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Procuradoria-Geral de Justiça
Revista
do Ministério Público
do Estado de Goiás
Goiânia
2016
SUMÁRIO
apresentação................................................................ 05
Direito pÚBLiCo
Direito CriMinaL
Direito CiViL
245
os efeitos da citação à luz do novo Código Civil..........
UMBerto MaCHaDo De oLiVeira
assUntos Gerais
5
6
Samuel Sales Fonteles*
ABORTO E MICROCEFALIA:
UMA ANÁLISE CONSTITUCIONAL
Resumo:
Embora o abortamento seja considerado crime no Brasil, a proibição
de abortar continua a inflamar debates em torno da sua constitucio-
nalidade. Com o aumento de casos de microcefalia, a discussão volta
à pauta do dia. O trabalho não pretende abordar aspectos religiosos
ou morais, mas apenas dilemas jurídicos a respeito do tema, princi-
palmente no que diz respeito ao papel desempenhado pelo Ministério
Público nesta controvérsia.
Abstract:
Although abortion is considered a crime in Brazil, the prohibition of
abortion continues to ignite debate about its constitutionality. With the
increase in cases of microcephaly, the discussion back to the day
agenda. The work is not intended to address religious or moral, but
only legal dilemmas on the subject, especially with regard to the role
played by prosecutors in this controversy.
Resumen:
Aunque el aborto es considerado un crimen en Brasil, la prohibición
del aborto continúa para encender el debate sobre su constitucio-
nalidad. Con el aumento de los casos de microcefalia, la discusión
de nuevo a la orden del día día. El trabajo no pretende abordar as-
pectos religiosos o morales, sino sólo dilemas legales sobre el
tema, especialmente en relación con el papel desempeñado por
los fiscales en esta controversia.
9
Palavras-chave:
Eugenia, deficientes, Direito Constitucional, parquet.
Keywords:
Eugenics, disabled, Constitutional Law, parquet.
Palabras clave:
Eugenesia, discapacitados, Derecho Constitucional, parquet.
10
Os direitos fundamentais foram gravados em um rol
numerus apertus, e não numerus clausus. O reconhecimento exem-
plificativo de direito fundamentais, aliado à natureza delirante do
ser humano, gerou uma invocação fantasiosa de direitos. Como
lembra Daniel Sarmento (SARMENTO, 2015, p. 5-6):
[...] nem todo desejo pode ser legitimamente convertido em direito fun-
damental. Praticamente todas as pessoas querem ser correspondidas
em seus amores, e seriam provavelmente mais felizes e realizadas se
isso lhes fosse assegurado. Nem por isso, se pode afirmar a existência
de um direito fundamental à reciprocidade no amor.
11
direitos fundamentais escritos na Constituição não carecem de
qualquer prova do seu teor e da sua vigência, porquanto é dever
do Juiz (bem) conhecê-los. Nesse caso, se a parte invoca um di-
reito com apoio explícito no texto constitucional, incumbe, sim,
ao Ministério Público demonstrar o (des)acerto da tese1. Quanto
àqueles albergados por tratados internacionais (v.g. direito fun-
damental à adaptação razoável e direito fundamental ao desenho
universal), o teor e a vigência da convenção deverão ser objeto
de prova por quem os invoca, na forma do art. 376 do NCPC,
pelo qual “a parte que alegar direito municipal, estadual, estran-
geiro ou consuetudinário provar-lhe-á o teor e a vigência, se
assim o juiz determinar”.
A situação requer maiores cuidados quando os direitos
fundamentais invocados não estão escritos, seja porque implíci-
tos, seja porque hauridos do regime e dos princípios (art. 5º, §2º).
Nesse caso específico, diante de uma norma jusfundamental não
escrita, os direitos fundamentais nela plasmados em muito se as-
semelham aos direitos constitucionais consuetudinários2.
Isso posto, com arrimo no art. 376 do CPC, o teor e a vigência
da norma jusfundamental deverão ser objetivamente comprova-
dos, à luz da melhor doutrina e, principalmente, da construção
pretoriana. Somente a praxis é capaz de indicar um direito não
escrito, portanto, invisível aos olhos de fração da comunidade ju-
rídica. Nesse caso, as fronteiras do civil law devem ser ultrapas-
sadas, para adoção de um raciocínio pautado no sistema do
common law.
Portanto, conclui-se que, exceto quando o direito invo-
cado encontrar apoio explícito no texto constitucional, o ônus ar-
gumentativo, usualmente, será de quem invoca direitos
fundamentais. A propósito, há outras razões técnicas para isso.
Primeiramente, porque, mesmo no campo da argumentação, a
1 Por exemplo, elucidando que, embora a Constituição tenha reconhecido esse direito,
em nenhum momento ele foi fundamentalizado. Ou ainda que, a despeito de o direito
encontrar previsão como um direito fundamental, não há subsunção dos fatos do
caso concreto com a norma abstratamente prevista no arquétipo constitucional. A
dúvida será dirimida pelo Juiz, à luz da melhor doutrina e da jurisprudência.
2 Poucos são os costumes constitucionais brasileiros. Um deles é o chamado voto
de liderança, prática usual nos átrios do Poder Legislativo, por ocasião do processo
legiferante.
12
prova negativa, isto é, de que algo não existe, beira a prova dia-
bólica. É possível provar que uma rosa azul existe, bastando que
se lhe demonstre. Diversamente, será impossível provar que ela
não existe, pois, por mais que todas as rosas já testemunhadas
sejam de cores diversas, isso, em definitivo, não faz prova cabal
de que não há uma rosa azul. Exigir do membro do Ministério Pú-
blico a prova de que um direito fundamental não existe, na imen-
sidão científica e jurisprudencial da atualidade, é um despautério.
O tema merece a atenção do Ministério Público como fis-
cal da ordem jurídica. Um fiscal zeloso não pode admitir que di-
reitos fantasiosos sejam invocados, reconhecidos e até
concretizados à revelia do ordenamento jurídico, como uma es-
tratagema para fazer valer a vontade pessoal de um dos atores
processuais. Cabe aos órgãos de execução do Ministério Público
um exame com serenidade, razoabilidade e, acima de tudo, atua-
lização científica, para que não sejam induzidos a erro pelas par-
tes parciais da demanda.
13
meses, portanto, um ser na iminência de ser dado à luz. Crono-
logicamente, o pleito beira uma súplica pelo direito de homicídio,
afinal, nas ciências criminais, as fronteiras entre o abortamento e
o homicídio se resumem ao início dos trabalhos de parto. Antes
de iniciados, tem-se o abortamento. Após iniciados, configura-se
um homicídio. Disso se percebe a linha tênue entre esses crimes
contra a vida, cujas fronteiras estão cada vez mais frágeis. No Di-
reito Comparado, a Suprema Corte norte-americana chegou a ad-
mitir o direito ao abortamento no primeiro trimestre de gestação,
no julgamento do Caso Roe vs. Wade4. Entre nós, os debates
são permeados pela lógica do tudo ou nada.
14
Nesse caso, independentemente de considerações acerca do
juízo de recepção do Código Penal, ainda há um obstáculo insu-
perável que impede o reconhecimento de um direito ao aborto.
O Pacto de São José da Costa Rica é de clareza solar quando
protege a vida do nascituro5. Logo, em um silogismo aristo-
télico, todos os que tivessem o direito de abortar teriam, por
conseguinte, o direito de violar a Convenção Americana de
Direitos Humanos e, como é cediço, não há (e nem pode
haver) direitos cujo exercício implica infração a normas jurí-
dicas. Desse modo, quando alguém brada ser possuidor do di-
reito de exterminar uma vida intrauterina, o que essa pessoa
pretende é, ao contrário dos seus pares, ter o direito de não su-
jeitar-se à força normativa do Pacto de São José da Costa Rica,
documento que está longe de ser uma mera carta de exortação
moral. O pretenso direito ao aborto não resiste a um controle de
convencionalidade e nem a uma filtragem convencional. Di-
reitos foram feitos para serem exercidos. O simples exercício
desse direito transmudaria em violável aquilo que a Constituição
Federal reputou como inviolável. E, verdade seja dita, nesse par-
ticular, sequer uma emenda teria poderes para suprimir essa cla-
ríssima proteção.
5Artigo 4º - Direito à vida. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida.
Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção.
Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente (negritamos).
15
risco de morte da gestante). Nem mesmo o Desembargador do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que perfilha uma cor-
rente francamente mais progressista, consegue vislumbrar como
possível o “direito fundamental ao aborto” (negritamos):
16
fundamental ao aborto. Trata-se de um imperativo lógico: o Di-
reito nem sempre é o que gostaríamos que ele fosse. O jurista
deve curvar-se à realidade. Como militante, qualquer pessoa
pode ser a favor de um direito ao aborto, mas, como operador
do Direito, convém perceber a realidade das coisas: o ordena-
mento nunca acolheu esse direito.
6“Se perguntássemos hoje a qualquer das pessoas, cujas mães pensaram no passado
em abortá-las, mas não sucumbiram à tentação, se gostariam de ter sido abortadas, a
resposta seria negativa, visto que agora têm defesa que à época não tinham, se
suas mães tivessem concretizado a intenção”. (MARTINS, 1991, p. 12).
17
que é condição para o desfrute dos demais, é aniquilado, ao
passo que os direitos reprodutivos são apenas restringidos. O
mais é eliminado, o menos é restringido. O desequilíbrio é mani-
festo. Trabalhando-se com uma ideia de que o direito à vida é
um direito preferencial, o peso argumentativo para afastá-lo ha-
veria de ser maior. No caso em apreço, a colisão demonstra que
o abortamento atingiria de maneira irreversível o núcleo essencial
do direito restringido, traduzindo um sacrifício.
Na Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, colhemos o ma-
gistério de Inocêncio Mártires Coelho (apud MENDES; BRANCO,
2015, p. 174), para quem o princípio da concordância prática consiste
18
direito à vida com valores outros não pode jamais alcançar um equilíbrio
entre eles, mediante compensações proporcionais. Isso porque, na
equação dos valores contrapostos, se o fiel da balança apontar
para o interesse que pretende superar a vida intrautrerina o resul-
tado é a morte do ser contra quem se efetua a ponderação. Perde-
se tudo de um dos lados da equação. Um equilíbrio entre interesses
é impossível de ser obtido. (MENDES; BRANCO, 2015, p. 449).
19
sacrifícios humanos; o direito de locomoção não ampara o an-
darilho que atravessa a rua em situação de nudez; a liberdade
artística não abrange a morte de um ator no palco; e o direito ao
casamento não dá supedâneo à poligamia. Acrescentamos, no
extenso rol doutrinário, que os direitos reprodutivos não com-
preendem o direito de abortar. Em todas essas casuísticas7, a
doutrina constitucionalista sugere que o direito invocado ja-
mais existiu (daí chamarmos de direito fundamental puta-
tivo), pois a norma nunca o contemplou para ser exercido
dessa maneira. São situações não abarcadas pelo âmbito de
incidência, o que não se confunde com a clássica colisão de
direitos fundamentais, cujo deslinde demanda a aplicação
da regra da concordância prática.
7Os exemplos de Friedrich Müller e de José Carlos Vieira de Andrade são colacio-
nados por Virgílio Afonso da Silva em “O conteúdo essencial dos direitos fundamen-
tais e a eficácia das normas constitucionais”. (Revista de Direito do Estado 4, 2006,
p. 33/34).
20
Ives Gandra Martins (1991, p. 12), de maneira contun-
dente, esclarece:
21
pessoas sobre o próprio corpo, por exemplo, quando estipula que
“é vedado à gestante dispor de tecidos, órgãos ou partes de seu
corpo vivo, exceto quando se tratar de doação de tecido para ser
utilizado em transplante de medula óssea e o ato não oferecer
risco à sua saúde ou ao feto” (art. 9º, §7º). O dispositivo legal
proíbe a gestante de dispor até mesmo de partes do seu corpo,
revelando insofismavelmente que a cosmovisão de Stuart Mill não
encontra guarida na ordem constitucional em vigor. O direito ao
próprio corpo, assim como todos os outros, não é um direito ab-
soluto, o que se comprova pela impossibilidade de comércio do
próprio sangue8 ou de locar o próprio ventre (barriga de aluguel).
Nas palavras da Promotora de Justiça Eliana Vendramini,
membro do Ministério Público de São Paulo, referindo-se ao tráfico
de órgãos, tecidos e partes do corpo humano, “corpos não são
propriedade privada”9. Para alguns, o tema abortamento tem po-
deres de devolver o Direito Constitucional para o final do século
XVIII, quando a propriedade era tida como um direito absoluto,
numa concepção individualista. Algumas pessoas olham para o
próprio corpo com os mesmos olhos com que os barões olhavam
para as suas terras, vale dizer, como se tivessem sobre elas um
direito sagrado e sem qualquer função social. A gestante que pre-
tende exterminar a vida alojada nas suas entranhas, a pretexto de
exercer um direito absoluto sobre o próprio corpo, comporta-se
como o proprietário que pretendia exercer o direito de propriedade
até o infinito, erigindo espetos para furar os balões que sobrevoas-
sem a coluna de espaço aéreo sobrejacente. Em suma, a ideia
subjacente ao lema “my body, my rules” (meu corpo, minhas re-
gras) remonta a um momento egoístico do constitucionalismo, que
não acomodava nenhum solidarismo. Vive-se em um Estado De-
mocrático de Direito (e deveres), não em um Estado Liberal clás-
sico. Quer se trate de homens ou de mulheres, ambos não podem
fazer com o próprio corpo o que lhes aprouver.
8 Art. 199, §4º, CF/88. A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem
a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pes-
quisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e
seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização (negritamos).
9 Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/06/140602_minis-
terio_publico_svo_usp_ orgaos_rs>.
22
DIREITOS REPRODUTIVOS
23
Plataforma de Ação de Pequim, de 1995, nenhuma delas com o
status de tratado internacional, mas com um significado simbólico
interpretativo. Pois bem.
À luz do arcabouço normativo mencionado, é possível
extrair um direito ao descarte da vida intrauterina? Estamos
convencidos de que não. Em apreço aos seus direitos reproduti-
vos, a mulher tem à sua disposição uma gama diversificada de
técnicas anticoncepcionais, dentre elas, preservativos, pílulas, dis-
positivo intrauterino (DIU), coito interrompido, método Ogino-
Knaus, e até processos químicos etc.(KRYMCHANTOWSKI, 2013,
p. 206). Com um acervo tão rico à sua disposição, gratuitamente,
como, aliás, é dever do Estado, não há chamar alguém à existên-
cia e depois contradizer-se, para expelir fatalmente o convidado
(venire contra factum proprium).
Na sua dimensão negativa, os direitos reprodutivos su-
jeitam-se à preclusão lógica. No livre exercício da sua fecundi-
dade, a mulher opta se deseja exercer ou não o seu direito de
engravidar, no momento e na forma que lhe aprouver. Feita
essa escolha, os direitos reprodutivos foram exercidos e se
consumaram11. A partir de então, se o abortamento estivesse
abrangido pela sua autodeterminação, a rubrica deveria ser di-
reitos destrutivos, e não direitos reprodutivos. Como o próprio
nome revela, os direitos reprodutivos estão ligados à ideia de re-
produção, isto é, de multiplicar, de procriar, de gerar, de construir,
não de eliminar, aniquilar ou destruir.
Um exemplo do raciocínio lógico pode ser extraído do
processo penal. O Ministério Público tem o direito de recorrer.
Uma vez interposto o recurso, não tem o direito de desistir dele.
Nem por isso se diz que a impossibilidade de desistência fere o
seu direito de recorrer. Semelhantemente, a mulher tem o direito
de engravidar (direitos reprodutivos). Uma vez grávida, não tem
24
o direito de desistir. Da mesma forma, isso não fere o seu direito
de engravidar (direitos reprodutivos). O fato de o Ministério Pú-
blico não ser detentor do direito de desistir dos recursos, volunta-
riamente interpostos, não prejudica em nada o seu direito de
recorrer, tanto quanto a impossibilidade de a mulher desistir da
gravidez, que espontaneamente providenciou, absolutamente não
interfere no seu direito de engravidar (ou seja, nos seus direitos
reprodutivos). Em suma: a proibição de eliminar a vida intraute-
rina não prejudica a liberdade de engravidar, isto é, de exercer
seus direitos reprodutivos, posto que já fruiu do exercício desse
direito em momento anterior.
25
constitucionais. Pergunta-se: em 5 de outubro de 1988, por ocasião
da promulgação da Constituição, ao positivar a inviolabilidade do di-
reito à vida, a intenção do constituinte foi desabrigar fetos com o sis-
tema nervoso em formação? É o que se alcançaria à luz do princípio
da máxima efetividade das normas constitucionais? Tal exegese res-
tritiva implicaria aplicar a Constituição conforme a lei, e não a lei con-
soante a Constituição. A se admitir que conceitos constitucionais
sejam modificados por definições legais, o legislador receberia um
cheque em branco para arbitrariamente alterar o significado de con-
ceitos protegidos pelo constituinte, ao seu alvedrio.
A questão que se nos apresenta é: o legislador poderia,
ao seu talante, fixar a gênese da vida como a partir da concep-
ção, da nidação, da formação do córtex cerebral ou do nasci-
mento?12 Os congressistas foram presenteados pela Constituição
com essa liberdade? Essa anarquia conceitual investiria parla-
mentares de um poder desmedido, para além do bem e do mal.
Bastaria que invertessem, por intermédio da lei, a definição do
que é dia e do que é noite, para virar de ponta cabeça a inviola-
bilidade de domicílio constitucionalmente assegurada (art. 5º, XI,
CF/88). Como se vê, um conceito legal não pode alterar o signi-
ficado de palavras constitucionais para desvirtuá-las daquilo que
semanticamente se espera, com mais razão não poderá fazê-lo
uma ilação a contrario sensu da definição infraconstitucional de
morte encefálica. A vida é um conceito lógico-jurídico, e não jurí-
dico-positivo. Sua validade é delineada pela Ciência, não pelo
Direito. Definitivamente, a Lei n. 9.434/97 está muito aquém do
necessário para fornecer com segurança quando se tem por vivo
o ser humano13. E é de bom alvitre fazer uma advertência de
26
ordem documental: a certidão de óbito não pode ser expedida
pelo médico, mesmo diante da morte cerebral, quando ainda não
cessadas as funções respiratórias (FIUZA, 2016, p. 157). Se a
expedir, será apenas para fins de transplante de órgãos, não para
o sepultamento, providência esta que não tem lugar enquanto
não interrompidas as funções cardiorrespiratórias, donde se con-
clui que o marco legal é uma ficção endereçada ao transplante
de componentes do corpo humano. Nada além disso.
Paulo Gonet, ex-Procurador Geral da República, é con-
tundente (MENDES et al., 2010, p. 446): “[o] direito à vida tem na
fecundação o seu termo inicial e na morte o seu termo final”. Se-
gundo o publicista, a lei infraconstitucional é inidônea para fixar
arbitrariamente o momento inicial da vida. Ademais, para ele,
avilta a dignidade humana e o princípio da isonomia sonegar dos
nascituros o direito fundamental mais primevo. Igualmente reco-
nhecendo a ilegitimidade da lei infraconstitucional para indicar,
com precisão, a gênese da vida, o constitucionalista Alexandre
de Moraes (2004, p. 66) busca subsídios científicos na biologia
para compreender que esse momento corresponde à nidação
(negritamos):
27
ou zigoto. Assim, a vida viável começa com a nidação, quando
se inicia a gravidez. [...] A constituição, é importante ressaltar, pro-
tege a vida de forma geral, inclusive uterina.
28
juízo competente para a expedição do alvará de interrupção da
gravidez, a matéria dependerá da organização judiciária regional,
mas o tecnicamente correto é que a competência seja da vara
criminal16, porque a questão posta em juízo necessariamente en-
volverá a análise de excludentes legais ou supralegais de ilicitude.
Engana-se quem supõe que a decisão do STF, na ADPF n. 54,
colocou uma pá de cal nas ações que postulam a expedição de
alvará judicial para a “interrupção terapêutica do parto”.
29
[...] sabemos, motu proprio, que o médico probo nem a dedo conta,
em seu atendimento diário às gestantes, ao longo dos anos, as mal
definidas situações indiscutíveis de real indicação do aborto neces-
sário ou terapêutico. Assim é que, em trinta e oito anos ininterruptos
de profissão, não tivemos nenhum caso de indicação médica de
aborto necessário ou terapêutico pela mãe se encontrar em iminente
perigo de vida determinado pelo binômio feto-placentário. Destarte,
antes de aplaudir intempestivamente o aborto amparado por lei de-
vemos considerar que o progresso vertiginoso da Medicina limita, a
cada dia, as suas indicações (se é que à vista de honesto rigorismo
clínico elas existem). Assim é que atendemos gestantes cardíacas,
(uma delas com dupla lesão mitral), que deram à luz por parto natural
e por cesarianas, com êxito feliz para o binômio materno-fetal.
30
algo muito comum em nosocômios católicos ou protestantes.
Nesse caso, não se pode compelir uma instituição hospitalar re-
ligiosa a vilipendiar seu credo institucional, devendo, pois, a
ordem ser cumprida em uma Instituição Pública ou privada que
aceite realizar o procedimento médico. A decisão da mulher é
pessoal e de foro íntimo, não podendo ser estendida para tercei-
ros que não comungam da sua cosmovisão. A laicidade do Es-
tado impõe o respeito a todos os credos, devendo ser reputada
como legítima essa abstenção hospitalar.
Ademais, até mesmo médicos ateus ou agnósticos
podem se recusar, legitimamente, ao abortamento. É um erro
crasso supor que somente pessoas religiosas são contra o abor-
tamento de seres humanos. Ateus podem ser contrários a essa
prática, afinal, para ser politicamente desfavorável ao aborta-
mento, basta ter apreço pela vida. O Código de Ética Médica,
norma endereçada a todos os profissionais da medicina, indepen-
dentemente do credo que venham a professar, reconhece-lhes o
direito de “recusar a realização de atos médicos que, embora per-
mitidos por lei, sejam contrários aos ditames de suas consciên-
cias” (art. 28, destacamos). Como proclama a Declaração de
Genebra, “manterei o mais alto respeito pela vida humana, desde
a concepção”. Com arrimo no juramento de Hipócrates, “também
não fornecerei a uma mulher pessário abortivo”18. Bem se vê, o
profissional de medicina é, por definição, um jurado defensor da
vida humana, razão pela qual pode rebelar-se contra o aborta-
mento, mesmo nas hipóteses autorizadas pela lei ou pela cons-
trução pretoriana do STF. Por óbvio, a objeção de consciência é
inaplicável quando a mulher grávida correr risco de morte, em-
bora, repita-se, seja situação de raríssima configuração prática.
Em síntese, nas ações de alvará para interrupção de gravidez, só
haverá interesse de agir diante de dúvida fundada quanto às hi-
póteses ou de recusa médica infundada.
31
DA IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO: FETOS COM
MICROCEFALIA E O ABORTAMENTO EUGENÉSICO
32
do futuro encargo de velar pela existência digna de um portador
de deficiência.
É consabido que, numa sombria concepção utilitarista,
os deficientes são sobremodo mais vulneráveis no que diz res-
peito ao direito à vida. A história da humanidade o revela, mor-
mente as agruras do nazismo. Curiosamente, a legislação
nazista excepcionou a proibição do aborto, desde que a letali-
dade recaísse sobre pessoas não pertencentes ao povo alemão,
exatamente como forma de conter a multiplicação social de pes-
soas tidas como indesejáveis por Adolf Hitler. É o que se colhe
dos escritos de Hans Welzel (1951, p. 12):
33
Discorrendo a respeito do raciocínio utilitarista no abortamento,
pondera Ives Gandra Martins (destacamos):
19Nas palavras de Kant, citado por Ingo Wolfgang Sarlet: No reino dos fins tudo tem
ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em
vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de
todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade [...] Esta
apreciação dá pois a conhecer como dignidade o valor de uma tal disposição de
espírito e põe-na infinitamente acima de todo o preço. Nunca ela poderia ser posta
em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse um preço, sem de qualquer
modo ferir sua santidade (SARLET, 2012, posição 547 – Kindle Edition).
34
aborto, que resvala no que se tem convencionado chamar de de-
sacordo moral. Vozes autorizadas se posicionaram pela proteção
intransigente do direito à vida intrauterina, a exemplo de Cláudio
Lemos Fonteles e Antonio Fernando Barros e Silva de Souza,
membros que já ocuparam o cargo de Procurador Geral da Re-
pública. Diversamente, Deborah Macedo Duprat de Brito Pereira,
também na condição de Procuradora-Geral da República, exarou
parecer favorável ao abortamento de fetos anencefálicos, las-
treado nos direitos reprodutivos da mulher20. Ainda que houvesse
uma posição unânime no Ministério Público sobre esse tema tão
controverso, à luz da independência funcional, os membros do
parquet continuariam livres para uma manifestação conforme os
ditames de suas consciências jurídicas. Todavia, essa liberdade
não deve ser desvirtuada como um cheque em branco para que
atuem ao arrepio da lei que juraram (fazer) cumprir.
Como fiel guardião da ordem jurídica, cabe ao presen-
tante do Ministério Público fazer valer o ordenamento jurídico em
vigor, tal como democraticamente elaborado, não devendo aven-
turar-se na tentativa de corrigi-lo para adequá-lo ao seu senti-
mento pessoal ideológico21. Lembramos, pois, do princípio das
razões públicas (John Rawls). Ou seja, mesmo que o promotor
de justiça ou procurador da república carregue consigo a ideolo-
gia de que o aborto não deveria ser criminalizado, o fato é que o
foi. Bem ou mal, doa a quem doer, no Brasil, em regra, o aborto
é crime. Para autores como Ingo Sarlet, nada impediria a sua
descriminalização, não obstante, a conduta atualmente está tipi-
ficada, realidade perante a qual todos devem se curvar. Logo,
20 ADPF n. 54.
21No passado, em um momento de autocontenção, o Superior Tribunal de Justiça
já assinalou: “3. A legislação penal e a própria Constituição Federal, como é sabido
e consabido, tutelam a vida como bem maior a ser preservado. As hipóteses em
que se admite atentar contra ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se
interpretação extensiva, tampouco analogia in malam partem. Há de prevalecer,
nesse casos, o princípio da reserva legal. 4. O Legislador eximiu-se de incluir no rol
das hipóteses autorizativas do aborto, previstas no art. 128 do Código Penal, o caso
descrito nos presentes autos. O máximo que podem fazer os defensores da conduta
proposta é lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado, intérprete da Lei,
que se lhe acrescente mais uma hipótese que fora excluída de forma propositada
pelo Legislador” (HC n. 32.159/RJ, j. em 22/03/2004).
35
guardando-se fidelidade à lei, a regra é que, na jurisdição volun-
tária, o parecer ministerial seja desfavorável à pretensão de eli-
minar a vida intrauterina, seja pela impossibilidade jurídica do
pedido (v.g. abortamentos eugênicos, a exemplo da microcefalia),
seja porque, a despeito de amoldar-se às exceções legais, falece
ao postulante o interesse de agir (afinal, como regra, as hipóteses
autorizadas pelo ordenamento dispensam autorização judicial).
Sobrevindo fundada dúvida quanto ao caso concreto ou, con-
quanto nítido, diante de infundada recusa médica, cabe ao Ministé-
rio Público aderir à pretensão deduzida, quando inequivocamente
lastreada nas hipóteses do Código Penal ou na exata situação
da ADPF n. 54 (não em hipóteses aproximadas). Fora dessas hi-
póteses, o parecer ministerial favorável será contra legem e, por-
tanto, desaconselhável (para não dizer juridicamente
equivocado). Todo cuidado é pouco, porque, em alguns casos,
não é dado ao membro do Ministério Público o direito humano
de errar, sobretudo quando esse erro humano aniquila outro ser
humano. É impossível, nesse caso, restituir o status quo.
Quando o assunto é aborto, não se admitem erros.
36
REFERÊNCIAS
FIUZA, César. Direito Civil. Curso Completo. 18. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2016.
FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina Legal. 10. ed. Rio de Ja-
neiro: GEN Guanabara Koogan, 2015.
37
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15. ed. São
Paulo: Atlas, 2004.
38
João Carlos Leal Júnior*
Resumo:
Com a promulgação da Emenda Constitucional n. 45/04, o direito à
razoável duração do processo foi incluído, sob a forma de norma prin-
cipiológica, no rol de direitos fundamentais da Constituição brasileira.
O desígnio do constituinte foi alcançar celeridade no trâmite do pro-
cesso, o qual, por sua vez, constitui instrumento para concretização
de direitos. A realização do princípio em questão é essencial para o
real acesso à ordem jurídica justa, imperativo igualmente de assento
constitucional. Todavia, no cenário brasileiro contemporâneo, o que
se tem, em verdade, é indiscutível lentidão no trâmite processual, o
que causa desprestígio ao Judiciário e macula o fundamento existen-
cial da tutela pretendida, porquanto sua duração desarrazoada, oca-
sionalmente, tem o condão de permitir o fenecimento do bem da vida
pleiteado. No âmbito empresarial, os impactos da morosidade da res-
posta estatal são incomensuráveis, representando prejuízo para as
empresas e para os interesses que para elas convergem, além de
gerar óbices para a inserção do país no mercado global, objetivo tão
almejado na contemporaneidade. A incorporação de elementos e téc-
nicas existentes no sistema processual inglês pode se mostrar útil
na agilização procedimental e consequente mitigação dos impactos
em comento.
39
Abstract:
By the promulgation of constitutional amendment 45/04, the right to a
reasonable duration of proceedings has been included, as a principle,
among the fundamental rights of Brazilian Federal Constitution. The
constitutional intent was to mitigate the delay in the duration of proce-
dure, which, in its turn, is an instrument to concrete rights. The reali-
zation of that principle is essential to a real access to justice, equally
a constitutional imperative. However, there is, currently, in Brazil, in
fact, an indubitable delay in the procedures duration, which causes
discredit to the Judiciary and stains the existential basis of the intended
protection, since its unreasonable duration, occasionally, has the effect
of causing the extinction of the good sought. Within business context,
the impacts of judicial delay are incommensurate, representing da-
mage to companies and to the interests that converge to it, besides
generating obstacles for the country’s insertion in the global market.
The incorporation of elements and techniques available in English
procedure system may be helpful in procedural speeding up and con-
sequent mitigation of the impacts in discussion.
Resumen:
Con la promulgación de la Enmienda Constitucional N. 45/04, se in-
cluyó el derecho a la duración razonable del procedimiento, en forma
de principio, a la lista de derechos fundamentales de la Constitución
brasileña. El objetivo era lograr el rápido procesamiento del proceso,
lo que, a su vez, es el instrumento para la realización de los derechos.
La aplicación del principio es esencial para un verdadero acceso a la
justicia, también de asiento constitucional. Sin embargo, en la sociedad
brasileña contemporánea, hay, de hecho, indiscutible lentitud del pro-
cedimiento, lo que provoca el descrédito al poder judicial y socava el
fundamento existencial de la protección deseada, debido a su duración
irrazonable de vez en cuando tiene el poder para permitir la pérdida
del bien de la vida que se reivindica. En el contexto empresarial, el im-
pacto de la lenta respuesta del estado és inconmensurable, lo que re-
presenta el daño a las empresas y los intereses que convergen a la
misma, y generan obstáculos para la inserción del país en el mercado
mundial. La incorporación de elementos y técnicas existentes en el
sistema procesal inglés puede resultar útil en la agilización del proce-
dimiento y la consiguiente mitigación de los impactos en discusión.
40
Palavras-chave:
Razoável duração do processo; acesso à justiça; negócios empre-
sariais; processo civil inglês.
Keywords:
Reasonable duration of procedures; access to justice; corporate
business; English civil procedure.
Palabras clave:
Duración razonable del proceso; acceso a la justicia; negocios cor-
porativos ; proceso civil inglés.
INTRODUÇÃO
41
lhe sejam reconhecidos pela Constituição ou pela lei.
Vislumbra-se nesse espaço, então, direitos humanos impo-
sitivos que trouxeram os contornos do acesso à justiça, ou acesso à
ordem jurídica justa, incorporado como direito fundamental na Cons-
tituição brasileira de 1988. Do ponto de vista do direito internacional,
o sistema de codificação dos direitos e o estabelecimento dos me-
canismos de controle buscam consagrar uma ordem pública global
centrada na ideia de direitos humanos para garanti-los na realidade
de cada país. Assim, “la preocupación por la situación de los indivi-
duos pasa a ser un tema de interés para toda la comunidad interna-
cional y escapa de los límites de la soberanía de los Estados”
(ROJAS, 2008).
O acesso à justiça, então, é tido como direito humano e fun-
damental, na medida em que é garantido por documentos interna-
cionais dos quais o Estado brasileiro é signatário, assim como pela
Constituição de 1988, razão pela qual esforços devem ser feitos para
que seja efetivado, deixando de constituir mero texto normativo.
Entretanto, a morosidade do Poder Judiciário brasileiro se
coloca como fator impeditivo da efetivação do acesso à ordem jurí-
dica justa. Sem embargo da inovadora previsão do direito à razoável
duração do processo e das frequentes reformas processuais em vis-
tas à sua implementação, o que se tem no cenário brasileiro con-
temporâneo é uma infinidade de processos judiciais, especialmente
de natureza civil, para serem julgados por juízes e tribunais insufi-
cientes à demanda existente.
Não bastasse isso, em controvérsias relacionadas a negó-
cios empresariais, a demora na pacificação do conflito gera drásticas
repercussões, especialmente de cunho econômico, o que é prejudi-
cial à inserção do país no mercado global. Há negócios jurídicos que
serão eficientes se realizados em razoável tempo, sob pena de pre-
juízos que podem, inclusive, desestabilizar a empresa e seus efeitos
negativos atingirem interesses públicos. Nesse sentido, devem ser
empreendidas reformas voltadas à diminuição da demasiada dura-
ção processual e à consectária concessão de tutela jurisdicional à
parte em tempo razoável, de forma a superar esses impactos nega-
tivos, que serão analisados neste estudo.
O sistema processual civil inglês será utilizado como
paradigma no que tange à celeridade e à efetividade da tutela
42
jurisdicional, notadamente após o advento das “Civil Procedure
Rules”, na busca de serem incorporadas no cenário brasileiro
proficuidades agora lá existentes.
1“XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito [...]”.
2Tão corriqueiramente desrespeitados na contemporaneidade, o que impõe especial
preocupação do Estado, por meio de suas três funções básicas, na busca de soluções
para tanto.
43
forma que a lesão deve ser prevenida (BUENO, 2010).
Desse modo, para que esta meta constitucional seja atin-
gida na sede ordinária de resolução de conflitos - a Jurisdição -,
impõe-se que o processo judicial se desenrole mediante cogni-
ção adequada e que tenha razoável duração em seu trâmite, evi-
tando o perecimento do direito, acarretado pela morosidade da
prestação jurisdicional.
Reconhece-se, dessa feita, o caráter instrumental do pro-
cesso, como instituto voltado à realização da justiça (BEDAQUE,
2011) e coloca-se, consequentemente, a função social do pro-
cesso como estandarte da revolução instrumentalizadora, que
redefiniu os contornos axiológicos procedimentais, a fim de con-
ferir ao processo a posição de ferramenta para a concretização
da justiça, viabilizando que o Estado cumpra seu dever de dirimir
conflitos de interesses e promover a pacificação social, despren-
dendo-se de formalismos sobejos e da irracional busca de exau-
rimento probatório, sob o risco de fenecimento do direito.
A patente lentidão do Poder Judiciário brasileiro é maté-
ria de discussão exaustiva na doutrina, assim como a necessi-
dade de conjugação de medidas para a efetivação dos direitos
buscados judicialmente, sendo insofismável que um processo
que se estende por anos não compraz a nenhuma das partes li-
tigantes, gerando insegurança e desprestigiando o sistema legal.
O acesso à justiça ganha importância capital nesse contexto, en-
carado modernamente como direito humano fundamental e im-
prescindível a um sistema jurídico de vanguarda que pretenda
efetivar, “e não apenas proclamar os direitos de todos” (CAPPEL-
LETTI; GARTH, 1988, p.12). Esse enfoque atual é a nota carac-
terística do estudo do processo civil contemporâneo.
O direito fundamental em apreço constitui o ponto fulcral
do princípio da dignidade da pessoa humana, porque essencial
para a concretização dos demais direitos quando obstaculizados.
Em virtude de seu realce, pode ser concebido como a base da
processualística moderna.
Tem-se, então, que o acesso à justiça não se limita à di-
mensão puramente formal. Ao revés, propugna pela “efetividade
dos direitos materiais e a concretização das garantias processuais
constitucionais” (PAROSKI, 2006, p.226), de forma que seja
44
concedida concretamente a tutela jurisdicional adequada, tem-
pestiva e efetiva ao litigante cuja razão o ordenamento jurídico
reconhecer.
Enfim, efetividade, adequação e tempestividade são qua-
litativos imprescindíveis ao provimento jurisdicional para que se
concretize substancial acesso à ordem jurídica justa.
aos prazos processuais contidos em lei; a portuguesa, em seu artigo 20, itens 4 e 5, de-
termina que as decisões sejam proferidas em prazo razoável, devendo os procedimen-
tos judiciais pautarem-se por celeridade e prioridade. Os Estados Unidos, por seu turno,
têm, em sua Constituição, após inclusão da 6ª emenda, a determinação da chamada
cláusula de julgamento rápido – ou speedy trial clause, no idioma pátrio –, que garante
o direito subjetivo do indivíduo à jurisdição célere. A carta italiana (art. 111) impõe que a
lei assegure a “ragionevole durata del processo”. A Constituição Espanhola (art. 24, 2)
exige “proceso público sin dilaciones indebidas”, respeitadas todas as garantias consti-
tucionais processuais. Finalmente, a Constituição da Venezuela de 1999, em seu artigo
49, 3, prevê que “toda persona tiene derecho a ser oída en cualquier clase de
proceso, con las debidas garantías y dentro del plazo razonable determinado
45
A busca pela efetividade do processo em prol de sua mis-
são social de eliminar conflitos e fazer justiça é algo inegável. A
doutrina é expressa em considerar insuficiente a garantia do
acesso ao Judiciário, exigindo, mais que isso, que a tutela jurisdi-
cional dê-se em prazo razoável para que seja possível a realização
do valor justiça. Nesse sentido, entende-se que o arcabouço cons-
titucionalmente assegurado de direitos e garantias individuais já
contemplava implicitamente essa regra em variadas normas, es-
pecialmente as que consagram os princípios do acesso à justiça
e do devido processo legal5, visto que o cumprimento efetivo do
que promovem pressupõe, inelutavelmente, a eficácia e a insepa-
rável tempestividade da apreciação judicial do que se pleiteia.
Nesse sentido, o artigo 125 do CPC/73, ora revogado,
ao disciplinar os poderes do juiz, já previa como seu poder-dever
“velar pela rápida solução do litígio” (inciso II)6. De toda sorte,
com a previsão constitucional explícita ocorrida, houve maior so-
lidez desse direito7, eliminando eventuais dissídios doutrinários
subsistentes, tornando, enfim, irrefutavelmente obrigatória a
46
prestação jurisdicional em prazo razoável, e submetendo o direito
em questão ao regime jurídico8 que detêm os demais direitos fu-
namentais, contidos no artigo 5º da Constituição.
A concepção de “razoável duração” repele tanto o atraso
da prestação quanto a rapidez anormal, idônea a prejudicar o di-
reito fundamental ao devido processo constitucional.
Trata-se de tempo adequado a solucionar, com justiça, o
conflito levado a juízo. Nesse sentido, Hoffman (2005) aponta ser
“imprescindível que o processo tenha uma certa duração, maior do
que aquela que as partes desejam”, porquanto o Estado deve asse-
gurar aos litigantes o devido processo constitucional, a ampla defesa
e o contraditório. Nada justifica e ampara, todavia, a interminável es-
pera causada pela tormentosa duração do processo a que os cida-
dãos brasileiros se veem, via de regra, submetidos “e da qual, ao
final, resta sempre a sensação de injustiça” (HOFFMAN, 2005).
A duração exagerada, acima do que seria suficiente à
adequada cognição do magistrado, é, agora, de forma expressa,
constitucionalmente proscrita.
47
impõe-se ponderação para que o deslinde processual não supere
os limites do razoável, já que a eficácia do provimento, invaria-
velmente, guarda relação com a celeridade de todo o conjunto
de atos processuais (LEAL JÚNIOR; MACHADO, 2010).
Esse entendimento já havia sido firmado em oportuni-
dade anterior (LEAL JÚNIOR; MACHADO, 2010), não se vincu-
lando a razoável duração à instantaneidade de julgamento9. Ao
contrário, a própria expressão torna claro não ser esse seu obje-
tivo. Abrir mão do contraditório, do due process ou de outro prin-
cípio processual de igual quilate tão somente geraria injustiça aos
litigantes e, em um plano maior, prejuízo à sociedade – contra-
riando, inegavelmente, o significado do vocábulo “razoável”. Não
se pode esquecer, entretanto, que a norma garantidora da razoá-
vel duração do processo assegura, ademais, os meios que ga-
rantam a celeridade de sua tramitação.
Um processo com duração de tempo razoável é um pro-
cesso em que há celeridade suficiente para tanto. Isso porque
são situações, em sua maioria, de extrema importância para ao
menos um dos envolvidos. E o retardamento na definição delas
perpetua a insegurança, a incerteza, a angústia e o conflito, razão
pela qual a celeridade deve ser buscada.
Quando se fala em razoável duração do processo e ce-
leridade de sua tramitação quer-se, indubitavelmente, a supera-
ção da morosidade endêmica verificada no Brasil, causada por
uma vasta gama de motivos, os quais devem ser tratados.
é dever do julgador ter papel ativo no que concerne ao
zelo pelo cumprimento dos direitos fundamentais, o que equivale,
in casu, à ausência de morosidade na entrega da prestação ju-
risdicional. A lentidão verificada no Poder Judiciário cai no con-
ceito de serviço público ineficiente, configurando verdadeira
mazela social, tendo em vista que provoca danos econômicos e
favorece a especulação e a insolvência, situações indesejadas
em qualquer país – trata-se dos denominados “danos marginais”
ocasionados pela demora processual10. Igualmente, acentua a
9 Equívoca, nesse sentido, portanto, a interpretação feita por Marins (2011) de estudo
48
discriminação entre os que têm a possibilidade de aguardar e os
que, esperando, têm tudo a perder.
49
de grande monta –, como também custos que não são passíveis
de avaliação econômica. Angústia, preocupações, incerteza e in-
segurança resultam da demora processual e, apesar destes ele-
mentos não serem economicamente apreciáveis, em muitas
vezes, representam maior gravame para as partes do que os pre-
juízos financeiros que estão sendo ocasionados pela demora.
No que tange a essa diversificada gama de custos ou-
tros, José Augusto Delgado (2003, p.10), com acerto, aponta que
mesmo os advogados, ao levarem seus casos aos tribunais, sub-
metem-se a uma controvérsia “aparentemente infinda, de alta
tortura”, cenário que também o é para os demais envolvidos no
caso, como o juiz, e, especialmente, para as partes. Isso porque
“o processo é uma representação material do sofrimento das par-
tes em função da demora, do que ele contém e do que reflete”
(DELGADO, 2003, p.10).
Prossegue o autor11:
Dispensa digressões o seguinte trecho, trazido por José Augusto Delgado, de autoria de
11
Benjamin Franklin: “em minhas viagens, uma vez vi um cartaz chamado ‘Os dois homens
da lei’. Um deles estava pintado de um lado do cartaz, numa postura melancólica, coberto
de farrapos, segurando um pergaminho que dizia: ‘Perdi minha causa’. O outro estava de-
senhado saltitando de alegria, do outro lado do quadro, com as palavras: ‘Ganhei meu pro-
cesso’. [...] O homem derrotado estava triste e pobre; o vitorioso, alegre, mas estava
nu em pêlo (sic), quer dizer, sem a prestação jurisdicional. A demora do processo e
as dores por ele deixadas foram tão grandes que, embora aparentemente houvesse
um vencedor, ambos eram vencidos [grifo nosso]” (DELGADO, 2003, p.11).
50
espera por uma decisão definitiva gera elevado custo para os en-
volvidos, porque privados dos bens ou direitos sub judice “du-
rante todos os anos que precedem o efetivo cumprimento da
decisão transitada em julgado. Nesse caso, as partes arcam com
o custo de oportunidade decorrente da privação dos bens e di-
reitos disputados em Juízo” (PUGLIESE; SALAMA, 2008, p.20).
De acordo com magistrados entrevistados em estudo empí-
rico realizado, a morosidade é reconhecida como o principal problema
do Judiciário, bem como o alto custo de acesso (custas judiciais e ou-
tros custos), vindo em segundo, seguido pela falta de previsibilidade
das decisões judiciais (PUGLIESE; SALAMA, 2008, p.43).
Nessa mesma vereda, em pesquisa realizada com o de-
partamento jurídico de empresas que atuam em setores diversos,
o Judiciário dos Estados recebeu baixíssimas notas de 47% dos
entrevistados no que concerne ao quesito agilidade, tanto em re-
lação ao 1º quanto ao 2º grau (CONSELHO NACIONAL DE JUS-
TIÇA, 2011, p.45-46). A pesquisa reflete a insatisfação dos
empresários com a Justiça brasileira, o que acaba por interferir
na celebração de contratos de vulto envolvendo partes de outros
países, já que a demora gera cenário de insegurança jurídica, na
medida em que um direito violado não reparado de forma tem-
pestiva equivale à perpetuação da lesão. Assim, os impactos eco-
nômicos são grandes, e estudos interdisciplinares entre direito e
economia neste ponto mostram-se cruciais.
Segundo relatório elaborado pelo Conselho Nacional de
Justiça, ingressaram na Justiça Estadual, em 2010, 17,7 milhões
de processos. O grupo dos maiores tribunais formado por São
Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul res-
ponde por 62% dos casos novos. “No 2º grupo composto por
onze tribunais de médio porte ingressaram 28% dos processos
da Justiça Comum ao passo que no 3º grupo, com doze tribunais,
iniciaram apenas 10% do total de casos novos no período [...]”
(CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2011, p.36).
Durante o ano de 2010, tramitaram em torno de 61,8 mi-
lhões de processos na primeira instância, “dos quais 46,3 milhões
(75%) já estavam pendentes de baixa desde o início do ano, e 15,5
(25%) ingressaram naquele ano [...]” (CONSELHO NACIONAL DE
JUSTIÇA, 2011, p.55).
51
Adiciona-se a isso a verificação de que,
52
jurídico e a consecução de resultados econômicos. As instituições, por
seus efeitos sobre os custos de troca e produção, afetam decisiva-
mente a performance econômica e, juntamente com a tecnologia em-
pregada, elas, as instituições, determinam os custos de transação e
transformação que formam os custos totais da atividade econômica em
determinado ambiente [...].
53
detalhada especificação de que o pagamento também inclui a remu-
neração do capital; torna-se necessário que o judiciário seja eficiente,
independente, ágil permitindo o devido respeito e cumprimento do
contrato firmado. [...] (ADORNO; PASINATO, 2007).
54
empresariais e aquele onde são tomadas as decisões judiciais é utilizada
como motivo para questionamento da efetividade processual nesta área.
Tem-se considerado como mais eficaz, até onde seja possível, submeter
as decisões de investidores, gerentes e diretores ao julgamento do pró-
prio mercado que ao Poder Judiciário (RODRIGUES, 2010).
55
demasia os interesses de todos os envolvidos – sejam credores,
devedor, Poder Público ou terceiros (LEAL JÚNIOR, 2015).
A apreciação e a decisão do Poder Judiciário em tempo ra-
zoável é essencial para que seja possível cogitar da recuperação
do agente econômico. E mesmo na decretação da falência, a de-
mora processual é prejudicial aos credores, privados de seus crédi-
tos, ainda que não seja possível recebê-los de forma integral.
Enfim, seja a situação que for, tem-se que prejudicando
as empresas12, que são agentes econômicos, o prejuízo às eco-
nomias dos países envolvidos é indiscutível, eis que a mera ciên-
cia da morosidade processual já é fator possível de espantar
investidores externos no espaço brasileiro.
12Nesse particular, é curial destacar o importante papel alcançado pela empresa no Es-
tado contemporâneo. Essa autoridade, porém, não se limita ao território do país em que
se localiza. Ao revés, a empresa, na atualidade, ocupa papel fundamental no cenário
internacional, encontrando-se sua performance imbricada com o fenômeno da globali-
zação, por constituir, ao mesmo tempo, causa e efeito daquele. O comércio internacional,
neste sentido, é prática decorrente desta conjuntura. Reconhece-se, então, o papel da
empresa como mola propulsora da economia dos Estados, já que promove a circulação
de riquezas, oportuniza empregos e pagamento de tributos, oferece mercadorias e ser-
viços à população, além de proporcionar a concorrência, gerando conveniências aos
consumidores, à sociedade e ao Estado, seja de forma direta ou não, fomentando, de-
mais disso, a inovação tecnológica.
56
economia brasileira. Assim sendo, solucionar a mazela da mo-
rosidade processual é necessidade premente, especialmente no
que tange ao contexto econômico.
O modelo processual civil brasileiro é alvo de críticas de di-
versas ordens, notadamente no que se refere à demora processual,
à grande quantidade de recursos facultados aos litigantes e à or-
dinarização do procedimento, eminentemente delongado e des-
prestigiador das características específicas dos direitos buscados.
Nesse passo, segundo Cruz e Tucci (1998, p.27), o pro-
cesso deve, na medida do possível, desenvolver-se mediante um
procedimento célere, “a fim de que a tutela jurisdicional emerja
realmente oportuna e efetiva”. A ideia de efetividade do pro-
cesso13, de fato, está intrinsecamente associada à razoabilidade
da duração do feito. E por essa última expressão deve-se enten-
der o tempo adequado à solução justa do conflito, sem qualquer
dilação maior que não se volte única e exclusivamente para a ob-
tenção dessa meta.
Quer-se, então, um julgamento célere, sem dilações in-
devidas. Não se cuida de rapidez em sentido pejorativo, isto é,
com desmazelo. é essencial certo tempo para a adequada de-
fesa ser preparada, para as provas pertinentes serem produzi-
das, assim como para o conjunto de dados processuais ser
cautelosamente analisado, cabendo lembrar que o juiz lida com
uma infinidade de processos simultaneamente, não podendo de-
dicar-se apenas a um de cada vez.
Enfim, não se defende prestação imediata de tutela, sem
análise das alegações e das provas, adequadamente produzidas
na instrução. Reconhece-se que a precipitação ofende as garan-
tias processuais constitucionais. Por óbvio, exige-se tempo para
conciliar os valores em jogo no processo e as implicações que
advêm de uma sentença, a partir da produção de seus efeitos. Mas
esse tempo, como se aponta, não deve ultrapassar o razoável.
Assim, é importante desafio do Estado brasileiro con-
temporâneo a superação da notória morosidade verificada no
exercício da função judicante. O Poder Público e a sociedade
57
devem envidar esforços para tanto.
Nessa senda, o juiz, por exemplo, condutor do processo,
tem o poder-dever de assegurar sua trajetória regular, e atuar de
maneira a impedir retardamentos desnecessários, reprimindo com-
portamentos abusivos dos litigantes e de qualquer outro envolvido,
ordenando de ofício diligências que julgue essenciais à elucidação
da causa e indeferindo as de propósito manifestamente protelatório
(TUCCI, 1998, p.35-36). Cabe ao magistrado, demais disso, aplicar
punição a atuações meramente procrastinatórias, de qualquer das
partes ou terceiros que venham a atuar no decurso do feito.
Deve, igualmente, haver controle, por meio do julgador,
de corregedorias e da própria sociedade civil14, de condutas ne-
gligentes e omissivas de auxiliares e serventuários da justiça, que
resultem em injustificável retardo processual. Urge que multas e
sanções já previstas em lei passem a ser efetivamente aplicadas,
quando cabíveis. Como exemplos, podem ser ventiladas, dentre
outras, as seguintes previsões do novo Código de Processo Civil:
artigo 77,§ 2º; artigo 81; artigo 234, § 2º; artigo 258; e artigo 468,
§1º. Nesse sentido, no capítulo do Código de Processo relativo
aos “deveres das partes e dos seus procuradores”, é disciplinada
a responsabilidade das partes por dano processual: aquele que
pleitear de má-fé como autor, réu ou interveniente, segundo o ar-
tigo 79, responderá por perdas e danos. A dedução de pretensão
ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; a
alteração da verdade dos fatos; a resistência injustificada ao an-
damento do processo; a provocação de incidentes manifesta-
mente infundados e a interposição de recurso com intuito
manifestamente protelatório, dentre outras condutas, enqua-
dram-se na definição de litigância de má-fé, que enseja a res-
ponsabilidade aludida, além de multa.
Conforme o supracitado artigo 81 (caput e §§), o julgador,
de ofício, condenará o litigante de má-fé a pagar multa, que de-
verá ser superior a um por cento e inferior a dez por cento do valor
corrigido da causa, e a indenizar a parte contrária dos prejuízos
que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e todas as des-
pesas que efetuou. O valor da indenização15 será desde logo
14 Observando e relatando ao juiz, quando isso ocorra.
15 Acertadamente, não previu o NCPC a limitação de 20% existente no CPC/73.
58
fixado pelo juiz, ou, caso não seja possível mensurá-lo, liquidado
por arbitramento ou pelo procedimento comum. Sempre que o
julgador se deparar com uma situação dessas, deverá ocorrer a
aplicação desse instrumento concedido pelo legislador em ho-
menagem à licitude, à honestidade e à boa-fé processual, valores
essenciais à realização do acesso à justiça e à concretização da
duração razoável do processo (LEAL JÚNIOR, 2015)16.
De todo modo, sabe-se que o sistema processual civil
pátrio é construído sobre o chamado “procedimento comum”, ri-
gidamente estruturado dentro da garantia do devido processo
legal e caracterizado pelo contraditório prévio e seu esgotamento,
o que é inegavelmente fruto de ideologia privilegiadora da segu-
rança jurídica em detrimento da justiça. Assim, há mais apreço
pela atividade declaratória dos direitos postos em litígio do que
pela sua efetiva proteção e efetivação.
O processo civil inglês, por sua vez, especificamente
após a edição das “Civil Procedure Rules” (CPR), em 1999, pode
ser tido como paradigma de valorização da atividade da figura do
magistrado. O ordenamento civil processual britânico está cen-
trado no aumento dos poderes judiciais na condução do processo,
no sentido de franquear ao juiz o gerenciamento da causa17, com
a fixação de técnicas nessa vereda pela lei e que consistiriam em:
i) estímulo à cooperação mútua das partes na condução do processo;
ção dos poderes do juiz na condução do processo, para que o direcionamento da sua
marcha não fique à mercê das partes e, ainda, para permitir ao juiz a adaptação do pro-
cedimento ao caso concreto” (ANDRADE, 2011, p.176).
59
ii) identificação de plano das questões postas em juízo; iii) separação
das questões segundo a profundidade da cognição exigida para sua
decisão e determinação da ordem em que serão resolvidas; iv) pri-
vilégio das soluções alternativas e amigáveis ao conflito; v) auxílio
às partes para resolver parcela ou a totalidade do conflito; planifi-
cação antecipada do andamento processual; vi) verificação dos
custos das providências necessárias ao deslinde da demanda
antes de sua determinação; vii) e concentração do conhecimento
das questões envolvidas na causa e redução da necessidade do
comparecimento das partes em juízo para a prática dos atos de
análise daquelas mesmas questões (ALMEIDA, 2011).
O rol de poderes-deveres judiciais retromencionado inte-
gra a regra 1.4 das CPR e é complementado por outras regras,
especialmente a 3.1, cujo conteúdo é meramente exemplifica-
tivo18. Ou seja, outros poderes podem ser exercidos pelo magis-
trado, desde que voltados ao alcance do denominado “overriding
objective” (objetivo preponderante), previsto na regra 1.1 do
mesmo diploma. E seu objetivo preponderante é a viabilização da
solução dos conflitos de interesse com justiça. Para tanto, impõe
as seguintes diretrizes: i) assegurar que as partes estejam em
iguais condições de disputa; ii) evitar despesas desnecessárias;
iii) lidar com os casos de forma proporcional em relação a sua im-
portância, complexidade das questões, valores envolvidos e con-
dições financeiras das partes; iv) assegurar que as ações se
processem com celeridade e justiça; e v) distribuir em cada caso
os recursos do tribunal de forma equilibrada, levando em conta a
existência de outros litígios (LEAL JÚNIOR, 2015).
Aspecto interessante é que, até a entrada em vigor das
CPR, o processo civil inglês pautava-se pelo princípio do controle
das partes, caracterizado pela mínima atuação do julgador na
instrução do processo. Isso se devia à filiação do direito inglês
ao “adversarial system”19, posto se tratar de Estado em que vige
18 Nesse particular, a regra 3.1, sob a rubrica “The court’s general powers of management”,
preceitua, em seu item 2.m que “the court may […] take any other step or make any other
order for the purpose of managing the case and furthering the overriding objective.”
19 Consoante a lição de Teresa Arruda Alvim Wambier, “o processo adversarial é aquele
em que as partes ficam, sobretudo, uma contra a outra, desempenhando o juiz um papel
mais passivo. Cabe quase que exclusivamente às partes [...] o controle do processo”
(WAMBIER, 2009, p.17)
60
o sistema da common law. O fenômeno resulta de processo na-
tural de aproximação entre os sistemas da civil law e da common
law – algo saudável, na medida em que viabiliza real aproveita-
mento das proficuidades existentes em cada um deles.
Desse modo, sob a égide das CPR, as partes perderam
grande parcela do poder quanto ao desenvolvimento do processo,
que foi passado, por seu turno, aos magistrados. A promulgação
desse diploma constituiu revolução no direito inglês, já que se
teve, em verdade, também, a criação de verdadeiro código de pro-
cesso civil, em país com tradição de direito eminentemente cos-
tumeiro. Romperam-se, assim, dois arraigados paradigmas lá
existentes. Sua origem deu-se em virtude de relatórios elaborados
por Lord Woolf, na busca de soluções para os problemas verifi-
cados no processo civil inglês, à época reconhecidamente cus-
toso, complexo e patologicamente lento, o que gerava impactos
no acesso à justiça (TURNER apud ALMEIDA, 2011).
A esse respeito, Almeida (2011) assevera que o principal
objetivo da reforma processual inglesa de 1999 fulcrou-se na mu-
dança de mãos da gestão do tempo e dos atos do processo dos
advogados/partes para as mãos dos juízes, e que isso somente
foi possível mediante alteração cultural do arraigado sistema ad-
versarial do direito processual inglês para um sistema que agora
prima pela cooperação dos envolvidos no processo. As CPR dis-
ciplinam esses poderes, na verdade, como deveres do Judiciário
(“Court’s duty to manage cases”, conforme regra 1.4), e possuem
maior amplitude mesmo que os existentes em países de tradição
inquisitorial, como o Brasil20.
No gerenciamento, os juízes conhecem dos casos com
maior rapidez e negociam com as partes as fases do procedimento.
Esse último aspecto, que atende os princípios do contraditório e
da segurança jurídica21, pode colaborar na redução de eventual
frustração da(s) parte(s), já que se sentem mais participantes no
61
desenvolvimento processual e, consequentemente, na formação
da cognição judicial (TAVARES, 2011, p.149). Tem-se, então, o
seguinte panorama: o juiz, por meio da gestão da causa, tem a
possibilidade de flexibilizar o procedimento, de sorte a adaptá-lo
ao que exige o direito material em discussão. Com isso, há maior
participação das partes – ouvidas sobre as alterações rituais –,
a cognição é otimizada e a duração processual acaba por ser
mais adequada ao que o conhecimento da causa exige. No que
concerne a lides empresariais, os resultados positivos para o em-
presariado são inegáveis: duração mais curta, resultados mais
acertados e maior segurança, decorrente da diminuição do tempo
em que será prestada a tutela jurisdicional.
Nessa trilha, as três funções precípuas da gestão do pro-
cesso, conduzida pelo juiz, podem ser assim colocadas: i) enco-
rajar as partes a se empenharem, conjuntamente, pela busca da
justiça – e não como adversários ferrenhos; ii) evitar que o pro-
cesso tramite de maneira lenta e ineficaz; e iii) garantir que os
recursos do Judiciário sejam utilizados de maneira razoável e
proporcional (ANDREWS, 2009).
O direito inglês, ademais, impõe que os envolvidos,
sejam partes, advogados ou mesmo peritos, por exemplo, com-
prometam-se com a busca pela verdade e pela justiça em todos
os momentos. A postura acenada guarda direta relação com a
severidade das sanções impostas àqueles que descumprem este
dever (ANDREWS, 2009).
As “Civil Procedure Rules” tiveram por meta tornar o pro-
cesso civil inglês mais célere, menos dispendioso e efetivo (pro-
curando-se, com isso, afastar a insatisfação social que até então
se observava). O direito inglês, dessarte, passou a ostentar uma
tônica próxima da Civil Law e contrária à visão do sistema adver-
sarial, por meio do qual o juiz, assim como ocorre nos Estados
Unidos, tem uma posição mais distante. Com efeito, nos termos
da legislação inglesa, agora, expressamente incumbe ao juiz
uma postura mais reguladora e condutora dos rumos do pro-
cesso (CARPENA, 2010).
As regras processuais inglesas, assim sendo, expressamente
arrolam uma série de medidas que bem demonstram atualmente,
de forma exemplificativa, os poderes do juiz naquele país. é a
62
regra n. 3.1, já aludida, que registra caber ao juiz: i) dilatar ou en-
curtar prazos; ii) adiar ou antecipar audiências; iii) ordenar à parte
ou ao seu advogado que compareça ao tribunal; iv) determinar a
produção de prova por telefone ou pelo uso de qualquer outro
método de comunicação oral direta, durante uma audiência; v)
determinar que se processe em separado parte da matéria liti-
giosa; vi) suspender total ou parcialmente o processo, dentre ou-
tras. Infere-se, portanto, o poder-dever recebido pelo magistrado
para conduzir adequadamente o processo, em busca de celeri-
dade e adequação procedimental, de forma a ser concedida tu-
tela jurisdicional efetiva, adequada e tempestiva.
Não bastasse isso, o sistema processual civil inglês dá
prioridade absoluta para as chamadas “alternative dispute reso-
lution” (ADR), isto é, os meios alternativos de solução de confli-
tos, o que faz com que haja drástica diminuição do número de
processos tramitando no Poder Judiciário22. Nesse sentido, logo
no início das CPR, prevê-se, internamente ao dever gerencial do
juiz, “encouraging the parties to use an alternative dispute reso-
lution procedure if the court considers that appropriate and facili-
tating the use of such procedure”23 (Regra n. 1.4, 2, e)24.
Reconhecer isso como diretriz geral do sistema processual
civil e criar condições para que isso se efetive, como se dá na In-
glaterra, especialmente por meio de incentivos econômicos, aliado
a uma devida internalização cultural disso, notadamente pelos juí-
zes, de forma a se obter contingente considerável de soluções al-
ternativas, geraria as seguintes proficuidades: i) diminuição do
número de processos, o que leva à redução do volume de traba-
lho dos juízes e reflete no tempo do julgamento dos demais feitos;
22 Neil Andrews (2009) aponta que, especialmente no que tange a conflitos de cunho em-
63
ii) minimização do tempo levado para se chegar à solução da
causa em discussão; iii) mitigação dos custos, tanto econômicos,
quanto demais custos pessoais dos envolvidos; e iv) possível ma-
nutenção das relações, quando continuativas (o que é extrema-
mente comum em litígios de cunho empresarial), já que nos
meios alternativos as partes participam ativamente da solução
do conflito, às vezes decidindo-o integralmente (como na media-
ção) elas mesmas, afastando o caráter de adversariedade entre
elas existente durante um processo judicial.
No Brasil, com a promulgação do NCPC (Lei n.
13.105/15), houve avanço: o diploma prevê, já em seus artigos
iniciais, que o Estado “promoverá, sempre que possível, a so-
lução consensual dos conflitos” (art. 3º, § 2º) e que a “conci-
liação, a mediação e outros métodos de solução de
consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes,
advogados, defensores públicos e membros do Ministério
Público, inclusive no curso do processo judicial [grifo nosso]”.
Tais normas representam avanço incomensurável em matéria de
acesso à justiça.
A participação ativa do juiz, de forma ampla e concreta,
ou seja, não só formalmente, mas substancialmente, é medida
que se impõe em um sistema jurídico que pretenda efetivar, e
não somente proclamar, os direitos dos cidadãos.
Assim, a utilização do atual modelo processual civil in-
glês apresenta-se útil para servir de inspiração ao ordenamento
brasileiro, já que valoriza o papel do juiz na condução do pro-
cesso, o que, inevitavelmente, prestigia a cognição, a qual se co-
loca como importante instrumento processual em favor da devida
tutela de direitos, já que tal atividade jurisdicional, por meio dos
modos pelos quais pode ser utilizada, tem o condão de formar
técnicas processuais diferenciadas25.
Essa cognição adequada, amoldada a cada caso, vin-
cula-se necessariamente a ideia de realização de justiça e, para
64
Watanabe (2000), liga-se ao princípio do juiz natural. O autor
afirma que há um direito à cognição adequada à natureza da
controvérsia, contido no princípio do devido processo legal. Dele
é resultado assim como os demais princípios processuais cons-
titucionais (motivação, contraditório, ampla defesa, dentre ou-
tros). “Devido processo legal é, em síntese, processo com
procedimento adequado à realização plena de todos esses valo-
res e princípios” (WATANABE, 2000, p.124), voltados à efetivi-
dade da tutela jurisdicional.
Assim, do devido processo extrai-se, como corolário ina-
fastável, o direito à cognição adequada à natureza da controvér-
sia. Infere-se verdadeira dependência entre cognição adequada
e razoável duração do processo, na medida em que, por meio de
um rito adaptado ao direito material em discussão, ter-se-á, ao
menos em tese, uma duração temporal razoável para a análise
que o específico objeto requer (LEAL JÚNIOR; BALEOTTI, 2011).
Com o fortalecimento da figura do magistrado no contexto
inglês, tem-se a possibilidade de que ele trabalhe com o procedi-
mento de forma a obter a melhor cognição possível e uma duração
mais adequada ao objeto em discussão. A reforma que propiciou
essa nova sistemática, ora elogiada, foi considerada exitosa logo
após três anos da adoção das CPR. O tempo médio para julga-
mento de um processo em 1º grau, que em 2007 era de 639 dias,
passou, em 2000/2001 para 498 dias (GAJARDONI, 2008). Por-
tanto, houve notória agilização da prestação jurisdicional.
Por força disso, inúmeros contratos comerciais estrangei-
ros contêm, atualmente, cláusula de eleição de tribunais ingleses
para solução de eventual conflito. Em metade dos casos julgados
pela Commercial Court de Londres os litigantes não são residentes
na Inglaterra ou no País de Gales (ALMEIDA, 2011, p.326). A dou-
trina inglesa é praticamente unânime em reconhecer as vantagens
advindas da reforma, uma vez que “casos que normalmente per-
maneceriam cinco anos sem julgamento são atualmente solucio-
nados entre quinze a dezoito meses” (ALMEIDA, 2011, p.326).
Enfim, a percepção da comunidade jurídica inglesa é de
que houve aprimoramento da justiça civil, agora mais célere e
eficaz. A incorporação dos aspectos referidos, tais como a pos-
sibilidade de flexibilização procedimental e o efetivo fomento à
65
utilização de meios alternativos de solução de controvérsias, não
prejudicariam a sistemática constitucional brasileira, uma vez que
há abertura para isso. Certamente, ter-se-ia, então, um processo
que melhor pudesse se adequar às situações específicas exigi-
das, tais como em que houve envolvimento de negócios jurídicos
empresariais. Destaca-se, nessa linha, que a reforma empreen-
dida no direito processual inglês teve como um de seus objetivos
“tornar o processo civil mais acessível para as pessoas co-
muns e empresários” (ALMEIDA, 2011, p.296) [grifo nosso].
Entretanto, essas modificações, que, inclusive, poderiam
ter vindo alinhavadas no NCPC26 exigiriam, ainda, mudanças
culturais, de forma que as partes internalizassem a concepção
de ser mais vantajosa a solução às vezes negociada do conflito,
ou a atuação em favor da efetiva resolução e conclusão do pro-
cesso, para que colaborassem, então, no trâmite processual, não
obstaculizando seu decurso e nem prolongando, de alguma
forma os prazos processuais.
CONCLUSÕES
66
A indiscutível lentidão no tramitar processual causa des-
prestígio ao Judiciário e macula o fundamento existencial da
tutela pretendida, porquanto sua duração desarrazoada, ocasio-
nalmente, tem o condão de permitir o fenecimento do bem da
vida pleiteado. Tendo isso assente, tornou-se crível, no decorrer
deste feito, chegar a certas ilações.
A partir da Emenda Constitucional n. 45/2004, foi acres-
centado, de forma expressa, novo direito fundamental e sua res-
pectiva garantia no elenco que forma o artigo 5º – o princípio da
razoável duração do processo, que contempla o direito de se exi-
gir eficiência e prontidão da resposta estatal à provocação ocor-
rida por meio de demanda intentada.
Com a demora no trâmite processual e na execução da
decisão, o prejuízo aos envolvidos é incomensurável. Enfrentar,
no papel de parte, a morosidade no julgamento de um processo
é algo que representa custos imensuráveis. Não só financeiros,
como também custos que não são passíveis de avaliação eco-
nômica, como angústia, preocupações, incerteza e insegurança.
Isso é mais gravoso ainda, pelos inúmeros reflexos que gera,
quando se trata de agentes econômicos envolvidos e negócios
jurídicos empresariais em discussão: os impactos econômicos
da demora processual são inegavelmente grandes. A dinâmica
existente no mundo empresarial não comporta a lentidão judicial
na solução dos litígios, de sorte que essa atua como fator de ini-
bição de investimentos na economia.
O fraco desempenho do Poder Judiciário prejudica a eco-
nomia de diversas maneiras: reduz a abrangência da atividade
econômica; dificulta a exploração de economias de escala; de-
sencoraja investimentos e a utilização do capital disponível; dis-
torce o sistema de preços ao introduzir fontes de risco adicionais
nos negócios; e diminui a qualidade da política econômica. Logo,
sem a segurança de que os conflitos sub judice serão julgados
em tempo razoável, muitas transações econômicas ficam mais
caras, raras ou mesmo inexistentes.
A Lei n. 11.101/05, que trata da falência e recuperação ju-
dicial e extrajudicial, para que alcance efetividade no propósito de
valorizar a função social da empresa, a preservação da atividade
econômica e o respeito ao melhor interesses dos credores, impõe
67
que a tutela jurisdicional seja prestada em tempo breve. Em si-
tuações de crise econômico-financeira, portanto, a empresa, que
terá de se submeter ao Poder Judiciário para ver aquela anali-
sada, vivenciando contexto de morosidade, verá contrariados em
demasia os interesses de todos nela envolvidos (credores, de-
vedor, Poder Público e terceiros). A apreciação e a decisão do
Poder Judiciário em tempo razoável é essencial para que seja
possível cogitar de uma recuperação do agente econômico. E
mesmo na decretação da falência, a demora processual é preju-
dicial aos credores, privados de seus créditos, ainda que não seja
possível recebê-los de forma integral.
Enfim, seja a situação que for, tem-se que, prejudicando
as empresas, que são agentes econômicos, o prejuízo às eco-
nomias dos países envolvidos é indiscutível, eis que a mera ciên-
cia da morosidade processual já é fator possível de espantar
investidores externos no espaço brasileiro.
Aspectos do atual sistema processual civil inglês são
apresentados, então, como paradigma, a fim de que no espaço
brasileiro haja, igualmente, maior valorização da figura e mister
do magistrado, de forma a ser tentada a redução da demora pro-
cessual e ser concedido o provimento jurisdicional, então, ade-
quado, tempestivo e efetivo. Enfim, a importação de elementos
tais como a flexibilização procedimental e maiores incentivos às
ADR – este último já presente no NCPC – podem funcionar como
mecanismos de auxílio no combate às mazelas do Judiciário bra-
sileiro, especialmente se acompanhados de mudança cultural da
população, bem como de maior aporte financeiro para aumentar
a infraestrutrura e os recursos humanos.
68
REFERÊNCIAS
69
Democracia, Curitiba, v.2, n.2, jun./dez. 2007. Disponível em:
<http://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd>.
Acesso em: 01 mar. 2012.
70
MARINS, James. Processo instantâneo versus processo razoá-
vel: a dualidade temporal da garantia constitucional. Novos es-
tudos jurídicos, Itajaí, v.16, n.02, p. 188-206, mai./ago. 2011.
71
TAVARES, Luiz Marcelo Cabral. Perspectivas da flexibilização
procedimental na experiência brasileira em face do substitutivo
do Senador Valter Pereira ao projeto de lei no Senado n. 166, de
2010. Revista Eletrônica de Direito Processual. Rio de Janeiro,
ano 5, v.7, p.136-157, jan./jun. 2011.
72
Altecir Bertuol Junior*
Resumo:
Trata-se de exame analítico das propostas de emenda à Constituição
em trâmite ou que já tramitaram no Congresso, que busca verificar
as razões e o conteúdo de cada proposta para, ao final, apresentar
um panorama crítico a respeito delas e expor um ponto de vista sobre
a questão.
Abstract:
This is an analytical examination about the motions of amendment of
Constitution that were developed or are in development in the Con-
gress, which goes through checking the reasons and the content of
each motion to show a critical panorama about them in the end and
present a point of view about the issue.
Resumen:
Es un exame analítico de las propuestas de enmienda a la Consti-
tución em curso o que ya se procesaron en Congreso de la Nación,
que tiene la intención de comprovar las razones y el contenido de
cada propuesta para finalmente presentar um panorama crítico
acerca de ellos y exponer um punto de vista en este tema.
73
Palavras-chave:
Responsabilidade penal, código penal, proposta de emenda à
Constituição.
Keywords:
Penal responsibility, penal code, motion of amendment of Consti-
tution.
Palabras clave:
Responsabilidad penal, código criminal, propuesta de enmienda a
la Constitución.
74
INTRODUÇÃO
75
Ao estampar no art. 228 da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 que “são penalmente inimputáveis
os menores de dezoito anos”, o Poder Constituinte Originário
optou pela adoção do critério biológico para a fixação da imputa-
bilidade penal, sem, entretanto, engessar a legislação infracons-
titucional, proibindo-a de adotar outros critérios paralelamente.
Todavia, o termo inicial da imputabilidade é questão que, diante
do grande número de propostas de alteração da Constituição,
pode-se concluir não espelhar o anseio da sociedade brasileira,
não ser fidedigna ao Poder Constituinte Originário material, ser,
enfim, tema não unânime nas discussões travadas na Assem-
bleia Nacional Constituinte.
A IMPUTABILIDADE
76
Embora faça uso do termo imputabilidade da forma usual-
mente colocada no estudo do Direito Penal, Zaffaroni (1999, p.
110) faz uma pequena distinção técnica entre “imputabilidade” e
“capacidade psíquica de culpabilidade”, esclarecendo que a pri-
meira diz respeito ao fato, que pode ou não ser imputado a alguém,
ao passo que a segunda é uma condição do autor de ser capaz
ou não de assumir a responsabilidade pelo fato.
Após concluir que a imputabilidade vai além da capaci-
dade de compreender de forma correta e adequada os fenôme-
nos do mundo externo para alcançar um juízo de valor sobre o
fato, Soler (1992, p. 51) define a imputabilidade como a possibili-
dade, condicionada à saúde e maturidade de espírito do autor, de
valorar corretamente os deveres e de atuar de acordo com esse
entendimento. Logo, imputável é o indivíduo capaz de emitir um
juízo de valor sobre o ilícito, compreendendo-o como criminoso,
e de se determinar de acordo com essa compreensão.
De acordo com Nucci (2009, p. 275), a imputabilidade
apresenta dois elementos, quais sejam, higidez biopsíquica, que
consiste na existência de saúde mental aliada à capacidade de
apreciar a criminalidade do fato, e maturidade, relacionada ao
desenvolvimento físico-mental.
No caso concreto, a aferição da imputabilidade do
agente criminoso depende do critério de verificação adotado pela
legislação penal, o qual, de acordo com a doutrina penal tradi-
cional, pode ser: biológico, psicológico e biopsicológico. En-
quanto o critério psicológico leva em conta apenas se o agente,
ao tempo da conduta, tinha a capacidade de entendimento e au-
todeterminação, sem considerar a sua condição mental ou ma-
turidade, o critério biológico parte da premissa contrária,
ponderando exclusivamente o desenvolvimento (maturidade)
mental do agente, sem se preocupar se ele tinha, ao tempo da
conduta, capacidade de entendimento e autodeterminação. Esse
último critério pode ser tido como absoluto, se a imputabilidade
for aferida exclusivamente pela idade do agente, ou relativo, se
a imputabilidade for verificada com base no seu real desenvolvi-
mento mental, facetas percebidas na análise do desenvolvimento
mental como causa de exclusão da imputabilidade prevista no
art. 26 do Código Penal, conforme se pode extrair da lição de
77
Capez (2011, p. 334) sobre o desenvolvimento mental incom-
pleto, que decorre da recente idade cronológica ou da falta de
convivência do agente em sociedade, ocasionando imaturidade
mental e emocional do agente e impedindo-o de alcançar as fa-
culdades cognitiva e volitiva atinentes à conduta. O critério bio-
psicológico, por sua vez, busca um meio termo entre os dois
primeiros, levando em consideração tanto o desenvolvimento
mental do agente quanto a sua capacidade de entendimento e
autodeterminação (SANCHES CUNHA, 2015, p. 277-278).
No Brasil, atualmente, são adotados os critérios biopsico-
lógico e biológico, sendo o psicológico expressamente afastado
pelo Decreto-Lei n. 2.848/1940, que prescreve que não excluem
a imputabilidade penal a emoção ou a paixão. O primeiro é previsto
no Código Penal, que considera inimputável o que, por doença
mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado ou,
ainda, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou
força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente
incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de se determinar
de acordo com esse entendimento. Esse critério está também
presente na Lei n. 11.343/2006, que considera inimputável o
agente que, em razão da dependência, ou sob o efeito, prove-
niente de caso fortuito ou força maior, de droga, era, ao tempo
da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o ca-
ráter ilícito do fato ou de se determinar de acordo com esse en-
tendimento. O segundo, por sua vez, é anunciado no art. 228 da
Constituição Federal e repetido no Código Penal e estatui que os
menores de dezoito anos de idade são penalmente inimputáveis
e estão sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial.
O critério biológico é ainda aplicado aos indígenas não integra-
dos, nos termos do Estatuto do Índio.
A imputabilidade é elemento da culpabilidade, que, por
seu turno, é elemento do conceito de crime, de modo que o crime
somente poder ser imputado a quem tem capacidade subjetiva
para responder por ele e receber uma pena. Em outras palavras,
o fato típico e antijurídico praticado pelo inimputável não é crime.
Na hipótese de fatos típicos e antijurídicos praticados por
menores de dezoito anos de idade, em razão da ausência de im-
putabilidade, não há crime, mas ato infracional - definido no
78
Estatuto da Criança e do Adolescente como conduta descrita na
lei penal como crime ou contravenção penal -, razão pela qual
agentes nessa condição não podem receber uma pena em de-
corrência de sua conduta, daí a razão da aplicação de medidas
socioeducativas a eles.
Portanto, a discussão a respeito da alteração do art. 228
da Constituição da República de 1988 envolve o próprio conceito
de crime. Afinal, o menor de dezoito anos de idade pratica crime?
Se dissermos que o menor é imputável, conceberemos que pra-
tica crime e deve receber uma pena, do contrário, não pratica
crime e não pode suportar uma pena.
AS JUSTIFICATIVAS
79
com autorização dos pais, testamento, emancipação, bem como
da Constituição Federal, que possibilita o trabalho e o voto.
Não obstante essas questões sejam defendidas em pra-
ticamente todas as propostas, há alguns argumentos que mere-
cem registro.
Casos emblemáticos de ilícitos violentos praticados por
menores de dezoito anos de idade são constantemente apresen-
tados. Os casos do crime bárbaro praticado por dois adolescentes
em Goiânia no ano de 1996; do menino João Hélio no Rio de Ja-
neiro, que foi arrastado por sete quilômetros preso ao carro da mãe,
o qual havia sido roubado por dois delinquentes, um deles menor
de idade; dos jovens, Liana Friedenbach e Felipe Caffé, em São
Paulo, que foram sequestrados e mortos com a participação de Ro-
berto Aparecido Alves Cardoso, menor infrator conhecido como
"Champinha"; de Genilson Torquato, de Jaguaretama, no Ceará,
hoje já maior de idade e livre, assassino confesso de onze pessoas,
que matou entre os quinze e os dezoito anos; do adolescente de
Maringá, conhecido como o “Cão de Zorba”, que confessou ter
matado três pessoas e teria encomendado a morte de outras quatro;
do M.B.F., o “Dimenor”, ligado à facção criminosa paulista P.C.C.,
que aos dezessete anos confessou ser o autor da morte de seis
pessoas a mando de traficantes, a primeira delas quando tinha
apenas doze anos de idade; e do menor no Rio Grande do Sul,
autor de cento e doze atos infracionais, que, no momento de uma
audiência, tentou matar a promotora de um dos seus casos, são
relatados nas PECs n.426/1996, 242/2004, 85/2007 e 228/2012
da Câmara, bem como na Proposta n. 33/2012 do Senado.
O escorço histórico sobre a imputabilidade no Brasil é tra-
zido à análise nas PECs n. 57/2011 e 273/2013 da Câmara e n.
21/2013 do Senado. De acordo com elas, o primeiro Código Penal
brasileiro de 1830 fixou a imputabilidade plena aos quatorze anos,
bem como instituiu critério biopsicológico para a punição de crian-
ças entre sete e quatorze anos de idade. Em seguida, o Código
Republicano de 1890 estabeleceu ser penalmente irresponsável
o menor com idade até nove anos, devendo o maior de nove anos
e menor de quatorze anos submeter-se à avaliação do Magis-
trado. Na sequência, a Lei Orçamentária de 1921 derrogou o Có-
digo Penal de 1890, ao estabelecer a inimputabilidade dos
80
menores de quatorze anos e o processo especial para os maio-
res de quatorze e menores de dezoito anos de idade. Em direção
diversa, o Código Penal de 1940, embora em seu anteprojeto se
tenha previsto a possibilidade de se considerar imputável o
menor de dezoito anos de idade que, tendo já completado de-
zesseis anos, revelasse suficiente desenvolvimento psíquico
para entender o caráter ilícito do fato e governar a própria con-
duta, fixou o limite da inimputabilidade aos menores de dezoito
anos, adotando o critério puramente biológico. Mais tarde, a Lei
n. 7.209/1984, não obstante tenha reformulado a parte geral do
Código Penal, manteve a imputabilidade penal aos dezoito anos,
disposição que foi recepcionada pelo art. 228 da Constituição Fe-
deral de 1988.
As propostas de n. 272/2004, 489/2005, 48/2007,
223/2012, 273/2013, 382/2014, todas da Câmara, e n. 21/2013 do
Senado trazem dados de direito comparado. De acordo com o que
nelas se expõe, o início da imputabilidade na América do Sul se
dá: em Cuba, no Chile, na Bolívia e na Argentina, aos dezesseis
anos de idade, e, na Venezuela e Colômbia, aos dezoito. Na Amé-
rica do Norte, a legislação mexicana admite que a pessoa seja
responsabilizada pelo crime cometido desde os seis anos de
idade, a canadense, a partir dos doze, e, no Haiti, a imputabilidade
inicia-se aos quatorze. A respeito dos Estados Unidos, as infor-
mações encontradas nas propostas supracitadas não são unâni-
mes: de acordo com a PEC n. 489/2005, o tema não é uniforme
nos estados americanos, de modo que em alguns deles, nos cri-
mes mais graves, admite-se a punição do infrator a partir dos ca-
torze anos de idade; segundo a PEC n. 48/2007, a imputabilidade
inicia-se aos sete anos; já conforme as PECs n. 223/2012 e n.
382/2014, nos Estados Unidos não existe idade mínima para apli-
cação de penas, pois o critério utilizado é a verificação da índole
do criminoso. No velho mundo, a imputabilidade se inicia: aos oito
anos de idade na Escócia; aos doze na Holanda; aos quatorze
na Alemanha e na Itália; aos quinze na Noruega, Suécia e Fin-
lândia; e, aos dezesseis em Portugal, Espanha e Bélgica. As in-
formações a respeito da responsabilização penal na França,
Inglaterra e Dinamarca apresentam divergências: não obstante a
PEC n. 48/2007 aponte o início da imputabilidade aos treze anos
81
de idade na França, a PEC n. 382/2014 informa que isso ocorre
aos dezoito; enquanto a PEC n. 489/2005 informa que se pune
o criminoso a partir dos dez anos de idade, quando se tratar de
crimes hediondos na Inglaterra, ao passo que a PEC n. 223/2012
anuncia que neste país não existe idade mínima para aplicação
de penas, pois o critério levado em conta é a verificação da índole
do criminoso; a PEC n. 21/2013 aponta os quinze anos de idade
como marco inicial da imputabilidade na Dinamarca, ao passo
que a PEC n. 382/2014 indica a idade de dezoito anos. No con-
tinente africano, a responsabilidade penal se inicia aos sete anos
de idade na África do Sul e aos quinze no Egito. Na Ásia, indica-
se o início da imputabilidade aos sete anos de idade na Índia e
aos catorze no Japão. Quanto à Israel, a PEC n. 489/2005 aponta
para o começo da imputabilidade aos dezesseis anos de idade,
enquanto a PEC n. 382/2014 indica aos doze. Na Oceania, o
único país apresentado é a Nova Zelândia, onde a punição ao
criminoso se dá a partir dos dez anos de idade.
Ainda sobre esse ponto, a PEC n. 273/2013 arremata a
questão ao destacar que o Brasil é um dos poucos países em
que se adota o critério etário para definir o momento a partir do
qual alguém pode ser responsabilizado criminalmente e que a
idade escolhida é uma das mais altas da América Latina. Nessa
linha, acrescenta que o critério biopsicológico é o acolhido na
atualidade pela maioria das legislações penais e cita, como
exemplos, o Código Penal italiano, o Código Penal espanhol de
1995, o Código Penal alemão e o Código Penal português.
Outras PECs lançam mão da estatística para afirmar a
alteração que sugerem. A PEC n. 228/2012/Câmara aponta que
recentemente uma pesquisa feita pelo Senado Federal revelou
que 89% da população brasileira é favorável à redução da maio-
ridade penal. No mesmo sentido, a PEC n. 48/2013/Senado
anota que, em pesquisa encomendada pelo Senado no ano de
2007, a parcela de 90% dos entrevistados se manifestou favora-
velmente à redução da maioridade penal. Ainda, a PEC n.
32/2015/Câmara registra que pesquisas realizadas pelo Instituto
Data Senado entre os anos de 2007 e 2015 apontaram que 80%
dos entrevistados são a favor da redução da maioridade penal,
dentre os quais 30% manifestou a convicção de que a idade
82
mínima ideal para que um indivíduo seja considerado imputável
deve ser dezesseis anos de idade, 15% opinou por catorze e
16% por doze.
Também se valendo de dados estatísticos, a PEC n.
33/2012/Senado menciona pesquisa realizada pelo Conselho
Nacional de Justiça, intitulada “Panorama Nacional, a Execução
das Medidas Socioeducativas de Internação”, em que foram le-
vantadas, de julho de 2010 a outubro de 2011, as condições de
internação de 17.502 jovens em conflito com a lei, da qual se
pôde constatar que entre os adolescentes entrevistados (pouco
mais de 10% do total de menores infratores internados no país),
43,3% já haviam sido internados ao menos uma outra vez. Ainda
de acordo com a pesquisa, do exame dos 14.613 processos de
execução de medida socioeducativa, extraiu-se que há registros
de reincidência em 54% dos casos.
A PEC n. 279/2013/Câmara traz argumentos sólidos ao
debate, já que busca apoio em opiniões técnicas sobre o assunto
nas áreas do direito e da psicologia. Em suma, dois pontos ganham
ênfase nessa moção. O primeiro deles recai sobre o aumento da
criminalidade instigado pela impunidade. Conforme se expõe, a
prática de atos infracionais teria aumentado cerca de 80% entre
os anos de 2000 e 2012, ao passo que os crimes perpetrados por
maiores de dezoito anos teria diminuído na última década na ci-
dade de São Paulo. Sobre essa questão, a proposta traz a opinião
de um promotor de justiça atuante na Vara da Infância e Juventude
de São Paulo, segundo o qual, movidos pela consciência da im-
punidade, os menores de dezoito anos não apenas ingressam em
quadrilhas, mas assumem a liderança dessas organizações. A se-
gunda vertente vazada na proposta ressalta a capacidade de en-
tendimento sobre o caráter ilícito da conduta criminosa e de
escolher entre praticá-lo ou não, ideia apoiada em opinião de pro-
fissional psiquiatra ocupante do posto da Vice-Coordenadoria do
Departamento de Ética e Psiquiatria Legal da Associação Brasi-
leira de Psiquiatria (ABP), segundo a qual os estímulos proporcio-
nados pela comunicação intensa decorrente do avanço da
tecnologia aceleram o desenvolvimento do ser humano.
A direção dada no VI Congresso Internacional do Direito
Penal, ocorrido em Roma em 1953, de acordo com a qual o limite
83
etário para a aplicação da pena é dezesseis anos de idade, é invo-
cada em meio à argumentação exposta na PEC n. 426/1996/Câmara.
Uma inversão na organização social é apontada na PEC
n. 79/2003/Câmara, no sentido de que a população trabalhadora
e honesta se encontra presa em suas casas, assustada com a
violência cada vez mais crescente, ao passo que os criminosos
tomam conta das ruas e se escondem atrás de direitos, dentre
os quais, a inimputabilidade.
A PEC n. 272/2004/Câmara sugere que a redução de
idade para a responsabilização penal serviria para beneficiar os
próprios jovens, os de boa índole, de caráter probo e honesto,
que poderiam gozar de outros direitos, tais como o de dirigir veí-
culos automotores sem impedimento legal.
Os aspectos sociais sobre a questão também são rele-
vados. Nesse sentido, a PEC n. 48/2007/Câmara destaca a falta
de investimentos do Estado para garantir os direitos da criança
e do adolescente e assim dar a eles vida digna que os afaste do
crime, bem como o fracasso das famílias na formação dos filhos,
o que leva menores delinquentes a viverem integrados a uma fa-
mília que, em certos casos, se beneficia da atividade criminosa.
Na mesma direção, a PEC n. 15/2015/Senado atribui a prática
do ato infracional à falha da família, da sociedade e do Estado
na proteção dos direitos constitucionalmente conferidos à criança
e ao adolescente. Da mesma forma, na PEC n. 399/2009/Câ-
mara se evidencia a realidade miserável do país, na qual são
constantes a fome, as drogas, a dificuldade de acesso às esco-
las, a ausência de um verdadeiro lar, fatores que contribuem para
o aumento da violência, fazendo com que os jovens brasileiros
se tornem “verdadeiras bombas-relógio”.
Também não passa despercebida a análise do tema sob
o enfoque das políticas públicas. Nessa linha, a PEC n.
48/2007/Câmara refuta o argumento de que menores entrarão
mais cedo para a “escola do crime” nos presídios, afirmando a
possibilidade de implementação de política criminal para a criação
de estabelecimentos próprios e específicos para cumprimento da
pena por pessoas entre dezesseis e vinte e um anos de idade,
nos quais se dê preferência, por exemplo, ao trabalho, a ativida-
des culturais e ao ensino de ofícios como forma de progressão e
84
ressocialização. Essa ideia se mostra em sintonia com a conclusão
apresentada na PEC n. 273/2013/Câmara, segundo a qual não
punir, sob o argumento de que as prisões não recuperam, é jogar
sobre as costas da sociedade um problema que cabe ao Estado
resolver. Com a mesma lente de análise, a PEC n. 399/2009/Câ-
mara acusa a falta de uma política de segurança pública eficaz na
prevenção e repressão à prática de ilícitos penais, bem como a
inaplicabilidade de um sistema penitenciário que julga utópico.
A peculiaridade do indivíduo serve de justificação para as
propostas de n. 33/2012 e 03/2001, ambas do Senado, das quais
se extrai a necessidade de se considerar a condição pessoal de
cada adolescente, já que a capacidade de compreensão da ilici-
tude do crime não é fator estático e pode variar em razão da sua
educação, cultura, informação ou meio social em que se desen-
volveu. Na mesma esteira, a PEC n. 327/2004/Câmara enfatiza
que adolescentes de quatorze anos de idade podem ter a mesma
consciência de outro de dezessete ou dezoito, ou vice-versa.
Por fim, é de se registrar que, de acordo com a PEC n.
228/2012/Câmara, a consciência da impunidade na prática da in-
fração penal demonstra a total compreensão do adolescente que
conta com dezesseis anos completos a respeito do caráter ilícito
da conduta criminosa.
AS PROPOSTAS
85
Dentre as propostas iniciadas na Câmara dos Deputados
se destaca a PEC n. 171/1993, à qual estão apensadas outras
trinta e oito moções1. Em todas essas moções, originalmente, é
sugerida a alteração da Carta Política de 1988 para estabelecer
a inimputabilidade dos menores de dezesseis anos de idade e
sujeitá-los às normas da legislação especial. Esse modelo é re-
petido nas PECs n. 98/1992, 73/2003 e 79/2003, todas da Câ-
mara, bem como nas PECs n. 1/1996, 20/1999 e 48/2013 do
Senado. No mesmo norte, embora fundindo os conceitos de im-
putabilidade penal e maioridade civil, a PEC n. 32/2015/Câmara
prescreve a plena maioridade civil e penal aos dezesseis anos de
idade. Da mesma forma, sem muita variação, a PEC n.
260/2000/Câmara estabelece a "maioridade penal" aos dezessete
anos. Na mesma senda, está a PEC n. 21/2013/Senado, que es-
tabelece que são penalmente inimputáveis os menores de quinze
anos de idade. Também nessa linha seguem as propostas n.
169/1999 e 242/2004, ambas da Câmara, que assentam a abso-
luta inimputabilidade dos menores de quatorze anos, e a PEC n.
345/2004/Câmara, que fixa a imputabilidade a partir dos doze
anos. Todas essas conservadoras proposituras mantêm o critério
biológico absoluto e se limitam a diminuir a idade a partir da qual
o indivíduo passa a ser imputável.
Por outro lado, as PECs n. 09/2004/Senado, 489/2005/
Câmara e 57/2011/Câmara oferecem solução variada ao estabe-
lecerem, respectivamente, que: o menor será imputável quando
apresentar idade psicológica igual ou superior a dezoito anos de
idade; o menor de dezoito anos acusado da prática de delito
penal será submetido à prévia avaliação psicológica, podendo o
juiz concluir pela sua imputabilidade, se julgar que o seu grau de
maturidade justifica a aplicação da pena; e que a imputabilidade
dos maiores de dezesseis anos será determinada por intermédio
de perícia em decisão judicial, proferida em cada caso com fun-
damento nos fatores psicossociais e culturais do agente. Em
86
todas elas, o foco da imputabilidade repousa sobre a maturi-
dade/desenvolvimento mental do agente sem que haja preocu-
pação com a sua capacidade cognitiva e volitiva ao tempo da
ação ou omissão. Tem-se, portanto, a adoção do critério bioló-
gico. Todavia, diferentemente das propostas anteriores, elas
abandonam o critério biológico absoluto atualmente adotado, em
que a ausência de maturidade do agente é presumida, para ade-
rirem ao critério biológico relativo, propondo que a maturidade
seja sempre aferida diante do caso concreto.
Dentre as moções que adotam o critério biológico, algu-
mas alvitram uma metamorfose do conceito de imputabilidade
pela inclusão da espécie do crime como um de seus elementos,
propondo que, diante de determinados crimes, a imputabilidade
seja constatada exclusivamente com apoio na maturidade do
agente, totalmente presumida com base na idade. É o que ocorre
nas PECs n. 95/1992/Câmara, 386/1996/Câmara, 08/2000/Se-
nado, 228/2012/Câmara, 90/2013/Senado e 382/2014/Câmara.
Na primeira delas, sugere-se, que os maiores de dezesseis anos
de idade sejam imputáveis quando da prática de crimes de ho-
micídio, roubo, extorsão, extorsão mediante sequestro, sequestro
ou cárcere privado, estupro, atentado violento ao pudor, rapto
violento ou mediante fraude, redução à condição análoga a de
escravo e lesão corporal. De acordo com a segunda, os maiores
de dezesseis anos devem ser penalmente responsabilizados
pela prática de crimes contra a pessoa, contra o patrimônio e he-
diondos. A terceira trata a questão pela ótica dos crimes dolosos
contra a vida. Por seu turno, a quarta estabelece que os menores
de dezoito anos e maiores de dezesseis anos responderão pela
prática de crimes cometidos com violência ou grave ameaça, de
crimes hediondos e de crimes contra a vida. A quinta considera
penalmente imputáveis os maiores de treze anos que pratiquem
crimes hediondos. Por fim, a sexta prescreve que não se aplica
a inimputabilidade penal aos menores de dezoito anos que
cometam crimes hediondos.
De forma semelhante, sem deixar de lado o critério bio-
lógico relativo, o conceito é alterado também pela inserção da
reincidência como fator da imputabilidade ao lado da maturi-
dade do agente, como ocorre na PEC n. 03/2001/Senado, que
87
prescreve que "os menores de dezoito anos e maiores de dezes-
seis anos são penalmente imputáveis na hipótese de reiteração
ou reincidência em ato infracional quando constatado seu ama-
durecimento intelectual e emocional, na forma da lei".
Doutra banda, a PEC n. 07/1998/Senado mostra-se dis-
tinta ao possibilitar a aferição da imputabilidade do agente maior
de dezesseis e menor de dezoito anos de idade quando for ates-
tada a sua capacidade de discernimento. De acordo com essa
proposta, dois são os fatores que determinarão a imputabilidade:
idade (mais de dezesseis e menos de dezoito anos) e capaci-
dade cognitiva. Quanto à idade, tem-se a presunção do alcance
da plena maturidade/desenvolvimento mental aos dezesseis
anos de idade (critério biológico). Em relação à capacidade de
discernimento, há a preocupação em se constatar se, ao tempo
da ação ou omissão, o agente era capaz de entender o caráter
ilícito da conduta (critério psicológico). Há de se concluir, então,
que ela oferece como solução a adoção do critério biopsicológico
em formato diverso daquele previsto no Código Penal.
Embora disponha em seu texto que a imputabilidade
será prevista em lei, a PEC n. 321/2001/Câmara fixa um critério
biopsicológico bastante adequado – que leva em consideração
tanto a maturidade do agente quanto a sua capacidade cognitiva
e volitiva ao tempo da ação ou omissão –, ao prescrever que "a
maioridade penal será fixada em lei, devendo ser observados os
aspectos psicossociais do agente, aferido em laudo emitido por
junta de saúde que avaliará a capacidade de se autodeterminar
e de discernimento do fato delituoso".
Algumas moções apresentam uma leve variação deste
conceito de imputabilidade acrescentando a ele a espécie do
crime como um de seus fatores. Nessa linha, a PEC n.
85/2007/Câmara permite que, nos crimes dolosos contra a vida,
o juiz verifique se ao tempo da ação ou omissão o agente, maior
de dezesseis e menor de dezoito anos de idade, tinha consciên-
cia do caráter ilícito do fato e condições de se determinar de
acordo com esse entendimento. Da mesma forma, a PEC n.
399/2009/Câmara sugere que menores a partir de catorze anos
de idade sejam imputáveis pela prática de crimes com violência
ou grave ameaça à integridade da pessoa quando, por junta
88
médica e psicológica, se verifique a existência de plena cons-
ciência das consequências do ilícito praticado.
Não obstante estabeleça a natureza da infração penal
como fator determinante, a PEC n. 273/2013/Câmara oferece um
conceito mais rebuscado de imputabilidade formado a partir do
critério biopsicológico, no qual se deve averiguar tanto a maturi-
dade do agente, sem presumi-la em razão da idade, quanto a
sua capacidade cognitiva e volitiva ao tempo da ação ou omis-
são. Nesse sentido, prescreve que, nos crimes hediondos e nos
equiparados a hediondos, o juiz deverá avaliar a maturidade
emocional, mental e intelectual do agente maior de dezesseis e
menor de dezoito anos de idade para determinar a sua consciên-
cia, ao tempo da ação, do caráter ilícito do ato praticado e as con-
dições de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Solução ousada é apresentada na PEC n. 73/2007/Câ-
mara, em que se indica a adoção do critério psicológico para a
constatação da imputabilidade dos menores de dezoito anos de
idade. A proposta sugere que "a autoridade judiciária decidirá
sobre a imputabilidade penal do menor de dezoito anos, avaliada
sua capacidade de entender o caráter delituoso do fato e de au-
todeterminar-se conforme este entendimento através de laudo
médico e psicológico, ouvido o Ministério Público". Como se pode
constatar, não há averiguação da maturidade e higidez mental
do agente na resolução ofertada, sendo a imputabilidade esta-
belecida exclusivamente com base na capacidade de entendi-
mento do caráter ilícito da conduta e de autodeterminação.
Também o grupo de propostas que sugerem a adoção
do critério psicológico encontra em algumas moções uma pe-
quena mutação para incluir no conceito de imputabilidade a na-
tureza da infração penal cometida. É o que ocorre na PEC n.
15/2015/Senado, que prevê que a criança e o adolescente serão
responsabilizados pelos crimes de natureza hedionda que come-
terem na medida de sua capacidade de entendimento e de auto-
determinação, a ser averiguada no caso concreto.
Há, outrossim, um grupo de propostas em que não se
define claramente qual o critério adotado para a determinação
da imputabilidade. Nesse sentido, a PEC n. 302/2004/Câmara
declara "penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos,
89
salvo parecer em contrário de junta médico-jurídica, na forma da
lei, ratificado pelo juízo competente, no caso do infrator ser maior
de dezesseis anos". Embora se defina a idade a partir de dezes-
seis anos (critério biológico), não se fixa qual será o objeto de in-
vestigação da junta médico-jurídica – maturidade do agente ou
sua capacidade cognitiva e volitiva ou ambos. A mesma incógnita
é encontrada na PEC n. 327/2004/Câmara, que sugere que,
quando da prática de crimes hediondos ou crimes equipados a
hediondos, os menores de dezoito anos de idade terão sua im-
putabilidade aferida por junta de psiquiatras forenses.
De modo distinto, o estabelecimento de uma graduação
da imputabilidade é o que se propõe na PEC n.302/2013/Câ-
mara, já que, nos termos dela, o menor de doze anos de idade é
plenamente inimputável, enquanto o maior de doze e menor de
dezoito anos é imputável para a prática de crimes hediondos e o
maior de dezoito é plenamente imputável.
Outra ala de propostas é focada em política criminal
ligada à execução penal, na qual se separa o cumprimento da
pena em duas fases. A PEC n. 228/2012/Câmara prescreve que
os menores de dezoito e maiores de dezesseis anos de idade
cumprirão pena inicialmente em centros de ressocialização para
cumprimento de medidas socioeducativas até que completem
vinte um anos, a partir de quando serão transferidos para uma
unidade prisional, onde deverão cumprir o restante da pena. De
modo similar, a PEC n. 273/2013/Câmara sugere que o menor
que cometer delito cumpra a reprimenda em instituição adequada
à sua condição até completar dezoito anos, seguindo-se a partir
de então o cumprimento da pena em estabelecimento prisional
comum. No mesmo diapasão, a PEC n. 332/2013/Câmara esta-
belece que, embora sejam penalmente inimputáveis os menores
de dezoito anos, ao completarem esta idade, terão decretada a
extinção da medida socioeducativa a que foram submetidos,
mas, nos termos da legislação penal, continuarão a responder
pelo crime cometido, cuja pena será cumprida em unidade pri-
sional construída exclusivamente para abrigar internos oriundos
de estabelecimento educacional.
Embora não fixe um critério de forma terminativa, a PEC
n. 64/2003/Câmara estabelece que o fator idade seja levado em
90
consideração na concepção de imputabilidade ao versar que “a
lei disporá sobre casos excepcionais de imputabilidade para me-
nores de dezoito anos e maiores de dezesseis anos".
De especial peculiaridade está imbuída a PEC n.
349/2013/Câmara, que busca alterar a norma constitucional es-
tabelecida no art. 5º, XL, da Carta Política, que firma o princípio
da irretroatividade da lei penal, prescrevendo que "a lei penal não
retroagirá, salvo para beneficiar o réu ou para punir ato infracional
quando o agente atingir a maioridade penal".
Extremamente relevante é a ideia aventada na PEC n.
26/2007/Senado, segundo a qual se o menor de dezoito anos de
idade, já tendo completado dezesseis anos, revelar suficiente de-
senvolvimento mental para entender o caráter ilícito do fato e se
determinar de acordo com esse entendimento, a pena aplicável
poderá ser diminuída em até dois terços.
Originalidade é o atributo que marca a PEC n.
33/2012/Senado, que propõe a criação de uma forma jurídica até
então desconhecida no Brasil. A moção altera não apenas o art.
228, mas também o art. 129, I, ambos da Constituição de 1988,
para criar o “incidente de desconsideração de inimputabilidade
penal”, a ser regulamentado por lei complementar, que surge
como função institucional do Ministério Público, de atribuição pri-
vativa do órgão ministerial especializado em questões de infância
e juventude nos procedimentos para a apuração de ato infracional
praticado por menor de dezoito e maior de dezesseis anos de
idade, em que se assegura a ampla defesa técnica por advogado
e o contraditório, cuja competência para julgamento originário é
atribuída a órgão do Judiciário especializado em causas relativas
à infância e à juventude, com preferência sobre todos os demais
processos, em todas as instâncias. No mais, a proposta prevê a
suspensão da prescrição até o trânsito em julgado do incidente.
Apresentadas as propostas lançadas à discussão, é de
se fazer um exame crítico sobre o conteúdo delas a fim de se
constatar a pertinência das ideias nelas apresentadas, bem como
de se identificar para qual sentido o debate aponta.
91
ANÁLISE DAS PROPOSTAS
92
tanto na estrutura física dos estabelecimentos quanto em pes-
soal, além da execução de providências de efetiva ressocializa-
ção, já que a "escola do crime" não se limita aos
estabelecimentos prisionais, mas está instituída também nos es-
tabelecimentos de internação de menores. Ao que se pode ob-
servar da realidade fática dos presídios e centros de internação,
não há efetiva vontade de se tornarem reais as condições ideais
previstas na norma, de modo que a alteração da norma não trará
a solução para o problema.
Deveras essa sugestão de cumprimento diferenciado da
pena é inócua, pois garante a proteção do adolescente somente
até que ele atinja a maioridade, todavia, a partir de então ele será
jogado na “cova dos leões”. Efetivamente, ainda que se cogitasse
que os centros de internação socioeducativos fossem implanta-
dos da forma ideal como imaginado pela lei, de nada adiantaria
manter o menor nessa espécie de estabelecimento para depois
colocá-lo em estabelecimento prisional, já que o contato perni-
cioso que se busca evitar seria apenas postergado, ele ocorreria
de qualquer forma na segunda fase do cumprimento da pena, a
partir de quando ele se desse em estabelecimento prisional, onde
o trabalho de ressocialização se encontra cauterizado por falta
de investimento e de vontade de efetiva implementação de um
modelo ressocializador.
Com efeito, o respeito à dignidade humana deve ser es-
tabelecido não apenas nos centros voltados aos menores de de-
zoito anos de idade, mas em todos os ergástulos, já que a
socioeducação desejada para os menores e a reeducação ou
ressocialização buscadas em relação aos maiores são medidas
que, em última análise, intentam atingir a mesma finalidade.
Nesse diapasão, é possível concluir que a discussão
acerca da maioridade penal não guarda qualquer relação com o
debate sobre as condições fáticas do sistema carcerário. Portanto,
o discurso de que não se pode diminuir a idade para a imputabi-
lidade porque o sistema prisional não está pronto para receber os
menores infratores não se sustenta, já que a melhora nas condi-
ções de custódia é necessária não apenas nos estabelecimentos
prisionais, mas também nos centros de internação, não apenas
para os delinquentes menores, como para os maiores de dezoito
93
anos de idade, já que também estes se especializam no crime
dentro dos centros carcerários e voltam a delinquir, aumentando
o problema social ao invés de atenuá-lo.
Há também uma pequena variante do modelo até aqui
examinado, que permite que seja extinta a medida socioeduca-
tiva quando o menor completar dezoito anos de idade e que a
partir daí ele continue a responder pelo “crime cometido”. Essa
proposta lesa profundamente o princípio basilar do Direito Penal,
o do non bis in idem, já que num primeiro momento o menor será
julgado pelo ato infracional e num segundo momento ele será jul-
gado pelo crime. Em verdade, ou a conduta era crime ao tempo
em que foi cometida e então o menor era imputável, já que a im-
putabilidade faz parte do conceito de crime, ou, diante da inim-
putabilidade do agente, a conduta não era crime e, portanto, não
pode vir a se tornar crime posteriormente com a aquisição da im-
putabilidade pelo agente depois do fato.
Examinando as propostas que mantêm inalterado o cri-
tério biológico para simplesmente diminuir a idade de início da
imputabilidade é possível constatar que nelas a discussão se re-
sume à proporcionalidade na fixação da idade, que varia entre
dezessete e doze anos, idade esta que, convém aqui destacar,
define o início da adolescência de acordo com a Lei n. 8.069/90.
É de se notar que, se por um lado a absoluta inimputabilidade
dos menores de dezoito anos se mostra atualmente insustentá-
vel, de outro, punir pessoas em pleno processo de formação aos
doze anos não se coaduna com a dignidade da pessoa humana.
Notoriamente, a sugestão trazida nesse grupo de propostas con-
tribui muito pouco para o debate do tema e, sem dúvida, não re-
solve o problema da criminalidade juvenil. Por certo, se aprovada
qualquer das variações dessa espécie de proposta, ou se deixará
de punir adolescentes com capacidade de responder pelos seus
atos, ou se punirá quem não tem essa faculdade, mesmo que
dentro de um meio termo a respeito da idade, já que há uma zona
de indefinição entre os primeiros e os segundos.
As propostas que sugerem a redução da idade para es-
tabelecer que o agente se torna imputável apenas para determi-
nados crimes passam ao largo do conceito de imputabilidade. É
inconcebível que uma pessoa em determinada idade seja imatura
94
ou mentalmente insana ou incapaz de entender o caráter ilícito
de sua conduta ou de se determinar de acordo com esse enten-
dimento apenas em determinadas espécies de crimes. Em ver-
dade, ou a pessoa possui essas faculdades ou não as tem, pouco
importando se o crime praticado é furto, lesões corporais, homi-
cídio, tráfico ilícito de entorpecentes, etc. Escolher determinada
classe de crimes para tornar o agente imputável é atribuir a ele
dupla personalidade: numa há uma entidade com discernimento
e com capacidade de autodeterminação, noutra, há uma entidade
inconsciente e incontrolável diante de determinadas espécies de
infração penal.
De todas as propostas, a PEC n. 228/2012/Câmara é a
que se mostra mais aberrante, por combinar as duas piores me-
didas aventadas na discussão, declarando imputáveis os meno-
res entre dezesseis e dezoito anos de idade em crimes
específicos e sugerindo um escalonamento no cumprimento da
pena, que se daria parcialmente em centros socioeducativos e
parcialmente em estabelecimentos prisionais.
Da mesma forma, a PEC n. 349/2013/Câmara traz su-
gestão irracional ao buscar implementar medida contraditória re-
lativa à garantia constitucional expressa da irretroatividade da lei
penal, anunciando que ao completar dezoito anos de idade o
agente deverá responder de acordo com o Código Penal pelos
crimes praticados na adolescência, proposta inexplicável do
ponto de vista técnico.
A questão da retroação da lei diz respeito ao conflito in-
tertemporal entre normas e informa que a lei posterior não pode
regulamentar um fato ocorrido antes de sua existência, mormente
no Direito Penal, que poderia se transformar em ferramenta de per-
seguição, sobretudo, política. Assim, a proposta em tela em nada
se relaciona com a questão da imputabilidade, pois, embora altere
norma constitucional que prevê a garantia da irretroatividade da
lei penal, ela sugere em verdade a postergação da aplicação da
lei penal, que deixaria de ser aplicada no momento da ocorrência
do fato e permaneceria latente até que o agente completasse de-
zoito anos de idade. Nesses moldes, não se relevaria a maturidade
e a capacidade do agente de entender o caráter ilícito da conduta
e de se determinar de acordo com este entendimento no momento
95
do fato, mas preocupar-se-ia apenas com a idade a partir da qual
o agente poderia ser colocado em cárcere, o que destoa total-
mente do conceito de imputabilidade. Se ser imputável significa,
ao tempo da ação ou omissão, ser mentalmente maduro e ter
consciência da ilicitude da conduta e capacidade de autodeter-
minação de acordo com esse entendimento, então não há como
se estabelecer posteriormente que a pessoa adquiriu essas fa-
culdades. O fato de o agente completar dezoito anos depois da
concretização da conduta não muda sua condição pessoal exis-
tente ao tempo em que ela ocorreu.
Demais disso, se há discussão sobre a constitucionali-
dade da política criminal consistente na diminuição da idade para
responsabilização penal, principalmente em razão da localização
topográfica da disposição que garante a inimputabilidade do
menor de dezoito anos dentro do texto constitucional, em relação
à moção em tela, não há dúvida de sua inconstitucionalidade, já
que tende a abolir garantia constitucional expressa contida dentro
do capítulo do Documento Político reservado aos direitos e garantias
constitucionais. Permitir a retroação da lei para punir repre-
senta flagrante retrocesso social, o que desvirtuaria a garantia.
A respeito das propostas que deixam a cargo da lei in-
fraconstitucional a regulamentação da imputabilidade, importa
dizer que, não se tratando de conteúdo fundamental do pacto po-
lítico, essa delegação se mostra razoável. Aliás, esse sempre foi
o modelo adotado até o surgimento da Constituição de 1988. De-
veras não há razão para fossilizar o tema no corpo do Documento
Político, já que o tratamento da matéria decorre exclusivamente
de política criminal. Portanto, andam bem as propostas que se
manifestam nesse sentido.
A proposta de se considerar a idade como causa de dimi-
nuição de pena é também bastante pertinente ao tema por atender
plenamente à garantia da individualização da pena. Com efeito, a
medida se alinha em total sintonia com o Código Penal, que toma a
idade como circunstância atenuante quando o agente contava, ao
tempo do fato, com vinte e um anos de idade, ou com setenta anos
ao tempo da sentença, circunstância que também leva à diminuição
do prazo prescricional pela metade. Certamente, é plenamente pos-
sível harmonizar a presença das capacidades cognitiva e volitiva ao
96
tempo da ação ou omissão com a pouca experiência de vida do
agente para submetê-lo a uma punição mais branda.
Após verificar todas as vertentes apresentadas, é possí-
vel afirmar que as propostas que buscam aplicar o critério biopsi-
cológico para possibilitar a responsabilização do menor de dezoito
anos de idade, mentalmente sadio e maturo, quando verificada a
sua consciência do caráter ilícito da conduta e sua capacidade de
autodeterminação, apontam para a perfeita solução do problema
relativo à segurança pública, já que a sugestão é irretocável do
ponto de vista técnico, pois proporciona a aplicação justa do di-
reito para punir quem pode ser punido e preservar os que não têm
maturidade ou higidez mental ou capacidade cognitiva ou volitiva,
além de responder satisfatoriamente ao anseio social.
É certo que, pela aplicação do critério biopsicológico, é
possível dar valor a todas as peculiaridades de cada caso, de
modo a respeitar a individualidade de cada agente. Se adotado
esse critério, será possível apartar o adolescente maduro do in-
gênuo, sendo possível impor àquele uma pena proporcional ao
crime praticado e dar a este a atenção, direcionamento e apoio
necessários ao seu desenvolvimento pessoal.
Nesse enredo, o próprio Estatuto da Criança e do Ado-
lescente será visto pela população da forma devida, como norma
de proteção integral à criança e ao adolescente que visa dar
digna condição de desenvolvimento a estes, que garante os di-
reitos fundamentais a eles conferidos pela Carta Política, já que
ficará liberto do estigma de escudo de criminosos e de fato não
terá mais aplicação desvirtuada.
Portanto, assumindo as considerações feitas até então,
a proposta que se mostra mais adequada à solução do problema
em foco é aquela corporificada na PEC n. 321/2001/Câmara, se-
gundo a qual a maioridade penal será fixada em lei, devendo ser
observados os aspectos psicossociais do agente, aferido em
laudo emitido por junta de saúde, que avaliará a capacidade de
se autodeterminar e de discernimento do fato delituoso.
Eis a análise das ideias que permeiam o debate sobre a
imputabilidade no Congresso Nacional, pela qual se intenta con-
tribuir para a discussão deste tema de extrema relevância e de
urgente solução.
97
CONCLUSÃO
98
entendendo-a como criminosa, valorando-a negativamente, bem
como de se determinar de acordo com esse entendimento.
Essa é a vontade social hodierna: que criminosos sejam
punidos como o que são e que adolescentes em formação sejam
assistidos. Deveras, o Congresso Nacional não tem autoridade
para rejeitar a vontade do poder de fato que, se hoje eclodisse,
viria a ser manifestado num novo Pacto Político, a vontade do
Poder Constituinte material, que jamais se dissolve após a elabo-
ração de uma Constituição, do contrário, fica latente até emergir
novamente no cenário político e devastar a estrutura existente
para impor uma nova ordem jurídico-política. Aliás, as incessáveis
manifestações populares e a revolta da população, que desespe-
rada passa a praticar a justiça com as próprias mãos, fatos diu-
turnamente noticiados nos meios de comunicação, denotam uma
profunda alteração nas relações fáticas regulamentadas pelo art.
228 da Constituição da República de 1988, sendo possível, então,
que se reconheça a mutação constitucional dessa regra para dizer
que os menores de dezoito anos de idade são inimputáveis, salvo
se, mentalmente maduros e saudáveis, forem capazes de com-
preender que a conduta por eles praticada é criminosa e de se
determinar de acordo com essa compreensão.
Conclui-se, pois, que o que de fato se discute é uma
questão antiga, que precede a Constituição de 1988 e que foi
nela colocada de uma forma que não representa a vontade polí-
tica que deu origem a ela, de modo que a alteração do Docu-
mento Político é medida irremediável e inadiável, necessária a
sua adequação à vontade do soberano povo.
99
REFERÊNCIAS
100
Eliseu Antônio da Silva Belo*
Resumo:
Embora o art. 8º da Lei n. 9.296/96 consagre a preservação do sigilo
de conversas telefônicas interceptadas com autorização judicial, o
exame conjunto desse dispositivo legal com normas constitucionais
sobre a publicidade dos atos processuais revela que é juridicamente
possível o levantamento do sigilo sempre que o interesse público à
informação prevalecer em relação ao direito à intimidade da(s) pes-
soa(s) atingida(s) pela medida, o que deve ser evidenciado de forma
fundamentada pela respectiva decisão judicial que autorizar a divul-
gação, sendo certo que isso somente é válido quanto aos diálogos
que tenham relação com a investigação criminal ou instrução proces-
sual na qual produzida essa prova.
Abstract:
Although art. 8 of Law n. 9.296/96 enshrines the preservation of con-
fidentiality of intercepted telephone conversations with judicial autho-
rization, the joint review of this legal provision with constitutional rules
on the publicity of procedural acts reveals that it is legally possible lif-
ting of confidentiality whenever the public interest to information prevail
over the right to privacy of the person affected by the measure, which
must be shown in order founded by the respective court decision aut-
horizing the disclosure, it being understood that this is only valid for
the dialogues relating to criminal or procedural statement in which pro-
duced such evidence.
101
Resumen:
Aunque el artículo 8 de la Ley n. 9.296/96 consagra la preservación
de la confidencialidad de las conversaciones telefónicas intercep-
tadas con la autorización judicial, el examen conjunto de esta dis-
posición legal con normas constitucionales sobre la publicidad de
los actos de procedimiento revela que es legalmente posible el le-
vantamiento de la confidencialidad cuando el interés público a la
información prevalece sobre el derecho a la intimidad de la persona
afectada por la medida, que debe ser presentado por orden fun-
dada por la respectiva decisión judicial que autoriza la divulgación,
dado que esto sólo és válido con los diálogos que se relacionan
con la investigación criminal o la declaración de procedimiento
penal en el que produjo tal prueba.
Palavras-chave:
Interceptação telefônica; sigilo; divulgação; interesse público à in-
formação versus direito à intimidade; possibilidade de levanta-
mento.
Keywords:
Telephone interception; secrecy; disclosure; public interest to in-
formation versus right to privacy; possibility of lifting.
Palabras clave:
Interceptación telefónica; confidencialidad; divulgación; interés pú-
blico a la información frente al derecho a la intimidad; posibilidad
de levantamiento.
102
no mês de março de 2016, todo o país assistiu, estarrecido,
à divulgação de diversos diálogos interceptados, com autorização
judicial, entre o ex-presidente lula e diversas pessoas a ele ligadas,
inclusive algumas autoridades do mais alto escalão político, dentre
as quais a Presidente da República.
O levantamento do sigilo dessas conversas foi determinado
pelo juízo federal da 13ª vara Criminal de Curitiba/PR, mediante de-
cisão que foi bastante criticada e debatida por muitos juristas1.
Todavia, independente da análise desse caso em particular
e do contexto em que ele surgiu, imaginando-se, por exemplo, que
o juízo criminal que autorizou as interceptações bem como o levan-
tamento do sigilo fosse realmente competente para tanto, importante
perquirir se seria juridicamente viável, sob um prisma constitucional,
determinar o levantamento do sigilo de tais conversas interceptadas,
considerados os ditames constitucionais e legais da matéria.
Assentada essa premissa, impende observar que o sigilo
de conversas interceptadas com autorização judicial é estabelecido
pelo art. 8º da lei n. 9.296/96, em que se determina a preservação
desse sigilo, não abrindo em seu texto nenhuma exceção a respeito.
Entretanto, algumas disposições constitucionais consagram a publi-
cidade dos atos do Poder Público (art. 37, caput), em especial dos
atos processuais. Quanto a esses, poderá haver restrição “quando
a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem” (art. 5º, lx).
há, ainda, o reforço do inciso ix do art. 93, em que a publicidade po-
derá ser restringida “em casos nos quais a preservação do direito à
intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público
à informação” (com redação dada pela EC n. 45/2004).
Pelo que se vê, na colisão de dois princípios constitucionais
(a intimidade do interessado, de um lado, e o interesse público à in-
formação, de outro), nota-se que essa última norma constitucional
estabelece uma verdadeira preferência, prima facie, do segundo em
103
relação ao primeiro2. nesse sentido, o TRF da 3ª Região consignou
o seguinte:
Por sua vez, outra coisa diz respeito ao sigilo extraprocessual (publicidade
externa) – ou seja, a possibilidade de os cidadãos acompanharem ou não
o processo. Também aqui incide princípio da publicidade, que se plasma,
nas palavras de Ferrajoli, numa garantia das garantias ou garantia de se-
gundo grau, ou seja, pois representam instrumentos pelos quais se as-
segura o controle sobre a efetividade das demais garantias. Em nosso
ordenamento constitucional, a exceção à publicidade dos atos proces-
suais somente deve ser admitida pela lei quando a defesa da intimidade
ou o interesse social o exigirem, conforme dispõe o art. 5º, inc. lx, da
Constituição Federal.
2interessante observar que no famoso caso alemão lebach, Robert Alexy registra
que “[...] o Tribunal Constitucional Federal, em um segundo passo, sustenta uma
precedência geral da liberdade de informar [...] no caso de uma ‘informação atual
sobre atos criminosos” (AlExy, 2012, AP. 101).
104
de atos estatais desviados de suas finalidades, participação ilícita de
agentes públicos e, especialmente, de agentes políticos. proibir que a
sociedade tenha acesso ao conteúdo dos depoimentos subjacentes
seria privá-la, em última análise, não apenas da garantia constitu-
cional de participação de gestão pública, mas do próprio controle
dos atos estatais. em outras palavras, valores republicanos estão
em jogo e parece decorrer daí o interesse da sociedade em acom-
panhar o desenrolar dos fatos, sempre observado, evidentemente,
o princípio da inocência. Foi assim, inclusive, no caso do julgamento
da Ação Penal 470, em que o Supremo Tribunal Federal, nada obstante
a existência de informações cobertas pelo sigilo, deu publicidade ao jul-
gamento, com grande interesse da sociedade em seu acompanhamento.
(grifo nosso).
105
sustenta Dworkin, as cláusulas de exceção introduzidas em virtude de
princípios não são nem mesmo teoricamente enumeráveis. nunca é pos-
sível ter certeza de que, em um novo caso, não será necessária a intro-
dução de uma nova cláusula de exceção 3.
reFerÊnciAs
106
Altecir Bertuol Junior*
O AFASTAMENTO CAUTELAR
DO AGENTE PÚBLICO ÍMPROBO
SOB NOVO PANORAMA
Resumo:
O presente ensaio é voltado a analisar a medida judicial de afasta-
mento cautelar do agente público ao qual é imputada a prática de ato
de improbidade sob o prisma do princípio republicano, a fim de es-
clarecer o conteúdo da norma estampada no art. 20 da Lei n. 8.429/92
não explicitado em seu texto.
Abstract:
The present essay aims to analyze the judicial providence of injunctive
removal of official against who is imputed an act of improbity through
the prism of the republican principle to clarify the content of the norm
printed in the article 20 of the Law n. 8.429/92 which is not explicit in
its text.
Resumen:
Este ensayo es dirigido a analizar la providencia judicial de extrac-
ción preventiva de empleado estatal que es imputado um acto de
deshonestidad a vista de lo principio republicano para aclarar el
contenido de la norma constante en el art. 20 de la ley n. 8.429/92
que no se expresa en su texto.
107
Palavras-chave:
Lei n. 8.429/92, interpretação extensiva, lesão ao patrimônio público.
Keywords:
Law n. 8.429/92, extensive interpretation, public property damage.
Palabras clave:
Ley n. 8.429/92, interpretación extensiva, daños a la propiedad pública.
INTRODUÇÃO
108
DESENVOLVIMENTO
109
da instrução processual, tem-se admitido na seara acadêmica al-
gumas variantes desse requisito.
Nessa esteira, a possibilidade de repetição de atos lesi-
vos ao patrimônio público pelo agente poderia ser interpretada
como necessidade da instrução, quando os novos danos “pudes-
sem estar enquadrados no objeto da demanda, vale dizer, con-
substanciando reiteração de atos cuja repressão já se
ambicionava no próprio processo” (OSÓRIO, apud GARCIA;
ALVES, 2011, p. 905). Sob essa perspectiva, a “necessidade da
instrução” restaria configurada quando se pudesse verificar no
caso concreto, mutatis mutandis, a continuidade delitiva.
Assim, o fundamento da “garantia da ordem pública ad-
ministrativa” tem sido utilizado para sustentar a possibilidade de
se determinar medida cautelar voltada à restrição do círculo de
atribuições do agente público, das quais se vale para a prática
de atos lesivos ao patrimônio público, tolhendo-lhe assim a fer-
ramenta de que se utiliza para a prática de ilícitos, de maneira a
evitar que possa dar continuidade à atuação ímproba, medida
embasada no poder geral de cautela (ALVES, GARCIA; ALVES,
2011, p. 906-907).
Embora sem enfoque voltado à possibilidade de afasta-
mento do agente público do cargo, emprego ou função, a tutela
inibitória - aquela que, desvinculada da necessidade da ocorrên-
cia do dano, se volta a impedir a ocorrência do ato ilícito -, é
apontada como ferramenta para obstar a continuidade da prática
de ilícitos contra o patrimônio público (MACHADO NETO; VIEIRA
JÚNIOR apud OLIVEIRA et al., 2010, p. 313-315). Sobre essa
hipótese, é preciso acrescentar que, diante da ineficácia da me-
dida coercitiva por excelência - a multa diária -, no acautelamento
da ocorrência de novos danos ao patrimônio público, a utilização
da técnica executiva pelo emprego de medidas de sub-rogação
faz-se indispensável, campo em que se enquadra o afastamento
cautelar.
Nos termos acima, não é difícil constatar que se tem negado
ao patrimônio público a tutela efetiva que lhe é devida, seja pelo
fetiche da analogia à ordem pública como requisito autorizador do
afastamento cautelar, seja pelo sofisma da vinculação do afasta-
mento à sanção da perda da função pública. Aliás, o temor face a
110
esses argumentos tem levado a uma atividade acadêmica criativa
no sentido de mascarar o fundamento da necessidade de se evitar
a continuidade da prática de ilícitos contra o patrimônio público, na
qual se acaba por colocar a hipótese em uma “cama de Procrusto”,
a fim de que caiba na necessidade da instrução processual.
Com efeito, “é necessário o desenvolvimento de técnicas
processuais objetivando reforçar a prevenção, antecipando a pro-
teção do patrimônio público” (MACHADO NETO; VIEIRA JÚNIOR
apud OLIVEIRA et al., 2010, p. 313), de modo que não há, data
venia, razão para negar o afastamento cautelar do agente da im-
probidade quando evidenciado que ele continuará a praticar con-
dutas lesivas ao patrimônio público.
Não obstante tenha sido previsto no mesmo dispositivo
que disciplina a sanção da perda da função pública, o afastamento
preventivo do agente não se confunde com ela. De fato, o segundo
não é sanção, mas providência cautelar (ALEXANDRINO; VI-
CENTE, 2009, p. 840), ao passo que a primeira tem feição pura-
mente satisfatória do direito material. Com efeito, esse tratamento
conjunto das duas medidas tem colhido fundadas críticas.
Nesse sentido, tem-se afirmado que a confusão a res-
peito da natureza da providência de afastamento se dá pela má
técnica legislativa empregada, pela qual duas matérias distintas,
a saber, medida punitiva e medida de prevenção, foram agluti-
nadas num mesmo dispositivo da lei de regência (MEDEIROS,
2003, p. 214).
Além do mais, não há qualquer razão para se vincular
a possibilidade do afastamento do agente público de suas ati-
vidades, para evitar que ele se valha do cargo para continuar a
praticar ilícitos contra o patrimônio público, à hipótese prevista
na lei processual penal - necessidade da prisão preventiva para
garantia da ordem pública -, já que essa referência faz alusão
a uma ideia restritiva relativa ao direito de liberdade, que não
encontra qualquer respaldo na ação coletiva relativa à tutela do
patrimônio público. Com efeito, a prisão preventiva na hipótese
em questão não visa assegurar o provimento judicial perseguido
no processo penal - condenação do réu e imputação de uma
pena a ele -, mas a própria ordem social - indispensável à ma-
nutenção do Estado -, que resta abalada pelo alvoroço causado
111
pela repetição de crimes, mas, conforme se demonstrará, o
afastamento do agente público de suas atividades busca asse-
gurar a integral proteção da coisa pública.
Embora numa perspectiva minimizada se possa dizer que
a providência do afastamento temporário vai de encontro ao inte-
resse público, na medida em que o agente público continuará a per-
ceber sua remuneração enquanto estiver privado do exercício de
suas funções (MATTOS, 2005, p. 681-682), não se pode esquecer
que, a depender do caso concreto, o pagamento do vencimento do
agente, sem que ele dê a contraprestação, é menos oneroso ao
Estado do que suportar a continuidade de atos de improbidade que
importem em enriquecimento ilícito e/ou prejuízo ao erário.
Com efeito, a essência cautelar da medida do afasta-
mento temporário reside no fato de que ela visa à proteção da
coisa pública, provimento jurisdicional buscado na ação coletiva.
Nesse sentido, não se pode olvidar que, a depender do
caso concreto, até o trânsito em julgado da sentença, poderá
haver um dano irreparável ao patrimônio público ou de dificílima
reparação decorrente da reiteração da prática de atos de impro-
bidade, os quais, inclusive, não poderão ser coibidos na ação de
improbidade eventualmente já em curso, por não estarem pre-
sentes no momento do seu ajuizamento. Não se pode negar que
a lesão aos cofres públicos pode chegar a valor inestimável, a
depender do “esquema de corrupção” engendrado dentro da Ad-
ministração Pública por agentes públicos ímprobos, o que torna
a reparação do dano deveras difícil, uma vez que, ordinaria-
mente, são necessários anos de investigação, a fim de se pro-
duzirem provas das condutas ilícitas - atividade homérica no
Brasil, onde imperam ideais extremamente garantistas que, em
razão da falta de ponderação, cotidianamente, asseguram a im-
punidade -, as quais deverão ser confirmadas em procedimento
judicial, cuja delonga, não se pode refutar, é também comum.
Ademais, a impossibilidade de reparação dos danos de-
correntes das condutas de improbidade fica explícita no seguinte
questionamento: como se pode reparar o dano causado pelos
atos de improbidade que atentam contra os princípios da Admi-
nistração Pública (art. 11 da Lei n. 8.429/92)?
112
Assim, diante da impossibilidade prática da reparação in-
tegral de todos os danos causados ao patrimônio público, a única
alternativa é a prevenção da sua ocorrência, de modo que, a des-
peito da ausência de previsão na Lei n. 8.429/92, não há como
negar que seja possível o afastamento do agente público de suas
atividades para evitar que ele continue a praticar condutas lesivas
ao patrimônio público com base no poder geral de cautela do ma-
gistrado, prerrogativa prevista no art. 798, do Código de Processo
Civil, que integra a garantia constitucional da inafastabilidade da
jurisdição prevista no art. 5º, XXXV, da Constituição da República,
a qual assegura que o Poder Judiciário possa fazer cessar ou
evitar a ocorrência de lesão ou ameaça a direito (NERY JUNIOR,
2010, p. 1161), plenamente aplicável à hipótese.
De mais a mais, o afastamento cautelar do agente para
impedir a reiteração de atos lesivos ao patrimônio público se
mostra em consonância com o princípio constitucional da razoa-
bilidade, de obrigatória observação no caso em tela, por se tratar
de medida restritiva à esfera individual do agente público. Com
efeito, ressalvada a possibilidade de restrição das atribuições do
agente público, conforme sugerido pela doutrina e alhures de-
monstrado, o afastamento será providência necessária, posto
que não há outra medida menos grave que possa atingir o
mesmo objetivo. Além disso, a medida se mostra apta à finali-
dade que se busca - proteção integral da coisa pública -, bem
como proporcional, já que o benefício trazido à sociedade é maior
do que o ônus imposto ao agente público -, valendo lembrar
nesse ponto que, por expressa disposição da lei, o agente conti-
nuará a perceber sua remuneração enquanto afastado.
À vista dessas considerações, mostra-se plenamente
possível o afastamento cautelar do agente público para evitar que
ele continue a investir contra o patrimônio público.
113
CONCLUSÃO
114
REFERÊNCIAS
115
PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de improbidade administrativa
comentada: aspectos constitucionais, administrativos, civis, cri-
minais, processuais e de responsabilidade fiscal; legislação e ju-
risprudência atualizadas. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
116
Alline Neves de Assis *
TEORIA X PRÁTICA:
A CORRUPÇÃO FINALÍSTICA
DO ESTADO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
Resumo:
Este artigo tem por objetivo analisar como a lacuna existente entre o
que determina a teoria e o que acontece na prática possibilita a cor-
rupção da finalidade do Estado brasileiro contemporâneo, colocando
em segundo plano a promoção da dignidade da pessoa humana e
priorizando fatores de ordem econômica ou política. Todo esse pro-
cesso é catalisado por um déficit interpretativo, intencional ou não,
por parte dos administradores públicos e não observados nos pro-
cessos de controle, permitindo que os direitos básicos de grande
parte da população sejam desrespeitados.
Abstract:
This article aims to analyze how the gap between what determines the
theory and what happens in practice enables the corruption of the pur-
pose of contemporary Brazilian state, putting in second place the pro-
motion of human dignity and prioritizing of an economic factors or policy.
This entire process is catalysed by an interpretative deficit, intentional
or not, by public administrators and not observed in control processes,
allowing basic rights of much of the population are not respected.
Resumen:
En este artículo se pretende analizar cómo la brecha entre lo que de-
termina la teoría y lo que sucede en la práctica permite a la corrupción
117
de la finalidad del estado brasileño contemporáneo, poniendo en se-
gundo lugar, la promoción de la dignidad humana y la priorización de
una o factores económicos política. Todo este proceso es catalizado
por un déficit interpretativa, intencional o no, por los administradores
públicos y no se observa en los procesos de control, permitiendo que
los derechos básicos de gran parte de la población no son respetados.
Palavras-chave:
Dignidade da pessoa humana; interpretação;controle.
Keywords:
Dignity of human person; interpretation, control.
Palabras clave:
La dignidad humana; interpretación, control.
INTRODUÇÃO
118
grega, o cidadão, em si, é reconhecido como tal a partir de sua in-
serção no grupo, na comunidade política” (CACHICHI, 2011).
Conceituar política é uma tarefa árdua, por demandar valores
e princípios de uma determinada sociedade em uma determinada época.
O que se pode dizer é que, para existir política, deve-se existir uma so-
ciedade. De acordo com Dalmo de Abreu Dallari (2001), três elementos
são necessários para que um agrupamento humano possa ser consi-
derado uma sociedade: uma finalidade ou valor social, manifestações
de conjunto ordenadas e o poder social.
A finalidade social pode ser definida como um ato de escolha,
um objetivo conscientemente estabelecido mediante uma ação livre.
Em uma sociedade, formada por diversos grupos sociais, a finalidade
deve ser estabelecida de acordo com as necessidades fundamentais
e com os valores consagrados por todos, visando ao bem comum, que
pode ser genericamente definido como o “conjunto de condições, in-
cluindo a ordem jurídica e a garantia de possibilidades que consintam
e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana”
(DALLARI 2001, p. 24).
As manifestações de conjunto ordenadas consistem na ne-
cessidade de participação conjunta e harmônica dos agrupamentos
de pessoas visando à consecução do objetivo almejado. E, para
tanto, tais manifestações devem atender três requisitos principais e
cumulativos: reiteração, ordem e adequação.
E, por fim, o poder social, considerado por muitos como o
principal no estudo de uma sociedade, está intrinsecamente relacio-
nado com os aspectos culturais e sociais do momento a ser anali-
sado e, portanto, é um instituto de difícil definição. Mesmo assim,
Dallari aponta algumas características gerais, necessárias para que
se chegue a uma leve noção do fenômeno. Segundo ele:
119
Dallari ainda afirma que o Estado seria, portanto, uma so-
ciedade política - ou seja, que “visa criar condições para a consecu-
ção dos fins particulares de seus membros, ocupando-se da
totalidade das ações humanas, coordenando-as em função de um
fim comum” (2001, p. 48) - com alguns elementos essenciais carac-
terísticos, quais sejam: o território, o povo, a soberania e a finalidade.
Norberto Bobbio (1998, p. 954-955) defende a ideia de que
política é “a atividade ou conjunto de atividades que, de alguma ma-
neira, têm como termo de referência a pólis, ou seja, o Estado” e está
intimamente ligada ao conceito de poder, definido como “consistente
nos meios adequados à obtenção de qualquer vantagem”, ou como
“conjunto dos meios que permitem alcançar os efeitos desejados”. Se-
gundo ele, o poder se exterioriza em três maneiras: o poder econômico,
o poder intelectual e o poder político. “O poder mais relevante na so-
ciedade é o poder político, pois detém, privativamente, a força para ma-
nutenção da ordem. Impõe, nos limites da lei, a vontade de quem o
exerce, atuando em nome do povo” (apud PINTO, 2010, p. 207).
Paulo Bonavides entende que o poder pode ser definido
como um “elemento essencial constitutivo do Estado” e representa
“aquela energia básica que anima a existência de uma comunidade
humana, num determinado território, conservando-a unida, coesa e
solidária”. Para ele, com o poder se entrelaçam a força e a compe-
tência, ou seja, a legitimidade oriunda do consentimento. A principal
característica do Estado moderno seria a prevalência da legitimi-
dade sobre a força, caracterizada por um processo de despersona-
lização do poder, marcado pela “passagem de um poder de pessoa
a um poder de instituições, de poder imposto pela força a um poder
fundado na aprovação do grupo, de um poder de fato a um poder
de direito” (2011, p. 115).
Portanto, nos Estados Modernos o poder tem por funda-
mento a legalidade e a legitimidade, em que a legalidade exprime,
basicamente, a observância das leis e do Direito e a legitimidade en-
globa crenças de determinada época, que presidem à manifestação
do consentimento e da obediência (BONAVIDES, 2014).
Percebe-se, dessa maneira, que o Direito possui um papel
fundamental na caracterização do poder estatal e na maneira com
que ele se manifesta, não sendo possível classificá-lo exclusivamente
como poder político. Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2006, p. 3)
120
considera poder e Direito como os “dois grandes instrumentos do
progresso e da civilização: o poder - a energia que move os homens
e as sociedades para a realização de seus objetivos, e o direito - a
técnica social criada para a disciplina e a contenção do poder”.
Assim, o poder do Estado hodiernamente se manifesta obe-
decendo ao mandamento constitucional do Estado Democrático de
Direito, previsto no artigo 1º da Constituição Federal. E, para uma me-
lhor compreensão do tema, é necessário analisar três aspectos fun-
damentais do poder: o Estado, como poder instituído; a democracia,
como meio de se atingir o consenso, considerando o povo como
“dono” do poder; e o Direito, como um instrumento de limitação do
poder. Entretanto, para fins desse estudo, serão analisados somente
o Estado e o Direito, tendo por base a Constituição Federal de 1988.
É claro que a separação aqui demonstrada é apenas para
fins didáticos, visto que os institutos mencionados não são constru-
ções atemporais e independentes, sendo impossível, empiricamente,
fazer uma separação rígida entre eles.
ESTADO
121
Os fins objetivos compreendem “o papel representado pelo Es-
tado no desenvolvimento da história da Humanidade”. Para al-
guns autores, como Platão e Aristóteles, existem fins universais
objetivos, comuns a todos os Estados de todos os tempos. Ou-
tros autores, entretanto, não admitem esse pensamento, defen-
dendo a ideia de que o Estado é um fim em si mesmo (teoria
organicista); de que não existe uma finalidade específica para o
Estado, visto que a vida social não pode ser controlada e domi-
nada (teoria mecanicista); ou que, na verdade, o que existem são
fins particulares objetivos, e não fins universais objetivos, como
defendido, levando-se em consideração o fato de cada Estado
ter seus fins particulares, “que resultam das circunstâncias em
que eles surgiram e se desenvolveram e que são condicionantes
de sua história” (2001, p. 104).
Já os fins subjetivos se referem à conjugação entre os
fins do Estado e os fins individuais. “O Estado é sempre uma uni-
dade de fim, ou seja, é uma unidade conseguida pelo desejo de
realização de inúmeros fins particulares, sendo importante loca-
lizar os fins que conduzem à unificação” (DALLARI, 2001, p. 104).
Outra classificação importante é a que diferencia os fins
do Estado segundo o ponto de vista do relacionamento do Estado
com os indivíduos, quais sejam: fins expansivos, fins limitados e
fins relativos.
Um Estado com fins expansivos atua desmesurada-
mente em todas as áreas da vida social, interferindo diretamente
em todas elas. Dallari elenca como subdivisões dessa classifica-
ção as teorias utilitárias, segundo as quais o “bem supremo má-
ximo é o desenvolvimento material, mesmo que isso se obtenha
com o sacrifício da liberdade e de outros valores fundamentais
da pessoa humana” (2001, p. 104-105); e as teorias éticas, que
“preconizam a absoluta supremacia de fins éticos, sendo este o
fundamento da ideia do Estado ético” (2001, p. 105). Um exemplo
desse tipo de Estado seria o Estado de bem-estar.
Um Estado com fins limitados ocupa a “posição de mero
vigilante da ordem social, não admitindo que ele tome iniciativas,
sobretudo em matéria econômica”. Dentre os exemplos desse
tipo de Estado encontram-se o Estado de polícia, em que só há
uma atuação estatal para “proteger a segurança dos indivíduos,
122
nos casos de ameaça externa ou de grave perturbação interna”;
e o Estado-liberal, inspirado em John Locke, o qual possui exclu-
sivamente a “função de proteger a liberdade individual, empres-
tando um sentido muito amplo ao termo liberdade, não admitindo
que qualquer indivíduo sofra a mínima restrição em favor de outro
indivíduo, da coletividade ou do Estado” (2001, p. 105).
Já um Estado com fins relativos baseia-se na ideia de
solidariedade. “Trata-se de uma nova posição, que leva em conta
a necessidade de uma atitude nova dos indivíduos no seu rela-
cionamento recíproco, bem como nas relações entre o Estado e
os indivíduos” (DALLARI, 2001, p. 106). Dallari ainda comple-
menta, afirmando que nesse tipo de Estado, as categorias de ta-
refas estatais se resumem em conservar, ordenar e ajudar.
Existe uma última classificação que divide os fins do Es-
tado em: fins exclusivos ou essenciais, que são aqueles que per-
tencem originariamente ao Estado e compreendem a segurança,
externa e interna; e fins concorrentes, complementares ou inte-
grativos, os quais “não exigem que o Estado trate deles com ex-
clusividade, achando-se, no todo ou em parte, identificados com
os fins de outras sociedades” (DALLARI, 2001, p. 107).
Sintetizando todas as ideias apresentadas, Dallari afirma
que o Estado, como sociedade política, possui um fim geral,
constituindo-se em meio para que os indivíduos e as demais so-
ciedades possam atingir seus respectivos fins particulares. No
Estado moderno, pode-se afirmar que o fim do Estado é o bem
comum, definido como o “conjunto de todas as condições de vida
social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da
personalidade humana”, as quais precisam ser verificadas no
contexto do Estado, em função das peculiaridades de cada povo
(DALLARI, 2001, p. 107).
Vale ressaltar, ainda, o ensinamento do referido autor se-
gundo o qual, na consecução de seus objetivos, os Estados
devem levar em conta três dualismos fundamentais em suas de-
cisões: necessidade e possibilidade, indivíduos e coletividade, e
liberdade e autoridade, agindo da forma que melhor atenda aos
anseios sociais.
123
ESTADO CONTEMPORÂNEO
124
A base de sustentação do poder monárquico era a ideia de que o
poder dos reis derivava de algo divino, transcendental, o que sig-
nificava a completa autonomia do monarca e a impossibilidade de
controle ou limitação por nenhum outro poder ou instituição.
A segunda versão do Estado moderno foi o Estado liberal,
inaugurado com a Revolução Francesa em 1789, que surgiu da
luta burguesa contra o absolutismo e caracterizava-se por “uma
ideologia de princípios individualistas, que defendia garantias contra
os poderes arbitrários, direitos humanos, liberdade, mobilidade so-
cial e, principalmente, a limitação da área de ingerência do Estado,
entre outras ideias” (STRECK; MORAIS, 2004, p. 49).
Definir o liberalismo é uma tarefa difícil, mas Streck e
Morais, utilizando a divisão formulada por Roy Macridis, identifi-
cam alguns núcleos distintos - moral, político e econômico -, que
se mantiveram em todas as fases de seu desenvolvimento.
No núcleo moral, encontram-se as liberdades pessoais,
fundadas na garantia de proteção individual contra o governo, e
sociais, que correspondem às denominadas oportunidades de
mobilidade social, “sendo que todos têm a possibilidade de al-
cançar uma posição na sociedade compatível com suas poten-
cialidades” (STRECK; MORAIS, 2004, p. 53).
O núcleo político apresenta-se sob quatro aspectos: 1)
consentimento individual, fonte da autoridade política e dos po-
deres do Estado; 2) representação, em que os competentes para
decidir eram eleitos pelo povo, conforme determinados requisitos
pré-estabelecidos; 3) constitucionalismo, definido como o res-
peito a um documento fundamental que delimitasse o poder po-
lítico e orientasse a atividade estatal; 4) soberania popular, em
que a fonte do poder político é a vontade geral, normalmente ex-
ternada por meio de representantes eleitos.
E, por fim, o núcleo econômico pode ser relacionado com
o modelo de economia liberal, cujos pilares são a propriedade
privada e o mercado livre de controles estatais, e se relaciona
com “a ideia dos direitos econômicos e de propriedade, indivi-
dualismo econômico ou sistema de livre empresa ou capitalismo”
(STRECK; MORAIS, 2004, p. 55).
No final do século XIX, impulsionada pelo crescimento
das cidades e surgimento do proletariado urbano, houve uma
125
mudança significativa no pensamento liberal, com a substituição
de um minimalismo estatal, atuante apenas para a segurança in-
dividual, por uma visão mais abrangente, em que o Estado teria
o papel de remover os obstáculos “para o autodesenvolvimento
dos homens, pois com um maior número de indivíduos podendo
usufruir das mais altas liberdades, estar-se-ia garantindo efetiva-
mente o cerne liberal, qual seja: a liberdade individual” (STRECK;
MORAIS, 2004, p. 57). Assim, surge a ideia de justiça social, na
qual se preconiza a igualdade de oportunidades e a solidarie-
dade, e uma terceira versão do Estado entra em cena: o Welfare
State ou Estado de bem-estar social.
De acordo com Maximiliano Martin Vicente (2009), o Es-
tado de bem-estar social, estabelecido entre 1940-1960, período
conhecido como “era dourada do capitalismo”, visava recuperar
“o vigor e a capacidade de expansão dos países capitalistas após
a tensão social, econômica e política do período entre guerras”.
Por certo tempo, o objetivo foi alcançado, propiciando, através
do desenvolvimento econômico, das garantias sociais e do ofe-
recimento de emprego para a maioria da população nos países
mais desenvolvidos, o crescimento econômico industrial e a im-
plementação das políticas sociais por meio da participação de di-
ferentes setores da sociedade.
Certo é que o Estado, principalmente após a Segunda
Guerra Mundial, passou de figura passiva na ordem social, inter-
ferindo apenas quando era estritamente necessário, para uma fi-
gura ativa, com a obrigação não apenas de garantir direitos,
como também de provê-los. Por isso, Streck e Morais caracteri-
zam o Estado de bem-estar social como “aquele que garante
tipos mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação, educa-
ção, assegurados a todo cidadão, não como caridade, mas como
direito político” (2004, p. 71).
Entretanto, o momento dourado do Estado de bem-estar
social começou a sucumbir em meados de 1970, principalmente
com as crises do petróleo de 1973 e 1979. A alta do preço do petró-
leo e do gás natural interferiu diretamente nas indústrias dos países
capitalistas e representou “uma das jogadas do bloco soviético para
estrangular o abastecimento de combustíveis da potência norte-
americana” (VICENTE, 2009), haja vista a ex-União Soviética ter
126
sido uma potência na produção dos referidos combustíveis.
Nesse contexto, ganha força a ideologia neoliberal, cujas
ideias começaram a se consolidar na década de 1940, na cidade
de Mont Pèlerin, em que um grupo de intelectuais, liderados por
Friederich Hayek, se reuniam anualmente. Para os neoliberais,
“os problemas enfrentados pelos países ocidentais provinham
das pressões do operariado por melhores salários, o que resul-
tava em despesas excessivas por parte do Estado”.
127
opinião: a globalização.
Houve, portanto, uma redefinição do papel do Estado,
provocada pela “formação de blocos políticos e econômicos, pela
perda de densidade do conceito de soberania e pelo aparente
esvaziamento do poder diante da globalização” (BARROSO,
2011, p. 91). Mas isso não significa que o Estado tenha perdido
o protagonismo nas relações sociais e nem que está em vias de
desaparecer. No entendimento de Luís Roberto Barroso:
128
E a pergunta que não quer calar: onde aparece o Brasil
nessa história?
Alguns autores afirmam que o Estado de bem-estar so-
cial nunca chegou a ser implantado no Brasil. A meu ver, nem o
Estado liberal, com seus ideias de liberdade do indivíduo e não
intervenção estatal, teve um desenvolvimento completo. Como
visto, o contexto histórico brasileiro sempre foi deslocado da his-
tória das civilizações ocidentais centrais, o que leva Streck e de
Morais (2004) a afirmarem que a modernidade brasileira é tardia
e arcaica, necessitando de uma atenção específica ao analisá-
lo e compará-lo com o de outros países. O que torna, dessa ma-
neira, a responsabilidade do Estado brasileiro maior ainda, visto
que “em países como o Brasil, em que o Estado Social não exis-
tiu, o agente principal de toda a política social deve ser o Estado”
(STRECK; MORAIS, 2004, p. 78).
É curioso estabelecer um papel tão importante para o
Estado em um momento em que as ideias neoliberais ganham
força, principalmente pela ineficiência estatal na consecução de
seus deveres fundamentais e pela atual crise político-econômica,
que necessita de medidas de austeridade para ser controlada (se
ainda for possível controlá-la). Assim, as desigualdades sociais
se agigantam. Como conciliar esses dois cenários?
Streck e Morais defendem a ideia de que o responsável
por essa conciliação seria o Direito, enquanto “legado da moder-
nidade [...] e como um campo necessário de luta para a implan-
tação das promessas modernas” (2004, p. 79). Assim, o
parágrafo 1º da Constituição cumpre um papel social importan-
tíssimo, ao estabelecer que a dignidade da pessoa humana é um
dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Isso significa
que o Estado brasileiro tem como finalidade e como limite à sua
atuação a promoção dos direitos humano-fundamentais.
Entretanto, empiricamente, o problema que surge é a
inefetividade dos dispositivos da Constituição, o que causa uma
crise de legalidade, e a irresponsabilidade dos governantes em
suas decisões, perpetuada pela ineficácia dos órgãos de controle
e a quase inexistência do controle social.
Existe ainda um agravante nessa história: o Estado poiético.
Joaquim Carlos Salgado divide o Estado, desde a sua formação, em
129
duas categorias – o ético e o poiético. O Estado ético seria a conju-
gação entre liberdade e poder, sendo classificado como imediato,
que abrange o período greco-romano até a Idade Média; técnico,
que surgiu no século XVII; e, o mediato ou Estado de Direito, que
teve como marco inicial a Revolução Francesa.
O Estado ético imediato caracteriza-se por sua dimensão
ética, é um “Estado para”, “que se justifica por uma finalidade; o
poder é para realizar alguma coisa, não é em si mesmo. E o que
o justifica é ético: o bem para o indivíduo, enquanto existente em
uma comunidade” (SALGADO, 2002).
No Estado ético mediato ou Estado de Direito existe uma
preocupação com relação à legitimidade. “O Estado ou o poder
político legitima-se ou justifica-se pela sua origem, pela técnica
com que o poder se exerce e pela finalidade” (SALGADO, 2002).
O Estado poiético, por sua vez, seria a ruptura do Estado
ético contemporâneo ou Estado de Direito, ou seja, o indivíduo,
considerado como um ser livre, deixa de ser um fim em si mesmo
e passa a ser um instrumento para algo ou alguém. Segundo
Joaquim Carlos Salgado (2002), na sociedade contemporânea,
existe um grupo que domina a técnica através do econômico,
transformando em mercadoria a força de trabalho e considerando
o trabalhador apenas em sua capacidade de fazer, impondo-lhe
o regime da oferta e da procura, expulsando-o da estrutura es-
sencial da unidade de produção, ou seja, a empresa. No Estado
poiético, o produto do fazer é o econômico, que nenhum com-
promisso tem com o ético, visto que não se dirige a realizar os
direitos sociais, e procura, com a aparência de cientificidade, sub-
jugar o político, o jurídico e o social.
Essa cisão do Estado causa graves consequências so-
ciais. De acordo com Salgado, essas consequências podem ser
resumidas em três grupos: um grupo de natureza moral, um de
natureza política e um de natureza jurídica. A consequência moral
se refere ao surgimento de uma corrupção da República, não
apenas de indivíduos, em que a burotecnocracia age como um
instrumento de usurpação da legitimidade democrática do poder.
A consequência política resume-se à sua incompatibili-
dade com a democracia, haja vista o aumento do poder burocrata
e a diminuição do poder exercido mediante a vontade popular. “O
130
Estado poiético é uma das formas de usurpação ou alienação do
poder, operando uma cisão profunda entre a potestas ou titulação
do poder e a auctoritas ou exercício” (SALGADO, 2002).
E, por fim, a consequência jurídica é vista no caráter a-ético
ou a-jurídico desse tipo de Estado, que busca justificar-se pela pró-
pria técnica ou aparência de técnica que o define, causando uma
insegurança jurídica generalizada, catalisada por uma anarquia le-
gislativa, repleta de medidas provisórias, que nem sempre são ne-
cessárias ou urgentes, e emendas à Constituição, como soluções
para qualquer dificuldade encontrada pelo administrador.
Conclui-se, portanto, que apesar do aparato teórico exis-
tir, a realidade da sociedade brasileira é muito diferente do que
deveria ou poderia ser. Mesmo que a defesa da dignidade da
pessoa humana seja expressamente uma finalidade do Estado,
com proteção constitucional, por muitas vezes, argumentos polí-
ticos, econômicos ou tecnológicos se sobrepõem. Enquanto isso,
o Brasil continua em um ciclo vicioso interminável, no qual se di-
videm dois tipos de pessoas: “o sobreintegrado ou sobrecidadão,
que dispõe do sistema, mas a ele não se subordina, e o subinte-
grado ou subcidadão, que depende do sistema, mas a ele não
tem acesso” (STRECK; MORAIS, 2004, p. 80).
ESTADO DE DIREITO
131
ou seja, “através de um meio de ordenação racional, vinculativa-
mente prescritivo, de regras, formas e procedimentos que ex-
cluem o arbítrio e a prepotência”; h) segurança e certeza jurídicas
(STRECK; MORAIS, 2004, p. 99).
Gustavo Binenbojm define Estado Democrático de Di-
reito como a conjugação entre direitos fundamentais e democra-
cia, “estruturado como conjunto de instituições jurídico-políticas
erigidas sob o fundamento e para a finalidade de proteger e pro-
mover a dignidade da pessoa humana” (2014, p. 51).
Segundo André Ramos Tavares, a principal característica
de um Estado de Direito é a exigência de que a conduta dos de-
tentores do poder se coadune com a lei, como expressão da von-
tade geral. A imposição da legalidade justifica-se pela exigência
de legitimidade, segundo a qual “as leis hão de guardar corres-
pondência com os anseios populares, consubstanciados no es-
pírito constitucional” (2013, p. 518).
Entretanto, a legalidade, entendida apenas como o res-
peito à lei, passou por uma crise, marcada pela insuficiência da
lei em abranger uma complexidade de situações características
das sociedades modernas e pela ineficácia dos enunciados nor-
mativos de uma maneira geral, favorecida pela ineficiência dos
poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. André Ramos Tavares
acrescenta ainda o abuso praticado pelos integrantes do Poder
Legislativo, que decorria do “excesso de leis na regulamentação
da vida social, de sua indesejada intromissão em setores ante-
riormente ressalvados, do emaranhado e dispersividade das leis,
gerando a insegurança, bem como da falência qualitativa verifi-
cada como constante nas leis” (2013, p. 52).
Dessa forma, ganha força a ideia de se ter um documento
formal, hierarquicamente superior às leis e aos governantes e fun-
damento do ordenamento jurídico, que preveja não apenas as ca-
racterísticas basilares de um Estado, tal qual forma de governo e
sistema de governo, mas que também cumpra o papel de limitação
do poder. É claro que nem o constitucionalismo e nem a noção de
limitação do poder são recentes, mas o que torna o constituciona-
lismo moderno tão peculiar é a centralização jurídica da Constitui-
ção (contribuição da teoria de Kelsen em 1934) e o caráter
normativo dos princípios, instrumentos na necessária dinamicidade
132
jurídica e que serão analisados posteriormente.
CONSTITUCIONALISMO
133
dos valores da sociedade, que passam a ter aplicabilidade direta
e imediata, não necessitando da criação de uma lei posterior para
que tenha efeitos jurídicos. Além disso, os princípios adquirem o
status de referenciais interpretativos, ou seja, devem ser obser-
vados na aplicação das normas jurídicas, alcançando todos os
ramos do direito.
134
princípio, a dignidade humana funciona tanto como justificação
moral quanto como fundamento normativo para os direitos fun-
damentais” (BARROSO, 2013, p. 43). Barroso ainda afirma que,
em uma concepção minimalista, a dignidade da pessoa humana
é composta por três elementos: valor intrínseco da pessoa hu-
mana, autonomia individual e valor comunitário.
Qual seria, dessa maneira, a relação entre dignidade da
pessoa humana e direitos fundamentais? Segundo Barroso
(2013), o conteúdo jurídico do princípio da dignidade humana
vem associado aos direitos fundamentais e abrange aspectos
dos direitos individuais, políticos e sociais.
135
de valores em si, a serem protegidos e fomentados pelo Estado,
pelo Direito e pela sociedade.
136
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E OS DIREITOS HUMANO-
FUNDAMENTAIS
137
direitos fundamentais?
Habermas propõe a substituição da razão prática kan-
tiana por uma razão comunicativa, ou seja, a maneira de conciliar
facticidade e validade no campo do Direito é através da razão
comunicativa, baseada no “uso da linguagem orientada pelo en-
tendimento, através da qual os atores coordenam suas ações
(agir comunicativo)” com implicações nas relações sociais.
Ele trabalha com três elementos principais: quem age,
quem sofre a ação e o que legitima a ação. Uma característica
intrínseca nos elementos “quem age” e “quem sofre a ação” é a
autonomia: com relação ao primeiro, subentende-se a autonomia
em utilizar ou não sua liberdade argumentativa e, ao segundo, a
autonomia em subordinar-se às regras que ele mesmo criou (so-
berania popular). No que se refere “ao que legitima a ação”, Ha-
bermas utiliza o princípio da teoria do discurso como pressuposto
para um agir comunicativo válido.
A teoria do discurso defendida por Habermas baseia-se
em uma racionalidade procedimental, segundo a qual as quali-
dades constitutivas da validade de um juízo devem ser procura-
das, não apenas na dimensão lógico-semântica da construção
de argumentos e da ligação lógica entre proposições, mas tam-
bém na dimensão pragmática do próprio processo de fundamen-
tação (1997, p. 281). Os direitos humanos, nesse contexto,
exerceriam a função de standards, ou seja, de parâmetros tanto
na argumentação quanto na verificação da conformidade dessa
argumentação com a realidade empírica.
138
baseada em uma argumentação racional. Com relação aos direi-
tos fundamentais, a argumentação tem um caráter primordial,
visto que não são fundados em teorias materiais, mas em teorias
de princípios.
139
como referência. Entretanto, analisando tudo o que foi exposto
neste trabalho e relembrando que os direitos fundamentais têm
a função de orientar as ações dos três poderes, acredito que não
existe nenhum empecilho em aplicar as referidas teorias também
às decisões dos administradores públicos, principalmente àque-
las que se referem a uma atuação positiva do Estado.
Nesse aspecto, o problema se agrava. Primeiro: na prá-
tica, as decisões dos administradores não são fundamentadas;
segundo: quando existe, a fundamentação é baseada em con-
ceitos abertos, como, por exemplo, o interesse público, que nin-
guém sabe ao certo o que significa; terceiro: a chamada “legal
injustice”, ou seja, em um rol de soluções possíveis e legítimas,
escolhe-se aquela que não resolve o problema concreto da me-
lhor forma possível. Como controlar tais decisões? É evidente
que o lindo discurso humanitário não é suficiente.
André Ramos Tavares (2013, p. 438), citando a lição de
Lewandowski, elucida que os meios formais de justificação dos
direitos humanos existem, a dificuldade encontra-se em sua con-
cretização, ou seja, é um problema político e não filosófico.
140
o discurso humanitário seja incorporado ao ordenamento jurídico
com o status de dogma. Isso acaba refletindo no pensamento so-
cial contemporâneo, que pode se enveredar por dois caminhos
opostos e igualmente prejudiciais.
De um lado, existem aqueles que consideram os direitos
humanos como instrumento de grupos minoritários que vivem à
custa do governo e que servem exclusivamente para defendê-
los e privilegiá-los. Nesse mesmo grupo também se encontram
alguns que se consideram parte de um grupo minoritário e se
apropriam do discurso dos direitos humanos, como se quem não
fizesse parte do grupo em questão não possuísse legitimidade
para questionar e defender questões sociais fundamentais.
De outro lado, existem os que idealizam os direitos hu-
manos como o único meio de salvar a humanidade. Também con-
sidero esse pensamento prejudicial pela incompatibilidade entre
tal idealização e a realidade, ou seja, direitos humanos não
podem ser vistos como algo transcendental, uma dádiva divina.
É necessário ter em mente que é uma construção social, fruto de
lutas históricas e, quanto menos for tratado como algo intangível
e sem defeitos, mais fácil será sua concreta efetivação.
CONCLUSÃO
141
Os mais desanimados poderiam dizer que a realidade só
esteja sendo um instrumento para escancarar o fracasso prático
do discurso dos direitos humanos. Eu não acredito nisso. Por
mais que o cenário seja de pessimismo, os direitos humanos têm
potencial para efetivamente transformar a sociedade. Ou, como
diria Samuel Moyn, talvez acreditar nos direitos humanos seja a
única opção, depois que todas as outras utopias fracassaram.
REFERÊNCIAS
142
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo – di-
reitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 3. ed.
Rio de Janeiro, Renovar, 2014.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson
Coutinho; apresentação de Celso Lafer. Rio de Janeiro: Elsevier,
2004.
143
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado.
22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
STRECK Lênio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência po-
lítica e teoria geral do Estado. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Ad-
vogado, 2004.
144
Marcio Rodrigo Delfim*
Resumo:
Neste brevíssimo texto procuro tecer alguns comentários a respeito
daquilo que denomino “princípio da ultraprioridade absoluta”, que
nada mais é do que uma construção teórica realizada a partir da in-
terpretação conjunta do “princípio da absoluta prioridade”, contem-
plado no art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente e do
“princípio da prioridade”, previsto no art. 8º do Estatuto da Pessoa
com Deficiência. Como a elaboração desta teoria parte de um acon-
tecimento concreto vivenciado por mim e procura chegar a uma con-
clusão genérica a respeito do assunto, é possível afirmar que o
método utilizado na estruturação do pensamento foi o indutivo. Por
fim, é importante esclarecer que, muito embora os mais ortodoxos
não vejam com “bons olhos” a utilização da primeira pessoa do sin-
gular, utilizo tal artifício apenas e tão somente para conferir um as-
pecto mais humanizado e pessoal acerca do tema, motivo pelo qual
este expediente não deve ser interpretado como “arrogância acadê-
mica”, pois, definitivamente, não é essa a minha intenção.
Abstract:
This text try to make some comments about what I call "principle of ultra
145
absolute priority," which is nothing more than a theoretical construct
made from the joint interpretation of the "principle of absolute priority"
as set out in art. 4º of the Statute of Children and Adolescents and the
"principle of priority", provided for in art. 8º of the Statute of Persons
with Disabilities. As the development of this theory part of a particular
event experienced by me and demand reach a general conclusion
about the subject, it is clear that the method used in the structuring of
thought was inductive. Finally, it is important to clarify that, although
the more orthodox not see with "good eyes" the use of the first person
singular, I use this device only and solely to impart a more human and
personal aspect of the topic, which is why this device should not be
construed as "academic arrogance" because it definitely is not my intention.
Resumen:
Este texto trata de hacer algunos comentarios sobre lo que llamo
"principio de la ultra prioridad absoluta", que no es más que una cons-
trucción teórica a partir de la interpretación conjunta del "principio de
máxima prioridad" según lo establecido en el art. 4º del Estatuto del
Niño y del Adolescente y el "principio de prioridad", previsto en el art.
8º del Estatuto de las Personas con Discapacidad. A medida que el
desarrollo de esta parte teórica de un evento en particular experimen-
tado por mí y la demanda de llegar a una conclusión general sobre el
tema, está claro que el método utilizado en la estructuración del pen-
samiento era inductivo. Por último, es importante aclarar que, si bien
la más ortodoxa no ve con "buenos ojos" el uso de la primera persona
del singular, yo uso este dispositivo solamente y exclusivamente para
impartir un aspecto más humano y personal del tema, por lo que este
dispositivo no debe ser interpretado como "arrogancia académica"
porque definitivamente no es mi intención.
Palavras-chave:
Atendimento, prioridade, crianças, adolescentes, deficientes.
Keywords:
Service, priority, children, teenagers, disabled.
Palabras clave:
Servicio, prioridad, niños, adolescentes, personas con discapacidad.
146
Recentemente, meu filho, que tem síndrome de down, pre-
cisou se submeter a uma cirurgia cardíaca na cidade de São Paulo.
Alguns dias depois de ele receber alta, após quase um mês
de internação hospitalar, eu e minha esposa não víamos a hora de
voltar para casa (em Goiânia).
Assim, no último dia 28 de setembro, ao chegarmos ao aero-
porto de Congonhas, em São Paulo, rapidamente nos dirigimos a um
dos guichês de atendimento da empresa responsável pela nossa via-
gem, a fim de realizar o check-in e despachar nossas bagagens.
nesse momento, um dos funcionários da referida compa-
nhia aérea nos perguntou qual o destino da nossa viagem. Assim
que nós dissemos que estávamos vindo para Goiânia, ele nos en-
caminhou a uma fila de “passageiros com preferência”.
tal fato nos chamou atenção porque, enquanto a maior
parte dos guichês de atendimento da mencionada empresa aérea
estavam bastante tranquilos, com, no máximo, duas ou três pes-
soas para serem atendidas, a fila do guichê indicado estava enorme.
Era possível encontrar idosos, mulheres com crianças de colo, ca-
deirantes e, também, pessoas que, aparentemente, não deveriam
estar ali.
Após questionar outra funcionária da empresa, a respeito dos
critérios utilizados para a seleção dos passageiros “preferenciais”, fui
informado de que, além das pessoas com as características já men-
cionadas, também tinham preferência no atendimento todos aqueles
que possuíssem um “cartão fidelidade” da referida empesa aérea.
nesse momento, pedi para minha esposa ficar na fila en-
quanto eu ia conversar com a funcionária responsável pelo guichê
“preferencial”.
Inicialmente eu expliquei para a referida funcionária que
meu filho, além de ser uma criança de colo (à época com apenas
cinco meses de vida), era deficiente, na acepção jurídica do termo
(a síndrome de down é considerada deficiência intelectual) e, além
disso, tinha acabado de se submeter a uma complexa cirurgia car-
díaca. na sequência, eu perguntei se nós poderíamos ser atendidos
antes dos demais passageiros.
A resposta veio de uma forma bastante direta: “- Senhor,
todos os passageiros desta fila são preferenciais”.
147
Eu, sinceramente, não podia acreditar no que acabava de
ouvir. De acordo com a política da referida empresa, uma criança de
colo com necessidades especiais e uma pessoa com o “cartão fide-
lidade” da empresa deveriam receber o mesmo tratamento.
Diante de tal resposta, eu comecei a explicar para a funcio-
nária que essa forma de tratamento era totalmente incompatível com
a nossa legislação, em especial com a Constituição da República de
1988, com o Estatuto da Criança e do Adolescente (lei n. 8.069/90),
com o Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei n. 13.146/15) e com
a lei n. 10.048/00.
A resposta novamente veio de forma lacônica: “- Senhor,
como eu já disse, todos os passageiros desta fila são preferenciais”.
Por sorte, as pessoas que estavam na fila, ao escutarem o
teor da conversa, demonstraram profundo bom senso, pois come-
çaram a pedir para a funcionária nos atender antes dos demais, o
que foi feito muito a contragosto, tanto que ela insistiu em dizer o se-
guinte: “- Senhor, apesar de todos os passageiros desta fila serem
preferenciais, desta vez eu vou abrir uma exceção”.
nesse momento, eu respirei fundo, controlei meu estresse
(para não falar umas “verdades” para ela) e simplesmente agradeci
o “favor” que ela havia nos feito.
Apesar de superado o impasse, minha indignação ainda
persiste. Por isso, resolvi escrever esse brevíssimo texto.
148
seus colaboradores. Apesar disso, é possível tecer algumas consi-
derações mais detalhadas a respeito do assunto.
149
da criança como pessoa em desenvolvimento”, mencionada no art.
6º do ECA, violando, com isso, seu respeito e sua dignidade.
Complementando tal raciocínio, a alínea “b” do parágrafo
único do art. 4º do ECA estabelece:
150
eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. as viola-
ções a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das
relações entre o cidadão e o estado, mas igualmente nas relações
travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. assim,
os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam
diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados
também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.
(...) (grifei). (StF - RE 201819/Rj, rel. Min. Ellen Gracie, rel. p/ acórdão
Min. Gilmar Mendes, j. 11/10/2005, 2ª t., Dj 27/10/2006, p. 64).4
151
nesse momento interessa trazer à tona, especificamente, o
art. 8º do referido diploma legal, cuja redação estabelece o seguinte:
152
ao público devem observar a prioridade de atendimento inerente às
pessoas com deficiência.
Por fim, é importante trazer à baila o art. 5º do Estatuto da
Pessoa com Deficiência, que contempla a seguinte regra:
153
referênCias
154
FERREIRA, Aurélio buarque de holanda. Dicionário Aurélio da
língua Portuguesa. Disponível em: <http://intranet.mpgo.mp.br/
aurelio/>. Acesso em: 15 out. 2015.
155
156
Eliseu Antônio da Silva Belo *
A INTERPRETAÇÃO ADEQUADA
DA SÚMULA 713 DO STF
Resumo:
A Súmula 713 do Supremo Tribunal Federal tem o seguinte teor: “O
efeito devolutivo da apelação contra decisões do Júri é adstrito aos
fundamentos da sua interposição”. Em função de sua redação, con-
troverte-se na doutrina e na jurisprudência qual seria a sua interpre-
tação adequada, para efeito de conhecimento da referida apelação.
Indaga-se se, para tanto, os fundamentos de sua interposição devem
ser inseridos pelo apelante apenas no termo de interposição do apelo,
com expressa menção a uma ou mais das alíneas do art. 593, III, do
Código de Processo Penal, ou se eles poderiam ser extraídos pelo
órgão julgador ad quem da peça destinada às respectivas razões re-
cursais. Conclui-se, por diversos elementos interpretativos, que a se-
gunda opção é a mais adequada, pois inclusive reflete a origem da
própria Súmula 713 do STF, resguardando os direitos fundamentais
da ampla defesa e do devido processo legal, no âmbito recursal.
Abstract:
The Precedent 713 of the Supreme Court reads as follows: "The sus-
pensive effect of the appeal against the Jury's decision is attached to
the reasons for its interposition". Because of its writing, there is a con-
troversy in doctrine and jurisprudence on what would be its proper in-
terpretation, so that the appeal is known. It asks whether, therefore,
the foundations of its filing must be entered by the appellant only on
the appeal lodged term, with express mention of one or more of the
paragraphs of art. 593, III, of the Criminal Procedure Code, or if they
157
could be extracted by the court of Justice from the respective appellate
reasons. In conclusion, for several interpretative elements, the second
option is the most appropriate, because even reflects the origin of the
very Precedent 713 STF, protecting the fundamental rights of legal
defense and due process, in the appellate stage.
RESUMEN:
El precedente 713 del Tribunal Supremo dice lo siguiente: "El efecto
suspensivo del recurso contra la decisión del Jurado se une a las
razones de su interposición." Debido a su formulación, si contro-
verte en la doctrina y la jurisprudencia la que sería su interpretación
adecuada, para efecto de conocimiento de la apelación. Se pre-
gunta si, por lo tanto, las bases de su presentación deben ser in-
troducidas por el recurrente sólo en el término del recurso
interpuesto, con expresa mención de uno o más de los párrafos del
art. 593, III, del Código de procedimiento penal, o si podían ser ex-
traídos por el tribunal de Justicia de la pieza destinada a los res-
pectivos motivos de apelación. Se concluye que, por varios
elementos de interpretación, la segunda opición es la mas ade-
cuada, aún refleja el origen del Precedente 713 del Tribunal Su-
premo, en protección de los derechos fundamentales de defensa
completa y del devido proceso, en la etapa de apelación.
Palavras-chave:
Tribunal do Júri, apelação, efeito devolutivo, Súmula 713 do STF,
interpretação adequada.
Keywords:
Jury court, appeal, remanding effect, Precedent 713 STF, proper
interpretation.
Palabras clave:
Jurado, recurso, devolviendo efecto, Precedente 713 STF, la inter-
pretación correcta.
158
INTRODUÇÃO
159
Ministério Público também questionar a sentença penal proferida,
seja condenatória ou absolutória, ferindo o devido processo legal e
o direito fundamental de amplo acesso à jurisdição, previsto no art.
5º, XXXV, da Constituição Federal.
não é por acaso, aliás, que o tema em questão provoca di-
vergências na jurisprudência nacional, algumas vezes dentro do
mesmo Tribunal de Justiça. O Tribunal de Justiça de Goiás, por
exemplo, por sua Segunda Câmara Criminal, tem julgados diame-
tralmente opostos, como os seguintes:
160
sua interposição. Entretanto, a omissão do apelante em apontar, no
termo de interposição do apelo, o argumento legal em que se em-
basa a insurgência, não impede o conhecimento da apelação, já que
em suas razões restaram claros os motivos da impugnação. Prece-
dentes do STJ. 2- [...]. APELAÇÃO COnhECiDA E DESPROViDA.
(TJGO, APELACAO CRiMinAL 153371-14.2014.8.09.0051, Rel. DES.
LEAnDRO CRiSPiM, 2A CAMARA CRiMinAL, julgado em 10/11/2015,
DJe 1924 de 04/12/2015) (negrito nosso).
3Para conferir a data de publicação de cada qual, basta acessar o seguinte link:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumula.
Acesso: 28 jan. 2016.
161
não constituiu objeto de devolução recursal.
Subtraída do juízo natural, não pode o habeas corpus pretender o
exame da questão, originariamente, em instância superior.
habeas corpus de que não se conhece. (hC 71456, Relator(a): Min.
iLMAR GALVÃO, Primeira Turma, julgado em 08/11/1994, DJ 12-05-
1995 PP-12988 EMEnT VOL-01786-01 PP-00129) (negrito nosso).
4 Com o seguinte teor: “É nula a decisão do tribunal que acolhe, contra o réu, nulidade
162
De igual modo, o Superior Tribunal de Justiça vem ado-
tando esse posicionamento, em suas duas Turmas Criminais, se-
gundo o qual os fundamentos da interposição da apelação, para
efeito de delimitação do âmbito devolutivo desse recurso, nesses
casos, devem ser extraídos também das respectivas razões re-
cursais. Confira-se:
SÚMULAS 160 E 713 DO STF. i – [...]. ii - Naqueles casos em que a peça de in-
terposição recursal é vaga, genérica, os limites de atuação da Corte de se-
gunda instância hão de ser dimensionados pelas razões de apelação, desde
que tempestivamente apresentadas. iii – [...]. iV - Ordem concedida. (hC 85609,
Relator(a): Min. CARLOS BRiTTO, Primeira Turma, julgado em 28/06/2005, DJ 20-
04-2006 PP-00014 EMEnT VOL-02229-02 PP-00194) (negrito nosso).
163
DECRETAÇÃO DA REVELiA. SUSPEnSÃO DO PROCESSO E DO
PRAZO PRESCRiCiOnAL (ART. 366 DO CPP). hABEAS CORPUS
nÃO COnhECiDO. ORDEM COnCEDiDA DE OFÍCiO. 1. [...]. 3. Tra-
tando-se de apelação interposta contra decisões do Tribunal do Júri,
dotada de efeito devolutivo restritivo, o conhecimento do recurso
limita-se às questões efetivamente arguidas nas razões recur-
sais, não sendo devolvido ao Tribunal de 2º Grau o conhecimento
amplo da matéria. inteligência da Súmula 713/STF. Precedentes. 4.
[...]. 6. habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício
apenas para reduzir as penas a 12 anos de reclusão. (habeas Corpus
n. 87.337/SP (2007/0169521-1), 6ª Turma do STJ, Rel. nefi Cordeiro.
j. 16.06.2015, DJe 25.06.2015) (negrito nosso).
prio STF de forma muito clara, em 2005, em precedente assim ementado, na parte
que ora interessa: EMEnTA: i. habeas corpus: competência do STJ e do STF: pres-
supostos. 1. Cuidando-se [...] das apelações contra as decisões do Tribunal do Júri,
164
o todo não pode ser tomado por apenas uma de suas partes7; c)
por último, parece óbvio que fundamentar no Direito (a Súmula
contém a palavra “fundamentos”) é expor argumentos (e não so-
mente apontar fragmentos de um dispositivo legal), sendo que o
local adequado para isso é exatamente a peça em que são deli-
neadas as razões recursais. Ademais, o interesse recursal da
parte que apela somente será exposto, em todos os seus aspec-
tos, no articulado reservado às razões da apelação8.
Portanto, o entendimento radical e meramente formalista9
de alguns julgados de Tribunais de Justiça do país, no sentido de
2015, p. 827-8; MiRABETE, 2005, p. 694 e LiMA, 2015, p. 1.698. importante destacar
que o princípio da instrumentalidade das formas também tem inteira aplicação na esfera
processual penal. Com esse enfoque, checar o seguinte artigo: BELO, 2015, 190-1. Cf.,
ainda, o seguinte trecho de julgado da Primeira Turma do STF: “O processo penal rege-
se pelo princípio da instrumentalidade das formas, do qual se extrai que as formas, ritos
e procedimentos não encerram fins em si mesmos, mas meios de se garantir um pro-
cesso justo e equânime, que confira efetividade aos postulados constitucionais da ampla
defesa, do contraditório e do devido processo legal” (extraído do hC 111472, Relator(a):
Min. LUiZ FUX, Primeira Turma, julgado em 25/06/2013, PROCESSO ELETRÔniCO
DJe-158 DiVULG 13-08-2013 PUBLiC 14-08-2013).
165
que esses fundamentos devem ser extraídos somente do termo
de interposição da apelação10, mediante uma singela referência
às alíneas do art. 593, iii, do Código de Processo Penal, está cla-
ramente equivocado11 e em total descompasso quanto ao que foi
definido, há mais de vinte anos, no hC 71456, já referido, que deu
origem ao teor da Súmula 713 do Supremo Tribunal Federal, pro-
vocando graves prejuízos não apenas à vigência do citado dis-
positivo legal, mas especialmente aos direitos fundamentais da
ampla defesa e do devido processo legal, no seu desdobramento
ligado ao duplo grau de jurisdição.
166
CONCLUSÃO
167
REFERÊNCIAS
168
Ageu Ribeiro da Silva*
Resumo:
O presente estudo visa analisar a sistemática da Justiça Terapêutica,
trabalhando conceitos e princípios necessários à melhor compreen-
são, o surgimento, as teorias que a originaram, passando pelos as-
pectos legais de ingresso no programa e, finalizando, com os
procedimentos adotados pela equipe médica e o tempo ao qual o
participante estará sujeito. Ainda, busca demonstrar que a finalidade
do programa é a ressocialização do infrator-abusador/dependente de
drogas, de modo a retirá-lo da marginalidade, adotando medidas di-
recionadas ao desenvolvimento humano, de forma a incentivar a edu-
cação, cultura, lazer, esportes, trabalho, convívio familiar, escolar e
social.
Abstract:
This study aims to analyze the systematic of the Therapeutic Justice,
working concepts and principles necessary for better understanding,
the appearance, the theories that originated it, passing through the
legal aspects to join the program and, finalizing, the procedures adop-
ted by the medical team and the time that the participant will be sub-
jected to the treatment. Also seeks to demonstrate that the goal of the
program is to re-socialize the law violator/drug abuser/ drug addict, by
somehow able to take him off the marginality, adopting actions direc-
ted to the human developing, in order to encourage the education,
culture, recreation, sport, employment, family, educational and social
life.
171
Resumen:
Este estudio tiene como objetivo analizar el esquema de la Justicia
Terapéutico, trabajando sus conceptos y principios necesarios para
una mejor comprensión, la apariencia, las teorías que dieron origen,
pasando por los aspectos jurídicos de entrar en el programa y ter-
minando con los procedimientos adoptados por el equipo médico
y el tiempo que el participante está sujeto. Aún así, trata de demos-
trar que el propósito del programa es la rehabilitación del delin-
cuente - abusador / fármaco dependiente, con el fin de sacarlo de
la marginalidad, la adopción de medidas encaminadas a un desar-
rollo humano con el fin de fomentar la educación, cultura, ocio, de-
portes, el trabajo, la vida familiar, escolar y social.
Palavras-chave:
Drogas. Penas alternativas. Reinserção social. Tratamento.
Keywords:
Drugs. Alternative Sentences. Social Reinsertion. Treatment.
Palabras clave:
Drogas. Penas Alternativas. Reintegración Social. Tratamiento.
INTRODUÇÃO
172
às drogas, reinserir o reeducando na sociedade. O estabelecimento
de programas sociais ajuda a minimizar a violência social e permitem
que muitas pessoas restabeleçam uma vida digna.
Colocar o infrator-abusador/dependente de drogas em um
presídio brasileiro nem sempre é a melhor opção, pois este não ofe-
rece condições mínimas para o cumprimento das finalidades da pena,
quais sejam, retributiva, preventiva, ressocializadora e reeducativa.
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988,
no art. 5º, inciso XLIII, equiparou o tráfico de drogas aos crimes con-
siderados hediondos e, ainda no inciso LI, autorizou a extradição de
brasileiros naturalizados, caso comprovado o envolvimento com o
tráfico de drogas. Também, no art. 243, previu a expropriação de ter-
ras e confisco de bens decorrentes do tráfico de drogas.
Com a finalidade de regulamentar o inciso XLIII, art. 5º, da
Constituição Federal, foram editadas algumas leis, permanecendo,
até o presente momento, a Lei n. 11.343 de 2006, a qual, no art. 1º,
institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre as Drogas -
SISNAD, bem como, no art. 3., inc. II e III, prescreve como finalidade
a prevenção do uso indevido, atenção à reinserção social de abusa-
dores e dependentes de drogas e a repreensão à produção não au-
torizada e ao tráfico ilícito de drogas.
Com fundamento nas finalidades constantes na Lei n.
11.343/06, empregou-se um conjunto de políticas e práticas com o
objetivo de reduzir os danos associados ao uso de drogas psicoati-
vas em pessoas que não podem ou não querem parar de usar dro-
gas. Essa redução de danos (RD) tem como objetivo reduzir as
consequências à saúde, à economia e à sociedade, e são pragmá-
ticas, possíveis, efetivas, seguras e custo efetivas.
Essas ações são realizadas pelo Estado, com a cooperação
de todos os entes federados (União, Estados e Municípios), em con-
junto com órgãos não-governamentais, visando à melhoria das con-
dições de vida do abusador/ dependente de drogas. Todas as
medidas adotadas são direcionadas ao desenvolvimento humano,
de forma a incentivar a educação, cultura, lazer, esportes, trabalho,
convívio familiar, escolar e social.
173
RETROSPECTIVA HISTÓRICA DA JUSTIÇA TERAPÊUTICA
DRUG COURTS
174
de terapia individual ou em grupos, podendo ocorrer até mesmo
internação.
Nas audiências destinadas a verificar a evolução dos
participantes no programa, os mesmos podem receber incenti-
vos, prêmios ou punições a depender das constatações feitas.
175
repressão, buscando oferecer tratamentos médicos, psicológicos
e assistenciais.
O marco inspirador para a Justiça Terapêutica foi o Es-
tatuto da Criança e Adolescente de 1990, que possibilitou a apli-
cação de medidas socioeducativas quando houver o consumo
de drogas e a prática de atos infracionais em que o potencial
ofensivo seja pequeno.
176
JUSTIÇA TERAPÊUTICA
177
programa “Justiça Terapêutica” alastrou-se para os demais es-
tados do Brasil.
A respeito da nomenclatura "Justiça Terapêutica", é a
união dos aspectos legais - Justiça - em conjunto com a ciência
médica - Terapêutica -, pois visa a que os participantes entendam
o caráter ilícito das infrações cometidas e compreendam o pro-
blema relativo às drogas, buscando a solução de dois problemas.
178
essencialidade implica que os direitos humanos apresentam valores
indispensáveis e que todos devem protegê-los. Além disso, os direitos
humanos são superiores a demais normas, não se admitindo o sacrifício
de um direito essencial para atender as “razões de Estado”; logo, os di-
reitos humanos representam preferências preestabelecidas que, diante
de outras normas, devem prevalecer. Finalmente, a reciprocidade é
fruto da teia de direitos que une toda a comunidade humana, tanto na
titularidade (são direitos de todos) quanto na sujeição passiva: não há
só o estabelecimento de deveres de proteção de direitos ao Estado e
seus agentes públicos, mas também à coletividade como um todo.
Essas quatro ideias tornam os direitos humanos como vetores de uma
sociedade humana pautada na igualdade e na ponderação dos interes-
ses de todos (e não somente de alguns). (RAMOS, 2014, p. 37/38)
PRINCÍPIOS NORTEADORES
Da legalidade
179
estrito. Em sentido amplo, significa que ninguém será obrigado a fazer
ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II,
CF). Quanto ao sentido estrito (ou penal), quer dizer que não há crime
sem lei que o defina, nem tampouco pena sem lei que a comine.
Neste último enfoque, é também conhecido como princípio da reserva
legal, ou seja, os tipos penais incriminadores somente podem ser cria-
dos por lei em sentido estrito, emanada do Poder Legislativo, de
acordo com o processo previsto na Constituição Federal.
Da proporcionalidade
180
Em sua concepção originária, a proporcionalidade fora concebida como
limite ao poder estatal em face da esfera individual dos particulares;
tratava-se de estabelecer uma relação de equilíbrio entre o “meio” e o
“fim”, ou seja, entre o objetivo que a norma procurava alcançar e os
meios dos quais ela se valia. (ESTEFAM; GONÇALVES, 2012 , p. 101)
181
O uso de drogas pode ser considerado como qualquer
consumo de substâncias psicoativas. Esse consumo pode ser
para o mero uso recreativo, esporádico ou ocasional.
Em se tratando do uso abusivo ou nocivo, o consumo traz
como consequência algum prejuízo biológico, psicológico ou social.
182
POLÍTICAS DE REDUÇÃO DE DANO
183
CONDIÇÕES LEGAIS PARA O INGRESSO NA JUSTIÇA
TERAPÊUTICA
Fase pré-sentencial
184
Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pú-
blica incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério
Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de di-
reitos ou multa, a ser especificada na proposta” (art. 76, caput). Su-
perada a fase da composição civil do dano, segue-se a da transação
penal. Consiste ela em um acordo celebrado entre o representante
do Ministério Público e o autor do fato, pelo qual o primeiro propõe
ao segundo uma pena alternativa (não privativa de liberdade), dis-
pensando-se a instauração do processo. Amparada pelo princípio da
oportunidade ou discricionariedade, consiste na faculdade de o órgão
acusatório dispor da ação penal, isto é, de não promovê-la sob certas
condições, atenuando o princípio da obrigatoriedade, que, assim,
deixa de ter valor absoluto. (CAPEZ, 2012, p. 613)
185
a prisão torna-se desnecessária e inadequada, carecendo de justa
causa.
[…]
A liberdade provisória pode vir ou não acompanhada da imposição
de algum ônus. Neste ponto, há discricionariedade para a autoridade
judiciária avaliar a sua necessidade. Por isso, a lei diz que o juiz im-
porá, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art. 319 (cf.
CPP, art. 321, segunda parte). (CAPEZ, 2012, p. 299, 300 e 345)
Fase pós-sentencial
186
A liberdade é antecipada, condicional e precária. Antecipada, pois o
condenado retorna ao convívio social antes do integral cumprimento
da pena privativa de liberdade. Condicional, pois durante o período
restante da pena (período de prova) o egresso submete-se ao aten-
dimento de determinadas condições fixadas na decisão que lhe con-
cede o benefício. E precária, pois pode ser revogada se sobrevier
uma ou mais condições previstas nos arts. 86 e 87 do Código Penal.
(MASSON, 2014, p. 1.909/1.910)
187
para a sua recuperação, tenha o infrator-abusador/dependente
de drogas concordado com às propostas da equipe técnica e não
esteja em regime fechado.
OPÇÃO OU COERÇÃO?
188
equipe atuante no programa Justiça Terapêutica.
A equipe do programa é composta por diversos profis-
sionais, das mais variadas áreas de atuação, como assistentes
sociais, médico psiquiatra, psicólogos, terapeutas corporais, psi-
cólogos, pedagogos, musicoterapeutas e grupos de autoajuda.
Essa equipe terá como função o acompanhamento,
desde a avaliação da necessidade do tratamento, passando pela
escolha do tipo de intervenção a ser proposta e a fiscalização do
tratamento, finalizando com o relatório final do tratamento.
Cabe ressaltar que é a equipe médica que propõe a in-
tervenção a ser adotada, o que irá depender das características
do indivíduo que irá se submeter ao tratamento, e não os inte-
grantes do Poder Judiciário, restando a estes unicamente o
acompanhamento através dos relatórios emitidos pela equipe
responsável pelo tratamento.
A realização do tratamento poderá ser realizado na rede
pública como na rede privada de saúde e ainda poderá conter
variados grupos de apoio.
FASES DO TRATAMENTO
3
Disponível em: <http://www.tjgo.jus.br/docs/institucional/projetoseacoes/justicate-
rapeutica/DOC_cartilha_divulgacao.pdf>. Acesso em: 13 fev. 2015.
189
com a equipe responsável pelo seu tratamento.
Após o procedimento de acolhimento, passa-se para a
avaliação do participante, oportunidade em que se verificará o
contexto histórico psicossocial, como sua situação sócio-econô-
mica, convivência familiar, relacionamento com o consumo de
drogas e as consequências em sua vida e na de seus familiares,
suas carências e demandas em relação à educação, saúde, tra-
balho, entre outros aspectos.
Ainda na fase de avaliação, o psicólogo avalia de uma
forma mais específica e detalhada as possíveis causas que motiva-
ram o participante ao consumo de drogas, bem como detectar o
grau de envolvimento com as drogas, quais as drogas que consome
e qual o seu compromisso com o possível abandono das drogas.
O procedimento de avaliação é a parte mais significativa
de todo o processo, pois pode, caso se tenha uma avaliação bem
feita, conscientizar o participante de sua problemática e o incen-
tivar a buscar mudanças, por isso pode acarretar em diversas
entrevistas, podendo chegar, em algumas situações, ao lapso
temporal de até três meses.
Após o findar das entrevistas destinadas à avaliação do
participante, é produzido um relatório denominado de Sumário Psi-
cossocial, onde é apresentado uma síntese técnica sobre o proveito
em submetê-lo, ou não, ao programa, e mais informações que se
façam necessárias sobre o seu encaminhamento. Esse parecer
técnico deve ser apensado ao processo de que o participante seja
parte, para que o Juiz possa ter conhecimento e possa homologar.
Os métodos adotados durante o tratamento são construídos
mediante uma meditação crítica com o participante sobre a função
que desempenha em seu convívio familiar, social, sobre seus direitos
e obrigações, sobre seu comprometimento consigo mesmo, com a
Justiça e com a comunidade de qual faz parte.
Após a conclusão da avaliação do participante, já na se-
gunda fase, o mesmo é encaminhado para o tratamento, que foi
escolhido pela equipe que o avaliou, em uma entidade especia-
lizada externa, ou mesmo nos serviços internos do programa, e,
juntamente, é enviada uma cópia do parecer emitido sobre o par-
ticipante do programa.
190
O tratamento é executado em grupos de reflexão ou de
forma individual, sendo que o método tradicional são as reuniões
nos grupos de reflexão e, excepcionalmente, desde que não seja
dependente físico ou psicológico e não possa frequentar as reu-
niões em grupos, poderá ser feito atendimento individual.
Após o participante iniciar o tratamento, na terceira fase,
o mesmo é acompanhado através dos grupos de acompanha-
mento ou individual, mensalmente ou bimestralmente, infor-
mando ao juízo que determinou o tratamento, de forma a que o
mesmo tenha ciência dos resultados até então obtidos e da fre-
quência do participante.
Na quarta e última fase do programa, já findo o prazo im-
posto nas condições do benefício legal que determinou a partici-
pação na Justiça Terapêutica, o qual o infrator-abusador/
dependente de drogas acordou, ou então quando a equipe certi-
ficar a aptidão do participante em continuar as mudanças sem
que seja necessário a intervenção da Justiça Terapêutica, é pro-
duzido um relatório final em que constam os métodos utilizados
e quais os benefícios conseguidos com o tratamento, seja no as-
pecto psíquico ou social do participante.
OUTRAS ATIVIDADES
191
TEMPO DE TRATAMENTO
CONCLUSÃO
192
que o indivíduo aderiu ao consumo das substâncias.
Também cabe ressaltar que através da conscientização
sobre o consumo de drogas, devemos quebrar estereótipos
sobre as drogas, como, por exemplo, de que quem usa droga é
bandido, que a maconha leva ao consumo de drogas considera-
das piores, entre outros.
No trabalho de conscientização, devemos refletir se real-
mente essa guerra às drogas, adotada pelos Estados Unidos da
América e aderida por grande parte do Ocidente, é em benefício
da sociedade ou não passa do aspecto econômico.
Ainda, a conscientização deve trabalhar com uma abor-
dagem não intimidadora, trabalhando benefícios e malefícios das
drogas à sua saúde e aos problemas que causa à sociedade e
ao Estado. De forma a não relacionar drogas à criminalidade,
pois muitos consumidores de drogas têm uma vida considerada
dentro dos padrões considerados normais. Como exemplo clás-
sico, temos o indivíduo que consome uma “cervejinha” no fim de
semana para relaxar, e que nem por isso é um criminoso.
É certo que hoje ainda vivemos em uma sociedade que
marginaliza os usuários, abusadores e dependentes de drogas
consideradas ilícitas, mas que, ao mesmo tempo, consome
drogas para acordar, dormir, relaxar, agitar, estudar, transar, tra-
balhar e em várias outras atividades do dia a dia.
Dessa forma, é notável que a violação dos direitos huma-
nos dos usuários, abusadores e dependentes de drogas dá-se
principalmente em razão da desigualdade social e econômica na
qual ainda vivemos, que culmina no preconceito a determinadas
classes sociais, etnia ou gênero e orientação sexual e religiosa.
Esse binômio droga/crime é um conflito muito maior do
que qualquer violação a normas penais, é fruto de uma desigual-
dade social, pois estamos em uma sociedade em que falta edu-
cação básica, falta saúde, entre carência de outras coisas
mínimas para se ter uma vida digna.
193
não é a infração à norma que deve ser resolvida, mas os conflitos que
ela expressa. E para se enfrentarem e resolverem esses conflitos, uma
longa caminhada deve ser feita, uma caminhada sem fim, que dura en-
quanto durar a humanidade. Uma caminhada de descoberta de valo-
res, de superação de antinomias, de descoberta de si mesmo e do
outro, uma caminhada de reconciliação e de perdão. (SÁ, 2010, p. 167)
194
REFERÊNCIAS
195
LIMA, Flávio Augusto Fontes de. Justiça Terapêutica: em busca
de um novo paradigma. São Paulo: Scortecci, 2011.
LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 11. ed. - São Paulo:
Saraiva, 2014.
196
Alan Miranda Milhomem*
Resumo:
o Programa de leniência Antitruste concede benefícios criminais
imediatos para o agente criminoso que colabore efetivamente com
as investigações promovidas pelo Conselho Administrativo de Defesa
Econômica (CADE), nos termos do art. 87 da lei n.12.529/2011. o
presente artigo discute inicialmente os efeitos criminais deste acordo
na esfera criminal. Em seguida, discute-se se a celebração do acordo
de leniência é espécie de suspensão de condição de procedibilidade,
assim como quais seriam os crimes diretamente relacionados ao
crime de cartel. Para tanto, analisa-se a lista de crimes prevista na
legislação sob a égide do princípio da consunção e da proporcionali-
dade. Por fim, discute-se a questão da prescrição do crime de cartel
em relação aos agentes econômicos que não celebraram o acordo
de leniência.
Abstract:
The Antitrust Leniency Program provides immediate criminal benefits
for the criminal agent who collaborate effectively with investigations
promoted by the Administrative Council for Economic Defense
(CADE), pursuant to art. 87 of Law 12.529/2011. This article first dis-
cusses the purpose of this Agreement in the criminal sphere. Then
197
we discuss if the celebration of the Leniency Agreement is kind of con-
dition of suspension, as well as what are the crimes directly related to
cartel crime. Therefore, we analyze the list of crimes covered by the
legislation under the aegis of principle of adsorption and proportiona-
lity. Finally, we discuss the issue of prescription of the cartel offense in
relation to economic agents which have not concluded the leniency
agreement.
Resumen:
El programa de indulgencia Antimonopolio proporciona beneficios
penales inmediatos para el agente que colabore eficazmente con
las investigaciones promovidas por el Consejo Administrativo de
Defensa Económica (CADE), en cumplimiento del art. 87 de la Ley
12.529/2011. En este artículo se analiza en primer lugar el propósito
criminal de este Acuerdo en el ámbito penal. A continuación se dis-
cute si la celebración del Acuerdo sobre la cooperación es una es-
pecie de suspensión de condición de procedibilidad, así como
¿cuáles son los delitos directamente vinculada a la delincuencia
cártel. Por lo tanto, analizamos la lista de crímenes cubiertos por la
legislación bajo la égida el principio de proporcionalidad y absor-
ción. Por último, se discute la cuestión de la prescripción de la in-
fracción cártel en relación con los agentes económicos que no
hayan firmado el acuerdo sobre la cooperación.
Palavras-chave:
Acordo de leniência, cartel, extinção da punibilidade.
Keywords:
Leniency agreement, cartel, extinction of punishment.
Palabras clave:
Acuerdo de indulgencia, cártel, la extinción de la responsabilidad
penal.
198
o Programa de leniência Antitruste é definido como um con-
junto de iniciativas com o escopo de detectar, investigar e punir infrações
contra a ordem econômica. os artigos 86 e 87 da lei n. 12.529/2011 e
os artigos 197 a 210 do regimento interno do CADE informam às pes-
soas jurídicas e físicas em geral os benefícios da leniência.
segundo o Guia de leniência do CADE (2015, p. 9):
199
Apesar de, atualmente, não ser exigida mediante lei a par-
ticipação do Ministério Público, está em vigor a Medida Provisória n.
703, de 18 de dezembro de 2015, que permite em síntese que o
acordo de leniência seja celebrado com a participação do Ministério
Público e da Advocacia Pública, com o escopo de dar segurança ju-
rídica às empresas celebrantes, tendo em vista os efeitos do acordo
nas esferas administrativa, civil e penal.
200
logo, devemos vislumbrar a possibilidade de existir uma
outra condição de procedibilidade da ação penal, não prevista no
Código Penal, mas prevista no art. 87 da lei n. 12.529/11 com a
seguinte dicção: “Para os crimes previstos nesta lei, é condição
de procedibilidade da ação penal pública a ausência de acordo
de leniência”.
Porém, ainda é discutível a definição da extinção da pu-
nibilidade prevista no art. 87, parágrafo único, o qual dispõe:
“Cumprido o acordo de leniência pelo agente, extingue-se auto-
maticamente a punibilidade dos crimes a que se refere o caput
deste artigo”. Então, é possível dizer que no final do acordo de
leniência haverá uma renúncia ao direito de denunciar pelo Mi-
nistério Público?
o art. 107 do Código Penal, que define os casos de extin-
ção da punibilidade, não prevê tal renúncia, mas, nos casos pre-
vistos na lei n. 9.099/95 (dos Juizados Criminais), o Ministério
Público pode transacionar a ação penal pública e, posteriormente,
quando a parte cumpre o acordo, a pena é extinta. logo, utilizando-
se da analogia, é imperioso dizer que o parágrafo único tem o
mesmo efeito da transação penal e é uma forma de extinção da
punibilidade não prevista no Código Penal, mas prevista em lei.
201
lesiona a Administração Pública. Mas, para Mendroni (2015), este
último crime visa fraudar uma concorrência específica - no âmbito
da Administração Pública, enquanto o crime de cartel visa des-
tabilizar o mercado econômico, ou seja, mercado em sentido
amplo e genérico. Qualquer interpretação no sentido de dizer
estar implícito um bem jurídico no outro é interpretação extensiva,
tipo de argumentação vedada pelo Direito Penal em virtude do
princípio da reserva legal.
Pode-se dizer que o princípio da consunção estendida
está implícito no art. 87 da lei Antitruste, haja vista que, quando
o legislador exemplifica crimes de natureza jurídica diferente
abrangidos ou absorvidos pelo acordo de leniência, em decor-
rência de um crime principal, está o legislador personificando o
princípio da absorção e estendendo-o a crimes diversos. Ao
mesmo tempo, a legislação não viola o princípio da proporciona-
lidade, uma vez que os crimes consumidos possuem pena mais
leve que a pena do crime principal.
no entanto, ainda não existem parâmetros doutrinários
para a abrangência de outros crimes não previstos naquela lei es-
pecífica. Por esse motivo, na tentativa de estabelecermos parâ-
metros seguros e encontrarmos crimes autônomos, não citados
na legislação, tornou-se imprescindível falarmos da relação de
causalidade entre o crime principal de cartel e o crime consumido.
nesse sentido alude Queiroz (2013, p. 227):
202
no nosso entendimento, a solução para a lacuna deixada
pelo legislador está na segunda parte do caput do art. 13 do Có-
digo Penal, que dispõe: “considera-se causa a ação ou omissão
sem a qual o resultado não teria ocorrido”. Esse artigo consagra a
teoria da equivalência das condições, também conhecida como
teoria da conditio sine qua non, para determinar a relação de
causalidade.
Para exemplificar melhor, imagine um cartel de 3 empre-
sas A, b e C, onde A propôs o acordo de leniência, cumprindo
todos os requisitos do art. 86 da legislação antitruste, em contra-
prestação, o CADE beneficia os dirigentes da empresa A com a
isenção da pena e impedimento da denúncia aos crimes direta-
mente relacionados à prática de cartel (art. 87). Em seguida, os
dirigentes da empresa A, ao revelarem os crimes cometidos, dis-
seram que invadiram dispositivos informáticos da empresa b e
C, mediante violação de mecanismos de segurança com intuito
de obter informações sigilosas e comunicação eletrônica privada
de b e C (art. 154-A, §3º, do Código Penal).
A empresa em sua defesa argumentou que o objetivo da
invasão foi identificar se a tabela de preços e o acordo do cartel,
entre as 3 empresas estava em fase de implementação, e se al-
guma das empresas tinha a intenção de desfazer o cartel. Utili-
zando dos dados coletados como prova de que a empresa A
somente queria garantir a eficiência do crime principal, crime de
cartel, devido à insegurança da prática do ilícito, isso era meio
necessário para o cumprimento do crime de cartel.
nesse caso, ainda que o crime tipificado no art. 154, §3º,
do Código Penal não esteja previsto no art. 87 da lei Antitruste,
ao se aplicar a teoria conditio sine qua non, o princípio da pro-
porcionalidade (pena do crime meio menor que a pena do crime
fim) e o princípio da consunção estendida (absorção de crimes
diversos diretamente relacionados à prática de cartel), vislumbra-
se que o crime de invasão de dispositivo informático foi absorvido
pelo crime do art. 4º da lei n. 8.137/90.
A respeito da relação de causalidade, ainda na lição de
Queiroz (2013, p. 228):
203
De acordo com essa teoria, a questão de quando uma conduta pode
ser considerada como causa de um evento há de ser resolvida por
meio de uma fórmula da conditio sine qua non, é dizer, para saber se
determinada condição pode ser considerada causa do resultado,
dever-se-á utilizar o chamado método (ou procedimento) hipotético
de eliminação, segundo o qual quando, eliminada mentalmente a
causa, eliminar-se o efeito, haverá nexo causal; caso contrário, isto
é, se, cessada a causa, não cessar o efeito, a relação causal não es-
tará configurada, e, em consequência, o resultado não poderá ser im-
putado ao agente, porque tal conduta não constituirá condição sem
a qual o resultado não teria ocorrido (conditio sine qua non).
não existe crime sem resultado, diz o art. 13. A existência do crime
depende de um resultado. leia-se: todos os crimes exigem um resul-
tado. se é assim, pergunta-se: qual resultado é sempre exigido para
configuração do crime? lógico que não pode ser o resultado natural
204
(ou naturalístico ou típico), porque esse só é exigido nos crimes mate-
riais. Crimes formais e de mera conduta não possuem ou não exigem
resultado (natural). Consequentemente, o resultado exigido pelo art. 13
só pode ser jurídico. Este sim é que está presente em todos os crimes.
Que se entende por resultado jurídico? É a ofensa ao bem jurídico, que
se expressa numa lesão ou perigo concreto de lesão. Esse resultado
jurídico possui natureza normativa (é um juízo de valor que o juiz deve
fazer em cada caso para verificar se o bem jurídico protegido pela
norma entrou no raio de ação dos riscos criados pela conduta).
205
em detrimento da concorrência, da rede de distribuição ou
de fornecedores.
Pelo exposto, constata-se que a relação de causalidade
prevista no art. 13 do Código Penal poderá se aplicar no crime de
cartel em todas as suas formas, desde que haja a devida funda-
mentação quando houver a tipificação. ou seja, no caso de tipifi-
cação do inciso ii e inciso i do art. 4º prevalecerá os argumentos
dos professores rogério Greco e luiz flávio Gomes e, no caso
de tipificação somente através do inciso i do art. 4º, prevalecerá
os argumentos dos professores bitencourt e Queiroz.
206
na opinião de Mendroni o legislador ao citar “tais como”
especificou de forma absoluta como únicas possibilidades os crimes
ali previstos, tipificados na lei n. 8.666/93 e no art. 288 do Código
Penal. Para esse autor, se não houvesse tal termo na lei, ter-se-
ia que todos os crimes “diretamente” relacionados à prática de
cartel estariam inseridos no âmbito de abrangência do acordo de
leniência.
Ainda segundo Mendroni (2015), se a lei fixou aqueles
delitos, e não referiu expressamente à corrupção, como no exem-
plo supracitado, é porque não quis, e, a contrario sensu, quis
deixá-la de fora. sendo regra no Direito Penal: “não dá para am-
pliar entendimento a quaisquer outros delitos diretamente
relacionados” (grifamos).
Com a devida vênia, discordamos do autor em razão dos
crimes previstos no art. 87 da lei n. 12.529/11 não serem taxati-
vos como foram classificados. Após uma interpretação gramatical
do artigo, constata-se que a lei se refere aos crimes tipificados
no art. 288 do Código Penal e os tipificados na lei n. 8.666/93
(lei de licitações). nesta última, o legislador não especificou quais
dos artigos tipificados na lei n. 12.529/11 foram abrangidos, po-
dendo abarcar qualquer crime entre os arts. 89 a 99 da lei n.
8.666/93, pois todos eles tipificam as infrações penais no âmbito
das licitações, e, dependendo do caso, podem estar diretamente
relacionados ao crime de cartel. novamente, veja que o legisla-
dor no art. 87 se referiu ao(s) crime(s) tipificado(s) - plural.
no entanto, como responder a dúvida fomentada por
Mendroni (2015): é possível dizer que o crime de corrupção está
diretamente relacionado ao crime de cartel? A nosso ver, é pos-
sível dizer que o crime de corrupção está diretamente relacio-
nado ao crime de cartel, mas não é possível dizer que o crime
de corrupção foi absorvido pelo crime de cartel. nesse ponto,
concordamos com Mendroni(2015), mesmo não tendo sido citado
em seu livro que o princípio da proporcionalidade é a regra do
Direito Penal que impede a ampliação do entendimento a quais-
quer outros delitos diretamente relacionados à prática de cartel.
207
princípio dA consunção ou ABsorção
[...] o fato posterior deixa de ser punido quando se inclui, como meio
ou momento de preparação no processo unitário, embora complexo,
do fato principal, ação de passagem, apenas, para a realização final.
Assim, a posse de instrumentos próprios para furto ou roubo é con-
sumida pelo furto que veio a praticar-se: as tentativas improfícuas se
absorvem no crime que, enfim, se consumou. os fatos posteriores
que significam um aproveitamento do anterior, aqui considerado
como principal, são por este consumidos.
208
A doutrina majoritária define a consunção como a relação
existente entre dois ou mais tipos penais que tutelam o mesmo
bem jurídico, constituindo um deles meio necessário ou fase nor-
mal de preparação ou execução do outro. o exemplo mais
comum nos livros é o crime de perigo ser absorvido pelo crime
de dano, ou da violação de domicílio (art. 150 do CP) pelo crime
de furto (art. 155 do CP).
nesse sentido, Queiroz (2013, p. 135) alerta para as di-
ferenças entre a consunção e o concurso de crimes:
209
a relação existente entre dois ou mais tipos penais que tutelam
bem jurídico diferente, constituindo um deles meio necessário ou
fase normal de preparação ou execução do outro.
A respeito desse assunto, é necessário citar bitencourt
(2011, p. 227):
210
seja cumprido o requisito (i), a pena máxima do crime absorvido não
deve passar de 5 anos, como prevê o art. 4º da lei n. 8.137/90.
Para exemplificar melhor, utilizaremos o exemplo já men-
cionado em linhas anteriores. imagine um cartel de 3 empresas
A, b e C onde A propôs o acordo de leniência, cumprindo todos
os requisitos do art. 86 da legislação antitruste, em contrapres-
tação o CADE beneficia os dirigentes da empresa A com a isen-
ção da pena e impedimento da denúncia aos crimes diretamente
relacionados à prática de cartel (art. 87). Em seguida, os dirigen-
tes da empresa A, ao revelarem os crimes cometidos, disseram
que invadiram dispositivos informáticos da empresa b e C, me-
diante violação de mecanismos de segurança com intuito de
obter informações sigilosas e comunicação eletrônica privada de
b e C (art. 154-A, §3º, do Código Penal).
A empresa argumentou em sua defesa que o objetivo da
invasão foi identificar se a tabela de preços e o acordo do cartel
entre as 3 empresas estava em fase de implementação, e se al-
guma das empresas tinha a intenção de desfazer o cartel. Utili-
zando dos dados coletados como prova de que a empresa A
somente queria garantir a eficiência do crime principal, crime de
cartel, devido à insegurança da prática do ilícito, isso era meio
necessário para o cumprimento do crime de cartel.
nesse caso, é possível dizer que o crime do art. 154-A, §3º,
do Código Penal foi absorvido pelo crime do art. 4º da lei n. 8.137/90?
no nosso entendimento, a resposta deve ser positiva, e
a fundamentação não está somente no fato de o crime de inva-
são de dispositivo informático ter relação direta com prática do
cartel, mas também por este crime ter pena máxima de 2 anos,
não ultrapassando a pena máxima do art. 4º da lei n. 8.137/90.
logo, configura-se perfeitamente a possibilidade da consunção
estendida, desde que: (i) possam ser absorvidos pelo crime prin-
cipal, que é o crime de cartel - art. 4º da lei n. 8.137/90; e (ii)
possuam nexo de causalidade com o crime principal.
Por último, cabe salientar que a crítica dos doutrinadores
contra a solução jurídica apresentada pela súmula n. 17 do stJ
não é em virtude da impossibilidade da consunção entre infra-
ções penais que tutelam bens jurídicos distintos. na verdade, os
doutrinadores discordam da aplicação da súmula n. 17 em razão
211
de ela infringir um dos princípios basilares do Direito Criminal, o
princípio da vedação da proteção insuficiente, uma vez que a
pena do crime absorvido (art. 297 do Código Penal) é de 2 a 6
anos de reclusão, ao passo que a pena do art. 171 é de 1 a 5
anos (crime principal - absorvente).
212
os autores dizem que não é possível a abrangência em
razão do crime de homicídio não constituir, sob aspecto típico, uma
normal fase de preparação ou execução do delito de cartel, de modo
que não estariam, pelo menos em tese, alcançados pelo acordo de
leniência antitruste. ou seja, os autores aplicaram com perfeição o
segundo critério do princípio da consunção defendido neste estudo:
(ii) possuam nexo de causalidade com o crime principal. Apenas a
aplicação desse critério já é o suficiente para impossibilitar a aper-
feiçoamento do princípio da consunção. no entanto, os autores se
limitaram, com a devida vênia, em dizer que o princípio da consun-
ção não poderia absorver crimes que tutelam bens jurídicos não se-
melhantes, interpretação já refutada neste trabalho.
logo, com a devida vênia, a explicação da não abran-
gência do acordo de leniência no crime supracitado, após racio-
cínio arguido pelos autores, é satisfatório mas incompleto, haja
vista que a abrangência não estaria apenas prejudicada em
razão do iter criminis ou do nexo de causalidade, pois, como já
foi citado em tópicos anteriores, esta condição é apenas um dos
pré-requisitos da absorção do crime meio ou complementar pelo
crime principal - crime de cartel.
na verdade, é imprescindível a análise da proporcionali-
dade da pena nesses crimes. o crime de homicídio simples tem
pena máxima de vinte anos, o crime de homicídio qualificado (art.
121, §2º, inc. V, do CP) tem pena máxima de trinta anos, sem
contar que este último é crime hediondo, e nos parece ser a única
forma possível de tipificação aplicada ao caso narrado, uma vez
que o homicídio seria feito para assegurar a execução, ocultação
ou impunidade do crime de cartel.
nesse entendimento, é impossível a aplicação do prin-
cípio da consunção estendida, pois, caso houvesse aplicação da
absorção do crime de homicídio qualificado (crime meio ou com-
plementar) pelo crime de cartel (crime principal – pena máx. cinco
anos), estaríamos diante de um caso grave de deficiência da ins-
tituição jurídico-penal e afrontando diretamente a Constituição
em seu art. 5º, inc. xliii, onde diz: “a lei considerará crimes ina-
fiançáveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito
de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos
como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes,
213
os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.
Veja que o legislador constituinte deu proteção excep-
cionalíssima aos casos de crimes horrendos, não sendo possível
ao legislador ordinário produzir norma que anistie diretamente ou
indiretamente os autores de tais crimes, assim como não é pos-
sível a concessão do indulto (art. 2º da lei n. 8072/90) e da graça
pelo Presidente da república ao agente criminoso. Então como
seria possível um acordo de leniência superar uma norma de
grau hierárquico superior que restringe até mesmo a fiança?
na lição de nucci (2013, p. 252), o princípio da proibição
da proteção deficiente significa:
214
de que ela deve ser respeitada na aplicação do princípio da con-
sunção. o art. 118 dispõe que: “As penas mais leves prescrevem
com as mais graves”.
215
às empresas b e C?
Via de regra, é inevitável dizermos que no caso narrado
a pretensão punitiva do Estado contra a empresa C se extinguiria,
em virtude da demora da ação penal pública de competência do
Ministério Público. Mendroni (2015) ressalta a importância da per-
secução administrativa do acordo de leniência no âmbito da ação
penal, utilizada pelo Ministério Público. nas palavras de Mendroni
(2015, p. 322):
216
pretensão punitiva do Estado contra os criminosos, não lenien-
tes, está abrangida pela causa de suspensão prescricional pre-
vista no art. 116 do CP, caso o MP ainda não esteja investigando
o crime. lembrando que o acordo de leniência é meio de obten-
ção de prova e que o processo administrativo somente encerrará,
se o leniente cumprir todos os requisitos do acordo, auxiliando o
CADE e o MP na persecução criminal e administrativa - art. 87
da lei Antitruste.
reiterando aqui o raciocínio de Mendroni (2015, p. 310),
quando este ressalta que, nos crimes de cartel e de fraudes à li-
citação, o agente vai reiterando a execução do crime no decurso
do tempo, como acontece nos casos de execução do contrato
administrativo. nas palavras do autor: “Esta é a questão chave
da diferenciação. se a execução vai sendo reiterada, a consu-
mação vai sendo renovada, assumindo nova data a cada conduta
de ‘cumprimento’ do contrato, recebendo parcelas de pagamen-
tos; vale dizer, assumindo novo termo prescricional”.
Por essa razão, Mendroni (2015) acredita ser o crime de
cartel, um crime de natureza permanente, questão ainda não pa-
cificada na doutrina. Para o autor, o crime de cartel em licitação
não se consuma no edital de pré-qualificação. o crime de cartel
só se inicia nesse momento, perpetuando-se, todavia, pela von-
tade dos agentes, a cada reunião, a cada acordo, ajuste, convênio
e/ou aliança.
concLusão
217
Demonstrou-se, a partir de uma análise sucinta e compa-
rativa dos princípios do Direito Penal e da lei Antitruste, a forma-
ção de um novo princípio, o princípio da consunção estendida,
com aplicação no âmbito dos dois ramos jurídicos – Direito Con-
correncial e Direito Penal. tentou-se provar que este princípio
está implícito no art. 87 da lei Antitruste, pois, quando o legisla-
dor exemplifica crimes de natureza jurídica diferente, abrangidos
ou absorvidos pelo crime de cartel em decorrência do acordo de
leniência, está o legislador personificando o princípio da absorção
e o estendendo a crimes diversos. Ao mesmo tempo, a legislação
não viola o princípio da proporcionalidade, uma vez que os cri-
mes exemplificados e consumidos possuem pena mais leve que
a pena do crime principal.
salientamos que a crítica dos doutrinadores contra a so-
lução jurídica apresentada pela súmula n. 17 do stJ não é em
virtude da impossibilidade da consunção entre infrações penais
que tutelam bens jurídicos distintos. na verdade, os doutrinado-
res discordam da aplicação da súmula n.17 em razão de ela in-
fringir um dos princípios basilares do Direito Criminal, o princípio
da vedação da proteção insuficiente, uma vez que a pena do
crime absorvido (art. 227 do CP) é de 2 a 6 anos de reclusão, ao
passo que a pena do art. 171do CP é de 1 a 5 anos (crime prin-
cipal - absorvente).
Este estudo apresentou a dificuldade na definição do
termo “crimes diretamente relacionados à prática de cartel”, por
ser um termo vago e de pouco estudo doutrinário. Mesmo assim,
o trabalho tentou definir limites na abrangência do acordo de le-
niência, com a finalidade de promover segurança jurídica aos be-
neficiários e a terceiros envolvidos ou não no acordo.
Para finalizar, espera-se que o trabalho impulsione maio-
res reflexões a respeito do tema e fortaleça este importante me-
canismo de proteção ao ambiente concorrencial, que é o
programa de leniência.
218
reFerênciAs
219
220
Kayro Alencar*
Neide Aparecida Ribeiro**
O PARADIGMA DA TITULARIDADE DA
INVESTIGAÇÃO CRIMINAL: UM ESTUDO
COMPARADO ACERCA DA POSSIBILIDADE DE
ATUAÇÃO DIRETA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
EL PARADIGMA DE LA TITULARIDADE DE LA
INVESTIGACIÓN CRIMINAL: UN ESTUDIO COMPARATIVO
SOBRE LA POSIBILIDAD DE LA ACTUACIÓN
DIRECTA POR PARTE DEL MINISTERIO FISCAL
Resumo:
A atuação direta do Ministério Público na fase investigatória do pro-
cesso penal brasileiro é alvo de muita controvérsia. Por um lado, a
atuação da referida Corte Ministerial não seria possível em razão das
disposições contidas nos artigos 129 e 144 da Constituição Federal
de 1988, que tratam das funções do parquet e das funções dos ór-
gãos de segurança pública do Estado, respectivamente; por outro
lado, observando as teorias dos poderes implícitos e da universaliza-
ção das investigações, bem como a partir de uma interpretação te-
leológica dos próprios dispositivos constitucionais, o Ministério Público
estaria apto a realizar diretamente as investigações. Dessa forma, o
assunto será estudado sob uma perspectiva constitucional, sendo,
para tanto, utilizado o método comparativo, com enfoque na legisla-
ção portuguesa.
221
Abstract:
The direct role of the prosecutor in the investigation stage of the Bra-
zilian criminal procedure is the subject of much controversy. On the
one hand, the work of the Ministerial Court would not be possible be-
cause of provisions contained in Articles 129 and 144 of the 1988 Fe-
deral Constitution, concerning the functions of parquet and functions
of the public security organs of the State, respectively. On the other
hand, observing the theory of implied powers and the universalization
of the investigations, as well as from a teleological interpretation of
their own constitutional provisions, the prosecution would be fully com-
petent to carry out investigations directly. Thus, the matter will be stu-
died under a constitutional perspective, and, therefore, used the
comparative method, focusing on the Portuguese legislation.
Resumen:
La actuación del Ministerio Fiscal en la fase de investigación del
proceso penal brasileño es objeto de mucha controversia. Por un
lado, la actuación de la referida Corte Ministerial no sería posible
en razón de las disposiciones contenidas en los artículos 129 y 144
de la Constitución Federal de 1988, que tratan de las funciones del
parquet e de las funciones de los órganos de la seguridad pública
del Estado, respectivamente. Por otro lado, la observación de las
teorías de los poderes implícitos y de la universalización de las in-
vestigaciones, así como de una interpretación teleológica de los
propios dispositivos constitucionales, el Ministerio Fiscal sería
capaz de realizar directamente las investigaciones. De esta forma,
el asunto será estudiado desde una perspectiva constitucional y,
por lo tanto, se utiliza el método comparativo, centrándose en la le-
gislación portuguesa.
Palavras-chave:
Fase investigatória, funções do parquet, perspectiva constitucional,
método comparativo.
Keywords:
Investigation stage, functions of parquet, constitutional perspective,
comparative method.
222
Palabras clave:
Fase de investigación, funciones de parquet, la perspectiva cons-
titucional, método comparativo.
INTRODUÇÃO
223
federal e civil são titulares exclusivas da investigação deve ser que-
brado, uma vez que, considerando o princípio da teoria dos poderes
implícitos, bem como o princípio da universalização das investiga-
ções, não há óbice para que o Ministério Público realize diretamente
as investigações.
A perspectiva comparada será utilizada para demonstrar a
eficiência da realização direta das investigações pelo parquet, tal
como ocorre na legislação portuguesa, sendo, para isso, feito um pa-
ralelo com o atual sistema investigatório brasileiro, que se depara
com diversas falhas, como será demonstrado ao longo deste estudo.
224
o processo e o juiz se limita, na maioria das vezes, a dizer que a
prova obtida durante o inquérito é corroborada pela prova judiciali-
zada, imunizando, portanto, a sua própria decisão. Assim, o pro-
cesso acaba sendo uma repetição do que ocorreu na fase
inquisitória.
Dessa forma, ainda que seja adotado um sistema misto,
há fortes traços inquisitoriais na fase judicial do processo penal,
seja quando o juiz supervaloriza a prova obtida durante a fase ad-
ministrativa, seja pelos meios de produção da verdade, em que,
como regra, o juiz é o único gestor e intérprete das provas produ-
zidas (CARVALHO, 2011).
Considerando que a doutrina majoritária entende ser
adotado o sistema penal misto, atribuir a condução da investiga-
ção criminal ao Ministério Público resultaria numa deturpação a
esse sistema, pois o parquet atuaria nas investigações com en-
foque unicamente acusatório.
Ademais, o artigo 144, §1º, IV, da Constituição Federal
de 1988 dispõe que a polícia federal destina-se a “exercer, com
exclusividade, as funções de polícia judiciária da União”, e o § 4º
do mesmo dispositivo constitucional estabelece que “às polícias
civis incumbem as funções de polícia judiciária e a apuração de
infrações penais, ressalvada a competência da União”.
Assim, considerando o dispositivo supramencionado, a
condução ou a realização de diligências investigativas direta-
mente pelo Ministério Público fere o princípio da legalidade, uma
vez que o constituinte originário não trouxe essa possibilidade
dentre as funções do Ministério Público elencadas no artigo 129
da CRFB/88. Haveria, portanto, a necessidade de criação de uma
emenda à Constituição para incluir essa função investigativa no
rol trazido pelo referido artigo. Além disso, pela leitura isolada do
artigo 144 da CRFB/88, tem-se que a apuração das infrações pe-
nais, bem como o exercício da Polícia Judiciária, é exclusividade
da Polícia Civil e da Polícia Federal, devendo, portanto, ser res-
peitado o texto constitucional quanto ao controle que deve existir
entre essas instituições (BASTOS, 2004).
Outrossim, haveria uma desigualdade entre as partes,
uma vez que o promotor iria simplesmente acumular provas con-
tra o imputado, de forma que a imparcialidade do inquérito penal
225
restaria comprometida (LOPES JR., 2011).
Segundo Carnelutti (2004), o argumento de que o refe-
rido órgão ministerial deve ser detentor de imparcialidade é facil-
mente refutável. A função de órgão acusador serve para
preencher os requisitos do sistema penal acusatório, uma vez
que o parquet é o “contraditor natural” do imputado. Dessa forma,
falar em imparcialidade por parte do Ministério Público não é mais
que “uma duplicidade inútil” ao processo penal.
Em um primeiro momento, denota-se que, diante da falta
de uma melhor hermenêutica, a polícia judiciária detém o mono-
pólio da investigação criminal, impossibilitando que qualquer outra
instituição atue diretamente na realização das investigações.
Entretanto, pelo princípio da harmonização institucional,
as normas constitucionais devem ser interpretadas de forma que
não haja conflitos entre as instituições do Estado criadas pela
Carta Magna de 1988. Assim, deve-se fazer a leitura do artigo
144 da CRFB/88 considerando a vontade real do legislador
quando da elaboração do referido dispositivo.
A exclusividade trazida pela Constituição Federal de
1988 não se refere ao dever de outra instituição, que não a polí-
cia judiciária, abster-se de realizar investigações, mas trata-se
de mera delimitação de atribuições das polícias mencionadas no
artigo 144 da CRFB/88 (MARCÃO, 2013).
Nesse mesmo sentido, já decidiu o Ministro Celso de
Melo no julgamento do Habeas Corpus n. 94.173/BA:
1BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 94.173/BA, 2a. T., rel. Min. Celso de Mello,
julgado em. 27-10-2009, DJe 223, de 27-11-2009. Disponível em: < http://www.jus-
brasil.com.br/diarios/73848479/stf-01-08-2014-pg-493>. Acesso em: 10 out. 2014.
226
Interpretando de forma literal o supramencionado dispo-
sitivo constitucional, percebe-se que a exclusividade atribuída à
Polícia Federal foi tão somente a de exercer a função de Polícia
Judiciária. Outrossim, o art. 144, § 4º, da CRFB/88 estabelece
as funções de Polícia Judiciária e de investigação criminal como
sendo distintas, uma vez que foi utilizado o conectivo “e”, que
traz a ideia de adição, para determinar que incumbe às polícias
civis a função de polícia judiciária e a apuração de infrações pe-
nais. Sendo assim, resta desconstituída a ideia de que a Consti-
tuição Federal de 1988 impede o exercício da investigação
criminal pelo Ministério Público e que atribui o monopólio desta
à Polícia Judiciária.
Barroso (2010) afirma que a norma constitucional deve
ser interpretada não como um fim em si mesmo, mas levando em
conta os valores que foram idealizados pelo povo. Dessa forma,
considerando que a possibilidade de investigação pelo parquet
tem assento na própria Constituição Federal de 1988, a condução
da investigação criminal pelo Ministério Público sugere a passa-
gem de um sistema penal misto para um sistema penal acusatório
sem reflexos inquisitoriais, preservando, portanto, o garantismo
penal do jusfilósofo italiano Luiji Ferrajoli, que é um importante
postulado do Estado Democrático de Direito, pois protege os prin-
cípios constitucionais previstos na Carta Magna de 1988.
Importante mencionar a teoria dos poderes implícitos,
surgida a partir de uma decisão da Suprema Corte americana,
no caso McCulloch v. Maryland. Essa teoria defende que a Cons-
tituição de um Estado, ao estabelecer e definir as competências
dos órgãos, também concede a cada órgão a possibilidade de
adotarem os meios necessários para o cumprimento de suas fun-
ções, desde que a Constituição não proíba (ALMEIDA, 2013).
Se a Constituição Federal de 1988 atribuiu poderes ao
Ministério Público para propor a ação penal, implicitamente, tam-
bém permitiu que a referida Corte adotasse os meios para obter
os elementos de autoria e materialidade delitiva para o ofereci-
mento da denúncia, ou seja, a realização de investigações, o que
reforça o axioma jurídico do a maiore ad minus, isto é, “quem
pode o mais, pode o menos”.
A segunda turma do Supremo Tribunal Federal - STF, no
227
julgamento do Habeas Corpus n. 91661, em 10 de março de
2009, reconheceu, por unanimidade, os poderes investigatórios
conferidos ao parquet pela Carta da República de 1988. Em sín-
tese, tratava-se de uma ação penal instaurada pelo Ministério Pú-
blico, em que os réus, policiais, imputavam a uma pessoa uma
contravenção ou crime, mesmo sabendo que a acusação era
falsa. Dessa forma, a ministra relatora, Ellen Gracie, entendeu
que o referido órgão ministerial pode colher determinados elemen-
tos que comprovem a autoria e materialidade delitiva para forma-
ção da opinio delicti, sem que isso signifique retirar da Polícia
Judiciária as funções previstas na Constituição Federal de 19882.
Outrossim, o STF reconheceu, em 14 de maio de 2015,
no julgamento do Recurso Extraordinário n. 593727, a legitimi-
dade do Ministério Público para promover, de forma autônoma,
as investigações criminais. A Ministra Cármen Lúcia ressaltou
que as competências do parquet e da Polícia Judiciária não são
diferentes, mas complementares, e quanto mais as referidas ins-
tituições atuarem conjuntamente nas investigações, melhor será.
Além disso, para a Ministra Rosa Weber, embora a atividade in-
vestigatória não seja de exclusividade da Polícia Judiciária, o
poder de investigação do referido órgão ministerial deve ter limi-
tes nas garantias fundamentais dos investigados. Dessa forma,
os processos que se encontram sobrestados nas demais instân-
cias terão a aplicação da referida decisão, que garante ao MP
autonomia para realizar as investigações criminais3.
Ressalta-se que a democracia participativa exige a ado-
ção do princípio da universalização das investigações. Isso implica,
portanto, habilitar outros órgãos, como é o caso do Ministério Pú-
blico, a proceder com a realização direta de atos investigativos, de
forma que esse sistema de investigação se coadune com a Cons-
tituição Federal de 1988 (RODRIGUES; COIMBRA, 2007).
2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2009). Ministério Público tem poder de inves-
tigação, diz Segunda Turma. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/ver-
NoticiaDetalhe.asp?idConteudo=104441>. Acesso em: 21 out. 2015.
3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2015). STF fixa requisitos para atuação do
228
A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL LUSO-BRASILEIRA
229
A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO INQUÉRITO
PENAL BRASILEIRO
230
inquisitório que foi recheado com elementos da estrutura do sistema
acusatório (por ex: exigência de processo devido, de contraditório,
de parte, etc.), o que lhe não retira o cariz inquisitório (COUTINHO,
2006, p. 2).
231
de Processo Penal português prevê que a titularidade da investi-
gação é da magistratura ministerial, denominação dada ao Minis-
tério Público em Portugal, enquanto no Brasil, conforme já visto,
a titularidade pertence à autoridade policial (SANDERSON, 2013).
A Corte Ministerial portuguesa compõe a magistratura,
estando, portanto, vinculado ao Poder Judiciário e subordinado
indiretamente ao Poder Executivo, uma vez que é o Presidente
quem nomeia o Procurador-Geral da República. Ressalta-se
que, no exercício de sua função de direção do inquérito, o Minis-
tério Público será assistido pelos órgãos de polícia criminal.
O artigo 241 do Código de Processo Penal português
prevê que o inquérito penal se inicia no momento em que o Mi-
nistério Público, por conhecimento próprio, adquire a notícia da
prática de um crime, bem como pode se iniciar por meio de auto-
ridade policial ou ainda por meio de qualquer entidade pública ou
privada que noticia a prática de conduta criminosa à Corte Minis-
terial portuguesa.
Findo o inquérito, o Ministério Público pode tomar três po-
sições: 1) não havendo indícios suficientes da prática do crime ou
pela ausência de determinação de autoria, bem como se existir uma
das causas de isenção de pena, será determinado o arquivamento
do inquérito; 2) havendo indícios suficientes da prática do crime,
mas, em atendimento a determinadas circunstâncias, previstas
no artigo 281 do Código de Processo Penal, que permitam à
Corte Ministerial não deduzir a acusação, poderá haver a sus-
pensão provisória do processo; 3) havendo indícios suficientes
da prática delituosa, mas não havendo circunstâncias autoriza-
doras da não suspensão provisória do processo, o Ministério Pú-
blico irá deduzir a acusação.
Sendo determinado o arquivamento do inquérito pelo par-
quet, o ofendido maior de 16 anos de idade ou o representante
legal, caso seja menor de 16 anos, poderá se constituir como as-
sistente, conforme prevê o artigo 68, 1, “a”, do CPP, e requerer a
abertura da instrução criminal no prazo de cinco dias, a contar da
data da notificação de arquivamento. Ressalta-se que o Código
de Processo Penal português fixa o prazo de 20 dias, a contar da
data da notificação de acusação ou arquivamento do inquérito,
para que seja requerida a abertura da instrução.
232
A instrução criminal, no processo penal português, é fa-
cultativa e encontra-se entre a fase de inquérito e a de julgamento.
Ela é dirigida pelo juiz da instrução, assistido pelos órgãos de po-
lícia criminal, que agem em sua dependência funcional, e é cons-
tituída por um debate instrutório, que visa assegurar se, do
inquérito, resultam indícios suficientes para que o arguido seja sub-
metido a julgamento, ou seja, trata-se de uma fase judicial onde a
decisão de acusar ou não acusar é comprovada pelo juiz de ins-
trução (MOTA, 2002).
A fase de instrução funciona como um mecanismo de con-
trole das liberdades individuais, uma vez que garante a proteção
quando, na fase do inquérito, houver a restrição ou privação de di-
reitos, da liberdade ou das garantias fundamentais do indivíduo
(COSTA, 2011, p. 118).
Findo o processo instrutório e presentes indícios suficientes
que permitam ao juiz do julgamento aplicar uma pena ao arguido, o
juiz da instrução proferirá um despacho de pronúncia, conforme
prevê o artigo 308 do CPP. Ressalta-se que essa denominação,
no processo penal brasileiro, refere-se ao despacho do juiz para
submeter o acusado ao Tribunal do Júri, que é competente para
julgar os crimes dolosos contra a vida.
Não havendo indícios suficientes de autoria e materiali-
dade delitiva ou outro indício que permita modificar a decisão de
arquivamento pelo Ministério Público, o juiz da instrução irá emitir
um despacho de não pronúncia, ocasião em que o arguido não
será submetido a julgamento e o processo será arquivado.
Ao contrário, sendo emitido despacho de pronúncia, o
processo será remetido ao tribunal competente para julgamento.
Nota-se que, não havendo o debate de instrução, a acusação
também será remetida ao tribunal para julgamento, entretanto, o
juiz do julgamento pode também rejeitar a acusação caso esta
seja infundada. Assim, encerra-se a fase preliminar do processo
penal português e inicia-se, portanto, a fase de julgamento.
233
A CONDUÇÃO E REALIZAÇÃO DA INVESTIGAÇÃO CRIMI-
NAL PELO MINISTÉRIO PÚBLICO NO PROCESSO PENAL
BRASILEIRO
org.br/index.php?metodo=noticias&id=13959&PHPSESSID=718cb05f6c425abe30c
5fad40793433d>. Acesso em: 16 out. 2015.
234
SINDIPOLF/SP, Alexandre Sally, afirma que as fraudes são co-
muns nos inquéritos policiais, uma vez que se trata de um pro-
cedimento que pode sofrer interferências políticas. Dessa forma,
a sugestão do SINDPOLF é que seja criado um juizado de ins-
trução onde o Ministério Público atue junto ao Juiz da instrução
durante a fase de colheita de provas e, após oferecida a denúncia
pelo MP, aquele juiz que participou do processo de investigação
não mais atuará no caso6.
Permitir a investigação direta pelo Ministério Público é,
também, uma alternativa viável para desburocratizar a fase de
investigação, evitar fraudes e torná-la mais eficaz, uma vez que
a referida Corte Ministerial, como órgão competente, em regra,
para propositura da ação penal, detém um maior entendimento
sobre quais caminhos deve seguir para que tenha em suas mãos
elementos de autoria e materialidade delitiva suficientes para en-
sejar o oferecimento de denúncia.
Nucci (2007) afirma que colocar o parquet como titular
da investigação criminal implicaria a criação de uma instituição
“superpoderosa” que estaria livre de controles, uma vez que o
referido órgão ministerial estaria exercendo o papel investigatório
e fiscalizatório ao mesmo tempo. Dessa forma, quando a titular
da realização dos atos investigativos é a Polícia Judiciária, esta
é supervisionada pelo Ministério Público e pelo Juiz de Direito.
Ocorre que, observando o modelo de inquérito português,
percebe-se que o Ministério Público não é uma instituição livre de
controle, uma vez que o juizado de instrução em Portugal foi
criado justamente para proteger as liberdades, direitos e garantias
que forem restringidas ou violadas durante a fase de investiga-
ções. Assim, não basta somente permitir que o parquet realize di-
retamente atos investigativos, mas também deve-se criar um
juizado de instrução que fiscalize as atividades exercidas pela Po-
lícia Judiciária e pelo órgão ministerial quando do inquérito.
Em 2011, foi apresentada a proposta de emenda à Cons-
tituição n. 37, que objetivava incluir um parágrafo ao artigo 144
br/index.php?metodo=noticias&id=13959&PHPSESSID=718cb05f6c425abe30c5fa
d40793433d>. Acesso em: 16 out. 2015.
235
da Carta Magna de 1988, que trata da segurança pública, dando
poder exclusivo às polícias civil e federal para o exercício da ati-
vidade investigatória (RODRIGUES, 2013).
Entretanto, o conteúdo da referida PEC representava um
retrocesso ao ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que, em
grande parte dos países desenvolvidos, principalmente no continente
europeu, é adotado um modelo baseado no juizado de instrução e,
nos países que ainda não aderiram a este sistema de investigação,
há uma forte tendência em que o inquérito policial seja extinto
(RIBEIRO, 2011). Além disso, Gilberto Martins, ex-conselheiro do
Conselho Nacional de Justiça, afirmou que apenas 11% das ocor-
rências são convertidas em investigações. Outrossim, Wellington Sa-
raiva, também ex-conselheiro do CNJ, afirmou que 8% dos
homicídios eram apurados pelas polícias, o que já demonstra a ine-
ficiência do atual sistema investigatório brasileiro (SOUZA, 2013).
Considerando a não conformidade da PEC apresentada
pelo ex-deputado federal, Lourival Mendes, com o espírito do
texto constitucional, a mesma foi rejeitada e arquivada em 25 de
julho de 2013 por 430 votos a 9 e 2 abstenções. Isso demonstra,
portanto, que o caminho a ser seguido não deve ser o de conce-
der competência exclusiva à Polícia Judiciária, mas sim de atribuir
também a função investigativa ao parquet, para que esse inchaço
de ocorrências pendentes de investigações decorrentes do sis-
tema de inquérito policial adotado no Brasil diminua de forma que
as apurações sejam dotadas de maior eficiência e celeridade
(TRIBOLI, 2013).
Ressalta-se que não se pretende retirar da Polícia Judi-
ciária a função investigativa, mas tão somente que esta possa tra-
balhar conjuntamente com o Ministério Público na apuração de
infrações penais. Porém, para que isso se concretize, devem
ocorrer algumas mudanças na estrutura judiciária, tal como a cria-
ção de juizados de instrução para o controle da atividade investi-
gativa realizada pelo MP e pelas polícias civil e federal, para que
as garantias fundamentais sejam asseguradas, mantendo, assim,
a característica do Estado Democrático de Direito. Além disso,
embora não haja impedimentos para que o parquet realize dire-
tamente as investigações, conforme já demonstrado, faz-se ne-
cessária a criação de uma emenda à Constituição Federal de
236
1988 para incluir, dentre as funções da referida Corte Ministerial,
a realização da investigação criminal, assegurando, dessa forma,
a segurança jurídica no ordenamento jurídico brasileiro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
237
materialidade delitiva, bem como numa investigação célere e eficaz.
Portanto, em um Estado Democrático de Direito, o que se
espera é a proteção integral dos direitos e garantias fundamentais
que, atualmente, estão sendo violados pela burocratização trazida
pelo Código de Processo Penal de 1941. Assim, verifica-se que
trata-se de um sistema processual ultrapassado que, aos poucos,
está se tornando inadequado à atual conjuntura, razão pela qual
mostra-se necessária uma adequação do processo penal à rea-
lidade do sistema de justiça criminal brasileiro.
REFERÊNCIAS
238
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2009). Ministério Público tem
poder de investigação, diz Segunda Turma. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idCon-
teudo=104441>. Acesso em: 21 out. 2015.
239
FERRARI, Eduardo Reale. O Ministério Público e a separação
de poderes. Revista brasileira de Ciências Criminais, ano 4, n.
14, p. 141-148, 1996.
240
<http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=re-
vista_artigos_leitura&artigo_id=10751>. Acesso em: 16 set. 2015.
241
242
Umberto Machado de Oliveira*
Resumo:
O ato de citação, praticado validamente, produz efeitos importantes
no cotidiano da vida forense. Os processualistas com frequência
abordam o tema sem a necessária profundidade. O novo Código de
Processo Civil tratou o assunto de modo diferente do revogado. Todos
os aspectos inerentes aos efeitos desse ato processual são aborda-
dos no presente artigo.
Abstract:
El acto de citación, practicado adecuadamente, tiene efectos impor-
tantes la vida diária forense. Los eruditos de procedimiento a menudo
discuten el tema sin la profundidad necesaria. El nuevo código de
Procedimiento Civil trata la materia diferentemente que revocada. En
este artículo se discuten todos los aspectos inherentes a los efectos
de este acto procesal.
Resumen:
The act of citation produces important effects in the daily life of the
forensic. The procedure scholar often discuss the topic without the
necessary depth. The new Code of Civil Process treated the subject
of way different from the revoked one. All the aspects inherent in
the effects of this processual act are boarded in the present article.
Palavras-chave:
245
Citação; processo; prescrição; litigiosidade; litispendência.
Keywords:
Citation; process; prescription; litigation; lispendens.
Palabras clave:
Efecto; proceso; prescripción; procesal; litispendência.
intrOduçãO
246
citação, tornar prevento o juízo. Trata-se do assunto no art. 59
e, nesse ponto, a lição de Theodoro Júnior (2015, p. 240) é pre-
cisa para evidenciar a inovação:
247
ção, efeitos materiais. O Código anterior distinguia os efeitos proces-
suais e os materiais, dispondo que os primeiros somente ocorreriam
se houvesse perfeita regularidade do ato citatório e que os materiais
operariam sua eficácia, mesmo quando a citação fosse ordenada por
um juiz incompetente (art. 219, caput, segunda parte, do CPC/1973).
O novo Código, contudo, não repetiu o entendimento, adotando um
critério único para todos os efeitos da citação, sejam eles materiais
ou processuais, os quais ocorrerão, ainda quando a citação for ‘or-
denada por juízo incompetente’.
a indução2 da litispendência
248
Obviamente que, para analisar esse efeito, faz-se neces-
sário primeiramente definir o que vem a ser litispendência. litis-
pendência é, em palavras simples, a renovação de demanda que
já se encontra em curso, ou na linguagem do novo Código de
Processo Civil, “quando se reproduz ação anteriormente ajui-
zada”, ou seja, “há litispendência quando se repete ação que
está em curso” ( §§ 1º e 3º do art. 337).
O próprio Código já detalha os elementos que devem ser
levados em conta para que uma ação seja considerada idêntica a
outra: “quando possui as mesmas partes, a mesma causa de pedir
e o mesmo pedido” (§ 3º do art. 337). O instituto visa evitar o des-
perdício de atividade jurisdicional em decorrência da possibilidade
do trato da mesma causa por vários juízes e impedir o descrédito
do Judiciário, que resultaria de eventuais pronunciamentos judi-
ciários divergentes a respeito da mesma controvérsia jurídica
(ThEODOrO Jr., 2015, p. 554)3. O que produz a litispendência
não é o registro ou a distribuição da petição, como ocorre na
prevenção, e sim a citação válida4. nesse sentido é que o supe-
rior Tribunal de Justiça entende que, se duas ações idênticas são
propostas e a citação ocorre primeiramente na ação proposta
mais recentemente, é esta que deve prosseguir, embora proposta
mais tardiamente, e a outra mais antiga é que deve ser extinta5.
2
há crítica na doutrina pela utilização do verbo “induz”, que é adotado desde o Código
de 1939. isso porque o significado de induzir seria o de levar para e o Código de Pro-
cesso Civil, inclusive o atual, ocorrida a citação está, ipso facto, produzida a litispen-
dência. Portanto, o verbo correto seria “produz”. a documentação do ato citatório nos
autos, como, por exemplo, a juntada do mandado, marcaria, apenas, o início do prazo
para defesa. (alviM, 1998, p. 361).
3
nesse sentido, o superior Tribunal de Justiça já destacou que “a ratio essendi da
litispendência visa a que a parte não promova duas demandas visando o mesmo
resultado, o que, frise-se, em regra, ocorre quando o autor formula em face do
mesmo sujeito, idêntico pedido, fundado da mesma causa de pedir”. nesse mesmo
julgado reconheceu a possibilidade de litispendência parcial, a qual ensejaria a reu-
nião dos processos por conexão, de modo a evitar o risco de decisões inconciliáveis,
salvo se o anterior já houver sido julgado, caso em que incidiria a súmula 273 da
Corte (“a conexão não determina a reunião dos processos, se um deles já foi jul-
gado") e a ação ulterior deverá ter seguimento somente em relação ao fundamento
que não houver sido objeto de decisão na ação anterior. (Ms 19.348/DF, rel. Mi-
nistro MaUrO CaMPBEll MarQUEs, PriMEira sEÇÃO, julgado em
25/02/2016, DJe 03/03/2016)
4 “Portanto, na litispendência ocorre uma repetição de uma ação em curso. O que
249
Portanto, configurada a litispendência, “assistiremos à extinção
da ação repetida sem resolução do mérito, prestigiando-se a tra-
mitação da ação na qual primeiramente se deu a citação válida”
(MOnTEnEGrO FilhO, 2007, p. 247).
Para verificar a ocorrência de litispendência torna-se in-
dispensável ter-se em mente os elementos da ação, pois são
estes que identificam se uma causa é idêntica a outra. a doutrina
de Chiovenda indica três elementos da ação, “os quais, se nos
oferecem claramente, desde que se analise a propositura de uma
demanda judicial, conforme tenha o autor formulado mais ou
menos explicitamente”. assim Chiovenda (1998, p. 51-52) de-
senvolve seu raciocínio para definir os elementos da ação:
(...) Diz o autor, por exemplo (em geral se omitem, mas se subenten-
dem as palavras em parêntesis):
a) pois que sou o proprietário do imóvel corneliano (e injustamente o
possui Tício), requeiro (que se atue a meu favor a lei mediante) a con-
denação de Tício a restituir-mo;
b) pois que emprestei 100 a Tício (e ele não mos restituiu), requeiro (que se
realize a lei a meu favor mediante) a condenação de Tício a pagar-me 100;
c) pois que vendi a Tício o imóvel por um preço inferior à metade do justo,
requeiro (que a meu favor se atue a lei mediante) a rescisão da venda.
5 assim sendo, é possível imaginar manobra ardilosa do autor ao propor mais de uma
ação e optar por promover com maior celeridade a citação do réu naquela que lhe
aprouver. neves comenta essa particularidade com apoio em jurisprudência do supe-
rior Tribunal de Justiça.: “O termo ‘litispendência’ é equívoco, podendo significar pen-
dência da causa (que começa a existir quando de sua propositura e se encerra com a
sua exibição), ou, ainda, pressuposto processual negativo verificado na concomitância
de processos idênticos (mesma ação). Existe corrente doutrinária que entende ser o
art. 240, caput, do novo CPC (utilizado para o autor, a demanda já se encontra pen-
dente desde o momento de sua propositura, sendo a citação válida, ato que induz a li-
tispendência somente para o réu (sTJ, 3ª Turma, rEsp. 1.458.741/GO, rel. Min.
ricardo villas Boas Cueva, j. 14/404/2015, DJe 17/04/2015). Para outra parcela da
doutrina, o dispositivo legal valeu-se do termo em seu segundo significado. registre-
se que, aparentemente, o superior Tribunal de Justiça compartilha do entendimento
dessa segunda corrente doutrinária, tendo posicionamento pacífico de que o efeito ge-
rado pela citação determina a litispendência no sentido de processos idênticos (com a
mesma ação), afirmando que a primeira citação é o determinante para se descobrir
qual das ações idêntica deve ser extinga (sTJ, 3ª seção, Ms 8.997/DF, rel. Min. Og
Fernandes, j. 26/08/2009, DJe 24/09/2009). Dessa forma, havendo duas ações idên-
ticas em trâmite, mas em nenhuma delas tendo ocorrido a citação, aguarda-se o pri-
meiro ato citatório, ainda que realizado em processo mais recente, extinguindo-se sem
resolução do mérito o (s) outro (s) processo (s) (nEvEs, 2016, p. 384).
250
Ou então:
d) pois que Tício apresentou a cartório um título de dívida com a
minha firma falsificada, requeiro (que a lei se atue a meu favor me-
diante) declaração de falsidade de tal documento.
(...)
Desses exemplos deduz-se que as ações constam de três elementos
cuja especificação constitui a parte mais importante da ação judicial
(CPC, art. 134):
1º) Os sujeitos, isto é, o sujeito ativo (autor), a quem pertence o poder
de agir, e o passivo (réu), em face de quem se exerce o poder de agir
(personae).
2º) a causa da ação, isto é, um estado de fato e de direito que é a
razão pela qual se exerce uma ação, e que habitualmente se cinde,
por sua vez, em dois elementos: uma relação jurídica e um estado
de fato contrário ao direito (causa petendi).
3º) O objeto, isto é, o efeito a que tende o poder de agir, aquilo que
se pede (petitum). O que imediatamente se pede é a atuação da lei,
a qual, nas diferentes ações, se apresenta individuada em determi-
nado ato (condenação a restituir o imóvel; condenação a pagar 100;
rescisão da venda; declaração de falsidade dum documento). O ob-
jeto, pois, a cuja consecução se coordena a atuação da lei (imóvel a
restituir; soma a pagar) denomina-se objeto mediato da ação.
6Para não alongar em citações, podemos exemplificar com: rOCha, 2006, p. 170-
173; DiDiEr Jr., 2015, p. 287-288, 551-555; GOnÇalvEs, 2005, p. 93-99;
ThEODOrO Jr., 2015, p. 175; 5) alviM, 1998, p. 213-219.
251
rando que a mesma pessoa pode ter diversas qualidades, e duas
ações só seriam subjetivamente idênticas quando as partes se
apresentarem na mesma qualidade. O inverso seria de se con-
siderar, ou seja, a mudança da pessoa física como sujeito de uma
ação não tem como consequência que o direito trate a ação de
modo diverso (pode haver sucessão na ação, assim a título uni-
versal como particular)7.
no que se refere ainda à identidade de partes, cumpre
anotar que o superior Tribunal de Justiça firmou seu entendi-
mento no sentido de que “nas ações coletivas, para efeito de afe-
rição de litispendência, a identidade de partes deverá ser
apreciada sob a ótica dos beneficiários dos efeitos da sentença,
e não apenas pelo simples exame das partes que figuram no pólo
ativo da demanda8 ” e que "a demanda coletiva para defesa de
interesses de uma categoria convive de forma harmônica com
ação individual para defesa desses mesmos interesses de forma
particularizada, consoante o disposto no art. 104 do CDC"9, de
tal sorte que a ação coletiva não induziria à litispendência quanto
às ações coletivas.
Quanto à causa petendi10, sabe-se que ela é “a razão ou
252
o motivo pelo qual se exercita a ação” (alviM, 1998, p. 130).
Deve-se expor na petição inicial não só a causa próxima - os fun-
damentos jurídicos, a natureza do direito controvertido – como
também a causa remota – o fato gerador do direito, tendo em vista
que o novo Código reiterou a acolhida da teoria da substancia-
ção11, em detrimento da teoria da individuação. assim, exemplifi-
cando, nas ações pessoais, nas quais não há muita controvérsia
a respeito da incidência dessa teoria, quando o pedido é o paga-
mento de dívida, deverá o autor expor que é credor por força de
um ato ou contrato, e isso seria a causa remota, e que a dívida
se venceu e não foi paga, e essa seria a causa próxima. no en-
tanto, em se tratando de ações reais, a doutrina diverge, sendo
que parte entende que suficiente a referência à causa próxima,
que seria o domínio, dispensando-se a menção à causa remota,
que seria o modo de sua aquisição (sanTOs, 2007, p. 172).
Como bem observa Gonçalves (2015, p. 98), há grande
divergência entre os doutrinadores quanto à denominação dos
fatos e fundamentos jurídicos. Parte da doutrina atribui aos fatos
a qualidade de causa de pedir próxima e aos fundamentos jurí-
dicos a qualidade de causa remota (nelson nery Júnior), en-
quanto outra parte inverte (vicente Greco Filho)12.
não obstante essa controvérsia, o critério tem sido utilizado
manda finca-se nos fundamentos jurídicos do pedido, e não pelos fatos, cuja des-
crição pode ser alterada no curso do processo.
12 nery Jr.: “iii: 6. Fundamentos do pedido. a petição inicial deverá indicar os funda-
253
pela jurisprudência para eliminar a hipótese de litispendência. ao
julgar o recurso Especial n. 1.268.590/Pr, de relatoria do Mi-
nistro luis Felipe salomão, da 4ª Turma, (julgado em 10/03/2015,
DJe 25/05/2015), o superior Tribunal de Justiça entendeu que
não teria ocorrido a litispendência (entendida como pressuposto
processual negativo que impede a admissibilidade do segundo
processo em repúdio ao bis in idem), em caso de execução de
saldo remanescente, levando em conta que, no caso, estaria ve-
rificada a diversidade das causas de pedir próximas, porquanto,
na segunda execução, ela residiria no equívoco perpetrado pela
exequente que, conquanto tivesse apresentado planilha de cál-
culos demonstrando que o valor da dívida convertido em moeda
nacional era de r$ 10.282.907,08, fez constar na exordial da pri-
meira execução a cobrança de r$ 4.008.692,55, que correspon-
dia ao valor em dólares.
Quanto ao pedido, a doutrina pacificada entende que ele
se divide em imediato, no qual se veicula a pretensão processual
consistente na prestação da atividade jurisdicional, e mediato,
que vem a ser a tutela do bem da vida.
Essa bifurcação do pedido é utilizada para se identificar
254
se está ou não evidenciada a litispendência. Por exemplo, ao jul-
gar o agravo regimental no recurso Especial n. 12.430/sC, de
relatoria do Ministro arnaldo Esteves lima (1ª Turma, julgado em
19/06/2012, DJe 25/06/2012), o superior Tribunal de Justiça,
considerando que a recorrente teria, na instância ordinária, tra-
zido ao Judiciário, em três oportunidades (por meio de um man-
dado de segurança, que teria sido denegado; em ação ordinária,
cujo pleito era o reconhecimento da prescrição administrativa,
ainda pendente de recurso; e, nos autos do recurso, nos quais
sua pretensão seria impedir o certame para preenchimento da
vacância do cartório), a discussão sobre a sua manutenção na
titularidade de serventia extrajudicial, da qual foi afastada, enten-
deu que, não obstante o pedido imediato fosse diverso, ambas
as ações teriam idêntico pedido mediato – o retorno à titularidade
do Ofício do registro Civil, Títulos e Documentos da Comarca de
Balneário Camboriú – e, assim, estaria evidenciada a ocorrência
da litispendência. nesse julgado, pois, embora houvesse diver-
sidade na espécie da pretensão processual, entendeu-se pre-
sente a litispendência pelo fato do bem da vida ser idêntico.
vê-se, pois, que a jurisprudência é sempre um fator determinante
para fixação dos contornos que assumem os efeitos da citação,
muitas vezes até em caráter contraditório como veremos adiante
em julgados envolvendo a interrupção da prescrição.
255
disputado entre as partes se torna vinculado ao resultado da
causa, ou seja, fica vedado às partes alterá-lo, sob pena do co-
metimento de atentado (nCPC, art. 77, § 7º), nem o alienar sem
incorrer nas sanções inerentes à fraude à execução (nCPC, art.
790, v). Do atentado resulta a obrigação para a parte de retornar
ao status quo, com a proibição de falar nos autos até que a falta
seja purgada (art. 77, § 7º). há ineficácia do ato de disposição
como consectário da fraude à execução perpetrada com aliena-
ção da coisa quando o réu já tiver sido citado validamente, de
forma que o bem alienado, “mesmo na posse ou propriedade de
terceiro adquirente, continuará sujeito aos efeitos da sentença
proferida entre as partes (art. 790 e 792 do nCPC).
Frisa-se: o bem litigioso não é propriamente inalienável,
mas, uma vez ocorrendo a alienação pelo réu citado validamente,
permanece vinculado ao processo, estendendo-se os efeitos da
sentença ao adquirente (nCPC, art. 109, § 3°). Da fraude13 à exe-
cução decorre a não oponibilidade do ato de alienação ao pro-
cesso (ThEODOrO Jr., 2015, p. 554-555). Ocorrendo a
alienação, pois, o novo Código determina a intimação do autor
para se manifestar sobre a possibilidade de alteração no polo pas-
sivo, com a retirada do réu originário da relação jurídico-processual
e o ingresso, em seu lugar, do terceiro adquirente (art. 109). acei-
tando o autor, consumado está o fenômeno da sucessão das par-
tes, assumindo o novo titular da coisa ou direito o polo passivo.
“Caso não concorde com a alteração, manter-se-á o réu originário
no polo passivo, que passará a atuar em substituição processual,
256
defendendo em norme próprio o interesse do adquirente, que po-
derá, nesse caso, intervir no processo como assistente litiscon-
sorcial” (nEvEs, 2016, p. 385).
Muito embora haja uma clareza do texto da lei quanto à
litigiosidade, peculiaridades do caso concreto podem indicar a
proteção dos interesses dos terceiros de boa-fé. assim é que o
superior Tribunal de Justiça, interpretando o art. 42, § 3º, do Có-
digo revogado, de redação correspondente ao art. 109, § 3º, do
atual, ao analisar recurso apresentado por adquirente de bem
imóvel que busca a proteção possessória tendo em vista ordem
de reintegração emanada do cumprimento de sentença oriunda
de ação da qual não fez parte, entendeu que a coisa só se torna
litigiosa se há lide pendente (litispendência), a qual se consuma,
para o autor, com a propositura da ação e, para o réu, com a ci-
tação válida. Concluiu a Corte, que para o adquirente, o momento
em que o bem ou direito é considerado litigioso varia de acordo
com a posição ocupada pela parte na relação jurídico-processual
que sucederia e, assim, se o bem é adquirido por terceiro de boa-fé
antes de configurada a litigiosidade, não há falar em extensão
dos efeitos da coisa julgada ao adquirente14.
O superior Tribunal de Justiça, em diversos outros
casos, tem temperado a incidência dessa consequência proces-
sual, ora exigindo que, “na ausência de registro, ao credor cabe
o ônus de provar que o terceiro tinha ciência da demanda em
curso”15, ora exigindo que o adquirente prove que desconhecia a
existência de ação envolvendo o imóvel, “não apenas porque o
art. 1º da lei n. 7.433/85 exige a apresentação das certidões dos
feitos ajuizados em nome do vendedor para lavratura da escritura
pública de alienação, mas, sobretudo, porque só se pode consi-
derar, objetivamente, de boa-fé o comprador que toma mínimas
cautelas para a segurança jurídica da sua aquisição”16.
Mas foi no julgamento, pela Corte Especial do superior
14 rEsp 1458741/GO, relator Ministro ricardo villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado
em 14/04/2015, DJe 17/04/2015.
15 rEsp 4.132/rs, relator Ministro sálvio de Figueiredo Teixeira, 4ª Turma, julgado
257
Tribunal de Justiça, do recurso Especial n. 956.943/Pr, de ca-
ráter repetitivo, com relatoria da Ministra nancy andrighi e que
acórdão redigido pelo Ministro João Otávio de noronha (julgado
em 20/08/2014, DJe 01/12/2014), que se firmaram os traços de-
lineadores da incidência da fraude à execução: a) seria indispen-
sável citação válida para configuração da fraude de execução,
ressalvada a hipótese prevista no § 4º do art. 82817 do nCPC; b)
o reconhecimento da fraude de execução dependeria do registro
da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro
adquirente (súmula n. 375/sTJ); c) a presunção de boa-fé seria
princípio geral de direito universalmente aceito, sendo milenar a
parêmia: a boa-fé se presume e a má-fé se prova; d) não ha-
vendo registro da penhora na matrícula do imóvel, seria do credor
o ônus da prova de que o terceiro adquirente teria conhecimento
de demanda capaz de levar o alienante à insolvência, sob pena
de tornar-se letra morta o disposto no art. 84418 do nCPC; e) con-
forme previsto no § 4º do art. 828 do nCPC, presumir-se-ia em
fraude de execução a alienação ou oneração de bens realizada
após a averbação referida no dispositivo.
a jurisprudência firmada pelo superior Tribunal de Jus-
tiça com base no revogado Código é plenamente aplicável às dis-
posições processuais atuais.
17no acórdão é citado o § 3º, do art. 615-a, do revogado CPC, cuja redação é a
258
de não ser a citação que constitui o devedor em mora nas hipó-
teses previstas pelos arts. 397 e 398 do Código Civil.
É um efeito de direito material que pressupõe a análise do
conceito de mora19. O fato é que a mora ex re, ou de pleno direito,
aquela que decorre do simples vencimento da obrigação nos termos
do art. 397 do Código Civil ou da prática de ato ilícito, não necessita
do ato citatório para sua configuração. nessa hipótese, é de se apli-
car o brocardo dies interpellat pro homine (o termo interpela no lugar
do credor). a mora que depende do ato citatório para sua concreti-
zação é a ex persona20 e 21, aquela em que a obrigação não tiver
data fixada para o seu cumprimento, caso em que a citação “atua
como equivalente da interpelação” (ThEODOrO Jr., 2015, p. 555).
sentido de que “se a mora do réu constitui o fundamento do direito em que o autor
assenta o seu pedido, deverá ela preexistir ao ingresso em juízo e à própria citação
inicial, uma vez que não poderia o autor fundar a sua pretensão em fato ainda não
ocorrido. assim, a constituição em mora pela citação inicial operaria apenas com re-
lação aos casos em que a ação proposta pelo autor não se funda na existência de
mora do réu – pois em tal caso esta há de preceder o ajuizamento (Comentários...,
cit. n. 236, p. 180-181). nesse sentido, decidiu-se que `a citação inicial somente se
presta a constituir mora nos casos em que a ação não se funda na mora do réu, hi-
pótese em que esta deve preceder ao ajuizamento” (sTJ, agrg no rEsp
862.646/Es, rel. Min. raul araújo, 4.ª T., j. 13.11.2012).”(MEDina, 2015, p. 384-385).
259
vale ressaltar, contudo, que “nem sempre se admite que
a citação supra a interpelação prévia, principalmente quando a
ação é manejada não apenas para exigir os encargos da mora,
mas especificamente para pleitear a resolução do
contrato”(ThEODOrO Jr., 2015, p. 557). .nessa esteira é que
a jurisprudência firmou-se no sentido de que, se a ação visa co-
brar alguma prestação, a força interpelativa da citação, prevista
no art. 240, opera. no entanto, se a pretensão busca a resolução
do contrato por inadimplemento, ou seja, o rompimento do con-
trato descumprido, “a regra do direito material é que, inexistindo
cláusula resolutória expressa, o exercício da pretensão rescisória
deve ser precedido de interpelação judicial”22.
Por fim, esse efeito pressupõe que o réu ainda não esti-
vesse em mora quando da propositura da ação, pois, como bem
observa Theodoro Júnior, se já estivesse anteriormente configu-
rada, seja “por qualquer razão de direito, o efeito da citação será
apenas o de interromper a prescrição, cujo curso se iniciara
desde o momento, anterior ao processo, em que o demandado
havia incorrido em mora” (ThEODOrO Jr., 2015, p. 555).
interromper a prescrição23
22 Conclui Theodoro Júnior a respeito do tema: “Com efeito, o Código Civil prevê que
‘a cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito’, mas ‘a tácita depende de inter-
pelação judicial’ (art. 474). Por isso, nos casos de rescisão (CC, art. 475), a pretensão
do contratante prejudicado nasce da mora do contratante faltoso, fato que deve ne-
cessariamente ocorrer antes do ingresso da demanda em juízo. a ausência desse re-
quisito inviabiliza o pleito de resolução contratual, já que, para os fins do art. 475 do
Código Civil, a falta de prévia constituição em mora ‘não é suprida pela citação”.
23 Tartuce ao tratar do conceito de prescrição, anota, inicialmente, que, com o intuito
de não indicar que não se trata de um direito subjetivo público abstrato de ação, o
atual Código Civil adotou a tese da prescrição da pretensão”. nos termos do art.
189 do Código Civil, violado um direito, nasce para o seu titular uma pretensão, que
pode ser extinta pela prescrição. se o titular do direito permanece inerte, a ele é
aplicada a pena da perda da pretensão que teria por via judicial. a prescrição, assim,
260
coisa; constitui em mora o devedor. Mas logo no seu § 1º prevê
que “a interrupção da prescrição, operada pelo despacho que or-
dena a citação, ainda que proferido por juízo incompetente, re-
troagirá à data de propositura da ação”, o que está agora, em
sintonia com o Código Civil, em específico o seu art. 202, i, o
qual, entre as hipóteses que elenca como causas interruptivas,
estatui que “a interrupção da prescrição, que somente poderá
ocorrer uma vez, dar-se-á: i - por despacho do juiz, mesmo in-
competente, que ordenar a citação, se o interessado a promover
no prazo e na forma da lei processual”.
Como observa Theodoro Júnior, o Código Civil, em seu
artigo 202, i, considera a citação do devedor como fato hábil a in-
terromper a prescrição, ainda que ordenada por juiz incompe-
tente. Em assim sendo, estamos diante “de outro efeito de
natureza material do ato citatório”. Observa Theodoro Júnior que
esse efeito pode ser ele alcançado, também, “em citações das tu-
telas cautelares requeridas em caráter antecedente, que visem à
conversão em posterior ação principal (nCPC, arts. 303 a
308)”(ThEODOrO Jr., 2015, p. 555).
O Código Civil somente permite a interrupção da prescrição24, 25
e 26 uma única vez (art. 202) e, assim, a “citação não a afetará se
constitui um benefício a favor do devedor, “pela aplicação da regra de que o direito não
socorre aqueles que dormem, diante da necessidade do mínimo de segurança jurídica
nas relações negociais”. Distingue as duas espécies de prescrição em extintiva e aqui-
sitiva e, quanto a primeira, anota tratar-se de um fato jurídico stricto sensu justamente
pela ausência de vontade humana, prevendo a lei efeitos naturais, relacionados com a
extinção da pretensão”. ressalta ainda que na prescrição ocorre a extinção da pretensão
sendo que o direito em si permanece incólume, só que sem proteção jurídica para so-
lucioná-lo. Para corroborar essa assertiva, exemplifica com o fato de alguém pagar uma
dívida prescrita, caso em que não poderá pedir a devolução da quantia paga, eis que
existia o direito de crédito que não teria sido extinto com a prescrição, o que é inclusive
regra expressa do art. 882 do Código Civil (TarTUCE, 2016, p. 459-460).
24 negrão anota julgados contraditórios do superior Tribunal de Justiça, ora admi-
261
não tem o condão de interromper a prescrição” (sTJ-4ª T., rEsp. 523.264, Min.
Jorge scartezzini, j. 12.12.06, DJU 26.2.07)”. (nEGrÃO et al., 2016, p. 317). Theo-
doro Júnior faz crítica, com razão, a posição do superior Tribunal de Justiça: “Com
a devida vénia, não se entende como um ato perfeito e acabado, como a citação
inicial, possa perder seu efeito natural, pelo fato ulterior da extinção do processo
sem julgamento do mérito. não é ao processo que a lei confere a força interruptiva
da prescrição, mas ao ato isolado da citação, por sua natural função interpelativa,
que, aliás, pode ser exercida por vários outros atos isolados, judiciais e extrajudiciais
previstos pelo direito material (Cód. Civil, art. 202). O processo pode interferir na du-
ração do efeito interruptivo, fazendo-o durar por maior ou menor tempo antes de ini-
ciar a recontagem da prescrição (Cód. Civil, art. 202, parágrafo único), mas não no
fato mesmo da interrupção, cujo aperfeiçoamento é instantâneo e se confunde com
o do próprio ato citatório. a extinção do processo, sendo evento muito posterior à ci-
tação, a nosso ver, se depara com a interrupção da prescrição já inteiramente con-
sumada não há lei alguma que lhe confira eficácia retroativa para suprimir os efeitos
materiais do ato jurídico perfeito operado por meio da citação inicial da
demanda”(ThEODOrO Jr., 2015, p. 556). Mais recentemente, o superior Tribunal
de Justiça parecer ter firmado no seguinte sentido: “(...) 1. É certo no sTJ que,
mesmo quando a ação é extinta sem resolução de mérito, a citação válida - na forma
da lei processual, interrompe a prescrição (ex vi do art. 202, i, do CC), excetuando-
se as hipóteses do art. 267, ii e iii, do CPC - o que não é o caso. Precedentes. 2.
agravo regimental não provido”. (agrg no arEsp 733.368/Ma, rel. Ministro Mauro
Campbell Marques, 2ª T., , julgado em 08/09/2015, DJe 17/09/2015). Ou seja, ex-
cetuando as hipóteses de abandono da causa pelo autor ou contumácia das partes,
nas demais hipóteses de extinção sem resolução do mérito o efeito interruptivo da
prescrição, provocado pela citação, válida, persistirá.
25 no julgamento do recurso Especial n. 822.914/rs, da relatoria do Ministro hum-
262
tura da ação”. Também em função disso, quando se sucederem
diversas ações sobre a mesma obrigação, somente a primeira
citação produzirá a interrupção da prescrição. O efeito prático da
interrupção pela citação é que “o fluxo prescricional permanecerá
paralisado durante toda a duração do processo, recomeçando a
correr, por inteiro, do ato que lhe puser fim (Código Civil, art.
202, parágrafo único)”. arrematando, se a prescrição já estiver
interrompida antes da citação, permanece ela sem andamento
na pendência do processo, mas, uma vez encerrado este, a re-
tomada não se dará a partir de zero, pois o lapso de tempo de-
corrido até o momento do ajuizamento da causa será
computado. Essa seria, no dizer de Theodoro Junior, “a con-
sequência necessária da reconhecida falta de força do ato ci-
tatório para interromper a prescrição, na espécie”(ThEODOrO
Jr., 2015, p. 556).
O novo Código adjetivo, na linha do anterior, impôs ao
autor a obrigação de adotar, no prazo de 10 (dez) dias, as provi-
dências necessárias para viabilizar a citação, sob pena de, não
o fazendo, excluir-se a aplicação da regra que, uma vez efeti-
vada, os efeitos da interrupção retroagirão à data da propositura
da ação. reiterou o novo Código a regra de que a parte não pode
ser prejudicada pela demora imputável exclusivamente ao ser-
viço judiciário. Mais: explicitamente o novo Código regra que o
efeito retroativo, previsto no § 1º do art. 240, também se aplica
aos prazos decadenciais (art. 240, §§ 1º a 4º).
Cumpre anotar, por fim, que a interrupção da prescrição,
na forma prevista no § 1º do artigo 240 do novo Código de Pro-
cesso Civil, “retroagirá à data em que a petição inicial reunir con-
dições de desenvolvimento válido e regular do processo, o que,
no caso, deu-se apenas com a emenda da inicial, momento em
que já havia decorrido o prazo prescricional”. vale dizer, na es-
teira do entendimento do superior Tribunal de Justiça, firmado
na vigência do Código revogado, mas que se encaixa perfeita-
mente no cenário atual, se uma petição inicial contendo vícios for
ajuizada, uma vez determinada a sua emenda, o momento em
que for emendada e assim tornar-se apta a um desenvolvimento
válido e regular do processo, é que será levado em conta para
fins da mencionada retroação27.
263
ao julgar o agravo regimental no recurso Especial n.
1.423.716/PE (julgado 23/09/2014, DJe 01/10/2014), com rela-
toria do Ministro Benedito Gonçalves, o superior Tribunal de
Justiça reiterou o entendimento de que, em função da autonomia
do processo de execução em relação ao processo de conheci-
mento, é de cinco anos, contados a partir do trânsito em julgado
da sentença condenatória, o prazo prescricional para a proposi-
tura da ação executiva contra a Fazenda Pública, em conformi-
dade com o entendimento sufragado na súmula n. 150/sTF, in
verbis: "Prescreve a execução no mesmo prazo de prescrição da
ação". Convém anotar, no entanto, que, nos termos da súmula
n. 383 do supremo Tribunal Federal, o lapso prescricional pode
ser interrompido na data em que protocolado o protesto interrup-
tivo, recomeçando a correr pela metade, resguardado o período
mínimo de cinco anos28.
cOnsideraçÕes finais
27 EDcl no rEsp 1527154/Pr, relator Ministro ricardo villas Bôas Cueva, 3ª Turma
julgado em 27/10/2015, DJe 03/11/2015.
28 na espécie cuidava-se de demanda ajuizada pela associação dos Docentes da
264
O que se pode extrair das inovações introduzidas pelo novo
Código de Processo Civil, em relação aos efeitos da citação, é que
as mudanças representam avanços do ponto de vista redacional,
além de atender à boa técnica processual. no entanto, da jurispru-
dência já consolidada pelo superior Tribunal de Justiça, em face do
Código revogado, pode-se inferir que a aplicação das regras regu-
latórias dos efeitos da citação tem seus contornos delineados diante
de especificidades do caso concreto, em alguns casos, inclusive,
com evidente contradição, como no exemplo da interrupção do prazo
prescricional em caso de ação julgada sem resolução do mérito.
referÊncias
265
Civil Comentado. salvador: JusPodivm, 2016.
266
Nayla Louhana de Sá Martins*
Mariane Morato Stival**
Resumo:
Este artigo objetiva demonstrar que, mesmo após as mulheres oci-
dentais terem conquistado inúmeros direitos por meio de décadas de
ativismo incansável, elas não podem ser consideradas totalmente li-
vres. Faz-se mister discorrer sobre o papel da mídia na objetificação
do corpo feminino e construção de um padrão de beleza impossível
de ser alcançado, além da cultura de estupro e a consequente cul-
pabilização da vítima, e ainda dados alarmantes em relação ao des-
respeito aos direitos humanos para com as mulheres sob a ótica
feminista.
Abstract:
This article aims to demonstrate that, even after occidental women
achieved innumerous rights by decades of tireless activism, they can-
not be considered totally free. It is important to talk about the role of
media in the objectification of women’s body and the construction of
a beauty pattern impossible to achieve, additionally to the so-called
rape culture and its victimization as a result. Moreover, it is going to
be presented alarming data about the violation of human/women’s
rights in the feminist’s perspective.
269
Resumen:
En artículo se pretende demostrar que, incluso después que las
mujeres occidentales alcanzaron numerosos derechos a través de
década de lucha activista incansable, aún no se puede considerar-
las libres totalmente. Es indispensable explayarse respeto el papel
de los medios de comunicación en la objetificación del cuerpo fe-
menino y construcción de un estándar de belleza que no se puede
lograr, además la cultura de la violación sexual y la consiguiente
culpabilidad de la víctima, y más todavía: los datos preocupantes
con violaciones de los derechos humanos en contra las mujeres
en la perspectiva feminista.
Palavras-chave:
Feminismo, opressão feminina, violência sexual, culpabilizaçã o da vítima.
Keywords:
Feminism, women’s opression, sexual assault, victimization.
Palabras clave:
Feminismo, opresión femenina, violencia sexual, culpabilidad de la
víctima.
INTRODUÇÃO
270
O PAPEL DA MÍDIA NA CONSTRUÇÃO DE UM PADRÃO DE
BELEZA INALCANÇÁVEL
271
Nesse ínterim, uma pesquisa realizada pela Secretaria
de Saúde do Estado de São Paulo (2014), apresentou que 77%
das jovens deste Estado têm inclinação a sofrer de algum distúr-
bio alimentar como anorexia, bulimia e/ou compulsão por comer.
Entre as entrevistadas, 85% afirmaram existir um padrão de be-
leza imposto pela sociedade, e 46% acreditam que mulheres ma-
gras são mais felizes.
O mito da beleza assumiu sua tarefa de controle social
a partir do momento em que as mulheres se libertaram do papel
feminino da domesticidade. Essa ideologia da beleza é tão vio-
lenta, que hoje em dia tem como função a coerção social, já que
os mitos da maternidade, castidade e passividade não mais con-
seguem oprimir o sexo feminino como fazia antes das grandes
ondas feministas. Atualmente, a modelo ou atriz jovem e esque-
lética tomou o lugar da dona de casa perfeita e passiva como ar-
quétipo de feminilidade bem sucedida (WOLF, 1992).
A busca pela beleza ideal criou um lucrativo mercado no
mundo capitalista, usando as mulheres bonitas como mercadoria
e influenciando as feias a comprarem seus produtos para que
possam compensar sua feiura. A mulher é explorada como um
objeto nos grandes meios de comunicação e isso tem influen-
ciado de forma negativa as sociedades (ANGELIN, 2005).
Destarte, um exemplo a ser citado são os programas hu-
morísticos que expõem mulheres lindas e atraentes, porém, bur-
ras e sem opinião, em contraste com mulheres feias, sendo
representadas como desinteressantes e chatas, mas às vezes
com certa inteligência. Tais estereótipos reforçam o conceito de
que apenas a aparência física do sexo feminino importa como
qualidade, fazendo prevalecer um dogma social que mantém a
dominação masculina em seu ápice (ANGELIN, 2005). Sobre o
mesmo tema, Rosângela Angelin (2005) assegura:
272
nos quais a busca por um corpo perfeito, é considerada um sinônimo de
aceitação social, geralmente confundida com a felicidade. (ANGELIN,
2005, online).
273
PUBLICIDADE E A OBJETIFICAÇÃO SEXUAL DO CORPO
FEMININO
274
Nessa mesma linha, a marca de roupas American Appa-
rel mais uma vez apresenta uma mulher com as pernas abertas
e com o slogan "Now Open" (aberto agora) e envia a mensagem
de que aquela moça é para o sexo e que ela está "open for busi-
ness" (aberta ao público para comércio) e que pode ser usada por
qualquer um que queira. Um anúncio do PETA (People for the Ethical
Treatment of Animals), organização americana famosa pelos di-
reitos dos animais, ilustra uma mulher, comparando-a a um ani-
mal, e divide seu corpo em pedaços de carne (HELDMAN, 2012).
275
Anúncio de gravatas Van Heusen.
Fonte: BUSINESS INSIDER, 2011, online.
276
Anúncio de lavadoras de louça Hotpoint. Fonte: OKC FOX, 2013, online.
277
afirma acreditar que filmes pornográficos são, na verdade, prosti-
tuição filmada e que andam de mãos dadas com o tráfico humano.
Em sua apresentação, ele traz razões pelas quais parou de assistir
a sites de pornografia e demonstra como o seu uso diário por jo-
vens tem afetado suas fantasias sexuais, já que esses vídeos tra-
zem uma nova definição do que é sexual2: "O que é sexy? Qualquer
coisa que homens têm tesão - homens têm tesão em enforcar uma
mulher - fazer sexo violento/brutal sem nenhum toque, abraço, beijo
ou carinho?” (GAVRIELI, 2012, online, tradução nossa).
Nessa mesma linha de raciocínio, o palestrante completa que,
com a evolução da tecnologia, os meninos têm acesso à pornografia
cada vez mais cedo (a partir dos 12 anos), e essa nova geração está
ainda mais acometida pelo mal desse gênero do que a geração anterior,
porque, ao transformar suas fantasias sexuais, muito comumente esses
mesmos meninos se transformarão em imitadores do que viram, o que
significa que se tornarão possíveis agressores (GAVRIELI, 2012).
A definição de ser desejada sexualmente quase se asseme-
lha a ser como uma estrela pornô. Frequentemente, milhares de ga-
rotas estão concordando em serem filmadas em uma situação íntima
para agradar seus namorados. E mais frequentemente ainda, essas
imagens/filmagens são repassadas para colegas ou mesmo publica-
das na internet; a moral do garoto agressor permanece intacta,
mas em contrapartida, a vítima experimenta o slut-shaming3,
find arousing – men find it arousing to choke a woman – to have a brutal sex without
one touch, hug, kiss, tender caress? (GAVRIELI, 2012, online).
3 De acordo com a Wikipédia, slut-shaming pode ser definido com o induzimento de
uma mulher a se sentir culpada ou inferior por seu comportamento sexual desviar
das expectativas tradicionais de seu gênero. São reduzidas a acreditar que, por ter
um grande número de parceiros sexuais, ter relações sexuais fora do casamento,
agir ou se vestir de maneira considerada vulgar, não são mulheres dignas ou "direi-
tas". Esse termo também atua de forma a restringir a liberdade sexual feminina den-
tro dos parâmetros considerados aceitáveis pela sociedade. Esse termo tem origem
com a criação da SlutWalk (Marcha das Vadias), que são manifestações que se
propagaram pelo mundo, inclusive no Brasil. A Marcha das Vadias teve início no
Canadá em 2011, e se alastrou pelo mundo. Tal movimento protesta, primordial-
mente, contra a crença de que as vítimas de estupro teriam provocado tal violência
através de seu comportamento, forma de vestir, etc.
278
discursos de ódio, depressão, ataques de pânico e até mesmo,
em alguns casos, o suicídio (GAVRIELI, 2012).
Conforme apresentado anteriormente, antes da alegada
libertação feminina, os anúncios eram bombardeados com figu-
ras da domesticidade feminina, ilustrados com donas de casa
submissas e slogans que sentenciavam a supremacia masculina
em relação à feminina. No entanto, anos depois, a publicidade
não deixou suas raízes machistas e apenas mudou a forma e o
jeito de explorar a mulher. Agora, a mulher é livre e está liberta
sexualmente, a mídia prega ser seu corpo seu principal atributo,
a ditadura da beleza é propagada de forma maciça pelos anún-
cios publicitários, colocando o corpo feminino como um objeto
desprovido de emoções e personalidade e que deve ser usado,
violado e massacrado.
279
marido/companheiro, dentre outros.
Para melhor entender a dialética do termo cultura do es-
tupro, primeiro deve-se conceituar estupro, não na visão das
ciências criminais, ao falar acerca de sua tipicidade, qualificado-
ras, ou penas, e sim por meio da visão feminista. Faz-se mister
aprofundar o estudo através de estudiosas e militantes feministas
para atingir o objetivo deste trabalho. E sobre tal visão, Catharina
Heringer Carmo (2015) expõe:
280
Econômica Aplicada (IPEA, 2014) diz que, no caso de agressões
contra crianças, cerca de 70% dos agressores são os pais, em
24,1% são os padrastos e em 32,2% são amigos ou conhecidos
da vítima. Em mulheres adultas, 70% dos estupros são cometi-
dos por parentes, namorados ou conhecidos/amigos da vítima,
indicando que a violência está escondida nos lares. Esse instituto
ainda se mostra preocupado em relação ao número de estupros
ocorridos no país, pois estima-se que 527 mil pessoas são víti-
mas (sendo 89% do sexo feminino) a cada ano no Brasil e, des-
ses casos, apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia.
A problemática do processamento do crime de estupro
no ordenamento jurídico brasileiro é preocupante, face à dificul-
dade probatória dos indícios materiais e de autoria do crime, so-
brando apenas a palavra da vítima. E sendo a nossa sociedade
arquitetada no paradigma masculino de confiabilidade e a mulher
qualificada a partir de sua conduta sexual, vivemos uma situação
de extrema desigualdade em que se tem, como resultado, o ar-
quivamento de vários processos por terem denúncias inconsis-
tentes ou fracas (FILHO; FERNANDES, 2016).
Há de se concordar que a denúncia do crime provoca
ainda mais dor psicológica às vítimas, principalmente mediante o
exame de corpo de delito, resultando, assim, na sua pouquíssima
judicialização. Greco (2010) a respeito desse tema assevera:
281
feminino e que, se elas não se comportarem, esse será o seu
destino. Ela ainda afirma que estupro é um ato que homens pra-
ticam em nome de sua masculinidade, acreditando que é do in-
teresse de mulheres serem estupradas em nome de sua
feminilidade. A força ou a ameaça são os métodos usados contra
elas, e mostrar força é um requisito primordial no comportamento
masculino, em contrapartida com a feminilidade que as ensinou
a obedecer.
No que tange ao sentimento de culpa experimentado
pela vítima, tendo correlação com todo o aparato da crença na
cultura de estupro, a insegurança de algumas mulheres é tama-
nha, que vítimas de estupro agonizam no sentimento de que foi
o seu comportamento, maneira ou como estavam vestidas que
provocaram esse violento ato contra elas. Embora tenham co-
nhecimento da lei, a mentalidade dos policiais homens é quase
sempre idêntica à visão comum de estupro, que é compartilhada
com o resto da classe masculina. O grande problema da vítima
desse crime é que a autoridade policial que a atende é o próprio
sujeito que valida a sua vitimização (BROWNMILLER, 1975).
CONCLUSÃO
282
REFERÊNCIAS
283
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286