembléia-geral
nhia (inc. IX do “novo” art. 136), com o valor de suas ações.
o que, conforme já abordado neste tra­ § 1,° — O estatuto pode estabelecer
balho, discordamos, já que a cisão pro­ normas para a determinação do valor de
voca uma alteração profunda na estru­ reembolso, que, em qualquer caso, não
tura da sociedade, muitas vezes atingin­ será inferior.
do e prejudicando os interesses dos seus a) na companhia com ações admitidas
acionistas. Mas desta vez, houve a à negociação em bolsa de valores, à
preocupação, louvável por sinal, de média das cotações diárias da ação nos
retirar a expressão “ou cisão” da redação sessenta dias de efetiva negociação
do art. 230, evitando as discussões que anteriores à convocação da assembléia-
até hoje ocorrem, devido a este tipo de geral, determinada após atualização
defeito na Lei Lobão. monetária das cotações até a véspera da
Além disso, com a nova redação do convocação;
art. 136 foi restringido o direito de b) nas demais companhias, ao valor
retirada também nos casos de cessação de património líquido constante do úl­
do estado de liquidação da companhia timo balanço aprovado pela assembléia-
(novo inc. VII), de criação de ações geral, observado o disposto no § 2.°,
preferenciais (novo inc. VIII) e de dis­ salvo se o estatuto estimular a avaliação
solução da companhia (novo inc. X), o das ações (§ 3.°)”.
que também não se justifica, permane­ Ao estabelecer como preço do reem­
cendo a intenção de restringir a proteção bolso nas companhias abertas com ações
aos acionistas minoritários, prejudican­ negociadas em bolsa, o valor médio das
do seus interesses. Com este tipo de suas cotações em determinado período,
medida, o mercado de capitais acabará acabaria por prejudicar o acionista dis­
perdendo novos investidores e se enfra­ sidente, que poderia obter preço melhor
quecendo. por elas, como o do seu valor patrimo­
A justificativa para esta redução, nial, conforme o texto vigente permite.
segundo a comissão designada pelo Se o acionista vai receber o valor da
presidente da CVM, foi apresentada no cotação das suas ações, então não ha­
seu relatório.27 A alegação se baseia no verá diferença entre vender suas ações
fato das legislações estrangeiras que na bolsa de valores e exercer o direito
admitem o direito de retirada, inclusive de recesso, acabando praticamente por
a italiana, onde se originou, tenderem, eliminar este último.
atualmente, a diminuir as hipóteses para Como podemos auferir desta pequena
seu exercício, porque este pode muitas análise da última proposta de alteração
vezes por em risco a sobrevivência da da Lei 6.404/76, no que conceme ao
empresa. direito de retirada, o grande mérito seria
O último projeto também alterou o § revogar a Lei 7.958/89. Mas em
l.° do art. 45, que trata do valor do contrapartida, acabaria trazendo novas
reembolso: hipóteses para restrição do exercício do
direito de recesso. Tal fato prejudicaria
o fortalecimento do mercado de capitais
<27) Relatório da comissão designada pelo Pre­ no país, pois favorece as companhias,
sidente da CVM para apreciar sugestões de
revisão da Lei 6.404/76. mas prejudica os pequenos investidores.
DOUTRINA 75

4. Conclusão grande para a sociedade, exigindo que


a companhia desista da operação e
É importante observar que apesar da retroceda em sua decisão, sob pena de
evolução do instituto do direito de re­ sucumbir a um prejuízo que não pode
tirada no Brasil, ainda hoje há divergên­ arcar.
cias quanto às hipóteses em que deva Na realidade, deve-se tentar um equi­
ser exercido. E não poderia ser diferen­ líbrio entre a proteção aos acionistas
te, visto que o tema está ligado ao minoritários e ao desenvolvimento das
desenvolvimento do setor empresarial e companhias. A argumentação de que os
do mercado de valores mobiliários, em minoritários muitas vezes abusam desta
nosso país. proteção legal, prejudicando operações
As alterações foram realizadas com o que beneficiariam a sociedade, não é de
intuito de favorecer o crescimento das todo exagerada e pode ocorrer de fato.
companhias nacionais, fazendo com que Mas não se pode, baseado nisto, reduzir
as leis societárias acompanhassem as os casos em que o direito de retirada
evoluções ou que as favorecessem. é permitido, sem observar as consequên­
O direito de recesso é um direito cias para os minoritários, e sem procurar
essencial do acionista, como foi abor­ o equilíbrio necessário entre os interes­
dado no início deste trabalho, que visa ses da companhia e dos seus acionistas.
a proteção dos interesses dos minoritá­ As alterações na legislação societária
rios. são muitas vezes necessárias, mas é
No entanto, há hoje uma tendência importante que haja uma preocupação
em se reduzir as hipóteses em que o
acionista minoritário possa exercer esse não só com o desenvolvimento das
direito. Isto se dá sob o pretexto de que sociedades anónimas, mas com os acio­
muitas vezes o minoritário prejudica a nistas também. Os minoritários são
realização de operações a serem feitas investidores importantes, que ajudam na
pela companhia, discordando da delibe­ criação de novas companhias, investin­
ração que a aprovou e retirando-se da do seu capital em novas sociedades. Não
sociedade. Muitas vezes esta retirada se pode esquecer esta função vital para
pode representar uma perda patrimonial a companhia.
DOUTRINA

AS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS E A TAXA DE JUROS

PEDRO FREDERICO CALDAS

Sumário: 1. Introdução — 2. Conceito e classificação: 2.1 Conceito: 2.1.1


Classificação — 3. Liberdade e limitação da taxa: 3.1 Um problema histórico:
3.1.1 Liberdade de fixação dos juros; 3.1.2 O retomo das restrições — o advento
da Lei de Usura; 3.1.3 O anatocismo; 3.1.4 A proibição da “cláusula ouro”; 3.1.5
O fenômeno inflacionário — 4. A limitação da taxa e as instituições financeiras:
4.1 A Lei de Usura e as instituições financeiras — o advento da Lei 4.595/64:
4.1.1 A correção monetária; 4.1.2 A comissão de permanência; 4.1.3 Limitação
constitucional à taxa de juros das instituições financeiras — 5. Conclusão.

1. Introdução ou a poupar. A direção tomada pelo


conjunto imensurável dessas decisões
1. O nível da taxa de juros é de ditará os rumos da economia.
importância fundamental para a econo­
mia. Ela não só é fator de composição 3. No centro dessas decisões, seja
de custo, mas também, se presta como captando dos poupadores, seja empres­
poderosa ferramenta de contração ou tando aos tomadores de recursos, finan­
expansão da base monetária, conforme ciando o investimento e o consumo,
tenha seu nível elevado ou diminuído. estão as instituições financeiras como
O juro mais alto aumentará certamente um dos mais importantes atores do
o custo de produção da economia como cenário económico. Cabe a elas, insti­
um todo, sobre desaquecer o crescimen­ tuições financeiras, o papel relevante de
to da economia ou, até, provocar uma atuar tanto na ponta da captação, toman­
recessão económica, além de onerar o do os recursos daqueles que desejam
custo de carregamento tanto da dívida poupar, pagando-lhes os juros da apli­
pública quanto da dívida privada. Já o cação financeira, como, na outra ponta
rebaixamento do nível da taxa provocará do sistema, aplicando os recursos arre­
a expansão da base monetária, pela gimentados mediante a concessão de
expansão do crédito em geral, movi­ financiamentos aos produtores, ou em­
mento que tenderá, pelo menos no curto prestando recursos diretamente aos con­
e médio prazos, a aquecer a taxa de sumidores, possibilitando a antecipação
expansão económica. de consumo que, sem o crédito bancá­
rio, seria certamente adiado.
2. O cenário macroeconômico acima
desenhado não é mais do que o reflexo 4. As operações passivas dos bancos,
das inúmeras, milhões mesmo de deci­ captando recursos junto a milhões de
sões dos agentes no plano microeconô- poupadores, formam o grande funding
mico. Conforme oscile a taxa de juros, das suas operações ativas, pelas quais a
as pessoas tenderão ou não a consumir produção e o consumo são financiados
DOUTRINA 77

na outra ponta do sistema, permitindo nômicas deixam de ser um exercício de


que decisões económicas opostas (apli­ adivinhação.
car e tomar recursos financeiros) se
harmonizem e permitam o equilíbrio do 2. Conceito e classificação
sistema económico. Os juros pagos aos
aplicadores (poupadores) vão compor o 2.1 Conceito
custo da atividade bancária, ao lado de
outras despesas como salários, impostos 8. Tomemos de permeio uma indaga­
e contribuições, aluguéis, comunicações, ção procedente: por que se pagariam
energia etc. juros? A resposta daria o fundamento
dos juros e poderia infletir no sentido
5. Em termos gerais, pode-se dizer de os juros serem o preço da diferença
que o diferencial (spread) entre o juro entre a satisfação presente e equivalente
pago no ato da captação e o cobrado no satisfação no futuro. Com isso estaría­
ato do empréstimo é o fator que financia mos dizendo que os juros são o preço
e permite ao sistema bancário custear as do crédito, defínindo-se o crédito, em­
suas atividades, pagar os impostos de­ bora de forma banal, como o uso pre­
vidos e gerar o lucro do banqueiro. sente de bens futuros. Através do crédito
podemos antecipar o gozo de bens que,
6. Poder-se-ia afirmar a desnecessidade não fora ele, só teríamos acesso no
da existência de bancos se a todos fosse futuro. Por essa comodidade, por essa
permitida a intermediação financeira, ou satisfação antecipada, pagamos juros.
seja, captar e emprestar recursos, ope­ Tomando os juros pela ótica do inves­
rando da mesma forma como operam as timento, como algo associado ao capital
instituições financeiras. Entretanto, a ou ao proprietário do capital, John S.
atomização do sistema conduziria à Gambs diz que podem ser considerados
insegurança e à anarquia financeira, como um pagamento pela poupança e
inviabilizando os empréstimos de valo­ pelo fato de permitir que estas econo­
res consideráveis, pelo pequeno porte mias fiquem à disposição dos investido­
dos agentes financeiros, e a organização res.1 Outros consideram que os juros
e fiscalização do sistema pela pulveri­ seriam o preço da liquidez, pago por
zação dos atores económicos. aqueles que preferem se manter líqui­
dos.
7. Seja como for, o juro e, consequen­
temente, o nível das taxas e dos spreads 9. Como se vê, a razão económica,
são elementos fundamentais para a a explicação do porquê de uma soma de
existência e perfeito funcionamento do dinheiro, ou de uma porção de coisas
sistema financeiro bancário, sem o qual fungíveis, poder dar frutos, pertence ao
nenhuma economia moderna e dinâmica campo da ciência económica. O direito
se viabiliza, não estando, aqui, em reconhece o fenômeno económico e,
questão se o sistema é privado, ou com diz Ruggiero, “apenas intervém
estatal. Numa economia equilibrada, em para o regular, quer ditando normas para
que os dispêndios públicos, o nível da os casos em que, mesmo sem a vontade
poupança nacional, as taxas de juros e das partes, uma prestação deva produzir
o grau de inflação não apresentem caráter
Gambs, John S., Iniciação Simples à Eco­
enfermiço, os agentes económicos esta­ nomia (título da edição em inglês “Man,
belecem suas estratégias dentro de um Money and Goods”), p. 103, l.a ed. bra­
horizonte seguro e as variáveis eco- sileira, 1959, Ed. Fundo de Cultura.
78 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

juros, quer pondo limites à liberdade das 2.1.1 Classificação


partes, para combater as manifestações
patológicas desse fenômeno e em pri­ 12. Muitos autores classificam os
meiro lugar a usura”.2 juros em remuneratórios e moratórios,
como se os juros moratórios também
10. Etimologicamente, juro vem da não remunerassem; outros dizem que os
adaptação do latim jure, ablativo de jus juros são convencionais e legais, con­
Juris, com o significado de direito.3 Com forme resultem da vontade das partes ou
o raciocínio agudo costumeiro, o mestre da lei.
Pontes de Miranda diz, lapidarmente,
que se entende por juros o que o credor 13. Colhendo-se, aqui e ali, espécies
pode exigir pelo fato de ter prestado ou relatadas em um sem número de autores,
de não ter recebido o que se lhe devia pode-se classificar os juros em: a) con­
prestar. Pontes realça que, numa ou vencionais e legais, b) compensatórios
noutra espécie, o credor foi privado de e moratórios, estes subdivididos em
valor, que deu, ou de valor, que teria moratórios legais e moratórios conven­
de receber e não recebeu, ressumbrando cionais, c) juros pós-periódicos e juros
disso dois elementos conceituais dos pré-periódicos, e d) juros simples e juros
juros, quais sejam, o valor da prestação, compostos.
feita ou a ser recebida, e o tempo em
que permanece a dívida, daí o cálculo 14. Os juros convencionais são aque­
percentual ou outro cálculo adequado les cuja incidência resulta da manifes­
sobre o valor da dívida, para certo trato tação bilateral ou unilateral de vontade,
de tempo. Os juros são prestados em no mais das vezes tendo por fonte o
coisas fungíveis, embora ordinariamente contrato. Os juros legais são os que
em dinheiro.4 incidem por determinação da lei. De
ordinário, decorrem da previsão legal
11. Dessa linha não se distancia para a hipótese do delito civil, como no
Ruggiero ao afirmar que “são na ver­ caso das indenizações por atos ilícitos,
dade juros aquelas quantidades de coisas ou do delito civil da mora, ou ainda,
fungíveis, que o devedor deve ao credor ausente o delito civil, mas presente a
em compensação do gozo de uma maior obrigação de reembolsar, como nas
quantidade das mesmas coisas devidas hipóteses do mandato (art. 1.311 do CC)
ao mesmo credor, e surgem como uma e da gestão de negócios (art. 1.382 do
obrigação acessória, cujo conteúdo se CC).
equipara como percentagem à quantida­
15. Diz-se compensatórios os resul­
de capital”.5
tantes da vida normal do contrato, ou
seja, quando fluem no curso normal da
(2) Ruggiero, Roberto de. Instituições de Direi­ obrigação, enquanto que os moratórios
to Civil, v. 3, p. 38, 3.a ed., tradução de resultam do retardamento indevido no
Ary dos Santos da 6.a ed. italiana, Ed. cumprimento da avença, isto é, da mora
Saraiva, 1973. em solver a obrigação, modalidade de
(3) Dicionário Etimológico Nova Fronteira da
delito civil. Os juros moratórios com­
Língua Portuguesa, de Antônio Geraldo da portam a subdivisão de moratórios le­
Cunha, l.a ed., 2.a impressão. gais e moratórios convencionais, confor­
(4) Tratado de Direito Privado, tomo XXIV, p.
15, 3.a ed., reimpressão, Ed. Borsoi, Rio de me tenham ou não as partes disposto
Janeiro, 1971. sobre os juros para a hipótese da mora,
(5) Obra citada, p. 38. isto é, no silêncio do contrato, os juros
DOUTRINA 79

da mora incidirão na forma estabelecida auferidos em quantidade superior ao


em lei. Convém salientar que, presente capital emprestado; os hebreus só o
a mora, os juros, pela taxa pactuada, ou, praticavam com os estrangeiros; os
não havendo pacto da taxa legal, são espartanos parecem não ter praticado o
acrescidos de 1% ao ano, como se colhe empréstimo a juros, face à proibição
do Dec. 22.626, de 1933. imposta pela legislação de Licurgo,
enquanto os atenienses sempre o prati­
16. O ato jurídico em que pactuados caram e com taxas bastante altas; os
os juros normalmente estabelece os romanos o praticavam sem taxa legal­
termos para que sejam satisfeitos. Quan­ mente fixada até o advento de sua
do os juros nascem após o transcurso regulamentação com a lei de Duílio e
de determinado período, diz-se que os Menênio, em 398; o catolicismo sempre
juros são pós-periódicos ou juros cor­ profligou o empréstimo a juros, princi­
ridos, nascidos sempre a cada período, palmente a juros altos, a que os doutores
sem dúvida alguma a forma mais ordi­ da Igreja denominavam usura vorax,
nária de nascimento dos juros; nomina- culminando a proibição de sua cobrança
se, por outro lado, de pré-periódicos os por decisões conciliares, principalmente
juros que nascem adiantadamente. Neste por resolução dos Concílios de Nicéia
caso, se o capital ficar em poder do e de Latrão, embora a realidade dos
tomador por prazo inferior ao previsto mortais tenha levado Pio IX, em 1860,
para os juros antecipados, nasce ao que a emitir empréstimo em escudos roma­
pagou os juros por antecipação a ação nos.6 O Corão tomou os juros interditos
de repetição. no Oriente muçulmano. Seu capítulo
XXX, v. 38, diz que “o dinheiro que
17. São considerados simples os juros dais a juros para o aumentardes com o
que não produzem juros e, compostos, bem dos outros, não aumentará perante
os que fluem dos juros. Nos juros Deus”, ameaçando, no capítulo II, v.
compostos contam-se novos juros dos 276, com o fogo eterno aqueles que se
juros já contados, pela taxa pactuada voltassem para a usura.7
(vide, por exemplo, o art. 1.544 do CC
e o art. 4.° do Dec. 22.626/1933), de tal 19. O exame da situação no Império
sorte que ao final de determinado lapso Romano e no direito canónico nos dá
de tempo os juros acumulados ultrapas­ bem conta de como a matéria era dis­
sam o valor que se obteria caso os juros ciplinada, como se colhe do magistério
fossem simples. Este fenômeno ocorre de Enneccerus,8 verbis:
quando há capitalização dos juros, per­ “El tipo máximo de interés del derecho
mitida em algumas hipóteses, como será romano clasico era 12 por 100
examinado adiante, quando do exame (centesimae usurae, a saber 1 por 100
do anatocismo.
(6) M. 1. Carvalho de Mendonça, Doutrina e
Prática das Obrigações, t. II, p. 71/73,
3. Liberdade e limitação da taxa aumentada c atualizada por Aguiar Dias,
Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1956.
3.1 Um problema histórico (7) Jayme de Altavila, Origem dos Direitos dos
Povos, p. 105, 2.“ cd., Ed. Melhoramentos.
(«) Enneccerus, Ludwig, Derecho de Obligacio-
18. Ao longo da história, a taxa dos nes, t. II, p. 58, undécima rcvisión por
juros, mesmo a sua simples cobrança, Heinrich Lehmann, tradução de Blas Pérez
tem sido o centro de acesa polêmica: os González e José Alguer, e. Bosch, Barce­
fenícios não toleravam que fossem lona, 1954.
80 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL 101

promense) pero fué reducido por Montesquieu, citado por M. I. Carvalho


Justiniano al 6 por 100. Los comercian­ de Mendonça,9 com a sua natural cla­
tes sólon podian tomar el 8 por 100, las rividência proclamou:
personas de jerarquia elevada (viri “É sem dúvida, uma ação muito boa
illustres) sólo el en 4 por 100. El emprestar a outrem seu dinheiro sem
derecho canónico prohibió totalmente juro; sente-se, porém, que isso possa ser
los intereses por considerarlo inmoral, um conselho de religião, não da lei civil
pelo admitió la compraventa de rentas (...). O dinheiro é o signo dos valores.
en la cual el deudor podria reservarse Claro é que quem tem necessidade desse
también el retracto restituyendo el signo deve alugá-lo, como faz com tudo
precio. Economicamente esto equivalia que tem necessidade. A diferença única
a un negocio a interés que, por cierto, é que as outras coisas se podem alugar
el acreedor no podia denunciar". ou comprar, enquanto que o dinheiro,
que é o preço das coisas, se aluga e não
20. A oposição à cobrança de juros, se compra”.
ou a sua cobrança a taxas grandeadas,
foi uma constante na história e a lite­ 23. De toda forma, o triunfo do
ratura se encarregou de caricaturizar a liberalismo económico e da consequente
figura do onzenário, aplicando-se quase liberdade contratual só receberá as bên­
sempre o rótulo de avaro, sobre lhe çãos devidas na pia batismal da Revo­
atribuir comportamento ridículo, quando lução Francesa, que, no particular ver­
não desprezível. A influência do cato­ sado, declarou livre a fixação dos juros
licismo foi marcante durante toda a em assembleia de 12.10.1789.10 Já os
Idade Média e continuou ainda muito socialistas, mesmo os modernos, profli-
forte ao depois. gam os juros, a exemplo de Proudhon,
que chegou a formular a teoria do
3.1.1 Liberdade de fixação dos juros empréstimo gratuito, sofrendo em con­
trapartida veemente e brilhante confuta­
21. Tenha-se presente que as bases do ção de Bastiat.
liberalismo moderno começaram a ser
fincadas no Século XVII, principalmen­ 24. No Brasil, as coisas não passaram
te com a consolidação dos seus princí­ de forma diferente. Por muito tempo,
pios, na Inglaterra, por John Locke, seguimos a tradição católica de anate­
rompendo-se a arraigada tradição matizar os juros, ou, quando nada, o
aristotélica; tenha-se ainda que a Eco­ nível de sua taxa. Ultrapassada essa
nomia Política somente surgiu no Sécu­ política histórica, passou a nossa legis­
lo XVIII, quando David Hume já tinha lação a adotar uma postura liberai, de
escrito seus ensaios económicos (1685). liberalismo económico, deixando a taxa
O credo reformista estabeleceu posição a critério das partes, inclusive permitin­
contrária ao do catolicismo e Calvino, do o Código Civil que as partes esti­
por primeiro, tomou posição contrária à pulassem o pagamento de suas obriga­
proibição dos juros, com os estados ções em moeda estrangeira, nos termos
protestantes na vanguarda de sua acei­ dq § l.°, do art. 947, em que se diz que
tação. Afinal, o credo protestante não “É, porém licito às partes estipular que
condenava nem o lucro nem a riqueza,
pelo contrário. (9) Obra citada, p. 74/75.
(,0) Antônio Chaves, Tratado de Direito Civil,
22. Vanguardeiro contra a erronia Obrigações 2, tomo I, p. 198, 3.“ cd., Ed.
feudal-católica de abjurar os juros, RT, S. Paulo, 1984.
DOUTRINA 81

se efetue (o pagamento) em certa e eram livres para fixar a taxa abaixo ou


determinada espécie de moeda, nacio­ acima da taxa legal, nos termos do art.
nal, ou estrangeira", posto que facultas­ 1.262. Mais tarde, cedendo a uma ten­
se, no § 2.° do mesmo artigo, a opção dência de intervenção do Estado na
de pagar em moeda estrangeira, ou pelo economia, entre nós acentuada a partir
seu equivalente em moeda nacional, da chamada Revolução de Trinta, leis
tudo na linha já traçada pelo Código emergenciais e restritivas da liberdade
Comercial de 1850, principalmente no contratual vieram a estabelecer uma
n. 4 do seu art. 431, antecedido, no severa política de juros e restrições
particular, pela Lei 401, de 11.9.1846, quanto ao pagamento em moeda estran­
que estabelecera, em seu art. 3.°, o geira, como será visto.
princípio da livre conversibilidade da
moeda11 (vide Pontes, obra citada, p. 3.1.2 O retomo das restrições — o
153). Antecede esta lei o Alvará de 5 advento da Lei de Usura
de maio de 1810, expedido pelo Prín­
cipe Regente, liberando o valor do
26. O Governo Provisório entronizado
prémio cobrado pelo empréstimo de
pela Revolução de 30, sob a invocação
dinheiro ou outros fundos a risco para
de que a remuneração exagerada do
o comércio marítimo, sem restrição de
capital, impeditiva do desenvolvimento
quantia, ou de tempo.12 Cumpre salien­
das classes produtoras, contrariava os
tar, ainda, que a Lei 5.108, de 1926,
fixava o valor real do mil réis, moeda
interesses superiores do país, e tendo em
então corrente, em 180 miligramas de vista que todas as legislações modernas
ouro fino, o que lastreava nossa moeda adotavam normas severas para regular,
impedir e reprimir os excessos pratica­
ao padrão ouro e fixava o valor do
câmbio. dos pela usura, editou o Dec. 22.626,
em 7.4.1933, dispondo sobre os juros
25. O nosso código Civil, na esteira nos contratos e dando outras providên­
da legislação mais modernas, não cui­ cias, convindo salientar que os decretos
dou do regramento dos juros convencio­ expedidos pelo Governo Provisório ti­
nais, limitando-se a disciplinar os juros nham força de lei.
legais e os juros moratórios, adotando
uma posição não-intervencionista, afina­ 27. A norma basilar sobre os juros
da com a ideologia central do código, estava contida no art. l.° daquele decre­
que imbicava na direção da mais ampla to, ao ditar: E vedado, e será punido nos
autonomia contratual, deixando que as termos desta Lei, estipular em quais­
partes dispusessem sobre o conteúdo e quer contratos taxas de juros superiores
a economia dos contratos. Quanto ao ao dobro da taxa legal, mesmo que a
mútuo feneratício (de foenus, palavra pretexto de comissão — complementava
que designava juros, em Roma), i.e., o seu artigo segundo, sobre impor a
mútuo de dinheiro a juros, as partes nulidade do contrato celebrado com
infração dessa lei, nulidade que a dou­
trina e a jurisprudência entenderam,
(,,) Carvalho Santos, J.M. Código Civil Brasi­ mais tarde, atingir somente a cláusula
leiro Interpretado, v. XII, p. 187 ss., 8.a ed., infringente.
Freitas Bastos, 1963.
(l2) Hcmani Estrella, Da Teoria dos Juros no 28. Como a taxa legal de juros,
Código Comercial, trabalho publicado na
Revista da Faculdade de Direito da USP, prevista no art. 1.062 do Código Civil,
v. XLV, p. 410/12, 1950. era de seis por cento ao ano, a sua dobra
82 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

(doze por cento ao ano), se constituía meio de títulos de crédito rural (Dec.-
na taxa máxima referida pelo Dec. lei 167/67), os juros poderão ser capi­
22.626/33. talizados, na forma prevista no art. 5o
do referido decreto-lei.
29. O decreto rompia a plena liber­
dade de fixação de juros, observada pelo 33. Fato é que a capitalização de juros
Código Civil e, já bem antes, pelo é, de regra, proibida, punida na forma da
Código Comercial, inaugurando um legislação vigente, salvo as expressas
longo período de intervenção estatal na exceções legais, ou se o Conselho Mo­
fixação das taxas de juros e abrindo um netário Nacional deliberar diversamente
longo debate em tomo da aplicação de ao disciplinar determinadas linhas ou
suas regras às operações das instituições operações creditícias, no exercício da
financeiras, tudo se complicando pela competência que lhe outorgou a Lei
paulatina instalação, mais tarde, de uma 4.595/64.
crónica e ascendente inflação.
34. No rastro do Dec. 22.626, veio a
3.1.3 O anatocismo Lei 1.521, cie 26.12.1951, elencando
crimes e contravenções contra a econo­
30. Além disso, ficava proibido, tam­ mia popular, dentre os quais o crime de
bém, o anatocismo, acima já referido, e usura pecuniária ou real, configurado
que se consubstancia na cobrança de quando se cobrar juros, comissões ou
juros dos juros, ressalvando o decreto a descontos percentuais, sobre dividas em
possibilidade da acumulação de juros dinheiro, superiores à taxa permitida por
vencidos aos saldos líquidos em conta lei, prevendo, como punição, pena de
corrente de ano a ano, como previsto no detenção de seis meses a dois anos, além
art. 253 do Código Comercial. Por si­ de multa (art. 4.°, a).
metria ou extensão da norma, passou-
se a admitir a capitalização ânua. Por 3.1.4 A proibição da “cláusula ouro”
outro lado, nunca foi proibido, uma vez
recebidos juros por períodos menores de 35. Buscando a proteção da moeda
um ano, se contassem juros do seu nacional e tomar efetivo o seu curso
reempréstimo. forçado, o Dec. 23.501, de 27.1 1.1933,
declarou nula qualquer estipulação de
31. A proibição do anatocismo perma­ pagamento em ouro ou moeda estrangei­
nece em vigor até hoje, embora não se ra. Essa disposição rompia com a tradi­
negue ao Conselho Monetário Nacional, ção do nosso direito, firmada tanto no
órgão governamental criado bem depois Código Comercial (art. 431, § 4) quanto
da edição do decreto sob comento, com­ no Código Civil (art. 947, § l.°). Essa
petência para dispor sobre a matéria, iniciativa do Governo Provisório seguia
dentro de sua ampla competência para uma tendência mundial, principalmente
disciplinar o crédito bancário em todas após a conhecida crise de 1929 de con­
as suas modalidades, as operações sequências tão graves para o mundo. A
creditícias em todas as suas formas e exposição de motivos do decreto invo­
limitar as taxas de juros, como oportu­ cava a posição de outros países, anteri­
namente, neste trabalho, será analisado. ores e no mesmo sentido da tomada por
aquele diploma legal.
32. Nos financiamentos rurais conce­
didos pelas instituições integrantes do 36. Daí em diante, a política mone­
sistemas nacional de crédito rural, por tária em relação à proibição da estipu-
DOUTRINA 83

lação de pagamento em moeda estran­ termos macroeconômícos, total controle


geira ou em ouro de obrigações contra­ das fontes inflacionárias (orçamento
tadas no país seguiu um curso coerente, público equilibrado, nível adequado de
somente retocado pela discussão sobre meio circulante, economia com adequa­
a possibilidade de utilização de moeda do nível de abertura, controle de deman­
estrangeira como moeda de conta — da etc.), ainda assim haverá sempre uma
não de pagamento — em obrigações inflação residual, decorrente de “n”
internas. Essa discussão se prolongou no fatores não controláveis por políticas
tempo, vindo a predominar a corrente económicas, como problemas climáticos
doutrinária contrária à utilização da (excesso de chuvas, secas prolongadas,
moeda estrangeira, mesmo como moeda chuva de granizo), esgotamento de fon­
de conta, tendo-se a jurisprudência tes de matérias-primas, guerras etc. Nos
majoritária, inclusive a do STF, também países onde não se transige com a
se inclinado nesse sentido. inflação, o seu percentual de incremento
é pequeno com as taxas variando entre
37. Por último, em 11.9.1969, foi um e três por cento ao ano.
editado o Dec.-lei 857, reafirmando a
proibição, reafirmando também a possi­ 40. Infelizmente o Brasil, principal­
bilidade da fixação do pagamento em mente a partir da segunda metade da
moeda estrangeira nas operações de década de cinquenta, não foi nenhum
comércio exterior e nos contratos de exemplo de país que perseverasse no
financiamento ou de prestação de garan­ controle de sua inflação, cujo nível
tias às nossas operações de exportação, esteve sempre acima de um dígito por
e abrindo exceção para outros contratos ano, para não falar da leniência com que
em que pelo menos uma das partes, se tratou este aspecto enfermiço da
devedor ou credor, fosse um não-resi­ economia, a partir dos anos sessenta,
dente, fora parte os contratos relativos à principalmente a partir dos anos oitenta,
locação de imóveis situados no território até recentemente.
nacional. Permitia também a exceção em
relação aos chamados contratados deri­ 41. Não é difícil se vislumbrar o
vados, ou seja, aqueles cujo objeto fosse problema que era a efetiva aplicação das
a cessão, transferência, delegação, severas normas do Dec. 22.626/33 e do
assunção ou modificação das obrigações art. 4.° da Lei 1.521/51 num ambiente
contratadas em moeda estrangeira. em que o combate às fontes inflacioná­
rias não era uma política de prioridade
38. O Dec.-lei 857/69 foi confirmado
em suas linhas gerais por vários diplo­ absoluta. Os particulares procuravam
por todos os meios contornar a taxa
mas legais, principalmente pelas medi­
das provisórias, após a Constituição de máxima de juros permitida (12% ao
1988, utilizadas como medidas emergen- ano) através de diversos estratagemas
contratuais em evidente frau legis.
ciais de eclosão dos chamados planos de
estabilização da economia nacional,
42. Mesmo no campo do crédito
inclusive pelos diplomas que dão susten­
tributário o problema era angustiante
tação jurídica ao plano de estabilização
da economia em curso (Plano Real). para o erário. As taxas vigentes dos
juros moratórios eram um permanente
3.1.5 O fenômeno inflacionário convite à mora tributária. Os juros
acrescidos sobre os valores em mora,
39. A inflação é um mal que nunca mesmo agregando-se as multas, eram
se extirpa de todo. Mesmo havendo, em folgadamente superados, ao longo do
84 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

tempo, pela taxa de inflação. Os proble­ social e económico. O aspecto econó­


mas de crédito fiscal foram superados mico da crise mostrava seu lado mais
pelo advento da correção monetária, doloroso no plano inflacionário. Inaugu-
como adiante se verá. rava-se, por assim dizer, o processo de
inflação acelerada e crescente de nossa
4. A limitação da taxa e as instituições economia. Todas essas contradições de­
financeiras saguaram numa intervenção militar cujo
plano era sanear a economia e as ins­
tituições para adaptá-las a nova realida­
4.1 A Lei de Usura e as instituições de nacional e internacional.
financeiras — o advento da Lei 4.595/
64
46. Dentro desse escopo, foi reestru-
turado o sistema financeiro nacional,
43. Relativamente às operações ban­ criando-se o Conselho Monetário Na­
cárias, a disputa era intensa, tanto na cional, cujo órgão embrionário foi a
doutrina quanto na jurisprudência, quan­ extinta Superintendência de Moeda e do
to à aplicação das limitações do Dec. Crédito (Sumoc), criando-se, também, o
22.626 e, via de consequência, do art. Banco Central do Brasil. O instrumento
4.° da Lei 1.521. Esse estado de incer­ jurídico dessa reestruturação foi a Lei
teza levava os bancos a lançar mão de 4.595, de 31.12.1964, ano em que ocor­
estratagemas os mais diferentes, como reu o movimento militar vitorioso.
casamento de operações, cobrança de
prémio, comissões etc. O problema 47. No bojo dessa lei, no seu art. 4.°,
existia tanto nas operações bancárias atribuiu-se ao Conselho Monetário
passivas (captação de poupança) quanto Nacional (CMN), dentre outras compe­
nas ativas, embora neste segundo caso tências e encargos, disciplinar o crédito
o problema fosse mais crucial para as em todas as suas modalidades e as
instituições financeiras. operações creditícias em todas as suas
formas (inc. VI), e limitar, sempre que
44. Em outra ponta, a poupança necessário, as taxas de juros, descontos,
pública não era estimulada porque nin­ comissões e qualquer outra forma de
guém queria receber juros amplamente remuneração de operações e serviços
superados pela taxa de inflação. Não bancários ou financeiros (inc. IX).
havia um sistema atrativo de poupança
bancária, não se identificando vantagens 48. A partir da edição dessa lei e com
palpáveis em se aplicar em títulos ban­ fundamento nos dois incisos citados,
cários. Tudo isso fazia com que a taxa principalmente no inc. IX (art. 4.°),
de poupança do país se comportasse em começou-se a sustentar a inaplicabilidade
termos inversamente proporcionais ao da Lei da Usura (Dec. 22.626/33) ao
nível da inflação medida. sistema financeiro, e, por conseguinte,
a figura do crime de usura pecuniária
45. É sabido que no primeiro lustro ou real (Lei 1.521), entendendo-se que
dos seus sessenta o Brasil, em função as taxas de juros das operações bancá­
dos conflitos naturais a um recente rias só poderiam ser limitadas pelo
processo de modernização da economia CMN. Havia, inclusive, o entendimento,
e, ainda, em razão do conflito ideoló­ por sinal lógico, de que as taxas estavam
gico que engolfava o mundo, ingressou plenamente liberadas, podendo o CMN
em intensa crise de caráter político, intervir para limitá-las conforme o di-
DOUTRINA 85

tado legal (limitar sempre que necessá­ ção. Contrariamente, quando ela se
rio...}. valoriza em face também do conjunto
de bens e serviços ofertados pela eco­
49. O tema foi agitado na doutrina e nomia, identificamos a ponta inversa do
na jurisprudência. As decisões entre os fenômeno inflacionário, denominado pela
tribunais estaduais conflitavam-se, rei­ ciência económica de deflação. Se a
vindicando a pacificação necessária para deflação, como ocorre neste segundo
a segurança do sistema, até que o semestre de 1995 no Japão, é um fenô­
Supremo Tribunal Federal aplainou a meno raro para a Economia, a inflação
matéria através da Súmula 596, com a tem-se mostrado uma constante ao lon­
seguinte ementa: go da História. Há períodos de completa
"As disposições do Dec. 22.626/33 desestabilização de um determinado país,
não se aplicam às taxas de juros e aos ou de uma determinada região, em que
outros encargos cobrados nas opera­ a inflação assume proporções alarman­
ções realizadas por instituições públicas tes, caindo na anarquia económico-fi­
ou privadas, que integram o sistema nanceira chamada de hiperinflação, como
financeiro nacional". ocorreu em diversos países da Europa,
no entreguerras (Alemanha, Polónia,
50. Outra discussão com vista a rom­ Hungria), ou, em anos recentes, na
per a camisa de força imposta pelo Dec. Argentina, chegando o Brasil, recente­
22.626 — adequado, talvez, ao ano em mente, ao seu limiar. De ordinário, a
que editado, mas descompassado da inflação tem-se, repita-se, mostrado um
nova realidade nacional, principalmente fenômeno persistente, já crónico mes­
face à nossa inflação crónica e elevada mo, porém num nível plenamente acei­
—, travou-se em tomo da correção tável pelas economias realmente está­
monetária. veis.
52. Convivendo com uma inflação
4.1.1 A correção monetária crónica, manifestada ao longo de déca­
das, principalmente a partir da segunda
51. A correção monetária busca cor­ metade dos anos cinqiienta, com perío­
rigir o desgaste que a inflação causa no dos de grande aceleração (primeira
poder de compra da moeda. A moeda metade da década de sessenta e a partir
de valor estabilizado pode eventualmen­ dos anos oitenta), embicando, mesmo,
te perder o seu valor de compra em em direção à hiperinflação (da segunda
relação a determinados produtos ou metade dos anos oitenta até o primeiro
serviços em razão de fatores vários, semestre do ano passado), o Brasil criou
como a sazonalidade, o esgotamento de um mecanismo de convivência da eco­
certa matéria-prima, ou declínio na oferta nomia com uma inflação alta e constan­
de um determinado tipo de serviço; mas, te a que se denominou de correção
em contrapartida, pode, por razões in­ monetária. Se por um lado a correção
versas, valorizar-se frente a outros pro­ monetária possibilitava a convivência de
dutos ou serviços, realizando o jogo um certo crescimento económico com
normal e previsível de uma lei econó­ inflação alta, contrariando previsões
mica muito conhecida e denominada lei económicas tidas por sedimentadas, por
da oferta e da pocura. Todavia, quando outro lado, provocava uma certa leniência
a moeda se desvaloriza face aos bens para com tão enfermiço fenômeno que,
e serviços em geral, temos, aqui, o pelo seu lado mais perverso, atua como
fenômeno económico chamado de infla- elemento alimentador e perenizador do
86 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

fenômeno, inercializando-o e provocan­ chumbavam ao princípio do nominalismo


do mudanças em seu patamar, sempre monetário.
para cima, processo, esse, de mudança,
cuja tendência era sempre no sentido de 56. Todavia, é no bojo do movimento
encurtar os períodos de mutação. militar vitorioso de 1964, quando a
inflação ganhava dimensões incompatí­
53. O antecedente mais remoto da veis com os nossos padrões históricos
correção monetária data de 1575, Ingla­ anteriores, que a correção monetária foi
terra, com a edição do Act for Mainte- introduzida com técnica e refinamento,
nance of the Colleges in the Universities, primeiramente com vistas à atualização
and of Winchester and Eaton, lei pela dos créditos fiscais e previdenciários,
qual se previa que o pagamento do para que os deveres não continuassem
arrendamento das terras destinadas às a retardar propositalmente o pagamento
referidas escolas seria uma quantia atua­ dos tributos e das contribuições com a
lizada pela cotação do melhor trigo e deliberada intenção de ver seus valores
malte no mercado de Cambridge.13 Sem liquidificados pela via da desvalorização
embargo disso, as modernas discussões da moeda. Com esse escopo, foi editada
jurídicas em tomo do tema foram sus­ a Lei 4.357/64, criando-se as obrigações
citadas por ocasião da inflação alemã de reajustáveis do tesouro nacional (ORTN),
1918-1922, quando a legislação passou cujo valor nominal era periodicamente
a permitir que os preços do centeio, do reajustado.
trigo e do carvão fossem usados como
referencial para os critérios hipotecá­ 57. Essa lei inaugurou uma sucessão
rios.14 de diplomas legais na mesma direção,
dispondo sobre débitos de outras natu­
rezas, fazendo com que, ao longo do
54. No Brasil, já vimos que o Código tempo e face à persistência da inflação,
Civil, quando editado, permitia a esti­ a correção passasse a permear todas as
pulação de pagamento em certa e de­ atividades económicas mediante a intro­
terminada espécie de moeda (art. 947, dução de índices corretivos os mais
§ l.°), liberalidade antiga em nosso diversos, calculados por diversificada
direito e que só veio a ser coarctada em gama de instituições, públicas e priva­
1933, pelo Dec. 23.501. das. Não que a correção monetária fosse
completamente estranha à nossa vida
55. Se a proibição veio a encerrar o económico-jurídica. Os reajustes do valor
ciclo da cláusula ouro em relação às da prestação alimentar, a revisão do
obrigações monetárias, permaneceu a salário mínimo, a revisão trienal do
possibilidade de atualização das chama­ valor dos aluguéis sujeitos à lei de luvas
das dividas de valor, a exemplo do que etc., não passam de correção monetária
se fazia com a obrigação de prestar das obrigações pecuniárias. Aliás, em
alimentos. A cidadela que permaneceu todo o mundo, nos contratos de longa
indene à introdução de qualquer concei­ duração, mesmo em países de economia
to de atualização ou correção de valor mais estabilizada, o valor das prestações
foi a das obrigações monetárias, que se está sujeito a periódicas repactuações,
ou está previsto outro mecanismo qual­
quer de reajuste das obrigações. Assim,
(,3) Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 20, p.
480, verbete Correção Monetária, de auto­ quando falamos de introdução da cor­
ridade Otto Gil. reção monetária em nossa economia,
<u> idem, ibidem. referimo-nos à forma refinada a que
DOUTRINA 87

chegamos, com índices já preestabele­ cio jurídico, da expressão monetária de


cidos, aplicáveis a prazos médios, curtos obrigação pecuniária somente poderá
ou curtíssimos, a depender do momento ter por base a variação nominal da
económico, quando os contratos não são Obrigação Reajustável do Tesouro
vinculados a elementos monetários que Nacional-ORTN.
se constituem em quase moeda, de valor A expressão “em virtude de disposi­
variável no curto prazo, como as extin­ ção legal ou estipulação de negócio
tas ORTN, OTN, BTN etc. jurídico" atuou como um referendo legal
de que a correção monetária tanto po­
58. No início do processo, a aplicação deria decorrer da lei quanto do negócio
da correção monetária só corria nos jurídico, pondo cobro a uma situação
casos estritamente previstos na lei, hi­ anómala existente entre as dívidas de
póteses que se iam multiplicando com valor e as dívidas monetárias.
a paulatina edição de leis nessa direção.
Os bancos não tardaram, seja por pre­ 61. A partir da aceitação da correção
visão legal, seja por força de resoluções monetária nos pactos entre particulares,
do Conselho Monetário Nacional, a a indexação passou a permear toda a
introduzir a correção em suas operações economia, contaminando todo o sistema
ativas e passivas. Aos negócios jurídicos
económico, consolidando a chamada
dos particulares — particulares aqui
inflação inercial.
entendidos como não instituições finan­
ceiras —, negava-se a possibilidade de
introdução da correção monetária, prin­ 62. Como a inflação mudasse cons­
cipalmente no caso de mútuos entre tantemente de patamar, fosse pelo des­
pessoas físicas ou jurídicas não finan­ controle das finanças públicas, ou pelas
ceiras. expectativas exacerbadas dos agentes
económicos, a economia nacional entrou
59. Aos poucos, por persuasiva argu­ numa rota perigosa rumo à hiperinfla-
mentação doutrinária e face à persistên­ ção. Esse estado patológico da econo­
cia do fenômeno inflacionário, os tribu­ mia, exacerbado, a partir de 1985, por
nais começaram, aqui e ali, a decidir no gastos públicos provocadores de déficit
sentido de acatar a correção das obri­ público sempre ascendente, abriu o
gações nascidas por atos jurídicos entre caminho para a eclosão de planos go­
particulares. Entretanto, a resistência dos vernamentais de estabilização da econo­
órgãos de cúpula do sistema judiciário, mia, trazendo sempre em seu bojo o
principalmente do STF, em admitir a controle e, pior, o congelamento de
disseminação da correção, sem a exis­ preços, mas sem ataque efetivo às cau­
tência de previsão legal para tanto, sas da inflação. Esses planos fracassa­
deixava as partes inseguras quanto a sua ram, um por um, pois a inflação, arti­
utilização, até que a Lei 6.423, de ficialmente contida, no início de cada
17.7.77, introduziu um dado novo no um deles, por meio de congelamentos
debate. e controles de preços, voltava, ao cabo
de poucos meses, com redobrada força,
60. A lei, segundo sua ementa, esta­ sempre estimulada por remarcações
belecia base para correção monetária. O preventivas de preços por parte das
seu art. l.° dispunha: empresas em geral, na tentativa de al­
A correção monetária, em virtude de gum conforto quando novo congelamen­
disposição legal ou estipulação de negó- to fosse decretado.
88 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

63. Nesse ambiente económico con­ taxa artificialmente baixa de juros con­
turbado, as autoridades governamentais duzir o país definitivamente para a
atuavam na ponta monetária da econo­ hiperinflação e frustrar qualquer tenta­
mia, forçando mediante restrições de tiva séria de estabilização da economia
crédito e fortalecimento da cunha fiscal em razão da impossibilidade de se pra­
a prática de juros altos, aumentando os ticar uma política monetária forte com
custos económicos internos, que se uma taxa de juros artificialmente baixa.
compensavam por forte proteção no
plano do comércio internacional, opon­ 67. Em razão disso, logo promulgada
do barreiras tarifárias ao ingresso de a Constituição de 1988, travou-se em
bens e serviços. todo País um ferrenho debate sobre a
possibilidade de aplicação imediata da
64. Cansada de tentativas de estabi­ norma constitucional limitativa da taxa
lização económica tão desastrosas, a de juros para o sistema financeiro, tema
sociedade como um todo passou a exigir que se passará a analisar, não sem antes
do Governo em geral um ataque às abordarmos uma modalidade de reajuste
causas reais da inflação, o que se vem das obrigações contraídas junto a ban­
fazendo ao longo do últimos anos, cos, um misto de correção mais juros
embora de forma lenta, em face das moratórios, denominada de comissão de
resistências corporativas de toda ordem permanência.
e à leniência do nosso legislativo. Pa­
rece que o país, finalmente, descobriu 4.1.2 A comissão de permanência
que o controle da inflação se dá por
ataque doloroso às suas causas básicas, 68. A comissão de permanência foi
e, não, por truques e “efeitos especiais”. criada através da Resolução n. 15, de
28.1.66, do Banco Central do Brasil, por
65. As considerações económicas decisão do Conselho Monetário Nacio­
foram feitas para mostrar que o descon­ nal, autorizado que estava, como já
trole da economia e seu efeito mais vimos, pelos incs. VI e IX, do art. 4.°,
perverso — a inflação — empurraram da Lei 4.595/64. Esse normativo, várias
o País para a cobrança de taxas de juros vezes alterado, sempre por decisão do
sem precedentes, fato que abriu, há mais CMN, instituiu a comissão de perma­
de dez anos, um grande debate nacional nência para remunerar as obrigações
sobre qual o nível adequado de taxas de vencidas e não pagas das instituições
juros do sistema financeiro. Esse debate financeiras. Correspondiam, assim, aos
levou os constituintes de 1988 a intro­ juros que os devedores em mora deve­
duzirem na Constituição da República o riam pagar aos bancos enquanto os
estabelecimento de nível de taxa máxi­ títulos de sua responsabilidade perma­
ma permitido para o sistema financeiro, necessem impagos na carteira.
sob a equivocada visão de que o pro­
blema dos preços — e os juros são um 69. A sua legalidade foi submetida
dos preços da economia —, pode ser vezes sem conta à apreciação dos tri­
contornado pelo controle administrativo bunais, resultando, ao final, proclamada
ou tabelamento. a sua legalidade, uma vez reconhecida
a competência do Conselho Monetário
66. Economistas das mais diversas Nacional, nos termos dos incisos acima
tendências foram acordes em condenar citados, para disciplinar o crédito em
o tabelamento constitucional dos juros todas as suas modalidades e estabelecer
e todos apontavam para o perigo de uma limites às taxas de juros.
DOUTRINA 89

70. Durante muitos anos, o Banco cia, muitas vezes vinculando o seu
Central divulgava, periodicamente, o percentual a, por exemplo, taxa média
percentual da comissão de permanência para operações da espécie praticadas por
a ser cobrado pelos bancos, mantendo, bancos tais e tais, ou pela maior taxa
pela taxa publicamente conhecida, a praticada pelo mesmo banco no período,
liquidez e certeza da obrigação a ela ou coisas desse jaez. A nosso ver, nesses
sujeita. casos, para a cobrança da comissão de
permanência em juízo haveria necessi­
71. Por longo tempo, muitos bancos, dade de perícia para apurar a taxa —
confundindo, deliberadamente ou não, a isso quando possível! —, fato que retira
comissão de permanência com uma a liquidez e certeza da obrigação,
simples taxa de juros, costumavam in­ inviabilizando a via executiva.
troduzir cláusulas e seus financiamentos
prevendo a cumulação da correção 4.1.3 Limitação constitucional à taxa de
monetária contratada com a comissão de juros das instituições financeiras
permanência, caso o mutuário ou
comitente incorresse em mora. Como, 74 — A Constituição elaborada em
na verdade, a taxa da comissão de 1988 pela Assembleia Nacional Cons­
permanência já trazia embutida a taxa tituinte dedicou, pela primeira vez em
da inflação, essa enormidade cometida nossa histórica constitucional, um capí­
pelos bancos exasperava as obrigações tulo ao Sistema Financeiro Nacional.
de devedor, elevando a dívida a um Esse capítulo, o IV, está contido no
patamar muitas vezes insuportável. título VII, que trata da ordem económica
e financeira, e se constitui de um só
72. Embora tenha havido vacilações artigo, o de n. 192, composto de oito
jurisprudenciais no início, até mesmo incisos e três parágrafos. Diz o caput do
porque o Judiciário tardou a entender, artigo, verbis:
em extensão e profundidade, a real “Art. 192. O sistema financeiro na­
dimensão da correção monetária, as cional, estruturado de forma a promo­
cortes finalizaram por rejeitar a ver o desenvolvimento equilibrado do
cumulação da correção com a comissão Pais e a servir aos interesses da cole­
de permanência, quando caracterizado tividade, será regulado em lei comple­
que, nesta, aquela já estivesse embutida. mentar, que disporá, inclusive, sobre:”
Tendo o Supremo Tribunal Federal Em seguida, enumera nos oitos incisos
tardado em sumular a matéria, quando um elenco de matérias sobre que disporá
de sua competência fazê-lo, o fez o a lei complementar do sistema financei­
Superior Tribunal de Justiça, novo ór­ ro nacional. Acontece que um dos pa­
gão de homogeneização da jurisprudên­ rágrafos do art. 192, precisamente o §
cia pátria, através de Súmula n. 30, cuja 3.°, estabeleceu o seguinte, verbis:
ementa, é verbis: “As taxas de juros reais, nelas incluí­
“A comissão de permanência e a das comissões e quaisquer outras remu­
correção monetária são inacumuláveis nerações direta ou indiretamente refe­
ridas à concessão de crédito, não po­
73. De há muito, o Banco Central derão ser superiores a doze por cento
deixou de fixar a comissão de perma­ ao ano: a cobrança acima deste limite
nência. Apesar disso, muitos bancos será conceituada como crime de usura,
continuam introduzindo em seus contra­ punido, em todas as suas modalidades,
tos de mútuo a comissão de permanên- nos termos que a lei determinar.”
90 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

75. Esse parágrafo terceiro desenca­ o consumo, desencadeando uma hiperin-


deou uma grande discussão jurídica em flação e destruindo o sistema de funding
todo o país, fundada nos mais diversos das operações de empréstimo e financia­
argumentos. Campo de teste não faltou mento, com a consequente desorganiza­
para os argumentos em curso, seja pelas ção do sistema de produção, que não
replicantes tentativas de defesa da pode subsistir sem financiamento de
invalidade de cláusulas de juros com curto (capital de giro) e de médio e
valores superiores ao teto constitucional, longo prazo (investimento). Por outro
acionadas por devedores inadimplentes turno, sem a oferta de uma taxa atrativa
em um sem número de execuções pro­ de captação o govemo não poderia
movidas por bancos; seja por ações continuar financiando a dívida pública
propostas pelos mais diversos órgãos de interna, quase toda ela rolada no curto
classe, representando os interesses de prazo. Realmente, a terem razão as
seus associados, devedores de institui­ autoridades monetárias — para não se
ções financeiras. De outro lado, as ins­ falar dos representantes das instituições
tituições financeiras e as autoridades financeiras —, o cenário económico, já
monetárias, atuando em um cenário de então bastante problematizado, entraria,
alta inflação, lutavam com argumentos com a implantação pura e simples do
contrários aos dos devedores. As insti­ teto constitucional, numa senda desco­
tuições financeiras, por uma questão de nhecida, embora visualizável, que pode­
sobrevivência; as autoridades monetá­ ria levar todo o País ao impasse defi­
rias, por uma questão de política eco­ nitivo e completo de sua economia com
nómica e em defesa da sobrevivência do consequências político-institucionais
próprio sistema financeiro. imprevisíveis.

76. Os argumentos dos interessados 77. Por aí já se vê que a grandeza


na imediata aplicação do limite consti­ dos interesses em jogo não apontava
tucional eram de ordem meramente para uma simples desinteligência entre
jurídica, mas, não deixavam de acenar quem queria pagar menos e quem queria
com um cenário róseo de grande desen­ ganhar mais. A opinião das autoridades
volvimento, de baixa de custo da pro­ monetárias, que, representando o grande
dução em geral, de uma melhor saúde devedor do sistema financeiro (a União),
financeira para as classes produtoras, teriam, em tese, interesse imediato em
mercê de uma drástica diminuição dos pagar uma taxa bem menor de juros em
custos financeiros. Os argumentos das cima de um estoque de dívida enorme,
autoridades monetárias e das institui­ parecia indicar qual a realidade que
ções financeiras apontavam para um nasceria da aplicação do teto constitu­
cenário catastrófico, caso a limitação cional às taxas de juros do sistema
constitucional da taxa fosse aplicada de financeiro. De outra parte, a comunida­
imediato, principalmente se levando em de dos economistas, com a sua enorme
conta o cenário da grande inflação rei­ autoridade sobre a matéria, no geral
nante. Segundo esta ótica, a degradação apontava para o cenário desenhado pelas
da taxa de aplicação provocaria uma autoridades monetárias. Mesmo os eco­
baixa muito grande das taxas de capta­ nomistas politicamente engajados con­
ção, afugentando os aplicadores institu­ cordavam com os outros membros de
cionais (fundos de pensão, grandes sua tribo, divergindo em nuances. Pos­
empresas, rentistas) e a poupança popu­ tos, em linhas gerais, os argumentos
lar em geral, que correria em massa para económicos pró e contra a imediata
investimentos em ativos outros ou para aplicação do § 3.°, do art. 192 da
DOUTRINA 91

Constituição, vejamos os argumentos da texto. “Juros reais” os economistas e


comunidade jurídica, principiando por financistas sabem que são aqueles que
examinar os argumentos favoráveis à constituem valores efetivos, e se cons­
auto-aplicabilidade da norma. tituem sobre toda desvalorização da
moeda. Revela ganho efetivo e não
78. O argumento mais imediato é o simples modo de corrigir desvaloriza­
da autonomia do parágrafo em relação ção monetária. As cláusulas contratuais
ao caput do art. 192. O primeiro obs­ que estipulam juros superiores são nulas.
táculo a ser transposto seria a afirmativa A cobrança acima dos limites estabele­
de que o parágrafo se subordina à cabeça cidos, diz o texto, será conceituada
do artigo, argumento rebatido pelo como crime de usura, punido em todas
eminente constitucionalista José Afonso as suas modalidades, nos termos que a
da Silva, ao dizer que todo parágrafo lei dispuser. Neste particular, parece-
tecnicamente situado liga-se ao conteú­ nos que a velha lei de usura (Dec.
do do artigo, mas tem autonomia nor­ 22.626/33) ainda está em vigor".15
mativa, obtemperando que o parágrafo
sob comento não está em posição técnica 79. Visto que o texto transcrito pode
adequada, porque contém autonomia de ser tido como a suma dos argumentos
artigo. Esse jurista sintetiza muito bem jurídicos em prol da aplicação imediata
os argumentos de inúmeros e prestigiados do parágrafo focado, vejamos agora que
juristas que pugnam pela imediata apli­ argumentos podem ser contrapostos a tal
cação da limitação constitucional da taxa entendimento, em busca de fixar o
de juros, merecendo, por isso, ser trans­ conceito de que o dispositivo sobre a
crito, verbis: limitação de juros é de eficácia contida
“Ele (o artigo) disciplina assunto que e deve aguardar estação apropriada
consta dos incs. I e II do artigo, mas (edição de lei complementar) para irra­
suas determinações, por si, são autóno­ diar todos os seus efeitos.
mas, pois uma vez outorgada qualquer
autorização, imediatamente ela fica su­ 80. O § 3.° está dividido em duas
jeita às limitações impostas no citado partes, conectadas por ponto e vírgula.
parágrafo. Se o texto, em causa, fosse A primeira parte dispõe sobre a limita­
um inciso do 'artigo, embora com ção da taxa de juros; a segunda diz que
norniatividade formal autónoma, ficaria a infração à primeira (cobrança de juros
na dependência do que viesse a esta­ pelas instituições financeiras acima do
belecer a lei complementar. Mas, tendo limite de doze por cento ao ano) será
sido organizado num parágrafo, com conceituado como crime de usura, pu­
norniatividade autónoma, sem referir-se nido, em todas as suas modalidades, nos
a qualquer previsão legal ulterior, de­ termos que a lei determinar.
tém eficácia plena e aplicabilidade
imediata. O dispositivo, aliás, tem au­ 81. Já vimos que a edição da Lei
tonomia de artigo, mas a preocupação, 4.595/64 (Lei de Reforma Bancária)
muitas vezes revelada ao longo da ela­ implicou, por força dos incs. VI e IX
boração constitucional, no sentido de do seu art. 4.°, a revogação do Dec.
que a Carta Magna de 1988 não apa­ 22.622/33 (Lei de Usura) em relação ao
recesse com demasiado número de ar­ sistema financeiro, como visto acima,
tigos, levou a Relatoria do texto a
reduzir artigos e parágrafos e uns e (,5) Curso de Direito Constitucional Positivo,
outros, não raro, a incisos. Isso, no caso 8.a ed. revista, p. 703/4, Malheiros Ed.,
em exame, não prejudica a eficácia do 1992.
92 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL 101

consequência já pacificada e objeto da própria tentativa de clarear o tema pro­


Súmula n. 596, do Supremo Tribunal voca, de logo, a indagação do que sejam
1 valores efetivos e desvalorização. Pare-
Federal, acima transcrita. A aplicação e
a eficácia imediata do parágrafo sob ce-nos evidente, com a devida vénia dos
exame importaria na revogação dos dois que pensam em contrário, que a própria
incisos, conclusão lógica que conduz o edição de lei ordinária penal para coibir
intérprete a indagar se o fato da revo­ e apenar a usura decorrente de cobrança
gação dos dois incisos, que dava ao de taxa superior ao limite constitucional,
Conselho Monetário Nacional a compe­ tendo em vista a não repristinação de
tência para disciplinar o crédito bancário Dec. 22.626 em relação às instituições
e fixar limites às taxas de juros, não financeiras, ficará pendente da lei com­
restauraria em relação às instituições plementar que conceituará e definirá o
financeiras a vigência do Dec. 22.626, que sejam juros reais, assunto que será
tampouco seus agentes ou representan­ retomado adiante.
tes incorreriam no crime de usura da Lei
1.521/51. Impõe-se a essa indagação 82. Em parecer de 6.10.88, da lavra
resposta megativa, ante a evidência de do então Consultor-Geral da República,
não ser repristinatório o nosso sistema Dr. Saulo Ramos,16 a questão foi exaus­
jurídico, pois, salvo disposição em con­ tivamente examinada com grande tino
trário, a lei revogada não se restaura exegético. Relata o parecer que a ma­
por ter a lei revogadora perdido a téria tratada no § 3.° sempre se acantonou
vigência (Lei de Introdução, art. 2.°, § no art. 192 como um dos incisos do
3.°). Aqui, já estaríamos obrigados a caput do artigo, o inc. IX, assim tendo
concluir-se que a eficácia do parágrafo sido apresentada e votada em plenário.
terceiro ficaria na dependência de edi­ Por deliberação do relator do texto
ção restaurando o crime de usura em constitucional, em flagrante desrespeito
relação às instituições financeiras, mes­ à vontade assemblear, foi reduzido à
mo porque o crime só se configuraria forma de parágrafo, o que leva o ilustre
quando a taxa ultrapassasse o limite parecerista a sustentar a inconstituciona-
estabelecido para os juros reais. Não se lidade formal da edição como parágrafo
conceberia a configuração do crime de da matéria apresentada e votada como
usura enquanto não fixado o conceito de inciso por não ter a relatoria competên­
juros reais, salvo se caíssemos, datissima cia para tanto. Ora, a conclusão a que
venia, na simplificação do Professor se chega é que se o relator tivesse sido
José Afonso da Silva, que afirma ser fiel à forma como a matéria teria sido
conceito corrente entre economistas e aprovada no plenário constituinte, a
financistas que sabem ser (juros reais) discussão sequer estaria sendo travada.
os que “constituem valores efetivos, e
se constituem sobre toda desvalorização 83. No aludido parecer, o ilustre
da moeda”. Se tomarmos as palavras do Consultor-Geral da República ensina que
acatadíssimo constitucionalista teríamos “o parágrafo de artigo é, tecnicamente,
a definição de juros reais como aqueles o desdobramento do enunciado princi­
que constituem valores efetivos, e se pal, com a finalidade de ordená-lo in­
constituem sobre toda desvalorização. teligentemente ou excepcionar a dispo­
Se, como quer o autor, a conceituação sição principal”, e que “a nossa grafia
de juros reais é bastante palpável para legal adotou o símbolo “§” para designar
a imediata aplicação de limite constitu­
cional, seria também bastante clara para (,6) Ramos, Saulo, parecer publicado no D.O.U.,
fechar o tipo penal. Entretanto, sua edição de 7.10.88, p. 19.675/83.
DOUTRINA 93

parágrafos sucessivos, símbolo de ori­ qualquer expectativa otimista. Em casos


gem arábe que significa continuação do assim, a taxa pré estaria embutindo
anterior e para o posterior”. Neste caso, sempre uma expectativa maior de infla­
o parágrafo terceiro não teria a autono­ ção. Outra indagação que se põe é qual
mia, em relação ao caput do artigo, que o índice a ser aplicado, dentre os inú­
alguns autores lobrigam identificar. meros existentes, para expungir da taxa
nominal, para o obtenimento do juro
84. A maior dificuldade com que se real, a taxa de inflação? Além disso, se
depara para a aplicação imediata do não houver um perfeito regramento
parágrafo sob exame, é uma precisa infraconstitucional da matéria, inúmeros
definição do que sejam juros reais, sem subterfúgios, como a exigência de reci­
o que não se saberá quando o limite de procidade nas operações bancárias, con­
doze por cento está sendo realmente tornarão, com folga, o limite imposto
ultrapassado, ou se a conduta do agente pela Constituição, como ocorria quando
saiu do plano civil para ingressar no os juros eram submetidos a tabelamento.
plano penal.
87. A lição de Saulo Ramos, veicu­
85. Neste ponto, a norma constitucio­ lada no multicitado parecer, a propósito
nal se exibe incompleta, clamando por do tema, é precisa, verbis:
lei complementar integrativa, para que A caracterização de juros reais —
se estabeleça sem vacilações o que tema absolutamente estranho ao direito
sejam juros reais. constitucional — não decorre do texto
maior, que sequer delineia elementos
86. Há um consenso entre os juristas que possam fundamentar aquela noção
que trataram do assunto da exclusão da conceituai. Não há, portanto, um con­
correção monetária para a tipificação ceito constitucional autónomo, que per­
dos juros reais. Mesmo assim o proble­ mita a imediata apreensão do sentido
ma para a fixação do conceito continua material do tema nele veiculado. Aquela
eriçado de dúvidas, pois a correção está noção há de resultar, por isso mesmo,
umbilicalmente ligada ao nível da infla­ de definição a ser veiculada no plano
ção. Por exemplo, na taxa prefixada de normativo infraconstitucional, que tome
juros, de seu valor nominal seria em consideração elementos e subsídios
expungida a inflação passada, ou a fornecidos pela teoria económica, espe­
expectativa da inflação futura? Se a cialmente no que pertine à estrutura
expectativa da inflação futura, em que (esentialia) dos juros e à discriminação
momento a inflação realmente incorrida dos custos, diretos ou indiretos, que
fez com que o juro real rompesse a influenciem a sua estipulação e, ainda,
barreira do limite imposto? Teríamos, a diferenciação que o próprio mercado
por este singelo exemplo, um caso típico impõe aos vários setores e tipos de
em que a taxa seria legítima na origem, operações financeiras.
no momento de sua fixação, e perderia
a sua legalidade em algum momento do 88. Segue a mesma linha do texto
futuro, quando comprovado que a infla­ acima transcrito o constitucionalista
ção real teria ultrapassado a inflação Celso Ribeiro Bastos, que considera
estimada ou esperada. Por exemplo, encerrar a expressão “juros reais” um
após a aplicação do plano real, a taxa grande vazio normativo e semântico,
de inflação surpreendeu agradavelmente impeditivo, independentemente de sua
a todos, descendo a patamares fora de inserção sistemática e do influxo que
94 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

possa receber dos princípios constitucio­ 93. O Supremo Tribunal Federal, corte
nais, a sua incidência direta e imediata.17 de cúpula do sistema judiciário brasilei­
ro, alçado pela própria Constituição de
89. Nem se diga que a matéria a ser 1988 à dignidade de corte eminentemen­
tratada na futura lei complementar do te constitucional, procura julgar com a
sistema financeiro já estaria elencada melhor técnica jurídica possível, até
nos oito incisos do art. 192. É evidente pelo alto saber dos seus ilustres inte­
que as matérias estão relacionadas nos grantes, mas sempre atento, como a
incisos não exaustivamente, pois, como história tem demonstrado, à gravidade
lembra Saulo Ramos, o art. 192 diz que das repercussões político-institucionais
lei complementar “disporá, inclusive, de seus arrestos, quando lhe submetidas
sobre...”. matérias das mais alta relevância polí­
tica, social ou económica. A questão da
90. Todos esses fatores e outros não limitação constitucional da taxa de juros
mencionados, conduziram intérpretes foi uma dessas matérias cuja decisão
como Saulo Ramos a identificar o dis­ poderia, na visão de muitos, principal­
positivo constitucional em discussão mente pelo diagnóstico traçado pelas
como um preceito constitucional de mais altas autoridades económicas go­
integração, a reclamar, em caráter ne­ vernamentais, com o endosso isento de
cessário, a mediação legislativa concre- notáveis economistas, desestabilizar o
tizadora do comando nela positivado, quadro económico vivido pelo País,
não sendo, por isso, o parágrafo terceiro com repercussões insondáveis. Seria
exequível por si mesmo (self inforcing). natural que, ao apreciar a matéria, fos­
sem ponderadas as consequências de sua
91. Como se vê, há argumentos decisão, razão por que, quaisquer que
ponderáveis tanto no sentido da imedia­ fossem os argumentos eminentemente
ta aplicação do parágrafo terceiro, quan­ técnico-jurídicos, o componente políti­
to no sentido da necessidade de inter- co-institucional não fosse desprezado de
mediação de lei subconstitucional elevada ponderação. O fato é que o STF
integradora do seu comando, no dizer de poderia optar por qualquer das soluções
Celso Ribeiro Bastos. alvitradas (possibilidade de execução
imediata, ou não, do parágrafo terceiro),
92. As divergências doutrinárias não edificado, qual fosse a tese escolhida,
tardaram a chegar aos pretórios para em judiciosas razões de decidir.
uma decisão quanto a se poder aplicar,
sem a integração de lei complementar, 94. As normas, como se sabe, com­
o limite constitucional aos juros, tendo- portam, não raras vezes, mais de uma
se registrado decisões divergentes entre interpretação. A teoria da interpretação,
como ser importante, não constitui uma
as mais diversas cortes de justiça do
idéia acabada nem dá todos os meca­
País, até que a matéria, como não
nismos para uma perfeita compreensão
poderia deixar de ser, foi submetida à
da lei, ou seja, como diz Windscheid,
consideração do Supremo Tribunal Fe­
“não é tanto uma ciência que possa
deral. ensinar-se, como uma arte que deve
aprender-se”.
(,7) Bastos, Celso Ribeiro, Comentários à
Constituição do Brasil (escrito em parceria 95. Em dilemas como esse, o Excelso
com Ives Granda da Silva Martins), v. 7,
art. 191, p. 445, Ed. Saraiva. Pretório poderia, como diz o jurisconsulto
DOUTRINA 95

português Manuel A. Domingues de 5. Conclusão


Andrade, escolher, entre as várias solu­
ções possíveis, aquela mesma que edi­ 1) Historicamente, as taxas de juros
taria se tivesse de legislar. foram objeto de regulamentação estatal,
condenando-se a usura por preceitos
religiosos, tanto no Ocidente como no
96. Permitam-nos transcrever o que
Oriente; mas, a lenta construção de uma
dissemos alhures, em trabalho acadêmi­
economia de mercado, o avanço do
co, a propósito de exame do ensaio do comércio internacional e o consequente
jurista Manuel A. Domingues de advento do Capitalismo, além do avanço
Andrade, encartado, a título de prefácio, dos estudos económicos, fizeram com
na obra de Francesco Ferrara “Interpre­ que as taxas de juros passassem a ser
tação e Aplicação das Leis, o seguinte: tratadas tecnicamente como um dos
Kohler diz que as palavras da lei, preços da economia, numa das melhores
postas pelo legislador, podem exprimir demonstrações do prevalecimento do
mais de um pensamento. Um dos pen­ liberalismo económico.
samentos que a lei possa exprimir não
pode ser escolhido arbitrariamente, ao 2) O Brasil passou pelo mesmo pro­
contrário, a eleição do pensamento pre­ cesso histórico e, depois, já na primeira
valecente será feita lançando-se mão das metade do Século XIX, optou por uma
técnicas ministradas pela arte jurídica. política económica liberal em relação
Extrair dos pensamentos possíveis da lei aos juros, culminando tal política com
a plena liberalidade de fixação da taxa
aquele que será timbrado de o mais
permitida pelo Código Civil (1916).
verdadeiro, requer apurada técnica, como
recorrer à conexão das disposições le­ 3) A partir da Década de Trinta, com
gais, preferir a interpretação mais con­ o fito de se ajustar à crise económica
sequente e mais organicamente correta, mundial, de que o crack de 1929, nos
tomando-se, para isso, em consideração EE.UU., foi o melhor exemplo, o go­
o encadeamento das diversas leis do verno brasileiro passou ao controle estrito
país, devendo-se ainda recorrer, se não das taxas de juros (Dec. 22.626/33),
chegado a resultado seguro, às aspira­ criando-se, inclusive, mais tarde, o tipo
ções ou preocupações da lei, aos fins penal do crime de usura (Lei 1.521/51).
que se esforçou por atingir, sobre exa­
minar que intenções, desejos e receios 4) A partir de 1964, com a edição da
agitavam o ambiente social, ao tempo Lei 4.595, a política de juros do sistema
em que a lei foi editada, não se perden­ financeiro foi liberada, embora em ter­
do de vista não só o conteúdo mais mos, porque sujeita ao controle do
razoável, como ainda o mais conforme Conselho Monetário Nacional, órgão
governamental disciplinador da política
às preocupações da lei.
creditícia e de juros do sistema finan­
ceiro nacional.
97. Chamado a decidir e já estando
bastante cristalizado o grande debate 5) Com a edição da Lei 4.595, o
nacional sobre o tema, julgou o Supre­ preceito limitador das taxas de juros do
mo Tribunal Federal pela necessidade Dec. 22.626 ficou valendo, apenas, para
de edição de lei complementar para a os negócios entre pessoas físicas e ju­
aplicação do preceito do § 3o, do art. rídicas não integrantes do sistema finan­
192, do texto constitucional. ceiro nacional.
96 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

6) Depois que o Banco Central dei­ CARVALHO SANTOS, J. M. Código Civil


xou de publicar a taxa, a comissão de Brasileiro Interpretado, v. XII, Freitas
permanência ficou, praticamente, sem Bastos, 1963.
CHAVES, Antônio. Tratado de Direito Civil,
referencial, importando a sua adoção no Obrigações 2, tomo 1, 3.“ ed., Ed. RT, S.
comprometimento da liquidez e certeza, Paulo, 1984.
face à grande dificuldade de se encon­ CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário
trar a taxa como nos referenciais ordi­ Etimológico Nova Fronteira da Língua
nariamente adotados, inviabilizando a Portuguesa, l.a ed., 2.fl impressão, Ed.
via executiva. Nova Fronteira, Rio de Janeiro.
ENNECCERUS, Ludwig. Derecho de Obliga-
ciones, t. II, p. 58, undécima rcvisión por
7) A Constituição de 1988 determina Heinrich Lehmann, tradução de Blas Pérez
a retomada do controle estrito das taxas González e José Algucr, Ed. Bosch, Bar­
de juros (§ 3o do seu art. 192), limitan- celona, 1954.
do-a a 12% ao ano, dependendo a ESTRELLA, Hemani. Da Teoria dos Juros no
eficácia plena dessa norma da edição de Código Comercial, estudo publicado na
lei complementar. Revista da Faculdade de Direito da USP,
v. XLV, S. Paulo, 1950.
GAMBS, John S. Iniciação Simples à Econo­
8) A capitalização dos juros no âmbito mia (título em inglês Man, Money and
do sistema financeiro só é permitida Goods), l.a ed. brasileira, 1959, Ed. Fundo
quando expressamente prevista em lei de Cultura.
(ex.: Dec.-lei 167/67) ou quando permi­ MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito
tida por resolução do Conselho Mone­ Privado, tomo XXIV, 3.° ed., reimpressão,
tário Nacional. Ed. Borsoi, Rio de Janeiro, 1971.
RAMOS, Saulo. Parecer de sua autoria, quando
Consultor-Geral da República, publicado
Bibliografia no Diário Oficial da União, ed. de 7.10.88,
p. 19.675/ss.
ALTAVILA, Jayme de. A Origem dos Direitos RUGGIERO, Roberto de. Instituições de Direito
dos Povos, 2.“ ed., Ed. Melhoramentos. Civil, v. 3, 3.a ed., tradução do Dr. Ary dos
CARVALHO DE MENDONÇA, Manoel Santos da 6.a italiana, Ed. Saraiva, 1973.
Inácio. Doutrina e Prática das Obrigações, SILVA, José Afonso da. Curso de Direito
Tomo II, aumentada e atualizada por Aguiar Constitucional Positivo, 8a ed. revista,
Dias, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1956. Malheiros Ed., S. Paulo, 1992.
ATUALIDADES

INQUÉRITO ADMINISTRATIVO CVM


E RECURSO DE OFÍCIO
LUIZ ALFREDO PAULIN

Sumário: 1. Introdução — 2. Do recurso de ofício em procedimentos CVM: 2.1


Da adoção do recurso de ofício; 2.2 Decisões sujeitas ao duplo grau obrigatório;
2.3 Dos atos sujeitos ao recurso de oficio; 2.4 Da razão para existência do recurso
de ofício; 2.5 Da impossibilidade do CRSFN determinar a devolução do inquérito
à CVM — 3. Conclusão.

1. A partir de 1985, algumas decisões ocorram mal-entendidos no decorrer do


proferidas em Procedimentos Adminis­ trabalho. Logo em seguida, procurar-se-
trativos instaurados pelo Banco Central á verificar que normativos introduziram
do Brasil e pela Comissão de Valores o recurso de oficio nos procedimentos
Mobiliários contra Administrados, em punitivos levados a efeito pela Comissão
decorrência do poder de polícia concedi­ de Valores Mobiliários e pelo Banco
do a estas duas autarquias, passaram a se Central do Brasil. Feito isto, dever-se-á
sujeitar ao denominado recurso de oficio. interpretar o normativo em referência,
O normativo que instituiu o denomi­ para se constatar se o mesmo impõe o
nado recurso de oficio era de clareza recurso de oficio contra as decisões de
meridiana, não criando maiores proble­ arquivamento de Inquérito Administrati­
mas interpretativos. A única situação vo proferidas pela Comissão de Valores
onde, pode-se dizer, dúvidas afloraram, Mobiliários. Encerrado este aspecto, será
refere-se à necessidade ou não de inter­ o momento da analisar o assunto, a partir
posição de recursos de oficio em deci­ das regras processuais ordinárias, para
sões de arquivamento proferidas pela que se saiba, até que ponto as regras
Comissão de Valores Mobiliários, em processuais comuns impõem o recurso
Inquérito Administrativo. Em verdade, de oficio contra decisões como as ora
desde que foi introduzida esta nova
tratadas. Em seguida, procurar-se-á estu­
sistemática, vem-se adotando posiciona­
dar a questão de forma teleológica. Por
mento não absolutamente firme. Neste
sentido, visa o presente trabalho analisar último, dever-se-á perquerir da compe­
do cabimento de recurso de oficio contra tência do Conselho de Recurso do Sis­
decisões de arquivamento proferidas em tema Financeiro Nacional para conhecer
Inquéritos Administrativos, levados a de eventuais recursos de oficio interpos­
cabo pela Comissão de Valores Mobi­ tos em situações como as aqui descritas.
liários.
1. Introdução
2. Para análise de temática ora colo­
cada, procurar-se-á, em um primeiro 3. Conforme já foi dito, antes de se
momento, fazer algumas colocações de ferir a temática propriamente dita, algu­
caráter propedêutico, de sorte a evitar que mas advertências devem ser feitas.
98 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

4. Primeiramente, necessário que se mente dever-se-á utilizar dela no decor­


diga que em momento algum, estar-se- rer do pronunciamento.
á questionando quanto a constituciona-
lidade ou legalidade dos instrumentos 6. Outro alerta que deve ser previa-
normativos que embasam a ação da mente feito prende-se às peculiaridades
C.V.M., especialmente aquelas normas dos procedimentos conduzidos pela
procedimentais que a Comissão de Comissão de Valores Mobiliários. Tal
Valores Mobiliários emitiu inovando as alerta é feito, porque, no mercado finan­
Resoluções do Conselho Monetário ceiro e de capitais, a maior parte dos
Nacional. Procedimentos são originários do Banco
Central do Brasil. Com isto, muitas
5. Em segundo lugar, alerte-se que no vezes, erroneamente pretende-se atribuir
transcrever deste trabalho estar-se-á a regras aplicáveis ao procedimento
empregando o termo recurso de oficio, conduzidos pelo Banco Central do Bra­
posto que é esta a expressão de que se sil caráter de universidade, estendendo-
vale a Portaria n.° 346, de 3 de julho se ao procedimento Comissão de Valo­
de 1985. Isto não quer dizer, de forma res Mobiliários princípios aplicáveis
alguma, que se entenda que referido exclusivamente a procedimentos instau­
instituto tenha natureza de recurso ou
rados pela autarquia federal criada pela
Lei 4.595, de 31.12.64. Devido a isto,
que a expressão recurso de oficio seja
deve-se sublinhar que o procedimento
a mais adequada para se referir a ele.
levado a cabo pela Comissão de Valores
Muito pelo contrário. Subscrevem-se, Mobiliários, para verificação de viola­
em sua totalidade, as críticas que a ções às normas constantes da Lei 6.385,
doutrina faz ao emprego desta expres­ de 7.12.76, e normas complementares,
são, comungando-se, desta maneira, com difere, em muitos aspectos, dos proce­
a maior parte dos tratadistas, que pre­ dimentos levados a cabo pelo Banco
ferem denominar tal providência indis­ Central do Brasil, tendentes à constatação
pensável para validade da sentença por de violações aos objetivos da Lei 4.595,
duplo grau obrigatório ou reexame de 31.12.64.
necessário.1 Entretanto, na medida em
que o próprio normativo se vale da 7. Com efeito, dentre as várias dife­
expressão recurso de oficio, forçosa- renças existentes entre os dois procedi­
mentos, uma é digna de nota, interes­
Alcides de Mendonça Lima. Dicionário do sando, sobremaneira, para compreensão
Código de Processo Civil Brasileiro. 2a ed., da presente controvérsia. É que, ao
S. Paulo, Ed. R. Tribs. 1994. Na p. 259., contrário do que ocorre com procedi­
manifesta-se o autor, a respeito da natureza mentos regidos pelo Regulamento Ane­
do recurso de oficio, nos seguintes termos: xo à Resolução 1.065, de 5.12.85, aque­
Apesar da denominação hoje relegada e que
era tradicional, nunca foi recurso, mas, les conduzidos com base no Regulamen­
mera providencia para eficácia, validade e, to Anexo à Resolução 454, de 16.11.77,
conseqúentemente, exccutividadc da sen­ comportam duas fases: uma de Inquérito
tença, que tinha de ser apreciada pelo órgão e outra de Processo Administrativo
superior, nos casos expressamente consig­ propriamente dito. Assim, no âmbito da
nados em lei. Prevaleceu o ponto de vista Comissão de Valores Mobiliários,
do autor do Anteprojeto (Buzaid), com
anuência da maioria dos processualistas (L. verificada a ocorrência de fato que pode
A. Andrade; W.M. Pimentel; R.L. Tucci; se caracterizar como prática não eqiii-
C.R. Dinamarco, também com nossa ade­ tativa ou ato ilegal, a autarquia constitui
são). uma comissão de inquérito, objetivando
ATUALIDADES 99

apurar a eventual ilicitude da conduta e toria. Neste caso, o procedimento não


o envolvimento de pessoas submetidas ultrapassará a fase de inquérito. Vale
ao poder de polícia do órgão. Esta dizer: apresentado o relatório do inqué­
comissão tem funções investigativas rito por parte de competente comissão
devendo, ao final de seus trabalhos, cientificando a inexistência de figura
apresentar suas conclusões a respeito do típica ou indícios de autoria, a autarquia
assunto que lhe foi submetido. Com a deverá optar pela não instauração do
entrega do relatório, por parte da comis­ Processo Administrativo propriamente
são de inquérito, duas possibilidades se dito.
abrem à autarquia federal. Caso entenda E, pois, quanto a este ato decisório
pela inocorrência de ilícito administra­ que se instaura a polêmica relacionada
tivo ou pela inexistência de elementos à necessidade de se interpor recurso de
que indiquem a responsabilidade dos oficio ao Conselho de Recursos do
indicados, determinará o arquivamento Sistema Financeiro Nacional. Entende-
do inquérito. Caso contrário, intimará o se evidenciado que da decisão prolatada
indicado a oferecer defesa, iniciando-se, pela CVM neste momento, não cabe
a partir daí, o contraditório propriamen­ recurso de oficio, conforme abaixo
te dito. explicitado.
8. Portanto, verifíca-se cspecialmente
2.1 Da adoção do recurso de ofício
no que tange a fase investigativa, haver
profundas dissemelhanças entre procedi­
mentos conduzidos pelo Banco Central 10. No momento em que foi confe­
do Brasil e pela Comissão de Valores rido legalmente poder de polícia ao
Mobiliários. Banco Central do Brasil e à Comissão
de Valores Mobiliários, não havia pre­
2. Do recurso de ofício em procedi­ visão de que suas decisões, prolatadas
mentos CVM em procedimentos tendentes à punição
de infrações ao objetivo da lei bancária
9. Superados estes aspectos prelimi­ ou a lei que regulamenta o mercado de
nares, cumpre adentrar ao questiona- capitais, estivessem sujeitas ao reexame
mento propriamente dito. Como se viu necessário. De fato, tanto a Lei 4.595,
acima, no procedimento conduzido pela de 31.12.64, como a Lei 6.385, de
Comissão de Valores Mobiliários, finda 7.12.76, são silentes a respeito do as­
a fase investigativa, uma das possibili­ sunto. As normas regulamentares dos
dades que surge é por se concluir pela procedimentos punitivos expedidas pelo
ocorrência de indícios quanto à Conselho Monetário Nacional, nada
materialidade e autoria de uma dada acrescentaram à temática. É somente
irregularidade. Tal se dando, a autarquia com o advento do Regimento Interno do
federal intimará os administrados para Conselho de Recursos do Sistema Fi­
apresentar defesa. Nesta hipótese, o nanceiro Nacional, aprovado por meio
Processo Administrativo terá curso nor­ da Portaria do Ministério da Fazenda
mal, ensejando decisão terminativa, 346, de 3.7.85, que certas decisões
sujeita aos recursos voluntários ou de prolatadas pelas duas autarquias tomam-
ofício estabelecidos em lei. Porém, como se sujeitas ao reexame obrigatório. Dita
se viu, pode o inquérito concluir pela Portaria introduziu o recurso de ofício
inexistência de fato típico ou pela ine­ nos procedimentos punitivos conduzidos
xistência de indícios quanto a sua au- pelo Banco Central do. Brasil e pela
100 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

Comissão de Valores Mobiliários, atra­ 13. A interpretação de um texto legal


vés de seu art. 9.°, verbis: merece certo cuidado. A leitura apres­
“Art. 9.° — Observados os prazos e sada de disposição legais, muitas vezes,
efeitos previstos na legislação pertinen­ conduzem a falsas conclusões. É o caso
te, o recurso será interposto: do art. 9.°, II, da Portaria 346, que, se
I — pela parte, em petição dirigida tomado sem o devido cuidado, corre-se
ao Presidente do Conselho e apresentada o risco de considerar que qualquer
perante o órgão ou entidade que houver pronunciamento diverso daquele que
aplicado a penalidade; aplica penalidade, estaria sujeito ao
II de ofício, por despacho no regime do reexame obrigatório. A mera
próprio ato que deixar de aplicar a exposição da idéia, por si só, já é um
penalidade. argumento ab absurdum1 quanto à sua
Parágrafo único — Na ausência de incorreção. Deveras, não é crível se atri­
disposição legal expressa, o prazo para buir ao legislador a adoção de um sis­
interposição de recurso, sem efeito tema processual absolutamente caótico,
suspensivo, será de 30 (trinta) dias”. o qual feriria as regras mais elementares
da lógica, bem como, e especialmente,
11. Consequentemente, com a entrada o princípio da eficiência a que a Admi­
em vigor deste normativo, certas deci­ nistração está sujeita. De fato, submeter
sões prolatadas pelo BACEN ou pela a quase totalidade das manifestações
CVM só são alcançadas pela preclusão, processuais ao reexame necessário, im­
após serem reexaminados pelo órgão plicaria em eternizar qualquer procedi­
criado pelo Decreto 91.152, de 15.3.85. mento conduzido pelo Banco Central do
Faz-se mister, assim, estabelecer quais Brasil ou pela Comissão de Valores
decisões estariam sujeitas ao recurso de Mobiliários. Descarte-se, desde logo, a
oficio. possibilidade deste interpretação encon-
tra-se correta, uma vez que, ao adotá-la
estar-se-ia concebendo o legislador como
2.2 Decisões sujeitas ao duplo grau um irresponsável, o que não é factível.
obrigatório Cumpre, pois, prosseguir no trabalho,
tentando alcançar o adequado sentido do
12. Dessume-se do texto legal art. 9.°, II, da Portaria 346, de 3.7.85.
retrotranscrito que o recurso de oficio
é cabível, quando a autoridade a quo 14. A leitura menos perfunctória do
deixar de aplicar penalidade. Neste texto sub exame conduz a conclusões
sentido, necessário que se constate se o diferentes das expostas acima, e de
despacho prolatado pela Comissão de
Valores Mobiliários determinando o ar­ (2) Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Introdução
quivamento do inquérito se qualifica ao Estudo do Direito, São Paulo, Ed. Atlas,
como ato que deixa de aplicar penali­ 1991. Na p. 307 assim se explica o argu­
mento ab absurdum*. “No plano da retórica
dade, e, portanto, sujeito ao reexame fala-se em absurdo quando a demonstração
obrigatório. Esposa-se o entendimento consequente de uma proposição nos conduz
que ex vi legis o simples despacho, a uma conclusão manifestamente inaceitá­
determinando a remessa dos autos ao vel, o que nos obriga a reconhecer a
arquivo, não pode ser classificado como “verdade” da proposição oposta. Este é,
genericamente, o sentido da chamada prova
ato com as características estipuladas pelo absurdo. Estritamente, portanto, como
pelo art. 9.°, II, acima reproduzido. As argumento, absurdo não é o destituído de
razões deste seu entendimento são a sentido, mas o que tem um sentido falso
seguir expostas. (isto é, inaceitável para o senso comum)”.
ATUALIDADES 101

conteúdo bem mais razoável. Ora, o mos do art. 9.°, II, da Portaria 346, de
texto constante do art. 9.°, II, da Portaria 3.7.85, que a decisão prolatada pela
346, de 3.7.85, é claro ao afirmar que Comissão de Valores Mobiliários, deter­
o recurso de oficio é interposto no minando a remessa de inquérito ao
próprio ato que deixar de aplicar a arquivo, não se sujeita ao recurso de
penalidade. Portanto, nos termos do oficio.
texto legal., sujeitam-se ao recurso de
oficio os atos que deixarem de aplicar 2.3 Dos atos sujeitos ao recurso de
penalidades. Neste passo, força é relem­ oficio
brar que só deixa de aplicar penalidade
quem poderia fazê-lo e não o fez. Isto 17. Como já se viu, a interpretação
é, a faculdade de deixar de aplicar do art. 9.°, II, da Portaria 346, de 3.7.85,
penalidade é unicamente daquele que conduz à certeza de que as decisões
estava autorizado a aplicar determinada prolatadas pela Comissão de Valores
sanção, e? com base na lei, opta por não Mobiliários, na fase de inquérito, não se
o fazer. E este o exato sentido que tem sujeitam ao reexame obrigatório. Tal
o texto legal. Tendo alcançado este fato, por si só, seria suficiente para
entendimento teórico, há de se aplicar encerrar imediatamente o debate. Toda­
as conclusões à questão prática da qual via, objetivando uma abordagem defini­
se ocupa este trabalho. Vale dizer: o tiva sobre o assunto, necessário que se
despacho exarado pela Comissão de analise a questão sobre outros ângulos,
Valores Mobiliários determinando o de sorte a comprovar a exatidão da
arquivamento de um inquérito, é ato conclusão a que se chegou nos itens
procedimental onde a autoridade deixou anteriores. Para tanto, aconselha-se que,
de aplicar uma penalidade? inicialmente, se verifique se a decisão
prolatada pela CVM, em sede de inqué­
15. A resposta à pergunta acima é, sem rito, tem natureza tal que permita seja
sombra de dúvida, negativa. O pronun­ ela objeto de recurso de oficio.
ciamento da Comissão de Valores Mo­
biliários, que determina a remessa do 18. Para uma conveniente análise do
inquérito ao arquivo, não é ato onde se assunto, a pesquisa não poderá ficar
deixa de aplicar penalidade, posto que, restrita ao Direito Administrativo. Com
nesta fase do procedimento, o agente efeito, o instituto não é originário do
público não estava legalmente autorizado Direito Administrativo, que o tomou por
a aplicar qualquer sanção. De fato, quan­ empréstimo de outro ramo do direito.
do um dado inquérito, concluído por uma Destarte, é no ramo de Direito de onde
comissão, é enviado ao colegiado, este, se originou que se buscará compreender
à vista do relatório final poderá: a) que espécie de decisões submete-se ao
remeter os autos ao arquivo; ou b) reexame necessário.
intimar o indicado a apresentar defesa.
Verifica-se, então, que nesta fase não se 19. O recurso de oficio é instituto
permite à autoridade aplicar ou deixar de encontrado no processo comum. Surge
aplicar penalidades. Se assim o é, não ele no direito processual penal lusitano?
apresenta esta Ato Administrativo as Segundo consta, o instituto teria imigra­
características necessárias para ensejar a do para o processo civil, por conta do
interposição de um recurso de oficio.
(3) José Frederico Marques. Instituições de Di­
16. De todo o exposto, pode-se con­ reito Processual Civil. Rio de Janeiro,
cluir, a partir da interpretação dos ter- Forense, 1960, p. 364.
102 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

legislador pátrio. Buzaid4 resume a o recurso de oficio (reexame obrigató­


temática, nos seguintes termos: rio) se dirige exclusivamente contra as
“Discute-se a questão de saber se tal sentenças. Comentando o assunto, um
apelação se justifica em face dos prin­ antigo Ministro do Supremo Tribunal
cípios da ciência modema. Historica­ Federal7 lecionava:
mente o instituto teve sua origem na “Visando, porém, ao resguardo de
época em que surgiram os primeiros certos interesses de ordem pública (in­
acenos da concepção publicista do pro­ teresses de família, da União, do Estado
cesso criminal, representando, por um ou do Município e da Fazenda Pública),
lado, um reforço da autoridade real, em a lei, no art. 475 do Código de Processo
cuja Corte se desembargava a apelação Civil, prescreve a exigibilidade do cum­
e, por outo lado, uma garantia aos primento do princípio do duplo grau de
direitos de defesa do acusado. Evoluiu jurisdição, sempre que aqueles interes­
o instituto, no direito lusitano, sempre ses não tenham prevalecido na sentença.
como figura do processo criminal, sem Isso se dá apenas relativamente à sen­
entrar em jogo qualquer consideração tença". (grifo nosso).
em favor da Real Fazenda, ou da Fa­
zenda Pública, ou a defesa oficial do 22. No campo do processo penal,
matrimónio, cuja anulação se pleiteava situação semelhante se apresenta. Regra
em juízo. Só no direito brasileiro é que geral, o Código de Processo Penal es­
se vai observar essa extensão, onde a tabelece, em seu art. 574, que se sujei­
matéria foi inovada e posta sob novos tam ao reexame obrigatório tão-somente
princípios”. sentenças. Diz o mencionado diploma
legal:
20. Dispensável pesquisa mais elabo­ “Art. 574. Os recursos serão volun­
rada nas obras dos processualistas para tários, excetuando-se os seguintes casos,
que se afirme categoricamente que o em que deverão ser interpostos, de
recurso de oficio se aplica primordial­ ofício, pelo juiz:
mente contra sentenças. Tanto assim o é, I — da sentença que conceder habeas
que a clássica monografia de Buzaid corpus\
sobre o assunto intitula-se “Da Apelação II — da que absolver desde logo o
Ex-ojfició".5 Tendo escolhido este nome, réu, com fundamento na existência de
o autor já faz transparecer que o objeto circunstância que exclua o crime ou
do recurso de oficio é justamente a isente o réu de pena, nos termos do art.
sentença, eis que apelação é “recurso 411.
cabível contra sentença (art. 513), isto é,
contra ato pelo qual o juiz põe fim ao 23. É certo que, no processo penal,
procedimento de primeiro grau, decidin­ legislação extravagante abre algumas
do ou não o mérito (art. 162, § l.0).”6 exceções à regra, segundo a qual o
recurso de oficio se dirige somente
21. No campo do Processo Civil é contra sentença. Todavia, são casos
exatamente isto que acontece. Ou seja, esparsos que não desnaturam o instituto.

24. Pelo que foi visto, conclui-se que


(4) Alfredo Buzaid. Da Apelação Ex-officio. ordinariamente o recurso de oficio
Sào Paulo, Edições Saraiva, 1951, p. 38.
<5> Op. cit.
(6) José Carlos Barbosa Moreira. O Novo (7) Moacyr Amaral Santos. Primeiras Linhas
Processo Civil Brasileiro. 5a ed., Rio de de Direito Processual Civil. 3.a cd., Sào
Janeiro, Ed. Forense 1983, p. 181. Paulo, Ed. Saraiva, 1979, 3.° v., p. 94.
ATUALIDADES 103

(reexame obrigatório) se dirige contra 16.11.77, cujo título denomina-se do


sentenças. Ou seja, é da essência do “Julgamento em Primeira Instância” (art.
recurso de oficio dirigir-se contra sen­ 10 e seguintes).
tenças.
27. Se o ato no Processo CVM que
25. Alcançado o entendimento acima se assemelha à sentença é a decisão de
exposto, indispensável que se questione primeira instância (arts. 10 ss. do Re­
se a decisão proferida pela Comissão de gulamento anexo à Resolução 454, de
Valores Mobiliários, determinando a 16.11.77) seria ela que comportaria
remessa do inquérito ao arquivo, tem sujeitar-se ao duplo grau obrigatório.
natureza de sentença. Neste passo,
imprescindível relembrar a existência, 28. A decisão proferida pela Comis­
na ciência jurídica, de princípio de são de Valores Mobiliários determinan­
caráter propedêutico, segundo o qual do a remessa do inquérito para o arquivo
sentenças são prolatadas exclusivamente não apresentaria as características e a
por órgãos judiciais. Logo, impróprio se natureza de ato decisório final, que
caracterizar qualquer Ato Administrati­ comporte sujeição ao recurso de oficio.
vo, ainda que decisório, como sentença. Ainda fazendo paralelo com a Teoria
Conquanto tal seja verdadeiro, não é Geral do Processo, poder-se-ia qualifi­
menos verdadeiro que certos Atos Ad­ car o despacho que determina o arqui­
ministrativos, especialmente proferidos vamento do inquérito como algo se dá
em processos administrativos jurisdicio- cm uma fase pré-processual. Para me­
nalizados, apresentam similitude com a lhor compreensão, tomar-se-á como
sentença. Destarte, haveria de se perqui- paradigma para o Processo Administra­
rir se o ato que determina a remessa de tivo CVM, o Processo Penal comum.
inquérito ao arquivo enquadra-se na Fazendo-se um paralelo entre os dois
categoria de atos assemelhados à sen­
procedimentos, o despacho que determi­
tença. É o que se fará, em prossegui­
mento. na o arquivamento do inquérito CVM
equivaleria à fase do processo penal
onde a autoridade judiciária determina
26. Entende-se que, em processos
punitivos como os aqui tratados, asse­ o arquivamento do inquérito policial.
melham-se às sentenças aquelas deci­ Este ato, ainda que proferido por auto­
sões, especialmente as de mérito, pro­ ridade judiciária, não é considerado
feridas após instaurado o contraditório, sentença. Como bem reconhece a dou­
que põe fim ao procedimento. Nos trina, tem natureza de despacho
procedimentos levados a cabo pela interlocutório.8 Entende-se que a decisão
Comissão de Valores Mobiliários, com determinando o arquivamento do inqué­
base na Resolução 454, de 16.11.77, não rito CVM tem natureza assemelhada à
é necessário maior esforço para se proferida no inquérito policial, ou seja,
concluir que típico ato decisório, que tem natureza de despacho interlocutório.
põe termo ao Processo, é aquele profe­ Não tendo, assim, natureza assemelhada
rido, quando do julgamento do P.A. Tal à sentença, a decisão prolatada em in­
julgamento se dá, como se sabe, após quérito conduzido pela CVM, não é o
os acusados terem exercido seu direito do tipo contra a qual seja possível a
de defesa. Para ser mais exato, o ato interposição de recurso de oficio.
assemelhado à sentença é aquele profe­
rido com base nos arts. 10 a 15 do (8) Júlio Fabbrini Mirabetc. Processo Penal. S.
Regulamento anexo à Resolução 454, de Paulo, Ed., Atlas, 1991, p. 95.
104 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

29. Isto posto, estribando-se na Teoria 32. Vê-se, pois, que a existência do
Geral do Processo, conclui-se que, no recurso de oficio está intimamente liga­
presente caso, não seria próprio a pro- da à necessidade de que ações que
positura de recurso de ofeio. resguardem interesses relevantes para o
Estado ou Sociedade ganhem o status
2.4 Da razão para existência do recurso de coisa julgada, sendo atingida, pois,
de oficio pela imutabilidade, somente após terem
sido revistas por um órgão colegiado.
30. Como já se encontra demonstra­ Esta opinião é compartilhada por Alcides
do, decisões proferidas pela Comissão de Mendonça Lima,10 do qual meditando
de Valores Mobiliários determinando a a respeito da conveniência do chamado
remessa de inquéritos ao arquivo não recurso de oficio, assim se expressa:
“Com isso, previnem-se maiores pre­
são objeto de reexame necessário. Os
juízos, mesmo sacrificando o possível
motivos que embasam tal conclusão
desfecho rápido, mesmo que a parte
encontram-se devidamente declinados
vencida — e presuntivamente a maior
nos itens precedentes. A despeito deste
lesada com a manutenção da sentença
fato, existem outros argumentos que
— se haja conformado com o resultado.
reforçam esta conclusão. Estas novas
Realmente, os órgãos do Ministério
ponderações em favor da tese do não
Público ou das Consultorias Gerais (da
cabimento do recurso de oficio em República, dos Estados, ou dos Muni­
situações como a aqui tratada, têm como cípios, quando agem como verdadeiros
suporte argumentos ligados à finalidade “advogados” daquelas entidades públi­
precípua do recurso de oficio, que cas), como fazia sentir João Monteiro,
passam a ser expostos. no lance transcrito, têm o dever de atuar
com lisura na fiscalização e vigilância,
31. Muitos tratadistas pátrios se dis­ sobretudo em tais processos. O Antepro­
puseram a analisar a finalidade do re­ jeto do Código prescrevia que, “inter­
curso de oficio. Por certo, uma das mais vindo como fiscal da lei, o Ministério
felizes abordagens é de Pontes de Público (...). III — apelará da sentença
Miranda9 que, em lição magistral, ensi­ que anular o casamento” (art. 92). Desde
na: o Projeto que o inciso foi suprimido,
A exigência do duplo grau de juris­ situação mantida no texto definitivo.
dição derivou de se entender que se Entretanto, o dispositivo era inócuo,
precisa evitar, por motivo objetivo (art. porque seu não cumprimento deixava de
475, I) ou subjetivo (art. 475, II e III), atingir a finalidade da lei: evitar o
que um só juiz ou corpo julgador profira trânsito em julgado se não reexaminada
a sentença. Uma dessas espécies ligada a sentença em grau superior. Na ver­
à matéria, ao objeto, é a das ações de dade, se por descuido, negligência, ig­
inexistência, nulidades ou anulação de norância ou causas ocultas de improbi­
casamento. Pareceu perigoso ao legisla­ dade (forçado por contingências do poder
dor que tais ações pudessem ter senten­ económico ou político-partidário; coa­
ça transitada em julgado se só um juiz ção moral; vinculações escusas etc.), o
foi o prolator (grifo nosso). agente deixa de usar o recurso que a lei

<9) Pontes de Miranda. Comentário ao Código (10) Alcides de Mendonça Lima. Introdução
de Processo Civil. Rio de Janeiro, Ed. aos Recursos Cíveis. 2.“ cd., S. Paulo, Ed.
Forense, 1974, Tomo V, p. 216. RT, 1976, p. 192/193.
ATUALIDADES 105

lhe impõe (e que é igual ao voluntário pela imutabilidade, em razão da


de qualquer das partes), ele poderá preclusão”.11
pessoalmente ser responsabilizado, ad­ A despeito de inexistir coisa julgada
ministrativa ou criminalmente, sendo até administrativa, impossível deixar de
punido. Mas, nem por isso, deixa de reconhecer que decisões prolatadas em
operar-se a coisa julgada pelo trânsito certos processos administrativos jurisdi-
da sentença não impugnada pelo recurso cionalizados podem vir a criar algo
hábil” (grifo nosso). assemelhado à coisa julgada material.
Assim ocorreria se em procedimento
33. A partir dos elementos suprafor- punitivo que se guiasse pelas normas da
necidos patenteia-se que, uma das ra­ Resolução 454, de 16.11.77, após um
zões (mas não a única) para existência acusado ter sido intimado a apresentar
defesa, fosse proferida decisão absol-
do recurso de oficio, prende-se ao in­
vendo-o. Esta decisão, observados os
teresse de evitar que haja o trânsito em
trâmites legais (inclusive o pronuncia­
julgado de certas causas consideradas mento do Conselho de Recursos do
relevantes para o Estado ou para a Sistema Financeiro Nacional) seria
Sociedade — trânsito em julgado este alcançada pela preclusão, não podendo
que acarretará as consequências conhe­ o caso, a partir daí, ser reaberto contra
cidas (especialmente a imutabilidade do quem já tivesse sido absolvido adminis­
decisum) — sem que um órgão superior, trativamente.
de composição coletiva, reexamine, in Porém, há outras decisões proferidas
totum, a sentença prolatada. Neste pas­ pelas CVM em que consequências iguais
so, é de se indagar se as decisões a esta não se verificam. É o caso, por
proferidas pela Comissão de Valores exemplo, da decisão de arquivar um
Mobiliárias, em sede de inquérito, apre­ dado inquérito administrativo. Tal des­
sentam características tais que devam pacho não criaria qualquer impedimento
ser protegidas pelo recurso de oficio. para que a autarquia, futuramente, e
Entende-se que não, conforme se tentará desde que surgissem novos fatos ou
demonstrar. novas evidências, instaurasse novo pro­
cedimento inquisitório, tendente a inves­
34. O ponto fundamental do recurso tigação de fatos irregulares. Ou seja:
de oficio, como se viu, situa-se no nesta fase processual desnecessário que
interesse em não permitir que uma haja um recurso de oficio, para garantir
decisão seja alcançada pela imutabilida­ que certas matérias não se perpetrem ou
ganhem o status de imutabilidade, que
de, própria da coisa julgada, antes de ser impeçam o Poder Público de reexaminá-
= reexaminada por um Tribunal Superior. las.
Desde logo, sabendo-se que as reflexões
que serão feitas doravante encontram-se 35. Portanto, verifica-se que a decisão
no campo administrativo, em homena­ prolatada em inquérito não é daquela
gem a precisão terminológica, deve-se capaz de criar administrativamente algo
ter em mente que a utilização da expres­ semelhante a coisa julgada material, isto
são coisa julgada não é apropriada neste é, algo caracterizado pela imutabilidade.
ramo do Direito. Deveras, como bem já Assim sendo, também sob este aspecto,
ensinava Hely Lopes Meirelles:
“não existe coisa julgada administra­ (,,) Hely Lopes Meirelles. Direito Administra­
tiva, muito embora certas decisões tivo Brasileiro, 17a ed., S. Paulo, Malheiros
Administrativas possam ser alcançadas Ed. 1992, p. 582.
106 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

mostra-se sem sentido querer ser impor primeiro caso, isto é, se houvesse co­
um recurso de oficio contra decisão que incidência entre o posicionamento da
determina o arquivamento de inquérito. Comissão de Valores Mobiliários e do
Ou seja: se uma das finalidades do Conselho de Recursos do Sistema Finan­
recurso de oficio é se evitar a criação ceiro Nacional nenhum tipo de celeuma
de decisões materialmente imutáveis, sugiria. A decisão seria confirmada e os
sem que antes um órgão colegiado autos remetidos ao arquivo. Contudo,
analise o assunto, não haveria razão para tome-se por hipótese a possibilidade de
que decisão prolatada em simples inqué­ Conselho de Recursos do Sistema Finan­
rito, a qual, como já concluiu, não ceiro Nacional discordar do posiciona­
impede a Administração voltar a exami­ mento da autoridade a quo. Que alter­
nar os fatos, sujeite-se ao reexame nativas restariam ao órgão ad quem?
necessário.
39. Desde logo, afaste-se a possibi­
36. Isto posto, também sob este as­ lidade do Conselho de Recursos do
pecto, demonstra-se sem qualquer fun­ Sistema Financeiro Nacional aplicar qual­
damento advogar-se a obrigatoriedade quer penalidade aos eventuais recorri­
das decisões proferidas pela Comissão dos de oficio. De fato, não tendo sido
de Valores Mobiliários em inquérito estes intimados a apresentarem defesa,
sujeitaram-se ao reexame necessário. eventual condenação seria classificada,
no mínimo, com arbitrária. Neste passo,
2.5 Da impossibilidade do CRSFN de­ a lição de Hely Lopes Meirelles:12
terminar a devolução do inquérito à “Garantia de defesa: o princípio da
CVM garantia de defesa, entre nós, está as­
segurado no inciso LV do art. 5.° da CF
37. Até o momento vem-se tratando justamente com a obrigatoriedade do
do não cabimento do recurso de oficio, contraditório, como decorrência do de­
em decisões prolatas, em inquérito pela vido processo legal (CF, art. 5.°, LIV),
Comissão de Valores Mobiliários, deter­ que tem origem no due process of law
minando seu arquivamento. Crê-se que - do Direito anglo-norte-americano.
não resta qualquer controvérsia a este 'Por garantia de defesa deve-se enten­
respeito. Todavia, no intuito de seu der não só a observância do rito adequa­
esgotar todos os aspectos polêmicos que do como a cientificação do processo ao
a temática oferece, mister se faz exami­ interessado, a oportunidade para contes­
nar a competência do Conselho de tar a acusação, produzir prova de seu
Recursos do Sistema Financeiro Nacio­ direito, acompanhar os atos de instrução
nal para conhecer de recurso de oficio e utilizar-se dos recursos cabíveis. (...).
como o ora estudado, caso ele fosse Processo administrativo sem oportu­
cabível. E o ponto que passa a ser nidade de defesa ou com defesa cercea­
ferido.
da é nulo, conforme têm decidido rei-
teradamente nossos Tribunais judiciais,
38. Na hipótese de um recurso de
confirmando a aplicabilidade do princí­
oficio, com as características supra, ser
pio constitucional do devido processo
recebido pelo Conselho de Recursos do
legal, ou, mais especificamente, da
Sistema Financeiro Nacional, duas pos­
garantia de defesa”.
sibilidades se apresentariam ao órgão:
concordar ou discordar das conclusões
da Comissão de Valores Mobiliários. No <12> Op. cit, p. 588.
ATUALIDADES 107

40. Neste mesmo sentido, as palavras que afronta o próprio texto constitucio­
da Titular do Largo de São Francisco nal.
(FADUSP):'3
“Como, então, relacionar, os incisos 42. Certamente se dirá que o Conse­
LIV e LV do art. 5.° da CF? lho de Recursos do Sistema Financeiro
Ana Lúcia Berbert Fontes afirma que Nacional poderia conhecer do recurso,
o texto de 1988 visou, com o inciso LV, determinando a continuidade do proce­
garantir princípio do devido processo dimento contra os acusados. Conquanto
legal. Contudo, parece melhor dizer que tal se afiguraria uma solução plausível,
o inciso LIV especifica, para a esfera entende-se que a lei não atribuiu esta
administrativa, o devido processo legal, função ao Conselho de Recursos do
ao impor a realização do processo ad­ Sistema Financeiro Nacional. Realmen­
ministrativo, com as garantias do con­ te, não há qualquer disposição no Dec.
traditório e ampla defesa, nos casos de 91.152, de 15.3.85, ou na Portaria 346,
controvérsia e ante a existência de de 3.7.85, onde este mister seja atribuí­
acusados. No âmbito administrativo, do ao colegiado.
desse modo, o devido processo legal não
se restringe somente às situações de 43. Muito pelo contrário. As normas
possibilidade de privação de liberdades em vigor restringem a competência do
e de bens, mas abrange as hipóteses de Conselho à análise de penalidades. Veja
controvérsia ou conflito de interesses e que o Dec. 91.152, de 15.3.85, em seu
de existência de acusados. art. l.°, II, é claro ao dizer:
No concernente aos sujeitos, o devido “Art. l.°— Fica criado, no Ministério
processo legal significa o conjunto de da Fazenda, o Conselho de Recursos do
garantias que lhes são propiciadas para Sistema Financeiro Nacional, com a
tutela de posições jurídicas ante a finalidade de julgar, em segunda e úl­
Administração. Sob o ângulo do poder
tima instância, os recursos interpostos
público consiste na obrigatoriedade de
das decisões relativas à aplicação de
atuar mediante processo em determina­
das situações. penalidades administrativas previstas:
A combinação dos incisos LIV e LV
(...)
do art. 5.° resulta na imposição de II — no § 4.° do art. 11 da Lei 6.385,
processo administrativo que ofereça de 7.12.1976” (grifo nosso).
aos sujeitos oportunidade de apresen­
tar sua defesa, suas provas, de con­ 44. Por sua vez, o art. 11, § 4.°, da
trapor seus argumentos a outros, Lei 6.385, de 7.12.76, dispõe:
enfim, a possibilidade de influir na “Art. 11 — A Comissão de Valores
formação do ato final. O devido pro­ Mobiliários poderá impor aos infratores
cesso legal desdobra-se, sobretudo, das normas desta lei, da lei das socie­
nas garantias do contraditório e ampla dades por ações, das suas resoluções,
defesa, aplicadas ao processo admi­ bem como de outras normas legais cujo
nistrativo" (grifo nosso). cumprimento lhe incumba fiscalizar, as
seguintes penalidades: (...).
41. Como se vê, aplicar penalidade § 4.° — As penalidades só serão
sem garantir o direito de defesa é ato impostas com observância do procedi­
mento previsto no § 2.° do art. 9.°,
(,3) Odete Mcdauar. A Processualidade no cabendo recurso para o Conselho Mo­
Direito Administrativo. São Paulo, Ed. RT, netário Nacional, nos termos do regu­
1993, p. 82. lamento por este aprovado.
108 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

45. Portanto, não é função do Con­ inquéritos administrativos, não estão


selho de Recursos do Sistema Financei­ sujeitas a recurso de oficio, com base
ro Nacional ordenar à Comissão de no que estipula o art. 9.° da Portaria 346,
Valores Mobiliários que transforme in­ de 3.7.85;
quérito em processos administrativos,
tampouco é sua incumbência determinar b) reforça este entendimento as carac-
quem deva ser intimado para apresentar terísticas do recurso de oficio, conforme
defesa. Logo, em situações como a os parâmetros dados pela Teoria Geral
presente, ainda que cabível o recurso de do Processo, onde fica claro que não se
oficio, conclui-se que o órgão criado intenta o recurso de oficio contra deci­
pelo Dec. 91.152, de 15.3.85, não teria sões de caráter interlocutório, prolatadas
poderes para conhecê-lo. Realmente, é em fase pré-processual;
inerente ao exercício da função recursal c) também em favor deste entendi­
a possibilidade de reformar a decisão mento encontra-se o fato de que a
reexaminada. Na medida em que não se finalidade normalmente atribuída ao
concede poder de reforma, não se está
recurso de oficio é impedir que certas
atribuindo função recursal ao órgão.
decisões se perpetuem, sem que sejam
Conseqiientemente, ainda que se por
absurdo o recurso de oficio fosse cabí­ reexaminadas. No caso das decisões
vel contra decisões da Comissão de proferidas nos inquéritos, tem se enten­
Valores Mobiliários que determinam o dido que a Administração pode reabrir
arquivamento de inquéritos, este Conse­ as investigações, na hipótese de surgi­
lho de Recursos do Sistema Financeiro rem evidências novas. Portanto, desne­
Nacional não seria competente para cessário se mostraria que tais decisões,
conhecê-lo. passíveis de serem revistas, fossem
protegidas pelo reexame obrigatório;
3. Conclusão d) ainda que cabível o recurso de
oficio, o Conselho de Recursos do Sis­
46. De todo o exposto até aqui, pode- tema Financeiro Nacional não poderia
se concluir: conhecê-lo, visto que a legislação vigen­
a) as decisões proferidas pela Comis­ te não lhe conferiria poderes recursais,
são de Valores Mobiliários ao fim de nesta área.
ATUALIDADES

NOTAS SOBRE A DESCONSIDERAÇÃO DA


PERSONALIDADE JURÍDICA: A EXPERIÊNCIA
PORTUGUESA

LUIZ ANTONIO SOARES HENTZ

Sumário: 1. A evolução para um sistema de relativa individualização de patrimónios


— 2. A experiência portuguesa — 3. A solução legal e jurisprudencial no direito
brasileiro.

1. A evolução para um sistema de mantida no novo Código Civil, salvo a


relativa individualização de patrimó­ introdução de ementas no Projeto). O
nios primeiro, é que, ao se dotar unicamente
a sociedade de personalidade jurídica, a
O aprofundamento no estudo das partir do registro do seu contrato ou
categorias jurídicas conhecidas permite estatuto no registro peculiar (atualmente
a visualização de atributos não clara­ o Registro das Empresas Mercantis e
mente definidos, dependentes ainda de Atividades Afins, que substituiu o Re­
reflexões para o enquadramento dogmá­ gistro do Comércio; Lei 8.934/94), ficou
tico definitivo. Assim sucede, no campo de fora o empresário individual. A res­
do direito empresarial, com o problema ponsabilidade pessoal alcança os negó­
da delimitação da responsabilidade pa­ cios realizados na empresa, não havendo
trimonial em razão da personalidade divisão patrimonial, nem limite para as
jurídica de que a lei brasileira dotou as obrigações. O outro problema é que a
sociedades civis e mercantis (art. 20 do sociedade passou a ser usada como
CC). Trata-se das sociedades de objeto forma abusiva de limitar a responsabi­
comercial, ou civil, quando organizadas lidade dos sócios, que não seriam atin­
como as comerciais, ditas empresariais gidos por obrigações originárias da
(ou empresarias) pelo Projeto do novo empresa, erguendo-se como um véu
Código Civil, ora em tramitação no protetor do património dos indivíduos
Senado Federal, e que unificará o direito integrantes da sociedade, penalizando os
privado, como se deu com o Código credores desta quando não dispõe de
Civil italiano de 1942. A conseqiiência património bastante para suportar a
primeira e mais importante da atribuição execução da dívida, ou no caso da
de personalidade jurídica às sociedades falência da empresa.
empresariais é a separação de patrimó­ Os problemas aventados não são
nios, e, por conseguinte, da responsabi­ específicos do Brasil, já que outros
lidade que recairia sobre o património. sistemas experimentam situação seme­
Modemamente, dois problemas dis­ lhante. Ou experimentaram, pois solu­
tintos decorrem da sistemática adotada ções estão sendo buscadas para o afas­
pelo legislador brasileiro, a merecer a tamento do abuso em prestígio da re­
preocupação dos juristas (e que será gularidade e da segurança das práticas
110 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

empresariais. Por exemplo, admitindo a Assim, as sociedades limitadas têm


sociedade unipessoal ou dotando o es­ sido usadas como meio de proteção do
tabelecimento individual de património património pessoal (também as socieda­
de afetação. As sociedades unipessoais des anónimas se prestam à mesma fi­
são possíveis hoje na Alemanha e na nalidade). Mas não pode o direito con­
França. E inclusive o Brasil a admite, ceder a proteção quando o uso do
na hipótese da subsidiária integral (art. modelo é feito de modo abusivo, frau­
251 da Lei 6.404/76) e no caso do dulento, a causar prejuízo a terceiros,
falecimento ou retirada de sócios, credores da sociedade, que se vêem
remanescendo apenas um, pelo tempo impedidos de executar os bens dos seus
necessário à reorganização societária integrantes. O problema passou a ser
(solução da jurisprudência para as so­ visto como da necessidade de se des­
ciedades limitadas, adotando princípio considerar a personalidade jurídica da
da permanência da empresa, ditado para sociedade. A doutrina anglo-americana
as sociedades anónimas pelo art. 206, I, foi a que primeiramente formulou a
“d”, da Lei 6.404/76). O património teoria que seria chamada de disregard
afetado especial foi adotado na França of legal entity. Na Inglaterra e nos
e em Portugal, em 1986, criando-se E.U.A., a personificação das sociedades
nesse país o Estabelecimento Individual decorre, juridicamente, de um ato indi­
de Responsabilidade Limitada. vidual de concessão do poder político,
A inexistência de modelos legais podendo ser desconsiderada, no caso de
adequados ao exercício da atividade abuso, para serem os sócios responsa­
empresarial tem levado à adoção indevida bilizados pessoalmente. A doutrina ale­
de tipos que beneficiam o empresário mã também se debruçou sobre o proble­
protegendo o património pessoal. Desde ma, tendendo à superação da persona­
que foi trazida para o direito pátrio, a lidade jurídica para atingir as pessoas
sociedade por quotas de responsabilida­ que se ocultam sob ela, sendo o tema
de limitada não teve ainda um sucedâ­ objeto de considerações em praticamen-
neo à altura. Daí sua utilização segura­ te todos os sistemas legislativos.
mente em nove de cada dez empresas
existentes. Nasceram as sociedades limi­
tadas (assim as chama o Projeto do novo 2. A experiência portuguesa
Código Civil), em 1919, como uma
opção às sociedades em nome coletivo Em recente contato com o direito
e em comandita, de responsabilidade europeu, em viagem de estudos a Por­
integral para os sócios ostensivos, le­ tugal, pudemos constatar a existência de
vando ao abandono dos antigos padrões, uma experiência própria, desenvolvida
ainda constantes do Código Comercial naquele país. Sabe-se que a França, em
(arts. 295, 311, 315 e 317). O Dec. 1985, ao ser alterada a lei das socieda­
3.708/19 permitiu dispor o título des comerciais, de 1966, adotou um
constitutivo ser limitada a responsabili­ modelo de sociedade unipessoal, que se
dade dos sócios à importância total do denominou de “empresa unipessoal de
capital social (art. 2.°). Trata-se de um responsabilidade limitada”. E Portugal,
poderoso instrumento de proteção dos menos de um ano depois, influenciado
bens pessoais, ficando a responsabilida­ pelo modelo francês, tinha criado o
de dos sócios, quando regularmente “estabelecimento individual de respon­
exercida a empresa, condicionada ao sabilidade limitada”, por meio do Dec.-
pagamento de sua parte do capital so­ lei 248, de 25.8.86. É certo, porém, que
cial. a sistemática do direito português conti-
ATUALIDADES 111

nuou a não permitir a sociedade no caso de dívida comum anterior à


unipessoal, preferindo-se a figura do constituição, quer concomitante, mas
património autónomo, ou património de garantida a preferência dos credores do
afetação especial, como forma de dotar estabelecimento em relação aos credores
a firma individual de personalidade comuns do falido.
jurídica. Isso se deve à pouca aceitação Por essas mui breves considerações
da tese da sociedade formada por única sobre o sistema português de 1986,
pessoa, naquele país. Em suas lições, o observa-se a adoção da relatividade da
Professor José do Oliveira Ascensão diz pessoa jurídica, em que a própria lei
ser um absurdo a adoção de uma cate­ regula de forma precisa a matéria, fican­
goria jurídica criada para a colaboração do subtraída ao instituto da desconside­
como empresa unipessoal, pois perdem ração.
significado todos os preceitos respeitantes
a órgãos e deliberações sociais, relações 3. A solução legal e jurisprudencial no
entre sócios, entre outros. E assevera direito brasileiro
que se se pretende a limitação de res­
ponsabilidade, esta deve ser diretamente Indaga-se se, na falta de normas
estabelecida, sem disfúncionalidade. específicas, as normas gerais, como as
O regime básico do E.I.R.L. (Estabe­ que coíbem a simulação, a fraude, o
lecimento Individual de Responsabilida­ abuso de direito, a má-fé, fornecem
de Limitada) é poder ser criado por meios para a proteção dos credores e
qualquer pessoa com capacidade, pas­ outros prejudicados por indevida atua­
sando obrigatoriamente à categoria de ção empresarial. Juristas portugueses,
comerciante. O estabelecimento assenta- como Pedro Cordeiro, têm reclamado
se numa fração separada do património um enquadramento dogmático do pro­
do instituidor, sendo o seu capital. Cria- blema, alertando para o fato de sua
se por escritura pública, tem firma, origem anglo-americana, cujo sistema
objeto, sede o capital com exigência de jurídico, não adstrito ao regime de le­
valor mínimo de 400 000S00 (o mesmo galidade expressa, dispensão o rigor que
que vigora para as sociedades por quo­ teria de ser observado pelos europeus e
tas), que é intangível, mas pode ser sul-americanos.
aumentado, como nas sociedades. O ato No Brasil, não se procurou resolver
de criação é registrado. O E.I.R.L. pode se o problema é de má adequação dos
ser transmitido e dado em locação, modelos legais à realidade atual (alerta
objeto de usufruto, penhor e penhora. nesse sentido tem sido o nosso propó­
O que o direito português desejou sito), nem se esclareceu, com sucesso,
criar, e efetivamente criou, foi um sis­ a natureza e os pressupostos da descon­
tema de responsabilidade demarcada. sideração, nem mesmo se sabe se é
Sem dúvida, pôs a salvo o património imprescindível sua imposição legal para
geral por dívidas do E.I.R.L., com a aplicação prática, ou basta a invocação
condição de que se observe na sua de normas gerais integradas no nosso
gestão o princípio da separação. Ou ordenamento jurídico.
seja, se os patrimónios, pessoal e do O legislador, quando tem oportunida­
estabelecimento, se confundirem, a res­ de, lança mão do princípio da descon­
ponsabilidade se toma ilimitada. E quanto sideração. Exemplo mais recente é a Lei
à responsabilidade do E.I.R.L. pelas 8.078/90 (Código de Defesa do Consu­
dívidas comuns, somente existirá, e em midor), que no seu art. 28 diz que
caráter subsidiário, desde que se prove poderá o juiz “desconsiderar a persona­
a insuficiência do restante de bens, quer lidade jurídica da sociedade quando, em
112 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

detrimento do consumidor, houver abu­ dignidade do Poder Judiciário”, em caso


so de direito, excesso de poder, infração de sociedade proprietária do bem penho­
da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos rado, formada pelo marido e a mulher,
estatutos ou contrato social”, e também por dívida particular desses (RT 560/
nos casos de “falência, estado de insol­ 109).
vência, encerramento ou inatividade da
pessoa jurídica provados por má admi­ 5) O Tribunal de Justiça do Mato
nistração”. Espera-se que o novo Códi­ Grosso decidiu pela desconsideração na
go Civil faça o mesmo, quebrando o hipótese de dissolução de fato de socie­
absolutismo da regra da separação pa­ dade, sendo o proprietário dos bens
trimonial no caso da invocação abusiva visados o sócio detentor da quase tota­
da personalidade jurídica da empresa. lidade das quotas (acórdão e comentá­
Enquanto isso, a jurisprudência, como rios na Revista de Direito Mercantil,
fonte do direito, denota a aplicação da RT, 51/105).
regra em casos concretos, por funda­
mentos variados, como os que se aprecia 6) O TJSP também decidiu, em pro­
a seguir. cesso de falência, que, “havendo con­
fusão de atividades da sociedade com as
1) Em acórdão do TJSP, deu-se por de seu titular, é, de se adotar a teoria
válida e penhora sobre bens de sócio por da desconsideração da personalidade ju­
dívida de sociedade limitada por não se rídica como forma de desmerecer a
ter comprovado a integralização das fraude pelo uso da sociedade” (RT 657/
cotas e ter-se verificado a confusão entre 86).
os bens das pessoas físicas e jurídicas
(RT 669/98).
7) No Rio Grande do Sul, o Tribunal
2) No 1.° TAC-SP deu-se o sócio por de Alçada permitiu o atingimento, pela
carecedor de embargos de terceiro em penhora, de bens particulares de sócios
execução promovida para o recebimento por dívida de sociedade limitada irregu­
de crédito por dívida da sociedade, larmente dissolvida, dizendo que “a
encontrando-se esta extinta e vazia de dissolução irregular de sociedade por
bens (JTACSP, RT, 100/63). cotas de responsabilidade limitada pro­
voca a possibilidade de penhora de bens
3) Também do l.° TAC-SP, acórdão do sócio por dívida da pessoa jurídica”
por maioria de votos decretou o desco­ (RT 660/181).
nhecimento da autonomia da personali­
dade por ter a pessoa jurídica se des­ 8) O mesmo Tribunal desconsiderou
viado de suas finalidades específicas, ao a personalidade jurídica, por invocação
causar dano a terceiro em acidente de do art. 10 do Dec. 3.708/19, em caso
trânsito, sem condições de suportar a que o sócio-gerente emitiu cheque sem
condenação judicial (JTACSP, RT, 102/ findos em nome da sociedade, reconhe­
75). cendo a responsabilidade solidária e
ilimitada do emitente, dispondo que “a
4) O mesmo 1,° TAC-SP, em acórdão personalidade jurídica atribuída à socie­
de 1982, relatado por Rangel Dinamar- dade comercial não pode servir para
co, já determinava o “rompimento da acobertar, sob o manto da absoluta
barreira da personalidade jurídica da irresponsabilidade pessoa, atos pratica­
sociedade, para que não se transforme dos pelo sócio-gerente ao arrepio do
em mito contrário à justiça e à própria contrato ou da lei” (RT 654/182).
ATUALIDADES 113

9) O 1.° TAC-SP decidiu que “estan­ teoria da desconsideração da personali­


do a sociedade comercial em situação dade jurídica (2.° TAC-SP, RT 692/129).
irregular, cujos bens desapareceram, mas
aquela continuando a existir, é justo que 2) Na hipótese de falência da socie­
sejam penhorados bens de seus sócios, dade por percalços económico-financei­
que bastem para o pagamento da dívida ros, não tendo os sócios agido de forma
assumida pela empresa, aplicando-se, no fraudulenta ou desastrosa, a solidarieda­
caso, a teoria da desconsideração da de no débitos sociais fica repelida (l.°
personalidade jurídica” {RT 703/95). TAC-SP, RT 690/103).

10) O TJSP reconheceu a legitimida­ 3) Diante da falta de prova de conduta


de concorrente da sociedade e os sócios lesiva ao património alheio, não há
em processo que se desconsiderou a possibilidade de aplicação da teoria da
personalidade jurídica, dispondo que a desconsideração, por ausência das con­
“decretação não leva ao afastamento dições excepcionais justificadoras (l.°
completo da sociedade, passando a TAC-SP, RT 620/122).
compartilhar da responsabilidade com a
pessoa física a quem acoberta” {RT 656/ 4) Em mandado de segurança, deci­
102). diu-se que seria impossível alcançar o
Têm-se também decisões contrárias, ente jurídico por dívida de sócio em
se bem que sem representatividade, dado simples despacho ordinatório na execu­
o pequeno número e a especificidade ção, por envolver, a aplicação da teoria,
dos casos em que foram adotadas. Nesse questão de alta indagação, a exigir o
sentido arrola-se as seguintes. devido processo legal para a expedição
de provimento judicial extravagante, que
1) Na falta de comprovação de que justifique invadir a barreira do art. 20
a fiança tenha sido prestada com vio­ do CC, impedindo o arresto em caso que
lação do contrato social da fiadora (so­ aparece como interessado o investidor
ciedade), não cabe a penhora dos bens Naji Robert Nahas (Io TAC-SP, RT 651/
pessoais dos sócios, não se aplicando a 120).
ATUALIDADES

REPRESENTAÇÃO COMERCIAL E DISTRIBUIÇÃO


COMERCIAL — IMPORTÂNCIA DOS TRAÇOS DISTINTIVOS
JOÃO LUIZ COELHO DA ROCHA

“La mancra como sc distribuye cl producto puedc scr tan impor­


tante como su tipo o su precio”
Tcsi Prior

A observação acima, utilizada como modo mais simples e comezinho de


um dos postulados para estudos e de­ circulação das mercadorias, com abso­
bates em um dos recentes encontros do luta independência dos envolvidos na
Mercosul, traduz na verdade um padrão cadeia económica. Neste entrecho, o
quase axiomático no processo económi­ moderno instituto da franquia, nascido
co de qualquer sociedade. na dinâmica e criativa economia norte-
Não há quem em sã consciência americana, representa uma subespécie
instale a sua unidade fabril de bens — toda própria, mantido esse arcabonço da
sobretudo os de consumo — sem sérias independência do varejista, mas exigin­
e extensas considerações sobre os meios do-se deste um estrita padronização aos
de circulação dos produtos, de colocação ditames, sobretudo mercadológicos, do
dos mesmos à disposição do público. fabricante em troca de uma suposta
Daí porque os estudiosos das ativida­ alavancagem no potencial de vendas,
des económicas sempre valoraram o pela imagem, pelo “aviamento”, e pela
comércio tanto quanto a indústria, as­ própria infra-estrutura do franqueador.
sentado que as atividades de produção, No outro extremo pode-se configurar
de criação das riquezas, pouco repercu­ a venda direta, do fabricante, ou até do
tiriam a favor dos destinatários dos bens
grande atacadista, ao público consumi­
dor, hipótese de pouca ocorrência, em
se não existissem nesse intermédio as
regra, até pela tendente especialização
ações criativas dos que comercializam de atividades no campo da economia
os produtos fazendo com que estes humana.
cheguem a quem deles necessite. Entre uma e outra tipificação, vemos
Acontece então que as complexas sedimentado, na crescente prática co­
demandas dos mercados consumidores mercial, o uso sobretudo de duas espé­
foram ditando diversos modos de co­ cies distintas de contratos de comercia­
mercialização de produtos, caracteriza- lização, mediante o aparecimento de um
dos por uma maior ou menor participa­ “tertius”, necessariamente comerciante,
ção do industrial, ou até do grande que vai funcionar como um “pivô” das
atacadista, na colocação ao mercado. vendas, o encarregado de promover e
Em um ponto do aspecto temos a efetivar a venda dos produtos em sua
venda, o repasse dos produtos pelo determinada área, responsabilizando-se
industrial aos inúmeros varejistas, o aí pela sua colocação, já no comércio
ATUALIDADES 115

varejista, já perante o próprio público denominado de ajuste de revenda co­


consumidor. mercial.
Se esse terceiro, intermediário, é um Esse último modo denominativo tem
comerciante que “se obriga, mediante talvez a precisão de focar o grande
remuneração, a realizar negócios mer­ elemento de distinção entre tal forma
cantis em caráter não eventual” e em contratual e o vínculo de representação,
favor de alguém para usarmos a clássica pois que neste, agindo o representante
definição de Fran Martins (Contratos e em nome e por conta de alguém (o
Obrigações Comerciais, Ed. Forense, representado), em regra/ele não “reven­
Rio, 1984, p. 318) teremos aí uma de”, ele vende, enquanto na distribuição,
hipótese clara de representação comer­ ao operar, ele pratica uma venda em
cial. conta própria de produtos que a ele terão
Ao representante comercial por essa sido vendidos pelo concedente.
particular qualidade, de um negociante Waldírio Bulgarelli, com a pertinência
que age em nome de outrem, e portanto de hábito, ensina:
muito deste dependente, a ordem jurí­ “não se ajusta (o contrato de conces­
dica brasileira confere um trato especial, são) também ao contrato de representa­
protetor. A Lei 4.886, de 1965, alterada ção comercial autónoma, conforme dis­
depois pela Lei 8.420/92, defere uma ciplinado pela Lei 4.886, de 9 de de­
tutela especial ao representante, sobre­ zembro de 1965, pois o representante é
tudo em nível de garantias indenizatórias um intermediário que age em nome e
nos casos de rompimento unilateral, por conta da empresa mandante, conso­
desmotivado, do contrato, pelo repre­ ante se deduz da definição do art. l.°
sentado. da citada Lei 4.886. Nesse sentido, na
E como se o legislador contemplasse França, Jean Hemard aponta que os
ali uma relação jurídica não tão subor­ concessionários se apresentam como um
dinada e protegida como a do vínculo comerciante, comprando a um fabrican­
trabalhista, mas um tanto aproximada a te seus produtos, que ele revende por
esta, a um ponto que mereceu garantias sua própria conta, e a remuneração que
mínimas de estabilização do curso lhe advém não é uma comissão referente
relacional, desincentivando o seu rom­ a uma atividade de mandatário, mas um
pimento. Certamente alguma coisa bem lucro proveniente da diferença entre o
distinta das relações comerciais rotinei­ preço de compra e o preço de revenda”
ras, onde há plena liberdade das partes (Contratos Mercantis, Ed. Atlas, 1 .a ed.,
para acertar no contrato, termos e prazos p. 453).
de convivência e para romper com E Rubens Requião, autor de clássica
facilidade, o vínculo que não tenha monografia sobre a representação co­
determinação de prazo certo. mercial (Do Representante Comercial,
E assim que, se aquela terceira parte 2a ed., Ed. Forense) pontifica:
na cadeia de comercialização é um “A representação comercial, como o
comerciante atacadista que vai proceder, mandato, pode integrar-se na figura da
em conta própria, à venda dos produtos concessão de venda, como ainda vere­
do fabricante, deste comprando e ao mos, mas jamais poderiam ser conside­
varejo vendendo, geralmente com exclu­ rados seus elementos preponderantes,
sividade, teremos a hipótese de distri­ para permitir sua classificação como
buição comercial. assimilada ao contrato de agência ou
O contrato de distribuição é por muitos representação comercial”.
chamado também de contrato de conces­ O professor paranaense, na verdade,
são comercial, ou mais praticamente se detém mais apuradamente em quali-
116 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

ficar os caracteres do contrato de dis­ ção da mercadoria, mas não a sua


tribuição (ob. cit., p. 60/ss.): cobrança”, pois que “é ele um vendedor
“O contrato de distribuição não é bem a serviço da empresa produtiva”, para
estudado no Direito brasileiro. Seus repetir as expressões mais significativa­
contornos são indefinidos, ora se con­ mente diferenciadoras utilizadas pelo
fundindo impropriamente com represen­ professor Requião.
tação comercial, ora com a “conta pró­ Contrato de distribuição estrito senso,
pria”, ora com o contrato de concessão tipologicamente distinto em seus
comercial (...)”. caracteres básicos, será enfim aquele
“Pela observação do negócio de dis­ último, referido pelo mestre paranaense,
tribuição, na vida comercial, percebe­ onde o distribuidor “adquire a mercado­
mos que essa modalidade contratual ria em grosso, com exclusividade, para
decorre do depósito da mercadoria em negociá-la como sua”, pois aí temos a
mãos do agente do produtor. Este não revenda dos bens por conta própria.
adquire a mercadoria para revendê-la. Esses traços distintivos entre uma e
Fica ela depositada em seu poder, para outra espécie contratual são muito im­
distribuí-la, fazendo chegar às mãos dos portantes pois, como se vê, a ordem
compradores. jurídica brasileira houve por bem em­
O distribuidor, com efeito, recebe a prestar à representação comercial esse
mercadoria do produtor, com o intuito caráter mais tutelar, provavelmente em
de fazê-la circular. E ele um vendedor apreço à dependência maior do comer­
a serviço da empresa produtora. Recebe ciante representante para com aquele
a mercadoria em grosso, ou como re­ que o credencia.
presentante comercial ou como compra­ A Lei 4.886/65, depois alterada pela
dor exclusivo, mantendo-a em depósito, Lei 8.420/92, concede elementos prote­
sob sua guarda e responsabilidade. Ao tores do vínculo relacional em favor do
promover a venda da mercadoria pode representante, sobretudo em forma de
faturá-la. Esse faturamento ou é feito valores indenizatórios mínimos (que a
por ele, se adquiriu a mercadoria, ou é convenção pode acrescer) no caso de
procedido pelo comitente, agindo o rescisão injustificada do ajuste pelo
distribuidor como vendedor autónomo representado.
que promove a tradição da mercadoria, O especialista Rubens Requião (ob.
mas não a sua cobrança. cit., p. 261) observa:
Se o distribuidor adquire a mercado­ “Não temos dúvida, por isso, funda­
ria em grosso, com exclusividade, para dos nos princípios de direito, em sus­
negociá-la como sua, a operação tem o tentar que os contratos de representação
nome de ‘conta própria’”. comercial a prazo determinado, quando
Nesse corte conceituai de Rubens não existam motivos de fato para a
Requião vemos como a prática comer­ determinação do prazo de vigência, sendo
cial tão ágil acabou ditando a confusão renovados ou prorrogados sucessivamen­
que cerca a coexistência entre um e te, revelam a sua verdadeira e real
outro modelo de cooperação no comér­ natureza de contrato a prazo indetermi­
cio. Há formas de utilização de estru­ nado. A determinação desmotivada do
turas de vendas que nominalmente são prazo convencional, sucessivamente
referidas como de distribuição de pro­ reconduzido, presume a intenção de
dutos, quando em rigor técnico serão fraudar a indenização a que faria jus o
representação, porque o interposto co­ representante comercial”.
merciante não vende por si mesmo, não Os tribunais têm abonado essa vazão
revende os bens, ele “promove a tradi­ protetora da lei quanto a tais contratos:
ATUALIDADES 117

“(...) Em havendo contrato de repre­ Há, sim, um tipo de contrato de


sentação comercial, e ocorrendo a res­ distribuição, abrangendo talvez a maio­
cisão por parte do representado, sem ria deles, onde a força do concedente se
causa justificada, o representante tem exaure na possível qualidade e “mercan-
direito a cobrar indenizaçào com base tilidade” de seu produto, ficando o
no art. 27, parágrafo único, da Lei distribuidor bem à aise para exercer e
4.886/65” (TJ-RJ em RT 481/207). desenvolver seu potencial de vendas de
“(...) Não admitiu a Lei 4.886 a acordo com seus ditames próprios.
rescisão arbitrária, ou denuncia vazia, Aí estaremos em terreno típico de
sendo, por essa razão, ineficaz nos concessão comercial, contrato livre de
contratos de representação comercial a presilhas legais, possibilitando às partes,
cláusula que autorize o representado a comerciantes, escolherem seus termos
rescindir o ajuste sem indenizar” (RT de relacionamento, inclusive sobre como
489/159). e em que condições desfazê-los.
Ou ainda: Há outros ajustes que, sob tal forma
(...) O representante comercial cujo de distribuição comercial envolvem
contrato, embora verbal, foi rescindido grandes fabricantes, poderosos produto­
pelo representado, que não comprovou res, dominantes do mercado, e que
justo motivo para a rescisão, faz jus à outorgam, por sua força, prestígio, pelo
percepção de indenização e aviso prévio vertiginoso “efeito venda” de seu nome,
na forma da Lei 4.886 de 9.12.65 (...)” e de sua marca, condições draconianas,
(Ac. unân. da 5.a C.C. do TJRJ de muito estritas, de relacionamento com
18.9.91 na apelação cível 17.800). seus distribuidores, a conviverem por
O próprio STF assim solidificou esse longos anos.
entendimento: Nestes tipos contratuais, muito pre­
“Representação Comercial — Contra­ sentes na área de bebidas e refrigerantes,
to por prazo indeterminado — Rescisão na área de veículos automotores e al­
imotivada precedida de pré-aviso — gumas outras, há, na aparência, absoluta
Fato que não elide a obrigação de
independência dos distribuidores, que
indenizar o representante se o contrato
praticam revenda em conta própria, mas
tem mais de 6 meses (ac. unân. da 2a
T. do STF in “Jurisprudência Brasilei­ na observação mais próxima do trato
ra”, 41, p. 31, Ed. Juruá, 1989). contratual longo ali existente, há um
Outro trato terá o contrato de conces­ estrito controle do concedente sobre
são, de distribuição, pois aqui a ordem estoques, sobre quantidades e meios de
jurídica, vendo na espécie um vínculo venda, sobre a publicidade envolvida, e
de obrigações mais elástico, e que de­ até sobre eventuais outros produtos de
manda pouca dependência entre o dis­ terceiros que aqueles comerciantes ha­
tribuidor e seu concedente — uma vez jam por colocar à venda.
que aquele vende em contra própria, Observando aquele aspecto revelador
revende — não lhe outorgou as diretri­ da intensidade do relacionamento entre
zes protetoras que embargam o livre as partes, acima falado, vemos um
desfazimento do ajuste sem maiores deslocamento desses contratos mais para
onerações. a proximidade das espécies tipológicas
Ainda aí, porém, a realidade elástica, de representação comercial, pois que aí
criativa, evolutiva, volátil, da economia, alguns de seus traços distintivos desa­
acaba ditando parâmetros factuais que parecem, mesmo que sobrexistindo, na
hão por influenciar o cuidado jurídico forma, o elemento distinto da venda em
aplicável ao tema. conta própria.
118 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

Por certo, em obséquio a essa “A ruptura brusca de contrato de


assemelhação, alguns tribunais têm se concessão mercantil ajustado por prazo
manifestado por um tratamento parecido indeterminado, que perdurou ao longo
na proteção desses vínculos de distribui­ de mais de 40 anos, acarreta obrigação
ção com tais características, provendo de indenizar os prejuízos resultantes da
pretensões indenizatórias quando de rescisão”.
rescisões imotivadas pelos fabricantes. Na superfície poderá parecer estranho
A esse propósito, em ação movida que um tratamento se não igual, ao
pela Ideal Comércio de Bebidas Ltda menos assemelhadamente tutelar, seja
contra a Cia. Sulina de Bebidas conferido a um vínculo contratual que,
Antárctica, em Curitiba, o TJ-PA, em na sua faceta mais característica, seja
1988, na Apelação Cível 218, assim distinto da representação, pois que ali
decidiu: não se comercializa em nome de ou­
“A empresa que distribui ou revende trem, como neste último caso, mas sim
bebidas em zona predeterminada pelo revende-se em conta própria.
fabricante, a sujeita a não operar com Contudo, o que não se pode perder
produtos concorrentes do mesmo, tem em vista é que o trato protetor que a
direito a ser indenizada em caso de lei brasileira entendeu por conhecer aos
rompimento abrupto do contrato, que se representantes comerciais não está evi­
estabelecera ao longo dos anos (...)”. dentemente assentado pela qualidade de
E no corpo do acórdão, lê-se, procederem eles à venda em nome dos
“E de todo evidente um relaciona­ representados (e não em conta própria),
mento comercial dessa natureza, com mas sim na extrema dependência comer­
todas essas características, não pode ser cial para com tais representados e no
tida como uma de simples revendedora, efetivo controle que estes exercem sobre
a atuar por conta e risco próprio, como seus comissários.
quer a Antárctica. Em suma, volvendo àquele paralelismo
Na verdade, fica muito claro que a acima exposto, o representante comercial,
Ideal atuava também no interesse do de um modo genérico, funciona como
fabricante interessada em divulgar sua uma longa manus do representado, menos
marca e colocar seus produtos em região ligado a este que um empregado dele,
de atuação de Ideal, e manter ali clien­ talvez, mas muito mais dependente do que
tela permanente. um parceiro comercial comum.
Chama a atenção a existência de uma Pois então se, contratos longos de
fossa geográfica determinada pelo fabri­ concessão ou distribuição, como acima
cante para a Ideal atuar, e a exclusivi­ exemplificados, e não incomumente
dade a que esta estava submetida na encontrados na prática mercantil, ofere­
venda dos produtos do fabricante, cir­ cem em suas peculiaridades, estrito
cunstância demonstradora de que a re­ controle de vendas, de estoques, de
lação entre as partes ia muito além do padronagem de procedimentos de
que uma simples revenda de bebidas marketing etc., por parte do fabricante
para com seu contratado, eles ficam
No mesmo sentido, concedendo direi­ revelando contornos de dependência
to indenizatório aos distribuidores, no muito próximos àqueles existentes entre
caso de rescisões injustificadas de con­ representantes e representado. Daí a
tratos de distribuição de longo curso de tendência jurisprudencial para conceder
duração, temos o acórdão da l.a Câmara a esses tratos mercantis alguma tutela
Cível do TJRGS de 20.3.79 (Revista de que desestimula a arbitrária e desmoti­
Jurisprudência do TJRGS, 77, p. 229). vada rescisão pelo fabricante.
ATUALIDADES

CRIAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DE UMA SOCIEDADE DE


CAPITAL — INVESTIMENTO: AS LIÇÕES DO MODELO
FRANCÊS’
FRANÇOISE MONOD

A criação e o desenvolvimento de O capital-risco em sentido amplo,


pequenas e médias empresas (ditas PME) chamado também de capital-desenvolvi­
passa cada vez mais pelo autofinancia- mento ou capital-investimento, signifi­
mento. Ao longo dos últimos anos, a cando a idéia veiculada pela expressão
atuação de sociedades criadas para o fim inglesa venture capital, é uma nova
de investir em pequenas e médias maneira de financiamento das PME com
empresas — denominadas em geral recursos próprios. Esse financiamento
sociedades de capital-risco — tem sido autóctone favorece o desenvolvimento
a grande responsável pela viabilização dessas empresas tomando-as mais com­
desse tipo de financiamento na França. petitivas, o que reforça a economia do
país e particularmente o fortalecimento
No Brasil a matéria rcvcstc-sc do maior da classe média.
interesse c atualidade. Em 1994 foi editada Esse método mostrou-se eficaz em
a Instrução n.° 209 da Comissão de Valores três países do mundo: os Estados Uni­
Mobiliários, com o objetivo de estimular o dos, a Inglaterra e a França.
desenvolvimento de pequenas e médias
empresas. A instrução dispõe sobre a cons­ Não tratarei aqui do caso norte-ame­
tituição, o funcionamento e a administração ricano, bem conhecido de todos, sobre­
dos Fundos Mútuos e Investimento em tudo pelo sucesso da Silicon Valley da
Empresas Emergentes. As primeiras opera­ Califórnia no setor eletrónico; tampouco
ções desse tipo já tém sido realizadas. Em tratarei do caso inglês, visto que a
outubro de 1995 o Banco Fator c a Fede­ Inglaterra lança mão desse método há
ração das Indústrias do Estado de Santa
Catarina rcuniram-sc com potenciais inves­ trinta anos. Esses dois exemplos consis­
tidores para consolidar a captação de recur­ tem no que se pode chamar de exemplo
sos para um fundo assim; por outro lado, anglo-saxào.
o Banco Mundial está apoiando a formação Tratarei da França, que é a terceira
no Brasil de um fundo com o mesmo fim. no mundo em atividades de capital-risco
A experiência francesa foi objeto da con­ e que tem uma dianteira considerável
ferência apresentada por Françoise Monod em relação aos outros países da Europa.
na ocasião da Assembléia-Geral do
“Dailogue Parlamentairc Euro-Arabc”, rea­ A França é assim, nesse campo, o
lizada em Paris no congresso nacional primeiro país entre os não anglo-saxões.
francês (Assemblée Nationalc), em abril de Parece-me, além disso, que o contexto
1994. Um estudo detalhado sobre essa francês, tanto no que diz respeito às
questão pode ser consultado na obra da PME propriamente ditas, quanto no que
mesma autora, intitulada “Capital Dévelop- concerne ao interesse que o Estado pode
pemcnt-Les Pactes d’Actionnaires” publi­
cada cm outubro de 1993 pela revista manifestar em sustentar seu desenvolvi­
Capital Finance-Le Nouvel Economiste. (N. mento, é sem dúvida mais próximo do
do E.) contexto dos países da América Latina.
120 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

Assim também, muito provavelmente, mento rápido de dividendos, além de


no plano jurídico e financeiro. pôr a sociedade de capital-risco em
O modelo francês é portanto particu- condições de ceder sua participação
larmente interessante para os países nos auferindo lucro ou mesmo de facilitar
quais os governos sentem-se no dever a venda da totalidade da sociedade.
de incentivar ativamente o desenvolvi­ Trata-se assim de um estado de espírito
mento das PME, criadoras de riqueza da parte das empresas de decidem aco­
amplamente repartida e criadoras de lher um novo tipo de parceiro com um
empregos. objetivo comum: desenvolver a empre­
Pude constatar na ocasião de duas sa.
missões oficiais que realizei na As sociedades de capital-risco exis­
Venezuela, designada pelo Ministro dos tem a França há mais de vinte anos e
Negócios Exteriores francês a pedido do no inícios contaram com um contexto
Ministério da Fazenda da Venezuela, económico, sociológico, jurídico e fiscal
que a Venezuela, quarta potência eco­ comparável àquele que existe hoje em
nómica da América Latina e cujo go­ certo número de países da América
verno executa um forte programa de Latina, especialmente o Brasil.
desenvolvimento das pequenas e médias Na França, o Estado teve um papel
empresas, adotou o modelo francês por determinante para suscitar a criação da
considerá-lo o mais adequado. primeira sociedade de capital-risco, a
Pude confirmar essa observação na sociedade Sofinnova, que aconselho.
ocasião de uma missão da qual participo Sofinnova é sem dúvida a melhor ilus­
por conta do BERD, que escolheu a tração da inauguração de nosso sistema:
sociedade de capital-risco francesa que trata-se de um sociedade anónima fran­
aconselho para criar uma sociedade de cesa de direito comum, constituída sem
capital-desenvolvimento na Rússia, a qualquer aporte financeiro do Estado,
fim de intervir especialmente na região por um grupo de acionistas do setor
de Smolensk. financeiro e industrial, de nacionalidade
Além disso, parece-me que a maioria francesa e estrangeira. O papel, certa­
dos países da América Latina, e espe­ mente determinante, do Estado, foi o de
cialmente o Brasil, utilizam os códigos reunir os primeiros acionistas de
de direito civil e comercial derivados Sofinnova e incitá-los a apontar o ca­
dos códigos de Napoleão. Assim, os pital necessário à constituição da socie­
métodos jurídicos e as montagens que dade, cujo objeto era, naturalmente, a
aprimoramos na França podem ser fa­ tomada de participação minoritária em
cilmente transpostos para a maioria dos pequenas e médias empresas com poten­
países da América Latina. cial de crescimento. Ao mesmo tempo,
O capital-risco é uma idéia simples, o Estado favoreceu a constituição da
a do financiamento das PME por meio equipe de gestão, escolhendo alguns
de recursos próprios e não pelo endivi­ funcionários competentes.
damento: os investidores encontram sua Além disso, como esse desenvolvi­
remuneração não nos juros pagos pelo mento importa em riscos, e como o
dinheiro emprestado, mas na valoriza­ investidor em recursos próprios — ao
ção das PME — e portanto na de seu contrário do banqueiro — não exige
investimento — e na participação nos garantias da empresa, pareceu necessá­
lucros. rio na França, para pôr esse sistema em
A finalidade do investimento em funcionamento, um apoio do governo
capital-risco é a de valorizar a empresa suscitando a criação de um fundo de
e consequentemente permitir o paga- garantia, a SOFARIS, que não é um
ATUALIDADES 121

organismo governamental mas um fun­ — direito mobiliário permitindo o


do mútuo de garantia apoiado pelo acesso das PME às Bolsas de Valores
Estado. (criação de um segundo mercado);
Na França em 1993, por volta de 180 — direito financeiro permitindo a
sociedades de capital-risco investiram 6 criação de Fundos Comuns de Aplica­
bilhões de francos em quase 1.000 ção a Risco.
empresas, tomando-se acionistas dessas Um fator favorável apareceu também
empresas. Esses investimentos se distri­ na França: os grandes grupos industriais
buem por todo o território francês, sendo franceses compreenderam que poderia
que a região parisiense representa ape­ ser muitas vezes menos custoso e mais
nas um terço desse total. rápido se desenvolver por crescimento
Cumpre observar que o sucesso dessa externo, ou seja, pela compra de uma
atividade na França atraiu investidores participação de uma PME promissora.
estrangeiros que aportaram, indiretamen­ Isso favoreceu a cessão das participa­
te, por meio das sociedades de capital- ções das sociedades de capital-risco.
risco, dinheiro para desenvolvimento Em conclusão, é possível afirmar que
das PME francesas. Em 1990, metade o financiamento em fundos próprios do
dos fundos investidos por sociedades de tipo capital-risco oferece atualmente
capital-risco nessas empresas francesas possibilidades muito interessantes nos
era de origem estrangeira. casos seguintes:
Um estudo recente demonstrou que o — criação de uma empresa, especial­
capital-risco na França contribuiu para mente no setor de tecnologia;
o desenvolvimento das PME, tendo — expansão das PME com potencial
estimulado uma criação de empregos de desenvolvimento, notadamente as
mais rápida do que nas outras PME. As empresas familiares;
234 empresas examinadas por esse es­ — transmissão das empresas familia­
tudo e que haviam sido sustentadas pelo res em caso de sucessão;
capital-risco aumentaram seus empregos — encaminhamento das PME em
em 34%, enquanto que as outras PME dificuldade passageira mas com chances
diminuíram seus empregos em 7%, o sólidas de desenvolvimento;
que foi aliás a média geral. Essa atividade atribui um papel impor­
Na França esse método contou com tante aos profissionais do capital-risco,
os seguintes fatores, que facilitaram sua isto é, às equipes de analistas que, no
execução: âmbito das sociedades de capital-risco,
— existência de PMEs com um sabem detectar as empresas interessan­
potencial de desenvolvimento, e neces­ tes, negociar as tomadas de participação,
sitando de fundos próprios; acompanhar a evolução da empresa e,
— existência de investidores profis­ finalmente, ceder sua participação com
sionais de capital-risco; lucro, de acordo com os outros acionistas
da empresa. É esse processo que permite
— direito societário permitindo a à sociedade de capital-risco funcionar
tomada de participação minoritária de com recursos próprios e associar seus
modo apropriado na empresa; membros a seus benefícios.
— direito tributário incitando esse Uma sociedade de capital-investimen­
tipo de operação diminuição da carga to para os países da América Latina
tributária sobre os lucros e transparência poderia certamente contribuir ao desen­
tributária das sociedades de capital-ris­ volvimento das PME dos países em
co, por exemplo). questão.
JURISPRUDÊNCIA

AS COOPERATIVAS E O DIREITO DOS COOPERADOS


RETIRANTES AO VALOR ATUALIZADO
DE SUAS QUOTAS-PARTES
JORGE EDUARDO PRADA LEVY

Sumário: 1. Introdução — 2. A correção monetária — 3. A influência dos lucros


e prejuízos sobre o valor da quota-parte — 4. Conclusão

1. Introdução tegralizadas deveria ser feita pelo valor


nominal da subscrição.
1. Em acórdão recente, a Décima
Segunda Câmara Civil do Tribunal de 5. Em primeira instância o feito foi
Justiça de São Paulo firmou entendi­ julgado improcedente. Interposta apela­
mento quanto ao direito de cooperado ção pelo ex-cooperado, a Í2.a Câmara
retirante à restituição, com correção Civil do Tribunal de Justiça de São
monetária plena, de sua quota-parte no Paulo reverteu a decisão monocrática
capital de cooperativa. em julgamento majoritário. Reiterou a
colenda Corte a manifestação dominante
2. Tratou-se de ação movida por da jurisprudência nacional, sistematiza­
cooperado contra cooperativa da qual se da na afirmação precisão, ali citada, do
retirou. A cooperativa restituiu ao reti­ eminente Ministro Athos Carneiro, se­
rante todas as integralizações de capital gundo o qual “a correção monetária não
efetuadas pelo mesmo ao longo dos é um plus que se acresce ao crédito, mas
diversos anos em que se manteve co­ um minus que se evita”.
operado. A restituição, contudo, deu-se
pelo valor nominal das subscrições, sem 2. A correção monetária
correção monetária.
6. Sobre a correção monetária, tem
3. O cooperado pleiteou então o valor razão a colenda 12.a Câmara. A convi­
das diferenças relativas à correção vência com a significativa, ininterrupta,
monetária que não lhe fora creditada. e durante diversos períodos crescentes
inflação, levou-nos à consolidação da
4. A cooperativa apoiou sua defesa na prática da indexação generalizada como
alegação de que não exerce atividade meio engenhoso de, por meio da adoção
lucrativa, o que em seu entendimento de unidades de conta de valor estável,
descaracterizaria qualquer obrigação de permitir a manutenção do equilíbrio nas
restituir o capital do retirante com cor­ relações económicas.
reção monetária. Ademais, o próprio
estatuto social da cooperativa dispunha 7. Desde os mais sofisticados negó­
que a restituição das quotas-partes in- cios até comezinhas relações domésti-
JURISPRUDÊNCIA 123
í
cas, a mentalidade da reposição mensal 12. De fato, obrigar um cooperado a
— e em algumas fases até diária — do retirar-se da sociedade levando tão-so-
valor da moeda disseminou-se, levando mente uma pequena fração de sua par­
inclusive indivíduos sem formação es­ ticipação no património social equivale
colar a praticar corh naturalidade a a restringir sua liberdade de retirada,
matemática da correção monetária. penalizando-a, em infração ao disposto
l
no inc. XX do art. 5.° da Constituição
8. A inteligência jurídica nacional Federal (“ninguém poder ser compelido
acabou absorvendo a noção da atualiza­ a associar-se ou a permanecer associa­
ção automática das obrigações, fossem do”).
elas derivadas de relação contratual ou
de ato ilícito, abandonando gradativa­ 13. Ademais, se a lei permitisse a
mente a discussão — hoje tida por penalização de cooperado retirante es­
irrelevante — sobre a distinção entre taria claramente contribuindo para o
dívida de valor e dívida de dinheiro. E desestímulo generalizado ao cooperati­
a jurisprudência finalmente reconheceu vismo, em frontal contrariedade ao dis­
de forma quase absoluta o fato de que posto no § 2.° do art. 174 do texto
correção monetária serve apenas para constitucional (“a lei apoiará e estimu­
manter o valor da obrigação em equi­ lará o cooperativismo e outras formas de
valência com sua significação económi­ associativismo ”).
ca original, impedindo locupletamento
do devedor. 14. O que não se menciona, contudo,
na decisão comentada, até porque pelo
9. Aplicando essas noções ao caso Relatório aparentemente não houve pro­
concreto, o Tribunal de Justiça de São vocação por qualquer das partes a res­
Paulo, com acerto, afirmou que não tem peito, é a necessidade de, na determi­
cabimento pretender a cooperativa fur- nação do valor da quota-parte a ser
tar-se ao pagamento de atualização restituída ao retirante, ser considerado,
monetária de suas obrigações pelo sim­ adicionalmente à correção monetária, o
ples fato de não exercer atividade lucra­ valor de lucros e/ou prejuízos eventu­
tiva. almente ocorridos ao longo do período
em que o retirante permaneceu coope­
10. De fato, não é o lucro que produz rado. E o que se aborda a seguir.
a correção monetária devida ao coope­
rado retirante. O cálculo de reposição da 3. A influência dos lucros e prejuízos
inflação acrescenta à expressão nominal sobre o valor da quota-parte
do valor do capital parcela absolutamen­
te neutra, não derivada de lucros ou 15. Conforme antes mencionado, o
prejuízos. reajustamento natural do valor do patri­
mónio da cooperativa independe de ela
11. O reajustamento do valor do praticar ou não atividade lucrativa. De
património da cooperativa independe de fato, a cooperativa recebe contribuições
ela exercer ou não atividade lucrativa, de seus cooperados e as aplica em bens.
e de qualquer forma deve necessaria­ Parte desses bens pode constituir-se de
mente ser refletido no valor da quota- aplicações financeiras, que normalmente
parte a ser restituída ao retirante, sob repõem a inflação e ainda permitem
risco de locupletamento da cooperativa algum ganho real. Outros ativos tendem
e dos cooperados que permanecem. a valorizar-se ou a manter equivalência
124 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

com o custo corrigido, salvo deprecia- corresponderia a negar-lhe participação


ções. no lucro acumulado e nas demais reser­
vas produzidas a partir de lucros, e
16. Seguindo-se o raciocínio do pa­ portanto em parcela do património, o
rágrafo anterior conclui-se que o patri­ que, como visto mais acima, infringiria
mónio da cooperativa deveria, no míni­ normas constitucionais.
mo, manter-se atualizado em relação à
inflação. Isso não é necessariamente 21. Ademais, tal medida atribuiria ao
verdade, como se comentará mais adi­ cooperados remanescentes benefício
ante. vedado pelo § 3.° do art. 24 da Lei
5.764, de 16.12.71 — que institui o
17. Imaginando-se, por hipótese, que regime jurídico das cooperativas, além
o valor do património mantém-se atua­ de constituir ganho estranho aos obje­
lizado precisamente na mesma medida tivos da cooperativa, nos termos do art.
dos índices de inflação, então a restitui­ 3.° in fine da mesma lei.
ção do capital contribuído pelo coope­
rado, com atualização pela correção 22. Contudo, ocorre também que
monetária plena, resultaria em perfeita muitas cooperativas — como é próprio
justiça económica. O retirante não per­ de sua definição legal — são formadas
deria qualquer parcela de sua participa­ com objetivo de prestar serviços a seus
ção no património cooperado em bene­ associados, e assim comumente têm
fício dos cooperados remanescentes e parcela significativa das contribuições
estes últimos não veriam desfalcado seu de capital vertida não em bens, mas em
património por pagamento injustificada­ despesas não reembolsadas nem com­
mente elevado ao retirante.
pensadas com ganhos, gerando, por
consequência, prejuízos.
18. De outro lado, contudo, é possível
que, seja pela valorização real de seus
23. De fato, relativamente às despesas
bens, seja pelo auferimento de receitas,
a cooperativa tenha gerado lucros supe­ incorridas diretamente na prestação de
riores à correção monetária do capital. serviços aos cooperados, a Lei 5.764/71
Nessa hipótese, os lucros integram-se ao admite duas hipóteses alternativas: a) a
património da sociedade, ainda que não cooperativa pode ratear o reembolso
incorporados ao capital. dessas despesas entre os associados, na
proporção da utilização dos serviços por
19. De fato, património da coopera­ cada um (art. 80, II) ou b) a cooperativa
tiva é constituído pelo capital social pode arcar com tais despesas, e se em
somado à respectiva correção monetária, tal hipótese acabar sofrendo prejuízo
adicionado a lucros acumulados ainda deve ratear o mesmo entre os coopera­
não incorporados ao capital ou deduzido dos na mesma proporção referida (art.
de eventuais prejuízos acumulados ain­ 89).
da não absorvidos pelo capital ou por
lucros de outros exercícios, além, evi­ 24. Por isso também que em outras
dentemente, das reservas legais e cooperativas há previsão de subscrição
estatutárias. periódica de capital pelos cooperados
igualmente na proporção da utilização
20. Restituir-se, então, ao cooperado dos serviços por cada um (art. 27, § 2o,
retirante, tão-somente sua participação da Lei 5.764/71). Tal subscrição perió­
no capital, ainda que corrigida, dica nada mais é que a recomposição
JURISPRUDÊNCIA 125

do património desgastado pelos serviços nio líquido da cooperativa (que


prestados aos cooperados sem completa corresponderia ao citado capital adicio­
remuneração, assemelhando-se em seus nado da respectiva correção monetária
efeitos económicos ao próprio reembol­ ainda não capitalizada, de lucros even­
so das despesas e ao rateio dos prejuízos tualmente ainda não incorporados e das
aludidos no parágrafo anterior. demais reservas, e deduzido de prejuí­
zos eventualmente ainda não absorvidos
25. Assim, similarmente ao que ocor­ pelo capital). O produto dessa multipli­
re em relação ao lucro, conforme co­ cação corresponderá ao valor patrimo­
mentado mais acima, o prejuízo apurado nial da quota-parte.
pela cooperativa deve também ser reco­
nhecido no cálculo do valor de seu 4. Conclusão
património, como redutor do valor do
capital atualizado somado às demais
29. Da exposição sumária acima
reservas.
conclui-se que o valor da quota-parte do
26. Em situação de prejuízos acumu­ capital da cooperativa a ser pago ao
lados — o que como visto é comum cooperado quando de sua retirada não
entre cooperativas — fica fácil compre­ pode em hipótese alguma corresponder
ender que eventual restituição da quota- tão-somente ao valor nominal das
parte do cooperado retirante simples­ integralizações de capital por ele efeti­
mente pelo valor corrigido monetaria­ vadas. Tal valor nominal tenderia, ao
mente das subscrições respectivas impli­ menos em relação às décadas recentes
caria em pagamento a tal cooperado de da história económica brasileira, a
valor superior ao património correspon­ mostrar-se irrisório.
dente a tal quota-parte.
30. Definitivamente não convence a
27. A restituição feita nas circunstân­ afirmação segundo a qual, por tratar-se
cias descritas no parágrafo anterior re­ de entidade sem fins lucrativos, as
presentaria distribuição ao cooperado obrigações da cooperativa não devem
retirante de benefício indevido e igual­ ser atualizadas. Como visto , a correção
mente vedado pelo já citado § 3o do art. monetária do património da cooperativa
24 da Lei 5.764, em detrimento dos não decorre do lucro, nem depende de
credores, da cooperativa e dos coopera­ seu auferimento. Por outro lado, se à
dos remanescentes. cooperativa é vedado o auferimento de
lucro, como ela mesma afirma, tanto
28. Por tudo isso que o valor da mais vedado seria a percepção de ganho
quota-parte a ser restituído ao cooperado derivado de locupletamento a custas dos
retirante deve necessariamente ser cal­ próprios cooperados, como ocorre se a
culado proporcionalmente à participação atualização do valor do capital não é
correspondente a tal quota parte no paga aos que se retiram.
património da cooperativa. Tal cálculo
seria efetuado dividindo-se a quota parte 31. Mas não basta, contrariamente ao
do capital detida pelo retirante pela que decidiu a comentada decisão do
totalidade do capital nominalmente ex­ colendo Tribunal de Justiça de São
presso no momento do cálculo. O resul­ Paulo, restituir-se o valor do capital
tado de tal divisão seria uma fração a integralizado pelo retirante com corre­
ser multiplicada pelo valor do patrimô- ção monetária plena. Tal procedimento
126 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

tanto pode ser prejudicial ao retirante, 33. Em suma, não resta dúvida de que
em casos de a cooperativa ter registrado as subscrições de capitai realizadas pelo
lucros, como pode ser lesivo à coopera­ cooperado devem lhe ser restituídas
tiva, e portanto aos cooperados rema­ devidamente atualizadas, quando de sua
nescentes, se tiverem ocorrido prejuízos retirada. Tal atualização, contudo, não
durante o período de permanência do há que ser feita simplesmente de acordo
demissionário. com a correção monetária plena, mas
também levando em consideração todos
32. Qualquer das situações menciona­ os lucros e/ou prejuízos sofridos pela
das no parágrafo anterior — restituição cooperativa desde o ingresso do coope­
ao retirante de valor inferior ou superior rado, proporcionalmente a sua participa­
ao que efetivamente corresponde sua ção no capital, de tal forma que o valor
quota-parte em relação ao património da a ele restituído corresponda fielmente ao
cooperativa — infringiria disposição valor patrimonial da participação cance­
legal. lada.

TEXTO DE ACÓRDÃO COMENTADO

ACÓRDÃO — Vistos, relatados e discuti­ Diz a autora que a atividade da ré apenas


dos estes autos de Apelação Cível 241.100/2/ a de promover a venda dos produtos fabricados
2, da Comarca de São Paulo, em que é apelante por suas cooperadas, com rateio do produto
Companhia Açucareira Usina Cupim, sendo dessa venda ao final de cada safra. Todavia,
apelada Cooperativa de Produtores de Cana, exercitou várias atividades económicas além da
Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo Ltda. tal, chegando mesmo a adquirir o controle
— Copersucar: acionário de importante grupo económico, o
Acordam, cm 12.“ Câmara Civil do Tribunal que a levou a se tomar uma empresa de grande
de Justiça do Estado de São Paulo, por maioria porte no mercado, em detrimento das coope­
de votos, dar provimento ao recurso, de con­ radas.
formidade com o relatório e voto do Relator, Assim é que, durante o vínculo cooperativo,
que ficam fazendo parte integrante do presente muitos recursos das cooperadas foram transfe­
julgado. ridos à cooperativa, não só para fazer frente
Participaram do julgamento os Desembar­ às despesas com as vendas de açúcar, mas
gadores Scarance Femandes (Presidente, sem também para formação de capital, desenvolvi­
voto), Carlos Ortiz (Revisor), vencedor e Luiz mento de tecnologia, cobertura de falta de
Tâmbara, vencido com declaração de voto. provisão de fundos por inadimplência de outros
São Paulo, 16 de maio de 1995 — SILVA cooperados e ainda para a aquisição do con­
FILHO, relator com a seguinte declaração de trole acionário de sociedade comerciai.
voto: Ajunta a autora que esses recursos corres­
pondiam a 413.000 sacas de açúcar aproxima-
VOTO — Trata-se de ação movida por
cooperada retirante em face da cooperativa à damente e, no entanto, quando da ruptura do
qual esteve filiada no período de maio de 1974 vínculo cooperativo, recebeu, como restituição
a abril de 1988, para a condenação desta a de suas quotas, o correspondente a apenas 533
pagar correção monetária sobre o valor de sacas de açúcar, a pretexto de se cumprir o
todas as integralizações realizadas durante o estatuto social, o qual prevê a restituição pelo
período das relações cooperativas, integraliza­ valor histórico somente das quotas integraliza-
ções essas creditadas apenas pelo seu valor das.
histórico, o que implica enriquecimento sem Entende a autora ser devida a correção
causa, já que a correção monetária não é monetária, com base no IPC nos períodos em
acréscimo, mas pura recomposição do poder de houve o expurgo pelo Governo Federal na real
compra da moeda. inflação existida, por ser a tal instituto aplicá-
JURISPRUDÊNCIA 127

vel a toda obrigação pecuniária, seja nas anos, deixa-se de cumprir a obrigação na
dívidas de valor, seja nas dívidas de dinheiro, exatas proporções de seu conteúdo económico,
pouco importando que no caso as cooperativas para fazê-lo apenas pelo que ela tem de
não exerçam atividade lucrativa, bastando que aparência externa, nominalmente, tendo em
seja económica, devendo apenas ter em conta contrapartida o enriquecimento sem causa
o capital formado e sua proporcionalidade com inevitável do devedor à custa do credor,
as cotas deste integralizadas. iniludivelmente imoral e injurídico.
A r. sentença, cujo relatório é adotado, Era compreensível alguma hesitação ou
julgou improcedente a ação e apela autora para timidez na aplicação irrestrita da correção
a reversão integral da solução dada, renovando monetária até mesmo ao tempo da edição da
os mesmos argumentos trazidos com a petição Lei 6.899/81, porque a inflação na ocasião
inicial. ainda não era alarmante, visto que controlada
O recurso foi recebido e impugnado. Há com mãos de ferro pelo Ministro Delfim Neto,
preparo anotado. que se gabava de mantê-la abaixo dos 225%
È o relatório. ao ano. E quando se vê vacilante a jurispru­
dência, ora entendendo que devia haver sua
VOTO — Na Apelação Cível 231.113-2/3, previsão expressa no contrato ou quando só
de Marília, em que foi relator o Eminente estivesse autorizada em lei. Ora era abominada
Desembargador Luiz Tâmbara, consta do v. como algo estranho ao sistema jurídico, ora se
acórdão que a “A correção monetária nada procurava fazer distinções das obrigações que
mais significa que a reposição do valor da lhe estavam sujeitas das que não estavam,
moeda, corroída pela inflação, como meio de sempre, é claro, invocando tradicionais insti­
troca por bens da vida e de extinção de tutos ou servindo-se dos conceitos jurídicos
obrigações. Rcpara-se e elimina-se, por ela, a existentes, embora mal ajustados porque, no
defasagem do valor aquisitivo da moeda cau­ fundo, a aplicação era apenas casuística.
sada pela demora no pagamento de uma dívida Todavia, o mesmo já não mais ocorre com
líquida e certa. Na síntese admirável do a inauguração dos governos civis, ocasião em
Eminente Ministro Athos Gusmão Carneiro, a que houve a explosão da inflação com toda
correção monetária não é um 'plus’ que se fúria, recrudescendo com uma vertiginosidade
acrescenta ao crédito, mas um 'minus’ que se espantosa, até chegar aos patamares que supe­
evita”. ravam cm muito a casa dos 1.000% ao ano.
Também, no julgamento do agravo de ins­ Agora já revelava, ostensivamente, seus efeitos
trumento 49.028-9, dc São Paulo, D.J.U. de perversos, e diários, aos olhos até dos mais
16.3.94, p. 4.985, em que foi Relator o Mi­ leigos cm assuntos económicos e financeiros,
nistro Milton Luiz Pereira, do Egrégio Superior diferentemente dc outrora, quando só ao cabo
Tribunal dc Justiça, ficou assentado cm admi­ dc períodos mais longos, cerca dc um ano em
rável estilo que “o judiciário, ouvindo o eco média, tomava-se perceptível esse aviltamento
de indissociáveis fatos económicos, não olvi­ do poder dc compra da moeda, e ainda só aos
dando, sob pena de louvaminhar direito olhos mais sagazes.
desajustado e injusto, entre os estabelecidos, Desse modo, a correção monetária passou
possa escolher o índice mais apropriado para a fazer parte da vida económica do Brasil
confrontar a perversidade da inflação, causa­ como algo que lhe é essencial, tal como o
dora de danos à economia e às finanças do oxigénio o é ao ser vivo na Terra, e isso sob
cidadão, salvando-se dc ficar atrás de seu pena dc desmantelamento completo da econo­
tempo, afogado na procela de acontecimentos mia nacional. Foi de modo tal modo arraigada
contemporâneos do litígio”. na vida social, que em todos os setores desta
O pensamento hoje dominante a respeito de exercia seus efeitos, nada, pois, lhe ficando à
qualquer obrigação jurídica dc prestação margem.
pecuniária, seja decorrente da lei, do contrato Tomou-se mesmo impossível diante de tal
ou de ato ilícito, seja, enfim, tida como dívida quadro fazer prevalecer o disposto no § 2.° da
de valor ou dc dinheiro, é que é aplicável a Lei 6.899/81, ou seja, a aplicação de correção
correção monetária sempre, que não acresce, monetária só a partir da citação para a ação,
mas apenas repõe o poder dc compra da moeda tantas foram as leis posteriores que vieram
aviltado pela inflação. implicitamente mudar tal critério, claro que
Aliás, em não o fazendo, considerada a inspiradas pela contingência do crescimento
vertiginosa inflação ocorrida nos últimos vinte vertiginoso da inflação. Por isso mesmo, não
128 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

faltou o irrestrito aplauso do Poder Judiciário, ocorre —, dos atos concretos tendentes ao
até porque, como dito cm v. acórdão relatado cumprimento desses objetivos.
pelo Ilustre Ministro Dcmócrito Reinaldo, do De fato, as cotas de capital integralizadas
Egrégio Superior Tribunal da Justiça, no re­ são dotadas de conteúdo económico, porque
curso especial 22.610-0-SP, 1." Turma, “É isso é feito com moeda corrente nacional.
ressabido que o reajuste monetário visa exclu­ Portanto, ao receber tais cotas, o património
sivamente a manter no tempo valor da dívida da cooperativa sofre acréscimo não apenas
real, mediante a alteração de sua expressão simbólico, mas efetivo, porque o poder de
nominal. Não gera acréscimo ao valor nem compra da moeda guarda correlação com o
traduz sanção punitiva. Decorre de simples total de bens existentes no país, estes os
transcurso temporal, sob regime de desvalori­ componentes do grande fundo formador da
zação da moeda”. economia da nação. Portanto, a quantidade de
Portanto, não há hoje como se pretender moeda ofertada como integralização de cota
fazer distinções artificiais dos negócios jurídi­ permite, naquele momento, a aquisição de uma
cos que estão sujeitos à correção monetária ou quantidade desses bens, quantidade essa que
não, sem se revelar ingénuo ou artificial. deve ser preservada para quando da restituição
Por isso mesmo, malgrado o enorme respei­ das cotas, no caso de desligamento.
to tributado aos ilustres pareceristas, não se Assim, é de admirar o quanto impressionou
pode identificar, ao menos razoavelmente, o argumento da finalidade mutualística das
qualquer característica nas sociedades coope­ cooperativas e sua ausência de finalidade lu­
rativas que as exclua dos efeitos da inflação, crativa, porque não se lhe está a exigir par­
e muito menos teria qualquer eficácia cláusula ticipação nos lucros, mas apenas a alteração
que expressamente afastasse a correção mone­ de expressão económica do capital, como
tária de suas relações jurídicas, sejam quais decorrência de indexação dos preços e serviços
forem, até porque sua atividade, além de ser à elevação da inflação.
essencialmente económica, como foi bem sa­ Pelas mesmas razões, não impressiona o
lientado em parecer da lavra do Prof. Waldirio argumento de que a cooperativa não pratica
Bulgarelli, não se desenvolve à margem do atividade comercial, ou seja, não aufere lucro.
contexto social e económico da nação, mas, ao Importa só c que o cooperado retirante quer,
contrário, nele se insere e dele participa, como não participar de eventual acréscimo real do
qualquer ente da nação brasileira, e até com património da cooperativa, o que seria o lucro,
muito mais assiduidade, por ser tal inerente ao mas apenas ver corrigido o valor dos bens com
cumprimento de seus objetivos sociais. os quais contribuiu para a formação do
A única coisa, assim, que se vê de real nas património da cooperativa e com o qual foi
cooperativas, é que exercitam atividades eco­ dado a ela cumprir seus objetivos, até porque
nómicas e que o lado cogcntc das normas do o património formado com tal capital também
Estado que as regulam decorre justamente da sofreu naturalmente reajuste por se achar in­
necessidade de proteger o cooperado, sempre serido no sistema económico vigente.
presa fácil desse tipo de organização que Sequer socorre a assertiva de que os bens
parece, como a política, ter abatido sobre si dados como quotas se dissipam no ato de sua
algum castigo divino que a faz trazer nas entrega pelos serviços que presta a cooperativa
entranhas a inclinação para a corrupção, para ao associado, no cumprimento de seus obje­
os abusos para a expoliação. Aliás, sua história tivos. Tal não ocorre, porque esses serviços são
registra mais descalabros que benefícios cole­ cobrados individualmcnte dos cooperados, c as
tivos, e tantos foram, que até despertaram a quotas apenas se destinam à formação do
atenção de sociólogos, os quais não pouparam capital cooperativo, que será a garantia de
severas criticas a seu respeito, também não terceiros, naturais credores da cooperativa no
lhes reconhecendo senão o caráter de mera desenrolar do cumprimento dos objetivos so­
sociedade comercial, exercente, pois, de ativi­ ciais, c para ser gerenciadas sua atividades,
dade lucrativa apenas. como foi bem anotado cm parecer acostado aos
O que se pretende na contestação é que se autos, da lavra do Prof. Waldiro Bulgarelli.
reconheça verdadeira mitificação do sistema Sc a restituição com correção monetária vier
cooperativo, para subtraí-lo, às obrigações que a descapitalizar a cooperativa, como foi a
toda e qualquer pessoa está sujeita, quando preocupação do digno Magistrado, é sinal que
cumpre apenas distinguir seus objetivos, des­ foi mal gerida e seu destino não poderia ser
tituídos de fins lucrativos — o que nem sempre outro que o encerramento de suas atividades.
JURISPRUDÊNCIA 129

O que não é moral nem lícito c que os des da economia, quando sua atividade é
cooperados remanescentes continuem usufruin­ meramente económica.
do do amplo património formado, se não pela A ação é assim procedente, sem exclusão
eficiente gestão, ao menos por causa da va­ do pedido para substituição dos índices de
lorização do património e pelas restituição reajuste oficiais pelos que vieram exprimir a
apenas simbólica das quotas dos retirantes. real inflação ocorrida, porque, como já é
Impressiona menos ainda a afirmação de pacífico nestas Egrégia Câmara, a exemplo do
que se está diante de contrato de adesão, em que ocorre com todos os Tribunais do país,
que o cooperado aceitou as condições tidas por prevalece o entendimento de que, embora seja
essenciais à estrutura da cooperativa, sendo a certo que a intervenção do Poder Público na
avaliação dessas condições do livre arbítrio dos economia tem previsão constitucional, todavia
fundadores. não pode ser discricionária ao ponto de fazer
Ninguém nega que a complexidade das alquimias com vistas à supressão de situação
organizações modernas toma o ente individual jurídica existente e que se formou sob o império
infmitamcnte inferior e sem opções alem, de lei anterior, como a inflação existente.
daquilo que está previamente estabelecido, Não seria dado suprimir dita inflação por­
limitando-se a autonomia de sua vontade em que, como bem dito em brilhante acórdão da
optar ou não. Dessa forma, importarão muito lavra do Eminente Desembargador Donaldo
mais os desdobramentos dos efeitos do contrato Armclin, isso não se faz por decreto, como sói
no curso de seu cumprimento, do que propria­ acontecer, mas com reordenação de fatores
mente aquilo que foi aceito quando da adesão. económicos c tudo com a lentidão própria para
Assim, se a correção monetária, ao tempo as circunstâncias.
do desligamento, cra o único mecanismo que Sc critérios tradicionais medidores de infla­
preservaria cm tese o direito do cooperado de ção apontavam determinado resíduo inflacio­
ter restituidas as quotas com que contribuiu nário, não c a mudança de sistemática, orienta­
para formação do capital, não nominalmente, da pelo espírito de contornar o fracasso de dada
apenas historicamente, mas pela expressão do política económica tomada insustentável, que
real valor desse património segundo o que c obrigará o Judiciário ao reconhecimento de sua
praticado no mercado, não há como negá-la, inexistência ou existência em outros parâme­
a menos que se queira, como dito num dos v. tros, ao menos quando isso atinja situações
acórdãos citados, “louvaminhar direito jurídicas passadas.
desajustado e injusto ". E, certamente, essa não Esse pensamento vem minuciosamente ex­
é a finalidade do Judiciário, ao menos quando posto na apelação cível 221.201-2/7, de São
certas questões lhe ficam mais amadurecidas Paulo, em que foi relator o Eminente Desem­
ao ponto de poder lhes avaliar com segurança bargador Érix Ferrcira, quando é traçada a
todas as consequências. evolução histórica da legislação disciplinadora
Qualquer outra ponderação alem das exa­ da correção monetária no período objeto do
minadas não é suscetível de alterar o quadro pedido, no qual se conclui pelo afastamento da
traçado, de modo que não se está a omitir sobre variação do Bónus do Tesouro Nacional como
ela pronunciamento, mas a considerá-la inócua, indexador, com prevalência do IPC, a exemplo
tcndo-sc como ociosos novos argumentos. do que vem fazendo o Egrégio Superior Tri­
Apenas, por causa do realce dado à questão, bunal de Justiça, conforme se vê da transcrição
convém esclarecer que as normas cogentes parcial acima dos venerandos acórdãos citados.
existentes na regulamentação das sociedades Porém, quanto ao índice de inflação rela­
cooperativas é justamente para proteção do tivamente ao mês de fevereiro de 1991, não
cooperado, de maneira que a falta de finalidade cabe sua integração pelo IPC de 19,91%,
de lucros é somente para preservar o patrimó­ subsistindo-se apenas a TR em 7%. O enten­
nio do cooperados da atividades de risco c dimento a seu respeito nesta Egrégia Câmara
também para cercear os naturais abusos que é o que está cristalizado no v. acórdão pro­
a direção se vê tentada a cometer quando tem ferido na apelação cível 214.565-2, de São
às mãos tanto dinheiro que não lhe custaram Paulo, cm que foi relator o Eminente Desem­
o suor. Não que isso forre as tais sociedades bargador Luiz Tâmbara, do qual é destacado
de se submeter às regras mais comezinhas de o seguinte excerto:
direito, muito menos lhes outorga privilégios “Contudo, conforme orientação assentada
ao ponto de se porem acima do bem e do mal, neste Tribunal de Justiça, a partir de fevereiro
como entidades sagradas, livres das vicissitu­ de 1991, devem incidir os índices da TR, tal
130 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

como foi feito, uma vez que o IPC foi extinto res de Cana, Açúcar c Álcool do Estado de
pela Lei 8.177, de l.° de março dc 1991, São Paulo Ltda. — Copersucar, em maio dc
substituindo o indexador do inflação pelo 1974, e dela se retirou em abril dc 1988, a
índice calculado com base na TR referente ao partir de quando passou a comercializar dire­
mês anterior, o que ocorreu com outros índices tamente sua produção. Na ocasião em que foi
destinados à atualização de obrigações com formalizado o pedido de desligamento da autora,
cláusula de correção monetária (art. 3.°, III). cm 6 dc abril de 1988, a ré lhe restituiu, sem
Entendimento diverso, entraria em conflito qualquer correção monetária, as quotas-partes
com o disposto no art. 62 e seu parágrafo único integralizadas por ela durante quatorze anos.
da Constituição da República, uma vez que a Em agosto de 1993, mais de cinco anos após
eficácia da Medida Provisória 294, cujo art. 4.° sua retirada espontânea da ré, a autora vem em
havia proibido o cálculo e a divulgação do IPC, Juízo postular o recebimento da correção
não se perdeu, antes foi confirmada pela Lei monetária das quotas integralizadas por ela ao
8.177 em que se converteu. longo dos quatorze anos em que permaneceu
O IPC de março, para medir a inflação de cooperada. Causa perplexidade essa longa
fevereiro de 1991, sequer foi publicado, fican­ demora, em vir demandar a atualização mo­
do a desobediência do IBGE à produção de netária do que lhe fora restituído, pelo valor
indexador, sem nenhum efeito, por infringir a nominal, desde que considerado o vultoso
Medida Provisória, 294 e a Lei 8.177. desfalque que a autora alega ter suportado.
Em suma, o cálculo de IPC de fevereiro de Destaque-se que a autora, ao pedir sua
1991, se fez à margem de expressa disposição demissão da ré, informou essa circunstância ao
legal, de modo que, sem a eficácia de índice Instituto do Açúcar e do Álcool, e solicitou a
oficial, tanto que não houve sua publicação, fixação de sua cota individual para a comer­
não podia mesmo ser considerado no cálculo cialização de sua produção referente à safra
elaborado pelo Contador do Juízo, nos termos sucro-alcooleira a iniciar-se em l.° dc maio de
da respeitável decisão do Eminente Desembar­ 1988, afirmando que sua retirada do quadro de
gador João Sabino Neto publicada no Diário cooperadas da ré constituía ato unilateral de
Oficial da Justiça de 27 de agosto de 1993, vontade, visto que as Cooperativas têm como
p. 38". característica básica a adesão voluntária, agra­
A apuração do débito, em tendo sido em decendo os serviços e a colaboração prestada
várias ocasiões as integralizações do capital pela ré (fls.).
cooperativo, terá de ser por artigos, porque Em assembléia-geral extraordinária realiza­
ausente a indicação de ditas épocas e também da em 14 de abril dc 1987, com a presença
dos respectivos valores. de 83 associados, foi aprovada a alteração do
Em face do exposto, pelo meu voto, dá-se estatuto social da ré, que disciplina os direitos
provimento ao recurso, para julgar procedente e deveres de seus cooperados (fls.).
o pedido inicial, com a restrição apenas de que O art. 5.° dispõe que o capital social da
o reajuste incidente no mês de fevereiro de Cooperativa varia com o número de associados
1991 é somente pela Taxa Referencial, fixados e das quotas-partes subscritas, não podendo ser
os honorários de advogado resultante da su- inferior a Cz$ 240.000,00 (duzentos e quarenta
cumbência em 20% sobre o valor da conde­ mil cruzados), nem superior a 15% do preço
nação, para o que foram tomadas em consi­ oficial líquido vigente na data do encerramento
deração notadamente a complexidade da causa de cada exercício, correspondente à produção
e o excepcional zelo do ilustre causídico. total de açúcar, de álcool e de mel dos
Também, a apuração do débito será por artigos associados na safra encerrada no exercício, ou
de liquidação. de cana Comercializada pela Cooperativa nessa
Luiz Tâmbara, vencido com a seguinte mesma safra (II e III do art. 4.°, da Lei 5.764,
declaração de voto: de 16 de dezembro de 1971). Por sua vez, o
art. 6.° estabelece que o capital social da
VOTO (vencido) — Dissenti da douta Cooperativa é dividido em quotas-partes, no
maioria, por entender que a apelação da autora valor de Cz$ 1,00 (um cruzado) cada uma. Na
não reúne condições de prosperar, não obstante admissão do associado será obrigatória a subs­
os ponderáveis argumentos expedidos nas ra­ crição de 12.000 (doze mil) quotas-partes, as
zões do recurso. quais serão compensáveis na subscrição e
A autora, Companhia Açucareira Usina integralização proporcional à produção na forma
Cupim, ingressou na Cooperativa de Produto­ do art. 8.° (art. 7.°), cujo conteúdo é no sentido
JURISPRUDÊNCIA 131

dc que no final de cada exercício social, o Para tanto, a Cooperativa mantém conta cor­
associado subscreverá quotas do capital social rente das rcspcctivas quotas-partes do capital
no percentual que o Conselho de Administra­ social de seus associados, tendo em vista as
ção anualmente fixará para esse fim, ate 15% atividades exercidas e a variabilidade do ca­
do preço oficial líquido vigentes na data da pital social, segundo proclama o art. 23, III,
subscrição dc cada saco dc açúcar ou do valor da Lei 5.764. Se não fosse a enorme vantagem
da paridade económica equivalente a esse dc canalizar a comercialização dc sua produção
preço em litros de álcool ou em quilos de mel por meio de uma única entidade representativa
de sua efetiva produção comercializada pela dos interesses dc todos os associados, e dc
Cooperativa nessa mesma safra, deduzido em adquirir financiamentos c insumos por inter­
cada exercício social o montante subscrito nos médios da Cooperativa-ré, por certo e autora
exercícios anterior. À integralização das quotas não teria integrado, por adesão voluntária, seu
do capital subscritas pelo associado será efe­ quadro associativo durante quatorze anos.
tuada a cada exercício em percentual a critério A tese sustentada pela autora, depois de
do Conselho de Administração não superior a longa reflexão e amadurecimento do extenso
2% do valor líquido do faturamento correspon­ desfalque suportado por ela, com a forma de
dente à sua produção de açúcar, álcool ou de restituição de suas quotas-partes, pois só in­
mel, realizada na safra encerrada no exercício gressou cm juízo cinco anos depois dc sua
ou dc sua produção de cana comercializada demissão, não encontra apoio na Constituição
pela Cooperativa nessa mesma safra. Essas Federal ou na lei. É sedutor o argumento de
regras do estatuto da Coopcrativa-rc amoldam- que a correção monetária não constitui um plus
se ao disposto nos arts. 21, II e III, 24 e seu que se acresce, mas um minus que se evita.
§ 3.°, 25 c 27 e seu § 2.° da Lei Federal 5.764, Ou ainda que a correção monetária não se
de 16 dc dezembro de 1971, que institui o constitui em um plus, senão em mera atuali­
regime jurídico das sociedades cooperativas. zação da moeda aviltada pela inflação, impon­
Infere-se dessa normatividade estatutária que do-se como um imperativo de ordem jurídica,
na admissão, obrigatoriamente, o associado económica e ética. Jurídica, porque o credor
deve subscrever e integralizar 12.000 quotas- tem o direito tanto de ser ressarcido dos
partes, as quais serão compensáveis na subs­ prejuízos do inadimplemento, como o de ter
crição c integralização proporcional à produção por satisfeito, em toda inteireza, o seu crédito
do associado, cm percentual fixado anualmente pago com atraso. Económica, porque a corre­
pelo Conselho de Administração da Coopera­ ção nada mais significa senão um mero ins­
tiva. Portanto, o associado subscreve as quotas- trumento de preservação do valor do crédito.
partes fixadas anualmente, na proporção de sua Ética, porque o crédito pago sem correção
produção e da comercialização de sua safra, importa em um verdadeiro enriquecimento sem
mediante prestações periódicas, no término da causa do devedor, e a ninguém é lícito tirar
safra, deduzindo-se, em cada exercício social, proveito de seu próprio inadimplemento (Re­
o montante subscrito nos exercícios anteriores, curso especial 57.644-0, SP, Relator Ministro
e integralizados na medida do valor líquido e César Asfor Rocha). Qual o homem de bom
seu faturamento correspondente à sua produção senso e médio entendimento que não reconhece
de açúcar, álcool e mel. a justiça dessa afirmação. Qual o juiz, de sã
A Cooperativa tem por objetivo prestar consciência, que recusaria a aplicação desse
serviços a seus associados, receber, financiar preceito. Essa é a distância que se interpõe
c vender a produção de cana-de-açúcar, álcool entre o ideal e o real, o que é o que deveria
e dc mel de seus associados, assim como ser, o que a lei, como norma emanada do Poder
preceder a aquisição de bens de interesse Legislativo, dispõe, e a todos se impõe, e a
económico ou social dos associados cm suas aspiração do justo. Contudo, a tese assentada
atividades agrícolas ou industriais. É evidente naquela alta Corte se refere apenas aos débitos
o proveito comum que resulta para todos os cobrados em Juízo. Não alcança o pagamento
associados em decorrência do exercício dessas na forma livremente estipulada no contrato.
atividades económicas, por uma entidade que A moeda representa um direito que seu
não tem objetivo de lucro, mas que representa possuidor tem para a aquisição de bens da vida
a força da união, para a venda da produção e de serviços. A moeda estável é aquela que
de açúcar, álcool e mel no mercado, para a permite a compra de determinadas mercadorias
obtenção de financiamentos e aquisição de e serviços, sempre na mesma proporção, e na
máquinas e insumos agrícolas ou industriais. idêntica equivalência ao longo do tempo.
132 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

Possibilita o pagamento diferido no tempo, cm Ora, o art. 947 do Código Civil c claro ao
virtude de manter o poder liberatório a pres­ dispor que “o pagamento cm dinheiro, sem
tação futura. determinação da espécie, far-se-á em moeda
A lei pode muito, mas não consegue con­ corrente no lugar do cumprimento da obriga­
ciliar o que é inconciliável. A lei pode dar ção”.
curso forçado à moeda nacional, mas não Por sua vez, o art. 11 e seus parágrafos do
consegue manter estável seu padrão monetário Estatuto Social da Cooperativa proclamam que
em relação aos bens se serviços. De nada as quotas-partes subscritas e integralizadas
adianta a Constituição da República assegurar serão retiradas pelo associado, por seu valor
a irredutibilidade dos vencimentos dos juízes, nominal, em caso de demissão, sem nenhum
como garantia de independência funcional, direito à participação nas reservas de qualquer
agora estendida aos demais servidores, se o que natureza, após a aprovação pela Assembleia
c irredutível c a quantidade de moeda perce­ Geral das Demonstrações Financeiras corres­
bida, e não a quantidade de mercadorias c pondentes ao exercício em que ocorreu sua
serviços que se pode adquirir com aquela. A efetivação, e o respcctivo pagamento será feito
esse respeito, é oportuno invocar a decisão do em parcelas mensais e iguais no prazo de um
Excelso Supremo Tribunal Federal, no julga­ ano. É evidente que essa cláusula tem plena
mento do recurso extraordinário 140.768, de validade, um vez que se refere a direito
que foi Relator o Eminente Ministro Celso de patrimonial c, por isso mesmo, disponível. Não
Mello, no sentido de que “os índices de tem a marca de potestativa, defesa pelo art. 115
desvalorização da moeda não geram direito, do Código Civil, visto que não priva de todo
ação e pretensão à revisão dos valores remu- efeito o ato, ou o sujeita ao arbítrio de uma
neratórios pagos a servidores públicos, pois das partes. Tanto é livre o ingresso nas coo­
esses reajustamentos não constituem decorrên­ perativas, desde que se adiram aos propósitos
cia necessária da cláusula constitucional sociais e se preencham as condições estabe­
institutiva da garantia de irredutibilidade de lecidas no estatuto, como a demissão do
vencimentos” (RTJ 150/616). A estabilidade da associado, na forma dos arts. 29 e 32 da Lei
moeda, a despeito de seus tremendos reflexos Federal 5.764, de 1971. É o respeito à auto­
no mundo do direito, é um fato económico e nomia da vontade e à liberdade de contratar.
só será alcançada com um espírito novo que Pelo exposto, pelo meu voto, nego provi­
não nascerá senão de instituições novas. mento à apelação.
NOTICIÁRIO

NOTICIÁRIO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO


COMERCIAL COMPARADO E BIBLIOTECA TULLIO
ASCARELLI

Prémio Tullio Ascarelli A entrega do Prémio “Tullio Asca­


relli”, será feita em sessão pública, na
Edital Faculdade de Direito da Universidade
Estão abertas as inscrições para o de São Paulo, no dia a ser determinado
Prémio “Tullio Ascarelli” em homena­ pelo Instituto.
gem à memória do eminente mestre, a Waldírio Bulgarelli
ser atribuído, em concurso, às três me­ Presidente
lhores monografias inéditas, versando
qualquer tema de Direito Comercial. Regulamento do Prémio Tullio
O Regulamento do Prémio poderá ser Ascarelli
retirado na sede do Instituto Brasileiro
de Direito Comercial Comparado e Bi­ Art. l.° O Prémio “Tullio
blioteca “Tullio Ascarelli”, instalado no Ascarelli”, concedido pelo Instituto
Departamento de Direito Comercial da Brasileiro de Direito Comercial Compa­
Faculdade de Direito da Universidade rado e Biblioteca Tullio Ascarelli, em
de São Paulo (Rua Riachuelo, 185 — homenagem à memória do eminente
9.° andar). mestre, será atribuído, em concurso, às
As incrições poderão ser feitas no três melhores monografias inéditas, ver­
período de l.° a 30 de março de 1996, sando qualquer tema de Direito Comer­
na forma prescrita no art. 4.° do Regu­ cial.
lamento, devendo o candidato, no mo­ Parágrafo único — A Comissão
mento da inscrição, apresentar 4 (qua­ Julgadora poderá, a seu exclusivo cri­
tro) vias da monografia, que pretenda tério:
inscrever, com no mínimo 100 e máxi­ a) deixar de conceder o prémio;
mo de 150 páginas, datilografadas com b) conceder ou não menções honro­
espaço duplo e de um só lado, identi­ sas.
ficado por um pseudónimo. Art. 2.° — Poderá inscrever-se no
A Comissão Julgadora, composta pelo concurso qualquer interessado, diploma­
Presidente do Instituto Patrocinador e do em ciências jurídicas por Faculdade
por mais dois Juristas de notável saber Oficial ou reconhecida.
jurídico, divulgará o resultado do con­ Art. 3.° — A Diretória da Entidade
curso até o dia 15 de maio de 1996. Patrocinadora fixou que as inscrições
O 1.° colocado receberá a importância poderão ser feitas no período de l.° a
de R$ 4.000,00 (quatro mil reais), o 2.° 30 de março de 1996, sendo o prémio
colocado, a quantia de R$ 1.500,00 para o:
(hum mil e quinhentos reais); e 3.° 1.° colocado: R$ 4.000,00 (quatro mil
colocado a importância de R$ 1.000,00 reais); 2.° colocado: R$ 1.500,00 (hum
(hum mil reais), ofertados pela OAB/SP, mil e quinhentos reais) e o 3.° colocado:
IASP e Ed. Saraiva, respectivamente. R$ 1.000,00 (hum mil reais), ofertados
134 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL ---- 101

pela OAB/SP, IASP e Ed. Saraiva, por mais dois juristas nomeados por sua
respectivamente. Diretória.
Art. 4.° — Por ocasião da inscrição, Parágrafo único — A decisão da
o candidato apresentará monografia es­ Comissão Julgadora será proferida até o
crita no idioma português, com no mí­ dia 15 de maio de 1996.
nimo 100 e o máximo de 150 páginas Art. 7.° — A Entidade Patrocinadora
datilografadas, em espaço duplo e de um poderá, com exclusividade, no prazo de
só lado, identificado por um pseudónimo, 6 (seis) meses, contados da entrega do
em 4 (quatro) vias; deverá também en­ prémio, promover a publicação das
tregar em sobrecarta fechada, a indicação monografias premiadas, ficando os au­
do pseudónimo do autor, no Departamen­ tores com direito ao recebimento gratui­
to de Direito Comercial da Faculdade de to de 50 (cinquenta) exemplares, sem
Direito da Universidade de São Paulo (R. prejuízos dos seus direitos autorais,
Riachuelo, 185 — 9.° andar. devidos pela empresa editora.
Parágrafo único — A sobrecarta de­ Art. 8.° — A entrega do Prémio
verá conter outra menor, igualmente “Tullio Ascarelli” far-se-á em sessão
fechada, com o pseudónimo do autor, pública da Entidade Patrocinadora, na
dentro da qual deverão ser indicados os Faculdade de Direito da Universidade
dados de sua identidade, qualificação e de São Paulo, em data a ser determi­
endereço. nada.
Art. 5.° O candidato somente Art. 9.° — Os casos omissos no
poderá apresentar uma única monografia. presente regulamento serão resolvidos
Art. 6.° — O julgamento do concurso em única instância pela Comissão
será feito, em caráter irrecorrível, por Julgadora do Concurso.
uma comissão integrada por membros
de notável saber jurídico, composta pelo Waldírio Bulgarelli
Presidente da Entidade Patrocinadora e Presidente
ÍNDICE ALFABÉTICO REMISSIVO

A E

Amoldo Wald - A teoria dos grupos Emissão de debêntures - Nelson


de sociedades e a competência Eizirik 37
do juízo arbitrai 21
F
C
Françoise Monod - Criação e desen­
Cooperativas e o direito dos coopera­ volvimento de uma sociedade de
dos retirantes ao valor atualizado de capital - Investimento: as lições do
suas quotas-partes — (As) - Jor­ modelo francês 119
ge Eduardo Prada Levy 122
H
Criação e desenvolvimento de uma
sociedade de capital - Investimen­ Hipóteses de recesso na Lei das Socie­
to: as lições do modelo francês - dades Anónimas - (As) - Renata
Françoise Monod 119 Brandão Moritz 56

D I

Debcnture como instrumento de apli­ Inquérito administrativo CVM e re­


cação e captação de recursos - (A) curso de ofício - Luiz Alfredo
- Durval José Soledade Santos.... 27 Paulin 97

Instituições financeiras e a taxa de


Débitos tributários das empresas. Res­ juros - (As) - Pedro Frederico
ponsabilidade de diretores, sódos- Caídas 76
gerentes e controladores - (Os)
- João Luiz Coelho da Rocha 49
J
Distribuição secundária no Brasil e João Luiz Coelho da Rocha - Os
no exterior de ações pertencentes débitos tributários das empresas. Res­
à administração pública - Luiz ponsabilidade de diretores, sócios-
Gastão Paes de Barros Leães 9 gerentes e controladores 49

Durval José Soledade Santos - A Representação comercial e distribui­ I


debênture como instrumento de apli­ ção comercial - Importância dos
cação e captação de recursos 27 traços distintos 114
136 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL - 101

Jorge Eduardo Prada Levy — As NOTICIÁRIO DO INSTITUTO


cooperativas e o direito dos coope­ BRASILEIRO DE DIREITO
rados retirantes ao valor atualizado COMERCIAL COMPARADO E
de suas quotas-partes 122 BIBLIOTECA TULLIO ASCA-
RELLI 133
L
P
Luiz Alfredo Paulin - Inquérito ad­
ministrativo CVM e recurso de ofí­
cio 97 Pedro Frederico Caídas - As institui­
ções financeiras e a taxa de juros .... 76
Luiz Antonio Soares Hentz - Notas
sobre a desconsideração da persona­ R
lidade jurídica: a experiência portu­
guesa 109
Renata Brandão Moritz - As hipóte­
ses de recesso na Lei das Socieda­
Luiz Gastão Paes de Barros Leães - 56
des Anónimas
Distribuição secundária no Brasil e
no exterior de ações pertencentes à
administração pública 9 Representação comercial e distribui­
ção comercial - Importância dos
N traços distintos - João Luiz Coelho
da Rocha 114
Nelson Eizirik - Emissão de debêntu-
res 37
T
Notas sobre a desconsideração da per­
sonalidade jurídica: a experiência Teoria dos grupos de sociedades e a
portuguesa - Luiz Antonio Soares competência do juízo arbitrai - (A) -
Hentz 109 Amoldo Wald 21

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