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Ministério Público do Estado de Goiás

Procuradoria-Geral de Justiça

Revista
do Ministério Público
do Estado de Goiás

Goiânia
2016
SUMÁRIO
apresentação................................................................ 05

Direito pÚBLiCo

aborto e microcefalia: uma análise constitucional............... 09


saMUeL saLes FonteLes

Morosidade do Judiciário e os impactos na atividade


empresarial em um diálogo com o sistema processual
civil inglês.................................................................................... 39
João CarLos LeaL JÚnior

redução da “Maioridade penal”: afinal, o que de fato


se discute?..................................................................... 73
aLteCir BertUoL JUnior

a divulgação de diálogos interceptados pela Justiça:


um exame constitucional preliminar.............................. 101
eLiseU antÔnio Da siLVa BeLo

o afastamento cautelar do agente público ímprobo sob


novo panorama............................................................. 107
aLteCir BertUoL JUnior

teoria x prática: a corrupção finalística do estado brasi-


leiro comtemporâneo................................................... 117
aLLine neVes De assis

Considerações sobre princípio da ultraprioridade abso-


luta no atendimento das pessoas acompanhadas por
crianças de colo com algum tipo de deficiência................ 145
MarCio roDriGo DeLFiM
a interpretação adequada da súmula 713 do stF......... 157
eLiseU antÔnio Da siLVa BeLo

Direito CriMinaL

a justiça terapêutica na redução dos danos sociais...... 171


aGeU riBeiro Da siLVa

aspectos criminais da leniência antitruste: princípio da


consunção estendida, da proporcionalidade e relação
de causalidade.............................................................. 197
aLan MiranDa MiLHoMeM

o paradigma da titularidade da investigação criminal:


um estudo comparado acerca da possibilidade de
atuação direta pelo Ministério público........................... 221
KaYro aLenCar / neiDe apareCiDa riBeiro

Direito CiViL
245
os efeitos da citação à luz do novo Código Civil..........
UMBerto MaCHaDo De oLiVeira

assUntos Gerais

Uma análise feminista: estamos livres? padrões de


beleza, objetificação do corpo feminino e cultura de
estupro......................................................................... 269
naYLa LoUHana De sÁ Martins / Mariane Morato stiVaL
APRESENTAÇÃO
Caros leitores,

a escola superior apresenta aos seletos leitores a primeira


edição de 2016 da revista do Ministério público de Goiás que con-
templa artigos com valiosas abordagens jurídicas das áreas de Di-
reito público, Direito Criminal, proporcionando reflexões sobre temas
gerais, de relevância para nosso aprimoramento profissional, insti-
tucional e pessoal.
a publicação continua na perspectiva de promover, além
do diálogo acadêmico, a construção do conhecimento, com exposi-
ções de teses diferenciadas, ricas em bases de pesquisa e referen-
ciais teóricos.
nessa trigésima primeira edição impressa e décima eletrô-
nica continuamos com a proposta de abrir espaço para disseminação
desse conhecimento que punge nas instituições jurídicas, nas univer-
sidades, assim como no seio de nosso Mp. acreditamos que essas
reflexões contribuem para atuações cada dia mais eficazes e atentas
aos anseios de uma sociedade sempre ávida por repaginações e que-
bras de paradigmas, em busca de soluções para um viver melhor.
agradecemos a excelência do processo de avaliação dos
artigos pelo Conselho editorial da escola superior que chancela com
propriedade, imparcialidade e rigor o conteúdo dessa publicação.
aproveitem a leitura, os textos primam pela qualidade técnica e
relevância temática. participem da próxima edição. o espaço está aberto.

Ana Paula Antunes Vieira Nery


promotora de Justiça
e Diretora da esMp-Go

Goiânia, Brasil, julho de 2016.

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6
Samuel Sales Fonteles*

ABORTO E MICROCEFALIA:
UMA ANÁLISE CONSTITUCIONAL

ABORTION AND MICROCEPHALY: A CONSTITUTIONAL ANALYSIS

ABORTO Y MICROCEFALIA: ANÁLISIS CONSTITUCIONAL

Resumo:
Embora o abortamento seja considerado crime no Brasil, a proibição
de abortar continua a inflamar debates em torno da sua constitucio-
nalidade. Com o aumento de casos de microcefalia, a discussão volta
à pauta do dia. O trabalho não pretende abordar aspectos religiosos
ou morais, mas apenas dilemas jurídicos a respeito do tema, princi-
palmente no que diz respeito ao papel desempenhado pelo Ministério
Público nesta controvérsia.

Abstract:
Although abortion is considered a crime in Brazil, the prohibition of
abortion continues to ignite debate about its constitutionality. With the
increase in cases of microcephaly, the discussion back to the day
agenda. The work is not intended to address religious or moral, but
only legal dilemmas on the subject, especially with regard to the role
played by prosecutors in this controversy.

Resumen:
Aunque el aborto es considerado un crimen en Brasil, la prohibición
del aborto continúa para encender el debate sobre su constitucio-
nalidad. Con el aumento de los casos de microcefalia, la discusión
de nuevo a la orden del día día. El trabajo no pretende abordar as-
pectos religiosos o morales, sino sólo dilemas legales sobre el
tema, especialmente en relación con el papel desempeñado por
los fiscales en esta controversia.

*Especialista em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará. Promotor de


Justiça do MP-RO. Ex-Defensor Público. Professor de Direito Constitucional na
Escola Brasileira de Ensino Jurídico na Internet - EBEJI.

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Palavras-chave:
Eugenia, deficientes, Direito Constitucional, parquet.

Keywords:
Eugenics, disabled, Constitutional Law, parquet.

Palabras clave:
Eugenesia, discapacitados, Derecho Constitucional, parquet.

DIREITOS FUNDAMENTAIS PUTATIVOS

Uma inflação de direitos fundamentais (FERREIRA


FILHO, 2012, p. 85-86) está longe de representar uma situação de-
sejável. Não se pode vulgarizar esses direitos tão caros à humani-
dade, prostituindo-os no leito da insegurança jurídica. A pretexto de
que há direitos apenas materialmente fundamentais, muitos podem
invocar a existência de direitos fundamentais que jamais foram cogi-
tados pelo constituinte, o que se dirá previstos por ele. O papel tudo
aceita. O membro do Ministério Público carrega consigo o dever cons-
titucional de repelir pretensões infundadas, de manifestar-se contra-
riamente à invocação fantasiosa de direitos e de recorrer das
decisões de Juízes que foram induzidos a erro.
Em célebre monografia a respeito do tema, Manoel Gon-
çalves Ferreira Filho, em um tópico intitulado “Vulgarização dos Di-
reitos”, é incisivo (negritamos):

É preciso, todavia, ter consciência de que a multiplicação de “direi-


tos fundamentais” vulgariza e desvaloriza a ideia. Philip Alston chama
atenção, em interessante artigo, para isso. Assinala a tendência da ONU
e de outros corpos internacionais de proclamarem, a torto e a direito, di-
reitos “fundamentais”, sem critério objetivo algum. E registra novos direi-
tos em vias de serem solenemente declarados fundamentais – direito ao
turismo, direito ao desarmamento – afora já propostos – direito ao sono,
direito de não ser morto em guerra, direito de não ser sujeito a trabalho
aborrecido, direito à coexistência com a natureza, direito de livre-
mente experimentar modos de viver alternativos etc.

10
Os direitos fundamentais foram gravados em um rol
numerus apertus, e não numerus clausus. O reconhecimento exem-
plificativo de direito fundamentais, aliado à natureza delirante do
ser humano, gerou uma invocação fantasiosa de direitos. Como
lembra Daniel Sarmento (SARMENTO, 2015, p. 5-6):

[...] nem todo desejo pode ser legitimamente convertido em direito fun-
damental. Praticamente todas as pessoas querem ser correspondidas
em seus amores, e seriam provavelmente mais felizes e realizadas se
isso lhes fosse assegurado. Nem por isso, se pode afirmar a existência
de um direito fundamental à reciprocidade no amor.

Por vezes, o agente invoca direitos sabidamente inexisten-


tes. Em casos mais delicados, o próprio agente supõe titularizar
esses direitos, ignorando a realidade. Tudo não passa de uma alu-
cinação jurídica. Entre a má-fé e o delírio, preferimos trabalhar com
a boa-fé de quem invoca direitos inexistentes, razão pela qual clas-
sificaremos tais direitos como direitos fundamentais putativos.

O ÔNUS ARGUMENTATIVO NOS DIREITOS FUNDAMENTAIS


PUTATIVOS

Cabe ao Ministério Público provar a inexistência do


direito fundamental invocado ou incumbe à parte, que o
alega, provar o teor e a vigência da norma que alberga esse
direito? De início, cabe lembrar que fatos são provados; direi-
tos, a rigor, são reconhecidos por um Juiz. Mesmo em se tra-
tando de um direito municipal, estadual, estrangeiro ou
consuetudinário, que, em tese, deveria ser objeto de prova, há
um fato a ser comprovado por quem o alega: o teor e a vigência
da norma que abriga esse direito. Provam-se o conteúdo da
norma e que ela vige, ou seja, fatos objetivamente verificáveis.
Provam-se, ainda, os fatos que fazem nascer o direito invocado.
Teses jurídicas, ao contrário, não são objeto de provas, mas sim
de arrazoados doutrinários, pareceres e repositórios de jurispru-
dência. Bem colocada a controvérsia, resta-nos examiná-la.
Sendo assim, temos duas situações distintas: direitos
fundamentais escritos e direitos fundamentais não escritos. Os

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direitos fundamentais escritos na Constituição não carecem de
qualquer prova do seu teor e da sua vigência, porquanto é dever
do Juiz (bem) conhecê-los. Nesse caso, se a parte invoca um di-
reito com apoio explícito no texto constitucional, incumbe, sim,
ao Ministério Público demonstrar o (des)acerto da tese1. Quanto
àqueles albergados por tratados internacionais (v.g. direito fun-
damental à adaptação razoável e direito fundamental ao desenho
universal), o teor e a vigência da convenção deverão ser objeto
de prova por quem os invoca, na forma do art. 376 do NCPC,
pelo qual “a parte que alegar direito municipal, estadual, estran-
geiro ou consuetudinário provar-lhe-á o teor e a vigência, se
assim o juiz determinar”.
A situação requer maiores cuidados quando os direitos
fundamentais invocados não estão escritos, seja porque implíci-
tos, seja porque hauridos do regime e dos princípios (art. 5º, §2º).
Nesse caso específico, diante de uma norma jusfundamental não
escrita, os direitos fundamentais nela plasmados em muito se as-
semelham aos direitos constitucionais consuetudinários2.
Isso posto, com arrimo no art. 376 do CPC, o teor e a vigência
da norma jusfundamental deverão ser objetivamente comprova-
dos, à luz da melhor doutrina e, principalmente, da construção
pretoriana. Somente a praxis é capaz de indicar um direito não
escrito, portanto, invisível aos olhos de fração da comunidade ju-
rídica. Nesse caso, as fronteiras do civil law devem ser ultrapas-
sadas, para adoção de um raciocínio pautado no sistema do
common law.
Portanto, conclui-se que, exceto quando o direito invo-
cado encontrar apoio explícito no texto constitucional, o ônus ar-
gumentativo, usualmente, será de quem invoca direitos
fundamentais. A propósito, há outras razões técnicas para isso.
Primeiramente, porque, mesmo no campo da argumentação, a

1 Por exemplo, elucidando que, embora a Constituição tenha reconhecido esse direito,
em nenhum momento ele foi fundamentalizado. Ou ainda que, a despeito de o direito
encontrar previsão como um direito fundamental, não há subsunção dos fatos do
caso concreto com a norma abstratamente prevista no arquétipo constitucional. A
dúvida será dirimida pelo Juiz, à luz da melhor doutrina e da jurisprudência.
2 Poucos são os costumes constitucionais brasileiros. Um deles é o chamado voto

de liderança, prática usual nos átrios do Poder Legislativo, por ocasião do processo
legiferante.

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prova negativa, isto é, de que algo não existe, beira a prova dia-
bólica. É possível provar que uma rosa azul existe, bastando que
se lhe demonstre. Diversamente, será impossível provar que ela
não existe, pois, por mais que todas as rosas já testemunhadas
sejam de cores diversas, isso, em definitivo, não faz prova cabal
de que não há uma rosa azul. Exigir do membro do Ministério Pú-
blico a prova de que um direito fundamental não existe, na imen-
sidão científica e jurisprudencial da atualidade, é um despautério.
O tema merece a atenção do Ministério Público como fis-
cal da ordem jurídica. Um fiscal zeloso não pode admitir que di-
reitos fantasiosos sejam invocados, reconhecidos e até
concretizados à revelia do ordenamento jurídico, como uma es-
tratagema para fazer valer a vontade pessoal de um dos atores
processuais. Cabe aos órgãos de execução do Ministério Público
um exame com serenidade, razoabilidade e, acima de tudo, atua-
lização científica, para que não sejam induzidos a erro pelas par-
tes parciais da demanda.

“DIREITO FUNDAMENTAL AO ABORTO”

A liberdade de expressão científica levou parte da dou-


trina a sustentar a existência de um direito fundamental ao
aborto. Sabe-se que o Código Penal permite à gestante proceder
ao abortamento quando for vitimada por um abuso sexual, bem
assim quando assujeitar-se a um risco de morte. O Supremo Tri-
bunal Federal entendeu de acrescentar a esse rol a possibilidade
de abortamento nas hipóteses de anencefalia (ADPF n. 54).
Porém, não é essa a extensão que pretende a doutrina
a que se fez alusão. Por exemplo, Maria Berenice Dias defende
um direito fundamental ao aborto, indiscriminadamente3, sem
qualquer ressalva quanto ao período de gestação. Não distin-
guindo o marco temporal para o exercício do pretenso direito ao
aborto, parte da doutrina brasileira está defendendo, em tese, um
sombrio direito individual de exterminar um feto com até nove

3Estas as palavras da autora (negritamos): “a Constituição (art. 226, §7º), ao pro-


clamar como bem maior a dignidade humana e garantir o direito à liberdade, subtraiu

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meses, portanto, um ser na iminência de ser dado à luz. Crono-
logicamente, o pleito beira uma súplica pelo direito de homicídio,
afinal, nas ciências criminais, as fronteiras entre o abortamento e
o homicídio se resumem ao início dos trabalhos de parto. Antes
de iniciados, tem-se o abortamento. Após iniciados, configura-se
um homicídio. Disso se percebe a linha tênue entre esses crimes
contra a vida, cujas fronteiras estão cada vez mais frágeis. No Di-
reito Comparado, a Suprema Corte norte-americana chegou a ad-
mitir o direito ao abortamento no primeiro trimestre de gestação,
no julgamento do Caso Roe vs. Wade4. Entre nós, os debates
são permeados pela lógica do tudo ou nada.

DA ILICITUDE DO ABORTAMENTO, MESMO SEM O CÓDIGO


PENAL

Como é público e notório, no Brasil, a prática do aborta-


mento é definida como crime. Não há direito fundamental à
prática de crimes, pelo contrário, é direito fundamental da so-
ciedade que crimes não sejam praticados. A propósito, é isso
que se extrai do direito fundamental à segurança pública. Por um
consectário lógico, não há como sustentar o direito fundamental ao
aborto, afinal, a ninguém é dado um salvo conduto para delinquir.
A discussão poderia ser encerrada por aqui, não fosse a obstinação
dos defensores desse insólito direito, que passaram a sustentar
que a lei penal, que tipificou o abortamento, não foi recepcionada5.
É preciso que fique claro que ninguém precisa do Código
Penal para negar o suposto direito ao aborto. Uma simples leitura
da Convenção Americana dos Direitos Humanos já coloca essa
conduta no campo da ilicitude, ainda que não criminalizada.

o aborto da esfera da antijuridicidade. No momento em que é admitido o planeja-


mento familiar e proclamada a paternidade responsável, não é possível excluir qual-
quer método contraceptivo para manter a família dentro do limite pretendido. Assim,
frente a norma constitucional, que autoriza o planejamento familiar, somente
se pode concluir que a prática do aborto restou excluída do rol dos ilícitos pe-
nais. Mesmo que não se aceite a interrupção da gestação como meio de controlar
a natalidade, inquestionável é que gestações involuntárias e indesejadas ocorrem
e, somente se for respeitado o direito ao aborto, a decisão sobre o planejamento fa-
miliar se tornará efetivamente livre”. (DIAS, Maria Berenice. Direito Fundamental ao
Aborto. Disponível em <http://www.ibdfam.org.br>).
4 Caso Roe vs. Wade, de 1973.

14
Nesse caso, independentemente de considerações acerca do
juízo de recepção do Código Penal, ainda há um obstáculo insu-
perável que impede o reconhecimento de um direito ao aborto.
O Pacto de São José da Costa Rica é de clareza solar quando
protege a vida do nascituro5. Logo, em um silogismo aristo-
télico, todos os que tivessem o direito de abortar teriam, por
conseguinte, o direito de violar a Convenção Americana de
Direitos Humanos e, como é cediço, não há (e nem pode
haver) direitos cujo exercício implica infração a normas jurí-
dicas. Desse modo, quando alguém brada ser possuidor do di-
reito de exterminar uma vida intrauterina, o que essa pessoa
pretende é, ao contrário dos seus pares, ter o direito de não su-
jeitar-se à força normativa do Pacto de São José da Costa Rica,
documento que está longe de ser uma mera carta de exortação
moral. O pretenso direito ao aborto não resiste a um controle de
convencionalidade e nem a uma filtragem convencional. Di-
reitos foram feitos para serem exercidos. O simples exercício
desse direito transmudaria em violável aquilo que a Constituição
Federal reputou como inviolável. E, verdade seja dita, nesse par-
ticular, sequer uma emenda teria poderes para suprimir essa cla-
ríssima proteção.

DA NECESSÁRIA CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO, À LUZ DA VE-


DAÇÃO À PROTEÇÃO INSUFICIENTE (UNTERMASSVERBOTE)

Discute-se se, a par da Constituição e da Convenção


Americana de Direitos Humanos, a repulsa ao abortamento de-
veria ser objeto de criminalização. Isso porque, em tese, o orde-
namento poderia repelir essa conduta com outros ramos do
Direito ou com medidas alternativas que inibissem a prática. Ingo
Wolfgang Sarlet não considera como necessária a proteção do
direito à vida intrauterina por meio do Direito Penal, desde que
outros meios eficazes garantissem a redução dos casos de
aborto e dos efeitos colaterais advindos do abortamento (v.g.

5Artigo 4º - Direito à vida. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida.
Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção.
Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente (negritamos).

15
risco de morte da gestante). Nem mesmo o Desembargador do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que perfilha uma cor-
rente francamente mais progressista, consegue vislumbrar como
possível o “direito fundamental ao aborto” (negritamos):

[...] entendemos ser difícil sustentar, no caso brasileiro, a exis-


tência de um direito fundamental ao aborto, o que, por sua vez,
não significa que a prática do aborto deva (necessariamente!) ser
sancionada na esfera criminal. (SARLET, 2015, p. 413).

Entendemos que a razão está com Paulo Gonet, para


quem a criminalização das condutas que exterminam a vida é re-
clamada pela ordem constitucional. Segundo o constitucionalista,
a gestante é um terceiro que não tem poder de disposição sobre
a vida do não nascido:

A vida humana – como valor central do ordenamento jurídico e pres-


suposto existencial dos demais direitos fundamentais, além de base
material do próprio conceito de dignidade humana – impõe medidas
radicais para a sua proteção. Não havendo outro meio eficiente
para protegê-la, a providência de ultima ratio da tipificação penal se
torna inescapável. Não havendo outra forma de se atender com efi-
cácia à exigência de proteção ao direito à vida, ordenada aos poderes
públicos, deverá o legislador lançar mão dos instrumentos do direito
penal. Assim, nos casos em que a vida se vê mais suscetível de ser
agredida, não será de surpreender que, para defendê-la, o Estado se
valha de medidas que atingem a liberdade de outros sujeitos de di-
reitos fundamentais. Justifica-se, então, que se incrimine o homi-
cídio, mesmo que o próprio legislador contemple circunstâncias que
devem ser consideradas com vistas a modular a aplicação da lei
penal. Justifica-se, da mesma forma, que se incrimine o aborto,
como medida indispensável para a proteção da vida humana in-
trauterina. A incriminação da conduta não apenas se presta para re-
primir o comportamento contrário ao valor central da vida para o
ordenamento jurídico, como, igualmente, contribui para que se torne
nítida a antijuridicidade do comportamento vedado. A inequívoca e
grave rejeição do aborto pela legislação penal deixa claro que tercei-
ros não têm poder de disposição sobre o ainda não nascido.
(MENDES et al., 2010, p. 448).

Merece relevo o fato de que ambos os constitucionalis-


tas, favoráveis ou não à criminalização do abortamento, são unâ-
nimes em não reconhecer a existência do fantasioso direito

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fundamental ao aborto. Trata-se de um imperativo lógico: o Di-
reito nem sempre é o que gostaríamos que ele fosse. O jurista
deve curvar-se à realidade. Como militante, qualquer pessoa
pode ser a favor de um direito ao aborto, mas, como operador
do Direito, convém perceber a realidade das coisas: o ordena-
mento nunca acolheu esse direito.

DIREITOS REPRODUTIVOS VERSUS DIREITO À VIDA: O


PRINCÍPIO DA CONCORDÂNCIA PRÁTICA E A PRESER-
VAÇÃO DO NÚCLEO ESSENCIAL

Um desacordo moral razoável demanda que ambas as


partes sejam ouvidas, para que se pluralize o debate. Ocorre
que, no tema do abortamento, uma das partes está naturalmente
emudecida. Isso gera um desequilíbrio argumentativo, porque
somente um lado tem voz para reclamar a titularidade de um pre-
tenso direito, ecoando sua pretensão em todos os recantos da
sociedade6. Na melhor das hipóteses, terceiros saem em socorro
dos direitos do nascituro e da mulher, mas a resistência legítima
ao abortamento, por parte de quem mais teria interesse em
(sobre)viver, não pode ser ouvida. Daí a importância de uma in-
clusão discursiva, efetuada nessa leitura de equilíbrio dos di-
reitos fundamentais. Na sagaz percepção de César Fiuza
(2016, p. 161), “a situação jurídica do nascituro será, assim, in-
tegrada por todos e por cada um de nós que temos interesse em
proteger o nascituro, por estarmos, desse modo, protegendo a
nós mesmos e a nossa descendência”.
O dilema em torno do aborto envolve necessariamente
uma restrição de direitos fundamentais, total ou parcial. Se as-
segurarmos a pretensão do nascituro, a mulher terá seus direitos
reprodutivos restringidos parcialmente. Noutra ponta, se o fiel da
balança pender para a pretensão da gestante, o feto sofrerá uma
restrição total do direito à vida. Nota-se que, em um simples co-
tejo dos direitos em jogo, ao se admitir o aborto, o direito à vida,

6“Se perguntássemos hoje a qualquer das pessoas, cujas mães pensaram no passado
em abortá-las, mas não sucumbiram à tentação, se gostariam de ter sido abortadas, a
resposta seria negativa, visto que agora têm defesa que à época não tinham, se
suas mães tivessem concretizado a intenção”. (MARTINS, 1991, p. 12).

17
que é condição para o desfrute dos demais, é aniquilado, ao
passo que os direitos reprodutivos são apenas restringidos. O
mais é eliminado, o menos é restringido. O desequilíbrio é mani-
festo. Trabalhando-se com uma ideia de que o direito à vida é
um direito preferencial, o peso argumentativo para afastá-lo ha-
veria de ser maior. No caso em apreço, a colisão demonstra que
o abortamento atingiria de maneira irreversível o núcleo essencial
do direito restringido, traduzindo um sacrifício.
Na Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, colhemos o ma-
gistério de Inocêncio Mártires Coelho (apud MENDES; BRANCO,
2015, p. 174), para quem o princípio da concordância prática consiste

numa recomendação para que o aplicador das normas constitucionais,


em se deparando com situações de concorrência entre bens constitu-
cionalmente protegidos, adote a solução que otimize a realização de
todos eles, mas ao mesmo tempo não acarrete a negação de nenhum.

A ideia basilar do princípio da concordância prática é a


de que o hermeneuta deve evitar o sacrifício integral dos di-
reitos em choque.
Explicando com precisão cirúrgica o caráter preferencial
do direito à vida, bem como a impossibilidade de uma concor-
dância prática no caso do aborto, porquanto o direito afastado
restaria sacrificado por completo, trazemos as lições de Paulo
Gonet (negritamos):

Ante a superioridade do valor da vida humana, a proibição do aborto,


com a tutela penal, deve subsistir, mesmo que confrontada com ou-
tros interesses, acaso acolhidos por outros direitos fundamentais.
Embora a gravidez também diga respeito à esfera íntima da mulher,
o embrião humano forma um ser humano distinto da mãe, com direito
à vida, carente de proteção eficaz pelos poderes públicos – não im-
portando nem mesmo o grau de saúde ou o tempo de sobrevivência
que se possa prognosticar para a criança por nascer. Daí a justifica-
ção da tutela penal, impeditiva de que o problema do aborto seja re-
conduzido a uma singela questão de autodeterminação da mãe –
qualquer que seja o estádio de desenvolvimento da gravidez. [...]
Bens juridicamente relevantes podem contrapor-se à continuidade da
gravidez. A solução cabível haverá de ser, contudo, a inexorável pre-
servação da vida humana, ante a sua posição no ápice dos valores
protegidos pela ordem constitucional. Veja-se que a ponderação do

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direito à vida com valores outros não pode jamais alcançar um equilíbrio
entre eles, mediante compensações proporcionais. Isso porque, na
equação dos valores contrapostos, se o fiel da balança apontar
para o interesse que pretende superar a vida intrautrerina o resul-
tado é a morte do ser contra quem se efetua a ponderação. Perde-
se tudo de um dos lados da equação. Um equilíbrio entre interesses
é impossível de ser obtido. (MENDES; BRANCO, 2015, p. 449).

A ponderação feita por Ingo Sarlet também conduz ao


mesmíssimo resultado, qual seja, pela relativização dos direitos
reprodutivos:

Mesmo para quem entende que existe um direito ao aborto, é preciso


considerar que, no plano da colisão da liberdade individual da mu-
lher com outros direitos e/ou bens jurídico-constitucionais, no-
tadamente a vida do nascituro, tal direito não se revela absoluto.
(SARLET et al., 2015, p. 413).

Não se trata de uma coincidência. O resultado foi alcan-


çado por ambos porque é isso que se extrai do equacionamento
dos “direitos” em jogo. Que restrição deveria ser imposta? Tolerar
temporariamente a existência de um convidado indesejado ou
morrer? Morrer parece exponencialmente mais gravoso que o in-
cômodo de tolerar a existência de outrem. Enquanto uma parte
luta para viver, a outra luta para não tolerar a vida de um terceiro.
Daí porque a ponderação legislativa foi a de manter o aborta-
mento no campo da ilicitude. De nossa parte, com a devida vênia
aos insignes constitucionalistas, entendemos que sequer há
colisão de direitos fundamentais a exigir o emprego da ferra-
menta da concordância prática. Na realidade, o abortamento
está fora do âmbito de proteção dos direitos reprodutivos.
Com apoio nas lições de Friedrich Müller, um pintor não
tem o direito de pintar um quadro no cruzamento de vias movi-
mentadas quando invoca o direito à liberdade artística. Um mú-
sico não pode realizar improvisações de trombone, à noite, sob
o argumento de que tem direito à liberdade artística. Nesses
casos, não há tensão de direitos fundamentais, mas sim condu-
tas alheias ao suporte fático da norma jusfundamental. De ma-
neira similar, o constitucionalista português José Carlos Vieira de
Andrade explica que o direito à liberdade religiosa não contempla

19
sacrifícios humanos; o direito de locomoção não ampara o an-
darilho que atravessa a rua em situação de nudez; a liberdade
artística não abrange a morte de um ator no palco; e o direito ao
casamento não dá supedâneo à poligamia. Acrescentamos, no
extenso rol doutrinário, que os direitos reprodutivos não com-
preendem o direito de abortar. Em todas essas casuísticas7, a
doutrina constitucionalista sugere que o direito invocado ja-
mais existiu (daí chamarmos de direito fundamental puta-
tivo), pois a norma nunca o contemplou para ser exercido
dessa maneira. São situações não abarcadas pelo âmbito de
incidência, o que não se confunde com a clássica colisão de
direitos fundamentais, cujo deslinde demanda a aplicação
da regra da concordância prática.

O VERDADEIRO CONTEÚDO DOS DIREITOS REPRODUTI-


VOS E O LEMA “MEU CORPO, MINHAS REGRAS” (MY
BODY, MY RULES)

O corpo do nascituro não se confunde com o corpo da


mãe, embora esteja inserido nele. Se realmente se tratasse do
mesmo corpo, o abortamento traduziria uma amputação. Parece
claro que não é disso que se cuida. Daí Paulo Gonet asseverar
que “o nascituro é um ser humano. Trata-se, indisputavelmente,
de um ser vivo, distinto da mãe que o gerou, pertencente à es-
pécie biológica do homo sapiens” (MENDES et al., 2010, p. 445).
O constitucionalista Alexandre de Moraes (2004, p. 66), por sua
vez, colaciona a advertência do biólogo Botella Lluziá:

Conforme adverte o biólogo Botella Lluziá, o embrião ou feto repre-


senta um ser individualizado, com uma carga genética própria, que
não se confunde nem com a do pai, nem com a da mãe, sendo ine-
xato afirmar que a vida do embrião ou do feto está englobada pela
vida da mãe.

7Os exemplos de Friedrich Müller e de José Carlos Vieira de Andrade são colacio-
nados por Virgílio Afonso da Silva em “O conteúdo essencial dos direitos fundamen-
tais e a eficácia das normas constitucionais”. (Revista de Direito do Estado 4, 2006,
p. 33/34).

20
Ives Gandra Martins (1991, p. 12), de maneira contun-
dente, esclarece:

Os argumentos, que têm sido trazidos à discussão, de que o aborto


não é atentado ao direito à vida, mas o exercício de um direito ao
corpo que a mulher possui, não prevalece, visto que se a própria na-
tureza feminina faz-lhe hospedeira do direito à vida de outrem, no mo-
mento em que a hospedagem se dá, já não é mais titular solitária,
que pertence também a seu filho. […] O corpo já não lhe pertence
por inteiro e o aborto, em tal caso representa, em verdade, um latro-
cínio, visto que ao assassinato do filho junta-se o roubo da parte do
corpo materno que de direito ao filho gerado pertencia.

Portanto, é verdade que a mulher tem direito sobre o pró-


prio corpo, mas não sobre o corpo do nascituro, que se diferencia
do dela e que só foi concebido por um convite. Tomemos um
exemplo: o proprietário de uma casa, localizada em um local de-
serto, é livre para incendiá-la. A casa é dele e está à sua dispo-
sição para ser destruída. No entanto, se esse proprietário convida
um amigo para morar no interior da casa, abrigando-o conforta-
velmente, não lhe é dado incendiar o imóvel enquanto essa pes-
soa estiver no recinto. Se o fizesse, repeliria mortalmente a
mesma pessoa que convidou, revelando uma contradição irra-
cional que o Direito cunhou de venire contra factum proprium,
isto é, um comportamento contraditório violador da boa-fé. Um
ilícito, noutras palavras. Vê-se, com uma clareza meridiana, que
convidar alguém para morar no útero e banir esse alguém das
próprias entranhas equivale a um abuso de direito que trans-
borda da ilicitude civil para alcançar a ilicitude criminal (aborto).

MEU CORPO, MINHAS REGRAS: AUTONOMIA OU SOBERANIA?

Ainda que o corpo do nascituro fosse idêntico ao corpo


da gestante, o abortamento não seria lícito. O corpo não é uma
propriedade privada onde o seu titular exerce soberania.
Temos autoridade sobre nosso corpo, temos autonomia sobre ele,
mas, definitivamente, não exercemos um poder soberano. O or-
denamento jurídico é explícito em subtrair um poder absoluto das

21
pessoas sobre o próprio corpo, por exemplo, quando estipula que
“é vedado à gestante dispor de tecidos, órgãos ou partes de seu
corpo vivo, exceto quando se tratar de doação de tecido para ser
utilizado em transplante de medula óssea e o ato não oferecer
risco à sua saúde ou ao feto” (art. 9º, §7º). O dispositivo legal
proíbe a gestante de dispor até mesmo de partes do seu corpo,
revelando insofismavelmente que a cosmovisão de Stuart Mill não
encontra guarida na ordem constitucional em vigor. O direito ao
próprio corpo, assim como todos os outros, não é um direito ab-
soluto, o que se comprova pela impossibilidade de comércio do
próprio sangue8 ou de locar o próprio ventre (barriga de aluguel).
Nas palavras da Promotora de Justiça Eliana Vendramini,
membro do Ministério Público de São Paulo, referindo-se ao tráfico
de órgãos, tecidos e partes do corpo humano, “corpos não são
propriedade privada”9. Para alguns, o tema abortamento tem po-
deres de devolver o Direito Constitucional para o final do século
XVIII, quando a propriedade era tida como um direito absoluto,
numa concepção individualista. Algumas pessoas olham para o
próprio corpo com os mesmos olhos com que os barões olhavam
para as suas terras, vale dizer, como se tivessem sobre elas um
direito sagrado e sem qualquer função social. A gestante que pre-
tende exterminar a vida alojada nas suas entranhas, a pretexto de
exercer um direito absoluto sobre o próprio corpo, comporta-se
como o proprietário que pretendia exercer o direito de propriedade
até o infinito, erigindo espetos para furar os balões que sobrevoas-
sem a coluna de espaço aéreo sobrejacente. Em suma, a ideia
subjacente ao lema “my body, my rules” (meu corpo, minhas re-
gras) remonta a um momento egoístico do constitucionalismo, que
não acomodava nenhum solidarismo. Vive-se em um Estado De-
mocrático de Direito (e deveres), não em um Estado Liberal clás-
sico. Quer se trate de homens ou de mulheres, ambos não podem
fazer com o próprio corpo o que lhes aprouver.

8 Art. 199, §4º, CF/88. A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem
a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pes-
quisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e
seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização (negritamos).
9 Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/06/140602_minis-

terio_publico_svo_usp_ orgaos_rs>.

22
DIREITOS REPRODUTIVOS

É importante fixar o significado da expressão direitos re-


produtivos. Qual o conteúdo e o alcance desses direitos? Os di-
reitos reprodutivos são direitos humanos e possuem duas
dimensões complementares, como duas faces de uma mesma
moeda10:

a) o livre exercício da sexualidade e da reprodução, abrangendo


o controle sobre a fecundidade (dimensão negativa): o Estado e
a sociedade não devem interferir na liberdade sexual, no número de
filhos, no intervalo entre os filhos etc.
b) direito à saúde e à educação, ambos na área sexual e repro-
dutiva (dimensão positiva): o Estado deve assegurar, por meio de
políticas públicas, informações, meios e recursos para o desempenho
qualitativo da sexualidade e da reprodução.

No campo da proteção internacional dos Direitos Huma-


nos, somente a Convenção sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Contra as Mulheres (1979) tratou
do tema, no art. 12:

§1. Os Estados Membros adotarão todas as medidas apropriadas


para eliminar a discriminação contra a mulher na esfera dos cuidados
médicos, a fim de assegurar, em condições de igualdade entre ho-
mens e mulheres, o acesso a serviços médicos, inclusive referentes
ao planejamento familiar.
§2. Sem prejuízo do disposto no parágrafo 1º, os Estados Membros
garantirão à mulher assistência apropriada em relação à gravidez, ao
parto e ao período posterior ao parto, proporcionando assistência gra-
tuita quando assim for necessário, e lhe assegurarão uma nutrição
adequada durante a gravidez e a lactação.

Juridicamente, é tudo o que se tem. Na tentativa de en-


riquecer o conteúdo dos direitos reprodutivos, duas declarações
foram elaboradas: o Plano de Ação da Conferência sobre Popu-
lação e Desenvolvimento do Cairo, de 1994, e a Declaração e

10PIOVESAN, Flavia. Direitos Reprodutivos como Direitos Humanos. Disponível em:


<http://siteantigo.mppe.mp.br/uploads/p1KdxISyI758jG-
2x2XOxQ/oQBSFV2tIXvW3yLQu7NdnQ/Artigo _-_Direitos_reprodutivos_como_di-
reitos_humanos_-_Flv.doc>.

23
Plataforma de Ação de Pequim, de 1995, nenhuma delas com o
status de tratado internacional, mas com um significado simbólico
interpretativo. Pois bem.
À luz do arcabouço normativo mencionado, é possível
extrair um direito ao descarte da vida intrauterina? Estamos
convencidos de que não. Em apreço aos seus direitos reproduti-
vos, a mulher tem à sua disposição uma gama diversificada de
técnicas anticoncepcionais, dentre elas, preservativos, pílulas, dis-
positivo intrauterino (DIU), coito interrompido, método Ogino-
Knaus, e até processos químicos etc.(KRYMCHANTOWSKI, 2013,
p. 206). Com um acervo tão rico à sua disposição, gratuitamente,
como, aliás, é dever do Estado, não há chamar alguém à existên-
cia e depois contradizer-se, para expelir fatalmente o convidado
(venire contra factum proprium).
Na sua dimensão negativa, os direitos reprodutivos su-
jeitam-se à preclusão lógica. No livre exercício da sua fecundi-
dade, a mulher opta se deseja exercer ou não o seu direito de
engravidar, no momento e na forma que lhe aprouver. Feita
essa escolha, os direitos reprodutivos foram exercidos e se
consumaram11. A partir de então, se o abortamento estivesse
abrangido pela sua autodeterminação, a rubrica deveria ser di-
reitos destrutivos, e não direitos reprodutivos. Como o próprio
nome revela, os direitos reprodutivos estão ligados à ideia de re-
produção, isto é, de multiplicar, de procriar, de gerar, de construir,
não de eliminar, aniquilar ou destruir.
Um exemplo do raciocínio lógico pode ser extraído do
processo penal. O Ministério Público tem o direito de recorrer.
Uma vez interposto o recurso, não tem o direito de desistir dele.
Nem por isso se diz que a impossibilidade de desistência fere o
seu direito de recorrer. Semelhantemente, a mulher tem o direito
de engravidar (direitos reprodutivos). Uma vez grávida, não tem

Após a gravidez, só faz sentido falar em direitos reprodutivos na dimensão positiva,


11

vale dizer, nas políticas públicas de assistência apropriada em relação à gravidez,


ao parto e ao período posterior ao parto, proporcionando assistência gratuita quando
assim for necessário, e lhe assegurando uma nutrição adequada durante a gravidez
e a lactação, na forma do art. 12, §2º, da Convenção onusiana. Bem se vê, o espírito
do referido Tratado de Direitos Humanos remete à vida (e não à morte), ao falar cro-
nologicamente de gravidez, nutrição, parto e lactação. A lógica da convenção aludida
é vida digna da mãe e do filho.

24
o direito de desistir. Da mesma forma, isso não fere o seu direito
de engravidar (direitos reprodutivos). O fato de o Ministério Pú-
blico não ser detentor do direito de desistir dos recursos, volunta-
riamente interpostos, não prejudica em nada o seu direito de
recorrer, tanto quanto a impossibilidade de a mulher desistir da
gravidez, que espontaneamente providenciou, absolutamente não
interfere no seu direito de engravidar (ou seja, nos seus direitos
reprodutivos). Em suma: a proibição de eliminar a vida intraute-
rina não prejudica a liberdade de engravidar, isto é, de exercer
seus direitos reprodutivos, posto que já fruiu do exercício desse
direito em momento anterior.

VIDA: UM CONCEITO LÓGICO-JURÍDICO, E NÃO JURÍDICO-


POSITIVO

No Direito Constitucional brasileiro, não há uma simetria


perfeita entre o início da vida e o seu fim. O fim do ser humano é
indicado pela Lei n. 9.434/97, que aponta a morte encefálica.
Sendo assim, de maneira precipitada, muitos cometem o equí-
voco de efetuar uma leitura a contrario sensu da norma, para
concluir que a gênese da vida é a formação do sistema nervoso
central. Isso porque, se a morte é quando se tem por interrom-
pida a atividade cerebral, não haveria vida antes de iniciada esta
atividade.
O primeiro erro técnico é que essa interpretação é incon-
vencional, ou seja, violadora da Convenção Americana de Direi-
tos Humanos, de envergadura supralegal, que estipula ser a vida
protegida em momento bem anterior: desde a concepção (art.
4º.1). Logo, não há como extrair um conceito legal, a contrario
sensu, que conspurque norma hierarquicamente superior. De-
mais disso, o segundo erro consiste em interpretar a Constituição
Federal a partir de conceitos trazidos por uma lei infraconstitu-
cional. Uma das lições mais elementares da hermenêutica cons-
titucional é aquela pela qual a lei não tem poderes para alterar
conceitos estipulados na Carta Magna, porquanto equivaleria a
uma reforma constitucional escamoteada, levada a efeito por
(man)obra ilegítima do legislador. Este não pode alterar conceitos

25
constitucionais. Pergunta-se: em 5 de outubro de 1988, por ocasião
da promulgação da Constituição, ao positivar a inviolabilidade do di-
reito à vida, a intenção do constituinte foi desabrigar fetos com o sis-
tema nervoso em formação? É o que se alcançaria à luz do princípio
da máxima efetividade das normas constitucionais? Tal exegese res-
tritiva implicaria aplicar a Constituição conforme a lei, e não a lei con-
soante a Constituição. A se admitir que conceitos constitucionais
sejam modificados por definições legais, o legislador receberia um
cheque em branco para arbitrariamente alterar o significado de con-
ceitos protegidos pelo constituinte, ao seu alvedrio.
A questão que se nos apresenta é: o legislador poderia,
ao seu talante, fixar a gênese da vida como a partir da concep-
ção, da nidação, da formação do córtex cerebral ou do nasci-
mento?12 Os congressistas foram presenteados pela Constituição
com essa liberdade? Essa anarquia conceitual investiria parla-
mentares de um poder desmedido, para além do bem e do mal.
Bastaria que invertessem, por intermédio da lei, a definição do
que é dia e do que é noite, para virar de ponta cabeça a inviola-
bilidade de domicílio constitucionalmente assegurada (art. 5º, XI,
CF/88). Como se vê, um conceito legal não pode alterar o signi-
ficado de palavras constitucionais para desvirtuá-las daquilo que
semanticamente se espera, com mais razão não poderá fazê-lo
uma ilação a contrario sensu da definição infraconstitucional de
morte encefálica. A vida é um conceito lógico-jurídico, e não jurí-
dico-positivo. Sua validade é delineada pela Ciência, não pelo
Direito. Definitivamente, a Lei n. 9.434/97 está muito aquém do
necessário para fornecer com segurança quando se tem por vivo
o ser humano13. E é de bom alvitre fazer uma advertência de

12 Na opinião médica de Genival Veloso de França, “[s]e a vida humana se inicia na


fecundação, na nidação, na formação do córtex cerebral ou até após o nascimento,
é mais uma questão de interesses apenas de princípios. A definição de início da
vida humana não pode ter como explicação tão somente fundamentos técnicos ou
estágios embriológicos, pois o ser humano tem um valor integral. Ele é detentor de
uma dignidade própria e não se submete a critérios avaliativos dessa ou daquela
ordem, senão ao seu próprio valor. Tem ele um patrimônio moral que aponta seu
destino e determina sua dignidade. A defesa e a proteção da pessoa humana, na
dimensão que se espera dos direitos humanos, exige, no mesmo sentido e nos
mesmos valores, o reconhecimento de todos aqueles que se encontram em qual-
quer estágio de vida, inclusive no estado embrionário” (FRANÇA, 2015, p. 321).
13 No mesmo sentido aqui defendido, isto é, o de que a Constituição não pode ser

26
ordem documental: a certidão de óbito não pode ser expedida
pelo médico, mesmo diante da morte cerebral, quando ainda não
cessadas as funções respiratórias (FIUZA, 2016, p. 157). Se a
expedir, será apenas para fins de transplante de órgãos, não para
o sepultamento, providência esta que não tem lugar enquanto
não interrompidas as funções cardiorrespiratórias, donde se con-
clui que o marco legal é uma ficção endereçada ao transplante
de componentes do corpo humano. Nada além disso.
Paulo Gonet, ex-Procurador Geral da República, é con-
tundente (MENDES et al., 2010, p. 446): “[o] direito à vida tem na
fecundação o seu termo inicial e na morte o seu termo final”. Se-
gundo o publicista, a lei infraconstitucional é inidônea para fixar
arbitrariamente o momento inicial da vida. Ademais, para ele,
avilta a dignidade humana e o princípio da isonomia sonegar dos
nascituros o direito fundamental mais primevo. Igualmente reco-
nhecendo a ilegitimidade da lei infraconstitucional para indicar,
com precisão, a gênese da vida, o constitucionalista Alexandre
de Moraes (2004, p. 66) busca subsídios científicos na biologia
para compreender que esse momento corresponde à nidação
(negritamos):

O início da mais preciosa garantia individual deverá ser dado


pelo biólogo, cabendo ao jurista, tão-somente, dar-lhe o enquadra-
mento legal, pois do ponto de vista biológico a vida se inicia com
a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, resultando um ovo

lida a partir de leis infraconstitucionais que restrinjam arbitrariamente o momento da


gênese da vida, confira-se a opinião abalizada de Paulo Gonet, em obra escrita, à
época, com Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho (negritamos):
“Onde, pois, houver um ser humano, há aí um indivíduo com o direito de viver,
mesmo que o ordenamento jurídico não se dê ao trabalho de o proclamar ex-
plicitamente. [...] Não se há de condicionar o direito à vida a que se atinja determi-
nada fase de desenvolvimento orgânico do ser humano. Tampouco cabe
subordinar esse direito fundamental a opções do legislador infraconstitucional
sobre atribuição de personalidade jurídica para atos da vida civil. O direito à vida
não pode ter o seu núcleo essencial apequenado pelo legislador infraconsti-
tucional – e é essa a consequência constitucionalmente inadequada que se
produziria se se partisse para interpretar a Constituição segundo a legislação
ordinária, máxime quando esta não se mostrar tão ampla como exige o integral
respeito do direito à vida. Havendo vida humana, não importa em que etapa de
desenvolvimento e não importa o que o legislador infraconstitucional dispõe
sobre personalidade jurídica, há o direito à vida.” (MENDES et al., 2010, p. 444).

27
ou zigoto. Assim, a vida viável começa com a nidação, quando
se inicia a gravidez. [...] A constituição, é importante ressaltar, pro-
tege a vida de forma geral, inclusive uterina.

Consoante o pronunciamento do antigo catedrático em


Obstetrícia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Professor
Otávio Rodrigues Lima, por ocasião da VII Reunião Mundial da Fe-
deração Internacional de Planejamento Familiar14 (destacamos):

O nascimento de uma criatura é o ponto terminal de um longo cami-


nho, que começa pela preparação dos elementos masculinos (esper-
matogênese) e femininos (ovogênese). A fecundação transformaria
esses dois em um só: o ovo, contendo um potencial energético insu-
ficiente para prosseguir seu desenvolvimento, somente poderá con-
tinuar se novos elementos, nutritivos forem obtidos pela nidação, ou
seja, pela fixação do ovo ao organismo da mulher. Neste momento
começa a gravidez, que terminará com o parto. [...]
Em que instante a vida biológica se transformaria em vida hu-
mana? Poder-se-ia responder dizendo que o início da gravidez,
isto é, o momento em que o blastocisto se une ao meio interno
materno – a nidação – marcaria esta distinção. Esta é a opinião de
um grande número de ginecólogos modernos. (MAIA, 2007, p. 48-49).

À vista do exposto, entende-se nesse arrazoado que a


gênese da vida tem início com a nidação. Não há, pois, parale-
lismo conceitual entre a vida e a morte no campo jurídico.

ASPECTOS PROCESSUAIS E DE MÉRITO

O tema em apreço é de domínio obrigatório por parte de


membros do Ministério Público brasileiro, não apenas em razão
das causas criminais, mas, sobretudo, nas causas cíveis enfren-
tadas no âmbito da jurisdição voluntária15, quando o parquet
será instado a exarar um parecer acerca do assunto. Quanto ao

14 As palavras do Professor Otávio Rodrigues Lima foram endossadas por George


Doyle Maia, Professor Livre-Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
nesta obra científica minuciosa acerca da Embriologia Humana.
15 No Novo Código de Processo Civil, as autorizações de abortamento terapêutico

continuam submetidas ao procedimento de jurisdição voluntária, em face da inexis-


tência de previsão especial (MARINONI et al., 2015, p. 141).

28
juízo competente para a expedição do alvará de interrupção da
gravidez, a matéria dependerá da organização judiciária regional,
mas o tecnicamente correto é que a competência seja da vara
criminal16, porque a questão posta em juízo necessariamente en-
volverá a análise de excludentes legais ou supralegais de ilicitude.
Engana-se quem supõe que a decisão do STF, na ADPF n. 54,
colocou uma pá de cal nas ações que postulam a expedição de
alvará judicial para a “interrupção terapêutica do parto”.

DO INTERESSE DE AGIR: O DILEMA DO DIREITO CONSTITU-


CIONAL À ESCUSA DE CONSCIÊNCIA (ART. 5º, VI E VIII, CF/88)

Em princípio, nenhuma das hipóteses admitidas pelo or-


denamento ou pela jurisprudência do STF reclamam a prévia au-
torização judicial. Assim, pelo menos de início, em se tratando de
abortamento lastreado em violência sexual, risco de morte ou anen-
cefalia, falecerá à requerente interesse de agir, porquanto o sistema
jurídico já permite o procedimento sem que se busque guarida no
Judiciário. Se, por exemplo, postularem a expedição de um alvará
que permita a interrupção da gravidez de um feto anencefálico, ine-
xistindo prova da recusa médica em realizar o procedimento, o Juiz
deve extinguir o feito pela patente carência da ação.
Porém, o interesse de agir pode nascer diante de uma
recusa médica. Nesse caso, caberá ao magistrado aquilatar as
razões da recusa, dirimindo o conflito. Figure-se, ilustrativamente,
que uma gestante relate ter sofrido abusos sexuais, mas as cir-
cunstâncias do caso concreto indiquem que essa versão é digna
de pouca credibilidade. Ante a negativa dos médicos, a dúvida
pode ser dirimida por meio de uma ação judicial.
Também será possível que profissionais da rede pública
se neguem a realizar o abortamento porque não são unânimes em
reconhecer o suposto risco de morte ao qual a gestante se sujeita.
A propósito, a literatura médica especializada revela que os casos
de risco de morte, na prática, são raríssimos. Consoante as pon-
derações de Delton Croce e Delton Croce Júnior (2012, p. 562):

16 Assim o é, por exemplo, no TJ/GO e no TJ/MS.

29
[...] sabemos, motu proprio, que o médico probo nem a dedo conta,
em seu atendimento diário às gestantes, ao longo dos anos, as mal
definidas situações indiscutíveis de real indicação do aborto neces-
sário ou terapêutico. Assim é que, em trinta e oito anos ininterruptos
de profissão, não tivemos nenhum caso de indicação médica de
aborto necessário ou terapêutico pela mãe se encontrar em iminente
perigo de vida determinado pelo binômio feto-placentário. Destarte,
antes de aplaudir intempestivamente o aborto amparado por lei de-
vemos considerar que o progresso vertiginoso da Medicina limita, a
cada dia, as suas indicações (se é que à vista de honesto rigorismo
clínico elas existem). Assim é que atendemos gestantes cardíacas,
(uma delas com dupla lesão mitral), que deram à luz por parto natural
e por cesarianas, com êxito feliz para o binômio materno-fetal.

Como se vê, também nesse caso a postulante terá opor-


tunidade de demonstrar, judicialmente, que sua gravidez se
amolda à hipótese legal mencionada, que é de dificílima configu-
ração prática. Se o provar, insofismavelmente, o alvará judicial
poderá ser expedido.
No campo da anencefalia, é possível, por exemplo, que
somente um médico da comarca concorde em assinar o diagnós-
tico17. Em tese, também pode ocorrer de um médico particular
subscrever o laudo, mas a sua contratação remunerada desper-
tar a desconfiança do profissional do SUS, que acaba por se
negar a subscrever o laudo. Todas essas situações consubstan-
ciam recusas a serem dirimidas na via judicial, portanto, verifica-
se nelas o interesse de agir.
Não obstante, também há recusas médicas idôneas. A
depender do caso concreto, a recusa pode fundar-se no direito
constitucional à objeção de consciência (art. 5º, VI e VIII, CF/88),

17 A Resolução n. 1989/2012 do Conselho Federal de Medicina, que dispõe sobre o


diagnóstico de anencefalia, exige a assinatura de dois médicos. A leitura da norma
é imprescindível antes de qualquer manifestação ministerial sobre o tema. No seu
artigo 2º, dispõe: “Art. 2º O diagnóstico de anencefalia é feito por exame ultrasso-
nográfico realizado a partir da 12ª (décima segunda) semana de gestação e deve
conter: I - duas fotografias, identificadas e datadas: uma com a face do feto em po-
sição sagital; a outra, com a visualização do polo cefálico no corte transversal, de-
monstrando a ausência da calota craniana e de parênquima cerebral identificável;
II - laudo assinado por dois médicos, capacitados para tal diagnóstico” (negritamos).
A compilação é extraída da excelente obra de Medicina Legal escrita por Delton
Croce e Delton Croce Júnior (CROCE; CROCE JR., 2012, p. 575).

30
algo muito comum em nosocômios católicos ou protestantes.
Nesse caso, não se pode compelir uma instituição hospitalar re-
ligiosa a vilipendiar seu credo institucional, devendo, pois, a
ordem ser cumprida em uma Instituição Pública ou privada que
aceite realizar o procedimento médico. A decisão da mulher é
pessoal e de foro íntimo, não podendo ser estendida para tercei-
ros que não comungam da sua cosmovisão. A laicidade do Es-
tado impõe o respeito a todos os credos, devendo ser reputada
como legítima essa abstenção hospitalar.
Ademais, até mesmo médicos ateus ou agnósticos
podem se recusar, legitimamente, ao abortamento. É um erro
crasso supor que somente pessoas religiosas são contra o abor-
tamento de seres humanos. Ateus podem ser contrários a essa
prática, afinal, para ser politicamente desfavorável ao aborta-
mento, basta ter apreço pela vida. O Código de Ética Médica,
norma endereçada a todos os profissionais da medicina, indepen-
dentemente do credo que venham a professar, reconhece-lhes o
direito de “recusar a realização de atos médicos que, embora per-
mitidos por lei, sejam contrários aos ditames de suas consciên-
cias” (art. 28, destacamos). Como proclama a Declaração de
Genebra, “manterei o mais alto respeito pela vida humana, desde
a concepção”. Com arrimo no juramento de Hipócrates, “também
não fornecerei a uma mulher pessário abortivo”18. Bem se vê, o
profissional de medicina é, por definição, um jurado defensor da
vida humana, razão pela qual pode rebelar-se contra o aborta-
mento, mesmo nas hipóteses autorizadas pela lei ou pela cons-
trução pretoriana do STF. Por óbvio, a objeção de consciência é
inaplicável quando a mulher grávida correr risco de morte, em-
bora, repita-se, seja situação de raríssima configuração prática.
Em síntese, nas ações de alvará para interrupção de gravidez, só
haverá interesse de agir diante de dúvida fundada quanto às hi-
póteses ou de recusa médica infundada.

A compilação é extraída da excelente obra de Medicina Legal escrita por Delton


18

Croce e Delton Croce Júnior (CROCE; CROCE JR., 2012, p. 575).

31
DA IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO: FETOS COM
MICROCEFALIA E O ABORTAMENTO EUGENÉSICO

Por vezes, a situação submetida em juízo versa sobre hi-


pótese sobremodo aproximada da anencefalia, mas que com ela
não se confunde. Figura-se, por exemplo, um feto que padece de
exencefalia. Nesse caso, o cérebro se desenvolve fora da calota
craniana, em contato com o líquido amniótico, degenerando-se
gradualmente. Inúmeros outros casos distintos da anencefalia
foram submetidos ao Judiciário, dentre eles, a síndrome de Ed-
wards, holoprosencefalia, osteogênese imperfeita e até mesmo
gêmeos xifópagos. Em todos esses casos, inexiste possibilidade
jurídica do pedido. Simplesmente, o ordenamento não os con-
templa, e o silêncio é eloquente, donde se conclui que não há
permissivo constitucional para o abortamento de fetos que pade-
cem de microcefalia.
A microcefalia representa uma malformação congênita,
cuja marca singular é o subdesenvolvimento do perímetro cefá-
lico, que terá uma dimensão aquém dos trinta e três centímetros.
Nesse caso, há cérebro e vida extrauterina viável. Logo, a hi-
pótese é absolutamente distinta daquela enfrentada pelo STF na
ADPF n. 54. Cuida-se, na espécie, de um abortamento eugené-
sico, assim conceituado como a “privação dolosa do nascimento
do ser humano presumivelmente portador de taras hereditárias”
(CROCE; CROCE JR., 2012, p. 562).
De todas as modalidades de abortamento, sem dúvidas,
o eugenésico é o mais utilizado como forma de extermínio de po-
pulações indesejadas por uma parcela mais insensível da socie-
dade. Noutra formulação: o abortamento eugenésico, como é
aquele vindicado por quem busca abortar fetos microcefálicos,
está a serviço de um genocídio de deficientes físicos. A pretexto
de conferir liberdade à mulher gestante, o fim colimado pode ser
simplesmente impedir o nascimento de pessoas portadoras de
taras hereditárias. Ou seja, a situação é ainda menos humanitária
do que o pleito de abortamento de fetos saudáveis, pois, nesse
caso, a deficiência não se aloja na causa de pedir. Os pedidos
de interrupção de gravidez lastreados na microcefalia são indis-
cretos quanto aos propósitos do postulante: visam à eliminação

32
do futuro encargo de velar pela existência digna de um portador
de deficiência.
É consabido que, numa sombria concepção utilitarista,
os deficientes são sobremodo mais vulneráveis no que diz res-
peito ao direito à vida. A história da humanidade o revela, mor-
mente as agruras do nazismo. Curiosamente, a legislação
nazista excepcionou a proibição do aborto, desde que a letali-
dade recaísse sobre pessoas não pertencentes ao povo alemão,
exatamente como forma de conter a multiplicação social de pes-
soas tidas como indesejáveis por Adolf Hitler. É o que se colhe
dos escritos de Hans Welzel (1951, p. 12):

El nacionalsocialismo realizó efectivamente esta idea: cuando en los


años de guerra, millones de obreros del este fluyeron a Alemania, el
ministro de Justicia del Reich fue autorizado, por ordenanza de l9 de
marzo de 1943, para exceptuar a las personas no pertenecientes al
pueblo alemán de la prohibición del aborto. Como el Estado no tenía
interés en el aumento de estos pueblos extranjeros, dejó en ellos el
aborto libre de pena.

Aparentemente, uma medida liberal. Na prática, um


plano para exterminar seres humanos. É a liberdade sendo
usada como um instrumento de morte. O que prestava obséquio
aos direitos humanos? Proibir ou excepcionar a proibição do
aborto? Toda violação de direitos humanos se faz acompanhar
de um discurso legitimador. Usualmente, o discurso legitimador
é supostamente mais humanitário que a medida a ser justificada,
mas tudo não passa de uma simulação.
Em tempos como os atuais, em que o óbvio precisa ser
explicitado, convém lembrar o teor da Convenção Internacional
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo
Facultativo, assinados em Nova York (2007): “Os Estados Par-
tes reafirmam que todo ser humano tem o inerente direito à vida
e tomarão todas as medidas necessárias para assegurar o efe-
tivo exercício desse direito pelas pessoas com deficiência, em
igualdade de oportunidades com as demais pessoas” (art.
10, destacamos). A norma sobredita, de envergadura constitu-
cional, proclama o óbvio: o direito à vida dos deficientes, como
algo inerente, isto é, imanente, intrínseco a todas as pessoas.

33
Discorrendo a respeito do raciocínio utilitarista no abortamento,
pondera Ives Gandra Martins (destacamos):

Nem se argumente que tal concepção é forma de permitir a sobrevi-


vência dos demais, nos lares com muitos filhos, ou de evitar-se a ex-
plosão demográfica, visto que, a partir de tal concepção, forma de
reduzir a população humana seria eliminar também os velhos,
os inúteis, os doentes, aqueles que são um peso para a socie-
dade.
Em tal hipótese, o ser humano deveria ser útil, como o é um
touro reprodutor, que, enquanto serve deve viver, mas, passada
a época de reprodução, é levado para o corte. O utilitarismo do
ser humano, transformado em máquina social, teria idêntico tra-
tamento ofertado ao gado, nas fazendas de seus criadores.
(MARTINS, 1991, p. 11).

Ora, a reflexão acima, efetuada em 1991, é atemporal e


se encaixa como uma luva nos tempos hodiernos. Pessoas com
microcefalia não são menos importantes que quaisquer outras.
Pessoas não têm preço, mas sim dignidade19. Outrossim, ainda
que a mãe não deseje educar o filho que voluntariamente cha-
mou à existência, desprezando-o covardemente em razão da mi-
crocefalia, o ordenamento jurídico permite que a criança seja
entregue para adoção. Com apoio no art. 13, parágrafo único, do
Estatuto da Criança e do Adolescente, “as gestantes ou mães
que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção
serão obrigatoriamente encaminhadas à Justiça da Infância e da
Juventude”. A norma fulmina a pretensão deduzida em juízo de
abortamento de fetos microcefálicos cuja causa petendi seja de
índole econômica.
Bem colocada a questão, é hora de sistematizar o as-
sunto: não se pode dizer que há uma posição institucional do Mi-
nistério Público, de maneira definida, sobre o debate em torno do

19Nas palavras de Kant, citado por Ingo Wolfgang Sarlet: No reino dos fins tudo tem
ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em
vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de
todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade [...] Esta
apreciação dá pois a conhecer como dignidade o valor de uma tal disposição de
espírito e põe-na infinitamente acima de todo o preço. Nunca ela poderia ser posta
em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse um preço, sem de qualquer
modo ferir sua santidade (SARLET, 2012, posição 547 – Kindle Edition).

34
aborto, que resvala no que se tem convencionado chamar de de-
sacordo moral. Vozes autorizadas se posicionaram pela proteção
intransigente do direito à vida intrauterina, a exemplo de Cláudio
Lemos Fonteles e Antonio Fernando Barros e Silva de Souza,
membros que já ocuparam o cargo de Procurador Geral da Re-
pública. Diversamente, Deborah Macedo Duprat de Brito Pereira,
também na condição de Procuradora-Geral da República, exarou
parecer favorável ao abortamento de fetos anencefálicos, las-
treado nos direitos reprodutivos da mulher20. Ainda que houvesse
uma posição unânime no Ministério Público sobre esse tema tão
controverso, à luz da independência funcional, os membros do
parquet continuariam livres para uma manifestação conforme os
ditames de suas consciências jurídicas. Todavia, essa liberdade
não deve ser desvirtuada como um cheque em branco para que
atuem ao arrepio da lei que juraram (fazer) cumprir.
Como fiel guardião da ordem jurídica, cabe ao presen-
tante do Ministério Público fazer valer o ordenamento jurídico em
vigor, tal como democraticamente elaborado, não devendo aven-
turar-se na tentativa de corrigi-lo para adequá-lo ao seu senti-
mento pessoal ideológico21. Lembramos, pois, do princípio das
razões públicas (John Rawls). Ou seja, mesmo que o promotor
de justiça ou procurador da república carregue consigo a ideolo-
gia de que o aborto não deveria ser criminalizado, o fato é que o
foi. Bem ou mal, doa a quem doer, no Brasil, em regra, o aborto
é crime. Para autores como Ingo Sarlet, nada impediria a sua
descriminalização, não obstante, a conduta atualmente está tipi-
ficada, realidade perante a qual todos devem se curvar. Logo,

20 ADPF n. 54.
21No passado, em um momento de autocontenção, o Superior Tribunal de Justiça
já assinalou: “3. A legislação penal e a própria Constituição Federal, como é sabido
e consabido, tutelam a vida como bem maior a ser preservado. As hipóteses em
que se admite atentar contra ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se
interpretação extensiva, tampouco analogia in malam partem. Há de prevalecer,
nesse casos, o princípio da reserva legal. 4. O Legislador eximiu-se de incluir no rol
das hipóteses autorizativas do aborto, previstas no art. 128 do Código Penal, o caso
descrito nos presentes autos. O máximo que podem fazer os defensores da conduta
proposta é lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado, intérprete da Lei,
que se lhe acrescente mais uma hipótese que fora excluída de forma propositada
pelo Legislador” (HC n. 32.159/RJ, j. em 22/03/2004).

35
guardando-se fidelidade à lei, a regra é que, na jurisdição volun-
tária, o parecer ministerial seja desfavorável à pretensão de eli-
minar a vida intrauterina, seja pela impossibilidade jurídica do
pedido (v.g. abortamentos eugênicos, a exemplo da microcefalia),
seja porque, a despeito de amoldar-se às exceções legais, falece
ao postulante o interesse de agir (afinal, como regra, as hipóteses
autorizadas pelo ordenamento dispensam autorização judicial).
Sobrevindo fundada dúvida quanto ao caso concreto ou, con-
quanto nítido, diante de infundada recusa médica, cabe ao Ministé-
rio Público aderir à pretensão deduzida, quando inequivocamente
lastreada nas hipóteses do Código Penal ou na exata situação
da ADPF n. 54 (não em hipóteses aproximadas). Fora dessas hi-
póteses, o parecer ministerial favorável será contra legem e, por-
tanto, desaconselhável (para não dizer juridicamente
equivocado). Todo cuidado é pouco, porque, em alguns casos,
não é dado ao membro do Ministério Público o direito humano
de errar, sobretudo quando esse erro humano aniquila outro ser
humano. É impossível, nesse caso, restituir o status quo.
Quando o assunto é aborto, não se admitem erros.

36
REFERÊNCIAS

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WELZEL, Hans. La teoría de la acción finalista. Buenos Aires:


Depalma, 1951.

38
João Carlos Leal Júnior*

MOROSIDADE DO JUDICIÁRIO E OS IMPACTOS NA


ATIVIDADE EMPRESARIAL EM UM DIÁLOGO COM
O SISTEMA PROCESSUAL CIVIL INGLÊS

JUDICIARY DELAY AND ITS IMPACTS ON BUSINESS ACTIVITY


IN A DIALOGUE WITH THE BRITISH CIVIL PROCEDURAL SYSTEM

LA LENTITUD DEL SISTEMA JUDICIAL Y EL IMPACTO


SOBRE LA ACTIVIDAD EMPRESARIAL EN UN DIáLOGO
CON EL PROCESO CIVIL INGLéS

Resumo:
Com a promulgação da Emenda Constitucional n. 45/04, o direito à
razoável duração do processo foi incluído, sob a forma de norma prin-
cipiológica, no rol de direitos fundamentais da Constituição brasileira.
O desígnio do constituinte foi alcançar celeridade no trâmite do pro-
cesso, o qual, por sua vez, constitui instrumento para concretização
de direitos. A realização do princípio em questão é essencial para o
real acesso à ordem jurídica justa, imperativo igualmente de assento
constitucional. Todavia, no cenário brasileiro contemporâneo, o que
se tem, em verdade, é indiscutível lentidão no trâmite processual, o
que causa desprestígio ao Judiciário e macula o fundamento existen-
cial da tutela pretendida, porquanto sua duração desarrazoada, oca-
sionalmente, tem o condão de permitir o fenecimento do bem da vida
pleiteado. No âmbito empresarial, os impactos da morosidade da res-
posta estatal são incomensuráveis, representando prejuízo para as
empresas e para os interesses que para elas convergem, além de
gerar óbices para a inserção do país no mercado global, objetivo tão
almejado na contemporaneidade. A incorporação de elementos e téc-
nicas existentes no sistema processual inglês pode se mostrar útil
na agilização procedimental e consequente mitigação dos impactos
em comento.

*Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina/PR. Professor


de Direito Processual Civil na Faculdade Catuaí de Cambé/PR.

39
Abstract:
By the promulgation of constitutional amendment 45/04, the right to a
reasonable duration of proceedings has been included, as a principle,
among the fundamental rights of Brazilian Federal Constitution. The
constitutional intent was to mitigate the delay in the duration of proce-
dure, which, in its turn, is an instrument to concrete rights. The reali-
zation of that principle is essential to a real access to justice, equally
a constitutional imperative. However, there is, currently, in Brazil, in
fact, an indubitable delay in the procedures duration, which causes
discredit to the Judiciary and stains the existential basis of the intended
protection, since its unreasonable duration, occasionally, has the effect
of causing the extinction of the good sought. Within business context,
the impacts of judicial delay are incommensurate, representing da-
mage to companies and to the interests that converge to it, besides
generating obstacles for the country’s insertion in the global market.
The incorporation of elements and techniques available in English
procedure system may be helpful in procedural speeding up and con-
sequent mitigation of the impacts in discussion.

Resumen:
Con la promulgación de la Enmienda Constitucional N. 45/04, se in-
cluyó el derecho a la duración razonable del procedimiento, en forma
de principio, a la lista de derechos fundamentales de la Constitución
brasileña. El objetivo era lograr el rápido procesamiento del proceso,
lo que, a su vez, es el instrumento para la realización de los derechos.
La aplicación del principio es esencial para un verdadero acceso a la
justicia, también de asiento constitucional. Sin embargo, en la sociedad
brasileña contemporánea, hay, de hecho, indiscutible lentitud del pro-
cedimiento, lo que provoca el descrédito al poder judicial y socava el
fundamento existencial de la protección deseada, debido a su duración
irrazonable de vez en cuando tiene el poder para permitir la pérdida
del bien de la vida que se reivindica. En el contexto empresarial, el im-
pacto de la lenta respuesta del estado és inconmensurable, lo que re-
presenta el daño a las empresas y los intereses que convergen a la
misma, y generan obstáculos para la inserción del país en el mercado
mundial. La incorporación de elementos y técnicas existentes en el
sistema procesal inglés puede resultar útil en la agilización del proce-
dimiento y la consiguiente mitigación de los impactos en discusión.

40
Palavras-chave:
Razoável duração do processo; acesso à justiça; negócios empre-
sariais; processo civil inglês.

Keywords:
Reasonable duration of procedures; access to justice; corporate
business; English civil procedure.

Palabras clave:
Duración razonable del proceso; acceso a la justicia; negocios cor-
porativos ; proceso civil inglés.

INTRODUÇÃO

O princípio sobre o qual se assenta o reconhecimento e a


busca pela proteção dos direitos humanos é “la garantía de la digni-
dad del ser humano a través de ciertos derechos mínimos que les
son reconocidos a los individuos en su sola condición de seres hu-
manos” (ROJAS, 2008, p.41). Com isso, “la idea original de los de-
rechos individuales se fortalece y pasa a constituir una categoría
especial de derechos subjetivos, con protección no sólo nacional,
sino que internacional” (ROJAS, 2008, p.41).
Nessa senda, sabe-se que inúmeros documentos interna-
cionais foram criados tendo por meta a proteção desses direitos mí-
nimos a fim de salvaguardar e efetivar a dignidade inerente aos seres
humanos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e
proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de
dezembro de 1948, é o exemplo mais característico do que se afirma.
Em seu artigo X, consagrou como direito humano o princípio do
acesso à justiça, ao dispor que “toda pessoa tem direito, em plena
igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal
independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres [...]”
Complementando a ideia, o artigo VIII consigna que, ademais,
toda pessoa tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes
remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que

41
lhe sejam reconhecidos pela Constituição ou pela lei.
Vislumbra-se nesse espaço, então, direitos humanos impo-
sitivos que trouxeram os contornos do acesso à justiça, ou acesso à
ordem jurídica justa, incorporado como direito fundamental na Cons-
tituição brasileira de 1988. Do ponto de vista do direito internacional,
o sistema de codificação dos direitos e o estabelecimento dos me-
canismos de controle buscam consagrar uma ordem pública global
centrada na ideia de direitos humanos para garanti-los na realidade
de cada país. Assim, “la preocupación por la situación de los indivi-
duos pasa a ser un tema de interés para toda la comunidad interna-
cional y escapa de los límites de la soberanía de los Estados”
(ROJAS, 2008).
O acesso à justiça, então, é tido como direito humano e fun-
damental, na medida em que é garantido por documentos interna-
cionais dos quais o Estado brasileiro é signatário, assim como pela
Constituição de 1988, razão pela qual esforços devem ser feitos para
que seja efetivado, deixando de constituir mero texto normativo.
Entretanto, a morosidade do Poder Judiciário brasileiro se
coloca como fator impeditivo da efetivação do acesso à ordem jurí-
dica justa. Sem embargo da inovadora previsão do direito à razoável
duração do processo e das frequentes reformas processuais em vis-
tas à sua implementação, o que se tem no cenário brasileiro con-
temporâneo é uma infinidade de processos judiciais, especialmente
de natureza civil, para serem julgados por juízes e tribunais insufi-
cientes à demanda existente.
Não bastasse isso, em controvérsias relacionadas a negó-
cios empresariais, a demora na pacificação do conflito gera drásticas
repercussões, especialmente de cunho econômico, o que é prejudi-
cial à inserção do país no mercado global. Há negócios jurídicos que
serão eficientes se realizados em razoável tempo, sob pena de pre-
juízos que podem, inclusive, desestabilizar a empresa e seus efeitos
negativos atingirem interesses públicos. Nesse sentido, devem ser
empreendidas reformas voltadas à diminuição da demasiada dura-
ção processual e à consectária concessão de tutela jurisdicional à
parte em tempo razoável, de forma a superar esses impactos nega-
tivos, que serão analisados neste estudo.
O sistema processual civil inglês será utilizado como
paradigma no que tange à celeridade e à efetividade da tutela

42
jurisdicional, notadamente após o advento das “Civil Procedure
Rules”, na busca de serem incorporadas no cenário brasileiro
proficuidades agora lá existentes.

O ACESSO À JUSTIÇA COMO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL

Consoante a lição de Mauro Cappelletti e Bryan Garth


(1988, p.8), embora a expressão “acesso à justiça” seja reconhe-
cidamente de difícil definição, serve para determinar “o sistema
pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver
seus litígios sob os auspícios do Estado”. Em razão disso, impõe-
se que o sistema seja igualmente acessível a todos e que ele pro-
duza resultados que sejam individual e socialmente justos.
Assim, ultrapassando o mero acesso às vias proces-
suais, a garantia contida no inciso XXXV1 do artigo 5º da vigente
Constituição constitui verdadeiro imperativo de efetivação da jus-
tiça, tendo por objetivo conceder provimento adequado às de-
mandas judiciais, tomando em conta o direito material em
discussão. Exsurge, então, o princípio do acesso à ordem jurídica
justa, que significa a realização de justiça aos que a requerem,
possibilitando, de forma real, ao cidadão que vivencie um con-
texto de segurança jurídica, onde o direito é efetivamente reali-
zado (LEAL JÚNIOR, 2015). Em outras palavras, impõe a
recomposição de um direito violado ou a cessação de ameaça
quando pendente sobre ele (BUENO, 2010).
A grandeza do princípio na Constituição de 1988 é evi-
denciada pela previsão de tutela jurisdicional mesmo em situa-
ções em que inexista lesão: a mera ameaça a direito já possibilita
a movimentação do Judiciário em ordem à obtenção de comando
protetivo. Objetiva-se impedir que a ameaça chegue a lesar o di-
reito, e isso se mostra essencial, especialmente no que tange à
tutela de interesses metaindividuais2, já que a reparação, nesse
campo, em grande parte das vezes não se mostra possível, de

1“XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito [...]”.
2Tão corriqueiramente desrespeitados na contemporaneidade, o que impõe especial
preocupação do Estado, por meio de suas três funções básicas, na busca de soluções
para tanto.

43
forma que a lesão deve ser prevenida (BUENO, 2010).
Desse modo, para que esta meta constitucional seja atin-
gida na sede ordinária de resolução de conflitos - a Jurisdição -,
impõe-se que o processo judicial se desenrole mediante cogni-
ção adequada e que tenha razoável duração em seu trâmite, evi-
tando o perecimento do direito, acarretado pela morosidade da
prestação jurisdicional.
Reconhece-se, dessa feita, o caráter instrumental do pro-
cesso, como instituto voltado à realização da justiça (BEDAQUE,
2011) e coloca-se, consequentemente, a função social do pro-
cesso como estandarte da revolução instrumentalizadora, que
redefiniu os contornos axiológicos procedimentais, a fim de con-
ferir ao processo a posição de ferramenta para a concretização
da justiça, viabilizando que o Estado cumpra seu dever de dirimir
conflitos de interesses e promover a pacificação social, despren-
dendo-se de formalismos sobejos e da irracional busca de exau-
rimento probatório, sob o risco de fenecimento do direito.
A patente lentidão do Poder Judiciário brasileiro é maté-
ria de discussão exaustiva na doutrina, assim como a necessi-
dade de conjugação de medidas para a efetivação dos direitos
buscados judicialmente, sendo insofismável que um processo
que se estende por anos não compraz a nenhuma das partes li-
tigantes, gerando insegurança e desprestigiando o sistema legal.
O acesso à justiça ganha importância capital nesse contexto, en-
carado modernamente como direito humano fundamental e im-
prescindível a um sistema jurídico de vanguarda que pretenda
efetivar, “e não apenas proclamar os direitos de todos” (CAPPEL-
LETTI; GARTH, 1988, p.12). Esse enfoque atual é a nota carac-
terística do estudo do processo civil contemporâneo.
O direito fundamental em apreço constitui o ponto fulcral
do princípio da dignidade da pessoa humana, porque essencial
para a concretização dos demais direitos quando obstaculizados.
Em virtude de seu realce, pode ser concebido como a base da
processualística moderna.
Tem-se, então, que o acesso à justiça não se limita à di-
mensão puramente formal. Ao revés, propugna pela “efetividade
dos direitos materiais e a concretização das garantias processuais
constitucionais” (PAROSKI, 2006, p.226), de forma que seja

44
concedida concretamente a tutela jurisdicional adequada, tem-
pestiva e efetiva ao litigante cuja razão o ordenamento jurídico
reconhecer.
Enfim, efetividade, adequação e tempestividade são qua-
litativos imprescindíveis ao provimento jurisdicional para que se
concretize substancial acesso à ordem jurídica justa.

A RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO COMO COROLÁ-


RIO INAFASTÁVEL DO ACESSO À JUSTIÇA

A importância da duração razoável do processo, tanto nas


vias judiciais quanto administrativas, fez a Emenda n. 45/2004
elevar o princípio à categoria de direito fundamental e garantia
constitucional, no inciso LXXVIII3 do artigo 5º da Constituição.
Trata-se do direito de se exigir eficiência e prontidão da
resposta estatal à provocação ocorrida, por meio de demanda in-
tentada, dentro de prazo razoável. Tem-se manifestação da
busca pelo respeito à dignidade da pessoa humana, assim como
ocorre com os demais direitos fundamentais, evidentemente,
mas com especial peculiaridade, posto estar vinculado à realiza-
ção da prestação jurisdicional, que é por meio da qual se busca
a aplicação in concreto do Direito.
O princípio em comento já constava, expressa ou tacita-
mente, de diplomas constitucionais de diversos países, tais como Mé-
xico, Portugal e Espanha, não sendo, portanto, inovação brasileira4.

3“A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do


processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”
4 Nesse sentido, a Constituição mexicana de 1917 adota a obrigatoriedade de obediência

aos prazos processuais contidos em lei; a portuguesa, em seu artigo 20, itens 4 e 5, de-
termina que as decisões sejam proferidas em prazo razoável, devendo os procedimen-
tos judiciais pautarem-se por celeridade e prioridade. Os Estados Unidos, por seu turno,
têm, em sua Constituição, após inclusão da 6ª emenda, a determinação da chamada
cláusula de julgamento rápido – ou speedy trial clause, no idioma pátrio –, que garante
o direito subjetivo do indivíduo à jurisdição célere. A carta italiana (art. 111) impõe que a
lei assegure a “ragionevole durata del processo”. A Constituição Espanhola (art. 24, 2)
exige “proceso público sin dilaciones indebidas”, respeitadas todas as garantias consti-
tucionais processuais. Finalmente, a Constituição da Venezuela de 1999, em seu artigo
49, 3, prevê que “toda persona tiene derecho a ser oída en cualquier clase de
proceso, con las debidas garantías y dentro del plazo razonable determinado

45
A busca pela efetividade do processo em prol de sua mis-
são social de eliminar conflitos e fazer justiça é algo inegável. A
doutrina é expressa em considerar insuficiente a garantia do
acesso ao Judiciário, exigindo, mais que isso, que a tutela jurisdi-
cional dê-se em prazo razoável para que seja possível a realização
do valor justiça. Nesse sentido, entende-se que o arcabouço cons-
titucionalmente assegurado de direitos e garantias individuais já
contemplava implicitamente essa regra em variadas normas, es-
pecialmente as que consagram os princípios do acesso à justiça
e do devido processo legal5, visto que o cumprimento efetivo do
que promovem pressupõe, inelutavelmente, a eficácia e a insepa-
rável tempestividade da apreciação judicial do que se pleiteia.
Nesse sentido, o artigo 125 do CPC/73, ora revogado,
ao disciplinar os poderes do juiz, já previa como seu poder-dever
“velar pela rápida solução do litígio” (inciso II)6. De toda sorte,
com a previsão constitucional explícita ocorrida, houve maior so-
lidez desse direito7, eliminando eventuais dissídios doutrinários
subsistentes, tornando, enfim, irrefutavelmente obrigatória a

legalmente por un tribunal competente, independiente e imparcial establecido


con anterioridad […]” [grifo nosso], e coloca, ademais, como atribuição do Ministério
Público, garantir a celeridade processual (art. 285, 2). Mais recentemente, seguindo a
tendência aventada, a nova Consituição equatoriana, de 2008, previu, em seu artigo 75
que “toda persona tiene derecho al acceso gratuito a la justicia y a la tutela efec-
tiva, imparcial y expedita de sus derechos e intereses, con sujeción a los princi-
pios de inmediación y celeridad [...]”; e prossegue no artigo 86: “las garantías
jurisdiccionales se regirán, en general, por las siguientes disposiciones: […] 2.
[…] serán aplicables las siguientes normas de procedimiento: a) El procedimiento
será sencillo, rápido y eficaz. […]” [grifo nosso]. A Constituição da Bolívia, promulgada
em 2009 após referendo popular ao qual foi submetida, igualmente tutelou o direito a
uma resposta estatal tempestiva em seu artigo 118: “I. Toda persona será tutelada
oportuna y efectivamente por los jueces y tribunales en el ejercicio de sus dere-
chos e intereses legítimos. II. El Estado garantizará el derecho al debido proceso,
a la defensa y a una justicia plural, pronta, oportuna, gratuita, transparente, y sin
dilaciones”. No artigo 190, complementou: “I. La jurisdicción ordinaria se funda-
menta en los principios procesales de gratuidad, publicidad, transparencia, ora-
lidad, celeridad, probidad, honestidad, legalidad, eficiencia, accesibilidad,
inmediatez, verdad material y debido proceso” [grifo nosso].
5 Lenza lembra, ainda, que, mesmo que não expresso na Constituição, esse direito

já detinha, no Brasil, o caráter de fundamental desde a ratificação da Convenção


Americana sobre Direitos Humanos (LENZA, 2005).
6 No NCPC, o art. 139, inciso II, preceitua ser incumbência do juiz “velar pela duração

razoável do processo”, seguindo a previsão constitucional.


7 “Sin embargo, como la comprensión del derecho de acción como derecho a la tutela

46
prestação jurisdicional em prazo razoável, e submetendo o direito
em questão ao regime jurídico8 que detêm os demais direitos fu-
namentais, contidos no artigo 5º da Constituição.
A concepção de “razoável duração” repele tanto o atraso
da prestação quanto a rapidez anormal, idônea a prejudicar o di-
reito fundamental ao devido processo constitucional.
Trata-se de tempo adequado a solucionar, com justiça, o
conflito levado a juízo. Nesse sentido, Hoffman (2005) aponta ser
“imprescindível que o processo tenha uma certa duração, maior do
que aquela que as partes desejam”, porquanto o Estado deve asse-
gurar aos litigantes o devido processo constitucional, a ampla defesa
e o contraditório. Nada justifica e ampara, todavia, a interminável es-
pera causada pela tormentosa duração do processo a que os cida-
dãos brasileiros se veem, via de regra, submetidos “e da qual, ao
final, resta sempre a sensação de injustiça” (HOFFMAN, 2005).
A duração exagerada, acima do que seria suficiente à
adequada cognição do magistrado, é, agora, de forma expressa,
constitucionalmente proscrita.

é inconcebível que em um mundo moderno, capaz de enviar infor-


mações de uma parte a outra instantaneamente ou de transmitir uma
guerra em tempo real, a burocracia, o formalismo e a falta de estru-
tura mantenham o Poder Judiciário arcaico e ineficaz. é inadmissível
que um processo tenha duração maior que a necessária para asse-
gurar a justa decisão (HOFFMAN, 2005).

À evidência, a delimitação conceitual da expressão é


árdua, uma vez que se trata de cláusula aberta. De um lado, uma
das características que naturalmente emergem é a adstrição a
um tempo mínimo, razoável para o juiz conhecer da causa da
forma devida (LEAL JÚNIOR; MACHADO, 2010). Por outro lado,

jurisdiccional efectiva (y oportuna) constituye un proceso de aprendizaje y de ma-


duración, no hay cómo dejar de ver la importancia del apartado LXXVIII, incluido en
el art. 5º por la reforma constitucional n. 45/2004” (MARINONI, 2009, p.36).
8 As normas consagradoras da categoria de direitos fundamentais encontram-se no

ápice da pirâmide jurídica do ordenamento a que pertencem, vinculando de forma


imediata o Poder Público em qualquer de suas esferas e manifestações funcionais.
Constituem, além disso, a estrutura básica do Estado e da Sociedade. No âmbito
brasileiro, têm aplicabilidade imediata constitucionalmente declarada no § 1º do ar-
tigo 5º (LEAL JÚNIOR; MACHADO, 2010).

47
impõe-se ponderação para que o deslinde processual não supere
os limites do razoável, já que a eficácia do provimento, invaria-
velmente, guarda relação com a celeridade de todo o conjunto
de atos processuais (LEAL JÚNIOR; MACHADO, 2010).
Esse entendimento já havia sido firmado em oportuni-
dade anterior (LEAL JÚNIOR; MACHADO, 2010), não se vincu-
lando a razoável duração à instantaneidade de julgamento9. Ao
contrário, a própria expressão torna claro não ser esse seu obje-
tivo. Abrir mão do contraditório, do due process ou de outro prin-
cípio processual de igual quilate tão somente geraria injustiça aos
litigantes e, em um plano maior, prejuízo à sociedade – contra-
riando, inegavelmente, o significado do vocábulo “razoável”. Não
se pode esquecer, entretanto, que a norma garantidora da razoá-
vel duração do processo assegura, ademais, os meios que ga-
rantam a celeridade de sua tramitação.
Um processo com duração de tempo razoável é um pro-
cesso em que há celeridade suficiente para tanto. Isso porque
são situações, em sua maioria, de extrema importância para ao
menos um dos envolvidos. E o retardamento na definição delas
perpetua a insegurança, a incerteza, a angústia e o conflito, razão
pela qual a celeridade deve ser buscada.
Quando se fala em razoável duração do processo e ce-
leridade de sua tramitação quer-se, indubitavelmente, a supera-
ção da morosidade endêmica verificada no Brasil, causada por
uma vasta gama de motivos, os quais devem ser tratados.
é dever do julgador ter papel ativo no que concerne ao
zelo pelo cumprimento dos direitos fundamentais, o que equivale,
in casu, à ausência de morosidade na entrega da prestação ju-
risdicional. A lentidão verificada no Poder Judiciário cai no con-
ceito de serviço público ineficiente, configurando verdadeira
mazela social, tendo em vista que provoca danos econômicos e
favorece a especulação e a insolvência, situações indesejadas
em qualquer país – trata-se dos denominados “danos marginais”
ocasionados pela demora processual10. Igualmente, acentua a

9 Equívoca, nesse sentido, portanto, a interpretação feita por Marins (2011) de estudo

anterior realizado por um destes autores (MACHADO; LEAL JÚNIOR, 2010).


10
Esclarecedora, a respeito, é a lição de Guerra (1997): “a duração do processo
pode ser, ela própria, causa imediata de danos ao autor, simplesmente por submeter

48
discriminação entre os que têm a possibilidade de aguardar e os
que, esperando, têm tudo a perder.

REPERCUSSÕES DA DEMORA PROCESSUAL NA ATIVI-


DADE EMPRESARIAL

Conforme a lição de Cruz e Tucci (2008), dentre os acon-


tecimentos da natureza que mais inquietam o homem, centra-se
o fenômeno tempo. No âmbito jurídico tem, também, especial re-
levância à medida que há alguns direitos que se constituem no
tempo, bem como o exercício do direito de ação que precisa ser
exercido em certo tempo. Nesse sentido, o tempo tem valor jurí-
dico conforme se pode demonstrar por meio dos institutos da de-
cadência e da prescrição. No campo processual, o fator tempo
“constitui, desde há muito, a mola propulsora do principal motivo
de crise da justiça” (TUCCI, 2008, p.15-16). O problema da de-
mora do processo “é mesmo tão antigo quanto a própria história
do direito processual” (TUCCI, 2008, p.16), fazendo-se presente
mesmo desde a vigência do direito romano.
O resultado do processo não apenas deve outorgar uma
satisfação jurídica às partes, como, também, para que essa res-
posta seja a mais plena possível, “a decisão final deve ser pro-
nunciada em um lapso de tempo compatível com a natureza do
objeto litigioso, visto que – caso contrário – se tornaria utópica a
tutela jurisdicional de qualquer direito” (BIELSA; GRANÃ apud
TUCCI, 2008, p.65).
Assim, no Brasil, com a demora no trâmite processual e
na execução da decisão, o prejuízo aos envolvidos é imensurá-
vel. Enfrentar, no papel de parte, a morosidade no julgamento de
um processo judicial é algo que representa custos incomensurá-
veis. Não só custos financeiros – os quais, contudo, por si só são

o direito controvertido a um prolongado estado de insatisfação. Nessa hipótese a


mera permanência no estado de insatisfação do direito, imposta pela duração do
processo, é a causa imediata de danos irreparáveis ou de difícil reparação, que tor-
nam inviáveis a prestação efetiva da tutela jurisdicional pretendida. Esse risco de
dano é aquele denominado por Calamandrei de perigo de tardança e por Andolina
de dano marginal em sentido estrito ou por indução processual.”

49
de grande monta –, como também custos que não são passíveis
de avaliação econômica. Angústia, preocupações, incerteza e in-
segurança resultam da demora processual e, apesar destes ele-
mentos não serem economicamente apreciáveis, em muitas
vezes, representam maior gravame para as partes do que os pre-
juízos financeiros que estão sendo ocasionados pela demora.
No que tange a essa diversificada gama de custos ou-
tros, José Augusto Delgado (2003, p.10), com acerto, aponta que
mesmo os advogados, ao levarem seus casos aos tribunais, sub-
metem-se a uma controvérsia “aparentemente infinda, de alta
tortura”, cenário que também o é para os demais envolvidos no
caso, como o juiz, e, especialmente, para as partes. Isso porque
“o processo é uma representação material do sofrimento das par-
tes em função da demora, do que ele contém e do que reflete”
(DELGADO, 2003, p.10).
Prossegue o autor11:

Digo sempre que os processos têm olhos, ouvidos, esperanças e


desgastes emocionais. Os conflitos ali presentes vivem a gritar não
somente nas tardes dos nossos gabinetes, onde permanecem guar-
dados em nossos armários, mas ecoam em nossos ouvidos, sonhos,
madrugadas e no ambiente das nossas famílias do mesmo modo que
ecoam no ambiente das famílias das partes e dos operadores do Di-
reito (DELGADO, 2003, p.10).

Dentre outros motivos, apontam-se a falta de recursos


materiais, o excesso de formalidades procedimentais, o alto nú-
mero de impugnações e a ausência de recursos humanos como
obstáculos ao bom funcionamento do Judiciário e a correlata mo-
rosidade processual (PINHEIRO, 2003, p.43).
Como é cediço, na prestação jurisdicional, o tempo de

Dispensa digressões o seguinte trecho, trazido por José Augusto Delgado, de autoria de
11

Benjamin Franklin: “em minhas viagens, uma vez vi um cartaz chamado ‘Os dois homens
da lei’. Um deles estava pintado de um lado do cartaz, numa postura melancólica, coberto
de farrapos, segurando um pergaminho que dizia: ‘Perdi minha causa’. O outro estava de-
senhado saltitando de alegria, do outro lado do quadro, com as palavras: ‘Ganhei meu pro-
cesso’. [...] O homem derrotado estava triste e pobre; o vitorioso, alegre, mas estava
nu em pêlo (sic), quer dizer, sem a prestação jurisdicional. A demora do processo e
as dores por ele deixadas foram tão grandes que, embora aparentemente houvesse
um vencedor, ambos eram vencidos [grifo nosso]” (DELGADO, 2003, p.11).

50
espera por uma decisão definitiva gera elevado custo para os en-
volvidos, porque privados dos bens ou direitos sub judice “du-
rante todos os anos que precedem o efetivo cumprimento da
decisão transitada em julgado. Nesse caso, as partes arcam com
o custo de oportunidade decorrente da privação dos bens e di-
reitos disputados em Juízo” (PUGLIESE; SALAMA, 2008, p.20).
De acordo com magistrados entrevistados em estudo empí-
rico realizado, a morosidade é reconhecida como o principal problema
do Judiciário, bem como o alto custo de acesso (custas judiciais e ou-
tros custos), vindo em segundo, seguido pela falta de previsibilidade
das decisões judiciais (PUGLIESE; SALAMA, 2008, p.43).
Nessa mesma vereda, em pesquisa realizada com o de-
partamento jurídico de empresas que atuam em setores diversos,
o Judiciário dos Estados recebeu baixíssimas notas de 47% dos
entrevistados no que concerne ao quesito agilidade, tanto em re-
lação ao 1º quanto ao 2º grau (CONSELHO NACIONAL DE JUS-
TIÇA, 2011, p.45-46). A pesquisa reflete a insatisfação dos
empresários com a Justiça brasileira, o que acaba por interferir
na celebração de contratos de vulto envolvendo partes de outros
países, já que a demora gera cenário de insegurança jurídica, na
medida em que um direito violado não reparado de forma tem-
pestiva equivale à perpetuação da lesão. Assim, os impactos eco-
nômicos são grandes, e estudos interdisciplinares entre direito e
economia neste ponto mostram-se cruciais.
Segundo relatório elaborado pelo Conselho Nacional de
Justiça, ingressaram na Justiça Estadual, em 2010, 17,7 milhões
de processos. O grupo dos maiores tribunais formado por São
Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul res-
ponde por 62% dos casos novos. “No 2º grupo composto por
onze tribunais de médio porte ingressaram 28% dos processos
da Justiça Comum ao passo que no 3º grupo, com doze tribunais,
iniciaram apenas 10% do total de casos novos no período [...]”
(CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2011, p.36).
Durante o ano de 2010, tramitaram em torno de 61,8 mi-
lhões de processos na primeira instância, “dos quais 46,3 milhões
(75%) já estavam pendentes de baixa desde o início do ano, e 15,5
(25%) ingressaram naquele ano [...]” (CONSELHO NACIONAL DE
JUSTIÇA, 2011, p.55).

51
Adiciona-se a isso a verificação de que,

entre os 46,3 milhões de processos pendentes, quase 23,6 milhões


concentram-se apenas nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, o
que significa que esses dois tribunais são responsáveis por mais da
metade do acervo nacional da Justiça Estadual. é relevante destacar
que no TJ-SP, 77% dos processos em tramitação já estavam penden-
tes no início do ano e no TJ-RJ, 82%. Desse modo, é plausível concluir
que se apenas esses dois tribunais conseguissem reduzir o volume
de seus acervos, o total de casos em tramitação na justiça estadual
poderia ser reduzido de forma significativa” (CONSELHO NACIONAL
DE JUSTIÇA, 2011, p.55).

Analisando-se os casos novos por magistrado, os juízes


do Rio de Janeiro recebem o “maior volume de casos novos, com
3.113 processos recebidos durante o ano de 2010, enquanto a
média nacional é de 1.407, ou seja, mais do que o dobro. O se-
gundo e terceiro maiores valores da Justiça estão no Rio Grande
do Sul e São Paulo, com 2.473 e 2.162 casos novos por magis-
trado” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2011, p.65).
As pesquisas acenadas confirmam a insuficiência do
Poder Judiciário frente à quantidade de processos existentes e
refletem o reconhecimento pelos magistrados das mazelas exis-
tentes em seu labor, assim como a insatisfação dos empresários
com a Justiça brasileira, o que acaba por interferir na celebração
de contratos de vulto envolvendo partes de outros países, já que
a demora gera cenário de insegurança jurídica, na medida em
que um direito violado não reparado de forma tempestiva equi-
vale à perpetuação da lesão. A incerteza no que tange ao tempo
da duração processual constitui também fator de insegurança ju-
rídica para os jurisdicionados. Assim, os impactos econômicos
da demora processual são inegavelmente grandes.
Conforme indicam Zylbersztajn e Sztajn (2005, p.3), o
Direito influencia e é influenciado pela Economia, e as organiza-
ções influenciam, assim como são influenciadas pelo ambiente
institucional:

é verdade que tanto Direito quanto Economia exercem papel primordial


na formação de instituições e organizações. Todavia, é importante res-
saltar que estas, por sua vez, influenciam a transformação do sistema

52
jurídico e a consecução de resultados econômicos. As instituições, por
seus efeitos sobre os custos de troca e produção, afetam decisiva-
mente a performance econômica e, juntamente com a tecnologia em-
pregada, elas, as instituições, determinam os custos de transação e
transformação que formam os custos totais da atividade econômica em
determinado ambiente [...].

A percepção de que o mau funcionamento do Poder Judiciá-


rio tem impacto de peso sobre o desempenho da economia é relativa-
mente recente e reflete o crescente interesse do papel das instituições
como determinante do desenvolvimento econômico (FARIA, 2007).
é indiscutível que a dinâmica existente no mundo em-
presarial não comporta a demora corrente, retirando, com isso,
do Poder Judiciário a legitimidade que se espera enquanto paci-
ficador social por excelência (RODRIGUES, 2009). Segundo
Adorno e Pasinato (2007):

No domínio da justiça cível, não são poucos os problemas. As corpo-


rações empresariais reclamam que o tempo da intervenção judicial
não acompanha o ritmo dos negócios imposto pelo mercado. Proble-
mas decorrentes de morosidade judicial têm sido igualmente apon-
tados em disputas fiscais, indenizações e cobranças de toda sorte.
Não sem razão, vimos assistindo, cada vez mais na sociedade, à dis-
seminação de sentimentos coletivos segundo os quais, se a justiça
tarda, as leis não são aplicadas.

Consoante Ana Maria Jara Botton Faria (2007) bem pon-


tua, a morosidade na solução dos litígios é fator de inibição de
investimentos na economia e a demora na prestação da tutela
jurisdicional acarreta vários impactos no setor, sendo um dos re-
sultados o arrefecimento da atividade econômica, que requer se-
gurança jurídica para atuar. Logo, se no momento atual fala-se
em aquecimento da economia, é indiscutível que, se fosse corri-
gida a sobeja demora na duração processual, alcançar-se-ia
maior desenvolvimento econômico.

Os investidores somente irão realizar investimento de longo prazo, em


especial os altamente especializados, quando e se estiverem seguros
de que os contratos que garantem suas atividades serão corretamente
implementados; não adianta o instrumento contratual conter regras
acerca da forma de pagamento, das penalidades aplicáveis, a

53
detalhada especificação de que o pagamento também inclui a remu-
neração do capital; torna-se necessário que o judiciário seja eficiente,
independente, ágil permitindo o devido respeito e cumprimento do
contrato firmado. [...] (ADORNO; PASINATO, 2007).

Um Judiciário eficiente, que solucione os conflitos em


prazo razoável, nos moldes acima delineados, é essencial para
que firmas e indivíduos sintam-se seguros ao fazer investimentos
específicos, sejam eles físicos ou em capital humano. A quali-
dade do serviço judiciário gera impacto sobre o investimento, es-
pecialmente, quanto mais especializada for a natureza desse
investimento. “De forma geral, os agentes privados só farão in-
vestimentos altamente especializados se estiverem seguros de
que os contratos que garantem suas atividades serão correta-
mente implementados” (ADORNO; PASINATO, 2007). Não
basta, portanto, que o direito material atenda às expectativas dos
cidadãos se o sistema de solução de controvérsias, naquele Es-
tado, é moroso – e, por conseguinte, ineficiente. A ciência de que
eventual descumprimento contratual, por exemplo, demorará a
ser solucionado – ainda se saiba de antemão que será julgado
em seu favor, pela simples análise do direito objetivo –, ocasiona
insegurança para a parte, levando essa a cercar-se de mais ga-
rantias, ou, até mesmo, a não celebrar o mesmo negócio.
Segundo estudos realizados, “as deficiências do sistema
judiciário no Brasil - caracterizado por lentidão nas decisões refe-
rentes à execução judicial das garantias e alto custo das cobranças
judiciais - apresentam peso considerável na elevação dos riscos e
dos spreads nos empréstimos bancários” (MORAIS, 2006). Assim,
a morosidade provoca um custo adicional no crédito: 20% da com-
posição do spread bancário decorre da lentidão processual, se-
gundo dados do Banco Central do Brasil (SILVA; PINTO, 2012).
Embora a morosidade seja, talvez, o principal dos entra-
ves da efetividade do processo no campo do direito empresarial,
não é o único dos existentes.

Em economias mais desenvolvidas, em que a análise econômica do di-


reito se mostra mais avançada, discute-se a questão da deficiência téc-
nica das decisões judiciais em relação a debates ligados ao direito
societário. A divergência entre o meio onde se desenvolvem as decisões

54
empresariais e aquele onde são tomadas as decisões judiciais é utilizada
como motivo para questionamento da efetividade processual nesta área.
Tem-se considerado como mais eficaz, até onde seja possível, submeter
as decisões de investidores, gerentes e diretores ao julgamento do pró-
prio mercado que ao Poder Judiciário (RODRIGUES, 2010).

A segurança promovida por um Judiciário eficiente –


aponta Faria (2007) –, serve de regulador da economia e viabili-
zador dos instrumentos da ordem econômica, “protegendo o mer-
cado do ataque de especuladores, da competição desleal, dos
cartéis e monopólios, situações cada vez mais comuns em razão
da globalização”.
Indica a autora (FARIA, 2007) que a fraca performance do
Judiciário na maior parte dos países em desenvolvimento prejudica
o desempenho econômico de várias maneiras: reduz a abrangên-
cia da atividade econômica, desestimulando a especialização; di-
ficulta a exploração de economias de escala; desencoraja
investimentos e a utilização do capital disponível; distorce o sis-
tema de preços ao introduzir fontes de risco adicionais nos negó-
cios; e diminui a qualidade da política econômica. Tem-se, assim,
que sem a garantia da segurança jurídica, muitas transações eco-
nômicas ficam “mais caras, raras ou mesmo inexistentes”.
A morosidade processual acarreta situações incômodas
ao exercício da atividade empresarial das formas mais diversas
possíveis: sócios minoritários em conflito com majoritários sobre
os rumos da atividade desempenhada; microempresário que plei-
teia cobrança de elevado débito de clientes; sociedade empre-
sária buscando restituição de tributos indevidamente pagos, dela
exigidos erroneamente, dentre outras. Trata-se de situações cor-
riqueiramente verificadas, nas quais a demora na resolução do
conflito prejudica a atividade empresarial.
Não obstante o que já foi trazido, cumpre lembrar que a
Lei n. 11.101/05 disciplinou os institutos de falência e recupera-
ção judicial e extrajudicial. Tanto a decretação da primeira como
a adoção de qualquer uma das espécies de recuperação sub-
mete-se ao crivo jurisdicional. Assim, em situações de crise eco-
nômico-financeira, a empresa terá de se submeter ao Poder
Judiciário para ser analisada. A morosidade em qualquer dessas
hipóteses (recuperação ou decretação de falência) contraria em

55
demasia os interesses de todos os envolvidos – sejam credores,
devedor, Poder Público ou terceiros (LEAL JÚNIOR, 2015).
A apreciação e a decisão do Poder Judiciário em tempo ra-
zoável é essencial para que seja possível cogitar da recuperação
do agente econômico. E mesmo na decretação da falência, a de-
mora processual é prejudicial aos credores, privados de seus crédi-
tos, ainda que não seja possível recebê-los de forma integral.
Enfim, seja a situação que for, tem-se que prejudicando
as empresas12, que são agentes econômicos, o prejuízo às eco-
nomias dos países envolvidos é indiscutível, eis que a mera ciên-
cia da morosidade processual já é fator possível de espantar
investidores externos no espaço brasileiro.

BUSCANDO SUBSÍDIOS NO MODELO PROCESSUAL CIVIL


INGLÊS A FIM DE TORNAR MAIS CÉLERE A PRESTAÇÃO
JURISDICIONAL NO BRASIL

Feitas as considerações anteriores, infere-se que a de-


mora processual é fator de desprestígio ao Poder Judiciário brasi-
leiro, gerando impactos mesmo na atividade econômica, na
medida em que ocasiona prejuízos de diversas ordens às empre-
sas envolvidas em conflitos de interesses relativos à sua atividade.
A morosidade gera incerteza e insegurança jurídica, fa-
zendo protraírem-se no tempo angústia e preocupação dos en-
volvidos. A notória demora existente no processo civil brasileiro
é fator que acaba por prejudicar a inserção das empresas bra-
sileiras no mercado globalizado e diminuir o aquecimento da

12Nesse particular, é curial destacar o importante papel alcançado pela empresa no Es-
tado contemporâneo. Essa autoridade, porém, não se limita ao território do país em que
se localiza. Ao revés, a empresa, na atualidade, ocupa papel fundamental no cenário
internacional, encontrando-se sua performance imbricada com o fenômeno da globali-
zação, por constituir, ao mesmo tempo, causa e efeito daquele. O comércio internacional,
neste sentido, é prática decorrente desta conjuntura. Reconhece-se, então, o papel da
empresa como mola propulsora da economia dos Estados, já que promove a circulação
de riquezas, oportuniza empregos e pagamento de tributos, oferece mercadorias e ser-
viços à população, além de proporcionar a concorrência, gerando conveniências aos
consumidores, à sociedade e ao Estado, seja de forma direta ou não, fomentando, de-
mais disso, a inovação tecnológica.

56
economia brasileira. Assim sendo, solucionar a mazela da mo-
rosidade processual é necessidade premente, especialmente no
que tange ao contexto econômico.
O modelo processual civil brasileiro é alvo de críticas de di-
versas ordens, notadamente no que se refere à demora processual,
à grande quantidade de recursos facultados aos litigantes e à or-
dinarização do procedimento, eminentemente delongado e des-
prestigiador das características específicas dos direitos buscados.
Nesse passo, segundo Cruz e Tucci (1998, p.27), o pro-
cesso deve, na medida do possível, desenvolver-se mediante um
procedimento célere, “a fim de que a tutela jurisdicional emerja
realmente oportuna e efetiva”. A ideia de efetividade do pro-
cesso13, de fato, está intrinsecamente associada à razoabilidade
da duração do feito. E por essa última expressão deve-se enten-
der o tempo adequado à solução justa do conflito, sem qualquer
dilação maior que não se volte única e exclusivamente para a ob-
tenção dessa meta.
Quer-se, então, um julgamento célere, sem dilações in-
devidas. Não se cuida de rapidez em sentido pejorativo, isto é,
com desmazelo. é essencial certo tempo para a adequada de-
fesa ser preparada, para as provas pertinentes serem produzi-
das, assim como para o conjunto de dados processuais ser
cautelosamente analisado, cabendo lembrar que o juiz lida com
uma infinidade de processos simultaneamente, não podendo de-
dicar-se apenas a um de cada vez.
Enfim, não se defende prestação imediata de tutela, sem
análise das alegações e das provas, adequadamente produzidas
na instrução. Reconhece-se que a precipitação ofende as garan-
tias processuais constitucionais. Por óbvio, exige-se tempo para
conciliar os valores em jogo no processo e as implicações que
advêm de uma sentença, a partir da produção de seus efeitos. Mas
esse tempo, como se aponta, não deve ultrapassar o razoável.
Assim, é importante desafio do Estado brasileiro con-
temporâneo a superação da notória morosidade verificada no
exercício da função judicante. O Poder Público e a sociedade

13Conforme Barbosa Moreira, formou-se a consciência da função instrumental do pro-


cesso e da necessidade de fazê-lo desempenhar de maneira efetiva o papel que lhe
toca (MOREIRA apud TUCCI, 1998).

57
devem envidar esforços para tanto.
Nessa senda, o juiz, por exemplo, condutor do processo,
tem o poder-dever de assegurar sua trajetória regular, e atuar de
maneira a impedir retardamentos desnecessários, reprimindo com-
portamentos abusivos dos litigantes e de qualquer outro envolvido,
ordenando de ofício diligências que julgue essenciais à elucidação
da causa e indeferindo as de propósito manifestamente protelatório
(TUCCI, 1998, p.35-36). Cabe ao magistrado, demais disso, aplicar
punição a atuações meramente procrastinatórias, de qualquer das
partes ou terceiros que venham a atuar no decurso do feito.
Deve, igualmente, haver controle, por meio do julgador,
de corregedorias e da própria sociedade civil14, de condutas ne-
gligentes e omissivas de auxiliares e serventuários da justiça, que
resultem em injustificável retardo processual. Urge que multas e
sanções já previstas em lei passem a ser efetivamente aplicadas,
quando cabíveis. Como exemplos, podem ser ventiladas, dentre
outras, as seguintes previsões do novo Código de Processo Civil:
artigo 77,§ 2º; artigo 81; artigo 234, § 2º; artigo 258; e artigo 468,
§1º. Nesse sentido, no capítulo do Código de Processo relativo
aos “deveres das partes e dos seus procuradores”, é disciplinada
a responsabilidade das partes por dano processual: aquele que
pleitear de má-fé como autor, réu ou interveniente, segundo o ar-
tigo 79, responderá por perdas e danos. A dedução de pretensão
ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; a
alteração da verdade dos fatos; a resistência injustificada ao an-
damento do processo; a provocação de incidentes manifesta-
mente infundados e a interposição de recurso com intuito
manifestamente protelatório, dentre outras condutas, enqua-
dram-se na definição de litigância de má-fé, que enseja a res-
ponsabilidade aludida, além de multa.
Conforme o supracitado artigo 81 (caput e §§), o julgador,
de ofício, condenará o litigante de má-fé a pagar multa, que de-
verá ser superior a um por cento e inferior a dez por cento do valor
corrigido da causa, e a indenizar a parte contrária dos prejuízos
que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e todas as des-
pesas que efetuou. O valor da indenização15 será desde logo
14 Observando e relatando ao juiz, quando isso ocorra.
15 Acertadamente, não previu o NCPC a limitação de 20% existente no CPC/73.

58
fixado pelo juiz, ou, caso não seja possível mensurá-lo, liquidado
por arbitramento ou pelo procedimento comum. Sempre que o
julgador se deparar com uma situação dessas, deverá ocorrer a
aplicação desse instrumento concedido pelo legislador em ho-
menagem à licitude, à honestidade e à boa-fé processual, valores
essenciais à realização do acesso à justiça e à concretização da
duração razoável do processo (LEAL JÚNIOR, 2015)16.
De todo modo, sabe-se que o sistema processual civil
pátrio é construído sobre o chamado “procedimento comum”, ri-
gidamente estruturado dentro da garantia do devido processo
legal e caracterizado pelo contraditório prévio e seu esgotamento,
o que é inegavelmente fruto de ideologia privilegiadora da segu-
rança jurídica em detrimento da justiça. Assim, há mais apreço
pela atividade declaratória dos direitos postos em litígio do que
pela sua efetiva proteção e efetivação.
O processo civil inglês, por sua vez, especificamente
após a edição das “Civil Procedure Rules” (CPR), em 1999, pode
ser tido como paradigma de valorização da atividade da figura do
magistrado. O ordenamento civil processual britânico está cen-
trado no aumento dos poderes judiciais na condução do processo,
no sentido de franquear ao juiz o gerenciamento da causa17, com
a fixação de técnicas nessa vereda pela lei e que consistiriam em:
i) estímulo à cooperação mútua das partes na condução do processo;

16 De grande importância é a contribuição do Poder Público por meio da criação de atos


normativos voltados à obtenção de celeridade. O Poder Legislativo (e Executivo, no que
tange às fases de propositura e sanção) deve criar leis prevendo técnicas e procedi-
mentos adequados à realidade social em constante transmutação. Isso vem sendo ten-
tado por meio de reformas legais no processo civil brasileiro, verificadas sob a forma de
etapas, mesmo antes do advento da Emenda n. 45/2004. Exemplificativamente, pode-
se mencionar, neste particular: a) a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Federais,
com o cerceamento parcial do duplo grau de jurisdição; b) a criação da técnica proces-
sual da antecipação de tutela; c) as diversas modificações no regramento respeitante
ao recurso de agravo; d) a criação do instituto da Repercussão Geral, para limitação do
conhecimento dos Recursos Extraordinários; e) a instituição de súmula de caráter vin-
culante; f) a reforma da execução, que reavivou o processo executivo sincrético; g) a
possibilidade de julgamento de improcedência liminar do pedido, atendidos os requisitos
legais; h) o processamento diferenciado de recursos especiais ditos “repetitivos” .
17 A concepção de gerenciamento do processo, segundo Andrade, “preconiza a amplia-

ção dos poderes do juiz na condução do processo, para que o direcionamento da sua
marcha não fique à mercê das partes e, ainda, para permitir ao juiz a adaptação do pro-
cedimento ao caso concreto” (ANDRADE, 2011, p.176).

59
ii) identificação de plano das questões postas em juízo; iii) separação
das questões segundo a profundidade da cognição exigida para sua
decisão e determinação da ordem em que serão resolvidas; iv) pri-
vilégio das soluções alternativas e amigáveis ao conflito; v) auxílio
às partes para resolver parcela ou a totalidade do conflito; planifi-
cação antecipada do andamento processual; vi) verificação dos
custos das providências necessárias ao deslinde da demanda
antes de sua determinação; vii) e concentração do conhecimento
das questões envolvidas na causa e redução da necessidade do
comparecimento das partes em juízo para a prática dos atos de
análise daquelas mesmas questões (ALMEIDA, 2011).
O rol de poderes-deveres judiciais retromencionado inte-
gra a regra 1.4 das CPR e é complementado por outras regras,
especialmente a 3.1, cujo conteúdo é meramente exemplifica-
tivo18. Ou seja, outros poderes podem ser exercidos pelo magis-
trado, desde que voltados ao alcance do denominado “overriding
objective” (objetivo preponderante), previsto na regra 1.1 do
mesmo diploma. E seu objetivo preponderante é a viabilização da
solução dos conflitos de interesse com justiça. Para tanto, impõe
as seguintes diretrizes: i) assegurar que as partes estejam em
iguais condições de disputa; ii) evitar despesas desnecessárias;
iii) lidar com os casos de forma proporcional em relação a sua im-
portância, complexidade das questões, valores envolvidos e con-
dições financeiras das partes; iv) assegurar que as ações se
processem com celeridade e justiça; e v) distribuir em cada caso
os recursos do tribunal de forma equilibrada, levando em conta a
existência de outros litígios (LEAL JÚNIOR, 2015).
Aspecto interessante é que, até a entrada em vigor das
CPR, o processo civil inglês pautava-se pelo princípio do controle
das partes, caracterizado pela mínima atuação do julgador na
instrução do processo. Isso se devia à filiação do direito inglês
ao “adversarial system”19, posto se tratar de Estado em que vige

18 Nesse particular, a regra 3.1, sob a rubrica “The court’s general powers of management”,
preceitua, em seu item 2.m que “the court may […] take any other step or make any other
order for the purpose of managing the case and furthering the overriding objective.”
19 Consoante a lição de Teresa Arruda Alvim Wambier, “o processo adversarial é aquele

em que as partes ficam, sobretudo, uma contra a outra, desempenhando o juiz um papel
mais passivo. Cabe quase que exclusivamente às partes [...] o controle do processo”
(WAMBIER, 2009, p.17)

60
o sistema da common law. O fenômeno resulta de processo na-
tural de aproximação entre os sistemas da civil law e da common
law – algo saudável, na medida em que viabiliza real aproveita-
mento das proficuidades existentes em cada um deles.
Desse modo, sob a égide das CPR, as partes perderam
grande parcela do poder quanto ao desenvolvimento do processo,
que foi passado, por seu turno, aos magistrados. A promulgação
desse diploma constituiu revolução no direito inglês, já que se
teve, em verdade, também, a criação de verdadeiro código de pro-
cesso civil, em país com tradição de direito eminentemente cos-
tumeiro. Romperam-se, assim, dois arraigados paradigmas lá
existentes. Sua origem deu-se em virtude de relatórios elaborados
por Lord Woolf, na busca de soluções para os problemas verifi-
cados no processo civil inglês, à época reconhecidamente cus-
toso, complexo e patologicamente lento, o que gerava impactos
no acesso à justiça (TURNER apud ALMEIDA, 2011).
A esse respeito, Almeida (2011) assevera que o principal
objetivo da reforma processual inglesa de 1999 fulcrou-se na mu-
dança de mãos da gestão do tempo e dos atos do processo dos
advogados/partes para as mãos dos juízes, e que isso somente
foi possível mediante alteração cultural do arraigado sistema ad-
versarial do direito processual inglês para um sistema que agora
prima pela cooperação dos envolvidos no processo. As CPR dis-
ciplinam esses poderes, na verdade, como deveres do Judiciário
(“Court’s duty to manage cases”, conforme regra 1.4), e possuem
maior amplitude mesmo que os existentes em países de tradição
inquisitorial, como o Brasil20.
No gerenciamento, os juízes conhecem dos casos com
maior rapidez e negociam com as partes as fases do procedimento.
Esse último aspecto, que atende os princípios do contraditório e
da segurança jurídica21, pode colaborar na redução de eventual
frustração da(s) parte(s), já que se sentem mais participantes no

20 O gerenciamento processual “constitui instrumento de aceleração processual, com


redução de custo, para se tentar atingir a duração razoável”, razão pela qual sua adoção
em terras brasileiras poderia contribuir para a diminuição do tempo do processo, contri-
buindo, consequentemente, para a minimização dos impactos na atividade empresarial
(ANDRADE, 2011, p.179).
21 Registre-se que, no Brasil, qualquer decisão com cunho flexibilizante exigiria funda-

mentação, por força do contido no inciso IX do artigo 93 da Constituição.

61
desenvolvimento processual e, consequentemente, na formação
da cognição judicial (TAVARES, 2011, p.149). Tem-se, então, o
seguinte panorama: o juiz, por meio da gestão da causa, tem a
possibilidade de flexibilizar o procedimento, de sorte a adaptá-lo
ao que exige o direito material em discussão. Com isso, há maior
participação das partes – ouvidas sobre as alterações rituais –,
a cognição é otimizada e a duração processual acaba por ser
mais adequada ao que o conhecimento da causa exige. No que
concerne a lides empresariais, os resultados positivos para o em-
presariado são inegáveis: duração mais curta, resultados mais
acertados e maior segurança, decorrente da diminuição do tempo
em que será prestada a tutela jurisdicional.
Nessa trilha, as três funções precípuas da gestão do pro-
cesso, conduzida pelo juiz, podem ser assim colocadas: i) enco-
rajar as partes a se empenharem, conjuntamente, pela busca da
justiça – e não como adversários ferrenhos; ii) evitar que o pro-
cesso tramite de maneira lenta e ineficaz; e iii) garantir que os
recursos do Judiciário sejam utilizados de maneira razoável e
proporcional (ANDREWS, 2009).
O direito inglês, ademais, impõe que os envolvidos,
sejam partes, advogados ou mesmo peritos, por exemplo, com-
prometam-se com a busca pela verdade e pela justiça em todos
os momentos. A postura acenada guarda direta relação com a
severidade das sanções impostas àqueles que descumprem este
dever (ANDREWS, 2009).
As “Civil Procedure Rules” tiveram por meta tornar o pro-
cesso civil inglês mais célere, menos dispendioso e efetivo (pro-
curando-se, com isso, afastar a insatisfação social que até então
se observava). O direito inglês, dessarte, passou a ostentar uma
tônica próxima da Civil Law e contrária à visão do sistema adver-
sarial, por meio do qual o juiz, assim como ocorre nos Estados
Unidos, tem uma posição mais distante. Com efeito, nos termos
da legislação inglesa, agora, expressamente incumbe ao juiz
uma postura mais reguladora e condutora dos rumos do pro-
cesso (CARPENA, 2010).
As regras processuais inglesas, assim sendo, expressamente
arrolam uma série de medidas que bem demonstram atualmente,
de forma exemplificativa, os poderes do juiz naquele país. é a

62
regra n. 3.1, já aludida, que registra caber ao juiz: i) dilatar ou en-
curtar prazos; ii) adiar ou antecipar audiências; iii) ordenar à parte
ou ao seu advogado que compareça ao tribunal; iv) determinar a
produção de prova por telefone ou pelo uso de qualquer outro
método de comunicação oral direta, durante uma audiência; v)
determinar que se processe em separado parte da matéria liti-
giosa; vi) suspender total ou parcialmente o processo, dentre ou-
tras. Infere-se, portanto, o poder-dever recebido pelo magistrado
para conduzir adequadamente o processo, em busca de celeri-
dade e adequação procedimental, de forma a ser concedida tu-
tela jurisdicional efetiva, adequada e tempestiva.
Não bastasse isso, o sistema processual civil inglês dá
prioridade absoluta para as chamadas “alternative dispute reso-
lution” (ADR), isto é, os meios alternativos de solução de confli-
tos, o que faz com que haja drástica diminuição do número de
processos tramitando no Poder Judiciário22. Nesse sentido, logo
no início das CPR, prevê-se, internamente ao dever gerencial do
juiz, “encouraging the parties to use an alternative dispute reso-
lution procedure if the court considers that appropriate and facili-
tating the use of such procedure”23 (Regra n. 1.4, 2, e)24.
Reconhecer isso como diretriz geral do sistema processual
civil e criar condições para que isso se efetive, como se dá na In-
glaterra, especialmente por meio de incentivos econômicos, aliado
a uma devida internalização cultural disso, notadamente pelos juí-
zes, de forma a se obter contingente considerável de soluções al-
ternativas, geraria as seguintes proficuidades: i) diminuição do
número de processos, o que leva à redução do volume de traba-
lho dos juízes e reflete no tempo do julgamento dos demais feitos;

22 Neil Andrews (2009) aponta que, especialmente no que tange a conflitos de cunho em-

presarial, o gerenciamento do processo é feito na Inglaterra de forma a encorajar o uso


de meios alternativos de solução de conflitos e evitar que o processo tramite lentamente.
23 Tradução livre: encorajar as partes a utilizar mecanismos alternativos de solução de

conflitos, se o juiz considerar isso apropriado, e facilitar o uso do respectivo meio.


24 Por meio de uma “stay order” o juiz inglês pode proceder à suspensão do processo e

direcionamento do litígio para outras formas de solução, especialmente mediação. Trata-


se de mecanismo de fomento às partes à utilização (ou ao menos reflexão sobre) de
um método extrajudicial para a resolução do conflito. Outro elemento de incentivo lá
existente é a aplicação de sanções às partes que resistem ao seu uso e/ou atuam de
forma não cooperativa em sessões de mediação, por exemplo. Isso será levado em
conta no momento da distribuição das custas processuais ao final do processo.

63
ii) minimização do tempo levado para se chegar à solução da
causa em discussão; iii) mitigação dos custos, tanto econômicos,
quanto demais custos pessoais dos envolvidos; e iv) possível ma-
nutenção das relações, quando continuativas (o que é extrema-
mente comum em litígios de cunho empresarial), já que nos
meios alternativos as partes participam ativamente da solução
do conflito, às vezes decidindo-o integralmente (como na media-
ção) elas mesmas, afastando o caráter de adversariedade entre
elas existente durante um processo judicial.
No Brasil, com a promulgação do NCPC (Lei n.
13.105/15), houve avanço: o diploma prevê, já em seus artigos
iniciais, que o Estado “promoverá, sempre que possível, a so-
lução consensual dos conflitos” (art. 3º, § 2º) e que a “conci-
liação, a mediação e outros métodos de solução de
consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes,
advogados, defensores públicos e membros do Ministério
Público, inclusive no curso do processo judicial [grifo nosso]”.
Tais normas representam avanço incomensurável em matéria de
acesso à justiça.
A participação ativa do juiz, de forma ampla e concreta,
ou seja, não só formalmente, mas substancialmente, é medida
que se impõe em um sistema jurídico que pretenda efetivar, e
não somente proclamar, os direitos dos cidadãos.
Assim, a utilização do atual modelo processual civil in-
glês apresenta-se útil para servir de inspiração ao ordenamento
brasileiro, já que valoriza o papel do juiz na condução do pro-
cesso, o que, inevitavelmente, prestigia a cognição, a qual se co-
loca como importante instrumento processual em favor da devida
tutela de direitos, já que tal atividade jurisdicional, por meio dos
modos pelos quais pode ser utilizada, tem o condão de formar
técnicas processuais diferenciadas25.
Essa cognição adequada, amoldada a cada caso, vin-
cula-se necessariamente a ideia de realização de justiça e, para

25 Em outros termos, a cognição pode sofrer variações na forma de se desenvolver


(quanto à extensão, momento, profundidade) a fim de ser alcançada adequação do pro-
cesso à natureza do direito ou à peculiaridade da pretensão a ser tutelada. Ela tem uti-
lidade, então, como método para a concepção de diversificados tipos de procedimento,
com vistas à instrumentalidade do processo. (LEAL JÚNIOR; BALEOTTI, 2011).

64
Watanabe (2000), liga-se ao princípio do juiz natural. O autor
afirma que há um direito à cognição adequada à natureza da
controvérsia, contido no princípio do devido processo legal. Dele
é resultado assim como os demais princípios processuais cons-
titucionais (motivação, contraditório, ampla defesa, dentre ou-
tros). “Devido processo legal é, em síntese, processo com
procedimento adequado à realização plena de todos esses valo-
res e princípios” (WATANABE, 2000, p.124), voltados à efetivi-
dade da tutela jurisdicional.
Assim, do devido processo extrai-se, como corolário ina-
fastável, o direito à cognição adequada à natureza da controvér-
sia. Infere-se verdadeira dependência entre cognição adequada
e razoável duração do processo, na medida em que, por meio de
um rito adaptado ao direito material em discussão, ter-se-á, ao
menos em tese, uma duração temporal razoável para a análise
que o específico objeto requer (LEAL JÚNIOR; BALEOTTI, 2011).
Com o fortalecimento da figura do magistrado no contexto
inglês, tem-se a possibilidade de que ele trabalhe com o procedi-
mento de forma a obter a melhor cognição possível e uma duração
mais adequada ao objeto em discussão. A reforma que propiciou
essa nova sistemática, ora elogiada, foi considerada exitosa logo
após três anos da adoção das CPR. O tempo médio para julga-
mento de um processo em 1º grau, que em 2007 era de 639 dias,
passou, em 2000/2001 para 498 dias (GAJARDONI, 2008). Por-
tanto, houve notória agilização da prestação jurisdicional.
Por força disso, inúmeros contratos comerciais estrangei-
ros contêm, atualmente, cláusula de eleição de tribunais ingleses
para solução de eventual conflito. Em metade dos casos julgados
pela Commercial Court de Londres os litigantes não são residentes
na Inglaterra ou no País de Gales (ALMEIDA, 2011, p.326). A dou-
trina inglesa é praticamente unânime em reconhecer as vantagens
advindas da reforma, uma vez que “casos que normalmente per-
maneceriam cinco anos sem julgamento são atualmente solucio-
nados entre quinze a dezoito meses” (ALMEIDA, 2011, p.326).
Enfim, a percepção da comunidade jurídica inglesa é de
que houve aprimoramento da justiça civil, agora mais célere e
eficaz. A incorporação dos aspectos referidos, tais como a pos-
sibilidade de flexibilização procedimental e o efetivo fomento à

65
utilização de meios alternativos de solução de controvérsias, não
prejudicariam a sistemática constitucional brasileira, uma vez que
há abertura para isso. Certamente, ter-se-ia, então, um processo
que melhor pudesse se adequar às situações específicas exigi-
das, tais como em que houve envolvimento de negócios jurídicos
empresariais. Destaca-se, nessa linha, que a reforma empreen-
dida no direito processual inglês teve como um de seus objetivos
“tornar o processo civil mais acessível para as pessoas co-
muns e empresários” (ALMEIDA, 2011, p.296) [grifo nosso].
Entretanto, essas modificações, que, inclusive, poderiam
ter vindo alinhavadas no NCPC26 exigiriam, ainda, mudanças
culturais, de forma que as partes internalizassem a concepção
de ser mais vantajosa a solução às vezes negociada do conflito,
ou a atuação em favor da efetiva resolução e conclusão do pro-
cesso, para que colaborassem, então, no trâmite processual, não
obstaculizando seu decurso e nem prolongando, de alguma
forma os prazos processuais.

CONCLUSÕES

Pode-se afirmar que a temática em apreço detém notória


e inegável importância. Não são novos os debates acerca da mo-
rosidade existente no Poder Judiciário brasileiro e da necessi-
dade de alteração dessa situação para que se alcance real
eficácia no provimento jurisdicional buscado. A insegurança e a
incerteza geradas pela elevada demora para o desfecho proces-
sual não interessa à sociedade, tampouco a algum dos litigantes,
exceto àqueles que buscam tão somente a protelação - por a seu
interesse falecer justo motivo.

26Registra-se que na redação original do anteprojeto, constavam as seguintes disposi-


ções, suprimidas no Senado Federal: “Art. 107. O juiz dirigirá o processo conforme as
disposições deste Código, incumbindo-lhe: [...] V – adequar as fases e os atos proces-
suais às especificações do conflito, de modo a conferir maior efetividade à tutela do bem
jurídico, respeitando sempre o contraditório e a ampla defesa [...]” e “Art. 151 [...] § 1º
Quando o procedimento ou os atos a serem realizados se revelarem inadequados às
peculiaridades da causa, deverá o juiz, ouvidas as partes e observado o contraditório e
a ampla defesa, promover o necessário ajuste”.

66
A indiscutível lentidão no tramitar processual causa des-
prestígio ao Judiciário e macula o fundamento existencial da
tutela pretendida, porquanto sua duração desarrazoada, ocasio-
nalmente, tem o condão de permitir o fenecimento do bem da
vida pleiteado. Tendo isso assente, tornou-se crível, no decorrer
deste feito, chegar a certas ilações.
A partir da Emenda Constitucional n. 45/2004, foi acres-
centado, de forma expressa, novo direito fundamental e sua res-
pectiva garantia no elenco que forma o artigo 5º – o princípio da
razoável duração do processo, que contempla o direito de se exi-
gir eficiência e prontidão da resposta estatal à provocação ocor-
rida por meio de demanda intentada.
Com a demora no trâmite processual e na execução da
decisão, o prejuízo aos envolvidos é incomensurável. Enfrentar,
no papel de parte, a morosidade no julgamento de um processo
é algo que representa custos imensuráveis. Não só financeiros,
como também custos que não são passíveis de avaliação eco-
nômica, como angústia, preocupações, incerteza e insegurança.
Isso é mais gravoso ainda, pelos inúmeros reflexos que gera,
quando se trata de agentes econômicos envolvidos e negócios
jurídicos empresariais em discussão: os impactos econômicos
da demora processual são inegavelmente grandes. A dinâmica
existente no mundo empresarial não comporta a lentidão judicial
na solução dos litígios, de sorte que essa atua como fator de ini-
bição de investimentos na economia.
O fraco desempenho do Poder Judiciário prejudica a eco-
nomia de diversas maneiras: reduz a abrangência da atividade
econômica; dificulta a exploração de economias de escala; de-
sencoraja investimentos e a utilização do capital disponível; dis-
torce o sistema de preços ao introduzir fontes de risco adicionais
nos negócios; e diminui a qualidade da política econômica. Logo,
sem a segurança de que os conflitos sub judice serão julgados
em tempo razoável, muitas transações econômicas ficam mais
caras, raras ou mesmo inexistentes.
A Lei n. 11.101/05, que trata da falência e recuperação ju-
dicial e extrajudicial, para que alcance efetividade no propósito de
valorizar a função social da empresa, a preservação da atividade
econômica e o respeito ao melhor interesses dos credores, impõe

67
que a tutela jurisdicional seja prestada em tempo breve. Em si-
tuações de crise econômico-financeira, portanto, a empresa, que
terá de se submeter ao Poder Judiciário para ver aquela anali-
sada, vivenciando contexto de morosidade, verá contrariados em
demasia os interesses de todos nela envolvidos (credores, de-
vedor, Poder Público e terceiros). A apreciação e a decisão do
Poder Judiciário em tempo razoável é essencial para que seja
possível cogitar de uma recuperação do agente econômico. E
mesmo na decretação da falência, a demora processual é preju-
dicial aos credores, privados de seus créditos, ainda que não seja
possível recebê-los de forma integral.
Enfim, seja a situação que for, tem-se que, prejudicando
as empresas, que são agentes econômicos, o prejuízo às eco-
nomias dos países envolvidos é indiscutível, eis que a mera ciên-
cia da morosidade processual já é fator possível de espantar
investidores externos no espaço brasileiro.
Aspectos do atual sistema processual civil inglês são
apresentados, então, como paradigma, a fim de que no espaço
brasileiro haja, igualmente, maior valorização da figura e mister
do magistrado, de forma a ser tentada a redução da demora pro-
cessual e ser concedido o provimento jurisdicional, então, ade-
quado, tempestivo e efetivo. Enfim, a importação de elementos
tais como a flexibilização procedimental e maiores incentivos às
ADR – este último já presente no NCPC – podem funcionar como
mecanismos de auxílio no combate às mazelas do Judiciário bra-
sileiro, especialmente se acompanhados de mudança cultural da
população, bem como de maior aporte financeiro para aumentar
a infraestrutrura e os recursos humanos.

68
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72
Altecir Bertuol Junior*

REDUÇÃO DA "MAIORIDADE PENAL":


AFINAL, O QUE DE FATO SE DISCUTE?

REDUCTION OF THE “PENAL ADULTHOOD”:


AFTER ALL, WHAT REALLY IS BEING DISCUSSED?

REDUCCIÓN DE LA “EDAD ADULTA PENAL”:


DESPUÉS DE TODO, QUE EM EFECTO ES DISCUTIDO?

Resumo:
Trata-se de exame analítico das propostas de emenda à Constituição
em trâmite ou que já tramitaram no Congresso, que busca verificar
as razões e o conteúdo de cada proposta para, ao final, apresentar
um panorama crítico a respeito delas e expor um ponto de vista sobre
a questão.

Abstract:
This is an analytical examination about the motions of amendment of
Constitution that were developed or are in development in the Con-
gress, which goes through checking the reasons and the content of
each motion to show a critical panorama about them in the end and
present a point of view about the issue.

Resumen:
Es un exame analítico de las propuestas de enmienda a la Consti-
tución em curso o que ya se procesaron en Congreso de la Nación,
que tiene la intención de comprovar las razones y el contenido de
cada propuesta para finalmente presentar um panorama crítico
acerca de ellos y exponer um punto de vista en este tema.

* Especializando em Direito Eleitoral e Improbidade Administrativa pela Escola


Superior do MP-MT, especialista em Direito Público pelo Instituto Cuiabano de
Educação - ICE e graduado em Direito pela pela Faculdade de Ciências Sociais
Aplicadas de Sinop - UNICEN. Oficial de Gabinete do MP-MT, atuante no Grupo de
Atuação Especial contra o Crime Organizado - GAECO.

73
Palavras-chave:
Responsabilidade penal, código penal, proposta de emenda à
Constituição.

Keywords:
Penal responsibility, penal code, motion of amendment of Consti-
tution.

Palabras clave:
Responsabilidad penal, código criminal, propuesta de enmienda a
la Constitución.

74
INTRODUÇÃO

O art. 228 da Constituição da República de 1988 declara expres-


samente a inimputabilidade dos menores de dezoito anos de idade, sujei-
tando-os às disposições da legislação especial, regra que é repetida no art.
27 do Código Penal vigente. Assim, na atual conjuntura normativa, os meno-
res de dezoito anos estão sujeitos às disposições da Lei n. 8.069/90, Estatuto
da Criança e do Adolescente, que determina que eles sejam submetidos a
medidas socioeducativas quando da prática de atos infracionais, definidos no
aludido estatuto como condutas análogas a crime ou contravenção penal.
É certo que a questão denominada de "redução da maioridade
penal" há muito tempo tem ocupado a sociedade brasileira e, diante do
palpável aumento da criminalidade em todo o país, especialmente em
razão da prática de crimes por menores de dezoito anos, tem apresentado
repercussão cada vez maior não apenas nas redes sociais, mas também
nas ruas. Como não poderia ser diferente, o tema está em debate no
Congresso Nacional. Na madrugada de 2 de julho do ano de 2015, em
meio a muita polêmica, gerada especialmente em razão de uma manobra
da mesa diretora batizada por alguns de "pedalada regimental", a Câmara
dos Deputados aprovou em primeiro turno a Proposta de Emenda à
Constituição n. 171/1993, que reduz a “maioridade penal”, moção hoje já
aprovada também em segundo turno e remetida à casa revisora, onde
tramita. Embora originalmente a proposta sugerisse a diminuição da idade
para tornar imputáveis os menores de dezoito e maiores de dezesseis
anos de idade sem distinção quanto às espécies de crimes, ela foi emen-
dada para dispor que a imputabilidade, a partir dos dezesseis e até os
dezoito anos, se dê apenas quando se tratar de crimes hediondos.
De fato, a discussão a respeito da imputabilidade dos me-
nores de dezoito anos de idade não é novel no Parlamento brasileiro,
já que as primeiras propostas de alteração do Documento Político
de 1988 surgiram no ano seguinte à sua promulgação. Após anos
de abstenção do Poder Reformador, a discussão chega ao seu
ápice, tendo desencadeado calorosos debates nas casas legislati-
vas, além de notáveis manifestações sociais sobre o tema no ano
de 2015, circunstância que certamente em breve se repetirá.
Em meio a esse cenário é que o presente ensaio se presta
a analisar as propostas de emendas à Constituição - PECs que tra-
mitam ou já tramitaram pelo Congresso Nacional.

75
Ao estampar no art. 228 da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 que “são penalmente inimputáveis
os menores de dezoito anos”, o Poder Constituinte Originário
optou pela adoção do critério biológico para a fixação da imputa-
bilidade penal, sem, entretanto, engessar a legislação infracons-
titucional, proibindo-a de adotar outros critérios paralelamente.
Todavia, o termo inicial da imputabilidade é questão que, diante
do grande número de propostas de alteração da Constituição,
pode-se concluir não espelhar o anseio da sociedade brasileira,
não ser fidedigna ao Poder Constituinte Originário material, ser,
enfim, tema não unânime nas discussões travadas na Assem-
bleia Nacional Constituinte.

A IMPUTABILIDADE

Tendo em vista que a finalidade deste trabalho consiste


em analisar as propostas de emenda à Constituição que versam
sobre a imputabilidade, é imprescindível que, em poucas linhas,
se trace um breve panorama sobre ela, sem, entretanto, apro-
fundar o estudo neste ponto.
A lógica a respeito da imputabilidade, segundo Soler (1992,
p. 51), consiste na ineficácia da norma penal diante de pessoas in-
capazes de compreender o comando nela contido, pois, se não têm
capacidade de entender a determinação da norma, não podem
segui-la. De acordo com ele, a função da norma penal não é ape-
nas aplicar uma pena ao que praticar algum crime, mas evitar que
crimes sejam praticados, o que se dá pela obediência à norma, que
só ocorrerá se houver compreensão de seu conteúdo. Portanto,
somente pode receber uma pena aquele que compreende a norma
que desautoriza a prática de condutas criminosas.
Imputabilidade “é a possibilidade de se atribuir, imputar
o fato típico e ilícito ao agente” (GRECCO, 2011, p. 385), “é o
conjunto de condições pessoais que dão ao agente capacidade
para ser juridicamente imputada a prática de um fato punível”
(BRUNO, 2001, p. 469), a “imputabilidade é, assim, a aptidão
para ser culpável” (MIRABETE, 2003, p. 210).

76
Embora faça uso do termo imputabilidade da forma usual-
mente colocada no estudo do Direito Penal, Zaffaroni (1999, p.
110) faz uma pequena distinção técnica entre “imputabilidade” e
“capacidade psíquica de culpabilidade”, esclarecendo que a pri-
meira diz respeito ao fato, que pode ou não ser imputado a alguém,
ao passo que a segunda é uma condição do autor de ser capaz
ou não de assumir a responsabilidade pelo fato.
Após concluir que a imputabilidade vai além da capaci-
dade de compreender de forma correta e adequada os fenôme-
nos do mundo externo para alcançar um juízo de valor sobre o
fato, Soler (1992, p. 51) define a imputabilidade como a possibili-
dade, condicionada à saúde e maturidade de espírito do autor, de
valorar corretamente os deveres e de atuar de acordo com esse
entendimento. Logo, imputável é o indivíduo capaz de emitir um
juízo de valor sobre o ilícito, compreendendo-o como criminoso,
e de se determinar de acordo com essa compreensão.
De acordo com Nucci (2009, p. 275), a imputabilidade
apresenta dois elementos, quais sejam, higidez biopsíquica, que
consiste na existência de saúde mental aliada à capacidade de
apreciar a criminalidade do fato, e maturidade, relacionada ao
desenvolvimento físico-mental.
No caso concreto, a aferição da imputabilidade do
agente criminoso depende do critério de verificação adotado pela
legislação penal, o qual, de acordo com a doutrina penal tradi-
cional, pode ser: biológico, psicológico e biopsicológico. En-
quanto o critério psicológico leva em conta apenas se o agente,
ao tempo da conduta, tinha a capacidade de entendimento e au-
todeterminação, sem considerar a sua condição mental ou ma-
turidade, o critério biológico parte da premissa contrária,
ponderando exclusivamente o desenvolvimento (maturidade)
mental do agente, sem se preocupar se ele tinha, ao tempo da
conduta, capacidade de entendimento e autodeterminação. Esse
último critério pode ser tido como absoluto, se a imputabilidade
for aferida exclusivamente pela idade do agente, ou relativo, se
a imputabilidade for verificada com base no seu real desenvolvi-
mento mental, facetas percebidas na análise do desenvolvimento
mental como causa de exclusão da imputabilidade prevista no
art. 26 do Código Penal, conforme se pode extrair da lição de

77
Capez (2011, p. 334) sobre o desenvolvimento mental incom-
pleto, que decorre da recente idade cronológica ou da falta de
convivência do agente em sociedade, ocasionando imaturidade
mental e emocional do agente e impedindo-o de alcançar as fa-
culdades cognitiva e volitiva atinentes à conduta. O critério bio-
psicológico, por sua vez, busca um meio termo entre os dois
primeiros, levando em consideração tanto o desenvolvimento
mental do agente quanto a sua capacidade de entendimento e
autodeterminação (SANCHES CUNHA, 2015, p. 277-278).
No Brasil, atualmente, são adotados os critérios biopsico-
lógico e biológico, sendo o psicológico expressamente afastado
pelo Decreto-Lei n. 2.848/1940, que prescreve que não excluem
a imputabilidade penal a emoção ou a paixão. O primeiro é previsto
no Código Penal, que considera inimputável o que, por doença
mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado ou,
ainda, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou
força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente
incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de se determinar
de acordo com esse entendimento. Esse critério está também
presente na Lei n. 11.343/2006, que considera inimputável o
agente que, em razão da dependência, ou sob o efeito, prove-
niente de caso fortuito ou força maior, de droga, era, ao tempo
da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o ca-
ráter ilícito do fato ou de se determinar de acordo com esse en-
tendimento. O segundo, por sua vez, é anunciado no art. 228 da
Constituição Federal e repetido no Código Penal e estatui que os
menores de dezoito anos de idade são penalmente inimputáveis
e estão sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial.
O critério biológico é ainda aplicado aos indígenas não integra-
dos, nos termos do Estatuto do Índio.
A imputabilidade é elemento da culpabilidade, que, por
seu turno, é elemento do conceito de crime, de modo que o crime
somente poder ser imputado a quem tem capacidade subjetiva
para responder por ele e receber uma pena. Em outras palavras,
o fato típico e antijurídico praticado pelo inimputável não é crime.
Na hipótese de fatos típicos e antijurídicos praticados por
menores de dezoito anos de idade, em razão da ausência de im-
putabilidade, não há crime, mas ato infracional - definido no

78
Estatuto da Criança e do Adolescente como conduta descrita na
lei penal como crime ou contravenção penal -, razão pela qual
agentes nessa condição não podem receber uma pena em de-
corrência de sua conduta, daí a razão da aplicação de medidas
socioeducativas a eles.
Portanto, a discussão a respeito da alteração do art. 228
da Constituição da República de 1988 envolve o próprio conceito
de crime. Afinal, o menor de dezoito anos de idade pratica crime?
Se dissermos que o menor é imputável, conceberemos que pra-
tica crime e deve receber uma pena, do contrário, não pratica
crime e não pode suportar uma pena.

AS JUSTIFICATIVAS

Ao se analisarem as justificativas das propostas apresen-


tadas nas casas legislativas do Congresso Nacional, é possível
constatar que quatro são os argumentos mais utilizados para em-
basar as proposições legislativas que buscam redefinir a questão
da imputabilidade penal. O aumento da criminalidade no país
pela prática de crimes por menores de dezoito anos de idade é
fato sempre levado em consideração na análise da questão, sem
que sejam esquecidos os fatores que levam a esse aumento,
dentre os mais citados, a certeza da impunidade e o recruta-
mento de adolescentes pelo tráfico de drogas e pelo crime orga-
nizado. Também recorrente é a constatação de que as medidas
socioeducativas se mostram ineficazes na ressocialização dos
menores delinquentes. Religiosamente é invocada a mudança
nas relações fáticas regradas pela norma constitucional, revelada
no alcance cada vez mais cedo da compreensão de direitos e
deveres por adolescentes, em razão dos estímulos propiciados
pela exposição cada vez mais acentuada à informação decor-
rente do desenvolvimento da tecnologia. Com muita frequência
se promove a comparação da idade limite para responsabilização
penal com a idade para o exercício do direito ao voto e para a
prática de atos da vida civil, enfatizando-se as disposições do
Código Civil a respeito de atos de grande importância que
podem ser praticados aos dezesseis anos, a saber, casamento,

79
com autorização dos pais, testamento, emancipação, bem como
da Constituição Federal, que possibilita o trabalho e o voto.
Não obstante essas questões sejam defendidas em pra-
ticamente todas as propostas, há alguns argumentos que mere-
cem registro.
Casos emblemáticos de ilícitos violentos praticados por
menores de dezoito anos de idade são constantemente apresen-
tados. Os casos do crime bárbaro praticado por dois adolescentes
em Goiânia no ano de 1996; do menino João Hélio no Rio de Ja-
neiro, que foi arrastado por sete quilômetros preso ao carro da mãe,
o qual havia sido roubado por dois delinquentes, um deles menor
de idade; dos jovens, Liana Friedenbach e Felipe Caffé, em São
Paulo, que foram sequestrados e mortos com a participação de Ro-
berto Aparecido Alves Cardoso, menor infrator conhecido como
"Champinha"; de Genilson Torquato, de Jaguaretama, no Ceará,
hoje já maior de idade e livre, assassino confesso de onze pessoas,
que matou entre os quinze e os dezoito anos; do adolescente de
Maringá, conhecido como o “Cão de Zorba”, que confessou ter
matado três pessoas e teria encomendado a morte de outras quatro;
do M.B.F., o “Dimenor”, ligado à facção criminosa paulista P.C.C.,
que aos dezessete anos confessou ser o autor da morte de seis
pessoas a mando de traficantes, a primeira delas quando tinha
apenas doze anos de idade; e do menor no Rio Grande do Sul,
autor de cento e doze atos infracionais, que, no momento de uma
audiência, tentou matar a promotora de um dos seus casos, são
relatados nas PECs n.426/1996, 242/2004, 85/2007 e 228/2012
da Câmara, bem como na Proposta n. 33/2012 do Senado.
O escorço histórico sobre a imputabilidade no Brasil é tra-
zido à análise nas PECs n. 57/2011 e 273/2013 da Câmara e n.
21/2013 do Senado. De acordo com elas, o primeiro Código Penal
brasileiro de 1830 fixou a imputabilidade plena aos quatorze anos,
bem como instituiu critério biopsicológico para a punição de crian-
ças entre sete e quatorze anos de idade. Em seguida, o Código
Republicano de 1890 estabeleceu ser penalmente irresponsável
o menor com idade até nove anos, devendo o maior de nove anos
e menor de quatorze anos submeter-se à avaliação do Magis-
trado. Na sequência, a Lei Orçamentária de 1921 derrogou o Có-
digo Penal de 1890, ao estabelecer a inimputabilidade dos

80
menores de quatorze anos e o processo especial para os maio-
res de quatorze e menores de dezoito anos de idade. Em direção
diversa, o Código Penal de 1940, embora em seu anteprojeto se
tenha previsto a possibilidade de se considerar imputável o
menor de dezoito anos de idade que, tendo já completado de-
zesseis anos, revelasse suficiente desenvolvimento psíquico
para entender o caráter ilícito do fato e governar a própria con-
duta, fixou o limite da inimputabilidade aos menores de dezoito
anos, adotando o critério puramente biológico. Mais tarde, a Lei
n. 7.209/1984, não obstante tenha reformulado a parte geral do
Código Penal, manteve a imputabilidade penal aos dezoito anos,
disposição que foi recepcionada pelo art. 228 da Constituição Fe-
deral de 1988.
As propostas de n. 272/2004, 489/2005, 48/2007,
223/2012, 273/2013, 382/2014, todas da Câmara, e n. 21/2013 do
Senado trazem dados de direito comparado. De acordo com o que
nelas se expõe, o início da imputabilidade na América do Sul se
dá: em Cuba, no Chile, na Bolívia e na Argentina, aos dezesseis
anos de idade, e, na Venezuela e Colômbia, aos dezoito. Na Amé-
rica do Norte, a legislação mexicana admite que a pessoa seja
responsabilizada pelo crime cometido desde os seis anos de
idade, a canadense, a partir dos doze, e, no Haiti, a imputabilidade
inicia-se aos quatorze. A respeito dos Estados Unidos, as infor-
mações encontradas nas propostas supracitadas não são unâni-
mes: de acordo com a PEC n. 489/2005, o tema não é uniforme
nos estados americanos, de modo que em alguns deles, nos cri-
mes mais graves, admite-se a punição do infrator a partir dos ca-
torze anos de idade; segundo a PEC n. 48/2007, a imputabilidade
inicia-se aos sete anos; já conforme as PECs n. 223/2012 e n.
382/2014, nos Estados Unidos não existe idade mínima para apli-
cação de penas, pois o critério utilizado é a verificação da índole
do criminoso. No velho mundo, a imputabilidade se inicia: aos oito
anos de idade na Escócia; aos doze na Holanda; aos quatorze
na Alemanha e na Itália; aos quinze na Noruega, Suécia e Fin-
lândia; e, aos dezesseis em Portugal, Espanha e Bélgica. As in-
formações a respeito da responsabilização penal na França,
Inglaterra e Dinamarca apresentam divergências: não obstante a
PEC n. 48/2007 aponte o início da imputabilidade aos treze anos

81
de idade na França, a PEC n. 382/2014 informa que isso ocorre
aos dezoito; enquanto a PEC n. 489/2005 informa que se pune
o criminoso a partir dos dez anos de idade, quando se tratar de
crimes hediondos na Inglaterra, ao passo que a PEC n. 223/2012
anuncia que neste país não existe idade mínima para aplicação
de penas, pois o critério levado em conta é a verificação da índole
do criminoso; a PEC n. 21/2013 aponta os quinze anos de idade
como marco inicial da imputabilidade na Dinamarca, ao passo
que a PEC n. 382/2014 indica a idade de dezoito anos. No con-
tinente africano, a responsabilidade penal se inicia aos sete anos
de idade na África do Sul e aos quinze no Egito. Na Ásia, indica-
se o início da imputabilidade aos sete anos de idade na Índia e
aos catorze no Japão. Quanto à Israel, a PEC n. 489/2005 aponta
para o começo da imputabilidade aos dezesseis anos de idade,
enquanto a PEC n. 382/2014 indica aos doze. Na Oceania, o
único país apresentado é a Nova Zelândia, onde a punição ao
criminoso se dá a partir dos dez anos de idade.
Ainda sobre esse ponto, a PEC n. 273/2013 arremata a
questão ao destacar que o Brasil é um dos poucos países em
que se adota o critério etário para definir o momento a partir do
qual alguém pode ser responsabilizado criminalmente e que a
idade escolhida é uma das mais altas da América Latina. Nessa
linha, acrescenta que o critério biopsicológico é o acolhido na
atualidade pela maioria das legislações penais e cita, como
exemplos, o Código Penal italiano, o Código Penal espanhol de
1995, o Código Penal alemão e o Código Penal português.
Outras PECs lançam mão da estatística para afirmar a
alteração que sugerem. A PEC n. 228/2012/Câmara aponta que
recentemente uma pesquisa feita pelo Senado Federal revelou
que 89% da população brasileira é favorável à redução da maio-
ridade penal. No mesmo sentido, a PEC n. 48/2013/Senado
anota que, em pesquisa encomendada pelo Senado no ano de
2007, a parcela de 90% dos entrevistados se manifestou favora-
velmente à redução da maioridade penal. Ainda, a PEC n.
32/2015/Câmara registra que pesquisas realizadas pelo Instituto
Data Senado entre os anos de 2007 e 2015 apontaram que 80%
dos entrevistados são a favor da redução da maioridade penal,
dentre os quais 30% manifestou a convicção de que a idade

82
mínima ideal para que um indivíduo seja considerado imputável
deve ser dezesseis anos de idade, 15% opinou por catorze e
16% por doze.
Também se valendo de dados estatísticos, a PEC n.
33/2012/Senado menciona pesquisa realizada pelo Conselho
Nacional de Justiça, intitulada “Panorama Nacional, a Execução
das Medidas Socioeducativas de Internação”, em que foram le-
vantadas, de julho de 2010 a outubro de 2011, as condições de
internação de 17.502 jovens em conflito com a lei, da qual se
pôde constatar que entre os adolescentes entrevistados (pouco
mais de 10% do total de menores infratores internados no país),
43,3% já haviam sido internados ao menos uma outra vez. Ainda
de acordo com a pesquisa, do exame dos 14.613 processos de
execução de medida socioeducativa, extraiu-se que há registros
de reincidência em 54% dos casos.
A PEC n. 279/2013/Câmara traz argumentos sólidos ao
debate, já que busca apoio em opiniões técnicas sobre o assunto
nas áreas do direito e da psicologia. Em suma, dois pontos ganham
ênfase nessa moção. O primeiro deles recai sobre o aumento da
criminalidade instigado pela impunidade. Conforme se expõe, a
prática de atos infracionais teria aumentado cerca de 80% entre
os anos de 2000 e 2012, ao passo que os crimes perpetrados por
maiores de dezoito anos teria diminuído na última década na ci-
dade de São Paulo. Sobre essa questão, a proposta traz a opinião
de um promotor de justiça atuante na Vara da Infância e Juventude
de São Paulo, segundo o qual, movidos pela consciência da im-
punidade, os menores de dezoito anos não apenas ingressam em
quadrilhas, mas assumem a liderança dessas organizações. A se-
gunda vertente vazada na proposta ressalta a capacidade de en-
tendimento sobre o caráter ilícito da conduta criminosa e de
escolher entre praticá-lo ou não, ideia apoiada em opinião de pro-
fissional psiquiatra ocupante do posto da Vice-Coordenadoria do
Departamento de Ética e Psiquiatria Legal da Associação Brasi-
leira de Psiquiatria (ABP), segundo a qual os estímulos proporcio-
nados pela comunicação intensa decorrente do avanço da
tecnologia aceleram o desenvolvimento do ser humano.
A direção dada no VI Congresso Internacional do Direito
Penal, ocorrido em Roma em 1953, de acordo com a qual o limite

83
etário para a aplicação da pena é dezesseis anos de idade, é invo-
cada em meio à argumentação exposta na PEC n. 426/1996/Câmara.
Uma inversão na organização social é apontada na PEC
n. 79/2003/Câmara, no sentido de que a população trabalhadora
e honesta se encontra presa em suas casas, assustada com a
violência cada vez mais crescente, ao passo que os criminosos
tomam conta das ruas e se escondem atrás de direitos, dentre
os quais, a inimputabilidade.
A PEC n. 272/2004/Câmara sugere que a redução de
idade para a responsabilização penal serviria para beneficiar os
próprios jovens, os de boa índole, de caráter probo e honesto,
que poderiam gozar de outros direitos, tais como o de dirigir veí-
culos automotores sem impedimento legal.
Os aspectos sociais sobre a questão também são rele-
vados. Nesse sentido, a PEC n. 48/2007/Câmara destaca a falta
de investimentos do Estado para garantir os direitos da criança
e do adolescente e assim dar a eles vida digna que os afaste do
crime, bem como o fracasso das famílias na formação dos filhos,
o que leva menores delinquentes a viverem integrados a uma fa-
mília que, em certos casos, se beneficia da atividade criminosa.
Na mesma direção, a PEC n. 15/2015/Senado atribui a prática
do ato infracional à falha da família, da sociedade e do Estado
na proteção dos direitos constitucionalmente conferidos à criança
e ao adolescente. Da mesma forma, na PEC n. 399/2009/Câ-
mara se evidencia a realidade miserável do país, na qual são
constantes a fome, as drogas, a dificuldade de acesso às esco-
las, a ausência de um verdadeiro lar, fatores que contribuem para
o aumento da violência, fazendo com que os jovens brasileiros
se tornem “verdadeiras bombas-relógio”.
Também não passa despercebida a análise do tema sob
o enfoque das políticas públicas. Nessa linha, a PEC n.
48/2007/Câmara refuta o argumento de que menores entrarão
mais cedo para a “escola do crime” nos presídios, afirmando a
possibilidade de implementação de política criminal para a criação
de estabelecimentos próprios e específicos para cumprimento da
pena por pessoas entre dezesseis e vinte e um anos de idade,
nos quais se dê preferência, por exemplo, ao trabalho, a ativida-
des culturais e ao ensino de ofícios como forma de progressão e

84
ressocialização. Essa ideia se mostra em sintonia com a conclusão
apresentada na PEC n. 273/2013/Câmara, segundo a qual não
punir, sob o argumento de que as prisões não recuperam, é jogar
sobre as costas da sociedade um problema que cabe ao Estado
resolver. Com a mesma lente de análise, a PEC n. 399/2009/Câ-
mara acusa a falta de uma política de segurança pública eficaz na
prevenção e repressão à prática de ilícitos penais, bem como a
inaplicabilidade de um sistema penitenciário que julga utópico.
A peculiaridade do indivíduo serve de justificação para as
propostas de n. 33/2012 e 03/2001, ambas do Senado, das quais
se extrai a necessidade de se considerar a condição pessoal de
cada adolescente, já que a capacidade de compreensão da ilici-
tude do crime não é fator estático e pode variar em razão da sua
educação, cultura, informação ou meio social em que se desen-
volveu. Na mesma esteira, a PEC n. 327/2004/Câmara enfatiza
que adolescentes de quatorze anos de idade podem ter a mesma
consciência de outro de dezessete ou dezoito, ou vice-versa.
Por fim, é de se registrar que, de acordo com a PEC n.
228/2012/Câmara, a consciência da impunidade na prática da in-
fração penal demonstra a total compreensão do adolescente que
conta com dezesseis anos completos a respeito do caráter ilícito
da conduta criminosa.

AS PROPOSTAS

As primeiras propostas de emenda à Constituição apre-


sentadas na vigência da atual Carta Política foram as de número
14 e 37, as duas do ano de 1989, iniciadas na Câmara dos De-
putados e ambas sugerindo a alteração do texto constitucional
para constar como dezesseis anos a idade para o início da im-
putabilidade. Efetivamente, consideradas também as arquivadas,
foram apresentadas cerca de cinquenta propostas na Câmara
dos Deputados e em torno de vinte e uma no Senado, todas tra-
tando da responsabilidade penal do menor de dezoito anos.
Certamente, a análise das proposituras revela não só a
importância, mas também a riqueza do debate, já que várias são
as alternativas em discussão no Parlamento.

85
Dentre as propostas iniciadas na Câmara dos Deputados
se destaca a PEC n. 171/1993, à qual estão apensadas outras
trinta e oito moções1. Em todas essas moções, originalmente, é
sugerida a alteração da Carta Política de 1988 para estabelecer
a inimputabilidade dos menores de dezesseis anos de idade e
sujeitá-los às normas da legislação especial. Esse modelo é re-
petido nas PECs n. 98/1992, 73/2003 e 79/2003, todas da Câ-
mara, bem como nas PECs n. 1/1996, 20/1999 e 48/2013 do
Senado. No mesmo norte, embora fundindo os conceitos de im-
putabilidade penal e maioridade civil, a PEC n. 32/2015/Câmara
prescreve a plena maioridade civil e penal aos dezesseis anos de
idade. Da mesma forma, sem muita variação, a PEC n.
260/2000/Câmara estabelece a "maioridade penal" aos dezessete
anos. Na mesma senda, está a PEC n. 21/2013/Senado, que es-
tabelece que são penalmente inimputáveis os menores de quinze
anos de idade. Também nessa linha seguem as propostas n.
169/1999 e 242/2004, ambas da Câmara, que assentam a abso-
luta inimputabilidade dos menores de quatorze anos, e a PEC n.
345/2004/Câmara, que fixa a imputabilidade a partir dos doze
anos. Todas essas conservadoras proposituras mantêm o critério
biológico absoluto e se limitam a diminuir a idade a partir da qual
o indivíduo passa a ser imputável.
Por outro lado, as PECs n. 09/2004/Senado, 489/2005/
Câmara e 57/2011/Câmara oferecem solução variada ao estabe-
lecerem, respectivamente, que: o menor será imputável quando
apresentar idade psicológica igual ou superior a dezoito anos de
idade; o menor de dezoito anos acusado da prática de delito
penal será submetido à prévia avaliação psicológica, podendo o
juiz concluir pela sua imputabilidade, se julgar que o seu grau de
maturidade justifica a aplicação da pena; e que a imputabilidade
dos maiores de dezesseis anos será determinada por intermédio
de perícia em decisão judicial, proferida em cada caso com fun-
damento nos fatores psicossociais e culturais do agente. Em

1PECs n. 386/1996, 426/1996, 242/2004, 37/1995, 91/1995, 301/1996, 531/1997,


68/1999, 133/1999, 150/1999, 167/1999, 169/1999, 633/1999, 260/2000, 321/2001,
377/2001, 582/2002, 64/2003, 179/2003, 272/2004, 302/2004, 345/2004, 489/2005,
48/2007, 73/2007, 85/2007, 87/2007, 125/2007, 399/2009, 57/2011, 223/2012, 228/2012,
279/2013, 332/2013, 382/2014, 273/2013, 438/2014 e 349/2013.

86
todas elas, o foco da imputabilidade repousa sobre a maturi-
dade/desenvolvimento mental do agente sem que haja preocu-
pação com a sua capacidade cognitiva e volitiva ao tempo da
ação ou omissão. Tem-se, portanto, a adoção do critério bioló-
gico. Todavia, diferentemente das propostas anteriores, elas
abandonam o critério biológico absoluto atualmente adotado, em
que a ausência de maturidade do agente é presumida, para ade-
rirem ao critério biológico relativo, propondo que a maturidade
seja sempre aferida diante do caso concreto.
Dentre as moções que adotam o critério biológico, algu-
mas alvitram uma metamorfose do conceito de imputabilidade
pela inclusão da espécie do crime como um de seus elementos,
propondo que, diante de determinados crimes, a imputabilidade
seja constatada exclusivamente com apoio na maturidade do
agente, totalmente presumida com base na idade. É o que ocorre
nas PECs n. 95/1992/Câmara, 386/1996/Câmara, 08/2000/Se-
nado, 228/2012/Câmara, 90/2013/Senado e 382/2014/Câmara.
Na primeira delas, sugere-se, que os maiores de dezesseis anos
de idade sejam imputáveis quando da prática de crimes de ho-
micídio, roubo, extorsão, extorsão mediante sequestro, sequestro
ou cárcere privado, estupro, atentado violento ao pudor, rapto
violento ou mediante fraude, redução à condição análoga a de
escravo e lesão corporal. De acordo com a segunda, os maiores
de dezesseis anos devem ser penalmente responsabilizados
pela prática de crimes contra a pessoa, contra o patrimônio e he-
diondos. A terceira trata a questão pela ótica dos crimes dolosos
contra a vida. Por seu turno, a quarta estabelece que os menores
de dezoito anos e maiores de dezesseis anos responderão pela
prática de crimes cometidos com violência ou grave ameaça, de
crimes hediondos e de crimes contra a vida. A quinta considera
penalmente imputáveis os maiores de treze anos que pratiquem
crimes hediondos. Por fim, a sexta prescreve que não se aplica
a inimputabilidade penal aos menores de dezoito anos que
cometam crimes hediondos.
De forma semelhante, sem deixar de lado o critério bio-
lógico relativo, o conceito é alterado também pela inserção da
reincidência como fator da imputabilidade ao lado da maturi-
dade do agente, como ocorre na PEC n. 03/2001/Senado, que

87
prescreve que "os menores de dezoito anos e maiores de dezes-
seis anos são penalmente imputáveis na hipótese de reiteração
ou reincidência em ato infracional quando constatado seu ama-
durecimento intelectual e emocional, na forma da lei".
Doutra banda, a PEC n. 07/1998/Senado mostra-se dis-
tinta ao possibilitar a aferição da imputabilidade do agente maior
de dezesseis e menor de dezoito anos de idade quando for ates-
tada a sua capacidade de discernimento. De acordo com essa
proposta, dois são os fatores que determinarão a imputabilidade:
idade (mais de dezesseis e menos de dezoito anos) e capaci-
dade cognitiva. Quanto à idade, tem-se a presunção do alcance
da plena maturidade/desenvolvimento mental aos dezesseis
anos de idade (critério biológico). Em relação à capacidade de
discernimento, há a preocupação em se constatar se, ao tempo
da ação ou omissão, o agente era capaz de entender o caráter
ilícito da conduta (critério psicológico). Há de se concluir, então,
que ela oferece como solução a adoção do critério biopsicológico
em formato diverso daquele previsto no Código Penal.
Embora disponha em seu texto que a imputabilidade
será prevista em lei, a PEC n. 321/2001/Câmara fixa um critério
biopsicológico bastante adequado – que leva em consideração
tanto a maturidade do agente quanto a sua capacidade cognitiva
e volitiva ao tempo da ação ou omissão –, ao prescrever que "a
maioridade penal será fixada em lei, devendo ser observados os
aspectos psicossociais do agente, aferido em laudo emitido por
junta de saúde que avaliará a capacidade de se autodeterminar
e de discernimento do fato delituoso".
Algumas moções apresentam uma leve variação deste
conceito de imputabilidade acrescentando a ele a espécie do
crime como um de seus fatores. Nessa linha, a PEC n.
85/2007/Câmara permite que, nos crimes dolosos contra a vida,
o juiz verifique se ao tempo da ação ou omissão o agente, maior
de dezesseis e menor de dezoito anos de idade, tinha consciên-
cia do caráter ilícito do fato e condições de se determinar de
acordo com esse entendimento. Da mesma forma, a PEC n.
399/2009/Câmara sugere que menores a partir de catorze anos
de idade sejam imputáveis pela prática de crimes com violência
ou grave ameaça à integridade da pessoa quando, por junta

88
médica e psicológica, se verifique a existência de plena cons-
ciência das consequências do ilícito praticado.
Não obstante estabeleça a natureza da infração penal
como fator determinante, a PEC n. 273/2013/Câmara oferece um
conceito mais rebuscado de imputabilidade formado a partir do
critério biopsicológico, no qual se deve averiguar tanto a maturi-
dade do agente, sem presumi-la em razão da idade, quanto a
sua capacidade cognitiva e volitiva ao tempo da ação ou omis-
são. Nesse sentido, prescreve que, nos crimes hediondos e nos
equiparados a hediondos, o juiz deverá avaliar a maturidade
emocional, mental e intelectual do agente maior de dezesseis e
menor de dezoito anos de idade para determinar a sua consciên-
cia, ao tempo da ação, do caráter ilícito do ato praticado e as con-
dições de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Solução ousada é apresentada na PEC n. 73/2007/Câ-
mara, em que se indica a adoção do critério psicológico para a
constatação da imputabilidade dos menores de dezoito anos de
idade. A proposta sugere que "a autoridade judiciária decidirá
sobre a imputabilidade penal do menor de dezoito anos, avaliada
sua capacidade de entender o caráter delituoso do fato e de au-
todeterminar-se conforme este entendimento através de laudo
médico e psicológico, ouvido o Ministério Público". Como se pode
constatar, não há averiguação da maturidade e higidez mental
do agente na resolução ofertada, sendo a imputabilidade esta-
belecida exclusivamente com base na capacidade de entendi-
mento do caráter ilícito da conduta e de autodeterminação.
Também o grupo de propostas que sugerem a adoção
do critério psicológico encontra em algumas moções uma pe-
quena mutação para incluir no conceito de imputabilidade a na-
tureza da infração penal cometida. É o que ocorre na PEC n.
15/2015/Senado, que prevê que a criança e o adolescente serão
responsabilizados pelos crimes de natureza hedionda que come-
terem na medida de sua capacidade de entendimento e de auto-
determinação, a ser averiguada no caso concreto.
Há, outrossim, um grupo de propostas em que não se
define claramente qual o critério adotado para a determinação
da imputabilidade. Nesse sentido, a PEC n. 302/2004/Câmara
declara "penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos,

89
salvo parecer em contrário de junta médico-jurídica, na forma da
lei, ratificado pelo juízo competente, no caso do infrator ser maior
de dezesseis anos". Embora se defina a idade a partir de dezes-
seis anos (critério biológico), não se fixa qual será o objeto de in-
vestigação da junta médico-jurídica – maturidade do agente ou
sua capacidade cognitiva e volitiva ou ambos. A mesma incógnita
é encontrada na PEC n. 327/2004/Câmara, que sugere que,
quando da prática de crimes hediondos ou crimes equipados a
hediondos, os menores de dezoito anos de idade terão sua im-
putabilidade aferida por junta de psiquiatras forenses.
De modo distinto, o estabelecimento de uma graduação
da imputabilidade é o que se propõe na PEC n.302/2013/Câ-
mara, já que, nos termos dela, o menor de doze anos de idade é
plenamente inimputável, enquanto o maior de doze e menor de
dezoito anos é imputável para a prática de crimes hediondos e o
maior de dezoito é plenamente imputável.
Outra ala de propostas é focada em política criminal
ligada à execução penal, na qual se separa o cumprimento da
pena em duas fases. A PEC n. 228/2012/Câmara prescreve que
os menores de dezoito e maiores de dezesseis anos de idade
cumprirão pena inicialmente em centros de ressocialização para
cumprimento de medidas socioeducativas até que completem
vinte um anos, a partir de quando serão transferidos para uma
unidade prisional, onde deverão cumprir o restante da pena. De
modo similar, a PEC n. 273/2013/Câmara sugere que o menor
que cometer delito cumpra a reprimenda em instituição adequada
à sua condição até completar dezoito anos, seguindo-se a partir
de então o cumprimento da pena em estabelecimento prisional
comum. No mesmo diapasão, a PEC n. 332/2013/Câmara esta-
belece que, embora sejam penalmente inimputáveis os menores
de dezoito anos, ao completarem esta idade, terão decretada a
extinção da medida socioeducativa a que foram submetidos,
mas, nos termos da legislação penal, continuarão a responder
pelo crime cometido, cuja pena será cumprida em unidade pri-
sional construída exclusivamente para abrigar internos oriundos
de estabelecimento educacional.
Embora não fixe um critério de forma terminativa, a PEC
n. 64/2003/Câmara estabelece que o fator idade seja levado em

90
consideração na concepção de imputabilidade ao versar que “a
lei disporá sobre casos excepcionais de imputabilidade para me-
nores de dezoito anos e maiores de dezesseis anos".
De especial peculiaridade está imbuída a PEC n.
349/2013/Câmara, que busca alterar a norma constitucional es-
tabelecida no art. 5º, XL, da Carta Política, que firma o princípio
da irretroatividade da lei penal, prescrevendo que "a lei penal não
retroagirá, salvo para beneficiar o réu ou para punir ato infracional
quando o agente atingir a maioridade penal".
Extremamente relevante é a ideia aventada na PEC n.
26/2007/Senado, segundo a qual se o menor de dezoito anos de
idade, já tendo completado dezesseis anos, revelar suficiente de-
senvolvimento mental para entender o caráter ilícito do fato e se
determinar de acordo com esse entendimento, a pena aplicável
poderá ser diminuída em até dois terços.
Originalidade é o atributo que marca a PEC n.
33/2012/Senado, que propõe a criação de uma forma jurídica até
então desconhecida no Brasil. A moção altera não apenas o art.
228, mas também o art. 129, I, ambos da Constituição de 1988,
para criar o “incidente de desconsideração de inimputabilidade
penal”, a ser regulamentado por lei complementar, que surge
como função institucional do Ministério Público, de atribuição pri-
vativa do órgão ministerial especializado em questões de infância
e juventude nos procedimentos para a apuração de ato infracional
praticado por menor de dezoito e maior de dezesseis anos de
idade, em que se assegura a ampla defesa técnica por advogado
e o contraditório, cuja competência para julgamento originário é
atribuída a órgão do Judiciário especializado em causas relativas
à infância e à juventude, com preferência sobre todos os demais
processos, em todas as instâncias. No mais, a proposta prevê a
suspensão da prescrição até o trânsito em julgado do incidente.
Apresentadas as propostas lançadas à discussão, é de
se fazer um exame crítico sobre o conteúdo delas a fim de se
constatar a pertinência das ideias nelas apresentadas, bem como
de se identificar para qual sentido o debate aponta.

91
ANÁLISE DAS PROPOSTAS

Como se pode verificar, as medidas sugeridas que en-


volvem a questão da imputabilidade do agente menor de dezoito
anos de idade apontam para as mais diversas direções, o que
evidencia o caráter democrático do debate. Entretanto, nem
todas as propostas guardam pertinência desejável com o tema.
As medidas que, apesar de reconhecerem a imputabili-
dade do agente menor de dezoito anos de idade, propõem sua
manutenção em estabelecimento especial até que atinja essa
idade para então passar a cumprir pena em estabelecimento pri-
sional não se mostram devidamente adequadas. A inimputabili-
dade implica dizer que, em razão de uma causa biológica ou não,
no momento da ação ou omissão, o agente criminoso não tem
condições de entender o caráter ilícito de sua conduta ou de se
determinar de acordo com esse entendimento e, por essa razão,
não pode receber uma pena. Se ao inimputável sequer se pode
impor uma pena por meio de um processo específico voltado a
essa finalidade, menos ainda se poderá fazer com que passe a
cumprir pena sem um processo direcionado à aplicação dessa
espécie de sanção. O modelo em exame permitiria que, por meio
de um processo menos robusto voltado à aplicação de medida
socioeducativa, se pudesse impor uma pena ao agente menor de
dezoito anos, já que ao completar essa idade ele deixaria de cum-
prir medida socioeducativa e passaria a cumprir uma pena pro-
priamente dita. De fato, haveria uma conversão automática da
medida socioeducativa em pena, situação jurídica que afronta a
Constituição Federal da mesma forma que, mutatis mutandis, o
fazia a antiga disposição do art. 51 do Código Penal, que permitia
a conversão da pena de multa em privativa de liberdade.
Além disso, a materialização do modelo em análise não
terá eficácia alguma. Certamente, implementar esse cumprimento
diferenciado da pena implicaria reconhecer a falência do sistema
prisional brasileiro. A concretização das medidas em questão de-
pende da implantação de políticas públicas focadas na humani-
zação do sistema carcerário/de internação necessárias não
apenas aos menores infratores, mas também aos maiores de de-
zoito anos de idade. São medidas que demandam investimentos

92
tanto na estrutura física dos estabelecimentos quanto em pes-
soal, além da execução de providências de efetiva ressocializa-
ção, já que a "escola do crime" não se limita aos
estabelecimentos prisionais, mas está instituída também nos es-
tabelecimentos de internação de menores. Ao que se pode ob-
servar da realidade fática dos presídios e centros de internação,
não há efetiva vontade de se tornarem reais as condições ideais
previstas na norma, de modo que a alteração da norma não trará
a solução para o problema.
Deveras essa sugestão de cumprimento diferenciado da
pena é inócua, pois garante a proteção do adolescente somente
até que ele atinja a maioridade, todavia, a partir de então ele será
jogado na “cova dos leões”. Efetivamente, ainda que se cogitasse
que os centros de internação socioeducativos fossem implanta-
dos da forma ideal como imaginado pela lei, de nada adiantaria
manter o menor nessa espécie de estabelecimento para depois
colocá-lo em estabelecimento prisional, já que o contato perni-
cioso que se busca evitar seria apenas postergado, ele ocorreria
de qualquer forma na segunda fase do cumprimento da pena, a
partir de quando ele se desse em estabelecimento prisional, onde
o trabalho de ressocialização se encontra cauterizado por falta
de investimento e de vontade de efetiva implementação de um
modelo ressocializador.
Com efeito, o respeito à dignidade humana deve ser es-
tabelecido não apenas nos centros voltados aos menores de de-
zoito anos de idade, mas em todos os ergástulos, já que a
socioeducação desejada para os menores e a reeducação ou
ressocialização buscadas em relação aos maiores são medidas
que, em última análise, intentam atingir a mesma finalidade.
Nesse diapasão, é possível concluir que a discussão
acerca da maioridade penal não guarda qualquer relação com o
debate sobre as condições fáticas do sistema carcerário. Portanto,
o discurso de que não se pode diminuir a idade para a imputabi-
lidade porque o sistema prisional não está pronto para receber os
menores infratores não se sustenta, já que a melhora nas condi-
ções de custódia é necessária não apenas nos estabelecimentos
prisionais, mas também nos centros de internação, não apenas
para os delinquentes menores, como para os maiores de dezoito

93
anos de idade, já que também estes se especializam no crime
dentro dos centros carcerários e voltam a delinquir, aumentando
o problema social ao invés de atenuá-lo.
Há também uma pequena variante do modelo até aqui
examinado, que permite que seja extinta a medida socioeduca-
tiva quando o menor completar dezoito anos de idade e que a
partir daí ele continue a responder pelo “crime cometido”. Essa
proposta lesa profundamente o princípio basilar do Direito Penal,
o do non bis in idem, já que num primeiro momento o menor será
julgado pelo ato infracional e num segundo momento ele será jul-
gado pelo crime. Em verdade, ou a conduta era crime ao tempo
em que foi cometida e então o menor era imputável, já que a im-
putabilidade faz parte do conceito de crime, ou, diante da inim-
putabilidade do agente, a conduta não era crime e, portanto, não
pode vir a se tornar crime posteriormente com a aquisição da im-
putabilidade pelo agente depois do fato.
Examinando as propostas que mantêm inalterado o cri-
tério biológico para simplesmente diminuir a idade de início da
imputabilidade é possível constatar que nelas a discussão se re-
sume à proporcionalidade na fixação da idade, que varia entre
dezessete e doze anos, idade esta que, convém aqui destacar,
define o início da adolescência de acordo com a Lei n. 8.069/90.
É de se notar que, se por um lado a absoluta inimputabilidade
dos menores de dezoito anos se mostra atualmente insustentá-
vel, de outro, punir pessoas em pleno processo de formação aos
doze anos não se coaduna com a dignidade da pessoa humana.
Notoriamente, a sugestão trazida nesse grupo de propostas con-
tribui muito pouco para o debate do tema e, sem dúvida, não re-
solve o problema da criminalidade juvenil. Por certo, se aprovada
qualquer das variações dessa espécie de proposta, ou se deixará
de punir adolescentes com capacidade de responder pelos seus
atos, ou se punirá quem não tem essa faculdade, mesmo que
dentro de um meio termo a respeito da idade, já que há uma zona
de indefinição entre os primeiros e os segundos.
As propostas que sugerem a redução da idade para es-
tabelecer que o agente se torna imputável apenas para determi-
nados crimes passam ao largo do conceito de imputabilidade. É
inconcebível que uma pessoa em determinada idade seja imatura

94
ou mentalmente insana ou incapaz de entender o caráter ilícito
de sua conduta ou de se determinar de acordo com esse enten-
dimento apenas em determinadas espécies de crimes. Em ver-
dade, ou a pessoa possui essas faculdades ou não as tem, pouco
importando se o crime praticado é furto, lesões corporais, homi-
cídio, tráfico ilícito de entorpecentes, etc. Escolher determinada
classe de crimes para tornar o agente imputável é atribuir a ele
dupla personalidade: numa há uma entidade com discernimento
e com capacidade de autodeterminação, noutra, há uma entidade
inconsciente e incontrolável diante de determinadas espécies de
infração penal.
De todas as propostas, a PEC n. 228/2012/Câmara é a
que se mostra mais aberrante, por combinar as duas piores me-
didas aventadas na discussão, declarando imputáveis os meno-
res entre dezesseis e dezoito anos de idade em crimes
específicos e sugerindo um escalonamento no cumprimento da
pena, que se daria parcialmente em centros socioeducativos e
parcialmente em estabelecimentos prisionais.
Da mesma forma, a PEC n. 349/2013/Câmara traz su-
gestão irracional ao buscar implementar medida contraditória re-
lativa à garantia constitucional expressa da irretroatividade da lei
penal, anunciando que ao completar dezoito anos de idade o
agente deverá responder de acordo com o Código Penal pelos
crimes praticados na adolescência, proposta inexplicável do
ponto de vista técnico.
A questão da retroação da lei diz respeito ao conflito in-
tertemporal entre normas e informa que a lei posterior não pode
regulamentar um fato ocorrido antes de sua existência, mormente
no Direito Penal, que poderia se transformar em ferramenta de per-
seguição, sobretudo, política. Assim, a proposta em tela em nada
se relaciona com a questão da imputabilidade, pois, embora altere
norma constitucional que prevê a garantia da irretroatividade da
lei penal, ela sugere em verdade a postergação da aplicação da
lei penal, que deixaria de ser aplicada no momento da ocorrência
do fato e permaneceria latente até que o agente completasse de-
zoito anos de idade. Nesses moldes, não se relevaria a maturidade
e a capacidade do agente de entender o caráter ilícito da conduta
e de se determinar de acordo com este entendimento no momento

95
do fato, mas preocupar-se-ia apenas com a idade a partir da qual
o agente poderia ser colocado em cárcere, o que destoa total-
mente do conceito de imputabilidade. Se ser imputável significa,
ao tempo da ação ou omissão, ser mentalmente maduro e ter
consciência da ilicitude da conduta e capacidade de autodeter-
minação de acordo com esse entendimento, então não há como
se estabelecer posteriormente que a pessoa adquiriu essas fa-
culdades. O fato de o agente completar dezoito anos depois da
concretização da conduta não muda sua condição pessoal exis-
tente ao tempo em que ela ocorreu.
Demais disso, se há discussão sobre a constitucionali-
dade da política criminal consistente na diminuição da idade para
responsabilização penal, principalmente em razão da localização
topográfica da disposição que garante a inimputabilidade do
menor de dezoito anos dentro do texto constitucional, em relação
à moção em tela, não há dúvida de sua inconstitucionalidade, já
que tende a abolir garantia constitucional expressa contida dentro
do capítulo do Documento Político reservado aos direitos e garantias
constitucionais. Permitir a retroação da lei para punir repre-
senta flagrante retrocesso social, o que desvirtuaria a garantia.
A respeito das propostas que deixam a cargo da lei in-
fraconstitucional a regulamentação da imputabilidade, importa
dizer que, não se tratando de conteúdo fundamental do pacto po-
lítico, essa delegação se mostra razoável. Aliás, esse sempre foi
o modelo adotado até o surgimento da Constituição de 1988. De-
veras não há razão para fossilizar o tema no corpo do Documento
Político, já que o tratamento da matéria decorre exclusivamente
de política criminal. Portanto, andam bem as propostas que se
manifestam nesse sentido.
A proposta de se considerar a idade como causa de dimi-
nuição de pena é também bastante pertinente ao tema por atender
plenamente à garantia da individualização da pena. Com efeito, a
medida se alinha em total sintonia com o Código Penal, que toma a
idade como circunstância atenuante quando o agente contava, ao
tempo do fato, com vinte e um anos de idade, ou com setenta anos
ao tempo da sentença, circunstância que também leva à diminuição
do prazo prescricional pela metade. Certamente, é plenamente pos-
sível harmonizar a presença das capacidades cognitiva e volitiva ao

96
tempo da ação ou omissão com a pouca experiência de vida do
agente para submetê-lo a uma punição mais branda.
Após verificar todas as vertentes apresentadas, é possí-
vel afirmar que as propostas que buscam aplicar o critério biopsi-
cológico para possibilitar a responsabilização do menor de dezoito
anos de idade, mentalmente sadio e maturo, quando verificada a
sua consciência do caráter ilícito da conduta e sua capacidade de
autodeterminação, apontam para a perfeita solução do problema
relativo à segurança pública, já que a sugestão é irretocável do
ponto de vista técnico, pois proporciona a aplicação justa do di-
reito para punir quem pode ser punido e preservar os que não têm
maturidade ou higidez mental ou capacidade cognitiva ou volitiva,
além de responder satisfatoriamente ao anseio social.
É certo que, pela aplicação do critério biopsicológico, é
possível dar valor a todas as peculiaridades de cada caso, de
modo a respeitar a individualidade de cada agente. Se adotado
esse critério, será possível apartar o adolescente maduro do in-
gênuo, sendo possível impor àquele uma pena proporcional ao
crime praticado e dar a este a atenção, direcionamento e apoio
necessários ao seu desenvolvimento pessoal.
Nesse enredo, o próprio Estatuto da Criança e do Ado-
lescente será visto pela população da forma devida, como norma
de proteção integral à criança e ao adolescente que visa dar
digna condição de desenvolvimento a estes, que garante os di-
reitos fundamentais a eles conferidos pela Carta Política, já que
ficará liberto do estigma de escudo de criminosos e de fato não
terá mais aplicação desvirtuada.
Portanto, assumindo as considerações feitas até então,
a proposta que se mostra mais adequada à solução do problema
em foco é aquela corporificada na PEC n. 321/2001/Câmara, se-
gundo a qual a maioridade penal será fixada em lei, devendo ser
observados os aspectos psicossociais do agente, aferido em
laudo emitido por junta de saúde, que avaliará a capacidade de
se autodeterminar e de discernimento do fato delituoso.
Eis a análise das ideias que permeiam o debate sobre a
imputabilidade no Congresso Nacional, pela qual se intenta con-
tribuir para a discussão deste tema de extrema relevância e de
urgente solução.

97
CONCLUSÃO

Após examinar todas as propostas de alteração da Carta


Política de 1988, o que se pode constatar é que, ao que tudo in-
dica, o debate sobre a imputabilidade está longe do fim.
Se de um lado a pluralidade de ideias, embora sadia à
democracia, tem inviabilizado que se chegue a uma conclusão
sobre a matéria, de outro, se vê um Congresso Nacional pouco
inclinado a solucionar a questão. Embora a protelação da votação
das propostas de emenda à Constituição em alguns casos seja
necessária ao amadurecimento do tema, fato é que a discussão
sobre a imputabilidade dos menores de dezoito anos de idade é
uma questão que ingressou na Constituição de 1988 mal resol-
vida, sem que tenha havido um consenso social em grau ade-
quado, razão por que desde então o repúdio social à norma
constitucional vem aumentando, o que revela que essa cláusula
não retrata a vontade política que instituiu o Documento Funda-
mental de 1988 e é, portanto, ilegítima, o que traz a necessidade
urgente de se adequar a Constituição à realidade social. Não se
trata aqui de ignorar que a Carta Política tem força normativa
capaz de conformar a realidade, já que essa prerrogativa somente
é válida quando a Constituição expressar fielmente o pacto político
que lhe deu ensejo.
No mais, constata-se que a discussão aborda as mais
variadas hipóteses de alteração da imputação penal dos menores
de dezoito anos de idade, enredo em que algumas vertentes
apresentadas nas PECs se mostram preocupantes por confun-
direm conceitos essenciais sobre o tema.
Certamente, a solução eficaz está contida nas propostas
que buscam definir a imputabilidade dos menores de dezoito
anos de idade a partir do critério biopsicológico, que permite punir
criminosos e assistir adolescentes em processo de formação. De
fato, esse modelo é capaz de satisfazer a vontade política hoje
vigente que é sufocada pelo texto do art. 228 da Constituição da
República de 1988, pois permite concluir que os adolescentes
que praticam crimes motivados pela certeza de sua impunidade
são imputáveis, já que, mentalmente maduros e sadios, são ca-
pazes de emitir um juízo de valor sobre a conduta que praticam,

98
entendendo-a como criminosa, valorando-a negativamente, bem
como de se determinar de acordo com esse entendimento.
Essa é a vontade social hodierna: que criminosos sejam
punidos como o que são e que adolescentes em formação sejam
assistidos. Deveras, o Congresso Nacional não tem autoridade
para rejeitar a vontade do poder de fato que, se hoje eclodisse,
viria a ser manifestado num novo Pacto Político, a vontade do
Poder Constituinte material, que jamais se dissolve após a elabo-
ração de uma Constituição, do contrário, fica latente até emergir
novamente no cenário político e devastar a estrutura existente
para impor uma nova ordem jurídico-política. Aliás, as incessáveis
manifestações populares e a revolta da população, que desespe-
rada passa a praticar a justiça com as próprias mãos, fatos diu-
turnamente noticiados nos meios de comunicação, denotam uma
profunda alteração nas relações fáticas regulamentadas pelo art.
228 da Constituição da República de 1988, sendo possível, então,
que se reconheça a mutação constitucional dessa regra para dizer
que os menores de dezoito anos de idade são inimputáveis, salvo
se, mentalmente maduros e saudáveis, forem capazes de com-
preender que a conduta por eles praticada é criminosa e de se
determinar de acordo com essa compreensão.
Conclui-se, pois, que o que de fato se discute é uma
questão antiga, que precede a Constituição de 1988 e que foi
nela colocada de uma forma que não representa a vontade polí-
tica que deu origem a ela, de modo que a alteração do Docu-
mento Político é medida irremediável e inadiável, necessária a
sua adequação à vontade do soberano povo.

99
REFERÊNCIAS

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral. 15. ed.


São Paulo: Saraiva, 2011, v. 1.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: parte geral.


3. ed. Salvador: Editora Juspdivm, 2015.

GRECCO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 13.ed.


Rio de Janeiro: Impetus, 2011, v. 1.
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal. 24. ed. São
Paulo: Saraiva, 2001, v. 1.

MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de direito penal. 19. ed. São


Paulo: Atlas, 2003, v. 1.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 9.ed.


São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

SOLER, Sebastian. Derecho penal argentino. Buenos Aires: Ti-


pografica Editora Argentina, 1992, t. II.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Tratado de derecho penal: parte ge-


neral. Buenos Aires: EDIAR Sociedad Anónima Editora Comer-
cial, Industrial e Financeira, 1999, t. IV.

100
Eliseu Antônio da Silva Belo*

A divulgAção de diálogos interceptAdos pelA


JustiçA: um exAme constitucionAl preliminAr

ThE DiSClOSURE OF inTERCEPTED COnvERSATiOnS FOR


JUSTiCE: A PREliMinARy COnSTiTUTiOnAl ExAMinATiOn

lA DivUlGACión DE lAS COnvERSACiOnES inTERCEPTADAS


POR lA JUSTiCiA: Un ExAMEn PREliMinAR COnSTiTUCiOnAl

Resumo:
Embora o art. 8º da Lei n. 9.296/96 consagre a preservação do sigilo
de conversas telefônicas interceptadas com autorização judicial, o
exame conjunto desse dispositivo legal com normas constitucionais
sobre a publicidade dos atos processuais revela que é juridicamente
possível o levantamento do sigilo sempre que o interesse público à
informação prevalecer em relação ao direito à intimidade da(s) pes-
soa(s) atingida(s) pela medida, o que deve ser evidenciado de forma
fundamentada pela respectiva decisão judicial que autorizar a divul-
gação, sendo certo que isso somente é válido quanto aos diálogos
que tenham relação com a investigação criminal ou instrução proces-
sual na qual produzida essa prova.

Abstract:
Although art. 8 of Law n. 9.296/96 enshrines the preservation of con-
fidentiality of intercepted telephone conversations with judicial autho-
rization, the joint review of this legal provision with constitutional rules
on the publicity of procedural acts reveals that it is legally possible lif-
ting of confidentiality whenever the public interest to information prevail
over the right to privacy of the person affected by the measure, which
must be shown in order founded by the respective court decision aut-
horizing the disclosure, it being understood that this is only valid for
the dialogues relating to criminal or procedural statement in which pro-
duced such evidence.

* Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Cândido


Mendes-RJ e graduado em Direito pela UFG. Promotor de Justiça do MP-GO.

101
Resumen:
Aunque el artículo 8 de la Ley n. 9.296/96 consagra la preservación
de la confidencialidad de las conversaciones telefónicas intercep-
tadas con la autorización judicial, el examen conjunto de esta dis-
posición legal con normas constitucionales sobre la publicidad de
los actos de procedimiento revela que es legalmente posible el le-
vantamiento de la confidencialidad cuando el interés público a la
información prevalece sobre el derecho a la intimidad de la persona
afectada por la medida, que debe ser presentado por orden fun-
dada por la respectiva decisión judicial que autoriza la divulgación,
dado que esto sólo és válido con los diálogos que se relacionan
con la investigación criminal o la declaración de procedimiento
penal en el que produjo tal prueba.

Palavras-chave:
Interceptação telefônica; sigilo; divulgação; interesse público à in-
formação versus direito à intimidade; possibilidade de levanta-
mento.

Keywords:
Telephone interception; secrecy; disclosure; public interest to in-
formation versus right to privacy; possibility of lifting.

Palabras clave:
Interceptación telefónica; confidencialidad; divulgación; interés pú-
blico a la información frente al derecho a la intimidad; posibilidad
de levantamiento.

102
no mês de março de 2016, todo o país assistiu, estarrecido,
à divulgação de diversos diálogos interceptados, com autorização
judicial, entre o ex-presidente lula e diversas pessoas a ele ligadas,
inclusive algumas autoridades do mais alto escalão político, dentre
as quais a Presidente da República.
O levantamento do sigilo dessas conversas foi determinado
pelo juízo federal da 13ª vara Criminal de Curitiba/PR, mediante de-
cisão que foi bastante criticada e debatida por muitos juristas1.
Todavia, independente da análise desse caso em particular
e do contexto em que ele surgiu, imaginando-se, por exemplo, que
o juízo criminal que autorizou as interceptações bem como o levan-
tamento do sigilo fosse realmente competente para tanto, importante
perquirir se seria juridicamente viável, sob um prisma constitucional,
determinar o levantamento do sigilo de tais conversas interceptadas,
considerados os ditames constitucionais e legais da matéria.
Assentada essa premissa, impende observar que o sigilo
de conversas interceptadas com autorização judicial é estabelecido
pelo art. 8º da lei n. 9.296/96, em que se determina a preservação
desse sigilo, não abrindo em seu texto nenhuma exceção a respeito.
Entretanto, algumas disposições constitucionais consagram a publi-
cidade dos atos do Poder Público (art. 37, caput), em especial dos
atos processuais. Quanto a esses, poderá haver restrição “quando
a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem” (art. 5º, lx).
há, ainda, o reforço do inciso ix do art. 93, em que a publicidade po-
derá ser restringida “em casos nos quais a preservação do direito à
intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público
à informação” (com redação dada pela EC n. 45/2004).
Pelo que se vê, na colisão de dois princípios constitucionais
(a intimidade do interessado, de um lado, e o interesse público à in-
formação, de outro), nota-se que essa última norma constitucional
estabelece uma verdadeira preferência, prima facie, do segundo em

1Conforme se extrai, por exemplo, da seguinte coluna: http://www.conjur.com.br/


2016-mar-24/senso-incomum-juiznaosocio-ministerio-publico-nem-membro-
policia-federal. Acesso em: 24 de mar. 2016.

103
relação ao primeiro2. nesse sentido, o TRF da 3ª Região consignou
o seguinte:

[...]. 2. O princípio da publicidade dos julgamentos e dos atos do processo,


vem expressamente previsto no art. 93, ix, da Constituição Federal. 3. A
restrição da publicidade pode ocorrer, na forma lei, que poderá "limitar a
presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados,
ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à inti-
midade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à in-
formação". 4. Este dispositivo teve sua redação alterada pela Emenda n.
45/2004, indicando que, na colisão entre dois direitos fundamentais
da mesma estatura (privacidade e informação), deve-se fazer uma
opção pelo segundo. [...]. (Agravo legal em Agravo de instrumento n.
0001784-70.2012.4.03.0000/SP, 3ª Turma do TRF da 3ª Região, Rel. Diva
Malerbi. j. 24.07.2014, unânime, DE 29.07.2014) (negrito nosso).

O próprio Min. Teori Zavascki, em decisão monocrática re-


lativa ao levantamento de sigilo de colaboração premiada, proferida
na Pet 5790, julgada em 11/12/2015, publicada em DJe-255 DivUlG
17/12/2015 PUBliC 18/12/2015, pontuou o seguinte:

Por sua vez, outra coisa diz respeito ao sigilo extraprocessual (publicidade
externa) – ou seja, a possibilidade de os cidadãos acompanharem ou não
o processo. Também aqui incide princípio da publicidade, que se plasma,
nas palavras de Ferrajoli, numa garantia das garantias ou garantia de se-
gundo grau, ou seja, pois representam instrumentos pelos quais se as-
segura o controle sobre a efetividade das demais garantias. Em nosso
ordenamento constitucional, a exceção à publicidade dos atos proces-
suais somente deve ser admitida pela lei quando a defesa da intimidade
ou o interesse social o exigirem, conforme dispõe o art. 5º, inc. lx, da
Constituição Federal.

Em seguida, elencou as razões de ordem constitucional, li-


gadas ao interesse público à informação, para que o sigilo incidente
sobre o termo de colaboração premiada e sobre seu autor fosse le-
vantado, fazendo-o da seguinte forma, in verbis:

na espécie, a colaboração trata de temas de inequívoco interesse social,


com o envolvimento de desvios de valores públicos milionários, prática

2interessante observar que no famoso caso alemão lebach, Robert Alexy registra
que “[...] o Tribunal Constitucional Federal, em um segundo passo, sustenta uma
precedência geral da liberdade de informar [...] no caso de uma ‘informação atual
sobre atos criminosos” (AlExy, 2012, AP. 101).

104
de atos estatais desviados de suas finalidades, participação ilícita de
agentes públicos e, especialmente, de agentes políticos. proibir que a
sociedade tenha acesso ao conteúdo dos depoimentos subjacentes
seria privá-la, em última análise, não apenas da garantia constitu-
cional de participação de gestão pública, mas do próprio controle
dos atos estatais. em outras palavras, valores republicanos estão
em jogo e parece decorrer daí o interesse da sociedade em acom-
panhar o desenrolar dos fatos, sempre observado, evidentemente,
o princípio da inocência. Foi assim, inclusive, no caso do julgamento
da Ação Penal 470, em que o Supremo Tribunal Federal, nada obstante
a existência de informações cobertas pelo sigilo, deu publicidade ao jul-
gamento, com grande interesse da sociedade em seu acompanhamento.
(grifo nosso).

Com base nesses argumentos de ordem constitucional, o


Min. Teori Zavascki acolheu o requerimento do Procurador-Geral da
República de levantamento do sigilo mesmo antes do recebimento
da denúncia, o que é vedado pelo § 3º do art. 7º da lei n.
12.850/2013, o qual não prevê nenhuma exceção tal como se dá
com o art. 8º da lei n. 9.296/96, a propósito do sigilo das conversas
interceptadas com autorização judicial. É evidente, assim, que essas
regras devem ser interpretadas de forma sistemática, tendo em conta
as referidas disposições constitucionais acima transcritas.
O que ocorre, na realidade, é que o princípio constitucional
do interesse público à informação - quando há suficientes razões jus-
tificadoras que determinam a sua prevalência no caso concreto -
passa a funcionar como verdadeira cláusula de exceção em relação
a essas duas regras infraconstitucionais de preservação do sigilo,
como se elas devessem ser entendidas da seguinte maneira: o sigilo
em questão deverá ser preservado, salvo se razões justificadoras li-
gadas ao interesse público à informação legitimarem o seu levanta-
mento judicial, mediante decisão devidamente fundamentada.
Sobre essa possibilidade jurídica de um princípio inserir uma
cláusula de exceção em uma regra, Robert Alexy (2012, p. 104) ensina
o seguinte:

Do lado das regras, a necessidade de um modelo diferenciado decorre da


possibilidade de se estabelecer uma cláusula de exceção em uma regra
quando da decisão de um caso. Se isso ocorre, a regra perde, para a de-
cisão do caso, seu caráter definitivo. A introdução de uma cláusula de ex-
ceção pode ocorrer em virtude de um princípio. Ao contrário do que

105
sustenta Dworkin, as cláusulas de exceção introduzidas em virtude de
princípios não são nem mesmo teoricamente enumeráveis. nunca é pos-
sível ter certeza de que, em um novo caso, não será necessária a intro-
dução de uma nova cláusula de exceção 3.

Portanto, deixando de lado, nesse momento, a discussão


relativa à competência, bem como imaginando que todos os diálogos
do ex-presidente lula foram interceptados com a devida autorização
judicial, é imperioso concluir que a divulgação das conversas que
lula teve, por exemplo, com pessoas e autoridades sobre sua no-
meação para ministro-chefe da Casa Civil, com o objetivo de escapar
da jurisdição criminal de primeiro grau, tem completo amparo cons-
titucional no interesse público à informação, o qual, na presente hi-
pótese, deve prevalecer, como visto, sobre o direito à intimidade dos
afetados por essa medida.
Por fim, é bom ressaltar que em relação às conversas sem
qualquer utilidade para as investigações criminais em andamento con-
tra ele, é de rigor a aplicação do art. 9º da lei n. 9.296/96, no sentido
de serem inutilizadas, não havendo espaço para a sua divulgação.

reFerÊnciAs

AlExy, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo:


Malheiros, 2012.

3Para o aprofundamento relativo à teoria da superação ou derrotabilidade de regras ju-


rídicas, cf. o seguinte artigo de nossa autoria: O STF e o artigo 44, i, do Código Penal:
reflexões em em torno de sua constitucionalidade e de sua derrotabilidade, Revista Ju-
rídica ESMP-SP, v. 6, 2014: 57-86, o qual pode ser acessado no seguinte site:
http://www.esmp.sp.gov.br/revista_esmp/index.php/RJESMPSP/article/view/191.
Acesso em: 24 de mar. 2016.

106
Altecir Bertuol Junior*

O AFASTAMENTO CAUTELAR
DO AGENTE PÚBLICO ÍMPROBO
SOB NOVO PANORAMA

THE INJUNCTIVE REMOVAL OF UNRIGHTEOUS


OFFICIAL UNDER NEW PROSPECT

EXTRACCIÓN PREVENTIVA DE FUNCIONARIO PÚBLICO


DESHONESTO BAJO NUEVA PERSPECTIVA

Resumo:
O presente ensaio é voltado a analisar a medida judicial de afasta-
mento cautelar do agente público ao qual é imputada a prática de ato
de improbidade sob o prisma do princípio republicano, a fim de es-
clarecer o conteúdo da norma estampada no art. 20 da Lei n. 8.429/92
não explicitado em seu texto.

Abstract:
The present essay aims to analyze the judicial providence of injunctive
removal of official against who is imputed an act of improbity through
the prism of the republican principle to clarify the content of the norm
printed in the article 20 of the Law n. 8.429/92 which is not explicit in
its text.

Resumen:
Este ensayo es dirigido a analizar la providencia judicial de extrac-
ción preventiva de empleado estatal que es imputado um acto de
deshonestidad a vista de lo principio republicano para aclarar el
contenido de la norma constante en el art. 20 de la ley n. 8.429/92
que no se expresa en su texto.

* Especializando em Direito Eleitoral e Improbidade Administrativa pela Escola


Superior do MP-MT, especialista em Direito Público pelo Instituto Cuiabano de
Educação - ICE e graduado em Direito pela pela Faculdade de Ciências Sociais
Aplicadas de Sinop - UNICEN. Oficial de Gabinete do MP-MT, atuante no Grupo de
Atuação Especial contra o Crime Organizado - GAECO.

107
Palavras-chave:
Lei n. 8.429/92, interpretação extensiva, lesão ao patrimônio público.

Keywords:
Law n. 8.429/92, extensive interpretation, public property damage.

Palabras clave:
Ley n. 8.429/92, interpretación extensiva, daños a la propiedad pública.

INTRODUÇÃO

A Lei n. 8.429/92, batizada de Lei de Improbidade Adminis-


trativa, como se sabe, tem assento constitucional no § 4º do art. 37
do Documento Político, dispositivo localizado em parte da Consti-
tuição reservada às diretivas gerais da Administração Pública, e re-
presenta grande avanço para o ordenamento jurídico pátrio, não
apenas por fornecer ares de moralidade à Administração, mas por-
que ela reflete o estágio mais avançado da República como forma
de governo, já que sua finalidade é, por excelência, a proteção da
coisa pública.
Essa compreensão a respeito da Lei de Improbidade - que
neste ensaio se busca anunciar -, é primordial para entendê-la e in-
terpretá-la, devendo a sua essência de manifestação do princípio re-
publicano ser o ângulo de análise dos seus institutos.
Sob esse enfoque, no presente artigo, busca-se fazer al-
guns apontamentos a respeito das hipóteses de afastamento cau-
telar do agente público do exercício das atividades de seu cargo,
emprego ou função pública, sob o enfoque da Lei de Improbidade
como manifestação da “República”, e assim demonstrar que a pro-
vidência poderá ser ordenada para impedir que o agente ímprobo
continue a praticar condutas ilícitas contra o patrimônio público.

108
DESENVOLVIMENTO

O instituto em foco é previsto no parágrafo único do art.


20 da Lei n. 8.429/92, que dispõe que a autoridade judicial ou
administrativa competente poderá determinar o afastamento do
agente público do exercício do cargo, emprego ou função, sem
prejuízo da remuneração, quando a medida se fizer necessária
à instrução processual.
A literalidade da lei, para a maioria acadêmica, informa
que a medida do afastamento do agente público somente pode
ser decretada quando a produção da prova puder ser prejudicada
pela sua atuação na Administração Pública.
Nessa direção, é comum a comparação da providência
do afastamento com as hipóteses autorizadoras da prisão pre-
ventiva regulamentadas pelo Código de Processo Penal atinen-
tes à necessidade de se garantirem a ordem pública e a
aplicação da lei penal, afirmando-se que estes requisitos não
permitem o arredamento cautelar do agente público pela prática
de ato de improbidade (GAJARDONI et al., 2012, p. 331)1.
O afastamento cautelar do agente público do cargo, em-
prego ou função, para evitar a reiteração de atos lesivos ao pa-
trimônio público, não tem sido aceito também, sob o argumento
de que a medida é tratada pela Lei n. 8.429/92 em seu art. 20,
em conjunto com as penas de perda do cargo e de suspensão
dos direitos políticos, que somente podem ser efetivadas após o
trânsito em julgado da sentença, o que revela o caráter excep-
cional não só destas penas, mas, também, da providência de
afastamento do agente público, já que esta poderia produzir na
prática o mesmo efeito daquelas, de modo que a interpretação a
ser dada ao dispositivo deve ser restritiva e, nesse sentido, a me-
dida do afastamento somente poderia ocorrer no único caso ex-
pressamente previsto na lei: para garantia da instrução
processual. (ALVES apud GARCIA; ALVES, 2011, p. 905).
Não obstante se tenha negado a possibilidade do afas-
tamento do agente público do exercício de suas atividades junto
à Administração Pública por fundamento diverso da necessidade

1 No mesmo sentido: DECOMAIN; ALVES, apud GARCIA; ALVES, 2011, p. 906.

109
da instrução processual, tem-se admitido na seara acadêmica al-
gumas variantes desse requisito.
Nessa esteira, a possibilidade de repetição de atos lesi-
vos ao patrimônio público pelo agente poderia ser interpretada
como necessidade da instrução, quando os novos danos “pudes-
sem estar enquadrados no objeto da demanda, vale dizer, con-
substanciando reiteração de atos cuja repressão já se
ambicionava no próprio processo” (OSÓRIO, apud GARCIA;
ALVES, 2011, p. 905). Sob essa perspectiva, a “necessidade da
instrução” restaria configurada quando se pudesse verificar no
caso concreto, mutatis mutandis, a continuidade delitiva.
Assim, o fundamento da “garantia da ordem pública ad-
ministrativa” tem sido utilizado para sustentar a possibilidade de
se determinar medida cautelar voltada à restrição do círculo de
atribuições do agente público, das quais se vale para a prática
de atos lesivos ao patrimônio público, tolhendo-lhe assim a fer-
ramenta de que se utiliza para a prática de ilícitos, de maneira a
evitar que possa dar continuidade à atuação ímproba, medida
embasada no poder geral de cautela (ALVES, GARCIA; ALVES,
2011, p. 906-907).
Embora sem enfoque voltado à possibilidade de afasta-
mento do agente público do cargo, emprego ou função, a tutela
inibitória - aquela que, desvinculada da necessidade da ocorrên-
cia do dano, se volta a impedir a ocorrência do ato ilícito -, é
apontada como ferramenta para obstar a continuidade da prática
de ilícitos contra o patrimônio público (MACHADO NETO; VIEIRA
JÚNIOR apud OLIVEIRA et al., 2010, p. 313-315). Sobre essa
hipótese, é preciso acrescentar que, diante da ineficácia da me-
dida coercitiva por excelência - a multa diária -, no acautelamento
da ocorrência de novos danos ao patrimônio público, a utilização
da técnica executiva pelo emprego de medidas de sub-rogação
faz-se indispensável, campo em que se enquadra o afastamento
cautelar.
Nos termos acima, não é difícil constatar que se tem negado
ao patrimônio público a tutela efetiva que lhe é devida, seja pelo
fetiche da analogia à ordem pública como requisito autorizador do
afastamento cautelar, seja pelo sofisma da vinculação do afasta-
mento à sanção da perda da função pública. Aliás, o temor face a

110
esses argumentos tem levado a uma atividade acadêmica criativa
no sentido de mascarar o fundamento da necessidade de se evitar
a continuidade da prática de ilícitos contra o patrimônio público, na
qual se acaba por colocar a hipótese em uma “cama de Procrusto”,
a fim de que caiba na necessidade da instrução processual.
Com efeito, “é necessário o desenvolvimento de técnicas
processuais objetivando reforçar a prevenção, antecipando a pro-
teção do patrimônio público” (MACHADO NETO; VIEIRA JÚNIOR
apud OLIVEIRA et al., 2010, p. 313), de modo que não há, data
venia, razão para negar o afastamento cautelar do agente da im-
probidade quando evidenciado que ele continuará a praticar con-
dutas lesivas ao patrimônio público.
Não obstante tenha sido previsto no mesmo dispositivo
que disciplina a sanção da perda da função pública, o afastamento
preventivo do agente não se confunde com ela. De fato, o segundo
não é sanção, mas providência cautelar (ALEXANDRINO; VI-
CENTE, 2009, p. 840), ao passo que a primeira tem feição pura-
mente satisfatória do direito material. Com efeito, esse tratamento
conjunto das duas medidas tem colhido fundadas críticas.
Nesse sentido, tem-se afirmado que a confusão a res-
peito da natureza da providência de afastamento se dá pela má
técnica legislativa empregada, pela qual duas matérias distintas,
a saber, medida punitiva e medida de prevenção, foram agluti-
nadas num mesmo dispositivo da lei de regência (MEDEIROS,
2003, p. 214).
Além do mais, não há qualquer razão para se vincular
a possibilidade do afastamento do agente público de suas ati-
vidades, para evitar que ele se valha do cargo para continuar a
praticar ilícitos contra o patrimônio público, à hipótese prevista
na lei processual penal - necessidade da prisão preventiva para
garantia da ordem pública -, já que essa referência faz alusão
a uma ideia restritiva relativa ao direito de liberdade, que não
encontra qualquer respaldo na ação coletiva relativa à tutela do
patrimônio público. Com efeito, a prisão preventiva na hipótese
em questão não visa assegurar o provimento judicial perseguido
no processo penal - condenação do réu e imputação de uma
pena a ele -, mas a própria ordem social - indispensável à ma-
nutenção do Estado -, que resta abalada pelo alvoroço causado

111
pela repetição de crimes, mas, conforme se demonstrará, o
afastamento do agente público de suas atividades busca asse-
gurar a integral proteção da coisa pública.
Embora numa perspectiva minimizada se possa dizer que
a providência do afastamento temporário vai de encontro ao inte-
resse público, na medida em que o agente público continuará a per-
ceber sua remuneração enquanto estiver privado do exercício de
suas funções (MATTOS, 2005, p. 681-682), não se pode esquecer
que, a depender do caso concreto, o pagamento do vencimento do
agente, sem que ele dê a contraprestação, é menos oneroso ao
Estado do que suportar a continuidade de atos de improbidade que
importem em enriquecimento ilícito e/ou prejuízo ao erário.
Com efeito, a essência cautelar da medida do afasta-
mento temporário reside no fato de que ela visa à proteção da
coisa pública, provimento jurisdicional buscado na ação coletiva.
Nesse sentido, não se pode olvidar que, a depender do
caso concreto, até o trânsito em julgado da sentença, poderá
haver um dano irreparável ao patrimônio público ou de dificílima
reparação decorrente da reiteração da prática de atos de impro-
bidade, os quais, inclusive, não poderão ser coibidos na ação de
improbidade eventualmente já em curso, por não estarem pre-
sentes no momento do seu ajuizamento. Não se pode negar que
a lesão aos cofres públicos pode chegar a valor inestimável, a
depender do “esquema de corrupção” engendrado dentro da Ad-
ministração Pública por agentes públicos ímprobos, o que torna
a reparação do dano deveras difícil, uma vez que, ordinaria-
mente, são necessários anos de investigação, a fim de se pro-
duzirem provas das condutas ilícitas - atividade homérica no
Brasil, onde imperam ideais extremamente garantistas que, em
razão da falta de ponderação, cotidianamente, asseguram a im-
punidade -, as quais deverão ser confirmadas em procedimento
judicial, cuja delonga, não se pode refutar, é também comum.
Ademais, a impossibilidade de reparação dos danos de-
correntes das condutas de improbidade fica explícita no seguinte
questionamento: como se pode reparar o dano causado pelos
atos de improbidade que atentam contra os princípios da Admi-
nistração Pública (art. 11 da Lei n. 8.429/92)?

112
Assim, diante da impossibilidade prática da reparação in-
tegral de todos os danos causados ao patrimônio público, a única
alternativa é a prevenção da sua ocorrência, de modo que, a des-
peito da ausência de previsão na Lei n. 8.429/92, não há como
negar que seja possível o afastamento do agente público de suas
atividades para evitar que ele continue a praticar condutas lesivas
ao patrimônio público com base no poder geral de cautela do ma-
gistrado, prerrogativa prevista no art. 798, do Código de Processo
Civil, que integra a garantia constitucional da inafastabilidade da
jurisdição prevista no art. 5º, XXXV, da Constituição da República,
a qual assegura que o Poder Judiciário possa fazer cessar ou
evitar a ocorrência de lesão ou ameaça a direito (NERY JUNIOR,
2010, p. 1161), plenamente aplicável à hipótese.
De mais a mais, o afastamento cautelar do agente para
impedir a reiteração de atos lesivos ao patrimônio público se
mostra em consonância com o princípio constitucional da razoa-
bilidade, de obrigatória observação no caso em tela, por se tratar
de medida restritiva à esfera individual do agente público. Com
efeito, ressalvada a possibilidade de restrição das atribuições do
agente público, conforme sugerido pela doutrina e alhures de-
monstrado, o afastamento será providência necessária, posto
que não há outra medida menos grave que possa atingir o
mesmo objetivo. Além disso, a medida se mostra apta à finali-
dade que se busca - proteção integral da coisa pública -, bem
como proporcional, já que o benefício trazido à sociedade é maior
do que o ônus imposto ao agente público -, valendo lembrar
nesse ponto que, por expressa disposição da lei, o agente conti-
nuará a perceber sua remuneração enquanto afastado.
À vista dessas considerações, mostra-se plenamente
possível o afastamento cautelar do agente público para evitar que
ele continue a investir contra o patrimônio público.

113
CONCLUSÃO

Deveras, a compreensão de que a Lei de Improbidade


decorre diretamente da forma republicana de governo é impres-
cindível para compreender seus institutos.
Portanto, à luz desse entendimento, é possível enxergar
claramente que, diante da possibilidade da ocorrência de danos
irreparáveis ou de difícil reparação à coisa pública pela manuten-
ção do agente público a quem se imputa atos de improbidade no
exercício de suas atribuições, quando estiver evidenciado que
ele continuará a praticar condutas lesivas ao patrimônio público
durante o processo, o provimento judicial reparatório dado na
ação de improbidade será ineficaz, sendo necessária a tomada
de providência preventiva que evite a ocorrência dos danos, a
qual não pode ser outra senão o afastamento do agente público
do cargo, emprego ou função.

114
REFERÊNCIAS

ALEXANDRINO, Marcelo; VICENTE, Paulo. Direito administra-


tivo descomplicado. 17. ed. São Paulo: Método, 2009.

DECOMAIN, Pedro Roberto. Improbidade administrativa. São


Paulo: Dialética, 2007.

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improbidade administrativa. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2012.

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ministrativa. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

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ministrativa: o direito dos administrados dentro da lei n. 8.429/92.
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comentários e anotações jurisprudenciais. São Paulo: Editora
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NERY JUNIOR, Nelson. Código de processo civil comentado e


legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2010.

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Luciano (orgs.). Estudos sobre improbidade administrativa em
homenagem ao Prof. J.J. Calmon de Passos. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2010.

115
PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de improbidade administrativa
comentada: aspectos constitucionais, administrativos, civis, cri-
minais, processuais e de responsabilidade fiscal; legislação e ju-
risprudência atualizadas. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2007.

116
Alline Neves de Assis *

TEORIA X PRÁTICA:
A CORRUPÇÃO FINALÍSTICA
DO ESTADO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

THEORY X PRACTICE: THE PURPOSIVE CORRUPTION


OF CONTEMPORARY BRAZILIAN STATE

TEORÍA X PRÁCTICA: LA CORRUPCIÓN FINALÍSTICA


DEL ESTADO CONTEMPORÁNEO BRASILEÑO

Resumo:
Este artigo tem por objetivo analisar como a lacuna existente entre o
que determina a teoria e o que acontece na prática possibilita a cor-
rupção da finalidade do Estado brasileiro contemporâneo, colocando
em segundo plano a promoção da dignidade da pessoa humana e
priorizando fatores de ordem econômica ou política. Todo esse pro-
cesso é catalisado por um déficit interpretativo, intencional ou não,
por parte dos administradores públicos e não observados nos pro-
cessos de controle, permitindo que os direitos básicos de grande
parte da população sejam desrespeitados.

Abstract:
This article aims to analyze how the gap between what determines the
theory and what happens in practice enables the corruption of the pur-
pose of contemporary Brazilian state, putting in second place the pro-
motion of human dignity and prioritizing of an economic factors or policy.
This entire process is catalysed by an interpretative deficit, intentional
or not, by public administrators and not observed in control processes,
allowing basic rights of much of the population are not respected.

Resumen:
En este artículo se pretende analizar cómo la brecha entre lo que de-
termina la teoría y lo que sucede en la práctica permite a la corrupción

*Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Goiás. Graduada


em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Servidora do TCM-GO.

117
de la finalidad del estado brasileño contemporáneo, poniendo en se-
gundo lugar, la promoción de la dignidad humana y la priorización de
una o factores económicos política. Todo este proceso es catalizado
por un déficit interpretativa, intencional o no, por los administradores
públicos y no se observa en los procesos de control, permitiendo que
los derechos básicos de gran parte de la población no son respetados.

Palavras-chave:
Dignidade da pessoa humana; interpretação;controle.

Keywords:
Dignity of human person; interpretation, control.

Palabras clave:
La dignidad humana; interpretación, control.

INTRODUÇÃO

Há um ditado popular que diz que “política não se discute”.


Não sei quem foi o “filósofo” responsável por essa “lição de vida”,
mas, em uma época dominada pelas redes sociais, em que qualquer
pessoa pode falar sobre qualquer assunto usando qualquer argu-
mento, subentende-se que tal pensamento não se sustenta. Afinal,
nossas timelines estão sobrecarregadas de opiniões e discussões
acirradas sobre os mais variados assuntos, inclusive, política. Certo?
Bem, mais ou menos.
Sim, política se tornou um dos assuntos mais comentados
das redes sociais. Mas, analisando o conteúdo desses comentários,
percebe-se que, mesmo com um amplo rol de possibilidades argu-
mentativas, os discursos virtuais diários se resumem em “golpe”, “im-
peachment” e algumas palavras de baixo calão soltas no meio do
texto. Ou seja, nada de relevante. Continuamos sem discutir política.
Mas, afinal, o que é política?
O termo ganhou relevância com a obra intitulada “Política”,
escrita por Aristóteles. De acordo com o filósofo grego, o homem
pode ser definido como um animal político, haja vista que “na polis

118
grega, o cidadão, em si, é reconhecido como tal a partir de sua in-
serção no grupo, na comunidade política” (CACHICHI, 2011).
Conceituar política é uma tarefa árdua, por demandar valores
e princípios de uma determinada sociedade em uma determinada época.
O que se pode dizer é que, para existir política, deve-se existir uma so-
ciedade. De acordo com Dalmo de Abreu Dallari (2001), três elementos
são necessários para que um agrupamento humano possa ser consi-
derado uma sociedade: uma finalidade ou valor social, manifestações
de conjunto ordenadas e o poder social.
A finalidade social pode ser definida como um ato de escolha,
um objetivo conscientemente estabelecido mediante uma ação livre.
Em uma sociedade, formada por diversos grupos sociais, a finalidade
deve ser estabelecida de acordo com as necessidades fundamentais
e com os valores consagrados por todos, visando ao bem comum, que
pode ser genericamente definido como o “conjunto de condições, in-
cluindo a ordem jurídica e a garantia de possibilidades que consintam
e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana”
(DALLARI 2001, p. 24).
As manifestações de conjunto ordenadas consistem na ne-
cessidade de participação conjunta e harmônica dos agrupamentos
de pessoas visando à consecução do objetivo almejado. E, para
tanto, tais manifestações devem atender três requisitos principais e
cumulativos: reiteração, ordem e adequação.
E, por fim, o poder social, considerado por muitos como o
principal no estudo de uma sociedade, está intrinsecamente relacio-
nado com os aspectos culturais e sociais do momento a ser anali-
sado e, portanto, é um instituto de difícil definição. Mesmo assim,
Dallari aponta algumas características gerais, necessárias para que
se chegue a uma leve noção do fenômeno. Segundo ele:

A primeira característica a ser estabelecida é a socialidade, significando que


o poder é um fenômeno social, jamais podendo ser explicado pela simples
consideração de fatores individuais. Outra importante característica é a bila-
teralidade, indicando que o poder é sempre a correlação de duas ou mais
vontades, havendo uma que predomina. É importante que se tenha em conta
que o poder, para existir, necessita da existência de vontades submetidas.
Além disso, é possível considerar-se o poder sob dois aspectos: ou como
relação, quando se procede ao isolamento artificial de um fenômeno, para
efeito de análise, verificando-se qual a posição dos que nele intervêm; ou
como processo, quando se estuda a dinâmica do poder (2001, p. 34).

119
Dallari ainda afirma que o Estado seria, portanto, uma so-
ciedade política - ou seja, que “visa criar condições para a consecu-
ção dos fins particulares de seus membros, ocupando-se da
totalidade das ações humanas, coordenando-as em função de um
fim comum” (2001, p. 48) - com alguns elementos essenciais carac-
terísticos, quais sejam: o território, o povo, a soberania e a finalidade.
Norberto Bobbio (1998, p. 954-955) defende a ideia de que
política é “a atividade ou conjunto de atividades que, de alguma ma-
neira, têm como termo de referência a pólis, ou seja, o Estado” e está
intimamente ligada ao conceito de poder, definido como “consistente
nos meios adequados à obtenção de qualquer vantagem”, ou como
“conjunto dos meios que permitem alcançar os efeitos desejados”. Se-
gundo ele, o poder se exterioriza em três maneiras: o poder econômico,
o poder intelectual e o poder político. “O poder mais relevante na so-
ciedade é o poder político, pois detém, privativamente, a força para ma-
nutenção da ordem. Impõe, nos limites da lei, a vontade de quem o
exerce, atuando em nome do povo” (apud PINTO, 2010, p. 207).
Paulo Bonavides entende que o poder pode ser definido
como um “elemento essencial constitutivo do Estado” e representa
“aquela energia básica que anima a existência de uma comunidade
humana, num determinado território, conservando-a unida, coesa e
solidária”. Para ele, com o poder se entrelaçam a força e a compe-
tência, ou seja, a legitimidade oriunda do consentimento. A principal
característica do Estado moderno seria a prevalência da legitimi-
dade sobre a força, caracterizada por um processo de despersona-
lização do poder, marcado pela “passagem de um poder de pessoa
a um poder de instituições, de poder imposto pela força a um poder
fundado na aprovação do grupo, de um poder de fato a um poder
de direito” (2011, p. 115).
Portanto, nos Estados Modernos o poder tem por funda-
mento a legalidade e a legitimidade, em que a legalidade exprime,
basicamente, a observância das leis e do Direito e a legitimidade en-
globa crenças de determinada época, que presidem à manifestação
do consentimento e da obediência (BONAVIDES, 2014).
Percebe-se, dessa maneira, que o Direito possui um papel
fundamental na caracterização do poder estatal e na maneira com
que ele se manifesta, não sendo possível classificá-lo exclusivamente
como poder político. Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2006, p. 3)

120
considera poder e Direito como os “dois grandes instrumentos do
progresso e da civilização: o poder - a energia que move os homens
e as sociedades para a realização de seus objetivos, e o direito - a
técnica social criada para a disciplina e a contenção do poder”.
Assim, o poder do Estado hodiernamente se manifesta obe-
decendo ao mandamento constitucional do Estado Democrático de
Direito, previsto no artigo 1º da Constituição Federal. E, para uma me-
lhor compreensão do tema, é necessário analisar três aspectos fun-
damentais do poder: o Estado, como poder instituído; a democracia,
como meio de se atingir o consenso, considerando o povo como
“dono” do poder; e o Direito, como um instrumento de limitação do
poder. Entretanto, para fins desse estudo, serão analisados somente
o Estado e o Direito, tendo por base a Constituição Federal de 1988.
É claro que a separação aqui demonstrada é apenas para
fins didáticos, visto que os institutos mencionados não são constru-
ções atemporais e independentes, sendo impossível, empiricamente,
fazer uma separação rígida entre eles.

ESTADO

O Estado moderno, formado no século XV, é caracteri-


zado pela busca da unidade, que “se concretizaria com a afirma-
ção de um poder soberano, no sentido de supremo, reconhecido
como o mais alto de todos dentro de uma precisa delimitação ter-
ritorial” (DALLARI, 2001, p. 70). Apesar dos vários entendimentos
no que se refere ao tema, Dallari elenca quatro elementos fun-
damentais do Estado moderno: a soberania, o território, o povo
e a finalidade, sendo, esta última, o foco deste estudo.
É impossível compreender a dinâmica estatal sem ter a
consciência de seus fins. Diversas teorias já foram criadas no de-
correr da história para justificar a existência do Estado, e esta é
uma questão que remonta à Antiguidade clássica, com filósofos
como Platão e Aristóteles. Com objetivos didáticos, será utilizada a
classificação das teorias relativas à finalidade estatal de Dallari, em
sua obra “Elementos da Teoria Geral do Estado”, de 2001.
De acordo com o referido autor, a primeira classificação
a ser feita é a dos fins objetivos e dos fins subjetivos do Estado.

121
Os fins objetivos compreendem “o papel representado pelo Es-
tado no desenvolvimento da história da Humanidade”. Para al-
guns autores, como Platão e Aristóteles, existem fins universais
objetivos, comuns a todos os Estados de todos os tempos. Ou-
tros autores, entretanto, não admitem esse pensamento, defen-
dendo a ideia de que o Estado é um fim em si mesmo (teoria
organicista); de que não existe uma finalidade específica para o
Estado, visto que a vida social não pode ser controlada e domi-
nada (teoria mecanicista); ou que, na verdade, o que existem são
fins particulares objetivos, e não fins universais objetivos, como
defendido, levando-se em consideração o fato de cada Estado
ter seus fins particulares, “que resultam das circunstâncias em
que eles surgiram e se desenvolveram e que são condicionantes
de sua história” (2001, p. 104).
Já os fins subjetivos se referem à conjugação entre os
fins do Estado e os fins individuais. “O Estado é sempre uma uni-
dade de fim, ou seja, é uma unidade conseguida pelo desejo de
realização de inúmeros fins particulares, sendo importante loca-
lizar os fins que conduzem à unificação” (DALLARI, 2001, p. 104).
Outra classificação importante é a que diferencia os fins
do Estado segundo o ponto de vista do relacionamento do Estado
com os indivíduos, quais sejam: fins expansivos, fins limitados e
fins relativos.
Um Estado com fins expansivos atua desmesurada-
mente em todas as áreas da vida social, interferindo diretamente
em todas elas. Dallari elenca como subdivisões dessa classifica-
ção as teorias utilitárias, segundo as quais o “bem supremo má-
ximo é o desenvolvimento material, mesmo que isso se obtenha
com o sacrifício da liberdade e de outros valores fundamentais
da pessoa humana” (2001, p. 104-105); e as teorias éticas, que
“preconizam a absoluta supremacia de fins éticos, sendo este o
fundamento da ideia do Estado ético” (2001, p. 105). Um exemplo
desse tipo de Estado seria o Estado de bem-estar.
Um Estado com fins limitados ocupa a “posição de mero
vigilante da ordem social, não admitindo que ele tome iniciativas,
sobretudo em matéria econômica”. Dentre os exemplos desse
tipo de Estado encontram-se o Estado de polícia, em que só há
uma atuação estatal para “proteger a segurança dos indivíduos,

122
nos casos de ameaça externa ou de grave perturbação interna”;
e o Estado-liberal, inspirado em John Locke, o qual possui exclu-
sivamente a “função de proteger a liberdade individual, empres-
tando um sentido muito amplo ao termo liberdade, não admitindo
que qualquer indivíduo sofra a mínima restrição em favor de outro
indivíduo, da coletividade ou do Estado” (2001, p. 105).
Já um Estado com fins relativos baseia-se na ideia de
solidariedade. “Trata-se de uma nova posição, que leva em conta
a necessidade de uma atitude nova dos indivíduos no seu rela-
cionamento recíproco, bem como nas relações entre o Estado e
os indivíduos” (DALLARI, 2001, p. 106). Dallari ainda comple-
menta, afirmando que nesse tipo de Estado, as categorias de ta-
refas estatais se resumem em conservar, ordenar e ajudar.
Existe uma última classificação que divide os fins do Es-
tado em: fins exclusivos ou essenciais, que são aqueles que per-
tencem originariamente ao Estado e compreendem a segurança,
externa e interna; e fins concorrentes, complementares ou inte-
grativos, os quais “não exigem que o Estado trate deles com ex-
clusividade, achando-se, no todo ou em parte, identificados com
os fins de outras sociedades” (DALLARI, 2001, p. 107).
Sintetizando todas as ideias apresentadas, Dallari afirma
que o Estado, como sociedade política, possui um fim geral,
constituindo-se em meio para que os indivíduos e as demais so-
ciedades possam atingir seus respectivos fins particulares. No
Estado moderno, pode-se afirmar que o fim do Estado é o bem
comum, definido como o “conjunto de todas as condições de vida
social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da
personalidade humana”, as quais precisam ser verificadas no
contexto do Estado, em função das peculiaridades de cada povo
(DALLARI, 2001, p. 107).
Vale ressaltar, ainda, o ensinamento do referido autor se-
gundo o qual, na consecução de seus objetivos, os Estados
devem levar em conta três dualismos fundamentais em suas de-
cisões: necessidade e possibilidade, indivíduos e coletividade, e
liberdade e autoridade, agindo da forma que melhor atenda aos
anseios sociais.

123
ESTADO CONTEMPORÂNEO

Pode-se considerar que o Estado contemporâneo é uma


continuação do Estado moderno? É possível importar conceitos
e elementos de um Estado formado no século XV e aplicá-los ao
Estado que conhecemos nos dias atuais? Tais características se
mantiveram com o decorrer dos anos ou houve alguma mudança
significativa na essência estatal?
Inicialmente, faz-se necessário delimitar o conceito de Es-
tado contemporâneo. E, para tanto, será feito um pequeno aparato
histórico desde a formação do Estado moderno até os dias atuais.
É claro que os conceitos aqui trabalhados seguem uma linha de
raciocínio que tem por escopo corroborar a ideia defendida neste
trabalho, não possuindo nenhuma pretensão de esgotar o tema
ou classificar algum pensamento como correto ou incorreto.
Segundo Dalmo de Abreu Dallari, o Estado pode ser con-
ceituado como “a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem
comum de um povo situado em determinado território” (2001, p.
118). Já Paulo Bonavides compartilha do mesmo entendimento
de Jellinek, segundo o qual “o Estado é a corporação de um
povo, assentada num determinado território e dotada de um
poder originário de mando” (2014, p. 71). Em ambos os concei-
tos, os elementos formadores do Estado fazem-se presentes,
quais sejam: o elemento humano, o território e o poder político.
Para Luciano Gruppi, o Estado Moderno, considerado
como o “Estado unitário dotado de um poder próprio indepen-
dente de quaisquer outros poderes”, originou-se na França, na
Inglaterra e na Espanha durante a segunda metade do século
XV, e possui como características a autonomia, a distinção entre
o Estado e a sociedade civil e a identificação absoluta entre o
Estado e o monarca, que representa a soberania estatal (apud
STRECK; MORAIS, 2004).
A primeira versão do Estado Moderno foi o Estado abso-
lutista, fundamental para assegurar a unidade territorial das na-
ções e para os propósitos da burguesia na origem do capitalismo,
visto que “esta, por razões econômicas, ‘abriu mão’ do poder po-
lítico, delegando-o ao soberano, concretizando-se [...] aquilo que
Hobbes sustentou no Leviatã” (STRECK; MORAIS, 2004, p. 46).

124
A base de sustentação do poder monárquico era a ideia de que o
poder dos reis derivava de algo divino, transcendental, o que sig-
nificava a completa autonomia do monarca e a impossibilidade de
controle ou limitação por nenhum outro poder ou instituição.
A segunda versão do Estado moderno foi o Estado liberal,
inaugurado com a Revolução Francesa em 1789, que surgiu da
luta burguesa contra o absolutismo e caracterizava-se por “uma
ideologia de princípios individualistas, que defendia garantias contra
os poderes arbitrários, direitos humanos, liberdade, mobilidade so-
cial e, principalmente, a limitação da área de ingerência do Estado,
entre outras ideias” (STRECK; MORAIS, 2004, p. 49).
Definir o liberalismo é uma tarefa difícil, mas Streck e
Morais, utilizando a divisão formulada por Roy Macridis, identifi-
cam alguns núcleos distintos - moral, político e econômico -, que
se mantiveram em todas as fases de seu desenvolvimento.
No núcleo moral, encontram-se as liberdades pessoais,
fundadas na garantia de proteção individual contra o governo, e
sociais, que correspondem às denominadas oportunidades de
mobilidade social, “sendo que todos têm a possibilidade de al-
cançar uma posição na sociedade compatível com suas poten-
cialidades” (STRECK; MORAIS, 2004, p. 53).
O núcleo político apresenta-se sob quatro aspectos: 1)
consentimento individual, fonte da autoridade política e dos po-
deres do Estado; 2) representação, em que os competentes para
decidir eram eleitos pelo povo, conforme determinados requisitos
pré-estabelecidos; 3) constitucionalismo, definido como o res-
peito a um documento fundamental que delimitasse o poder po-
lítico e orientasse a atividade estatal; 4) soberania popular, em
que a fonte do poder político é a vontade geral, normalmente ex-
ternada por meio de representantes eleitos.
E, por fim, o núcleo econômico pode ser relacionado com
o modelo de economia liberal, cujos pilares são a propriedade
privada e o mercado livre de controles estatais, e se relaciona
com “a ideia dos direitos econômicos e de propriedade, indivi-
dualismo econômico ou sistema de livre empresa ou capitalismo”
(STRECK; MORAIS, 2004, p. 55).
No final do século XIX, impulsionada pelo crescimento
das cidades e surgimento do proletariado urbano, houve uma

125
mudança significativa no pensamento liberal, com a substituição
de um minimalismo estatal, atuante apenas para a segurança in-
dividual, por uma visão mais abrangente, em que o Estado teria
o papel de remover os obstáculos “para o autodesenvolvimento
dos homens, pois com um maior número de indivíduos podendo
usufruir das mais altas liberdades, estar-se-ia garantindo efetiva-
mente o cerne liberal, qual seja: a liberdade individual” (STRECK;
MORAIS, 2004, p. 57). Assim, surge a ideia de justiça social, na
qual se preconiza a igualdade de oportunidades e a solidarie-
dade, e uma terceira versão do Estado entra em cena: o Welfare
State ou Estado de bem-estar social.
De acordo com Maximiliano Martin Vicente (2009), o Es-
tado de bem-estar social, estabelecido entre 1940-1960, período
conhecido como “era dourada do capitalismo”, visava recuperar
“o vigor e a capacidade de expansão dos países capitalistas após
a tensão social, econômica e política do período entre guerras”.
Por certo tempo, o objetivo foi alcançado, propiciando, através
do desenvolvimento econômico, das garantias sociais e do ofe-
recimento de emprego para a maioria da população nos países
mais desenvolvidos, o crescimento econômico industrial e a im-
plementação das políticas sociais por meio da participação de di-
ferentes setores da sociedade.
Certo é que o Estado, principalmente após a Segunda
Guerra Mundial, passou de figura passiva na ordem social, inter-
ferindo apenas quando era estritamente necessário, para uma fi-
gura ativa, com a obrigação não apenas de garantir direitos,
como também de provê-los. Por isso, Streck e Morais caracteri-
zam o Estado de bem-estar social como “aquele que garante
tipos mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação, educa-
ção, assegurados a todo cidadão, não como caridade, mas como
direito político” (2004, p. 71).
Entretanto, o momento dourado do Estado de bem-estar
social começou a sucumbir em meados de 1970, principalmente
com as crises do petróleo de 1973 e 1979. A alta do preço do petró-
leo e do gás natural interferiu diretamente nas indústrias dos países
capitalistas e representou “uma das jogadas do bloco soviético para
estrangular o abastecimento de combustíveis da potência norte-
americana” (VICENTE, 2009), haja vista a ex-União Soviética ter

126
sido uma potência na produção dos referidos combustíveis.
Nesse contexto, ganha força a ideologia neoliberal, cujas
ideias começaram a se consolidar na década de 1940, na cidade
de Mont Pèlerin, em que um grupo de intelectuais, liderados por
Friederich Hayek, se reuniam anualmente. Para os neoliberais,
“os problemas enfrentados pelos países ocidentais provinham
das pressões do operariado por melhores salários, o que resul-
tava em despesas excessivas por parte do Estado”.

Assim, o Estado de bem-estar social adquiriu a imagem de mau admi-


nistrador da economia, com a consequente desmoralização e a acusa-
ção de ser inoperante, constituindo um empecilho para o progresso
econômico. Concomitantemente, defendiam-se a livre iniciativa e a va-
lorização das organizações econômicas, uma vez que elas detinham
as condições para dinamizar a economia diante do fracasso do Estado1.

Dessa maneira, o neoliberalismo surge como a melhor


opção para a crise que acontecia nos países mais desenvolvidos,
principalmente nos Estados Unidos, por possibilitar um avanço
do capitalismo durante o auge da Guerra Fria. Nas palavras de
Maximiliano Martin Vicente (2009):

O novo liberalismo (neoliberalismo) preza o mercado livre global. Nele


‘as empresas, corporações e conglomerados transnacionais adquiri-
ram preeminência sobre as economias nacionais’. Dando sustentação
ao processo, uma nova divisão internacional do trabalho e a flexibili-
zação dos processos produtivos surgiram, entre outras manifestações
do capitalismo, sempre em escala mundial. ‘Intensificou-se e genera-
lizou-se o processo de dispersão geográfica da produção, ou das for-
mas produtivas [...] tudo isso amplamente agilizado e generalizado
com base nas técnicas eletrônicas [...] Globalizaram-se as instituições,
os princípios jurídicos-políticos, os padrões socioculturais e os ideais
que constituem as condições e produtos civilizatórios do capitalismo’2.

Portanto, as políticas neoliberais começaram a ser im-


plantadas e surge, nesse momento, a principal diferença entre o
Estado contemporâneo e o Estado moderno clássico, em minha

1 Disponível em: http://books.scielo.org/id/b3rzk/pdf/vicente-9788598605968-


08.pdf. Acesso em: 15 jan 2016.
2 Disponível em: http://books.scielo.org/id/b3rzk/pdf/vicente-9788598605968-

08.pdf. Acesso em: 15 jan 2016.

127
opinião: a globalização.
Houve, portanto, uma redefinição do papel do Estado,
provocada pela “formação de blocos políticos e econômicos, pela
perda de densidade do conceito de soberania e pelo aparente
esvaziamento do poder diante da globalização” (BARROSO,
2011, p. 91). Mas isso não significa que o Estado tenha perdido
o protagonismo nas relações sociais e nem que está em vias de
desaparecer. No entendimento de Luís Roberto Barroso:

O Estado ainda é a grande instituição do mundo moderno. Mesmo


quando se fala em centralidade dos direitos fundamentais, o que está
em questão são os deveres de abstenção ou de atuação promocional
do Poder Público. Superados os preconceitos liberais, a doutrina pu-
blicista reconhece o papel indispensável do estado na entrega de
prestações positivas e na proteção diante da atuação abusiva dos
particulares (2011, p. 92).

Vale ressaltar ainda o ensinamento de Ignacio Ramonet,


segundo o qual a globalização tem por fundamento dois pilares
ou paradigmas inabaláveis: a comunicação e o mercado.
Colocando dessa maneira, pode-se passar a impressão
de que o Estado contemporâneo é comandado, de maneira ili-
mitada, pela mídia e pelo mercado. Entretanto, há uma questão
a ser acrescida: desde a Revolução Francesa, há um enalteci-
mento dos direitos humanos, principalmente como uma proteção
contra o Estado opressor ou Estado Leviatã. Porém, com a Segunda
Guerra Mundial e seu festival de atrocidades, escancarou-se um
problema que existia na efetivação dos direitos humanos: a ne-
cessidade de existir uma vontade política por parte do Estado.
O pós-guerra foi marcado por uma proliferação de enunciados
normativos provenientes de organismos internacionais protetores
dos direitos fundamentais. Assim, com a globalização, não só a
economia, a moda, a tecnologia e a mídia ditam as regras, mas
também os direitos humanos.
E é na junção desses diferentes campos sociais que
surge o maior dilema do Estado contemporâneo: conciliar a ideia
de ordem, “no sentido de situação estabelecida, com o intenso di-
namismo social, que ele deve assegurar e promover e que implica
a ocorrência de uma constante mutação” (DALLARI, 2001, p. 139).

128
E a pergunta que não quer calar: onde aparece o Brasil
nessa história?
Alguns autores afirmam que o Estado de bem-estar so-
cial nunca chegou a ser implantado no Brasil. A meu ver, nem o
Estado liberal, com seus ideias de liberdade do indivíduo e não
intervenção estatal, teve um desenvolvimento completo. Como
visto, o contexto histórico brasileiro sempre foi deslocado da his-
tória das civilizações ocidentais centrais, o que leva Streck e de
Morais (2004) a afirmarem que a modernidade brasileira é tardia
e arcaica, necessitando de uma atenção específica ao analisá-
lo e compará-lo com o de outros países. O que torna, dessa ma-
neira, a responsabilidade do Estado brasileiro maior ainda, visto
que “em países como o Brasil, em que o Estado Social não exis-
tiu, o agente principal de toda a política social deve ser o Estado”
(STRECK; MORAIS, 2004, p. 78).
É curioso estabelecer um papel tão importante para o
Estado em um momento em que as ideias neoliberais ganham
força, principalmente pela ineficiência estatal na consecução de
seus deveres fundamentais e pela atual crise político-econômica,
que necessita de medidas de austeridade para ser controlada (se
ainda for possível controlá-la). Assim, as desigualdades sociais
se agigantam. Como conciliar esses dois cenários?
Streck e Morais defendem a ideia de que o responsável
por essa conciliação seria o Direito, enquanto “legado da moder-
nidade [...] e como um campo necessário de luta para a implan-
tação das promessas modernas” (2004, p. 79). Assim, o
parágrafo 1º da Constituição cumpre um papel social importan-
tíssimo, ao estabelecer que a dignidade da pessoa humana é um
dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Isso significa
que o Estado brasileiro tem como finalidade e como limite à sua
atuação a promoção dos direitos humano-fundamentais.
Entretanto, empiricamente, o problema que surge é a
inefetividade dos dispositivos da Constituição, o que causa uma
crise de legalidade, e a irresponsabilidade dos governantes em
suas decisões, perpetuada pela ineficácia dos órgãos de controle
e a quase inexistência do controle social.
Existe ainda um agravante nessa história: o Estado poiético.
Joaquim Carlos Salgado divide o Estado, desde a sua formação, em

129
duas categorias – o ético e o poiético. O Estado ético seria a conju-
gação entre liberdade e poder, sendo classificado como imediato,
que abrange o período greco-romano até a Idade Média; técnico,
que surgiu no século XVII; e, o mediato ou Estado de Direito, que
teve como marco inicial a Revolução Francesa.
O Estado ético imediato caracteriza-se por sua dimensão
ética, é um “Estado para”, “que se justifica por uma finalidade; o
poder é para realizar alguma coisa, não é em si mesmo. E o que
o justifica é ético: o bem para o indivíduo, enquanto existente em
uma comunidade” (SALGADO, 2002).
No Estado ético mediato ou Estado de Direito existe uma
preocupação com relação à legitimidade. “O Estado ou o poder
político legitima-se ou justifica-se pela sua origem, pela técnica
com que o poder se exerce e pela finalidade” (SALGADO, 2002).
O Estado poiético, por sua vez, seria a ruptura do Estado
ético contemporâneo ou Estado de Direito, ou seja, o indivíduo,
considerado como um ser livre, deixa de ser um fim em si mesmo
e passa a ser um instrumento para algo ou alguém. Segundo
Joaquim Carlos Salgado (2002), na sociedade contemporânea,
existe um grupo que domina a técnica através do econômico,
transformando em mercadoria a força de trabalho e considerando
o trabalhador apenas em sua capacidade de fazer, impondo-lhe
o regime da oferta e da procura, expulsando-o da estrutura es-
sencial da unidade de produção, ou seja, a empresa. No Estado
poiético, o produto do fazer é o econômico, que nenhum com-
promisso tem com o ético, visto que não se dirige a realizar os
direitos sociais, e procura, com a aparência de cientificidade, sub-
jugar o político, o jurídico e o social.
Essa cisão do Estado causa graves consequências so-
ciais. De acordo com Salgado, essas consequências podem ser
resumidas em três grupos: um grupo de natureza moral, um de
natureza política e um de natureza jurídica. A consequência moral
se refere ao surgimento de uma corrupção da República, não
apenas de indivíduos, em que a burotecnocracia age como um
instrumento de usurpação da legitimidade democrática do poder.
A consequência política resume-se à sua incompatibili-
dade com a democracia, haja vista o aumento do poder burocrata
e a diminuição do poder exercido mediante a vontade popular. “O

130
Estado poiético é uma das formas de usurpação ou alienação do
poder, operando uma cisão profunda entre a potestas ou titulação
do poder e a auctoritas ou exercício” (SALGADO, 2002).
E, por fim, a consequência jurídica é vista no caráter a-ético
ou a-jurídico desse tipo de Estado, que busca justificar-se pela pró-
pria técnica ou aparência de técnica que o define, causando uma
insegurança jurídica generalizada, catalisada por uma anarquia le-
gislativa, repleta de medidas provisórias, que nem sempre são ne-
cessárias ou urgentes, e emendas à Constituição, como soluções
para qualquer dificuldade encontrada pelo administrador.
Conclui-se, portanto, que apesar do aparato teórico exis-
tir, a realidade da sociedade brasileira é muito diferente do que
deveria ou poderia ser. Mesmo que a defesa da dignidade da
pessoa humana seja expressamente uma finalidade do Estado,
com proteção constitucional, por muitas vezes, argumentos polí-
ticos, econômicos ou tecnológicos se sobrepõem. Enquanto isso,
o Brasil continua em um ciclo vicioso interminável, no qual se di-
videm dois tipos de pessoas: “o sobreintegrado ou sobrecidadão,
que dispõe do sistema, mas a ele não se subordina, e o subinte-
grado ou subcidadão, que depende do sistema, mas a ele não
tem acesso” (STRECK; MORAIS, 2004, p. 80).

ESTADO DE DIREITO

O Estado de Direito emergiu junto com os princípios do


liberalismo, caracterizando-se como uma possibilidade de limita-
ção jurídica do Estado, utilizando principalmente a ideia da lega-
lidade, ou seja, a submissão das atividades estatais à lei, da
divisão de poderes e da garantia dos direitos individuais.
Conforme dito, o Brasil se autodenomina Estado Demo-
crático de Direito, que tem como princípios: a) constitucionali-
dade; b) organização social democrática; c) sistema de direitos
fundamentais individuais e coletivos; d) justiça social como fun-
damento de mecanismos corretivos das desigualdades; e) igual-
dade formal e material entre os cidadãos; f) divisão dos poderes
e funções; g) o princípio da legalidade como medida do direito,

131
ou seja, “através de um meio de ordenação racional, vinculativa-
mente prescritivo, de regras, formas e procedimentos que ex-
cluem o arbítrio e a prepotência”; h) segurança e certeza jurídicas
(STRECK; MORAIS, 2004, p. 99).
Gustavo Binenbojm define Estado Democrático de Di-
reito como a conjugação entre direitos fundamentais e democra-
cia, “estruturado como conjunto de instituições jurídico-políticas
erigidas sob o fundamento e para a finalidade de proteger e pro-
mover a dignidade da pessoa humana” (2014, p. 51).
Segundo André Ramos Tavares, a principal característica
de um Estado de Direito é a exigência de que a conduta dos de-
tentores do poder se coadune com a lei, como expressão da von-
tade geral. A imposição da legalidade justifica-se pela exigência
de legitimidade, segundo a qual “as leis hão de guardar corres-
pondência com os anseios populares, consubstanciados no es-
pírito constitucional” (2013, p. 518).
Entretanto, a legalidade, entendida apenas como o res-
peito à lei, passou por uma crise, marcada pela insuficiência da
lei em abranger uma complexidade de situações características
das sociedades modernas e pela ineficácia dos enunciados nor-
mativos de uma maneira geral, favorecida pela ineficiência dos
poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. André Ramos Tavares
acrescenta ainda o abuso praticado pelos integrantes do Poder
Legislativo, que decorria do “excesso de leis na regulamentação
da vida social, de sua indesejada intromissão em setores ante-
riormente ressalvados, do emaranhado e dispersividade das leis,
gerando a insegurança, bem como da falência qualitativa verifi-
cada como constante nas leis” (2013, p. 52).
Dessa forma, ganha força a ideia de se ter um documento
formal, hierarquicamente superior às leis e aos governantes e fun-
damento do ordenamento jurídico, que preveja não apenas as ca-
racterísticas basilares de um Estado, tal qual forma de governo e
sistema de governo, mas que também cumpra o papel de limitação
do poder. É claro que nem o constitucionalismo e nem a noção de
limitação do poder são recentes, mas o que torna o constituciona-
lismo moderno tão peculiar é a centralização jurídica da Constitui-
ção (contribuição da teoria de Kelsen em 1934) e o caráter
normativo dos princípios, instrumentos na necessária dinamicidade

132
jurídica e que serão analisados posteriormente.

O constitucionalismo é um movimento que, embora de grande al-


cance jurídico, apresenta feições sociológicas inegáveis. O aspecto
jurídico revela-se pela pregação de um sistema dotado de um corpo
normativo máximo, que se encontra acima dos próprios governantes
- a Constituição. O aspecto sociológico está na movimentação social
que confere a base de sustentação dessa limitação do poder, impe-
dindo que os governantes passem a fazer valer seus próprios inte-
resses e regras na condução do Estado. O aspecto ideológico está
no tom garantístico (como decorrência da limitação do ‘poder’) pre-
gado pelo constitucionalismo. (TAVARES, 2013, p. 23).

Levando-se em consideração a importância das constitui-


ções modernas na definição do Estado e da sociedade contempo-
rânea, André Ramos Tavares defende a ideia de que vivemos em
um Estado Constitucional de Direito, em que a necessidade pri-
mordial é a defesa da Constituição, e não mais do Estado.

CONSTITUCIONALISMO

A Constituição pode ser definida como o conjunto de


princípios e regras destinados a realizar os valores da sociedade,
a despeito de se reconhecer nos valores uma dimensão supra-
positiva ou de abertura, no qual as ideias de justiça e de realiza-
ção dos direitos fundamentais desempenham um papel central
(BARROSO, 2013).

A ideia de abertura se comunica com a Constituição e traduz a sua


permeabilidade a elementos externos e a renúncia à pretensão de
disciplinar, por meio de regras específicas, o infinito conjunto de pos-
sibilidades apresentadas pelo mundo real. Por ser o principal canal
de comunicação entre o sistema de valores e o sistema jurídico, os
princípios não comportam enumeração taxativa. Mas, naturalmente,
existe um amplo espaço de consenso, onde têm lugar alguns dos pro-
tagonistas da discussão política, filosófica e jurídica do século que se
encerrou: Estado de direito democrático, liberdade, igualdade, justiça
(BARROSO, 2013, p. 127).

A novidade do constitucionalismo moderno, ou neocons-


titucionalismo, é o caráter normativo dos princípios definidores

133
dos valores da sociedade, que passam a ter aplicabilidade direta
e imediata, não necessitando da criação de uma lei posterior para
que tenha efeitos jurídicos. Além disso, os princípios adquirem o
status de referenciais interpretativos, ou seja, devem ser obser-
vados na aplicação das normas jurídicas, alcançando todos os
ramos do direito.

Os princípios constitucionais, portanto, explícitos ou não, passam a


ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico. Eles es-
pelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins.
Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas di-
ferentes partes e atenuando tensões normativas. De parte isto, servem
de guia para o intérprete, cuja atuação deve pautar-se pela identifica-
ção do princípio maior que rege o tema apreciado, descendo do mais
genérico ao mais específico, até chegar a formulação da regra con-
creta que vai reger a espécie. Estes os papéis desempenhados pelos
princípios: a) condensar valores; b) dar unidade ao sistema; c) condi-
cionar a atividade do intérprete. (BARROSO, 2013, p. 122).

A fundamentalidade da Constituição, portanto, não se


concretiza apenas com relação às decisões que traz em si, “mas
também nos procedimentos que institui para que elas sejam ade-
quadamente tomadas pelos órgãos competentes, em bases de-
mocráticas” (2011, p. 69), o que alguns autores denominaram de
filtragem constitucional.
Nesse contexto, a dignidade da pessoa humana adquire
um papel de destaque no ordenamento jurídico. Após a Segunda
Guerra Mundial e as atrocidades cometidas com proteção legal,
a dignidade tornou-se um dos grandes consensos éticos do
mundo ocidental, sendo objeto de proteção em declarações de
direitos, convenções internacionais e Constituições (BARROSO,
2013).Tendo como referência a Constituição brasileira de 1988,
verifica-se que, em seu artigo 1º, há a expressa previsão de que
a dignidade da pessoa humana é um fundamento da República
Federativa do Brasil, ou seja, toda a atividade do Estado tem
como objetivo a proteção e a promoção da dignidade humana.
Mas o que é a dignidade da pessoa humana?
Segundo Barroso, a dignidade da pessoa humana é um
valor fundamental sob a forma de princípio. “Como valor e como

134
princípio, a dignidade humana funciona tanto como justificação
moral quanto como fundamento normativo para os direitos fun-
damentais” (BARROSO, 2013, p. 43). Barroso ainda afirma que,
em uma concepção minimalista, a dignidade da pessoa humana
é composta por três elementos: valor intrínseco da pessoa hu-
mana, autonomia individual e valor comunitário.
Qual seria, dessa maneira, a relação entre dignidade da
pessoa humana e direitos fundamentais? Segundo Barroso
(2013), o conteúdo jurídico do princípio da dignidade humana
vem associado aos direitos fundamentais e abrange aspectos
dos direitos individuais, políticos e sociais.

Seu núcleo material elementar é composto do mínimo existencial, lo-


cução que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas para a
subsistência física e indispensável ao desfrute da própria liberdade.
Aquém daquele patamar, ainda quando haja sobrevivência, não há
dignidade. O elenco de prestações que compõem o mínimo existen-
cial comporta variação conforme a visão subjetiva de quem o elabore,
mas parece haver razoável consenso de que inclui: renda mínima,
saúde básica e educação fundamental. Há, ainda, um elemento ins-
trumental, que é o acesso à justiça, indispensável para a exigibilidade
e efetivação dos direitos. (BARROSO, 2013, p. 129).

Binenbojm complementa, afirmando que “à centralidade


moral da dignidade do homem, no plano dos valores, corres-
ponde à centralidade jurídica dos direitos fundamentais, no plano
do sistema normativo” (2014, p. 50).
Os direitos fundamentais podem ser analisados sob dois
aspectos: um subjetivo e outro objetivo. Os direitos fundamentais
analisados subjetivamente podem ser direitos de defesa contra
a intervenção do Poder Público; direitos a prestações positivas
por parte do Poder Público, tanto de natureza concreta e material,
como de natureza normativa; direitos à organização e ao proce-
dimento, que dependem, na sua realização, tanto de providên-
cias estatais com vistas à criação e conformação de órgãos,
entidades e repartições, como de outras, normalmente de índole
normativa, destinadas a ordenar a fruição de determinados direi-
tos e garantias
Os direitos fundamentais analisados objetivamente ex-
trapolam o âmbito individual e representam uma concretização

135
de valores em si, a serem protegidos e fomentados pelo Estado,
pelo Direito e pela sociedade.

Uma importante decorrência do reconhecimento da dimensão objetiva


dos direitos fundamentais é o surgimento dos chamados deveres de pro-
teção do Estado, de quem se passa a exigir não apenas uma abstenção,
mas também condutas positivas de proteção e promoção. [...] Não obs-
tante, há que reconhecer uma certa margem de livre conformação de
legisladores e administradores, na definição das medidas de proteção e
promoção dos direitos fundamentais. O dever de agir do Estado não se
configura como um dever de agir específico, o qual será definido pela lei
ou pela própria Administração. (BINENBOJM, 2014, p. 75).

No mesmo sentido, André Ramos Tavares elenca algumas


características dos direitos fundamentais. Uma delas é a denomi-
nada dupla natureza dos direitos fundamentais, que reconhece
tanto a sua função de direitos subjetivos quanto a de princípios ob-
jetivos da ordem constitucional. As consequências dessa última fun-
ção seriam a eficácia irradiante dos direitos fundamentais, que
“obriga que todo o ordenamento jurídico estatal seja condicionado
pelo respeito e pela vivência dos direitos humanos”, e a teoria dos
deveres estatais de proteção, que “pressupõe o Estado (Estado-
legislador; Estado-administrador e Estado-juiz) como parceiro na
realização dos direitos fundamentais” (TAVARES, 2013).
Outra característica dos direitos fundamentais é sua “di-
mensão de abertura”, o que significa, sinteticamente, que as formas
de tutela não são enumeradas de forma taxativa e “essa abertura
dos direitos fundamentais fornece o espaço de conformação ne-
cessário à atividade criativa do legislador e do juiz” (TAVARES,
2013, p. 360).
Assim, tão importante quanto o estudo da Constituição
é o estudo dos métodos de fundamentação das decisões, anali-
sando se a atividade inventiva dos administradores, legisladores
e juízes, que é necessária ao se tratar de princípios, respeita, da
melhor maneira possível, os valores sociais consagrados no texto
constitucional.

136
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E OS DIREITOS HUMANO-
FUNDAMENTAIS

Já foi mencionada a existência no ordenamento jurídico


de uma filtragem constitucional, ou seja, “toda a ordem jurídica
deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo
a realizar os valores nela consagrados” (BARROSO, 2013, p.
133). Os valores sociais são formalmente expressos através dos
princípios constitucionais, já definidos anteriormente e que ne-
cessitam de uma interpretação específica. Barroso (2013) afirma
que, com relação aos princípios, não é possível uma interpreta-
ção baseada em uma atividade de mera revelação do conteúdo
pré-existente da norma pelo intérprete, sem o desempenho de
qualquer papel criativo em sua concretização.

A nova interpretação constitucional assenta-se no exato oposto de tal


proposição: as cláusulas constitucionais, por seu conteúdo aberto,
principiológico e extremamente dependente da realidade subjacente,
não se prestam ao sentido unívoco e objetivo que uma certa tradição
exegética lhes pretende dar. O relato da norma, muitas vezes, de-
marca apenas uma moldura dentro da qual se desenham diferentes
possibilidades interpretativas. À vista dos elementos do caso con-
creto, dos princípios a serem preservados e dos fins a serem realiza-
dos é que será determinado o sentido da norma, com vistas à
produção da solução constitucionalmente adequada para o problema
a ser resolvido. (BARROSO, 2013, p. 142).

Norberto Bobbio indica a existência de três formas de fun-


dar os valores: “deduzi-los de um dado objetivo constante, como,
por exemplo, a natureza humana; considerá-los como verdades
evidentes em si mesmas; e, finalmente, a descoberta de que, num
dado período histórico, eles são geralmente aceitos (precisamente
a prova do consenso)” (2004, p.17). No ordenamento jurídico
atual, a forma que prevalece é o consenso, em que se substitui a
prova da intersubjetividade pela prova da objetividade, conside-
rada impossível ou extremamente incerta. “Trata-se, certamente,
de um fundamento histórico e, como tal, não absoluto: mas esse
fundamento histórico do consenso é o único que pode ser factual-
mente comprovado” (BOBBIO, 2004, p. 17-18).
E como chegar a um consenso decisório em relação aos

137
direitos fundamentais?
Habermas propõe a substituição da razão prática kan-
tiana por uma razão comunicativa, ou seja, a maneira de conciliar
facticidade e validade no campo do Direito é através da razão
comunicativa, baseada no “uso da linguagem orientada pelo en-
tendimento, através da qual os atores coordenam suas ações
(agir comunicativo)” com implicações nas relações sociais.
Ele trabalha com três elementos principais: quem age,
quem sofre a ação e o que legitima a ação. Uma característica
intrínseca nos elementos “quem age” e “quem sofre a ação” é a
autonomia: com relação ao primeiro, subentende-se a autonomia
em utilizar ou não sua liberdade argumentativa e, ao segundo, a
autonomia em subordinar-se às regras que ele mesmo criou (so-
berania popular). No que se refere “ao que legitima a ação”, Ha-
bermas utiliza o princípio da teoria do discurso como pressuposto
para um agir comunicativo válido.
A teoria do discurso defendida por Habermas baseia-se
em uma racionalidade procedimental, segundo a qual as quali-
dades constitutivas da validade de um juízo devem ser procura-
das, não apenas na dimensão lógico-semântica da construção
de argumentos e da ligação lógica entre proposições, mas tam-
bém na dimensão pragmática do próprio processo de fundamen-
tação (1997, p. 281). Os direitos humanos, nesse contexto,
exerceriam a função de standards, ou seja, de parâmetros tanto
na argumentação quanto na verificação da conformidade dessa
argumentação com a realidade empírica.

Assim, na perspectiva habermasiana, os direitos fundamentais do


homem não são produto de uma revelação transcendente (como na
doutrina jusnaturalista), nem de princípios morais racionalmente en-
dossados pelos cidadãos (como propõem, kantianamente, Rawls e
Dworkin), mas consequência da decisão recíproca de cidadãos livres
e iguais de legitimamente regular as suas vidas por intermédio do di-
reito positivo. O papel de tais direitos básicos é o de assegurar a auto-
nomia pública e privada dos cidadãos para que estes possam deliberar
num ambiente de liberdade e igualdade, no qual a única forma de coer-
ção seja a do melhor argumento. (BINENBOJM, 2014, p. 56)

Alexy, assim como Habermas, defende a necessidade


de uma teoria do discurso na formulação e aplicação do direito,

138
baseada em uma argumentação racional. Com relação aos direi-
tos fundamentais, a argumentação tem um caráter primordial,
visto que não são fundados em teorias materiais, mas em teorias
de princípios.

O discurso de direitos fundamentais é um procedimento argumentativo


que se ocupa com o atingimento de resultados constitucionalmente
corretos [...]. Como a argumentação no âmbito dos direitos fundamen-
tais é determinada apenas de forma incompleta por sua base, a argu-
mentação prática geral torna-se um elemento necessário do discurso
nesse âmbito. Isso significa que o discurso no âmbito dos direitos fun-
damentais, como o discurso jurídico em geral, compartilha da insegu-
rança quanto aos resultados, característica do discurso prático em
geral. Por isso, a abertura do sistema jurídico, provocada pelos direitos
fundamentais, é inevitável. Mas ela é uma abertura qualificada. Ela
diz respeito não a uma abertura no sentido de arbitrariedade ou de
mero decisionismo. A base aqui apresentada fornece à argumentação
no âmbito dos direitos fundamentais uma certa estabilidade e, por
meio das regras e formas da argumentação prática geral e da argu-
mentação jurídica, a argumentação no âmbito dos direitos fundamen-
tais que ocorre sobre essa base é racionalmente estruturada.

Nesse contexto, Barroso (2013) define três parâmetros


de controle para a argumentação jurídica, considerando a verifi-
cação da correção ou validade de uma argumentação em relação
ao caso concreto como seu principal problema.
Em primeiro lugar, a argumentação jurídica deve ser
capaz de apresentar fundamentos normativos (implícitos que
sejam) que a apoiem e lhe deem sustentação, não sendo sufi-
ciente o bom-senso e o sentido de justiça pessoal; em segundo
lugar, a argumentação jurídica, principalmente quando envolva a
ponderação, diz respeito à possibilidade de universalização dos
critérios adotados pela decisão; e um último parâmetro é formado
por dois conjuntos de princípios: os princípios instrumentais ou
específicos de interpretação constitucional e os princípios mate-
riais propriamente ditos, que trazem em si a carga ideológica,
axiológica e finalística da ordem constitucional.
As teorias de Habermas e de Alexy visam fundar as de-
cisões de uma forma mais objetiva e possuem o juiz, considerado
este como o membro do Poder Judiciário e tradicionalmente de-
finido como o responsável por aplicar a lei ao caso concreto,

139
como referência. Entretanto, analisando tudo o que foi exposto
neste trabalho e relembrando que os direitos fundamentais têm
a função de orientar as ações dos três poderes, acredito que não
existe nenhum empecilho em aplicar as referidas teorias também
às decisões dos administradores públicos, principalmente àque-
las que se referem a uma atuação positiva do Estado.
Nesse aspecto, o problema se agrava. Primeiro: na prá-
tica, as decisões dos administradores não são fundamentadas;
segundo: quando existe, a fundamentação é baseada em con-
ceitos abertos, como, por exemplo, o interesse público, que nin-
guém sabe ao certo o que significa; terceiro: a chamada “legal
injustice”, ou seja, em um rol de soluções possíveis e legítimas,
escolhe-se aquela que não resolve o problema concreto da me-
lhor forma possível. Como controlar tais decisões? É evidente
que o lindo discurso humanitário não é suficiente.
André Ramos Tavares (2013, p. 438), citando a lição de
Lewandowski, elucida que os meios formais de justificação dos
direitos humanos existem, a dificuldade encontra-se em sua con-
cretização, ou seja, é um problema político e não filosófico.

[...] os problemas relativos à institucionalização dos direitos humanos


não se encontram no plano de sua expressão formal, posto que,
nesse campo, grandes avanços foram feitos desde o surgimento das
primeiras declarações a partir do final do século XVIII. As dificuldades
localizam-se precisamente no plano de sua realização concreta e no
plano de sua exigibilidade”.

No entendimento de J. J. Gomes Canotilho, existe uma


crise da teoria da Constituição, por se mostrar insuficiente na so-
lução de problemas que podem ser divididos em dez categorias:
problemas de inclusão, de referência, de reflexividade, de univer-
salização, de materialização do direito, de reinvenção do território,
de tragédia, de fundamentação, de simbolização e de referência.
Com relação ao constitucionalismo pátrio, creio que
existe um problema adicional. Como foi dito, a promulgação da
Constituição Federal de 1988 coincidiu com o processo de rede-
mocratização brasileira. Historicamente, e salvo algumas exce-
ções, o Brasil não possui um histórico de lutas por direitos e nem
o fomento a uma cultura de direitos humanos, o que faz com que

140
o discurso humanitário seja incorporado ao ordenamento jurídico
com o status de dogma. Isso acaba refletindo no pensamento so-
cial contemporâneo, que pode se enveredar por dois caminhos
opostos e igualmente prejudiciais.
De um lado, existem aqueles que consideram os direitos
humanos como instrumento de grupos minoritários que vivem à
custa do governo e que servem exclusivamente para defendê-
los e privilegiá-los. Nesse mesmo grupo também se encontram
alguns que se consideram parte de um grupo minoritário e se
apropriam do discurso dos direitos humanos, como se quem não
fizesse parte do grupo em questão não possuísse legitimidade
para questionar e defender questões sociais fundamentais.
De outro lado, existem os que idealizam os direitos hu-
manos como o único meio de salvar a humanidade. Também con-
sidero esse pensamento prejudicial pela incompatibilidade entre
tal idealização e a realidade, ou seja, direitos humanos não
podem ser vistos como algo transcendental, uma dádiva divina.
É necessário ter em mente que é uma construção social, fruto de
lutas históricas e, quanto menos for tratado como algo intangível
e sem defeitos, mais fácil será sua concreta efetivação.

CONCLUSÃO

Conclui-se, assim, que para a efetivação dos direitos hu-


manos é necessário analisar conjuntamente o Estado, a demo-
cracia e o Direito. O Estado, como dito, vive uma fase poiética,
em que discursos econômicos se sobrepõem às suas finalidades
precípuas; a democracia é problemática, principalmente consi-
derando seu caráter aristocrático e/ou oligárquico; e o Direito pos-
sui os instrumentos formais, mas é deficiente no quesito
efetividade.
Essa lacuna entre teoria e prática demonstra que o pro-
blema da concretização dos direitos humanos é um problema
moral. Faltam alteridade, solidariedade e vontade de transformar
o mundo no melhor que ele pode ser; sobram ganância, egoísmo
e vontade de manter tudo como está.

141
Os mais desanimados poderiam dizer que a realidade só
esteja sendo um instrumento para escancarar o fracasso prático
do discurso dos direitos humanos. Eu não acredito nisso. Por
mais que o cenário seja de pessimismo, os direitos humanos têm
potencial para efetivamente transformar a sociedade. Ou, como
diria Samuel Moyn, talvez acreditar nos direitos humanos seja a
única opção, depois que todas as outras utopias fracassaram.

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144
Marcio Rodrigo Delfim*

Considerações sobre o prinCípio da


ultraprioridade absoluta no atendimento
das pessoas aComapanhadas por Crianças de
Colo Com algum tipo de defiCiênCia

COnSIDERAtIOnS On thE PRInCIPlE OF UltRA


AbSOlUtE PRIORIty In thE CARE OF PERSOnS
lInGOnbERRy FOR InFAntS wIth A DISAbIlIty

COnSIDERACIOnES SObRE El PRInCIPIO DE UltRA PRIORIDAD


AbSOlUtA En El CUIDADO DE PERSOnAS DE ARánDAnO
ROjO PARA lOS nIñOS COn UnA DISCAPACIDAD

Resumo:
Neste brevíssimo texto procuro tecer alguns comentários a respeito
daquilo que denomino “princípio da ultraprioridade absoluta”, que
nada mais é do que uma construção teórica realizada a partir da in-
terpretação conjunta do “princípio da absoluta prioridade”, contem-
plado no art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente e do
“princípio da prioridade”, previsto no art. 8º do Estatuto da Pessoa
com Deficiência. Como a elaboração desta teoria parte de um acon-
tecimento concreto vivenciado por mim e procura chegar a uma con-
clusão genérica a respeito do assunto, é possível afirmar que o
método utilizado na estruturação do pensamento foi o indutivo. Por
fim, é importante esclarecer que, muito embora os mais ortodoxos
não vejam com “bons olhos” a utilização da primeira pessoa do sin-
gular, utilizo tal artifício apenas e tão somente para conferir um as-
pecto mais humanizado e pessoal acerca do tema, motivo pelo qual
este expediente não deve ser interpretado como “arrogância acadê-
mica”, pois, definitivamente, não é essa a minha intenção.

Abstract:
This text try to make some comments about what I call "principle of ultra

* Mestre em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento pela PUC-GO,


bolsista-pesquisador da FAPEG, coordenador pedagógico da ESMP-GO e técnico
jurídico do MP-GO.

145
absolute priority," which is nothing more than a theoretical construct
made from the joint interpretation of the "principle of absolute priority"
as set out in art. 4º of the Statute of Children and Adolescents and the
"principle of priority", provided for in art. 8º of the Statute of Persons
with Disabilities. As the development of this theory part of a particular
event experienced by me and demand reach a general conclusion
about the subject, it is clear that the method used in the structuring of
thought was inductive. Finally, it is important to clarify that, although
the more orthodox not see with "good eyes" the use of the first person
singular, I use this device only and solely to impart a more human and
personal aspect of the topic, which is why this device should not be
construed as "academic arrogance" because it definitely is not my intention.

Resumen:
Este texto trata de hacer algunos comentarios sobre lo que llamo
"principio de la ultra prioridad absoluta", que no es más que una cons-
trucción teórica a partir de la interpretación conjunta del "principio de
máxima prioridad" según lo establecido en el art. 4º del Estatuto del
Niño y del Adolescente y el "principio de prioridad", previsto en el art.
8º del Estatuto de las Personas con Discapacidad. A medida que el
desarrollo de esta parte teórica de un evento en particular experimen-
tado por mí y la demanda de llegar a una conclusión general sobre el
tema, está claro que el método utilizado en la estructuración del pen-
samiento era inductivo. Por último, es importante aclarar que, si bien
la más ortodoxa no ve con "buenos ojos" el uso de la primera persona
del singular, yo uso este dispositivo solamente y exclusivamente para
impartir un aspecto más humano y personal del tema, por lo que este
dispositivo no debe ser interpretado como "arrogancia académica"
porque definitivamente no es mi intención.

Palavras-chave:
Atendimento, prioridade, crianças, adolescentes, deficientes.

Keywords:
Service, priority, children, teenagers, disabled.
Palabras clave:
Servicio, prioridad, niños, adolescentes, personas con discapacidad.

146
Recentemente, meu filho, que tem síndrome de down, pre-
cisou se submeter a uma cirurgia cardíaca na cidade de São Paulo.
Alguns dias depois de ele receber alta, após quase um mês
de internação hospitalar, eu e minha esposa não víamos a hora de
voltar para casa (em Goiânia).
Assim, no último dia 28 de setembro, ao chegarmos ao aero-
porto de Congonhas, em São Paulo, rapidamente nos dirigimos a um
dos guichês de atendimento da empresa responsável pela nossa via-
gem, a fim de realizar o check-in e despachar nossas bagagens.
nesse momento, um dos funcionários da referida compa-
nhia aérea nos perguntou qual o destino da nossa viagem. Assim
que nós dissemos que estávamos vindo para Goiânia, ele nos en-
caminhou a uma fila de “passageiros com preferência”.
tal fato nos chamou atenção porque, enquanto a maior
parte dos guichês de atendimento da mencionada empresa aérea
estavam bastante tranquilos, com, no máximo, duas ou três pes-
soas para serem atendidas, a fila do guichê indicado estava enorme.
Era possível encontrar idosos, mulheres com crianças de colo, ca-
deirantes e, também, pessoas que, aparentemente, não deveriam
estar ali.
Após questionar outra funcionária da empresa, a respeito dos
critérios utilizados para a seleção dos passageiros “preferenciais”, fui
informado de que, além das pessoas com as características já men-
cionadas, também tinham preferência no atendimento todos aqueles
que possuíssem um “cartão fidelidade” da referida empesa aérea.
nesse momento, pedi para minha esposa ficar na fila en-
quanto eu ia conversar com a funcionária responsável pelo guichê
“preferencial”.
Inicialmente eu expliquei para a referida funcionária que
meu filho, além de ser uma criança de colo (à época com apenas
cinco meses de vida), era deficiente, na acepção jurídica do termo
(a síndrome de down é considerada deficiência intelectual) e, além
disso, tinha acabado de se submeter a uma complexa cirurgia car-
díaca. na sequência, eu perguntei se nós poderíamos ser atendidos
antes dos demais passageiros.
A resposta veio de uma forma bastante direta: “- Senhor,
todos os passageiros desta fila são preferenciais”.

147
Eu, sinceramente, não podia acreditar no que acabava de
ouvir. De acordo com a política da referida empresa, uma criança de
colo com necessidades especiais e uma pessoa com o “cartão fide-
lidade” da empresa deveriam receber o mesmo tratamento.
Diante de tal resposta, eu comecei a explicar para a funcio-
nária que essa forma de tratamento era totalmente incompatível com
a nossa legislação, em especial com a Constituição da República de
1988, com o Estatuto da Criança e do Adolescente (lei n. 8.069/90),
com o Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei n. 13.146/15) e com
a lei n. 10.048/00.
A resposta novamente veio de forma lacônica: “- Senhor,
como eu já disse, todos os passageiros desta fila são preferenciais”.
Por sorte, as pessoas que estavam na fila, ao escutarem o
teor da conversa, demonstraram profundo bom senso, pois come-
çaram a pedir para a funcionária nos atender antes dos demais, o
que foi feito muito a contragosto, tanto que ela insistiu em dizer o se-
guinte: “- Senhor, apesar de todos os passageiros desta fila serem
preferenciais, desta vez eu vou abrir uma exceção”.
nesse momento, eu respirei fundo, controlei meu estresse
(para não falar umas “verdades” para ela) e simplesmente agradeci
o “favor” que ela havia nos feito.
Apesar de superado o impasse, minha indignação ainda
persiste. Por isso, resolvi escrever esse brevíssimo texto.

O art. 1º da lei n. 10.048/00 estabelece:

Art. 1º. as pessoas portadoras de deficiência, os idosos com idade


igual ou superior a 60 (sessenta) anos, as gestantes, as lactantes e as
pessoas acompanhadas por crianças de colo terão atendimento
prioritário, nos termos desta lei (grifei).

Apesar de a referida lei não especificar o que seja “criança de


colo”, é preciso invocar “o uso de bom senso para poder identificar o
caso da criança que precisa do seu responsável para poder locomover-
se (por ser muito pequena, por estar doente ou dormindo, etc.), de-
vendo observar o princípio da boa-fé”.1
Somente este dispositivo já seria mais do que suficiente
para demonstrar não só o desvirtuamento legal da política adotada
pela empresa aérea em questão, mas, também, o despreparo de

148
seus colaboradores. Apesar disso, é possível tecer algumas consi-
derações mais detalhadas a respeito do assunto.

O art. 227 da Constituição da República de 1988 estabelece


o seguinte:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à


criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito
à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (grifei).

Redação bastante semelhante é encontrada no art. 4º do


ECA, transcrito abaixo:

Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e


do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação
dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao res-
peito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (grifei).

Esse dispositivo, que “praticamente reproduz a primeira


parte do enunciado do art. 227, caput, da CF, procura deixar claro
que a defesa dos direitos fundamentais assegurados à criança
e ao adolescente, não é tarefa de apenas um órgão ou entidade,
mas deve ocorrer a partir de uma ação conjunta e articulada
entre família, sociedade/comunidade e poder público” (grifei).2
Como se pode perceber, toda sociedade tem o dever de as-
segurar, com absoluta prioridade, o direito à dignidade e ao respeito,
em relação às crianças.
Porém, no caso relatado, não foi isso que aconteceu, pois, a
partir do momento em que a funcionária da companhia aérea dá pre-
ferência de atendimento a uma pessoa com o “cartão fidelidade” da
empresa, em detrimento de uma criança de colo, ela está atribuindo
maior importância ao aspecto financeiro do que à “peculiar condição

1 Disponível em: http://www.procon.sp.gov.br/dpe_respostas.asp?id=30&resposta=254


> Acesso em: 15 out. 2015.
2 Disponível em: <http://www.mpdft.mp.br/portal/pdf/unidades/promotorias/pdij/legisla-

cao%20e%20jurisprudencia/ECA_comentado.pdf > Acesso em: 15 out. 2015.

149
da criança como pessoa em desenvolvimento”, mencionada no art.
6º do ECA, violando, com isso, seu respeito e sua dignidade.
Complementando tal raciocínio, a alínea “b” do parágrafo
único do art. 4º do ECA estabelece:

Art. 4º. (...)


(...)
Parágrafo único - a garantia de prioridade compreende:
(...)
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevân-
cia pública (grifei).

Em outras palavras, isso significa que:

todos os serviços públicos ou de relevância pública devem se ade-


quar ao atendimento prioritário (e em regime de prioridade absoluta)
a crianças e adolescentes, para tanto melhor organizando as estruturas
já existentes e/ou criando novas, contratando e capacitando pessoal etc.
esse ‘tratamento especial’ (e preferencial) visa evitar que os interes-
ses de crianças e adolescentes caiam na ‘vala comum’ dos demais
atendimentos ou - o que é pior - sejam relegados ao segundo plano,
como usualmente ocorre. (...) o atendimento de crianças, adolescen-
tes e suas respectivas famílias, (...) portanto, deve primar pela celeri-
dade e pela especialização, não sendo admissível, por exemplo, que
sejam aqueles submetidos à mesma estrutura e sistemática desti-
nada ao atendimento de outras demandas, de modo a aguardar no
mesmo local e nas mesmas ‘filas’ que estas (...) (grifei).3

nesse momento é importante esclarecer que, apesar de a alí-


nea “b” do parágrafo único do art. 4º do ECA estabelecer uma prece-
dência de atendimento nos serviços públicos, é perfeitamente possível
invocar a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, a qual
vem sendo adotada, de forma sistemática, pelo Supremo tribunal
Federal, como se verifica na seguinte ementa, trazida à colação ape-
nas a título exemplificativo:

Sociedade civil sem fins lucrativos. União brasileira de Compositores. Ex-


clusão de sócio sem garantia da ampla defesa e do contraditório. Eficácia
dos direitos fundamentais nas relações privadas. Recurso desprovido. I.

3Disponível em: <http://www.mpdft.mp.br/portal/pdf/unidades/promotorias/pdij/legisla-


cao%20e%20jurisprudencia/ECA_comentado.pdf > Acesso em: 15 out. 2015.

150
eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. as viola-
ções a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das
relações entre o cidadão e o estado, mas igualmente nas relações
travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. assim,
os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam
diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados
também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.
(...) (grifei). (StF - RE 201819/Rj, rel. Min. Ellen Gracie, rel. p/ acórdão
Min. Gilmar Mendes, j. 11/10/2005, 2ª t., Dj 27/10/2006, p. 64).4

tecidas essas considerações, retomo a questão relacionada


ao princípio da absoluta prioridade, contemplado tanto no art. 227 da
CR/88 quanto no art. 4º do ECA, a fim de esclarecer que, de acordo
com Aurélio buarque de holanda Ferreira, a palavra prioridade pode
ser definida como “preferência dada a alguém relativamente ao
tempo de realização de seu direito, com preterição do de outros”.
já a palavra absoluta, ainda de acordo com o renomado lexicógrafo,
significa “ilimitada, irrestrita, plena, incondicional” (grifei).5
A soma dos dois vocábulos indica, perfeitamente, o sentido
do mencionado princípio constitucional: “qualificação dada aos direi-
tos assegurados à população infanto-juvenil, a fim de que sejam in-
seridos na ordem-do-dia, com primazia sobre quaisquer outros”.6
Com base no que acaba de ser mencionado já é possível
concluir que o simples fato de o meu filho ser uma criança de colo já
lhe conferiria preferência no atendimento, em decorrência da aplica-
ção do princípio da absoluta prioridade.
Porém, tal preferência fica ainda mais acentuada pelo fato
de ele ser uma pessoa com deficiência.
Isso porque, como já referido anteriormente, meu filho tem
síndrome de down, “alteração genética que ocorre na formação do
bebê, no início da gravidez”, considerada um dos “principais tipos de
deficiência intelectual”.7
Sendo assim, a ele se aplica, também, a lei n. 13.146/15,
mais conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência.

4 Disponível em: <http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/246_Caso%20UbC%20-


%20RE_201819.pdf > Acesso em: 15 out. 2015.
5 Disponível em: <http://intranet.mpgo.mp.br/aurelio/> Acesso em: 15 out. 2015.
6 Disponível em: <http://www2.mp.pr.gov.br/cpca/telas/ca_igualdade_17_2_1_5.php>

Acesso em: 9 out. 2015..

151
nesse momento interessa trazer à tona, especificamente, o
art. 8º do referido diploma legal, cuja redação estabelece o seguinte:

Art. 8º. É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pes-


soa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos refe-
rentes à vida, à saúde, à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à
alimentação, à habitação, à educação, à profissionalização, ao trabalho,
à previdência social, à habilitação e à reabilitação, ao transporte, à aces-
sibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à informação, à
comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à dignidade, ao
respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre outros
decorrentes da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis e de ou-
tras normas que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico
(grifei).

A leitura desse dispositivo deixa transparecer que toda so-


ciedade tem o dever de assegurar, com prioridade, em relação à pes-
soa com deficiência, seu direito ao transporte, à acessibilidade, à
dignidade e ao respeito, o que também não ocorreu no caso em tela.
Como se isso não fosse suficiente para demonstrar o des-
respeito por parte dos funcionários da companhia aérea em questão,
no que tange ao tratamento preferencial que deveria ter sido dado
ao meu filho, o artigo 9º do Estatuto da Pessoa com Deficiência con-
templa regra expressa nesse sentido. Com efeito, a redação do men-
cionado dispositivo legal é a seguinte:

Art. 9º. a pessoa com deficiência tem direito a receber atendimento


prioritário, sobretudo com a finalidade de:
(...)
II - atendimento em todas as instituições e serviços de atendimento
ao público (grifei).
Como é possível perceber, esse dispositivo é mais abran-
gente do que o previsto no ECA, pois o atendimento prioritário aqui
estipulado não fica restrito apenas aos serviços públicos ou de rele-
vância pública, mas se estende a todas as instituições e serviços de
atendimento ao público, o que, em outras palavras, significa que
todas as instituições e serviços (mesmo os privados) que atendam

7Disponível em: <http://www.apaesp.org.br/SobreADeficienciaIntelectual/Paginas/O-que-


e.aspx> Acesso em: 9 out. 2015.

152
ao público devem observar a prioridade de atendimento inerente às
pessoas com deficiência.
Por fim, é importante trazer à baila o art. 5º do Estatuto da
Pessoa com Deficiência, que contempla a seguinte regra:

Art. 5º. a pessoa com deficiência será protegida de toda forma de


negligência, discriminação, exploração, violência, tortura, crueldade,
opressão e tratamento desumano ou degradante.
Parágrafo único. para os fins da proteção mencionada no caput deste
artigo, são considerados especialmente vulneráveis a criança, o
adolescente, a mulher e o idoso, com deficiência.

novamente invocando a lição de Aurélio buarque de ho-


landa Ferreira, é possível definir a palavra negligência como “de-
satenção, menoscabo, menosprezo”8, o que se amolda
perfeitamente ao comportamento apresentado pelos funcionários da
empresa aérea em relação aos direitos do meu filho.
Por todos esses motivos, defendo a tese de que o atendi-
mento dispensado às pessoas acompanhadas por crianças de colo
que apresentem algum tipo de deficiência deva ser sempre pautado
por aquilo que denomino ultraprioridade absoluta.

8 Disponível em: <http://intranet.mpgo.mp.br/aurelio/ > Acesso em: 15 out. 2015..

153
referênCias

APAE/SP. O que é deficiência intelectual. Disponível em:


<http://www.apaesp.org.br/SobreADeficienciaIntelectual/Pagi-
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bRASIl. lei n. 13.146/15 - Estatuto da Pessoa com Deficiência.


Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
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201819/Rj, rel. Min. EllEn GRACIE, rel. p/ acórdão Min. GIlMAR
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154
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ca_igualdade_17_2_1_5.php>. Acesso em: 9 out. 2015.

155
156
Eliseu Antônio da Silva Belo *

A INTERPRETAÇÃO ADEQUADA
DA SÚMULA 713 DO STF

ThE PROPER inTERPRETATiOn OF PRECEDEnT 713


OF ThE SUPREME COURT

LA inTERPRETACión ADECUADA DE LO PRECEDEnTE 713


DEL TRiBUnAL SUPREMO

Resumo:
A Súmula 713 do Supremo Tribunal Federal tem o seguinte teor: “O
efeito devolutivo da apelação contra decisões do Júri é adstrito aos
fundamentos da sua interposição”. Em função de sua redação, con-
troverte-se na doutrina e na jurisprudência qual seria a sua interpre-
tação adequada, para efeito de conhecimento da referida apelação.
Indaga-se se, para tanto, os fundamentos de sua interposição devem
ser inseridos pelo apelante apenas no termo de interposição do apelo,
com expressa menção a uma ou mais das alíneas do art. 593, III, do
Código de Processo Penal, ou se eles poderiam ser extraídos pelo
órgão julgador ad quem da peça destinada às respectivas razões re-
cursais. Conclui-se, por diversos elementos interpretativos, que a se-
gunda opção é a mais adequada, pois inclusive reflete a origem da
própria Súmula 713 do STF, resguardando os direitos fundamentais
da ampla defesa e do devido processo legal, no âmbito recursal.

Abstract:
The Precedent 713 of the Supreme Court reads as follows: "The sus-
pensive effect of the appeal against the Jury's decision is attached to
the reasons for its interposition". Because of its writing, there is a con-
troversy in doctrine and jurisprudence on what would be its proper in-
terpretation, so that the appeal is known. It asks whether, therefore,
the foundations of its filing must be entered by the appellant only on
the appeal lodged term, with express mention of one or more of the
paragraphs of art. 593, III, of the Criminal Procedure Code, or if they

*Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Cândido


Mendes-RJ e graduado em Direito pela UFG. Promotor de Justiça do MP-GO.

157
could be extracted by the court of Justice from the respective appellate
reasons. In conclusion, for several interpretative elements, the second
option is the most appropriate, because even reflects the origin of the
very Precedent 713 STF, protecting the fundamental rights of legal
defense and due process, in the appellate stage.

RESUMEN:
El precedente 713 del Tribunal Supremo dice lo siguiente: "El efecto
suspensivo del recurso contra la decisión del Jurado se une a las
razones de su interposición." Debido a su formulación, si contro-
verte en la doctrina y la jurisprudencia la que sería su interpretación
adecuada, para efecto de conocimiento de la apelación. Se pre-
gunta si, por lo tanto, las bases de su presentación deben ser in-
troducidas por el recurrente sólo en el término del recurso
interpuesto, con expresa mención de uno o más de los párrafos del
art. 593, III, del Código de procedimiento penal, o si podían ser ex-
traídos por el tribunal de Justicia de la pieza destinada a los res-
pectivos motivos de apelación. Se concluye que, por varios
elementos de interpretación, la segunda opición es la mas ade-
cuada, aún refleja el origen del Precedente 713 del Tribunal Su-
premo, en protección de los derechos fundamentales de defensa
completa y del devido proceso, en la etapa de apelación.

Palavras-chave:
Tribunal do Júri, apelação, efeito devolutivo, Súmula 713 do STF,
interpretação adequada.

Keywords:
Jury court, appeal, remanding effect, Precedent 713 STF, proper
interpretation.

Palabras clave:
Jurado, recurso, devolviendo efecto, Precedente 713 STF, la inter-
pretación correcta.

158
INTRODUÇÃO

Da sentença penal condenatória ou absolutória proferida


nas sessões de julgamento do Tribunal do Júri, como se sabe, cabe
a interposição do recurso de apelação, com fundamento legal no art.
593, iii, do Código de Processo Penal, assim redigido:

Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias:


[...];
iii – das decisões do Tribunal do Júri, quando:
a) ocorrer nulidade posterior à pronúncia;
b) for a sentença do juiz-presidente contrária à lei expressa ou à decisão
dos jurados;
c) houver erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena ou da medida
de segurança;
d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.

Como se percebe, esse dispositivo legal expressamente


aponta as hipóteses em que a apelação será cabível das decisões
definitivas de condenação ou absolvição do Tribunal do Júri (por isso,
ela é de fundamentação vinculada), sendo que sobre esse recurso
foi editada a Súmula 713 do Supremo Tribunal Federal, cujo teor é
o seguinte: “O efeito devolutivo da apelação contra decisões do Júri
é adstrito aos fundamentos da sua interposição”.
Diante desse verbete sumular, indaga-se: Para o conheci-
mento do recurso de apelação nesses casos, é preciso que o ape-
lante insira, de forma expressa, a(s) alínea(s) acima transcrita(s),
com base na(s) qual(is) deseja impugnar a decisão do Tribunal do
Júri, no termo de interposição ou termo recursal; ou, por outro lado,
basta que ele aponte os fundamentos legais de seu inconformismo
nas respectivas razões da apelação, que podem ser apresentadas
em momento posterior à interposição, conforme faculta o art. 600 do
Código de Processo Penal?
A discussão em foco não tem contornos meramente aca-
dêmicos, pois, se a primeira opção interpretativa for abraçada, ocor-
rerá a supressão do direito fundamental à ampla defesa1, ao se vedar
o acesso ao duplo grau de jurisdição, bem como o direito de o
1Lembre-se de que a Constituição Federal, em dispositivo específico sobre a organi-
zação do Tribunal do Júri, assegura, de forma expressa, a plenitude de defesa (art. 5º,
XXXViii, “a”). O Supremo Tribunal Federal, a propósito, tem asseverado que uma das

159
Ministério Público também questionar a sentença penal proferida,
seja condenatória ou absolutória, ferindo o devido processo legal e
o direito fundamental de amplo acesso à jurisdição, previsto no art.
5º, XXXV, da Constituição Federal.
não é por acaso, aliás, que o tema em questão provoca di-
vergências na jurisprudência nacional, algumas vezes dentro do
mesmo Tribunal de Justiça. O Tribunal de Justiça de Goiás, por
exemplo, por sua Segunda Câmara Criminal, tem julgados diame-
tralmente opostos, como os seguintes:

APELAÇÃO CRiMinAL. hOMiCÍDiO TRiPLAMEnTE QUALiFiCADO E


OCULTAÇÃO DE CADÁVER. JÚRi. APELO. TERMO DE inTERPOSi-
ÇÃO VAGO E GEnÉRiCO. MATÉRiA nÃO ABRAnGiDA PELAS ALÍ-
nEAS DO inCiSO iii DO ARTiGO 593, DO CóDiGO DE PROCESSO
PEnAL. iMPOSSiBiLiDADE DE AnÁLiSE. Em razão das peculiaridades
das quais são revestidas as decisões do Tribunal do Júri, é o termo
de apelação que delimita os fundamentos do recurso, e não as razões
recursais, não vigendo em sua plenitude o princípio tantum devolu-
tum quantum appellatum, sob pena de desobediência a soberania do
veredicto do Conselho de Sentença, bem como ao aludido princípio,
e de se incorrer em julgamento extra petita. Incidência dos ditames
da Súmula n. 713, do Supremo Tribunal Federal. ii – [...]. APELAÇÃO
COnhECiDA E DESPROViDA. (TJGO, APELACAO CRiMinAL 136024-
05.2012.8.09.0029, Rel. DES. JOAO WALDECK FELiX DE SOUSA, 2A
CAMARA CRiMinAL, julgado em 05/11/2013, DJe 1426 de 13/11/2013)2.

APELAÇÃO CRiMinAL. hOMiCÍDiO QUALiFiCADO. JÚRi. PRELiMinA-


RES. EFEiTO DEVOLUTiVO RESTRiTO À FUnDAMEnTAÇÃO DO
APELO. AUSÊnCiA DE inDiCAÇÃO DO DiSPOSiTiVO LEGAL QUE SE
FUnDA A inSURGÊnCiA. MERA iRREGULARiDADE. As decisões do
Tribunal do Júri revelam particularidades, sendo certo que, nesses casos,
o efeito devolutivo da apelação criminal se restringe aos fundamentos da

facetas mais importantes da amplitude de defesa é justamente o direito de a parte ver


os seus argumentos considerados pelo órgão julgador, o que também deve alcançar
a esfera recursal. nesse sentido, cf. os seguintes precedentes: hC 108527, Relator(a):
Min. GiLMAR MEnDES, Segunda Turma, julgado em 14/05/2013, PROCESSO ELE-
TRÔniCO DJe-236 DiVULG 29-11-2013 PUBLiC 02-12-2013 e hC 118344,
Relator(a): Min. GiLMAR MEnDES, Segunda Turma, julgado em 18/03/2014, PRO-
CESSO ELETRÔniCO DJe-115 DiVULG 13-06-2014 PUBLiC 16-06-2014.
2 nessa mesma linha, cf.: TJGO, APELACAO CRiMinAL 232173-
15.1999.8.09.0160, Rel. DES. JOAO WALDECK FELiX DE SOUSA, 2A CAMARA
CRiMinAL, julgado em 22/05/2014, DJe 1553 de 30/05/2014 e TJGO, APELACAO
CRiMinAL 14780-09.2013.8.09.0051, Rel. DES. JOAO WALDECK FELiX DE
SOUSA, 2A CAMARA CRiMinAL, julgado em 06/03/2014, DJe 1507 de 20/03/2014.

160
sua interposição. Entretanto, a omissão do apelante em apontar, no
termo de interposição do apelo, o argumento legal em que se em-
basa a insurgência, não impede o conhecimento da apelação, já que
em suas razões restaram claros os motivos da impugnação. Prece-
dentes do STJ. 2- [...]. APELAÇÃO COnhECiDA E DESPROViDA.
(TJGO, APELACAO CRiMinAL 153371-14.2014.8.09.0051, Rel. DES.
LEAnDRO CRiSPiM, 2A CAMARA CRiMinAL, julgado em 10/11/2015,
DJe 1924 de 04/12/2015) (negrito nosso).

Assim, saber qual desses dois posicionamentos jurídicos é


o mais adequado, quanto à interpretação da Súmula 713 do STF, é
o objetivo do presente trabalho.

ORIGEM DA SÚMULA 713 DO STF

Os precedentes que deram origem à Súmula 713 do Su-


premo Tribunal Federal são os seguintes: hC 76338, hC 76237,
hC 71456, hC 71458 e hC 688783.
Um acurado exame do inteiro teor de todos eles revela
que somente um deles cuida da questão sob exame de forma ex-
plícita, qual seja, o hC 71456, cuja ementa está assim redigida:

PEnAL. hABEAS CORPUS. APELAÇÃO. JÚRi. LiMiTAÇÕES. ÂM-


BiTO DEVOLUTiVO. FUnDAMEnTAÇÃO. inTERPOSiÇÃO. ARRA-
ZOAMEnTO TEMPESTiVO. nULiDADE. ALinEA A DO inC. iii DO
ART. 593 DO CPP. nÃO-COnhECiMEnTO.
A apelação da decisão do Júri comporta especificidades, entre as
quais, a de que não é, por natureza, ampla, cabendo ao advogado,
quando da interposição, o ônus de especificar os fundamentos, po-
dendo a omissão ser eventualmente suprida, definindo-se o âm-
bito devolutivo nas próprias razões, desde que tempestivamente
oferecidas (RE n. 80.423, RTJ 75/243).
na espécie, o advogado interpôs o recurso sem qualquer funda-
mento legal, tendo, no entanto, produzido razões, que foram admiti-
das pela Corte local, nas quais são invocadas as alineas b, c, e d, do
inc. iii do art. 593 do Código de Processo Penal, o que importa concluir
que a matéria referente a nulidades posteriores à pronúncia - no caso,
impedimento ou suspeição de jurados, promotor e juiz-presidente --

3Para conferir a data de publicação de cada qual, basta acessar o seguinte link:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumula.
Acesso: 28 jan. 2016.

161
não constituiu objeto de devolução recursal.
Subtraída do juízo natural, não pode o habeas corpus pretender o
exame da questão, originariamente, em instância superior.
habeas corpus de que não se conhece. (hC 71456, Relator(a): Min.
iLMAR GALVÃO, Primeira Turma, julgado em 08/11/1994, DJ 12-05-
1995 PP-12988 EMEnT VOL-01786-01 PP-00129) (negrito nosso).

Os demais não cuidam diretamente da questão, sendo


que a maioria trata da aplicação da Súmula 160 do STF4 , de con-
teúdo diverso da Súmula 713. nota-se, ainda, que o hC 71458
apenas faz referência ao entendimento adotado pela Corte no
hC 71456, ambos impetrados em favor do mesmo paciente, jul-
gados pela mesma Turma, no mês de novembro de 1994, e da
relatoria do mesmo ministro, ilmar Galvão.
Consoante se extrai da ementa acima transcrita, per-
cebe-se que a expressão “fundamentos da sua interposição”,
contida na Súmula 713 do STF abrange não apenas o termo de
interposição da apelação em comento, que poderá ser juntado
aos autos no prazo legal de cinco dias, mas também, isto é, in-
clusive, as respectivas razões recursais, as quais poderão ser
protocoladas no prazo legal de oito dias, nos termos do art. 600
do Código de Processo Penal.
Como se não bastasse a clareza da ementa do aludido
julgado, o relator do acórdão ressaltou em seu voto os seguintes
trechos lapidares:

neste precedente, firmou-se a orientação no sentido de ser razoável


o não-conhecimento da apelação interposta da decisão do Júri sem
qualquer fundamentação, admitida, porém, a possibilidade do supri-
mento desta omissão pelas razões, desde que tempestivas [...].
Portanto, se a parte deixa de indicar os fundamentos legais da ape-
lação, valendo-se apenas de uma genérica alusão ao inconformismo,
somente a apresentação de razões no prazo legal poderia superar a
omissão, permitindo, então, fixar-se o âmbito da devolução material
do recurso5.

4 Com o seguinte teor: “É nula a decisão do tribunal que acolhe, contra o réu, nulidade

não argüida no recurso da acusação, ressalvados os casos de recurso de ofício”.


5 nota-se que o STF, em 2005, reafirmou essa compreensão do tema, conforme se

comprova em trecho da seguinte ementa: EMEnTA: hABEAS CORPUS. SEnTEnÇA


DO TRiBUnAL DO JÚRi. APELAÇÃO MiniSTERiAL PÚBLiCA. DEVOLUTiViDADE.

162
De igual modo, o Superior Tribunal de Justiça vem ado-
tando esse posicionamento, em suas duas Turmas Criminais, se-
gundo o qual os fundamentos da interposição da apelação, para
efeito de delimitação do âmbito devolutivo desse recurso, nesses
casos, devem ser extraídos também das respectivas razões re-
cursais. Confira-se:

STJ - PROCESSUAL PEnAL. hABEAS CORPUS SUBSTiTUTiVO


DE RECURSO ORDinÁRiO. iMPUGnAÇÃO DE JULGAMEnTO
PROFERiDO PELO TRiBUnAL DE JÚRi. DEVOLUTiViDADE RES-
TRiTA. SÚMULA 713 DO STF. PRECLUSÃO. inEXiSTÊnCiA DE
COnSTRAnGiMEnTO iLEGAL. 1. [...]. 2. no caso presente, olvidou
a defesa que os pontos indicados no writ não foram suscitados
quando da interposição do recurso de apelação, sendo certo que, a
teor da jurisprudência deste Tribunal Superior e do pretório ex-
celso, o apelo interposto contra as decisões do Tribunal do Júri
tem devolutividade restrita, isto é, somente são devolvidas para
exame as questões expressamente constantes nas razões da
apelação, conforme enuncia a Súmula 713 do STF: "O efeito de-
volutivo da apelação contra decisões do Júri é adstrito aos fundamen-
tos da sua interposição". 3. [...]. 4. habeas corpus não conhecido.
(habeas Corpus nº 193.580/RS (2011/0000255-9), 5ª Turma do STJ,
Rel. Gurgel de Faria. j. 24.02.2015, DJe 03.03.2015).

STJ - PEnAL E PROCESSUAL PEnAL. hABEAS CORPUS SUBS-


TiTUTiVO DE RECURSO ESPECiAL. nÃO COnhECiMEnTO DO
WRiT. CRiME DE hOMiCÍDiO QUALiFiCADO. TESE DE JULGA-
MEnTO COnTRÁRiO À PROVA DOS AUTOS. QUESTÃO nÃO DE-
DUZiDA EM APELAÇÃO. SUPRESSÃO DE inSTÂnCiA. TRiBUnAL
DO JÚRi. EFEiTO DEVOLUTiVO RESTRiTO DA APELAÇÃO.
PLEiTO DE APLiCAÇÃO DA ATEnUAnTE DA COnFiSSÃO ESPOn-
TÂnEA. AFASTAMEnTO PELO TRiBUnAL A QUO POR SE TRATAR
DE COnFiSSÃO QUALiFiCADA. ADMiSSÃO DA AUTORiA DO
FATO PORÉM SOB O PÁLiO DE EXCLUDEnTE DE iLiCiTUDE (LE-
GÍTiMA DEFESA). RECOnhECiMEnTO DEViDO. PLEiTO DE DE-
CLARAÇÃO DA PRESCRiÇÃO DA PRETEnSÃO PUniTiVA.
iMPOSSiBiLiDADE. DECURSO DE LAPSO TEMPORAL nECESSÁ-
RiO EnTRE OS MARCOS inTERRUPTiVOS nÃO EViDEnCiADO.

SÚMULAS 160 E 713 DO STF. i – [...]. ii - Naqueles casos em que a peça de in-
terposição recursal é vaga, genérica, os limites de atuação da Corte de se-
gunda instância hão de ser dimensionados pelas razões de apelação, desde
que tempestivamente apresentadas. iii – [...]. iV - Ordem concedida. (hC 85609,
Relator(a): Min. CARLOS BRiTTO, Primeira Turma, julgado em 28/06/2005, DJ 20-
04-2006 PP-00014 EMEnT VOL-02229-02 PP-00194) (negrito nosso).

163
DECRETAÇÃO DA REVELiA. SUSPEnSÃO DO PROCESSO E DO
PRAZO PRESCRiCiOnAL (ART. 366 DO CPP). hABEAS CORPUS
nÃO COnhECiDO. ORDEM COnCEDiDA DE OFÍCiO. 1. [...]. 3. Tra-
tando-se de apelação interposta contra decisões do Tribunal do Júri,
dotada de efeito devolutivo restritivo, o conhecimento do recurso
limita-se às questões efetivamente arguidas nas razões recur-
sais, não sendo devolvido ao Tribunal de 2º Grau o conhecimento
amplo da matéria. inteligência da Súmula 713/STF. Precedentes. 4.
[...]. 6. habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício
apenas para reduzir as penas a 12 anos de reclusão. (habeas Corpus
n. 87.337/SP (2007/0169521-1), 6ª Turma do STJ, Rel. nefi Cordeiro.
j. 16.06.2015, DJe 25.06.2015) (negrito nosso).

A nosso ver, não poderia ser diferente6 .


Uma simples interpretação minimamente contextualizada
da Súmula 713 do STF não pode prescindir dos seguintes elemen-
tos de consideração: a) o verbete sumular trata do efeito devolutivo
de um dos mais importantes recursos em matéria de competência
do Tribunal do Júri; b) a apelação é composta pelo termo de inter-
posição e especialmente por suas razões recursais, de modo que

6 A essa mesma conclusão chegaram alguns Tribunais de Justiça, destacando que


a não alusão às alíneas do art. 593, iii, do Código de Processo Penal, no termo de
interposição da apelação, seria uma mera irregularidade, sem aptidão, portanto, para
impedir o conhecimento do recurso, consoante demonstram os seguintes julgados:
Apelação Criminal nº 0053011-24.2009.8.13.0249 (1), 7ª Câmara Criminal do TJMG,
Rel. Cássio Salomé. j. 25.06.2015, Publ. 03.07.2015; Apelação Criminal nº 1236860-
23.2005.8.13.0701 (1), 6ª Câmara Criminal do TJMG, Rel. Furtado de Mendonça. j.
02.12.2014, Publ. 23.01.2015; e Apelação Criminal nº 2014.023862-6, 2ª Câmara
Criminal do TJSC, Rel. Getúlio Corrêa. j. 07.10.2014. Mais recentemente, o Tribunal
de Justiça de Goiás também passou a se posicionar dessa forma: TJGO, APE-
LACAO CRiMinAL 153371-14.2014.8.09.0051, Rel. DES. LEAnDRO CRiSPiM, 2A
CAMARA CRiMinAL, julgado em 10/11/2015, DJe 1924 de 04/12/2015 e TJGO,
APELACAO CRiMinAL 171769-97.2002.8.09.0093, Rel. DES. iTAnEY FRAn-
CiSCO CAMPOS, 1A CAMARA CRiMinAL, julgado em 20/08/2015, DJe 1864 de
08/09/2015. Na doutrina, segue essa posição, ora defendida: CAMPOS, 2010, p.
284. BOnFiM, 2015, p. 929, embora, nos parágrafos anteriores, dê a impressão de
não compartilhar dessa posição, informa que “[...] em prestígio ao princípio do duplo
grau de jurisdição e da ampla defesa, tem-se admitido a possibilidade de conheci-
mento do recurso, mesmo quando a parte apelante deixar de mencionar o dispositivo
em que fundamenta o apelo no ato de interposição da apelação”.
7 Essa visão completa da apelação foi inclusive ressaltada, mais uma vez, pelo pró-

prio STF de forma muito clara, em 2005, em precedente assim ementado, na parte
que ora interessa: EMEnTA: i. habeas corpus: competência do STJ e do STF: pres-
supostos. 1. Cuidando-se [...] das apelações contra as decisões do Tribunal do Júri,

164
o todo não pode ser tomado por apenas uma de suas partes7; c)
por último, parece óbvio que fundamentar no Direito (a Súmula
contém a palavra “fundamentos”) é expor argumentos (e não so-
mente apontar fragmentos de um dispositivo legal), sendo que o
local adequado para isso é exatamente a peça em que são deli-
neadas as razões recursais. Ademais, o interesse recursal da
parte que apela somente será exposto, em todos os seus aspec-
tos, no articulado reservado às razões da apelação8.
Portanto, o entendimento radical e meramente formalista9
de alguns julgados de Tribunais de Justiça do país, no sentido de

cuja devolução se restringe ao fundamento legal - dentre as quatro alíneas do art.


593, iii, C. Pr. Penal - indicado na interposição ou, na falta de indicação expressa,
ao versado nas razões (v.g., RE 80.423, 1ª T., 15.8.75, Moreira, RTJ 75/243; hhCC
54.717, 1º.3.77, 1ª T., Bilac, RTJ 81/48; 66.649, 6.12.88, 1ª T., Moreira, RTJ 127/929;
68.109, 26.3.91, 1ª T., Celso, RTJ 136/606; 68.854, 17.12.91, 2ª T., Borja, RTJ
140/138; hC 85.858 - ED, 1ª T., 22.6.05, Pertence, DJ 26.8.05; donde, a Súmula 713
do STF: "O efeito devolutivo da apelação contra decisões do Júri é adstrito aos fun-
damentos de sua interposição"). 3. [...]. 1. A apelação da decisão do Júri é adstrita
aos motivos invocados pelo apelante, quando da interposição, ou, ao menos,
da apresentação tempestiva das razões, que complementam o recurso (v.g., RE
80.423, 15.8.75, 2ª T., Moreira, RTJ 75/243-7; RE 92.062, 29.4.80, 1ª T., Xavier, DJ
23.5.80; hC 59.486, 2ª T., 13.4.82, Moreira, DJ 21.5.82). 2. [...]. (hC 85702, Relator(a):
Min. SEPÚLVEDA PERTEnCE, Primeira Turma, julgado em 13/09/2005, DJ 07-10-
2005 PP-00027 EMEnT VOL-02208-02 PP-00298 LEXSTF v. 28, n. 327, 2006, p.
383-398) (negrito nosso). Na doutrina, mostra-se muito apropriada a seguinte pas-
sagem: “[...] não podemos conceber uma apelação sem as respectivas razões. Como
poderia a parte contrária apresentar contrarrazões? Como poderia o Tribunal identificar
nos autos o erro que ensejou o apelo? Querer que o Tribunal analise todo o processo
para, com olhos de Defensor, identificar o motivo que permitiu a apelação, é querer
jogar a barra bem longe...”. in: TOURinhO FiLhO, 2013, p. 871.
8 não é por outro motivo que o Min. Sepúlveda Pertence, certa feita, consignou o

seguinte pensamento: “Porque [as razões do apelo] o complementam, a ponto de


especificar o motivo legal de sua interposição, nada impede que as razões, como
no caso, especifiquem ainda mais a causa de pedir, à qual ficará adistrito o Tribunal
[...]”. Trecho do voto proferido no hC citado na nota de rodapé anterior.
9 Na doutrina, essa posição, ora combatida, é acolhida por: nUCCi, 2011, p. 382; idem,

2015, p. 827-8; MiRABETE, 2005, p. 694 e LiMA, 2015, p. 1.698. importante destacar
que o princípio da instrumentalidade das formas também tem inteira aplicação na esfera
processual penal. Com esse enfoque, checar o seguinte artigo: BELO, 2015, 190-1. Cf.,
ainda, o seguinte trecho de julgado da Primeira Turma do STF: “O processo penal rege-
se pelo princípio da instrumentalidade das formas, do qual se extrai que as formas, ritos
e procedimentos não encerram fins em si mesmos, mas meios de se garantir um pro-
cesso justo e equânime, que confira efetividade aos postulados constitucionais da ampla
defesa, do contraditório e do devido processo legal” (extraído do hC 111472, Relator(a):
Min. LUiZ FUX, Primeira Turma, julgado em 25/06/2013, PROCESSO ELETRÔniCO
DJe-158 DiVULG 13-08-2013 PUBLiC 14-08-2013).

165
que esses fundamentos devem ser extraídos somente do termo
de interposição da apelação10, mediante uma singela referência
às alíneas do art. 593, iii, do Código de Processo Penal, está cla-
ramente equivocado11 e em total descompasso quanto ao que foi
definido, há mais de vinte anos, no hC 71456, já referido, que deu
origem ao teor da Súmula 713 do Supremo Tribunal Federal, pro-
vocando graves prejuízos não apenas à vigência do citado dis-
positivo legal, mas especialmente aos direitos fundamentais da
ampla defesa e do devido processo legal, no seu desdobramento
ligado ao duplo grau de jurisdição.

10 nessa linha, podem ser citados os seguintes precedentes: Apelação Criminal n.


2011.005618-0, 1ª Câmara Criminal do TJAM, Rel. Encarnação das Graças Sampaio
Salgado. DJe 13.12.2012; Apelação Criminal n. 20141110012460 (884614), 2ª Turma
Criminal do TJDFT, Rel. Silvânio Barbosa dos Santos. j. 30.07.2015, DJe 04.08.2015; e
Apelação Criminal n. 20140111858334 (878596), 2ª Turma Criminal do TJDFT, Rel.
José Carlos Souza e Ávila. j. 02.07.2015, DJe 07.07.2015.
11 E estimula uma atitude até infantil e pitoresca da parte que conhece essa posição ju-

risprudencial, no sentido de ter ela de mencionar, no termo de interposição da apelação,


todas as alíneas do art. 593, iii, do Código de Processo Penal, a fim de não correr o
risco de seu recurso não ser conhecido pelo Tribunal, para, em um segundo momento,
atacar, nas razões, apenas as matérias que realmente lhe interessam. Veja-se, com ex-
pressa menção a essa situação, os seguintes precedentes: Apelação Criminal n.
20070110822935 (878617), 3ª Turma Criminal do TJDFT, Rel. humberto Adjuto Ulhôa.
j. 02.07.2015, DJe 07.07.2015 e Apelação Crime n. 70043430610, 2ª Câmara Criminal
do TJRS, Rel. Rosane Ramos de Oliveira Michels. j. 08.05.2014, DJ 01.07.2014.

166
CONCLUSÃO

Ante o exposto, pode-se concluir que a interpretação ju-


ridicamente adequada da Súmula 713 do Supremo Tribunal Fe-
deral é aquela em que os fundamentos da interposição do
recurso de apelação das decisões do Tribunal do Júri, para
exame da delimitação de seu efeito devolutivo, devem ser retira-
dos tanto do termo de interposição recursal, quanto das respec-
tivas razões recursais, desde que estas sejam igualmente
tempestivas.
Pensar de forma diversa, no sentido de que a expressão
“fundamentos da sua interposição”, contida na súmula em co-
mento, exige que tais fundamentos legais sejam apenas mencio-
nados de forma expressa no termo de interposição da apelação,
a par de conflitar com a posição consolidada do Supremo Tribunal
Federal (e com a própria origem jurisprudencial de sua Súmula
713), importa acolher um formalismo exacerbado, de todo incom-
patível com o princípio da instrumentalidade das formas, provo-
cando a supressão dos direitos fundamentais da ampla defesa e
do devido processo legal, ao vedar de forma inconstitucional o
acesso ao duplo grau de jurisdição, cuja garantia legal está con-
tida no art. 593, iii, do Código de Processo Penal.

167
REFERÊNCIAS

BELO, Eliseu Antônio da Silva. Quando o apego excessivo à


forma impede a mínima realização da Justiça. Revista do Minis-
tério Público do Estado de Goiás, Goiânia, n. 30, p. 185-193,
jul./dez. 2015.

BOnFiM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 10. ed.


São Paulo: Saraiva, 2015.

CAMPOS, Walfredo Cunha. Tribunal do Júri: teoria e prática. São


Paulo: Atlas, 2010.

LiMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 3. ed.


Bahia: Juspodivm, 2015.

MiRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 17. ed. São Paulo:


Atlas, 2005.

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168
Ageu Ribeiro da Silva*

A JUSTIÇA TERAPÊUTICA NA REDUÇÃO


DOS DANOS SOCIAIS

THERAPEUTIC JUSTICE IN SOCIAL HARM DEDUCTION

JUSTICIA TERAPÉUTICO EN REDUCCIÓN DE DAÑOS SOCIALES

Resumo:
O presente estudo visa analisar a sistemática da Justiça Terapêutica,
trabalhando conceitos e princípios necessários à melhor compreen-
são, o surgimento, as teorias que a originaram, passando pelos as-
pectos legais de ingresso no programa e, finalizando, com os
procedimentos adotados pela equipe médica e o tempo ao qual o
participante estará sujeito. Ainda, busca demonstrar que a finalidade
do programa é a ressocialização do infrator-abusador/dependente de
drogas, de modo a retirá-lo da marginalidade, adotando medidas di-
recionadas ao desenvolvimento humano, de forma a incentivar a edu-
cação, cultura, lazer, esportes, trabalho, convívio familiar, escolar e
social.

Abstract:
This study aims to analyze the systematic of the Therapeutic Justice,
working concepts and principles necessary for better understanding,
the appearance, the theories that originated it, passing through the
legal aspects to join the program and, finalizing, the procedures adop-
ted by the medical team and the time that the participant will be sub-
jected to the treatment. Also seeks to demonstrate that the goal of the
program is to re-socialize the law violator/drug abuser/ drug addict, by
somehow able to take him off the marginality, adopting actions direc-
ted to the human developing, in order to encourage the education,
culture, recreation, sport, employment, family, educational and social
life.

*Especializando em Residência Jurídica em Direito Penal e Processo Penal pela


Escola de Direitos Humanos e Uni-Anhanguera. Graduado em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica de Goiás.

171
Resumen:
Este estudio tiene como objetivo analizar el esquema de la Justicia
Terapéutico, trabajando sus conceptos y principios necesarios para
una mejor comprensión, la apariencia, las teorías que dieron origen,
pasando por los aspectos jurídicos de entrar en el programa y ter-
minando con los procedimientos adoptados por el equipo médico
y el tiempo que el participante está sujeto. Aún así, trata de demos-
trar que el propósito del programa es la rehabilitación del delin-
cuente - abusador / fármaco dependiente, con el fin de sacarlo de
la marginalidad, la adopción de medidas encaminadas a un desar-
rollo humano con el fin de fomentar la educación, cultura, ocio, de-
portes, el trabajo, la vida familiar, escolar y social.

Palavras-chave:
Drogas. Penas alternativas. Reinserção social. Tratamento.

Keywords:
Drugs. Alternative Sentences. Social Reinsertion. Treatment.

Palabras clave:
Drogas. Penas Alternativas. Reintegración Social. Tratamiento.

INTRODUÇÃO

A Justiça Terapêutica é um programa com um conjunto de


medidas criado pela Corregedoria-Geral do Rio Grande do Sul, com
a finalidade de ser uma alternativa à pena privativa de liberdade aos
infratores-abusadores/dependentes de drogas, de forma a buscar a
sua reinserção social e a romper o binômio droga/crime.
Trata-se de uma política de redução de danos sociais, pos-
suindo uma intervenção informativo-educativa, tais como cuidados
de saúde ou tratamento com terapia individual ou grupal, convivência
social com família, prestação de serviço à comunidade, entre outras
ações e outros tipos de ações terapêuticas.
O intuito é validar os bons comportamentos, motivar o abandono

172
às drogas, reinserir o reeducando na sociedade. O estabelecimento
de programas sociais ajuda a minimizar a violência social e permitem
que muitas pessoas restabeleçam uma vida digna.
Colocar o infrator-abusador/dependente de drogas em um
presídio brasileiro nem sempre é a melhor opção, pois este não ofe-
rece condições mínimas para o cumprimento das finalidades da pena,
quais sejam, retributiva, preventiva, ressocializadora e reeducativa.
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988,
no art. 5º, inciso XLIII, equiparou o tráfico de drogas aos crimes con-
siderados hediondos e, ainda no inciso LI, autorizou a extradição de
brasileiros naturalizados, caso comprovado o envolvimento com o
tráfico de drogas. Também, no art. 243, previu a expropriação de ter-
ras e confisco de bens decorrentes do tráfico de drogas.
Com a finalidade de regulamentar o inciso XLIII, art. 5º, da
Constituição Federal, foram editadas algumas leis, permanecendo,
até o presente momento, a Lei n. 11.343 de 2006, a qual, no art. 1º,
institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre as Drogas -
SISNAD, bem como, no art. 3., inc. II e III, prescreve como finalidade
a prevenção do uso indevido, atenção à reinserção social de abusa-
dores e dependentes de drogas e a repreensão à produção não au-
torizada e ao tráfico ilícito de drogas.
Com fundamento nas finalidades constantes na Lei n.
11.343/06, empregou-se um conjunto de políticas e práticas com o
objetivo de reduzir os danos associados ao uso de drogas psicoati-
vas em pessoas que não podem ou não querem parar de usar dro-
gas. Essa redução de danos (RD) tem como objetivo reduzir as
consequências à saúde, à economia e à sociedade, e são pragmá-
ticas, possíveis, efetivas, seguras e custo efetivas.
Essas ações são realizadas pelo Estado, com a cooperação
de todos os entes federados (União, Estados e Municípios), em con-
junto com órgãos não-governamentais, visando à melhoria das con-
dições de vida do abusador/ dependente de drogas. Todas as
medidas adotadas são direcionadas ao desenvolvimento humano,
de forma a incentivar a educação, cultura, lazer, esportes, trabalho,
convívio familiar, escolar e social.

173
RETROSPECTIVA HISTÓRICA DA JUSTIÇA TERAPÊUTICA

DRUG COURTS

As “Drug Courts” são tribunais especializados criados


nos Estados Unidos da América para atingir os delitos relaciona-
dos ao consumo de drogas, visando dar um tratamento em que
recupere o infrator-abusador/dependente de drogas.
Os Estados Unidos da América sempre combateram de
uma forma rígida o consumo de drogas, contudo, quanto mais
pessoas eram encarceradas por questões relativas às drogas,
mais a reincidência aumentava.
Diante dessa constatação e da percepção da formação
de um ciclo interminável, foram desenvolvidos estudos visando
a alternativas à prisão. Destarte, em 1989, no Estado da Flórida,
conceberam a primeira “Drug Court”.
No sistema das “Drug Courts” os consumidores de dro-
gas flagrados com pequenas quantidades de entorpecentes e
que não tenham cometidos crimes graves, têm a faculdade de
eleger entre ingressar em um programa de tratamento oferecido
pelo governo ou serem processados pelos trâmites tradicionais.

O tratamento não se trata de uma medida de segurança, pois tem


como alvo infratores imputáveis selecionados, que possuem a facul-
dade de anuir ao programa ou se submeter ao processo penal con-
vencional, apesar de que a liberdade é o grande fator sedutor das
Drug Courts, uma vez que se os infratores não aderirem ao programa
geralmente continuarão encarcerados. (LIMA, 2011, p. 97)

Conforme as “Drug Courts”, foram apresentando resul-


tados significativos e positivos, reduzindo de forma drástica a
reincidência e o consumo de entorpecentes, foram sendo repro-
duzidas nos demais Estados e territórios, sob a administração
americana, além de ter sido criadas “Drug Courts” especializadas
em jovens, família e indígenas.
Os tratamentos utilizados no programa são feitos de uma
maneira em que os participantes vão progredindo de acordo com
os monitoramentos realizados. Entre os tratamentos, há sessões

174
de terapia individual ou em grupos, podendo ocorrer até mesmo
internação.
Nas audiências destinadas a verificar a evolução dos
participantes no programa, os mesmos podem receber incenti-
vos, prêmios ou punições a depender das constatações feitas.

Os incentivos vão de progressão de fase com menos monitoramento,


elogios públicos, pelo juiz, aplausos e prêmios como brindes, bolos,
ingressos de jogos, inserção em programas habitacionais, dentre ou-
tros. As cerimônias de conclusão do programa são comemoradas for-
malmente com discursos, certificados, lanche, testemunho dos
concluintes, visitas de políticos e representantes da sociedade.
Já as penalidades incluem reprimendas nas audiências onde vários
clientes participam, submissão deles a permanecer durante horas no
fórum, regressão de fase terapêutica, períodos curtos de prisão e em
casos graves o término do programa, com o consequente retorno ao
curso normal da ação penal interrompida ou prisão com o cumpri-
mento da condenação. (LIMA, 2011, p. 107)

Concluindo o programa de forma satisfatória, os partici-


pantes podem ter a pena reduzida ou até mesmo a extinção.
Destarte, muitos autores quando discutem a origem da
Justiça Terapêutica, referem-se as "Drug Courts" como uma ins-
piração para a sua concepção, tendo em vista a forte influência
dos padrões norte-americanos em todo o globo terrestre.

CONTRIBUIÇÃO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLES-


CENTE

A corrente oposta aos autores que veem as “Drug


Courts” como inspiração para a implantação da Justiça Terapêu-
tica, pregam que o programa é genuinamente brasileiro, deri-
vando do Estatuto da Criança e Adolescente.
O Brasil, seguindo a forte repressão às drogas praticada
pelos Estados Unidos da América, foi enrijecendo as leis relativas
ao controle das substâncias psicoativas, mas, em contrapartida,
por causa das inúmeras convenções internacionais, que busca-
vam um tratamento mais digno aos consumidores de entorpe-
centes, o combate às drogas foi substituído por prevenção e

175
repressão, buscando oferecer tratamentos médicos, psicológicos
e assistenciais.
O marco inspirador para a Justiça Terapêutica foi o Es-
tatuto da Criança e Adolescente de 1990, que possibilitou a apli-
cação de medidas socioeducativas quando houver o consumo
de drogas e a prática de atos infracionais em que o potencial
ofensivo seja pequeno.

Diferentemente do que se costuma afirmar foi o Estatuto da Criança


e do Adolescente, e não as Drug Courts norte-americanas, a fonte
inspiradora do movimento brasileiro batizado “Justiça Terapêutica”
por um grupo de representantes do Ministério Público gaúcho capi-
taneados pelos procuradores de justiça Ricardo Oliveira Silva e Luiz
Achylles Petiz Bardou, assessorados por Carmem Có Freitas. Eles
entenderam ser possível trasladar as normas do ECA referente ao ál-
cool e outras drogas, aos adultos que praticassem delitos de algum
modo relacionados a essas substâncias, seja pelo consumo por si
próprio, pela prática de delitos sob o efeito, seja na prática delituosa
para aquisição de drogas. (LIMA, 2011, p. 142)

A referida inovação encontra-se no artigo 112, inciso VII,


do supracitado estatuto, que trouxe a possibilidade de aplicação
das medidas socioeducativas previstas no artigo 101, que prevê
a orientação, apoio e acompanhamento temporário, inclusão em
programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e
ao adolescente, bem como a requisição de tratamento médico,
psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial,
inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orienta-
ção e tratamento para alcoólatras e toxicômanos, para crianças
e adolescentes autores de atos infracionais, incluindo aqueles
que tenham envolvimento com drogas.
Destarte, o Estatuto da Criança e do Adolescente foi a
grande revolução no tratamento com os menores infratores na
condição de abusadores/dependentes de drogas no Brasil, pois
buscou romper o binômio droga/crime por meios de tratamentos
e não de encarceramento.

176
JUSTIÇA TERAPÊUTICA

A Justiça Terapêutica é um programa que tem como ob-


jetivo reinserir socialmente os infratores abusadores/dependen-
tes de drogas, de modo a evitar a aplicação de pena privativa de
liberdade.

A Justiça Terapêutica pode ser compreendida como um conjunto de


medidas que visa a um novo entendimento pelos operadores do di-
reito e sociedade em geral, dos infratores usuários ou dependentes
de drogas. Estes passam a ser reconhecidos como pessoas porta-
doras de um transtorno emocional […] com direito a tratamento, não
se transformando unicamente em apenados. (BICCA; PULCHERIO;
SILVA, 2002, p. 217)

O programa foi a evolução e o resultado de diversos pro-


jetos criados no Rio Grande do Sul, após a adaptação das nor-
mas relativas às drogas constantes no Estatuto da Criança e do
Adolescente para os imputáveis.
Primeiramente, cita-se o programa criado em 1996 com
a denominação “Projeto Consciência”, que utilizava técnicos da
saúde, serviço social e operadores do Direito, que buscavam en-
sinar nas escolas sobre as drogas.
Posteriormente, já em 1998, como consequência, nas-
ceu o programa “RS (Rio Grande do Sul) sem drogas” que visava
ao aperfeiçoamento dos operadores do direito com os profissio-
nais da saúde para que pudessem ter ações conjuntas.
Em seguida, em 1999, o Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul juntamente com o Ministério Público fortaleceram
e ampliaram ainda mais a justiça criminal com a terapêutica, ob-
jetivando diminuir a criminalidade e a reincidência dos infratores-
abusadores/dependentes de drogas.
Destarte, em 2000, a Corregedoria-Geral do Rio Grande
do Sul adotou o projeto “Justiça Terapêutica”, estendendo sua
abrangência para as varas de família e da infância e juventude,
bem como para as comarcas do interior.
Ainda, no mesmo ano, foi criada a Associação Nacional
de Justiça Terapêutica (ANJT) com sede no Rio Grande do Sul.
Após a experiência positiva no Rio Grande do Sul, o

177
programa “Justiça Terapêutica” alastrou-se para os demais es-
tados do Brasil.
A respeito da nomenclatura "Justiça Terapêutica", é a
união dos aspectos legais - Justiça - em conjunto com a ciência
médica - Terapêutica -, pois visa a que os participantes entendam
o caráter ilícito das infrações cometidas e compreendam o pro-
blema relativo às drogas, buscando a solução de dois problemas.

DIREITOS HUMANOS: O ALICERCE PARA A JUSTIÇA TERA-


PÊUTICA

Os direitos humanos são integrados por um conjunto de


direitos pautados na liberdade, na igualdade e na dignidade, vi-
sando assegurar uma vida digna.
Contudo, não há como determinar um rol taxativo de direi-
tos mínimos para se ter uma vida digna, por causa da diversidade
das necessidades humanas, podendo variar pelo contexto de uma
época, pelas crenças, pela cultura da região, entre outros fatores.
Os valores que representam os direitos humanos são re-
tratados, de forma implícita ou explícita, nas Constituições ou em
tratados internacionais.

Os direitos humanos representam valores essenciais, que são expli-


citamente ou implicitamente retratados nas Constituições ou nos tra-
tados internacionais. A fundamentalidade dos direitos humanos pode
ser formal, por meio da inscrição desses direitos no rol de direitos
protegidos nas Constituições e tratados, ou pode ser material, sendo
considerado parte integrante dos direitos humanos aquele que –
mesmo não expresso – é indispensável para a promoção da digni-
dade humana. (RAMOS, 2014, p. 37)

Apesar da existência de diferenças em relação aos direi-


tos mínimos, há quatro ideias-chave ou marcas distintivas em
comum: universalidade, essencialidade, superioridade normativa
e reciprocidade.

A universalidade consiste no reconhecimento de que os direitos hu-


manos são direitos de todos, combatendo a visão estamental de pri-
vilégios de uma casta de seres superiores. Por sua vez, a

178
essencialidade implica que os direitos humanos apresentam valores
indispensáveis e que todos devem protegê-los. Além disso, os direitos
humanos são superiores a demais normas, não se admitindo o sacrifício
de um direito essencial para atender as “razões de Estado”; logo, os di-
reitos humanos representam preferências preestabelecidas que, diante
de outras normas, devem prevalecer. Finalmente, a reciprocidade é
fruto da teia de direitos que une toda a comunidade humana, tanto na
titularidade (são direitos de todos) quanto na sujeição passiva: não há
só o estabelecimento de deveres de proteção de direitos ao Estado e
seus agentes públicos, mas também à coletividade como um todo.
Essas quatro ideias tornam os direitos humanos como vetores de uma
sociedade humana pautada na igualdade e na ponderação dos interes-
ses de todos (e não somente de alguns). (RAMOS, 2014, p. 37/38)

Destarte, não há restrições na aplicação dos direitos hu-


manos, pois são direitos de todos; são fundamentais para dar dig-
nidade à vida humana; devem sempre prevalecer às demais
normas, mesmo que os direitos humanos não estejam positiva-
dos; e, por fim, não sujeitam apenas o Estado e os agentes públi-
cos, mas toda a coletividade.

PRINCÍPIOS NORTEADORES

Da legalidade

O princípio da legalidade, também conhecido como prin-


cípio da reserva legal, garante que não pode ser aplicada qual-
quer pena e nem pode ser considerado crime se não existir
previsão legal definindo o fato praticado como ilegal.
Esse princípio é relativo à pena, exigindo previsão legal
para haver a cogitação de condenação e a aplicação da pena
respectiva, encontrando-se dentro do conjunto de teorias penais
e processuais penais denominado de garantismo penal, estabe-
lecido pelo jurista italiano Luigi Ferrajoli.
Conforme Guilherme de Souza Nucci (2014, p.175), extraem-
se três significados do princípio da legalidade:

Ao cuidarmos da legalidade, podemos visualizar os seus três signifi-


cados. No prisma político é garantia individual contra eventuais abu-
sos do Estado. Na ótica jurídica, destacam-se os sentidos lato e

179
estrito. Em sentido amplo, significa que ninguém será obrigado a fazer
ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II,
CF). Quanto ao sentido estrito (ou penal), quer dizer que não há crime
sem lei que o defina, nem tampouco pena sem lei que a comine.
Neste último enfoque, é também conhecido como princípio da reserva
legal, ou seja, os tipos penais incriminadores somente podem ser cria-
dos por lei em sentido estrito, emanada do Poder Legislativo, de
acordo com o processo previsto na Constituição Federal.

Destarte, por meio do princípio da legalidade observa-se


que há uma limitação ao jus puniendi, pois, diante da ausência
de previsão legal, fica o Estado impossibilitado de agir.
Cabe-se ressaltar que não há disposição legal que vede
a aplicação de tratamento terapêutico ao infrator-usuário ou in-
frator-dependente de drogas imputável, assim, podemos aplicar
a analogia in bonam partem, visto que esta não se contradiz com
o como o princípio da legalidade.

Analogia in bonam partem, é aquela pela qual se aplica ao caso


omisso uma lei favorável ao réu, reguladora de caso semelhante. É
possível no Direito Penal, exceto no que diz respeito às leis ex-
cepcionais, que não admitem analogia, justamente por seu caráter
extraordinário. (MASSON, 2014, p. 362/363)

Destarte, não há, por analogia, restrições na utilização


do Estatuto da Criança e do Adolescente na aplicação de trata-
mento terapêutico ao infrator-abusador/dependente de drogas
imputável, tendo em vista que este tratamento é mais benéfico,
pois propõe a solução de dois problemas: que entendam o cará-
ter ilícito das infrações cometidas e que compreendam o pro-
blema relativo às drogas.

Da proporcionalidade

O princípio da proporcionalidade emergiu na passagem


do Estado absolutista para o Estado liberal, com o intuito de limi-
tar a atuação dos governantes, de forma a manter um equilíbrio
em suas ações.

180
Em sua concepção originária, a proporcionalidade fora concebida como
limite ao poder estatal em face da esfera individual dos particulares;
tratava-se de estabelecer uma relação de equilíbrio entre o “meio” e o
“fim”, ou seja, entre o objetivo que a norma procurava alcançar e os
meios dos quais ela se valia. (ESTEFAM; GONÇALVES, 2012 , p. 101)

Dessa forma, o princípio da proporcionalidade busca


nada mais do que a harmonia nas ações do Estado, de forma a
evitar penalidade excessiva ao grau de responsabilidade e, em
contrapartida, a proteção deficiente.
No Direito Penal brasileiro, esse princípio é utilizado para
assegurar uma proporcionalidade entre o delito cometido e a
pena a ser aplicada, visando coibir qualquer excesso punitivo es-
tatal ou uma punição irrisória.

Chamado também “princípio da proibição de excesso”, determina que


a pena não pode ser superior ao grau de responsabilidade pela prá-
tica do fato. Significa que a pena dever ser medida pela culpabilidade
do autor. Daí dizer-se que a culpabilidade é a medida da pena.
(JESUS, 2011, p. 53)

O princípio da proporcionalidade é encontrado na Decla-


ração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, no artigo
8º, o qual afirma que “a lei apenas deve estabelecer penas estrita
e evidentemente necessárias”.
Dessa forma, praticado um ato que seja considerado ilícito,
nasce um poder-dever do Estado para punir o infrator, mas, ao de-
terminar a reprimenda a ser aplicada, o Estado deve impor uma
pena compatível com o delito praticado, de forma que seja justa e
suficiente a ressocializar o infrator, ou seja, não pode ser exagerada
e desnecessária, bem como não pode ser insignificante.

USO, ABUSO E DEPENDÊNCIA DE DROGAS

Não é raro encontrarmos os termos “usuário”, “abusador”


e “dependente de drogas” como sinônimos, mas há uma dife-
rença bem significativa entre esse termos, e tratá-los do mesmo
modo é um grande equívoco.

181
O uso de drogas pode ser considerado como qualquer
consumo de substâncias psicoativas. Esse consumo pode ser
para o mero uso recreativo, esporádico ou ocasional.
Em se tratando do uso abusivo ou nocivo, o consumo traz
como consequência algum prejuízo biológico, psicológico ou social.

Uso nocivo é o uso continuado de uma substância psicoativa causando


danos à saúde do indivíduo. Esse dano pode ser físico (alterações he-
páticas, gastrite, vômitos), mental (episódios depressivos, apagamen-
tos, esquecimento, alteração da coordenação motora), ou abranger
outras áreas da vida do indivíduo como a família (desavenças), traba-
lho (atrasos, faltas), sociedade (“porres" em festas, ser inconveniente).
A intoxicação aguda não é evidência suficiente de dano à saúde, ex-
ceto se for continuada. (BICCA; PULCHERIO; SILVA, 2002, p. 8)

Já em relação à dependência, psicológica ou física, esta


provoca consequências mais drásticas para o usuário que não
tem o controle sobre o consumo.

Dependência é a necessidade física ou psicológica da substância psi-


coativa, que, pelo uso continuado, leva ao hábito. A compulsão é tam-
bém uma das características da dependência. Com a evolução da
neuropsiquiatria percebe-se que algumas drogas que até há pouco
pensava-se que causassem apenas dependência psicológica, tam-
bém têm um componente biológico. Apesar disso, cabe a definição:
Dependência psicológica - é uma característica de todas as drogas
de abuso. É definida como a necessidade da droga pelo usuário, para
atingir um nível máximo de funcionamento ou sentimento de bem-
estar. É difícil de quantificar a situação objetivamente, sendo de uso
limitado para o diagnóstico. […]
Dependência física - é a adaptação fisiológica do organismo ao uso
crônico da1 SPA. A síndrome de abstinência ocorre quando surgem
sintomas fisiológicos na diminuição ou retirada abrupta da droga.
(BICCA; PULCHERIO; SILVA, 2002, p. 9)

Para Flávio Augusto Fontes de Lima (2011, p. 49), “é pre-


ciso que se distingam os padrões de usuário de substâncias psi-
coativas, pois um número considerável deles mantém um padrão
de uso de drogas compatível com uma vida socialmente aceitá-
vel e produtiva”.

1 A sigla “SPA" significa Substâncias Psicoativas.

182
POLÍTICAS DE REDUÇÃO DE DANO

Redução de dano é um conjunto de políticas e práticas


utilizadas de forma a possibilitar a diminuição dos danos causa-
dos pela prática de algo que causa ou possa causar danos. Uti-
liza-se de ações de proteção, cuidado e autocuidado, facultando
ao indivíduo a possibilidade de alterar sua conduta frente à si-
tuação de vulnerabilidade.
Há divergências quanto à origem, mas tem-se que o
ápice dessa forma de abordagem deu-se devido devido à grave
crise da proliferação da aids2, principalmente pelo uso de drogas
injetáveis, na década de 1980 (Lima, 2011, p. 73).
Hoje a política de redução de dano é largamente utilizada
em relação aos abusadores ou dependentes de drogas, mas o
foco principal não é o abandono do consumo de entorpecentes,
mas diminuir os danos que as drogas causam ao usuário ou de-
pendente e aos grupos sociais de que fazem parte.

Os defensores das estratégias de redução de danos diferenciam-se


da tradicional abordagem, no sentido de não se contentarem tão-so-
mente com a abstinência completa, mas admitirem que o indivíduo
possa conviver com a sua droga de edição de modo menos danoso
ou a substitua por uma menos maléfica, tudo visando à diminuição
dos fatores de riscos sobre o agente. Como exemplos de fatores de
risco, apontam-se problemas policiais, com a justiça penal e com o
meio social em que ele interage. (Lima, 2011, p. 75)

Dessa forma, temos que a redução de dano tem por ob-


jetivo a prevenção aos danos e não a prevenção ao consumo de
drogas, por isso incide sobre pessoas que não podem ou não
querem parar com o consumo de drogas.

2AIDS é uma sigla originada do inglês, cujo significado é Síndrome da Imunodefi-


ciência Adquirida (acquired immunodeficiency syndrome). É o estágio avançado da
doença causada pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV).

183
CONDIÇÕES LEGAIS PARA O INGRESSO NA JUSTIÇA
TERAPÊUTICA

APLICAÇÃO DA JUSTIÇA TERAPÊUTICA

A Justiça Terapêutica é aplicada a qualquer pessoa que


tenha praticado uma ou mais infrações penais, desde que o co-
metimento de tais infrações estejam relacionadas com o
abuso/dependência de drogas, sejam lícitas ou ilícitas.
A partir do momento em que o infrator-abusador/depen-
dente de drogas torna-se um participante do programa, não há
qualquer alusão em seu atendimento à sua situação com a Jus-
tiça, seja sobre a fase processual ou sobre os delitos pelo qual
esteja respondendo.
O infrator-abusador/dependente de drogas pode ser
encaminhado ao programa através de várias vias: juizados e
varas criminais, que direcionam os infratores-abusadores/de-
pendentes de drogas que optaram pelo tratamento vinculado
ou não a direitos legais; setor interdisciplinar penal, que dire-
ciona infrator-abusadores/dependentes de drogas que estejam
cumprindo penas e medidas alternativas; demanda espontânea,
quando o abusador ou dependente de drogas procura o setor
buscando apoio; e, demanda familiar, que é quando os familia-
res procuraram apoio para abusador ou dependente de drogas.

MOMENTO DE INGRESSO NO PROGRAMA

Fase pré-sentencial

A participação do infrator-abusador/dependente de dro-


gas nessa frase processual pode ocorrer como condição da tran-
sação penal, que ocorre nos crimes e contravenções penais de
competência dos Juizados Especiais Criminais, conforme o artigo
76 da Lei n. 9.099/95.

184
Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pú-
blica incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério
Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de di-
reitos ou multa, a ser especificada na proposta” (art. 76, caput). Su-
perada a fase da composição civil do dano, segue-se a da transação
penal. Consiste ela em um acordo celebrado entre o representante
do Ministério Público e o autor do fato, pelo qual o primeiro propõe
ao segundo uma pena alternativa (não privativa de liberdade), dis-
pensando-se a instauração do processo. Amparada pelo princípio da
oportunidade ou discricionariedade, consiste na faculdade de o órgão
acusatório dispor da ação penal, isto é, de não promovê-la sob certas
condições, atenuando o princípio da obrigatoriedade, que, assim,
deixa de ter valor absoluto. (CAPEZ, 2012, p. 613)

Ainda, como condição, nos casos em que seja aplicável


a suspensão condicional do processo, que ocorre nos crimes em
que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, con-
forme prevê o artigo 89 da Lei n. 9.099/95, vale destacar:

Trata-se de instituto despenalizador, criado como alternativa à pena


privativa de liberdade, pelo qual se permite a suspensão do processo,
por determinado período e mediante certas condições. Decorrido
esse período sem que o réu tenha dado causa à revogação do bene-
fício, o processo será extinto, sem que tenha sido proferida nenhuma
sentença. Está previsto no art. 89 da Lei n. 9.099/95, pelo qual se ad-
mite a possibilidade de o Ministério Público, ao oferecer a denúncia,
propor a suspensão condicional do processo, pelo prazo de dois a
quatro anos, em crimes cuja pena mínima cominada seja igual ou in-
ferior a um ano, abrangidos ou não por esta lei, desde que o acusado
preencha as seguintes exigências legais: não estar sendo processado
ou não ter sido condenado por outro crime + estarem presentes os
demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena
(art. 77 do CP). (CAPEZ, 2012, p. 622)

Por fim, o programa pode ser aplicado como medida cau-


telar diversa da prisão, ou seja, suprindo a prisão preventiva, con-
forme previsto no artigo 319, inciso VII, do Código de Processo
Penal.

Mesmo nas situações em que a lei a admite e ainda que demonstrada


sua imprescindibilidade, a prisão preventiva tornou-se excepcional,
pois somente será determinada quando não for cabível a sua substi-
tuição por outra medida cautelar (CPP, art. 282, § 6.), dentre as pre-
vistas no art. 319 do CPP. Sendo possível alternativa menos invasiva,

185
a prisão torna-se desnecessária e inadequada, carecendo de justa
causa.
[…]
A liberdade provisória pode vir ou não acompanhada da imposição
de algum ônus. Neste ponto, há discricionariedade para a autoridade
judiciária avaliar a sua necessidade. Por isso, a lei diz que o juiz im-
porá, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art. 319 (cf.
CPP, art. 321, segunda parte). (CAPEZ, 2012, p. 299, 300 e 345)

Dessa forma, podemos perceber que a Justiça Terapêu-


tica é utilizada como uma condição para que o infrator-abusa-
dor/dependente de drogas possa valer-se dos benefícios
mencionados, de forma a evitar a persecução penal ou a prisão
provisória.

Fase pós-sentencial

Após proferida a sentença, a participação do infrator-


abusador/dependente de drogas pode se dar como condição da
suspensão condicional da pena (sursis), conforme previsto no ar-
tigo 77 do Código Penal.

Sursis é a suspensão condicional da execução da pena privativa de


liberdade, na qual o réu, se assim desejar, se submete durante o pe-
ríodo de prova à fiscalização e ao cumprimento de condições judicial-
mente estabelecidas.
[…]
Além dessas condições legais, o art. 79 do Código Penal permite ao
magistrado especificar, na sentença, outras condições a que fica su-
bordinada a suspensão, desde que adequadas ao fato e à situação
pessoal do condenado. (MASSON, 2014, p. 1.864 e 1.874)

Também pode ocorrer condição para que seja concedido


o livramento condicional, de acordo com o artigo 85 do Código
Penal.

Livramento condicional é o benefício que permite ao condenado à


pena privativa de liberdade superior a 2 (dois) anos a liberdade ante-
cipada, condicional e precária, desde que cumprida parte da repri-
menda imposta e sejam observados os demais requisitos legais.

186
A liberdade é antecipada, condicional e precária. Antecipada, pois o
condenado retorna ao convívio social antes do integral cumprimento
da pena privativa de liberdade. Condicional, pois durante o período
restante da pena (período de prova) o egresso submete-se ao aten-
dimento de determinadas condições fixadas na decisão que lhe con-
cede o benefício. E precária, pois pode ser revogada se sobrevier
uma ou mais condições previstas nos arts. 86 e 87 do Código Penal.
(MASSON, 2014, p. 1.909/1.910)

Ademais, quando houver a substituição da pena privativa


de liberdade pela pena restritiva de direito consistente em "limi-
tação de fim de semana", encontrada no artigo 43, inciso VI,
ambos do Código Penal, deve-se observar o seguinte:

O art. 48 do código penal estabelece que a pena restritiva de direitos


de limitação de fim de semana deve ser cumprida pelo período de 5
(cinco) horas aos sábados e domingos em albergue ou outro estabe-
lecimento adequado. Poderão ser ministrados cursos, palestras ou
atribuídas atividades educativas.
Entende-se que há possibilidade de interpretação da norma prevista
no art. 48 do código penal, no sentido de ser ministrado tratamento
ao indivíduo. (LIMA, 2011, p. 78)

Nessas opções, a aplicação da Justiça Terapêutica é


uma condição para que o infrator-abusador/dependente de dro-
gas possa valer-se dos mecanismos usados como alternativa à
pena privativa de liberdade, de modo a buscar a sua recuperação
e ressocialização fora dos presídios.
A participação no programa poderá ocorrer de forma au-
tônoma ou cumulada por ocasião da substituição das penas pri-
vativas de liberdade pelas restritivas de direito, ou ainda como
requisito para a concessão de benefícios como regime aberto do-
miciliar, livramento condicional, suspensão da pena, ou outros
que o juiz possa conceder.

Sem vinculação com o processo criminal

Essa possibilidade garante a aplicação em todos os cri-


mes, mesmo que o infrator-abusador/dependente de drogas não
faça jus ao benefício legal, desde que a medida se faça suficiente

187
para a sua recuperação, tenha o infrator-abusador/dependente
de drogas concordado com às propostas da equipe técnica e não
esteja em regime fechado.

OPÇÃO OU COERÇÃO?

As políticas de redução de dano são de ingresso volun-


tário por parte dos usuários ou dependentes de drogas, o que
não poderia ser diferente na Justiça Terapêutica.
Apesar de alguns estudiosos afirmarem que o tratamento
é compulsório, o que descaracterizaria a redução de danos,
deve-se observar que é faculdade do infrator-abusador/depen-
dente de drogas aceitar ou não os benefícios substitutivos da
pena privativa de liberdade propostos pelo membro do Ministério
Público ou pelo Juiz.
Assim, cabe ao infrator-abusador/dependente de drogas
decidir se aceita ou não as condições impostas para a aplicação
dos benefícios legais, de forma que, caso não aceite, terá conti-
nuidade a persecução penal, com a possível condenação e en-
carceramento.
Essa faculdade em aceitar o compromisso de participar
do programa é de extrema importância, visto que predomina o
entendimento de que, para se ter um bom desenvolvimento e
com a possibilidade de reinserção social, é necessário que o par-
ticipante queira essa mudança em sua vida, de forma que a com-
pulsoriedade não atingiria os fins almejados.

ESTRATÉGIAS DA JUSTIÇA TERAPÊUTICA COM O INFRATOR-


ABUSADOR/DEPENDENTE DE DROGAS

EQUIPE DA JUSTIÇA TERAPÊUTICA

Para que o participante do programa tenha um bom de-


senvolvimento, necessário se faz a interdisciplinaridade da

188
equipe atuante no programa Justiça Terapêutica.
A equipe do programa é composta por diversos profis-
sionais, das mais variadas áreas de atuação, como assistentes
sociais, médico psiquiatra, psicólogos, terapeutas corporais, psi-
cólogos, pedagogos, musicoterapeutas e grupos de autoajuda.
Essa equipe terá como função o acompanhamento,
desde a avaliação da necessidade do tratamento, passando pela
escolha do tipo de intervenção a ser proposta e a fiscalização do
tratamento, finalizando com o relatório final do tratamento.
Cabe ressaltar que é a equipe médica que propõe a in-
tervenção a ser adotada, o que irá depender das características
do indivíduo que irá se submeter ao tratamento, e não os inte-
grantes do Poder Judiciário, restando a estes unicamente o
acompanhamento através dos relatórios emitidos pela equipe
responsável pelo tratamento.
A realização do tratamento poderá ser realizado na rede
pública como na rede privada de saúde e ainda poderá conter
variados grupos de apoio.

FASES DO TRATAMENTO

O programa é composto por etapas e em cada fase do


tratamento tem-se uma abordagem e um tratamento diferen-
ciado, de forma a provocar o resultado pretendido através da evo-
lução gradativa do participante da Justiça Terapêutica.
As fases a serem adotadas no programa dependem de
cada equipe que trabalha na Justiça Terapêutica. Diante disso,
nas fases elencadas a seguir, pega-se como referencial o pro-
grama implantado no Estado de Goiás, exposto em uma cartilha3
de divulgação realizada pelo Tribunal de Justiça do Estado de
Goiás (Biênio 2013 - 2015).
A primeira fase do tratamento é o momento de acolhi-
mento do infrator-abusador/dependente de drogas que aceitou
participar da intervenção terapêutica, de forma a criar um vínculo

3
Disponível em: <http://www.tjgo.jus.br/docs/institucional/projetoseacoes/justicate-
rapeutica/DOC_cartilha_divulgacao.pdf>. Acesso em: 13 fev. 2015.

189
com a equipe responsável pelo seu tratamento.
Após o procedimento de acolhimento, passa-se para a
avaliação do participante, oportunidade em que se verificará o
contexto histórico psicossocial, como sua situação sócio-econô-
mica, convivência familiar, relacionamento com o consumo de
drogas e as consequências em sua vida e na de seus familiares,
suas carências e demandas em relação à educação, saúde, tra-
balho, entre outros aspectos.
Ainda na fase de avaliação, o psicólogo avalia de uma
forma mais específica e detalhada as possíveis causas que motiva-
ram o participante ao consumo de drogas, bem como detectar o
grau de envolvimento com as drogas, quais as drogas que consome
e qual o seu compromisso com o possível abandono das drogas.
O procedimento de avaliação é a parte mais significativa
de todo o processo, pois pode, caso se tenha uma avaliação bem
feita, conscientizar o participante de sua problemática e o incen-
tivar a buscar mudanças, por isso pode acarretar em diversas
entrevistas, podendo chegar, em algumas situações, ao lapso
temporal de até três meses.
Após o findar das entrevistas destinadas à avaliação do
participante, é produzido um relatório denominado de Sumário Psi-
cossocial, onde é apresentado uma síntese técnica sobre o proveito
em submetê-lo, ou não, ao programa, e mais informações que se
façam necessárias sobre o seu encaminhamento. Esse parecer
técnico deve ser apensado ao processo de que o participante seja
parte, para que o Juiz possa ter conhecimento e possa homologar.
Os métodos adotados durante o tratamento são construídos
mediante uma meditação crítica com o participante sobre a função
que desempenha em seu convívio familiar, social, sobre seus direitos
e obrigações, sobre seu comprometimento consigo mesmo, com a
Justiça e com a comunidade de qual faz parte.
Após a conclusão da avaliação do participante, já na se-
gunda fase, o mesmo é encaminhado para o tratamento, que foi
escolhido pela equipe que o avaliou, em uma entidade especia-
lizada externa, ou mesmo nos serviços internos do programa, e,
juntamente, é enviada uma cópia do parecer emitido sobre o par-
ticipante do programa.

190
O tratamento é executado em grupos de reflexão ou de
forma individual, sendo que o método tradicional são as reuniões
nos grupos de reflexão e, excepcionalmente, desde que não seja
dependente físico ou psicológico e não possa frequentar as reu-
niões em grupos, poderá ser feito atendimento individual.
Após o participante iniciar o tratamento, na terceira fase,
o mesmo é acompanhado através dos grupos de acompanha-
mento ou individual, mensalmente ou bimestralmente, infor-
mando ao juízo que determinou o tratamento, de forma a que o
mesmo tenha ciência dos resultados até então obtidos e da fre-
quência do participante.
Na quarta e última fase do programa, já findo o prazo im-
posto nas condições do benefício legal que determinou a partici-
pação na Justiça Terapêutica, o qual o infrator-abusador/
dependente de drogas acordou, ou então quando a equipe certi-
ficar a aptidão do participante em continuar as mudanças sem
que seja necessário a intervenção da Justiça Terapêutica, é pro-
duzido um relatório final em que constam os métodos utilizados
e quais os benefícios conseguidos com o tratamento, seja no as-
pecto psíquico ou social do participante.

OUTRAS ATIVIDADES

Além dos métodos de tratamento com o participante já


elencados, há a possibilidade de os seus familiares serem con-
vidados a integrar os grupos de orientação de familiares.
Ainda, existe o acompanhamento institucional, no qual
as equipes integrantes da Justiça Terapêutica realizam visitas às
instituições de tratamento externo, tendo como foco aproximar
as equipes das instituições e da Justiça Terapêutica
Por fim, ainda, há reuniões entre os profissionais que com-
põe a equipe da Justiça Terapêutica, de modo a compartilhar vi-
vências nos programas, buscando, assim, aperfeiçoar o programa.

191
TEMPO DE TRATAMENTO

O período de tratamento com toda certeza é uma ques-


tão conflituosa, pois encontramos de um lado a questão de que
a terapia não tem prazo definido e, do lado oposto, encontramos
que a Justiça Terapêutica é uma condição para a concessão de
um benefício a que o infrator-abusador/dependente de drogas
faça jus. Logo, esse benefício tem prazo estipulado.
Dessa forma, verificamos que o prazo dependerá do
acordo firmado, quando foi proposto o benefício em favor do in-
frator-abusador/dependente de drogas, ou seja, não se enquadra
na proposta da terapia, pois, depois de cumprindo o prazo do be-
nefício, o participante deixará o programa.
Ainda, vale mencionar que a equipe responsável pelo
tratamento do participante pode, quando perceber que o mesmo
já possui condições para continuar se tratando sem integrar a
Justiça Terapêutica, conceder-lhe alta do tratamento.

CONCLUSÃO

Pode-se perceber o avanço no tratamento com as pes-


soas que consomem drogas, visto que busca dar dignidade ao
abusador ou dependente de drogas, o que há pouco tempo não
acontecia, e trabalha com a sua reinserção na sociedade que
tanto o oprime.
Assim, pode-se evitar o encarceramento do infrator-abu-
sador/dependente de drogas, pois não possibilitará a sua recu-
peração, bem como não conseguirá a sua reinserção na
sociedade, pelo contrário, provavelmente, impulsionará a escola
do crime.
Em outra vertente, podemos observar que a Justiça Te-
rapêutica é uma forma remediada de trabalhar o problema, pois
percebemos que a atuação se dá após constatar que o indivíduo
praticou uma infração e seja abusador/dependente de drogas.
Dessa forma, é claro que o Estado, como garantidor de
direitos, deve buscar mais programas, principalmente, traba-
lhando na prevenção ao consumo de drogas e não apenas depois

192
que o indivíduo aderiu ao consumo das substâncias.
Também cabe ressaltar que através da conscientização
sobre o consumo de drogas, devemos quebrar estereótipos
sobre as drogas, como, por exemplo, de que quem usa droga é
bandido, que a maconha leva ao consumo de drogas considera-
das piores, entre outros.
No trabalho de conscientização, devemos refletir se real-
mente essa guerra às drogas, adotada pelos Estados Unidos da
América e aderida por grande parte do Ocidente, é em benefício
da sociedade ou não passa do aspecto econômico.
Ainda, a conscientização deve trabalhar com uma abor-
dagem não intimidadora, trabalhando benefícios e malefícios das
drogas à sua saúde e aos problemas que causa à sociedade e
ao Estado. De forma a não relacionar drogas à criminalidade,
pois muitos consumidores de drogas têm uma vida considerada
dentro dos padrões considerados normais. Como exemplo clás-
sico, temos o indivíduo que consome uma “cervejinha” no fim de
semana para relaxar, e que nem por isso é um criminoso.
É certo que hoje ainda vivemos em uma sociedade que
marginaliza os usuários, abusadores e dependentes de drogas
consideradas ilícitas, mas que, ao mesmo tempo, consome
drogas para acordar, dormir, relaxar, agitar, estudar, transar, tra-
balhar e em várias outras atividades do dia a dia.
Dessa forma, é notável que a violação dos direitos huma-
nos dos usuários, abusadores e dependentes de drogas dá-se
principalmente em razão da desigualdade social e econômica na
qual ainda vivemos, que culmina no preconceito a determinadas
classes sociais, etnia ou gênero e orientação sexual e religiosa.
Esse binômio droga/crime é um conflito muito maior do
que qualquer violação a normas penais, é fruto de uma desigual-
dade social, pois estamos em uma sociedade em que falta edu-
cação básica, falta saúde, entre carência de outras coisas
mínimas para se ter uma vida digna.

Enquanto se tiver uma concepção reducionista do crime, pela qual ele


é compreendido unicamente como uma infração à norma penal, des-
provida de qualquer conflito e qualquer drama humano, serão infrutí-
feras, em sua maioria, as medidas que pretendam “ressocializar” os
infratores dessa norma. O crime é expressão de conflitos. Portanto,

193
não é a infração à norma que deve ser resolvida, mas os conflitos que
ela expressa. E para se enfrentarem e resolverem esses conflitos, uma
longa caminhada deve ser feita, uma caminhada sem fim, que dura en-
quanto durar a humanidade. Uma caminhada de descoberta de valo-
res, de superação de antinomias, de descoberta de si mesmo e do
outro, uma caminhada de reconciliação e de perdão. (SÁ, 2010, p. 167)

Assim, enquanto houver desigualdade social no globo ter-


restre, encontrado-se a riqueza na mão de poucas pessoas,
viver-se-á essa guerra contra o usuário, abusador e dependente
de drogas ilícitas, que, na maioria dos casos, não teve/tem
acesso à educação, informação, saúde, lazer e ao mínimo que
devia ser garantido e efetivado ao ser humano.
Ainda para agravar a situação temos o sensacionalismo
do noticiário ao qual estamos expostos, que condenam usuários,
abusadores ou dependentes de drogas ilícitas e, raramente, as
lícitas, assim formando a opinião da massa manipulada que tam-
bém passa a condená-los. Enquanto isso, deveriam buscar uma
forma de romper com essa marginalização, de trabalhar com a
inclusão social, de buscar a diminuição da desigualdade social.
Mas, como estão alojados em sua área de conforto, passam a
responsabilidade unicamente para o Estado, que está mais preo-
cupado com o capital do que com o social.
Dessa forma, muito mais que a implementação da Justiça
Terapêutica, que já é algo significativo, é necessário a mudança
da sociedade através da educação. Assim, quem sabe, gerações
futuras serão menos egoístas e perceberão que fazem parte de
um todo, e que, sendo assim, qualquer um que esteja em desar-
monia afeta o todo. Desse modo, buscarão ajudar o próximo em
vez de condená-los, cumprindo, assim, o maior ensinamento das
religiões, amar ao próximo como a ti mesmo.
Destarte, a Justiça Terapêutica é o primeiro passo para
uma caminhada que será longa e árdua, mas que há de ser al-
cançada quando a maioria dos seres humanos presentes no
globo terrestre revoltarem-se contra o sistema em que nos en-
contramos atualmente.

194
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numero-presos-decide-raul-zaffaroni>. Acesso em: 09 set. 2014.

196
Alan Miranda Milhomem*

Aspectos criminAis dA LeniênciA Antitruste:


princípio dA consunção estendidA,
dA proporcionALidAde
e reLAção de cAusALidAde

CriMinAl AsPECts of thE lEniEnCy ProGrAM: PrinCiPlE


of ADsorPtion ExtEnDED, ProPortionAlity AnD CAUsAtion

AsPECtos PEnAlEs DEl ACUErDo DE lA inDUlGEnCiA:


PrinCiPio DE AbsorCión ExtEnDiDo,
ProPorCionAliDAD AnD lA CAUsAliDAD

Resumo:
o Programa de leniência Antitruste concede benefícios criminais
imediatos para o agente criminoso que colabore efetivamente com
as investigações promovidas pelo Conselho Administrativo de Defesa
Econômica (CADE), nos termos do art. 87 da lei n.12.529/2011. o
presente artigo discute inicialmente os efeitos criminais deste acordo
na esfera criminal. Em seguida, discute-se se a celebração do acordo
de leniência é espécie de suspensão de condição de procedibilidade,
assim como quais seriam os crimes diretamente relacionados ao
crime de cartel. Para tanto, analisa-se a lista de crimes prevista na
legislação sob a égide do princípio da consunção e da proporcionali-
dade. Por fim, discute-se a questão da prescrição do crime de cartel
em relação aos agentes econômicos que não celebraram o acordo
de leniência.

Abstract:
The Antitrust Leniency Program provides immediate criminal benefits
for the criminal agent who collaborate effectively with investigations
promoted by the Administrative Council for Economic Defense
(CADE), pursuant to art. 87 of Law 12.529/2011. This article first dis-
cusses the purpose of this Agreement in the criminal sphere. Then

Graduando em Direito pelo Centro Universitário do Estado do Pará. Estagiário do


*

Ministério Público Militar.

197
we discuss if the celebration of the Leniency Agreement is kind of con-
dition of suspension, as well as what are the crimes directly related to
cartel crime. Therefore, we analyze the list of crimes covered by the
legislation under the aegis of principle of adsorption and proportiona-
lity. Finally, we discuss the issue of prescription of the cartel offense in
relation to economic agents which have not concluded the leniency
agreement.

Resumen:
El programa de indulgencia Antimonopolio proporciona beneficios
penales inmediatos para el agente que colabore eficazmente con
las investigaciones promovidas por el Consejo Administrativo de
Defensa Económica (CADE), en cumplimiento del art. 87 de la Ley
12.529/2011. En este artículo se analiza en primer lugar el propósito
criminal de este Acuerdo en el ámbito penal. A continuación se dis-
cute si la celebración del Acuerdo sobre la cooperación es una es-
pecie de suspensión de condición de procedibilidad, así como
¿cuáles son los delitos directamente vinculada a la delincuencia
cártel. Por lo tanto, analizamos la lista de crímenes cubiertos por la
legislación bajo la égida el principio de proporcionalidad y absor-
ción. Por último, se discute la cuestión de la prescripción de la in-
fracción cártel en relación con los agentes económicos que no
hayan firmado el acuerdo sobre la cooperación.

Palavras-chave:
Acordo de leniência, cartel, extinção da punibilidade.

Keywords:
Leniency agreement, cartel, extinction of punishment.

Palabras clave:
Acuerdo de indulgencia, cártel, la extinción de la responsabilidad
penal.

198
o Programa de leniência Antitruste é definido como um con-
junto de iniciativas com o escopo de detectar, investigar e punir infrações
contra a ordem econômica. os artigos 86 e 87 da lei n. 12.529/2011 e
os artigos 197 a 210 do regimento interno do CADE informam às pes-
soas jurídicas e físicas em geral os benefícios da leniência.
segundo o Guia de leniência do CADE (2015, p. 9):

Este programa permite que empresas e/ou pessoas físicas envolvidas ou


que estiveram envolvidas em um cartel ou em outra prática de conduta
anticoncorrencial, celebrem Acordo de leniência com o CADE, compro-
metendo-se a cessar a conduta ilegal, a denunciar e confessar a prática
de infração à ordem econômica, bem como a cooperar com as investiga-
ções apresentando informações e documentos relevantes à investigação.

não havendo conhecimento prévio pela superintendência-


Geral do CADE acerca da infração noticiada, o leniente será bene-
ficiado com a extinção da ação punitiva da Administração Pública
(art. 86, §4º, da lei n. 12.529/2011 c/c art. 208, i e ii do riCADE).
na esfera criminal, a celebração de acordo de leniência de-
termina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o ofe-
recimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da
leniência, no que tange aos crimes contra a ordem econômica tipifi-
cados na lei n. 8.137/1990, e nos demais crimes diretamente re-
lacionados à prática de cartel, tais como os tipificados na lei n.
8.666/1993 e no artigo 288 do Código Penal - associação criminosa.
Cumprido o acordo de leniência, extingue-se automaticamente a pu-
nibilidade dos crimes referidos no art. 87 da lei n. 12.529/11.
É importante não olvidar que os artigos 86 e 87 da lei n.
12.529/2011 não exigem, para celebração do acordo de leniência
antitruste, a participação do Ministério Público, já que pela leitura
desses artigos se compreende que o acordo é de competência res-
trita da superintendêcia-Geral do CADE. no entanto, em virtude das
consequências criminais do acordo, o CADE já celebrava os acordos
com a participação do Ministério Público Estadual e/ou federal.
Essa atitude do CADE é no sentido de preservar a indepen-
dência institucional do Ministério Público, titular privativo da ação penal
pública, não havendo supressão de competência e preservando
a segurança jurídica do acordo de leniência.

199
Apesar de, atualmente, não ser exigida mediante lei a par-
ticipação do Ministério Público, está em vigor a Medida Provisória n.
703, de 18 de dezembro de 2015, que permite em síntese que o
acordo de leniência seja celebrado com a participação do Ministério
Público e da Advocacia Pública, com o escopo de dar segurança ju-
rídica às empresas celebrantes, tendo em vista os efeitos do acordo
nas esferas administrativa, civil e penal.

suspensão de condição de procediBiLidAde ou re-


nÚnciA do direito de denunciAr?

segundo Marcelo Mendroni (2015, p. 322):

o acordo de leniência é espécie de “suspensão” de condição de pro-


cedibilidade da ação penal pública, ou seja, este acordo ocasiona a
suspensão da propositura da ação penal como uma espécie de con-
traprestação aos agentes que permitirem, de forma mais rápida e efi-
ciente, a identificação dos demais criminosos, incluindo a confissão
integral, o fornecimento de provas etc.

A nosso ver, a parte final da redação não foi clara quanto


ao instituto jurídico penal utilizado para suprimir a autonomia e
indisponibilidade da ação penal pública, no entanto, ao analisar-
mos o Código Penal e o Código Penal Militar, é possível constatar
a suspensão da ação como uma condição de procedibilidade.
Confira a redação do art. 87 da lei n. 12.529/11: “a celebração
do acordo de leniência, nos termos desta lei, determina a sus-
pensão do curso do prazo prescricional e impede o ofereci-
mento da denúncia com relação ao agente beneficiário da
leniência” (grifamos).
o art. 457, §3º, do Código de Processo Penal Militar dis-
põe que, no crime de deserção, a qualidade de militar da ativa é
condição de procedibilidade da ação penal pública incondicio-
nada, sendo necessária a reinclusão do praça especial ou do
praça sem estabilidade. Assim como no art. 100, §1º, do Código
Penal, existe a previsão da ação penal pública condicionada,
nesta sendo condição de procedibilidade da ação penal pública a
representação do ofendido ou a requisição do Ministro da Justiça.

200
logo, devemos vislumbrar a possibilidade de existir uma
outra condição de procedibilidade da ação penal, não prevista no
Código Penal, mas prevista no art. 87 da lei n. 12.529/11 com a
seguinte dicção: “Para os crimes previstos nesta lei, é condição
de procedibilidade da ação penal pública a ausência de acordo
de leniência”.
Porém, ainda é discutível a definição da extinção da pu-
nibilidade prevista no art. 87, parágrafo único, o qual dispõe:
“Cumprido o acordo de leniência pelo agente, extingue-se auto-
maticamente a punibilidade dos crimes a que se refere o caput
deste artigo”. Então, é possível dizer que no final do acordo de
leniência haverá uma renúncia ao direito de denunciar pelo Mi-
nistério Público?
o art. 107 do Código Penal, que define os casos de extin-
ção da punibilidade, não prevê tal renúncia, mas, nos casos pre-
vistos na lei n. 9.099/95 (dos Juizados Criminais), o Ministério
Público pode transacionar a ação penal pública e, posteriormente,
quando a parte cumpre o acordo, a pena é extinta. logo, utilizando-
se da analogia, é imperioso dizer que o parágrafo único tem o
mesmo efeito da transação penal e é uma forma de extinção da
punibilidade não prevista no Código Penal, mas prevista em lei.

crimes diretAmente reLAcionAdos À prÁticA de


cArteL e reLAção de cAusALidAde

o âmago do debate acerca dos crimes abrangidos pelo


acordo de leniência advém da interpretação do termo: crimes di-
retamente relacionados à prática de cartel. Existem autores que
interpretam esse termo para todos os crimes que ofendem o
mesmo bem jurídico tutelado pelo crime de cartel, ou seja, crimes
contra a ordem econômica. Mas essa interpretação não logra êxito
quando se observa que, no próprio art. 87, existem crimes de na-
tureza diversa abrangidos pelo acordo de leniência. são os casos
do crime de associação criminosa - tutela a paz pública, e o crime
de fraude à licitação - tutela a lisura da concorrência pública.
A doutrina majoritária define que o crime de associação
criminosa lesiona a paz pública e que o crime de fraudar licitação

201
lesiona a Administração Pública. Mas, para Mendroni (2015), este
último crime visa fraudar uma concorrência específica - no âmbito
da Administração Pública, enquanto o crime de cartel visa des-
tabilizar o mercado econômico, ou seja, mercado em sentido
amplo e genérico. Qualquer interpretação no sentido de dizer
estar implícito um bem jurídico no outro é interpretação extensiva,
tipo de argumentação vedada pelo Direito Penal em virtude do
princípio da reserva legal.
Pode-se dizer que o princípio da consunção estendida
está implícito no art. 87 da lei Antitruste, haja vista que, quando
o legislador exemplifica crimes de natureza jurídica diferente
abrangidos ou absorvidos pelo acordo de leniência, em decor-
rência de um crime principal, está o legislador personificando o
princípio da absorção e estendendo-o a crimes diversos. Ao
mesmo tempo, a legislação não viola o princípio da proporciona-
lidade, uma vez que os crimes consumidos possuem pena mais
leve que a pena do crime principal.
no entanto, ainda não existem parâmetros doutrinários
para a abrangência de outros crimes não previstos naquela lei es-
pecífica. Por esse motivo, na tentativa de estabelecermos parâ-
metros seguros e encontrarmos crimes autônomos, não citados
na legislação, tornou-se imprescindível falarmos da relação de
causalidade entre o crime principal de cartel e o crime consumido.
nesse sentido alude Queiroz (2013, p. 227):

Convém notar que o nexo causal é um constructo, e não simplesmente


uma constatação físico-natural, porque para afirmarmos ou negarmos
uma dada relação causal, é preciso considerar (sopesar, excluir etc.)
diversas possibilidades. Assim, há, em princípio, nexo causal entre
ação de um pastor americano que ateia fogo em exemplares do Corão
e as mortes de cidadãos americanos (em países mulçumanos) que se
lhe seguem em represália. Existe também relação causal entre a ação
de um estudante que divulga, na internet, imagens íntimas de um seu
colega de quarto com o amante e o suicídio que sobrevém à indevida
violação da privacidade do estudante vitimado. Apesar disso, em ne-
nhum desses casos é possível imputar crime de homicídio, quer por
parte do pastor, quer por parte do aluno que violou a privacidade de
outrem. no primeiro caso, porque o nexo causal, embora necessário,
não é suficiente à caracterização da responsabilidade penal. E no
segundo caso, porque não se trata de omissão penalmente relevante, visto que
o estudante que viola a privacidade alheia não é garante nos termos da lei.

202
no nosso entendimento, a solução para a lacuna deixada
pelo legislador está na segunda parte do caput do art. 13 do Có-
digo Penal, que dispõe: “considera-se causa a ação ou omissão
sem a qual o resultado não teria ocorrido”. Esse artigo consagra a
teoria da equivalência das condições, também conhecida como
teoria da conditio sine qua non, para determinar a relação de
causalidade.
Para exemplificar melhor, imagine um cartel de 3 empre-
sas A, b e C, onde A propôs o acordo de leniência, cumprindo
todos os requisitos do art. 86 da legislação antitruste, em contra-
prestação, o CADE beneficia os dirigentes da empresa A com a
isenção da pena e impedimento da denúncia aos crimes direta-
mente relacionados à prática de cartel (art. 87). Em seguida, os
dirigentes da empresa A, ao revelarem os crimes cometidos, dis-
seram que invadiram dispositivos informáticos da empresa b e
C, mediante violação de mecanismos de segurança com intuito
de obter informações sigilosas e comunicação eletrônica privada
de b e C (art. 154-A, §3º, do Código Penal).
A empresa em sua defesa argumentou que o objetivo da
invasão foi identificar se a tabela de preços e o acordo do cartel,
entre as 3 empresas estava em fase de implementação, e se al-
guma das empresas tinha a intenção de desfazer o cartel. Utili-
zando dos dados coletados como prova de que a empresa A
somente queria garantir a eficiência do crime principal, crime de
cartel, devido à insegurança da prática do ilícito, isso era meio
necessário para o cumprimento do crime de cartel.
nesse caso, ainda que o crime tipificado no art. 154, §3º,
do Código Penal não esteja previsto no art. 87 da lei Antitruste,
ao se aplicar a teoria conditio sine qua non, o princípio da pro-
porcionalidade (pena do crime meio menor que a pena do crime
fim) e o princípio da consunção estendida (absorção de crimes
diversos diretamente relacionados à prática de cartel), vislumbra-
se que o crime de invasão de dispositivo informático foi absorvido
pelo crime do art. 4º da lei n. 8.137/90.
A respeito da relação de causalidade, ainda na lição de
Queiroz (2013, p. 228):

203
De acordo com essa teoria, a questão de quando uma conduta pode
ser considerada como causa de um evento há de ser resolvida por
meio de uma fórmula da conditio sine qua non, é dizer, para saber se
determinada condição pode ser considerada causa do resultado,
dever-se-á utilizar o chamado método (ou procedimento) hipotético
de eliminação, segundo o qual quando, eliminada mentalmente a
causa, eliminar-se o efeito, haverá nexo causal; caso contrário, isto
é, se, cessada a causa, não cessar o efeito, a relação causal não es-
tará configurada, e, em consequência, o resultado não poderá ser im-
putado ao agente, porque tal conduta não constituirá condição sem
a qual o resultado não teria ocorrido (conditio sine qua non).

Por sua vez, bitencourt (2011, p. 229), ao discutir a possi-


bilidade de absorção entre crimes e os momentos da absorção, fala:

Em síntese, deve-se considerar absorvido pela figura principal tudo


aquilo que enquanto ação - anterior ou posterior - seja concebido
como necessário, assim como tudo o que dentro do sentido de uma
figura constitua o que normalmente acontece (quod plerumque acci-
dit). no entanto, o ato posterior somente será impune quando com
segurança possa ser considerado como tal, isto é, seja um autêntico
ato posterior e não uma ação autônoma executada em outra direção,
que não se caracteriza somente quando praticado contra outra pes-
soa, mas pela natureza do fato praticado em relação à capacidade
de absorção do fato anterior.

bitencourt e Queiroz alertam que a relação de causali-


dade apenas tem importância nos crimes materiais, ou seja,
aqueles de ação e resultado, visto que, os crimes formais, de
mera conduta, sem resultado, são irrelevantes para a teoria ca-
pitulada no art. 13 do CP.
Em sentido oposto, rogério Greco e luiz flávio Gomes
asseveram que, quando o caput do art. 13 inicia sua redação di-
zendo “o resultado, de que depende a existência do crime”, quer
se referir ao resultado jurídico.
segundo luiz flávio Gomes, citado por rogério Greco
(2011, p. 214), o art. 13 do CP se aplica a todas as infrações penais:

não existe crime sem resultado, diz o art. 13. A existência do crime
depende de um resultado. leia-se: todos os crimes exigem um resul-
tado. se é assim, pergunta-se: qual resultado é sempre exigido para
configuração do crime? lógico que não pode ser o resultado natural

204
(ou naturalístico ou típico), porque esse só é exigido nos crimes mate-
riais. Crimes formais e de mera conduta não possuem ou não exigem
resultado (natural). Consequentemente, o resultado exigido pelo art. 13
só pode ser jurídico. Este sim é que está presente em todos os crimes.
Que se entende por resultado jurídico? É a ofensa ao bem jurídico, que
se expressa numa lesão ou perigo concreto de lesão. Esse resultado
jurídico possui natureza normativa (é um juízo de valor que o juiz deve
fazer em cada caso para verificar se o bem jurídico protegido pela
norma entrou no raio de ação dos riscos criados pela conduta).

Cabe ressaltar que ambas as argumentações são váli-


das no que tange à configuração penal do crime de cartel. Pri-
meiramente, porque não se deve olvidar que a infração
administrativa da prática de cartel (art. 36 da lei n. 12.529/11) se
diferencia do crime de cartel (Art. 4º, inc. i, da lei n. 8137/90) em
razão do crime de cartel ser crime material e formal.
o art. 36 da lei Antitruste dispõe: “constituem infração
da ordem econômica, independente de culpa, os atos sob qual-
quer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam pro-
duzir os efeitos previstos nos incisos i, ii, iii e iV, ainda que não
sejam alcançados”. (grifamos). logo, na infração administrativa,
o cartel não precisa alcançar um resultado.
no entanto, o crime de cartel previsto no inciso i do art. 4º
da lei n. 8137/90 dispõe que: “constitui crime contra a ordem eco-
nômica: abusar do poder econômico, dominando o mercado ou
eliminando, total ou parcialmente, a concorrência mediante
qualquer forma de ajuste ou acordo de empresas”. logo, o crime
de cartel é crime material quando a conduta do agente se encaixa
perfeitamente no inciso i do artigo 4º, uma vez que para consumar
o crime é preciso existir o resultado, dominando o mercado ou
eliminando total ou parcialmente a concorrência.
se o crime de cartel for tipificado nas formas previstas
no inciso ii do art. 4º da lei n. 8137/90 não será mais um crime
material e sim um crime formal, uma vez que o agente não
precisa consumar a finalidade visada. Vejamos: art. 4º, inciso
ii - formar acordo, convênio, ajuste ou aliança entre ofer-
tantes, visando: a) à fixação artificial de preços ou quantida-
des vendidas ou produzidas; b) ao controle regionalizado do
mercado por empresa ou grupo de empresas; c) ao controle,

205
em detrimento da concorrência, da rede de distribuição ou
de fornecedores.
Pelo exposto, constata-se que a relação de causalidade
prevista no art. 13 do Código Penal poderá se aplicar no crime de
cartel em todas as suas formas, desde que haja a devida funda-
mentação quando houver a tipificação. ou seja, no caso de tipifi-
cação do inciso ii e inciso i do art. 4º prevalecerá os argumentos
dos professores rogério Greco e luiz flávio Gomes e, no caso
de tipificação somente através do inciso i do art. 4º, prevalecerá
os argumentos dos professores bitencourt e Queiroz.

crimes eXempLiFicAtiVos ou tAXAtiVos? (Art. 87 dA


Lei n. 12.529/11)

Quanto à extensão do acordo de leniência nos termos


do art. 87 da lei n. 12.529/11, discute-se: quais são os crimes
diretamente relacionados ao crime de cartel?
Vejamos a redação do art. 87 da lei n. 12.529/11: “nos
crimes contra a ordem econômica, tipificados na lei n. 8.137, de
27 de dezembro de 1990, e nos demais crimes diretamente re-
lacionados à prática de cartel, (tais como os tipificados na lei n.
8.666, de 21 de junho de 1993, e os tipificados no art. 288 do De-
creto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal) a
celebração de acordo de leniência, nos termos desta lei, deter-
mina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o
oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da
leniência” (grifamos).
Para ilustrar melhor a falta de clareza advinda dessa re-
dação, Mendroni (2015, p. 324) citou em seu livro o seguinte
exemplo:

integrantes da empresa formam acordos (Cartel) para fraudar lici-


tação. A princípio, a imputação penal abrangeria os delitos de Cartel
e de fraude à licitação. Mas se eles corromperam agentes públicos
para facilitar o procedimento licitatório? Eventual acordo de leniência
os protege criminalmente contra o crime de corrupção?

206
na opinião de Mendroni o legislador ao citar “tais como”
especificou de forma absoluta como únicas possibilidades os crimes
ali previstos, tipificados na lei n. 8.666/93 e no art. 288 do Código
Penal. Para esse autor, se não houvesse tal termo na lei, ter-se-
ia que todos os crimes “diretamente” relacionados à prática de
cartel estariam inseridos no âmbito de abrangência do acordo de
leniência.
Ainda segundo Mendroni (2015), se a lei fixou aqueles
delitos, e não referiu expressamente à corrupção, como no exem-
plo supracitado, é porque não quis, e, a contrario sensu, quis
deixá-la de fora. sendo regra no Direito Penal: “não dá para am-
pliar entendimento a quaisquer outros delitos diretamente
relacionados” (grifamos).
Com a devida vênia, discordamos do autor em razão dos
crimes previstos no art. 87 da lei n. 12.529/11 não serem taxati-
vos como foram classificados. Após uma interpretação gramatical
do artigo, constata-se que a lei se refere aos crimes tipificados
no art. 288 do Código Penal e os tipificados na lei n. 8.666/93
(lei de licitações). nesta última, o legislador não especificou quais
dos artigos tipificados na lei n. 12.529/11 foram abrangidos, po-
dendo abarcar qualquer crime entre os arts. 89 a 99 da lei n.
8.666/93, pois todos eles tipificam as infrações penais no âmbito
das licitações, e, dependendo do caso, podem estar diretamente
relacionados ao crime de cartel. novamente, veja que o legisla-
dor no art. 87 se referiu ao(s) crime(s) tipificado(s) - plural.
no entanto, como responder a dúvida fomentada por
Mendroni (2015): é possível dizer que o crime de corrupção está
diretamente relacionado ao crime de cartel? A nosso ver, é pos-
sível dizer que o crime de corrupção está diretamente relacio-
nado ao crime de cartel, mas não é possível dizer que o crime
de corrupção foi absorvido pelo crime de cartel. nesse ponto,
concordamos com Mendroni(2015), mesmo não tendo sido citado
em seu livro que o princípio da proporcionalidade é a regra do
Direito Penal que impede a ampliação do entendimento a quais-
quer outros delitos diretamente relacionados à prática de cartel.

207
princípio dA consunção ou ABsorção

É possível que se entenda pela abrangência dos bene-


fícios criminais para crimes diretamente relacionados à prática
de cartel, ainda que não expressamente previstos no art. 87 da
lei n. 12.529/11, desde que estes crimes cumpram necessaria-
mente dois requisitos: (i) possam ser absorvidos pelo crime prin-
cipal que, é o crime de cartel - art. 4º da lei n. 8.137/90; e (ii)
possuam nexo de causalidade com o crime principal. ou seja,
significa que o crime meio ou complementar pode ser absorvido
pelo crime principal (cartel), desde que o primeiro tenha pena
máxima inferior à pena máxima do crime principal e entre eles
exista uma conditio sine qua non (art. 13 do CP), não havendo
necessidade de que ambos tutelem o mesmo bem jurídico.
Quanto ao primeiro requisito, qual seja (i) a possibilidade
de ser absorvido pelo crime principal, que é o crime de cartel,
cumpre primeiro retomar o conceito do princípio da consunção,
como alude Paulo Queiroz (2013, p. 134):

logicamente a absorção de um crime por outro só poderia ocorrer


quando o crime mais amplo cominasse pena mais grave do que o
menos amplo, até porque a maior gravidade deveria ser avaliada, em
princípio, segundo um critério objetivo: a pena cominada. no entanto,
pode ocorrer de um crime menos grave absorver um mais grave. nesse
exato sentido dispõe a súmula 17 do stJ que, “quando o falso exaure
no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido”,
hipótese em que um crime teoricamente menos grave (estelionato, pre-
visto no art. 171 do CP, cuja pena varia de 1 a 5 anos de reclusão) pode
absorver o mais grave (v. g., falsidade de documento público, previsto
no art. 297 do CP, apenado com reclusão de 2 a 6 anos).

Ainda sobre o assunto, segundo Aníbal bruno, citado por


bitencourt (2004, p. 181):

[...] o fato posterior deixa de ser punido quando se inclui, como meio
ou momento de preparação no processo unitário, embora complexo,
do fato principal, ação de passagem, apenas, para a realização final.
Assim, a posse de instrumentos próprios para furto ou roubo é con-
sumida pelo furto que veio a praticar-se: as tentativas improfícuas se
absorvem no crime que, enfim, se consumou. os fatos posteriores
que significam um aproveitamento do anterior, aqui considerado
como principal, são por este consumidos.

208
A doutrina majoritária define a consunção como a relação
existente entre dois ou mais tipos penais que tutelam o mesmo
bem jurídico, constituindo um deles meio necessário ou fase nor-
mal de preparação ou execução do outro. o exemplo mais
comum nos livros é o crime de perigo ser absorvido pelo crime
de dano, ou da violação de domicílio (art. 150 do CP) pelo crime
de furto (art. 155 do CP).
nesse sentido, Queiroz (2013, p. 135) alerta para as di-
ferenças entre a consunção e o concurso de crimes:

[…] Ademais, os diversos fatos devem estar numa mesma linha de


progressão no ataque a um mesmo bem jurídico protegido, pois do
contrário já não se poderá falar de conflito de normas (consunção),
senão de concurso de crimes (v. g., furto e receptação por indução;
falsificação e posterior uso de documento falso; falsificação de moeda
com posterior introdução em circulação; furto e estelionato, em razão
da venda pelo agente da coisa furtada etc.).

É imperioso dizer que a definição dada pela doutrina ma-


joritária não é regra absoluta, pois, para que haja absorção de
um crime menos grave por um crime mais grave, não é neces-
sário que o primeiro tutele o mesmo bem jurídico que o segundo.
o exemplo mais citado nos livros já demonstra essa desneces-
sidade. Vejamos a contradição: “o crime de violação de domicílio
(tutela a inviolabilidade/proteção do domicílio) é absorvido pelo
crime de furto (tutela a posse e a propriedade da coisa móvel)”
(QUEiroZ, 2013, p. 134).
outro exemplo é o caso em que a contravenção penal
de fingir-se funcionário público (art. 45 da lei de Contravenções
Penais - tutela a fé pública) e o crime de violação de domicílio
(art. 150 do CP - tutela a inviolabilidade/proteção do domicílio)
são absorvidos pelo crime de roubo (art. 157 do Código Penal -
tutela o patrimônio), levando-se em conta o fato de que se fingir
de funcionário público era meio necessário para roubar alguém
dentro de um determinado domicílio.
neste trabalho, o fenômeno da absorção de um crime
menos grave por um crime mais grave que não tutela o mesmo
bem jurídico que o crime absorvido, foi nomeado como princípio
da consunção estendida. o princípio da consunção estendida é

209
a relação existente entre dois ou mais tipos penais que tutelam
bem jurídico diferente, constituindo um deles meio necessário ou
fase normal de preparação ou execução do outro.
A respeito desse assunto, é necessário citar bitencourt
(2011, p. 227):

não convence o argumento de que é impossível a absorção quando


se tratar de bens jurídicos distintos. A prosperar tal argumento, jamais
se poderia, por exemplo, falar em absorção nos crimes contra o sis-
tema financeiro (lei n. 7.492/86), na medida em que todos eles pos-
suem uma objetividade jurídica específica. É conhecido, entretanto,
o entendimento do trf da 4ª região, no sentido de que o art. 22 ab-
sorve o art. 6º da lei n. 7.492/86 1. na verdade, a diversidade de bens
jurídicos tutelados não é obstáculo para a configuração da consun-
ção. inegavelmente - exemplificando - são diferentes os bens jurídi-
cos tutelados na invasão de domicílio para a prática de furto, e no
entanto, somente o crime-fim (furto) é punido, como ocorre também
na falsificação de documento para a prática de estelionato, não se
punindo aquele, mas somente este (súmula 17/stJ). no conhecido
enunciado da súmula 17 do stJ, convém que se destaque, reconhe-
ceu-se que estelionato pode absorver a falsificação de documento.
registre-se, por sua pertinência, que a pena do art. 297 é de 2 a 6
anos de reclusão, ao passo que a pena do art. 171 é de 1 a 5 anos.
não se questionou, contudo, que tal circunstância impediria a absor-
ção, mantendo-se em plena vigência a referida súmula.

seguindo a linha de raciocínio de bitencourt (2011), é


possível constatar que no próprio artigo 87 da lei n. 12.529/11
existem crimes de natureza diversa abrangidos pelo acordo de
leniência. são os casos de crime de associação criminosa - tutela
a paz pública, e o crime de fraude à licitação - tutela a lisura da
concorrência pública. logo, por não ser taxativo o rol de crimes
previstos no art. 87, os crimes de bens jurídicos distintos não pre-
vistos neste artigo podem ser absorvidos pelo crime principal
(cartel), isentando o leniente da pena de ambos os crimes.
Porém, é preciso salientar novamente os dois requisitos
para obtenção da consunção estendida: (i) possam ser absorvidos
pelo crime principal que é o crime de cartel - art. 4º da lei n. 8.137/90;
e (ii) possuam nexo de causalidade com o crime principal. Para que

1 hC 196690 – bA, 6ª t., rel. og fernandes, 27.09.2011, v.u.

210
seja cumprido o requisito (i), a pena máxima do crime absorvido não
deve passar de 5 anos, como prevê o art. 4º da lei n. 8.137/90.
Para exemplificar melhor, utilizaremos o exemplo já men-
cionado em linhas anteriores. imagine um cartel de 3 empresas
A, b e C onde A propôs o acordo de leniência, cumprindo todos
os requisitos do art. 86 da legislação antitruste, em contrapres-
tação o CADE beneficia os dirigentes da empresa A com a isen-
ção da pena e impedimento da denúncia aos crimes diretamente
relacionados à prática de cartel (art. 87). Em seguida, os dirigen-
tes da empresa A, ao revelarem os crimes cometidos, disseram
que invadiram dispositivos informáticos da empresa b e C, me-
diante violação de mecanismos de segurança com intuito de
obter informações sigilosas e comunicação eletrônica privada de
b e C (art. 154-A, §3º, do Código Penal).
A empresa argumentou em sua defesa que o objetivo da
invasão foi identificar se a tabela de preços e o acordo do cartel
entre as 3 empresas estava em fase de implementação, e se al-
guma das empresas tinha a intenção de desfazer o cartel. Utili-
zando dos dados coletados como prova de que a empresa A
somente queria garantir a eficiência do crime principal, crime de
cartel, devido à insegurança da prática do ilícito, isso era meio
necessário para o cumprimento do crime de cartel.
nesse caso, é possível dizer que o crime do art. 154-A, §3º,
do Código Penal foi absorvido pelo crime do art. 4º da lei n. 8.137/90?
no nosso entendimento, a resposta deve ser positiva, e
a fundamentação não está somente no fato de o crime de inva-
são de dispositivo informático ter relação direta com prática do
cartel, mas também por este crime ter pena máxima de 2 anos,
não ultrapassando a pena máxima do art. 4º da lei n. 8.137/90.
logo, configura-se perfeitamente a possibilidade da consunção
estendida, desde que: (i) possam ser absorvidos pelo crime prin-
cipal, que é o crime de cartel - art. 4º da lei n. 8.137/90; e (ii)
possuam nexo de causalidade com o crime principal.
Por último, cabe salientar que a crítica dos doutrinadores
contra a solução jurídica apresentada pela súmula n. 17 do stJ
não é em virtude da impossibilidade da consunção entre infra-
ções penais que tutelam bens jurídicos distintos. na verdade, os
doutrinadores discordam da aplicação da súmula n. 17 em razão

211
de ela infringir um dos princípios basilares do Direito Criminal, o
princípio da vedação da proteção insuficiente, uma vez que a
pena do crime absorvido (art. 297 do Código Penal) é de 2 a 6
anos de reclusão, ao passo que a pena do art. 171 é de 1 a 5
anos (crime principal - absorvente).

princípio dA proporcionALidAde ou princípio dA


VedAção dA proteção insuFiciente no direito
penAL

A respeito de proporcionalidade, é importante citar o en-


tendimento de Juliana Venturella Gavião (2008, p. 106):

A importância do papel do princípio da proteção deficiente na seara


do direito penal se dá na medida em que já não mais se pode falar
em um Estado que guarda exclusivamente das “liberdades negati-
vas”. o Estado passou a ter função de proteção da sociedade em
uma dupla acepção: transcendeu sua histórica função de proteção
contra o arbítrio do poder, e alcançou a função de concretização dos
direitos prestacionais e, ao lado destes, a obrigação de proteger os
cidadãos contra as condutas delitivas de terceiros. Dentro deste pa-
radigma surge, e. g., o direito a segurança erigida ao status de direito
fundamental. se violado este direito em face da proteção aquém do
mínimo exigido pela Constituição, ou pela omissão (no caso da au-
sência da normatização necessária pelo legislador), verifica-se hipó-
tese evidente de aplicação da proibição de insuficiência.

o direito à segurança previsto no art. 5º da Constituição


federal deve ser usado como parâmetro para aplicação e pro-
dução de leis, para que não se produza uma proteção deficiente
de um direito fundamental.
A respeito do crime de cartel, Amanda Athayde e rodrigo
de Grandis (2015, p. 292), em artigo que debate os limites da
abrangência do acordo de leniência na esfera criminal, expõem
dúvida capciosa após um raciocínio extremo. “se um participante
do cartel agride fisicamente outro participante do cartel, cau-
sando-o lesão corporal ou até mesmo a morte, cometendo crime
de homicídio, estaria ou não essas infrações penais abrangidas
no acordo de leniência?”

212
os autores dizem que não é possível a abrangência em
razão do crime de homicídio não constituir, sob aspecto típico, uma
normal fase de preparação ou execução do delito de cartel, de modo
que não estariam, pelo menos em tese, alcançados pelo acordo de
leniência antitruste. ou seja, os autores aplicaram com perfeição o
segundo critério do princípio da consunção defendido neste estudo:
(ii) possuam nexo de causalidade com o crime principal. Apenas a
aplicação desse critério já é o suficiente para impossibilitar a aper-
feiçoamento do princípio da consunção. no entanto, os autores se
limitaram, com a devida vênia, em dizer que o princípio da consun-
ção não poderia absorver crimes que tutelam bens jurídicos não se-
melhantes, interpretação já refutada neste trabalho.
logo, com a devida vênia, a explicação da não abran-
gência do acordo de leniência no crime supracitado, após racio-
cínio arguido pelos autores, é satisfatório mas incompleto, haja
vista que a abrangência não estaria apenas prejudicada em
razão do iter criminis ou do nexo de causalidade, pois, como já
foi citado em tópicos anteriores, esta condição é apenas um dos
pré-requisitos da absorção do crime meio ou complementar pelo
crime principal - crime de cartel.
na verdade, é imprescindível a análise da proporcionali-
dade da pena nesses crimes. o crime de homicídio simples tem
pena máxima de vinte anos, o crime de homicídio qualificado (art.
121, §2º, inc. V, do CP) tem pena máxima de trinta anos, sem
contar que este último é crime hediondo, e nos parece ser a única
forma possível de tipificação aplicada ao caso narrado, uma vez
que o homicídio seria feito para assegurar a execução, ocultação
ou impunidade do crime de cartel.
nesse entendimento, é impossível a aplicação do prin-
cípio da consunção estendida, pois, caso houvesse aplicação da
absorção do crime de homicídio qualificado (crime meio ou com-
plementar) pelo crime de cartel (crime principal – pena máx. cinco
anos), estaríamos diante de um caso grave de deficiência da ins-
tituição jurídico-penal e afrontando diretamente a Constituição
em seu art. 5º, inc. xliii, onde diz: “a lei considerará crimes ina-
fiançáveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito
de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos
como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes,

213
os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.
Veja que o legislador constituinte deu proteção excep-
cionalíssima aos casos de crimes horrendos, não sendo possível
ao legislador ordinário produzir norma que anistie diretamente ou
indiretamente os autores de tais crimes, assim como não é pos-
sível a concessão do indulto (art. 2º da lei n. 8072/90) e da graça
pelo Presidente da república ao agente criminoso. Então como
seria possível um acordo de leniência superar uma norma de
grau hierárquico superior que restringe até mesmo a fiança?
na lição de nucci (2013, p. 252), o princípio da proibição
da proteção deficiente significa:

Didaticamente, pode-se considerá-lo presente para enaltecer a im-


portância do respeito à proporcionalidade. se o crime de furto simples
não deve ser punido com pena de 20 a 30 anos de reclusão, por ferir
diretamente a proporcionalidade, sob outro prisma, o homicídio ja-
mais poderia ser apenado com simples multa. A deficiência de prote-
ção estatal consagraria a desproporcionalidade. […] Cuidando-se de
mero espelho da proporcionalidade, não se pode utilizar a proibição
da proteção deficiente para derrubar importantes conquistas penais
e processuais penais dos últimos tempos. Por isso, esse princípio en-
contra barreiras em vários outros, como a legalidade, a culpabilidade,
a intervenção mínima etc. (grifamos)

o princípio da proporcionalidade na jurisprudência do stJ 2:

stJ: “[…] no caso, não se revela socialmente recomendável o defe-


rimento do benefício da substituição da pena, tendo em vista a quan-
tidade e a diversidade de droga apreendida na residência do
paciente, a saber, cocaína e crack” (e-fl. 20). tal fato indica que a ne-
gativa do benefício da substituição de pena encontra guarida na
norma do art. 44, iii, do CP. Eventual conversão da pena corporal em
medidas restritivas de direito consubstanciaria infringência ao princí-
pio da proporcionalidade em sua face que veda a proteção deficiente
a bens jurídicos constitucionalmente tutelados. no caso, a saúde pú-
blica.” (grifamos)

A regra da proporcionalidade deve ser respeitada na apli-


cação de vários outros princípios como foi dito por nucci (2013),
e nesse sentido o Código Penal em seu art. 118 aduz o raciocínio

2 hC 196690 – bA, 6ª t., rel. og fernandes, 27.09.2011, v.u.

214
de que ela deve ser respeitada na aplicação do princípio da con-
sunção. o art. 118 dispõe que: “As penas mais leves prescrevem
com as mais graves”.

prescrição do crime de cArteL em reLAção Aos


não Lenientes

Após a realização do acordo de leniência, o órgão acu-


sador é impedido de oferecer denúncia contra o beneficiário, e o
prazo prescricional da pretensão punitiva do Estado suspende
em relação a este.
Vejamos a redação do art. 87 da lei n. 12.529/11: “nos
crimes contra a ordem econômica, tipificados na lei n. 8.137, de
27 de dezembro de 1990, e nos demais crimes diretamente rela-
cionados à prática de cartel, (tais como os tipificados na lei n.
8.666, de 21 de junho de 1993, e os tipificados no art. 288 do De-
creto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal), a
celebração de acordo de leniência, nos termos desta lei, deter-
mina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede
o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário
da leniência” (grifamos).
o acordo de leniência não beneficia os coautores do
crime, apenas o leniente, e este, por interesse das autoridades,
deve ajudar a persecução do ilícito administrativo e penal, não
tendo em seu favor o transcurso do prazo prescricional, que po-
deria levar à extinção da punibilidade.
Vamos exemplificar. imagine que existiu um cartel (art.
4º da lei n. 8.137/90) entre as empresas A, b e C, de 1998 a
2015, mas a empresa C saiu da formação criminosa em julho de
2003, e desde lá não manteve contato com as concorrentes e
mudou seu ramo de atuação. Em junho de 2015, após quase 12
anos, a empresa A fez acordo de leniência e, no momento da
persecução do ilícito administrativo, apontou as empresas b e
C como coautoras do ilícito. nesse caso, faltando alguns dias
para prescrever a pena relativa à empresa C (art. 109, inc. iii do
CP), poderá ocorrer por algum motivo especial a suspensão do
prazo prescricional da pretensão punitiva do Estado em relação

215
às empresas b e C?
Via de regra, é inevitável dizermos que no caso narrado
a pretensão punitiva do Estado contra a empresa C se extinguiria,
em virtude da demora da ação penal pública de competência do
Ministério Público. Mendroni (2015) ressalta a importância da per-
secução administrativa do acordo de leniência no âmbito da ação
penal, utilizada pelo Ministério Público. nas palavras de Mendroni
(2015, p. 322):

o órgão acusador [...] poderá e deverá, utilizar todos os dados e docu-


mentos advindos do acordo de leniência como prova contra os demais
integrantes do cartel. [...] Cumpridas todas as exigências legais, o pro-
cesso administrativo contará com inestimável fortalecimento probatório,
cujo contexto pode ser emprestado para utilização também no processo
penal contra os infratores, à exceção do(s) beneficiado(s) pelo Acordo
de leniência.

no entanto, uma possível solução para inocorrência da


prescrição no caso das empresas b e C, seria a utilização pelo
Ministério Público de fundamentação baseada no art. 116, inciso
i, do Código Penal - “Antes de passar em julgado a sentença
final, a prescrição não corre: enquanto não resolvida, em outro
processo, questão de que dependa o reconhecimento da exis-
tência do crime”.
o Código Penal não foi específico quanto ao tipo de pro-
cesso, sendo concebível dizer que o processo administrativo do
CADE está abrangido pelo artigo 116 do Código Penal. Para me-
lhor entendimento, é importante destacarmos o trecho final deste
mesmo artigo, onde está escrito: questão que dependa o reco-
nhecimento da existência do crime, este reconhecimento do
crime pode ser resolvido no processo administrativo em virtude
do art. 191, inciso iV, do regimento interno do CADE, que prevê:
“Podem ser proponentes de acordo de leniência pessoas físicas
e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica e
que preencham, cumulativamente, os seguintes requisitos – con-
fesse sua participação no ilícito” (grifamos).
o fato de o leniente confessar a participação dele na
conduta ilícita e corroborar com dados e documentos que pro-
vam inequivocamente o ilícito, enseja a interpretação de que a

216
pretensão punitiva do Estado contra os criminosos, não lenien-
tes, está abrangida pela causa de suspensão prescricional pre-
vista no art. 116 do CP, caso o MP ainda não esteja investigando
o crime. lembrando que o acordo de leniência é meio de obten-
ção de prova e que o processo administrativo somente encerrará,
se o leniente cumprir todos os requisitos do acordo, auxiliando o
CADE e o MP na persecução criminal e administrativa - art. 87
da lei Antitruste.
reiterando aqui o raciocínio de Mendroni (2015, p. 310),
quando este ressalta que, nos crimes de cartel e de fraudes à li-
citação, o agente vai reiterando a execução do crime no decurso
do tempo, como acontece nos casos de execução do contrato
administrativo. nas palavras do autor: “Esta é a questão chave
da diferenciação. se a execução vai sendo reiterada, a consu-
mação vai sendo renovada, assumindo nova data a cada conduta
de ‘cumprimento’ do contrato, recebendo parcelas de pagamen-
tos; vale dizer, assumindo novo termo prescricional”.
Por essa razão, Mendroni (2015) acredita ser o crime de
cartel, um crime de natureza permanente, questão ainda não pa-
cificada na doutrina. Para o autor, o crime de cartel em licitação
não se consuma no edital de pré-qualificação. o crime de cartel
só se inicia nesse momento, perpetuando-se, todavia, pela von-
tade dos agentes, a cada reunião, a cada acordo, ajuste, convênio
e/ou aliança.

concLusão

o presente trabalho dedicou-se à análise da abrangência


e eficiência de umas das ferramentas investigatórias mais utili-
zada no mundo: o acordo de leniência. o acordo deve promover
segurança jurídica ao leniente e ao órgão acusador, devido à di-
ficuldade de obtenção de provas do ilícito administrativo e crimi-
nal. o Estado, ao conceder benefícios ao delator, estimula-o a
identificar as condutas criminosas e os agentes envolvidos,
abstendo-se de exercer o seu jus puniendi apenas em relação
ao leniente.

217
Demonstrou-se, a partir de uma análise sucinta e compa-
rativa dos princípios do Direito Penal e da lei Antitruste, a forma-
ção de um novo princípio, o princípio da consunção estendida,
com aplicação no âmbito dos dois ramos jurídicos – Direito Con-
correncial e Direito Penal. tentou-se provar que este princípio
está implícito no art. 87 da lei Antitruste, pois, quando o legisla-
dor exemplifica crimes de natureza jurídica diferente, abrangidos
ou absorvidos pelo crime de cartel em decorrência do acordo de
leniência, está o legislador personificando o princípio da absorção
e o estendendo a crimes diversos. Ao mesmo tempo, a legislação
não viola o princípio da proporcionalidade, uma vez que os cri-
mes exemplificados e consumidos possuem pena mais leve que
a pena do crime principal.
salientamos que a crítica dos doutrinadores contra a so-
lução jurídica apresentada pela súmula n. 17 do stJ não é em
virtude da impossibilidade da consunção entre infrações penais
que tutelam bens jurídicos distintos. na verdade, os doutrinado-
res discordam da aplicação da súmula n.17 em razão de ela in-
fringir um dos princípios basilares do Direito Criminal, o princípio
da vedação da proteção insuficiente, uma vez que a pena do
crime absorvido (art. 227 do CP) é de 2 a 6 anos de reclusão, ao
passo que a pena do art. 171do CP é de 1 a 5 anos (crime prin-
cipal - absorvente).
Este estudo apresentou a dificuldade na definição do
termo “crimes diretamente relacionados à prática de cartel”, por
ser um termo vago e de pouco estudo doutrinário. Mesmo assim,
o trabalho tentou definir limites na abrangência do acordo de le-
niência, com a finalidade de promover segurança jurídica aos be-
neficiários e a terceiros envolvidos ou não no acordo.
Para finalizar, espera-se que o trabalho impulsione maio-
res reflexões a respeito do tema e fortaleça este importante me-
canismo de proteção ao ambiente concorrencial, que é o
programa de leniência.

218
reFerênciAs

AthAyDE, Amanda; GrAnDis, rodrigo. Programa de leniência


Antitruste e repercussões Criminais: Desafios e oportunidades
recentes. in: CArVAlho, Vinicius Marques et al. A Lei
12.529/11 e a Nova Política de Defesa da Concorrência. são
Paulo: singular, 2015.

bitEnCoUrt, Cézar. Tratado de Direito Penal: parte geral. 16.


ed. são Paulo: saraiva, 2011.

bitEnCoUrt, Cézar. Tratado de Direito Penal: parte geral. 2.


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brAsil. CADE. Guia do Programa de leniência. Disponível em:


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20leni%C3%AAncia%20Antitruste%20do%20Cade%20-
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2016.

GAViÃo, Juliana Venturella nahas. A proibição de proteção


deficiente. Revista do Ministério Público do RS, Porto Alegre, n.
61, p. 94-111, mai./jun./2008.

GrECo, rogério. Curso de Direito Penal. 13. ed. rio de Janeiro:


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rais e mecanismos legais. 5. ed. são Paulo: Atlas, 2015.

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processuais penais. 3. ed. são Paulo: revista dos tribunais, 2013.

QUEiroZ, Paulo. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 9.ed. salvador-


bA: Juspodivm, 2013.

219
220
Kayro Alencar*
Neide Aparecida Ribeiro**

O PARADIGMA DA TITULARIDADE DA
INVESTIGAÇÃO CRIMINAL: UM ESTUDO
COMPARADO ACERCA DA POSSIBILIDADE DE
ATUAÇÃO DIRETA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO

THE PARADIGM OF OWNERSHIP OF CRIMINAL INVESTIGATION:


A COMPARATIVE SDUTY ABOUT POSSIBILITY
OF DIRECT ACTUATION BY PUBLIC MINISTRY

EL PARADIGMA DE LA TITULARIDADE DE LA
INVESTIGACIÓN CRIMINAL: UN ESTUDIO COMPARATIVO
SOBRE LA POSIBILIDAD DE LA ACTUACIÓN
DIRECTA POR PARTE DEL MINISTERIO FISCAL

Resumo:
A atuação direta do Ministério Público na fase investigatória do pro-
cesso penal brasileiro é alvo de muita controvérsia. Por um lado, a
atuação da referida Corte Ministerial não seria possível em razão das
disposições contidas nos artigos 129 e 144 da Constituição Federal
de 1988, que tratam das funções do parquet e das funções dos ór-
gãos de segurança pública do Estado, respectivamente; por outro
lado, observando as teorias dos poderes implícitos e da universaliza-
ção das investigações, bem como a partir de uma interpretação te-
leológica dos próprios dispositivos constitucionais, o Ministério Público
estaria apto a realizar diretamente as investigações. Dessa forma, o
assunto será estudado sob uma perspectiva constitucional, sendo,
para tanto, utilizado o método comparativo, com enfoque na legisla-
ção portuguesa.

* Especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público.


Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Brasília. Advogado.
** Doutoranda em Educação pela UCB. Mestre em Direito Público pela UFG. Pro-
fessora da Escola de Direito da Universidade Católica de Brasília - UCB e Professora
licenciada da Pontifícia Universidade de Goiás - PUC/GO. Advogada. Membro da
Comissão de Ciências Criminais da OAB/DF.

221
Abstract:
The direct role of the prosecutor in the investigation stage of the Bra-
zilian criminal procedure is the subject of much controversy. On the
one hand, the work of the Ministerial Court would not be possible be-
cause of provisions contained in Articles 129 and 144 of the 1988 Fe-
deral Constitution, concerning the functions of parquet and functions
of the public security organs of the State, respectively. On the other
hand, observing the theory of implied powers and the universalization
of the investigations, as well as from a teleological interpretation of
their own constitutional provisions, the prosecution would be fully com-
petent to carry out investigations directly. Thus, the matter will be stu-
died under a constitutional perspective, and, therefore, used the
comparative method, focusing on the Portuguese legislation.

Resumen:
La actuación del Ministerio Fiscal en la fase de investigación del
proceso penal brasileño es objeto de mucha controversia. Por un
lado, la actuación de la referida Corte Ministerial no sería posible
en razón de las disposiciones contenidas en los artículos 129 y 144
de la Constitución Federal de 1988, que tratan de las funciones del
parquet e de las funciones de los órganos de la seguridad pública
del Estado, respectivamente. Por otro lado, la observación de las
teorías de los poderes implícitos y de la universalización de las in-
vestigaciones, así como de una interpretación teleológica de los
propios dispositivos constitucionales, el Ministerio Fiscal sería
capaz de realizar directamente las investigaciones. De esta forma,
el asunto será estudiado desde una perspectiva constitucional y,
por lo tanto, se utiliza el método comparativo, centrándose en la le-
gislación portuguesa.

Palavras-chave:
Fase investigatória, funções do parquet, perspectiva constitucional,
método comparativo.

Keywords:
Investigation stage, functions of parquet, constitutional perspective,
comparative method.

222
Palabras clave:
Fase de investigación, funciones de parquet, la perspectiva cons-
titucional, método comparativo.

INTRODUÇÃO

Atribuir ao parquet a direção sobre a investigação criminal


ou a função de realizar diretamente as investigações é uma tarefa
dotada de complexidade. Dentre as dificuldades, estaria a afronta
expressa ao artigo 144 da Carta Magna de 1988, ao determinar que
a polícia federal e as polícias civis devem exercer as funções de po-
lícia judiciária, e a violação do artigo 129 do mesmo diploma legal,
que não trouxe, dentre as funções do Ministério Público, a direção
sobre as investigações.
Diante da ineficiência do atual sistema investigatório brasi-
leiro e mesmo com o suposto monopólio da investigação criminal
por parte da polícia judiciária, o parquet vem atraindo para si a rea-
lização de atos investigativos (COSTA, 2011).
Se por um lado o Ministério Público como órgão condutor
do inquérito policial seria mais competente para colher os elementos
necessários e úteis para o oferecimento da ação penal, por outro
lado, o acúmulo de funções em um único sujeito processual acabaria
deturpando o sistema processual penal acusatório brasileiro, visto
que, caso o parquet atue como órgão investigador, a função de órgão
acusador resta corrompida, já que atuaria nas investigações com
enfoque acusatório (NOLASCO, 2012).
Ressalte-se que, no ano de 2011, foi apresentada a PEC n.
37 pelo ex-deputado federal Lourival Mendes, que objetivava dar
poder exclusivo às polícias civil e federal para a realização das inves-
tigações, retirando do Ministério Público a possibilidade de controle
externo. Ocorre que, no ano de 2013, em razão das manifestações
populares, bem como pela rejeição na Câmara dos Deputados, a
proposta de emenda foi arquivada (PASSARINHO, 2013).
Dessa forma, tendo em vista que um dos objetivos do Es-
tado Democrático de Direito é buscar efetivar as garantias constitu-
cionais do inquérito penal de forma a assegurar a segurança pública
e o bem-estar geral da sociedade, o paradigma de que as polícias

223
federal e civil são titulares exclusivas da investigação deve ser que-
brado, uma vez que, considerando o princípio da teoria dos poderes
implícitos, bem como o princípio da universalização das investiga-
ções, não há óbice para que o Ministério Público realize diretamente
as investigações.
A perspectiva comparada será utilizada para demonstrar a
eficiência da realização direta das investigações pelo parquet, tal
como ocorre na legislação portuguesa, sendo, para isso, feito um pa-
ralelo com o atual sistema investigatório brasileiro, que se depara
com diversas falhas, como será demonstrado ao longo deste estudo.

A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL PELO PARQUET E A CARTA


MAGNA DE 1988

Com o fracasso do sistema inquisitório, que perdurou de


meados do século XII até o final do século XVIII, em que as fun-
ções de acusar e julgar se concentravam nas mãos do juiz, o mo-
delo acusatório foi, gradualmente, com reforço dos movimentos
sociais e políticos, sendo adotado em alguns países, tais como In-
glaterra e França. Ressalta-se que, naquele momento, surgiu a
necessidade de se criar uma instituição que retirasse das mãos
dos particulares o poder da persecução penal, qual seja, o Minis-
tério Público (LOPES JR., 2011).
No Brasil foi adotado o sistema penal misto, ou seja, há
uma fase pré-processual ou administrativa (inquisitiva) e uma
fase processual ou judicial (acusatória). Dessa forma, na fase
pré-processual há a colheita de provas de autoria e materialidade
delitiva, que são destinadas ao Ministério Público, para que este
possa formar a opinio delicti. Já na fase processual, há a excep-
cional iniciativa privada, a atuação do parquet no oferecimento
da denúncia, bem como há a figura do juiz imparcial, que não
detém a iniciativa dos meios probatórios, tampouco iniciativa para
oferecer ação penal (NOLASCO, 2012).
Embora o procedimento persecutório brasileiro seja com-
posto por um sistema bifásico, Lopes Jr. (2011) ressalta que esse
sistema misto é uma falácia, uma vez que a prova colhida na inqui-
sição, isto é, na fase pré-processual, é trazida integralmente para

224
o processo e o juiz se limita, na maioria das vezes, a dizer que a
prova obtida durante o inquérito é corroborada pela prova judiciali-
zada, imunizando, portanto, a sua própria decisão. Assim, o pro-
cesso acaba sendo uma repetição do que ocorreu na fase
inquisitória.
Dessa forma, ainda que seja adotado um sistema misto,
há fortes traços inquisitoriais na fase judicial do processo penal,
seja quando o juiz supervaloriza a prova obtida durante a fase ad-
ministrativa, seja pelos meios de produção da verdade, em que,
como regra, o juiz é o único gestor e intérprete das provas produ-
zidas (CARVALHO, 2011).
Considerando que a doutrina majoritária entende ser
adotado o sistema penal misto, atribuir a condução da investiga-
ção criminal ao Ministério Público resultaria numa deturpação a
esse sistema, pois o parquet atuaria nas investigações com en-
foque unicamente acusatório.
Ademais, o artigo 144, §1º, IV, da Constituição Federal
de 1988 dispõe que a polícia federal destina-se a “exercer, com
exclusividade, as funções de polícia judiciária da União”, e o § 4º
do mesmo dispositivo constitucional estabelece que “às polícias
civis incumbem as funções de polícia judiciária e a apuração de
infrações penais, ressalvada a competência da União”.
Assim, considerando o dispositivo supramencionado, a
condução ou a realização de diligências investigativas direta-
mente pelo Ministério Público fere o princípio da legalidade, uma
vez que o constituinte originário não trouxe essa possibilidade
dentre as funções do Ministério Público elencadas no artigo 129
da CRFB/88. Haveria, portanto, a necessidade de criação de uma
emenda à Constituição para incluir essa função investigativa no
rol trazido pelo referido artigo. Além disso, pela leitura isolada do
artigo 144 da CRFB/88, tem-se que a apuração das infrações pe-
nais, bem como o exercício da Polícia Judiciária, é exclusividade
da Polícia Civil e da Polícia Federal, devendo, portanto, ser res-
peitado o texto constitucional quanto ao controle que deve existir
entre essas instituições (BASTOS, 2004).
Outrossim, haveria uma desigualdade entre as partes,
uma vez que o promotor iria simplesmente acumular provas con-
tra o imputado, de forma que a imparcialidade do inquérito penal

225
restaria comprometida (LOPES JR., 2011).
Segundo Carnelutti (2004), o argumento de que o refe-
rido órgão ministerial deve ser detentor de imparcialidade é facil-
mente refutável. A função de órgão acusador serve para
preencher os requisitos do sistema penal acusatório, uma vez
que o parquet é o “contraditor natural” do imputado. Dessa forma,
falar em imparcialidade por parte do Ministério Público não é mais
que “uma duplicidade inútil” ao processo penal.
Em um primeiro momento, denota-se que, diante da falta
de uma melhor hermenêutica, a polícia judiciária detém o mono-
pólio da investigação criminal, impossibilitando que qualquer outra
instituição atue diretamente na realização das investigações.
Entretanto, pelo princípio da harmonização institucional,
as normas constitucionais devem ser interpretadas de forma que
não haja conflitos entre as instituições do Estado criadas pela
Carta Magna de 1988. Assim, deve-se fazer a leitura do artigo
144 da CRFB/88 considerando a vontade real do legislador
quando da elaboração do referido dispositivo.
A exclusividade trazida pela Constituição Federal de
1988 não se refere ao dever de outra instituição, que não a polí-
cia judiciária, abster-se de realizar investigações, mas trata-se
de mera delimitação de atribuições das polícias mencionadas no
artigo 144 da CRFB/88 (MARCÃO, 2013).
Nesse mesmo sentido, já decidiu o Ministro Celso de
Melo no julgamento do Habeas Corpus n. 94.173/BA:

A cláusula de exclusividade inscrita no art. 144, § 1º, inciso IV, da


Constituição da República - que não inibe a atividade de investigação
criminal do Ministério Público - tem por única finalidade conferir à Po-
lícia Federal, dentre os diversos organismos policiais que compõem
o aparato repressivo da União Federal (polícia federal, polícia rodo-
viária federal e polícia ferroviária federal), primazia investigatória na
apuração dos crimes previstos no próprio texto da Lei Fundamental
[...]. Função de polícia judiciária e função de investigação penal: uma
distinção conceitual relevante, que também justifica o reconhecimento,
ao Ministério Público, do poder investigatório em matéria penal1.

1BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 94.173/BA, 2a. T., rel. Min. Celso de Mello,
julgado em. 27-10-2009, DJe 223, de 27-11-2009. Disponível em: < http://www.jus-
brasil.com.br/diarios/73848479/stf-01-08-2014-pg-493>. Acesso em: 10 out. 2014.

226
Interpretando de forma literal o supramencionado dispo-
sitivo constitucional, percebe-se que a exclusividade atribuída à
Polícia Federal foi tão somente a de exercer a função de Polícia
Judiciária. Outrossim, o art. 144, § 4º, da CRFB/88 estabelece
as funções de Polícia Judiciária e de investigação criminal como
sendo distintas, uma vez que foi utilizado o conectivo “e”, que
traz a ideia de adição, para determinar que incumbe às polícias
civis a função de polícia judiciária e a apuração de infrações pe-
nais. Sendo assim, resta desconstituída a ideia de que a Consti-
tuição Federal de 1988 impede o exercício da investigação
criminal pelo Ministério Público e que atribui o monopólio desta
à Polícia Judiciária.
Barroso (2010) afirma que a norma constitucional deve
ser interpretada não como um fim em si mesmo, mas levando em
conta os valores que foram idealizados pelo povo. Dessa forma,
considerando que a possibilidade de investigação pelo parquet
tem assento na própria Constituição Federal de 1988, a condução
da investigação criminal pelo Ministério Público sugere a passa-
gem de um sistema penal misto para um sistema penal acusatório
sem reflexos inquisitoriais, preservando, portanto, o garantismo
penal do jusfilósofo italiano Luiji Ferrajoli, que é um importante
postulado do Estado Democrático de Direito, pois protege os prin-
cípios constitucionais previstos na Carta Magna de 1988.
Importante mencionar a teoria dos poderes implícitos,
surgida a partir de uma decisão da Suprema Corte americana,
no caso McCulloch v. Maryland. Essa teoria defende que a Cons-
tituição de um Estado, ao estabelecer e definir as competências
dos órgãos, também concede a cada órgão a possibilidade de
adotarem os meios necessários para o cumprimento de suas fun-
ções, desde que a Constituição não proíba (ALMEIDA, 2013).
Se a Constituição Federal de 1988 atribuiu poderes ao
Ministério Público para propor a ação penal, implicitamente, tam-
bém permitiu que a referida Corte adotasse os meios para obter
os elementos de autoria e materialidade delitiva para o ofereci-
mento da denúncia, ou seja, a realização de investigações, o que
reforça o axioma jurídico do a maiore ad minus, isto é, “quem
pode o mais, pode o menos”.
A segunda turma do Supremo Tribunal Federal - STF, no

227
julgamento do Habeas Corpus n. 91661, em 10 de março de
2009, reconheceu, por unanimidade, os poderes investigatórios
conferidos ao parquet pela Carta da República de 1988. Em sín-
tese, tratava-se de uma ação penal instaurada pelo Ministério Pú-
blico, em que os réus, policiais, imputavam a uma pessoa uma
contravenção ou crime, mesmo sabendo que a acusação era
falsa. Dessa forma, a ministra relatora, Ellen Gracie, entendeu
que o referido órgão ministerial pode colher determinados elemen-
tos que comprovem a autoria e materialidade delitiva para forma-
ção da opinio delicti, sem que isso signifique retirar da Polícia
Judiciária as funções previstas na Constituição Federal de 19882.
Outrossim, o STF reconheceu, em 14 de maio de 2015,
no julgamento do Recurso Extraordinário n. 593727, a legitimi-
dade do Ministério Público para promover, de forma autônoma,
as investigações criminais. A Ministra Cármen Lúcia ressaltou
que as competências do parquet e da Polícia Judiciária não são
diferentes, mas complementares, e quanto mais as referidas ins-
tituições atuarem conjuntamente nas investigações, melhor será.
Além disso, para a Ministra Rosa Weber, embora a atividade in-
vestigatória não seja de exclusividade da Polícia Judiciária, o
poder de investigação do referido órgão ministerial deve ter limi-
tes nas garantias fundamentais dos investigados. Dessa forma,
os processos que se encontram sobrestados nas demais instân-
cias terão a aplicação da referida decisão, que garante ao MP
autonomia para realizar as investigações criminais3.
Ressalta-se que a democracia participativa exige a ado-
ção do princípio da universalização das investigações. Isso implica,
portanto, habilitar outros órgãos, como é o caso do Ministério Pú-
blico, a proceder com a realização direta de atos investigativos, de
forma que esse sistema de investigação se coadune com a Cons-
tituição Federal de 1988 (RODRIGUES; COIMBRA, 2007).

2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2009). Ministério Público tem poder de inves-
tigação, diz Segunda Turma. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/ver-
NoticiaDetalhe.asp?idConteudo=104441>. Acesso em: 21 out. 2015.
3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2015). STF fixa requisitos para atuação do

Ministério Público em investigações penais. Disponível em:


<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=291563>.
Acesso em: 21 out. 2015.

228
A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL LUSO-BRASILEIRA

No Brasil, a fase que comporta a investigação criminal


tem uma natureza administrativa e é denominada como fase
pré-processual, que consiste no instrumento do inquérito policial
e antecede o oferecimento da denúncia por parte do Ministério
Público. Trata-se de um instrumento preparatório da ação penal
que visa colher os elementos de autoria e materialidade delitiva,
com previsão legal nos artigos 4º ao 23 do Código de Processo
Penal brasileiro.
Em Portugal, o processo penal é dividido em duas fases.
A primeira delas é a fase preparatória, que comporta o inquérito
penal, de competência do Ministério Público nos termos do artigo
262 do Código de Processo Penal português, e os atos de ins-
trução, que são dirigidos pelo juiz da instrução, conforme previsto
nos artigos 286 e seguintes do CPP de Portugal. A segunda fase
comporta o julgamento, que integra os atos preliminares, em que
o juiz de julgamento irá se pronunciar sobre as nulidades e outras
questões incidentais que obstem a análise do mérito da causa
(artigo 311 do CPP); a audiência, onde serão ouvidas as partes
e produzidas as provas, garantindo-se o contraditório e a ampla
defesa (artigo 321 do CPP); e a sentença, em que todos os juízes
e jurados que constituem o tribunal, sob a direção do presidente,
irão deliberar por maioria simples de votos, conforme estabele-
cem os artigos 365 e seguintes do CPP (COSTA, 2011).
Em que pese em ambos os países mencionados o pro-
cesso penal ser composto por duas fases, a diferença está no
fato de que, no Brasil, a investigação criminal não se encontra
dentro da fase processual, iniciando-se esta somente após o ofe-
recimento da ação penal, enquanto em Portugal, diferentemente,
a fase processual se inicia desde o inquérito. Além disso, no Bra-
sil, quem exerce diretamente as funções de apuração de infra-
ções penais é a Polícia Judiciária, diferentemente de Portugal,
onde o Ministério Público é o condutor da investigação criminal
e realiza diretamente os atos investigativos ou os delega à auto-
ridade policial.

229
A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO INQUÉRITO
PENAL BRASILEIRO

O artigo 129 da Constituição Federal de 1988 determina


que cabe ao parquet expedir notificações dos procedimentos ad-
ministrativos de sua competência, bem como requisitar diligên-
cias investigatórias e a instauração de inquérito policial,
indicando, para tanto, os fundamentos jurídicos de sua manifes-
tação processual.
Outrossim, a Lei Complementar n. 75/1993, que dispõe
sobre o Estatuto do Ministério Público da União, foi simétrica com
a Carta Magna de 1988 ao prever as funções do referido órgão
ministerial.
A abertura do inquérito policial pode ser realizada ex
officio pela autoridade policial ou, conforme determina o artigo
129, VIII, da CRFB/88, pode ser requisitada pelo Ministério Público.
Pode, ainda, ser requerida pelo ofendido ou por representante,
conforme dispõe o artigo 5º, II, do Código de Processo Penal.
O fato de ter sido acometido ao Ministério Público a função
de oferecer a ação penal, retirando do Judiciário essa possibili-
dade, bem como o fato de não ter sido atribuído ao Judiciário a
função investigatória, demonstra a existência, no Brasil, de um sis-
tema penal acusatório, exceto nos casos de reserva jurisdicional,
em que o presidente do tribunal poderá instaurar inquérito para
apurar a conduta criminosa ocorrida na sede ou dependência do
tribunal, conforme, por exemplo, estabelece o artigo 43 do Regi-
mento Interno do Supremo Tribunal Federal (CALABRICH, 2006).
Ocorre que, embora a estrutura do atual processo penal
brasileiro demonstre a existência de um modelo acusatório, há
doutrinadores, como Jacinto Nelson Miranda Coutinho, que afir-
mam não ser adotado um sistema penal acusatório puro, mas
um sistema misto, uma vez que, devido ao fato de o inquérito po-
licial ser regido por um código de 1941, ainda há fortes reflexos
do sistema inquisitivo. Dessa forma:

[...] o sistema, assim, é tomado como acusatório somente enquanto


discurso porque não há, por definição, um sistema com tal natureza,
de modo que o dizer misto, aqui, é o reconhecer como um sistema

230
inquisitório que foi recheado com elementos da estrutura do sistema
acusatório (por ex: exigência de processo devido, de contraditório,
de parte, etc.), o que lhe não retira o cariz inquisitório (COUTINHO,
2006, p. 2).

O inquérito policial, presidido pelo delegado de polícia, é


composto por algumas características fundamentais, quais
sejam, procedimento escrito, sigilosidade, obrigatoriedade e in-
disponibilidade, ausência de contraditório e ampla defesa etc.
As informações obtidas na fase pré-processual são re-
metidas ao Juiz de direito, que dará vistas ao Ministério Público,
para que este verifique se estão presentes elementos de autoria
e materialidade delitiva plausíveis para a propositura da ação
penal. Devido ao fato de o Ministério Público ser o destinatário
da investigação, e, nos casos de ação penal de iniciativa privada,
o próprio ofendido, é que existe a argumentação de que o par-
quet é quem deveria ser o titular da investigação criminal. Sendo
assim, vejamos:

[...] é neste sentido que em Portugal se atribui a investigação ao Minis-


tério Público, conforme se verifica no preâmbulo do Decreto-Lei n.
35.007, de 13 de outubro de 1945, segundo o qual “a instrução prepa-
ratória destina-se a fundamentar a acusação, logo, é ao Ministério Pú-
blico que cumpre recolher ou dirigir a recolha dos elementos de prova
bastantes para submeter ao Poder Judicial as causas criminais”
(COSTA, 2011, p. 118).

Lopes Jr. (2011) indica algumas vantagens de a investi-


gação criminal ser presidida pela polícia. Primeiramente, a ativi-
dade policial é mais abrangente no território nacional que a
atuação dos juízes e promotores. Além disso, a investigação pela
polícia é dinâmica e mais célere, bem como demanda um menor
custo por parte do Estado.

A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO INQUÉRITO


PENAL PORTUGUÊS

Apesar de o Brasil e de Portugal terem sistemas pro-


cessuais penais semelhantes, no âmbito da investigação crimi-
nal, há diferenças. Em Portugal, o artigo 53, 2, “b”, do Código

231
de Processo Penal português prevê que a titularidade da investi-
gação é da magistratura ministerial, denominação dada ao Minis-
tério Público em Portugal, enquanto no Brasil, conforme já visto,
a titularidade pertence à autoridade policial (SANDERSON, 2013).
A Corte Ministerial portuguesa compõe a magistratura,
estando, portanto, vinculado ao Poder Judiciário e subordinado
indiretamente ao Poder Executivo, uma vez que é o Presidente
quem nomeia o Procurador-Geral da República. Ressalta-se
que, no exercício de sua função de direção do inquérito, o Minis-
tério Público será assistido pelos órgãos de polícia criminal.
O artigo 241 do Código de Processo Penal português
prevê que o inquérito penal se inicia no momento em que o Mi-
nistério Público, por conhecimento próprio, adquire a notícia da
prática de um crime, bem como pode se iniciar por meio de auto-
ridade policial ou ainda por meio de qualquer entidade pública ou
privada que noticia a prática de conduta criminosa à Corte Minis-
terial portuguesa.
Findo o inquérito, o Ministério Público pode tomar três po-
sições: 1) não havendo indícios suficientes da prática do crime ou
pela ausência de determinação de autoria, bem como se existir uma
das causas de isenção de pena, será determinado o arquivamento
do inquérito; 2) havendo indícios suficientes da prática do crime,
mas, em atendimento a determinadas circunstâncias, previstas
no artigo 281 do Código de Processo Penal, que permitam à
Corte Ministerial não deduzir a acusação, poderá haver a sus-
pensão provisória do processo; 3) havendo indícios suficientes
da prática delituosa, mas não havendo circunstâncias autoriza-
doras da não suspensão provisória do processo, o Ministério Pú-
blico irá deduzir a acusação.
Sendo determinado o arquivamento do inquérito pelo par-
quet, o ofendido maior de 16 anos de idade ou o representante
legal, caso seja menor de 16 anos, poderá se constituir como as-
sistente, conforme prevê o artigo 68, 1, “a”, do CPP, e requerer a
abertura da instrução criminal no prazo de cinco dias, a contar da
data da notificação de arquivamento. Ressalta-se que o Código
de Processo Penal português fixa o prazo de 20 dias, a contar da
data da notificação de acusação ou arquivamento do inquérito,
para que seja requerida a abertura da instrução.

232
A instrução criminal, no processo penal português, é fa-
cultativa e encontra-se entre a fase de inquérito e a de julgamento.
Ela é dirigida pelo juiz da instrução, assistido pelos órgãos de po-
lícia criminal, que agem em sua dependência funcional, e é cons-
tituída por um debate instrutório, que visa assegurar se, do
inquérito, resultam indícios suficientes para que o arguido seja sub-
metido a julgamento, ou seja, trata-se de uma fase judicial onde a
decisão de acusar ou não acusar é comprovada pelo juiz de ins-
trução (MOTA, 2002).
A fase de instrução funciona como um mecanismo de con-
trole das liberdades individuais, uma vez que garante a proteção
quando, na fase do inquérito, houver a restrição ou privação de di-
reitos, da liberdade ou das garantias fundamentais do indivíduo
(COSTA, 2011, p. 118).
Findo o processo instrutório e presentes indícios suficientes
que permitam ao juiz do julgamento aplicar uma pena ao arguido, o
juiz da instrução proferirá um despacho de pronúncia, conforme
prevê o artigo 308 do CPP. Ressalta-se que essa denominação,
no processo penal brasileiro, refere-se ao despacho do juiz para
submeter o acusado ao Tribunal do Júri, que é competente para
julgar os crimes dolosos contra a vida.
Não havendo indícios suficientes de autoria e materiali-
dade delitiva ou outro indício que permita modificar a decisão de
arquivamento pelo Ministério Público, o juiz da instrução irá emitir
um despacho de não pronúncia, ocasião em que o arguido não
será submetido a julgamento e o processo será arquivado.
Ao contrário, sendo emitido despacho de pronúncia, o
processo será remetido ao tribunal competente para julgamento.
Nota-se que, não havendo o debate de instrução, a acusação
também será remetida ao tribunal para julgamento, entretanto, o
juiz do julgamento pode também rejeitar a acusação caso esta
seja infundada. Assim, encerra-se a fase preliminar do processo
penal português e inicia-se, portanto, a fase de julgamento.

233
A CONDUÇÃO E REALIZAÇÃO DA INVESTIGAÇÃO CRIMI-
NAL PELO MINISTÉRIO PÚBLICO NO PROCESSO PENAL
BRASILEIRO

Considerando os sistemas processuais penais brasileiro


e português, a grande discussão está pautada na possiblidade
de se introduzir no ordenamento jurídico brasileiro o modelo in-
vestigatório português, em que o Ministério Público atua direta-
mente nas investigações.
O modelo de inquérito policial existente no Brasil, em que
o domínio da atividade investigativa está nas mãos da Polícia Ju-
diciária, encontra-se ultrapassado, burocratizado e sem muita efi-
cácia, sendo, portanto, o motivo pelo qual o Ministério Público está
avocando para si o papel investigatório (COSTA, 2011, p. 118).
Nesse sentido, o Delegado-Geral da Polícia Civil de São
Paulo-SP, Marcos Carneiro Lima, em entrevista concedida à TV
Record, no dia 1º de setembro de 2011, indagou acerca da ne-
cessidade do aprimoramento do inquérito policial a partir da rea-
lização de investigações dotadas de maior celeridade, com um
número menor de oitivas, bem como com menos depoimentos,
tendo em vista que, na maioria dos casos, o cidadão sequer co-
nhece o motivo de estar na delegacia prestando depoimento4.
Outrossim, José Carlos Blat, Promotor de Justiça do Es-
tado de São Paulo, afirma que, devido à demora nas investiga-
ções, a prova do crime acaba desaparecendo, assim como
determinados documentos e materiais se perdem devido à falta
de preservação e pela burocracia excessiva trazida pelo Código
de Processo Penal. Além disso, a própria natureza do inquérito
policial faz com que a polícia se perca quando do exercício da
atividade investigativa5.
O presidente do Sindicado dos Servidores Públicos Civis
do Departamento de Polícia Federal no Estado de São Paulo -

4 SINDIPOLF. Extinção do Inquérito Policial. Disponível em: <http://www.sinpefgo.


org.br/index.php?metodo=noticias&id=13959&PHPSESSID=718cb05f6c425abe30c
5fad40793433d>. Acesso em: 16 out. 2015.
5 SINDIPOLF. Extinção do Inquérito Policial. Disponível em: <http://www.sinpefgo.

org.br/index.php?metodo=noticias&id=13959&PHPSESSID=718cb05f6c425abe30c
5fad40793433d>. Acesso em: 16 out. 2015.

234
SINDIPOLF/SP, Alexandre Sally, afirma que as fraudes são co-
muns nos inquéritos policiais, uma vez que se trata de um pro-
cedimento que pode sofrer interferências políticas. Dessa forma,
a sugestão do SINDPOLF é que seja criado um juizado de ins-
trução onde o Ministério Público atue junto ao Juiz da instrução
durante a fase de colheita de provas e, após oferecida a denúncia
pelo MP, aquele juiz que participou do processo de investigação
não mais atuará no caso6.
Permitir a investigação direta pelo Ministério Público é,
também, uma alternativa viável para desburocratizar a fase de
investigação, evitar fraudes e torná-la mais eficaz, uma vez que
a referida Corte Ministerial, como órgão competente, em regra,
para propositura da ação penal, detém um maior entendimento
sobre quais caminhos deve seguir para que tenha em suas mãos
elementos de autoria e materialidade delitiva suficientes para en-
sejar o oferecimento de denúncia.
Nucci (2007) afirma que colocar o parquet como titular
da investigação criminal implicaria a criação de uma instituição
“superpoderosa” que estaria livre de controles, uma vez que o
referido órgão ministerial estaria exercendo o papel investigatório
e fiscalizatório ao mesmo tempo. Dessa forma, quando a titular
da realização dos atos investigativos é a Polícia Judiciária, esta
é supervisionada pelo Ministério Público e pelo Juiz de Direito.
Ocorre que, observando o modelo de inquérito português,
percebe-se que o Ministério Público não é uma instituição livre de
controle, uma vez que o juizado de instrução em Portugal foi
criado justamente para proteger as liberdades, direitos e garantias
que forem restringidas ou violadas durante a fase de investiga-
ções. Assim, não basta somente permitir que o parquet realize di-
retamente atos investigativos, mas também deve-se criar um
juizado de instrução que fiscalize as atividades exercidas pela Po-
lícia Judiciária e pelo órgão ministerial quando do inquérito.
Em 2011, foi apresentada a proposta de emenda à Cons-
tituição n. 37, que objetivava incluir um parágrafo ao artigo 144

6 SINDIPOLF. Extinção do Inquérito Policial. Disponível em: <http://www.sinpefgo.org.

br/index.php?metodo=noticias&id=13959&PHPSESSID=718cb05f6c425abe30c5fa
d40793433d>. Acesso em: 16 out. 2015.

235
da Carta Magna de 1988, que trata da segurança pública, dando
poder exclusivo às polícias civil e federal para o exercício da ati-
vidade investigatória (RODRIGUES, 2013).
Entretanto, o conteúdo da referida PEC representava um
retrocesso ao ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que, em
grande parte dos países desenvolvidos, principalmente no continente
europeu, é adotado um modelo baseado no juizado de instrução e,
nos países que ainda não aderiram a este sistema de investigação,
há uma forte tendência em que o inquérito policial seja extinto
(RIBEIRO, 2011). Além disso, Gilberto Martins, ex-conselheiro do
Conselho Nacional de Justiça, afirmou que apenas 11% das ocor-
rências são convertidas em investigações. Outrossim, Wellington Sa-
raiva, também ex-conselheiro do CNJ, afirmou que 8% dos
homicídios eram apurados pelas polícias, o que já demonstra a ine-
ficiência do atual sistema investigatório brasileiro (SOUZA, 2013).
Considerando a não conformidade da PEC apresentada
pelo ex-deputado federal, Lourival Mendes, com o espírito do
texto constitucional, a mesma foi rejeitada e arquivada em 25 de
julho de 2013 por 430 votos a 9 e 2 abstenções. Isso demonstra,
portanto, que o caminho a ser seguido não deve ser o de conce-
der competência exclusiva à Polícia Judiciária, mas sim de atribuir
também a função investigativa ao parquet, para que esse inchaço
de ocorrências pendentes de investigações decorrentes do sis-
tema de inquérito policial adotado no Brasil diminua de forma que
as apurações sejam dotadas de maior eficiência e celeridade
(TRIBOLI, 2013).
Ressalta-se que não se pretende retirar da Polícia Judi-
ciária a função investigativa, mas tão somente que esta possa tra-
balhar conjuntamente com o Ministério Público na apuração de
infrações penais. Porém, para que isso se concretize, devem
ocorrer algumas mudanças na estrutura judiciária, tal como a cria-
ção de juizados de instrução para o controle da atividade investi-
gativa realizada pelo MP e pelas polícias civil e federal, para que
as garantias fundamentais sejam asseguradas, mantendo, assim,
a característica do Estado Democrático de Direito. Além disso,
embora não haja impedimentos para que o parquet realize dire-
tamente as investigações, conforme já demonstrado, faz-se ne-
cessária a criação de uma emenda à Constituição Federal de

236
1988 para incluir, dentre as funções da referida Corte Ministerial,
a realização da investigação criminal, assegurando, dessa forma,
a segurança jurídica no ordenamento jurídico brasileiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Utilizar-se de um ordenamento jurídico alienígena para


comparação com o sistema jurídico brasileiro é uma tarefa deli-
cada e arriscada devido às diferenças históricas que deram causa
ao surgimento do atual sistema investigatório em cada país, bem
como devido às diferenças culturais, sociais e políticas.
Ocorre que, espelhar-se no sistema processual penal por-
tuguês, em que o parquet atua conjuntamente com as polícias
na apuração das infrações penais, pode ser uma alternativa vá-
lida para reverter a situação da investigação criminal no Brasil,
onde é adotado o inquérito policial, que é burocratizado e des-
provido de eficácia e celeridade.
Dessa forma, superados os impedimentos constitucionais
acerca da competência do Ministério Público em realizar direta-
mente a apuração de infrações penais no Brasil, não há óbices
para que uma nova estrutura processual seja incorporada ao or-
denamento jurídico brasileiro.
Ademais, colocar o parquet como titular da investigação
ou trazer a possibilidade de apuração das infrações penais dire-
tamente pelo referido órgão ministerial pode ser uma forma de
retirar os traços inquisitoriais decorrentes do sistema penal misto
adotado no Brasil e, consequentemente, passar-se para um sis-
tema penal puramente acusatório.
Nesse caso, a criação de juizados de instrução torna-se
necessária para garantir a segurança jurídica, para fiscalizar a
fase investigatória, bem como para assegurar aos investigados
os direitos fundamentais previstos constitucionalmente, conforme
ocorre na legislação portuguesa.
Em síntese, permitir ao Ministério Público a atuação direta
no âmbito da investigação criminal resultará não somente no con-
tato direto que o promotor de justiça terá com a prova, mas tam-
bém em uma análise mais detalhada dos elementos de autoria e

237
materialidade delitiva, bem como numa investigação célere e eficaz.
Portanto, em um Estado Democrático de Direito, o que se
espera é a proteção integral dos direitos e garantias fundamentais
que, atualmente, estão sendo violados pela burocratização trazida
pelo Código de Processo Penal de 1941. Assim, verifica-se que
trata-se de um sistema processual ultrapassado que, aos poucos,
está se tornando inadequado à atual conjuntura, razão pela qual
mostra-se necessária uma adequação do processo penal à rea-
lidade do sistema de justiça criminal brasileiro.

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37. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/60290-cnj-
aprova-nota-tecnica-contra-a-pec-37>. Acesso em: 17 out. 2015.

TRIBOLI, Pierre. Agência Câmara Notícias. Câmara Rejeita PEC


37; texto será arquivado. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/
camaranoticias/noticias/POLITICA/446071-CAMARA-REJEITA-PEC-
37-TEXTO-SERA-ARQUIVADO.html>. Acesso em: 17 out. 2015.

241
242
Umberto Machado de Oliveira*

Os efeitOs da citaçãO à luz dO


nOvO códigO de PrOcessO civil

ThE EFFECTs OF ThE CiTaTiOn in liGhT


OF ThE nEw CODE OF Civil PrOCEDUrE

lOs EFECTOs DE la CiTaCión TEniEnDO


En CUEnTa El nUEvO CóDiGO DE PrOCEsO Civil

Resumo:
O ato de citação, praticado validamente, produz efeitos importantes
no cotidiano da vida forense. Os processualistas com frequência
abordam o tema sem a necessária profundidade. O novo Código de
Processo Civil tratou o assunto de modo diferente do revogado. Todos
os aspectos inerentes aos efeitos desse ato processual são aborda-
dos no presente artigo.

Abstract:
El acto de citación, practicado adecuadamente, tiene efectos impor-
tantes la vida diária forense. Los eruditos de procedimiento a menudo
discuten el tema sin la profundidad necesaria. El nuevo código de
Procedimiento Civil trata la materia diferentemente que revocada. En
este artículo se discuten todos los aspectos inherentes a los efectos
de este acto procesal.

Resumen:
The act of citation produces important effects in the daily life of the
forensic. The procedure scholar often discuss the topic without the
necessary depth. The new Code of Civil Process treated the subject
of way different from the revoked one. All the aspects inherent in
the effects of this processual act are boarded in the present article.

Palavras-chave:

* Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra - Portugal. Mestre em Direito


pela UFG. Especialista em Direito Civil, Processual Civil e Constitucional pela UFG.
Promotor de Justiça do MP-GO e professor da Faculdade de Direito da UFG.

245
Citação; processo; prescrição; litigiosidade; litispendência.

Keywords:
Citation; process; prescription; litigation; lispendens.

Palabras clave:
Efecto; proceso; prescripción; procesal; litispendência.

intrOduçãO

vamos tratar neste artigo dos efeitos da citação no novo Có-


digo de Processo Civil (lei n. 13.105, de 16/03/2015). após um pe-
ríodo de dúvidas decorrentes de notícias sobre propostas de lei
visando adiar sua vigência, o novo Código entrou em vigor no dia
18/03/2015. Os efeitos da citação, embora a doutrina muitas vezes
aborde o tema sem maior detença, tem sua relevância no cotidiano
do Poder Judiciário. Uma abordagem específica com o objetivo de
traçar as linhas que demarcam a repercussão do ato citatório prati-
cado validamente torna-se, assim, interessante em face do cenário
de inovação jurídica que a entrada em vigor do novo diploma adjetivo
descortina.

efeitOs da citaçãO e sua classificaçãO

O caput do art. 240 dispõe que “a citação válida, ainda


quando ordenada por juízo incompetente, induz litispendência,
torna litigiosa a coisa e constitui em mora o devedor, ressalvado
o disposto nos arts. 397 e 398 da lei n. 10.406, de 10 de janeiro
de 2002 (Código Civil)”. Percebe-se, logo de início, diferenças
entre o novel dispositivo e o art. 219 do Código revogado, pois
este fazia no caput referência expressa à interrupção da pres-
crição e o atual não faz. Também se nota uma ressalva expressa
ao final da redação do caput do art. 240 que não constava do
anterior.
ainda, não indica mais o novo Código, como efeito da

246
citação, tornar prevento o juízo. Trata-se do assunto no art. 59
e, nesse ponto, a lição de Theodoro Júnior (2015, p. 240) é pre-
cisa para evidenciar a inovação:

nesse sentido, dispõe o art. 59 que ‘o registro ou distribuição da pe-


tição inicial torna prevento o juízo’. no regime do Código anterior, a
prevenção observava regras diferentes, conforme se aplicasse entre
juízes da mesma circunscrição territorial ou de comarcas diversas.
levava-se em conta ora o despacho da inicial (CPC/1973, art. 106),
ora a realização da citação (CPC/1973, art. 219). O novo Código
adota critério único e diferente do anterior. agora, em qualquer situa-
ção, o que importa é o registro ou a distribuição da petição inicial.
Com essa medida processual, define-se o juiz da causa estabele-
cendo-se sua prevenção para todas as futuras ações conexas
(nCPC, art. 59).
a regra legal, portanto, é a de que a competência a ser prorrogada é
a do juízo em que uma das causas ligadas por conexão ou continên-
cia for primeiro registrada ou distribuída (art. 59).

Extrai-se, pois, que a prevenção passou a ser regulada


em regra própria e única, que leva em conta o registro e a distri-
buição da petição inicial, critério objetivo e que não enseja diva-
gações doutrinárias.
vale registrar que a citação, para produzir seus efeitos,
tem que ser realizada validamente, ou seja, dentre as várias mo-
dalidades (pelos correios, por oficial de justiça, pelo escrivão, por
hora certa, por edital e eletrônica) em que o ato processual cita-
tório pode se consumar, é imprescindível que os requisitos legais
específicos para cada modo previstos tenham sido obedecidos,
sob pena de não se produzirem os seus efeitos. Todavia, se o
juiz que ordenou a citação for incompetente, mesmo assim o ato
produzirá seus efeitos. a incompetência do juízo não contaminará
a prática do ato processual citatório por expresso tratamento
legal em caráter excepcional, que, diante da importância do ato
processual de citação, considera-o válido mesmo na hipótese de
ter sido ordenado por quem seja incompetente para a causa.
Os efeitos da citação são classificados pela doutrina em efei-
tos processuais e efeitos materiais. sobre esse aspecto Theodoro
Júnior (2015, p. 554) anota importante mudança no novo Código:
a litispendência e a litigiosidade são consideradas efeitos proces-
suais da citação; a constituição em mora e a interrupção da prescri-

247
ção, efeitos materiais. O Código anterior distinguia os efeitos proces-
suais e os materiais, dispondo que os primeiros somente ocorreriam
se houvesse perfeita regularidade do ato citatório e que os materiais
operariam sua eficácia, mesmo quando a citação fosse ordenada por
um juiz incompetente (art. 219, caput, segunda parte, do CPC/1973).
O novo Código, contudo, não repetiu o entendimento, adotando um
critério único para todos os efeitos da citação, sejam eles materiais
ou processuais, os quais ocorrerão, ainda quando a citação for ‘or-
denada por juízo incompetente’.

Essa lógica conclusão de Theodoro Júnior é baseada na


própria redação do caput do art. 219 do Código revogado, com-
posta de duas assertivas separadas por ponto e vírgula. a pri-
meira assertiva seria: “a citação válida torna prevento o juízo,
induz litispendência e faz litigiosa a coisa”; e a segunda, após o
sinal de pontuação referido, anotava: “e ainda que ordenada por
juiz incompetente, constitui em mora o devedor e interrompe a
prescrição”. Portanto, correta a interpretação no sentido de que
somente esses dois últimos efeitos estariam consumados ainda
que a citação fosse ordenada por juiz incompetente. inclusive,
esse efeito de interrupção, ao tempo do Código revogado, já era
estendido aos prazos decadenciais, conforme jurisprudência su-
perior Tribunal de Justiça1.
Todos os efeitos da citação serão, pois, objeto de análise em
tópicos específicos. Começaremos pela indução da litispendência.

a indução2 da litispendência

1nesse sentido, ao julgar o ar 3.821/Ms, da relatoria do Ministro napoleão nunes


Maia Filho, que versava sobre ação rescisória aforada perante juízo incompetente,
o superior Tribunal de Justiça assim se posicionou: “(...) 1. Embora tenha a autora
aforado com a ação rescisória perante Tribunal incompetente (TrF3), foi realizada,
dentro do prazo decadencial, a citação da autarquia Previdenciária que, inclusive,
contestou o feito, nada alegando quanto à incompetência do Juízo. Dessa forma,
não há motivo para que sejam afastados os efeitos da citação, ainda quando orde-
nada por Juízo incompetente, especificamente o de interromper o prazo decaden-
cial, conforme dispõem os arts. 219 e 220 do CPC. (...)”(ar 3.821/Ms, rel. Ministro
napoleão nunes Maia Filho, 3ª seção, julgado em 28/03/2008, DJe 05/05/2008)

248
Obviamente que, para analisar esse efeito, faz-se neces-
sário primeiramente definir o que vem a ser litispendência. litis-
pendência é, em palavras simples, a renovação de demanda que
já se encontra em curso, ou na linguagem do novo Código de
Processo Civil, “quando se reproduz ação anteriormente ajui-
zada”, ou seja, “há litispendência quando se repete ação que
está em curso” ( §§ 1º e 3º do art. 337).
O próprio Código já detalha os elementos que devem ser
levados em conta para que uma ação seja considerada idêntica a
outra: “quando possui as mesmas partes, a mesma causa de pedir
e o mesmo pedido” (§ 3º do art. 337). O instituto visa evitar o des-
perdício de atividade jurisdicional em decorrência da possibilidade
do trato da mesma causa por vários juízes e impedir o descrédito
do Judiciário, que resultaria de eventuais pronunciamentos judi-
ciários divergentes a respeito da mesma controvérsia jurídica
(ThEODOrO Jr., 2015, p. 554)3. O que produz a litispendência
não é o registro ou a distribuição da petição, como ocorre na
prevenção, e sim a citação válida4. nesse sentido é que o supe-
rior Tribunal de Justiça entende que, se duas ações idênticas são
propostas e a citação ocorre primeiramente na ação proposta
mais recentemente, é esta que deve prosseguir, embora proposta
mais tardiamente, e a outra mais antiga é que deve ser extinta5.

2
há crítica na doutrina pela utilização do verbo “induz”, que é adotado desde o Código
de 1939. isso porque o significado de induzir seria o de levar para e o Código de Pro-
cesso Civil, inclusive o atual, ocorrida a citação está, ipso facto, produzida a litispen-
dência. Portanto, o verbo correto seria “produz”. a documentação do ato citatório nos
autos, como, por exemplo, a juntada do mandado, marcaria, apenas, o início do prazo
para defesa. (alviM, 1998, p. 361).
3
nesse sentido, o superior Tribunal de Justiça já destacou que “a ratio essendi da
litispendência visa a que a parte não promova duas demandas visando o mesmo
resultado, o que, frise-se, em regra, ocorre quando o autor formula em face do
mesmo sujeito, idêntico pedido, fundado da mesma causa de pedir”. nesse mesmo
julgado reconheceu a possibilidade de litispendência parcial, a qual ensejaria a reu-
nião dos processos por conexão, de modo a evitar o risco de decisões inconciliáveis,
salvo se o anterior já houver sido julgado, caso em que incidiria a súmula 273 da
Corte (“a conexão não determina a reunião dos processos, se um deles já foi jul-
gado") e a ação ulterior deverá ter seguimento somente em relação ao fundamento
que não houver sido objeto de decisão na ação anterior. (Ms 19.348/DF, rel. Mi-
nistro MaUrO CaMPBEll MarQUEs, PriMEira sEÇÃO, julgado em
25/02/2016, DJe 03/03/2016)
4 “Portanto, na litispendência ocorre uma repetição de uma ação em curso. O que

produz a litispendência é a citação válida” (DEsTEFEnni, 2006, p. 136).

249
Portanto, configurada a litispendência, “assistiremos à extinção
da ação repetida sem resolução do mérito, prestigiando-se a tra-
mitação da ação na qual primeiramente se deu a citação válida”
(MOnTEnEGrO FilhO, 2007, p. 247).
Para verificar a ocorrência de litispendência torna-se in-
dispensável ter-se em mente os elementos da ação, pois são
estes que identificam se uma causa é idêntica a outra. a doutrina
de Chiovenda indica três elementos da ação, “os quais, se nos
oferecem claramente, desde que se analise a propositura de uma
demanda judicial, conforme tenha o autor formulado mais ou
menos explicitamente”. assim Chiovenda (1998, p. 51-52) de-
senvolve seu raciocínio para definir os elementos da ação:

(...) Diz o autor, por exemplo (em geral se omitem, mas se subenten-
dem as palavras em parêntesis):
a) pois que sou o proprietário do imóvel corneliano (e injustamente o
possui Tício), requeiro (que se atue a meu favor a lei mediante) a con-
denação de Tício a restituir-mo;
b) pois que emprestei 100 a Tício (e ele não mos restituiu), requeiro (que se
realize a lei a meu favor mediante) a condenação de Tício a pagar-me 100;
c) pois que vendi a Tício o imóvel por um preço inferior à metade do justo,
requeiro (que a meu favor se atue a lei mediante) a rescisão da venda.

5 assim sendo, é possível imaginar manobra ardilosa do autor ao propor mais de uma
ação e optar por promover com maior celeridade a citação do réu naquela que lhe
aprouver. neves comenta essa particularidade com apoio em jurisprudência do supe-
rior Tribunal de Justiça.: “O termo ‘litispendência’ é equívoco, podendo significar pen-
dência da causa (que começa a existir quando de sua propositura e se encerra com a
sua exibição), ou, ainda, pressuposto processual negativo verificado na concomitância
de processos idênticos (mesma ação). Existe corrente doutrinária que entende ser o
art. 240, caput, do novo CPC (utilizado para o autor, a demanda já se encontra pen-
dente desde o momento de sua propositura, sendo a citação válida, ato que induz a li-
tispendência somente para o réu (sTJ, 3ª Turma, rEsp. 1.458.741/GO, rel. Min.
ricardo villas Boas Cueva, j. 14/404/2015, DJe 17/04/2015). Para outra parcela da
doutrina, o dispositivo legal valeu-se do termo em seu segundo significado. registre-
se que, aparentemente, o superior Tribunal de Justiça compartilha do entendimento
dessa segunda corrente doutrinária, tendo posicionamento pacífico de que o efeito ge-
rado pela citação determina a litispendência no sentido de processos idênticos (com a
mesma ação), afirmando que a primeira citação é o determinante para se descobrir
qual das ações idêntica deve ser extinga (sTJ, 3ª seção, Ms 8.997/DF, rel. Min. Og
Fernandes, j. 26/08/2009, DJe 24/09/2009). Dessa forma, havendo duas ações idên-
ticas em trâmite, mas em nenhuma delas tendo ocorrido a citação, aguarda-se o pri-
meiro ato citatório, ainda que realizado em processo mais recente, extinguindo-se sem
resolução do mérito o (s) outro (s) processo (s) (nEvEs, 2016, p. 384).

250
Ou então:
d) pois que Tício apresentou a cartório um título de dívida com a
minha firma falsificada, requeiro (que a lei se atue a meu favor me-
diante) declaração de falsidade de tal documento.
(...)
Desses exemplos deduz-se que as ações constam de três elementos
cuja especificação constitui a parte mais importante da ação judicial
(CPC, art. 134):
1º) Os sujeitos, isto é, o sujeito ativo (autor), a quem pertence o poder
de agir, e o passivo (réu), em face de quem se exerce o poder de agir
(personae).
2º) a causa da ação, isto é, um estado de fato e de direito que é a
razão pela qual se exerce uma ação, e que habitualmente se cinde,
por sua vez, em dois elementos: uma relação jurídica e um estado
de fato contrário ao direito (causa petendi).
3º) O objeto, isto é, o efeito a que tende o poder de agir, aquilo que
se pede (petitum). O que imediatamente se pede é a atuação da lei,
a qual, nas diferentes ações, se apresenta individuada em determi-
nado ato (condenação a restituir o imóvel; condenação a pagar 100;
rescisão da venda; declaração de falsidade dum documento). O ob-
jeto, pois, a cuja consecução se coordena a atuação da lei (imóvel a
restituir; soma a pagar) denomina-se objeto mediato da ação.

Com a lógica matemática de sua exposição, Chiovenda


facilita a compreensão dos três elementos inerentes a uma ação,
sobre os quais as anotações da doutrina processual brasileira
seguem a mesma linha, com o aperfeiçoamento que a ciência
processual impõe6.
Mais a frente Chiovenda discorre sobre a identificação do
fenômeno da identidade de causa, dizendo que isso perpassa por
duas operações distintas, “uma que tem por objeto a identificação
do bem da vida a que tendem as ações confrontadas, a outra a iden-
tificação da pertinência desse bem” (ChiOvEnDa, 1998, p. 430).
Quanto à identidade de sujeitos (eadem personae), afirma
que “duas ações são diversas unicamente por não corresponde-
rem à mesma pessoa ou não se dirigirem contra a mesma pes-
soa”. Completa diferenciando que a identidade da pessoa física
nem sempre redunda identidade subjetiva de ações, conside-

6Para não alongar em citações, podemos exemplificar com: rOCha, 2006, p. 170-
173; DiDiEr Jr., 2015, p. 287-288, 551-555; GOnÇalvEs, 2005, p. 93-99;
ThEODOrO Jr., 2015, p. 175; 5) alviM, 1998, p. 213-219.

251
rando que a mesma pessoa pode ter diversas qualidades, e duas
ações só seriam subjetivamente idênticas quando as partes se
apresentarem na mesma qualidade. O inverso seria de se con-
siderar, ou seja, a mudança da pessoa física como sujeito de uma
ação não tem como consequência que o direito trate a ação de
modo diverso (pode haver sucessão na ação, assim a título uni-
versal como particular)7.
no que se refere ainda à identidade de partes, cumpre
anotar que o superior Tribunal de Justiça firmou seu entendi-
mento no sentido de que “nas ações coletivas, para efeito de afe-
rição de litispendência, a identidade de partes deverá ser
apreciada sob a ótica dos beneficiários dos efeitos da sentença,
e não apenas pelo simples exame das partes que figuram no pólo
ativo da demanda8 ” e que "a demanda coletiva para defesa de
interesses de uma categoria convive de forma harmônica com
ação individual para defesa desses mesmos interesses de forma
particularizada, consoante o disposto no art. 104 do CDC"9, de
tal sorte que a ação coletiva não induziria à litispendência quanto
às ações coletivas.
Quanto à causa petendi10, sabe-se que ela é “a razão ou

7 Conclui de forma precisa a análise do tópico: “a diversidade de sujeitos produz di-


versidade de ações, mesmo quando é devida por diversos ou a diversos a mesma
coisa, ou quando se pretende, em relação a diversos, o mesmo efeito jurídico.
Temos exemplo do primeiro caso nas obrigações solidárias; do segundo caso, nos
direitos potestativos correspondentes a diversas pessoas e tendentes à cessação
do mesmo estado ou ato jurídico (direito de todos os sócios de impugnar delibera-
ções da assembleia geral, CCom, art. 163; direito de diversos interessados em im-
pugnar um ato administrativo perante o Conselho de Estado com função
jurisidicional). no segundo caso, todavia, os efeitos podem ser especiais, uma vez
que, devendo necessariamente o ato impugnável subsistir ou não para todos quan-
tos lhe estão sujeitos (por sua qualidade de sócios ou de administrados), somente
pode haver uma decisão, embora as ações sejam subjetivamente diversas; a iden-
tidade da qualidade substitui, nesta hipótese, a identidade da pessoa; a coisa jul-
gada, constituída com respeito a um, exclui a ação dos outros. semelhantemente,
na ação popular denominada supletiva, se bem que tenhamos tantas ações quanto
são, por exemplo, os interessados numa obra pia, termos, ainda assim, uma só de-
cisão, porque age cada um somente como “substituto processual” da entidade”.
(ChiOvEnDa, 1998, p. 430-431).
8agrg nos EDcl no rEsp 1455777/rs, rel. Min. Mauro Campbell Marques, 2ª

Turma, julgado em 03/09/2015, DJe 17/09/2015.


9 agrg no rEsp 1.360.502/rs, rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe 29.04.2013.

252
o motivo pelo qual se exercita a ação” (alviM, 1998, p. 130).
Deve-se expor na petição inicial não só a causa próxima - os fun-
damentos jurídicos, a natureza do direito controvertido – como
também a causa remota – o fato gerador do direito, tendo em vista
que o novo Código reiterou a acolhida da teoria da substancia-
ção11, em detrimento da teoria da individuação. assim, exemplifi-
cando, nas ações pessoais, nas quais não há muita controvérsia
a respeito da incidência dessa teoria, quando o pedido é o paga-
mento de dívida, deverá o autor expor que é credor por força de
um ato ou contrato, e isso seria a causa remota, e que a dívida
se venceu e não foi paga, e essa seria a causa próxima. no en-
tanto, em se tratando de ações reais, a doutrina diverge, sendo
que parte entende que suficiente a referência à causa próxima,
que seria o domínio, dispensando-se a menção à causa remota,
que seria o modo de sua aquisição (sanTOs, 2007, p. 172).
Como bem observa Gonçalves (2015, p. 98), há grande
divergência entre os doutrinadores quanto à denominação dos
fatos e fundamentos jurídicos. Parte da doutrina atribui aos fatos
a qualidade de causa de pedir próxima e aos fundamentos jurí-
dicos a qualidade de causa remota (nelson nery Júnior), en-
quanto outra parte inverte (vicente Greco Filho)12.
não obstante essa controvérsia, o critério tem sido utilizado

10 Chiovenda, quando analisa a identidade de causa (eadem causa petendi), o faz


apoiado no conceito de fato jurídico constitutivo do direito, conceituando o fato cons-
titutivo como sendo aqueles que “dão vida a uma vontade concreta de lei e à ex-
pectativa de um bem por parte de alguém”. Exemplifica com um empréstimo, um
testamento, um ato ilícito, um matrimônio. Exclui dessa concepção “a norma de lei
invocada pela parte em juízo”, de tal sorte que a individuação e identificação da ação
seria feita “por meio dos elementos de fato que tornaram concreta a vontade da lei,
e não pela norma abstrata da lei”. isso implicaria, na visão dele, que “a simples mu-
dança do ponto de vista jurídico (ou seja, a invocação duma norma diferente no
caso de que um fato possa incidir em diferentes normas de lei) não importa diversi-
dade de ações” (1998, p. 22 e 443).
11 Em contraposição à teoria da individuação, para a qual a determinação da de-

manda finca-se nos fundamentos jurídicos do pedido, e não pelos fatos, cuja des-
crição pode ser alterada no curso do processo.
12 nery Jr.: “iii: 6. Fundamentos do pedido. a petição inicial deverá indicar os funda-

mentos de fato (causa de pedir próxima) e os fundamentos de direito (causa de pedir


remota) do pedido. O autor deve indicar o porquê do seu pedido” (nErY Jr., n;
nErY, r., 2001, p. 757). Por sua vez, Greco Filho: “(...) a causa de pedir próxima
sãos os fundamentos jurídicos que justificam o pedido, e a causa de pedir remota
são os fatos constitutivos. (...)” (GrECO FilhO, 2003, p. 91). Essa confusão se

253
pela jurisprudência para eliminar a hipótese de litispendência. ao
julgar o recurso Especial n. 1.268.590/Pr, de relatoria do Mi-
nistro luis Felipe salomão, da 4ª Turma, (julgado em 10/03/2015,
DJe 25/05/2015), o superior Tribunal de Justiça entendeu que
não teria ocorrido a litispendência (entendida como pressuposto
processual negativo que impede a admissibilidade do segundo
processo em repúdio ao bis in idem), em caso de execução de
saldo remanescente, levando em conta que, no caso, estaria ve-
rificada a diversidade das causas de pedir próximas, porquanto,
na segunda execução, ela residiria no equívoco perpetrado pela
exequente que, conquanto tivesse apresentado planilha de cál-
culos demonstrando que o valor da dívida convertido em moeda
nacional era de r$ 10.282.907,08, fez constar na exordial da pri-
meira execução a cobrança de r$ 4.008.692,55, que correspon-
dia ao valor em dólares.
Quanto ao pedido, a doutrina pacificada entende que ele
se divide em imediato, no qual se veicula a pretensão processual
consistente na prestação da atividade jurisdicional, e mediato,
que vem a ser a tutela do bem da vida.
Essa bifurcação do pedido é utilizada para se identificar

estende à jurisprudência do superior Tribunal de Justiça, como ilustra parte da


ementa dos seguintes julgados: “Ementa: (...) 2. a doutrina distingue entre causa de
pedir remota e próxima. Esta, imediata, é a alegada violação do direito que se busca
proteger em juízo. aquela (causa de pedir remota), mediata, é a fundamentação ju-
rídica fática e que autoriza o pleito do autor. Desse modo, "os fundamentos jurídicos
do pedido" a que faz referência o art. 282 do CPC são os fundamentos de fato, ou
os fatos constitutivos do direito do autor - aos quais corresponde a causa de pedir
remota -, e os fundamentos de direito - aos quais correspondem a causa de pedir
próxima. (...)” (rEsp 1322198/rJ, rel. Ministro luis Felipe salomão, 4ª Turma, jul-
gado em 04/06/2013, DJe 18/06/2013) “EMEnTa: (...) 2. É que a liberdade do julga-
dor para qualificar os fatos expostos na inicial advém da Teoria da substanciação do
Pedido, adotada pelo sistema Processual Brasileiro (artigo 282, iii, do CPC), segundo
a qual se exige, para a identificação do pedido, a dedução dos fundamentos de fato
(causa de pedir próxima) e dos fundamentos de direito (causa de pedir remota) da
pretensão. rEsp 886.509/Pr, rel. Ministro luiz Fux, 1ª Turma, julgado em
02/12/2008, DJe 11/12/2008)
Didier Jr. é bastante didático na explicação desse aspecto: “É possível distinguir,
no pedido, um objeto imediato e um objeto mediato. Pedido imediato é a providência
jurisdicional que se pretende: a condenação, a expedição de ordem a constituição
de nova situação jurídica, a tomada de providências executivas, a declaração, etc.
O pedido mediato é o bem da vida, o resultado prático que o demandante espera
conseguir com a tomada daquela providência” (DiDiEr Jr., 2015, p. 565).

254
se está ou não evidenciada a litispendência. Por exemplo, ao jul-
gar o agravo regimental no recurso Especial n. 12.430/sC, de
relatoria do Ministro arnaldo Esteves lima (1ª Turma, julgado em
19/06/2012, DJe 25/06/2012), o superior Tribunal de Justiça,
considerando que a recorrente teria, na instância ordinária, tra-
zido ao Judiciário, em três oportunidades (por meio de um man-
dado de segurança, que teria sido denegado; em ação ordinária,
cujo pleito era o reconhecimento da prescrição administrativa,
ainda pendente de recurso; e, nos autos do recurso, nos quais
sua pretensão seria impedir o certame para preenchimento da
vacância do cartório), a discussão sobre a sua manutenção na
titularidade de serventia extrajudicial, da qual foi afastada, enten-
deu que, não obstante o pedido imediato fosse diverso, ambas
as ações teriam idêntico pedido mediato – o retorno à titularidade
do Ofício do registro Civil, Títulos e Documentos da Comarca de
Balneário Camboriú – e, assim, estaria evidenciada a ocorrência
da litispendência. nesse julgado, pois, embora houvesse diver-
sidade na espécie da pretensão processual, entendeu-se pre-
sente a litispendência pelo fato do bem da vida ser idêntico.
vê-se, pois, que a jurisprudência é sempre um fator determinante
para fixação dos contornos que assumem os efeitos da citação,
muitas vezes até em caráter contraditório como veremos adiante
em julgados envolvendo a interrupção da prescrição.

tornar litigiosa a coisa

O segundo efeito, de caráter processual, produzido pela


citação válida é tornar litigiosa a coisa:

Tornar litigioso significa dizer que a coisa ou direito estarão vinculados


ao resultado do processo, de forma que ao vencedor será entregue a
coisa ou o direito independentemente de quem o mantenha em seu
patrimônio no momento da execução. Dessa forma, é correta a lição
doutrinária que aponta para a ineficácia da alienação da coisa litigiosa
perante o vencedor da demanda, o que inclusive enseja ato de fraude
à execução, nos termos dos arts. 790, v, e 792, i, do novo CPC
(nEvEs, 2016, p. 385).
De tal forma que a litigiosidade implica que o bem jurídico

255
disputado entre as partes se torna vinculado ao resultado da
causa, ou seja, fica vedado às partes alterá-lo, sob pena do co-
metimento de atentado (nCPC, art. 77, § 7º), nem o alienar sem
incorrer nas sanções inerentes à fraude à execução (nCPC, art.
790, v). Do atentado resulta a obrigação para a parte de retornar
ao status quo, com a proibição de falar nos autos até que a falta
seja purgada (art. 77, § 7º). há ineficácia do ato de disposição
como consectário da fraude à execução perpetrada com aliena-
ção da coisa quando o réu já tiver sido citado validamente, de
forma que o bem alienado, “mesmo na posse ou propriedade de
terceiro adquirente, continuará sujeito aos efeitos da sentença
proferida entre as partes (art. 790 e 792 do nCPC).
Frisa-se: o bem litigioso não é propriamente inalienável,
mas, uma vez ocorrendo a alienação pelo réu citado validamente,
permanece vinculado ao processo, estendendo-se os efeitos da
sentença ao adquirente (nCPC, art. 109, § 3°). Da fraude13 à exe-
cução decorre a não oponibilidade do ato de alienação ao pro-
cesso (ThEODOrO Jr., 2015, p. 554-555). Ocorrendo a
alienação, pois, o novo Código determina a intimação do autor
para se manifestar sobre a possibilidade de alteração no polo pas-
sivo, com a retirada do réu originário da relação jurídico-processual
e o ingresso, em seu lugar, do terceiro adquirente (art. 109). acei-
tando o autor, consumado está o fenômeno da sucessão das par-
tes, assumindo o novo titular da coisa ou direito o polo passivo.
“Caso não concorde com a alteração, manter-se-á o réu originário
no polo passivo, que passará a atuar em substituição processual,

13a fraude de execução é causa de ineficácia do negócio jurídico relativamente ao


credor. Quer isto significar que o negócio jurídico é válido e existente, mas ineficaz.
não há nenhuma ação para declará-la, pois, como se trata de ineficácia como ma-
téria de ordem pública (já que o vício é de natureza exclusivamente processual),
basta a simples menção ao juiz da causa que houve fraude de execução, para que
ele determine que se faça a constrição judicial sobre o bem, em consonância com
norma processual (art. 790, v). Poderia vir a ser reconhecida de ofício ou mediante
alegação do interessado. ao contrário, a fraude contra credores é vício do negócio
jurídico, tornando o ato anulável, nos termos do art. 171, inciso ii, do Código Civil, o
que só poderá ocorrer mediante a propositura de ação pauliana ou revocatória. re-
quisitos para essa ação: o credor seja quirografário; o crédito seja anterior ao ato
de alienação; tenha havido dano ao direito do credor (eventos damnii), tenha havido
ciência da consequência do ato (scientia fraudis) ou consenso entre o devedor e o
adquirente (consilium fraudis). (nessa linha: sanTOs, 2008, p. 273).

256
defendendo em norme próprio o interesse do adquirente, que po-
derá, nesse caso, intervir no processo como assistente litiscon-
sorcial” (nEvEs, 2016, p. 385).
Muito embora haja uma clareza do texto da lei quanto à
litigiosidade, peculiaridades do caso concreto podem indicar a
proteção dos interesses dos terceiros de boa-fé. assim é que o
superior Tribunal de Justiça, interpretando o art. 42, § 3º, do Có-
digo revogado, de redação correspondente ao art. 109, § 3º, do
atual, ao analisar recurso apresentado por adquirente de bem
imóvel que busca a proteção possessória tendo em vista ordem
de reintegração emanada do cumprimento de sentença oriunda
de ação da qual não fez parte, entendeu que a coisa só se torna
litigiosa se há lide pendente (litispendência), a qual se consuma,
para o autor, com a propositura da ação e, para o réu, com a ci-
tação válida. Concluiu a Corte, que para o adquirente, o momento
em que o bem ou direito é considerado litigioso varia de acordo
com a posição ocupada pela parte na relação jurídico-processual
que sucederia e, assim, se o bem é adquirido por terceiro de boa-fé
antes de configurada a litigiosidade, não há falar em extensão
dos efeitos da coisa julgada ao adquirente14.
O superior Tribunal de Justiça, em diversos outros
casos, tem temperado a incidência dessa consequência proces-
sual, ora exigindo que, “na ausência de registro, ao credor cabe
o ônus de provar que o terceiro tinha ciência da demanda em
curso”15, ora exigindo que o adquirente prove que desconhecia a
existência de ação envolvendo o imóvel, “não apenas porque o
art. 1º da lei n. 7.433/85 exige a apresentação das certidões dos
feitos ajuizados em nome do vendedor para lavratura da escritura
pública de alienação, mas, sobretudo, porque só se pode consi-
derar, objetivamente, de boa-fé o comprador que toma mínimas
cautelas para a segurança jurídica da sua aquisição”16.
Mas foi no julgamento, pela Corte Especial do superior

14 rEsp 1458741/GO, relator Ministro ricardo villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado
em 14/04/2015, DJe 17/04/2015.
15 rEsp 4.132/rs, relator Ministro sálvio de Figueiredo Teixeira, 4ª Turma, julgado

em 02/10/1991, DJ 07/10/1991, p. 13970.


16 rMs 27.358/rJ, relatora Ministra nancy andrighi, 3ª Turma, julgado em

05/10/2010, DJe 25/10/2010.

257
Tribunal de Justiça, do recurso Especial n. 956.943/Pr, de ca-
ráter repetitivo, com relatoria da Ministra nancy andrighi e que
acórdão redigido pelo Ministro João Otávio de noronha (julgado
em 20/08/2014, DJe 01/12/2014), que se firmaram os traços de-
lineadores da incidência da fraude à execução: a) seria indispen-
sável citação válida para configuração da fraude de execução,
ressalvada a hipótese prevista no § 4º do art. 82817 do nCPC; b)
o reconhecimento da fraude de execução dependeria do registro
da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro
adquirente (súmula n. 375/sTJ); c) a presunção de boa-fé seria
princípio geral de direito universalmente aceito, sendo milenar a
parêmia: a boa-fé se presume e a má-fé se prova; d) não ha-
vendo registro da penhora na matrícula do imóvel, seria do credor
o ônus da prova de que o terceiro adquirente teria conhecimento
de demanda capaz de levar o alienante à insolvência, sob pena
de tornar-se letra morta o disposto no art. 84418 do nCPC; e) con-
forme previsto no § 4º do art. 828 do nCPC, presumir-se-ia em
fraude de execução a alienação ou oneração de bens realizada
após a averbação referida no dispositivo.
a jurisprudência firmada pelo superior Tribunal de Jus-
tiça com base no revogado Código é plenamente aplicável às dis-
posições processuais atuais.

constituir em mora o devedor

Esse é o último efeito decorrente da citação previsto no


caput do art. 240 do nCPC, “a citação válida... torna litigiosa a
coisa e constitui em mora o devedor, ressalvado o disposto nos
arts. 397 e 398 da lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Có-
digo Civil)”. Como observa neves (2016, p. 385), o efeito da
constituição em mora decorrente da citação sofre uma “série de
exceções no Código Civil, diploma que apropriadamente trata do
tema”, e isso é a razão pela qual o novo Código incluiu a ressalva

17no acórdão é citado o § 3º, do art. 615-a, do revogado CPC, cuja redação é a

mesma do § 4º, do art. 828.


18 no acórdão é citado o § 4º do art. 659, do revogado CPC, cuja redação é similar

e idêntica na finalidade ao do art. 844, do nCPC.

258
de não ser a citação que constitui o devedor em mora nas hipó-
teses previstas pelos arts. 397 e 398 do Código Civil.
É um efeito de direito material que pressupõe a análise do
conceito de mora19. O fato é que a mora ex re, ou de pleno direito,
aquela que decorre do simples vencimento da obrigação nos termos
do art. 397 do Código Civil ou da prática de ato ilícito, não necessita
do ato citatório para sua configuração. nessa hipótese, é de se apli-
car o brocardo dies interpellat pro homine (o termo interpela no lugar
do credor). a mora que depende do ato citatório para sua concreti-
zação é a ex persona20 e 21, aquela em que a obrigação não tiver
data fixada para o seu cumprimento, caso em que a citação “atua
como equivalente da interpelação” (ThEODOrO Jr., 2015, p. 555).

19 “Mora é o retardamento ou imperfeito cumprimento da obrigação. Mora solvendi


ou do devedor: configura-se quando o inadimplemento da obrigação se dá por parte
deste. Mora ex re: mora em razão de fato previsto em lei. Ocorre quando há inadim-
plemento de obrigação positiva (dar e fazer) e líquida (valor certo), que tenha fixada
para o seu cumprimento. O descumprimento acarreta automaticamente a mora, sem
necessidade de qualquer providência do credor (o dia do vencimento interpela o
homem, art.397, Código Civil). Ocorre também quando se tratar de obrigação nega-
tiva, desde o dia em que executar o ato de que se devia abster (art. 390, Código
Civil). Por último, haverá mora ex re quando da prática de ato ilícito, desde o momento
em que foi praticado (art. 398 do Código Civil). Mora ex persona: ocorre quando a
obrigação não tiver data fixada para o seu cumprimento, dependendo de providência
do credor. aqui, o devedor só se incorrerá em mora pela notificação, interpelação ou
protesto. (art. 397, par. ún., Código Civil)” (DiDiEr Jr., 2015, p. 613).
20 Julgado bastante elucidativo do tema foi proferido pelo superior Tribunal de Justiça

no agrg no arEsp 172.693/MT, da relatoria do Ministro Marco Buzzi, 4ª turma (jul-


gado em 06/11/2014, DJe 17/11/2014), no qual assentou-se que “a prévia interpe-
lação judicial para constituição em mora é necessária quando se trata de mora ‘ex
persona’, isto é, quando não há termo previamente acordado para cumprimento da
obrigação” e que, “em contrapartida, nos casos em que há obrigação positiva, líquida
e com termo certo estipulado na avença, tem-se a mora "ex re", que independe de
prévia interpelação”.
21 Medina, em nota de rodapé 1101, anota as lições de Ega Dirceu Moniz aragão, no

sentido de que “se a mora do réu constitui o fundamento do direito em que o autor
assenta o seu pedido, deverá ela preexistir ao ingresso em juízo e à própria citação
inicial, uma vez que não poderia o autor fundar a sua pretensão em fato ainda não
ocorrido. assim, a constituição em mora pela citação inicial operaria apenas com re-
lação aos casos em que a ação proposta pelo autor não se funda na existência de
mora do réu – pois em tal caso esta há de preceder o ajuizamento (Comentários...,
cit. n. 236, p. 180-181). nesse sentido, decidiu-se que `a citação inicial somente se
presta a constituir mora nos casos em que a ação não se funda na mora do réu, hi-
pótese em que esta deve preceder ao ajuizamento” (sTJ, agrg no rEsp
862.646/Es, rel. Min. raul araújo, 4.ª T., j. 13.11.2012).”(MEDina, 2015, p. 384-385).

259
vale ressaltar, contudo, que “nem sempre se admite que
a citação supra a interpelação prévia, principalmente quando a
ação é manejada não apenas para exigir os encargos da mora,
mas especificamente para pleitear a resolução do
contrato”(ThEODOrO Jr., 2015, p. 557). .nessa esteira é que
a jurisprudência firmou-se no sentido de que, se a ação visa co-
brar alguma prestação, a força interpelativa da citação, prevista
no art. 240, opera. no entanto, se a pretensão busca a resolução
do contrato por inadimplemento, ou seja, o rompimento do con-
trato descumprido, “a regra do direito material é que, inexistindo
cláusula resolutória expressa, o exercício da pretensão rescisória
deve ser precedido de interpelação judicial”22.
Por fim, esse efeito pressupõe que o réu ainda não esti-
vesse em mora quando da propositura da ação, pois, como bem
observa Theodoro Júnior, se já estivesse anteriormente configu-
rada, seja “por qualquer razão de direito, o efeito da citação será
apenas o de interromper a prescrição, cujo curso se iniciara
desde o momento, anterior ao processo, em que o demandado
havia incorrido em mora” (ThEODOrO Jr., 2015, p. 555).

interromper a prescrição23

Diferentemente do Código revogado, o atual não trata da


interrupção da prescrição como efeito decorrente da citação válida
no caput do art. 240. neste há menção apenas a três efeitos que
a citação válida produz: induz litispendência; torna litigiosa a

22 Conclui Theodoro Júnior a respeito do tema: “Com efeito, o Código Civil prevê que
‘a cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito’, mas ‘a tácita depende de inter-
pelação judicial’ (art. 474). Por isso, nos casos de rescisão (CC, art. 475), a pretensão
do contratante prejudicado nasce da mora do contratante faltoso, fato que deve ne-
cessariamente ocorrer antes do ingresso da demanda em juízo. a ausência desse re-
quisito inviabiliza o pleito de resolução contratual, já que, para os fins do art. 475 do
Código Civil, a falta de prévia constituição em mora ‘não é suprida pela citação”.
23 Tartuce ao tratar do conceito de prescrição, anota, inicialmente, que, com o intuito

de não indicar que não se trata de um direito subjetivo público abstrato de ação, o
atual Código Civil adotou a tese da prescrição da pretensão”. nos termos do art.
189 do Código Civil, violado um direito, nasce para o seu titular uma pretensão, que
pode ser extinta pela prescrição. se o titular do direito permanece inerte, a ele é
aplicada a pena da perda da pretensão que teria por via judicial. a prescrição, assim,

260
coisa; constitui em mora o devedor. Mas logo no seu § 1º prevê
que “a interrupção da prescrição, operada pelo despacho que or-
dena a citação, ainda que proferido por juízo incompetente, re-
troagirá à data de propositura da ação”, o que está agora, em
sintonia com o Código Civil, em específico o seu art. 202, i, o
qual, entre as hipóteses que elenca como causas interruptivas,
estatui que “a interrupção da prescrição, que somente poderá
ocorrer uma vez, dar-se-á: i - por despacho do juiz, mesmo in-
competente, que ordenar a citação, se o interessado a promover
no prazo e na forma da lei processual”.
Como observa Theodoro Júnior, o Código Civil, em seu
artigo 202, i, considera a citação do devedor como fato hábil a in-
terromper a prescrição, ainda que ordenada por juiz incompe-
tente. Em assim sendo, estamos diante “de outro efeito de
natureza material do ato citatório”. Observa Theodoro Júnior que
esse efeito pode ser ele alcançado, também, “em citações das tu-
telas cautelares requeridas em caráter antecedente, que visem à
conversão em posterior ação principal (nCPC, arts. 303 a
308)”(ThEODOrO Jr., 2015, p. 555).
O Código Civil somente permite a interrupção da prescrição24, 25
e 26 uma única vez (art. 202) e, assim, a “citação não a afetará se

alguma outra causa interruptiva houver ocorrido antes da proposi-

constitui um benefício a favor do devedor, “pela aplicação da regra de que o direito não
socorre aqueles que dormem, diante da necessidade do mínimo de segurança jurídica
nas relações negociais”. Distingue as duas espécies de prescrição em extintiva e aqui-
sitiva e, quanto a primeira, anota tratar-se de um fato jurídico stricto sensu justamente
pela ausência de vontade humana, prevendo a lei efeitos naturais, relacionados com a
extinção da pretensão”. ressalta ainda que na prescrição ocorre a extinção da pretensão
sendo que o direito em si permanece incólume, só que sem proteção jurídica para so-
lucioná-lo. Para corroborar essa assertiva, exemplifica com o fato de alguém pagar uma
dívida prescrita, caso em que não poderá pedir a devolução da quantia paga, eis que
existia o direito de crédito que não teria sido extinto com a prescrição, o que é inclusive
regra expressa do art. 882 do Código Civil (TarTUCE, 2016, p. 459-460).
24 negrão anota julgados contraditórios do superior Tribunal de Justiça, ora admi-

tindo a força interruptiva da prescrição decorrente de citação ocorrida em feito que


tenha sido depois extinto sem julgamento do mérito, ora em sentido contrário: art.
240: 10e. “a citação válida interrompe a prescrição, ainda que o processo seja extinto
sem julgamento do mérito” (rsTJ 93/156, “salvante as hipóteses do art. 267, ii e iii,
do CPC”). no mesmo sentido rEsp 947.264, Min. nancy andrighi, j. 25.5.10, DJ
22.06.10; sTJ-4ª T., ag. Em rEsp 316.215-agrg. Min. luís Felipe, j. 11.6.13, EJ 18.6.13).
(...). Contra: (...) art. 240: 11. “a citação realizada em ação ajuizada anteriormente,
extinta sem julgamento do mérito, por inércia do autor (art. 267, ii e iii, do CPC),

261
não tem o condão de interromper a prescrição” (sTJ-4ª T., rEsp. 523.264, Min.
Jorge scartezzini, j. 12.12.06, DJU 26.2.07)”. (nEGrÃO et al., 2016, p. 317). Theo-
doro Júnior faz crítica, com razão, a posição do superior Tribunal de Justiça: “Com
a devida vénia, não se entende como um ato perfeito e acabado, como a citação
inicial, possa perder seu efeito natural, pelo fato ulterior da extinção do processo
sem julgamento do mérito. não é ao processo que a lei confere a força interruptiva
da prescrição, mas ao ato isolado da citação, por sua natural função interpelativa,
que, aliás, pode ser exercida por vários outros atos isolados, judiciais e extrajudiciais
previstos pelo direito material (Cód. Civil, art. 202). O processo pode interferir na du-
ração do efeito interruptivo, fazendo-o durar por maior ou menor tempo antes de ini-
ciar a recontagem da prescrição (Cód. Civil, art. 202, parágrafo único), mas não no
fato mesmo da interrupção, cujo aperfeiçoamento é instantâneo e se confunde com
o do próprio ato citatório. a extinção do processo, sendo evento muito posterior à ci-
tação, a nosso ver, se depara com a interrupção da prescrição já inteiramente con-
sumada não há lei alguma que lhe confira eficácia retroativa para suprimir os efeitos
materiais do ato jurídico perfeito operado por meio da citação inicial da
demanda”(ThEODOrO Jr., 2015, p. 556). Mais recentemente, o superior Tribunal
de Justiça parecer ter firmado no seguinte sentido: “(...) 1. É certo no sTJ que,
mesmo quando a ação é extinta sem resolução de mérito, a citação válida - na forma
da lei processual, interrompe a prescrição (ex vi do art. 202, i, do CC), excetuando-
se as hipóteses do art. 267, ii e iii, do CPC - o que não é o caso. Precedentes. 2.
agravo regimental não provido”. (agrg no arEsp 733.368/Ma, rel. Ministro Mauro
Campbell Marques, 2ª T., , julgado em 08/09/2015, DJe 17/09/2015). Ou seja, ex-
cetuando as hipóteses de abandono da causa pelo autor ou contumácia das partes,
nas demais hipóteses de extinção sem resolução do mérito o efeito interruptivo da
prescrição, provocado pela citação, válida, persistirá.
25 no julgamento do recurso Especial n. 822.914/rs, da relatoria do Ministro hum-

berto Gomes de Barros, 3ª Turma (julgado em 01/06/2006, DJ 19/06/2006, p. 139),


ficou decidido que o despacho do juiz que ordena a citação na ação cautelar tem
força interruptiva do prazo prescricional: “(...) iv - PrEsCriÇÃO. inTErrUPÇÃO
PElO DEsPaChO QUE DETErMinOU a CiTaÇÃO na CaUTElar. 1. a pres-
crição ocorre quando o titular do direito não exerce, no prazo legal, ação tendente
a proteger tal direito. a inércia é o requisito essencial da prescrição. 2. O despacho
do juiz que determina a citação na ação cautelar preparatória tem o condão de in-
terromper o prazo prescricional referente à pretensão principal a ser futuramente
exercida (art. 202, i, do novo Código Civil).”
26 O superior Tribunal de Justiça, ao julgar o agravo regimental nos Embargos de

Declaração no recurso Especial n. 1.426.620-rs, da relatoria do Min. Marco aurélio


Bellize, 3ª Turma (julgado em 05/11/2015, DJe 18/11/2015), registrou que “a juris-
prudência desta Corte superior firmou-se no sentido de que a citação válida em
ação coletiva configura causa interruptiva do prazo de prescrição para o ajuizamento
da ação individual. (...)”. Já no recurso Especial n. 1.449.964-rs, da relatoria do
Ministro herman Benjamin, 2ª Turma (julgado em 05/08/2014, DJe 13/10/2014),
ficou decidido que, de acordo com a jurisprudência da Corte, “a ação Civil Pública
ajuizada pelo Ministério Público objetivando a nulidade dos atos normativos expe-
didos no sentido de não admitir prova de tempo de serviço rural em nome de tercei-
ros interrompeu a prescrição quinquenal das ações individuais propostas com a
mesma finalidade (art. 219, caput e § 1º do CPC e art. 203 do CCB)”.

262
tura da ação”. Também em função disso, quando se sucederem
diversas ações sobre a mesma obrigação, somente a primeira
citação produzirá a interrupção da prescrição. O efeito prático da
interrupção pela citação é que “o fluxo prescricional permanecerá
paralisado durante toda a duração do processo, recomeçando a
correr, por inteiro, do ato que lhe puser fim (Código Civil, art.
202, parágrafo único)”. arrematando, se a prescrição já estiver
interrompida antes da citação, permanece ela sem andamento
na pendência do processo, mas, uma vez encerrado este, a re-
tomada não se dará a partir de zero, pois o lapso de tempo de-
corrido até o momento do ajuizamento da causa será
computado. Essa seria, no dizer de Theodoro Junior, “a con-
sequência necessária da reconhecida falta de força do ato ci-
tatório para interromper a prescrição, na espécie”(ThEODOrO
Jr., 2015, p. 556).
O novo Código adjetivo, na linha do anterior, impôs ao
autor a obrigação de adotar, no prazo de 10 (dez) dias, as provi-
dências necessárias para viabilizar a citação, sob pena de, não
o fazendo, excluir-se a aplicação da regra que, uma vez efeti-
vada, os efeitos da interrupção retroagirão à data da propositura
da ação. reiterou o novo Código a regra de que a parte não pode
ser prejudicada pela demora imputável exclusivamente ao ser-
viço judiciário. Mais: explicitamente o novo Código regra que o
efeito retroativo, previsto no § 1º do art. 240, também se aplica
aos prazos decadenciais (art. 240, §§ 1º a 4º).
Cumpre anotar, por fim, que a interrupção da prescrição,
na forma prevista no § 1º do artigo 240 do novo Código de Pro-
cesso Civil, “retroagirá à data em que a petição inicial reunir con-
dições de desenvolvimento válido e regular do processo, o que,
no caso, deu-se apenas com a emenda da inicial, momento em
que já havia decorrido o prazo prescricional”. vale dizer, na es-
teira do entendimento do superior Tribunal de Justiça, firmado
na vigência do Código revogado, mas que se encaixa perfeita-
mente no cenário atual, se uma petição inicial contendo vícios for
ajuizada, uma vez determinada a sua emenda, o momento em
que for emendada e assim tornar-se apta a um desenvolvimento
válido e regular do processo, é que será levado em conta para
fins da mencionada retroação27.

263
ao julgar o agravo regimental no recurso Especial n.
1.423.716/PE (julgado 23/09/2014, DJe 01/10/2014), com rela-
toria do Ministro Benedito Gonçalves, o superior Tribunal de
Justiça reiterou o entendimento de que, em função da autonomia
do processo de execução em relação ao processo de conheci-
mento, é de cinco anos, contados a partir do trânsito em julgado
da sentença condenatória, o prazo prescricional para a proposi-
tura da ação executiva contra a Fazenda Pública, em conformi-
dade com o entendimento sufragado na súmula n. 150/sTF, in
verbis: "Prescreve a execução no mesmo prazo de prescrição da
ação". Convém anotar, no entanto, que, nos termos da súmula
n. 383 do supremo Tribunal Federal, o lapso prescricional pode
ser interrompido na data em que protocolado o protesto interrup-
tivo, recomeçando a correr pela metade, resguardado o período
mínimo de cinco anos28.

cOnsideraçÕes finais

27 EDcl no rEsp 1527154/Pr, relator Ministro ricardo villas Bôas Cueva, 3ª Turma
julgado em 27/10/2015, DJe 03/11/2015.
28 na espécie cuidava-se de demanda ajuizada pela associação dos Docentes da

Universidade Federal do Pernambuco - aDUFEPE - em face da Universidade Fe-


deral do Pernambuco – UFPE -, na qual esta sustentou que a pretensão executória
encontrava-se fulminada pela prescrição, pois havia transcorrido mais de 5 (cinco)
anos entre o trânsito em julgado da ação de conhecimento (12/6/2000) e o ajuiza-
mento da ação executiva (7/7/2011). Embora, à primeira vista, pudesse se pensar
que assistiria razão à UFPE, dever-se-ia observar se a mora pela execução teria de-
corrido de culpa do exequente ou do executado, ou, ainda, pela mora do Poder Ju-
diciário. algumas peculiaridades do caso levaram ao entendimento da não ocorrência
da prescrição: 1º) embora a decisão exequenda tivesse transitado em julgado em
12/06/2000, ela teria se tornado apta à liquidação somente em 01/03/2004. Esta data
é que teria dado início ao lustro prescricional. Ocorre que, em 21/01/2009, com o
ajuizamento de Medida Cautelar de Protesto, prevista no art. 867 do revogado Código
(disposição similar no nCPC, art. 726), teria sido interrompido o transcurso do prazo
prescricional da pretensão executória, a teor do disposto no art. 202, ii, do Código
Civil, de forma que seria incabível falar em prescrição da pretensão executória.

264
O que se pode extrair das inovações introduzidas pelo novo
Código de Processo Civil, em relação aos efeitos da citação, é que
as mudanças representam avanços do ponto de vista redacional,
além de atender à boa técnica processual. no entanto, da jurispru-
dência já consolidada pelo superior Tribunal de Justiça, em face do
Código revogado, pode-se inferir que a aplicação das regras regu-
latórias dos efeitos da citação tem seus contornos delineados diante
de especificidades do caso concreto, em alguns casos, inclusive,
com evidente contradição, como no exemplo da interrupção do prazo
prescricional em caso de ação julgada sem resolução do mérito.

referÊncias

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são Paulo: Editora revista dos Tribunais, 1998.

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266
Nayla Louhana de Sá Martins*
Mariane Morato Stival**

UMA ANÁLISE FEMINISTA: ESTAMOS LIVRES?


PADRÕES DE BELEZA, OBJETIFICAÇÃO DO
CORPO FEMININO E CULTURA DE ESTUPRO

A FEMINIST ANALYSIS: ARE WE FREE? BEAUTY PATTERNS,


WOMEN'S OBJETIFICATION AND RAPE CULTURE

UN ANÁLISIS FEMINISTA: ¿ESTAREMOS NOSOTROS LIBRES?


ESTÁNDARES DE BELLEZA, OBJETIFICACIÓN DEL CUERPO DE LA
MUJER Y CULTURA DE LA VIOLACIÓN SEXUAL

Resumo:
Este artigo objetiva demonstrar que, mesmo após as mulheres oci-
dentais terem conquistado inúmeros direitos por meio de décadas de
ativismo incansável, elas não podem ser consideradas totalmente li-
vres. Faz-se mister discorrer sobre o papel da mídia na objetificação
do corpo feminino e construção de um padrão de beleza impossível
de ser alcançado, além da cultura de estupro e a consequente cul-
pabilização da vítima, e ainda dados alarmantes em relação ao des-
respeito aos direitos humanos para com as mulheres sob a ótica
feminista.

Abstract:
This article aims to demonstrate that, even after occidental women
achieved innumerous rights by decades of tireless activism, they can-
not be considered totally free. It is important to talk about the role of
media in the objectification of women’s body and the construction of
a beauty pattern impossible to achieve, additionally to the so-called
rape culture and its victimization as a result. Moreover, it is going to
be presented alarming data about the violation of human/women’s
rights in the feminist’s perspective.

* Graduanda em Direito pelo Centro Universitário de Anápolis - UniEvangélica.


** Mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB, especialista
em Direito Público pela Universidade Católica de Goiás e graduada em Direito pela
UniEvangélica. Professora no Centro Universitário de Anápolis - UniEvangélica.

269
Resumen:
En artículo se pretende demostrar que, incluso después que las
mujeres occidentales alcanzaron numerosos derechos a través de
década de lucha activista incansable, aún no se puede considerar-
las libres totalmente. Es indispensable explayarse respeto el papel
de los medios de comunicación en la objetificación del cuerpo fe-
menino y construcción de un estándar de belleza que no se puede
lograr, además la cultura de la violación sexual y la consiguiente
culpabilidad de la víctima, y más todavía: los datos preocupantes
con violaciones de los derechos humanos en contra las mujeres
en la perspectiva feminista.

Palavras-chave:
Feminismo, opressão feminina, violência sexual, culpabilizaçã o da vítima.

Keywords:
Feminism, women’s opression, sexual assault, victimization.

Palabras clave:
Feminismo, opresión femenina, violencia sexual, culpabilidad de la
víctima.

INTRODUÇÃO

Será analisado neste trabalho como as mulheres não


podem ainda se considerarem livres, uma vez que o papel da do-
mesticidade e submissão deu lugar a uma nova forma de opressão
feminina. Tal forma acentua-se através da mídia e da publicidade,
que pregam um padrão de beleza impossível de se alcançar, além
da objetificação do corpo feminino, demonstrando sê-lo apenas uma
peça para o uso e manipulação masculino.
Tal objetificação robustece ainda a cultura do estupro, em
que se torna tolerante a crença de que a mulher dá causa ao estu-
pro, muitas vezes porque se comportou de forma “inadequada” ou
vestia-se com roupas curtas, tendo como resultado a culpabilização
da vítima. Para tal análise, usar-se-á a pesquisa em livros e artigos
acadêmicos, todos estes sob a perspectiva feminista.

270
O PAPEL DA MÍDIA NA CONSTRUÇÃO DE UM PADRÃO DE
BELEZA INALCANÇÁVEL

Após muito tempo, as mulheres se revoltaram. Ganha-


ram o direito ao voto, controle reprodutivo, fazem parte de insti-
tuições de ensino superior, são ótimas profissionais, e,
finalmente, estão inseridas na sociedade. Mas isso quer dizer
que estão livres? (WOLF, 1992).
Por anos a fio, um aparato midiático megalomaníaco tem tra-
balhado sem descanso no sentido de apresentar o que é considerado
"mulher perfeita". Revistas, filmes, comerciais e programas de televi-
são empurram goela abaixo a ideia de que, para ser bonita, uma ga-
rota necessita estar sempre policiando o que come, o que veste, deve
ter a pele alva e perfeita, cabelos loiros e lisos, pernas longas, e, ob-
viamente, ser magra, bastante magra (ATKINSON, 2013).
Sendo assim, estereótipos da beleza feminina são apre-
sentados em quase todos os meios de comunicação, bombar-
deando as mulheres com imagens que retratam o que é
considerado como corpo ideal. No entanto, tais exemplos de beleza
são praticamente impossíveis de serem alcançados pela maioria
feminina, uma vez que tais propagandas trazem garotas muito
abaixo do peso e que não são nem saudáveis (SERDAR, 2016).
Segundo Naomi Wolf (1992), quanto mais as mulheres
venceram obstáculos no âmbito legal, mais rígidas e inalcançá-
veis foram as imagens da beleza feminina a elas impostas. Os
distúrbios alimentares cresceram paralelamente com a diminui-
ção do peso das modelos, uma neurose em massa acometeu as
mulheres e a cirurgia plástica tornou-se a mais lucrativa das es-
pecialidades médicas nas últimas décadas. A mesma autora
ainda afirma que:

Um maior número de mulheres dispõe de mais dinheiro, poder, maior


campo de ação e reconhecimento legal do que antes. No entanto, em
termos de como nos sentimos do ponto de vista físico, podemos real-
mente estar em pior situação do que nossas avós não liberadas. Não é
por acaso que tantas mulheres potencialmente poderosas se sentem
dessa forma. Estamos em meio a uma violenta reação contra o femi-
nismo que emprega imagens da beleza feminina como uma arma polí-
tica contra a evolução da mulher: o mito da beleza” (WOLF, 1992, p.12).

271
Nesse ínterim, uma pesquisa realizada pela Secretaria
de Saúde do Estado de São Paulo (2014), apresentou que 77%
das jovens deste Estado têm inclinação a sofrer de algum distúr-
bio alimentar como anorexia, bulimia e/ou compulsão por comer.
Entre as entrevistadas, 85% afirmaram existir um padrão de be-
leza imposto pela sociedade, e 46% acreditam que mulheres ma-
gras são mais felizes.
O mito da beleza assumiu sua tarefa de controle social
a partir do momento em que as mulheres se libertaram do papel
feminino da domesticidade. Essa ideologia da beleza é tão vio-
lenta, que hoje em dia tem como função a coerção social, já que
os mitos da maternidade, castidade e passividade não mais con-
seguem oprimir o sexo feminino como fazia antes das grandes
ondas feministas. Atualmente, a modelo ou atriz jovem e esque-
lética tomou o lugar da dona de casa perfeita e passiva como ar-
quétipo de feminilidade bem sucedida (WOLF, 1992).
A busca pela beleza ideal criou um lucrativo mercado no
mundo capitalista, usando as mulheres bonitas como mercadoria
e influenciando as feias a comprarem seus produtos para que
possam compensar sua feiura. A mulher é explorada como um
objeto nos grandes meios de comunicação e isso tem influen-
ciado de forma negativa as sociedades (ANGELIN, 2005).
Destarte, um exemplo a ser citado são os programas hu-
morísticos que expõem mulheres lindas e atraentes, porém, bur-
ras e sem opinião, em contraste com mulheres feias, sendo
representadas como desinteressantes e chatas, mas às vezes
com certa inteligência. Tais estereótipos reforçam o conceito de
que apenas a aparência física do sexo feminino importa como
qualidade, fazendo prevalecer um dogma social que mantém a
dominação masculina em seu ápice (ANGELIN, 2005). Sobre o
mesmo tema, Rosângela Angelin (2005) assegura:

Analogicamente pode-se comparar os concursos de beleza com as


mostras de gado, realizadas em muitos estados do Brasil, onde os
animais desfilam na frente dos jurados e juradas que adotam critérios
para a avaliação física destes. Lamentavelmente, este exemplo evi-
dencia a forte discriminação da mulher como ser humano, ditada pelo
mundo masculino e, muitas vezes, aceita pelas próprias mulheres. A
ideologia de “beleza física” acaba gerando uma inversão de valores,

272
nos quais a busca por um corpo perfeito, é considerada um sinônimo de
aceitação social, geralmente confundida com a felicidade. (ANGELIN,
2005, online).

No entanto, é importante explicar como esse padrão do que


é ser bela não é apenas opressor, mas também racista e segrega-
cionista. Desde crianças, as meninas veem filmes de princesas da
Disney ou até mesmo brincam de Barbie, e uma maioria gritante
dessas personagens são apresentadas como magras, brancas e
loiras. Sem nenhuma ou pouca representatividade, as meninas e
jovens negras assimilam desde muito cedo que são diferentes por-
que estão longe do que é considerado "belo", uma vez que possuem
cabelo crespo, nariz largo e pele escura (ARRAES, 2014).
A verdade é que o exemplo de feminilidade ocidental é o
da mulher branca, e é necessário demonstrar que as mulheres ne-
gras experimentam consequências ainda mais graves na tentativa
de se enquadrarem em tal padrão, pois possuem características
totalmente opostas àquelas pregadas pela mídia e herdaram a
ideia, com raízes nos tempos de escravidão, de que seus corpos
são sinônimo de exploração sexual e trabalho braçal, diferente-
mente da meiguice e fragilidade branca feminina (ARRAES, 2014).
Portanto, conclui-se que muito embora as mulheres te-
nham ganhado poder nas sociedades contemporâneas, tanto em
termos legais, quanto profissionais, paralelamente, aumentou a
pressão social em torno de sua adequação ao que a mídia acre-
dita ser belo. Garotas, ainda no começo de sua adolescência,
têm se tornado neuróticas em busca de um corpo perfeito e lite-
ralmente passado fome, desenvolvendo,assim, distúrbios alimen-
tares, recorrendo às cirurgias plásticas e sofrendo, como
consequência, de ansiedade e depressão crônicas.
Agora a mulher pode votar, estudar e ser bem-sucedida
profissionalmente, porém, ela nunca será magra e bonita o sufi-
ciente, o que caracteriza essa busca incessante para se enqua-
drar num padrão, não num ato de autovalorização, e sim, de pura
obediência a um conceito machista e opressor.

273
PUBLICIDADE E A OBJETIFICAÇÃO SEXUAL DO CORPO
FEMININO

A expressão objetificação sexual, que teve início nos


anos 70 e foi associada às feministas radicais da segunda onda,
significa o processo de representação de uma pessoa como um
objeto sexual e que tal pessoa serve apenas para o prazer sexual
do outro. É a visão de pessoas como objeto de desejo ao invés
de indivíduos com personalidades complexas e desejos/anseios
próprios (HELDMAN, 2012).
Para Dawn Szymanski, Lauren Moffit e Erika Carr (2010),
tal objetificação ocorre quando o corpo ou partes do corpo femi-
nino são separadas de sua personalidade e a mulher é vista como
um objeto para o desejo sexual masculino. E tal experiência con-
tribui para o desenvolvimento de problemas na saúde mental da
mulher (distúrbios alimentares, depressão, disfunção sexual), pois
ela começa a internalizar o conceito de que é um objeto para ser
admirado e avaliado com base em sua aparência física.
Conforme Caroline Heldman (2012), grande parte de
exemplos de objetificação sexual feminina encontra-se em anún-
cios publicitários, que contêm características fáceis de serem per-
cebidas através de um simples teste de perguntas:

A imagem mostra apenas partes de um corpo sexualizado? A ima-


gem apresenta uma pessoa sexualizada que poderia ser substituída
por um objeto? A imagem mostra uma pessoa sexualizada como algo
que possa ser objeto de permuta? A imagem apresenta a ideia de
violar a integridade corporal de uma pessoa sexualizada que não
pode consentir? A imagem sugere que disponibilidade sexual é uma
característica que define uma pessoa? A imagem mostra uma pessoa
sexualizada como algo para ser comprado ou vendido? (HELDMAN,
2012, online, tradução nossa).

A mesma autora cita exemplos de alguns anúncios de


marcas famosas como Axe e American Apparel, que mostram
apenas o torso (seios) ou a parte de trás (nádegas) de mulheres
com seus rostos apagados/cobertos, reforçando a ideia de que
apenas seus corpos têm importância e que foram desenhados
para serem usados e violados sexualmente.

274
Nessa mesma linha, a marca de roupas American Appa-
rel mais uma vez apresenta uma mulher com as pernas abertas
e com o slogan "Now Open" (aberto agora) e envia a mensagem
de que aquela moça é para o sexo e que ela está "open for busi-
ness" (aberta ao público para comércio) e que pode ser usada por
qualquer um que queira. Um anúncio do PETA (People for the Ethical
Treatment of Animals), organização americana famosa pelos di-
reitos dos animais, ilustra uma mulher, comparando-a a um ani-
mal, e divide seu corpo em pedaços de carne (HELDMAN, 2012).

Anúncio PETA. Fonte: CAROLINE HELDMAN, 2012, online.

Além do mais, devemos demonstrar que campanhas pu-


blicitárias de cunho machista não são novidade, principalmente
nas décadas de 40 e 50, em que a mulher não era apresentada
de forma sexualizada tão frequentemente, todavia, era retratada
como submissa, e os homens eram sim superiores a elas. A
exemplo, vê-se o anúncio da marca de gravatas Van Heusen,
que mostra a esposa ajoelhada servindo o café da manhã ao seu
marido com o slogan "mostre a ela que o mundo é dos homens",
insinuando que o homem deve mostrar à mulher o seu devido
lugar, como submissa e passiva às vontades de seu consorte.

275
Anúncio de gravatas Van Heusen.
Fonte: BUSINESS INSIDER, 2011, online.

Em outro anúncio, a marca de lavadoras de louças Hotpoint


mostra a imagem da esposa lavando louças enquanto seu ma-
rido e crianças assistem à televisão na sala e diz "Por favor, deixe
a sua esposa ir à sala", influenciando mais uma vez o pensa-
mento de submissão e de que apenas a figura feminina é res-
ponsável pelos afazeres domésticos, sendo inimaginável a
divisão dessas tarefas com seu parceiro.

276
Anúncio de lavadoras de louça Hotpoint. Fonte: OKC FOX, 2013, online.

Com a experiência da objetificação sexual feminina, al-


gumas consequências surgiram, sendo um grande problema
atual a banalização da pornografia. Nos livros, filmes, revistas
pornográficos, a figura feminina é mostrada inerte, obediente e
necessária ao contentamento dos homens. Na visão de Helen
Longino (1980), a pornografia traz o papel e status da mulher
como um mero objeto sexual para ser explorado e manipulado.
A autora ainda analisa esse gênero de forma que:

Enquanto a objetificação sexual é comum em toda a pornografia, mu-


lheres são objeto de ainda pior tratamento no gênero violento da por-
nografia, em que as personagens são assassinadas, torturadas,
mutiladas, amarradas, vítimas de estupro coletivo e abusadas, de ma-
neira a promover a estimulação sexual ou prazer aos personagens mas-
culinos. (LONGINO, 1980, p. 42, tradução nossa).

As implicações desse gênero cinematográfico são assus-


tadoras e violentas. Ran Gavrieli (2012), em um seminário na pla-
taforma cibernética TED (Technology, Entertainment, Design)1,

TED (acrônimo de Technology, Entertainment, Design; em português: Tecnologia,


1

277
afirma acreditar que filmes pornográficos são, na verdade, prosti-
tuição filmada e que andam de mãos dadas com o tráfico humano.
Em sua apresentação, ele traz razões pelas quais parou de assistir
a sites de pornografia e demonstra como o seu uso diário por jo-
vens tem afetado suas fantasias sexuais, já que esses vídeos tra-
zem uma nova definição do que é sexual2: "O que é sexy? Qualquer
coisa que homens têm tesão - homens têm tesão em enforcar uma
mulher - fazer sexo violento/brutal sem nenhum toque, abraço, beijo
ou carinho?” (GAVRIELI, 2012, online, tradução nossa).
Nessa mesma linha de raciocínio, o palestrante completa que,
com a evolução da tecnologia, os meninos têm acesso à pornografia
cada vez mais cedo (a partir dos 12 anos), e essa nova geração está
ainda mais acometida pelo mal desse gênero do que a geração anterior,
porque, ao transformar suas fantasias sexuais, muito comumente esses
mesmos meninos se transformarão em imitadores do que viram, o que
significa que se tornarão possíveis agressores (GAVRIELI, 2012).
A definição de ser desejada sexualmente quase se asseme-
lha a ser como uma estrela pornô. Frequentemente, milhares de ga-
rotas estão concordando em serem filmadas em uma situação íntima
para agradar seus namorados. E mais frequentemente ainda, essas
imagens/filmagens são repassadas para colegas ou mesmo publica-
das na internet; a moral do garoto agressor permanece intacta,
mas em contrapartida, a vítima experimenta o slut-shaming3,

Entretenimento, Design) é uma série de palestras sem fins lucrativos realizadas em


todo o mundo pela fundação Saplins dos Estados Unidos. Tais conferências tem o
objetivo de disseminar ideias, sendo que suas apresentações são limitadas a de-
zesseis minutos e amplamente divulgadas na Internet. (WIKIPEDIA, online).
2 Palestra realizada na plataforma digital TED. What defines sexual? Whatever men

find arousing – men find it arousing to choke a woman – to have a brutal sex without
one touch, hug, kiss, tender caress? (GAVRIELI, 2012, online).
3 De acordo com a Wikipédia, slut-shaming pode ser definido com o induzimento de

uma mulher a se sentir culpada ou inferior por seu comportamento sexual desviar
das expectativas tradicionais de seu gênero. São reduzidas a acreditar que, por ter
um grande número de parceiros sexuais, ter relações sexuais fora do casamento,
agir ou se vestir de maneira considerada vulgar, não são mulheres dignas ou "direi-
tas". Esse termo também atua de forma a restringir a liberdade sexual feminina den-
tro dos parâmetros considerados aceitáveis pela sociedade. Esse termo tem origem
com a criação da SlutWalk (Marcha das Vadias), que são manifestações que se
propagaram pelo mundo, inclusive no Brasil. A Marcha das Vadias teve início no
Canadá em 2011, e se alastrou pelo mundo. Tal movimento protesta, primordial-
mente, contra a crença de que as vítimas de estupro teriam provocado tal violência
através de seu comportamento, forma de vestir, etc.

278
discursos de ódio, depressão, ataques de pânico e até mesmo,
em alguns casos, o suicídio (GAVRIELI, 2012).
Conforme apresentado anteriormente, antes da alegada
libertação feminina, os anúncios eram bombardeados com figu-
ras da domesticidade feminina, ilustrados com donas de casa
submissas e slogans que sentenciavam a supremacia masculina
em relação à feminina. No entanto, anos depois, a publicidade
não deixou suas raízes machistas e apenas mudou a forma e o
jeito de explorar a mulher. Agora, a mulher é livre e está liberta
sexualmente, a mídia prega ser seu corpo seu principal atributo,
a ditadura da beleza é propagada de forma maciça pelos anún-
cios publicitários, colocando o corpo feminino como um objeto
desprovido de emoções e personalidade e que deve ser usado,
violado e massacrado.

A CULTURA DE ESTUPRO E A CULPABILIZAÇÃO DA VÍTIMA

O conceito de cultura de estupro teve início com as femi-


nistas radicais da segunda onda de Nova Iorque, que atribuíram
tal termo para caracterizar esse abuso quando a violência sexual
é encarada como algo usual numa sociedade. Em poucas pala-
vras, indica o quanto a violência contra a mulher é normalizada
em alguma região, sendo que a tolerância e a banalização aca-
bam por incentivar a prática de crimes violentos e não inibi-los
(MASSONETTO, 2015).
Nesse mesmo raciocínio, Francisco Humberto Cunha
Filho e Leonísia Moura Fernandes (2016) afirmam que a cultura
de estupro é a responsável pela consequente culpabilização da
vítima de crimes contra a dignidade sexual, porque a sociedade
machista e opressora atual ainda acredita em papéis de gênero,
o comportamento feminino está em desacordo com o que é es-
perado pelos "bons costumes de boa moça", que a vítima deu
causa à prática de estupro, sendo sua culpa e não do agressor.
Exemplos práticos desse costume são: dizer que a roupa da me-
nina estava muito curta, que ela não deveria beber demais, que
ela estava andando sozinha de madrugada em local escuro, que
ela provocou o agressor, que ela é obrigada a satisfazer o seu

279
marido/companheiro, dentre outros.
Para melhor entender a dialética do termo cultura do es-
tupro, primeiro deve-se conceituar estupro, não na visão das
ciências criminais, ao falar acerca de sua tipicidade, qualificado-
ras, ou penas, e sim por meio da visão feminista. Faz-se mister
aprofundar o estudo através de estudiosas e militantes feministas
para atingir o objetivo deste trabalho. E sobre tal visão, Catharina
Heringer Carmo (2015) expõe:

O estupro não tem apenas uma ligação com o desejo sexual-carnal e


sim, muito maior ligação com demonstração e imposição de poder. To-
davia haver elementos de violência e sexualidade no ato de estuprar,
esse tipo de violência é usado para perpetrar o domínio e validar dife-
renças entre gêneros. A visão feminista nos diz que o estupro é um
produto da cultura, gerado pelo patriarcado para reprimir o sexo femi-
nino através da imposição de medo.(CARMO, 2015, tradução nossa).

Pode-se confirmar que o estupro muito pouco tem a ver


com desejo sexual quando olhamos para a ocorrência desse fato
geral. Estupradores não se importam especificamente com os
atributos físicos de sua vítima. Essa constatação é de fácil per-
cepção, pois mulheres idosas, deficientes, ou as que não se en-
quadram no padrão de beleza comum e até mesmo crianças, são
estupradas. Estupro é consequência do patriarcado. O ânimo dos
autores desse crime está relacionado ao sentimento de prerro-
gativa e raiva, de que suas vítimas merecem e que eles estão no
direito de praticarem aquele ato (CARMO, 2015).
Nessa mesma perspectiva, um estudo realizado pelo Hos-
pital Geral de Washington/DC (1975) concluiu que as vítimas de
estupro atendidas naquela unidade médica variavam de crianças
com 1 ano de idade até mulheres de 82 anos de idade. Enquanto
qualquer mulher possa ser um alvo natural para um estuprador, as
chances de que ela seja da mesma raça e classe que ele são entre
70% e 90%. Essa estatística não demonstra que estupradores pre-
ferem vítimas de sua mesma raça e classe (uma vez que prefe-
rência pessoal aparenta ser insignificante), e sim que sendo um
crime de oportunidade, tal oportunidade toma espaço mais fre-
quentemente em ambientes familiares (BROWNMILLER, 1975).
No Brasil, um estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa

280
Econômica Aplicada (IPEA, 2014) diz que, no caso de agressões
contra crianças, cerca de 70% dos agressores são os pais, em
24,1% são os padrastos e em 32,2% são amigos ou conhecidos
da vítima. Em mulheres adultas, 70% dos estupros são cometi-
dos por parentes, namorados ou conhecidos/amigos da vítima,
indicando que a violência está escondida nos lares. Esse instituto
ainda se mostra preocupado em relação ao número de estupros
ocorridos no país, pois estima-se que 527 mil pessoas são víti-
mas (sendo 89% do sexo feminino) a cada ano no Brasil e, des-
ses casos, apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia.
A problemática do processamento do crime de estupro
no ordenamento jurídico brasileiro é preocupante, face à dificul-
dade probatória dos indícios materiais e de autoria do crime, so-
brando apenas a palavra da vítima. E sendo a nossa sociedade
arquitetada no paradigma masculino de confiabilidade e a mulher
qualificada a partir de sua conduta sexual, vivemos uma situação
de extrema desigualdade em que se tem, como resultado, o ar-
quivamento de vários processos por terem denúncias inconsis-
tentes ou fracas (FILHO; FERNANDES, 2016).
Há de se concordar que a denúncia do crime provoca
ainda mais dor psicológica às vítimas, principalmente mediante o
exame de corpo de delito, resultando, assim, na sua pouquíssima
judicialização. Greco (2010) a respeito desse tema assevera:

A conduta de violentar uma mulher, forçando-a ao coito contra sua


vontade, não somente a inferioriza, como também a afeta psicologi-
camente, levando-a, muitas vezes, ao suicídio. A sociedade, a seu
turno, tomando conhecimento do estupro, passa a estigmatizar a ví-
tima, tratando-a diferentemente, como se estivesse suja, contaminada
com o sêmen do estuprador. A conjugação de todos esses fatores faz
com que a vítima, mesmo depois de violentada, não comunique o fato
à autoridade policial, fazendo parte, assim, daquilo que se denomina
cifra negra (GRECO, 2010, p. 581).

Avançando na visão feminista acerca do estupro, Susan


Brownmiller (1975) analisa que desde crianças as mulheres
ouvem que garotas são estupradas e não garotos. Essa mensa-
gem torna-se clara: estupro apenas ocorre por conta de um gê-
nero, sendo algo terrível que acontece com pessoas do sexo

281
feminino e que, se elas não se comportarem, esse será o seu
destino. Ela ainda afirma que estupro é um ato que homens pra-
ticam em nome de sua masculinidade, acreditando que é do in-
teresse de mulheres serem estupradas em nome de sua
feminilidade. A força ou a ameaça são os métodos usados contra
elas, e mostrar força é um requisito primordial no comportamento
masculino, em contrapartida com a feminilidade que as ensinou
a obedecer.
No que tange ao sentimento de culpa experimentado
pela vítima, tendo correlação com todo o aparato da crença na
cultura de estupro, a insegurança de algumas mulheres é tama-
nha, que vítimas de estupro agonizam no sentimento de que foi
o seu comportamento, maneira ou como estavam vestidas que
provocaram esse violento ato contra elas. Embora tenham co-
nhecimento da lei, a mentalidade dos policiais homens é quase
sempre idêntica à visão comum de estupro, que é compartilhada
com o resto da classe masculina. O grande problema da vítima
desse crime é que a autoridade policial que a atende é o próprio
sujeito que valida a sua vitimização (BROWNMILLER, 1975).

CONCLUSÃO

Conclui-se, por meio desta análise, que as mulheres não


podem se considerar “livres”, uma vez que a crença de que um
gênero domina o outro, ou seja, de que o gênero masculino do-
mina o feminino, permanece intacto nas sociedades contempo-
râneas e valida o sistema patriarcal com a ajuda da mídia,
publicidade e até mesmo órgãos públicos.
Por meio disso, vê-se que políticas públicas de erradica-
ção de violência contra a mulher são importantes, porém, mais
necessária ainda é uma mudança na educação, não só nas es-
colas, mas dentro de casa, de forma a conscientizar meninos e
meninas sobre sua igualdade, sobretudo, a respeito da mentira
dos papéis de gênero em que se esperam diferentes comporta-
mentos de cada um.

282
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