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CICATRIZES

Ariela Pereira
Copyright© 2019 Ariela Pereira


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são da autora. É proibida a cópia ou distribuição total ou de partes
desta obra sem o consentimento da autora.

A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei n°.
9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.



Revisão: Adilene Pereira

(contato 99 9 8410 4242)


1º Edição
2019
ÍNDICE


SINOPSE
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
Victor
CAPÍTULO V
Evangeline
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
Victor.

CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
Victor
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
CAPÍTULO XVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
CAPÍTULO XIX
CAPÍTULO XX
CAPÍTULO XXI
CAPÍTULO XXII
EPÍLOGO
AGRADECIMENTO
SINOPSE

Após gastar todas as suas economias custeando a cirurgia que salvou sua
vida, Evangeline se vê desempregada e endividada. É então que aceita a sugestão
de uma amiga de trabalhar como acompanhante de luxo, pelo menos até se
reerguer. Ela acredita que sua sorte pode estar mudando quando o primeiro
homem com quem sai, o poderoso milionário Victor Boseman, lhe propõe
trabalhar como babá das suas duas filhas, por um salário irrecusável. Ao se
encontrar entre as paredes da sua imponente mansão, Evangeline descobre que o
homem solidário, generoso e irresistivelmente atraente que a impediu de
enveredar pelos caminhos da prostituição na verdade não existe, Victor não
passa de um sujeito frio e arrogante, que trata as filhas como se elas fossem um
problema do qual quer distância.
Victor acredita que a proximidade de Evangeline pode abrandar os
tormentos que vem atravessando nos últimos tempos, no entanto precisa
suplantar a forte atração que sente por ela, ou isso se tornará um empecilho para
os seus planos.


CAPÍTULO I


Evangeline


No pequeno quarto do apartamento onde moro, observo fixamente minha
imagem no espelho: a maquiagem impecável ressaltando o azul dos olhos; os
cabelos bem escovados, com as madeixas loiras caindo sobre a testa; o início da
cicatriz no peito escapando do decote alto do vestido preto, curto e colado. Me
pergunto como cheguei a esse ponto, prestes a sair para passar a noite com um
homem completamente desconhecido, que me encontrou por meio de uma
agência de prostituição e, pelo que me parece a milésima vez, faço uma incursão
mental pela minha própria vida, sem mais me permitir lamentar, mas apenas me
conformar com as adversidades que o destino tem colocado em meu caminho.
Meu infortúnio começou quando nasci com um grave problema de saúde,
em uma pequena fazenda no interior do Texas. Nunca fui uma criança normal.
Devido a uma cardiopatia congênita, tinha falta de ar quando mamava; não
conseguia brincar como as outras crianças; sequer tinha fôlego para chorar
quando necessário e dava vários sustos em meus pais quando acordava toda roxa
durante a madrugada. Em uma dessas ocasiões, quando eu tinha já dez anos,
minha mãe me levava às pressas para o hospital, debaixo de um temporal, em
meio a uma aflição que a levou a perder a direção do carro e capotar várias vezes
para fora da estrada, um acidente horrível que levou sua vida e me garantiu mais
um motivo para sentir remorso. Depois disso me tornei uma sobrevivente não
apenas desse lamentável episódio, mas também da falta de cuidados por parte do
meu pai, um homem da terra, nascido e crescido na roça, introspectivo o
suficiente para se poupar de me levar aos grandes centros de tratamentos quando
eu precisava. Não que ele fizesse isso deliberadamente, ele é um bom homem,
apenas não sabe como agir durante as horas difíceis e tampouco tem
desenvoltura para entrar comigo em um hospital lotado. É um homem muito
reservado, excessivamente tímido.
Então cresci com meu coração fragilizado e apenas ao me mudar para
Houston, aos dezoito anos, após concluir o ensino médio na escola, descobri que
tinha essa cardiopatia congênita, para a qual o único tratamento era o transplante
do órgão. Então, entrei na fila gigantesca a espera de um doador.
A princípio, quando me mudei para a cidade, vim morar na casa da
minha madrinha, também recém chegada aqui, depois de algum tempo a filha
dela e eu nos tornamos grandes amigas e alugamos nosso próprio apartamento,
um lugar pequeno, porém só nosso, cujo aluguel ela custeava com sua renda do
trabalho como garçonete e eu com a venda de alguns animais da fazenda,
realizada pelo meu pai, com o intuito de me ajudar. Depois passei a trabalhar
como revendedora autônoma de roupas usadas na internet, algo que eu podia
fazer em casa, sem grande esforço, dentro das minhas limitações.
Entretanto, o destino nunca esteve do meu lado. Mesmo com os novos
tratamentos realizados na cidade em que fica o maior centro médico do país, em
pouco tempo as crises de falta de ar foram se agravando, se tornando cada vez
mais frequentes, até que se tornou quase tarde demais para mim e precisei ser
hospitalizada. Estava internada há um ano, quando por fim consegui um doador
e o transplante foi realizado, três anos após meu nome ter ido para a fila de
espera.
Apesar de o meu pai ter vendido quase tudo o que tínhamos, contra a
vontade da sua nova esposa — a mulher que levou para morar com ele há alguns
anos, com quem tem um bebê agora com dois anos —, o dinheiro não foi
suficiente para cobrir os gastos com o hospital, de modo que precisei fazer
empréstimos onde consegui, inclusive com agiotas, e agora estou endividada até
a raiz dos cabelos.
Deixei o hospital há oito meses, alguns dias após o procedimento e
embora tenha ganhado uma nova vida — sem falta de ar, sem cansaço ao
caminhar, sem acordar sufocada e roxa no meio da noite —, por causa do meu
novo coração, a crise financeira, as inúmera dívidas que só crescem a cada dia
devido aos juros e aos medicamentos que precisarei tomar por toda a minha vida,
a ameaça de alguns agiotas, estão me impedindo de me sentir feliz como deveria.
Desde o final do período de reabilitação tenho procurado emprego e
simplesmente não consigo nada. Aparentemente ninguém se arrisca a contratar
uma pessoa que, além de não ter qualquer referência, possui uma ficha de saúde
como a minha.
A solução para parte dos meus problemas partiu de Bree, a filha da minha
madrinha e minha melhor amiga. Em seu trabalho como garçonete em um clube
noturno bastante sofisticado, frequentado por milionários, ponto dos seus
encontros clandestinos, ela conheceu mulheres que trabalham para essa agência
de acompanhantes de luxo e conseguiu o contato para mim. Segundo ela, ganha-
se um bom dinheiro fazendo isso e ninguém vai se importar com minha ficha de
saúde, embora eu acredite que a enorme cicatriz vertical que atravessa meu
tórax, assustará os homens que me virem nua.
Ser uma garota de programas, definitivamente não é o que sonhei para a
minha vida, pelo contrário, sempre esperei conhecer meu príncipe encantado, um
homem que se apaixonasse por mim, apesar dos meus problemas de saúde, mas
infelizmente não aconteceu. Ao longo da minha vida tive dois namorados e por
nenhum fui verdadeiramente apaixonada, tudo não passou de ilusão de
adolescente. Inclusive o último deles me abandonou depois que meu estado de
saúde se tornou crítico e fui hospitalizada. As únicas pessoas que ficaram
realmente do meu lado, foram meu pai e a família da minha madrinha e agradeço
todos os dias por tê-los.
Ouço uma batida discreta na porta e logo em seguida Bree entra, o coque
frouxo nos cabelos negros e o pijama folgado indicando que não sairá mais de
casa hoje.
— Uau! Você está verdadeiramente linda. — diz ela, examinando-me dos
pés à cabeça.
Com as pernas trêmulas de nervosismo, desloco-me até a cama e sento-
me na beirada do colchão.
— Não sei se vou conseguir fazer isso. — reclamo, afundando o rosto
entre as mãos — Não me imagino indo para a cama com um estranho. E se ele
for um velho babão cheio de taras estranhas?
O pensamento me causa um calafrio.
Calmamente, Bree acomoda-se ao meu lado e passa um braço em torno
dos meus ombros.
— Eu sei que não deve ser fácil, mas pensa no dinheiro que isso vai te
render. — Ela está certa. Poucas horas depois de me cadastrar na agência, me
ligaram de lá avisando que um homem viu minha fotografia e ofereceu uma
quantia exorbitante para que eu passasse a noite com ele — Faz de conta que é
um encontro às escuras. Antes de ir para a cama com ele, converse, descubra
como ele é, embora você não possa ingerir álcool, um pouco de vinho não fará
mal, então beba alguns goles, saia do seu corpo, pense em todas as dívidas que
irá pagar. Muitas mulheres vivem disso e vivem bem. Não deve ser tão difícil
assim.
Suas palavras não conseguem aplacar o pavor dentro de mim. Ainda
assim, me forço a me colocar de pé, decidida.
— Talvez esse sempre tenha sido o meu destino.
— Não é não. Isso é temporário, até alguma empresa perceber que seu
potencial é muito maior que essa cicatriz no peito. — Solidária ela se levanta e
me estreita em um abraço. — Agora vai, ou chegará atrasada.
Despeço-me e deixo o apartamento com o peito apertado, cada vez mais
tomada pelo medo aterrador. Tenho certeza de que todas as mulheres que
entraram nessa vida, na primeira vez disseram que seria algo provisório, no
entanto jamais conseguiram sair e temo que aconteça o mesmo comigo, que
minha alma seja apagada e minha dignidade massacrada por humilhações
passadas nas mãos de todo tipo de homem pervertido e sob o julgamento de uma
sociedade altamente preconceituosa e discriminadora.
Na rua, o Uber já está me esperando e entro, sendo recebida pelo
simpático cumprimento do motorista. Depois de dias frios a noite finalmente está
quente e abafada, anunciando a chegada do verão. As ruas parecem mais
frenéticas que de costume, luzes de faróis de carros e sons de buzinas tornando-
se mais intensos à medida que nos afastamos da periferia e nos aproximamos do
centro da cidade. Quando o Uber me deixa no local combinado, em frente a uma
farmácia de esquina, estou certa de que não vou conseguir fazer isso. O pânico
dentro de mim é tão grande que minha barriga dói, meu coração novo se
espremendo no peito, um frio dilacerando meu estômago. Estou cogitando
seriamente ir embora, quando uma picape luxuosa, de rodas altas, para diante de
mim e fico gelada dos pés à cabeça quando vejo o vidro da janela baixando.
Chegou a hora de me entregar a um completo estranho. Não tem mais como
voltar atrás.
Embora a penumbra dentro do carro não me permita enxergar os traços
do motorista, sei que ele está me observando fixamente e mal consigo respirar de
medo.
— Você é Evangeline? — pergunta ele, com a voz grossa e amaldiçoo a
mim mesma por não ter inventando um pseudônimo.
Forçando minhas pernas trêmula a me tirarem do lugar, aproximo-me da
janela e finalmente a claridade da rua me permite ver seu rosto. Tem uma
aparência incomum, na verdade fascinante, com belos olhos azuis claros, cabelos
castanho-escuros cortados curtinhos, arrepiados, emoldurando um rosto de
feições duras, extremamente masculino. O maxilar, sombreado por uma barba
curta, é forte e exala uma virilidade quase irresistível, de modo que me pergunto
porque um homem tão bonito pagaria uma mulher para estar com ele, candidatas
à sua cama eu aposto como não faltam.
— Sim, sou eu. — Tento ser firme ao responder.
— Sou Victor, seu... acompanhante. Pode entrar.
Respiro fundo me munindo de toda a minha coragem. Não deve ser tão
horrível ir para a cama com um homem como esse, pelo contrário, olhando para
ele a ideia até que me parece agradável, a menos, é claro, que ele tenha alguma
anomalia assustadora, o que explicaria o fato de estar contratando alguém para
fazer sexo com ele.
Determinada, entro no carro e o examino de cima à baixo, constatando
que não tem qualquer deficiência e é incrivelmente atraente, com seu físico
atlético dentro da camisa de mangas compridas preta e dos jeans desbotados. Se
tiver algum defeito, é pelo lado de dentro.
Ele também examina meu rosto com mais atenção, desce o olhar pelo
meu corpo e então o volta para a direção do carro, uma ruga profunda surgindo
em sua testa, suas feições endurecendo ainda mais.
Antes que eu tenha tempo de dizer o nome do hotel vinculado à agência
que me mandaram indicar-lhe, ele dá a partida e nos insere no transito frenético,
dirigindo em baixa velocidade.
— Tem um hotel aqui perto. Me mandaram indicá-lo a você. — falo.
— Antes disso, vamos jantar. — Sua voz é um resmungo entre dentes e
meus lábios se abrem em um sorriso de alívio, por saber que ainda tenho algum
tempo antes de vender meu corpo como mercadoria.
Envolvidos pelo mais absoluto silêncio, percorremos alguns quarteirões e
estacionamos diante de um restaurante altamente sofisticado. Quando meu
acompanhante desce do veículo, entregando as chaves ao manobrista, tenho uma
visão ainda mais ampla do seu físico e fico deslumbrada com o quanto é bonito.
Alto e charmoso, exala uma masculinidade crua na forma vagarosa como se
move, nos ombros largos em comparação aos quadris estreitos, no caimento do
jeans ressaltando as coxas firmes, a curva acentuada do bumbum e novamente
me pergunto porque um homem como esse contrataria uma garota de programas.
Do lado de dentro do restaurante, a recepcionista nos recebe com um
largo sorriso e dá a entender que uma mesa já está reservada para nós, para onde
nos encaminha, gentilmente, informando que o garçom logo virá nos atender.
Percorro os olhos em volta e fico admirada com o requinte do lugar, com
o luxo presente em cada detalhe, desde a louça de porcelana até a difusão de
luzes douradas partidas dos gigantescos lustres no teto. Quando volto a olhar
para Victor, ele está me encarando fixamente, a fisionomia dura, um tanto
sombria, a ruga profunda ainda na testa, os olhos azuis desprovidos de qualquer
emoção, de modo que não consigo distinguir se está chateado com alguma coisa
ou se aqueles são seus traços naturais.
— Fale-me um pouco sobre você. — Peço, tentando amenizar a tensão
que cresce dentro de mim, acarretada pelo ar de mistério que o envolve.
— O que você quer saber? — A pergunta é curta e seca.
— Você é daqui mesmo da cidade?
— Não, sou de Fairbanks.
— Não conheço. Fica aqui mesmo no Texas?
— Não, no Alasca.
— Uau! Você está longe de casa. O que faz na região?
— Viajando a negócios.
— E com o que você trabalha?
— Sou pescador.
— Sério? Um pescador com negócios longe de casa. — Vejo a ruga na
testa dele se aprofundar e percebo que talvez eu esteja falando demais. — Então,
você é solteiro, casado ou enrolado? — Não consigo parar. O nervosismo me
deixa com a língua solta.
— Nenhuma das opções. E você, por que está nesse ramo de trabalho?
Sinto minha face empalidecer. Por uma fração de segundo me esqueci de
porquê estamos aqui, do que estou fazendo e do que vamos fazer depois. Estou
pensando sobre o que responder quando o garçom se aproxima com o cardápio e
me escondo atrás dele enquanto organizo os pensamentos. Eu precisava ter
inventado não apenas um falso nome, mas também uma falsa história para contar
às pessoas, só que agora nada me ocorre, minha mente mal consegue trabalhar
diante dos olhos que me fuzilam. Então, considerando que esse sujeito mora no
Alasca e dificilmente voltarei a vê-lo, decido apenas falar a verdade.
Assim, após fazermos os pedidos, enquanto saboreamos um vinho
delicioso e de efeito relaxante, falando demais por causa do nervosismo, conto
tudo a ele, desde que deixei a fazenda no interior do Texas para viver na cidade,
até o dia em que fui ameaçada por um agiota de quem peguei dinheiro
emprestado para custear os gastos no hospital, o que me motivou a tomar a
decisão que me trouxe aqui hoje e por fim, falo sobre ele ser o primeiro homem
com quem estou saindo por dinheiro.
Ao final da minha narrativa, o semblante dele já não está tão duro,
embora não haja qualquer vestígio de compaixão.
— É uma história muito comovente. — Comenta.
— E é verdadeira. Não inventei nada.
— É melhor você não tocar mais no vinho, pode cortar o efeito da sua
medicação.
— Você está certo. Eu nem devia ter bebido tanto.
Termino minha refeição me sentindo bem mais leve que quando entrei no
restaurante, parte pelo efeito do vinho, parte por ter desabafado com um estranho
que talvez nunca volte a ver, com quem não me importo se vai me julgar, ou
sentir pena de mim.
— Acredito em você. — diz ele, a voz mais suave — Não passou pela
sua cabeça voltar para a fazenda do seu pai?
— Não quero ser um peso para ele de novo, logo agora que está se dando
bem com a nova esposa. Além do mais, lá não tem trabalho para mim que me
permita pagar todas as dívidas.
— E trabalhando como garota de programas, você consegue? Você acha
que isso é vida? — Percebo o tom julgador em suas palavras e pela primeira vez
experimento a sensação de estar sendo discriminada, algo pelo que sei que
passarei ainda muitas vezes antes de sair dessa situação.
— Não é a vida que eu esperava, mas é o que tenho no momento. Além
do mais, isso é temporário.
— E se você não conseguir mais sair? E se engravidar de um
desconhecido?
Seu tom de voz continua acusador e consegue me deixar irritada.
— Aí eu terei que arcar com as consequências da minha decisão. Só não
aceito que fiquem me julgando, afinal não estou fazendo mal a ninguém que não
a mim mesma. — Minha voz soa mais elevada do que eu pretendia e posso ver a
surpresa se refletindo nos olhos dele.
— Não a estou julgando, só acho essa vida meio perigosa, para qualquer
mulher. Se você parar para pensar nas inúmeras possibilidades do que pode
acontecer, vai acabar concordando comigo.
— Eu sei que é. Sei que corro o risco de sair com um lunático psicopata,
que pode arrancar meus órgãos internos e pendurar no teto, mas que alternativa
eu tenho?
— Continuar procurando um emprego mais seguro.
— Não tenho tempo para isto. Os agiotas não estavam brincando quando
me ameaçaram.
— Eu sei.
Ele respira profundamente, mostrando-se reflexivo ao ingerir um grande
gole do seu vinho.
Olho no relógio de pulso e percebo o quanto já é tarde. Se tenho que
fazer isso, então quanto antes começar, antes terminará
— Eu agradeço pela sua preocupação, pelo vinho delicioso, pelo jantar e
por ter me ouvido, mas acho melhor irmos andando para a segunda etapa do
nosso... encontro.
Com aquela dureza voltando a tomar conta de sua fisionomia e sem
desviar os olhos inescrutáveis do meu rosto, ele se recosta no espaldar da
poltrona, enquanto seus dedos brincam com um garfo sobre o prato vazio.
— Nosso encontro não vai ter segunda etapa. — diz, seco e firme e sinto
o chão desaparecer de sob os meus pés, minha mente trabalhando rapidamente
em busca de uma resposta, tentando entender porque ele está desistindo de mim.
Só pode ser por causa da cicatriz em meu peito, a qual, embora não possa
ver, agora sabe que está aqui. Bem feito para mim, quem mandou falar demais?
Certamente, depois desta, a agência vai me dispensar e eu terei que procurar
outra, talvez não tão segura.
Droga!
Como se seus pensamentos estivessem bem longe daqui, ele encara-me
por um longo momento de silêncio, enquanto solvo um gole de vinho atrás do
outro, sentindo a bebida mais amarga, desta vez.
— Eu entendo. — falo, secamente — Quer que eu vá embora?
— Claro que não. Não é isso. Eu não estou te dispensando. É que... —
ele parece hesitante.
— Não precisa se explicar. Eu realmente entendo. — falo, tentando
afastar a sensação de humilhação.
— Quero te fazer uma proposta de trabalho. — Dispara ele, subitamente,
e o encaro em silêncio, esperando que continue — Primeiro pare de beber esse
vinho, ou acabará passando mal. — Seus olhos registram minha mão afastando a
taça — Estou precisando de uma babá para cuidar das minhas filhas. A mais
velha tem quinze anos e a mais nova tem cinco. Pago o equivalente ao que você
ganharia se prostituindo, sem que você precise cair nessa vida.
Processo suas palavras e me pergunto o que ele pode querer de mim a
ponto de inventar uma mentira tão grande. Normalmente os homens mentem
para as mulheres quando querem sexo, todavia, esse não é o caso dele, pois se
quisesse, já estaria em um quarto de hotel comigo. O que então?
— Isso é alguma piada? — pergunto e ele fica ainda mais sério.
— Não costumo fazer piadas.
— É alguma pegadinha? Sinceramente me recuso a acreditar que alguém
contrataria uma garota de programas, que nem ao menos conhece, para tomar
conta das filhas.
— Pelo que você me disse, sou o primeiro homem com quem sai por
dinheiro, portanto, se não ficarmos juntos, você não será uma garota de
programas, mas apenas uma pessoa que precisa de ajuda e estou disposto a
ajudar.
Cogito acreditar, mas não consigo. Ninguém pode ser tão bom a ponto de
levar uma completa desconhecida para dentro de casa. Isso é impossível.
— E por que você faria isso?
Ele percorre os dedos entre os cabelos curtos, espetados, em um gesto de
impaciência.
— Eu não tenho a mínima ideia. Te propor um emprego não foi algo que
eu tenha planejado, mas depois de ouvir sua história... acho que posso ajudar. E
não te farei nenhum favor. Minhas filhas realmente precisam de alguém que
tome conta delas.
Será que é sério? Será que existem pessoas assim?
Observo seu rosto com atenção, tentando decifrar que tipo de pessoa ele
é, porém sua face é indecifrável, a expressão inescrutável. Tudo o que vejo é a
masculinidade viril na boca ampla, no azul dos olhos e no maxilar forte, me
atraindo como um ímã.
— Você está falando sério?
— Não tenho razão para inventar isso.
— Então, caso seja verdade, como faremos isso se você mora no Alasca?
— Você se muda para a minha casa, até juntar dinheiro suficiente para
pagar as dívidas e recomeçar sua vida aqui.
Recordo-me de um documentário que assisti sobre o Alasca, o qual
falava sobre o frio absurdo daquele lugar, sobre a noite e o dia que duram vinte e
quatro horas durante determinados períodos do ano e um calafrio atravessa
minha espinha, os olhos dele registando o meu estremecer.
— Faz muito frio lá. Não sei se me adaptarei.
— Estamos no início do verão, em poucos dias não estará tão frio. Bem,
mas é você quem sabe. — Novamente, ele passa os dedos entre os cabelos
arrepiados, indicando que sua paciência se esgotou. Em seguida tira um cartão
de visitas do bolso da camisa e anota algo nele antes de me entregar. — Esse é
meu cartão. Pense sobre minha proposta e depois me ligue. Aí atrás está o
número do meu celular pessoal. Apenas não demore para se decidir.
Recebo o cartão da mão dele, completamente pasma com a possibilidade
de essa proposta ser verdadeira. Se for, é a coisa mais maravilhosa que me
aconteceu nos últimos tempos, aliás, a única. Eu adoro crianças, aprendi a cuidar
delas quando ainda estava na escola e não podia participar das aulas de educação
física e outras atividades esportivas, quando me voluntariava a ajudar as
professoras das séries iniciais. Posso perfeitamente cuidar das filhas dele. Além
do mais, pela quantia que ele propôs me pagar, vale à pena morrer congelada no
Alasca.
— E o que sua esposa vai achar disso?
— Eu não tenho esposa.
Tento imaginar o que ele pode ter aprontado para que uma mulher tivesse
a coragem de deixar um homem tão bonito e as filhas para trás. Em seguida,
olho para o cartão e vejo o nome Victor Boseman. Pretendo ir direto para o
computador descobrir quem é ele, quando chegar em casa.
— Vou pensar sobre sua proposta e entro em contato. — afirmo.
— Certo. Fico aguardando. — Ele fita-me em silêncio por um instante,
antes de falar — Se você aceitar, seremos apenas patrão e empregada, sem que
nada mais aconteça entre nós.
Quase solto um gemido de frustração. Eu já tinha aceitado a ideia de ir
para a cama com ele, aliás, experimentar o gosto daquela boca, sentir a fúria
daqueles lábios sobre a minha pele, era o que eu queria. Entretanto, um emprego
bem remunerado nesse momento da minha vida é muito mais importante que
minha libido desesperada.
— Concordo.
— Ótimo. Agora vou levá-la em casa.
Dito isto, ele estende a mão para que o garçom traga a conta.
A conversa entre nós durante o percurso entre o restaurante e meu
apartamento é fria e impessoal, igual a de um chefe e sua funcionária, quando
tratamos de detalhes do novo emprego como se eu já tivesse aceitado. Segundo
ele, há outros empregados em sua casa, inclusive uma governanta que toma
conta das meninas, contudo, com a idade e a rebeldia da filha adolescente, ela
está ficando sobrecarregada e precisa de alguém para ajudar. Fala ainda que, para
minha segurança, tudo o que tratamos será registrado em um contrato, inclusive
meu salário e que se eu não gostar do lugar, ou do trabalho, posso voltar a
qualquer momento.
Ao estacionarmos diante do prédio onde moro, ele me dá um cheque com
a quantia referente à noite de hoje, se despede de mim com impessoalidade e vai
embora, desaparecendo rapidamente ao dobrar uma esquina.


CAPÍTULO II


— Isso é loucura! Você não pode cogitar se mandar para o Alasca porque
um completo desconhecido, que te encontrou por meio de uma agência de
prostituição, te fez uma proposta! — Bree exclama, aturdida, depois que lhe
conto tudo o que aconteceu ontem à noite.
Está sentada à bancada da cozinha, pronta para o trabalho, saboreando o
café que acabei de preparar.
— Ele não é tão desconhecido assim. O nome e a foto estão na internet.
É realmente quem diz ser.
E é verdade. Quando cheguei do nosso encontro, ontem à noite, e
encontrei o apartamento escuro e silencioso, fui direto para o computador
pesquisar. Ao jogar o nome dele no Google descobri que é CEO da maior
empresa pesqueira do país, um dos homens mais ricos do mundo. Apesar de
conhecido no mundo dos negócios, quase não encontrei informações sobre sua
vida pessoal, como se fosse uma dessas pessoas fechadas, que não gosta de
publicidade.
— A internet está cheia de mentiras. E se ele for só mais uma?
— Não tem como ser mentira, a foto dele está lá, com o mesmo nome no
talão de cheques que ele me deu.
— Pelo visto você já está decidia a embarcar nessa loucura.
— Foi a única proposta de emprego descente que me apareceu durante
todos esses meses. Se eu não me agarrar a ela, talvez não tenha outra
oportunidade de me reerguer.
— Você é quem sabe. No seu lugar, eu não iria. — Ela parece realmente
chateada.
— Eu sei que vai ser difícil para você arcar com o aluguel sozinha
enquanto eu estiver fora, mas eu não tenho muita escolha. Nem para garota de
programas vou servir com essa cicatriz no peito.
Bree pisca, com complacência.
— Não se trata do aluguel, nisso posso dar um jeito. Só estou preocupada
com você. Não quero perder minha melhor amiga. Já basta o susto que você me
deu com esse coração mole.
Comovida, contorno a bancada e estendo os braços para ela.
— Você não vai me perder. — Estreito-a em um abraço — Eu vou ficar
bem. Prometo. Mas preciso do seu apoio nisso.
— Se é o que você quer, não tenho opção que não a apoiar. — Ela
suspira, resignada — Mas se esse sujeito aprontar com você, é só me dar um
telefonema e dou um jeito de te resgatar daquele fim de mundo.
Seu comentário me faz sorrir.
Depois que Bree sai para o trabalho, volto para a internet a procura de
mais informações sobre Victor Boseman, mas não encontro nada além do que já
sabia. Há vários artigos sobre pesca mencionando seu nome, revistas de
negócios estampam sua foto na capa, ele está no topo da lista dos homens mais
poderosos da América, mas é só isso, nada é revelado sobre sua vida pessoal, de
modo que não sei se é divorciado, viúvo, ou pai solteiro, embora duvide que seja
este último, visto que os pais dificilmente ficam com os filhos caso não sejam
frutos de um casamento.
Penso e repenso sobre sua proposta, medindo os prós e os contras.
Tirando o frio que faz no Alasca, não tenho muitos motivos para recusar, aliás,
mesmo que conseguisse um emprego aqui, dificilmente alguém me pagaria o que
ele propôs. Não há muito em que pensar, quando uma oportunidade como essa
surge, é preciso agarrar-se a ela com todas as forças e é o que farei. Além do
mais, não há nada que ele possa querer de mim a não ser me ajudar. Então,
decidida, telefono para meu futuro chefe, comunicando-lhe minha decisão e após
alguns minutos de conversa fria e impessoal, ele está com meus dados bancários,
para onde enviará o dinheiro para as despesas da viagem e um adiantamento do
meu salário para acalmar os agiotas.
Passo os três dias seguintes me dedicando a deixar tudo organizado para
a minha ausência, que acredito não durará mais que um ano, talvez menos,
considerando que estarei hospedada na casa do chefe e não terei quaisquer
despesas, de modo que posso guardar todo o meu salário. Uso o dinheiro que ele
me deu pela noite em que nos encontramos para comprar casacos, muitos
casacos, me preparando para o frio infinito que me espera; telefono para meu pai
contando as novidades; converso com minha madrinha e com os agiotas e
consulto a equipe de transplante, a fim de saber se há alguma coisa que me
impeça de viajar, até que por fim, em uma ensolarada manhã de quarta-feira,
deixo o Texas, aterrissando em Fairbanks algumas horas depois.
No desembarque, encontro um homem idoso, muito alto e magro, dentro
de um casaco pesado, segurando uma plaquinha com o meu nome. Mostrando-se
simpático e prestativo, apresenta-se a mim como Lewis, o motorista de Victor.
Depois dos cumprimentos, segura minha mala maior, levando-a para fora,
enquanto o sigo com as bolsas menores. Na rua, o frio me recebe com a sutileza
de um soco no estômago. Embora eu tenha pesquisado sobre o clima daqui e
esteja por dentro da baixa temperatura, nada me preparou para um dia tão gélido,
para uma paisagem tão desprovida de vida, para uma cidade inteira oculta pela
nevasca, depois do sol forte que deixei para trás.
Lewis abre a porta de trás de um carro luxuoso, com rodas enormes,
indicando que eu entre e o faço, o aquecimento me acolhendo gostosamente. Ele
nos conduz através das ruas opacas, onde nada escapa ao meu olhar. Através da
camada cinzenta, vejo prédios medianos, de concreto, sem a modernidade dos
vidros, diante dos quais há estacionamentos com mais espaço que a quantidade
de carros. Todos os lugares por onde não passam carros, ou pedestres, estão
cobertos por gelo, desprovidos de árvores. Apesar de ser quase meio dia, há
pouquíssima movimentação nas ruas, tanto de veículos, quanto de transeuntes;
tudo em volta parece triste, mórbido, apagado. Todas as ruas pelas quais
passamos são planas, sem ladeiras; apesar de ser dia, as luzes dos postes estão
acesas, embora não iluminem quase nada, a vista é completamente embaçada.
— Aqui é sempre assim? — pergunto ao motorista, espantada.
— Assim como?
— Cinzento, gelado.
— Às vezes o gelo cobre quase tudo, mas estamos no início no verão, a
tendência é esquentar nos próximos dias.
— Ainda bem.
Passamos por sobre uma ponte que atravessa um rio cujo gelo começa a
derreter e seguimos adiante, por muito tempo, até que não há mais cidade, mas
apenas uma rodovia em meio a árvores secas, sem folhas, quando começo a
entrar em pânico.
— O Sr. Boseman mora fora da cidade? — pergunto, o coração frágil
espremido de medo.
— Sim, mas não é muito longe.
Percebo que ele me olha pelo retrovisor antes de aumentar a velocidade
do carro. Ou está preocupado com a minha agitação, ou aligeirando as coisas
antes que eu tenha tempo de pular e pedir ajuda. Opto por acreditar na primeira
hipótese, afinal prometi a mim mesma que não me apavoraria, que se algo ruim
acontecesse eu aceitaria sem reclamar, já que conhecia os riscos quando
embarquei nessa.
Mais à frente deixamos a autoestradas e seguimos a uma velocidade mais
baixa, por uma estradinha de cascalhos, onde há ainda mais árvores secas e
nenhum outro veículo. Seria o momento propício para eu pular do carro, se
tivesse coragem de fazer isso, mas descobri na internet que o Alasca é cheio de
ursos e não vou sair por aí me arriscando a encontrar um deles no meio desse
gelo todo. Se for para ser morta, prefiro que seja aquecida dentro do carro.
Seguimos adiante por mais algum tempo, até que por fim uma grande
clareira se revela diante de nós e em meio a ela a maior, mais luxuosa e macabra
mansão que já vi. No estilo de um palácio, se parece um pouco com a Casa
Branca, sóbria, fechada, com janelas grandes cobertas por grades. Se expande
por uma extensa área, na qual posso ver, em meio à nevasca, o que parece ser um
estábulo. Bastante isolada, está localizada em meio ao nada, com a silhueta das
montanhas com picos de gelo ao fundo.
Lewis estaciona na porta de entrada, pega minha mala e indica que eu o
siga. Antes mesmo de tocar na maçaneta, a porta é aberta por uma mulher de
meia idade, com cabelos pretos presos em um penteado clássico, rosto pálido e
corpo esguio.
— Harriet, essa é a nova babá contratada pelo Sr. Boseman. — diz
Lewis, ofegante com o peso da mala. — Srta. Stuart, essa é nossa governanta,
Harriet.
Tento sorrir para ela, mas só consigo tilintar dentro do meu casaco
pesado.
— P-pode me chamar de Evangeline. — Consigo dizer, entre uma batida
de dente e outra.
Harriet examina-me dos pés à cabeça, com olhar severo.
— Seja bem-vinda, minha jovem. Fez uma boa viagem? — Ela fala, ao
mesmo tempo em que gesticula para que eu entre.
Sem fazer cerimônia, atravesso a porta depressa para o lado de dentro,
quase soltando um gemido de prazer ao ser acolhida pelo aquecimento interno.
— Sim, foi uma ótima viagem. — Percorro os olhos pela sala enorme,
decorada com móveis em estilo provençal, em suaves tons de bege, inclusive as
cortinas e as luzes que partem do lustre no teto. Percebo que é limpa e
organizada demais para uma casa onde moram uma adolescente e uma criança
— Onde estão as meninas? — pergunto, quase por impulso.
— Na escola. Você pode conhecê-las mais tarde. Agora venha conhecer
seus aposentos e depois comer alguma coisa. Deve estar com fome.
Ela gesticula para que eu a siga e, caminhando com uma postura altiva,
nos conduz através de uma imensa escadaria dupla que leva ao andar superior, o
motorista nos seguindo com a mala pesada.
— A ala onde dormem os empregados fica aos fundos, depois da
cozinha, mas o Sr. Boseman me mandou hospedá-la aqui. — Ela me lança um
olhar duro, carregado de insinuações e apenas me encolho, na defensiva —
Quero acreditar que seja para que fique perto do quarto das meninas.
— Com certeza, deve ser isso. — Me apresso em responder.
No andar de cima, os corredores são largos, imensos como tudo mais
aqui, as paredes em tom neutro, desprovidas de qualquer decoração. Ao abrir
uma das portas amplas, o quarto se revela diante de nós, grande, mobiliado com
sobriedade. A cama de casal, com dossel, me faz lembrar o filme “O Segredo de
Mary Reilly”, de tão mórbida que parece. Pelo menos tem a modernidade de
uma escrivaninha com computador, não estou tão isolada do mundo assim.
— Desfaça suas malas, coloque o uniforme que está no closet e desça. Já
passou do horário do almoço, mas vou pedir à cozinheira que prepare algo para
você. Alguma preferência?
— Um sanduíche está bom. Obrigada.
— Certo.
Ela me lança mais um de seus olhares sondadores, ergue o queixo em um
gesto de superioridade e deixa o quarto, Lewis a seguindo, após deixar a mala no
chão.
À procura do tal uniforme, adentro o closet grande. Há pelo menos meia
dúzia deles pendurados nos cabides, trajes iguais, um vestido cinza escuro sem
graça, com gola, o detalhe da manga comprida, o avental e as meias-calças
brancos. Tiro as roupas de frio pesadas e o visto, constatando que ficou grande
demais, largo e comprido. Ainda assim o uso, afinal parece ser uma exigência
aqui. Apenas faço um coque nos cabelos para combinar.
Ao descer a larga escadaria, me dou conta de que não tenho a mínima
ideia de em que direção fica a cozinha. Na sala enorme, sóbria e organizada em
demasia, escolho um rumo aleatório e sigo por ele. Primeiro me deparo com
outra sala grande, onde há lareira e diferentes jogos de estofados; depois de abrir
uma porta, estou em uma biblioteca pré-histórica, com estantes gigantescas,
repletas de livros grossos, como se ninguém aqui tivesse ouvido falar no livro
digital ainda; após descer por outra escadaria, me dou conta de que estou
completamente perdida, já nem sei para que lado fica a sala de onde parti
inicialmente. Tudo por aqui é muito suntuoso, luxuoso, cavernoso, nada é
simples ou acolhedor. Definitivamente, não se parece com um lar.
Estou em um corredor semiescuro, quando ouço som de música partindo
de certa direção e praticamente corro para lá, torcendo para que seja um dos
empregados. Ao final do corredor há uma escada pequena e embora pareça
assustadora, desço por ela, seguindo o som da música que toca alto. Dou em uma
porta ampla e quando a entreabro, enfiando cabeça através do pequeno espaço,
fico estática, paralisada no lugar. Ao som de Somebody Told Me, The Killers,
em uma academia muito bem equipada, meu chefe está socando e chutando um
saco de pancadas como se ele fosse um E.T. de dez cabeças que ameaça a vida
na terra, tamanho é o ódio e a energia empregados em seus movimentos. Está de
costas para mim, usando apenas uma bermuda e as luvas de boxeador, só sei que
é ele porque reconheço os cabelos castanhos claros curtinhos, espetados.
Tento me mover, dar meia volta e sair daqui antes que ele ache que estou
espiando, no entanto, meus olhos são capturados pelos músculos bem definidos
das suas costas suadas, pelos bíceps pronunciados, pela curva do traseiro firmes
e redondo dentro do short e sou arrastada para uma espécie de transe que me
impede de desviar o olhar, como se estivesse hipnotizada.
Sem notar minha presença, ele cessa o ataque ao equipamento, deixa seus
braços forte caírem ao longo do corpo e permanece imóvel por um longo
momento, seus músculos se tornando ainda mais rijos, o corpo másculo
estremecendo. Recosta a cabeça no saco de pancadas e fica assim, parecendo
devastado, como se estivesse passando por um doloroso tormento, e quase cedo
ao impulso de me aproximar só para checar se está bem.
Por fim, ele volta a socar o saco, com ainda mais fúria que antes,
empregando uma energia vigorosa em cada movimento, sem que eu consiga
parar de observar, um calor luxurioso se manifestando em minhas veias,
causando uma espécie de cócegas na altura do meu ventre. Nem mesmo a
certeza de que estou me portando de forma ultrajante, observando-o escondia,
me faz parar de olhar. Esse homem é a criatura mais magnífica sobre a qual já
coloquei os meus olhos.
Estou praticamente devorando-o com os olhos quando o rosnado de um
animal parte de certa direção e só então vejo o Husky Siberiano enorme, branco
com marcações cinzas, em um canto do recinto, levantando-se e vindo ao meu
encontro. Mesmo estando aterrorizada, ainda tento sair sem ser vista pelo meu
novo chefe, então dou meia volta para subir as escada, porém a pressa me
atrapalha e acabo tropeçando no degrau, desastrosamente, a gravidade se
aproveitando do meu infortúnio para me puxar para baixo, até que caio
desajeitada no chão, sentada, do lado dentro da academia, sob o olhar feroz do
cão que me cheira toda e do homem que cessa seus movimentos para vir ao meu
encontro, dando-me uma bela visão do seu peitoral musculoso, desprovido de
pelos, seguido dos gominhos bem definidos do abdômen e da estreita trilha de
pelos que surge mais abaixo e desaparece no cós da bermuda.
— O que faz aqui? — Ele esbraveja, com tom de voz abrupto, ao passo
em que tira as luvas.
— E-eu e-estava p-perdida e... — Tento falar, mas sou engolfada pelo
constrangimento.
Ao mesmo tempo em que procuro um buraco onde me esconder, tento
permanecer o mais imóvel possível, temendo que o cachorro me ataque.
— Saia daí, Thor! — Ele vocifera e o cão se afasta de mim, embora não
volte para o canto de antes, optando por permanecer em alerta no meio do
recinto. — Não tenha medo, ele não morde. Agora me diga por que diabos
invadiu minha academia!
— Não foi minha intenção, eu estava procurado a cozinha e acabei me
perdendo. Juro que não estava espiando você. — falo depressa, embaraçada.
Por fim, ele me estende a mão e quando a seguro uma corrente forte de
calor desce pelo meu corpo, como eletricidade, se instalando no espaço entre
minhas pernas. Meu coração fragilizado bate depressa no peito, uma ansiedade
desconhecida emerge em meu estômago, o que só piora quando fico de pé e olho
em seu rosto de perto. Seus olhos são ainda mais bonitos do que eu me
recordava, possuem um tom azul opaco, misterioso, como se escondessem algo e
quando os examino atentamente, tentando decifrar do que se trata, tudo o que
vejo é uma tristeza dolorosa, angustiante, do tipo que me dá vontade de abraçá-
lo, de afagar seus cabelos curtos e dar-lhe a certeza de que tudo vai passar, de
que tudo ficará bem.
— Você está bem? — pergunto, por impulso e ele age como se eu tivesse
acabado de lhe dar um soco na face, soltando minha mão e afastando-se com
muita rapidez.
— Por que não estaria? — indaga, a voz ríspida.
Vai até uma camiseta jogada sobre uma esteira e veste-se. Em seguida,
volta a me encarar, de longe, a fisionomia se fechando, as sobrancelhas grossas
se unindo em sua testa, formando uma ruga profunda. Percebo, então, que esse
homem é como o lugar onde mora: frio, cinzento, misterioso.
— Você me pareceu meio... angustiado, zangado.
— É impressão sua. Só estou treinando. — Vai até o aparelho de som e o
desliga, voltando-se novamente para mim, o semblante ainda mais contraído,
tenso — Não é cabível que você me trate com informalidade aqui. Por favor, me
chame de senhor.
Seu tom de voz é áspero e sinto minha face empalidecer de vergonha.
Imagino que ele percebeu a forma como eu o devorava com os olhos e está
deixando claro onde é o meu lugar, como fez em Houston, quando disse que não
passaríamos de patrão e empregada.
— E-eu sinto muito. — falo, tropeçando nas palavras, desviando meu
olhar para o chão.
— O que aconteceu no Texas, a forma como nos conhecemos, não é algo
que eu faça com frequência, foi apenas um incidente e espero que não mencione
o assunto com os outros empregados, ou com minhas filhas.
Suas palavras me fazem sentir marcada, como se eu me resumisse às
circunstâncias nas quais nos conhecemos, como se o fato de eu ter tentado me
tornar uma garota de programas me definisse, o que me parece uma forma muito
sutil de preconceito. Por mais que ele esteja sendo generoso, solidário ao meu
ajudar, não há como ignorar o fato de que está também me discriminando.
Entretanto, não estou em posição de discutir sobre o assunto, ou mesmo
expressar minha mágoa. Sou eu quem precisa dele, não o contrário.
— Não mencionarei, pode ficar tranquilo. Da mesma forma, peço que
leve em conta que aquilo foi só um momento para mim também.
— Claro, eu entendo. Vamos ao escritório. Seu contrato está pronto para
ser assinado.
Ele gesticula para que eu siga na frente e subo as escadas, muito
consciente da sua proximidade atrás de mim e do cão atrás dele.


CAPÍTULO III



Atravessamos o corredor por onde passei e adentramos uma sala ampla,
mobiliada com sobriedade, onde ele se acomoda atrás de uma mesa com tampo
de vidro e gesticula para que eu me sente do outro lado. Faz um gesto na direção
de Thor e este se deita em um canto, todo o tempo atento, como se fizesse a
vigilância do seu dono e eu fosse a ameaça. É um animal muito bonito, com
densos pelos em branco e cinza e olhos dourados. De uma das gavetas, meu
chefe tira um envelope grande e de dentro dele alguns papéis, os quais entrega-
me.
— Leia tudo antes de assinar.
— Certo.
Tenho dificuldade em me concentrar na leitura, por causa da energia
poderosa, intimidante, que parte dele, então apenas passo os olhos rapidamente
sobre o papel, quando consigo distinguir que o valor do meu salário semanal será
o equivalente a seis noites saindo com os homens enviados pela agência de
prostituição, como ele prometeu, sendo que no domingo terei folga; precisarei
estar à disposição da sua família durante as vinte e quatro horas do dia, inclusive
à noite, durante o sono, o que acho justo, considerando a quantia que estarei
recebendo; terei meu próprio aposento; meu carro; posso ir embora quando
quiser e no domingo estarei livre para fazer o que quiser.
Me parece muito bom. Então pego uma caneta, assino e entrego-lhe de
volta.
— Nenhuma pergunta? — indaga ele.
— Não. Só tenho a agradecer pelo que está fazendo por mim.
— Não agradeça. Não estou lhe fazendo nenhum favor. — Sua voz é
áspera e percebo que não será uma convivência fácil com esse homem, pois o
que ele tem de bonito, tem também de arrogante — Da mesma forma que estou
lhe pagando bem, exijo profissionalismo da sua parte e um trabalho bem feito.
É a primeira vez que tenho um emprego formal com um chefe de
verdade. Talvez todos tratem os empregados assim. Só estou estanhando porque
não tenho costume de ser subordinada, o que pretendo mudar, afinal preciso do
emprego.
— Pode ter certeza que darei o máximo de mim. Adoro crianças, vou
cuidar muito bem das suas filhas.
— Assim espero. Harriet vai dar todas as informações de que precisa
sobre elas.
Olho para ele e fico curiosa em saber o que o CEO de uma empresa, um
dos homens mais ricos do mundo, faz em casa a uma hora dessas. Será que
trabalha aqui? Quero perguntar, mas como ele deixou claro, não tenho essa
liberdade, preciso tratá-lo com a maior formalidade. Então, disposta a deixá-lo
sozinho com a tristeza refletida no brilho dos seus olhos, levanto-me.
— Mais uma vez agradeço a oportunidade. Com licença.
Dou meia volta e sigo para a porta de saída. Estou a alcançado, quando
ele chama atrás de mim.
— Espere. — Viro-me e o vejo deixando o seu lugar — Se você se
perdeu por aí, acho melhor lhe mostrar a casa antes que aconteça de novo.
Sua atitude me surpreende, mas nada digo, apenas acato e tento me
concentrar em qualquer outra coisa que não seja o cheiro gostoso de suor limpo e
masculino que parte dele. Mantendo uma distância segura desse homem — e do
cão que nos segue para onde vamos — o acompanho em uma excursão pela
mansão. Primeiro conheço os cômodos do andar subterrâneo em que estamos,
onde ficam, além da academia e seu escritório, uma sala acústica com diversos
instrumentos musicais e um porão muito limpo e organizado. Depois mudamos
para o térreo, onde passo novamente pela biblioteca, as salas de estar e de jantar,
uma sala para descanso com lareira e mais uma vez não fico sabendo onde se
localiza a cozinha. No segundo andar passamos pelos corredores onde ficam
cerca de onze quartos e pelo menos meia dúzia de banheiros e por fim chegamos
ao lugar que me parece o único aconchegante da casa: um terraço enorme,
coberto com vidro transparente, de onde pode-se ter uma vista magnífica do céu
escuro, coberto por nuvens e onde há uma piscina gigante, no formato de um L,
com água aquecida. Em torno dela, há plantas exóticas, cultivadas em vasos e
cachepôs de madeira pendurados nas paredes; mesas com cadeiras em estilo
africano; uma bela chase redonda; jogos de estofados quadrados com almofadas
e um mine campo de golfe.
Se eu morasse aqui, definitivamente não saía deste lugar.
— Nossa! Que lindo isso aqui! — exclamo admirada.
— Já foi meu lugar preferido dessa casa, mas agora tudo parece ter
perdido o sentido.
A angústia que percebi no brilho dos seus olhos fica ainda mais evidente
quando ele pronuncia as palavras.
— O que aconteceu com você? — pergunto e ele permanece em silêncio,
a fisionomia desolada, o olhar perdido no vazio à sua frente. — Você perdeu
alguém, não foi? — Sei que estou ultrapassando os limites que ele impôs entre
nós, de nos tratarmos como patrão e empregada, porém minha curiosidade é
maior que minha capacidade de ficar calada — Foi a sua esposa?
Ele respira profundamente antes de trazer seu olhar vazio para mim.
— Não vamos nos tratar como se fôssemos amigos, Srta. Cooper. É
melhor assim. — Apesar das palavras duras, seu tom de voz já não é tão seco
quanto antes e só serve para atiçar minha desconfiança de que ele carrega uma
dor profunda na alma, cuja razão eu daria um dedo para descobrir.
Minha grande suposição é que a pessoa que ele perdeu era sua esposa.
Uma história realmente triste.
— Eu entendo, Sr. Boseman. Sinto muito. — murmuro, com sinceridade.
— Não sinta. Você só não está acostumada a ter um emprego formal,
com um chefe.
Fito-o espantada.
— E como sabe que nunca tive um emprego?
É a vez dele me fitar com surpresa.
— Não sei. Acho que você disse quando jantamos em Houston.
Não me lembro de ter mencionado esse assunto, no entanto,
considerando que desatei a falar, derramando todos os meus problemas sobre ele,
posso ter facilmente dito isso também, apenas não me recordo.
— Não me lembro, mas deve ser verdade. Falei demais naquela noite.
— Você só estava desabafando. Às vezes é necessário colocar para fora.
— Concordo. — falo e meu olhar se prende ao dele por um longo
momento de silêncio.
— As meninas devem estar quase chegando da escola. Acho melhor você
ir falar com Harriet.
— E quanto ao senhor, alguma recomendação especial sobre como devo
cuidar delas?
— Não. Apenas siga o que Harriet disser e tudo dará certo.
— Tudo bem. — Estou prestes a dar meia volta e sair, quando me lembro
de que ele não me mostrou onde fica a cozinha, onde Harriet me mandou
encontrá-la — Ainda não sei onde fica a cozinha.
Como um fraco raio de sol invadindo um dia gélido, o canto da boca dele
se dobra em um sorriso muito sutil, quase imperceptível.
— Eu te mostro. Venha.
Descemos de volta ao térreo. Na sala de estar ele me mostra em que
direção fica a cozinha e me deixa, seguindo pelo lado oposto, junto com Thor.
Ao atravessar outra sala, finalmente adentro o cômodo amplo, muito bem
equipado com eletrodomésticos modernos, como era de se esperar, embora os
traços clássicos encontrados no resto da casa ainda estejam presentes, como na
mesa retangular enorme, de madeira polida, que se encontra no centro do
recinto, em torno da qual se reúnem cerca de meia dúzia de empregados, homens
e mulheres de diferentes idades, todos usando um uniforme da mesma cor do
meu.
Minha nossa! É muita gente para atender uma família de três pessoas.
— Eu já estava de saída para ir te procurar. — diz Harriet — Seu
sanduíche está pronto.
— Obrigada. — Agradeço e acomodo-me à mesa, diante do sanduíche de
queijo e da xícara de chá fumegante.
— Seja bem-vinda ao Alasca. — Quem diz é uma garota ruiva com mais
ou menos a minha idade.
— Obrigada. — falo, após dar uma mordida no sanduiche.
— Sou Mackenzie, a arrumadeira, mas pode me chamar Kenzie. — Ela
me estende a mão em cumprimento e a aperto amistosamente.
— Sou Evangeline é um prazer conhecê-la.
— Esses são Dorothy, a cozinheira; Linda, a ajudante dela; Mark, o
jardineiro e Lewis, o motorista que você já conhece.
Todos me cumprimentam com simpatia.
— É um prazer conhecê-los e obrigada por me receberem tão bem.
— Certo, agora que todos já conhecem a garota nova, vamos voltar ao
trabalho. — Harriet fala e todos se movimentam apressadamente, deixando seus
lugares à mesa — Já desfez suas malas?
— Ainda não. Quando estava descendo para vir encontrá-la, acabei me
perdendo e me deparei com o Sr. Boseman. Ele me mostrou a casa, por isso a
demora.
O queixo de Harriet cai, como se eu tivesse acabado de declarar que sou
um travesti.
— Por Deus! Você foi incomodar o Sr. Boseman no escritório dele?!
— N-não foi de propósito. E-eu estava procurando a cozinha.
— Nunca mais desça lá, mocinha. A primeira regra dessa casa é que
nunca devemos incomodar nosso chefe. — Ela bufa, irritada.
A sensação de que dei uma grande mancada logo nas primeiras horas do
meu trabalho, me faz empalidecer.
— Eu sinto muito. Isso não vai se repetir.
— Assim espero. Agora vou ter que ir lá saber se você fez muito estrago.
Ela deixa a cozinha, com passos largos e apressados. No instante
seguinte, como se tivesse acabado de se livrar do seu algoz, Kenzie senta-se ao
meu lado, o rosto cheio de sardas vermelho de entusiasmo, os olhos verdes
eufóricos.
— Você veio mesmo do Texas? — indaga ela.
Engulo o último pedaço do meu sanduíche e solvo um gole do chá quente
antes de responder.
— Sim. Direto de Houston.
— É verdade que lá faz calor o ano inteiro?
— Sim. Mesmo no inverno há dias quentes e nunca neva. Você nunca foi
ao Texas?
— Nunca saí do Alasca. — Ela me fita com tristeza — Você vai demorar
para se acostumar com o frio daqui.
— Você mora aqui mesmo na mansão?
— Sim. Todos nós moramos. Fica longe da cidade para ir e voltar todos
os dias. Só vamos em casa nos finais de semana. — Ela sorri de um jeito
malicioso antes de continuar — Ficamos nos aposentos dos fundos. Diferente de
você, que vai ficar no segundo andar, perto do quarto do Sr. Boseman.
Nosso chefe devia ter me colocado na mesma ala dos outros empregados,
aposto como estão pensando que tenho alguma coisa com ele. Só que não tenho
essa sorte.
— Não tenho nem ideia de porque ele me colocou lá. Deve ser para que
eu fique perto das meninas.
Sua expressão se torna ainda mais maldosa.
— As meninas nunca tiveram babá. Harriet sempre cuidou delas. Você é
a primeira.
Realmente esse homem está tentando me ajudar, inclusive criou esse
emprego para mim, enquanto eu só consigo ter pensamentos libidinosos a
respeito dele.
— Acho que ele decidiu que a filha adolescente precisa de freios. — E
mudo rapidamente de assunto — Qual é a dele? Trabalha em casa mesmo?
Ela hesita antes de começar a falar.
— Faz algum tempo que ele se isolou do mundo lá fora. Pouco sai de
casa. Dizem que está com depressão. Mas comanda todo o império lá do porão.
— Império?
— Sim. Ele é o maior empresário da indústria pesqueira desse país. —
Percebo que ela diz isso com orgulho.
— E por que ele está com depressão?
Ela massageia sua nuca, desconcertada.
— Harriet nos proibiu de falar sobre isso. Foi muito doloroso para todos
nós.
— A esposa dele morreu, não foi?
Antes que ela tenha tempo de responder, Harriet adentra a cozinha,
pisando firme, a fisionomia emburrada como sempre e Kenzie se apressa em
levantar-se da mesa e sumir rumo à sala.
— Lewis vai apanhar as meninas na escola. Vá com ele para aprender o
caminho, pois a partir de amanhã isso será com você.
— Sim senhora. — Prontamente, levanto-me. — Mais alguma
recomendação sobre como lidar com elas? O Sr. Boseman me disse para seguir o
que a senhora disser.
— Eu não sei o que ele quer que eu diga. Essas meninas nunca
precisaram de uma babá — Droga! De novo isso — É só agir como age com as
outras crianças. Elas são adoráveis. Não darão trabalho algum. Você trouxe
agasalhos?
— Sim.
— Ótimo. Vista-se e encontre o motorista na garagem.
— Sim, senhora.
Com isto, deixo a cozinha e subo a escadaria correndo. Troco o vestido
feio por jeans, camiseta e um casaco de pelo sintético tão grosso que chega a ser
pesado e saio. Na garagem ampla e pouco iluminada, há cerca de oito carros de
luxo estacionados, entre eles o que Lewis conduz. Tão logo entro e me acomodo
no banco de trás, ele nos leva para fora e quase solto um grito de susto ao
constatar que está escuro, a rua estreita de cascalhos iluminada apenas pelas
luzes de postes pequenos que se seguem em filas nas suas laterais.
— Ainda são duas e meia da tarde. Por que está tudo escuro? — indago,
atônita.
— Porque nessa época do ano o dia tem pouco mais de cinco horas de
duração. As noites são ainda mais longas. Mas com a chegada do verão, teremos
dias cada vez maiores.
— Ah, é mesmo. Dias que durarão vinte e quatro horas.
A escola fica logo na entrada da cidade, um prédio mediano, retangular,
sem vidros nem grades de proteção, diante do qual há um estacionamento muito
maior que a quantidade de carros. As crianças estão saindo, todas muito bem
agasalhadas dentro de seus casacos grossos, usando gorros e luvas. Apenas o
rosto está exposto ao frio. Tão logo saltamos e rumamos para a saída, as duas
meninas se aproximam de nós, de mãos dadas, a mais velha examinando-me dos
pés à cabeça.
— Olá, Lewis. — diz ela, ignorando-me.
— Olá Samantha. Essa é a Srta. Stuart, a nova babá de vocês. — Lewis
apresenta.
A menina volta a me examinar dos pés à cabeça, o olhar hostil, as
sobrancelhas franzidas formando uma ruga em sua testa, como o pai. É muito
parecida com ele, tem a pele naturalmente bronzeada, os cabelos longos cor de
cobre e olhos azuis claros. É tão linda quando a menorzinha, cujo rosto pequeno,
delicado, está quase escondido entre os densos cabelos loiros. Esta não se parece
com o Sr. Boseman, tem belos olhos castanhos esverdeados e a pele bem clara.
Ao sorrir para mim, exibe uma fenda ente os dentinhos superiores.
— Nós nunca precisamos de babá. — Samantha dispara, abruptamente.
Lewis olha para mim com um olhar de sinto muito, porém nada diz à
garota.
Eu entendo a revolta dela, aos quinze anos os hormônios estão
enfurecidos e tudo se torna ainda mais difícil quando não se tem uma mãe, tal
qual eu também não tinha.
— Na verdade, quero ser amiga de vocês. — Tento e o semblante da
pirralha se contrai ainda mais. — E essa fofinha aqui, como se chama?
A menina menor sorri ainda mais amplamente e quem responde é Lewis.
— Essa é Lucille, nossa princesinha.
Abaixo-me diante dela e olho seu rostinho infantil de perto. É muito
linda, parece uma bonequinha, com a boca pequena rosada, os olhos imensos, o
nariz arrebitado minúsculo.
— Olá Lucille. Sou Evangeline e gostaria de me tornar sua amiga.
— Como vai Evangeline? — Sua voz é aguda. — Pode me chamar de
Luci, é assim que meus amigos me chamam.
Irritada, Samantha a puxa pela mão em direção ao carro.
— Será que podemos sair daqui, ou vão esperar que eu congele? — diz,
asperamente.
— Não fique chateada com ela. Está agindo assim porque ainda não a
conhece. No fundo é uma ótima menina. — Lewis a defende, enquanto as
seguimos de volta para o carro.
Acomodo-me no banco de trás junto com as duas, Luci no meio,
Samantha emburrada no canto. Durante o percurso de volta para a mansão, tento
puxar assunto com ela, amenizar sua hostilidade, mas sou completamente
ignorada. Ela só abre a boca para falar quando quer soltar uma de suas
grosserias. Já Luci, se mostra mais receptiva.
Ao chegar à casa, dispensamos os casacos na entrada e, mesmo sendo
rejeitada sigo as duas para o andar de cima. Cabe a mim, como a adulta,
conquistar a aceitação da garota, ou corro um sério risco de perder essa
oportunidade de emprego.
Ambas entram no mesmo quarto, a porta seguinte ao meu e as sigo.
— Não precisa ficar nos seguindo. Como eu já disse, não precisamos de
babá. — A garota mais velha dispara. Depois se vira para a irmã e com um tom
de voz mais calmo, diz: — Troque o uniforme e vamos lanchar. Harriet deve ter
preparado alguma coisa.
— Quer ajuda para trocar o uniforme, querida?
Samantha não espera que a irmã responda.
— Eu já disse que não precisamos de você para nada. Luci não é
nenhuma inválida que precisa que alguém a ajude a trocar de roupas.
Paciência é uma virtude que eu não tenho e logo o sangue ferve em
minhas veias, a irritação me consumindo.
— Eu não perguntei nada a você, garota malcriada!
— Mas estou na minha casa, portanto, respondo quando me der vontade.
— Qual o seu problema? Eu só estou tentando fazer o meu trabalho, para
o qual o seu pai está me pagando, aliás pagando muito bem.
Sinto que toquei em alguma ferida aberta quando vejo o rosto jovem dela
ficando vermelho como tomate, os olhos azuis faiscando de ódio.
— Meu pai nunca pagaria uma babá para nós. Nunca precisamos de uma.
Se você está aqui é porque, no mínimo, é só mais uma prostituta tentando
arrancar o dinheiro dele.
Suas palavras me deixam muda, não apenas pelo conteúdo, mas pela
dureza com que são proferidas. Nunca vi uma garota tão jovem falando assim.
Tento retrucar, pois nem mesmo um bom emprego é capaz de me deixar ser
humilhada, no entanto, me detenho ao ver seus olhos amargos se encherem de
lágrimas, para que em seguida ela saia em disparada do aposento, batendo a
porta com força pelo lado de fora.
Só então volto a minha atenção para Luci e percebo que ela está quase
chorando também, o lábio inferior puxadinho, os olhos marejados, o que não é
por menos depois do que ela presenciou.
— Isso não foi nada, meu bem. Samantha deve estar de... TPM. — Tento
acalmá-la, mas é só isso que me vem à mente agora.
— Por que ela está zangada com você?
— Porque ela acha que o pai de vocês a está tratando com criança ao me
contratar para tomar conta de vocês, mas isso não é verdade. Eu estou aqui só
para ajudar. Agora tire o uniforme, aposto como está com fome. Quer que eu
ajude a escolher uma roupa?
— Quero. — Ela gesticula para um closet e ao entrar fico abismada com
a quantidade de roupas, calçados, bolsas e chapéus do tamanho dela, sem falar
nas maquiagens infantis e até joias — Nossa! Isso tudo é só seu? — Indago,
quando ela entra atrás de mim, usando apenas a roupinha de baixo.
— Sim, mas não demoro muito escolhendo.
— Muito bem, isso se chama maturidade.
Ajudo-a a pegar o macaquinho comprido que quer vestir e peço que se
sente na frente do espelho enquanto faço um penteado em seus cabelos
dourados. Preciso me lembrar de assistir tutoriais de penteados infantis no
YouTube, inclusive para evitar que ela vá novamente para a escola com os
cabelos desgrenhados como estão hoje.
— O que é uma prostituta? — indaga ela, subitamente, enquanto faço
tranças com rabicós coloridos.
— É uma mulher que sai com homens por dinheiro. Mas eu não sou isso,
Samantha só me chamou assim porque está zangada.
— E o que é TPM?
Caramba! Eu preciso ficar mais atenta com o que falo perto dessa
menina.
Quando deixamos o quarto, ela me diz que costumam lanchar na cozinha
depois da escola e nos encaminhamos para lá, onde encontramos Samantha já
sentada à mesa, comendo batatas fritas com ketchup e Luci acomoda-se ao seu
lado, sendo servida da mesma guloseima por Harriet, que com elas se mostra
muito mais gentil, prestativa. Todavia a governanta não é a única com um
comportamento diferente, Samantha parece outra pessoa ao se dirigir a ela,
muito mais descontraída, jovial e simpática, enquanto nem olha em minha
direção, como se eu não estivesse aqui, ou fosse invisível. Eu poderia continuar
insistindo em me aproximar dela, só que não vou me submeter a tolerar
desaforos de uma pirralha malcriada. Se é assim que ela quer, assim será nossa
relação, como se não existíssemos uma para a outra, talvez um dia, quando me
conhecer melhor, ela mudará de ideia. Por enquanto, a doçura de Luci me basta,
até porque uma menina de quinze anos realmente não precisa de uma babá.
Passo o restante da tarde totalmente dedicada a Luci. Acolhidas pelo
aquecimento de dentro de casa, brinco com ela de esconde-esconde, jogo de
bilhar e até de chá com suas bonecas, além de tirar um tempo para ajudá-la a
fazer a lição de casa. Embora não fale comigo nenhuma vez, Samantha se
mantém sempre por perto, de olho na irmã, mesmo quando finge estar lendo uma
revista, ou manuseando o celular, o que demonstra que, apesar da personalidade
forte, tem um excelente caráter, por se preocupar com a pequenina.
Considerando que brincar com uma criança de cinco anos durante horas
requer bastante desenvoltura, pelo à Harriet para não voltar a usar o vestido
horroroso do uniforme e felizmente ela concorda, de modo que posso
permanecer usando minhas roupas.
Ao contrário de Samantha, que está sempre por perto, o Sr. Boseman não
aparece nenhuma vez para ver as filhas, de modo que não sei se está trabalhando
no escritório subterrâneo ou se saiu. Embora eu passe a tarde inteira esperando
vê-lo a qualquer momento, com um frio no estômago, como se fosse uma
adolescente esperando se deparar com o garoto mais bonito da escola pelos
corredores, sua ausência não me parece estranha até mais tarde, quando as
garotas jantam na sala com lareira, sozinhas em torno da mesa enorme, na
companhia apenas dos empregados que as servem e depois se recolhem aos seus
aposentos, sem que ele apreça sequer para desejar boa noite, passando a
impressão de que não liga para as filhas.
Se estiver trabalhando na sua empresa, isso é até compreensível, porém,
se estiver em casa e mesmo assim não veio pelo menos dar boa noite às meninas,
é porque realmente não tem qualquer afeto por elas, o que faz dele um péssimo
pai. Mas quem sou eu para julgar? Estou aqui apenas para trabalhar e não
interferir.
Ao colocar Luci na cama, quentinha debaixo das cobertas, quero ler um
dos livros infantis para ela, no entanto é nesse instante que Samantha se dirige a
mim novamente, apenas para me expulsar do quarto e tomar o meu lugar ao lado
do leito da irmã. Não discuto com ela, pois acho muito nobre seu gesto de
carinho para com a pequenina.
Sem sono, vou para o terraço, o lugar mais aconchegante da casa, de
onde posso ver a nevasca cobrindo parcialmente o céu estrelado lá fora através
da cobertura de vidro, proporcionando um verdadeiro espetáculo aos olhos.
Como uma criança que espera pelo coelho na páscoa, por alguma razão
desconhecida, passo o tempo todo esperando que meu chefe apareça pelo menos
para uma conversa, uma necessidade desconhecida de vê-lo, de estar perto dele,
tomando conta de mim. E isso porque ele nem é uma pessoa agradável, pelo
contrário, tem o mesmo temperamento insuportável da filha mais velha, o que
não impede que eu me sinta irresistivelmente atraída por ele, algo que preciso
evitar, afinal ele deixou claro, por mais de uma vez, onde é o meu lugar. Sequer
amizade quer comigo. Bonito e milionário, ele deve ter uma fila de mulheres
lindas implorando pela sua atenção, não vai ser a mim, a babá da sua filha, que
ele a dará.
Não volto a vê-lo nos dias que se seguem, como se ele sequer morasse
aqui e, considerando que passo o tempo todo em que as meninas estão em casa
junto com elas, sei que elas também estão sem vê-lo durante todos esses dias, o
que chega a ser preocupante, não por ele, mas pelo fato de que elas podem se
sentir rejeitadas. O pior nessa história é que elas parecem estar acostumadas a
essa situação, visto que sequer o mencionam, como se ele realmente não
existisse.
Quando pergunto à Kenzie — a única pessoa com quem me atrevo a
conversar nessa casa, algo que não esteja restritamente relacionado ao trabalho
—, se porventura ele está viajando, ela me assegura que não, que está
trabalhando no escritório do subtérreo e esse é seu comportamento habitual.
Segundo ela, age assim por ser um homem de negócios extremamente ocupado,
o que não me impede de acreditar que não passa de um bundão, por desprezar
duas filhas tão lindas.

CAPÍTULO IV


Com uma semana morando no Alasca, consegui estabelecer uma rotina
para lidar com as meninas da melhor forma possível: sem chatear Samantha e
mantendo Luci sempre feliz. Acordo pouco antes do horário da escola delas,
quando ainda está escuro devido à noite longa demais; me asseguro de que a
pequena Luci esteja limpinha, com as roupas engomadas; faço um penteado
bonito em seus cabelos loiros; espero que tomem o café da manhã na sala
grande, apenas elas duas e os empregados em volta e as levo de carro à cidade,
enfrentando um verdadeiro desafio ao dirigir através das ruas iluminadas apenas
pelas luzes dos postes e quase sempre cobertas pela nevasca. Luci sempre se
despede de mim com um beijinho na bochecha, comportando-se como a garota
afetuosa que é. Quanto à Samantha, parece ainda não ter mudado de opinião ao
meu respeito, então decidimos apenas ignorar uma à outra, só nos falando
quando é estritamente necessário.
De volta à mansão, o dia é longo e tedioso. Como os demais funcionários
continuam me tratando com indiferença, como se realmente acreditassem que
sou amante do chefe, só porque fui instalada no andar superior, sendo que nem
vejo o cara, passo a maior parte do tempo trancada no quarto, vendo televisão,
ou conversando com as pessoas em Houston por meio de chamadas de vídeo, o
que não é nenhuma sacrifício para mim depois de ter passado uma ano inteiro
hospitalizada antes do transplante. Raramente deixo o interior da casa, devido ao
frio insuportável do lado de fora.
Conhecendo melhor a rotina da casa, percebo que realmente as meninas
não precisam de babá. Harriet está sempre disposta a ajudá-las e faz tudo por
elas; Lewis, o motorista, só sai quando precisa ir à cidade comprar algo para
reabastecer a dispensa, o que raramente acontece, no mais, poderia folgadamente
ir leva-las e apanhar na escola. Então começo a acreditar que o Sr. Boseman me
contratou com o intuito de suprir a carência afetiva de Luci, acarretada pela
ausência dele. Só pode ser isso.
Embora o verão esteja se iniciando e com isto o dia se torne cada vez
mais longo, mesmo que seja com apenas alguns minutos de diferença, o frio não
ameniza. Na noite de quinta-feira a neve cai forte deixando tudo branco no dia
seguinte. Com exceção das ruas, por onde passa o caminhão tira-gelo, o chão
está coberto pela neve, inclusive em torno da mansão, por onde se precisa passar
com a camada de gelo quase na altura dos joelhos, um espetáculo aos meus
olhos que nunca viram neve de perto.
De volta a casa, após deixar as meninas na escola, tomo rapidamente meu
café da manhã na cozinha, sob a constate presença de Harriet, que parece me
vigiar para que eu não converse com os outros empregados, visto um casaco
pesado, calças grossas e vou observar a neve lá fora. O dia começa a nascer,
trazendo claridade, proporcionando um espetáculo ainda mais bonito aos olhos.
Eu sempre quis fazer um boneco de neve e hoje tenho a minha
oportunidade. Então aproximo-me do estábulo, antigo — apenas a construção
abandonada, sem nenhum cavalo —, procuro um lugar mais isolado, longe o
bastante da casa para que os outros, inclusive o jardineiro que fica do lado de
fora, não possam me enxergar e dou início à minha aventura na neve, tentando
montar um boneco igual aos que via na TV quando criança, uma época difícil
para mim, quando via meus colegas de aula saírem para brincar na hora do
recreio na escola e não podia me juntar a eles por causa do meu coração doente.
Agora é diferente, posso fazer qualquer atividade física que outra pessoa, que
não seja um atleta, faz e não me canso. Poderia resgatar minha infância, reviver
as aventuras que perdi, porém é tarde demais para isto, tenho contas a pagar, a
maioria delas atrasadas, e preciso me comportar como a adulta responsável que
me tornei.


Victor


Desperto subitamente com meu corpo coberto de suor devido à tensão
vivida no pesadelo quase real. Olho para os lados e quase sinto alívio ao
constatar que estou em meu quarto, a claridade que atravessa o vidro da janela
anunciando que é dia. “Mais um dia”, a voz declara em minha mente, como um
mantra repetido todas manhãs. Mais um dia em que tenho que me levantar da
cama, me vestir, trabalhar, elaborar formas de continuar comandando os
negócios sem precisar sair de casa, pensar, recordar de todas as tragédias, voltar
a me deitar e rolar durante horas na cama esperando que o sono chegue e me
faça esquecer de tudo, sem que nada nunca mude, sem que nada melhore.
Um dia é sempre igual ao outro, o vazio é constante.
Apenas para evitar me tornar um inválido, forço-me a sair do lugar e
levanto-me. Após a higiene matinal, estou passando diante da janela quando
avisto, ao longe, uma movimentação próxima ao estábulo e passo a mão no vidro
embaçado a fim de enxergar mais claramente. Logo reconheço os traços de
Evangeline em meio à paisagem branca, coberta por gelo, brincando com a neve,
parecendo uma criança feliz e despreocupada. Aposto como está celebrando o
fato de que agora, com um coração novo, pode praticar exercícios sem se cansar,
resgatar a infância que nunca teve.
Ainda não posso acreditar que ela está aqui, que tive mesmo coragem de
interferir em sua vida, de me deixar vencer pelo impulso e trazê-la para o Alasca,
para debaixo do meu teto. Não foi algo que eu tenha planejado. Quando contratei
aquele detetive para descobrir quem era ela, eu só queria dar uma olhada de
longe, saber que tipo de pessoa é. Entretanto, quando fiquei sabendo que ela
pretendia se tornar uma prostituta, enveredar por um caminho tão obscuro,
incerto e arriscado, não consegui me manter distante como deveria. Marcar
aquele encontro e conhecê-la de perto foi a primeira decisão impensada que
tomei, trazê-la para casa foi a segunda.
E agora ela está aqui, sob o mesmo teto que eu, embora não a veja há
dias, desde que chegou. Não tem sido fácil evitar andar pela casa enquanto ela
está por aqui, porém é necessário. Não posso permitir que a atração descabida
que essa menina exerce sobre mim se fortaleça, não apenas porque ela é somente
uma garota de vinte e um anos, quatorze anos mais jovem do que eu, mas
principalmente pelo motivo que me levou até ela. Seria terrível permitir que algo
acontecesse entre nós, embora, com toda a sua fragilidade, com aqueles olhos
azuis sempre sinceros, complacentes e gentis, apesar do sofrimento que passou a
vida inteira enfrentando, ela mexa comigo como jamais outra mulher conseguiu
mexer. Meu desejo na noite em que a conheci foi de levá-la para o maldito hotel
e concretizar aquilo pelo que a contratei, mas eu não podia e ainda não posso.
Nunca vou poder chegar perto dela, jamais poderei tocá-la, essa é a regra mais
cruel que a vida colocou em meu caminho. Portanto, o que me resta é manter
distância, suplantar qualquer emoção indesejada que insista em tentar vir à tona.
Meus pensamentos são interrompidos quando percebo que ela está
pisando em terreno perigoso. Com o boneco de neve pronto, afastou-se um
pouco mais da casa e está dançando, na verdade imitando uma patinação sobre o
gelo do pequeno lago que um dia serviu de bebedouro para os cavalos que
existiam aqui, só que esse gelo está fino demais nessa época do ano, podendo se
partir a qualquer momento sob o sol que começa a dar o ar da sua graça. Como
ela não percebe?
Aflito, esmurro o vidro da janela tentando atrair sua atenção, mas ela não
ouve. Então, a destranco e abro a peça, congelada por estar fechada há tempo
demais. Quando o frio gélido que parte do lado de fora me golpeia com
ferocidade, coloco a cabeça para fora e grito pelo seu nome, uma, duas, três
vezes e nada de obter resposta, ou de sequer fazê-la parar de dançar e virar para
mim. Deve estar usando fones de ouvido.
Mas que droga! Onde estão a porra dos outros empregados que não veem
isso? Será que querem mais uma morte nessa maldita casa?
Com o peito apertado de agonia, deixo o quarto correndo, o mais rápido
possível, usando apenas a camisa e a calça, me recusando a perder ainda mais
tempo vestindo um casaco. Atravesso a casa sem encontrar nenhum dos
funcionários pelo caminho e a deixo apressadamente, mal sentindo os golpes
gélidos do frio atingindo minha pele ao alcançar o lado de fora e correr às
pressas rumo ao lugar onde Evangeline está.
— Evangeline! — grito, assim que a enxergo, fazendo uso de todas as
forças dos meus pulmões.
Posso ouvir alguém falando alguma coisa atrás de mim, provavelmente o
jardineiro, mas não tenho tempo de me virar.
— Evangeline! Saia daí! — grito novamente e dessa vez ela me ouve.
Só que é tarde demais. Tão logo ela se vira para mim, seus olhos se
estreitando na tentativa de decifrar os gestos que faço com as mãos, mandando
que saia dali, o gelo rompe e demora apenas uma fração de segundo para que ela
seja sugada pela água, para baixo, desparecendo instantaneamente.
Mas que porra!
Acelero ainda mais os meus passos. Em poucos segundos alcanço o lago
congelado e me abaixo ao lado do buraco que a engoliu. Não está mais aqui.
Merda! Com uma pressa absurda começo a afastar a neve do caminho, olhando
para a água através da fina camada de gelo, torcendo internamente para estar
indo na direção certa, até que por fim enxergo o vulto dos seus densos cabelos
loiros submersos, flutuando com a lentidão de uma água viva, enquanto ela se
debate na inútil tentativa de quebrar o gelo acima da sua cabeça.
— Saia daí, Sr. Boseman, é perigoso. — O jardineiro me alerta de longe.
Está parado, em segurança, fora dos limites do lago. Lewis vem mais
atrás, devagar por causa da idade avançada.
— Ela está aqui! Traga alguma coisa para quebrar o gelo. — vocifero e o
sujeito hesita, provavelmente decidindo se me obedece ou se corre em meu
auxílio, embora não faça nem uma coisa, nem outra.
Bastardo! Vou me lembrar de demiti-lo depois.
Meus olhos voltam a acompanhar a luta de Evangeline, quando de súbito
ela para de se mover e começa a fundar devagar. Merda! Deve estar morrendo!
Ciente de que ela não tem mais tempo, sigo os meus instintos e desfiro um golpe
violento da minha mão fechada sobre o gelo, conseguindo fazê-lo trincar.
Ignorando a dor lancinante que me espezinha, como se os ossos dos meus dedos
estivessem quebrados, puxo a mão e esmurro o gelo novamente. Esmurro mais
uma vez, e mais uma, até que o maldito gelo cede e enfio o antebraço na água
congelada, segurando a gola do casaco de Evangeline, puxando-a bruscamente
para cima. Porém, não é tão fácil quanto parece. O gelo é escorregadio, as roupas
de frio encharcadas acrescentaram quilos ao peso da garota. Começo a sentir que
não vou conseguir salvá-la, quando dois pares de mãos me puxam pelas pernas.
Lewis e o jardineiro resolveram ajudar.
— Puxe-a, Sr. Vamos ajudá-lo. — diz Lewis, que puxa o jardineiro por
trás.
Então, formando uma corrente humana, nós três conseguimos puxá-la
para cima, para fora da água. Considerando que o gelo está ainda mais passível
de se romper, não paro ali, sem me levantar, mantendo o peso do meu corpo
distribuído nas mãos e nos joelhos, arrasto a garota sobre a camada sólida e fina,
formando um rastro na neve, até que estejamos fora dos limites do lago, na
segurança da terra firme.
Evangeline está desacordada, com a face muito pálida, os lábios e as
pálpebras arroxeadas. Checo seu pulso, está muito fraco, mas batendo. Quase em
desespero, inclino-me sobre ela, obstruo suas narinas com os dedos e colo meus
lábios aos seus, fazendo uma respiração boca-a-boca, repetida e constante, até
que por fim ela reage, uma grande golfada de água jorrando da sua garganta,
seguida de uma tosse fraca. Evangeline inspira profundamente e então abre os
olhos muito lentamente, parecendo meio atordoada a princípio, as írises de um
azul perolado demorando a focarem meu rosto.
— O que aconteceu? — indaga ela, em um fio de voz, tilintando
descontroladamente.
— Você caiu no lago, está com princípio de hipotermia, mas vai ficar
bem. Venha, vou te levar para casa.
Sem pensar, passo os braços por baixo do corpo dela e a ergo do chão.
Está toda dura por causa do frio.
— Obrigada por me tirar da água. Acho que você salvou minha vida.
Seus olhos lindos estão presos aos meus, de muito perto, e sou tomado
por uma emoção nova, desconhecida que faz meu coração bater mais depressa
no peito. Tentando ignorar o quanto é perturbador tê-la assim tão frágil em meus
braços, desvio o olhar do seu rosto e a carrego rumo à mansão.
— Não fiz sozinho. Lewis e o jardineiro me ajudaram.
— Agradeço a eles também.
Parecendo exausta, como se tivesse acabado de correr uma maratona, ela
descansa a cabeça em meu peito, regozijando-se com meu calor. É óbvio que
essa menina também me deseja, isso ficou claro para mim quando a flagrei
invadindo a academia, na forma como me devorava com os olhos, como uma
criança inocente diante da tentação do pecado. Já vi outras mulheres me olhando
assim e quase sempre essa história termina em uma cama de hotel, ou em algum
banheiro de restaurante, ou em qualquer outro lugar discreto, como na minha
sala, na época em que eu frequentava minha empresa. Só que Evangeline não
sabe o que significamos um para o outro, não tem ideia do pecado que
cometeríamos se cedêssemos a essa atração.
Na porta da casa encontro os demais empregados reunidos. Na certa
ouviram meus gritos do lado de fora e estão ansiosos para saberem o que está
acontecendo, já que quase nunca algo, além da rotina, acontece por aqui.
— Oh, meu Deus! O que aconteceu? — É Harriet quem pergunta,
tentando parecer preocupada, quando tudo o que vejo em sua expressão é
curiosidade.
— Ela caiu no lago. Onde vocês estavam que não percebem o que
acontece nessa casa?
Harriet leva uma mão à boca, teatralmente perplexa com meu tom de voz
ríspido, quando na verdade já está acostumada com ele. Principalmente nos
últimos meses, desde que tudo aconteceu, raramente me dirijo às pessoas de
outra forma, embora deixe-as livres para se afastarem de mim quando acharem
conveniente.
Passando pelo caminho aberto entre os empregados, atravesso a sala
grande com Evangeline no colo, seguindo direto para a escadaria, que leva ao
segundo andar, com Harriet nos seguindo. Entro na primeira porta que encontro,
a do meu quarto e deito-a, cuidadosamente, na cama ainda desfeita.
— Como posso ajudar, senhor? — Harriet pergunta atrás de mim.
— Traga compressas quentes. Ela está com princípio de hipotermia. —
Minha governanta deixa o aposento e me dirijo a Evangeline — Você precisa se
livrar dessas roupas molhadas, depressa.
A garota tenta abrir o casaco, porém seus dedos ainda estão duros de frio.
— Posso? — pergunto e ela assente.
Hesitantemente, inclino-me sobre ela, abro o casaco e o tiro. Depois
livro-a da blusa, pela cabeça, quando posso ver a cicatriz enorme que vai do
início do seu pescoço até o meio do tórax. Ao perceber que estou observando,
Evangeline se encolhe toda, constrangida. No entanto, não é apenas sua cicatriz
que captura o meu olhar, sou atraído para a visão dos seios pequenos, firmes e
delicados dentro do sutiã minúsculo preto, através do qual posso ver os
contornos dos mamilos entumecidos e embora me esforce, não consigo evitar a
lascívia que corre em minhas veias e em seguida a ereção.
Era só o que me faltava.
Com o intuito de fugir de tal imagem, concentro-me em tirar suas calças
molhadas, mas tudo piora quando vejo a calcinha rendada, da mesma cor do
sutiã, cuja transparência revela a púbis pronunciada, depilada, atiçando a luxúria
dentro de mim, fazendo meu pau latejar de encontro à cueca, algo que há muito
tempo eu não experimentava. É como se eu estivesse morto durante todos esses
meses e de súbito Evangeline me fizesse sentir vivo de novo. Só que isso precisa
ser evitado.
Me agarrando a esse pensamento, apresso-me em cobri-la com um
cobertor grosso, evitando olhá-la diretamente no rosto e associar sua imagem ao
que estou sentindo agora, enquanto massageio seu tórax por sobre o tecido
felpudo.
— Isso é gostoso. — Evangeline balbucia e posso sentir seus músculos
relaxando aos poucos sob o cobertor.
— Seu calor está sendo restaurado.
Seu olhar fixa-se no vazio à sua frente, por um longo momento de
silêncio, a angústia visível na sua expressão.
— Quando caí... eu achei que ia morrer... que estava tudo acabado.
— O que diabos você tinha na cabeça para ir dançar sobre o gelo fino?
Ela me encara com ressentimento.
— Eu não sabia que o gelo podia rachar. Não estou ambientada com esse
tipo de clima.
— Veio para o Alasca sem fazer suas pesquisas sobre o clima daqui?
— Eu pesquisei, mas não tinha como adivinhar que ali é um lago. Esse é
o tipo de conhecimento que apenas a experiência fornece.
Ela tem razão. Alguém que jamais viu um lago congelado de perto, não
distinguiria um sem que alguém avisasse. Ainda assim, não consigo afastar a
irritação que sua atitude infantil me desperta, embora meu lado racional me
alerte de que ela é só uma garota que nunca foi feliz tentando aproveitar a
chance, recentemente adquirida, de viver sem as limitações de um coração
fragilizado.
— Da próxima vez, tente não ser tão descuidada.
Minha nova funcionária é serena, mas nem tanto. Finalmente minhas
palavras parecem afetá-la e posso ver o brilho da raiva faiscando em seu olhar,
devolvendo a cor ao seu rosto, o que em outras circunstâncias me deixaria ainda
mais enfurecido, na defensiva, mas que partindo dela só me faz querer sorrir,
sem que eu entenda o motivo.
— Não fui descuidada. Eu só estava... — ela faz uma pausa como se não
encontrasse a palavra certa — descontraída.
— Seja descontraída em lugares mais seguros, não queremos uma
tragédia aqui.
Fuzilando-me com olhos azuis lindamente enraivecidos, ela ergue o
queixo em desafio.
— Não precisa se preocupar, não vou causar nenhuma tragédia em sua
casa.
Quero dizer-lhe que nem de longe é a casa que me preocupa, entretanto,
abaixar a guarda e deixar que ela se aproxime é um caminho perigoso demais a
seguir. Melhor deixá-la continuar acreditando que só estou preocupado comigo
mesmo.
Nesse momento, Harriet entra no aposento trazendo a compressa quente
que lhe pedi.
— Aqui está, senhor. Quer que eu aplique, ou o senhor mesmo faz?
A governanta me olha de soslaio, sem ao menos disfarçar a certeza que
vem reunindo dentro de si de que Evangeline é uma amante que eu trouxe para
debaixo do meu teto, usando o trabalho de babá como pretexto para tê-la perto
de mim sem precisar assumir compromisso algum. É o que algumas pessoas,
principalmente as mais conservadoras, pensam a respeito de um homem sem
esposa trazer uma estranha para casa sem nenhuma necessidade. Principalmente
Harriet, que trabalha para mim há mais de quinze anos, desde que me casei. Ela
sempre esteve aqui, me conhece como poucos, conhece minha fraqueza por
mulheres e principalmente sabe que minhas filhas nunca precisaram de um babá.
Só o que ela não sabe é a verdade por trás da presença de Evangeline nesta casa.
Não faz nem ideia. Não contei a ninguém, pois qualquer um diria que estou
louco.

CAPÍTULO V



— Você faz. — lanço mais um olhar para o rosto magoado de
Evangeline. É melhor assim, criança. — Tenho uma reunião agora.
— O senhor vai à empresa hoje? — A pergunta da governanta atiça
minha raiva.
Ela sabe, mais do que ninguém, que não saio de casa, a menos que seja
estritamente necessário, desde que a merda toda aconteceu. A única exceção foi
para ir a Houston ver Evangeline de perto e como resultado ela agora está aqui.
Harriet conhece perfeitamente a realidade sobre eu passar meus dias enfiado no
maldito escritório do subtérreo, apenas para que minha empresa não afunde, já
que nenhum dos incompetentes que trabalham para mim está preparado para
assumir o império que meu avô dedicou toda a sua vida a construir, o qual
passou para o meu pai e depois para mim. Se fosse algo somente meu, que eu
tivesse construído e não devesse satisfação a ninguém, já teria jogado essa porra
toda para o alto e desparecido no mundo sem deixar rastro. Mas em vez disso
estou preso aqui, por ser o irmão mais velho que nasceu com a incumbência de
sacrificar sua vida para cuidar de tudo. Não que eu não goste dos negócios, pelo
contrário, é um jogo interessantíssimo do qual adoro fazer parte e me sair
vencedor, entretanto, depois da desgraça que aconteceu, nada mais parece fazer
sentido, nem esse jogo. Eu só queria esquecer tudo, deixar para trás e recomeçar
minha vida muito longe daqui.
— Não, Harriet. A reunião vai ser por meio de chamada de vídeo, como
sempre. Agora coloque as compressas quentes na garota, apenas no tórax, antes
que ela congele. E se não se recuperar completamente, chame um médico.
— Não vou precisar de um médico. Estou bem melhor. — Evangeline
resmunga, colocando-se sentada na cabeceira da cama, com as costas apoiadas
no espaldar, claramente se forçando a parecer melhor
, talvez por medo de desapontar o chefe e perder o novo emprego.
É assim que ela é. Não sabe que eu jamais a deixaria desamparada nas
mãos daqueles agiotas canalhas. Só ainda não quitei toda a sua dívida porque se
o fizesse ela desconfiaria que estou sendo generoso demais e talvez investigaria.
— Nesse caso, faça as compressas, coma alguma coisa quente e
descanse. Deixe que Lewis vai buscar as meninas na escola.
Pego um terno escuro no closet e deixo o quarto com ele nas mãos,
vestindo-o enquanto desço as escadas. Thor, que está retornando do seu rotineiro
passeio matinal, me espera ao pé da escadaria, pronto para me seguir até o
escritório, onde me fará companhia durante todo o dia. É um ótimo cachorro,
amigo e leal até o último pelo do seu corpo, o único ser vivo que ainda permito
que permaneça perto de mim, isso somente porque ele não sabe falar.
No escritório, pequeno se comparado à minha sala na empresa, encontro
uma dúzia de chamadas perdidas e mensagens de Michelle, minha advogada e
ex-amante, no celular esquecido sobre a mesa. Ela já deve ter chegado de
Washington, onde se reuniu com o senador Thompson e conseguiu a autorização
de que eu precisava para transformar a reserva aquática de Christian Patel em
mais uma área para pesca, onde não restará nada depois que passarmos com
nossos navios pesqueiros. Não que eu seja o tipo de sujeito que sai por aí
destruindo a vida animal em troca de lucros, em nome do capitalismo brutal no
qual vivo inserido desde que aprendi a assinar o meu nome, pelo contrário,
houve épocas da minha vida em que eu admirava aquele lugar, um pequeno
pedaço de mar onde a vida marítima é preservada, protegida de pessoas como
eu, um lugar dispensado pelo governo capitalista à custa de muita luta, suor e
sangue da família Patel, só que Christian, o atual administrador da reserva, pediu
para ser destruído quando me desafiou, passando por cima das minhas normas,
contribuindo com o destino para que eu perdesse a pessoa que mais me
importava. Agora é a minha vez de tirar o que importa a ele e não vou sossegar
até ter transformado aquele lugar em só mais um ponto de pesca como tantos
outros que tenho, de onde toda a vida é sugada para o sustento da ambição de
alguns.
Michelle já confirmou que o senador aceitou minha proposta milionária e
me cedeu o lugar, agora quero saber sobre os detalhes das negociações, então,
acomodo-me atrás a mesa, ligo o computador e faço uma chamada de vídeo para
ela. Sou atendido no segundo toque, sua imagem aparecendo na tela. Está em sua
sala na sede da empresa, com a paisagem do centro de Fairbanks às suas costas.
Elegante como sempre, tem os cabelos negros, densos e longos, presos em um
penteado clássico e usa um batom vermelho sangue que destaca a boca carnuda.
É uma mulher muito bonita, não posso negar, é também uma das pessoas em
quem mais confio. Trabalha para mim há cera de sete anos, está sempre ao meu
lado em todos os negócios ariscados que faço e tem estado à frente da empresa
desde que me afastei, há alguns meses. Devido à sua ousadia e ao talento para
lidar com a indústria pesqueira, sempre fomos muito próximos no trabalho de
modo que acabamos tendo um caso, só que isso acabou faz algum tempo.
— Eu estava tentando te ligar, chefe. — Ela consegue colocar
sensualidade nas mais insignificantes palavras, uma característica peculiar sua,
por ser uma mulher fogosa demais, sempre pronta para a luxúria, algo que antes
me deixava louco, mas que hoje não me causa qualquer efeito.
— Como foi a viagem? — pergunto, solvendo um gole do café fresco
que Harriet deixa aqui todas as manhãs.
— Entediante. Horas em um avião maçante depois de perambular pelas
ruas de Washington. — Duvido que tenha sido um tédio para ela estar nas ruas
de uma grande metrópole.
— Quero todos os detalhes da negociação. — Posso ver a decepção mal
disfarçada na surgindo na expressão dos seus olhos castanhos escuros enquanto
recosto no espaldar da cadeira e solvo mais um gole do café.
Tenho certeza de que ela queria conversar sobre o que andou aprontando
em Washington, mas não estou interessado em saber da sua vida. Meus
pensamentos já estão ocupados demais com essa negociação e com a garota com
princípio de hipotermia deitada lá em cima, na minha cama.


Evangeline


Desde o dia do acidente que tirou a vida da minha mãe, e poupou a
minha, eu não sentia tanto medo. Tal qual naquele momento terrível, em que o
carro capotou várias vezes para fora da estrada, hoje, ao cair naquele lago
congelado, eu vi a morte de perto, sua face tenebrosa se revelando diante de
mim. Foi simplesmente estarrecedora a sensação de estar congelando a ponto de
não conseguir mais pensar, de me debater tentando encontrar uma saída sem que
a camada de gelo me permitisse emergir, de tentar respirar e a água vir para os
pulmões ao invés do ar. Nunca mais quero passar por isso de novo. Olharei bem
por onde piso enquanto estiver aqui nessa terra gelada.
Agora, ainda mais que antes, devo minha vida a Victor Boseman, o
sujeito mais arrogante que já conheci, porém também o mais generoso e
altruísta, por me trazer para trabalhar aqui quando na realidade não precisava e
por arriscar sua própria vida para me tirar daquele lago.
Percebi que a austeridade é outra característica inerente a ele, quando não
consegui convencer Harriet de que estou bem o bastante para vir apanhar as
meninas na escola, somente porque ela não quis passar por cima das ordens do
chefe. Cogitei seriamente ir falar pessoalmente com ele, porém, a governanta já
deixou claro que é inadmissível descer até o seu escritório. Portanto, não me
restou alternativa que não vir buscá-las no carro da família dirigido por Lewis.
Como o dia se torna mais longo à medida em que o verão avança, o sol
ainda está se pondo quando deixamos a casa, a faixa amarelada no horizonte
dando um aspecto fantasmagórico à paisagem de árvores secas, com as
montanhas geladas ao fundo, proporcionando-nos um belíssimo espetáculo ao
longo da estrada que leva à cidade. Ao deixar o prédio da escola, como sempre
Samantha passa direto por mim e entra no carro emburrada, enquanto que a
pequena Luci para à minha frente, o rostinho parecendo mais vermelho, a
fisionomia mais séria que o habitual, de modo que me abaixo diante dela,
encarando-a de perto, a fim de investigar se há algo errado.
— Ei bonequinha, que carinha triste é essa? As meninas maiores não
deixaram você brincar de novo?
— Eu não quis brincar hoje. — Ela diz, toda molinha — Falei pra
professora que tava com dor de cabeça, mas ela não quis ligar pro papai.
Apreensiva, tiro a luva de couro que me protege do frio e toco em sua
face, constatando, alarmada, que está com uma febre alta. Que professora
irresponsável é essa que vê a menina doente e não avisa? Não há tempo de
pensar nisso agora, preciso tomar providências.
— Você está com febre. Precisamos ir ao hospital.
Levanto-me e tento puxá-la para o carro, mas ela arranca sua mão da
minha, com um safanão.
— Não quero ir ao hospital, o médico vai me dar uma injeção. — Ela
fala e tosse em seguida.
Pacientemente, volto a me abaixar diante dela, nivelando nossos rostos.
— Ele não vai, meu amor. Peço para que te dê a medicação para beber.
— Você promete?
— Claro que sim. Agora vamos. — Seguro em sua mão novamente e
desta vez ela me segue, soltando uma tossida atrás da outra — O que mais você
está sentindo além da dor de cabeça?
— Minha garganta está doendo.
— Deve estar inflamada.
Quando entramos no carro, peço a Lewis que nos leve direto ao hospital
e ele não hesita em atender.
— Por que para o hospital? — Samantha tira os fones de ouvido ao
perguntar.
— Sua irmã está doente. Você não percebeu?
— Claro que não. Se tivesse teria chamado meu pai. — Ela toca na testa
de Luci e fica alarmada — Temos um médico particular que nos atende em casa.
Vamos para lá.
— Já estamos aqui, vamos logo ao hospital. Vou ligar para Harriet e pedir
que ela avise seu pai. Ele mandará o médico nos esperar lá.
Assim faço. Ligo para a governanta e peço que avise ao Sr. Boseman.
Minutos depois ela me liga de volta para dizer que o médico da família está
viajando e que eu devo levá-la à emergência do hospital, porém, o que mais me
choca é saber que o Sr. Boseman não se manifestou sobre vir encontrar a filha
doente. É muita negligência por parte de um pai! Essas meninas não têm outro
parente vivo? Por que permitem que elas fiquem sob os cuidados dele, se ele não
liga a mínima para elas?
Indignada, tento não interferir, afinal não sou ninguém, apenas um babá
insignificante, no entanto, minha consciência, meu senso de justiça, não me
permite ficar quieta, assistindo essa situação de braços cruzados, sem fazer nada.
Então, procuro o número do celular pessoal que ele me deu quando nos
conhecemos em Houston e faço a ligação.
— Alô. — Ele atende no terceiro toque.
— Me perdoe a intromissão, Sr. Boseman, mas Luci não está bem, ela
está queimando de febre. Seria muita crueldade se o senhor não for nos encontrar
no hospital. — Samantha me olha com olhos arregalados de surpresa quando
falo.
Provavelmente depois dessa serei demitida, mas não ligo, pelo menos
minha consciência estará tranquila por saber que fiz a coisa certa. Esse homem
precisa entender que essas meninas não têm mais ninguém além dele, que é sua
responsabilidade mostrar um mundo cheio de afeto a elas, que a pequena Luci é
nova demais para ser tão sozinha. Está certo que ela tem Samantha, só que uma
criança que cresce sem a atenção dos pais pode ser tornar uma pessoa deprimida,
na melhor das hipóteses.
— Não precisa de tanto alarde por causa da febre de uma criança, Srta.
Stuart. Crianças adoecem o tempo todo. É só a levar ao pronto-socorro. — É a
resposta dele.
Fico ainda mais revoltada com a tranquilidade com que ele fala, sem
qualquer preocupação com a filha, como se ela fosse um móvel da casa que
tivesse quebrado e precisasse de conserto.
— Me desculpe, senhor, mas ela precisa de você aqui. Ela não tem mais
ninguém. — Ao me ouvir, Luci ergue seu olhar triste para o meu rosto e meu
coração se esfarela em mil pedaços.
Definitivamente eu não devia ter falado assim perto dela.
— Não sou médico, portanto, não posso fazer nada por ela. Leve-a ao
pronto-socorro e não volte a me interromper. Estou no meio de uma coisa aqui.
— Dito isto, ele encerra a ligação e meu sangue ferve nas veias, a raiva me
assolando.
Mas que inseto, filho de uma chocadeira! Sinto muita pena dessas
meninas por terem perdido a mãe e ficado com um pai desses. Eu também perdi
minha mãe quando era criança, mas tinha um pai que me dava toda a sua
atenção, que vivia para mim, apesar de as suas limitações culturais o terem
impedido de me conseguir um tratamento adequado para o meu problema
cardíaco.
— Vai ficar tudo bem, Luci. O Sr. Boseman não vem nos encontrar
porque o que você tem não é grave. — falo, tentando animar a menina e a aninho
de encontro ao meu corpo, carinhosamente.
No pronto-socorro — a emergência de hospital mais vazia que já vi na
vida —, tão logo pronuncio o sobrenome de Luci, a recepcionista nos encaminha
direto para um quarto particular no segundo andar, onde logo um médico
pediatra vem nos atender. É muito jovem para ser médico, não deve ter mais que
vinte e oito anos, o que me deixa preocupada. Ao se aproximar, ele percorre seu
olhar entre todos nós e o detém em Lewis.
— Olá, sou o Dr. Patel. Você é o pai da criança? — indaga.
— Não. Sou apenas o motorista.
— E eu sou a babá e essa a irmã. Vai examiná-la agora, doutor?
Ele fia-me fixamente por um breve momento de silêncio e então, agindo
como a maioria dos homens, desce os olhos pelo meu corpo, mesmo estando eu
coberta por um casaco felpudo grosso. Depois se vira para Lucille e fala:
— Olá Lucille, sou o Dr. Joseph Patel, mas você pode me chamar de Joe.
Vou examinar você agora.
Aguardamos ao lado enquanto ele examina a garganta de Luci, mede sua
temperatura, checa seus olhos e língua. Ao final da consulta, se vira para falar
conosco, dirigindo-se a mim.
— Você é a responsável pela garota?
— Todos nós somos. — É Samantha quem responde.
Apesar de estar claramente preocupada com Luci, ela não consegue
disfarçar o quanto está deslumbrada com a aparência do médico, o que é
compreensível, visto que, além de jovem ele é muito atraente. É alto, esguio, tem
cabelos castanhos claros e belos olhos castanhos esverdeados. Mas o interesse
parece não estar sendo correspondido.
— Aparentemente a febre está sendo causada pela infecção na garganta.
Vou introduzir a medicação e depois fazer mais alguns exames.
— Ela vai poder ir para casa ainda hoje?
— É aconselhável que fique aqui em observação, pelo menos até a febre
baixar, mas vocês três não precisam ficar, basta uma pessoa.
— Eu sou a irmã, eu fico. — Samantha se apressa em dizer.
— Acho melhor a babá ficar. Preciso de uma pessoa que seja maior de
idade para assinar a papelada.
Samantha não gosta, mas assente.
— É melhor assim, Sam. Você deve estar com fome e cansada. Vá para
casa com Lewis. Eu prometo que cuido bem dela. — Novamente, ela concorda e
viro-me para o médico — Sou Evangeline Stuart, não entendo muito de crianças
doentes, mas conheço bem os hospitais. Me diga o que preciso fazer e eu farei.
— Basta que faça companhia a ela. Já fiz a prescrição e daqui a apouco a
enfermeira vem colocar o soro.
— Soro? Espera doutor, eu prometi a ela que não tomaria injeções. Será
que pode ministrar esse medicamento via oral?
Ele sorri meio de lado, demonstrando simpatia.
— Vou ver o que posso fazer e parabéns pela atitude. Crianças nessa
idade têm verdadeiro pavor de agulhas. Com licença. — Dito isto, ele se afasta,
caminhando depressa.
Samantha e Lewis também se vão e acomodo-me na poltrona de couro
preta ao lado do leito de Lucille, constatando que pela primeira vez sou a
acompanhante e não a paciente. Olho para a pequenina fragilizada ao meu lado e
lembro-me de que na idade dela fiquei internada inúmeras vezes, com minha
mãe sempre ao meu lado e depois dela meu pai, nunca em um quarto particular,
como este, sempre nas enfermarias lotadas. No entanto, jamais fiquei sozinha,
mesmo quando passei um ano inteiro hospitalizada, em Houston, sempre havia
alguém ao meu lado. Olhando para Luci ali, em um lugar que sempre foi meu,
agradeço internamente por ela ter apenas uma gripe, por seu coração estar forte e
saudável.
Não demora muito a enfermeira aparece com a medicação, a qual nos
empenhamos para fazer Luci beber e logo em seguida a pequena fragilizada
adormece em meio ao silêncio do quarto grande e bem equipado.
Reconfortada pela calmaria e pelo calor que me acolhem, livro-me do
casaco pesado e volto a me acomodar na poltrona reclinável estofada. Leio
algumas revistas que há por ali, troco mensagens de texto com Bree, sem que em
nenhum momento a indignação pelo desprezo que meu chefe atribui às filhas se
apague da minha mente, um nó insistindo em se fortalecer em minha garganta
cada vez que relembro o assunto. Quando os funcionários passam distribuindo
comida, pego um sanduíche para mim e uma sopinha para o caso de Luci
acordar. Após comer e tomar um pouco de chá quente, acabo pegando no sono
sobre a poltrona.
Sou acordada pelo som de vozes animadas partindo de muito perto. Ao
abrir os olhos fico entre surpresa e imensamente constrangida quando vejo o
médico conversando com Luci, a enfermeira anotando algo ao lado, um cobertor
que não sei de onde saiu me cobrindo. A pequenininha parece bem melhor, com
o rosto mais alegre, corado, um sorriso estampado nos lábios.
Desconcertada, me apresso em me levantar, tentando ajeitar os cabelos
soltos e as vestes de volta no lugar, esfregando os olhos ainda com sono.
— Acho que dormi demais. Quer horas são?
— Vai dar cinco horas. É normal dormir assim aqui, por causa do
silêncio. — É o médico quem diz.
— Como você está, Luci? — pergunto, abismada com minha capacidade
de dormir demais em qualquer lugar.
— Estou bem. Joe disse que já posso ir pra casa.
— Joe?
— Sim. O doutor.
Viro-me para encará-lo, feliz por ver o carinho com que ele trata a garota.
Luci teve muita sorte em ser atendida por um médico que é uma boa pessoa.
Com minha vasta experiência em hospitais, aprendi que muitos médicos
superestimam a profissão e acabam adquirindo um certo complexo de Deus que
os impede de interagir com os pacientes, alguns deles chegam a ser grosseiros,
quando usam o conhecimento como uma forma de hierarquia.
— É verdade? Ela está de alta?
— Sim. A infecção na garganta cedeu, a febre passou. Agora basta ir para
casa, ingerir bastante líquido, repousar e tomar vitaminas.
— Obrigada por cuidar bem dela.
— É o meu trabalho. Sei que às vezes a minha pouca idade assunta, mas
isso é porque sou recém-formado e comecei a trabalhar aqui faz pouco tempo.
— Verdade, me assustei um pouco quando o vi. — Sorrio para ele,
involuntariamente — Eu também estou no Alasca faz pouco tempo.
Ele sorri de volta.
— É um tormento se acostumar com todo esse frio, não?
— Eu que o diga. E aprender a localizar um lago congelado.
— De onde você é?
— Do Texas, e você?
— Nasci aqui, mas me mudei muito cedo para a Califórnia. Estou tendo
dificuldade em me adaptar de novo. — Me pergunto o que leva um ser humano a
optar por morar aqui ao invés da Califórnia — Você já tem quem as leve para
casa?
— Eu ia ligar para Lewis, mas o celular descarregou. Acho que vou
pegar um taxi.
— Não precisa. Meu plantão encerra daqui a trinta minutos. Posso levar
vocês.
Hesito, sem saber se aceito. Não sei se é seguro aceitar carona de
estranhos, então percebo que é um pensamento sem sentido, ele é médico, tratou
Luci com todo carinho, além do mais, a enfermeira está nos ouvindo ao lado. O
que de mal ele pode me fazer?
— Não seria incômodo?
— De forma alguma. Pelo contrário, vai ser um prazer.
Ele me lança mais um sorriso largo e tenho a impressão de que está me
paquerando.


CAPÍTULO VI


Depois que o médico e a enfermeira deixam o aposento, Luci e eu
tomamos nosso café da manhã, trazido pelo pessoal que passa empurrando o
carrinho, ajeito os cabelos dela, nos agasalhamos e esperamos. Poucos minutos
depois o Dr. Bonitão reaparece, exalando charme por cada poro ao desfilar
dentro de um jeans colado e uma jaqueta de couro preta, fazendo o estilo
descolado que eu tanto apreciava nos caras antes de conhecer o meu chefe.
Agora ele é o único homem na face da terra por quem consigo me sentir atraída e
seu estilo clássico é o único que consigo admirar. É realmente uma pena que ele
não sinta o mesmo, parece sequer me enxergar como uma mulher. Na certa tem
outra pessoa, ou considera que eu esteja abaixo demais dele.
Deixamos o hospital em um carro esportivo de luxo dirigido pelo
médico, Luci acomodada no banco traseiro e eu ao lado dele na frente. Apesar de
ser dia, ainda está escuro, pelo menos não há nevasca e as luzes dos postes
podem dar claridade às ruas.
— Acabei de me lembrar que não sei o nome da rua onde moramos, mas
posso te explicar o caminho. — falo, tão logo deixamos a garagem do prédio.
— É na casa do pai dela?
— Sim, você o conhece?
— Claro. Todo mundo em Fairbanks conhece o Sr. Boseman, ele é o
homem mais rico e poderoso do Alasca.
— Acho que já ouvi isso antes.
Realmente meu chefe é um homem que tem tudo, menos um coração,
que é o que realmente importa. Ele parece se preocupar unicamente com o
dinheiro, as filhas nada representam para ele.
— Mas me conta, o que te fez trocar o calor do Texas pelo frio do
Alasca?
Conto a ele, resumidamente, como vim parar aqui e quando o indago ao
mesmo respeito, fico sabendo que está na cidade temporariamente, mais para
agradar a família que por vontade própria. Revela que por aqui as famílias ainda
são muito tradicionais, supervalorizam os laços, o conservadorismo, o casamento
e essas coisas e quando se formou foram tantas as insistências, por parte dos pais
e do irmão mais velho, que acabou voltando, pelo menos por um tempo. Conta
ainda que sua família toda trabalha no ramo da indústria madeireira e, com
orgulho, acrescenta que são responsáveis pela fundação e cuidados da maior
reserva marítima do estado.
Ao estacionarmos diante da mansão, ele tira um cartão do bolso da sua
jaqueta e entrega-me.
— Aí está o número do meu celular, não deixe de me ligar se Lucille
apresentar qualquer sintoma de que a gripe piorou, embora eu acredite que ela só
vai melhorar. — Ele se vira para Luci e se despede dela com descontração, antes
de se dirigir novamente a mim — Me liga também se estiver entediada e quiser
sair para beber alguma coisa, ou dançar um pouco. Juro que tem lugares legais
no meio de todo esse gelo.
— Ligo sim. Obrigada pela carona e por cuidar de Luci tão bem.
— Ela tem sorte por ter você.
Nos despedimos e deixo o carro. A fim de proteger Luci do frio intenso
durante o percurso do veículo até a casa, levo-a no colo, agarrada comigo. Tão
logo abro a porta e avanço pela sala grande, o Sr. Boseman surge da direção do
subtérreo, agitado como um furacão, o rosto másculo contorcido de fúria.
— O que diabo está acontecendo aqui? — Ele vocifera, tão alto e abrupto
que assusta Luci e ela se sobressalta em meus braços — Você estava namorando
na frente de Lucille?
Pega de surpresa pela sua atitude tempestuosa, pela falta de interesse pela
filha recém-saída do hospital, fico paralisada, imóvel no lugar, sem saber como
agir ou mesmo o que responder. A raiva dentro de mim é descomedida.
— E-eu n-não... — tento, mas minha mente não consegue organizar as
palavras.
Quero gritar com ele no mesmo tom, dizer-lhe o quanto é insensível com
as meninas, porém, não quero assustar ainda mais Lucille.
— Aquele por acaso era Joseph Patel?
— Por favor, fale mais baixo, está assustando Lucille.
Com a garota nos braços, subo as escadas apressadamente, buscando o
refúgio do quarto, mas ele vem atrás de nós, gritando furiosamente, como um
verdadeiro selvagem.
— Vou avisar e espero que não tenha que repetir: não quero esse sujeito,
ou qualquer outra pessoa dessa família maldita, nas minhas terras! — Assustada
com seu tom de voz abrupto, Luci começa a chorar. Desgraçado! — Eu não sei
o que você tinha na cabeça quando entrou no carro dele, e ainda por cima com
minha filha, mas vou te dar a chance de acreditar que você não os conhece.
— Eu não sei do que você está falando, não ligo para suas inimizades, só
sei que está assustando Lucille. Será que não percebe isso?
Estou trêmula de ódio quando alcanço a porta do quarto da garota e me
apresso em entrar, batendo-a por dentro, respirando aliviada por ele não nos
seguir até aqui dentro. Acomodo Luci na cama e me sento ao seu lado,
acariciando seus cabelos macios, observando o rostinho banhado de lágrimas.
— Não fique assim, querida. Seu pai está zangado, mas não é com você.
Ela solta um soluço que faz todo o seu corpo sacudir.
— Samantha disse que ele odeia a gente. — Ela fala e chora ainda mais
intensamente, em uma cena de cortar o coração.
Como esse homem pode ser frio a ponto de desprezar uma criança tão
doce e linda?
— Não repita isso, meu bem. É claro que ele não odeia vocês. Ele só está
trabalhando muito e isso o deixa estressado.
Quero perguntar pela mãe dela, pelos avós, ou qualquer outro parente que
poderia amá-las, mas temo tocar em algum assunto doloroso e desencadear ainda
mais a tristeza em seu coraçãozinho.
— Não é estresse, ele não quer saber da gente. — Outro soluço é solto,
concomitante a mais lágrimas jorrando dos seus olhos.
Ela tem toda razão sobre o pai e eu só queria ter a força de um homem
para dar uma boa surra nele por isso.
— Ele não estava brigando comigo por sua causa. Aquela raiva foi
porque peguei carona com alguém que ele não gosta.
Nesse momento, a porta é aberta e Samantha entra, os olhos azuis
assumindo um brilho angustiado ao ver a irmã em prantos. Aproxima-se da cama
e se deita ao seu lado, envolvendo-a em seus braços. Luci agarra o pescoço dela
como se fosse uma tábua de salvação em meio ao mar revolto, afunda o rosto em
seu peito e chora ainda mais desenfreadamente.
— O pai de vocês ficou chateado porque peguei carona com o médico e a
assustou com os gritos. — Explico, antes que Samantha exploda também, como
o pai, a quem parece ter puxado.
— Eu ouvi lá do meu quarto. — O tom gentil da sua voz me surpreende
— Meu pai é assim mesmo, não liga pra gente.
A tristeza com que ela pronuncia as palavras, atiça ainda mais a raiva
dentro de mim.
— Por que ele é assim?
— Porque é um insensível, arrogante, que não merecia ser pai. — Enfim
algo com o que concordamos.
— Vocês não têm outro parente? Avós? Tios? Que possam cuidar de
vocês?
Ai meu Deus! O que estou fazendo? Não tenho nada a ver com isso, não
devia estar interferindo. Só que é tarde demais. Já estou envolvida. Me sinto
responsável por essas meninas.
— Não precisamos de ninguém. Cuidamos uma da outra. Se você quiser
ir tomar um banho e descansar, fique à vontade. Vou ficar aqui com Luci.
A única coisa que quero agora é dizer umas verdades para aquele
troglodita. Eu sei que devia ficar quieta, não me intrometer, mas não consigo
assistir a isso, à forma como ele as trata, sem fazer alguma coisa. Nem que me
demita depois, ele vai ter que me ouvir.
Dou um beijo na face de Luci e me afasto. Estou alcançando a porta,
quando Samantha me chama às minhas costas.
— Evangeline, obrigada por cuidar da minha irmã.
— De nada. Eu gosto muito dela.
Com isto, deixo o quarto, pisando pesado, a mente em turbilhão, o
sangue fervendo nas veias. Desço as escadas quase correndo e vou direto para o
escritório no subsolo. Chegando lá dou uma batida na porta, como não obtenho
resposta giro a maçaneta e vou entrando. Meu chefe está sentado atrás da sua
mesa, inclinado sobre o tampo de vidro, com o rosto afundado entre as mãos.
Quando ouve meus passos e ergue a face para me encarar, posso ver uma
angústia dolorosa refletida em seus olhos azuis, um abatimento profundo
parecendo o assolar, só que eu não ligo. Qualquer castigo para ele ainda é
pouco.
— Você pode me demitir depois, se quiser, mas vou dizer o que está
entalado em minha garganta desde que cheguei aqui.
— Agora não, Evangeline. Me deixe sozinho.
Ignorando suas palavras, continuo.
— Sabe quantas pessoas nesse mundo queriam ter duas filhas como as
suas? — Sem aguardar resposta, prossigo, minha voz firme, embora por dentro
eu esteja tremendo — Elas são duas garotas incríveis, inteligentes, sensíveis e
você age como se elas não existissem! Estou aqui há uma semana e ainda não vi
você falar com elas nenhuma vez, é como se as evitasse. Sabe o quanto elas
podem estar se sentindo rejeitadas e o que esse sentimento pode causar a elas?
— Já chega, Evangeline. — Seu tom é ríspido, porém baixo.
— Eu ainda não terminei. — Aproximo-me mais um passo da mesa — É
surreal que você tenha deixado seu escritório para ir me receber com uma bronca
porque aceitei a carona daquele sujeito, que, aliás, tratou sua filha muito bem,
exatamente como ela merece, mas não sai daqui para falar com elas, como se as
odiasse. Você sabia que Luci acredita que você a odeia? Ela me disse isso hoje. E
o que mais pensar de um pai que tem a filha doente e sequer aparece no hospital
para saber como ela está? Sabe o que isso pode causar ao psicológico dessa
menina? E Samantha? Na situação dela, como um pai arrogante e ausente como
você, qualquer garota já teria se rebelado, estaria usando drogas e fazendo
tatuagens.
De repente, ele levanta-se com um sobressalto e vem em minha direção,
fuzilando-me com olhos de fúria, bufando como um touro violento, despertando
o terror dentro de mim. Apavorada, tento recuar, porém é inútil, dou apenas dois
passos para trás e ele me alcança, fecha sua mão de aço em torno do meu braço e
arrasta-me rumo à porta, uma energia violenta partindo de si.
— Como se atreve a se meter em nossas vidas? Quem você pensa que é?
— vocifera, entredentes, o maxilar cerrado, uma veia pulsando em sua têmpora.
Agora sim, tenho certeza de que serei demitida, portanto, como não tenho
mais nada a perder, ignoro o medo dentro de mim e reúno toda a minha coragem
para confrontá-lo.
— Sou a pessoa que vai te dizer as verdades que você precisa ouvir, seu
estúpido! — Sem soltar o meu braço, ele tenta abrir a porta com a mão livre, só
que ainda não terminei o que quero falar, então colo minhas costas nela,
impedindo-o de abri-la — Suas filhas precisam de você, elas não têm mais
ninguém além de uma à outra. Como pode não perceber...
— Cala essa boca... — Ele rosna.
Sem qualquer aviso prévio, agarra meus cabelos na altura da nuca e ataca
minha boca com a sua, de um jeito violento, impetuoso, que me faz estremecer.
Sinto o contato brutal, potente, sua boca se movendo de encontro à
minha, o corpo sólido esmagando o meu e me reteso inteira, minha mente
confusa tentando processar o que está acontecendo. Seguindo a um impulso, uso
minha mão livre para tentar empurrá-lo, pelo ombro, mas o sujeito é uma rocha
maciça e sequer se move. Então, aos poucos, sou tomada por um desejo
selvagem que atiça cada um dos meus sentidos para a luxúria. Subitamente meus
seios se tornam mais sensíveis, doloridos de encontro ao peito masculino, um
calor gostoso, ansioso, se manifesta abaixo do meu umbigo, me fazendo latejar
entre as pernas, minha calcinha molhando. São sensações intensas,
desconhecidas, jamais antes experimentadas. Rendendo-me a elas, entreabro a
boca para receber a língua insistente que explora o meu interior com lascívia,
intensificando tudo dentro de mim, roubando-me a razão.
Deixando-me guiar pelos meus instintos mais primitivos, arremeto meu
corpo para a frente, pressionando-me na sua virilidade, quando então posso
sentir a ereção empurrando meu ventre, implacavelmente e um gemido escapa da
minha boca.
Como se atendesse à minha súplica silenciosa, ele aperta meu traseiro
com sua mão grande, apalpa minhas nádegas e as pressiona de baixo para cima,
fazendo-me tirar os pés do chão, minhas pernas contornando seus quadris, minha
intimidade molhada buscando sua masculinidade, pressionando-a avidamente,
quase em desespero.
Meu chefe nos gira no meio da sala, levando-nos até a mesa, usa o braço
livre para varrê-la, derrubando todos os objetos no chão e me deita. Com uma
rapidez impressionante, abre o meu casaco e acomoda seu corpo sobre o meu, os
quadris entre minhas pernas, empurrando-me ferozmente bem ali onde mais
necessito, o peito rochoso pressionando meus seios frágeis, a boca devorando a
minha, transformando-me em uma massa de sensações e sentidos sem qualquer
racionalidade.
Pouso as mãos em seus ombros e posso sentir os contornos dos músculos
deliciosamente sólidos, acaricio sua nuca, seus cabelos, quase com adoração,
meu corpo inteiro fervendo, se abrindo cada vez mais para receber o calor
gostoso que parte dele, desejando ardentemente estar nua em seus braços. Tudo
o que quero agora é senti-lo dentro de mim, aplacando esse fogo que me
consome de dentro para fora, porém, tão repentinamente quanto me atacou, ele
se afasta, deixando-me trêmula e sozinha sobre a mesa.
— Não podemos fazer isso. — sussurra, dando-me as costas, sua voz
entrecortada pela respiração pesada.
Ainda atônita com tudo o que estou sentindo, sento-me vagarosamente na
borda da mesa, tentando organizar os pensamentos. Não há muito em que pensar,
eu o desejei desde o instante em que o vi pela primeira vez e agora percebo que é
recíproco.
— Mas é claro que podemos. Nós somos adultos e nos desejamos.
Ele esfrega os olhos com as duas mãos e passa os dedos entre os cabelos
curtos antes de se virar novamente para mim. Quando me encara diretamente,
posso ver a angústia refletida em seus olhos e fico confusa.
— Você não sabe de nada.
Já é a segunda vez que ele me diz isso e chego à conclusão de que está
me escondendo alguma coisa grave.
— Então me explica. Eu quero entender. Eu quero você, você me quer.
Qual o problema?
— Não pode acontecer nada entre nós. Precisamos ficar longe um do
outro.
Novamente essa história. Percebo então que ele pode estar se referindo à
diferença financeira e social que existe entre nós, não me considera digna dele
porque sou pobre, apenas uma empregada em sua casa. Sinto como se um balde
de água gelada me fosse jogado e desço da mesa, fechando o meu casaco,
subitamente sentindo frio, uma vergonha indescritível tomando conta de mim.
— Você tem alguém? Uma namorada? — pergunto, antes de perceber o
quanto as palavras soam implorativas.
— Não, Evangeline. Eu não tenho ninguém. Agora vá, por favor. Antes
que eu perca a cabeça de novo.
Se eu achasse um buraco agora, me enfiaria nele, apenas para fugir da
humilhação de ser dispensada de tal forma. Mesmo que tenha sido ele a me
agarrar, eu cedi muito facilmente, na certa levando-o a me comparar a uma
mulher fácil, promíscua.
— E sobre as meninas?
— Você não tem que se meter nisso. Seu papel aqui é somente cuidar
delas.
— É o que estou tentando fazer. Será que você não percebe o quanto elas
precisam de você?
— Não se mete nisso, Evangeline. Não me force a mandar de você de
volta para o Texas.
Puta merda! Ele é mesmo escroto. Me demitiria por estar tentando
mostrar-lhe o quanto é omisso com as filhas. Está me dando mais uma prova de
que não gosta delas e embora eu não compreenda como alguém pode desprezar o
sangue do seu sangue, não há nada que possa fazer a esse respeito, que não ser
me manter aqui e dar a elas pelo menos um pouco do carinho que ele as nega,
apesar de que nada substitui o amor de um pai.
— Não vou me meter de novo. — murmuro e rumo rapidamente para a
porta, sem mais olhar em seu rosto.
Praticamente corro até o meu quarto, a mente fervilhando de
pensamentos, o coração apertado no peito, não apenas pelo desejo desenfreado
que meu corpo insiste em nutrir por esse homem, mas por todo esse mistério que
o cerca, por essa sensação de que está me escondendo algo grave e pela dor de
vê-lo renegando o amor que suas filhas precisam. Queria saber o que o tornou
um ser tão amargo e frio. Será que sempre foi assim? Ou foi a perda da mulher?
Talvez se eu conseguir descobrir como ela morreu, possa descobrir também o
resto. Não posso perguntar isso às meninas, mas posso a um dos empregados.
Farei isso em outro momento.
Como é sábado e as meninas não têm aula, me dou o direito de tirar um
tempo só para mim. Então livro-me das roupas pesadas e me permito relaxar por
quase uma hora em um banho quente de banheira, durante todo o tempo
pensando nas palavras de Victor, me perguntando o que ele está me escondendo,
ou se, na verdade, apenas está se abstendo de se relacionar com uma empregada.
Nem mesmo uma transa casual ele quis comigo e pelo pouco que conheço dos
homens, sei que eles jamais dispensam sexo sem compromisso, ou talvez ele
esteja achando que vou querer uma aliança em meu dedo depois do que quase
aconteceu entre nós. Por que me beijou se não considera que eu esteja à sua
altura?
Penso no beijo, na forma enlouquecedora como ele me pegou contra
aquela parede e depois na mesa. Minha nossa! O que foi aquilo? Que homem é
esse? Nunca senti nada tão intenso com meus ex-namorados.


CAPÍTULO VII



Apesar de ter dormido muito no hospital, ainda me sinto cansada. Mesmo
assim decido aproveitar o dia de folga das meninas para levá-las para passear,
sair um pouco do ambiente pesado dessa casa, das responsabilidades da escola.
Embora o clima frio não contribua muito para este fim, toda criança merece se
divertir. Assim, visto roupas quentes, passo um pouco de maquiagem, escovo
bem os cabelos, deixando as ondas loiras caindo sobre os ombros e vou para o
quarto de Luci. Encontro as duas ainda deitadas, do jeito que as deixei, Luci
assistindo desenhos no computador e Samantha mexendo no celular. Ambas
silenciosas e desanimadas.
— Ei, garotas. Que desânimo é esse em pleno sábado? Troquem de
roupas, vamos passear. — proponho, na maior animação.
— Oba! — Luci exclama, entusiasmada.
Quando à Samantha, sequer tira os olhos do aparelho.
— Passear onde, nesse buraco de gelo? — diz a adolescente.
— Em um parque, ou zoológico, ou na casa dos avós. Você tem avós, não
é?
— Meus avós se mudaram para a Espanha, onde é quente.
— E os pais da sua mãe?
— Minha mãe não tem pai e levou minha avó para morar com ela na
Califórnia.
Suas palavras me pegam surpresa.
— Espera, a sua mãe está viva?
Samantha olha para Luci e depois para mim, quando então percebo que
fiz bobagem ao tocar nesse assunto na frente da menina.
Droga! Que falha das grandes.
— Mas é claro que está. De onde você tirou que ela tinha morrido?
— Eu apenas deduzi. Me desculpe.
— Minha mãe mora em Los Angeles. — diz Luci — Mas ela vai voltar
para buscar a gente.
— Pode tirar isso da cabeça. Ela é só mais uma que não quer saber da
gente. — Samantha retruca e vejo a tristeza no rostinho infantil da outra.
— Sabe quem quer saber de vocês? Eu quero. Então vamos levantar a
bunda da cama e dar uma volta pela cidade para animar o dia. Prometo que
vocês vão se divertir.
Luci se levanta e corre para o closet, empolgada.
— Oba! Quero ir no zoológico ver o tigre e o leão.
— Agora se meu pai não der permissão, Luci vai ficar triste. —
Samantha revira os olhos e declara: — Vou falar com ele. — E em seguida deixa
o quarto.
Minutos depois, Samantha volta dizendo que o pai está dormindo e falou
apenas com Harriet. Segundo ela, o Sr. Boseman trabalhou durante toda a noite
no escritório, sendo que só se recolheu ao seu aposento esta manhã. Mesmo sem
Harriet consentir e ainda nos aconselhando a não sairmos sem falar com ele, nós
três deixamos a casa no carro que uso para levá-las à escola.
Ainda que o sol esteja brilhando no céu, o frio não dá uma trégua. A
camada branca de neve que cobre tudo está derretendo, dando lugar à grama de
coloração amarelada, às árvores desprovidas de folhas, a claridade nos
permitindo enxergar com clareza os picos cobertos de gelo das montanhas
distantes. Com o mapa dos destinos que pesquisei na internet em mãos, nos
dirigimos para o um museu onde são exibidas esculturas de gelo feitas na hora;
depois vamos a um zoológico onde um aquário natural rouba a cena e por fim
paramos para almoçar em um parque onde a natureza intocada é a principal
atração. Enquanto as meninas se divertem, brincando, olhando tudo e tirando
muitas fotografias, eu só consigo pensar naquele beijo, no calor daquelas mãos
apertando meu corpo, na impetuosidade de Victor ao me atacar e me despertar
esse desejo insano que se recusa a me deixar.
Eu queria ser uma dessas mulheres altamente experientes e sensuais que
sabem seduzir um homem com facilidade, para assim o seduzir para mim, nem
que fosse para passar apenas uma noite em seus braços, já que ele parece dar
importância demais à diferença social que há entre nós. No entanto, não tenho
experiência alguma, sequer sei por onde começaria. Além disso, preciso me
concentrar no que realmente importa, que são as meninas. Não faço ideia do
motivo pelo qual Victor me contratou para tomar conta delas, ou o que esconde
de tão grave de mim, ou, ainda, porque me parece tão angustiado se não perdeu a
esposa como eu havia equivocadamente deduzido, só sei que essas meninas
precisam de alguém que dê atenção e carinho a elas e enquanto me quiserem por
peto, para este fim, eu estarei aqui.
O dia dura cerca de sete horas. Está perto de escurecer e ainda estamos
no parque, eu e Luci sentadas à mesa do pequeno restaurante que funciona na
varanda de uma linda cabana de madeira, tomando chá quente e Samantha
sentada em um banco sob a sombra de uma árvore, mexendo no celular, como
sempre, quando um garoto com mais ou menos a idade dela se senta o seu lado,
agindo como se já a conhecesse.
Deve ser algum namoradinho da escola, como toda garota nessa idade
tem. Eu não estaria preocupada se não tivesse apreensão de como o pai dela
reage a isso. Então, espero que eles conversem um pouco a sós e interfiro,
aproximando-me para anunciar que está na hora de voltarmos para casa.
— Evangeline, esse é Jacob Patel, um... amigo.
Olhando de perto percebo o quanto ele é bonito, alto e magro, tem belos
olhos castanhos esverdeados e cerca de quinze anos.
— É um prazer conhecer você, Jacob. — Aperto a mão dele e sorrio —
Patel? Acho que conheço esse sobrenome de algum lugar.
— Você conheceu meu irmão ontem. Ele me falou que cuidou de Luci no
hospital. Ele é médico. — diz o garoto.
Então, lembro-me do gentil Dr. Joseph Patel e da reação de Victor
quando o viu me deixando em casa, certamente por meio de alguma câmera de
segurança que deve ter em seu escritório. Meu chefe foi claro ao dizer, com toda
a força do seu ódio, que não queria ninguém daquela família em suas terras e
agora Samantha está meio que namorando o irmão dele. Isso não vai dar certo.
Quando volto o olhar para o rosto da jovem menina, ela empalidece e
compreendo que encontra o garoto em segredo.
— Claro. O Dr. Joseph é muito gentil e atencioso. Cuidou muito bem de
Luci. — falo e o garoto sorri orgulhoso.
— Ele se formou recentemente e foi praticamente obrigado pelo meu pai
a voltar para clinicar aqui.
— Acho que ele mencionou algo sobre isso. — Quanto mais falamos,
mais pálida Samantha fica — Bem, está ficando tarde. Temos que ir Sam. Se
despeça do seu amigo, vou esperá-la no carro. Foi um prazer conhecê-lo, Jacob.
Com isto, seguro a mão de Luci e rumamos para o carro, sem que eu
deixe de olhar para trás, de quando em quando, só para ter certeza de que
Samantha não vai fugir com um dos inimigos do seu pai, sob a minha guarda.
Quando Samantha se acomoda no banco de passageiros, ao invés de
atrás, junto com Luci, como sempre faz, logo suponho que vai me pedir para não
contar o ocorrido ao seu pai. Antes de falar, a espertinha pede que a irmã ouça
uma música com os fones de ouvido.
— Por favor, não conte para o meu pai que eu me encontrei com Jacob.
— diz ela, quando já estamos na estrada molhada de neve derretida, de volta
para a mansão — Você viu como ele reagiu quando o médico foi levar você.
— Você já conhecia Joseph antes de Luci ser internada?
— Eu o vi quando era criança, mas não o reconheci no hospital.
Nem sei o que pensar sobre contar ou não ao pai dela. E se essa família
for perigosa? E se forem mafiosos?
O pensamento me faz estremecer.
— Olha. Antes de decidir se vou contar ou não para o seu pai que você
viu Jacob, preciso saber o que ele tem contra essa família.
— Isso não é da sua conta. — Samantha retruca emburrada.
Nunca vi alguém se parecer tanto com o pai, em sua personalidade. É tão
grosseira quanto.
— Nesse caso, não posso esconder uma coisa dessas dele, principalmente
depois que me disse para evitar essa gente. E se eles forem uns malucos que
fazem experiências científicas com seres humanos?
— Eles não são malucos, tá?
— Tá. Então me conta porque o Sr. Boseman os odeia.
Encurralada, ela olha novamente para Luci, que continua com os fones
nos ouvidos. Então fala:
— Foi há muito tempo. O irmão mais velho, Christian Patel, teve um
caso com minha mãe.
Meu queixo cai quase até o umbigo.
— Sério? Há quanto tempo?
Ela lança um olhar desconfiado na direção de Luci.
— Uns cinco anos.
A idade de Luci. A voz soa em minha mente, porém me recuso a acreditar
que a pequenina não é filha do seu pai, embora isso explicaria o desprezo que ele
tem pelas duas, ou pelo menos por ela.
— Por isso seus pais se separaram?
— Sim. Quando meu pai descobriu tudo, mandou minha mãe ir embora.
— Há amargura no tom de sua voz quando ela pronuncia as palavras.
Ah, meu Deus! Então por isso ele é um homem tão amargurado, triste,
infeliz. Na certa porque ainda ama a ex-esposa e foi traído por ela. Se for só isso,
está mais do que na hora de superar, partir para outra, afinal já se passaram cinco
anos. Isso explica também porque não há fotografias da mulher pela casa, aliás
de nenhum deles, o que é bastante estranho.
— Quer dizer que Luci não conheceu a mãe?
— Sim, ela vem nos visitar de vez em quando. Apenas não conviveu com
ela.
— Por isso seu pai ficou com ódio da família toda?
Não faz muito sentido, pois os outros nada têm a ver com o adultério do
irmão.
— Sim. Meu pai é um homem odioso. — Ela suspira, dando a entender
que não morre de amores pelo pai — E aí, já decidiu se vai esconder dele que
Jacob veio me encontrar?
— E você e Jacob namoram? — Sua face enrubesce, como a de uma
adolescente falando sobre o namorado.
— Não o escolhi deliberadamente para irritar o meu pai, aconteceu sem
planejamento que eu gostasse dele.
— Eu entendo. O amor não se planeja nunca. A vida seria muito menos
complicada se pudéssemos escolher de quem gostar — Não sei de onde tirei tais
palavras, mas sei que eu seria mais feliz se pudesse escolher estar atraída pelo
jardineiro, ou por qualquer outro homem, que não fosse o pai dela — Fica
tranquila, seu segredo está bem guardado comigo.
— Obrigada. — diz, em um dos raros momentos em que a vejo sorrindo
— E você, já se apaixonou alguma vez?
Falo a ela sobre meu segundo e último namorado, sobre o quanto me
decepcionei quando ele me deixou ao descobrir que eu estava mais doente do
que parecia, no quanto fiquei magoada por ele não ter ficado ao meu lado
quando mais precisei, mas nem por isso desisti do amor. Espero um dia conhecer
alguém que faça meu coração bater descompassado no peito, alguém que fique
comigo em qualquer circunstância.
Não falo sobre isso a ela, mas espero conhecer alguém que me beije
como seu pai me beijou.
Já está escuro quando chegamos de volta a casa. Luci estava tão cansada
que acabou adormecendo no banco de trás e a levo do carro no colo. Ao
avançarmos pela sala principal, fico estarrecida ao me deparar com meu chefe,
bastante à vontade, com os primeiros botões da camisa abertos, acomodado em
um dos sofás, ao lado de uma mulher, de longos cabelos negros, uma boca
carnuda demais e um corpo perfeito dentro de um vestido que mescla o
sofisticado e o sensual e me faz sentir muito mal vestida dentro do casaco pesado
e das calças de moletom. Ambos parecem bastante íntimos, embora ele tenha me
falado que não tem ninguém. Não que eu esteja sentindo ciúmes, isso não faria
nenhum sentido, mas quero sair correndo daqui apenas para não ter que olhar
para eles, para a forma como suas pernas se tocam no sofá, como ambos
bebericam uísque de seus copos, como ele parece relaxado com ela, como jamais
esteve comigo.
Ela é uma mulher de muita sorte por ter a atenção de um homem como
ele.
— Onde vocês estavam? — Ele pergunta, como se sequer soubesse que
tínhamos saído.
— Levei as meninas para aproveitar o sábado passeando pela cidade.
Ele fixa seu olhar em meu rosto, tão duro que recuo um passo, ainda com
Luci no colo.
— Sem a minha autorização? — indaga, friamente.
— O senhor estava dormindo e insisti para que ela nos levasse. —
Samantha diz.
— Tente não sobrecarregar a babá de afazeres, Sam. — A abreviação do
nome da filha soa lindamente na voz dele — Agora subam. Estou em reunião
aqui.
Por mais incrível que possa parecer, estou nessa casa há dias e é a
primeira vez que o vejo se comunicando com uma das filhas. A impressão que
tenho é de que eles passaram todos esses dias sem se ver.
Ates que eu tenha tempo de rumar para a escadas, a mulher me fuzila
com seus olhos escuros, examinando-me dos pés à cabeça e com um sorriso
mordaz, diz:
— Eu não sabia que suas filhas agora têm babá. Não vai me apresentar?
— Claro. Essa é Evangeline Stuart. Evangeline, essa é minha advogada
Michelle.
— É um prazer conhecê-la. — falo educadamente, ansiosa para sair
daqui e colocar Luci na cama.
Ela é magrinha, mas é alta para cinco anos. Meus braços estão
começando a ficar dormentes com seu peso.
— Você é de onde? — A mulher sem noção puxa assunto.
— Sou do Texas. Me desculpe, mas preciso colocá-la na cama. Com
licença.
Contorno o sofá e rumo para a escadaria, Samantha me seguindo de
perto. Ainda estou subindo o primeiro degrau quando braços fortes roçam meu
corpo e seguram Luci, o contato tão simples causando um turbilhão de sensações
dentro de mim, fazendo meu sangue ferver de desejo.
— Deixe que eu a levo. Deve estar pesada para você. — diz o meu chefe,
tirando a filha do meu colo, a boca tão perto do meu ouvido que posso sentir o
calor da sua respiração me acariciando.
Cuidadosamente, entrego Luci a ele e os sigo escada acima, tão perplexa
com a atitude dele quanto Samantha, que parou para observar a cena
boquiaberta.
Lembro-me do que ela disse sobre sua mãe ter cometido adultério e
observando a forma como Victor olha para a filha, tento adivinhar se realmente é
sangue do sangue dele, ou o fruto da traição que supostamente o vem
atormentando durante todos esses anos. Há ternura em seus olhos azuis claros
enquanto ele observa o rostinho adormecido, o que não é suficiente para anular a
forma como ele a trata no dia a dia.
Samantha e eu o seguimos quando ele entra no quarto da pequenina com
ela nos braços, como se o vigiássemos. Deita-a cuidadosamente na cama, a cobre
com o lençol e senta-se ao lado, os olhos fixos em seu rosto, aquela angústia já
conhecida se refletindo em sua expressão. Leva a mão para a cariciar a face dela,
porém, como se atentasse a algo dentro de si, desiste na metade do caminho,
recolhendo a mão. Observa a filha por mais um instante e então levanta-se e se
afasta da cama.
— Vocês já jantaram? — Ele pergunta, colocando-se diante de nós, sem
que deixemos de observá-lo igualmente aturdidas.
— Evangeline e eu estávamos combinando de fazer um piquenique no
terraço depois que Luci acordasse. — Nós combinamos? — Como fazíamos
antigamente. — diz Samantha.
Victor olha para mim, como se buscasse a confirmação das palavras da
filha e apresso-me em acompanhá-la em sua mentira. Tudo por uma boa causa.
Ou pelo menos eu espero que seja boa.
— Claro, um piquenique no terraço.
— Vou ver se consigo desocupar mais cedo, para acompanhar vocês.
Dito isto, ele sai do aposento, deixando-nos boquiabertas, plantadas no
lugar.
— O que foi que deu nele? — Samantha pergunta.
— Como assim?
— Ele disse que vai jantar com a gente. Isso é espantoso.
Pergunto-me se as verdades que eu disse a ele, esta manhã, sobre a forma
como trata as filhas, pode ter influenciado na sua súbita mudança de atitude e
chego à conclusão de que não pode ser possível. Ele não daria tanta importância
ao que diz uma simples empregada.
— Ele não costuma jantar com vocês?
— Não depois de toda aquela tragédia.
Meus olhos buscam seu rosto com pressa.
— Que tragédia?
— Você não sabe?
— Não faço nem ideia.
Antes que ela tenha a chance de continuar falando, uma tossida fraca
parte da direção de Luci e nos viramos para ela ao mesmo tempo.
— Luci está acordando. Não vamos falar sobre isso na frente dela. —
Samantha sussurra, com tom de confidencialidade. — Vou avisar Harriet que
mande servir o jantar no Terraço. Quero ver se meu pai vai mesmo aparecer lá.
Ela deixa o aposento e vou ao encontro da pequena Luci, dar a ela o
remédio para gripe, enquanto me pergunto que tragédia pode ter assolado essa
família a ponto de afastar o pai das filhas, de transformar o meu chefe no homem
seco e amargo que se tornou. Pretendo descobrir tudo, mas com cautela para não
ferir ainda mais a todos eles com esse assunto.
Quando subo para o terraço com as meninas, que estão animadas como
nunca vi com a perspectiva de o pai participar do tal piquenique, fico
maravilhada com o quanto o lugar está ainda mais bonito, todo iluminado, as
mesas em estilo africano juntas, postas com uma grande variedade de comidas e
bebidas não alcoólicas. Das águas aquecidas da piscina, sobe uma fumaça tão
convidativa que dá vontade de mergulhar. A redoma de vidro transparente que
nos cobre, nos permite ver o céu estrelado, embora estejamos bem protegidas do
frio que faz lá fora.
As meninas me convidam para me acomodar à mesa com elas e não
recuso. Passo a contar-lhes histórias verdadeiras sobre minha vida no Texas,
tanto na fazenda quanto na cidade, enquanto esperamos o Sr. Boseman aparecer.
Contudo, as horas passam rapidamente e ele não dá o ar da sua graça. Quando
Luci começa a soltar um bocejo atrás do outro, anunciando que seu sono chegou
ao limite, nos convencemos de que ele não vem, e nos servimos antes que ela
adormeça aqui mesmo, Samantha se mostrando indignada e com toda razão.


CAPÍTULO VIII



Estamos começando a comer, quando por fim Victor entra no terraço,
lindo como uma miragem dentro da camisa social preta e jeans, com os cabelos
arrepiados como sempre e aquela tristeza que quase nunca deixa a expressão do
seu olhar.
— Papai! — Luci grita e pula da mesa, indo encontrá-lo a meio caminho,
com uma animação absurda, como se ele estivesse chegando de uma longa
viagem.
Joga-se em cima dele e é pega no colo, em uma imagem que me faz
suspirar.
É a primeira vez que vejo os dois juntos e, percebendo o amor imenso
demonstrado por Luci, um nó aperta a minha garganta ao imaginar como ela se
sente ao passar tanto tempo sem receber sua atenção. Ela ainda não tem idade
para entender o conceito de rejeição, ou mesmo perceber o quão o pai é distante,
omisso, na certa acredita que o relacionamento entre pai e filha é assim mesmo,
já que nunca a vi reclamando, ou mesmo perguntando por ele. Está acostumada a
ser desprezada, a vê-lo muito raramente.
Victor se acomoda do outo lado da mesa, diante de mim e mergulho em
uma espécie de transe ao observar seu rosto másculo iluminado pela luz difusa
que bate na água da piscina. Sinto-me atraída por esse homem como jamais me
senti por outro. Tudo nele me fascina, seu maxilar forte, coberto pela barba bem
aparada; os olhos azuis claros sempre carregados de uma angústia dolorosa que
me faz querer afagá-lo; a boca bem desenhada; os ombros largos seguidos de
bíceps pronunciados.
— Vocês já iam comer sem mim? — indaga ele, com uma sutil
descontração, como nunca vi antes.
Acomoda Luci na cadeira ao seu lado, sem que ela volte a dar
importância à comida, sua atenção toda concentrada no pai.
— Nós estamos esperando você há horas. — Samantha dispara, com a
delicadeza de uma britadeira, imitando o temperamento dele.
— Michelle trouxe uma centena de documentos para eu assinar. Quase
não saio de lá. — Ele se defende e começa a se servir da salada de frutos do mar.
Lembro-me da sofisticada advogada, do quanto ambos pareciam íntimos,
à vontade um com outro, como se fossem amantes e de súbito me ocorre o
quanto ele pode estar me considerando uma pessoa pretenciosa, por estar sentada
a mesa depois de deixar claro onde é o meu lugar.
Apressada, levanto-me.
— Me desculpe por isso. As meninas me convidaram a sentar e aceitei.
Os três me encaram ao mesmo tempo.
— Do que você está falando? Pode se sentar. — Victor me surpreende ao
dizer, seu semblante sincero.
Desconcertada, volto ao meu lugar à mesa.
O momento que segue é de pura harmonia e descontração. Nunca vi as
duas meninas tão felizes como agora, conversando relaxadamente com o pai,
falando sobre o passeio que fizemos, sobre a escola e outros assuntos do dia a
dia. Posso perceber, nas entrelinhas, que fazer a refeição aqui no terraço já foi
uma tradição entre eles e que há muito não se reuniam assim.
Apesar de se esforçar para se manter acordada e aproveitar o quanto mais
a companhia do pai, Luci não consegue e, após a refeição, acaba pegando no
sono, quando então ele a carrega novamente em seus braços, levando-a até seu
quarto, deixando Samantha e eu sozinhas.
— Obrigada por não falar nada sobre Jacob. — diz a adolescente, ainda
beliscando a sobremesa.
— Eu jamais falaria. Mas confesso que fiquei com medo de Luci abrir a
boca, não por maldade, mas por ingenuidade.
— Eu também. — Ela sorri amplamente e então fica séria — Quero te
pedir desculpas pela forma como a tratei quando você chegou aqui. Nunca
tivemos babá antes, por isso achei que você fosse alguma amante do meu pai.
— Eu entendo e fico feliz que tenha mudado de opinião ao meu respeito.
Na verdade, seu pai me trouxe também para me ajudar. Eu estava desempregada
e precisando de dinheiro depois de fazer uma cirurgia no coração.
— Então vocês se conheceram mesmo antes de ele a contratar?
Ela parece desconfiada e fico constrangida ao relembrar as circunstâncias
nas quais o conheci.
— Nos vimos uma vez, por acaso.
— E ele te contratou assim do nada?
— Acho que falei sobre meus problemas e ele ficou com pena.
— Eu acho que ele gosta de você.
— Seu pai jamais gostaria de uma garota como eu.
— Garota como você?
— Sim, uma simples empregada.
— Mas que bobagem. Isso é só um detalhe.
— Não parece um detalhe para ele. — falo, relembrando da sofisticada
advogada com ele na sala. — Ele costuma ter muitas namoradas?
Posso ver a amargura emergindo na expressão dos seus olhos azuis.
— Ultimamente não, mas ele já teve aquela fase de não voltar do
trabalho para dormir em casa e de aparecer com uma mulher diferente a cada
semana.
— Aquela advogada que estava com ele na sala, é namorada dele?
— Já foi, por muito tempo, tentou se casar com ele e tudo. — Há
desprezo no tom de sua voz — Ainda bem que ele viu o óbvio e a deixou.
— O óbvio?
— Sim. Que ela é uma vigarista que só queria se dar bem na vida, se
tornando a esposa do dono da empresa.
— Eita! Quero morrer sua amiga.
— Não sou tão má quanto pareço, apenas justa. — Ela parece uma
mulher adulta ao levar o copo à boca e ingerir um último gole do seu suco de
laranja — Agora chega de conversa, vamos para a segunda parte do nosso
piquenique.
— Achei que já tivesse terminado.
— Claro que não. Falta mergulharmos na piscina. Vou buscar as roupas
de banho. Me espere aqui.
Abro a boca para dizer a ela que não trouxe roupa de banho para o
Alaska e que não é saudável mergulhar depois do jantar, entretanto, sem me
esperar falar, a menina levanta-se e deixa o terraço apressada, sem me dar opção
que não a esperar.
Tirando o risco de ter uma indigestão, até que não é má ideia dar umas
braçadas na água cristalina, tão quentinha que a fumaça não para de subir. Quis
fazer isso desde o dia em que entrei nesse terraço pela primeira vez.


Victor.


Já fazia muito tempo que eu não carregava Luci no colo e tal constatação
é só mais um agrave para a dor que insiste em permanecer em meu peito, me
assolando, se recusando a me abandonar por mais que eu tente a eliminar.
Deito-a na cama, sento-me ao seu lado e me ergo para observar o
rostinho infantil adormecido. É tão linda, tão inocente. Me pergunto em que
momento da minha vida as mágoas acumuladas conseguiram me levar a quebrar
a promessa que fiz a mim mesmo de amá-la e protege-la como se fosse minha
filha, mesmo que não tenha meu sangue correndo em suas veias, mesmo que seja
fruto da relação da minha mulher com aquele desgraçado, fruto de um adultério,
da traição que me motivou a encerrar de uma vez com um casamento já
arruinado pela falta de amor da minha parte e por meus próprios casos
extraconjugais, que não foram poucos, visto que, sempre tive muita sede pela
vida, pela farra, pela luxúria. Se Olivia não tivesse engravidado, eu jamais teria
me casado com ela quando éramos ainda tão jovens. Sacrifiquei minha liberdade
para que meu filho viesse ao mundo no seio de uma família estruturada, com o
pai e a mãe juntos, assim como eu vim e agora estou desvanecendo tudo isso por
causa da dor que me cega para tudo mais, que se recusa a amenizar, a me dar
uma trégua, por mais que o tempo já tenha passado, por mais que eu saiba que já
está na hora de superar. Mas como superar algo que está entranhado em mim de
maneira tão irreversível? Como transformar em passado algo tão presente, tão
intenso, tão vivo?
Olho novamente para o rostinho de Luci, de perto, como há muito não
olhava, sinto seu cheirinho gostoso, como há muito não sentia e mais uma vez
percebo o quanto a amo. Eu a amei desde o instante em que a senti se mexendo
na barriga da sua mãe, quando ainda acreditava que era minha, nunca vi o menor
sentido em entregá-la para aquele miserável depois que ela nasceu, ou mesmo
deixar que ele soubesse que é pai dela. Com a grande quantia de dinheiro que dei
a Olivia, para que reconstruísse sua vida bem longe de mim, consegui convencê-
la a também manter a boca fechada, afinal ela nunca o amou, entregou-se a ele
por vingança, para me dar o troco quando descobriu que eu estava dormindo
com Michelle. Se ela não tivesse aberto a boca, tantos anos depois, a tragédia
não teria acontecido, eu não teria perdido uma parte de mim.
Decidi criar Luci como se fosse minha, amando-a e protegendo-a, mesmo
depois que recebi o resultado daquele teste de paternidade e agora me pergunto
se essa distância absurda que tenho colocado entre nós, pode ser alguma espécie
de vingança inconsciente, pelo que o pai biológico dela fez. Se for, que tipo de
homem isso faz de mim?
Quero chorar, a dor me consumindo, porém como sempre engulo as
lágrimas, pois não sou o tipo de homem que chora.
O rangido da porta sendo aberta me desperta dos meus pensamentos e
ergo o rosto para ver Samantha entrando no quarto, na ponta dos pés para não
acordar a irmã. Levanto-me e a encaro de perto, me perguntando quando ela
cresceu tanto sem que eu tenha visto.
— E aí, ela dormiu mesmo? — indaga, com um sussurro, lançando um
olhar à irmã, por cima do meu ombro.
Samanta é muito parecida comigo, conhece todos os meus fantasmas e
ainda assim não interfere, não me critica, nem me cobra a me tornar um pai mais
presente.
— Sim. Estava cansada.
— E gripada. Mas já está melhorando. Evangeline cuida muito bem dela.
— E você, como está?
Vejo a expressão surpresa nos olhos da minha filha, pela minha súbita
preocupação depois de meses isolado na redoma transparente que ergui entre
mim e o mundo do qual faz parte.
— Você sabe que sou forte como uma rocha. — E é verdade, só mais um
motivo que tenho para sentir orgulho dela, embora nunca deixei isso claro e ela
pense o oposto — Preciso dormir. Boa noite. — Ela lança mais um olhar na
direção de Luci, checando se está realmente bem e ruma para a porta. Antes de
alcançá-la, vira-se novamente para mim — Ia me esquecendo. Evangeline quer
falar com você. O está esperando no terraço.
Sem esperar que eu diga algo, dá-me as costas e sai.
Cubro Luci com um lençol, apago a luz e deixo o quarto, indeciso se vou
ou não falar com Evangeline. Quando decidi trazê-la para trabalhar aqui, em
uma atitude completamente impensada, motivada pela situação difícil em que ela
se encontrava, prestes a seguir por um caminho com difícil possibilidade de
volta, prometi a mim mesmo que ficaria longe dela, que de forma alguma
cederia a esse desejo absurdo que corre em minhas veias dia após dia, de tocar
sua pele aveludada, de me enterrar todo nela, mas como ficar longe se cada
mínima parte de mim arde de excitação cada vez que penso nela? Cada vez que
relembro o gosto daquela boca na minha, a forma como ela arfou em meus
braços, deixando evidente o quanto também me quer?
Por mais que o fogo da luxúria me consuma, não posso me render, não
posso permitir que aconteça algo entre nós, isso seria imoral, talvez até
criminoso, não pesquisei a respeito ainda.
No corredor, tento ignorar o desejo voraz dentro de mim, chego inclusive
a dar dois passos rumo à escada que me levaria de volta ao confinamento do
escritório, porém, não sou forte o bastante e acabo dando meia volta e seguindo
rumo ao terraço.
Porra, Victor! O que diabos você está fazendo?
Ciente de que sou perfeitamente capaz de manter o autocontrole
enquanto converso com a babá das minhas filhas, adentro o terraço a sua
procura, só que não a vejo de imediato, há apenas os restos do jantar junto com a
louça suja sobre as mesas. Será que Samantha mentiu? Não é possível, ela não é
de fazer isso. Estou dando meia volta para sair, quando ouço sons de água se
movimentando e rumo para a piscina. Ao me aproximar a vejo nadando nas
águas mornas, completamente à vontade, alheia à minha presença, usando
apenas calcinha e sutiã, a pele macia, as curvas dos seios pequenos, da cintura
fina e dos quadris redondos, que vem tirando meu sono ultimamente, expostos,
causando-me uma ereção dolorida. De onde estou posso ver claramente a cicatriz
atravessando seu peito, nada mais que uma linha vertical rubra, levemente em
relevo.
Como se fosse puxado para uma espécie de transe que me entorpece para
tudo mais à minha volta, aproximo-me um passo e permaneço imóvel, apenas
apreciando a forma como ela parece frágil, enlouquecedoramente feminina,
enquanto nada; como seus cabelos longos, de um loiro vivo, boiam quando ela
emerge; como os movimentos do seu corpo perfeito e molhado são delicados. Eu
quero que ela se movimente assim debaixo de mim, enquanto enfio meu pau nela
até a r e a ouço gritar de prazer.
Depois de um longo momento, finalmente Evangeline me enxerga e solta
um gritinho agudo de susto, ao mesmo tempo em que cessa a natação.
— O que você faz aqui? — indaga ela, claramente surpresa.
— Samantha me disse que você queria falar comigo, mas vejo que estava
mentindo.
Ela sorri e por alguma razão desconhecida, meu coração bate mais
depressa no peito.
— Mas que malandrinha. Ela disse que ia pegar roupas de banho para
nadarmos. Essa era a segunda parte do piquenique.
É novidade minha filha demonstrar interesse em me juntar com alguma
mulher. Obviamente gosta muito de Evangeline e posso compreender o porquê.
— Já faz muito tempo que ninguém dessa casa nada nessa piscina.
— Foi o que pensei. Entra aí, a água está ótima. Bem quentinha. — Ela
convida e me observa, esperando pela minha resposta.
Minha primeira reação é recusar, claro, mas então minha mente
entorpecida pelo desejo me faz me imaginar na água junto com ela. E por que
não? Enumero, mentalmente, uma dúzia de respostas razoáveis para esta
indagação, no entanto, mando a razão ir para o inferno e me permito me render à
paixão pela aventura de estar vivo, respirando, com um coração pulsando, uma
paixão que há muito estava adormecida dentro de mim, me fazendo sentir
internamente morto. Assim, sob o olhar atento da babá das minhas filhas, uma
menina quatorze anos mais jovem que eu, dispo-me da camisa, das calças e das
meias, ficando com apenas a cueca, seus olhos azuis, ligeiramente arregalado,
fixos na protuberância na parte da frente.
Sim, benzinho, é grande pra caralho e se você continuar me provocando,
vai ter que aguentar.
Desço as escadas e mergulho, deixando-me submergir, apreciando a
sensação da água morna relaxando meu corpo inteiro, gostosamente. Quando me
aproximo de Evangeline, ela recua um passo, parecendo assustada, com o rosto
corado, o que me deixa ao mesmo tempo satisfeito, pela sua perspicácia em
entender de imediato quais são as minhas intenções e desapontado, porque a
quero demais.
— As meninas ficaram muito felizes que o senhor tenha jantado com
elas.
— Não me chame mais de senhor. Isso não faz o menor sentido depois
do que aconteceu entre nós no meu escritório.
Seu rosto lindo enrubesce um pouco mais, na certa por relembrar o beijo
que demos.
— Não chamarei, Victor.
Adoro a sensação do meu nome sendo pronunciado por ela.
Aproximo-me mais um pouco e novamente ela recua, parecendo
assustada, receosa.
— Está com medo de mim, Evangeline?
— Não. É que... você não quer conversar um pouco?
Então é isso, por ser muito jovem, certamente inexperiente com os
homens, talvez até virgem, ela quer um romance, só que não estou em condições
de ser romântico agora, meu pau está tão duro que minha virilha está começando
a ficar dolorida, o tesão afetando minha racionalidade.
— É isso que você quer? Conversar?
Como um felino que encurrala sua presa, avanço mais rumo a ela, a
borda da piscina a impedindo de recuar dessa vez. Fito-a de muito perto, meu
rosto a poucos centímetros de distância do seu, o calor da sua feminilidade
rompendo a barreira da água e me alcançando, deixando-me ainda mais
excitado, perdido de luxúria, o que só se intensifica quando meus olhos descem
para sua boca bem desenhada, naturalmente rosada, depois para o seu colo, onde
está a cicatriz.
É então que Evangeline cruza seus punhos sobre o peito, escondendo-a
de mim.
— Não se cubra. — murmuro.
Seguindo a um impulso impensado, contorno seus pulsos com minhas
mãos e os afasto do caminho. Inclino-me, levo meus lábios à cicatriz,
deslizando-os sobre a lista avermelhada, extasiado ao provar do calor da sua pele
aveludada, ao senti-la arfar sob meu toque, sua cabeça sendo lançada para trás ao
passo em que um gemido suave escapa da sua boca.
— Me responde, Evangeline. Conversar é o que você quer? — indago, o
tesão alcançado níveis quase descontrolados em meu íntimo.
— Não... eu quero você...
Não preciso de mais nada. Agraciado com o seu consentimento, dispo-
me de toda hesitação, de qualquer vestígio de sensatez e com um gesto rápido
elimino a pouca distância que ainda há entre nós, minha mão sequiosa por tocá-
la indo direto para o comprimento dos seus cabelos, atrás da cabeça, segurando-
os com firmeza, o outro braço contornando a cintura fina, minha boca se unindo
à sua em um beijo ávido, carregado de lascívia. No mesmo instante em que
minha língua toca a dela, dando início a um roçar delicioso, desprovido de pudor
ou de razão, sua pele nua, quente, macia, entra em contato direto com a minha,
os seios pequenos e firmes, dentro do sutiã delicado, pressionando meu peito, o
ventre liso roçando meu abdômen, a pélvis, ligeiramente pronunciada, protegida
pelo tecido fino da calcinha, apertando minha ereção, com uma ansiedade
gostosa, roubando os últimos vestígios de sanidade que me restavam.


CAPÍTULO IX



Enquanto suas mãos frágeis exploram timidamente os músculo das
minhas costas, demonstrando sua inexperiência com os assuntos carnais,
permito-me ser guiado pelo mais absurdo tesão, e deslizo a mão ao longo do seu
corpo, tocando cada centímetro de pele no percurso até sua bunda, espalmo-a
sob as nádegas firmes, redondas, e faço com que Evangeline tire os pés do chão
e abrace meus quadris com as pernas, seu sexo se encaixando sobre o meu,
esfregando-se nele com ansiedade, presenteando-me com o seu calor e o seu
pulsar, levando-me à loucura. Estamos muito perto um do outro, basta que eu
afaste sua calcinha para o lado e tire o pau de dentro da cueca para fazê-la minha
e embora cada célula do meu corpo me ordene a me enterrar nela até o talo,
quero prolongar o momento, senti-la por inteiro, beijar seu corpo todo, provar
tudo de si.
Então, uso a mão livre para desprender o fecho do sutiã e o tiro.
Interrompendo o beijo, afasto o rosto alguns centímetros para observar seus seios
delicados. São exatamente como imaginei: firmes, redondos, com os bicos
rosados, agora intumescidos.
— Lindos! — sussurro, quase com um rosnado.
Inebriado, curvo minha cabeça e cubro um deles com minha boca
faminta, lambendo e chupando o bico duro com sofreguidão, uma lascívia
descomedida tomando conta de mim. Tendo seus gemidos dengosos como uma
doce recompensa, levo a boca ao outro seio e o mamo gostoso. Ao mesmo
tempo, deslizo minha mão sobre seus glúteos e infiltro meus dedos em sua
calcinha, pelo fundo. Quase entro em combustão quando toco a vulva pequena,
peluda e minha pele mergulha na umidade quente, escorregadia.
— Porra... que delícia... — murmuro, ensandecido.
Com um gemido, Evangeline desce do meu colo e apoia apenas um pé no
fundo da piscina, deixando a outra perna pendurada em meu quadril e abre ainda
mais as pernas para mim, quando então levo a mão para a parte da frente do seu
corpo, afasto a calcinha frágil para o lado e enterro meus dedos na umidade
cremosa entre seus lábios vaginais. Massageio o clitóris minúsculo, ouvindo seus
gemidos mal contidos ressoando pelo terraço e em seguida deslizo o indicador
para o interior do seu canal estreito, enlouquecido com a forma como ela pulsa
em torno de mim, as paredes contraindo e relaxando repetidamente, como se me
mastigassem, enquanto movo o dedo em vai e vem dentro dela.
— Porra! É muito apertada. Vou me acabar de tanto comer essa
bocetinha. — sussurro, enlouquecido de tesão.
Sem deixar de foder sua vagina com o dedo, volto a segurá-la
firmemente pela nuca e encaro seu rosto lindo, observando sua pele enrubescida
de desejo, as pupilas dilatadas de excitação deixando o azul dos seus olhos ainda
mais escuros.
Sem desviar seus olhos dos meus, Evangeline enfia uma mão na minha
cueca, timidamente, e segura meu pau, masturbando-o devagar, tateando-o com
certa insegurança, como se o analisasse.
— Quero senti-lo todo dentro de mim. — Ela anuncia, a voz arrastada
por causa da respiração pesada e fico ainda mais duro, as bolas doendo de
vontade de gozar.
Incapaz de esperar por mais um segundo que seja, seguro-a por ambas as
nádegas e a ergo do chão, encaixo sua entrada lambuzada na cabeça do meu pau
e, com um golpe firme, entro nela, me enterrando até a raiz, quase morrendo do
mais insano prazer ao sentir suas paredes meladas me acolhendo, me apertando,
latejando em torno da minha solidez. Puxo os quadris e invisto contra ela
novamente, forte, bruto, profundo e incessante, seus gemidos ressoando
perigosamente mais altos, os seios pequenos balançando com as arremetidas, o
clitóris minúsculo roçando minha pélvis depilada, enrijecendo com o contato,
arrastando-me para a mais deliciosa loucura.
Seu olhar permanece o tempo todo preso ao meu, enquanto assisto
maravilhado o prazer estampado em sua fisionomia, as sobrancelhas arqueadas,
a boca linda aberta para puxar o ar.
Sem deixar de me mover dentro dela, seguro novamente em seus cabelos
crescidos e os puxo para trás, forçando-a a ergue o rosto e ataco a pele exposta
do seu pescoço com a boca, mordiscando, lambendo, sugando, deslizando a
ponta da minha língua em toda a extensão da cicatriz em seu peito, o sinal mais
evidente da sua doce fragilidade. Segurando seus cabelos, guio sua boca até a
minha e enfio minha língua entre os lábios delicados, naturalmente rosados,
fodendo-a com a mesma ferocidade com que fodo sua boceta, o que me deixa
prestes a gozar e, como se percebesse, Evangeline afasta sua boca da minha
alguns centímetros, para dizer:
— Não goza... dentro de mim... você está sem camisinha...
Caralho! Como fui esquecer do maldito preservativo? Devo estar mesmo
enferrujado para essas coisas, o que não é de estranhar, pois há muito tempo eu
não faço sexo, sequer sentia mais tesão, como se meu corpo estivesse morto, até
que conheci Evangeline, a responsável pela minha loucura e ao mesmo tempo
pela minha sanidade, por me fazer sentir vivo de novo.
— Não vou... — Prometo e volto a beijá-la na boca, com uma fome meio
descontrolada, descomedida.
Acelero os movimentos dos meus quadris, metendo nela ainda mais forte,
mais depressa, até que seu corpo todo inteiro enrijece e afasto o rosto para
observar seu semblante quando o gozo a arrebata, sem que ela feche os olhos
enquanto geme alto e convulsiona em meus braços, se contorcendo com meu pau
enterrado nela até o talo. Meus olhos capturam, inebriados, cada minúsculo gesto
seu, cada mínimo som que emite, até que a calmaria volte a tomá-la e ela
amolece toda de encontro a mim, saciada. Então, contra a minha vontade, eu me
retiro dela e seguro o pau melado e quente pelo meio, movo a pele com dois
movimentos bruscos da minha mão e, sem desviar os meus olhos do rosto dela,
esporro na água, abundantemente.
— Tomara que ninguém tome banho na piscina antes que seja feita uma
limpeza. — Evangeline diz e sorri.
Ela tem um sorriso sincero, meio angelical, quase infantil, que me deixa
maravilhado, encantado. Quase tudo nela é assim, feminino, frágil, gracioso.
— Acho que ninguém toma banho aqui mais.
Minhas palavras ajudam meu corpo a terminar de se libertar das as
emoções intensas e por um instante a realidade se apresenta diante de mim,
ameaçando me assolar, enquanto eu luto valentemente contra os pensamentos,
contra os fantasmas que começam a me rondar. Então, como se tivesse o poder
de enxergar através de mim, Evangeline pousa sua mão em minha face,
acariciando-a carinhosamente, acalentando-me mesmo sem saber da verdade.
— Por que você parece tão triste? — Ela indaga com um murmúrio, o
semblante angustiado, como se fosse capaz de sentir minha imensurável dor.
Descanso minha mão sobre a dela e com o outro braço a puxo para mim,
colando meu corpo ao seu, sentindo-a tão próxima, tão parte da minha alma,
mesmo que nos conheçamos há tão pouco tempo.
Como pode uma pessoa que acabou de entrar em minha vida parecer tão
íntima?
Quero dizer a ela toda a verdade, afinal ela merece saber porque está
aqui, aliás precisa, principalmente depois do que aconteceu entre nós, entretanto,
não consigo falar, não sei qual vai ser sua reação, provavelmente não será boa e
com toda razão. Não quero estragar esse momento tão bom, falarei depois, em
outra hora qualquer. Tudo o que quero agora é possuí-la de novo, saciar esse
desejo insano que um simples contato é capaz de reacender, sentir-me parte dela
como há muito não me sentia parte de alguém.
Negando uma resposta à sua pergunta, eu curvo minha cabeça e a beijo
na boca, a princípio devagar, movendo meus lábios com lentidão sobre os seus,
apenas saboreando seu gosto delicioso, incomparável, sem a influência do tesão
cego, descontrolado de antes. Então insiro minha língua entre eles, roçando-a na
sua, primeiro só com a ponta, provando seu gosto, depois em um delicioso duelo
que envia sensações lascivas para todo o meu corpo, me fazendo ficar
completamente duro de novo, mesmo que eu tenha acabado de gozar.
Evangeline passa os braços em torno do meu pescoço e cola seu corpo
completamente ao meu, o contato das nossas peles nuas me descontrolando de
novo, me fazendo arder e querer me enterrar nela com força, sentir a bocetinha
melada apertando meu pau, só que dessa vez preciso me forçar a ser paciente,
pois quero prová-la de todas as formas que um homem pode provar uma mulher.
— Você me deixa doido, menina. — falo, interrompendo o beijo,
enquanto ela desce a boca pelo meu queixo, lambendo e mordiscando.
— Eu não sou uma menina, sou uma mulher. — Ela diz, com a boca de
encontro à minha pele e a desce para o meu pescoço, plantando a sua trilha de
carícias.
— É uma menina para mim. Sou muito mais velho que você.
— Quantos anos você tem, quarenta?
— Trinta e cinco, quatorze a mais que você.
— A idade é só um número. Não tem importância alguma.
Ela desce a boca até o meu peito, morde minha pele como uma gata no
cio e passa a ponta da sua língua sobre meu mamilo, intensificando o tesão que
ferve dentro de mim.
Movido pela ganância que tenho pelo seu corpo, espalmo as duas mãos
sobre os seus seios e as movo em uma massagem suave, em seguida fecho os
dedos sobre os mamilos rosadas e os esfrego, quase indo à loucura com a forma
como ela geme e se contorce. Curvo-me e sugo um deles, com fome, com força,
ao mesmo tempo em que desço a mão pela sua pele e toco a boceta inchada,
deliciosamente melada, o clitóris enrijecido parecendo suplicar por uma
massagem e a faço, com a ponta dos dedos.
— Vem aqui. Quero te comer fora da água.
Ela solta um gritinho de susto e depois sorri alto, quando a ergo em meus
braços e a carrego para fora da piscina. É tão levinha que mal percebo o
acréscimo no peso quando deixamos a água. Ainda com ela no colo, vou até a
porta e a tranco, me dando conta do quanto me arrisquei a deixar que um dos
empregados entrasse aqui para tirar a mesa e nos visse trepando. Depois, uso o
pequeno controle remoto para aumentar a temperatura do aquecedor e impedir
que nossos corpos molhados sintam frio e, por fim, aproximo-nos de uma mesa
vazia e a sento sobre o tampo, suas costas indo para trás, seu corpo poiado nas
mãos. Tiro a calcinha que está enroscada, toda embolada, em torno dos seus
quadris e afasto-me alguns centímetros para observar sua completa nudez,
ficando embevecido com o quanto é linda. Dona de uma feminilidade pura,
delicada, tem a pele translúcida, homogênea; os seios são firmes, empinados; a
cintura é fina; o ventre achatado; os quadris perfeitamente redondos. Suas pernas
são longas e os pés pequenos e delicados. A vulva é coberta por uma rala camada
de pelos loiros, que imitam a forma de um triângulo.
— Você parece ter saído dos meus sonhos mais secretos. — sussurro,
maravilhado.
Evangeline também observa minuciosamente a minha nudez, a face
ligeiramente corada, os olhos atrevidos, um sorriso brincando em seus lábios.
— E você é tudo o que imaginei que seria, no dia em que nos
conhecemos.
Suas palavras me pegam de surpresa.
— Quer dizer que você estava lá toda tímida, mas no fundo me
imaginando pelado?
Ela enrubesce ainda mais, ao passo em que seu sorriso se amplia.
— Eu não posso negar. Desejei você no instante em que o vi pela
primeira vez.
— E eu a você. — Aproximo-me com a lentidão de um felino pronto
para atacar sua presa e me coloco entre as pernas dela, as mãos apoiadas na mesa
nas laterais do seu corpo — Você me fez sentir vivo de novo, Evangeline, como
há muito eu não me sentia.
Tirando as mãos da mesa, ela se senta reta, mais perto de mim, o rosto a
centímetros de distância do meu, o corpo quase roçando minha pele, traz as
mãos para o meu corpo e me acaricia devagar, hesitante, como se me explorasse,
como se fizesse uma nova descoberta, primeiro nas laterais dos meus quadris,
depois no abdômen, no tórax e por fim nos bíceps, enquanto observa cada
detalhe que explora quase com veneração. Quando segura meu pau, fechando as
duas mãos em torno dele, me rendo ao descontrole e seguro firme em sua nuca, a
fim de mantê-la no lugar enquanto ataco sua boca com a minha, em um beijo
faminto, sôfrego, carregado de tesão.
Sem separar minha boca da sua, apoio a mão na base de suas costas e vou
deitando-a devagar, colocando-me sobre ela, até que esteja espichada sobre o
tampo, então, deslizo minha boca para baixo, beijando, mordiscando, provando
sua pele macia, primeiro no queixo, depois no pescoço. Percorro a língua ao
longo da cicatriz em seu peito e fecho os lábios sobre o mamilo rosado, sugando-
o devagar, torturando-a com o ensejo de uma chupada mais forte, ao mesmo
tempo em que prendo o outro mamilo entre os dedos e o esfrego,
progressivamente mais forte, a medida que seus gemidos ficam mais altos.
Agindo como o faminto que sou, deslizo a boca sobre a pele delicada do
seu tórax e do abdômen até alcançar seu sexo peludo, quando então espalmo as
mãos no dorso dos seus pés e faço com que os apoie da borda da mesa, bem
afastados, as pernas abertas para mim, o clitóris rosado sobressaindo-se aos
pelos loiros acinzentados, em uma visão que levaria qualquer homem à perdição,
mas que é apenas minha.
Sequioso por experimentar o seu gosto, passo a língua bem em cima do
seu ponto sensível, sentindo-o inchar sob meu toque, enquanto Evangeline
arqueia as costas sobre a mesa e solta um gemido alto. Dou outra lambida no seu
botãozinho rosado, delicioso e não paro mais, passo a movê-la freneticamente,
ora em círculos, ora de cima para baixo, ao mesmo tempo em que introduzo um
dedo no seu canal lambuzado, metendo e tirando, fodendo-a gostoso.
Quanto mais alto ela geme, mais devagar eu a chupo, a fim de prologar
esse momento, de ter seu sabor em minha boca por mais tempo. Entretanto,
quando insiro mais um dedo, passando a fodê-la com os dois, ao mesmo tempo
em que a língua dança sobre o clitóris, Evangeline se perde em gozo, suas costas
arqueando mais alto, as mãos agarrando as bordas da mesa, dos dois lados do seu
corpo, meu nome sendo pronunciado em meio aos seus gemidos, até que ela se
aquieta e me entendo sobre seu corpo lânguido para cobrir sua boca com a minha
e dividir com ela o gosto da luxúria.
Quando volto a penetrá-la, o faço mais devagar, prolongando a sensação
de tê-la me apertando gostosamente, me recebendo bem fundo, enquanto
observo atentamente cada traço do seu rosto lindo e delicado modificando-se,
exprimindo o prazer que está sentindo ao me manter em pé entre as suas penas,
fodendo-a gostoso.
As horas que se seguem são as mais intensas dos últimos meses em
minha vida, momentos que há bem pouco tempo eu acreditava que jamais
voltaria a viver, emoções que pensei que jamais voltaria a sentir, principalmente
de maneira tão arrebatadora, forte, inesquecível. É madrugada quando por fim a
exaustão nos toma e Evangeline adormece, sobre um dos estofados, ainda
completamente nua, esgotada, saciada, o rosto tranquilo exprimindo a paz de
uma criança recém-nascida. Não podemos dormir aqui e correr o risco de sermos
flagrados, tampouco posso deixá-la sozinha, então a cubro com minha camisa,
visto minhas calças e a carrego nos braços até seu quarto. Ao acomodá-la na
cama, cubro-a com um lençol grosso, deixando-a aquecida e confortável e
encontro uma dificuldade absurda em ir embora, a sensação de que a estou
abandonado me assola, embora não faça o menor sentido, já que não somos duas
pessoas que estão perdidamente apaixonadas, a verdade é que mal nos
conhecemos.
Por fim, a deixo, tranquila e adormecida. Na solidão do meu quarto, a
realidade me atinge com a força de um meteoro caindo sobre a minha cabeça e
só então me dou conta da loucura que cometi. Eu não podia ter feito sexo com
Evangeline, por causa do laço inquebrável que nos liga. Isso foi um erro, um
grande absurdo, só que agora está feito, não há como voltar atrás, não há como
remediar.
Quando eu a trouxe para minha casa prometi a mim mesmo lutar contra
essa atração irrefreável que senti por ela desde o primeiro momento, mas não
consegui, fui fraco e acabei me entregando às emoções descontroladas. Que tipo
de homem essa atitude faz de mim? O que ela pensaria se soubesse a verdade?
Não consigo imaginá-la pensando outra coisa que não o pior, reagindo de outra
forma que não com repulsa e o arrependimento me arrebata. Não arrependimento
por ter estado intimamente com ela, o que aconteceu foi magnífico, realmente
indescritível, mas por ter permitido que acontecesse. Eu devia ter lutado mais,
suplantado cada emoção.
Caralho! Como pude ter sido tão fraco?
O importante agora é impedir que aconteça de novo, só que se eu
continuar a vendo todos os dias não conseguirei resistir, pois Evangeline tem o
poder de me fazer perder a cabeça. A única forma de suprimir minhas próprias
emoções será mantendo-me longe dela e como não posso mandá-la embora
preciso dar um jeito de sair de casa, nem que para isto precise voltar a frequentar
a empresa. É o que preciso fazer agora, voltar a assumir minha antiga rotina de
compromissos de trabalho, a qual me esgota e me ocupa a ponto de me manter
alheio a tudo mais à minha volta.
Embora seja domingo, telefono para minha secretária e ordeno que
comunique aos acionistas e demais funcionários minha decisão. Vou voltar a
trabalhar presencialmente e já começarei hoje.


CAPÍTULO X


Evangeline


Acordo me sentindo leve, tranquila, tomada por uma sensação de paz,
embora não me lembre do momento em que vim para o meu quarto. Na certa,
Victor me trouxe depois que adormeci em seus braços, ainda no terraço. Mal
posso acreditar que a noite de ontem realmente aconteceu. Estar com Victor foi
magnífico, ele conseguiu fazer com que eu me sentisse verdadeiramente uma
mulher pela primeira vez na vida. Não que eu nunca tenha estado intimamente
com um homem, estive com dois, mas com nenhum foi como com ele, nem se
compara.
Sem que um sorriso bobo se desfaça dos meus lábios, fecho os olhos e
relembro cada momento: a forma como ele me beijou inteira; como me penetrou
com força, a ponto de me deixar dolorida; como fica lindo, rendido, entregue,
sem aquela angústia constante na expressão dos seus olhos, quando está
gozando, arrebatado pelo prazer. Se existe uma definição para a felicidade, ela se
resume ao que estou sentindo agora, algo que quero experimentar muitas vezes
mais.
Lembrando-me de que hoje é domingo e estou de folga, decido ficar na
cama até mais tarde. Ao percorrer os olhos pelo quarto, a claridade do dia
penetrando a janela parece mais brilhante do que nunca, o sol lá fora jamais me
pareceu tão revigorante. Tento voltar a dormir, mas não consigo, uma ansiedade
boa, uma sede de vida me inquietando. Então, ignorando a dor entre minhas
pernas, levanto-me e observo o sol lá fora através da janela, como se
cumprimentasse a vida, antes de ir ao banheiro.
Depois de passar mais de uma hora falando no telefone com o meu pai e
meu meio-irmão, matando a saudade, visto um jeans colado e blusa de renda,
escovo os cabelos até que estejam brilhantes, deixando-os soltos, passo um
pouco de gloss labial e saio do quarto, ciente de que posso encontrar Victor pela
casa a qualquer momento e quero estar minimamente bonita para ele. Tomo o
café da manhã na cozinha, junto a cozinheira e Harriet, as duas únicas, entre os
empregados, que não foram para casa aproveitar o final de semana e em seguida
vou para a sala, onde me sento diante da televisão ligada, esperando, com uma
ansiedade absurda, que Victor deixe seu escritório — ou seu quarto, já que hoje é
domingo — a qualquer momento e venha falar comigo. Na minha cabeça
sonhadora, ele vai me convidar para sair, junto com as meninas, e nos levará a
algum lugar bonito, talvez ao shopping, a fim de aproveitarmos o dia de folga.
No entanto, as horas se passam e nada acontece, ele não dá o ar da sua graça,
nem mesmo se desloca do escritório até outro cômodo. Deve estar muito
ocupado, ou sequer se lembra de tudo o que vivemos ontem e embora eu não
seja ingênua a ponto de não compreender que os homens são assim mesmo, que
têm uma enorme capacidade de separar sexo de sentimentos, a constatação de
que ele já se esqueceu de tudo, de que o que aconteceu entre nós não foi nada
para ele, me deixa devastada.
Com a televisão ligada à minha frente, mas sem prestar atenção no
programa de entrevistas que é exibido, chego à conclusão de que estou agindo
como uma idiota ao ficar aqui plantada, mendigando pelo mínimo de atenção de
Victor, em pleno domingo, dia de folga, quando, na verdade, devia estar
procurando alguma coisa divertida para fazer, como ir às compras em algum
shopping e me munir de mais roupas de frio. Dinheiro no bolso eu tenho, Harriet
se incumbiu de fazer o meu primeiro pagamento semanal ontem. Não faz o
menor sentido ficar aqui parada. O que aconteceu entre mim e meu chefe foi só
uma transa de ocasião, nada de importante, como eu já sabia que seria. Pelo
menos para ele não foi importante.
Então, decidida a deixar de ser estúpida, colocar uma roupa bonita e sair,
subo de volta para o segundo andar. Ao passar diante da porta do quarto de Luci,
me ocorre que apesar de já ser quase meio-dia, ainda não a vi hoje e colo o
ouvido na porta a fim de checar se está em casa, decidindo bater após ouvir o
barulho da televisão ligada.
— Entra. — É Samantha quem grita, do lado de dentro.
Ao entrar, encontro as duas em completo estado de ociosidade, Luci,
ainda de pijama, com os cabelos dourados transformados em uma farofa, sentada
no meio da cama, diante da televisão que exibe um desenho animado, cercada de
sucrilhos e embalagens vazias de achocolato, enquanto Samantha está espichada
no sofá, manuseando o celular.
— O que vocês vão fazer de interessante hoje, meninas? — pergunto,
animada, sentando-me ao lado da pequenina, que pula em meu colo, sua
proximidade me agradando.
— Eu quero ir no zoológico de novo. — diz ela.
— Eu estava pensando de a gente fazer alguma coisa por aqui mesmo. O
que acham?
— Eu pensei que hoje fosse sua folga. — Samantha tira o rosto do
celular pela primeira vez desde que entrei.
— E é. Mas estou sem nada para fazer. Não conheço mais ninguém na
cidade além de vocês.
— E vai nos aturar na sua folga?
— Ai meu Deus! Vou ter que aturar vocês todo dia, que destino cruel! —
Faço uma careta para dar ênfase à minha encenação e Luci solta uma gargalhada.
Samantha se levanta e coloca os fones nos ouvidos da irmã, para que ela
não nos ouça.
— Nesse caso, preciso que você me faça um grandíssimo favor. — É
incrível como ela se parece com o pai, inclusive na forma como a expressão do
seu rosto muda rapidamente, desta vez de severa para suplicante.
— Se estiver ao meu alcance.
Ela segura-me pela mão e me puxa, me fazendo sentar no sofá ao seu
lado. Antes de começar a falar lança um olhar para Luci, checando se os fones
ainda estão lá.
— Jacob e eu queremos nos encontrar, mas meu pai me mataria antes de
me deixar sair com ele e não posso nem inventar que vou na casa de alguma
amiga, pois ele sabe que eu não sairia sem Luci. Então preciso que você me
acoberte. Que saia conosco para algum lugar onde eu e ele possamos nos falar.
— Não posso fazer isso. Seu pai me demitiria e agora que comecei a
pagar as dívidas de hospital que tenho no Texas.
— Ele nem vai saber. Meu pai vive no mundo da lua, nem vai desconfiar.
— E por falar em mundo da lua, o que você tinha na cabeça ontem
quando me mandou te esperar para nadarmos na piscina e em vez de vir disse ao
seu pai que eu queria falar com ele?
— Ele foi te encontrar? — Ela pergunta, um sorriso travesso brincando
em seus lábios.
Ao relembrar o resultado da mentira dela, minha face queima de
vergonha.
— Ai meu Deus! Você está vermelha. Isso significa que... — O sorriso
dela se desfaz, seus olhos azuis se arregalando — Caralho! Você transou com
meu pai? Não, não responde, não quero saber nada sobre isso. É nojento! — E
leva a mão ao peito, em uma exagerada encenação de que está passando mal.
— Não fala palavrão na frente de Luci.
— Ela não pode ouvir. Está com os fones. — Lança mais um olhar à
irmã, que está com uma carranca porque não pode tirar os fones e volta a me
encarar — E então, vai me ajudar, ou não?
Abro a boca para dizer que não, quando de súbito me ocorre que posso
usar minha ajuda para arrancar dela a verdade sobre a tragédia à qual se referiu
recentemente, que certamente esclarece o motivo pelo qual Victor está sempre
triste, melancólico. Já tentei arrancar essa informação de Kenzie, mas Harriet
parece sentir o cheiro de fofoca de longe e sempre nos interrompe antes que ela
tenha tempo de falar e quanto mais as pessoas escondem o que aconteceu de tão
terrível entre as paredes dessa casa, mais curiosa para saber eu fico.
— Te ajudo com uma condição. — Ela cruza os braços diante do peito e
me encara com desafio, parecendo mais adulta que muitas mulheres de vinte
anos, incentivando-me a continuar — Ontem à noite você falou sobre uma
tragédia que houve nessa casa. Quero saber o que foi. Me conte e te ajudo com
Jacob.
Chego perto de me arrepender por ter tocado no assunto quando a
fisionomia dela se contrai, revelando imensa dor, suas sobrancelhas se unindo
em um gesto de seriedade. Lança um novo olhar para Luci, antes de falar.
— Por que você quer saber sobre isso?
— Eu não sei. Seu pai parece tão triste o tempo todo. Fico louca sem
saber o que houve. Por isso achei que sua mãe tinha morrido.
— Ele não derrubaria uma lágrima se minha mãe morresse. — Estreito
os olhos curiosa e ela continua — Eles nunca se amaram, viviam em pé de
guerra.
— Eu sinto muito por isso.
Ele suspira pesadamente, então declara.
— Não podemos falar sobre o que houve na frente de Luci, ela não sabe
de nada. Vamos conversar lá fora.
Samantha liberta a irmã dos fones de ouvido, liga novamente a televisão
e explica a ela que vamos até o meu quarto, mas já voltamos para nos
arrumarmos e irmos passear na cidade. Então, deixamos o quarto. Do lado de
fora, ela me conduz até a última porta do corredor, um aposento no qual nunca
entrei, nem mesmo quando fazia minha excussão pela casa assim que cheguei.
Abre-a e me convida a segui-la para o lado de dentro. Trata-se de mais um
quarto grande e luxuoso. Este tem paredes acústicas e está decorado de forma
chamativa, com lençóis de algodão estampados cobrindo a grande cama de casal,
pôsteres de bandas de rock enfeitando as paredes e cortinas coloridas nas janelas.
Uma das paredes é toda coberta por uma vitrine, dentro da qual há várias
guitarras, de diferentes marcas e modelos.
— De quem é esse quarto? — pergunto, um nó se formando em minha
garganta pela antecipação do que ela vai revelar.
Samantha senta-se na beirada cama. Movendo-se mecanicamente, como
se tivesse mergulhado em uma espécie de torpor, ela segura um dos travesseiros,
toca o nariz nele para absorver o seu cheiro e então o abraça, seus olhos azuis se
enchendo de lágrimas, a mais dolorosa angústia refletindo-se em seu semblante,
de forma tão dolorosa que começo a me arrepender por ter perguntado.
— Era do meu irmão, mas ele morreu.
Suas palavras me deixam chocada, impactada. Como assim ela tinha um
irmão e ninguém nunca me falou sobre isso? Como ninguém mencionou
tamanha perda em uma família?
— Eu sinto muito. Não devia ter feito você falar sobre isso.
— Não tem problema. Não sou como meu pai que não consegue superar.
Só não mencione o assunto na frente de Luci, ela ainda acredita que ele está na
Califórnia, morando com nossa mãe.
— Ah, minha nossa, então faz pouco tempo?

— Sim, oito meses e sim, é por isso que meu pai se comporta como se
tivesse morrido também. Khalil era tudo para ele. Como o único filho homem e
também o mais velho, assumiria a presidência da empresa quando ele se
aposentasse, como vem sendo ao longo dos anos em nossa família. Agora só
resta a ele as estúpidas filhas mulheres, que por usarem saias ele acha que não
podem assumir os negócios e por isso nos despreza como se fôssemos portadoras
de alguma doença grave e altamente contagiosa. — Sua voz treme ao proferir as
últimas palavra e me apresso em sentar-me ao seu lado, meus braços acolhendo
seu corpo em um abraço.
— Não diga isso. Vocês não são estúpidas e podem perfeitamente dar
conta de assumir uma empresa. Estúpido é quem duvida disso. — Engulo em
seco, tudo fazendo sentido em minha cabeça, a dor sempre presente no rosto de
Victor de repente ganhando um significado — Como ele morreu?
Samantha respira fundo, passa as mãos no rosto e fala.
— Foi um acidente de carro. Christian Patel, irmão de Jacob e ex-amante
da minha mãe é o pai biológico de Luci. Eles pensam que eu não sei disso, mas
escutei algumas conversas atrás da parede. No verão do ano passado, estávamos
saindo da escola, Khalil, Luci e eu, quando Christian apareceu lá furioso,
aparentemente por ter acabado de ficar sabendo a verdade. Disse que levaria
Luci para viver com ele, porque era o pai e que ninguém poderia impedi-lo.
Então a pegou, colocando-a à força em seu carro e a levou, sem que ninguém
dissesse um ai, nem chamaram a polícia. Então Khalil perdeu o controle, entrou
no carro dele e foi atrás. — Lágrimas abundantes escorrem dos seus olhos,
concomitantes a um soluço e meu coração se espreme no peito — Eu tentei
entrar no carro e ir junto, mas ele não me esperou, se eu tivesse insistido um
pouco mais, talvez teria evitado tudo isso.
A aperto mais forte em meus braços, pesarosa.
— Não teria, ninguém pode mudar o destino de outra pessoa, não foi sua
culpa, você não podia ter feito nada.
Ela respira fundo mais uma vez, passando as mãos no rosto para afastar
as lágrimas.
— O carro dele saiu da estrada perto da propriedade dos Patel e acabou
batendo em uma árvore. — Outro soluço lhe escapa, afligindo meu coração.
Quero mandar que ela pare de falar, mas sinto que vai lhe fazer bem colocar a
dor para fora. Ao meu ver, Samantha está sendo muito forte, por cuidar de Luci e
da casa, enquanto Victor se afunda na dor, isolado em seu escritório subterrâneo,
quando deveria estar cuidando das duas — Meu pai estava em Washington, a
negócios, minha mãe estava na casa de Christian, certamente veio para contar a
verdade a ele, sobre Luci. O próprio Christian tirou Khalil do carro e o levou
para o hospital, mas era tarde.
— Oh, meu Deus. Eu sinto tanto. Deve ter sido horrível para todos vocês.
— Essa é a razão pela qual meu pai odeia aquela família. Isso não tem
nada a ver com o adultério cometido pela minha mãe.
Do fundo do meu âmago, emerge uma revolta absurda dessa mãe, não
apenas por não estar aqui, perto das filhas, mesmo que separada do marido,
morando em outa casa, mas perto o bastante para dar o afeto e o apoio de que
elas tanto precisam e merecem, mas também pelo que ela fez, traindo o marido,
dando uma filha a outro homem e o que é pior: revelando essa verdade a esse
homem em um momento em que Victor não estava em casa para defender a
menina, para protegê-la e, quem sabe, ter evitado toda essa tragédia. Se há
alguém culpado nessa história toda, esse alguém é essa mulher.
— E agora você está se apaixonando pelo Jacob. — Penso, em voz alta, e
meu corpo inteiro estremece ao constatar a gravidade da situação, o que esse
namoro, que até há pouco me parecia bobo, pode representar para o pai dela.
— Eu não escolhi isso, Evangeline, eu juro. Simplesmente aconteceu. —
Ela diz e solta outro soluço.
— Shhh, não fica assim, eu acredito em você e vou te ajudar a encontrá-
lo sempre que quiser. — Minha nossa! O que estou dizendo? O sentimento entre
ela e esse menino deve ser muito forte e verdadeiro, para que ambos se perdoem
e fiquem juntos, porém pode facilmente também se tornar o estopim para outra
tragédia.
Não quero nem pensar nisso.
— Obrigada por isso e obrigada por me ouvir. Esses últimos meses não
têm sido fáceis para a nossa família. — Ela deita a cabeça em meu peito e a
embalo com a um bebê.
— Sua família tem muita sorte por ter você, uma pessoa tão forte.
— Até eu desmorono às vezes, só não o faço na frente de Luci. E é por
ela precisar de mim, que não me entrego como meu pai se entregou.
Na minha vida, nunca admirei uma pessoa com a grandeza com que
estou admirando essa menina agora.
Permanecemos em silêncio por um longo momento, durante o qual ela
chora em meus braços. Quando por fim se recompõe, rumamos para fora do
quarto. Estamos passando pela porta, ela na frente, eu atrás, quando de súbito me
bate um estalo, algo que não entendo, que me faz parar, me virar e olhar na
direção das guitarras. Nunca fui chegada a instrumentos musicais, até porque
nunca tive a chance de ver um de perto, entretanto, nesse momento sinto um
desejo absurdo, quase descontrolado, de tirar uma das guitarras da vitrine e tocar,
uma delas em especial, a mais antiga, toda preta com o desenho de um raio em
dourado.
— O que foi, Evangeline? — Samantha pergunta.
— Heim? Nada, só que... — Não entendo e nem sem sei como explicar o
que sinto agora — Não é nada, vamos. — Me forço a desprender os olhos da
guitarra e seguimos nosso caminho.
Pouco mais de uma hora depois, Samantha, Luci e eu estamos
acomodadas a uma mesa, em um movimentado restaurante no shopping,
examinando o cardápio, indecisas sobre o que comeremos no almoço, quando
Jacob se aproxima, todo tímido, desconcertado, cumprimentando-nos com
polidez. Quase fico emocionada ao perceber a intensidade do olhar que
Samantha e ele trocam, como se realmente estivessem apaixonados, embora
sejam jovens demais para entender ao certo o que é esse sentimento tão
grandioso.
Mesmo ciente de que a presença dele entre nós pode custar meu
emprego, se flagrada por Victor, convido-o a sentar-se à mesa e fazemos a
refeição todos juntos, conversando na maior animação, como pessoas felizes e
despreocupadas, que podem amar livremente, sem que os erros dos pais
condenem esse amor.
Nunca em minha vida me senti tão entusiasmada ao ver a felicidade
estampada no rosto de outra pessoa como me sinto ao contemplar a felicidade de
Samantha, pelo simples fato de estar ao lado de Jacob, conversando
despreocupadamente com ele, ignorando toda a tragédia que os separa. Embora
eles dois sejam ainda muito jovens para compreender o amor, acredito que
estejam verdadeiramente apaixonados.
Quando terminamos a refeição, ambos avisam que vão assistir um filme
no cinema, enquanto Luci e eu vagamos pelas lojas de roupas, fazendo uma
pequena extravagância com o meu primeiro pagamento.
Já está escuro quando chegamos de volta à mansão, a qual olhando agora,
depois do dia animado que tivemos, se parece com uma prisão, cheia de dor e de
mágoas. Ao entramos, fico na expectativa de me deparar com Victor durante o
percurso da porta até meu quarto, onde deixo as sacolas com as compras e
depois rumo para a cozinha, o tempo todo tomada pela expectativa de encontrá-
lo, de rever sua face bonita, encarar seus olhos lindamente azuis, embora
repletos de tristeza, de ouvir novamente sua voz grossa pronunciando o meu
nome. Só que não acontece, não o vejo em parte alguma. Mesmo mais tarde,
quando as meninas me convidam a me reunir a elas na sala de refeições, para o
jantar, ele não aparece. Deve ter saído de casa, mas não tenho coragem de
perguntar, já basta o quanto estou me sentindo ridícula por passar o dia inteiro
rastejando pelo mínimo de atenção dele, sem jamais receber.
Ainda estamos à mesa de jantar, as meninas e eu, ao final da refeição,
quando Samantha parece perceber meu estado de espírito e informa:
— Meu pai voltou a trabalhar na empresa hoje, depois de meses sem ir
lá. Não é ótimo?
— Em pleno domingo? — Deixo escapar o pensamento em voz alta,
apenas para me arrepender em seguida.
Como se fosse muito mais velha, Samantha me olha com compaixão e eu
só queria encontrar um buraco onde me enterrar. É humilhante que eu tenha feito
sexo com um homem em uma noite e no dia seguinte ele tenha dado um jeito de
sair de casa, mesmo depois de meses sem o fazer e ainda sendo domingo. Até
uma adolescente de quinze anos percebe isso.


CAPÍTULO XI


Após colocar Luci na cama e contar-lhe uma história infantil, vou para o
meu quarto, visto um pijama e deito-me, mas não consigo dormir, as lembranças
da noite passada, povoando minha mente, o fato de Victor não ter aparecido para
falar comigo, uma vez sequer, durante todo o dia, ou sequer enviado uma
mensagem, depois do que vivemos nos braços um do outro, me atormentando.
Eu queria que tivesse sido apenas uma transa sem importância para mim
também, como obviamente foi para ele, pois assim eu não estaria tão vulnerável,
entretanto, para mim foi muito mais que isso, foi intenso, apaixonante, me fez
me apegar sem planejar, embora eu saiba que preciso evitar esse sentimento,
afinal desde o início ele deixou claro que não haveria espaço para sequer uma
amizade entre nós, estou sendo tola ao me importar.
Ainda assim, mesmo que tenha sido apenas sexo sem relevância, eu
queria vê-lo, falar com ele, matar a saudade. Cogito enviar uma mensagem para
o seu celular, mas não quero parecer pegajosa. Depois considero ir até seu
escritório, checar se está tudo bem, porém o mesmo motivo me faz desistir.
Por volta das onze horas, ainda estou de olhos estatelados no teto, sem
conseguir adormecer, quando uma discreta movimentação parte de diante da
casa e levanto-me para observar pela janela. Não posso enxergar tudo de onde
estou, porém vejo os faróis de um carro chegando e não tenho dúvidas de que é
Victor. Meu corpo reage a essa informação como se eu fosse uma adolescente
que namora pela primeira vez, meu coração disparando no peito, as mãos
ficando geladas.
Preciso dar um jeito de vê-lo, nem que para isso tenha que fingir que
estou indo até a cozinha comer alguma coisa, só para encontrá-lo pelo caminho.
Então, passo uma escova rápida nos cabelos, jogo um hoby de cetim, que
comprei hoje no shopping, por cima do pijama e desço as escadas como quem
não quer nada. Avanço pela sala no exato instante em que a porta está sendo
aberta e fico paralisada no lugar, ao ver meu chefe entrando ao lado de Michelle,
sua advogada, ambos falando muito, as vozes animadas.
Nesse momento me sinto o mais estúpido dos seres humanos, por passar
o dia inteiro pensando em um homem que esteve todas essas horas ao lado de
outra mulher, que sequer me mandou uma mísera mensagem depois de passar
uma noite tórrida comigo, que voltou a frequentar seu escritório com uma pressa
admirável, como se o fizesse com o intuito de me evitar, embora agora eu me
sinta tão insignificante que sequer acredito que ele se daria o trabalho de sair de
casa por minha causa.
Tão logo me veem parada na escada, ambos se calam e me observam,
Victor fixando o olhar frio, desprovido de qualquer emoção, em meu rosto, a
mulher deslocando suas vistas entre nós dois, como se percebesse algo.
Tentando resgatar o mínimo de dignidade que ainda me resta, ajeito
minha postura e desço os dois lances de escada restantes.
— Me desculpem, eu não queria interrompê-los. Só estou indo até a
cozinha comer alguma coisa. Com licença.
Forçando-me a não olhar mais no rosto de Victor, tento passar direto,
quando a voz, irritantemente aguda, da mulher me detém.
— Já que está de pé, poderia nos trazer um café, querida? A noite de
trabalho vai ser longa ainda.
Talvez pela mágoa que insiste em permanecer dentro de mim, sem que eu
saiba o que fazer para evitá-la, tenho a impressão de que a elegante mulher está
me provocando deliberadamente, tentando me inferiorizar diante de Victor.
— Claro. Só um minuto. — E me viro rumo à cozinha.
— Espera. — A voz grossa de Victor me faz virar de volta, o coração
saltando no peito com a esperança de que ele vai me defender, vai dizer que sou
muito mais que uma empregada, que sou sua amante, ou namorada, portanto
essa lambisgóia não tem o direito de me dar ordens, entretanto, não é o que sai
de sua boca — Evangeline não trabalha na cozinha, apenas cuida das garotas.
Pode não saber fazer o café.
Michelle sorri, com desdém, o que só serve para atiçar ainda mais a
irritação dentro de mim.
— Eu seria uma idiota se não soubesse preparar um simples café —
disparo, furiosa, esforçando-me para me conter — Volto em um minuto.
Dou-lhe as costas e parto depressa para a cozinha, pisando firme.
No cômodo amplo, repleto de utilidades domésticas, estranhamente
silencioso sem a presença dos outros empregados, eu me sinto uma verdadeira
idiota sem noção ao preparar o café para a amante do homem a quem me
entreguei, de corpo e alma, na noite anterior. Uma sensação de angústia, que não
devia estar aqui, insiste em me afligir, marejando meus olhos de lágrimas. No
entanto, me recuso a chorar. O que está acontecendo não é nada demais, nada
que qualquer mulher já não tenha vivido. Meu chefe queria sexo, eu também,
saciamos um ao outro e pronto, assunto encerrado. Ele não tem nenhuma
obrigação de me dar atenção depois disso, embora eu quisesse muito. Tudo o que
preciso fazer agora é deixar de ser tola a ponto de esperar que ele tenha sentido o
mesmo que eu e assumir tudo como uma grande lição de vida, com a qual tenho
que no mínimo aprender a não ser mais uma garota tão fácil, a não me deixar
convencer de que estou sendo correspondida só porque foi mais intenso para
mim.
Com a café pronto, organizo tudo em uma bandeja e a levo para a sala.
Um nó se forma em minha garganta quando vejo a forma íntima como os dois se
comportam, sentados muito juntos no sofá, quase se tocando, enquanto Michelle
percorre o dedo sobre uma linha do documento que ele lê concentradamente.
— Aqui está. Espero que tenha ficado a gosto. — Deposito a bandeja
sobre a mesinha de centro e me preparo para sair depressa daqui.
— Pode me servir, querida? — a maldita diz, sem sequer se dar o
trabalho de levantar os olhos do documento para olhar em meu rosto e não tenho
a mínima dúvida de que está tentando me fazer sentir humilhada, na certa por
perceber alguma coisa que a deixou entender o que aconteceu entre mim e Victor
ontem, ou talvez ele próprio tenha contado.
Nunca mais na minha vida voltarei a me aventurar com um homem que
não esteja ao meu alcance, seja por qual diferença for.
— Claro.
Com um esforço inumano para controlar a raiva, encho a xícara com o
líquido fumegante e inclino-me para entregar a ela. Nesse instante, Victor ergue
os olhos e os crava nos meus, com uma intensidade que me faz estremecer.
Apesar de camuflada por um brilho de preocupação, a angústia de sempre, da
qual agora eu conheço o motivo, está refletida no profundo azul dos seus olhos,
de um jeito doloroso, que me faz desejar afaga-lo e percebo o quanto ele ainda
me atrai, irremediavelmente, porém, preciso entender que esse sentimento não é
recíproco e parar de demonstrá-lo, para não me magoar de novo.
— Obrigada. — A mulher diz, recebendo a xícara, seus dedos
delicadíssimos roçando os meus.
— De nada. Com licença.
Fugindo do olhar que me fuzila, dou meia volta e subo as escadas quase
correndo. Levo um susto ao me deparar com Samantha encolhida em um canto
escuro no topo da escadaria.
— Que susto! O que você faz aqui? — indago, com um sussurro.
— Eu ouvi a movimentação do carro chegando e vim ver quem era. —
Ela também sussurra — Por que você não deixa de ser tonta e volta lá para
buscar o seu homem?
Às vezes acho que essa menina não tem apenas quinze anos.
— Não sei do que você está falando. Eu não tenho nada com o seu pai.
— Só porque você não quer. Está deixando aquela vadia tomar
vantagem.
— Olha essa boca, Samantha. Não existe nada entre mim e ele. Agora
vamos dormir, está ficando tarde.
Entro em meu quarto desalentada, o coração sufocado no peito e tranco a
porta por dentro, como se um simples pedaço de madeira fosse capaz de me
proteger do que aconteceu lá fora, da sensação de humilhação que está
entranhada em mim, a qual não é nada se comparada à essa certeza pungente de
que o que houve entre mim e Victor ontem, não significou nada para ele.
Tiro o hobby, deito-me na cama e tento não chorar, afinal isso seria
tolice, tenho problemas muito maiores em minha vida que uma paixonite boba
não correspondida, logo todo esse turbilhão vai passar e, mesmo que não passe,
dentro em breve voltarei para casa e tudo será esquecido.
Sem que a voz da razão vença o duelo dentro mim, as lágrimas caem,
indesejadas, carregadas de mágoa, me impedindo de adormecer.
Estou dormindo há menos de duas horas quando o despertador começa a
tocar, incessante e irritantemente, anunciando que é hora de levar as meninas à
escola. Uma nova semana começa hoje, a segunda semana no meu novo trabalho
e já estou estressada, embora isso nada tenha a ver com o trabalho em si. Cuidar
das meninas é a parte mais fácil do processo.
Levanto-me a contra gosto, a cabeça dolorida por causa das lágrimas
derramadas, o corpo cansado sem motivo. Após a higiene matinal, visto jeans e
um moletom folgado e confortável, afinal não tenho mesmo nenhuma
necessidade de me vestir bem, já que não há ninguém para me admirar, pelo
menos posso optar pelo conforto. Prendo os cabelos em um rabo de cavalo
malfeito e deixo o quarto. Assim que dou dois passos no corredor, a porta do
quarto de Victor se abre e ele sai, bem à minha frente, sem que eu tenha onde me
esconder, ou para onde olhar que não em sua direção. Ele está lindo como uma
miragem, usando um terno grafite feito sob medida, e um sobretudo preto por
cima, tem os cabelos arrepiados como sempre, carrega uma valise de couro e um
cheiro quase afrodisíaco de loção pós barba parte dele. Fico tensa esperando que
Michelle saia do quarto dele, mas não acontece. Na certa transaram no escritório
da empresa, depois no daqui e então ela foi embora saciada.
— Bom dia. — Ele diz, com polidez, o timbre da voz meio enrouquecida
pelo sono, parecendo sensual como o inferno.
Me encara com aquela intensidade absurda nos olhos azuis, como se
quisesse me devorar e um arrepio percorre meu corpo.
Puta merda! Por que me olha assim se não quer nada comigo?
— Bom dia. — Respondo, me forçando a manter a mesma seriedade.
Enquanto eu estiver no Alasca, não voltarei a tratá-lo como se
pudéssemos ser amigos, ou algo mais, nunca mais deixarei transparecer o que
sinto por ele, pois nunca mais quero me sentir o lixo que me senti ontem. Se ele
quer distância, é isso que vai ter de mim. Vou agir da forma como devia ter feito
desde que cheguei aqui.
— Sobre ontem à noite, eu quero me desculpar por Michelle. Foi um dia
cansativo de trabalho para nós dois. Acho que ela estava esgotada.
— Não precisa se desculpar e tampouco se explicar. Sou empregada na
sua casa, ela não cometeu nenhum equívoco ao me pedir o café.
Ele parece ficar supresso com minhas palavras e me sinto ainda mais
magoada.
Abre a boca para dizer algo, parece voltar atrás e então emenda.
— Você sabe que não é só uma empregada aqui. Minhas filhas adoram
você.
Ele fala como se a noite de ontem não tivesse existido. Puta merda!
— É recíproco. — murmuro, magoada com sua indiferença. — Pena que
seja só elas.
— Não é só elas. — Ele se aproxima um passo, se colocando tão perto de
mim que posso sentir seu calor. Ergue a mão para tocar o meu rosto e então a
recolhe, como se mudasse de ideia.
A angústia costumeira se torna visível no azul do seu olhar e sou tomada
por um impulso quase descontrolado de acariciar sua face e lhe garantir que um
dia essa dor vai passar, que ele ainda é jovem e pode ter outros filhos homens
para assumir sua empresa e mesmo que não aconteça, Samantha é perfeitamente
capaz de fazê-lo, pois é uma menina maravilhosa.
No entanto, não é de mim que ele quer ouvir certas coisas, e sim de
Michelle.
— Com licença. Preciso levá-las para a escola.
Então, o deixo plantando no meio do corredor e entro no quarto de Luci.
Hoje é o dia mais quente aqui desde que cheguei. Deve estar fazendo uns
dez gruas e a paisagem ao longo da estrada até a cidade se torna ainda mais
bonita sob os raios claros do sol. Após deixar as meninas na escola não me sinto
encorajada a voltar para entre as paredes frias da mansão, onde costumo me
sentir sozinha e ociosa quando elas não estão, então decido dar uma volta pela
cidade, conhecê-la melhor. Antes de mais nada, paro em um café, há poucas
quadras de distância, para fazer a primeira refeição do dia, já que nunca tenho
tempo de comer antes de sair. Enfrento a pequena fila do caixa, e quando me
aproximo do balcão de pedidos alguém toca em meu ombro.
— Olá moça do Texas. — diz o homem às minhas costas.
Quando me viro descubro que é Joseph Patel, irmão do maior inimigo do
meu chefe e um dos médicos mais atenciosos que já conheci.
— Olá doutor. O que faz aqui?
— Tomando o meu café da manhã, como você. — Ele lança um olhar
para a bandeja contendo pão fresco e café com leite em sua mão — Está a fim de
sentar comigo?
— Claro. — Pego meu café e nos acomodamos a uma das mesas, diante
um do outro, minha mente sendo invadida por um turbilhão de suposições sobre
as palavras que Victor usaria para me demitir se nos flagrasse juntos.
Mas que se foda meu chefe. Ele foi claro ao afirmar que não queria
ninguém da família Patel família em sua propriedade, não mencionou nada sobre
eu encontrar um deles em outro lugar. Além do mais, ele não é meu dono, não é
nada para mim que não um contratante com quem passei uma noite. Não tem
qualquer direito de opinar sobre com quem tomo o meu café da manhã.
— Como Luci está?
— Melhor. Nem febre teve mais.
— Ela é uma menina forte por se recuperar tão depressa. As gripes são
muito comuns por aqui e costumam durar semanas.
De súbito me dou conta de que ele é tio biológico de Luci e me pergunto
se conhece essa verdade. Tento não tocar no assunto, que deve ser delicado para
todos, mas minha curiosidade é maior que o bom senso.
— Samantha me contou sobre seu irmão e a mãe dela. — falo.
Uma ruga surge na testa de Joseph enquanto ele morde uma generosa
fatia de pão.
— Foi muito triste o que o caso deles causou aos outros.
— Principalmente para a família Boseman, pela perda de Khalil.
— Foi realmente terrível a morte dele, mas minha família também sofre
com toda essa história. Christian era apaixonado por Olivia, aliás acho que ainda
é. Ele não tem o direito sequer de ver a filha e todos nós somos privados de
convivermos com ela.
— Ele não luta pela guarda de Luci?
Joseph respira fundo, pesarosamente, antes de responder.
— Não. Depois do que aconteceu com Khalil, ele se sentiu tão culpado
que desistiu da menina. Acho que abriu mão da filha para evitar causar ainda
mais sofrimento à família Boseman.
No final das contas, todos foram abalados pelo caso extraconjugal de
Christian e Olivia.
— Isso tudo é tão triste.
— É sim, mas vamos esquecer esse assunto e falar de coisas boas. Te
encontrar aqui foi pura coincidência, mas eu estava mesmo tentando falar com
você. Preciso da sua ajuda para uma coisa importante.
— Se estiver ao meu alcance.
— Minha família é precursora da maior reserva marítima do Alaska, um
paraíso onde vária espécies de peixes são poupadas da extinção causada pela
indústria pesqueira, muito ativa por aqui. É uma reserva protegida pelo governo,
cuja responsabilidade vem passando por uma geração após a outra, de modo que
Christian é o responsável por ela atualmente. Recentemente Victor conseguiu
autorização do governo para explorá-la, por vingança, porque culpa Christian
pela morte do filho. Se os navios dele forem levados para lá, não restará nada. O
trabalho de décadas da minha família vai ser invalidado, espécies inteiras serão
eliminadas da existência.
— Que coisa horrível. Só não sei o que posso fazer para ajudar.
— Você pode entrar no escritório de Victor e destruir a documentação
que o autoriza a cometer essa atrocidade, ou conseguir algo contra ele que
possamos usar para impedi-lo. Já cogitamos pedir ajuda à Samantha, mas apesar
de ela ser uma menina muito forte, ainda está abalada demais com a morte de
Khalil. Não podemos dizer a ela o que o pai pretende fazer, isso só a faria sofrer
ainda mais.
Processo suas palavras e fico quase emocionada ao constatar que, apesar
de Victor negar a filha a Christian e ainda por cima estar tentando destruí-lo,
todos eles ainda se preocupem com o bem-estar de Samantha. Meu chefe
realmente parece ser o vilão de toda essa história.
— Eu realmente gostaria de ajudar, mas Victor não trabalha mais só em
casa, está indo à sede da empresa de novo. Além do mais, essa documentação
deve ter cópias guardadas com a advogada dele. Não ia adiantar destruir nada. O
que posso fazer é conversar com ele e tentar convencê-lo a mudar de ideia.
— Nada do que você disser pode fazer aquele homem mudar e ideia. Ele
sempre foi cruel e insensível. As tragédias só pioraram isso nele.
Nem sei o que responder. De alguma forma que não compreendo, meu
chefe consegue me afetar de uma forma que jamais outro homem conseguiu, no
entanto, Joseph está certo, ele é cruel e insensível, o lado errado em toda essa
história, a tempestade tentando destruir a bonança.
— Não há meio legais de impedir que ele destrua a reserva? Isso parece
tão errado.
— Já tentamos de tudo, inclusive abaixo assinado para o governo, porém
Victor é muito poderoso e influente. Nada pode desfazer a permissão dada a ele
pelo governo de explorar o lugar.
— Eu não sabia que ele é tão monstruoso.
Decepção é o sentimento que me toma agora.
— O que você vai fazer agora? — Joseph pergunta.
— Não tenho nada para fazer até as meninas saírem da escola.
— Venha comigo até a reserva, conhecer o lugar.
— Você não precisa me mostrar a reserva para me convencer de que
Victor está agindo como um monstro ao pretender destruir a natureza desta
forma, por causa de vingança. Eu sei que ele está errado, só não posso fazer nada
para impedi-lo.
— Não é só por isso. Quero fugir um pouco daquele hospital e apreciar a
companhia de uma garota do Texas. — Ele sorri e retribuo, contagiada.
— Nesse caso, será um prazer.
Ele liga para o hospital avisando que não trabalhará hoje e, ao
terminarmos nosso café, partimos rumo à propriedade dos Patel, ele na frente,
dirigindo um Dodge preto, eu atrás, com o carro dos Boseman. Não estranho
quando saímos da cidade e partimos através da autoestrada quase deserta, em
meio a uma paisagem castigada pelo frio, de árvores secas e grama deteriorada.
Quilômetros à frente adentramos os portões de uma mansão estonteante. Com a
fachada em estilo medieval, é cercada por jardins bem cuidados e até uma fonte
com a estatueta de uma sereia segurando um jarro do qual a água jorra.
— Não tem ninguém aqui, além dos empregados. Meus pais viajaram,
Jacob está na escola e Christian na reserva. — Joseph informa — Na volta te
mostro a casa.
Passamos direto pela imponente construção e fico surpresa ao ver a pista
de pouso que se revela diante de nós, onde há um avião de porte pequeno e o
helicóptero no qual entramos.

CAPÍTULO XII



Quando acordei esta manhã, eu não esperava viver uma aventura tão
fantástica quanto voar de helicóptero pela primeira vez, sobre uma terra fria e
isolada como esta. O próprio Joseph pilota a aeronave, enquanto me mantenho
sentada ao seu lado, usando fones de ouvido gigantescos que aplacam o som
ensurdecedor das hélices. À medida que sobrevoamos Fairbanks e as montanhas,
cujos picos outrora estavam esbranquiçados pela neve, tudo o que consigo é
apreciar a paisagem, que vai ficando mais bonita à medida que nos afastamos do
perímetro urbano e passamos a percorrer as áreas cobertas pela floresta.
Duas horas depois, aterrissamos em uma pista de pouso localizada sobre
um pequeno rochedo na costa de Pelican, onde há outro helicóptero e uma casa
simples. A temperatura daqui é tão baixa que o impacto do meu corpo com o frio
chega a ser quase violento, quando saltamos, um vento gélido e forte se
recusando a parar de soprar.
Estamos a caminho da casa, quando um homem de estatura alta, muito
bonito, vem nos encontrar e recebe Joseph em um abraço caloroso. Deve ser o
irmão mais velho.
— Finalmente você veio, cara. — diz ele.
— Com todo o trabalho no hospital, fiquei meio sem tempo. — Joseph se
desvencilha do abraço — Evangeline esse é meu irmão Christian. Christian essa
é Evangeline.
Olhando-o de perto quase posso compreender porque a esposa de Victor
cometeu adultério, o sujeito é lindo, com a pele morena, belos olhos castanhos
esverdeados, como os de Luci e cabelos escuros emaranhados. Exprime um
aspecto ao mesmo tempo de selvageria e serenidade, peculiar a pessoas amantes
da natureza, exatamente o oposto de Victor, que parece um furacão
desestabilizando tudo por onde passa.
Observando seus traços muito parecidos com os de Luci meu coração
aperta no peito quando me ocorre que esse homem não pode ser chamado de pai,
o sequer se aproximar da sua única filha.
— Então você é Evangeline, a garota de quem tanto falam. — Ele me
examina dos pés à cabeça, sem a malícia da maioria dos homens.
— Sou eu mesma. O que tanto eles falam de mim?
— Só coisas boas. Joseph não tocou em outro assunto desde que você
levou Luci ao hospital.
Nossa! Ele fala sobre a filha com a maior naturalidade. Será que faz ideia
da forma indiferente como Victor a tem tratado ultimamente? Aposto que não,
ou já teria tentando tirá-la dele. Na certa acredita que ela é amada e bem cuidada
por ele.
— Deixa de ser exagerado. — Joseph protesta — Eu falei de você, mas
nem foi tanto assim.
— Se falou coisas boas eu não me importo. — falo e sorrio, Christian
imitando o gesto.
— Fico feliz que vocês tenham vindo. Joseph ainda não tinha dado as
caras por aqui desde que voltou dos estudos. Só assim ele vem.
— Aqui é lindo demais! — exclamo.
E é verdade. O lugar é estonteante, lembra o cenário de um filme
romântico. O penhasco onde estamos é o ponto mais alto de uma baía
completamente cercada pelo verde da mata com as montanhas geladas ao fundo,
as águas do mar do golfo do Alaska são azuis claras e não há qualquer vestígio
de interferência humana por perto, além da única casa, que certamente funciona
como sede da reserva.
— Estamos de saída para uma vistoria de barco. Querem ir? — Christian
convida.
— O que acha, Evangeline?
— Parece ótimo.
Descemos até um píer, na qual há apenas um barco ancorado e
embarcamos. Pouco depois partimos mar adentro, a embarcação em baixa
velocidade, a paisagem se revelando mais deslumbrante à medida que nos
afastamos da costa. Ao avançarmos pela baía, as águas se tornam mais escuras, o
vento ainda mais feroz, o silêncio mais pleno. Joseph e eu nos acomodamos em
espreguiçadeiras na proa, sob os raios fracos do sol e então ele me dá uma
verdadeira aula sobre o ecossistema dessa região e a importância da preservação
da vida por aqui, uma narrativa que me deixa encantada, não apenas pela
quantidade de informações novas, mas também pela paixão que ele demonstra ao
falar sobre o lugar, uma paixão que certamente é compartilhada por toda a sua
família, o que os motiva a proteger e cuidar da reserva.
Pouco depois Christian se junta a nós e assistimos a um verdadeiro
espetáculo de uma imensa baleia jubarte se aproximando do barco, como se nos
cumprimentasse. Segundo Christian, recentemente ela foi encontrada perto da
costa com ferimentos causados por pescadores ilegais e depois de tratada pelos
profissionais que prestam serviço voluntário à reserva, ganhou um chip para ser
rastreada.
Com o braço de mar e toda a vida por aqui como testemunhas,
almoçamos a céu aberto, os sanduíches de salmão preparados por Christian, com
a simplicidade de alguém que não reside em uma mansão luxuosa de três
andares. Ao final do nosso demorado passeio, estou verdadeiramente
maravilhada com tudo o que vi, decidida a voltar aqui sempre que houver uma
oportunidade.
Estou encantada também com a forma afetuosa, respeitosa, e ao mesmo
tempo descontraída, como os dois irmãos se tratam, com o quanto são gentis e
atenciosos um com o outro, da forma como tem que ser toda família, como era a
minha. Talvez Luci ficaria melhor convivendo com eles, em meio à essa
calosidade deliciosa, ao invés de conviver dia após dia com a indiferença de
Victor. Eu não entendo porque meu chefe insiste em negá-la ao verdadeiro pai se
não a ama o suficiente para ignorar suas dores em nome dela, em troca de dar-
lhe o carinho e a atenção que toda criança merece e que ela tanto precisa. Talvez
sua atitude não passe de orgulho, de uma recusa em sair perdedor dessa situação,
que certamente encara como um jogo de disputa, ou talvez até uma vingança
idiota pelo adultério cometido por Olivia. Ambas as possibilidades fazem dele
um ser humano horrível e já não posso acreditar que me sinto irremediavelmente
atraída por alguém assim.
Falta apenas minutos para o encerramento da aula, quando chego de volta
à escola, acompanhada por Joseph, que salta do seu Dodge para vir falar
comigo.
— E então, se divertiu? — indaga ele, um sorriso bonito brincando em
seus lábios, um brilho intenso se refletindo em seus olhos.
Durante todo o dia ele me olhou assim, com interesse, cheio de
insinuações.
— Muito. Quero voltar lá qualquer dia desses. Talvez com as meninas,
sem que Victor saiba, é claro.
A fisionomia dele se contrai e só então me dou conta do absurdo que
acabei de falar. Seria como uma conspiração terrorista levar Luci para ver o pai
biológico sem o consentimento de Victor.
— Você faria isso por Christian?
— Eu não sei se teria coragem. Se Victor descobre uma coisa dessas, não
apenas me demite, como também me processa, ou talvez até me mate com suas
próprias mãos.
Ele sorri de um jeito amargo, sem que seu olhar reflita a ação.
— Você agora o chama pelo primeiro nome. Aconteceu alguma coisa
entre vocês?
Abro a boca para negar, porém me engasgo com a saliva e solto uma
sucessão de tossidas que me faz parecer uma idiota.
— Sem querer me intrometer em sua vida, mas você é boa demais para
esse sujeito.
— Eu não tenho nada com ele. — De certa forma não estou mentindo,
afinal uma noite de sexo casual não liga uma pessoa à outra.
— E tem com outro alguém? — Desta vez sua voz é quase um sussurro.
— Não. Estou livre e desimpedida.
Ele se aproxima um passo de mim, apenas o estacionamento semideserto
da escola como testemunha.
— Fico feliz em saber, porque estou muito interessado em você. Fica
comigo esta noite, vamos sair para jantar e nos conhecermos melhor.
Pondero a possibilidade e chego à conclusão de que pode ser uma boa
ideia, afinal ele é um homem bonito, inteligente, gentil e bem sucedido, além do
mais temos gostos parecidos, o que possibilita nos divertiremos juntos e estou
precisando disso nesse momento da minha vida, já que pela primeira vez posso
fazer o que quiser, inclusive dançar, sem que meu coração ameace parar de bater
a qualquer momento. O único empecilho aqui é a inimizade entre Victor e sua
família, entretanto, meu chefe não tem nada a ver com quem eu saio ou deixo de
sair. Basta que não o leve a sua propriedade.
— Parece bom, estou mesmo precisando sair mais de casa. Mas hoje não,
estou exausta.
— Eu entendo. Ligo pra você depois então. — Com isto, ele dá-me um
encantador sorriso de despedida e se afasta.
A rotina de todos os dias se desdobra nas horas seguintes. Levo as
meninas para casa, preparo um lanchinho para elas, brinco com Luci, converso
com Samantha — que parece muito mais velha nesses momentos —, janto junto
com as duas — apenas nós três e os outros empregados na sala enorme —,
coloco Luci na cama, conto uma história para ela, espero que adormeça e me
recolho à solidão do meu aposento.
Nesse ritmo se passam vários dias, durante os quais o cotidiano se repete,
dias que se tornam mais longos e menos gélidos à medida que o verão avança,
dias em que não se vê Victor pela casa. Depois que voltou a trabalhar na sede da
empresa, ele se tornou ainda mais ausente, mais indiferente às filhas e a mim.
Sua participação no jantar realizado na piscina foi uma exceção, o que aconteceu
entre nós depois obviamente foi esquecido por ele. Nas raras ocasiões em que
nos esbarramos acidentalmente pela casa, mal nos falamos e as poucas palavras
são trocadas com a formalidade de num diálogo entre chefe e empregada, o que
realmente somos um para o outro. Durante esses dias, Joseph e eu trocamos
algumas mensagens e acabamos combinando de sairmos na noite de sexta-feira,
para uma danceteria que será inaugurada em Fairbanks, algo que me fará muito
bem, estou precisando, mais do que nunca, me divertir, extravasar um pouco.
Não que esteja estressada com o trabalho, pelo contrário, eu adoro lidar com as
meninas, cuidar delas sequer deveria ser chamado de obrigação, as considero
amigas com quem convivo diariamente, quase uma família. O que realmente me
estressa, aliás, quase me desespera, é vagar pela casa com um zumbi esperando
esbarrar com Victor a qualquer momento, fantasiando que ele vai repentinamente
se dar conta do quanto foi maravilhoso estarmos nos braços um do outro,
entregues, arrebatados pelo desejo e jamais o encontrar.
Como em todas as noites depois que Luci adormece, estou sozinha em
meu aposento, deitada de costas na cama, sem conseguir pegar no sono, sentindo
um estranho vazio no peito, a sensação de que algo está me faltando, algo que
não sei distinguir o que é. Fecho os olhos com força e a primeira imagem que me
vem à mente é o rosto de Victor, seu semblante fechado, seus olhos sempre
angustiados. Busco em minha memória lembranças da nossa noite juntos e não é
difícil encontra-las, o toque dele ainda está aqui, gravado em minha pele, o gosto
da sua boca parece ainda presente na minha, basta que eu expanda as narinas
para que seu cheiro venha à mim, trazendo saudade e um desejo descomedido de
estar em seus braços, morrendo de tesão com as suas carícias.
O vazio dentro de mim não é falta do que não sei, é ausência do que
conheço, é a vontade desenfreada de ter Victor para mim, de ter a sua atenção, os
seus sentimentos. Parece loucura, considerando que há poucos dias fiquei
sabendo o quanto cruel e insensível ele é, mas eu queria estar com ele, me
refestelando em seus braços, ouvindo-o falar sobre suas dores, o ter perto de
mim. Só que esse tipo de aproximação eu jamais terei dele e amaldiçoo a mim
mesma por saber disso e ainda assim o desejar. A verdade é que meu coração não
sabe escolher direito e quer aquilo que não pode ter.
Embora esteja cansada do dia agitado com as meninas, não consigo pegar
no sono, uma ansiedade indesejada tomando conta de mim, os pensamentos
todos voltados para um homem que não me merece. Por fim, levanto-me, visto
um roupão por cima da camisola e deixo o quarto, sem saber ao certo para onde
ir. Caminhando pelo corredor longo, meus olhos se detêm na porta do quarto de
Khalil, que parece me puxar em sua direção e por alguma razão que desconheço
ando até ela e entro. Ao acender a luz, meus olhos vasculham tudo à minha
volta: os pôsteres nas paredes; os lençóis coloridos na cama; uma minúscula
fenda na janela fazendo a cortina balançar com o vento que entra, emprestando
ao ambiente um aspecto meio fantasmagórico. Por fim, meu olhar é atraído para
a coleção de guitarras na vitrine na parede e me aproximo delas, a ponta dos
dedos tocando o vidro transparente.
Como aconteceu na outra vez em que entrei aqui, a guitarra mais antiga
captura a minha atenção, com tamanha intensidade que sou arrebatada por um
desejo visceral de manuseá-la, embora não faça ideia sequer de como se segura
corretamente uma dessas.
Cedendo a um impulso, abro a porta da vitrine e a pego. É mais pesada
do que parece, sólida, robusta. Sento-me na cama com ela nas mãos e a
posiciono de encontro ao meu corpo. Toco uma única nota e o som emitido se
parece com o de um violão, na certa por não estar conectada à toda a parafernália
da qual necessita. Toco mais algumas notas, emitindo um som desconexo e sem
sentido e chego à conclusão de que isto até que é divertido. Eu devia ter me
dedicado mais à música quando adolescente, talvez ter participado de alguma
banda de rock da escola.
Ainda estou tocando desengonçadamente, quando de súbito a porta se
abre e Victor entra, seu rosto assumindo uma palidez inesperada, os olhos
arregalados, carregados de exasperação, fixos em meu rosto.
— O que diabos você está fazendo aqui? — Praticamente rosna, o timbre
grosso da voz me causando um sobressalto.
— E-eu s-só e-estava o-olhando... — Extremamente desconcertada, com
as palavras presas na garganta seca, levanto-me e me apresso em guardar a
guitarra de volta no lugar, sem que Victor pare de me observar por um minuto
sequer, com seus olhos furiosos — Eu só estava dando uma olhada.
Como se meu olhar fosse puxado para o seu físico, examino-o dos pés à
cabeça e um suspiro indesejado me escapa ao constatar o quanto ele fica bonito
usando o terno escuro por sobre a camisa branca, com os primeiros botões
abertos, revelando uma pequena parte do peito desprovido de pelos. Acho que
ele ficaria bonito ainda que saísse por aí usando uma melancia na cabeça.
— Por que você está aqui? — pergunta ele.
— Por nenhum motivo específico. — Espero tê-lo convencido, todavia
os olhos azuis continuam me fuzilando com incansável especulação — Eu estava
sem sono, então saí para dar uma volta e quando dei por mim já estava aqui. Não
fiz por mal.
Ele observa-me por um momento de silêncio, que embora breve é
suficiente para que a expressão do seu rosto mude, a exasperação dando lugar à
angústia de sempre, como se sua dor o torturasse infinitamente e jamais cessasse.
Com dois passos largos, elimina a distância entre si e a cama e senta-se, a
angústia clara em sua expressão o levando a se curvar a afundar o rosto entre as
mãos.
— Você disse que entrou aqui por acaso?
— Mais ou menos isso.
— Como se o lugar a atraísse, não é?
Penso sobre isso e fico confusa.
— Como assim? Comidas gostosas atraem pessoas, quartos não.
Ele retira o rosto de entre as mão e fita fixamente o vazio à sua frente.
— Essa era a guitarra preferida de Khalil, meu filho mais velho. —
murmura, a voz carregada de amargura e meu coração aperta do peito —
Estávamos em um show de rock em Amsterdã. Quando deixamos a casa de
eventos passamos em frente a uma loja de instrumentos musicais e ele a viu.
Tinha apenas dez anos e mesmo assim me fez telefonar para o proprietário da
loja durante a noite, para que a comprasse. Depois disso, ele se mostrou cada dia
mais interessado pela música, fez parte de uma banda na escola, ganhou várias
outras guitarras, mais sofisticadas até, porém essa nunca deixou de ser a sua
preferida. — A amargura é evidente no tom da sua voz.
Movida por um impulso mais forte do que possa controlar, sento-me ao
seu lado e percorro a ponta dos meus dedos sobre os músculos das suas costas,
carinhosamente, reconfortadoramente.
— Samantha me contou o que aconteceu. Eu sei que deve ter sido um
golpe duro demais, mas você ainda tem as duas meninas e elas precisam de você.
— Sem ele nada parece fazer sentido.
— Não parece, mas faz. Se for só questão de assumir os negócios da
família, Samantha pode fazer isso. Essa ideia de que os homens são mais
eficientes que as mulheres, é um equívoco. Samantha é mais capaz que muitos
homens, é a pessoa mais forte que já conheci.
— Será que você não entende? Isso não tem nada a ver com os negócios.
Khalil foi meu primeiro filho, foi por ele que me casei com Olivia, as meninas
são apenas uma consequência desse casamento. — Meu queixo cai de
perplexidade, minha mente se recusando a acreditar que ele realmente disse isso
— Meu filho era meu mundo, a razão de tudo. Eu o amava demais e o maldito
que o tirou de mim continua impune, andando livremente por aí.
Será que Samantha me contou a história toda? Não é possível que ele
culpe alguém, de forma tão veemente, por causa de um acidente. Claro que
Christian tem sua parcela de culpa, por ter perdido a cabeça e tentado levar a
filha à força, sem entrar na justiça, como seria correto, porém não foi sua
intenção tirar a vida do garoto.
— O que aconteceu na ocasião em que ele morreu? — indago e Victor
apenas balança a cabeça em negativa — Pelo que Samantha me contou, foi
apenas um acidente. Christian perdeu a cabeça ao descobrir que lhe foi negado o
direito de ser pai, o que é bastante compreensível.
Ele ergue o rosto e me encara com olhos flamejantes. Como se eu tivesse
acabado de lhe dar um soco no estômago, levanta-se da cama em um rompante e
afasta-se alguns metros, virando-se em seguida para me encarar.
— Sam sabe que aquele maldito é o pai biológico de Luci? —
Praticamente rosna, a fisionomia contraída de tensão.
Merda! Acho que falei demais.
— Sim, ela ouviu você e Olivia conversando.
— Por Deus! Isso não devia ter acontecido.
— Como eu já disse, ela é uma menina muito forte e sensata, mas não é
de ferro, precisa do amor e da atenção do pai.
— Luci também sabe disso?
— Não. Samantha a está preservando, inclusive da morte de Kalil. —
Levanto-me e me aproximo dele, a forte e inevitável atração que é exercida
sobre mim me puxando em sua direção, até que eu esteja a apenas alguns
centímetros de distância, o cheiro delicioso do seu perfume me alcançando, me
inebriando. — Ela está levando essa família sozinha nas costas, enquanto você
se afunda na dor, deixando as duas de lado.
— Não fale sobre o que você não sabe.
— Eu sei do que estou falando. Eu também perdi alguém, minha mãe
morreu quando eu tinha sete anos, também em um acidente horrível e se fosse
plausível culpar alguém por um acidente, eu culparia a mim mesma, pois acordei
passando mal durante a madrugada e a fiz me levar ao hospital debaixo de um
temporal. Mas eu não me culpo, foi a vida! — Faço uma pausa, respirando fundo
a fim de conter as lágrimas que ameaçam encher os meus olhos — Você age
como se essa dor fosse só sua, vive isolado, sem dar atenção às filhas, culpa
Christian por algo que ele não fez.
A fúria repentina que emerge na expressão dos seus olhos é tão obscura
que me faz recuar um passo, assustada.
— O que você sabe sobre esse cretino? Como sabe o que se passa pela
cabeça dele? Por acaso esteve com ele?
Sua inquirição é implacável e subitamente o sangue foge da minha face,
sem que eu saiba o que responder. Se falar a verdade, que passei um dia inteiro,
na companhia dele e do irmão, na reserva que pretende destruir, serei demitida
antes que tenha tempo de pensar e não quero deixar as meninas agora, pois sinto
que elas precisam de mim.


CAPÍTULO XIII



— Não é difícil deduzir como ele se sente. Luci é sua única filha, mora a
poucos quilômetros de distância e mesmo assim ele não pode vê-la. Isso não me
parece justo.
— Não julgue os fatos sem os conhecer. Aquele maldito sempre quis
tudo o que é meu, inclusive minha mulher. Nunca se conformou por Olivia ter
escolhido a mim para dividir sua vida, e não a ele, dedicou sua miserável
existência a tentar tirá-la de mim, mais por capricho que por qualquer outra
coisa. — Ele fala entredentes, o semblante contraído de uma fúria quase bestial.
Ao mesmo tempo, avança em minha direção, com lentidão, de um jeito quase
ameaçador, enquanto eu recuo na mesma velocidade — E o resultado das
atitudes dele foi esse, eu perdi o meu filho, perdi tudo o que me importava nessa
vida. Ele não sossegou até tirar tudo de mim.
Cogito seriamente passar direto por ele e deixar o aposento, somente para
encerrar a discussão, afinal não é da minha conta, não tenho nada com isso, sou
apenas a babá que ele trouxe para desviar a atenção das meninas da sua absurda
indiferença. No entanto, Victor está precisando ouvir umas verdades, receber um
choque de realidade e tenho a impressão de que se eu não lhe der esse choque,
ninguém mais o fará.
Então, engulo em seco, ergo o queixo, desafiadoramente e falo:
— E agora você quer tirar tudo dele, como um garotinho vingativo, é por
isso que planeja destruir a reserva. — Seus olhos se ampliam diante da minha
afirmação — Você é egoísta demais para perceber, mas tirou muito dele quando
lhe negou o direito de ser pai, de chegar perto da filha mesmo sabendo que ela
existe e está aqui. — Ele continua avançando para cima de mim, até que minhas
costas encontram a parede e não tenho mais para onde fugir — Quer saber o que
eu acho? Você não merece as duas filhas maravilhosas que tem, vive as
desprezando só porque são meninas e queria um macho para assumir sua
empresa. Luci estaria bem melhor com Christian.
Uma veia pulsa forte em sua têmpora, seus olhos estão faiscando,
revelando seu ódio descomunal e chego à conclusão de que fui longe demais
com minhas palavras, devia ter ficado quieta.
— Cala a porra da sua boca! — Sua voz é um rosnado quase selvagem e
no instante em que as palavras são soltas no ar, sua mão alcança minha nuca,
segurando-me com firmeza, para que no momento seguinte, sua boca se aproprie
da minha.
Ao mesmo tempo em que o corpo sólido e quente esmaga o meu contra a
parede, com força, quase me tirando o fôlego, os lábios sequiosos se movem de
encontro aos meus, exigentemente, a língua pedindo passagem, tentando se
infiltrar na minha boca.
Tento resistir, mas é impossível. Sensações lascívias emergem dentro de
mim, meu coração bate acelerado, ameaçando saltar do peito, as pernas ficam
bambas, um latejar impaciente se manifestando entre minhas pernas, fazendo
minha calcinha molhar. Então, com um arquejo, entreabro os lábios e permito
que sua língua gotosa explore minha boca, se esfregando na minha, de uma
forma quase indecente, como se anunciasse o que acontecerá em seguida.
Movida pelo desejo insano, passo os braços em torno do seu pescoço e me deixo
ser conduzida pelo quarto quando ele me arrasta até a cama. Com gestos
bruscos, deita-me de costas e estende o seu corpo grande e forte sobre o meu.
Um gemido alto me escapa quando encaixa seus quadris entre minhas pernas e
faz pressão, a ereção firme me empurrando bem ali onde mais necessito.
Uma de suas mãos segura meus cabelos no alto da cabeça, firmemente,
como se temesse que eu pudesse fugir, a outra desce pelo meu corpo, me
apalpando sem gentileza alguma, por sobre o tecido fino da camisola dentro do
roupão aberto. Fecha-a sobre um dos meus seios, o tecido da camisola
quebrando contato direto e aperta com força, fazendo-me contorcer de um misto
de prazer e dor que me arranca um grito agudo, ao qual ele reage de forma
violenta, animalesca, apertando ainda mais forte meu seio, a ponto de me causar
uma dor lancinante, me assustando.
— Pare, está me machucando! — Protesto.
Faço uso de todas as minhas forças para empurrá-lo pelos ombros, mas
ele não se move um só milímetro, continua me apalpando sem delicadeza,
tentando colar sua boca novamente na minha. Está me punindo pelas verdades
que eu disse. Filho da puta!
— Porra! Sai de cima de mim! — Dessa vez eu grito e ele se retesa
inteiro, os músculos se enrijecendo.
Ergue o rosto para fitar minha face e posso ver a fúria selvagem dando
lugar a uma expressão de incredulidade no azul do seu olhar, como se só então se
desse conta do que está fazendo. Rápido como um relâmpago, afasta-se,
colocando-se do outro lado do quarto, o semblante contorcido da angústia já
conhecida, o peito subindo e descendo com sua respiração pesada.
— Por Deus! O que fiz? — fala, atormentado.
Ainda estou arfando, com o sangue correndo quente nas veias, o coração
acelerado no peito, quando me sento na beirada do colchão e só então me dou
conta de que devia tê-lo feito parar mesmo antes de me machucar, não por não o
desejar, o quero como jamais quis outro homem, mas pela forma como ele tem
me tratado nesses últimos dias, desde que fomos um do outro, com indiferença,
como se eu não fosse ninguém, como se nada representasse para ele. Fui
extremamente tola ao me render às minhas emoções tão logo ele me tocou. Por
mais que tudo dentro de mim implore por esse homem, não posso me render a
ele, pelo simples fato de que não me merece.
— Não foi nada. A dor já até passou. — falo, com firmeza, encarando-o
o mais séria possível.
— Eu sou um animal... me perdoe...
— Eu já disse que não foi nada.
Levanto-me e rumo para a porta, ajeitando o roupão de volta no lugar.
Antes de alcançá-la, ele toma meu caminho, detendo-me, os olhos azuis
transtornados me fitando de perto.
— Me desculpe. Eu não queria machucá-la.
Eu podia apenas assentir e passar direto, entretanto, minha capacidade de
ficar quieta quando preciso é quase nula.
— Você me machucou muito mais, com a forma como vem me tratando
desde que transamos. — Me arrependo por ter aberto a boca no instante em que
a fecho, pois minha atitude é no mínimo humilhante, é como acusá-lo por não
sentir nada por mim, quando ninguém escolhe de quem gostar. Só que agora é
tarde para voltar atrás.
Victor permanece em silêncio, sem esboçar qualquer reação, então
continuo.
— E-eu sei que é diferente pros homens, que vocês podem fazer sexo
sem que isso represente alguma coisa, mas o que aconteceu entre nós foi
importante para mim. E-eu sinto alguma coisa por você, juro que não queria
sentir, mas aquela noite não foi apenas um momento sem relevância.
Silencio-me e o encaro, a espera de sua posição, rezando para que seja
um pedido de desculpas, ou uma boa explicação para a forma como tem se
portado no últimos dias, no entanto, não há nada, nenhum minúsculo músculo da
sua face se move, seus olhos parecem inescrutáveis e isso me machuca ainda
mais que do que se ele estivesse me dizendo que foi apenas um momento
impensado, que não sou o tipo de mulher com quem costuma se relacionar, que
foi um erro e agora será fiel à Michelle.
Algo dentro de mim me ordena a sair daqui correndo, entretanto, ignoro
o bom senso mais uma vez.
— Eu vou entender se você me disser que está arrependido, só diga
alguma coisa, por favor.
Ele continua em silêncio, os olhos fixos em meu rosto, até que lágrimas
carregadas de mágoa marejam meus olhos. A fim de escondê-las, desvio o rosto
para o chão e o contorno, cabisbaixa, sentindo-me humilhada, dolorosamente
rejeitada. Estou levando a mão à maçaneta da porta, quando capto o seu
movimento atrás de mim e logo em seguida as mãos fortes me agarram pelos
ombros e me viram em sua direção.
— Eu não estou arrependido, muito pelo contrário. Como pode pensar
uma coisa dessas? — Há dor no tom de sua voz e não compreendo o motivo.
Suas palavras causam um reboliço dentro de mim, o coração se agitando
de novo, entretanto, não são suficientes, ele me deve uma explicação. Assim,
desvencilho-me das suas mãos e me afasto alguns centímetros para fitá-lo no
rosto.
— Você me deu motivos para pensar assim. Vem me ignorando desde
aquela noite, como se nada tivesse acontecido e como se não bastasse, deixa sua
amante me tratar como se eu fosse a empregada dela.
Meu corpo inteiro estremece quando me recordo do momento em que
Michelle me fez servi-lhes café.
— Michelle e eu não somos amantes, não mais. E sinto muito pela forma
como ela a tratou quando veio aqui. Sinto também pelas minhas atitudes. — Ele
faz uma pausa, como se escolhesse as palavras — Aquela noite foi a mais
importante da minha vida, em muito tempo. Você me fez sentir vivo de novo,
quando eu estava morto por dentro. Todas as vezes em que olho para você meu
desejo é de a tomar me meus braços e não soltar mais, quero beijá-la até tirar-lhe
o fôlego cada vez que vejo sua boca atrevida me dizendo as verdades que eu
mereço ouvir, mas eu não posso. Por mais que eu a deseje com tudo o que há
dentro de mim, por mais que a queira, eu não posso ficar com você.
Ao mesmo tempo em que meu coração bate mais depressa, o frio em meu
estômago se intensifica.
— Por que eu sou apenas uma empregada?
— Claro que não. De onde você tirou isso? Existe algo mais grave que
nos separa, Evangeline.
Não é a primeira vez que ele diz isso, embora nunca tenha sido tão direto
e a curiosidade se amplia dentro de mim.
— E o que é esse algo? Quero saber.
Ele balança a cabeça, os olhos tristes, o canto da sua boca se curvando
em um sorriso amargo.
— Você jamais me perdoaria.
Suas palavras me deixam em alerta para a gravidade da situação.
— Foi por causa desse algo que você voltou a trabalhar no domingo,
depois de termos passado a noite juntos.
— Eu voltei porque não consigo ficar perto de você sem te tocar.
— Me conta o que é.
— Eu vou te contar algum dia, mas não hoje. Agora volte para seu
quarto, não vai te fazer bem ficar aqui.
Com mil possibilidades na cabeça, incluindo a hipótese de que ele possa
ser portador de uma doença incurável, quero continuar perguntando, todavia sei
que não arrancarei nenhuma informação dele enquanto não quiser falar. Então o
sigo para o lado de fora do aposento, quando gesticula para que o faça e o vejo
trancar a porta e enfiar a chave no bolso.
— Sobre você planejar destruir a reserva marítima, quero...
Tento defender a ideia de que mantenha a reserva onde está, como
prometi a Joseph que faria, todavia, sou interrompida por sua voz ríspida.
— Por favor, não quero falar sobre isso. A decisão está tomada.
Será que ele não percebe o quanto está sendo inescrupuloso e egoísta ao
levar essa história adiante? Estando prestes a destruir um verdadeiro paraíso
cheio de vida? Embora eu tenha prometido a mim mesma que não concordaria
em entrar em seu escritório às escondidas, à procura de documentos que possam
detê-lo, como Joseph me pediu, já não tenho mais certeza se conseguirei assistir
a tudo isso de braços cruzados, sem fazer nada.
— Nesse caso, boa noite.
— Boa noite. Mais uma vez te peço que me perdoe por ter agido como
um animal.
— Considere-se perdoado.
Com isto, giro sobre meus calcanhares e me afasto, entrando em meu
aposento.
No dia seguinte, enquanto a meninas tomam o café da manhã na varanda
dos fundos da mansão, aproveitando os raios de sol raros e tímidos, Victor nos
surpreende ao avançar pela porta aberta, ainda com os cabelos molhados do
banho, usando terno e gravata, com o delicioso cheiro de loção pós-barba
partindo de sua direção. Luci o recebe com comoção, aproximando sua cadeira
da dele quando se acomoda à mesa. Quanto à Samantha, não esboça qualquer
reação, embora eu saiba que no fundo está exultante também.
— E você, por que não se senta? — Victor indaga, observando-me, os
olhos azuis claros, ainda mais lindos ao refletir a luz do sol, descendo pelo meu
corpo protegido do frio por jeans e uma blusa de gola alta.
— Eu já convidei, mas ela recusou. — Samantha diz.
— Se eu ficar em pé, as meninas terminam mais depressa e não chegarão
atrasadas à escola. — afirmo.
Ele checa o relógio de ouro em seu pulso, antes de falar.
— Ainda é cedo. Qualquer coisa eu as levo e convenço a direção a nos
deixar entrar depois do horário. Agora sente-se e tome seu café conosco.
Harriet se aproxima para atendê-lo e quando ele pede mais duas xícaras,
sai da varanda tão perplexa quanto eu quando me acomodo à mesa, entre as duas
meninas. Será que sua repentina mudança de atitude tem a ver com todas as
verdades que eu lhe disse ontem? Se sim, me empenharei em impedir que se
isole de novo, nem que precise aconselhá-lo a procurar um terapeuta, como
acredito que precisa.
— E então garotas, como estão indo na escola?
A pergunta de Victor é o fio para o início da conversa animada entre ele e
as duas garotas, durante a qual a animação de Luci é impagável, inclusive
Samantha, que gosta de bancar a durona, acaba se deixando contagiar, sorrindo
despreocupadamente e se esquecendo da vida. Como era de esperar, passa e
muito do horário de entrar na escola e Victor acaba tendo que ir levá-las, antes
de se dirigir à empresa. Está tão viciado no trabalho que não falta mais um dia à
sede da sua companhia, o que considero mais um mérito meu. Até que minha
presença nesta casa está fazendo bem à essa família e me orgulho por isto.
Aproveito o tempo livre para cuidar da minha estética, fazer depilação,
hidratar os cabelos, arrumar as unhas, afinal esta noite vou sair para dançar com
Joseph e apesar de não ser ele o homem com quem eu gostaria de passar a minha
noite de sexta-feira, vou pelo menos tentar me divertir.


Victor


O advogado que quase demiti na semana passada, por se mostrar incapaz
de conter as manifestações em defesa da maldita reserva marítima dos Patel, está
há meia hora sentado à minha frente, falando sem parar, sem que eu ouça sequer
uma palavra do que está dizendo, minha mente invadida por pensamentos sobre
Evangeline, como vem sendo nas últimas semanas. Não consigo pensar em outra
coisa que não nessa garota, na forma como se entregou a mim, sem reservas e
sem pudores, na noite em que a encontrei nadando na piscina; cada vez que
fecho os olhos posso ver seu rosto lindo contorcido de prazer; cada vez que
alguém menciona algo relacionado a sexo eu visualizo mentalmente seu corpo
frágil e sensual, completamente à minha disposição. Nesses últimos dias tenho
agido como um adolescente com os hormônios em fúria, sempre excitado, com
vontade de fazer amor, porém não com qualquer mulher, mas apenas com ela.
E não é apenas fisicamente que Evangeline me afeta. Ela é a única pessoa
na face da terra com a capacidade de proferir as palavras corretas e me fazer
enxergar uma verdade que a dor vem obstruindo. Ela está certa em tudo o que
diz, eu tenho sido omisso com minhas filhas, tenho as desprezado sem que elas
mereçam, tenho sido um pai horrível e não enxergaria isso se não fosse por
Evangeline, pois cada um dos meus neurônios esteve tomado, nesses últimos
meses, pela dolorosa angústia que a morte de Khalil me causou. Nunca vou me
conformar em ter perdido meu filho para a morte, por causa de um acidente
bobo, causado por aquele maldito Patel, com a contribuição de Olivia, que teve a
audácia de revelar a ele que é pai biológico de Lucille, um detalhe sem
relevância, afinal pai não é quem faz e sim quem cria e eu a crio como se fosse
minha. Se ela tivesse continuado de boca fechada, se tivesse cumprido a
promessa que me fez de jamais deixá-lo saber, nada disso teria acontecido,
Khalil ainda estaria aqui, estudando para um dia assumir os negócios da família.
Aquela desgraçada usou o fato de que Luci tem o sangue daquele maldito
correndo em suas veias para tentar me afetar, como não conseguiu tirar minha
filha mais nova, tirou meu primogênito. Se ela não fosse a mãe dos meus filhos
eu a teria destruído sem deixar vestígios, porém, ainda posso destruir Christian,
tirando-lhe a maldita reserva, que é o que mais lhe importa. Resta esperar que os
manifestantes desobstruam as estradas para a passagem dos equipamentos de
pesca.
Mal percebo quando o advogado se levanta e deixa a sala, para que logo
em seguida Michelle entre, caminhando com elegância. Como sempre, está
vestida com sofisticação, em um vestido vermelho longo e tão colado que se
pode identificar cada curva do seu corpo por sob o tecido. O tom rubro está
presente também no batom escuro em sua boca, o que considero chamativo
demais, mas chamar a atenção faz parte da personalidade dela.
— E então ele arranjou uma forma legal de afastar as pessoas de lá? —
Ela indaga e não respondo, minha mente vagando por pensamentos sobre a babá
das minhas filhas — Ei, Victor, vê se acorda. É o futuro daquela reserva que
você está decidindo.
— Claro que não. É um incompetente.
Sem pedir licença, minha advogada pessoal senta-se no lugar vazio do
outro lado da mesa com tampo em mogno, os olhos escuros, inquiridores, me
fuzilando.
— O que está acontecendo com você ultimamente? Anda distraído
demais.
— Impressão sua. Só estou muito focado no trabalho.
— Acredite, você está focado em qualquer coisa, menos no trabalho. —
Faz uma pausa, como se esperasse resposta, como não obtêm, continua. — Fala
comigo, Victor. Antes de sua advogada, sou sua amiga. Além do mais, você
precisa se abrir com alguém. Não pode guardar tudo para você.
Talvez ela tenha razão, talvez eu deva falar sobre Evangeline e o motivo
pelo qual não posso ficar com ela, por mais que a deseje com todo o meu corpo e
com toda a minha alma. Mas como falar sobre algo tão horrível? Como
continuar encarando uma pessoa depois de ela souber o que fiz? Como deixar
que alguém saiba que sou louco pela babá das minhas filhas mesmo ciente do
que ela representa para mim? No mínimo Michelle ia achar que estou demente,
até eu acho isso de vez em quando. Por outro lado, falar sobre esse assunto, que
vem me atormentando tanto, pode me fazer bem, além do mais, Michelle é
minha melhor amiga, a pessoa mais próxima a mim. Depois que rompemos
nosso caso, há alguns anos, nos tornamos ainda mais próximos, companheiros de
batalha no trabalho. Inclusive ela é a única dentro da companhia que está me
apoiando na decisão de transformar a reserva dirigida pelos Patel em mais uma
área de pesca, os demais apenas obedecem às ordens e a contragosto, a fim de
evitar perder o emprego. É ela quem está cuidando dos trâmites legais
necessários para afastar a multidão de manifestantes que vem se reunindo aqui
em frente, ou na frente da reserva. Não existe outra pessoa em que eu confie
mais, com quem possa falar abertamente sobre Evangeline.
— É essa garota que você trouxe do Texas para cuidar das meninas, não
é? — Ela diz e a encaro surpreso — Ela está afetando você, não é?
— Por que você está dizendo isso?
— Porque eu o conheço. Você começou a mudar desde que ela chegou.
Está certo que em parte foi uma mudança positiva, pois o trouxe de volta ao
trabalho, mas você parece perdido. O que há entre vocês dois?
— Eu gosto dela. — dizer isso em voz alta me traz um alívio absurdo,
assim como me faz perceber que o que sinto por essa garota vai muito além do
desejo, é uma paixão visceral, incontrolável — Mais que isso, eu sou louco por
ela. Não consigo pensar em outra coisa quando estou aqui, ou em casa, ou em
qualquer lugar que eu vá.
Vejo os olhos de Michelle se ampliarem, uma perplexidade insatisfeita
refletindo-se em sua expressão. Ela se ajeita na cadeira e pigarreia antes de falar.
— E por que isso seria um problema? Ela não corresponde aos seus
sentimentos?
— Corresponde, mas... — Hesito, as palavras me parecendo tenebrosas
demais para serem pronunciadas em voz alta.
— Mas, o quê, Victor?
— Ela carrega o coração de Khalil no peito.
No momento que se segue, um silêncio macabro se instala no ambiente,
enquanto Michelle continua me encarando com os olhos virados nas órbitas, o
queixo ligeiramente caído, o semblante completamente chocado, como já era de
se esperar. Cogito voltar atrás, desmentir essa verdade, porém não consigo, eu
preciso dividir isso com alguém, preciso que alguém saiba que contratei um
detetive particular para encontrar Evangeline e a trouxe para debaixo do meu
teto só para ter a última parte viva do meu filho perto de mim e agora estou
apaixonado pela portadora dessa parte. Preciso que alguém saiba o quão doentia
é toda essa situação.
— Como assim o coração? O coração mesmo? — Michelle não consegue
esconder o seu choque.
— Sim. Eu estava fora da cidade quando Khalil morreu e Olivia estava
na casa dos Patel, ela deu permissão aos médicos para que levassem o coração
dele para transplante. Eu cheguei a tempo de impedir que os outros órgãos
fossem retirados.
O queixo da minha advogada cai um pouco mais. Quando ela vai parar
com isso?
— Isso é um absurdo completo. Como você chegou a essa garota? Ela
sabe sobre isso?
— Ela não sabe. Para chegar a ela, eu contratei um detetive particular, já
que o hospital se negou a revelar quem era o receptor do coração. Meu objetivo
era apenas saber quem era ela, como vivia, o que fazia da vida. Minha surpresa
foi colossal quando descobri que era uma mulher. Eu não ia me aproximar,
pretendia apenas olhar de longe, mas então descobri que ela estava entrando em
uma agência de prostituição.
— De prostituição? — Seus olhos se arregalam ainda mais.
— Sim. Ela ia se tornar uma prostituta porque não conseguia outro
emprego e não pude permitir que fizesse isso estando com o coração do meu
filho batendo em seu peito.
— C-como você a conheceu?
— Exatamente como você está pensando. Eu marquei um programa,
conversei com ela, percebi que estava ingressando nessa vida por falta de opção
e acabei me prontificando a ajudar. Só que serei hipócrita se disser que estava
tentando ajudar apenas a ela quando a trouxe para casa. Eu queria a última parte
do meu filho comigo.
Atônita, Michelle me observa por um longo momento de silêncio.
— Você sabe que essa história toda é muito doentia, não sabe?
— Não tão doentia quanto o fato de eu estar irremediavelmente atraído
por essa garota.
— E já aconteceu alguma coisa entre vocês?
Hesito, pensando no fato de que não é muito cavalheiro falar sobre
intimidades com outra pessoa, mas já comecei, vou até o fim.
— Sim, apenas uma vez. Desde então eu tenho tentado evitá-la o quanto
posso, mas está difícil. Cheguei a perder o controle ontem à noite, quando a
encontrei no quarto de Khalil e quase a machuquei.
— O que ela estava fazendo no quarto de Khalil?
— Parece bizarro, mas ela está atraída pela guitarra preferida dele. A
primeira que ele teve.
— Será que é o coração falando no peito dela? — Vejo-a estremecer ao
pronunciar as palavras.
— Possivelmente.
— Minha nossa! Isso é macabro.
Relembro o modo animalesco como agi com Evangeline e sinto a
angústia enchendo meu peito. Desejei, com todas as minhas forças, mostrar a ela
que não estava em mim, que não sou aquele animal, no entanto, eu não
conseguiria continuar perto dela sem possuí-la e é inconcebível que eu tenha um
caso com a mulher que carrega o coração do meu filho no peito, que tem uma
parte dele dentro de si.
— Por isso você voltou a trabalhar na empresa, para a evitar? —
Michelle constata o óbvio — Eu percebi a forma como vocês se olharam naquela
noite em que estive lá.
Se ela percebeu por que fez questão de humilhar Evangeline? Talvez
exatamente por ter notado nossa troca de olhares. Não é novidade que Michelle
ainda sente ciúmes de mim depois de tanto tempo separados, porém é só um
ciúme bobo, que um dia deixará de existir.
— Havíamos dormido juntos há poucas horas.
— Eu nem sei o que dizer sobre isso tudo. É um caso sem precedentes.
— E totalmente doentio.
— Muito doentio. — Suas palavras eliminam qualquer esperança que eu
tinha de estar errado, de que o mundo à minha volta pudesse discordar de mim e
me dar a chance de ficar com Evangeline — E nem é só isso. Além das questões
sanguíneas, sua vida se tornaria um inferno se essa história fosse descoberta pela
imprensa. Consigo até imaginar as manchetes. — Ela faz um gesto com as mãos,
como se abrisse uma folha de jornal — “Milionário tem caso com receptora de
órgão do filho morto em acidente”. As pessoas não perdoariam. Iam te crucificar
de todas as formas, você perderia clientes no mundo inteiro, deixaria de ser
convidado para eventos. E essa menina? A vida dela estaria acabada. Todo
mundo ia relacionar isso a incesto.
Cada palavra que sai da boca dela soa como uma punhalada em uma
ferida já aberta dentro de mim e estabelece a certeza que eu já tinha de que
Evangeline e eu jamais poderíamos ficar juntos, o mundo não permitiria.
— Você tem razão, nunca daria certo. Além de doentio é imoral. — falo,
a angústia rasgando meu peito.
— Mas você gosta dela.
— Sim. Eu gosto.
Michelle me observa em silêncio por um instante.
— Você precisa esquecer essa menina. Vamos sair essa noite, encher a
cara, dançar. Há quanto tempo você não faz uma boa farra?
— Já nem me lembro mais.
— Pois é disso que você está precisando. Hoje à noite será inaugurada
uma nova danceteria em Fairbanks. Quer ir comigo?
— Não estou com cabeça para esse tipo de coisa. Existe uma espinha
engasgada na minha garganta que só vai sumir quando eu acabar com a reserva
daquele maldito.
— Acontece que os manifestantes que estão acampados lá em frente não
vão a lugar nenhum e até segunda-feira, pelo menos, não podemos fazer nada
quanto a isso. Então diz que sim, vai. Estou muito a fim de conhecer essa
danceteria nova e não tem ninguém para ir comigo.
É praticamente impossível dizer não à Michelle quando ela quer muito
uma coisa, então, por fim, acabo concordando em ir à tal danceteria nova.


CAPÍTULO XIV


Há alguns meses eu teria ido para a danceteria direto da empresa, apenas
para evitar ver minhas filhas e lembrar que agora são apenas elas duas, que
Khalil não está mais aqui e precisarei repassar o império construído pelo meu
bisavô para uma menina, passível de ser apunhalada pelas costas nesse mundo
cruel que é o dos negócios. Não que eu acredite que uma mulher não seja capaz
de presidir um grande império empresarial, eu acredito, o problema é que uma
mulher não pode ser feliz assim. Para começar, quando apaixonada uma mulher
perde o poder de julgar claramente, o que poderia acarretar a uma empresária um
casamento por interesse, regado a mentiras e traições. Não era o futuro que eu
esperava para uma de minhas filhas. No entanto, o fato de Evangeline me fazer
enxergar o quanto eu estava sendo babaca, me reaproximou delas, derrubou a
grossa barreira de hostilidade que em minha infinita dor eu havia erguido entre
nós.
Jantamos juntos na sala de refeições da mansão, com Evangeline também
à mesa, em um momento inigualável, repleto de uma paz gostosa, que há muito
eu não experimentava. É impressionante como as meninas se apegaram a ela tão
rapidamente. Nunca vi minhas filhas se abrirem assim facilmente para uma
pessoa, embora possa compreendê-las, Evangeline é muito especial, tem algo
nela que atrai, que cativa. Sortudo será o homem que um dia conquistar o seu
amor e embora eu queira, como jamais quis algo na vida, não posso ser esse
homem.
Após o jantar, coloco Luci na cama e praticamente me obrigo a sair de
casa. Só vou a essa danceteria com Michelle porque já prometi e porque seria
ainda mais difícil ficar em casa sabendo que o objeto dos meus desejos mais
primitivos está a apenas algumas portas de distância do meu quarto e ainda
assim eu não posso chegar perto.
Opto por sair em um dos carros, para não ter que obrigar Lewis a ficar
acordado até de madrugada, esperando por mim, afinal ele está velho demais
para isto. Como combinado, pego Michelle em sua casa e rumamos para o centro
de Fairbanks.
A nova danceteria se difere de todas as demais casas noturnas da cidade.
Com a fachada na réplica de um castelo medieval mal-assombrado, traz imagens
de bruxos e duendes do lado de fora, sendo bem iluminada e bastante chamativa.
Acredito que agradará ao gosto dos jovens baladeiros da cidade. Do lado de
dentro a decoração continua no mesmo estilo, só que com mesclagens de
detalhes futurísticos, presentes principalmente na arquitetura do espaço, nos
jogos de luzes e até no conforto dos assentos. Como eu já imaginava, a maioria
das pessoas presentes são jovens entre vinte e trinta anos, ainda assim não me
sinto deslocado com meus trinta e cinco, mas apenas incomodado com a
barulheira da música alta demais, ao som da qual todo mundo se agita
freneticamente.
Michelle e eu subimos para a área vip, onde o som da música é mais
ameno e nos acomodamos confortavelmente a uma mesa, de onde podemos
enxergar os dançarinos pulando como loucos.
— Aos meus vinte e poucos anos, eu teria adorado um lugar como esse.
— falo, alterando o tom da voz para que se sobressaia ao som da música.
— Ainda há tempo de gostar. Você não está velho, nem eu. — Ela me dá
uma piscadela maliciosa e relembro o tempo em que éramos amantes.
Foi uma época bastante agitada da minha vida, quando eu precisava
dividir meu tempo livre entre ela e Olivia, ainda minha esposa. Em todas as
viagens de negócios que eu fazia, Michelle ia junto e nos aventurávamos nas
farras mais animadas durante essas viagens. Ela sempre foi uma mulher muito
sensual, que aprecia ter a atenção dos homens, não entendo porque está sozinha
até hoje. Não me lembro de tê-la visto acompanhada de algum homem durante
esses anos em que estamos separados.
O garçom se aproxima e ambos pedimos a bebida especial da casa: uma
mistura de vodca com limão, gelo e essência de outras frutas cítricas. Enquanto a
bebericamos vagarosamente, a conversa se torna cada vez mais solta, sem que
em momento algum Michelle deixe de se comportar com a sensualidade inerente
à sua personalidade, a qual às vezes fica enjoativa, pois passa a impressão de que
ela está sempre se insinuando, fazendo questão de exibir o decote profundo do
vestido, de expor as coxas através da fenda grande demais na saia, de balançar os
cabelos negros e volumosos e de quando em quando ir ao banheiro retocar o
batom vermelho sangue. Sua conversa é animada, as falas inteligentes, porém eu
estaria mentindo se dissesse que estou me divertindo ao lado dela. Preferia estar
no sofá da minha sala, vendo um filme com as meninas, como fazia antigamente,
porém em casa a tentação está perto demais.
Em um dos momentos em que Michelle vai ao banheiro retocar o batom,
saio da mesa entediado e recosto-me à grade de proteção de meio metro de
altura, de onde posso avistar toda a pista de dança e os dançarinos frenéticos se
agitando sob os jogos de luzes coloridas. Quando se é jovem, se acredita que
jamais perderá o gosto por esse tipo de música e de dança. Porém depois dos
trinta parece não fazer mais o menor sentido ficar pulando como um louco em
meio a tanta gente desconhecida, ao som de uma música tão alta.
Ao encerrar uma música, uma mixagem de Everybody Dance Now, antes
que o próximo mix inicie as luzes coloridas se apagam e dão lugar a uma luz
mais clara, que me possibilita enxergar nitidamente as pessoas lá embaixo e é
então que a vejo. Evangeline. Eu reconheceria seus cabelos longos e dourados
como ouro em qualquer lugar; jamais confundiria o corpo extremamente
feminino, de um jeito delicado, emoldurado pelo vestido leve, de uma cor clara,
curto demais. Mergulho em uma espécie de hipnose enquanto a observo sorrindo
descontraidamente, relaxada como em raras ocasiões, divertindo-se em meio aos
demais dançarinos, a maioria da sua idade. Uma mão masculina acaricia sua face
e só então percebo que ela não está sozinha. Meu sangue ferver de ódio quando
desloco meu olhar para aquela direção e vejo Joseph Patel diante dela, perto
demais fitando-a nos olhos, cheio de malícia e insinuações.
Puta merda! O que ela está fazendo com esse maldito? O irmão do
sujeito que tirou meu filho de mim! Será que estão juntos desde que ela chegou à
cidade? Desde o dia em que a levou para casa depois de cuidar de Luci no
hospital? Como ela pode ter um caso com o irmão do sujeito responsável pela
morte do meu filho? Como pode ter passado a noite comigo mesmo estando
envolvida com ele? Como pude me enganar acreditando que ela é diferente da
maioria das mulheres? E os Patel, não se cansam de tentar tirar tudo o que me
importa?
A música recomeça, um hit lento desta vez e Joseph a segura firmemente
pela cintura, colando-se todo a ela para dançar, sua atitude despertando uma fúria
descomunal dentro de mim, uma fúria acentuada pelo fato de que os dois ficam
muito bem juntos, já que têm praticamente a mesma idade, diferente de mim,
que sou mais de uma década mais velho que ela.
Descontrolado, dou meia volta decidido a descer até lá e fazer com que
aquele desgraçado tire as mãos de cima dela, porém, antes que tenha tempo de
sair do lugar, me deparo com Michelle, que acaba de retornar do banheiro.
— Onde você vai? E que cara é essa? Viu algum fantasma? — Esperta
como sempre foi, antes que eu responda, ela olha por cima do meu ombro e vê
Evangeline lá embaixo, dançando colada a Joseph — Pensei que tínhamos
combinado que você esqueceria essa garota.
— Acontece que eu não consigo ver isso e não fazer nada. — vocifero,
entre dentes, lutando ferozmente contra o impulso de descer até lá e partir a cara
daquele desgraçado em duas.
— Mas é claro que consegue. Vai ser melhor para vocês dois se ela ficar
com outro homem. Agora vem comigo, vamos nos sentar e pedir algo mais forte
para beber.
Michelle está coberta de razão, vai ser muito melhor para mim e para
Evangeline se cada um seguir o seu caminho, se nos ligarmos a outras pessoas.
Tento me agarrar a esse pensamento a fim de refrear o desejo insano de ir até ela
e deixar claro a quem ela pertence, no entanto, meus olhos traiçoeiros se viram
novamente em sua direção e quando vejo aquele imbecil apertando-a de
encontro ao seu corpo, com a boca colada no alto da sua cabeça, perco o pouco
autocontrole que me resta e praticamente passo por cima de Michelle para
alcançar as escadas.
Que se foda o fato de que Evangeline tem o coração do meu filho
batendo em seu peito, que se foda ela ser quatorze anos mais nova que eu, não
vou permitir que qualquer outro homem coloque as mãos nela, principalmente
aquele bastardo.
Com o sangue correndo quente de fúria, desço os lances de escadas quase
sem ver o caminho e sem ouvir Michelle falando sem parar enquanto vem atrás
de mim, tentando me fazer desistir. Na pista de dança, atropelo alguns casais até
alcançar Evangeline, então seguro firmemente em seu braço e a puxo para longe
do canalha. Com a outra mão, empurro-o bruscamente pelo peito, afastando-o.
Espero que ele reaja, que venha para cima de mim, para que eu possa quebrar a
cara dele como quero, mas ele não vem, em vez disso ergue as duas mãos no ar,
em rendição.
— Calma aí, cara. O que você está querendo? — indaga ele, os olhos
ligeiros alternando entre minha mão no braço de Evangeline e o rosto dela,
esperando, e certamente torcendo, que ela peça a sua ajuda para se livrar de
mim, o que não vai acontecer. Ela sabe que ao meu lado é o seu lugar.
— Se chegar perto dela de novo, quebro a sua cara! — Me limito a dizer,
meus dentes trincados de ódio.
Com toda a minha fúria, saio puxando Evangeline por entre as pessoas, à
procura de um lugar tranquilo onde possamos conversar, no entanto, ela começa
a se debater, tentando libertar seu braço da minha mão e ao ver isso o maldito
Patel vem atrás de nós, junto com Michelle.
Ele está pedindo por uma surra.
— O que você está fazendo? — Evangeline esbraveja, tentando se soltar
— Será que dá pra me soltar?
— Nada disso. Precisamos conversar.
— Aconteceu alguma coisa com as meninas?
— Elas estão bem.
— Então pra que tudo isso?
— Só quero ficar sozinho com você, ou prefere continuar deixando
aquele bastardo te passar a mão?
— Já chega, Victor. Você está agindo como uma animal.
Ela puxa o braço com um safanão, como me recuso a soltar, acaba se
machucando e ao perceber isso, o idiota do Joseph se coloca em meu caminho,
me obrigando a parar, dando-me a chance de quebrar a cara dele.
— Solta ela, Sr. Boseman. Não vê que a está machucando?
Sr. Boseman?! Ele me chamou assim de propósito para mostrar a
Evangeline que é muito mais novo que eu.
Moleque!
— E se eu não quiser, vai fazer o que, seu moleque? — Movido por um
impulso, empurro-o pelo peito, provocando-o, mas o cara parece ter sangue de
barata e mais uma vez não reage.
Não posso bater nele assim.
Antes que ele tenha a chance de responder, Evangeline se coloca entre
nós dois, de frente para mim e só então percebo que minha mão deixou uma
marca vermelha em seu braço.
Puta merda! Eu fiz de novo. A machuquei pela segunda vez. Nunca na
minha vida machuquei uma mulher. Em que espécie de animal irracional meus
sentimentos por essa garota estão me transformando? Talvez eu deva mesmo
ficar longe dela, mas como ficar longe se cada parte de mim suplica,
dolorosamente pelo oposto?
— Para com isso Victor. Se você quer conversar, só precisava ter me
chamado. — diz ela e o remorso recai sobre meus ombros, afligindo-me,
impiedosamente.
Nesse momento, é Michelle quem aparece, como se surgisse do nada.
Coloca-se entre mim e Evangeline, quando posso ver os olhos azuis da garota
que eu quero fitando-a com mágoa. Se ela já acreditava que ainda somos
amantes, depois de nos ver juntos aqui não terá mais dúvidas.
— Acho que você exagerou na vodca, não é Victor? Vamos sair daqui.
Deixe os dois se divertirem. Hoje é dia de festa.
— Cala essa boca, Michelle! — esbravejo e desvio dela para voltar a fitar
Evangeline. — Quero conversar. Será que podemos sair dessa barulheira?
— Podemos.
— Seu casaco está no meu carro, Evangeline. — Será possível que esse
moleque só vai sair de perto de mim depois que eu partir a cabeça dele em duas?
— Ela estará bem aquecida comigo. — Limito-me a dizer.
— Me desculpe, Joseph. — Evangeline diz.
Seguro-a pela mão e a conduzo para fora da danceteria, onde o frio nos
golpeia duramente e me apresso em entregar as chaves do carro ao manobrista.
— E aí, vai me dizer o que você quer? — Evangeline indaga, tilintando,
enquanto ainda estamos em pé na calçada, esperando o manobrista trazer o carro.
— Falo quando estivermos no meu carro. Está muito frio aqui.
— E quem te disse que vou sair daqui com você? — Sua irritação me
surpreende.
Será que queria tanto ter ficado com aquele moleque?
— Precisamos falar.
— Então fale aqui mesmo. Eu vim com Joseph e vou voltar com ele.
— O que esse moleque é para você? Por acaso está tendo um caso com
ele?
Vejo seu rosto enrubescendo de raiva, suas narinas se dilatando.
— Isso não é da sua conta, pois sou livre e desimpedida, assim como
você, tanto que está aqui com sua amante.
— Michelle não é mais minha amante, eu já te disse isso. Quanto a você,
não pode sair com aquele bastardo!
— E por que não? — Ela me encara em silêncio, como se esperasse uma
resposta, como não obtêm continua — Me dá uma boa razão para que eu não
continue meu encontro com Joseph e eu sairei daqui com você agora mesmo.
A essa altura, o manobrista aparece com o carro e entrega-me a chave.
Não insisto para que ela entre, pois sei que se recusará e não quero correr o risco
de machucá-la uma terceira vez, no entanto, me recuso a permitir que ela fique
aqui com aquele babaca.
— Ele não serve para você. Faz parte daquela família podre. O irmão
dele tirou meu filho de mim.
Evangeline me encara por um breve momento de silêncio, os olhos azuis
claros marejando de lágrimas.
— Então é isso? Você não quer que eu fique com ele porque odeia sua
família, e não por outra razão?
O que eu posso dizer? Eu a quero, com toda a força do meu coração, mas
não posso assumir isso, pois não posso ficar com ela.
— Ele não serve para você.
— Acontece que quem decide isso sou eu. Contra mim eles não fizeram
nada, e nem contra você, pelo menos não deliberadamente, portanto vou ficar
com ele, se eu quiser.
Ela faz menção de voltar para dentro da danceteria e a raiva se alastra
pelas minhas veias. Sem conseguir pensar direito, tomo o seu caminho,
impedindo-a de prosseguir.
— Quando dormiu comigo, você já estava transando com esse
desgraçado?
Com a fisionomia contraída de fúria, Evangeline ergue sua mão e tenta
desferir-me uma bofetada no rosto, no entanto, sou mais rápido e a impeço,
segurando seu punho a meio caminho.
— Não sou esse tipo de garota e não que seja da sua conta, mas não estou
transando com ele, não ainda, embora seja exatamente isso que pretenda fazer, se
possível ainda hoje. Agora me solta. Volta pra sua amante, ou ex-amante,
embora eu ache que essa história de ex vai durar pouco e me deixe voltar para o
cara que eu quero.
Cada palavra que sai da boca dela funciona como uma punhalada em
meu peito e sou o único que pode impedi-la de proferi-las, de voltar para dentro
da danceteria e ficar com aquele maldito.
— Então é isso? Ele é o cara que você quer?
— Não vou deixar de ficar com alguém só porque você não gosta da
família desse alguém.
— Você não respondeu minha pergunta.
— Responda a minha primeiro, mas responda com a verdade: você não
quer eu fique com Joseph, só porque não se dá bem com a família dele?
O que ela acaba de fazer é me dar um ultimato. Se eu disser que sim,
voltará correndo para dentro daquela boate e pertencerá a outro homem. Se eu
disser que não, vou ter que falar uma verdade que me transformará no sujeito
que se apaixonou pela garota que carrega o coração do seu filho no peito.
Puta merda!
Em silêncio, com o coração esfarelando no peito, minha mão vai se
afrouxando do seu pulso, à medida em que eu vejo a decepção emergindo no
brilho dos seus olhos lindos. Tão logo a solto, ela desvia seu olhar para o chão,
desgostosa e ruma em direção à porta de entrada. Daqui a alguns segundos estará
nos braços de Joseph novamente, eu acabo de perdê-la e não estou fazendo nada
para impedir isso.
Com determinação, tento permanecer firme no lugar, pois esse é o certo a
ser feito, no entanto, as emoções dentro de mim gritam muito mais alto que a
razão, até que se torna impossível ignorá-las, quando então, saio do meu lugar
num rompante e vou atrás dela, entrando novamente na danceteria, conseguindo
alcançá-la antes que encontre aquele maldito. Em meio à multidão de pessoas, ao
som da música ensurdecedora, tomo o seu caminho e a fito diretamente nos
olhos.
— Não é por ele. Podia ser qualquer homem a esperando aqui dentro que
eu não suportaria a ideia. — Hesito mais uma vez antes de continuar — Estou
apaixonado por você Evangeline, irremediavelmente apaixonado e me sinto
morrer por dentro só em pensar em você com outro homem. Então não volte
para perto daquele sujeito. Estou te pedindo.
Vejo as lágrimas marejarem os olhos dela, ao mesmo tempo em que seus
lábios bem desenhados se curvam em um sorriso suave.
— Eu não vou. — diz ela.
Entregando-me ao meu sentimento mais primitivo, passo um braço em
torno da sua cintura, puxando-a para mim e a beijo, com todo o meu desejo,
tentando saciar minha sede, até que ela esteja arfando na minha boca.


CAPÍTULO XV


Evangeline


Meu coração bate descompassado no peito durante todo o tempo em que
Victor me beija, sua boca gostosa devorando a minha, a explorando. Sentir
novamente seus braços em torno do meu corpo é como encontrar um abrigo
confortável no mais tórrido deserto, experimentar o calor do seu corpo de
encontro ao meu me faz sentir mais viva, o sangue fluindo mais quente nas
veias, um latejar ansioso se instalando no centro da minhas pernas, deixando
minha calcinha molhada.
Quando ele interrompe o beijo, estou sem fôlego, minha pele ardendo.
— Vi algumas cabines privativas na área vip, quero que venha comigo
até uma delas. Preciso de você agora, não posso esperar até que estejamos em
casa. — propõe ele.
Meu primeiro impulso é concordar, entretanto lembro-me de que
inúmeras vezes ele me disse que há algo entre nós nos impedindo de ficarmos
juntos e embora isso pouco me importe, preciso saber do que se trata antes de
darmos mais qualquer passo.
— Eu quero muito ir com você, mas antes quero que me diga o que nos
separa, esse algo que você mencionou tantas vezes.
Vejo seu corpo grande estremecendo com as minhas palavras e me
arrependo por tê-las proferido quando ele se afasta um passo de mim.
— Depois que eu te disser, você vai se afastar de mim. — Há angústia no
tom da sua voz e meu coração aperta no peito.
— É tão grave assim?
— A ponto de nos separar.
Tento imaginar o que é e chego à conclusão de que, se é para nos afastar,
não quero mais saber. Então, entregando-me a um impulso, volto para ele,
aconchegando meu corpo novamente ao seu, os braços em torno do seu pescoço.
— Nesse caso, não quero saber. Me leve logo para essa cabine. Quero
ficar sozinha com você.
Ele hesita e umedeço meus lábios com a língua, incentivando-o a me
beijar.
Todo retraído, com os músculos enrijecidos de tensão, Victor abre a boca
para dizer alguma coisa, então parece voltar atrás e se silencia. No instante
seguinte, sua boca está novamente devorando a minha em um beijo faminto,
carregado de luxúria, que deixa o meu corpo todo em alerta, o calor da lascívia
concentrado na altura do ventre, os mamilos doloridos.
Em silêncio, ele segura-me pela mão e me conduz rumo aos fundos da
danceteria. Ao passarmos em frente ao bar, enxergo Michelle e Victor sentados
lado a lado, bebendo e conversando. Pelo visto não sentiram muito a nossa
ausência. Eu queria poder esperar que ambos se dessem bem, que se
envolvessem romanticamente um com o outro, mas sei que não vai ser assim,
aquela mulher ainda é louca por Victor, percebi isso pela forma como olha pra
ele, meu chefe só não percebe porque os homens são meio desatentos para esse
tipo de coisa.
Dos fundos da danceteria parte um corredor semiescuro, ao longo do qual
se estendem várias portas. À entrada está sentado um homem afrodescendente.
— Exclusiva ou popular, senhor? — indaga ele, dirigindo-se a Victor.
— Exclusiva, por favor. — Victor responde, entrega seu cartão de crédito
ao homem e em seguida recebe uma pequena chave.
É novidade para mim que haja cabines privativas em uma danceteria,
achei que fosse coisa de casa de swing. Deve ser uma nova modalidade, ou algo
típico do Alasca.
— Qual a diferença entre a popular a e exclusiva? — indago, enquanto
seguimos de mãos dadas pelo corredor.
— Não faço ideia. Na minha época não existiam cabines em danceterias,
mas desconfio que a exclusiva não tenha sido usada por outra pessoa.
— Na sua época? Você fala como se fosse um velho.
— Perto de você sou quase um.
Ele destranca a porta da cabine e entramos. O lugar resume-se a um
cômodo de cerca de dezesseis metros quadrados, com uma cama redonda ao
centro, frigobar, banheiro e uma prateleira pequena repleta de brinquedos
eróticos. É possível ouvir o som da música partindo alto do lado de fora.
— Uau! É quase um motel. — exclamo.
Victor me lança um olhar sombrio.
— Acho que isso mostra quais eram a intenção do Patel quando escolheu
esse lugar para trazer você.
— Não é verdade. A danceteria está inaugurando hoje. Essas cabines são
novidade para todos.
Ele me segura pelo pulso e me puxa com um safanão, chocando meu
corpo contra o seu, com força, para em seguida passar um braço em torna da
minha cintura.
— Mas tem um cara aqui que está cheio de más intenções com você
agora...
Silencia sua boca na minha, em um beijo voraz, esfomeado, seus lábios
se movendo de encontro aos meus, com urgência, a língua exigindo passagem, o
fogo do tesão me consumindo, me fazendo arfar. Ao mesmo tempo, sua mão
habilidosa explora meu corpo todo, me apalpando, apertando minha bunda antes
de se infiltrar sob minha saia. Desliza sobre a pele da minha coxa e a infiltra no
tecido molhado da calcinha, tocando minha intimidade, os dedos longos
mergulhando entre meus lábios vaginais, arrancando-me um gemido ao tocarem
minha entrada lambuzada.
— Porra... que delícia... você está toda molhadinha... — ele sibila e suga
meu lábio inferior com força, como se tentasse arrancá-lo.
Apartando sua boca da minha, afasta-se alguns centímetros, vira-me de
costas para abrir o zíper do vestido e o tira, deixando a peça delicada cair aos
meus pés. Instintivamente, cruzo meus punhos cerrados na frente da cicatriz em
meu peito, constrangida, antes de me virar novamente de frente para ele.
— Não faça isso, Evangeline. Não se esconda de mim. — Sua voz é
gentil e deliciosamente arrastada pela respiração pesada.
Gentilmente, suas mãos grandes afastam meus punhos da frente do meu
peito e o constrangimento se dilui na paixão que se reflete em seus olhos quando
eles examinam a marca vermelha em relevo perto dos meus seios.
— Ela já estava aí quando eu me apaixonei. Se faz parte de você, é
igualmente amada por mim.
Suas palavras me deixam arrepiada, o que se torna ainda mais intenso
quando ele me segura novamente pela cintura, me faz lançar a cabeça para trás e
planta uma trilha de beijos sobre a cicatriz. Então, leva as mãos às minhas
costas, abre o fecho do sutiã e o tira, para logo em seguida fazer o mesmo com a
calcinha minúscula, deixando-me completamente nua. Afasta-se alguns
centímetros e examina-me de cima à baixo, com olhos brilhantes de cobiça.
— Você é linda demais.
— Me deixa ver você também.
— Como quiser.
Sem qualquer inibição, com seus olhos lindos fixos nos meus, os lábios
esboçando um sorriso muito sutil, ligeiramente safado, ele se despe de suas
roupas, peça por peça, até estar completamente nu diante de mim, minha face
enrubescendo quando observo o pau completamente duro. É o maior que já vi na
vida, contando inclusive com os que vi em filmes pornôs na internet, totalmente
reto, cercado por veias protuberantes, é grosso e tem a pele volumosa, de um
jeito que entra gostoso, mais macio.
— Você é muito lindo.
— Que bom que gosta do que está vendo. — Suas palavras me deixam
ainda mais vermelha, pois apesar de ele ser todo lindo, só estou olhando em uma
direção — Vem aqui, me deixa te beijar inteira, há dias não penso em outra
coisa.
Com isto, ele volta a me atacar, um braço em volta da minha cintura, a
outra mão em meus cabelos, a boca esfomeada tomando a minha. Nos move pelo
quarto e nos deita na cama redonda. A princípio seu corpo grande está sobre o
meu me esmagando, me incendiando. Leva sua boca aos meus seios, morde,
suga, lambe meus mamilos, me fazendo sibilar, então, inverte as posições,
colocando-me sobre ele, com a facilidade de quem manuseia uma boneca de
pano. Deitado de costas, Victor me segura firme pela cintura e me faz montar
sobre seu rosto, uma perna de cada lado da sua cabeça, minha boceta aberta
diante da sua face, de modo que preciso apoiar as duas mãos na parede para me
equilibrar. Primeiro sinto o calor da sua respiração me acariciando suavemente,
bem ali, na minha intimidade, para que no instante seguinte sua boca experiente
esteja em mim, a barba macia me acariciando, a língua quente e úmida
passeando por toda a extensão da minha fenda, ora lambendo a entrada
lambuzada da minha vagina, ora dançando sobre o meu clitóris, enquanto só
consigo lançar a cabeça para trás e me entregar às sensações enlouquecedoras,
meus gemidos ressoando pela cabine.
Encharcada de tesão, abro mais as pernas e começo a esfregar minha
vulva na boca dele, gemendo e pronunciando seu nome repetidamente, sentindo-
me livre de qualquer inibição ou amarras morais, capaz de fazer qualquer coisa
que esse homem me propor.
Assim, viro-me em cima dele e me deito de bruços sobre seu corpo
másculo, uma corrente extra de tesão me acometendo com o breve roçar dos
meus mamilos nos músculos do seu abdome. Seguro seu pau pela base e o
coloco na boca. Sem timidez, passo a língua em torno da glande, provando o
gosto salgado do líquido transparente, depois a percorro por toda a sua extensão
e finalmente o engulo, chupando a ponta antes de enfiar mais fundo, até a
garganta, o que me rende um tapa na bunda, sem que a sua língua pare de se
mover freneticamente sobre meu ponto sensível, inchado, levando-me muito
perto do gozo.
Ensandecida, masturbo a base do seu pau enquanto mantenho a outra
parte dele na boca, movendo minha cabeça para cima e para baixo, levando-o até
a garganta, ao passo em que os dedos de Victor me penetram por trás, dois deles
na minha vagina, um terceiro no ânus, a princípio lentamente, para logo se
moverem cada vez mais depressa, entrando e saindo. Outro tapinha na bunda me
é dado, o gemido se prendendo entre minha garganta e a glande robusta em
minha boca. Movo os quadris em círculos, me esfregando na boca dele, então, os
lábios mornos prendem meu clitóris e sugam suavemente e assim explodo no
orgasmo profundo prolongado, convulsionando sobre ele, minha mão apertando
forte seu pau, os gemidos saindo altos. Mesmo quando tudo se acalma em mim,
Victor continua sugando meu clitóris, os braços em torno dos meus quadris me
mantendo firme no lugar, uma agonia lancinante me tomando.
Tento me soltar, ele não deixa, continua chupando, me matando, me
levando à loucura.
— Porra, Victor... — reclamo e ele suga mais forte.
Até que o inesperado acontece, meu corpo lânguido se retrai de novo, um
novo orgasmo se formando na altura do meu ventre e eu torno a explodir, com
menos intensidade dessa vez. Quando por fim ele libera meu ponto sensível, leva
a boca à entrada da minha vagina e se alimenta dos líquidos do meu prazer. Ao
ser libertada estou acabada, com os membros pesados, toda trêmula.
— Assim você me mata... — murmuro, exausta, ofegante.
— Ainda nem começamos.
Com suas mãos fortes, ele me gira na cama, colocando-se sobre mim, o
corpo másculo me cobrindo inteira, sua pele deliciosamente quente em contato
direto com a minha. Segura meu rosto entre suas mãos e me beija com fome,
incansavelmente, a língua com gosto de sexo explorando minha boca,
restaurando o desejo dentro de mim.
— Onde você aprendeu a enlouquecer assim uma mulher? — indago, a
voz entrecortada pela respiração pesada.
— Na vida. Agora vira de quatro, quero te comer por trás.
Sua proposta depravada me agrada e demonstro isso com um sorriso
safado.
Quando sai de cima de mim, Victor vai até a prateleira de vidro na
parede, pega um preservativo e um tubo de gel e volta para a cama. Observo-o se
cobrir com o látex e me viro, colocando-me de quatro sobre o colchão, com a
pernas abertas até o limite, a bunda empinada, pronta, ansiosa para recebê-lo.
Logo sua mão segura na lateral do meu quadril e a cabeça do seu
membro é esfregada na minha entrada completamente lambuzada, como uma
ameaça gostosa. Então, o golpe vem, firme e bruto e ele está enterrado em mim
até a raiz, seu tamanho avantajado me esticando toda, me abrindo, me
ensandecendo. Ele puxa os quadris e os arremete contra mim novamente, em
uma estocada brusca, deliciosa, que me faz gritar de prazer. Em seguida vem o
tapa na bunda, cujo estalo ressoa pela cabine, então ele se move dentro de mim
novamente, estocando bruto, quase com violência, me alcançado fundo demais,
me satisfazendo como nunca fui satisfeita antes.
Me sentindo tão dele, abro mais as pernas e deito o dorso no colchão a
fim de empinar ainda mais a bunda, seu pau me alcançado mais fundo, entrando
e saindo de mim, incessantemente, deliciosamente, enquanto as palmadas se
reptem nas minhas nádegas, o misto de prazer e ardor me fazendo gritar,
palavras desconexas escapando da minha garganta.
— Assim, minha putinha, se escancara toda pra mim... me dá essa
bocetinha gostosa... me diz que ela é só minha... — sua voz me lembra o rosnado
selvagem de um animal e isso me deixa ainda mais excitada, pois conota
entrega, descontrole.
— Só sua... toda sua... me come gostoso... bem assim... assim... ahhh...
Quanto mais forte e mais depressa ele mete em mim, mais eu perco o
juízo, o controle. As paredes sensíveis do meu canal latejam em torno da rigidez
dele, minhas mãos apertam o lençol diante do meu rosto, suas bolas estão se
chocando contra meu clitóris. Meu corpo começa a se contrair de novo,
anunciando a chegada do êxtase, quando então ele desacelera os movimentos,
metendo bem devagar, macio. Molha o dedo indicador na minha lubrificação e o
insere em meu ânus, a princípio devagar, depois movendo-o mais depressa, me
abrindo, me esticando. Enfia outro dedo e continua me fodendo nos dois lugares,
deliciosamente, como tudo o que faz.
— Me deixa comer esse cuzinho virgem... — pede e sibila.
— Não. Seu pau é muito grande, vai me machucar.
— Prometo que não vou. Faço bem devagarinho... bem gostoso.
— Promete?
— Sim. Se eu a machucar você me avisa e eu paro na mesma hora.
— Está bem.
Então, ele sai de mim, inclina-se e lambe minha boceta por trás, a língua
quente e molhada parecendo mais macia que antes ao massagear meu clitóris,
para em seguida se deslocar até meu ânus e se mover sobre ele, em círculos,
fazendo pressão, tentando entrar sem conseguir, me lambuzando.
— Deite-se de costas. — ordena ele, com tom autoritário e obedeço sem
hesitar, o corpo trêmulo em antecipação. — Agora abra bem as pernas.
Abro-as até o limite.
Ele inclina-se sobre mim e coloca dois travesseiros sob meus ombros, em
seguida levanta minhas pernas e me faz segurar os joelhos dobrados com os
braços, deixando-me muito arreganhada diante dos seus olhos brilhantes de
luxúria.
— Você não faz ideia do quanto está linda assim... — sussurra, rouco, e
passa os dedos no vão entre minhas nádegas até os lábios vaginais. Em seguida
pega o tubo de gel e abre — Vou passar um pouco em você, para lubrificar. É um
pouco gelado, mas é só isso, não arde nem gruda.
Ele lambuza os dedos com o gel transparente e o espalha sobre meu ânus,
primeiro por fora, depois penetra os dedos e o lambuza por dentro. Então, se
posiciona entre minhas penas, segura o pau enorme pela base e o encaixa na
minha entrada virgem.
— Se doer você para. — aviso, receosa com o tamanho dele ali atrás.
— Relaxa, não vou machucar você.
Devagar, ele vai se enterrando, deslizando para dentro de mim, com
tamanha pressão que parece estar me partindo ao meio. A dor lancinante me
afeta, em resposta ele leva os dedos ao meu clitóris e o massageia em círculos
vagarosos, o tesão distraindo minha atenção do desconforto, tomando conta de
mim, me fazendo relaxar e me abrir mais para recebe-lo, até que ele está todo
enterrado no meu corpo, me arregaçando.
Deita-se sobre mim e me beija furiosamente, chupando minha língua
gostoso, sua pélvis macia pressionando meu clitóris sensível, o peito musculoso
roçando no bico dos meus seios, me deixando ainda mais perdida de luxúria.
Sem separar sua boca da minha, ele puxa os quadris muito devagar e se enterra
em mim novamente, a dor me fazendo gemer em sua boca. Enfiado em mim até
a base, com minha língua na sua boca, ele gira os quadris e sua pélvis lisa
massageia meu clitóris, deliciosamente, o tesão sobressaindo-se à dor. Puxa os
quadris e se enterra de novo e mais uma vez, até que não para mais.
Aos poucos, meu corpo vai se acostumando ao tamanho dele ali atrás e
logo estou enlouquecida de novo, rebolando no seu pau, querendo mais do que
me dá.
Victor ergue seu corpo e continua metendo, cada vez mais depressa, seus
olhos reluzentes de lascívia observando atentamente o entrar e sair, minha vulva
aberta.
— Porra... que delícia... você foi feita para o sexo... quero te comer todo
dia...
— Quero ser sua todo dia... já estou viciada nesse pau gostoso...
— Posso ver sua bocetinha latejando daqui... que delícia...
— É vontade de você...
— Acho que posso dar um jeito nisso.
Sem sair de dentro de mim, ele nos move na cama, estica o braço até a
prateleira de vidro e pega um dos vibradores, tamanho médio, tira-o da
embalagem plástica e o aproxima da minha boca.
— Chupa. — ordena e o abocanho, lambendo e sugando, sem que seus
olhos deixem de registrar cada gesto.
Então, ele liga o vibrador e o leva até meu sexo. Pousa-o primeiro sobre
o meu clitóris, massageando-o, então o introduz na minha vagina, devagar,
movendo-o dentro de mim, a vibração massageando deliciosamente as minhas
paredes ao mesmo tempo em que ele me penetra por trás. A sensação da dupla
penetração é inigualável, libertadora, o tesão alcança níveis alarmantes em mim,
o prazer é absoluto. Logo o orgasmo se forma em minhas entranhas e eu
explodo, gozando e gritando, lágrimas fugindo dos meus olhos, meu corpo
arqueando involuntariamente, até que caio mole na cama, o corpo pesado.
Victor tira o vibrador de dentro de mim e o abandona ao lado, segura
minhas pernas abertas com os seus braços e se arremete violentamente contra
mim, em uma secessão de estocadas bruscas, até que fica imóvel, todo enfiado
em meu canal e goza, um único gemido lhe escapando, seus espasmos se
fazendo fortes enquanto os jatos de esperma jorram em meu interior.


CAPÍTULO XVI



Ele sai de mim, joga o preservativo usado fora e quando volta a se deitar
me puxa para os seus braços, aninhando minha cabeça em seu peito largo,
entrelaçando suas pernas nas minhas, quando poso sentir as batidas aceleradas
do seu coração de encontro à minha face. Durante os minutos seguintes,
permanecemos assim, imóveis, apenas apreciando a sensação do langor e do
contato delicioso com a pele nua um do outro, envolvidos por uma aura gostosa
de paz, de que tudo no universo está no lugar certo, de que nada mais nos falta.
— Será que podemos ficar aqui até depois de a boate fechar? — indago,
depois do longo silêncio.
— Eu acredito que sim, pois acho difícil alguém se levantar para ir
embora depois do que se faz aqui. — Seu comentário me faz sorrir.
— Se você não se importa, prefiro voltar para dormir em casa.
— Claro. Já vamos embora. Eu também não conseguiria dormir com esse
barulho. — Carinhosamente, ele beija o alto da minha cabeça — O que você
acha de a gente voar para um lugar quente nesse final de semana? — diz ele e
quase salto da cama, tomada por um misto de surpresa e euforia.
— É sério?
— E por que não seria?
— Sei lá, você nunca sai para se divertir, parece um viciado em trabalho.
— Acho que estou viciado em outro coisa agora. — diz e move os
quadris para pressionar o pau semiereto na minha coxa.
— Vai ser ótimo. As meninas vão adorar.
— Eu estava pensando em irmos apenas nós dois, para uma praia bem
bonita, mas se você quer levar elas, não tem problema.
— Claro que quero levá-las. Se as deixarmos vão se sentir rejeitadas.
Você sabe quantos danos psicológicos a rejeição pode causar na mente de um ser
humano?
Posso sentir seu corpo grande estremecendo de encontro ao meu.
— Nunca mais vou deixar que elas se sintam assim. Graças a você eu
percebi o quanto estava sendo horrível com elas.
— Elas só precisam de amor e sei que você tem muito para dar. Eu
sempre soube disso.
— Nesse caso, vem aqui, deixa eu te mostrar um pouco mais do meu
amor.
Ele me puxa e cola sua boca na minha mais uma vez, deixando-me
completamente sem fôlego.
Permanecemos na cabine por mais algum tempo e então a deixamos,
seguindo de mãos dadas pelo corredor. A danceteria continua lotada de gente,
dançarinos se agitando, outros bebendo, outros se pegando. Estamos passando
em frente ao bar, quando de repente Michelle toma o nosso caminho,
acompanhada por Joseph, seus olhos castanhos esverdeados me fitando com
desapontamento, me fazendo desviar meu olhar para o chão, embaraçada.
Ao perceber a forma como ele me olha, Victor passa um braço em torno
dos meus ombros, em um gesto possessivo.
— Eu vi quando vocês dois passaram para as cabines. Já estavam
entrando. — diz Michelle, sua voz embolada indicando que está muito bêbada
— E aí, é bom mesmo lá dentro?
— Isso não é da sua conta. Agora saia do caminho. — Victor retruca,
curto e seco.
Ela não se move e quando ele tenta contorná-la, novamente se coloca na
frente, as pernas ligeiramente bambas pela embriaguez.
— Vocês demoraram pra burro, lá dentro. Teve tempo de contar a
verdade pra ela?
De súbito as palavras dela atraem a minha atenção. Que Victor me
esconde um segredo eu já sabia, mas desconhecia o fato de que dividiu esse
segredo com ela, sua ex-amante, antes de o revelar a mim. A constatação me faz
me esquivar do braço dele no meu ombro.
— Isso não é da sua conta. Agora sai da frente, porra! Vê se vai pra casa
tomar um café.
Ele segura-me pela mão e novamente tenta contorná-la, sem que ela
permita. Se coloca à nossa frente, Joseph ao seu lado, seus ouvidos atentos ao
que ela diz.
— Que coisa feia, você ainda não contou pra ela? Como essa menina vai
reagir depois?
— Cala essa boca, Michelle. — O fato de Victor falar entredente, revela
sua indignação e acentua a minha.
Por que diabos a ex-amante dele sabe sobre algo que diz respeito a mim?
Agora quero, mais que antes, conhecer essa verdade, por mais que ela traga dor.
— Deixa ela falar, Victor. — digo, trêmula em antecipação.
— Não. Nós conversamos sobre isso depois.
Novamente ele tenta passar por ela e desta vez ela pula em nossa frente
parecendo uma louca, tomando mais uma vez o nosso caminho.
— Não é certo você sair por aí fodendo a garota que recebeu o coração
do seu filho morto. — Tento processar essa informação, mas não consigo. É
absurda demais. — É isso aí, garota. Victor não te contou, mas o coração que
você recebeu era do filho dele.
Como se eu fosse puxada para uma espécie de transe que deixa meus
movimentos mais lentos, meus pensamentos mais sombrios, viro o rosto para
que meus olhos busquem os dele e na angústia que vejo refletida em seu olhar,
tenho a confirmação de que o que aquela mulher diz é verdade.
Cedendo a um impulso, puxo minha mão da dele e de súbito tudo parece
se mover à minha volta, de um jeito fantasmagórico. A música dá lugar a um
zunido insuportável em meus ouvidos, meu estômago revira, quase a ponto de
expulsar as batidas de frutas que bebi, minha mente fervilha e meu coração
parece sufocar no peito. O coração de Khalil, o filho que Victor tanto amou, cuja
morte quase o destruiu.
De repente, tudo começa a fazer sentido, compreendo o motivo pelo qual
ele me ajudou, me trazendo para trabalhar em sua casa sem que as meninas
precisassem de fato de uma babá. Não estava sendo solidário comigo, mas
apenas protegendo o coração do seu filho de se afundar na prostituição. Até aí,
tudo bem, qualquer pessoa teria feito o mesmo, no entanto, me levar para a
cama, fazer sexo comigo mesmo ciente de que tenho uma parte da pessoa que
ele mais amou nesse mundo dentro de mim, da pessoa que também é parte dele,
é quase doentio, inaceitável. Isso sem contar que ele tem mentido para mim
durante todo esse tempo, embora tenha me alertado de que não podia ficar
comigo e eu o ignorei. Nem nos meus pesadelos mais sombrios poderia supor
que esse é o motivo, nunca poderia ter imaginado algo tão macabro.
Enjoada, percorro os olhos ao redor e vejo todos eles me encarando,
Michelle com um sorriso de satisfação, Joseph parecendo estar completamente
chocado, Victor angustiado, tentando falar comigo, sem que o zunido nos meus
ouvidos permita que sua voz me alcance. Só quero sair daqui, me afastar dele, ir
para o mais longe possível. Tento caminhar na direção oposta a ele, mas minhas
pernas estão pesadas demais, se recusam a me tirar do lugar. Tento com mais
afinco e então elas falham, ameaçando me derrubar, sem que eu permita.
Mãos fortes me seguram, impedindo minha queda no chão, são as mãos
de Victor e me esforço para me libertar delas. Fecho os olhos com força e respiro
fundo várias vezes, em um esforço absurdo para me controlar, me sobrepor ao
choque, então finalmente consigo ouvi-lo e também falar.
— Tira suas mãos de mim. Não me toque, Victor!
Ele me atende, afastando suas mãos, me observando com aflição
enquanto me esforço para me equilibrar em pé.
— Por favor, Evangeline, você precisa me ouvir. — diz ele, angustiado.
— Não. Nada que você disser vai desfazer isso. Por favor, fica longe de
mim.
Tento me afastar, os três vêm atrás de mim.
— Não me siga, Victor. Já disse pra ficar longe.
— Você está louca se acha que vou te deixar sair por aí sozinha a essa
hora.
— Eu a levo pra casa. — Joseph toma a frente.
— De jeito nenhum. Sai de perto dela. — Meu chefe o desafia.
— Eu vou com ele Victor. — anuncio e paro de caminhar para me
segurar em Joseph, as pernas ainda bambas.
Victor engole em seco, fúria e desespero se refletindo no brilho dos seus
olhos azuis. Abre a boca para dizer algo, parece se arrepender e a fecha. Quando
Joseph e eu rumamos para a porta, sua voz nos alcança de trás de nós.
— Vê se toma cuidado com ela, seu moleque.
Então saímos, deixando-o para trás, junto com a barulheira da música.
Joseph pede seu carro ao manobrista e nos conduz através do trânsito
tranquilo dessa madrugada de sábado.
— Quer que eu a leve para a casa de Victor? — indaga ele, depois de um
longo momento de silêncio.
— Não. Me leve para qualquer lugar, menos para a casa dele.
Tudo ainda está muito confuso dentro de mim. Não sei se quero voltar a
ver Victor. Não apenas por ter contado tantas mentiras, por ter me enganado, mas
por saber que não suportarei olhar para ele sem poder tê-lo. É inconcebível que
haja relações entre mim e o homem que tem o DNA do coração que carrego no
peito. Nunca pesquisei nada sobre isso, mas acredito que possa ser inclusive
ilegal, pois faz uma conotação ao incesto.
Por Deus! Onde ele estava com a cabeça quando procurou por mim —
acredito que tenha procurado, pois seria coincidência demais se encontrar por
acaso com a receptora do coração do filho dele —, me trouxe para dentro da sua
casa e teve relações sexuais comigo? Eu admito que ele tentou evitar que isso
acontecesse, faltou me contar a verdade para que ambos lutássemos contra esse
desejo descabido que nutrimos um pelo outro. Não sei o que vou fazer agora, sei
apenas que se me afastar será mais uma perda na vida das meninas.
Mergulhados no silêncio absoluto, Joseph nos encaminha para a sua casa,
a mansão imponente que divide com os pais e os irmãos, a qual se encontra
quieta e silenciosa quando entramos e seguimos direto para o segundo andar,
onde ele me conduz até um quarto de hóspedes grande e bem mobiliado.
— Quer comer alguma coisa? Tomar um chocolate quente? — pergunta.
— Não quero incomodar. Está tarde.
— Nossa governanta não dorme muito nos finais de semana, quando
saímos.
Realmente não quero nada, porém antes que tenha tempo de dizer isso,
ele já está levando o celular ao ouvido, ditando as ordens para que tragam
chocolate e sanduíches. Então, desalentada, dirijo-me até uma sacada protegida
por vidro transparente, a qual, apesar de se manter artificialmente aquecida, nos
da a visão do belo jardim do lado de fora.
— Uau! É muito lindo aqui. — exclamo e acomodo-me em uma chase
branca suspensa por cordas, enquanto ele ocupa outra.
— É verdade. Essas varandas estão em todos os quartos, foi uma
invenção do meu pai, com o auxílio de um arquiteto francês.
— Ele é muito criativo.
Um longo momento de silêncio se segue antes que Joseph toque na
minha ferida aberta.
— Como você está se sentindo em relação ao que acabou de ficar
sabendo?
— Não sei. Só quero ficar longe de Victor agora.
— É realmente assustador que ele tenha trazido para casa a receptora do
coração de Khalil.
— E se envolvido com ela. Pode falar, não vou ficar ofendida.
Ele fita-me em silêncio por um instante antes de dizer:
— Eu não sabia que vocês estavam envolvidos. Por que não me contou?
— Porque não era sério. Achei que tinha sido apenas uma noite. —
Relembro todas as vezes que Victor tentou evitar que algo acontecesse entre nós
e meu peito é tomado pela dor de mil punais o perfurando — Sabe o que é pior
nessa história? Ele tentou evitar que acontecesse.
— Não tentou suficiente. Não tente aliviar a culpa dele, a vítima nessa
história é você. — Hesita antes de continuar — Se ele tivesse caráter, não teria
trazido você para debaixo do teto dele te escondendo a verdade, por outro lado,
eu lamentaria se não o tivesse feito, pois não a teria conhecido.
Subitamente, lembro da guitarra no quarto de Khalil e da atração
inexplicável que senti por ela, o que me causa um calafrio na espinha.
Nesse momento há uma batida na porta e Joseph deixa a varanda para
atender a governanta. Logo em seguida reaparece com uma bandeja contendo o
chocolate quente e sanduíches. Deposita-a sobre uma mesa de centro e comemos
envolvidos por uma conversa nostálgica, carregada de revelações e culpas,
durante a qual conto a ele tudo o que aconteceu na ocasião em que conheci
Victor, sobre a minha vida antes de vir para o Alasca e os motivos que me
trouxeram para essa terra tão gelada. Ao final da minha narrativa ele me oferece
hospedagem em sua casa, até fechar o contrato de aluguel de um apartamento em
Fairbanks, para onde posso me mudar com ele e conseguir um emprego no
hospital, com a sua ajuda. É muita generosidade da parte dele, porém, não posso
decidir minha vida assim precipitadamente, ainda preciso pensar sobre tudo e é o
que faço depois que Joseph me deixa sozinha. Deitada na cama confortável, rolo
de um lado para o outro sem conseguir adormecer, pensando em Victor, em tudo
o que sinto por ele, na força dessa verdade que nos separa.
Em certo momento, ignorando as inúmeras mensagens e chamadas
pedidas de Victor, uso o celular para pesquisar sobre as leis em relação ao
envolvimento entre um parente próximo de um doador de órgão e seu receptor e
não há nada que nos condene, pelo contrário, já houve outros casos parecidos e a
medicina não apontou nada de errado, ou anormal, nesse envolvimento. No fim
das contas, talvez eu esteja exagerando, talvez Victor e eu não estejamos tão
ligados assim, por outros laços que não seja o desejo selvagem que nutrimos um
pelo outro. No entanto, ainda há as mentiras. Ele foi desonesto, inescrupuloso e
hipócrita em me trazer para a sua casa me escondendo que o coração do seu filho
bate em meu peito, isso é quase tão grave quanto o DNA dele em meu corpo,
mas será maior do que essa paixão descabida que arde em meu peito cada vez
que o vejo?
Relembro cada momento ao seu lado. Logo no primeiro encontro,
quando jantamos juntos no Texas, me senti irresistivelmente atraída por ele,
quando o vi treinando na academia da sua casa isso se intensificou e foi
crescendo à media que nos encontrávamos, porém, apesar de tudo, apesar de ele
ter me salvado de morrer congelada naquele lago, apesar das noites em seus
braços, a verdade é que eu mal o conheço, pouco sei a seu respeito, pouco
conversamos durante esses meses em que estou aqui, a paixão descontrolada em
meu peito é maior que tudo isso? Ainda não sei preciso pensar mais, decidir que
rumos darei à minha vida, o que farei com meus sentimentos.
Não consigo dormir por mais que duas horas durante a noite. Quando
acordo o dia já está claro, os raios de sol de um dia brevemente mais longo que a
noite penetram o quarto através das cortinas encanceradas da porta da sacada.
Sentindo-me ainda cansada, com o corpo dolorido por causa do sexo, levanto-
me, visto meu casaco e saio. Não é uma fuga do dia seguinte depois de passar a
noite na casa de um quase desconhecido, só quero ver de perto a magnitude do
jardim lá fora. Então caminho na ponta dos pés, desço as escadas e atravesso a
sala enorme antes de passar pela porta da frente. Do lado de fora, o frio me
recebe com um golpe violento e agarro-me ao meu próprio corpo tentando
produzir um pouco de calor.
Caminho até o jardim e fico deslumbrada ao vê-lo de perto. É de muito
bom gosto, com plantas ricamente verdes, muito bem podadas formando um
labirinto enorme de paredes de meio metro de altura, ao centro do qual está um
gazebo cheio de flores, com balanços confortáveis, onde me acomodo, o peito
pesado, a cabeça cheia pelos pensamentos.
Um homem idoso usando o macacão xadrez se aproxima de mim. Deve
ser o jardineiro.
— Bom dia. Sou Tom, o jardineiro. A senhorita precisa de alguma coisa?
— indaga, simpaticamente.
— Não, obrigada. Estou muito bem aqui.
Ele assente e se afasta, deixando transparecer o quanto está achando
esquisito ver uma garota aqui a uma hora dessas. Uma casa cheia de homens
bonitos e ricos, como essa, deve ser visitada por muitas garotas e eu duvido que
uma delas deixe de estar na cama com um dos moradores para ficar
perambulando sozinha pelo jardim.
Não demora muito Joseph aparece, todo agasalhado, com o rosto inchado
das horas de sono, os cabelos molhados do banho.
— Bom dia. — diz ele, acomodando-se no balanço ao lado de meu — A
governanta me disse que você estava aqui e que ainda não comeu nada. Pedi que
ela trouxesse nosso café. Se importa?
— Imagina. Obrigada por isso e por tudo mais. Você é muito gentil.
— Gentileza é o meu segundo nome.
— Seus pais estão em casa?
— Sim. Chegaram ontem de viagem. Por isso estou alugando um
apartamento na cidade. Preciso de mais privacidade.
— Aqui é tão grande.
— Cabe todo mundo, mas você sabe como são os pais. — Na verdade eu
sempre gostei de ter os meus por perto, mas talvez porque precisasse demais
deles — E então, já decidiu o que vai fazer?
— Já. Vou voltar para a casa de Victor.
Vejo seu queixo caindo, a perplexidade tomando conta da sua fisionomia.
— Tá falando sério?
— Sim. Pensei bastante ontem, fiz algumas pesquisas na internet.
Cheguei à conclusão de que Victor errou feio mentindo para mim, me usando
para tentar resgatar a última parte viva do filho dele, mas nada disso é maior que
a paixão que eu sinto por ele. — Joseph se muda de posição no balanço,
parecendo incomodado — Então decidi que não vale à pena abrir mãos desse
sentimento por certos detalhes que podem ser contornados.
Ele balança a cabeça negativamente e sorri com amargura.
— Você está apaixonada por esse sujeito, é isso que está me dizendo?
— Sim, eu estou. Não planejei isso, apenas aconteceu.
— Como você pode estar apaixonada, se mal o conhece?
Há irritação no tom da sua voz, como se me julgasse e isso me incomoda.
— Conheço o suficiente para amá-lo.
— Não, Evangeline. Você não tem ideia de quem é esse homem, do que
ele é capaz. É um sujeito frio, ambicioso, vingativo e arrogante. Só pra você ter
uma ideia, ele quer destruir uma reserva natural marítima por vingança, para
vingar algo que meu irmão nem fez. Como você pode gostar de alguém assim?
— Sua voz alterada me irrita.
— Eu sei que ele tem defeitos, quem não tem? Mas não precisa crucificá-
lo só porque a família de vocês não se dá bem.
— Não é só por isso. Evangeline, é que... — ele se interrompe, desvia o
olhar para o chão e com um sorriso amargo balança a cabeça negativamente,
depois volta a me encarar — Você já deve ter percebido o quanto gosto de você,
não é? — sem esperar resposta, continua — Me desculpe por ter alterado a voz,
não vai acontecer de novo. Também não vou voltar a falar de Victor para você,
vou deixar que o tempo se encarregue de te mostrar quem ele é.
— Eu sei que ele está sendo monstruoso com a questão da reserva, vou
tentar convencê-lo a desistir disso.
— Boa sorte.
Nesse momento a governanta, uma mulher franzina, com cerca de
cinquenta anos, se aproxima, seguida por outra empregada mais jovem,
uniformizada. Ambas trazem bandejas com o café da manhã, uma grande
variedade de comidas frescas, de onde o aroma parte delicioso. Nos
acomodamos a uma mesa de ferro, típica de jardins, onde somos servidos e
fazemos a refeição, quando percebo que Joseph evita voltar a falar sobre Victor.
Eu acredito nele quando diz que meu chefe não é uma boa pessoa,
todavia, acredito também que todo mundo pode mudar. Da mesma forma como
ele mudou sua atitude em relação às filhas, pode desistir de concluir sua louca
vingança destruindo a reserva, essa é a questão que eu espero que o tempo
resolva para mim.


CAPÍTULO XVII



Todos na casa ainda estão dormindo quando Joseph e eu saímos para que
ele me leve de volta até o lugar onde nos encontramos na noite passada: na
estrada de cascalhos a alguns metros de distância da mansão de Victor, onde as
câmeras de segurança do meu chefe não têm alcance e de onde prossigo a pés até
a casa. Ao entrar encontro Victor na sala, acomodado em um dos sofás. Está
muito abatido, o rosto cansado com olheiras profundas. Tem os olhos
avermelhados, indicando a falta de sono e angustiados, a barba está sem fazer.
Ainda usa as mesmas roupas com as quais esteve na danceteria na noite anterior,
parecendo não ter sequer se deitado para tentar dormir. Tão logo me vê entrar se
levanta e vem me encontrar no caminho, fitando-me com aflição.
Encarando-o de perto constato mais uma vez o quanto o amo,
desesperadamente e o quão grande é esse amor, muito maior que qualquer
detalhe biológico que possa nos ligar.
— Você está bem? — indaga ele, a voz carregada de inquietação.
— Sim. Pelo menos mais calma.
— Passei a noite inteira te ligando.
— Eu sei. Não pude atender, estava aflita demais.
— Me desculpe por tudo isso, por ter causado toda essa aflição. — Seu
corpo estremece ao pronunciar as palavras.
— As meninas estão em casa?
— Sim. Estão no quarto.
— Precisamos conversar e não pode ser aqui, porque elas podem descer a
qualquer momento.
— Antes de mais nada, eu preciso saber. — Ele se aproxima mais um
passo, colocando-se tão perto de mim que seu cheiro gostoso me alcança, o que é
suficiente para que meu coração bata descompassado no peito — Você dormiu
com ele? Passou a noite com o Patel?
Sua desconfiança me enfurece. Quem ele pensa que sou para sair da
cama com um homem e pular na de outro?
— Sua desconfiança demonstra que tipo de mulher você me julga ser. —
murmuro, entredentes.
— Não é desconfiança, é paixão. — Ele segura minha face entre suas
mãos, aproximando seu rosto quase a ponto de tocá-lo no meu. — Eu sou tão
louco por você que me desatina a ideia de a imaginar com outro homem.
O calor do seu hálito com cheiro de uísque acariciando minha pele me
inebria, fazendo-me esquecer de tudo mais.
— Ele não chegou perto de mim. Dormi no quarto de hóspedes.
Com isto, ele me estreita em um abraço, acolhendo meu corpo de
encontro ao seu, apertando-me com tanta força que tenho dificuldade de respirar,
seu calor gostoso me afetando, me arrebatando, deixando-me perdida de paixão,
meu coração acelerando ainda mais no peito. Queria ficar assim para sempre,
acolhida em seu abraço, pois parece tão confortável, tão correto, como se esse
fosse o meu lugar no mundo, o meu lar, no entanto, ainda precisamos conversar.
— Vamos conversar. — proponho, desvencilhando-me do abraço.
— No escritório. — Ele segura-me pela mão e me conduz até seu
escritório no subsolo.
Chegando lá, nos acomodamos à mesa com tampo de mogno, um de cada
lado. — Quer tomar um café? — indaga.
— Não, obrigada, acabei de comer. Quero que me diga porque me
procurou, como chegou a mim e porque me trouxe para a sua casa.
Ele se recosta no espaldar da cadeira e respira pesadamente antes de
começar a falar.
— Acredito que você já tenha a reposta para tudo isso e só precisa de
uma confirmação. É exatamente o que está pensando. Eu perdi a cabeça depois
que Khalil morreu, pois parte de mim morreu com ele. Perdido em meu
desespero quis conhecer a pessoa que tem a última parte viva dele, saber como
você era, como vivia. Então contratei um detetive particular para a encontrar.
— E as pessoas que receberam o transplante dos outros órgãos dele, você
as procurou também?
— Não existem outras pessoas. Eu cheguei ao hospital a tempo de
impedir que outro órgão fosse retirado dele. Não estava na cidade quando o
acidente aconteceu. Olivia concordou com essa doação, mas como ele era menor
de idade precisava da permissão de ambos os pais.
Fico atônita ao imaginá-lo chegando ao hospital e encontrando o filho em
meio a uma cirurgia para retirada de órgãos. Deve ter causado revolta entre os
cirurgiões ao impedir a remoção dos demais órgãos.
— Por que me trouxe para a sua casa?
— Isso não foi algo que eu tenha planejado. Me senti genuinamente
atraído por você quando a vi. Não quis que se tornasse uma profissional do sexo.
Só queria te salvar de uma vida sofrida como essa.
— Claro, e não tem nada a ver com o fato de não querer a última parte
viva de Khalil envolvida com a prostituição.
— Não vou ser hipócrita dizendo que não. Isso pesou na minha decisão e
pesou também querer essa parte dele perto de mim, mas você foi o fator
determinante. Eu me importo com você, me importei desde o início.
Sei que ele está dizendo a verdade, posso ver a sinceridade na expressão
do seu olhar, assim como posso ver a paixão, o desejo, as mesmas emoções que
me invadem.
— Você tentou evitar que algo acontecesse entre nós, por quê?
Ele hesita antes de falar.
— Não achei descente me envolver com a mulher que carrega o coração
do meu filho no peito.
— E continua achando isso?
— Sim, mas o amor que sinto por você é maior que tudo, até que esse
pensamento. Nada mais me importa que ter você.
Suas palavras aquecem meu coração.
— Como você deve ter percebido, fique muito chocada quando Michelle
disse a verdade, mas depois de pensar bastante e fazer minhas pesquisas, cheguei
à conclusão de que o que sinto por você é muito maior que qualquer laço
biológico que possa nos unir. Eu te amo, Victor e estou disposta a ignorar o fato
de que me enganou, mentiu para mim e que tenho seu DNA em meu peito, para
passar a minha vida toda ao seu lado, se você me quiser.
Seus lábios se curvam no mais lindo sorriso. A uma velocidade recorde,
ele contorna a mesa e me toma em seus braços, erguendo-me da cadeira, colando
sua boca à minha e me beijando com sofreguidão, os lábios ávidos pressionando
fortemente os meus, até que eu esteja sem fôlego. Então ergue o rosto para me
fitar diretamente.
— Eu também te amo, Evangeline, como jamais me imaginei capaz de
amar alguém. Acho que me apaixonei no instante em que você entrou no meu
carro naquela esquina em Houston.
Não consigo conter o riso.

— Bela história vamos contar aos nossos netos sobre como nos
conhecemos.
Ele sorri também.
— Acho que vamos ter que inventar alguma coisa.
— Me lembre também de nunca te chamar de papaizinho na hora do
sexo. Isso seria estranho.
Ele gargalha e o acompanho.
— Que bom que estamos sorrindo disso. — fala.
— Agora voltando a falar sério, precisamos nos preparar para a reação
das meninas quando souberem que tenho o coração de Khalil.
— Não precisamos falar nada sobre isso para elas. Pelo menos não por
enquanto.
— Até a maluca da sua ex amante decidir fazer outro barraco e dar com a
língua nos dentes.
Suas sobrancelhas se unem e uma ruga profunda se forma no centro da
sua testa.
— Isso não vai acontecer. Eu a demiti hoje.
Sua revelação me deixa perplexa. Quero dizer que não precisava, que ela
não fez por mal que perder o emprego é um preço muito alto a ser pago pelo que
ela fez, no entanto, no fundo não estou achando tão ruim assim. Prefiro aquela
mulher longe dele.
— Não posso dizer que sinto por ela, pois estaria mentindo.
— Eu também não sinto. Agora vem aqui, quero te comer em cima da
minha mesa.
Com isto, ele me ataca novamente, sua boca gostosa me devorando, os
braços me contornando. Em um instante estou em pé no chão e no minuto
seguinte sentada no tampo da sua mesa, com as pernas abetas, seus quadris
encaixados entre elas, a ereção me empurrando onde mais necessito, o calor da
lascívia se alastrando ferozmente pelo meu sangue, me fazendo latejar e pulsar
no meio das pernas. Só que a nossa conversa ainda não acabou, então o empurro
pelo peito, afastando-o e desço da mesa.
— Ainda não terminei. — falo, a voz arrastada pela respiração pesada.
Resignado, ele volta a se sentar atrás da mesa, respirando fundo para
controlar seus impulsos. Sento-me e fico o mais séria possível.
— Quero falar sobre a reserva marítima cuidada pelos Patel. — digo, e
quando o vejo ficar tenso, com a fisionomia contraída de raiva, quase me
arrependo por ter aberto a boca. — Quero te pedir que desista de transformá-la
em um local de pesca. É muita crueldade o que que você quer fazer lá.
Victor respira fundo, como se fizesse um esforço para se acalmar, esfrega
suas têmporas com as palmas das mãos e diz:
— Evangeline, você pode me pedir qualquer coisa nesse mundo, uma
Ferrari, uma viagem aos Emirados Árabes, um cruzeiro pelas Ilhas Gregas,
qualquer coisa, só não me peça para desistir de eliminar a reserva daquele filho
da puta, porque isso eu não posso fazer. É questão de honra para mim tirar
alguma coisa dele, depois de tudo o que ele me tirou. — A certeza empregada no
tom da sua voz é tão absoluta que fica quase impossível contestá-la. Ainda assim
preciso tentar salvar aquele paraíso e ao mesmo tempo alertá-lo para o fato de
que a vingança não traz a paz que se espera dela, muito pelo contrário.
— Mas fazer isso, não vai trazer Khalil de volta, tampouco consertará o
seu casamento. Só vai servir para que se sinta ainda mais ferido, atormentado.
Em um gesto de impaciência, ele passa os dedos entre seus cabelos
curtos.
— Eu sei que não. Como falei, é questão de honra. Por favor, pelo bem
do que existe entre nós, não volte a tocar nesse assunto.
Quero insistir, mas não consigo. Ele está decidido e não me sinto capaz
de fazê-lo voltar atrás, o que é uma pena, pois a reserva é tão linda e tão
necessária.
— Eu não prometo não voltar a falar sobre isso, mas prometo tentar. —
Movida pelos meus instintos mais primitivos, levanto-me, contorno a mesa e
sento-me no colo dele, seu corpo grande e másculo me acolhendo — Agora
quero falar sobre o lugar quente onde vamos passar o final de semana. Será que
ainda dá tempo de irmos?
Ele sorri lindamente, seus olhos brilhando ao refletirem o gesto.
— Será um voo de seis horas, mas ainda podemos aproveitar a noite de
sábado e o domingo.
— E para onde vamos?
— Marion, Massachusetts. É para onde as pessoas daqui fogem quando
precisam de um pouco de calor. Tenho uma casa de praia lá.
— Vocês vão sempre?
— Já faz muito tempo que não.
— As meninas vão adorar isso.
Enquanto Victor convoca a tripulação do seu jatinho particular, através
do telefone, faço questão de subir até o quarto de Luci, onde as duas meninas
estão reunidas, uma assistindo TV, a outra enganchada no celular, para dar a
notícia sobre nossa viagem e, como eu já esperava, ambas ficam exultantes,
falando sem parar, fazendo mil planos para esse passeio. No entanto, enquanto
ajudo Luci a arrumar sua mala, percebo que Samantha está meio tristonha,
pensativa demais.
— Ei, vê se se anima. Nós vamos para a praia. — comento.
— Isso é tão fantástico, principalmente por Luci, que ainda não consegue
entender que meu pai esteve afastado não por causa dela e sim por causa da
morte de Khalil. — ela analisa a situação, como sempre com a sabedoria de uma
adulta.
— Então para que essa cara de enterro?
— Porque pra mim é mais difícil. Se nossa família fosse normal, ou
melhor, se meu pai fosse normal, Jacob poderia ir com a gente nessa viagem.
Que outra menina viaja com a família deixando o namorado para trás?
Processo suas palavras e sinto muita pena dela. É tão altruísta, dona de
um caráter tão admirável, que podia se negar a nos acompanhar somente para
ficar sozinha com Jacob. Qualquer outra adolescente inventaria um tumor no
cérebro para não ir a essa viagem, em troca de desfrutar da companhia do
namorado, porém ela prefere estar com a família, mais q por Luci que pelo pai.
— Eu queria poder te dizer que isso vai mudar um dia, mas eu estaria
mentindo. Victor nunca vai aceitar que você fique com Jacob.
Um brilho angustiado atravessa rapidamente o brilho do seu olhar e me
arrependo por ter pronunciado as palavras.
— Eu sei que não. Eu amo meu pai e sei que ele me ama também, mas às
vezes me pergunto se não teria sido melhor que ele estivesse naquele carro ao
invés de Khalil.
Abalada com a grandiosidade da sua mágoa, apresso-me em ir até ela e a
estreitar em um abraço.
— Eu sei que você está ferida com toda essa situação, mas não volte a
dizer isso. O melhor teria sido que nenhum dos dois estivesse naquele carro.
— Eu sei. Não queria ter dito isso.
Afasto-me e a encaro no rosto, os cabelos longos, cor de cobre, caindo-
lhe indomáveis sobre a testa.
— Você ama muito o Jacob, não é?
— Com todo o meu coração. Não é só uma paixonite.
— Eu sei que não, se fosse tornaria tudo mais fácil. Por isso estou
disposta a ajudar vocês. Sei que seu pai vai me matar se descobrir, mas ainda
assim vou arriscar.
Ela sorri, seus olhos brilhantes se parecendo com os de Victor.
— E eu vou ser grata pelo resto da vida.
— Não precisa agradecer, gatinha. Tudo pelo amor. Agora levanta a
bunda daí e vai jogar alguns biquínis e saídas de praia em uma mochila. Daqui a
pouco é nosso voo.
— Tá.
Ela deixa o quarto e minha mente viaja nos pensamentos, um calafrio me
percorrendo quando imagino a reação de Victor se descobrir que estou
acobertando encontros entre a filha dele e o irmão do homem a quem odeia a
ponto de destruir uma reserva marítima só porque é ele quem cuida. Sei que
dificilmente ele me perdoaria, embora esteja disposta a arriscar acreditar que ele
seja tão mal caráter e insensível quanto Joseph tentou me levar a acreditar. Tudo
bem que ele não é nenhum exemplo de altruísmo, ou de sentimentalismo, mas
acredito que pode mudar, se tornar uma pessoa melhor. Prefiro acreditar nisso.
Todos os empregados da mansão de reúnem no jardim da frente quando
estamos saindo, fingindo se ocuparem com outras tarefas, ou apenas estar aqui
para se despedirem de nós, quando na verdade estão apenas curiosos para nos
ver juntos, Victor e eu caminhando de mãos dadas com Luci, que se mantém
entre nós enquanto deixamos a casa e entramos no carro. Se já achavam que eu
era amante do chefe quando cheguei aqui, agora não têm dúvidas. Ainda bem
que não dizem nada a respeito, apenas me tratam com frieza, enquanto tento não
ligar.
Seguimos no carro conduzido por Lewis até a sede da empresa de Victor,
o primeiro edifício moderno, todo de concreto e vidro que vejo em Fairbanks,
nas proximidades do qual está o seu aeroporto particular. A tripulação
uniformizada e bem-educada nos esperada do lado de fora da aeronave, nos
recepcionando com cordialidade. O jatinho particular é maior e mais confortável
por dentro do que se espera ao vê-lo por fora, parece um mine apartamento
decorado com bom gosto e requinte, onde aparelhos eletrônicos moderníssimos
se destacam. Há quatro pares de poltronas confortáveis no compartimento
principal, onde nos acomodamos, Victor diante de mim, as duas meninas de
frente uma para a outra, ao nosso lado. Colocamos os cintos de segurança e
esperamos que o momento da decolagem se encerre antes de ficamos à vontade
novamente, como se estivéssemos em casa.
Por volta do meio dia as duas comissárias nos servem o almoço ali
mesmo, frango com salada e molho para nós e hambúrgueres com batatas fritas
para as meninas, assim como elas pediram. Fazemos a refeição envolvidos por
uma atmosfera gostosa de tranquilidade e descontração, quando tenho a
oportunidade de contemplar um lado de Victor que eu desconhecia, um lado
brincalhão, relaxado e jovial que ele revela ao interagir com as filhas, brincando,
conversando, fazendo piadas e sorrindo junto com elas, o que me deixa ainda
mais deslumbrada por ele, ainda mais apaixonada. Ao mesmo tempo em que me
leva a perceber o quão deve ter sido duro para elas passarem todos esses meses
sem o homem maravilhoso que ele se mostra agora, sem o convívio com ele,
tendo o seu desprezo e enxergando apenas a amargura que ele expressava até
poucos dias. Eu teria morrido se ele deixasse de ser esse homem de agora e
passasse a me tratar como vinha as tratando. Ainda bem que isso acabou e agora
quanto mais o conheço, mais o meu coração se enche de amor e de paz.
Depois de horas de uma viagem gostosa, aterrissamos em um aeroporto
particular em Marion e de lá seguimos de carro até a casa na praia. Embora já
seja noite quando chegamos, é possível enxergar a beleza, a suntuosidade do
lugar. Rodeada quase totalmente por uma piscina, que se parece com um lago, a
mansão tropical fica em uma praia deserta, cercada pelo esplendor da natureza
de todos os lados. Tem dois andares, muitas varandas e algumas paredes de
vidro. É perfeita para se passar uma lua de mel, mas sossegada demais para as
duas meninas.
Somos recebidos pelo casal de caseiros, que gentilmente se incumbem de
guardar nossa bagagem e quando a mulher nos indaga sobre o que gostaríamos
de jantar, sugiro que apenas peçamos uma pizza.
O melhor daqui é, sem dúvida, o calor. Depois de semanas congelando
no Alasca é indescritível poder respirar ar puro usando apenas um short e a peça
de cima de um biquíni. Como ainda é cedo da noite, as meninas e eu nos
ariscamos em um banho de piscina, para depois pedirmos a pizza e comermos
todos juntos ali mesmo, ao ar livre, enquanto jogamos conversa fora, sorrimos e
nos descontraímos.
No dia seguinte, acordo cedo, determinada a aproveitar cada minuto do
dia nesse paraíso. Me recusando a ficar sozinha, acordo todos os outros e após
tomarmos um farto café da manhã no terraço em frente ao mar começamos as
atividades esportivas do dia fazendo um longo passeio de veleiro. Ao
retornarmos almoçamos novamente no terraço de frente para a praia, o prato
delicioso à base de frutos do mar; curtimos um pouco de preguiça em redes
colocadas ali; nos divertimos entretidos em uma partida de vôlei durante a qual
Victor e Luci levam toda vantagem sobre mim e Samantha, já que ele é tão alto e
veloz que nem mesmo a baixa estatura de Luci atrasa o time e por fim, no final
da tarde, nos preparamos para voltarmos para casa. O desejo de ficarmos aqui
mais um pouco queima dentro de mim, no entanto, nem tento sugerir isso a
Victor, pois sei que ele não deixaria de trabalhar para ficar aqui.
As meninas e eu estamos no quarto arrumando nossa mochila de roupas,
quando percebo a movimentação de um carro chegando a casa e desço para
verificar do que se trata. Antes mesmo de atravessar a porta de saída, ouço vozes
alteradas do lado de fora e apenas coloco a cabeça na janela para checar. Victor
está discutindo com a mulher que veio no carro e imediatamente a reconheço de
fotografias que vi nas redes sociais das meninas, é Olívia, a mãe delas. Está
muito mais magra que nas fotografias, magra demais, aliás, como se fosse adepta
dessas dietas malucas que deixam a pessoa quase deformada, embora ainda seja
muito bonita. Tem os mesmos cabelos cor de cobre que Samantha, apesar de se
divergir da filha nos olhos cor de mel e no jeito de ser. Enquanto Olivia prece
frágil e extremamente insegura, Samantha tem a autoconfiança e a força de
Victor.
Pelo que consigo compreender do que estão dizendo, ela está tentando
entrar na casa, sem que Victor permita.
— Eu quero ver minhas filhas, você não pode me impedir. — vocifera
ela, alterada, a voz ligeiramente embolada, como se estivesse embriagada — Já
basta eu ter ficado sabendo que elas estão aqui através de uma foto que
Samantha postou no Instagram.
— Eu já disse que você não vai vê-las nesse estado. Ponto final. — Ele é
seco e duro ao afirmar e fico com pena da mulher.
Desde o início sempre achei que ela era quem não queria saber das filhas,
que era indiferente a elas, que as trocou por uma vida mais confortável e
divertida na Califórnia, porém, agora percebo que não é bem assim, Victor não
quer deixar que ela as veja, na certa tem sido assim desde o divórcio, por isso ela
quase nunca aprece. Mas por que ele faria isso? Por qual motivo afastaria as
filhas da sua mãe?


CAPÍTULO XVIII



Em resposta, lembro-me do que Joseph falou sobre ele não ser uma boa
pessoa. Será que está certo? Será que Victor é mesmo esse crápula que todos
dizem e só eu não enxergo isso? Eu queria acreditar que não, mas diante do que
estou vendo fica difícil.
— Não dá pra entender porque você age assim comigo. Como vem aqui
perto e não me avisa? — Olívia agora caminha de um lado para o outro,
parecendo meio desnorteada.
— Se nem eu e nem elas te disseram nada, é porque não te queremos
aqui.
— Elas são sangue do meu sangue, porra!
— Isso é só um detalhe. Não quero você perto das minhas filhas e está
acabado. Dê meia volta e desapareça por onde veio.
— Não saio daqui sem vê-las. Você não pode me impedir.
— Posso sim.
Tento, com toda a minha determinação, não interferir, afinal não tenha
nada a ver com isso, no entanto, não consigo olhar e não fazer nada,
principalmente porque em algum momento as meninas vão ouvi-los e será pior
se flagrá-los em meio a essa discussão. Então, abro a porta e saio, aproximando-
me de onde eles estão.
— Por que vocês não param com essa discussão antes que as meninas
ouçam? — falo.
Olivia crava seus olhos dourados em meu rosto, com desprezo. De perto
é ainda mais bonita, parece uma boneca de porcelana, embora demonstre haver
algo muito errado com ela.
— E essa aí, quem é? Está trazendo suas putas fodidas para perto das
minhas filhas? — ela parece fora de si.
Tento não me sentir ofendida. Se eu tivesse filhas e o pai delas tentasse
me impedir de chegar perto delas, eu também ficaria descontrolada.
— Vê se controla sua boca suja! — Victor vocifera — Quem ela é não te
diz respeito. Agora vê se entra no seu maldito carro e desaparece daqui.
Não consigo evitar a mágoa por ele não ter dito a ela que somos
namorados. Passou a impressão de que não sou tão importante assim em sua
vida.
— Não saio daqui sem vê-las. Vai fazer o que? Me agredir?
— Você me conhece o suficiente para saber que não bato em mulheres,
mas não força a barra, Olivia, porque já estou de saco cheio de você e seus
chiliques.
— Eu só quero ver as meninas, porra! O que tem de mais nisso?
— Acho que as meninas iam gostar de ver a mãe. — Tento e a resposta
de Victor vem feroz, proferida com rispidez.
— Não se mete nessa porra, Evangeline. Você não sabe de nada. — Vira-
se novamente para Olivia, furioso — Pela última vez, saia daqui, Olivia!
— Não sem ver minhas filhas antes.
Sem que nem eu e nem ela esperemos, ele avança para cima dela de
repente, parecendo um animal feroz em meio ao ataque à sua presa. Agarra-a
pela cintura, erguendo-a do chão, enquanto ela se debate furiosamente na inútil
tentativa de se soltar e a carrega até o carro estacionado mais adiante, quando só
então percebo que há um homem ao volante. Com toda a sua ira, Victor empurra
a ex-mulher pela porta do carro e bate-a por fora, em seguida se dirige ao
motorista.
— Leve-a daqui, imediatamente e se voltarem vou chamar a polícia.
O homem não diz uma palavra, apenas lança um olhar frio a ele, em
seguida olha para mim, examinando-me atentamente, então liga o carro e dá a
partida, desaparecendo rapidamente em meio aos coqueiros por onde passa a
estrada.
Como se eu fosse invisível, Victor passa direto por mim, com passos
largos e pesados e entra na casa. Alcanço-o ainda na sala.
— Você quer me dizer o que foi tudo aquilo? — indago.
— Não se mete nisso, Evangeline. Não é assunto seu.
O fato de ele me excluir, como se eu não fosse nada importante, me causa
um misto de raiva e dor.
— É assunto meu sim. É assunto do estado, da igreja e de toda a
sociedade quando um pai impede uma mãe de ver suas filhas. As meninas
sentem falta dela, porra!
Finalmente ele para, apoia as mãos nos quadris e respira pesadamente,
demonstrando impaciência.
— Nada é o que parece. Será que você não percebeu o quanto ela está
drogada? — suas palavras me deixam chocada — Aquela não é a mesma mulher
com quem me casei, é uma viciada e aquele sujeito com ela é um traficante
perigoso. Não quero essa gente perto das minhas filhas.
Aturdida, sento-me no sofá, sem saber o que dizer. Embora não conheça
a história toda, sei que mesmo que Olivia seja uma drogada, ainda tem o direito
de ver as filhas. Não é como se ela precisasse ficar sozinha com a meninas, ou
levá-las daqui. Não faria mal que se encontrassem na presença de Victor, sob sua
vigilância, não por Olivia, uma mulher que se deixa dominar pelas drogas não
merece e nem tem a capacidade de lidar com duas crianças, mas pelas meninas.
Tenho certeza de que a distância da mãe faz com que se sintam rejeitadas e essa
visita teria feito bem a elas.
Parecendo muito mais calmo, Victor senta-se em uma poltrona diante de
mim.
— Não é como você está pensando, Evangeline. Não existe nenhuma
restrição que impeça Olivia de visitar as filhas no Alasca, mesmo assim ela
nunca aparece, não quer assumir a responsabilidade, nunca quis. Prefere viver a
vida como se ainda tivesse vinte anos, se drogando por aí com aquela bosta de
homem, à custa do meu dinheiro. Só veio aqui hoje porque não consegue perder
uma oportunidade de me encher a paciência. Se realmente quisesse ver as filhas,
ia vê-las pelo menos de vez em quando.
— Você não entende? Não é por ela, é pelas meninas. Você devia tê-la
deixado entrar porque as meninas iam gostar de ver a mãe.
— Querem tanto ver a mãe que sequer deram um telefonema para ela
avisando que estaríamos aqui hoje. — Sua voz grossa, ríspida, ressoa pela sala,
estrondosamente — Se não fosse pela foto que Sam postou no Instagram ela
nem saberia que estamos aqui.
— Isso tudo parece tão surreal. Como pode uma mulher que tem duas
filhas lindas trocá-las pelo vício?
— Cada ser humano com a sua natureza.
— Desde quando ela se droga? — imagino que possa ter alguma coisa a
ver com a morte de Khalil.
— Desde a adolescência. Quando a conheci ela estava limpa, mas isso
não durou muito. Logo depois que Khalil nasceu teve uma recaída, por causa da
depressão pós-parto. Passou meses em uma clínica de reabilitação. Achei que
tinha se recuperado, que nunca mais voltaria a usar, mas então ela se envolveu
com aquele cretino do Patel.
Fito-o atônita.
— Ele deu drogas a ela?
— Não diretamente, mas a desestabilizou, não cuidou dela direito
enquanto tinham um caso. — Ele suspira pesadamente antes de prosseguir —
Não que eu não tenha minha parcela de culpa nessa história. Nosso casamento
não ia bem, eu tinha outras namoradas, transava com Michelle no trabalho, ela
desconfiava, quando teve certeza acho que surtou.
— Ela começou a trair você com Christian porque descobriu sua traição?
— estou perplexa com a capacidade do ser humano de ser estúpido.
— Sim. No fim das contas contribuí para que ela voltasse ao vício.
Nem vou abrir a boca para dizer que não foi culpa dele, porque não é
verdade.
— O que você quis dizer com ela se drogar com seu dinheiro?
— Eu dei muito dinheiro a ela quando nos separamos, para que não
contasse ao Patel que ele é pai biológico de Luci. Depois passei a enviar um
cheque todo mês, mas parei quando ela contou a verdade àquele cretino. — Vejo
a angústia já conhecida emergindo no brilho do seu olhar — Se ela tivesse ficado
de boca fechada, Khalil ainda estaria aqui.
Não suporto vê-lo desse jeito, agoniado, atormentado, então me apresso
em sentar-me em seu colo, seguro seu rosto entre minhas mãos e fito-o de perto,
dizendo:
— Ele não estaria. Nenhuma mudança nos acontecimentos impediria que
aquela tragédia acontecesse. Eu sinto muito.
Piscando repetidas vezes, como se se esforçasse para conter as lágrimas
que ameaçam marejar os seus olhos, Victor me prende pela nuca e me puxa para
um beijo, sua boca devorando a minha, a língua me explorando com lascívia, o
desejo queimando dentro de mim.
— Vocês dois deviam procurar uma cama. — A voz de Samantha parte
de perto, dos pés da escada e saio do colo dele tão depressa quanto sentei,
colocando-me em pé. — Que bafafá foi aquele que ouvi lá de cima? Quem
estava aqui? — Ela indaga e avança sala adentro, de mão dadas com Luci, que
mantém um sorriso constrangido no rosto, exibindo a fenda entre os dentinhos.
— Foi só um entregador que errou o endereço e queria receber assim
mesmo. — Victor mente, descaradamente e levanta-se também — E então, estão
prontas para irmos?
— Já arrumei as mochilas. Só mandar os caseiros trazerem. — Samantha
diz e senta-se, sua atenção se voltando para a tela do celular, como quase
sempre.
— Papai e Evangeline estão namorando. — Luci diz, sorrindo, toda sem
jeito.
Victor vai até ela, se inclina e a pega no colo. A visão do homem alto,
másculo, com o peitoral salientando-se no tecido fino da camiseta, segurando a
criança frágil e pequena, fitando-a com ternura, me deixa encantada,
deslumbrada, como sempre fico quando o vejo agindo como um pai carinhoso.
— Eu ia pedir sua permissão para namorar sua babá, mas não tive tempo
ainda. Você deixa?
Luci sorri ainda mais abertamente e cobre os olhinhos com as duas mãos,
demonstrando timidez.
— Eu deixo, mas se tiver casamento, quero ser a dama de honra e levar
as alianças.
— Então fechou. — Ele estende a mão aberta no ar e ela a estapeia com a
sua palma — Se ela me aguentar a ponto de se casar comigo, você levará as
alianças até o altar.
— Eba!
Pouco depois, deixamos o calor de Massachusetts e rumamos de volta
para o Alaska. Durante o voo, após jantarmos todos juntos no compartimento
principal, as meninas se recolhem às cabines particulares e adormecem.
Recolho-me a uma delas também e quando Victor deita-se ao meu lado, tentando
tirar minhas roupas, eu não consigo ceder ao desejo que sua proximidade
desperta em minhas veias, pois algo dentro de mim está diferente em relação a
ele. O momento em que ele impediu Olivia de ver as meninas ficou gravado em
minha mente, como se a ferro e fogo e insiste em se repetir, as cenas se
repassando. Eu ainda o amo, com toda a força do meu coração, mas algo se
quebrou em minha alma. Tenho a sensação de que Joseph estava certo sobre o
que disse em relação a ele ser um mau caráter, tenho a sensação de que não é
uma boa pessoa. Por mais que Olivia esteja errada, por mais que não mereça ter
as meninas por perto, Victor nem se esforçou para ajudar a mudar isso, a mudar
a realidade dela e torná-la uma mãe melhor para suas filhas. Com todo o
dinheiro que tem, ele podia dar um jeito de novamente interná-la em uma clínica
de reabilitação, pagar pessoas para cuidar dela, ou sei lá, arranjar outra forma de
afastá-la do vício, não apenas porque é responsabilidade dele também, mas por
ser o certo a se fazer. Ele nem tenta se tornar uma pessoa melhor, acredita que
ser um bom pai é apenas estar por perto e não deixar nada faltar às filhas, só que
isso não é suficiente. Ele podia melhorar, se quisesse.
Os pensamentos conflitam-se em minha mente durante toda a viagem e
acabo inventando uma dor de cabeça para que ele não perceba que algo está
diferente. Em meu íntimo torço para que esse algo seja passageiro, para que eu
volte a vê-lo com os olhos de antes.
Entretanto, as coisas não são tão fáceis. Os dias se passam e ao olhar para
ele ainda vejo um homem petulante, egoísta, cheio de rancor, de modo que aos
poucos vou me afastando, arranjando cada vez mais pretextos para me manter
distante, sem lhe revelar o que verdadeiramente me aflige, pois sei que ele não
vai mudar só porque estou pedindo, sei que não vai desistir de transformar a
reserva em uma área de pesca, tampouco vai ajudar Olivia a se livrar seu vício,
só porque acho que esse é o certo a ser feito, portanto nem vale à pena tentar.
São dias difíceis para nós dois. Embora ele tenha percebido a mudança
em meu comportamento não tem tempo de investigar a razão, ou de tentar me
fazer mudar de ideia, visto que está ocupado demais em tentar se livrar dos
manifestantes que se empenham em impedi-lo de destruir a reserva. Tenho
acompanhado o caso através da imprensa e sei que o mundo está contra ele.
Naturalistas estão vindo de toda parte para participar dos manifestos, campanhas
são realizadas em sua condenação, de modo que ele está sozinho nessa luta,
ainda mais sem a astúcia de Michelle para ajudá-lo. Eu até poderia apoiá-lo,
porém, me recuso a agir contra os meus princípios mesmo por amor. Ele está
errado e enquanto não entender isso e tentar mudar.
Pelo que vi nos noticiários, são milhares de manifestantes, muitos
atracaram navios no único acesso ao braço de mar que sedia a reserva, a fim de
impedir a passagem dos barcos pesqueiros; outros se reúnem diante da sede da
reserva; alguns outros estão acampados em frente à sede da empresa, e assim por
diante. É uma batalha acirrada que o homem que eu amo está lutando sozinho,
sem que meus princípios me permitam ajudá-lo.
Outro assunto que nos mantém ocupados demais para falarmos sobre nós
dois, é o caso de amor entre Samantha e Jacob Patel. Como prometi a ela, os
ajudo a se encontrarem às escondidas. Às vezes os levando para comer alguma
coisa depois da aula, às vezes deixando-os à vontade em algum lugar e saindo
sozinha com Luci. Na sexta-feira, ela diz ao pai que vai dormir na casa de uma
amiga da escola e sai para passar a noite com ele, segundo o que me diz, na festa
de aniversário de um amigo em comum, embora eu fique torcendo para que pelo
menos estejam usando preservativos. Como toda mentira tem pernas curtas, sei
que um dia Victor descobrirá tudo e não quero nem imaginar o ódio que sentirá
por mim, por estar os acobertando.
No início da noite, Victor me telefona avisando que chegará mais tarde,
devido a uma sucessão de reuniões às quais precisa comparecer e diz que quer
conversar comigo. Pelo tom de sua voz, acredito que tentará uma reaproximação
e estou mais do que pronta para isto, pois a saudade do calor dos seus braços
começa a se tornar uma tortura em minha vida.
Algum tempo depois, quem me telefone é Samantha. Diz que está
encrencada, por ter sido flagrada comprando bebidas alcóolicas junto com Jacob
e dois outros jovens, precisa que eu vá até a delegacia assinar alguns documentos
para que seja liberada.
Puta merda! Agora sim estou ferrada. Se Victor descobrir que ela foi
presa, junto com o irmão do seu pior inimigo e que eu acobertei isso, vai me
excluir da sua vida sem pestanejar e já não sei se consigo viver sem ele. Só
agora, quando estou prestes a perdê-lo percebo isso, percebo que não importa o
quanto frio e insensível ele seja, eu o quero em minha vida, enquanto eu respirar.
O único jeito é providenciar para que ele nunca descubra, correr até a
delegacia, tirar Samantha de lá e voltar para casa antes que chegue.


CAPÍTULO XIX


Victor


Do interior do helicóptero, observo as embarcações atracados em uma
fila ao longo do único acesso à baía de Pelican, no golfo Alaska, onde fica a
reserva marítima dos Patel, obstruindo a passagem dos meus barcos pesqueiros.
Entre barcos, lanchas, veleiros e navios, há umas vinte embarcações aqui,
bloqueando a entrada de quem quer que seja. Nem mesmo a polícia conseguiu
tirá-los daqui. Nos meus trinta e cinco anos de vida nunca vi tamanha comoção
para proteger um punhado de baleias e peixes que não servem para nada a não
ser enfeitar o lugar, um espaço que nem é assim tão propício para a pesca,
devido à dificuldade de acessibilidade, mas que se tornou quase uma obsessão
para mim explorá-lo, não pelo lucro que me renderá e sim pelo prazer de destruir
aquilo que os malditos Patel passaram várias gerações guardando de pessoas
como eu.
— Pode voltar agora! — ordeno ao piloto, a voz alterada para se
sobressair ao som barulhento das hélices.
Ele faz a volta, passamos novamente por sobre a casa que sedia a
administração da reserva, localizada sobre um penhasco, rodeada por uma
multidão de manifestantes que se agitam, fazendo barulho, ao avistarem meu
helicóptero, depois sobrevoamos o pequeno povoado de Pelican e por fim
voltamos para Fairbanks.
Estou com os nervos à flor da pele quando desço da aeronave, no
heliporto da empresa, e sigo rumo à minha sala, onde os malditos advogados que
nada resolvem me esperam para mais uma fatigosa reunião. Se eles já eram
incompetentes, no que se refere a se livrarem desses malditos manifestantes,
depois da demissão de Michelle pioraram. Simplesmente não conseguem fazer
nada sem ela, não fazem as coisas acontecerem, os dias estão passando e mesmo
tendo autorização do governo para começar a pescar na baía onde fica a reserva,
não consigo passar com os meus navios, porque aqueles desocupados não saem
da frente.
Essa situação está me deixando irado, no entanto a principal razão do
meu nervosismo ainda é Evangeline, ou melhor dizendo, a forma como ela vem
agindo nos últimos dias, desde a nossa viagem à praia, desde que ficou sabendo
que o coração do meu filho bate em seu peito. Eu queria acreditar que esse é o
motivo da distância dela, pois o compreenderia perfeitamente, porém sei que não
é. Depois que lhe contei toda a verdade, depois que conversamos francamente a
respeito desse assunto, ela continuou demonstrando que estava tudo bem, até que
Olivia apareceu e estragou tudo. Foi depois de ver minha ex-mulher que
Evangeline mudou, se distanciou de mim, passou a me tratar com frieza, não por
ciúmes, mas porque não a deixei ver as meninas.
Por causa daquela desvairada maldita agora a mulher que eu amo
acredita que sou algum tipo de monstro sem alma e há dias estou com um tesão
filho da puta sem que ela me deixe chegar perto, sem que me permita sequer
tocá-la. Recusando-se a falar francamente, vive inventando pretextos para me
afastar. Em um dia está com dor de cabeça, depois é cólica menstrual, depois
inventa um problema de coluna, como se uma pessoa de vinte um anos, forte o
bastante para ter sobrevivido a um transplante de coração, fosse desenvolver um
problema de coluna assim do nada, sem praticar qualquer exercício físico
pesado. Ela sabe que já percebi que está me evitando e mesmo assim se recusa a
falar a verdade, a revelar o que a está incomodando, a me cobrar que mude
minhas atitudes em relação à mãe das minhas filhas, pelo menos assim eu
saberia o que fazer, embora não tenha certeza se faria e talvez por saber disso,
Evangeline prefere me afastar a tentar me mudar.
É mesmo uma foda mal dada que depois de superarmos a questão de o
coração transplantado em seu peito possuir o meu DNA, a louca da mãe das
minhas filhas consiga nos separar.
Entro na minha sala pisando firme, a raiva pipocando em minhas veias, o
que só se intensifica quando sento-me à mesa diante da meia dúzia de
advogados, que embora sejam classificados como os melhores do país, não
passem de uns incompetentes.
— Só abram a boca se for para me dizer que encontraram uma solução
para afastar aqueles desocupados da minha nova área de pesca. — vocifero.
Eles se mantêm em silêncio, até que a situação começa a ficar
constrangedora.
— Sr. Boseman, esse é o tipo de coisa que leva tempo. Estamos
trabalhando, mas não podemos agir com violência contra eles.
— Então encontrem outra solução, porra! Eu não tenho mais tempo.
Quero aquela merda de reserva acabada! Vocês estão me entendendo?
— Sim. E estamos fazendo todo o possível. Já temos ordens de expulsão,
a polícia já foi lá, já prendeu alguns deles, mas são muitos. Quando alguns são
presos, aprecem outros, sem mencionar que o mundo inteiro está de olho e está
do lado deles. Não é o tipo de coisa que se resolve assim de uma hora para outra.
— De uma hora para outra o caralho! Vocês estão nessa há dias! Se não
me trouxerem uma solução dentro de setenta e duas horas, estarão demitidos.
Agora saiam daqui, seus incompetentes.
Eles pedem licença e se retiram sem pressa alguma, demonstrando a
mesma lerdeza com que trabalham, enquanto me pergunto se também não estão
a favor de que a reserva seja mantida, se o fato de não resolverem as coisas está
relacionado a esse favoritismo. Maldita hora em que fui demitir Michelle, ela era
a única em quem eu confiava, a única que parecia estar do meu lado.
O problema é que ela não estava, nunca foi minha amiga como acreditei,
pelo menos não fora do trabalho. Durante todos esses anos demonstrando
lealdade a mim, tudo o que ela queria era me reconquistar, me levar para a sua
cama. Até aí tudo bem, eu teria ido, somente pela diversão, se não tivesse me
apaixonado por outra mulher, no entanto, ao tentar destruir o que há entre mim e
Evangeline, revelando-lhe a verdade sobre o transplante, daquela forma, ela me
perdeu de todas as formas, como amante, chefe e amigo.
Pensando em Evangeline, levanto-me e vou até o frigobar recentemente
colocado na sala, sirvo-me de uma dose de uísque pura e acomodo-me em uma
das poltronas no centro do recinto. Preciso pensar em uma forma de reconquistar
o amor dela, de apagar essa impressão deturpada que passou a ter de mim desde
que me viu com Olivia. Não posso ficar sem ela, não por causa do coração do
meu filho, mas porque estou apaixonado, irremediavelmente, como nunca me
passou pela cabeça que um dia estaria. Mas o que posso fazer para convencê-la a
mudar de ideia? Ela me julga um ser insensível também por destruir a reserva, só
que isso não posso mudar, apesar das dificuldades encontradas para conseguir
instalar meus navios lá, não posso deixar aquele maldito Patel sem punição por
ter causado o acidente que tirou a vida do meu filho e não há nada que importe
para ele que eu possa tirar, além da reserva. Por outro lado, ainda posso ajudar
Olivia, se o fato de eu tê-la impedido de ver as meninas desencadeou esse
afastamento de Evangeline, eu a trazendo de volta para Fairbanks reverterá a
situação. Mas o que vou fazer com Olivia aqui? Certamente ela vai me infernizar
como sempre fez, pedindo dinheiro, tentando reatar a porra do nosso
relacionamento. No entanto, por Evangeline, para que ela afaste essa impressão
errada que está tendo de mim, sou capaz de tolerar a presença da minha ex-
mulher, pelo menos até que Evangeline perceba o quanto estou certo em querer
distância dela e entre ela e as meninas. Além do mais, em algum momento
Olivia daria um jeito de vir, mesmo sem a minha ajuda.
Decidido, saco o celular o bolso. Há pelo menos umas duzentas
chamadas perdidas de Olívia e incontáveis mensagens. Desde que nos vimos em
Marion ele não para de pedir dinheiro para vir até aqui ver as filhas, quando sei
que seu objetivo não é reencontrar as meninas e sim me infernizar como sempre.
Talvez sequer entre no avião, só quer o dinheiro para se drogar mais. Por isso
prefiro mandar que o jatinho particular a apanhe. Assim, retorno à última
ligação. Ela demora a atender, na certa por estar espichada em algum lugar,
desacordada, sob o efeito de entorpecentes.
— Finalmente você decidiu falar comigo. — É o que ela diz ao atender.
— Como vai, Olívia?
— Você sabe que não estou bem. Sinto saudade das minhas filhas. Tudo
o que te peço é o dinheiro da passagem para ir vê-las. O que tenho só da para as
minhas despesas e não vou entrar em um avião de classe econômica.
— Vou fazer melhor. Se você realmente quer ver suas filhas, vou mandar
o jatinho te apanhar.
Há um instante de silêncio do outro lado da linha. Ainda tenho esperança
de que ela recuse, dando provas de que só queria o dinheiro para usar mais
drogas.
— Tá falando sério?
— Você sabe que não tenho paciência para brincadeiras.
— Principalmente na situação em que está, não é mesmo?
— Não sei do que você está falando.
— Tenho acompanhado sua realidade na mídia. Você anda bem enrolado
tentando usurpar a propriedade dos Patel.
Ela fala como se me acusasse e defendesse a família do seu amante, bem
típico dela. Miserável! Minha vontade é de desligar o maldito telefone e
esquecer toda essa história, mas preciso fazer isso, pelo amor de Evangeline.
— Isso não é da sua conta. Vai querer o jatinho para vir ou não?
— Claro que vou, Victor. Não suporto mais ficar sem ver as meninas. —
Se eu não a conhecesse bem, ficaria comovido com a súplica no tom da sua voz.
— Mas tem uma coisa. Eu estou morando com uma pessoa, o nome dela
é Evangeline. Quero que fique longe dela.
Durante um longo momento, tudo o que ouço do outro lado da linha é o
som da sua respiração pesada.
— E quem é essa? Aquela loira oxigenada que estava com você na praia?
Quantos anos ela tem, quinze?
Como eu já esperava, ela consegue atiçar a raiva que queima dentro de
mim.
— Vê como fala dela! Evangeline é a mulher por quem estou apaixonado
e se você vier, já venha informada sobre isso.
Ela solta uma gargalhada debochada e começo a me arrepender pela
péssima ideia.
— Uau! Você apaixonado? Isso eu quero ver de perto. — Há amargura
no tom de sua voz e esta me traz a certeza de que vou me arrepender por ter
aceitado sua presença aqui — Quando você quer que eu vá?
— Como amanhã é sábado e as meninas não têm aula, seria bom se
almoçássemos todos juntos. Vou mandar meu jatinho particular ir apanhá-la, mas
esteja sóbria. Essa é uma exigência da qual não abro mão.
— Se faz questão, eu estarei. Não tenho me drogado tanto quanto você
imagina.
— Não seja mentirosa, eu vi como está afundada nessa merda até a raiz
dos cabelos. Tem dinheiro para as drogas, mas não tem para uma passagem de
avião.
— Não compro drogas, meu namorado me da.
— Eu percebi que ele tem mesmo a maior cara de traficante. Apenas pare
de usar enquanto estiver aqui, não por mim, mas pelas meninas. Agora tenho que
ir. Até breve.
Dito isto, encerro a ligação e passo à minha secretária a incumbência de
providenciar para que o jatinho vá até a Califórnia apanhá-la. Não serão dias
fáceis os que virão pela frente, só mesmo Evangeline para me fazer tolerar essa
mulher dentro da minha casa. Por ela sim, eu faço qualquer coisa.
É fim de tarde quando um dos advogados me telefona com a notícia de
que os líderes das manifestações a favor da manutenção da reserva decidiram
aceitar se reunirem comigo para tentar chegarmos a um acordo. Será uma
reunião fatídica e demorada, então telefono para Evangeline avisando que
chegarei mais tarde, só para que ela não fique acordada me esperando.
Por volta das dez da noite, no caminho de volta para casa, paro em uma
floricultura e escolho um belo buquê de rosas vermelhas para ela, afinal as
mulheres gostam de flores e preciso selar a paz entre nós. Como ainda não é tão
tarde, telefono para Harriet e ao ser informado de que Evangeline ainda não
jantou, mando que providencie um jantar à luz de velas para nós dois no terraço
e que seja discreta, já que será uma surpresa. Embora ela não diga nada, sei que
minha governanta, assim como os outros empregados da casa, está contrariada
com o fato de eu me relacionar com a babá das meninas. Devem achar que é só
mais uma amante que eu trouxe para debaixo do meu teto, não fazem ideia de
que com Evangeline é diferente. Preciso tirar um tempo para conversar com ele a
esse respeito, instruir-lhes a tratá-la como a dona da casa, pois é isso que ela é
agora.
No carro conduzido por Lewis, durante o percurso entre a floricultura e o
caminho de casa, estou atravessando um bairro residencial de Fairbanks, quando,
para minha mais completa surpresa, avisto Evangeline de longe, saindo de uma
casa, parecendo nervosa, aflita, enquanto se dirige rumo ao carro. Meu primeiro
impulso é mandar que Lewis pare em um local discreto e a espiar de longe, só
para me certificar do que faz aqui, porém me dou conta de que não é esse tipo de
relação que quero cultivar com ela, então me aproximo e percebo que ela fica
ainda mais sobressaltada ao me avistar, o rosto empalidecendo, seus olhos se
arregalando ao me verem saltando do veículo.
— Oi. O que você faz aqui a essa hora? — pergunto, aproximando-me.
Ela hesita antes de responder.
— Nada. É só a casa onde está havendo a festa de aniversário em que
Samantha está. Vim trazer uma roupa para ela, porque derramou refrigerante na
outra.
Não sei explicar exatamente o quê, mas algo me diz que ela está
mentindo.
— Sam está aqui? Vou entrar e dizer um oi.
— Não! — A palidez em seu rosto se intensifica e fico ainda mais
desconfiado — Ela já está toda envergonhada porque precisou chamar a babá.
Imagina ter uma babá aos quinze anos. Se você for lá, vai se sentir ainda mais
constrangida.
Apesar do seu comportamento estranho, ela está certa, adolescentes têm
vergonha de tudo. A presença de um pai em uma festa pode arruinar a vida social
de alguém nessa idade, principalmente de alguém como Sam, que não tem o
costume de sair de casa.
— Vamos sair daqui, estou morrendo de frio. — Evangeline propõe.
Embora esteja usando uma calça de cirre e um casaco grosso, por sobre a
blusa, ela está tilintando. Deve sentir muita falta do calor texano.
Olho novamente para a casa, com as luzes todas acesas e meus instintos
me impulsionam a entrar lá, no entanto, decido ignorá-los, visto que Evangeline
tem grande apreço pelas minhas filhas, jamais deixaria Sam permanecer em um
lugar onde não estivesse segura. Então apoio a mão na base da sua coluna e a
conduzo até a limusine, enfio a outra mão pela janela e pego o buquê de rosas.
— Trouxe isso para você.
Sua boca delicada se curva em um sorriso amplo, seus olhos
incrivelmente azuis reluzindo sob as luzes dos postes, ao receber o buquê.
— São lindas. Obrigada. — Ela leva as rosas ao nariz, aspirando seu
perfume — São minhas flores preferidas.
— Eu imaginei que fossem. — Cogito convidá-la a vir comigo na
limusine e deixar que Lewis venha apanhar o carro depois, mas parece mais
convidativo ficar sozinho com ela agora. — Venha comigo. Precisamos
conversar.
Apanho minha valise na limusine e mando que Lewis leve o veículo
longo e preto para casa. Em seguida deixamos o local no carro de Evangeline.
Lembro-me do jantar para dois preparado por Harriet no terraço de casa, deve
estar tudo muito bem organizado, porém já que estamos aqui decido leva-la ao
Scotch, um restaurante em estilo chalé, localizado às margens do lago Tanana.
Não é o tipo de lugar que eu costumo frequentar, mas acho que Evangeline vai
gostar, pois dizem que é perfeito para os apaixonados e as mulheres costumam
ser românticas.
Como nos aproximamos do verão, a noite já não está tão fria, a geada
típica dessa época do ano já deu lugar ao ar úmido e limpo que nos permite
enxergar a cidade à nossa volta, os edifícios simples, com grandes
estacionamentos e as ruas largas que estiveram escondidas sob o gelo no últimos
meses, se passando rapidamente diante das janelas do carro, enquanto dirijo
pelas ruas calmas como sempre a essa hora da noite. No restaurante são
necessárias muita lábia e uma pequena quantia em dinheiro, para convencer a
gerente a nos receber, já que não fiz nenhuma reserva.
— Minha nossa! Isso aqui é lindo demais. — exclama Evangeline, tão
logo nos acomodamos à mesa.
E ela tem razão, o lugar é muito bonito pelo lado de dentro. Tem toda a
sua estrutura em vidro transparente, proporcionando aos clientes uma clara visão
das águas do lago iluminado por luzes artificias, o qual se transforma em uma
bela pista de patinação durante o inverno. A decoração é simples, porém
aconchegante. Tem uma lareira em cada parede e quadros com fotografias de
famílias e casais que estiveram aqui pendurados por todos os lados.
— Tenho que concordar.
— Se eu soubesse que vínhamos, teria me arrumado mais.
— Você está linda assim.
E é verdade. Sem o casaco deixado na recepção, a blusa simples de
algodão revela a silhueta dos seios pequenos e redondos, cujo início das curvas
se insinuam no decote em V; sua pele é translúcida e mesmo sem qualquer
vestígio de maquiagem consegue ser perfeita; os lábios são naturalmente
rosados; o nariz pequeno; os olhos intensos.
Após fazermos os pedidos Evangeline volta a concentrar sua atenção em
mim e indaga:
— Você disse que queria falar comigo. Estou curiosa.
Levo o copo à boca e solvo um gole do vinho antes de falar.
— Eu percebi o quanto você mudou depois que viu a forma como tratei
Olívia na casa de praia e não quero que as coisas sejam assim entre nós.
Ela parece embaraçada.
— Não é algo que eu possa controlar. Sou assim mesmo. Acho que
minha personalidade foi moldada pela minha enfermidade, pelo fato de que
cresci passando dias confinada nas enfermarias dos hospitais, cercada por
médicos e enfermeiros, sempre limitada a fazer qualquer coisa que requeria
esforço físico. Acho que espero sempre que o mundo seja um conto e fadas, mas
ele não é.
— Acredite, eu entendo como você se sente e amo essa fragilidade, assim
como a sua capacidade de esperar sempre o melhor das pessoas. Não sou o
sujeito mais íntegro do mundo, nem de longe sou o príncipe encantado cheio de
virtudes que você merece, mas quero me tornar uma pessoa melhor, por você.
Um sorriso radiante ilumina seu rosto.
— Sério?
— Sim. E foi por isso que aceitei que Olívia viesse passar alguns dias
aqui. Pelas meninas.
O sorriso dela se amplia.
— Nossa! Isso foi radical, mas tenho certeza que as meninas vão adorar
ter a mãe por perto. Você vai ajudá-la a se livrar das drogas?
— Vou tentar, só que isso não é um processo fácil, ou calmo, primeiro
Olívia vai ter que concordar em se tratar.
— Nós podemos convencê-la de que esse é o melhor caminho a seguir.
Ela realmente não tem ideia de quem é minha ex-mulher.
— Evangeline, não quero te assustar, mas você precisa tomar cuidado
com Olivia. Para começar, precisa se mudar para o meu quarto.
Vejo a perplexidade emergindo no brilho do seu olhar.
— Mas por que isso? Por acaso ela é alguma psicopata assassina?
— Assassina não, só psicopata. — O espanto se intensifica na sua
expressão — Ela não vai te machucar fisicamente, isso nunca, mas vai tentar
manipular todos em volta para afastar você de mim. Ela é assim. Nunca aceitou
o fim do nosso casamento. Por isso, quanto mais próximos estivermos, menos
êxito ela obterá.
— Ninguém nesse mundo é capaz de me afastar de você.
— Mesmo assim, não custa tomar cuidado. A conheço bem e sei do que
estou falando. Só aceitei que ela viesse para que você não continue tendo essa
má impressão de mim.
Vejo a emoção tomando conta da sua fisionomia, os olhos azuis claros
marejando de lágrimas, a boca esboçando um sorriso involuntário.
— Você fez isso porque eu falei?
— Sim, fiz por você. Não suporto mais essa distância entre nós dois. Isso
está acabando comigo.
— Eu também, meu amor. Estou morrendo sem você. Me desculpe por
agir assim. Eu não sei o que acontece comigo.
Suas palavras me aquecem por dentro, o coração batendo mais depressa
no peito, as veias fervendo de desejo. Quero abraçá-la e beijá-la até que ela
esteja sem fôlego e amaldiçoo a mesa entre nós.
— Eu queria muito te beijar agora, mas temo não conseguir mais parar.
Uma expressão travessa se manifesta em seu olhar, ao passo em que ela
deixa seu lugar e contorna a mesa para me alcançar. Senta-se em meu colo e
aproxima sua boca da minha, os braços em torno do meu pescoço, a pressão da
sua bunda em meu colo causando-me uma ereção imediata, dolorida.
Ignorando o mundo à nossa volta — e a dezena de pares de olhos que
certamente nos observam —, seguro firme em sua nuca e a beijo, com toda a
minha fome, com toda a minha saudade, o gosto da sua boca me fazendo ofegar,
arder de tanto tesão. Há dias eu não a tocava assim, não a sentia, meu mundo
estava frio e vazio.
Sua mão delicada desce pelo meu pescoço e se infiltra na gola da camisa,
acariciando-me, me provocando, ao mesmo tempo em que as nádegas fazem
pressão em cima do meu pau duro como pedra.
— Não me provoca, Evangeline. Não sou tão forte a ponto de me
controlar, posso facilmente agir como um animal e te comer aqui mesmo.
— Pode perder o controle, me come, me faça sua. Não suporto mais essa
distância. Me desculpe por tê-lo afastado. Eu te quero tanto.
Olho em volta e percebo que não estamos sendo observados tanto quanto
presumi, apenas os casais mais próximos lançam olhares discretos e uma ideia
me ocorre.
— Vá para o banheiro feminino e me espere lá.
Ela me encara diretamente, um sorriso arteiro brincando se seus lábios.
— Tá falando sério?
— Sim. Quero te comer agora. Você me provocou, então arque com as
consequências.
Sem que seu sorriso se desfaça, ela se coloca em pé, ajeita as roupas
amassadas e se afasta, disfarçadamente. Espero alguns minutos, evitando atrair a
atenção dos curiosos e então deixo a mesa também, seguindo-a.
Encontro a porta do banheiro feminino entreaberta e entro. É como o
restante do restaurante: amplo, limpo e organizado. Com as paredes forradas por
um papel delicado com flores minúsculas cor de rosa e detalhes em cerâmica
branca.
Evangeline está recostada na pia de mármore, sustentando o sorriso
sacana.
— Já olhei nos boxes. Não tem ninguém aqui além de nós dois. — diz
ela e rapidamente tranco a porta por dentro.
— Não podemos demorar, logo vai chegar alguém. — alerto, mais a mim
mesmo que a ela.
A alcanço com uma rapidez recorde, minhas mãos indo direto para o
fecho da sua calça, as delas para o da minha. Dispo-a da peça colada, enquanto
ela desliza a minha para baixo, depois desço a calcinha delicada e a arranco
pelos seus pés, meus olhos se detendo no seu sexo pequeno, completamente
depilado, lisinho. Incapaz de resistir ao seu sabor, seguro-a pela cintura, com as
duas mãos e a sento sobre a beirada da pia, com as pernas abertas. Em seguida,
abaixo-me diante dela, dou uma boa olhada na bocetinha aberta, toda lambuzada
de tesão e aproximo meu rosto, aspirando o cheiro gostoso, quando posso ver
seu corpo tremer em expectativa. Com os polegares, afasto seus lábios rosados e
passo a língua entre eles, extasiado com o sabor da sua excitação, com o gemido
que escapa da sua garganta. Ela é pequena aqui e passo a língua por toda a sua
extensão, maravilhado ao senti-la inchar sob o meu toque.
Evangeline recosta-se no espelho na parede atrás de si e abre ainda mais
as pernas, sua cabeça se lançando para trás, gemidos dengosos ecoando pelo
banheiro. Forço a ponta da minha língua na sua entrada melada e a penetro,
movendo-me em vai e vem, para em seguida dar lambidas em seu clitóris, seus
gemidos se tornando mais incessantes, suplicantes.
Queria chupá-la até fazê-la se desmanchar em gozo na minha boca,
porém precisamos ser rápidos. Então, com relutância, levanto-me, tiro a cueca e
encaixo meus quadris entre suas pernas abertas, a cabeça do meu pau recostando
na sua entrada quente e deliciosa.
— Espere, você não tem preservativos? — indaga ela, a respiração
ofegante.
— Não vou gozar dentro, prometo.
Tão logo vejo-a voltar a relaxar, seguro meu pau pela base e o esfrego na
sua entrada, com a outra mão, seguro firme em seu quadril e entro nela, com um
único golpe, me enterrando tão fundo que posso sentir o roçar dos seus lábios
úmidos na minha pélvis. A fim de ampliar meu acesso ao seu corpo, penduro
suas pernas em meus braços, suspendendo-as brevemente e meto mais forte,
puxando e arremetendo novamente os quadris, estocando bruscamente,
incessantemente em seu canal, extasiado com a forma como ela tenta conter seus
gemidos, mordendo os lábios, seu rosto lindo contraído de prazer, as mãos
apoiada na pia, sua vagina me acolhendo, molhada, quente e gotosa, me
apertando, latejando em torno do meu pau, como se o mamasse.
— Porra! Que delícia... — rosno.
Inclino-me sobre ela e me aposso da sua boca, devorando-a, fodendo-a
com minha língua na mesma medida em que a como, só para que ela saiba o
quanto é minha, que posso fazer tudo o que eu quiser, que posso fodê-la de todas
as formas possíveis e o farei, não apenas gora, mas pelo resto da vida.
Não demora muito seu corpo frágil se contrai inteiro e sei que o gozo está
se formando em suas entranhas, então saio dela a tempo de impedi-la, o temor de
que alguém possa bater na porta do banheiro a qualquer momento causando-me
uma adrenalina excitante.
— Se vira, quero te comer por trás. — ordeno, sem deixar espaço para
contestações.
Evangeline lança um rápido olhar em direção à porta, na certa
preocupada em sermos flagrados, ainda assim obedece, depositando sua total
confiança em mim, o que só serve para me deixar ainda mais doido, excitado,
viciado.
Parecendo uma putinha deliciosa e experiente, ela se coloca de costas
para mim, apoia as duas mãos na pia, abre bem as pernas e empina bunda em
minha direção, pedindo silenciosamente pelo meu pau. Através do nosso reflexo
no espelho ela me encara, os olhos travessos, a boca entreaberta para puxar o ar,
o azul dos olhos mais escuros de excitação.
Porra!
Cedendo a um impulso, desfiro uma palmada estalada em um dos globos
da sua bunda, deixando a marca vermelha da minha mão, encaixo a cabeça do
meu pau na entrada da sua vagina e volto a entrar nela, me enterrando até a base,
extasiado com a forma como as paredes do seu canal me apertam, me acolhem,
me mamam. Seguro ambos os lados dos seus quadris e meto mais forte, mais
firme, acelerando os movimentos, o som da minha pélvis se chocando contra a
sua bunda ecoando pelo banheiro.
Através do espelho, posso ver o prazer em seu rosto lindo, a boca mais
aberta para puxar o oxigênio, as sobrancelhas arqueadas, os olhos brilhantes,
presos em meu rosto, o que funciona como uma perdição para mim e o gozo se
aproxima.
— Goza pra mim, gostosa... não vou aguentar por muito mais tempo...
Dou mais três estocadas firmes dentro dela e seu corpo reage, se
contraindo, dessa vez não paro, porém também não consigo me segurar, a
saudade era forte demais e quando ela explode, se desmanchando em gozo,
convulsionando e gemendo alto, vou junto, o pau enterrado até a raiz, se
esvaindo em espasmos, enchendo-a, meu esperma se misturando com a sua
umidade.
É nesse exato instante que ouvimos uma batida na porta e gargalhamos
um para o outro, satisfeitos, saciados, lânguidos. Sem pressa alguma, me retiro
dela, viro-a de frente e a beijo demoradamente, com a toda a minha paixão.


CAPÍTULO XX


Evangeline


Apesar de eu praticamente ter forçado Victor a incentivar sua ex-mulher
a vir para Fairbanks, não consigo evitar a tensão que toma conta de mim
enquanto a esperamos todos reunidos na sala de estar. Como Victor me pediu,
hoje cedo levei todas as minhas coisas para o seu quarto e depois tive uma longa
conversa com as meninas sobre isso, deixando claro que meu objetivo não é
tomar o lugar da mãe delas nessa casa, nem em suas vidas, mas sim fazer Victor
feliz, da forma como ele me faz. Fiquei surpresa, e ao mesmo tempo feliz, com o
quanto elas demonstraram apreciar a novidade. Deixei claro às duas, e ambas
concordaram, que nossa relação não será de madrasta e enteada e sim de amigas.
Depois da noite movimentada que tive nos braços de Victor — por conta
da qual amanheci toda dolorida, porém satisfeita —, ele voltou a me explicar que
não devo, em hipótese alguma, confiar em Olivia, em qualquer demonstração de
amizade da parte dela e por mais incrível que possa parecer, agora que ela está
chegando, não é isso que me desestabiliza e sim pensar no quanto é muito mais
parte da vida das meninas, da de Victor e também desta casa do que eu, o que me
faz sentir uma intrusa aqui, como se estivesse sobrando, embora saiba que não é
assim.
Por fim, o ronco do motor do carro dirigido por Lewis se aproximando
anuncia que ela chegou e logo a porta se abre, dando entrada a ela e ao
motorista, que carrega as várias malas. Está linda como uma modelo das
passarelas da moda, usando um vestido da alta costura, que cai muito bem em
seu corpo excessivamente magro, com o rosto de boneca bem maquiado, os
cabelos cor de cobre — iguais aos de Samantha — cascateando-lhe os ombros.
Os olhos pesados, ligeiramente avermelhados, indicam que está drogada, no
entanto parece bem mais calma que na outra ocasião em que a vi, um sorriso
torto dobrando seus lábios.
— Venham cá, meus amores, me deem um abraço forte. — É a primeira
coisa que ela diz ao entrar, dirigindo-se às filhas.
Fico atônita quando as meninas sequer se movem do lugar, olham-na
como se fosse apenas uma estranha. Samantha me falou que ela nunca foi muito
próxima às filhas, que desde que eram crianças sempre se mostrou muito
ausente, saindo frequentemente às compras, às viagens e aos eventos
glamourosos, como jantares de caridade e leilões de obras de arte, sem jamais
tirar um tempo para ficar com as duas, eu só não imaginei que fossem assim tão
distantes.
Como ficou a cabeça dessas meninas durante o tempo em que Victor
também se distanciou, por causa da morte de Khalil? Eu não queria ter estado no
lugar delas, parecendo órfãs, mesmo com ambos os pais vivos.
— Como está, mamãe? — Samantha indaga e por fim vai até ela,
aparentemente mais para dar o exemplo a Luci que por vontade própria.
O abraço entre ambas é rápido e impessoal. Com relutância, Luci imita a
irmã e vai cumprimentá-la, demonstrando o mesmo interesse de alguém que se
encaminha para um banho de água gelada em um dia de inverno.
— E vocês, como estão? — Olivia se aproxima de nós, deixando de lado
o interesse pelas meninas, tão rápido quanto um raio. Crava seu olhar raivoso,
mal disfarçado por trás de um sorrio forçado, em meu rosto, depois me examina
dos pés à cabeça. — Então é essa a mulher de quem me falou? Não é uma
mulher e sim uma menina.
Suas palavras não me abalam, não é mais do que eu já esperava.
— Fez uma boa viagem, Olivia? — Victor indaga, firme e curto.
— Sim. A tripulação do seu jatinho é muito agradável.
— Ótimo saber. Agora vamos almoçar, pois já esperamos demais.
Estamos com fome.
Nos reunimos à mesa na sala de jantar e ao toque de uma campainha os
empregados surgem da porta da cozinha, trazendo diferentes pratos, servindo-
nos. Todos eles cumprimentam a antiga patroa, com polidez, sem que ela os
responda, ou sequer olha para eles, o que me causa pena.
Durante a refeição, o clima que se instaura no ambiente é tenso, as
meninas não dizem nada enquanto comem. Luci olha para a mãe com
estranheza, como se ela fosse um enfeite recém colocado na mesa, Samantha
apenas lança lhe olhares rápidos e disfarçados, enquanto que Olivia não faz o
menor esforço para puxar assunto com elas, permanece em silêncio ao mesmo
tempo em que revira a comida em seu prato, sem levar nenhuma garfada à boca.
Só se fala alguma coisa quando Victor tenta puxar assunto, a fim de amenizar o
clima de tensão.
Definitivamente, tê-la aceitado aqui não foi uma boa ideia, embora as
intenções tenham sido louváveis, ainda bem que não foi ideia minha. A mulher
carrega uma aura de negatividade que parece se irradiar para todos os lados,
embora eu acredite que ainda valha à pena tentar ajudá-la a se livrar de tudo isso.
Após o almoço, ao invés de nos acompanhar até a sala de estar, onde nos
reunimos para jogar conversa fora, ela se isola no quarto de hóspedes, mais uma
vez abrindo mão da oportunidade de passar as horas com as meninas. Apesar de
não demonstrarem, aposto como no fundo elas estão se sentindo mais uma vez
rejeitadas pela mãe, o que me desperta uma vontade enorme de subir até o quarto
e socar a cara da megera até que aprenda a dar valor às filhas que tem.
Algum tempo depois, Luci adormece, como sempre faz depois do
almoço, Samantha se cola no celular e Victor me convida a ter uma conversa
séria com Olivia, acho que quer me dar mais provas do quanto sua proximidade
é nociva.
Tão logo a porta do quarto dela é aberta e entramos, podemos sentir o
cheiro de maconha impregnado no ambiente.
— Que porra é essa, Olivia? Você está se drogando aqui? — Victor
vocifera, estrondosamente, depois de fechar a porta pelo lado de dentro.
— É só um baseado, nem devia ser considerado droga. — diz ela.
Está usando um hobby de seda curto, que deixa à mostra as curvas do seu
corpo magro.
— Não devia, mas é, porra! Se você ainda tem aí, me dê para que jogue
fora. Agora mesmo!
— Não posso fazer isso. Você disse que não queria que eu me drogasse
aqui, já estou sem a cocaína. Se não fumar um baseado, vou surtar.
É nesse instante que começo a sentir pena dela, por ser completamente
escrava das drogas. Victor parece ter tido a mesma reação, pois respira fundo,
tentando se acalmar.
— Pelo menos vá fumar lá fora, bem longe das meninas.
— Tá bom, mas só da próxima vez. Agora me diz o que vocês querem,
preciso descansar. Foi uma viagem longa.
— Ajudar você. — Victor diz e ela solta uma gargalhada debochada.
— Me ajudar? Que piada é essa?
— A ideia de reaproximar você das meninas, foi de Evangeline, então ela
fala.
Victor gesticula com a cabeça, passando-me a palavra e encaro os olhos
cor de mel, da mulher.
— Nós queremos convidar você a se internar em uma clínica de
reabilitação para se recuperar e melhorar seu convívio com as meninas.

Ela se aproxima de mim quase soltando fogo pelas ventas, os olhos
cheios de ódio fixos em meu rosto e apesar de intimidada, não recuo um só
passo.
— Quem você pensa que é para me dar conselhos, sua prostituta escrota?
— Não fale assim com ela! — Victor vocifera, furioso.
— Pode deixar, Victor. — falo e volto a encará-la diretamente — Sei que
minha presença nesta casa não agrada você, mas não é hora de pensarmos em
nós, e sim nas crianças, elas...
— Poupe seu fôlego, sua puta de merda! Nada do que sair da sua boca
chupadora de pau vai ser novidade para mim. Você não se importa com as
minhas filhas e muito menos comigo, só está tentando dar uma de santinha par
que Victor se sinta seduzido, como de fato parece estar, e a mantenha aqui, ao
lado dele. Mas sabe de uma coisa? Eu vou te contar um segredo: ele já esteve
seduzido assim por mim também e não demorou muito estava me traindo com
várias mulheres. Com você não vai ser diferente. Quando se cansar da sua cara
de santa ele vai procurar outra na rua e você corre o risco de acabar como eu,
afundando nas drogas. Ou acredita mesmo que é melhor que eu e as outras que já
passaram pela cama dele?
Respiro fundo várias vezes, lutando em busca de calma e serenidade.
Prometi a mim mesma que não me deixaria afetar pelo veneno dela, só que agora
percebo que não é tão fácil. Essa mulher é o diabo em forma de gente.
— Suas palavras nada me dizem, portanto poupe o fôlego você. —
Mantenho minha voz o mais firme possível — Nós só queremos ajudá-la e se
você não fizer esse esforço para mudar a sua vida, pelas suas filhas, é porque não
merece ser mãe delas.
— E quem merece, você? — Ela solta uma gargalhada debochada, sem
que o olhar irado acompanhe o gesto — Filhinha, vê se cresce. Apenas Victor,
que não sabe controlar a própria libido e não presta atenção em que buraco enfia
o pau dele, acredita na sua santidade, na sua falsa vontade de ser mãe daquelas
meninas, comigo isso não cola. — Ela se vira para Victor antes de continuar —
Se você pretendia tentar me convencer a me internar de novo, naquela maldita
clínica, está perdendo o seu tempo, principalmente vindo falar comigo junto com
essa Lolita oxigenada.
Vejo o maxilar de Victor endurecendo, uma veia latejando forte em sua
têmpora.
— Nesse caso, nem dê aos empregados o trabalho de desfazer suas
malas. O jatinho vai levar você de volta agora mesmo. — dispara ele.
— De jeito nenhum. — retruca ela — Eu desmarquei compromissos,
reorganizei toda a minha agenda para vir aqui. Agora vou ficar.
Movido pela fúria, ele dá um passo na direção dela e, temendo que perca
o autocontrole e faça algo de que possa se arrepender depois, tomo a sua frente,
impedindo-o de prosseguir.
— Não vale à pena, Victor. Deixa-a ficar.
Olivia solta outra de suas gargalhadas malévolas.
— Eu não acredito que vivi para ver Victor Boseman recebendo ordens
de uma mulher. O que um homem não faz por uma boceta de vinte anos.
Então, é a minha vez de me virar para fitá-la.
— Você pode ficar, por alguns dias, mas se fumar maconha, ou usar
qualquer outra droga na frente das meninas, vou chamar a polícia e você vai não
apenas sair daqui, como também sair direto para uma jaula, onde é o seu lugar.
— Não me ameace, seu projeto de Lolita.
— Isso não é uma ameaça, mas apenas uma informação.
Segurando firmemente no braço de Victor, consigo fazer com que ele me
siga para o lado de fora do quarto, ambos tensos, sobressaltados.
— Me desculpe por isso. Eu não sei onde estava com a cabeça quando
deixei que ela viesse. — diz ele, enquanto seguimos pelo corredor longo.
— Não se desculpe. Você só demonstrou integridade ao tentar
reaproximá-la das filhas, não tem culpa de ela ser esse monstro.
— Acho que eu devia tirá-la daqui à força e colocá-la no avião de volta
para a Califórnia.
— Isso seria pior. Espere uns dias. Daqui a pouco ela fica entediada e
desaparece. Se não acontecer, aí sim, você a força.
— Enquanto isso, vamos aproveitar nosso sábado e sairmos para pescar
com as meninas. Elas adoram.
O sorriso que se forma em meus lábios é quase involuntário.
— É sério? Como é que eu ainda não sabia disso?
— Sabe agora.
Pouco depois, sem voltarmos a vermos Olivia na casa, eu, ele e as
meninas deixamos a mansão, acompanhados pelo gigantesco e dócil Thor, para
um dia de pesca nas águas geladas do lago Tanana.
Com um dia mais longo que a noite, aproveitamos a claridade estendida
para ficarmos até mais tarde no lago, nos divertindo ao pegarmos alguns poucos
peixes nas águas geladas, em um momento gostoso, durante o qual a mulher
drogada no quarto de hóspedes cai no esquecimento de todos. Meu único
incômodo é a pena que sinto de Samantha, por não poder ter Jacob ao seu lado
em momentos como esse, de alegria e descontração. Me lembro que quando
adolescente, eu tinha um namoradinho na escola e me doía na alma não estar
com ele em todos os lugares, devido às minhas limitações físicas e olha que
nosso amor não era tão verdadeiro como o desses dois. No fundo acredito que
um dia Victor passe a aceitar esse amor, não vai ser logo e nem vai ser fácil, no
entanto, da mesma forma como ele aceitou receber Olívia, pelas meninas e por
mim, aceitará a família Patel como amiga também, só espero que aconteça antes
que destrua a reserva.
Ao voltarmos para a mansão, Olívia não está e nem vemos quando
retorna. No dia seguinte, só acorda depois do almoço, fica um pouco no terraço,
onde estamos reunidos, embora permaneça o tempo todo com a atenção fixa no
celular, como Samantha — apesar de ser normal e aceitável para uma
adolescente —, e então se arruma e sai novamente, sem dar satisfação de para
onde está indo. Acredito que possa estar saindo com Christian novamente, só
não acho conveniente tocar nesse assunto com Victor.
Nesse ritmo se passam vários dias, durante os quais a presença dela
quase não é notada na casa, ao mesmo tempo em que parece estar sempre por
perto, nos espreitando, rondando, como uma cobra esperando para dar o bote, o
cheiro fétido do seu cigarro sempre presente no ambiente, principalmente no
segundo andar. Agindo como uma filha rebelde, passa as noites fora e os dias
dormindo, pouco fala com as meninas, se recusa a ouvir quando Victor tenta
convencê-la a se internar, ou a procurar por outro tipo de ajuda e não perde
qualquer oportunidade de me provocar, seja dando em cima de Victor bem diante
de mim, ou me jogando piadinhas que faço questão de ignorar. Entretanto, sua
presença aqui tem me afetado de outra forma. Por mais que eu tente evitar, estou
sempre tensa, sobressaltada, esperando que ela apronte alguma coisa, me sinto
tão incomodada que tenho tido enjoos fortes, cansaço, fraqueza. Não vejo a hora
de ela ir embora, pois já deixei de acreditar que concorde em procurar por ajuda
para se libertar do seu vício.
Algumas semanas depois, como acontece quase todos os dias, estou
levando Samantha para a lanchonete onde ela se encontra escondida com Jacob
depois da aula, quando ela recebe uma mensagem dele, avisando que não
conseguiu ir à sua escola hoje, devido a uma forte gripe. Pede que vá encontra-lo
na mansão dos Patel, pois não conseguirá dormir à noite, ou sequer fazer as
refeições, sem vê-la mesmo que rapidamente. Bem que eles podiam estudar no
mesmo lugar, isso facilitaria as coisas, mas Victor foi cuidadoso em providenciar
que estivessem em escolas diferentes, parece até que estava adivinhando.
— De jeito nenhum vou levar você à casa dos Patel, ainda mais com Luci
aqui. Nem morta! — É a minha resposta ao seu pedido para que a leve para ver o
namorado.
Espertinha como sempre, ela coloca os fones de ouvido em Luci, antes de
continuar falando.
— É rapidinho, por favor. Aposto como a essa hora Christian está na
reserva, há dias que ele está lá lutando junto com os manifestantes.
— Eu já disse que não, Sam. Imagina o que seu pai ia fazer comigo se
soubesse que levei Luci na casa deles. — Me arrepio só em pensar.
— Por favor, Evangeline, pela nossa amizade. Papai está quase fechando
acordos com os líderes dos manifestantes e os afastando de lá, quando ele
destruir aquela reserva, nem mesmo os pais de Jacob vão mais apoiar nosso
namoro e será ainda mais difícil nos vermos. Tenha pena de mim, mulher.
Por mais que tente, não consigo me manter indiferente. Imagino a mim
mesma sendo obrigada pelos outros a ficar longe de Victor, acho que eu
morreria. Esse pensamento me comove, me emociona a ponto de me fazer
ceder.
— Ai meu Deus, não acredito que estou fazendo isso. Seu pai vai me
matar. — Com tais palavras, faço o retorno e sigo rumo à propriedade dos Patel,
o coração espremido de medo de ser apanhada.
— Obrigada. Eu sabia que podia contar com você. — Samantha me
abraça tão apertado que por pouco não perco o controle da direção do carro.
Uma hora depois, estamos adentrando os portões da suntuosa mansão dos
Patel. Cogito deixar Samantha na entrada e esperar no carro junto com Luci,
entretanto, tão logo estaciono junto à imensa porta dupla, uma senhora de meia
idade, que acredito ser a mãe de Christian, está saltando de outro carro, que
vinha à nossa frente e se aproxima do nosso veículo.
— Ora, mas que surpresa agradável. Veio ver nosso Jacob? — indaga ela,
gentilmente, beijando as bochechas rosadas de Samantha.
— Sim, senhora. Ele me disse que está gripado e por isso não foi à aula
hoje.
— Está atacado da bronquite de novo. Só fui ao chá da tarde no clube
porque Joseph deixou de ir ao hospital para ficar com ele. Mas vamos entrando.
Tenho certeza que ele vai melhorar quando a vir. — Samantha ruma para a porta
e entra, enquanto a mulher enfia a cabeça na janela do carro, meu sangue
gelando nas veias quando detém seus olhos em Luci, sentada no banco de trás.
Será que ela sabe que é avó da menina? Se não sabe, vai já perceber a
semelhança com seus filhos. Puta merda! O que diabos eu vim fazer aqui. — E
essa fofurinha, quem é?
— É a filha caçula do Sr. Boseman. — falo, o coração dando saltos no
peito por causa da adrenalina.
— Aquele homem é um desalmado, está prestes a destruir o que meus
antepassados dedicaram suas vidas a construir.
— Por favor, não fale assim na frente da garota.
— Oh, minha nossa! Você está certa, me desculpe. A criança não tem
culpa do pai que tem. — Percebo então que ela não sabe a verdade, o que me
deixa parcialmente aliviada — Vamos entrar e tomar um chocolate quente, meu
amor. Está frio demais para ficar aqui fora.
— Obrigada, mas preferimos esperar aqui mesmo.
— Não faça desfeitas, a criança acabou de sair da escola e precisa de um
lanche. Não gostamos do pai dela, mas sabemos separar as coisas.
Ignorando minhas palavras, ela abre a porta de trás do carro, pega Luci, a
coloca no chão, e, segurando sua mãozinha, ruma para a porta de entrada da
casa.
Puta que pariu, era só o que me faltava.
Sem opção, salto rapidamente do veículo e as alcanço antes que entrem
na casa.
— Não precisa se incomodar, Sra. Patel, Samantha não vai demorar. Luci
come quando chegarmos em casa.
A mulher se detém a meio caminho da porta, virando-se para mim,
quando então aproveito para segurar a mão de Luci, separando-a da dela, só por
precaução, afinal o sague nas veias é algo que algumas pessoas podem
pressentir, pelo menos é o que dizem alguns livros de autoajuda que li.
— Vamos perguntar a ela o que prefere. — Vira-se para a menina e
indaga: — Você quer tomar um chocolate quente agora, com deliciosos biscoitos
amanteigados, ou esperar para comer apenas quando chegar em casa, meu bem?
Lucy escancara um sorriso para ela, exibindo a fenda entre os dentinhos e
sei que a mulher já ganhou o seu afeto. Assim tão depressa, só pode ser o sangue
falando!
— Quero comer agora. — diz Luci.
— Viu só? — fala a mulher, fitando-me vitoriosa. É muito parecida com
os filhos, principalmente com Christian, tem os mesmos olhos castanhos
esverdeados e a alta estatura. Os cabelos são grisalhos, sem tinta, presos em um
coque clássico, o vestido simples de algodão evidencia a ausência de vaidade. —
Vamos entrando, não façam cerimônia.
Sem escolha, a seguimos para o interior da mansão. Logo na primeira
sala, me deparo com Joseph, espichado em um dos sofás branquíssimos, lendo
algo em um tablet. Ao nos ver, levanta-se depressa.
— Minha nossa! Quanta gente bonita chegando de uma só vez. — diz
ele, com irreverência.
— Como vai, Joseph? — indago.
— Bem. E essa fofura, ficou mesmo boa da gripe?
Luci exibe o sorriso falhado e mais uma vez dou um tapa na testa,
mentalmente. Isso está ficando cada vez melhor.
— Oi Dr. Joe. — diz Luci.
— Uau! Você se lembra de mim. Tem uma boa memória. Aposto como é
uma ótima montadora de quebra-cabeças.
— Eu sei montar o do Sonic e do Rei Leão. Meu pai vai comprar da
Pocahontas pra mim.
— Diz pra ele comprar o do Pequeno Príncipe também, é um dos
melhores.
Ela sorri ainda mais abertamente, o rostinho irradiando contentamento e
só consigo lamentar que não tenha a oportunidade de conviver com essas
pessoas, seu tio e sua avó de sangue, assim como lamento que a mulher não
saiba de nada.
— E Samantha, onde está? — pergunto, já preocupada.
— Ela subiu correndo para ver Jacob. Não se preocupe, se ele não se
comportar arranco a orelha dele. — Joseph diz e Luci solta uma sonora
gargalhada.
— Vou deixar vocês dois aí conversando e levar essa coisinha linda para
lanchar na cozinha. — Afirma a Sra. Patel, encarando Luci com tanta ternura
que meu coração falha uma batida, por medo de que perceba a semelhança entre
ela e seus filhos — Ela não é linda, Joe?
— Sim. Não se parece com o pai, nem com a mãe.
Merda!
— Deve ter puxado a alguém da família da mãe. Enfim. — A mulher
suspira pesadamente — Vem comigo, lindinha?
Estende a mão para Luci e ela lança-me um olhar, pedindo permissão.
— Pode ir, mas não demore. Logo que Samantha descer vamos para casa.
Ela segura na mão da avó paterna e ambas desaparecem em uma das
portas.
— Sente-se. Fique à vontade. — Joseph gesticula para um dos sofás e
acomodo-me — Não se preocupe com Luci, minha mãe é uma coruja com
crianças. Doida pra ter um neto.
— Ela ainda não sabe que Luci é filha de Christian? — pergunto,
sussurrando para que apenas ele me ouça.
— Nós achamos melhor poupar a ela ao meu pai dessa bomba. Estão
velhos demais para saber que lhes foi negado o direito de serem avós.
— E o que vocês estão esperando para arranjar outro neto para eles? —
Eu não acredito que perguntei isso. Deve ser o nervosismo.
— Não temos muita sorte com mulheres. Um certo Sr. Boseman se
apossa de todas que amamos.
Sem que eu possa controlar, minha face erubesce.
— Isso não é verdade. Ele apenas as conhece primeiro.
Subitamente, ele fica sério.
— Pelo visto, vocês dois conseguiram se acertar, não é?
— Sim, estamos bem.
Um brilho irritado atravessa rapidamente a expressão do seu olhar.
— Como você ficou com essa história do coração de Khalil em seu
peito?
— Como te falei na última vez que nos vimos, isso não é motivo para
que eu me afaste de Victor. Como médico, você devia saber disso.
— Não estou me referindo ao aspecto biológico, mas ao fato de ele ter
mentido para você.
— Eu o perdoei, é o que as pessoas fazem quando amam. — O brilho de
irritação novamente se reflete em seus olhos, mas logo se esvai — Quero
aproveitar pata te agradecer por não ter contado essa história para ninguém,
apesar de Victor estar prestes a transformar a reserva em uma área de pesca.
— Ele ainda não transformou, a esperança é a última que morre. —
Quero dizer a ele que não cabe ter esperanças nesse caso, mas não tenho
coragem — E não precisa agradecer, eu jamais falaria, pois isso se tornaria um
escândalo, mas não faço por ele e sim por você, por Samantha e por Luci.
— Um dia contaremos a verdade a elas.
— Eu não quero estar por perto nesse dia. Vai ser terrível para essas
meninas.
— Ou talvez elas encarem com naturalidade, como eu.
— O que minhas filhas podem encarar com naturalidade? — A pergunta,
proferida por uma voz pastosa, feminina, parte dos pés da escada que leva ao
segundo piso, é Olivia.
Olho para ela e meu sangue gela nas veias, o terror emergindo em minhas
entranhas, não apenas pelo fato de que ela quase ouviu sobre o coração de Khalil
bater em meu peito, mas pela certeza de que vai correndo contar a Victor que
estou aqui, na casa do pai biológico de Luci, com ela e acobertando o namoro
entre Samantha e Jacob.
Puta merda! Eu suspeitava que, de alguma forma, essa mulher estragaria
meu relacionamento com Victor, só não imaginava que seria tão
devastadoramente. Depois dessa, dificilmente ele vai me perdoar.
Como se estivesse com frio, começo a me tremer toda.
— Eu fiz uma pergunta. Vão ficar aí me olhando com cara de quem viu
um fantasma e sem responder? — Insiste ela.
Está debruçada sobre o corrimão da escada, bastante à vontade, usando
apenas uma camiseta sem mangas branca, um short minúsculo a e um hobby
aberto na frente jogado por cima. Tem os cabelos emaranhados, a maquiagem
dos olhos borrada, como quando acaba de acordar, os pés descalços, e um
cigarro aceso entre os dedos.
— Isso não é assunto seu, Olivia. Vê se fica na sua. — Joseph é curto e
grosso.
Ao invés de se afastar, ela vem em nossa direção, encarando-me com
altivez.
— Então é aqui que você passa suas horas vagas? Acho que Victor não
vai gostar muito de saber disso, ou vai gostar até demais.
Trêmula, levanto-me e me aproximo dela, minha mente trabalhando
depressa em busca de uma forma de lhe esconder que Samantha e Luci também
estão aqui.
Porra! Luci está aqui, na casa do pai biológico dela, Victor vai me
matar.
— Não é o que você está pensando...
— Não estou pensando nada, sua Lolita Oxigenada! Eu estou vendo. —
Interrompe-me, bruscamente.
Sem uma gota de sangue na face, olho para Joseph, em um pedido
silencioso por socorro, no entanto, ele parece não se importar, inclusive arrisco
pensar que está gostando da possibilidade de Victor passar a me odiar.
Merda!
Entretanto, como o bom cavalheiro que é, logo ele vem ao meu auxílio,
colocando-se em pé ao meu lado, no entanto, quando abre a boca para falar, só
me compromete ainda mais.
— Ela veio trazer Samantha para ver Jacob. Sim, os dois são namorados,
mais que isso, eles se amam e já está mais que na hora de Victor engolir isso,
para que saiba que está prestes a destruir também o que um dia será da filha dele.
— Ah, então é isso. Minha filha de quinze anos está namorando
escondida e essa songa-monga acoberta.
— É como Joseph diz, eles se amam.
Quero fazer todo um discurso, dizer que se ela se preocupasse
minimamente com as filhas, estaria ajudando-as no meu lugar, contudo já
percebi que não adianta falar, ela não se sente afetada de forma alguma quando é
lembrada do quão péssima é como mãe, simplesmente não faz questão de
melhorar, não liga para as meninas, age como se elas não existissem.
— E Victor vai amar saber disso. — Ela fala e em seguida solta uma de
suas gargalhadas forçadas.
Pergunto-me o que diabos ela está fazendo aqui e antes que tenha tempo
de formular a pergunta, vejo Christian descendo as escadas, também descalço,
usando short e camiseta, dando indícios de que estava na cama com ela. Do
outro lado, ao mesmo tempo, Luci surge da cozinha correndo.
— Evangeline, já comi. Você sabia que tem um filhote de tartaruga aqui?
— diz a menina, detendo-se ao se deparar com a mãe — Oi mamãe.
Um sorriso maléfico, cheio de veneno, se faz nos lábios de Olivia e sou
tomada pela certeza de que estou infinitamente ferrada. Victor nunca mais vai
olhar na minha cara e lamento dolorosamente por isso, por perdê-lo.
— Ah, meu Deus. Luci também está aqui. — Olivia fala e finge estar
contendo o riso. Olha na direção do seu amante e indaga: — Ela vem sempre
aqui?
— Não que eu saiba. — Christian diz e aproxima-se de Luci, os olhos da
mesma cor dos dela, brilhando ao observá-la. Confesso que desde que fiquei
sabendo a verdade fantasiava com um encontro entre os dois, só não esperava
que acontecesse desta forma, inesperada, estando eu tão aterrorizada. — Como
vai Luci?
Constrangida como quase sempre fica na presença de estranhos, ela se
enrosca em minhas pernas, olhando-o de soslaio.
— Minha nossa! Que momento mais tocante. — Olivia diz, com escárnio
e saca um celular do bolso do short — Vou até tirar uma foto, se não Victor não
vai acreditar em mim.
Ela se afasta o suficiente para que a câmera do celular pegue todos nós e
tira mais de uma foto. Desde que ela chegou, ainda não tinha sentido tanta
vontade de voar em seu pescoço e estrangulá-la como agora. A raiva que se
alastra pelas minhas veias, misturando-se ao medo aterrador de perder Victor, é
indescritível.
— Adiantaria alguma coisa se eu te pedisse para não contar nada para
ele?
— Sem chance, filhinha. Ele vai ficar sabendo de tudo ainda hoje.
É então que a Sra. Patel aparece da cozinha, o sorriso se desfazendo da
sua boca ao perceber o clima de tensão no qual estamos envolvidos.
— Já está mais que na hora de Victor saber sobre o que Samantha e
Jacob sentem um pelo outro. — É Joseph quem diz.
Olivia o observa com desdém.
— Ele precisa saber também que essa songa-monga traz Luci aqui. —
fala e olha para mim, certamente tentando decifrar se tenho conhecimento de que
Christian é pai de Luci.
Mas não vou dar esse gostinho a ela, embora saiba que quando conversar
com Victor ele falará. Sem encará-la de volta, dirijo-me a Joseph, profundamente
abalada e peço.
— Você pode avisar a Samantha que precisamos ir, por favor?
— Não vão ainda. Me deixa ficar um pouco mais com ela. — É Christian
quem diz.
Claramente emocionado, com os olhos marejados de lágrimas, ele
ajoelha-se no chão, diante de Luci, que continua se escondendo timidamente
atrás das minhas pernas.
— Por que você quer ficar com ela, filho? — A Sra. Patel indaga e não é
preciso que alguém responda.
Pela reação de Christian diante de Luci, ela finalmente percebe,
finalmente se dá conta do quanto ambos são parecidos, de que a menina tem a
mesma idade da época em que seu filho e Olivia eram amantes, então, abalada,
leva uma mão ao peito e outra à boca, como se sufocasse um grito, um choro.
— É isso mesmo, mamãe. — Joseph afirma, como se lesse os
pensamentos dela.
— Por favor, não diga as palavras na frente de Luci. — Peço e Olivia
sorri, vitoriosa com a confirmação de que eu sabia de tudo e mesmo assim
trouxe a menina aqui — Eu realmente preciso ir. — Pego Luci no colo, de um
jeito protetor — Por favor, alguém pode chamar um taxi para Samantha?
Antes mesmo de encerrar minha frase, já estou me encaminhando em
direção à porta de saída, levando Luci comigo, Joseph me seguindo.
— Acho que você está nervosa demais para dirigir. Eu te levo. — diz ele.
Quero recusar, pelo simples fato de que Victor não quer a proximidade de
nenhum deles da sua propriedade, no entanto, isso não terá mais a menor
relevância depois que Olivia falar com ele, o que acredito que será em breve,
arrisco inclusive dizer que ela irá direto daqui para a o escritório dele na
empresa, portanto, prefiro aceitar a oferta dele a arriscar dirigir assim com Luci
no carro.
Entro no veículo e acomodo-me no banco de trás, com a garotinha no
colo e Joseph toma o volante. Mesmo depois que ele dá a partida não me
desgrudo dela, um medo aterrador de me distanciar tomando conta de mim. E é o
que acontecerá quando Victor souber o que fiz. Ele me expulsará da sua casa, me
proibirá de ver as meninas, me excluirá de vez da sua vida e da delas e tudo o
que consigo agora é me perguntar como vou sobreviver sem todos eles.


CAPÍTULO XXI


Victor


Nos aproximamos do encerramento de mais uma reunião fatídica.
Finalmente, depois de muita conversa, consegui entrar em acordo com os
principais líderes dos manifestantes em defesa da manutenção da reserva. Em
troca de que eu providencie outro lugar onde possam ser preservadas as espécies
de peixes encontradas aqui, vão tirar o pessoal deles do meu caminho. Os poucos
que restarem, a polícia ficará encarregada de afastar.
Amanhã mesmo meus navios pesqueiros agirão nas águas da maldita
reserva daquele filho da puta. Não terei grandes lucros com isto, pelo contrário,
montar outra reserva vai sair caro, no entanto, a satisfação em destruir aquilo que
ele mais estima me traz o incomparável sabor da vitória. É como se eu tivesse
acabado de fechar um grande e lucrativo negócio. Finalmente aquele maldito vai
receber um pouco de justiça por ter causado a morte do meu filho.
Enquanto os malditos advogados e líderes permanecem na sala de
reuniões, acertando os últimos detalhes da negociação, retiro-me para o
isolamento do meu escritório, recordando-me da última vez em que vi meu filho
com vida. Havíamos passado o domingo quase inteiro pescando nas águas do
Tanana — uma atividade que, como eu, ele apreciava —, ao chegarmos em casa,
já quase noite, me pediu que cuidasse de Thor, seu cão, caso se esquecesse dele
por causa de uma garota em quem estava de olho na escola. Parecia que ele
estava adivinhando que ia se ausentar. Na segunda-feira pela manhã, viajei para
Washington, na quinta recebi a terrível notícia. Se pelo menos Olivia não tivesse
falado nada ao maldito Patel, sobre Luci, se Khalil tivesse apenas chamado a
polícia ao invés de segui-lo, na tentativa de resgatar Luci, nada daquilo teria
acontecido, ele ainda estaria aqui.
— Sr. Boseman, sua ex-mulher está aqui pedindo para falar com o
senhor. — A voz da minha secretária irrompe pela sala, através do interfone, tão
logo me acomodo atrás da minha mesa e a raiva irradia em minhas veias, por
tomar ciência da presença daquela maldita aqui.
Se ela tivesse ficado de boca fechada, como acordou comigo, Khalil
ainda estaria vivo.
— Diga para ela fazer o favor de morrer. — É a minha resposta.
No entanto, quando se trata de Olivia, não é tão fácil se livrar.
Em questão de segundos, a porta da sala é aberta e as duas mulheres
entram de forma tempestuosa, Olivia na frente, a secretária a seguindo.
— Sr., eu disse a ela que não podia entrar.
Consternado, apenas suspiro.
— Pode deixar, Carmem. Com essa aí não havia nada que você pudesse
fazer. Pode ir. — A secretária deixa a sala e Olivia se aproxima da minha mesa.
Está desarrumada como não é de costume, só que isso pouco me importa. — O
que você quer, Olivia?
— Falar com você. Tenho algo importante pra te contar, mas pela forma
como me trata, já nem sei se quero falar. — Emburrada ela cruza os braços na
frente do peito.
— Então não fale. É só sair por onde entrou.
Percebo seu olhar se modificando, a displicência se mesclando com a ira.
— Você se acha mesmo muito superior a mim, não é, Victor?
— Eu não me acho, eu sou, assim como qualquer outra pessoa que
também não se deixa afundar nas drogas. Agora se vai falar, comece. Ou saia.
Ela ergue o queixo antes de começar, fitando-me com altivez.
— Se acha tão melhor, mas se apaixonou por uma puta que não sai da
casa dos Patel, que leva Luci lá para que Christian a veja, que acoberta um
namoro entre Samantha e Jacob, traindo descaradamente a sua confiança.
Processo suas palavras e a princípio acredito que possa ter enlouquecido
de vez, entretanto, a imagem de Evangeline deixando aquela casa em Fairbanks,
há algumas semanas, de súbito se materializa em minha mente e sinto como se
alguém desse um soco violento em meu estômago.
— Você não está falando coisa com coisa. — Tento negar, porém ela
percebe, em meu olhar, a aflição que não consigo esconder e em resposta me dá
um sorriso vitorioso.
— Ainda bem que tirei fotos, ou correria o risco de você não acreditar
em mim.
Ela saca um celular da bolsa, o desbloqueia e o atira sobre minha mesa.
Só para desmenti-la mais depressa, pego o aparelho. Na tela é exibida
uma fotografia de Evangeline em pé em uma sala luxuosa, diante do maldito
Christian, com Luci enroscada em suas pernas, e o tal de Joseph ao fundo.
Apesar de sentir o chão fugindo de sob os meus pés, forço minha mente a
trabalhar depressa, em busca de uma explicação para isto. Deve haver uma boa
explicação, Evangeline não faria isso comigo.
— Pode passar, tem mais fotos interessantes aí. — diz Olivia, sua voz
parecendo partir de muito longe agora.
Agindo mecanicamente, deslizo meus dedos sobre a tela do aparelho e as
fotografias vão se passando, mais umas três iguais, da mesma sala, sendo que em
uma delas Christian está ajoelhado diante de Luci, aparentemente tentando
ganhar a atenção da menina, enquanto Evangeline parece conversar com o outro
Patel; a fotografia seguinte é de Samantha, está saindo de um quarto, ao lado do
caçula da família, um adolescente cujo nome não me recordo. Há mais algumas
fotografias da maldita família, de Sam e da casa e por fim uma dela na praia.
Deslizo a tela de volta e revejo cada uma das fotos, examinando-as atentamente,
tentando desacreditá-las, encontrar algum vestígio de que sejam montagem, mas
no fundo já tenho certeza de que são verdadeiras.
— O que diabos significa isso? — indago, entredentes, a voz saindo
trêmula.
Praticamente saltitando de contentamento, Olivia senta-se do outro lado
da mesa, encarando-me com seu irritante ar de altivez.
— Significa o que acabei de te falar. A Lolita Oxigenada leva Luci para
ver Christian e Sam para namorar Jacob. Eu estava lá quando ela chegou e vi
tudo com meus próprios olhos. As leva todos os dias depois da escola. Você
nunca percebeu? — Como não obtêm resposta, ela continua — Devo alertá-lo de
que agora os pais de Christian sabem sobre Luci ter o sangue deles correndo nas
veias. Ela contou. Agora quero que me diga o que ela e você estão escondendo
das meninas que envolva o nome de Khalil. Essa parte não consegui ouvir toda.
Olivia continua falando, mas já não posso ouvi-la, tudo à minha volta
desparecendo aos meus olhos. Tudo o que consigo ver são as imagens nas
fotografias se repassando em minha mente. Como em um CD danificado, posso
visualizar novamente Evangeline saindo daquela casa, onde certamente deixara
Sam com o filho mais novo, namorando às escondidas, lembro-me de sua pressa
em me tirar de lá, de como fez amor comigo no banheiro do restaurante,
certamente a fim de me distrair e por fim sou tomado pela certeza de que ela
jamais me amou, de que me traiu durante todo esse tempo, mentiu para mim
sobre tudo, inclusive sobre não ter ido para a cama com o maldito médico Patel.
Desde que ele a levou em casa, após atender Luci no hospital, ambos têm sido
amantes, ela só permaneceu ao meu lado, em minha casa, durante todo esse
tempo, com o objetivo de levar Sam para namorar o filho mais novo e Luci para
ver aquele maldito.
Por Deus! Como ela consegue ser tão dissimulada?
Cego de ódio, tomado pela mais absurda dor, por uma revolta que não
tem tamanho, levanto-me e deixo a sala, minhas coisas ficando esquecidas para
trás. Ao passar pela antessala ordeno à secretária que avise ao motorista que
esteja pronto para me levar para casa.
Não vejo o percurso até a propriedade, a mente turva, invadia por
pensamentos sombrios, fúria e mágoa conflitando-se em meu interior, causando-
me a mais insuportável angústia.
Ao entrar, encontro a casa silenciosa como sempre nesse horário. Chamo
por Harriet e ao perguntar onde estão todos sou informado de que Sam ainda não
chegou e Evangeline e Luci estão nos quartos. Antes mesmo de a mulher
terminar de falar, me dirijo para o segundo andar, subindo os degraus da escada
de dois em dois. No meu quarto encontro Evangeline, sentada na beirada da
cama, cabisbaixa. Atrás dela, estão suas malas prontas.
É inacreditável o turbilhão de emoções que toma conta de mim quando
vejo aquelas malas prontas, ódio, saudade, desespero, emergindo em meu íntimo
ao mesmo tempo, o que só se intensifica quando ela se levanta e me encara com
os olhos azuis marejados de lágrimas.
— Por que você fez isso comigo? — indago, minha voz abafada,
carregada de dor.
— Eu não sei o que Olivia te disse, mas pelo menos me ouça antes de me
julgar.
— E o que você tem a dizer que ela já não tenha me contado?
— Eu admito que errei, mas tudo o que fiz foi por amor. Samantha e
Jacob se amam, verdadeiramente, foi só por isso que acobertei o namoro dos
dois. Quanto a Luci, eu não sabia que Christian estaria em casa hoje, foi só por
isso que a levei até lá.
Suas palavras soam tão falsas e sem sentido que o ódio se sobressai a
tudo mais em meu interior, alcançando níveis preocupantes.
— Se pretende continuar me enganando, mentindo para mim, pelo menos
tente fazer isso direito, você é boa com essa performance. Só não tente me
convencer que dois adolescentes, que mal saíram das fraudas, sabem o que
significa estarem apaixonados de verdade e que você acredita nisso. Não sei o
que é mais ridículo, você esperar que eu acredite nisso, ou em você não saber
que Christian não estava em casa, quando na verdade ele mora lá. — As últimas
palavras saem mais alteradas do que eu possa controlar e posso ver a angústia se
intensificando no brilho dos seus olhos.
— Não fala assim. Eu não sabia mesmo. Nunca tinha ido lá com as
meninas.
— Chega de mentiras, porra! — grito, estrondosamente, a fúria me
cegando, tomando conta de cada célula do meu corpo — Estou farto das suas
falsidades, das suas encenações, então porque não fala logo a verdade. Começa
me dizendo há quanto tempo está dormindo com Joseph Patel. — Ela meneia a
cabeça negativamente, enquanto, tomado pelo descontrole, avanço em sua
direção, um passo atrás do outro, até que a alcanço e uma de minhas mãos voa
para a sua garganta, apertando seu pescoço, ódio puro me queimando por dentro
— Não sou homem suficiente para você? Ou será que o fogo é tão grande que
não consegue ficar com apenas um? Responde vagabunda!
Com as duas mãos ela segura meu pulso, tentando afrouxar o aperto em
seu pescoço. Apenas quando começa a tossir, em uma tentativa desesperada de
puxar o ar para seus pulmões, percebo o que estou fazendo e afasto minha mão
depressa.
O olhar que ela me lança em seguida — um misto de ódio, medo e
desprezo — enquanto massageia o pescoço dolorido, funciona como um soco
violento em meu rosto.
— Me desculpe. Eu não percebi o que estava fazendo. — Tento.
Sem uma palavra, Evangeline pega uma das malas e segue rumo à porta.
Quando a vejo saindo do quarto, deixando a porta aberta atrás de si, tenho a
sensação de que uma parte de mim está sendo arrancada e levada embora. Não
posso ficar aqui parado, olhando sem fazer nada, mas o que posso fazer, se foi
ela quem traiu a minha confiança da forma mais cruel que encontrou?
Movido pelo turbilhão indefinível que me invade, dou meia volta e vou
atrás dela, a alcançando ainda no corredor.
— Onde você pensa que vai? Eu ainda não terminei. — esbravejo,
furioso com tudo, até comigo mesmo.
— Não quero ouvir mais nada. Você não passa de um animal. Eu devia
estar mesmo muito perdida para ter tido a capacidade de te amar.
— Não se faça de vítima agora, foi você quem traiu, quem mentiu. Me
enganou e me apunhalou pelas costas.
— Não fiz nada demais. Samantha e Jacob têm o direito de se amar, não
há nada que você possa fazer para impedi-los. Quando a Christian, tem o direito
de pelo menos ver a filha, ela é sangue do sangue dele, embora eu não a tenha
levado lá para esse fim. Sobre dormir com Joseph, isso só aconteceu na sua
cabeça. Mas não adianta tentar te explicar, você está cego demais pelo ódio que
alimenta por essas pessoas. Joseph estava certo quando disse que esse ódio
molda o seu caráter.
Ela fala depressa, enquanto caminha rumo às escadas, cada palavra que
sai da sua boca funciona como uma punhalada na ferida já aberta em meu peito,
no entanto, ainda assim, por alguma razão que não compreendo, nada parece
mais doloroso que vê-la partindo, se distanciando de mim. Então, quando ela
alcança as escadas e desce o primeiro degrau, movido por um desespero
inexplicável, eu a seguro pelo braço, em uma tentativa alucinada, agoniada, de
impedi-la de prosseguir, de me deixar.
— Pare aí mesmo. Nossa conversa ainda não acabou.
— Para mim acabou. — diz, e ao se virar para me encarar, descubro que
seu rosto está banhado de lágrimas, o que me enche de culpa, embora não seja
suficiente para me fazer afrouxar a mão do seu braço. — Me solta, porra!
Com um safanão, ela puxa o braço da minha mão e é então que perde o
equilíbrio e cai para trás, desastrosamente, rolando alguns lances da escada antes
que eu consiga alcançá-la e segurá-la. Mas não fui rápido o suficiente, ela se
machucou feio, tem um galo enorme na testa, um hematoma roxo no queixo,
talvez alguns ossos quebrados e está quase desacordada.
Mergulhado no mais profundo e escuro poço de aflição, ergo-a em meus
braços e a carrego rumo à porta de saída, gemidos baixos partindo dos seus
lábios, seus olhos fechados. Não tenho tempo de pedir que Lewis prepare o
carro, preciso levá-la ao hospital o mais depressa possível. Assim, a carrego
direto para a garagem, encontrando Sam no caminho, que vem chegando em um
taxi.
— O que você fez com ela? — Minha filha me acusa, os olhos
arregalados, atônitos, fixos em Evangeline.
— Depois eu explico. Preciso levá-la ao hospital. Entre e cuide de Luci.
Sem esperar que ela diga mais alguma coisa, coloco Evangeline deitada
no assento traseiro do meu carro mais rápido, e rumo com ela para o hospital de
Fairbanks.
No hospital, ela chega desacordada e é levada às pressas, em uma maca,
por uma equipe de enfermeiros. Três horas depois ainda estou na sala de espera,
sem receber notícias sobre o seu estado, agoniado, desesperado, caminhando de
um lado para o outo sem que ninguém venha me dizer nada ou saiba me dar uma
resposta quando pergunto. Até que por fim um médico de meia idade se
aproxima de mim.
— Você é Victor Boseman? — indaga ele.
— Sim. Como Evangeline está?
— Por favor, sente-se. — Ele gesticula para uma das poltronas e
enquanto me acomodo ocupa a outra em frente, a espera me deixando louco —
Ela vai ficar boa, os machucados não foram graves, por sorte não quebrou
nenhum osso, apenas torceu o tornozelo. A demora em atendê-la se deu porque
tivemos que fazer uma curetagem para podermos conter a hemorragia.
— Curetagem? Hemorragia?
— Isso mesmo. Como ela nos disse, nos poucos momentos em que
esteve lúcida, não sabia que estava grávida, então suponho que o senhor também
não saiba. — Processo suas palavras e meu coração falha uma batida — Ela
estava de quatro semanas, a queda a induziu a um aborto. Perdeu um pouco de
sangue, mas nada que não possa ser reposto com o tempo. É uma pessoa muito
forte.
Ele continua falando sem pausa, mas já não o ouço mais, um zunindo
tomando meus ouvidos, a sala inteira girando diante dos meus olhos. Evangeline
estava esperando um filho meu e eu a fiz perdê-lo. Por minha culpa, por culpa da
minha insensatez, por eu tê-lasegurado tentando impedir que me deixasse, ela
caiu nas escadas e agora nosso filho, o fruto do nosso louco amor está morto.
Mesmo que eu viva por cem anos, jamais me perdoarei por isto.
— O senhor está bem? — O médico eleva o tom da voz para perguntar.
— Sim, acho que vou ficar. Quando poderei vê-la?
— Ela ainda está dormindo, sob o efeito da anestesia, mas pode acordar a
qualquer momento. Se quiser pode entrar e esperar lá com ela.
— Eu quero.
O médico me mostra o caminho do quarto onde ela está e sigo por ele.
Ao entrar no aposento, estaco junto à porta ao me deparar com Joseph Patel em
pé ao lado do leito dela, observando-a fixamente enquanto ela dorme. Está
usando o mesmo uniforme que o outro médico. Eu havia me esquecido que o
maldito trabalha aqui.
— O que faz aqui, filho de uma puta?! — esbravejo, entre dentes,
aproximando-me um passo, com os punhos cerrados.
Ele encara-me com olhos enfurecidos.
— Não estou com paciência para você hoje, Boseman. Se me encher o
saco te enfio uma injeção paralisante e deformo você inteiro, antes que tenha
tempo de gritar por socorro.
— Faça isso, seu bosta.
Desafiadoramente, coloco-me entre ele e o leito em que Evangeline está
deitada. Ao observar seu rosto pálido, adormecido, completamente relaxado,
culpa e remorso me engolfam na mesma medida, dolorosamente, levando
lágrimas aos meus olhos.
O filho que ela esperava podia ser do imprestável às minhas costas,
porém, de alguma forma inexplicável, sinto que era meu. A dor dentro de mim é
imensa.
— Eu sinto muito pela criança. — O cretino fala às minhas costas e viro-
me para ele.
— Era filho de qual de nós dois?
Ele esboça um sorriso suave e sem vontade, os olhos carregados de
mágoa fixos em meu rosto.
— Você é mesmo inacreditável. — diz — Acredita mesmo que
Evangeline e eu somos amantes? — Sem esperar resposta, continua — Se ela
fosse minha, se tivesse me dado uma chance, eu a teria tirado de você, seu
desgraçado. Mas o problema é que ela te ama, nunca teve olhos para mim, por
mais que eu quisesse, embora eu sempre soube que você não a merece, nunca
mereceu e agora menos ainda, depois do que fez a ela. — Faz uma pausa, como
não falo nada, continua — Não importa o que ela tenha dito, eu sei que foi você
quem causou isso, as marcas da sua maldita mão estão em torno do pescoço dela
e se ainda não o denunciei foi porque ela me pediu, por qual motivo eu nunca
vou entender. Como já falei, você não a merece, muito pelo contrário. Mas de
uma coisa você pode ter certeza, agora que sabemos que Luci é filha de
Christian, nós todos vamos lutar pela guarda dela. Meu irmão nunca foi culpado
pela morte do seu filho, como você tentou fazê-lo acreditar durante todos esses
anos e como pai de Luci, ele tem o direito de ficar com ela.
— Luci é minha filha e ninguém vai tirá-la de mim.
— É o que vamos ver.
Com tais palavras, ele da meia volta e deixa o aposento.
Profundamente abalado, com tudo o que ele disse, sento-me em uma
cadeira ao lado de Evangeline, afasto a gola da camisola de hospital que usa e
vejo o hematoma em seu pescoço, uma marca avermelhada, muito sutil, dos
meus dedos. Não é a primeira vez que eu a machuco fisicamente e desta vez fui
longe demais. Embora a queda que a levou a perder o bebê tenha sido acidental,
há uma grande parcela de culpa minha nisso tudo, pois fui eu quem começou a
discussão, fui eu quem apertou seu pescoço quando tomado pelo mais absoluto
descontrole, um descontrole para o qual Evangeline tem o poder de me arrastar.
O que sinto por ela é forte demais, poderoso demais, me faz sair de mim mesmo,
agir como um animal às vezes, me desestabiliza e descontrola, portanto, mesmo
que ela ainda me quisesse em sua vida, mesmo que um dia me perdoasse, não
existiria um futuro para nós dois, eu jamais poderia ficar com ela. Por mais que
admitir isso estraçalhe minha alma, tortuosamente, por mais que a ame, com
todo o meu coração, é melhor para ela ficar longe de mim, só assim poderá ser
feliz. Pelo menos nesse ponto o Patel está certo: eu não a mereço.
Estou ali mergulhado em pensamentos, com a alma torturada, quando por
fim ela abre os olhos, lentamente, demorando-se para focar as imagens à sua
volta e visualizar o meu rosto. Necessito de um esforço quase inumano para não
chorar quando vejo, no brilho apagado dos seus olhos, o quanto está desolada,
angustiada. Tudo o que quero é abraçá-la, implorar pelo seu perdão, apesar de
saber que não o mereço.
— Olá. Como está se sentindo? — Minha voz é um murmúrio triste.
Ela pigarreia antes de falar.
— Com sede. Me dê um pouco de água, por favor. — Vou até o frigobar,
encho um copo com água e a ajudo a se sentar para beber os poucos goles — O
médico disse que faria uma curetagem. Deu tudo certo? — indaga ela, a voz
fraca.
— Sim. Ele deve vir daqui a pouco falar com você sobre isso.
Evangeline... — A dor me sufoca, a angústia me roubando as palavras — ...eu
sinto tanto pelo que aconteceu. Sinto muito pelo nosso filho. — Sua face se
contorce de dor, uma lágrima solitária escorrendo do canto do seu olho — Será
que existe a possibilidade de você me perdoar um dia?
— Não. Nunca. Por causa da sua arrogância, da sua intransigência, nosso
filho agora está morto, um filho que eu nem sabia que estava esperando. — Ela
fala, ao mesmo tempo em que as lágrimas banham seu rosto, a imagem
intensificando minha dor, aumentando minha dolorosa culpa — Eu devia ter
ouvido Joseph quando ele me disse que era nocivo amar você. Quero que saia
desse quarto agora mesmo e nunca mais apareça na minha frente de novo.
— Evangeline... por favor...
O choro dela é incessante, irrefreável.
— Pelo menos uma vez na vida, faz o que estou te pedindo. Saia daqui.
— Você tem toda razão em me excluir da sua vida, pois jamais seria feliz
ao meu lado, eu não sirvo para você, mas quero que saiba que meu amor é e
sempre foi sincero. Eu me apaixonei por você no instante em que a vi pela
primeira vez e sempre vou te amar, não importa por quanto tempo eu viva. —
Sei que tenho que sair, deixa-la sozinha, como me pediu, pois está ainda mais
fragilizada que o normal, no entanto, olhando para ela, tudo em mim me ordena
que eu fique, que a estreite em meus braços e a beije até que ela perceba o
quanto será difícil ficarmos longe um do outro — Vou providenciar para que
meu jatinho a leve de volta para o Texas e para que suas divididas estejam pagas.
Providenciarei também para que você tenha condições financeiras de se manter
até conseguir um trabalho lá.
— Não quero nada de você. Apenas suma da minha frente.
Vasculho minha mente a procura de algo mais para dizer, a fim de
permanecer ao seu lado por pelo menos mais alguns segundos, mas não há nada.
Será menos doloroso enceramos isso logo.
— Adeus, Evangeline. Espero que um dia possa me perdoar por tudo.
Com um esforço absurdo para não cair em pranto, obrigo minhas pernas
a darem meia volta e me levarem para fora do quarto, os soluços dela se fazendo
audíveis às minhas costas até que eu atravesse a porta e a feche atrás de mim.


CAPÍTULO XXII


Evangeline, quinze dias depois.


O calor do Texas nunca me incomodou tanto como hoje. Olho para os
lados à procura de um abrigo para me esconder do sol infernal, mas tudo o que
vejo é o vasto deserto de areias vermelhas à minha volta, algumas plantas
rasteiras que sobreviveram à seca e a poeira densa que baila no ar sendo levada e
trazida pelo vento. Sinto uma sede medonha, porém quando procuro por uma
lanchonete onde possa beber algo, percebo que não há nada por perto, ao mesmo
tempo, reconheço as terras secas dos arredores da fazenda do meu pai. Confusa,
descubro que não sei como vim parar aqui. Não me lembro de ter entrado em um
avião, de ter deixado o Alasca, de ter me despedido de Victor. Uma dor
lancinante, já conhecida, enche meu peito e é então que eu acordo.
Sento-me na beirada da cama, ofegante, e desligo o despertado
barulhento. Como sempre acontece quando tenho esse sonho, meu coração está
disparado no peito, uma camada fria de suor cobre minha testa. Desde que me
mudei para o apartamento de Joseph, após deixar o hospital, quinze dias atrás,
esse mesmo sonho tem se repetido. Obviamente tem um significado, quer dizer
que estou perdida, que não devia estar ainda aqui no Alasca, e sim no Texas,
onde é o meu lugar. No entanto, em meu coração, sinto que essa terra gelada é o
meu verdadeiro lar e não consegui me distanciar quando era necessário. Talvez
seja o coração de Khalil falando por mim e foi esse sentimento que me fez
decidir ficar quando, ainda no hospital, Joseph me convidou a dividir com ele o
apartamento que recentemente alugou em Fairbanks.
É disso que venho tentando me convencer durante todos esses dias: que
meu coração, outrora de um adolescente alasquense, me motivou a ficar aqui,
entretanto, no fundo sei que não é isso. Eu só não tive coragem de deixar tudo
para trás, de deixar Samantha e Luci e principalmente de me distancia de Victor.
Apesar de tudo o que aconteceu, apesar de ele ter me feito perder nosso filho e
de tudo o que me acusou, eu ainda o amo, loucamente, e tenho vivido um
verdadeiro inferno sem ele, sem vê-lo, sem tocá-lo, sem ouvir sua voz. Um
inferno que se torna ainda mais insuportável quando acompanho as notícias
sobre ele que têm sido constantemente apresentadas pela mídia. De alguma
forma, Olivia conseguiu descobrir que o coração de Kalil bate em meu peito e
dividiu a notícia com um repórter, deliberadamente, com o intuito de infernizar
nossas vidas. Desde então, o fato de que Victor trouxe a receptora do coração do
seu filho para debaixo do seu teto e depois teve um caso com ela, tem sido
notícia no mundo inteiro e como aparentemente as pessoas fazem questão de ser
cruéis, só veem o lado ruim dessa história, as críticas estão sendo violentas,
acusa-lo de incestuoso e pedófilo virou rotina. Assim como também parece ter
virado rotina, entre os jornalistas, me perseguirem para onde quer que eu vá,
tentando me entrevistar, me fazer falar sobre o coração doado por Kalil e meu
relacionamento com Victor, o que só tem servido para atrapalhar minha vida,
pois me dificulta conseguir um bom emprego.
Além de ter que passar por isso, Victor está enfrentando também uma
acirrada batalha, nos tribunais, pela guarda de Luci, já que o pai biológico dela
decidiu revogá-la, com o apoio de toda a família. Eu sei que devia me manter
indiferente a toda essa história, afinal esse homem não merece nem um minuto
dos meus pensamentos, no entanto o fato é que não consigo parar de pensar nele
nem por um instante, não apenas por sentir pena, pela situação difícil que está
travessando, mas porque queria estar ao seu lado nesse momento, o apoiando e
confortando, assim como em todos os outros momentos da sua vida. Minha
vontade de estar com ele é tão grande que chega a doer dentro de mim e dia após
dia preciso de um esforço gigantesco para me segurar no lugar e não o procurar.
Na verdade, ele era quem devia procurar por mim, mas nunca veio, sequer
telefonou. Na certa ainda deve acreditar que estou tendo um caso com Joseph e
que por isso me mudei para o apartamento dele.
Não voltei a vê-lo desde que me disse adeus, no hospital. Pelo menos
tenho tido o privilégio de reencontrar as meninas quase todos os dias, na saída da
escola, quando Joseph me empresta seu carro para que eu vá até lá e Lewis se
prontifica a ficar esperando até que passemos um tempo juntas. De acordo com o
que Samantha me conta, Victor voltou a se isolar do mundo, não sai mais de casa
nem para ir à empresa; mal fala com elas ou as vê. Está como quando cheguei à
sua casa e me pergunto se realmente não é melhor para Luci ficar com Christian
nesse momento, em um lar cheio de amor como o dos Patel.
Quanto à extinção da reserva marítima, Victor parece ter desistido de
concluí-la, pois o lugar continua intacto, sem nenhum navio pesqueiro o
invadindo, apesar do distanciamento dos manifestantes. Desconheço os motivos
que o levaram a abrir mão do seu principal objetivo de vida, mas queria
conhecer. Talvez tenha a oportunidade de indagar-lhe pessoalmente hoje, já que
o verei pela primeira vez depois de todos esses dias, em uma audiência sobre a
guarda de Luci, para a qual fui convocada, pelo advogado de Christian, a falar
sobre a convivência entre Victor e a menina. Não sei o que direi ao juiz. Minha
única certeza é que Victor ama essa menina com todo o seu coração, como se
fosse sua filha de sangue, no entanto, a depressão em que se encontra
mergulhado o impede de ser o pai que ela merece ter. Por outro lado, não sei que
tipo de pai Christian seria, se ainda está envolvido com a louca da mãe dela, não
merece que eu confie nas suas boas intenções.
Uma batida na porta do quarto me desperta dos meus pensamentos. Deve
ser Joseph. Atencioso como sempre veio verificar se já estou pronta para ir à
audiência.
— Entre. — falo e ele avança pelo quarto, carregando uma xícara de café
fresco cujo aroma enche o recinto.
— Bom dia, Bela Adormecida. Vim avisá-la que a audiência começa
daqui a uma hora.
Entrega-me o café e beberico um gole. Ele é, sem sombra de dúvidas, a
criatura mais gentil e atenciosa que já conheci. Praticamente todos os dias
prepara o meu café, me empresta o carro para sair à procura de emprego, já me
ofereceu uma vaga de recepcionista no hospital onde trabalha, a qual tive que
recusar, visto que passei minha vida inteira dentro de hospitais e só quero me
livrar disso. Sempre que tem uma oportunidade ele deixa claro seu interesse por
mim, no entanto, por mais que eu quisesse, não consigo corresponder e isso nem
tem muito a ver com o fato de ele trazer uma garota diferente a cada noite para
casa e me deixar ouvir enquanto está transando com elas. Jovem, rico e lindo,
como ele é, não poderia ser diferente, as mulheres devem cair aos seus pés, só
acho que se seu interesse fosse verdadeiro, sua atitude seria diferente. Ainda
assim, se eu pudesse escolher, seria apaixonada por ele ao invés de por Victor,
mas essa é uma escolha que não podemos fazer.
— Obrigada. Estarei pronta. Vou só tomar um banho rápido.
Ele percorre os olhos sedentos pelas minhas pernas desnudas e senta-se
ao meu lado, perto demais.
— Já sabe o que vai dizer ao juiz?
— Apenas responder as perguntas que forem feitas, com a verdade.
— E qual é a verdade?
— Victor ama Luci, mas como pai biológico, seu irmão tem o direito de
pelo menos vê-la de vez em quando.
Como sei que ele não concorda comigo, que espera que a guarda
definitiva seja dada a Christian, mudo rapidamente de assunto.
Pouco depois, deixamos o apartamento em seu carro luxuoso, a cambada
de repórteres que não se afasta da entrada do prédio há dias, nos seguindo pelas
ruas da cidade. Chegamos ao edifício que sedia o tribunal quase meia hora antes
do horário e somos encaminhados a uma antessala de espera onde já estão
Christian e seu advogado. Os cumprimentamos e nos sentamos. Minutos depois
a porta se abre e Victor entra, seguido do homem que acredito ser seu advogado.
Olhar para ele depois de tantos dias distante é como ver a luz do sol depois da
escuridão, meu coração bate descompassado no peito, minhas mãos suam frio,
uma saudade absurda tomando conta de mim.
Apesar de estar um pouco mais magro, brevemente abatido, continua
lindo como sempre, com os cabelos castanhos claros cortados curtinhos, a barba
ligeiramente crescida, um terno feito sob medida emoldurando seu físico
atlético. Ele encara-me por um longo momento, porém não fala comigo, apenas
dá um aceno rápido de cabeça, em cumprimento, da mesma forma que age com
os outros e acomoda-se em uma das poltronas vazias. A dolorosa angústia que se
refletia no brilho dos seus olhos azuis quando o conheci está lá novamente,
ferreteando-o, externando sua dor e tudo o que eu queria agora era afagar o seu
rosto e dizer-lhe que um dia as coisas vão melhorar, no entanto, sua frieza me
deixa desolada, me impedindo de me aproximar.
Com meu coração apertado no peito, tento me manter indiferente, mas
não consigo, então, quebrando o silêncio tenso que enche a sala, levanto-me e o
convido:
— Preciso falar com você. Podemos ir até o corredor?
— Claro. — Ele assente e me segue para fora da sala.
No amplo e silencioso corredor, nos colamos frente a frente, seus olhos
tristes fixos nos meus. Não há nada que já tenha desejado na vida mais do que
tocá-lo, nesse momento, acariciá-lo, sentir o seu gosto e seu cheiro, cada
partícula do meu organismo implora por isto, porém o desconhecimento de qual
será sua reação me impele a ficar quieta.
— Como você está? — pergunto.
— Sobrevivendo, e você?
— Eu sinto muito que toda essa história sobre o transplante tenha
chegado ao conhecimento público.
— Não foi culpa sua. Como sempre Olivia não podia perder essa
oportunidade de me infernizar.
— Por que ela faz isso? Por que tanto ódio?
— Eu não sei. Acho que tem dificuldade de aceitar que nosso casamento
acabou.
— Ela ainda está na sua casa?
— Não. A tirei de lá à força depois que você partiu. Voltou para a
Califórnia, mas acho que o Patel custeou a viagem dela para que esteja aqui hoje,
na audiência. No mínimo chegará atrasada.
Compreendo que Christian usará Olivia para jogar o juiz contra Victor e
pela primeira vez sinto que ele não merece ficar com Luci.
Vasculho minha mente em busca de algo mais para dizer, apenas para
prolongar o tempo ao seu lado, pois temo que depois da audiência não volte mais
a vê-lo e a perspectiva da distância me parece pior que a morte, todavia não há
nada, então opto pela simplicidade de apenas falar a verdade.
— Estou com saudade de você. — falo, em um murmúrio.
— Eu também. Esses dias têm sido insuportáveis sem você.
— Então por que não me procurou? Por que não me telefonou?
— Porque não é certo. Eu preciso te esquecer. Não podemos ficar juntos.
As últimas palavras me doem como uma punhalada no peito.
— Victor, eu sei que exagerei em minhas palavras aquele dia no hospital,
mas você precisa entender que eu estava fragilizada. Havia acabado de perder
nosso filho.
— Eu sei. Não a culpo por nada. O único culpado por tudo nessa história
sou eu.
— Não foi culpa sua eu ter pedido nosso filho. Sei que eu disse isso, mas
estava abalada demais. Hoje percebo que foi apenas um acidente. Você não me
empurrou naquela escada, eu caí acidentalmente.
— Não foi apenas a escada, Evangeline. No hospital, havia marcas das
minhas mãos no seu pescoço e é só mais uma coisa pela qual jamais vou me
perdoar.
— Isso é bobagem, você não estava pesando direito. Eu te perdoo.
Vejo a angústia se intensificando na expressão dos seus olhos e sinto uma
enorme vontade de chorar pelo anúncio de que nunca mais ficaremos juntos, de
que o perdi para sempre.
— Eu te amo tanto, Evangeline. Só Deus sabe o quanto estou me
esforçando para não a tomar nos braços agora mesmo e a beijar, mas não posso
ficar com você, pois não estará segura ao meu lado. Esse sentimento é voraz
dentro mim, me faz perder o autocontrole, os parâmetros, a sensatez. Não foi a
primeira vez que eu a machuquei por não conseguir me controlar e não teria sido
a última, se não tivéssemos nos afastado.
Quanto mais ele fala, mais a inquietude toma conta de mim. Olhando-o
assim de perto depois de dias sem vê-lo, ouvindo sua voz, eu percebo o quanto o
amo, com tudo o que há em mim e ao seu lado é o meu lugar. Como não
compreendi isso antes?
— Você me vê como uma pessoa frágil, por causa do meu problema de
coração, mas eu não sou. Não sou alguém que se parte ao meio assim facilmente.
Eu te amo e quero passar o resto da minha com você.
Ele permanece em silêncio por um instante e então desvia seu olhar para
o chão, as lágrimas indesejadas insistindo em encher os meus olhos, pela certeza
de que não teremos mais volta, eu o perdi.
— Por que você não voltou para o Texas depois do que houve? — indaga
ele, voltando a me encarar, os olhos sempre angustiados, prestes a se encherem
de lágrimas.
— Eu não quis me distanciar das meninas... e de você. — Então, lembro-
me das suas desconfianças sobre mim e Joseph — Joseph e eu não somos
amantes, como deve estar imaginando. Apenas estou hospedada no apartamento
dele. Mas não adianta falar, não é? Você nunca acredita em mim.
— Eu acredito em você. Nunca devia ter duvidado. Me perdoa.
— Eu te perdoo por tudo, só te peço que não renegue o nosso amor.
Vamos fazer outro filho, um garoto para assumir seus negócios, como você
queria.
Novamente, ele procura qualquer direção para olhar, apenas para desviar
seus olhos dos meus. Antes que tenhamos tempo de dizer mais qualquer palavra,
a porta da antessala se abre e seu advogado aparece com a informação de que a
audiência vai começar.
Então, todos nós nos encaminhamos para a sala principal, onde a juíza,
um pequeno júri e algumas outras testemunhas já ocupam os seus respectivos
lugares.
Para defender que ele fique com a guarda de Luci, Victor convidou todos
os empregados da mansão e a professora da menina a testemunharem. Do outro
lado, a favor de Christian, estão seus pais, seus irmãos e Olivia, que chega com
quase meia hora de atraso, completamente drogada. A partir de então, se
desenrola uma verdadeira batalha, verdades nunca reveladas e inverdades sendo
jogadas no ar.
Na minha vez de falar, defendo o quanto Victor a ama, me abstenho de
abordar a indiferença dele para com as duas meninas quando está depressivo,
como agora e defendo uma guarda compartilhada entre os dois, visto que Luci o
ama e reconhece Victor como pai, porém Christian tem o direito de também
conviver com ela.
O pior momento de todos é quando Olivia se senta no banco de
testemunhas e vomita uma mentira atrás da outra sobre Victor, tentando
convencer o júri a dar a guarda total a Christian, não pelo bem-estar da menina,
mas para infernizar a vida de Victor mais uma vez. Ainda bem que é perceptível
a todos o quanto ela está chapada e isso até ajuda um pouco Victor, pois leva
todos a perceberem que ele praticamente educou as filhas sozinho.
Passa do meio dia quando, após um tempo de recesso, os juízes
convocam todos de volta à sala para anunciar sua decisão, que é a guarda
compartilhada. Luci continuará morando com Victor, no entanto passará os finais
de semana com Christian e sua família. Ambas as convivências serão
monitoradas por uma Assistente Social, cujo relatório será determinante para
uma suposta segunda audiência, ou seja, para o caso de uma das duas partes
decidir recorrer desta decisão. Agora resta a Victor procurar se tratar da sua
depressão e se tornar um pai cada vez melhor para a sua pequenina.
Ao final da audiência, ele desaparece depressa como um raio, de modo
que não tenho a oportunidade de voltar a falar com ele e para piorar ainda
desconfio que se retirou tão depressa justamente para que não conversássemos, o
que me deixa profundamente ferida, magoada, perdida. Sequer tive tempo de lhe
perguntar porque desistiu de eliminar a reserva.
Ao retornar para o apartamento, junto com Joseph, embora ele se mostre
sempre muito gentil, atencioso, feliz com o resultado da audiência, pois está
certo de que ao perceber o quanto Luci se dará bem com os avós paternos os
juízes lhes darão a guarda definitiva de Luci, me sinto completamente
devastada, desnorteada, sem ter ideia de que rumos darei à minha vida daqui em
diante, afinal não há mais nada para mim aqui, Victor e eu não ficaremos juntos,
em poucos dias as meninas estarão de férias da escola e perderei a chance de vê-
las todos os dias. Se é para viver sem eles, arrebatada pela saudade, eu prefiro
voltar para o Texas, ficar longe, pelo menos assim não passarei os dias e as
noites fantasiando que ele vai bater à minha porta e me pedir para voltar, isso é
uma utopia, não vai acontecer, ficar esperando, sonhando, só me magoará mais.
Decidia, uso minhas últimas economias para comprar uma passagem de
volta para o Texas, vou até a escola me despedir das meninas e depois de passar
uma hora com elas, saio de lá chorando, com o coração apertado no peito, por ter
que me distanciar. Cogito ir até a mansão me despedir de Victor também, mas
isso só tornaria as coisas ainda mais difíceis, sem mencionar que não tenho
certeza de que ele apreciaria me ver.
Então, no mesmo dia, no início da noite, Joseph vai me levar ao
aeroporto. Após enfrentarmos um longo engarrafamento, que por pouco não me
garante chegar atrasada, estacionamos diante da entrada e saltamos.
— Já nem sei mais o que dizer ou fazer para te convencer a ficar. — diz
ele, enquanto nos mantemos de pé ao lado de veículo.
— Não há nada que possa me convencer. Como eu já disse, minha
felicidade não está aqui.
Seus olhos castanhos esverdeados se intensificam sobre os meus.
— Eu posso te fazer feliz, só preciso que você me dê uma chance.
De novo essa história, que cansativo. Sinto vontade de revirar os olhos,
porém opto por ser educada.
— Eu não seria feliz com outro homem, que não Victor.
— Isso é muito triste.
— Eu sei.
Ele olha por sobre o meu ombro e subitamente sua fisionomia se contrai,
os olhos reluzindo irritação.
— Já que não vamos mais nos ver, pelo menos me da um beijo de
despedida.
— Que história é essa? Claro que vamos nos ver de novo. Quando você
for visitar o Texas. — comento, forçando o tom irreverente apenas para distraí-lo
do assunto.
— Só um beijo. É tudo o que peço.
Sem mais ne menos, ele segura minha face entre suas mãos e cola sua
boca na minha, surpreendendo-me, causando-me um misto de raiva e repulsa.
Tento me esquivar, tirar suas mãos de mim sem parecer grossa, no entanto ele é
muito mais forte e não me solta até que de repente mãos brutas o empurram para
longe, ao mesmo tempo em que a voz de Victor alcança os meus ouvidos.
— Solta ela, porra! — vocifera ele.
Lentamente, compreendo o que houve. Considerando que Victor vinha da
direção das minhas costas, é possível deduzir que Joseph o viu se aproximando
antes de me beijar, por isso sua expressão mudou. Claramente queria causar
desavenças, fazer Victor acreditar que estamos juntos.
Definitivamente eu não esperava isso dele.
— Por que fez isso? O que você tem na cabeça? — indago, fuzilando-o
com olhos indignados.
— Eu só queria uma despedida. Nada mais.
— Não. Você queria que Victor visse esse beijo!
— Ele é um Patel. Nada que vem dessa gente me espanta. — Victor diz.
— Não generalize a família pelos atos de um deles. — retruco.
Em silêncio, Joseph alterna seu olhar entre mim e Victor, até que por fim
deixa sua máscara de bom moço cair.
— Acho que eu estava errado quando disse que ele não a merecia, a
verdade é que os dois se merecem.
Sem mais palavras, entra em seu carro batendo a porta com força e se
fasta cantando pneus no asfalto.
— E você, o que faz aqui? — indago, virando-me para Victor, meu corpo
se arrepiando com a simples visão dele.
— Sam me disse que você viajaria hoje.
— E veio se despedir?
Recusando-me a mais uma vez ouvi-lo dizer que não podemos ficar
juntos, seguro na alça da minha mala de rodinhas e saio arrastando-a para dentro
do aeroporto.
— Espere, Evangeline. — pede e, ignorando-o, continuo andando —
Será que dá para você parar de andar e me ouvir?
— O que você quer, Victor?
Ele se coloca diante de mim, seus olhos lindos presos aos meus.
— Quero te pedir que fique. — Não movo nenhum músculo do meu
corpo, tampouco digo algo. Apenas espero que ele complete sua fala dizendo
qualquer coisa, menos que quer ficar comigo. Então, sem que nada tenha me
preparado para isto, ele se ajoelha no chão, subitamente, as pessoas em volta
parando para observar — Me perdoe por tudo o que eu disse e por tudo o que fiz.
— Com meu coração disparado no peito, percorro os olhos em volta e vejo
algumas pessoas nos fotografando, inclusive alguns repórteres que ainda se
recusam a ir embora.
— Levanta daí, Victor. Olha o mico.
— Não antes de você me ouvir. Eu achei que podia, mas estou perdido
desde que você saiu da minha vida, assim como estava antes de você entrar nela.
Tenho receio de te machucar, sei que sou capaz disso, porque te amo demais e às
vezes esse sentimento me leva ao descontrole e foi por isso que saí correndo no
dia da audiência, mas meu terapeuta disse que posso mudar isso, que posso
aprender a me controlar.
Fico surpresa com essa revelação.
— Você tem um terapeuta? Desde quando?
— Desde que percebi que preciso mudar. Inclusive já estou fazendo isso.
Por você desisti daquela maldita reserva e até estou fingindo que não sei que
Sam continua namorando aquele moleque escondido. Ainda falta muita coisa,
mas isso já é um começo. Agora me diga se sou merecedor do seu perdão,
porque estou começando a ficar com câimbras.
Sorrio para ele e, emocionada, assinto.
— Eu já te perdoei faz tempo. Agora se levanta daí e me beija.
Com um gesto ágil, ele se coloca de pé, me agarra pela cintura e captura
minha boca com a sua, me deixando seu fôlego ao pressionar seus lábios nos
meus, com volúpia. Sentir novamente seu gosto, seu cheiro, o calor do seu corpo
me acolhendo, é como voltar ao meu lar depois de dias perdida em um deserto
sem fim. Meu coração bate descompassado no peito, cada célula do meu
organismo acordando para o desejo que se alastra pelas minhas veias.
Uma enxurrada de aplausos partindo das pessoas à nossa volta, nos faz
interromper o beijo, embora não nos desgrudemos, seu rosto a centímetros de
distância do meu, seus braços em torno de mim.
— Eu te amo tanto. — Ele sussurra, rouco.
— E eu a você. — Mordo o lábio antes de perguntar — No dia da
audiência, você parecia tão determinado a me manter longe. O que te fez mudar
de ideia?
— Eu achei que suportaria a sua ausência, mas percebi que não sou nada
sem você. Então decidi correr o risco e, acredite, minha meta de vida será fazer
você feliz.
Dou-lhe um amplo sorriso, contentamento puro me tomando.
— Já está fazendo.
— Venha. Vou te levar pra casa.
Ele segura a alça da minha mala, passa o outro braço em torno dos meus
ombros e assim deixamos o aeroporto.


EPÍLOGO


Evangeline, alguns dias depois.


— Olha bem. Está sentindo alguma coisa? — Samantha diz, enquanto
segura, diante do meu rosto, um celular cuja tela exibe uma fotografia de Khalil
segurando o peixe enorme que acabou de pescar no Tanana.
— Não. Nada. — falo.
— Como não? Esse era o lugar preferido de Khalil no mundo inteiro. Ele
largava tudo, até as festas, para ir pescar com meu pai.
Desde que voltei para casa ela vem fazendo esse tipo de experiência
comigo, tentando descobrir se Khalil ainda está conectado a esse mundo através
do coração que bate em meu peito, uma reação desencadeada quando contei a ela
sobre como me senti ao ver a guitarra preferida dele. Acho que pretende fazer
uma apresentação sobre esse assunto na escola, quando as aulas recomeçarem.
Suspiro pesadamente, antes de falar.
— Querida, está cientificamente comprovado que órgãos transplantados
são apenas um amontoado de células, não estabelece qualquer conexão psíquica
entre doador e receptor. Sinto muito.
— E quanto à guitarra?
— Isso foi um fenômeno isolado que devemos conceber como um
milagre e não esperar por outro, pois milagres assim não acontecem com
frequência.
É a vez dela suspirar, derrotada.
— Tá bem. Vou desistir por enquanto, mas continuo esperando por outro
milagre. Não podemos ignorar um fenômeno dessa magnitude. O mundo precisa
saber disso.
Lembro-me da reação “do mundo” quando a mídia levou o caso ao
conhecimento público, dos repórteres me seguindo na rua e sinto um calafrio na
espinha. Ainda bem que as pessoas esquecem depressa e a poeira já baixou.
Sem mais palavras, Samantha da meia volta e deixa o aposento.
Sorrindo da sua atitude adolescente, volto para o interior do closet
enorme e novamente me coloco diante do espelho, dando os últimos retoques na
minha maquiagem. Optei por usar um batom rosa bebê, sombra escura e cílios
postiços e gostei bastante do resultado, me da um aspecto despojado, embora
acredite que Victor me levará ao um restaurante sofisticado, como sempre
quando saímos para jantar fora.
Examino o vestido preto, longo e colado e aprovo o caimento. Está tudo
perfeito, estou linda para acompanhar o homem que amo. De súbito recordo-me
da noite em que nos conhecemos, do quanto eu estava nervosa, agoniada, me
arrumando para o encontrar, um desconhecido qualquer que havia pagado quase
uma fortuna para passar a noite comigo. Como as coisas mudaram daquele dia
até aqui! Principalmente no que se refere ao comportamento de Victor. O homem
amargo e cruel de antes já não existe mais. Hoje a paz, a felicidade que ele tanto
precisava pode ser percebida em cada atitude sua e até no seu jeito de olhar. O
Victor por quem me apaixonei aprendeu a perdoar e com isto abriu mão de
transformar a reserva marítima em mais uma área de pesca, além de ter
devolvido sua administração aos Patel; concordou em aceitar o namoro de
Samantha e Jacob, inclusive ontem o garoto veio jantar aqui; se transformou em
um pai exemplar, sempre presente ao lado das filhas, demonstrando o amor que
elas merecem. Agora só lhe resta aprender a aceitar dividir o amor de Luci com
Christian, isso não vai ser fácil, mas como tempo acontecerá.
Nós dois tivemos uma longa conversa com ela, durante a qual contamos
a verdade sobre ser filha biológica de Christian e quando achei que ela surtaria,
principalmente por ficar sabendo sobre o adultério da mãe, ela deu pouca
importância ao fato, talvez não tenha entendido, porém arrisco dizer que achou
divertido ter dois pais. Na semana passada, foi a primeira vez que passou o final
de semana com ele e chegou em casa, na segunda-feira, cheia de novidades,
deixando claro o quanto se divertiu por lá, embora tenha externado também que
é só diversão, aqui é seu verdadeiro lar.
Dou uma última averiguada no visual, aprovando-o, pego a bolsa-carteira
e deixo o quarto. Na sala, ao me ver descendo as escadas, Victor levanta-se do
sofá, com o copo de uísque pela metade na mão e observa-me com olhos
reluzentes, carregados de admiração, o que me faz corar e ao mesmo tempo me
deixa satisfeita, com a sensação de que valeu à pena passar horas na frente do
espelho. Ele está lindo como sempre, usando um terno preto que lhe cai
perfeitamente, com os cabelos lambuzados de gel, arrepiados e a barba bem
feita.
— Você está verdadeiramente linda. — diz ele e logo em seguida vem ao
meu encontro, passando o braço livre em torno da minha cintura — Sou um
homem de muita sorte por ter você.
— Você não vai me dizer o que estamos comemorando hoje?
— Não preciso de uma data comemorativa para levar minha mulher para
jantar fora.
— Sua mulher?
— Sim. Estamos morando juntos. Isso faz de você minha mulher.
— Isso é verdade. Sou uma senhora quase casada e ainda não havia me
atentado a isso.
Ele me da um sorriso torto, tão charmoso que por pouco não borro meu
batom atacando sua boca com a minha.
— Vamos indo. Temos reserva.
Saímos na limusine conduzida por Lewis. Não vamos a um restaurante e
sim à pista de pouso que há ao lado da sede da sua empresa, onde, para minha
completa surpresa, há um helicóptero nos esperando. Voamos até a baía de
Pelican, onde fica situada a reserva e onde um iate, grande e todo iluminado, nos
aguarda pronto para zarpar.
— Minha nossa! Como você conseguiu essa façanha?
— Dei um telefonema para Christian Patel. — Observo-o de queixo
caído — Acha que não sou capaz de socializar com ele?
— Acho que você é capaz de qualquer coisa, basta querer.
— Você andou conversando com meu terapeuta? Pergunto, porque ele
vive repetindo isso.
Dou um sorriso amplo a ele.
— Não. Só acho que você é um homem capaz.
Adentramos a embarcação. É tão ampla e luxuosa por dentro quanto se
tem a impressão quando se olha por fora.
— Como esse iate veio parar aqui?
— Eu o comprei. É a única embarcação particular de toda a reserva.
Deixa-lo aqui é parte do acordo para devolver a reserva.
No instante seguinte estamos navegando pelas águas geladas da baía, o
céu estrelado contribuindo para que tenhamos um cenário espetacular, o verão
amenizando o frio do vento. Sem que as supressas acabem por aí, no convés há
uma mesa lindamente posta, enfeitada com flores, em torno da qual dois garçons
uniformizados nos esperam, prontos para nos servir.
— Minha nossa. Você não se cansa de me surpreender. — falo, enquanto
Victor puxa uma cadeira para que eu me acomode à mesa.
Em seguida, senta-se do outro lado, enquanto os garçons se afastam para
ir buscar o jantar.
— O que está achando de tudo isso? — Victor quer saber.
— Maravilhoso! Uau! Onde você estava durante toda a minha vida?
— Bem aqui, nessa terra gelada, esperando por você. — O sorriso que
ele me da ao pronunciar a frase é de molhar a calcinha e é o que acontece com a
minha.
— E agora sou toda sua.
— Quase completamente.
— Como assim?
Ele sorri novamente, desta vez como quem deu uma mancada.
— Não era para eu falar agora, estava esperando o fim do jantar, mas não
vejo sentido em esperar. — Sem que compreenda sobre o que está falando, ele
levanta-se e tira uma caixinha de veludo do bolso do paletó. Em seguida, segura
a minha mão e me faz ficar de pé também. Meu coração dispara no peito quando
ele se ajoelha diante de mim e abre a caixinha, exibindo o anel com um único e
singelo diamante.
— Bem aqui, diante do céu e do mar como testemunhas, quero te pedir
que se case comigo, pois não existe outra pessoa nesse mundo com quem eu
queria passar o resto da minha vida. Sei que minha bagagem é grande, que já
tenho muitas histórias e duas filhas, mas sei que posso te fazer feliz, assim como
você me faz.
Com o coração acelerado, o sangue fluindo mais quente nas veias, levo
uma mão à boca, me forçando a reprimir um pranto de pura emoção.
— E então, você aceita se casar comigo?
— Mas é claro que eu aceito. Não há nada na vida que eu possa desejar
mais.
Com um sorriso lindo brincando em seus lábios, ele se levanta, tira o anel
da caixinha e o coloca em meu dedo.
— Agora sim, você é completamente minha, falta apenas oficializar isso.
Observo o diamante em meu dedo, é lindo e brilha sob as luzes do iate.
Em seguida, volto a olhar em seu rosto.
— Eu te amo tanto. Nem em meus sonhos mais secretos esperava um dia
ser feliz assim.
— Eu também te amo e te fazer feliz se tornou o meu objetivo de vida.
Tão logo ele se cala, pulo em seu pescoço. Esquecendo-me de tudo mais,
levo minha boca à sua e o beijo vem faminto, molhado, erótico, a ereção se
formando de encontro ao meu corpo, o fogo do desejo se alastrando pelas
minhas veias, o que me faz mover os quadris de um lado para o outro,
esfregando-me nele, atiçando-o.
— Não faz assim, Evangeline, ou não conseguirei me conter e ainda não
jatamos.
— Não se contenha, meu amor. A menos que você esteja muito afim
desse jantar, quero que me faça sua agora, pois minha fome não é de comida.
Antes mesmo que eu conclua a frase, ele está me erguendo em seus
braços, beijando-me com ferocidade, para em seguida me carregar para o interior
da embarcação.


FIM
AGRADECIMENTO


Agradeço a Deus pela oportunidade de fazer o que eu amo, que é escrever. Agradeço à minha família pelo
apoio; aos leitores que ajudam a divulgar e a todos que apoiam esse sonho lindo que estou vivendo de ser
escritora.




Table of Contents
SINOPSE
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
Victor
CAPÍTULO V
Evangeline
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
Victor.
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
Victor
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
CAPÍTULO XVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
CAPÍTULO XIX
CAPÍTULO XX
CAPÍTULO XXI
CAPÍTULO XXII
EPÍLOGO
AGRADECIMENTO

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