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Ciência&Conhecimento Belo Horizonte v. 2 n. 7 p.

1-251 maio/2006
MISSÃO

"Contribuir para o desenvolvimento do País e para a construção


da cidadania, formando profissionais capacitados e atualizados,
promovendo a ciência e a cultura e participando ativamente do
processo de melhoria de vida da população".

VALORES

Respeito
Comprometimento
Transparência
Responsabilidade social
CIÊNCIA & CONHECIMENTO
Publicação semestral da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte e do Faculdade de
Educação Tecnológica Estácio de Sá de Belo Horizonte.
Ano 2, n. 6, novembro de 2005
Diretor Geral Conselho Editorial
Antônio Jorge Fernandes
Carlos Alberto Teixeira de Oliveira Carlos Alberto Teixeira de Oliveira
Carlos Henrique Diniz
Diretor Acadêmico Cláudio Gontijo
José Otávio Aguiar
Rúbio de Andrade Luciana de Oliveira
Luciano Oliveira Martim Júnior
Luiz Carlos Sizenando Silva
Diretor Administrativo-Financeiro Maria Lúcia Ferreira
Estevão Rocha Fiúza Mauro Santos Ferreira
Paulo Eduardo Rocha Brant
Paulo Vitor de Lara Resende
Coordenadores de Curso Rúbio Andrade
Adriano Mendonça Joaquim;
Consultores neste número
Rita de Cássia Prates Guimarães; Carlos Carlos Magno Ribeiro, Daniel Sellos Durante, Fátima
Henrique Vasconcellos Diniz; André Everton Aurélia Barbosa Baracho Macaroun, Hila Bernadete
Silva Rodrigues, José Alfredo Baracho Júnior, José
de Freitas; Isabel Montandon Soares; José Antônio do Amaral, José Pereira da Silva Júnior,
Alfredo Baracho Júnior; Letícia Alves Lins; Lauro Wanderley Meller, Luciana de Oliveira, Maria
Lúcia Ferreira, Paulo Emílio Silva Vaz, Rita de Cássia
Luiz Carlos Sizenando Silva; Margarida Prates Guimarães, Rita de Cássia Ribeiro, Roberta
Maria Drummond Câmara; Carlos Alberto Oliveira de Carvalho, Rodrigo Fonseca e Rodrigues e
Rosana de Figueiredo Ângelo Alves.
Santos; Matilde Meire Miranda Cadete; Paulo
Emílio Silva Vaz; Paulo Antônio Peixoto Normalização e Ficha Catalográfica
Queiroga; Rita de Cássia Ribeiro. Cláudia Tenaglia Mariani Souza
Paula Souza da Silva

Secretária Geral Revisão de Português


José Pereira da Silva Júnior
Paula Nolêto
Programação Visual
Marcelo Ezequiel Alves
Bibliotecária Patricia Goursand Macedo
Cláudia Tenaglia Mariani Souza
Criação da Capa
Agência Experimental de Publicidade e Propaganda
Gerente Acadêmica
Simone Maris Serra Duarte Obra da Capa
“Fome Zero” - criação do artista plástico Albino
Amaral dos Santos, 1º lugar - Júri Técnico da
Coordenação Geral UniversidArte -Arte por Toda Parte - 5ª Edição,
projeto cultural de extensão da Faculdade Estácio de
Centro de Pesquisa e Extensão Sá de Belo Horizonte
Paulo Vitor de Lara Resende (Foto: Davi Martins)

Tiragem
1.000 exemplares

CIÊNCIA&CONHECIMENTO / Faculdade Estácio de Sá de


Belo Horizonte / MG, v. 2, n.7, maio 2006 — Belo Horizonte:
Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte, 2006.

ISSN 1806-194X
Semestral

1. Cultura. 2. Produção acadêmica 3. Iniciação


científica. 4. Ensino Superior — Periódico
SUMÁRIO

Apresentação
Carlos Alberto Teixeira de Oliveira ............................................................................................7

Editorial.............................................................................................................................................9
ARTIGOS
Espaços Heterogêneos: um olhar sobre Guimarães Rosa e a era JK
Roniere Menezes ....................................................................................................................11
Lineamentos Teóricos do Conceito de Prova no Processo Penal
Bruno César Gonçalves da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
Política, Retórica e Imaginação Social em Tucídides - Ensaio sobre o controle do imaginário
por meio das figuras retóricas no Diálogo de Melos
Daniel Barbosa dos Santos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
Provas ilicitamente obtidas e o Juízo de Adequabilidade à luz do caso concreto
Luciana das Graças dos Santos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
O Turismo Mundial, Evolução e Estratégias: o caso de Portugal
António Jorge Fernandes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
Um Universo Musical bem Bachiano: Diversidade Cultural e Diálogos Musicais nas Bachianas
Brasileiras de Heitor Villa-Lobos (1930-1945)
Loque Arcanjo Jr. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
O Homem e o Meio Natural nas Minas Gerais durante o Período Colonial
Leandro Pena Catão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127
A Imagem do Profissional de RH no Interior da Empresa
Ivan Moreira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147
As Raízes do Futebol na Capital Mineira
Marilita Aparecida Arantes Rodrigues . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
Sistematização da Constituição do Estado de Minas Gerais: pesquisa realizada com apoio do
Centro de Ensino, Pesquisa e Extensão - CEPE da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte
Fátima Aurélia Baracho Macaroun, Denise de Carvalho Falcão,
Leonardo Goulart Pimenta e alunos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193
Prevalência de Verminoses Gastrintestinais em crianças do Município de Catuji - MG
Zenon Rodríguez Batista e Bráulio R.G. M. Couto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211
Diagnóstico da Oferta de Serviços de Lazer nos Hotéis da região Central de
Belo Horizonte - MG

Hilton Fabiano Boaventura Serejo, Daniel Braga Hübner e José Otávio Aguiar . . . . . . . . . 227

REGRAS PARA PUBLICAÇÃO NA REVISTA CIÊNCIA&CONHECIMENTO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 249


7

APRESENTAÇÃO
Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte, no cumprimento de sua missão de promover

A a ciência e a cultura, e contribuir ativamente para o processo de melhoria sócio-


econômica da população, está colocando à disposição dos meios acadêmicos,
intelectuais e científicos e dos estudiosos das Ciências Sociais, através do Centro de Pesquisa
e Extensão, o 7º número da Revista Ciência & Conhecimento, mais rico e abrangente que as
edições anteriores, não apenas nas informações e análises de temas sociais variados, como
também no seu conteúdo técnico-científico, pedagógico, cultural e dogmático.

Acostumados com a leitura da Revista Ciência e Conhecimento, pela variedade dos temas
analisados com profundidade científica e colocados à discussão pelos seus autores, os caros
leitores, cujo nível intelectual é um privilégio de poucos, vão verificar que esta nova edição traz
valiosas contribuições ao desenvolvimento dos estudos e pesquisas na área das ciências
sociais aplicadas.

Um documento de consulta e análise permanente, com uma peculiaridade: todos os trabalhos


são inéditos, envolvendo diversas áreas do conhecimento técnico-científico, de comprovada
relevância e qualidade, que passaram por criteriosa avaliação do Conselho Consultivo, antes
de serem enviados ao Conselho Editorial da Revista.

Outra característica desta edição reside na variedade dos temas abordados, tais como a análise
dos caminhos percorridos por Guimarães Rosa e Juscelino Kubitschek, o conceito de prova no
processo penal, a retórica de Tucídides, a obtenção de provas por meios ilícitos, a evolução do
turismo mundial, o diálogo musical nas bachianas de Vila Lobos, o meio natural do homem na
Minas Colonial, a imagem do profissional de RH na empresa, raízes do futebol em Minas,
pesquisa sobre a sistematização da Constituição do Estado de Minas Gerais, estudo de
incidência de verminoses no interior e, finalmente, o diagnóstico da oferta de serviços e lazer
nos hotéis de BH.

Escusado seria ressaltar o aspecto fundamental da orientação editorial da Revista, qual seja a
total e completa liberdade que o autor ou autores das colaborações sempre têm para
manifestar livremente seu pensamento, analisar os temas colocados à discussão e apresentar
conclusões.

Em nome da direção da Faculdade, apresentamos aos autores os nossos aplausos por mais
esta contribuição ao desenvolvimento dos estudos e pesquisas nesta área específica de grande
importância para a evolução do conhecimento humano.

Carlos Alberto Teixeira de Oliveira


Diretor Geral
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EDITORIAL
m importante aspecto da produção do conhecimento na universidade

U consiste no intercâmbio entre as diversas instituições de ensino superior


como forma de divulgar os seus valores e as suas metas educacionais. Por
isso, apresentamos com orgulho o presente número de Ciência&Conhecimento, que
conta com a participação de vários autores da comunidade acadêmica externa à
Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte, além dos nossos colaboradores
internos, professores, alunos e pesquisadores comprometidos com a construção de
um saber com notória competência acadêmica.

Reafirmar certos compromissos como o da excelência universitária, num momento


crítico como o vivido atualmente pelo ensino superior privado no Brasil, é tarefa
indispensável para nós. Por um lado, assistimos a quadros de inadimplência,
concorrência acirrada e, por outro, a enlevados debates sobre a ética na
universidade privada, levados a termo por entidades representativas do setor,
especialmente pela Associação Brasileira de Mantenedores de Ensino Superior
(ABMES). O que se depreende é que muitos são os desafios que se desenham no
horizonte. Mas também que, mais do que nunca, o papel das universidades privadas
se faz capital para os rumos do desenvolvimento de nosso país.

Depois de atravessar diversos tipos de cenário desde a sua criação, a Revista


Ciência&Conhecimento segue a sua publicação regular, demonstrando que a sua
missão de divulgação técnico-científica não pode parar frente a problemas
conjunturais nem tão pouco ser influenciada por contingências que estão fora do
âmbito da produção de conhecimento. Reafirmamos, pois, o nosso compromisso
com a construção e a divulgação responsáveis do saber técnico-científico.

Conselho Editorial

Antônio Jorge Fernandes - Universidade de Aveiro - Portugal


Carlos Alberto T. de Oliveira -Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte
Carlos Henrique Diniz - Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte
Cláudio Gontijo - Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte
José Otávio Aguiar - Universidade Federal de Campina Grande-PB
Luciana de Oliveira - Faculdade Estácio de Sá Belo de Horizonte
Luciano Oliveira Martim Júnior - Mestre em Materiais Odontológicos pela UFMG
Luiz Carlos Sizenando Silva - Faculdade Estácio de Sá Belo de Horizonte
Maria Lúcia Ferreira - Faculdade Estácio de Sá Belo de Horizonte
Mauro Santos Ferreira - Secretário Municipal de Administração e Recursos Humanos
Paulo Eduardo Rocha Brant - Diretor da área de Operações do BDMG
Paulo Vítor de Lara Resende - Faculdade Estácio de Sá Belo de Horizonte
Rúbio Andrade -Faculdade Estácio de Sá Belo de Horizonte
Espaços Heterogêneos: um olhar sobre
Guimarães Rosa e a era JK
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Espaços Heterogêneos: um olhar sobre
Guimarães Rosa e a era JK

Roniere Menezes*

Resumo: Este trabalho busca estabelecer um paralelo entre o


discurso da literatura rosiana e o discurso do período
desenvolvimentista do governo Juscelino Kubitschek.
Procuraremos mostrar como a obra de Guimarães Rosa pode, por
vias oblíquas, invertidas, ampliar nosso conhecimento histórico do
Brasil contemporâneo. Em 1956, JK toma posse como presidente
do país e Guimarães Rosa lança obras que revolucionarão a
literatura e a cultura brasileira. As novelas de Corpo de Baile iluminam
espaços diferenciais do país em relação ao hegemônico e triunfal
projeto tecnológico empreendido pelo governo federal. Na
perspectiva de ampliar as propostas de uma modernidade estética e
política, os textos mostram uma heterogeneidade espacial ausente
no discurso estatal. Há nos livros uma tentativa de "salvar", de dar
uma sobrevida àquilo que poderia se perder no processo de
modernização brasileiro. As catalogações, as séries, os inventários
rosianos sendo colocados em diálogo com o contexto histórico de
sua publicação, momento em que a produção em série ganha mais
fôlego no Brasil e na América Latina, mostram-nos, ao mesmo
tempo, uma linha poética inovadora e um posicionamento
ecológico e cultural que antecedem um novo modo de intervenção
política na sociedade.

Palavras-chave: JK, Guimarães Rosa, espaço, política, literatura,


cultura, modernidade tardia, fauna, flora, sertanejo, sertão, série,
inventário, invenção.

Abstract: This work seeks to establish a parallel between Guimarães


Rosa literature speech and the speech of the development of
Juscelino Kubitscheck time. We will try to show how Rosa' s
handwriting can in another way, reversed, to enlarge our historical
knowledge about Brazil contemporary. In 1956 JK takes office as
president of the country and Guimarães Rosa issues works which
will revolutionize the brazilian literature and culture. The novels
Corpo de baile lit differential spaces of the country in relation with the
hegemonical and triumphal technologic project that was done by the
Federal Government.
* Professor da Faculdade
Estácio de Sá de Belo
Horizonte

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In order to broaden the purpose for a modern esthetics and politics
the texts show up a space dissimilarity that is absent on the state
speech there is on the books a trying to save, giving an overline for
everything that could lose in the modern brazilian process. The
catalogues, the series, and the stock-taking by Guimarães Rosa's
literature are being placed in dialogues with the historical context of
his publication. This is the moment when a serie production wins a
kind of breath in Brazil and Latin America. At the same time they
show us an innovating and poetical line, an ecological and cultural
position in advance to a new way of political intervention in society.

Keywords: JK, Guimarães Rosa, space, politics, literature, culture,


late modernity, fauna, flora, inlander, serie, stock-taking, invention.

“Queria libertar o homem (...) devolver-lhe a vida


em sua forma original”.
Guimarães Rosa

Em 2006, comemoram-se os cinqüenta anos do início


do governo JK e da publicação de dois livros de
Guimarães Rosa: o romance Grande sertão: veredas e as
novelas de Corpo de Baile. Posteriormente, elas foram
divididas em três volumes: Manuelzão e Miguilim, No
Urubuquaquá no Pinhém, e Noites do Sertão. Em 1956,
Juscelino Kubitschek lançou o seu ambicioso
Programa de Metas e Guimarães Rosa, as obras que
lhe dariam o lugar de maior nome da literatura
brasileira em prosa do século XX, principalmente pelo
livro Grande sertão. Em uma breve analogia entre os
trajetos e projetos de vida desse dois médicos
mineiros, é bom lembrar que Juscelino Kubitschek e
João Guimarães Rosa estudaram na mesma escola de
medicina, trabalharam como médicos na Força Pública
de Minas, durante a Revolução Constitucionalista de
1932 e fizeram projetos ligados ao desbravamento do
sertão para a construção de obras monumentais de
arquitetura política e literária. Afonso Arinos, na
saudação feita ao escritor quando de sua posse na
Academia Brasileira de Letras, solenidade a que o ex-
presidente comparece, diz que entre os dois havia “a

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condensação entre o velho e o novo, a construção de
cidades, do ponto de vista literal e imaginário, assim
como a exploração dos grandes espaços inexplorados
do sertão literário e do território central do país”
(SOUZA, 2002).

Situada entre o suicídio de Vargas, agosto de 1954, e a


renúncia de Jânio Quadros, agosto de 1961, a era JK é
uma época extremamente marcante e rica, é um tempo
de invenção que chega ao país nos campos da política,
das artes, da arquitetura, da cultura, do esporte, etc.
Esse também é o momento em que a vontade
hegemônica, racionalizante e estratégica da
modernidade começa a adentrar-se de fato em
território nacional. Nessa época, temporalidades e
espacialidades distintas sofrem uma espécie de tensão
inaugural; o imaginário é reelaborado e “outras
estórias” passam a ser escritas.

Os chamados “anos dourados” podem ser vistos,


portanto, como representantes singulares da chegada
da modernidade tardia ao Brasil. O moderno tardio
está vinculado, no Brasil e na América Latina, a um
campo de sentido em que a industrialização, a abertura
comercial, os meios de comunicação de massa, entre
outros fatores, irão contribuir para a formação de
novas construções identitárias e um novo imaginário
social. Em sociedades como a brasileira, a idéia de
modernidade surge antes do processo de
modernização e tentativas de modernização chegam a
ocorrer sem que haja incorporação dos valores,
princípios e escolhas da idéia de modernidade
(STARLING, 1999, p.21). No governo Kubitscheck, a
modernidade aparecia como figura que devia controlar
a modernização (GORELIK, 1999, p. 67-68). Desde a

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construção da Pampulha, e mais fortemente a de
Brasília, está muito claro que o objetivo do político era
o de fazer uma associação entre a noção de moderno
e o modelo de desenvolvimento. Mas essa idéia
abstrata precisava ser “encarnada” sob signos
concretos, numa espécie de “populismo democrático”,
para que o todo da população percebesse o fluxo
desenvolvimentista e modernizante que tomava conta
do país. Era importante que, assim, se alterassem
costumes, valores, critérios, instituições tradicionais da
sociedade brasileira. As artes e principalmente a
arquitetura cumprem papel fundamental nesse projeto.
A literatura, com o seu potencial de dizer novidades
sobre acontecimentos distantes, nos permite ler pelo
avesso o empreendimento tecnicizante, político e
modernizador que começava a se configurar no
período.

Em seu projeto político, JK firma seu nome com a


construção da Pampulha, no período em que fora
prefeito de Belo Horizonte. Pampulha é o laboratório
para Brasília: “Foi a primeira tentativa de Juscelino
para dar forma ao seu projeto político – fazer brotar
no Brasil, e no cenário latino americano, uma
sociedade industrial urbanizada, enraizada na utopia de
uma cidade modernista” (STARLING, 2002, p. 33).

A mudança da capital federal para Brasília apresenta,


com Niemeyer e Lúcio Costa, uma arquitetura e um
planejamento urbano moderno e arrojados, inspirados
em Le Corbusier mas já com uma “dicção” totalmente
nacional. Porém há uma relação, às vezes tensa, entre
imagens da arte e a crença em um projeto otimista de
país, em um “espírito novo” (VELLOSO, 2002, p.
172).

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Nos “anos JK” há a consolidação de um público
consumidor urbano e o fortalecimento dos meios de
comunicação de massa e da publicidade, que iriam
modificar profundamente o imaginário social do país.
É nesse período que se desenvolve a indústria
automobilística no Brasil e aparece um design arrojado
nas artes plásticas, nos edifícios e nos automóveis. No
esporte, temos a conquista da Copa do Mundo, na
Suécia. Na literatura, surge o Concretismo e se
consolidam as obras de João Cabral de Melo Neto,
Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Há também
manifestações e propostas estético-ideológicas que
começam a surgir e se desenvolvem nos anos
seguintes: o Cinema Novo, a Bossa Nova, o Teatro
Oficina, o Teatro do Oprimido, os CPC’s, etc. Passam
a existir, de uma maneira interdisciplinar, novas formas
de expressão artística que procuram a integração entre
cultura, modernidade e desenvolvimento. No contexto
internacional vivíamos os anos posteriores à Segunda
Grande Guerra, os Estados Unidos tornam-se grande
potência e têm uma entrada mais forte no Brasil.

Na era JK, o nacionalismo apresenta-se de forma


distinta daquele da era Getúlio. Entre outros fatores,
enfatiza-se a abertura do país ao capital estrangeiro, o
que acabou por constituir alvo de críticas por parte da
esquerda. É também no período JK que se torna
premente o abandono do campo e a busca pela utopia
urbana, daí o inchaço dos grandes centros. As
metrópoles, sintetizadas em Brasília, eram anunciadas
como símbolos maiores da epopéia modernizadora
nacional pela democracia liberal burguesa,
representando o futuro, a potência, a conquista da
ilusão; enquanto o campo associava-se à barbárie, ao
atraso, ao passadismo.

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As novelas de Corpo de baile iluminam espaços
diferenciais do país em relação ao hegemônico e
triunfal projeto tecnológico empreendido pelo
governo federal, não no sentido de se opor à
modernidade e à modernização, mas na intenção de
ampliar as imagens culturais e históricas do país e
mostrar, através dos mapas do espaço sertanejo, uma
heterogeneidade espacial ausente no discurso estatal. É
sobre esses sertões gerais que iremos tratar aqui. As
listas de Guimarães Rosa não devem ser vistas apenas
como uma tentativa melancólica, até mesmo própria
da literatura, de arquivar e colecionar nomes e coisas
de um espaço que irremediavelmente se transformava,
em oposição à modernidade tardia que estava
surgindo. Não temos a pretensão, nesse ensaio, de
propor um embate aprofundado entre o discurso
literário e o político, mas de voltar nosso olhar para
algumas reflexões que os textos rosianos nos
propiciam quando lidos em relação ao seu contexto de
recepção.

Em Corpo de Baile, as listas, as séries, as catalogações


evidenciam a tentativa de traduzir um mundo natural
na temporalidade moderna, deixar vir à tona, ao
mesmo tempo, as belezas naturais e a difícil vida do
sertanejo. Podemos relacionar o trabalho intelectual de
Guimarães Rosa com o de Noé, no Velho Testamento,
e com o do tradutor, na perspectiva benjaminiana.
Considerado como o primeiro colecionador da
História, Noé “converteu o ato de recolher e agrupar
todas as criaturas da terra em um antídoto conta a
destrutividade do tempo e da morte” (MACIEL, 2004,
p. 17). Rosa mergulha em um outro tempo, sai de sua
“ordem burocrática” de diplomata para brincar/jogar
com outra ordem temporal, colhê-la no seu gesto de
escrita, através das palavras e do fio de seus enredos.

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Tinha a intenção de “salvar”, levar adiante uma
cultura que poderia se perder com o desenvolvimento
do processo de modernização. Walter Benjamim, em
A tarefa do tradutor, nos diz que a tradução dá ao
original uma sobrevida histórica, transportando-o para
uma outra língua e uma outra cultura (BENJAMIM,
1992). Mas é importante marcar que os vastos espaços
da nação não se deixam capturar, ser representados de
forma fixa pelos viajantes, cientistas, literatos,
cineastas, etc. Há sempre um sentido que vaza, que se
torna incapturável, que se esconde nas brumas do real,
nos redemoinhos do sertão. Talvez, por isso mesmo,
há a insistência na descrição minuciosa, dicionarizada
desse espaço escorregadio. Essas paisagens, além das
fronteiras de um imaginário nacional voltado para o
progresso, funcionam também, por essa dificuldade de
catalogar fielmente o espaço, como metonímia de um
ideário desenvolvimentista que dificilmente ganha
notoriedade sem uma construção discursiva que
esconde diferenças e cria ficções - e que pode tornar-
se, no âmbito político-econômico, desgarrado do solo
real do país.

As novelas de Corpo de baile funcionam como uma arca


que singra pelos vales e veredas das Minas sem mar. A
palavra busca o poder de presentificar e “salvar” a vida
natural ali existente. Diante do “dilúvio”, da ameaça
que o progresso poderia trazer à natureza e à tradição
cultural, era preciso selecionar as espécies existentes,
colhê-las “com a rede que não tem fios da linguagem”,
de acordo com a personagem Grivo, da novela “Cara
de Bronze”, de Guimarães Rosa, e “salvá-las”,
replantá-las na memória deste novo tempo. Em Rosa,
as séries, as enumerações, servem também como
contraponto à produção em série. O que o autor quer
quantificar, medir, descrever são os bichos que estão
sendo mortos, a beleza da natureza e mesmo os

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sertanejos, sua situação social. O objetivo final é a
preservação, a revitalização e a valorização das
margens da modernidade que precisariam ser mais
bem avaliadas no projeto de um novo país. Não é uma
fuga para o passado, mas um diálogo entre as
potencialidades presentes no espaço sertanejo –
naquilo que elas podem contribuir para a modernidade
que surge e para uma melhor construção, mais diversa
e inclusiva, do discurso modernizante.

Os cartógrafos em Rosa são personagens marginais:


loucos, negros, vaqueiros, cantadores e contadores de
história, crianças, mulheres, jagunços - todos pobres.
Estão do lado de fora do “plano piloto” do governo
federal, mas têm voz privilegiada nas obras do autor.
Descartados pelo projeto político-social das
modernidades tardias, ganham lugar central nas
histórias narradas. Suas experiências, únicas e não
seriais, é que movem a roda da narrativa rosiana.

Em “Cara de Bronze”, as palavras que Grivo apreende


vão mudando de nome, mas mesmo assim há uma
insistência em colhê-las, em apanhá-las com a rede de
seda da memória, da linguagem. É importante também
chamar a atenção para os nomes estranhos,
engraçados, às vezes irônicos, que revelam a astúcia e
a malícia do sertanejo e também do autor. O cineasta
Peter Greenaway, referindo-se a Arthur Bispo do
Rosário, nos diz que a forma dos trabalhos deste
artista parece “zombar um pouco com a mania dos
intelectuais de catalogar tudo, de transformar o mundo
em verbetes de enciclopédia” (MACIEL, 2004, p. 21).
Acreditamos também que Guimarães Rosa, ao
adentrar o campo do inventário, ao mesmo tempo
elogia e questiona a pretensa certeza científica do
trabalho de biólogos e de antropólogos. Pelo viés da
literatura, ele mostra, na catalogação, o que escapa, o

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que está além das listagens, o que é incomensurável,
incapturável, mostra o encantamento, a poesia das
coisas. É curiosa a proximidade de alguns nomes da
lista com órgãos e referências sexuais – geralmente em
tom humorístico - e também a descrição do Buriti, que
quebra a ordem serial que o autor vinha seguindo, já
que depois de utilizar “O BURITI – palmeira grossa”,
escreve: “O BURITI, sempre...”. A obsessão pela
planta, algo da ordem de uma experiência individual
do autor, interfere e mostra o lugar da subjetividade
nas frestas da ordem que se quer transmitir.
– E que árvores, afora muitas, o Grivo pôde ver? Com que pessôas
de árvores êle topou?
A ana-sorte. O joão-curto. (...) O angelim-macho. O angelim-
amargo. O joão-leite. (...) O pau-de-negro. O catinga-de-porco. (...)
A chupa-ferro. O ajunta-chuva. A fêmea-de-todos. A alta-sáia. O
pau-que-pensa. O sossegador. (...) O pau-mijado. (...) O BURITI –
palmeira grossa. O BURITI, sempre... (...) Sensitiva-mansa. (...)
Amor-do-campo-sujo. (...)
Só? E os outros, que vêm logo depois?
... O juiz-de-paz. O santa-helena. (...) O barbadim. O barbadão. O
cabeça-chata. (...) O bunda-de-mãe-isabel. (...) O negro-nú. (...)
papai nicolau (...) páu-de-chupar, páu-pingado, (...), erva-do-diabo
(...).
- Dito completo?
- Falta muito. Falta quase tudo. (ROSA, 1965, p. 108 a 114)

Com esta última frase, podemos notar a fadiga do


inventariador, o limite a que chega e a frustração que
aparece em sua tentativa de dar conta de catalogar a
vegetação do sertão. Podemos associar esta noção da
ausência de controle em Grivo com a perspectiva
borgeana da taxonomia. Para Maria Esther Maciel, o
escritor argentino Jorge Luís Borges repete, com a
personagem Funes,

O mesmo gesto irônico de evidenciar a insensatez e a ineficácia de


toda tentativa de arquivamento ou classificação exaustiva do
conhecimento e das coisas do mundo, visto que todo

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recenseamento tende, em seus limites, a revelar o caráter do que é
naturalmente incontrolável e ilimitado. (MACIEL, 2004, p. 14)

Mas a luta contra a falta, contra a incompletude é que


impele Grivo ao cumprimento de sua tarefa. Logo
após a descrição detalhada dos vegetais, pergunta-se à
personagem:

“E os bichos, os bichinhos, os pássaros?


(...) Seriemas gritando e correndo, ou silenciosas. Emas correndo às
tontas. Seriema voando. Os anús, prêtos e brancos. A alma-de-gato.
A maria-com-a-vovó, marceneira. A codorninha-buraqueira. Os
joãos-de-barro, os joães-de-barro. (...) O sofrê, veredas dos Gerais
avante. O benteví, por tôda a parte. Os urubús, avaros.
(...) As nuvens podem jazer estranhas perspectivas. (ROSA, 1965,
p. 108 a 114)

Todo trabalho taxionômico, mesmo os que almejam a


imparcialidade do discurso científico, será sempre uma
prática subjetiva, ligada a algo provisório. Em uma
nova viagem de Grivo, em um novo passeio de
Soropita, em uma nova repetição do conto do Velho
Camilo, os “objetos” e a descrição já terão se alterado:
“As nuvens podem jazer estranhas perspectivas”.

No início de “Dão-lalalão”, a personagem Soropita


está andando a cavalo, cortando o sertão, como a
conduzir-nos à força da natureza, da sabedoria
popular, da cultura oral. Demonstra profundo
conhecimento das plantas, bichos, terras, águas e
cheiros. Sabedoria que não se aprende no colégio, vem
da experiência, da vivência, da interlocução. Soropita
via
o campo, a concha do céu, o gado nos pastos – os canaviais, o
milho maduro – o nhenhar alto de um gavião – os longos
resmungos da juriti jururu – a mata preta de um capão vermelho –
os papagaios que passam no mole e batido vôo silencioso – um
morro azul depois de morros verdes – o papelão pardo dos

BH, v. 2, n.7, p. 11-34, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


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marimbondos pendurado dum galho, no cerrado – as borboletas
que são indecisos pedacinhos brancos piscando-se – o rouxinol de
poente ou oriente – o deslim de um riacho. (ROSA, 1984, p. 13)

Nas descrições que se pretendem objetivas, vazam as


imagens poéticas, as associações metafóricas. Na
citação, Soropita, através de Rosa, mostra-nos que a
memória e a experiência, ao contrário do mundo
grafocêntrico, do mundo intermediado pela
linguagem, traz as coisas como parte de sua existência.
A personagem está intimamente integrada ao mundo
que descreve, faz parte dele, assim como esse mundo
está nele. De acordo com Michel Foucault:
Se fosse dado à experiência, no seu movimento ininterrupto,
percorrer exatamente, passo por passo, o contínuo dos indivíduos,
das variedades, das espécies, dos gêneros, das classes, não haveria
necessidade de constituir uma ciência; as designações descritivas se
generalizariam de pleno direito e a linguagem das coisas, por um
movimento espontâneo, se constituiria em discurso científico.
(FOUCAULT, 1995, p. 162)

Em se tratando de experiência, não podemos deixar de


ressaltar as personagens Zequiel e Miguilim. Chefe
Ezequiel traz em seu contra-discurso frases estranhas,
feitas com a desrazão poética de quem se deixa
entranhar pelos sentidos da natureza. Assim como o
buriti, era um guardião atento dos mistérios e dos
segredos das noites do sertão, contrário à lucidez
tecnicizante das cidades. A defesa da natureza, a
postura ecológica crítica tem lugar privilegiado em sua
narrativa poética, onde a personagem busca catalogar
a destruição de seu mundo:
As pessoas mais velhas são inimigas dos meninos. Soltam e
estumam cachorros, para irem matar os bichinhos assustados – o
tatu que se agarra no chão dando guinchos suplicantes, os macacos
que fazem artes, o coelho que mesmo até quando dorme todo-
tempo sonha que está sendo perseguido (...). Os tamanduás se
abraçavam, em sangues, para morrer. (ROSA, 1984, p. 124 e 125)

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 11-34, maio. 2006


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Miguilim, menino sensível, disperso, míope, mostra-
nos que a percepção plena traz uma sensação de
deslumbramento associada à tentativa de preservar, na
retina, de forma ordenada, instantes mágicos, como
ocorre ao ver pela primeira vez o povoado através dos
óculos de um doutor:

Olhou os matos escuros de cima do morro, aqui a casa, a cerca de


feijão-bravo e são-caetano; o céu, o curral, o quintal; os olhos
redondos e os vidros altos da manhã. Olhou mais longe, o gado
pastando perto do brejo, florido de são-josés, como um algodão. O
verde dos buritis, na primeira vereda. O Mutum era bonito! Agora
ele sabia. (ROSA, 1984, p. 142)

Em relação à novela “Uma estória de amor”, Joana


Xaviel e o Velho Camilo, contadores de histórias e
cantadores, são personagens que vivem à margem do
grande projeto empreendido por Manuelzão – a
povoação de um lugarejo que tinha por centro a sua
casa de fazenda e onde haverá uma festa para a
inauguração de uma capela com sua primeira missa.
Há aí, em perspectiva irônica, uma referência ao ponto
inaugural da civilização brasileira, com a “primeira
missa”. Os atos de fundação da capela e da
comunidade da Samarra também levam-nos à imagem
da construção de Brasília. Mas assim como os
candangos, que, depois de construírem a cidade e
desfilarem por ela em sua inauguração, foram levados
para as cidades satélites, para um espaço além das
linhas decisórias do poder, na inauguração da Samarra
o velho Manuelzão também se espanta com os
estranhos e desvalorizados objetos que a população
traz para presentear a santa e também para o leilão. É
a partir desse “museu alternativo”, desses cacos,
“estúrdias alfaias”, representativos daqueles também
pedaços de vida excluídos do processo de

BH, v. 2, n.7, p. 11-34, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


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mercantilização, que Manuelzão entra em contato com
a cultura local:

Todos traziam, sorrateiros, o que devia ser de Deus. Ovos de


gavião (...) Pedras não conhecidas (...) Um boné de oficial (...) Um
patacão, pesada moeda de prata antiga. Uma grande concha,
gemedora, tirada com as raízes, vinda parar ali, tão longe do mar
como de uma saudade. (...) As lascas de pedra-de-amolar, uma
buzina amarela de caçador (...), tudo que da folha do buriti se
fabricava. E até um grosso livro de contas, todas as páginas
preenchidas, a tinta descorável (...).E mais até uma mortalha de
homem, de ganga roxa, que nunca servira, porque a tinham
costurado com despropositada urgência, mas o corpo do defunto,
afogado no rio, não se achara. (ROSA, 1984, p. 147-148)

É interessante observarmos que, na descrição dos


cacos que eram ofertados, aparecem nós hipertextuais
que levam a lista ao infinito: “tudo que da folha do
buriti se fabricava” e um grosso livro de contas - que
eleva também a potência dos itens que podem estar
dentro deste objeto, “com todas as páginas
preenchidas”. Borgeanamente, Guimarães Rosa insere
um livro de contas na listagem. Além disso, Rosa
narra, de forma resumida, em uma linha, dentro da
série, a história de um corpo afogado no rio.

Ao final de “Uma estória de amor: festa de


Manuelzão”, podemos ver, no “Romanço do Boi
Bonito”, contado pelo Velho Camilo, o abecê, em que
aparecem os nomes de vários vaqueiros que tentaram
capturar o boi, mas foram derrotados na luta contra o
animal, “dois mil e tantos que vinham, quase todos
machucados”:
Antônios; Ascenço; Aroeira (...) O Bó; Birinício; Bastião, do Brejo-
Preto (...) Cérjo de Souza Vinagres. (...) Jordão de Tal, (...); mais de
cinquenta josés! (...) Mendonço será que estava? (...) Olavo; Ogão;
Olereno; e Orozimbo, separado – por ser de marca maior.(...);
pedros (quarenta-e-cinco); (...) Vicente Galamarte. Xisto, velho

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 11-34, maio. 2006


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topador. (Ypsilône – não tinha.) Zorô, Zé Sozinho, Zusa. (...)
setenta joãos e joães!
E os que não vi e não sei. (ROSA, 1984, p. 245)

Aqui, alguns designativos tentam ora ser precisos –


mesmo que ironicamente – ora explicitar a imprecisão:
Jordão – “de Tal”, Mendonça – “será que estava?”,
Ypsilône – que deve aparecer na lista pela ordem
alfabética como significante mas era carente de
significado, joãos e joães – qual seria a diferença? Mas,
para concluir, a frase fatal: “E os que não vi e não sei”:
a lista acaba por explicitar, de forma metalingüística,
aquilo a que ela se propõe, mas ao mesmo tempo não
consegue.

É bom pensar aqui que, assim como a fauna e a flora,


cada nome apontava para um sertanejo que também
estava sendo excluído do processo de modernização
do país. Aparecem os deserdados, os despossuídos,
todos habitando as margens da casa grande. Entre eles
há histórias fantásticas, esperanças, tragédias, amores e
uma vasta memória de todos os nomes das plantas e
bichos. A conversa simples e sábia, a memória coletiva,
o hábito, a partilha do pouco que se tem mantêm o
vínculo entre estes quase-cidadãos. Mas é importante
dizer que é justamente a escrita que consegue, ao
menos no campo da literatura e do discurso, “salvar”
esse vasto mundo do sertão.

Há, nos catálogos de Rosa, ao mesmo tempo, um tom


lírico, um traço irônico e um humor sutil. Há uma
tensão entre o gesto do tradutor que quer salvar a
memória das coisas e o do sertanejo desconfiado,
crítico dos sistemas que pretendem organizar e
classificar o mundo e o conhecimento. Como vimos, é
forte característica de Guimarães Rosa o uso de
palavras em descontinuidade com a lista. Estas

BH, v. 2, n.7, p. 11-34, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


27
palavras parecem cortar o fluxo racional das séries e
sugerem a desconfiança do escritor frente à
reprodução técnica.

Ao contrário de um mundo moderno, racionalizante,


simbolizado na época em Brasília, mundo em que a
tecnologia, os meios de comunicação e a sociedade de
consumo fundam seu lugar, Rosa traz-nos um olhar
oblíquo, enviesado. Ao fazer seus inventários de forma
poética, inventando novas paisagens na tentativa de
catalogar a existente, Guimarães Rosa revela que são
nossas incompletudes e incongruências que instigam o
desejo de ordenar, catalogar, enumerar, arquivar.
Assim como o escritor Jorge Luís Borges, Rosa acaba
por nos mostrar, através de seus catálogos e listas, não
a classificação racional do mundo, mas sim o aspecto
sempre arbitrário presente em todos os sistemas
taxonômicos. As longas listas talvez funcionem como
uma tentativa sempre frustrada de paralisar o tempo
fugaz e é bom pensar que o projeto do governo de “50
anos em 5” é justamente uma corrida contra o tempo
visando ao desenvolvimento econômico.

Sabemos que Brasília foi construída para contribuir


com a integração nacional, a povoação e a circulação
humana pelo interior do país, para dar fluxo à
produção nacional. Na construção da cidade, homens
de diversas partes do país pegaram a estrada rumo ao
Planalto Central, deixando o espaço rural em busca de
um novo espaço onde recomeçar suas vidas.

Para dialogar com as listas rosianas, trazemos para a


discussão um outro escritor diplomata que também
escreveu suas atas poéticas, fez seus inventários sobre
a era JK. Vinicius de Moraes, no poema sinfônico
“Brasília, sinfonia da alvorada”, composto em parceria

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 35-45, maio. 2006


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com Tom Jobim e que deveria ser executado na festa
de inauguração da nova capital, faz uma contraposição
entre o peso bruto do concreto e os homens
sonhadores e lutadores que transformam, pelas suas
mãos sem estudo e calejadas pelo trabalho no campo,
o concreto em obra de arte. Vinicius cita frases de
Niemeyer na letra em que a cidade é descrita, por
exemplo, no trecho em que fala de um lugar “em que
a arquitetura se destacasse branca, como que flutuando
na imensa escuridão do planalto” (MORAES, 2004,
p.1203). Aproveita-se novamente de Niemeyer para
falar de uma cidade que trabalhe com alegria durante o
dia e em que os homens “compreendam o valor das
coisas puras”. O poeta mostra-nos a lista do material
empregado na construção e, logo em seguida, faz o
censo da quantidade de homens que ali empregaram
suas forças e descreve a rotina do trabalho:
Foi necessário muito mais que engenho, tenacidade e invenção. Foi
necessário 1 milhão de metros cúbicos de concreto, e foram
necessárias 100 mil toneladas de ferro redondo, e foram
necessários milhares e milhares de sacos de cimento, e 500 mil
metros cúbicos de areia, e 2 mil quilômetros de fios.
E 1 milhão de metros cúbicos de brita foi necessário, e
quatrocentos quilômetros de laminados, e toneladas e toneladas de
madeira foram necessárias. E 60 mil operários! Foram necessários
60 mil trabalhadores vindos de todos os cantos da imensa pátria,
sobretudo do Norte! 60 mil candangos foram necessários para
desbastar, cavar, estaquear, cortar, serrar, pregar, soldar, empurrar,
cimentar, aplainar, polir, erguer as brancas empenas... (MORAES,
2004, P. 1204)

O trabalho que se exigia desses homens vindos das


mais diversas regiões e aglutinados no Planalto Central
do país funciona como uma grande metáfora da
integração nacional que agenciaria homens de
diferentes raças, de diferentes sotaques e culturas,
diferentes crenças na construção da nação imaginada.

BH, v. 2, n.7, p. 11-34, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


29
Vinícius fala da relação entre o trabalho em série e a
música matemática que tenta representar no poema,
esse investimento total e quantificado. Mas após as
citações acima, lista-se algo imponderável, pois não
mais quantificável absolutamente. Há um jogo de
significantes a demonstrar a quebra da lógica que
vinha seguindo o letrista: “Ah, as empenas brancas!/
Como penas brancas.../ Ah, as grandes estruturas!/
Tão leves, tão puras” (MORAES, 2004, p. 1204). As
estruturas teriam sido colocadas mansamente por
“mãos de anjo na terra vermelho-pungente do
planalto” em meio à “música inflexível, música
lancinante” do trabalho que visa ao progresso. Na
parte V do poema, chegando ao final da peça, o coral
canta em três vozes: “Brasília/ Brasília/ Brasília/
Brasília/ Brasília/ Brasília/ BRASIL!” (MORAES,
2004, p. 1205). É o apogeu da sinfonia. A marcação
rápida e forte lembra a cidade que fora construída
noite e dia, ininterruptamente e que, agora, aparece
através dos substantivos que buscam ser a metonímia
do desejo maior de o Brasil ser uma nação
democrática, que tenha importância política e
econômica e esteja presente no mapa das nações
desenvolvidas do ocidente.

Parece-nos que há, no texto, uma tentativa de provocar


um distanciamento em relação à proposta da
modernidade de promover o trabalho serial. Vinícius,
assim como acontece em Rosa, utiliza-se dos
instrumentais do “inimigo”, isto é, da repetição
exaustiva do sistema – daquilo que sujeita o homem,
que não lhe deixa tempo para a diversão, a
contemplação, a fruição da vida – para criticar esse
próprio sistema. As empenas/ penas brancas são asas
criadas pelo poeta para fugir desse mundo ao mesmo
tempo de esperança mas de perigo de sujeição. As
estruturas apresentam-se como leves e puras. E aqui

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 11-34, maio. 2006


30
Niemeyer é novamente lembrado, com o seu interesse
em construir, a partir do concreto armado, estruturas
leves, arredondadas, que parecem flutuar no largo
espaço do plano piloto.

Nos últimos 50 anos, as cidades brasileiras tiveram


uma explosão demográfica, impulsionada pelos
investimentos públicos maciços nas indústrias, o que
incentivou a urbanização acelerada e intensa. Muito
pouco se investiu no campo. Embora ainda
permanecesse como fator essencial da economia
nacional, a agricultura perdeu, na década de 50, a
importância econômica que possuía. Em 1956 a
indústria já a havia ultrapassado, passando a ser o
componente mais importante do produto nacional
líquido (PNL). Tendência que se acentua durante o
governo JK.

Grande parte dos trabalhadores que deixaram as áreas


rurais não conquistaram melhores condições de vida
nas cidades, onde vivem em áreas também com muito
pouco investimento público. Em 1960, a população
urbana do Brasil representava 45% dos brasileiros,
enquanto a rural representava 55%. Já no censo de
2000, a população urbana chegava a 81% do total. As
imagens arquitetônicas, midiáticas, as inserções
publicitárias no rádio, a saga da modernidade, do
emprego contribuíram em muito para a saída do
campo rumo à cidade.

O impulso modernizador empreendido pelo Estado,


na segunda metade dos anos 50, arejou o país,
incentivou o surgimento de uma arte nova, indústrias
foram criadas, o sistema de energia e de transporte
passaram por transformações, houve mudanças
estruturais na administração pública e o Brasil obteve
altas taxas de crescimento econômico. Muitos

BH, v. 2, n.7, p. 11-34, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


31
brasileiros passaram a acreditar mais na força do país,
até então visto como um “gigante adormecido”,
tornando-se eles mesmos mais otimistas e confiantes
em seus projetos pessoais. Mas muito ainda precisava
ser feito.

Neste texto, procuramos trazer um pouco dos


“recados dos morros” - entre vários recados vindos de
vários morros urbanos e sertanejos – que, às vezes de
forma cifrada, demonstram querer ser mais ouvidos na
elaboração e execução de projetos políticos.

As listagens com nome de vaqueiros, bichos e plantas


de Guimarães Rosa associam-se à lista dos candangos
de Vinícius de Moraes. Funcionam, em Rosa, assim
como vimos no poeta, como um abaixo-assinado onde
todos referendam uma proposta artístico-literária que,
em meados dos anos 50, além de suas inovações em
matéria poética, visava fortemente resgatar e traduzir –
levar adiante a resistência ecológica, a força da cultura
popular e da capacidade produtiva e criativa do
brasileiro frente a um mundo que se modernizava.

As obras rosianas publicadas em 1956 mostram


homens com uma forte experiência com a natureza,
experiência que indubitavelmente estava sendo
alterada, criando novas subjetividades. Os textos
rosianos não visam à contraposição ao
desenvolvimentismo, ao progresso, congelando o
discurso em um tempo e um espaço ligados à tradição,
à origem, à natureza virgem, à oralidade, etc. Nesse
sentido, em várias passagens dos livros de Corpo de
baile, podemos ver Rosa, pela voz das personagens,
criticar certas crendices populares, a tradição
conservadora, o patriarcalismo, a devastação da
natureza feita pelo homem do campo, etc. A obra

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 11-34, maio. 2006


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rosiana, pela própria linguagem, relacionada ao que de
mais avançado se produziu na arte e na cultura
mundial do século XX, não é jamais contra a
modernidade, mas apenas visa ampliar o seu alcance
naquilo que ela pode contribuir para libertar o homem.
Os livros do escritor mineiro podem ser lidos,
portanto, como uma crítica a um modo de se
direcionar os esforços políticos para o progresso a
qualquer custo sem levar em conta os desníveis sociais
e culturais do país, além de sugerir, em forma de mapas
literários desenhados por um diplomata em expedição
cartográfica ao sertão brasileiro, maior cuidado com a
natureza para que o país vivesse melhor também no
futuro. Talvez pelo motivo de a ecologia ainda não ser
um dos mais sérios problemas mundiais e a natureza
tropical ser bastante rica no país, podia-se pensar que
vastas florestas ainda podiam ser fartamente
desmatadas, sem mesmo planejamento de
sustentabilidade, abrindo assim os caminhos para a
modernização. Nesse sentido, os contos que abrem e
fecham o livro Primeiras Estórias, publicado em 1962,
falam sobre um menino que foi com um tio ao lugar
onde os homens iriam construir uma grande cidade –
Brasília –, ali ele vê uma bela ave ser morta e também
tratores destruindo centenárias árvores, tudo isso sem
qualquer “peso na consciência”. Rosa não é jamais um
autor preso ao passado, ao contrário, ele quer o futuro,
mas um futuro em que as múltiplas formas de vida
possam ser consideradas e valorizadas. Segundo
Claudio Bojunga, Grande sertão: veredas e Morte e vida
severina, do outro diplomata João Cabral de Melo Neto,
livro também de 1956, “encerram a confluência do
nativismo com a modernidade”. Acrescentaríamos aí
as novelas de Corpo de baile. Os autores relacionam-se
ao que de melhor se fazia na época em termos de
pesquisa, renovação e consciência artesanal aliadas ao
discurso artístico-literário. Para Bojunga, Guimarães
Rosa, em “seu ataque à norma lingüística, desfechado

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 11-34, maio. 2006


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no limiar do período jusceliniano, deu nova e moderna
dimensão à memória brasileira, abolindo a expressão
exótica do passado em nome de semântica tão original
como a arquitetura de Oscar” (BOJUNGA, 2001, p.
468).

Acreditamos que as assinaturas dispostas em listas dão


mais vida ao conjunto da obra rosiana. São esses
nomes de homens, bichos e plantas, essas garatujas,
esses rabiscos que desejam, pela força de seu conjunto,
ter mais voz, maior reconhecimento, serem “salvos”,
pois em sua “sabedoria” intuitiva e radical são
imprescindíveis não apenas à ordem técnica do
progresso, mas também à desordem criativa da vida.

REFERÊNCIAS
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de Janeiro: UERJ, 1992.
BENJAMIM, Walter. Desempacotando minha biblioteca. Rua de mão única
– obras escolhidas II. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo:
Brasiliense, 1987.
BENJAMIM, Walter. Sobre o conceito da História. Rua de mão única - obras
escolhidas, v. 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1989.
BOJUNGA, Cláudio. JK, o artista do impossível. Rio de Janeiro: Objetiva,
2001.
BORGES, Jorge Luís. Obras completas (4 volumes). Rio de Janeiro: Globo,
1999.
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Ateliê Editorial; São Paulo: Editora SENAC, 2003.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus. São Paulo:
Martins Fontes, 1995.
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MACIEL, Maria Esther. A memória das coisas: ensaios de literatura, cinema
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MORAES, Vinícius de. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 2004.
ROSA, João Guimarães. Noites do sertão. 8ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Nova
Fronteira, 1984.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 11-34, maio. 2006


34
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Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1965.
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et al, julho de 2002.
STARLING, Heloísa. Juscelino Prefeito. Revista Juscelino Prefeito. Belo
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Abílio Barreto, 2002.
STARLING, Heloísa. Lembranças do Brasil: teoria, política, história e ficção
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SOUZA, Eneida Maria de (Org.) Modernidades Tardias. Belo Horizonte:
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de Janeiro: FGV Editora, 2002.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 11-34, maio. 2006


Lineamentos Teóricos do Conceito de
Prova no Processo Penal
37
Lineamentos Teóricos do Conceito de
Prova no Processo Penal

Bruno César Gonçalves da Silva*

Resumo: O presente artigo apresenta os lineamentos teóricos do


conceito de prova no processo penal, abordando as categorias que
integram o referido instituto, quais sejam: elemento, meio e
instrumento de prova.

Palavras-chave: Prova, elemento de prova, meio de prova,


instrumento de prova, processo penal.

Abstract: The present article presents the theoretical lines of the


concept of evidence in the criminal proceeding, approaching the
categories that integrate the cited institute, which are: element,
instrument and way of evidence.

Keywords: evidence, element of evidence, way of evidence,


instrument of evidence, criminal proceeding.

1. COLOCAÇÃO DO PROBLEMA

Necessário se faz apresentar alguns lineamentos acerca


da Teoria da Prova, pois, conforme advertência de
Ruiz Vadillo, “los problemas respecto a la teoria
general de la prueba son muchos y no fáciles de
solucionar” 1 (RUIZ VADILLO, 1993, p. 106).

Em virtude desses problemas, encontra-se certo


casuísmo no trato da matéria por parte da doutrina,
que, ao discorrer sobre o tema, não busca analisar o
instituto da prova em bases teóricas, restringindo-se a
análises estritamente dogmáticas, abdicando-se de *Especialista em Direito
Penal - Professor da
abordar as categorias que o integram e constituem, Faculdade Estácio de Sá.
cujo conhecimento é imprescindível para ulterior
1
"os problemas relativos à
abordagem de sua disciplina. teoria geral da prova são
muitos e não fáceis de
solucionar". (Tradução
nossa)

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 35-45, maio. 2006


38
Trazendo à colação a lição de Mittermaier (1997, p.
55), registre-se que este considera a prova como a
resultante da soma dos motivos geradores da certeza.

Manzini (1996), redator principal e quase único do


Código de Processo Penal italiano de 19302, que se
constituiu como referencial legislativo para a
elaboração do Código de Processo Penal brasileiro
ainda em vigor, é autor que em virtude disso
influenciou, em muito, a doutrina processual penal
brasileira em vários aspectos.

Ao conceituar prova, afirma este autor que:


2
Neste sentido, cf.:
ALCALÁ-ZAMORA y
CASTILLO (1996, t. I, p. La prueba es la actividad procesal inmediatamente dirigida al
IX). objeto de obtener la certeza judicial, según el critério de la verdad
3
"A prova é a atividade real acerca de la imputación o de outra afirmación o negación que
processual imediatamente interesse a una providencia del juez. La ley procesal penal usa por
dirigida ao objetivo de obter lo demás del término de prueba, no solo en el sentido expresado,
a certeza judicial, segundo o
critério da verdade real sino a veces también para indicar los médios de comprobación o
acerca da imputação ou de los conseguidos con el empleo de esos médios.3 (MANZINI, 1996,
outra afirmação ou negação
que interesse a uma
v. III, p. 197-198.)
providência do juiz. A lei
processual penal utiliza-se
por demais do termo prova, Cordero (2000, v. II), por sua vez, afirma que:
não só no sentido
expressado, mas às vezes
também para indicar os Llamamos ‘instrucción’ todo lo que se refiere a la prueba; y
meios de comprovação ou ateniéndonos a la etimologia, esta última palabra evoca un examen
os conseguidos com o
emprego desses meios." o una selección; los procesos son máquinas retrospectivas; en
(Tradução nossa) efecto, formuladas varias hipótesis históricas por los contendores,
4
"Chamamos 'instrução' a
es menester verificarlas. Las pruebas son los materiales sobre los
tudo o que se refira à prova; cuales se lleva a cabo esa tarea: expresiones orales corpora delicti,
e atendo-nos à etimologia, documentos, huellas dactilares, etc.4 (CORDERO, 2000, v. II, p. 3.)
esta última palavra evoca
um exame ou uma seleção; (Grifos nossos.)
os processos são máquinas
retrospectivas; com efeito,
formuladas várias hipóteses Sentís Melendo (1976, p. 94), procurando estabelecer
históricas pelos conten-
dores, é mister verificá-las. “o que é a prova”, afirma “que prova é verificação”, e
As provas são os materiais
sobre os quais se leva a
que essa verificação recairia sobre as alegações e
cabo essa tarefa: expressões
orais corpora delicti,
afirmações produzidas em relação aos fatos5.
documentos, impressões
digitais, etc." (Tradução e
grifo nossos)

BH, v. 2, n.7, p. 35-45, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


39
Na doutrina brasileira Marques (1997, v. II) considera
que:

A demonstração dos fatos em que assenta a acusação e


daquilo que o réu alega em sua defesa é o que constitui a
prova. (...) A prova é, assim, elemento instrumental para
que as partes influam na convicção do juiz e o meio de
que este se serve para a averiguar sobre os fatos em que 5
No particular aspecto do
objeto da prova, parece
as partes fundamentam suas alegações. (MARQUES, acertada a posição de Sentís
1997, v. II, p. 253) Melendo (1976, p. 94.) No
mesmo sentido é também o
entendimento de Grinover;
Dinamarco; Araújo Cintra
Há também vários outros doutrinadores brasileiros (2003, p. 350).
que buscaram, a seu modo, conceituar o instituto da 6
Neste sentido cf. Tou-
rinho Filho (2003, p. 476):
prova, mas o que parece ser traço comum entre os "Que se entende por prova?
autores até aqui citados é que estes acabam por não Provar é, antes de mais
nada, estabelecer a exis-
realizar uma análise teórico-analítica do instituto em tência da verdade; e as
provas são os meios pelos
questão6. quais se procura estabelecê-
la. Entendem-se, também,
por prova, de ordinário, os
elementos produzidos pelas
Manzini, por exemplo, chega a ponto de afirmar que partes ou pelo próprio Juiz
visando a estabelecer, den-
“la distinción entre fuentes, medios y elementos de tro do processo, a existên-
cia de certos fatos. É o
prueba no tiene importância científica esencial, y instrumento de verificação
do thema probandum". Cf.
prácticamente no tiene ninguna” 7 (MANZINI, 1996, também: Mirabete (2004 p.
v. III, p. 208) 256): "Essa demonstração
que deve gerar no juiz a
convicção de que necessita
para seu pronunciamento é
As variações e insuficiências dos conceitos expostos o que constitui prova."; e,
finalmente, cf. Grinover;
provavelmente se devem à enorme complexidade que Dinamarco; Araújo Cintra
(2003, p. 347): "a prova
o tema comporta, vez que por este instituto pretende- constitui, pois, o instru-
mento por meio do qual se
se: “representar e demonstrar os elementos da forma a convicção do juiz a
respeito da ocorrência ou
realidade objetiva pelos meios intelectivos autorizados inocorrência dos fatos con-
trovertidos no processo".
em lei” (LEAL, 2004, p. 178), fixando-os nos autos do
7
"a distinção entre fontes,
processo e tendo-os como base para todo e qualquer meios e elementos de prova
provimento jurisdicional. não tem importância
científica essencial, e
praticamente não tem
nenhuma." (Tradução
nossa).

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 35-45, maio. 2006


40
2. ESTRUTURA ANALÍTICA DA PROVA

O instituto jurídico da prova, segundo Leal (2004, p.


181-182), é constituído da articulação entre as
categorias do elemento de prova, meio de prova e do
instrumento de prova, que são os aspectos de sua
configuração teórica.

Caso não se verifique, no momento de produção da


prova, a incidência dessas categorias, não se pode
afirmar a configuração, ao menos no sentido jurídico-
processual, pois esta resulta do concurso das referidas
categorias e tal deve ocorrer segundo a disciplina
inferida das normas processuais.

A categoria do elemento de prova refere-se aos dados


da realidade objetiva, existentes na dimensão do
espaço, concernente ao ato, fato, coisa ou pessoa, tal
como um cadáver ou um elemento qualquer existente
na faticidade (LEAL, 2004, p. 178).

Um elemento de prova, por si só, não é prova nem


possui aptidão para contribuir na formação da cognitio;
pois, apenas após a obtenção deste elemento por meio
de prova lícita e legal e de sua fixação nos autos do
processo pelo instrumento de prova, é que se tem
prova em sentido jurídico-processual, sendo que
somente esta é idônea à formação da cognitio.

O meio de prova é a categoria que disciplina a


obtenção dos elementos de prova.

É através dessa categoria que se realiza a


captação/apreensão dos dados da realidade objetiva
para sua introdução no processo.

BH, v. 2, n.7, p. 35-45, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


41
No processo penal brasileiro destacam-se como meios
de prova, regulados pelo Código de Processo Penal
(CPP): o Interrogatório8, disciplinado nos art. 185 ao
196, dispositivos que foram recentemente alterados
pela Lei n.º 10.792/03; a Acareação, prevista nos arts.
229 e 230; o Depoimento do Ofendido, disposto no
art. 201, e o das Testemunhas, disposto nos arts. 202
ao 225; a Perícia9, constante dos arts. 158 ao 184; o
Reconhecimento de Pessoas e Coisas, regulado nos
arts. 226, 227 e 228; e a Busca e Apreensão reguladas
nos arts. 240 ao 250 do CPP.

Na legislação especial, Lei n.º 9.034/95, que dispõe


sobre a utilização de meios operacionais para a
prevenção e repressão de ações praticadas por
organizações criminosas, encontram-se alguns meios
de prova ali definidos e regulamentados, tais como: a
utilização de ações controladas, que consiste em 8
O Interrogatório também
retardar-se a intervenção policial, mantendo-se encontra disciplina especí-
fica na legislação especial,
acompanhamento e controle da ação praticada pelo como, por exemplo, ocorre
que se supõe ser organização criminosa para na Lei n.º 10.409/02, que
alterou o procedimento
concretização da medida legal, no momento mais para os crimes tipificados
eficaz do ponto de vista da formação de provas e na Lei n.º 6.368/76 (Lei de
Tóxicos) e na Lei n.º
fornecimento de informações (art. 2º, II); o acesso aos 9.099/95 (Lei dos Juizados
dados, documentos e informações fiscais, bancárias, Especiais Criminais), que
trata do procedimento para
financeiras e eleitorais, mediante autorização do juiz as infrações penais de
(art. 2º, III); a captação e interceptação ambiental de menor potencial ofensivo.
Sobre este ponto cf.:
sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, bem Haddad (2000).
como seu registro e análise, mediante autorização 9
A Perícia também apre-
judicial (art. 2º, IV); e, finalmente, a problemática senta, em alguns casos,
utilização de agentes infiltrados (art. 2º, V)10. disciplina especificamente
prevista na legislação
especial, distinta da estrita-
Na Lei n.º 9.296/96, encontra-se a regulamentação do mente estabelecida no Có-
digo de Processo Penal,
inciso XII, parte final, do art. 5º da Constituição como ocorre na Lei n.º
Federal, disciplinando a interceptação de 10.409/02, acima citada, e
também na Lei n.º 9.503/97
comunicações telefônicas como meio de prova para (Código de Trânsito Brasi-
instruir a investigação criminal ou a instrução leiro), por exemplo.
processual. 10
Incisos IV e V
acrescentados pela Lei nº
10.217, de 11 de abril de
2001.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 35-45, maio. 2006


42
Na Lei Complementar nº 105/01, que dispõe sobre o
sigilo das operações de instituições financeiras,
encontra-se a previsão, como meio de prova, da
quebra de sigilo prevista em seu art. 1º, § 4º. E, ainda,
na Lei n.º 10.409/02 que revogou parcialmente a
antiga Lei n.º 6.368/76, denominada Lei de Tóxicos,
encontra-se a previsão dos seguintes meios de prova:
agentes infiltrados (art. 33, I); ação retardada da
autoridade policial (art. 33, II); acesso aos dados,
documentos e informações fiscais, bancárias,
patrimoniais e financeiras (art. 34, I); colocação sob
vigilância das contas bancárias (art. 34, II); acesso aos
sistemas informatizados das instituições financeiras
(art. 34, III); e a interceptação e gravação das
comunicações telefônicas (art. 34, IV).

Diferenciar o meio de prova das demais categorias,


que integram o instituto da prova é imprescindível
para que seja possível desconstituir-se a noção
equívoca compartilhada pela doutrina11 ao utilizar o
termo “prova ilícita”, pois não se tem, a rigor, “prova
ilícita”, mas sim prova obtida por meio ilícito12.
(Grifos nossos)

A restrição constitucional à obtenção do elemento de


prova faz-se necessária em uma ordem democrática,
vez que “a busca obsessiva da certeza há de se conter,
em Direito, nos limites dos meios de obtenção da
prova legalmente permitidos. A existência do
elemento de prova, ainda que de certeza inegável, não
autoriza, por si mesma, a coleta da prova contra-legem”
11
A este propósito cf.:
Fregadolli (1998, p. 177);
(LEAL, 2004, p. 182).
Mendonça (2004, p. 31); e,
Fernandes (2002, p. 85),
entre outros.
No dizer de Dias (2004, v. I, p. 197), “a legalidade dos
meios de prova, bem como as regras gerais de
12
Cf.: BRASIL. Constituição produção da prova (...) são condições de validade
Federal. "Art. 5º, inciso LVI:
são inadmis-síveis, no processual da prova e, por isso mesmo, critérios da
processo, as provas obtidas
por meios ilícitos". A prova
própria verdade material” (Grifo do autor).
não é ilícita, é sim inadmis-
sível em face da ilicitude do
meio empregado.

BH, v. 2, n.7, p. 35-45, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


43
Após a obtenção do elemento de prova por meio lícito
e legalmente permitido, tem-se ainda que o fixar nos
autos de processo. Para tanto se faz necessária a
utilização da categoria do instrumento de prova, que
se destina a materializar de modo gráfico-formal os
elementos obtidos.

A esse propósito Leal (2004) assim exemplifica:

Pelo instituto da perícia judicial que, como meio de prova


autorizado em lei, há de se fazer, através de perito, pela coleta
intelectiva de elementos de prova existentes na realidade objetiva,
sendo que o laudo é o instrumento (documento) expositivo do
trabalho realizado. (LEAL, 2004, p. 178) (Grifos do autor)

Outro exemplo poderia ser o da realização do


Interrogatório Judicial, que constitui um meio de
prova, no qual é possível obter-se a Confissão,
considerada um elemento de prova, restando esta
registrada e fixada nos autos do processo pela
formalização do Termo de Interrogatório, que é o
instrumento de prova. Ou ainda, a realização de
Audiência de Instrução, que é o meio de prova para
obtenção do Testemunho, sendo esse o elemento de
prova que resta fixado nos autos do processo pela
lavratura do termo de Depoimento de Testemunha.

A prova em sentido jurídico-processual deve ser


compreendida como a resultante da extração na
faticidade dos elementos de prova pelos meios
legalmente previstos, formalizados nos instrumentos
que os fixam aos autos do procedimento, servindo de
base para a formação da cognitio. “Provar em direito é
representar e demonstrar, instrumentando, os
elementos de prova pelos meios de prova.” (LEAL,
2001, p. 182) (Grifo do autor)

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 35-45, maio. 2006


44
3. CONCLUSÃO

Após essa sintética exposição a respeito da teoria da


prova, o presente estudo nos permite extrair algumas
conclusões, como as descritas a seguir:

a) Prova, em sentido jurídico processual, é categoria


abstrata, resultante da atividade intelectiva de
inferência no instrumento de prova do elemento de
prova fixado no mesmo, após sua obtenção por meio
lícito, visando orientar a formação da cognitio.

b) Meio de prova é, entre as categorias integrantes do


instituto jurídico da prova, aquela sob a qual deve
recair a análise da licitude/ilicitude da obtenção dos
elementos de prova, justamente por ser a categoria que
disciplina a captação/apreensão dos referidos
elementos.

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bibliográfica. In: MANZINI, Vicenzo. Tratado de derecho procesal penal. Trad.
Santiago Sentís Melendo e Mariano Ayerra Redín. Buenos Aires: El Foro,
1996, v. I.
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Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2004.
CORDERO, Franco. Procedimento penal. Trad. Jorge Guerrero. Santa Fé de
Bogotá: Temis, 2000, v. II.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra, 2004,
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FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 3. ed., rev.,
atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
FREGADOLLI, Luciana. O direito à intimidade e a prova ilícita. Belo
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GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; CINTRA,
Antônio Carlos de Araújo. Teoria geral do processo. 19ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2003.
HADDAD, Carlos Henrique Borlido. O interrogatório no processo penal. Belo
Horizonte: Del Rey, 2000.
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo – Primeiros estudos. 5. ed.,
rev. e ampl. São Paulo: Thomson-IOB, 2004.

BH, v. 2, n.7, p. 35-45, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


45
MANZINI, Vicenzo. Tratado de derecho procesal penal. Trad. Santiago Sentís
Melendo e Mariano Ayerra Redín. Buenos Aires: El Foro, 1996, v. III.
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas:
Bookseller, 1997, v. II.
MENDONÇA, Rachel de Andrade. Provas ilícitas: limites à licitude
probatória. 2. ed., rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo penal. 16. ed., rev. e atual. São Paulo:
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MITTERMAIER, C. J. A. Tratado da prova em matéria criminal. Trad. Herbert
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RUIZ VADILLO, Enrique. La actividad probatória en el processo penal
español. In: La prueba en el proceso penal, Madrid: Centro de Estudios
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SENTÍS MELENDO, Santiago. Natureza da prova – Prova é liberdade.
Revista Forense, Rio de Janeiro, Forense, v. 246, fasc. 850 a 852, p. 93-100,
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TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 5. ed.,
rev., atual. e 2004, v. I, p. 197) aum. São Paulo: Saraiva, 2003.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 35-45, maio. 2006


Política, Retórica e Imaginação
Social em Tucídides
49
Política, Retórica e Imaginação Social
em Tucídides
Ensaio sobre o controle do imaginário por
meio das figuras retóricas
no Diálogo de Melos

Daniel Barbosa dos Santos *

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar as repercussões das


figuras retóricas em um pequeno trecho da História da Guerra do
Peloponeso de Tucídides: o Diálogo de Melos. Mostraremos as
relações entre o conteúdo retórico desse diálogo e a política externa
do império ateniense, verificando o controle efetivo do imaginário
social decorrente desta política.

Palavras-chave: política, retórica, imaginação social.

Abstract: This article intends to analyse the repercussions of the


rhetorical figures on a tiny passage of the History of the
Peloponesian War by Thucydides: the Dialogue of Melos. We shall
show the relations between the rhetorical contents of this dialogue
and the athenian empire´s external politics, verifying the effective
control of the social imaginary resulting from that politics.

Keywords: politics, rhetoric, social imaginary.

Da excepcional mutação intelectual que fez surgir as


instituições da pólis grega – a elaboração de uma nova
imagem da sociedade humana –, evidenciaremos o
significado fundamental que passou a representar o
logos ( ), a palavra escrita ou falada, na racionalização
e dessacralização das relações políticas.

No mundo micênico e nos reinos do oriente próximo,


a escrita era a especialidade e o privilégio dos escribas, 1
Mestre e doutorando em
espécie de funcionários da administração real que História (UFMG).
Professor substituto da
disciplina História Antiga
da Universidade Federal de
Minas Gerais.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 47-61, maio. 2006


50
contabilizavam a economia e controlavam a vida social
do estado. Essa escrita visava constituir os arquivos
mais ou menos secretos dos palácios reais. Nos
quadros das instituições da pólis, essa função da escrita
altera-se radicalmente: aí, não é mais o privilégio de
uma casta, nem o segredo de uma classe de escribas
trabalhando para o soberano, mas torna-se um
elemento de ta koina, as coisas públicas, um
instrumento de publicidade. Doravante, tudo o que
interessa à comunidade tende a cair no domínio
público por meio da escrita. Daí que as regras do jogo
político vão pressupor, inevitavelmente, o livre debate,
a discussão pública, a argumentação contraditória – os
cidadãos regulamentarão os negócios da cidade ao
termo de um debate público em que cada um pode
intervir livremente para desenvolver seus argumentos.
Nesses debates públicos, o logos não exprime
simplesmente os discursos pronunciados, mas
também, e espetacularmente, a faculdade de
argumentar que define o homem como ser dotado de
razão, como “animal político” (VERNANT, 1973, p.
160-162).

A palavra torna-se o instrumento político por


excelência, com extraordinária preeminência sobre
todos os outros instrumentos do poder criados pela
pólis. A esse poder da palavra, os gregos associarão uma
força divina própria – a força da persuasão (peiqw)
E esse novo poder da palavra não reside mais no
caráter ritual, mas na nova dimensão instaurada pela
racionalidade,

supõe um público ao qual ela se dirige como a um juiz que decide


em última instância, de mãos erguidas, entre os dois partidos que
lhe são apresentados; é essa escolha puramente humana que mede
a força de persuasão respectiva dos dois discursos, assegurando a
vitória de um dos oradores sobre seu adversário. (VERNANT,
1986, p. 34-35)

BH, v. 2, n.7, p. 47-61, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


51
A função política do logos adquire toda a sua eficácia
quando a retórica e a sofística empreendem a análise
das formas do discurso como instrumento de vitória
nas lutas da Assembléia e dos tribunais (VERNANT,
1986, p. 35).

Como professores profissionais de retórica, os sofistas


facilmente encontravam uma audiência pronta na
turbulenta democracia ateniense e ajudavam àqueles
que apresentavam mais persuasivamente seus próprios
argumentos a tirar vantagens do agnosticismo moral
predominante. O programa dos sofistas, em grande
medida, contava com técnicas para dispor argumentos
contrários a respeito de questões públicas, com a
suposta implicação de que ambos os lados poderiam
ser sustentados com igual segurança (JONSEN;
TOULMIN, 1988, p. 58-74).

O que se pretende mostrar nesse artigo são as


“inversões de atitudes provocadas pelo poder do verbo
e pela sua capacidade de influenciar as decisões e
práticas coletivas” (BACZKO, 1985, p. 300),
proporcionadas pelo discurso retórico dos atenienses
durante o seu imperialismo no século V a.C., conforme
a História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides. Segundo
Baczko, “com o advento da democracia, a assembléia
deixa de ser um lugar onde se exercem os ritos e onde
são reproduzidos os mitos, para se tornar lugar de
deliberação e confronto de rivais que visam tanto ao
poder efetivo como ao controlo dos símbolos”
(BACZKO, 1985, p. 300).

Mas o que é a imaginação social? Na perspectiva de


Baczko, esta não se confunde com o ilusório, não é
uma simples faculdade produtora de ilusões, sonhos e

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 35-45, maio. 2006


52
símbolos. A imaginação social é, grosso modo, uma
criadora, uma potencializadora (ou neutralizadora) de
ações sociais. As ações sociais são efetivamente guiadas
pelo sistema de representações que cada sociedade
produz. Elas modelam comportamentos, mobilizam
energias e legitimam violências. A imaginação social é
um fenômeno ao qual competem funções reais
múltiplas e complexas na vida coletiva e, em especial,
no exercício do poder. Para o poder, o domínio do
imaginário e do simbólico é um importante lugar
estratégico. Portanto, o imaginário social intervém em
qualquer exercício de poder, principalmente do poder
político. Exercer um poder simbólico significa criar ou
intensificar uma dominação efetiva pela apropriação
dos símbolos e garantir a obediência pela conjugação
das relações de sentido e poderio.2

Diz-nos esse historiador do imaginário social que “ao


produzir um sistema de representações que
simultaneamente traduz e legitima a sua ordem,
qualquer sociedade instala também ‘guardiães’ do
sistema que dispõem de uma certa técnica de manejo
das representações e símbolos” (BACZKO, 1985, p.
299).

Pode-se dizer que a retórica, como técnica de


argumentação e persuasão, é um instrumento de
controle do simbólico, fazendo parte de um savoir-faire
– a elaboração e aprendizagem de práticas e técnicas de
manejamento de imaginários sociais.

A retórica, por seu poder de persuasão, é um dos


instrumentos de controle do simbolismo coletivo
surgidos entre os gregos. O próprio Aristóteles, em sua
obra Retórica, “passa sistematicamente em revista as
técnicas de argumentação e persuasão, realçando a

2
Ver: BACZKO, op. cit.

BH, v. 2, n.7, p. 47-61, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


53
influência exercida pelo discurso sobre as ‘almas’ e,
nomeadamente, sobre a imaginação e os juízos de
valor” (BACZKO, 1985, p. 300-301).

Tucídides, que nasceu por volta de 460 a.C. e morreu


por volta de 400 a.C., pertencia à aristocracia ateniense
e deve ter sido educado de maneira condizente com
sua condição social, sendo influenciado por várias
figuras em destaque daquele período de Atenas:
Péricles, o filósofo Anaxágoras, o político e orador
Antifon, os poetas trágicos Sófocles e Eurípides, o
historiador Heródoto, entre outros. Mas na construção
de sua obra, que inovou substancialmente o método
histórico, procuraremos pôr em evidência as
influências dos sofistas Górgias e Protágoras, bem
como do pitagorismo (CURY, 1986, p. 13-17).

Na obra de Tucídides, é freqüente o uso de antíteses,


assonâncias e outros recursos estilísticos muito ao
gosto dos sofistas do século V a.C., sobretudo de
Górgias.

Nesta análise, tentaremos delinear as repercussões das


principais figuras retóricas de estilo criadas e
propagadas por aqueles sofistas, em uma passagem da
obra de Tucídides: o diálogo de Melos. Este episódio, um
diálogo que sentencia à morte e à escravidão os
habitantes da ilha de Melos, possuindo uma grande
força persuasiva, constitui um dos principais atrativos
da História de Tucídides e um grande momento de
controle e manipulação do simbolismo coletivo.

No décimo sexto ano da guerra do Peloponeso, os


atenienses realizaram uma expedição contra a ilha de
Melos. Os mélios eram colonos lacedemônios e se
recusavam a obedecer aos atenienses, ao contrário dos
demais ilhéus. A intenção dos atenienses era compeli-

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 47-61, maio. 2006


54
los a aderir ao Império, na condição de súditos,
pagando os devidos tributos. Sendo assim, os
atenienses passaram a devastar as suas terras, o que fez
com que os mélios saíssem abertamente para a guerra.
Diante disso, os atenienses acamparam no território
mélio, com um dispositivo militar de dois mil e
setecentos hoplitas, trezentos arqueiros a pé e vinte
montados. Mas os comandantes atenienses Cleômedes,
filho de Licômedes, e Tísias, filho de Tisímacos, antes
de causar outros estragos às terras mélias, mandaram
emissários aos mélios, levando propostas para um
entendimento. Os mélios não levaram os emissários
atenienses à presença do povo, mas os mandaram
transmitir às autoridades locais e a outras poucas
pessoas a mensagem que traziam3.

Analisemos os discursos proferidos pelos atenienses. A


idéia da psicagogia remonta ao pita-
gorismo. Funda-se na sedução irracional que a palavra,
sabiamente usada, exerce sobre a alma do ouvinte. Sua
essência reside na força de uma persuasão psicológica,
irracional. Mais tarde, preocupando-se com o estudo
da eficácia do logos, a força psicológica da palavra,
Górgias reaborda a figura retórica da persuasão, a
qual faz crer que as coisas são diferentes do que
realmente são, conforme as intenções do autor. No
que diz respeito à retórica, Górgias insiste na tarefa de
“subjugar” [douloun] os outros por meio da
apresentação alterada da realidade. É notório e
abundante o uso do recurso da persuasão psicológica
pelos emissários atenienses no diálogo com os mélios.
3
TUCÍDIDES, Livro v, c. Já de início, os atenienses dizem:
84, p. 281. Para maior
facilidade da referência
documental nesse artigo,
Já que nossas propostas não serão feitas diante do povo, para evitar
será utilizada daqui em que a maioria se deixe levar pelo efeito de um discurso seguido,
diante a forma abreviada ouvindo rapidamente argumentos sedutores sem poder replicar
HGP (História da Guerra (percebemos que nos colocais diante de poucas pessoas com esta
do Peloponeso) em
sobrescrito, seguida pela
intenção). (HGP, L. v, c. 85, p. 282)
indicação do livro, capítulo
e número da página
referente a essa edição.

BH, v. 2, n.7, p. 47-61, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


55
Logo a seguir, replicam os atenienses: “ou se tendes
outro propósito além de deliberar sobre a salvação de
vossa cidade à luz dos fatos evidentes diante de vossos
olhos, pararemos; se, ao contrário, este último é o
vosso objetivo, falaremos” (HGP, L. v, c. 87, p. 282).

Mais à frente, os atenienses aprimoram o poder


persuasivo da palavra ao dizer na negativa o que
querem deixar bem claro para os mélios quando dizem
que:

de nossa parte, então, não usaremos frases bonitas, dizendo que


exercemos o direito de dominar porque derrotamos os persas, ou
que estamos vindo contra vós porque fomos ofendidos,
apresentando num longo discurso argumentos nada convincentes;
não julgamos conveniente, tampouco, que afirmeis que não vos
juntastes a nós na guerra por serdes colonos dos lacedemônios, ou
que desejeis convencer-nos de que não nos ofendestes de forma
alguma. (HGP, L. v, c. 89, p. 282)

Nesta passagem, os atenienses também usam o


conceito protagórico de orthoépeia [orqoepeia], que,
de um lado, é a propriedade de encontrar palavras
convenientes à expressão, e, de outro, é a própria
potência do raciocínio, pela qual sabemos que
Protágoras competia com Péricles na procura do
discurso mais correto. O ideal da retórica protagórica é
expresso na célebre fórmula “tornar mais potente o
discurso menos válido” (PLEBE, 1978, p. 9-10).

Ainda nessa passagem, podemos vislumbrar o uso do


conceito de conveniente [prepon], que se assemelha
ao de orthoépeia. Górgias, ao retomar o conceito de
oportunidade retórica [kairoV], ajustada ao tipo de
ouvinte e aos fins do orador, agrega a esse conceito o
de conveniente, no sentido da coerência das palavras
com o conteúdo.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 47-61, maio. 2006


56
É abundante, também, nesse diálogo o recurso à figura
retórica da refutação , bem ao gosto de
Górgias. Como exemplo, poderíamos citar as várias
passagens em que os atenienses refutam os mélios com
a intenção de convencê-los de que é melhor para
ambas as partes que os mélios sejam antes inimigos
dominados do que amigos neutros. A certa altura do
diálogo, os mélios retrucam: “Então vós não
consentiríeis em deixar-nos tranqüilos e em sermos
amigos em vez de inimigos, sem nos aliarmos a
qualquer dos lados?” (HGP, L. v, c. 94, p. 283). E os
atenienses refutam: “Não, pois vossa hostilidade não
nos prejudicaria tanto quanto vossa amizade; com
efeito, aos olhos de nossos súditos esta seria uma prova
de nossa fraqueza, enquanto o vosso ódio é uma
demonstração de nossa força” (HGP, L. v, c. 95, p.
283).

Refutação que teria o efeito de persuadir os mélios a se


convencerem de que dessa forma evitariam a sua
própria destruição, muito pior do que a dominação,
bem como manter para os atenienses uma boa
reputação aos olhos de seus súditos.

Outra figura retórica utilizada pelos emissários


atenienses é a antítese . Dizem os
atenienses: “Não percebeis, então, que o interesse
próprio anda lado a lado com a segurança, enquanto é
perigoso cultivar a justiça e a honra? (Em geral os
lacedemônios se atrevem o mínimo possível a
enfrentar este perigo.)” (HGP, L. v, c. 107, p. 285).

Neste ponto do diálogo, os atenienses estão se


referindo aos lacedemônios. Para mostrar aos mélios
que eles, os mélios, não obterão a ajuda dos
lacedemônios, os atenienses contrapõem a atitude
provável dos lacedemônios à atitude improvável, isto é,

BH, v. 2, n.7, p. 47-61, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


57
os lacedemônios vão preferir a segurança do interesse
próprio (não socorrendo os mélios) ao perigo de
cultivar a justiça e a honra (socorrendo os mélios).

Esta figura também remonta ao pitagorismo e é a raiz


fundamental das antilogias de Protágoras: os
discursos duplos e a técnica da
contradição . O emprego da figura da
antítese procura antes despertar as reações
psicológicas do ouvinte do que convencê-lo com a
concisão do raciocínio, conformando-se, portanto, à
idéia de psicagogia de Pitágoras (PLEBE, 1978, p. 4).

Provavelmente, o diálogo de Melos deve ser uma


construção semi-ficcional, um exercício retórico
produzido por Tucídides a serviço de sua história
política. No todo, o diálogo apresenta uma forte
repercussão das antilogias, tal como os sofistas se
compraziam em opor dois ou mais oradores na mesma
questão.

No caso da Revolta de Mitilene, Tucídides tem a


oportunidade de expor a enorme dificuldade de Atenas
em tratar os aliados com justiça durante a guerra. E em
outros discursos de sua obra, ele evidencia a
incompatibilidade entre guerra e justiça (JAEGER,
1986, p. 316). Porém, devemos estar atentos à
concepção de justiça que anima e subjaz a habilidade
retórica dos emissários atenienses no diálogo travado
na ilha de Melos.

A idéia de justiça instaurada por este diálogo é


semelhante à contida na obra Argumentos Duplos do
sofista Górgias. De acordo com este pensador, não há
justiça “absoluta”. As atitudes tomadas em relação aos
inimigos devem ser basicamente diferentes daquelas
tomadas em relação aos amigos. Fraudar, roubar ou

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 47-61, maio. 2006


58
mentir para os inimigos não é um ato meramente
permissível, mas um ato justo. E mesmo pode ser justo
enganar um amigo, se isso é feito para o próprio bem
dele (JONSEN; TOULMIN, 1988, p. 60).

Ainda nessa obra, Górgias mostra como a técnica


sofística consolida a crença de que nada
verdadeiramente geral pode ser dito no que concerne à
ética, de modo que não há nada que resta considerar, à
parte as situações e casos particulares. Por isso a justiça
é “relativa”. Ela é evidente somente em situações
concretas: portanto, a obrigação fundamental deve ser
dizer ou abster-se de dizer, fazer ou abster-se de fazer
a coisa certa na hora certa (JONSEN; TOULMIN,
1988, p. 60).

Assim, os sofistas dão enorme importância à


conveniência dos atos. O termo retórico kairos
[kairoV], ocasião oportuna, simboliza esta técnica: um
orador deve reconhecer nas reações de seus ouvintes o
momento certo de introduzir um novo ponto
(JONSEN; TOULMIN, 1988, p. 60).

Nessa mesma lógica de justiça, se é justo enganar um


amigo para o próprio bem dele, os emissários
atenienses pensam que é justo dominar – enganando –
os mélios para a própria salvação dos mélios, quando
dizem o seguinte:

Mostraremos claramente que é para o benefício de nosso império,


e também para a salvação de vossa cidade, que estamos aqui
dirigindo-vos a palavra, pois nosso desejo é manter o domínio
sobre vós sem problemas para nós, e ver-vos a salvo para a
vantagem de ambos os lados. (HGP, L. v, c. 91, p. 283)

Essa idéia de justiça, tomada até às últimas


conseqüências, deve instaurar algo que lembra a hybris

BH, v. 2, n.7, p. 47-61, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


59
, a imoderação, o excesso. O potencial de
racionalidade contido no logos encontra o perigo da
hybris ao se confluir com o tratado retórico gorgiano
e a concepção de justiça que ele prega. E vemos o ideal
de racionalidade se conspurcar. Noutra altura do
diálogo, os atenienses replicam:
Dos deuses nós supomos e dos homens sabemos que, por uma
imposição de sua própria natureza, sempre que podem eles
mandam. Em nosso caso, portanto, não impusemos esta lei nem
fomos os primeiros a aplicar os seus preceitos; encontramo-la
vigente e ela vigorará para sempre depois de nós; pomo-la em
prática, então, convencidos de que vós e os outros, se detentores da
mesma força nossa, agiríeis da mesma forma. (HGP, L. v, c. 105, p.
285)

E a hybris acontece: “Os atenienses mataram todos os


mélios em idade militar que capturaram, e reduziram
as crianças e mulheres à escravidão” (HGP, L. v, c. 116,
p. 288).

Seguindo o preceito de Aristóteles, que em sua


Retórica diz que “o que torna um homem um sofista
não é a sua habilidade retórica, mas seu propósito
moral” (ARISTÓTELES apud JONSEN; TOULMIN,
1988, p. 73), poderemos dizer que os emissários
atenienses, pelo menos no caso do diálogo de Melos,
são terríveis sofistas, posto que, além de apresentarem
uma contínua habilidade retórica, estão imersos nas
concepções de moral e justiça alardeadas pelo sofista
Górgias. A respeito do que é justo, os atenienses
dizem: “pois deveis saber tanto quanto nós que o
justo, nas discussões entre os homens, só prevalece
quando os interesses de ambos os lados são
compatíveis, e que os fortes exercem o poder e os
fracos se submetem” (HGP, L. v, c. 89, p. 282).
A concepção de justiça “relativa” gorgiana, repercutida
no discurso dos emissários atenienses na ilha de Melos,

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 47-61, maio. 2006


60
levou à hybris porque ela obedece ao princípio da
seleção, isto é, do direito do mais forte, ao colocar uma
questão que lembra o totalitarismo: quem tem o direito
de sobreviver, quem está condenado a desaparecer, por
escolha e ofício humanos.

Deve ser justamente esta concepção de justiça que


tornou a habilidade retórica dos emissários e o cerco
final um instrumento da hybris.

Não obstante a recusa dos mélios em obedecer aos


atenienses, – o que provocou a eliminação daquele
povo pela morte ou redução à escravidão –, não
obstante a hybris cometida pelos atenienses, a
repercussão das técnicas retóricas na narrativa de
Tucídides demonstra a habilidade dos atenienses em
fazer um uso eficaz do logos como instrumento para o
controle do poder simbólico. O império que os
atenienses construíram após a guerra contra os Persas,
subjugando uma miríade de póleis, fora fruto não
somente da força bruta, mas também de um domínio
do campo do imaginário.

O diálogo de Melos é a única vez em que Tucídides, em


sua obra, para colocar a questão conflituosa entre força
e direito, usa a forma dialogada das disputas sofísticas,
em que os adversários se opõem, argumento a
argumento. E os mélios não são nada inferiores aos
atenienses no que concerne ao uso da palavra, à
habilidade persuasiva. Mesmo assim, os atenienses
cometem hybris, deixando claro a máxima que
propalam: “Os fortes exercem o poder e os fracos se
submetem”, a qual reflete a justiça gorgiana.

BH, v. 2, n.7, p. 47-61, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


61
REFERÊNCIAS
BACZKO, Bronislau. Imaginação social. In: Enciclopédia Einaudi, vol. 5,
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985.
CURY, Mário da Gama. Introdução a Tucídides, História da Guerra do Peloponeso.
Brasília: UNB, 1986.
FINLEY, Moses I. O império ateniense: um balanço. In: Economia e sociedade
na Grécia antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
GÓRGIAS. Elogio de Helena. In: Testemunhos e fragmentos. Tradução de
Manoel Barbosa e Inês de Ornellas e Castro. Edições Colibri. 1993.
GÓRGIAS. Fragmentos. In: Testemunhos e fragmentos. Tradução de Manoel
Barbosa e Inês de Ornellas e Castro. Edições Colibri. 1993.
JAEGER, Werner. Tucídides como pensador político. In: Paidéia - A
formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
JONSEN, Albert R.; TOULMIN Stephen, From geometry to rhetoric. In:
The abuse of casuistry: a history of moral reasoning. Los Angeles: University
of California Press, 1988.
MOSSÉ, Claude. Atenas: A história de uma democracia. Brasília: Unb, 1997.
PARELMAN, C. O império retórico. Portugal: Edições Asa, 1993.
PLATÃO. A república. Tradução, notas e introdução de PEREIRA, Maria
Helena da Rocha. Lisboa: edições 70.
PLEBE, Armando. Breve história da retórica antiga. São Paulo: Edusp, 1978.
TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Brasília: UNB, 1986.
VERNANT, Jean-Pierre. Geometria e astronomia esférica na primeira
cosmologia grega. In: Mito e pensamento entre os Gregos: estudos de psicologia
histórica. São Paulo: Difel, 1973.
VERNANT, Jean-Pierre. O universo espiritual da polis. In: As origens do
pensamento grego. São Paulo: Difel, 1986.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 47-61, maio. 2006


Provas ilicitamente obtidas e o Juízo de
Adequabilidade à luz do caso concreto
65
Provas ilicitamente obtidas e o Juízo de
Adequabilidade à luz do caso concreto

Luciana das Graças dos Santos *

Resumo: No presente artigo buscamos (re) discutir o problema das


"provas obtidas ilicitamente", no intuito de levantar um raciocínio
crítico acerca das correntes dominantes no trato da matéria,
sobretudo no que se refere à teoria da proporcionalidade que vem
ganhando espaço nos nossos tribunais. Buscamos ainda, ao final,
propor uma nova perspectiva para solucionar a questão da
admissibilidade ou não dessas provas no processo penal, como
fundamentos de uma decisão condenatória, tendo em conta a noção
de adequabilidade da pretensão invocada no caso concreto.

Palavras-chave: Direito Processual Penal; provas obtidas por meios


ilícitos; direitos fundamentais; teoria da proporcionalidade; Robert
Alexy; juízo de adequabilidade.

Abstract: This article manages to (re)discuss the problem of "


illegally obtained proofs", in the sense of arising a critical path of
thought about the different legal streams, mainly around the theory
of balancing, that is gaining prestige in Brazilian Courts. The article,
in its final part, suggests a new perspective on solving questions
about the admissibility of that sort of proofs in criminal procedures,
as fundaments of a condemnatory decision, taking in account the
suitability of the claim invoked.

Keywords: Criminal Procedures. Illegally obtained proofs.


Fundamental Rights. Alexy's Balancing Theory. Judgement on
suitability.

1 – COLOCAÇÃO DO PROBLEMA
Quando o tema é provas obtidas por meios ilícitos, a
discussão se torna bastante polêmica. A doutrina está
longe de chegar a um consenso; nos tribunais, apesar
de algumas teorias virem ganhando força na atualidade,
a questão ainda gera controvérsias. *
Acadêmica do Curso de
Direito da Faculdade
Estácio de Sá de Belo
Horizonte.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.6, p. 59-80, nov. 2005


66
1
Afastamos aqui a discus- Parte da doutrina e da jurisprudência, em nome da
são acerca da aceitabilidade
da prova obtida ilicitamente defesa dos “valores sociais”, se insurge para sustentar
quando favorável ao acusa-
do. Quanto a isso a dou-
a idéia de que, uma vez cometido o crime, o agente
trina tem se mostrado deve ser punido a todo e qualquer custo, sustentando-
bastante convergente no
sentido de abrandar a se, assim, que a introdução das provas ilicitamente
aplicação da vedação para
aceitar a sua introdução no
obtidas para fundamentar a condenação do réu é
processo, em nome do plenamente aceitável, dada a necessidade de se
chamado princípio do favor
rei. Afinal, ainda que por reprimir as condutas desaprovadas pela sociedade e
falta de prova, o Código de tipificadas pelo Código Penal1. Argumenta-se, nesse
Processo Penal manda que
o réu seja inocentado. sentido, que o interesse da Justiça em ver punido o
Nesse sentido, o que ainda
tem provocado grande
infrator, por si só, tem o condão de suprimir da prova
discussão é a possibilidade a sua ilegalidade, apenas devendo-se sujeitar o
de introdução de provas
obtidas por meios ilícitos responsável pela ilegalidade às penas que a lei por
para fins de fundamentar a
condenação do acusado.
ventura cominar 2 . Essa é a teoria denominada “male
Esta será nosso objeto de captum, bene retentum” (mal colhida, mas bem
estudos. A respeito da
admissibilidade em favor da conservada), defendida por Franco Cordeiro, em
defesa, bem densificou o
jurista Sérgio Demoro
Roma, Carnelutti, na Itália, e Rosenberg, na
Hamilton, em As Provas Alemanha3.
Ilícitas, a Teoria da Propor-
cionalidade e a Autofagia do
Direito: "No entanto, a
prova ilícita, quando pro
De outro lado, os mais radicais despontam-se para
reo, vem sendo admitida rechaçar absoluta e radicalmente a sua aceitação no
com tranqüilidade não só
na doutrina como perante a processo penal4, sob o argumento de que “o direito
jurisprudência, em home- não pode prestigiar comportamento antijurídico, nem
nagem ao direito de defesa
e ao princípio do favor rei. consentir que dele tire proveito quem haja
Tal posição mitiga, sem
dúvida, o rigor da inad-
desrespeitado o preceito legal, com prejuízo alheio;
missão absoluta das provas por conseguinte, o órgão judicial não reconhecerá
ilícitas. Em tais casos, no
meu entendimento, o sujei- eficácia à prova ilegalmente obtida” 5.
to estaria em situação de
verdadeiro estado de
necessidade, causa exclu- E, numa linha mais flexível, há os que acreditam e
dente da antijuridicidade,
vendo-se obrigado ao uso defendem que a questão deva ser analisada melhor à
de prova ilícita em defesa
da sua liberdade". (Revista
luz do caso concreto, já que toda e qualquer resposta
do Ministério Público do pré-concebida para solucionar os problemas da
Estado do Rio de Janeiro,
nº 11, pág. 253, jan./jun. sociedade hodierna, especialmente o das “provas
2000). A esse respeito, vide
também: Luís Gustavo
ilícitas”, esbarra no sustentáculo do Estado de Direito
Grandinetti Castanho de da atualidade, o paradigma democrático6 .
Carvalho, O processo penal em
face da Constituição, 2ª edição.
Rio de Janeiro: Editora

BH, v. 2, n.7, p. 63-86, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


67
Estas se nos apresentam como as três principais Forense, 1998, pág. 49; Luiz
Flávio Gomes e Raúl
correntes doutrinárias que buscam solucionar o Cervini, Interceptação
problema da aceitabilidade ou não das provas telefônica. São Paulo: Edi-
tora Revista dos Tribunais,
ilicitamente obtidas quando o órgão julgador pretende, 1997, pág. 147; Daniel
a partir delas, fundamentar o seu convencimento Sarmento, A ponderação de
interesses na Constituição
condenatório7. Federal. Rio de Janeiro:
Editora Lumen Juris, 2002,
pág. 180.
No presente artigo, buscamos reconstruir a discussão, 2
BARBOSA MOREIRA,
trazendo à baila os argumentos levantados por aquelas José Carlos. A Constituição
correntes dominantes, contrapondo-os ao paradigma e as provas ilicitamente
obtidas, in Temas de
de Estado Democrático de Direito, e, ao final, Direito Processual, Sexta
Série. São Paulo: Editora
propondo uma nova perspectiva para o tratamento da Saraiva, 1997, pág. 109.
matéria. 3
GRINOVER, Ada
Pellegrini. Provas ilícitas, o
Observe-se, de início, que temos como prova processo em sua unidade
II, pág. 173, Editora
ilicitamente obtida aquela cujo meio utilizado para sua Forense, Rio de Janeiro,
1984.
apreensão ofende garantias fundamentais asseguradas
na Constituição. E note-se que aqui estamos a tratar de 4
É o que defendeu o
Ministro do Supremo
garantias fundamentais que sejam passíveis de afetação Tribunal Federal, Celso
pela atividade coletora de provas, quais sejam, o sigilo Mello, in: Ação Penal nº.
307-3 - Distrito Federal -
de correspondências, a intimidade e a vida privada do (Voto preliminar sobre
ilicitude da prova), veja-se:
indivíduo, a inviolabilidade do domicílio e outras. "A norma inscrita no artigo
5º, LVI, da Lei
Fundamental promulgada
Partimos, então, da idéia de que prova obtida em 1988, consagrou, entre
ilicitamente não é simplesmente aquela que ofende nós, com fundamento em
sólido magistério
normas de direito material ou processual, antes aquela doutrinário (Ada Pellegrini
Grinover, Novas tendências do
que lesa garantia fundamental assegurada na direito processual, Forense
Constituição8. Universitária, 1990, p. 60-
82; Mauro Cappelletti,
Efficacia di prove
Tendo em vista nossa consideração inaugural, illegittima-mente ammesse
e compor-tamento della
passaremos à análise dessas três correntes a que nos parte, Rivista di Diritto Civile,
p. 112, 1961; Vicenzo
referimos, e que, não obstante tenham se dedicado Vigoriti, Prove illecite e
com afinco ao esclarecimento da matéria, estão longe costituzione, Rivista de
Diritto Processuale, p. 64 e 70,
de solucionar o problema, se é que se pode falar em 1968), o postulado de que a
uma solução efetivamente infalível quando se está a prova obtida por meios
ilícitos deve ser repudiada -
tratar da difícil tarefa da interpretação do direito. e repudiada sempre - pelos
juízes e Tribunais, 'por mais
relevantes que sejam os
fatos por ela apurados, uma

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 63-86, maio. 2006


68
vez que se subsume ela ao E para que nossas proposições não se percam no vazio
conceito de inconstitucio-
nalidade'" (G, op. cit., p. da abstração, abordaremos a questão sob o enfoque
62). dado pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal,
5
Nas palavras do jurista Sepúlveda Pertence, quando da apreciação do HC
Alexandre Araújo de Souza,
in: A inadmissibilidade, no 80.949-9, de 30/10/20019, cotejando-a com outros
processo penal, das provas
obtidas por meios ilícitos:
dados extraídos das fontes jurisprudencial e
uma garantia absoluta?, doutrinária.
Revista da EMERJ, V. 7, nº
27, 2004.

6
BARBOSA MOREIRA,
Pois bem, ao tomarmos o referido acórdão à análise,
José Carlos. A Constituição nos deparamos com três indagações que julgamos
e as provas ilicitamente
obtidas, in: Temas de Direito merecer um trabalho cuidadoso (tal sua relevância que
Processual, 6ª série. São
Paulo: Editora Saraiva,
figuraram como objeto de apreciação do Supremo
1997, pág. 109. Tribunal Federal), e, por isso, buscaremos melhor
7
Não descartamos a esclarecê-las tendo por base cada uma das três
importância ou o mérito
das demais correntes exis-
correntes a que nos referimos alhures.
tentes, contudo considera-
mos estas três como que
merecem nossa reflexão, São essas as indagações:
dado, sobretudo, o fato de
que conseguem condensar
bem toda a amplitude do
problema. Para quem se
Em que medida deve ser levada em conta a natureza da
interesse por buscar outras infração para se sustentar a aceitação de provas obtidas
correntes, indicamos a
pesquisa sobre a teoria dos ilicitamente para fins de fundamentar a condenação do
"fruits of the poisonous
tree", a qual, apesar de
acusado? Qual o tratamento adequado da questão em
guardar algumas seme- relação aos acusados por crimes de alta reprovação
lhanças com a segunda
corrente que aqui apresen- social, ou seja, quando se tem em vista a prática de
tamos, possui alguns ele-
mentos que merecem ser
uma conduta tida como de extrema gravidade?
estudados. Para esta cor-
rente tanto as provas ile-
gítimas quanto as ilícitas Tendo em vista este primeiro problema, como fica a
ofendem ao Direito, se
considerado como um todo
questão do princípio da não culpabilidade (ou
sistemático, por isso não princípio da inocência)?
merecem ser acatadas no
processo, nem as que delas
derivam (teoria dos frutos
da árvore envenenada). Que tipo de tratamento deve ser dispensado ao
Teoria de origem norte-
americana que vem
interlocutor insciente, na hipótese de gravações
ganhando espaço no Brasil, telefônicas (não autorizadas) realizadas por um dos
inclusive nos tribunais
superiores a exemplo do interlocutores?
STF - HC 76.641-SP, HC
74.116-SP (e outros).
A esse respeito, indicamos a

BH, v. 2, n.7, p. 63-86, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


69
2 – ADMISSIBILIDADE: O CLAMOR PELA leitura do artigo de Ana
PUNIÇÃO DO CRIME. Letícia Queiroga de Mattos:
Apontamentos crítico à
ponderação de valores
adotada pelo ST, in: O
Quanto à primeira indagação, não é difícil concluir: Supremo Tribunal Federal
essa é a típica resposta formulada pela corrente que Revisitado. BH: Ed.
Mandamentos, 2003, p. 105
defende a idéia de que a conduta criminosa deve ser - obra de qualidade
punida a qualquer custo, quanto mais quando se tem inestimável elaborada sob a
coordenação do Prof.
em tela um crime de alta reprovabilidade social. A Álvaro Ricardo Souza
Cruz, Procurador da
propósito, esse é um argumento bastante utilizado República em Minas
ainda hoje, principalmente, por aqueles mais Gerais, em mais uma de
suas brilhantes atuações
desavisados sobre o atual contexto de Estado como professor da PUC -
Democrático de Direito. Minas, em que se buscou
problematizar a atuação
daquela corte no ano de
2002, resultando numa
Nesse sentido, levanta-se o argumento de que os importante contribuição
crimes mais gravosos devem ser punidos com maior para a construção da
identidade constitucional
rigor pelo Estado, e, a partir daí, busca-se justificar a brasileira.
redução das garantias individuais do acusado, tendo 8
É grande a divergência
por base a equivocada convicção de que, quanto maior entre os estudiosos da
matéria sobre o verdadeiro
o rigor da punição, menor será a prática dos crimes significado da expressão
tachados pela sociedade como especialmente "provas ilícitas". Alguns
autores consideram haver
repugnantes. distinção entre provas
ilícitas e provas ilegítimas,
sendo que ambas
De um lado, tem-se que os intentos criminosos dos compõem o gênero provas
ilegais. Contudo,
infratores diminuem automaticamente na medida em preferimos adotar a
que se aumenta a gravidade das penas cominadas (e expressão "provas obtidas
por meios ilícitos" como
aplicadas); de outro, tem-se que, em face dessas sendo aquelas cujo meio
condutas tidas como excessivamente reprováveis, o utilizado para sua obtenção
atenta contra garantias
Estado deva abrir mão das garantias asseguradas aos constitucionais. Sobre esta
diferenciação, o
cidadãos em prol do bem-estar da sociedade que clama constitucionalista
pela punição desses crimes. E ainda, corroborando Alexandre de Moraes
afirma: "As provas ilícitas
este último argumento, tem-se uma sociedade não se confundem com as
“alienada” pela influência sensacionalista de parte da ilegais e as ilegítimas. (...) as
provas ilícitas são aquelas
mídia, que insiste em pregar a errônea concepção de obtidas com infringência ao
direito material, as provas
que o Direito Penal tem a incumbência de diminuir a ilegítimas são as obtidas
criminalidade por meio do rigorismo na cominação e com desrespeito ao direito
processual. Por sua vez, as
na aplicação das penas10. provas ilegais seriam o
gênero do qual as espécies
são as provas ilícitas e as
ilegítimas.)" In: Direito

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 63-86, maio. 2006


70
Constitucional, 15ª Edição. A idéia de que o cidadão acusado pela prática de um
São Paulo: Ed. Atlas, 2004,
p. 126. A nós, se apresenta
determinado crime tido como mais gravoso aos olhos
como mais correto afirmar da sociedade, ou do Direito mesmo, deva ser tratado
que é o modo de obtenção
da prova que é passível de
de forma distinta não deve superar os limites que a lei
ilicitude, não a prova em si. estabelece para tal distinção. E aqui nos referimos à
Daí a utilização da
expressão "provas obtidas
própria Constituição. Essa estabelece um certo
por meios ilícitos" e não tratamento diferenciado a ser dispensado aos crimes
"provas ilícitas"; os meios de
obtenção é que podem ser que a própria vontade constituinte elegeu como mais
ilícitos, porque ofendem
garantias fundamentais
gravosos, impedindo, assim, a concessão de graça,
consagradas na anistia e fiança quando se tem em vista os crimes de
Constituição.
tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e aqueles
9
Trata-se de Habbeas Corpus considerados como hediondos (art.5º, XLIII),
impetrado por Fernando
Augusto Fernandes (e contudo, em nenhum momento deixou ao legislador
outros) para o fim de obter infraconstitucional a possibilidade de alargar a
o relaxamento da prisão
temporária decretada em abrangência de tais restrições.
investigação criminal pela
Polícia Federal do Rio de
Janeiro; impugnar a inserção A par com esse raciocínio, seria dizer que a simples
de provas ilícitas - gravações
telefônicas e ambientais sem prática de um crime que seja (aos olhos da sociedade)
observância do art. um crime mais gravoso, pode ser tomada como
5º,LXIII, no processo penal
do qual se constituía como justificativa para se aceitar a introdução de provas
réu e postular o seu
desentranhamento dos
obtidas ilicitamente nos autos do processo a fim de
autos, sob a alegação de que que o acusado seja, por isso, condenado.
tais provas foram colhidas
com afronta ao seu direito
de silêncio. O impetrante O Prof. Barbosa Moreira, definindo essa corrente
alega que as gravações
realizadas pela Polícia como uma tese “radical”, comenta:
Federal, quando de uma
'conversa informal', fora
realizada sem a sua
De acordo com a primeira tese, devem prevalecer, em qualquer
autorização, por isso, com caso, o interesse da Justiça no descobrimento da verdade, de sorte
desrespeito ao seu direito de que a ilicitude da obtenção não subtraia à prova o valor que possua
silêncio.
como elemento útil para formar o convencimento do juiz, a prova
O Ministro Relator será admissível, sem prejuízo da sanção a que fique sujeito o
Sepúlveda Pertence optou infrator.11 (grifamos)
por não adotar para o caso a
teoria da proporcionalidade
para solucionar o problema, Ora, aceitar tal argumento seria aceitar que o cidadão,
emitindo seu voto no
sentido de deferir no momento em que pratica um crime de natureza
"parcialmente o habeas
corpus para declarar a
gravosa, deixa de ocupar a posição de um cidadão de
ilicitude e determinar o direitos para ocupar a posição de um indivíduo à
desentranhamento dos margem de qualquer ordem jurídica constitucional. É
autos da fita K-7 e do laudo
pericial de 04.04.1999 ".
O grande mérito de

BH, v. 2, n.7, p. 63-86, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


71
dizer, o cidadão, aquele que goza de garantias
constitucionais fundamentais, deixaria de sê-lo no Pertence nessa decisão
contrariando uma
momento em que “optasse” pela prática de um desses tendência muito forte em
crimes tidos como essencialmente graves. relação à adoção da teoria
da ponderação, está em seu
ceticismo para com as
Ainda sem tomar partido por qualquer das correntes respostas pré-formuladas, a
adoção indiscriminada de
apresentadas, podemos afirmar que o afastamento da teorias estrangeiras, sem se
vedação constitucional simplesmente em razão da levar em conta as
especificidades do contexto
natureza gravosa do crime funciona como um jurídico-social brasileiro.
mecanismo capaz de retirar do cidadão a sua maior 10
Já nos posicionamos
garantia quando o assunto é uma eventual condenação. anteriormente a respeito
Falamos do princípio da presunção de inocência. Isso dessa questão quando
abordamos o papel das
porque, na medida em que se toma, como fator reformas textuais no
justificador da admissão de provas obtidas ilicitamente, Direito Penal, bem como
quando tratamos da
o clamor da sociedade pela punição dos crimes mais inconstitucionalidade da
gravosos, na verdade, o que se está a fazer é um juízo vedação de progressão de
regime nos crimes
prévio de condenação. hediondos - Ver: SANTOS,
Luciana das Graças. O
Direito e o Poder das Reformas.
Imaginemos o seguinte: “A” é acusado de ter cometido Boletim do ICP - Instituto de
um crime excessivamente gravoso, contudo a única Ciências Penais. Ano IV -
nº 60. BH. 2005, ps. 10-11.
prova que se tem contra ele fora obtida ilicitamente.
Nesse caso, tendo-se em conta a idéia de que os crimes 11
Op. cit, p. 109.
mais graves devam ser punidos a qualquer custo, o 12
Há quem sustente, ainda,
órgão julgador competente aceita a introdução dessa que o elemento justificador
da admissibilidade da
prova12. provas obtidas ilicitamente
seja, na verdade, a
necessidade de se garantir a
Nesse caso, ao aceitar a introdução da prova obtida segurança da sociedade em
ilicitamente para fundamentar a sua decisão face de um criminoso cujo
crime por ele praticado seja
(condenatória), na verdade, o órgão julgador estaria tido como excessivamente
realizando um juízo a priori. Ora, antes da produção da gravoso e reprovável.
Assim se manifestou, a
prova, não há como se falar da culpabilidade do propósito, Lidia Villarim
acusado, vez que vige o princípio da presunção de não Martins (in Gravação
Telefônica: prova ilícita,
culpabilidade. Contudo, orientado pelo raciocínio de D i r e i t o N E T. 2 0 0 4 .
que o crime merece ser punido a todo custo, o julgador Disponível em:
www.direitonet.com.br/arti
estaria autorizado a ignorar o princípio da inocência gos/x/17/09/1709/):
para, assim, condenar o acusado precipitadamente e, a "Não podemos sacrificar a
segurança de toda a
partir daí, buscar a introdução da prova apenas para população para preservar a
justificar/fundamentar a sua decisão. privacidade de uma só
pessoa". Argumento que
também refutamos
veementemente.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 63-86, maio. 2006


72
Em nome de uma concepção arcaica de que o crime
gravoso deva ser punido a qualquer custo, o acusado
é retirado da condição de cidadão de direitos e
colocado na condição de mero objeto da
condenação. Uma postura, então, retrógrada que, no
mínimo, nos faz retornar à época em que o arbítrio
estatal era a única ordem vigente (na Idade Média, por
exemplo); postura que não encontra qualquer
fundamento aceitável no Estado de Direito em que
vivemos.

Nesse ponto, na análise do HC 80.949-9, o Ministro


Sepúlveda Pertence refere-se às vedações
constitucionais aplicáveis aos crimes de maior
severidade, frisando que tais restrições são impostas
em rol taxativo sem delas poder inferir o intérprete do
direito de modo a estendê-las à garantia de vedação da
“prova ilícita”. Segundo ele, assim como acabamos de
afirmar, “graduar a vedação da admissibilidade e
valoração da prova ilícita, segundo a gravidade da
imputação, constituiria instituir a sistemática violação
de outra garantia constitucional – a presunção de
inocência”.

Desse modo, não há que se buscar maiores contra-


argumentos para se combater a idéia de gradação da
vedação constitucional simplesmente pautando-se
nesse primeiro argumento. A questão se soluciona a
partir da idéia de que a condenação a priori não
encontra supedâneo no atual Estado de Direito e,
acima de tudo, viola o princípio da inocência –
princípio basilar do Direito Penal na Modernidade.

BH, v. 2, n.7, p. 63-86, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


73
3 – INADMISSIBILIDADE: ABSOLUTIZAÇÃO
DOS DIREITOS E GARANTIAS CONSTITU-
CIONAIS

Tratando a questão à luz da segunda corrente, para


ilustrar bem a idéia, veja-se o entendimento do
Ministro Celso Mello quando da apreciação do RE
251.445/GO:
No contexto do regime constitucional brasileiro, no qual prevalece
a inadmissibilidade processual das provas ilícitas, impõe-se
repelir, por juridicamente ineficazes, quaisquer elementos de
informação, sempre que a obtenção e/ou a produção dos
dados probatórios resultarem de transgressão, pelo Poder
Público, do ordenamento positivo, notadamente naquelas
situações em que a ofensa atingir garantias e prerrogativas
asseguradas pela Carta Política (RTJ 163/682 – RTJ 163/709),
mesmo que se cuide de hipótese configuradora de ilicitude por
derivação (RTJ 155/508), ou, ainda que não se revele imputável aos
agentes estatais o gesto de desrespeito ao sistema normativo, vier
ele a ser concretizado por ato de mero particular.13 (grifamos)

A esse respeito, basta-nos um simples raciocínio: já se


tem por consenso que não há nenhum direito ou
garantia fundamental que se possam tomar por
absolutos8. Todos os direitos e garantias fundamentais
consagrados na Constituição estão também sujeitos a
determinados limites, dos quais passaremos a tratar
adiante tendo em vista a idéia de adequabilidade da
pretensão do indivíduo que a invoca.

Pensemos no seguinte caso: um indivíduo, sabendo-se


acusado pela prática de um crime cuja prova para sua
condenação é uma gravação telefônica feita por uma
terceira pessoa (em que confessa a prática do crime)
provoca a sua introdução no processo (enviando-a
pelo correio, por exemplo) com a finalidade de que
tanto ela quanto as demais dela decorrentes sejam 13
RE 251.445/GO, Rel.
consideradas inválidas pela afronta ao seu direito de Min. CELSO DE MELLO
(DJU 03/08/2000, in
Informativo/STF nº 197,
de 2000).

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 63-86, maio. 2006


74
silêncio, bem como à sua intimidade e privacidade.
Nesse caso, há que se avaliar o seguinte: será que o
acusado poderá exigir o desentranhamento da
gravação telefônica, bem como das demais (dela
derivadas), por considerá-las uma afronta ao seu
direito de silêncio? A questão, aqui, passa pela noção
de adequabilidade da pretensão invocada. Isso
porque, ao lançar mão da introdução da prova no
processo a fim de se beneficiar com a posterior
nulidade do processo, o acusado tornará ilegítima a sua
pretensão em invocar a invalidade das “provas ilícitas”.
É dizer, a proteção da intimidade ou privacidade do
acusado, bem como o seu direito de silêncio, estarão
sendo invocados para um fim ilegítimo9; a sua
pretensão, nesse caso, é abusiva e deve ceder lugar à
introdução da prova no processo, ainda que com lesão
às suas garantias constitucionais e ainda que venha a
servir de fundamento para a sua condenação.

E aqui já aproveitamos para entrar na terceira corrente.


Essa merece nossa especial atenção. Isto porque,
aquelas duas primeiras, esperamos ter mostrado,
passam longe de solucionar o problema, ao passo que
esta representa um grande passo na interpretação da
questão, não obstante, conforme mostraremos à
frente, ainda apresente falhas. Aliás, falhas que nos
impulsionaram a buscar uma outra solução, a qual nos
propomos a esclarecer ao final.

4 – A ANÁLISE DO CASO CONCRETO E A


TEORIA DA PROPORCIONALIDADE

Pois bem, a despeito das falhas que apresenta essa


terceira corrente, ela vem se mostrando como a mais
defendida e aceita pelos tribunais e por grande parte
da doutrina especializada, conforme passaremos a
expor.

BH, v. 2, n.7, p. 63-86, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


75
Sua principal diferença em relação àquelas primeiras é
que nessa a principal orientação argumentativa do
intérprete é extraída da análise detida ao caso concreto.
Ou seja, para essa corrente, a questão deve ser
analisada tendo em vista as minúcias de cada caso.
Assim, somente as particularidades do caso concreto
poderão ditar o melhor caminho a se traçar, tanto para
se chegar ao afastamento da proibição, quanto para se
concretizar a vedação das “provas ilícitas” no
processo, sejam elas atentatórias contra o direito ao
silêncio, ou contra qualquer outro direito ou garantia
constitucional individual.

Sob essa linha de raciocínio, o intérprete deve se


orientar pelas dimensões e particularidades do caso
concreto; detido às suas minúcias, o intérprete poderá
encontrar a solução que melhor possa adequar-se ao
caso.

Note-se, então, que essa corrente parece se apresentar


como a mais adequada ao ideal de Estado
Democrático de Direito. Contudo, tal proposta ganha
leituras diferenciadas. Uma delas é a que se assenta na
chamada teoria da proporcionalidade (ponderação de
valores). Trata-se de teoria extraída da doutrina alemã,
segundo a qual a solução do problema,
necessariamente, deve passar por um juízo de
ponderação dos valores envolvidos no caso, onde as
garantias fundamentais consagradas na Constituição
ganham uma espécie de “peso” que permite ao
intérprete, à luz do caso concreto, avaliar e ponderar
qual delas possui maior peso e, por conseguinte, qual
delas deve prevalecer.
A processualista Ada Pellegrini Grinover, in A eficácia
dos atos processuais à luz da Constituição Federal
(Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo,
1992, n. 37, p. 46-47), define bem essa linha de
pensamento:

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 63-86, maio. 2006


76
Outra tendência que se coloca em relação às provas ilícitas é
aquela que pretende mitigar a regra de inadmissibilidade
pelo princípio que se chamou, na Alemanha, da
‘proporcionalidade’ e, nos Estados Unidos da América, da
‘razoabilidade’; ou seja, embora se aceite o princípio geral da
inadmissibilidade da prova obtida por meios ilícitos, propugna-se a
idéia de que em casos extremamente graves, em que estivessem
em risco valores essenciais, também constitucionalmente
garantidos, os tribunais poderiam admitir e valorar a prova ilícita
(grifamos).

Para o jurista Luiz Francisco Torquato Avolio, trata-se


de “uma limitação do poder estatal em benefício da
garantia de integridade física e moral dos que lhe estão
subjugados”16.

Essa teoria da proporcionalidade tem sido em larga


escala defendida por grandes expoentes da literatura
processual penal brasileira, entre eles Eugênio Pacelli17,
Fernando Capez18 e Fernando da Costa Tourinho
Filho19. Também tem sido utilizada pelos tribunais,
sobretudo pelo Supremo Tribunal Federal.

Um exemplo retirado do STF é posicionamento


adotado na RCL 2.040-DF (caso Glória de los Añgeles
16
apud Alexandre de Treviño Ruiz e que pode ser tido como um julgamento
Moraes. Op. Cit. p. 127 político) em que se adotou a otimização de princípios
17
OLIVEIRA, Eugênio como sustentáculo de uma argumentação orientada
Pacelli. Curso de Processo
Penal, 5ª Edição. 2ª Tiragem.
por valores políticos.
BH: Del Rey, 2005, p. 289-
319.
O STF, naquela oportunidade, valeu-se da teoria da
18
CAPEZ, Fernando. Curso
de Processo Penal. 7ª Edição.
proporcionalidade para ponderar os valores invocados
São Paulo: Saraiva, 2001. pela defesa em confronto com os valores da exigência
19
TOURINHO FILHO, de preservação da honra e imagem dos servidores e da
Fernando da Costa. Processo
Penal. 22ª Edição. V.3.
Polícia Federal, decidindo-se, ao final, pela aceitação da
Saraiva, 2000. prova produzida com lesão às garantias individuais da
acusada20.
20
Cf. Ana Letícia Queiroga
de Mattos, Op. Cit. Pags.
109/110.

BH, v. 2, n.7, p. 63-86, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


77
Para nós essa forma de solucionar o problema tem
seus méritos e o maior deles está em que se busca
afastar a cultura das fórmulas apriorísticas ou das
respostas pré-concebidas (adotadas nas correntes mais
tradicionalistas), para, então, encontrar a solução do
problema nas perspectivas do caso concreto. Contudo,
a despeito de tal acerto, acreditamos haver uma falha
grave em relação ao “método” proposto. De fato, não
há que se pensar em outra forma de interpretar a
norma proibidora em tela (art. 5º, LVI), senão a partir
dos elementos oferecidos pelo caso concreto. No
entanto, o método da ponderação de valores acaba por
conduzir o intérprete ao mesmo erro da segunda
corrente: a pré-condenação.

De acordo com esse entendimento, a admissibilidade


das “provas ilícitas” no processo dependerá da
ponderação dos valores e interesses envolvidos no
embate. Ou seja, demandará que o intérprete,
orientado por um juízo de ponderação, busque a
harmonização dos princípios constitucionais
emergentes do caso, de modo que aquele que maior
“peso” possuir prevaleça sobre o de menor “peso”.

Assim, se no caso concreto apresentam-se como


conflitantes dois princípios ou garantias
constitucionais, a questão se resolverá, pela teoria da
proporcionalidade, comparando-os e pesando-os a fim
de que se constate qual deles deve prevalecer sobre o
outro exatamente porque maior “peso” possui. Ou
seja, segundo esse entendimento, se deve buscar, no
caso concreto, a aplicação da “proteção mais adequada
possível a um dos direitos em risco”21.

A idéia foi concebida originariamente por Robert


Alexy quando se propôs a tratar da questão da 21
OLIVEIRA, Eugênio
Pacelli. Curso de Processo
Penal. Ed. Delrey. B.H.
2002, pag. 292.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 63-86, maio. 2006


78
aplicabilidade dos princípios, concebendo-os como
“mandados de otimização”.

Para Alexy, assim como as regras, os princípios são


normas jurídicas, contudo, ao contrário destas, eles
podem ser aplicados em graus diferentes; conflitam-se
entre si somente na ambiência do caso concreto e à
vista do qual, e somente dele, podem ser solucionados
tais conflitos; são razões prima facie e indicam que algo
deve ser realizado na maior medida possível.

Trazendo a teoria para a questão que analisamos


(acerca das provas obtidas ilicitamente), ao contrário
da regra proibidora do art. 5º, LVI (que somente pode
ser aplicada ou não numa razão de tudo ou nada), o
conflito entre os princípios constitucionais envolvidos
no caso concreto somente poderá ter solução no
âmbito do próprio caso. A solução resultará da
ponderação dos princípios conflitantes prevalecendo
aquele que maior “peso” possuir. Ou seja, dentre os
princípios em conflito, um deles cederá ao outro a
aplicação ao concreto, o que não indica que aquele
perderá a sua validade, apenas não será o que
prevalecerá na solução final.

Assim, se no caso concreto a discussão sobre a


admissibilidade ou não das provas obtidas ilicitamente
tem como pano de fundo o conflito entre o princípio
do interesse público e o da inviolabilidade da
correspondência, por exemplo, tal conflito somente se
resolverá a partir da ponderação de “peso” entre eles.
Ou seja, “pesando-se” os princípios em conflito,
decidir-se-á pela admissibilidade ou não dessas provas,
na medida em que maior “peso” tenha o primeiro ou
o segundo, respectivamente.

BH, v. 2, n.7, p. 63-86, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


79
Esse seria, então, o “método” de solucionar os
conflitos entre princípios e, de acordo com essa
corrente, a melhor forma de solucionar o problema
das provas obtidas ilicitamente, no processo penal.

5 – AS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS E
O INTERLOCUTOR INSCIENTE

No tocante ao interlocutor insciente, na hipótese de


interceptações telefônicas realizadas por um dos
interlocutores, ou por terceiros com a ciência de um
deles, cumpre-nos concordar com o voto de Sepúlveda
Pertence no HC 80.949-9. Pertence considera que,

se, assim, é a captação por terceiro – intervindo no processo do


telefonema em curso -, conteúdo da comunicação que distingue a
interceptação vedada, não há porque excluir a proteção
constitucional à escuta, apenas porque um dos sujeitos da
conversação esteja ciente da sua captação por outrem e,
eventualmente, de sua gravação.

E ainda, complementa: “é patente – para o


interlocutor insciente na intromissão de terceiro na
recepção da mensagem que pretende dirigida apenas
ao interlocutor de seu telefonema -, a afronta à
garantia constitucional do sigilo de comunicação
telefônica”.

É também o que sustenta o Ministro Celso Mello, in


Ação Penal N. 307-3 - Distrito Federal, senão vejamos:

O fato de um dos interlocutores desconhecer a circunstância de


que a conversação que mantém com outrem está sendo objeto de
gravação atua, a meu juízo, como causa obstativa desse meio de
prova. O reconhecimento constitucional do direito à privacidade
(CF, art. 5º, X) desautoriza o valor probante do conteúdo de fita
magnética que registra, de forma clandestina, o diálogo mantido
com alguém que venha a sofrer a persecução penal do Estado.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 63-86, maio. 2006


80
Não há dúvidas de que a interceptação telefônica deva
ser tratada de forma diferente quando precedida de
autorização judicial; contudo, quando realizada por
uma das partes sob a insciência da outra, não há que
se cogitar da possibilidade de aceitação da prova, a
menos que haja investida criminosa desta última sobre
aquela primeira (HC 75.338/RJ, Rel. Min. Nelson
Jobim, DJU 25.09.98)22. Assim, somente quando
pautada na necessidade imperiosa da vítima de se
defender perante investida criminosa do infrator,
estaria legitimada a utilização da interceptação
telefônica não autorizada. Alexandre de Moraes
comenta que
poderíamos também apontar a hipótese de utilização de uma
gravação realizada pela vítima sem o conhecimento de um dos
interlocutores, que comprovasse a prática de um crime de extorsão,
pois o próprio agente do ato criminoso, primeiramente, invadiu a
esfera de liberdade pública da vítima, ao ameaçá-la e coagi-la23.

22
Nesse sentido foi também O tratamento não será diverso se a gravação for feita
o voto do Ministro Moreira
Alves in HC 74.678-1/SP:
por terceiro. Nesse caso, já entendeu o STF que “a
"seria uma aberração consi- prova obtida mediante a escuta gravada por terceiro de
derar como violação do
direito à privacidade a gra-
conversa telefônica alheia é considerada ilícita em
vação pela própria vítima, relação ao interlocutor insciente da intromissão
ou por ela autorizada, de
atos criminosos, como
indevida, não importando o conteúdo do diálogo
diálogo com seqüestradores, assim captado” (HC 80949/RJ, Rel. Min. Sepúlveda
estelionatários e todo tipo
de achacadores. No caso, os
Pertence, DJ 14.12.2001).
impetrantes esquecem que a
conduta do réu apresentou,
antes de tudo, uma intro-
6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS: NOSSA
missão ilícita na vida privada PROPOSTA – O JUÍZO DE ADEQUABILIDADE
do ofendido, esta sim mere-
cedora de tutela. Quem se
dispõe a enviar correspon- A necessidade de se atentar para as complexidades do
dência ou telefonar para problema é uma exigência a ser levada em conta, uma
outrem, ameaçando-o ou
extorquindo-o, não pode vez que a interpretação do Direito, por mais aberta que
pretender abrigar-se em
uma obrigação de reserva
seja essa tarefa, se deve concretizar em perfeita
por parte do destinatário, o coerência com o paradigma democrático do Estado de
que significa o absurdo de Direito vigente na atualidade.
qualificar como confidencial
a missiva ou a conversa".

23
Op. Cit. Pag. 131.

BH, v. 2, n.7, p. 63-86, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


81
As fórmulas apriorísticas, invariavelmente, conduzem a
ilusões terríveis. Cria-se a ilusão de que se está
buscando uma solução para o caso, quando, na
verdade, o caso se transforma em mero instrumento de
concretização da solução já pré-concebida. Funcionam
essas fórmulas como uma espécie de mera subsunção
ao caso concreto, para o qual já se concebeu
previamente qual o tratamento a ser aplicado. Trata-se,
conforme já afirmamos, de uma hipótese de pré-
julgamento, tanto quando não se afasta a introdução da
prova ilícita no processo a partir do argumento de que
o crime deve ser reprimido a todo custo, quanto em
relação ao argumento de que os direitos e garantias
fundamentais devam ser protegidos de toda e qualquer
lesão ou ameaça de lesão. Em ambos os casos se tem
uma hipótese de mera subsunção da solução ao
problema; de mera adequação do problema aos
contornos da solução (que lhe é anterior).

Ao contrário disso, o que se deve buscar é a adequação


da solução aos contornos do problema.

A noção de adequabilidade que defendemos sugere


que se deva verificar (e levar em conta) as perspectivas
da situação conflituosa. Se a transgressão ao direito ou
garantia fundamental se justifica, por exemplo, por
autêntica necessidade da parte que a provocou, essa
necessidade se torna suficiente para legitimar o seu
comportamento e fundamentar a introdução da prova
(ilicitamente obtida) no processo.

Do contrário, se o comportamento da parte superou os


limites da sua necessidade ou se existia outro meio de
provar as suas alegações sem que fossem colocadas em
xeque as garantias do acusado, ou ainda, se a
transgressão resultou em dano superior ao benefício
trazido ao processo, o juízo de adequabilidade, nesse

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 63-86, maio. 2006


82
caso, conduzirá ao afastamento das provas dos autos
do processo, não podendo elas servir de fundamento
da condenação do acusado.

A idéia de ponderação de princípios (valores) pode


parecer bastante sedutora, contudo não prospera
diante da constatação de que conduz o julgador ao
mesmo juízo prévio de condenação que se propôs
desconstruir.

Alexy acabou caindo no mesmo erro que procurou


combater. A idéia por ele trabalhada almejava
estabelecer um critério racional de ponderação de
princípios de forma a afastar o subjetivismo, o
decisionismo e o autoritarismo do Direito na solução
dos conflitos entre eles. Contudo, seu objetivo não foi
alcançado. É impossível estabelecer e assegurar a
aplicabilidade de um critério efetivamente racional e
objetivo para solucionar o conflito entre princípios,
dentro da perspectiva de Alexy. Entregar ao julgador a
tarefa de definir qual a dimensão de “peso” dos
princípios conflitantes no caso concreto e, ainda,
incumbi-lo de decidir qual deles possui o maior “peso”
lamentavelmente não levará a uma decisão racional e
objetiva, ainda que se exija desse julgador que
fundamente racionalmente a sua preferência. O
“critério” de Alexy, antagonicamente à sua proposta,
leva ao subjetivismo e põe em risco as perspectivas
internas do caso; não há nada que possa indicar, com
um certo grau de segurança, que o julgador não haja
decidido o “conflito” orientado por compreensões que
são alheias às particularidades do caso. Ao eleger um
princípio como de maior “peso”, o julgador pode estar
sendo orientado por pré-compreensões pessoais acerca
dos fatos e não pelas particularidades que esses fatos
apresentam.

BH, v. 2, n.7, p. 63-86, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


83
Desse modo, a teoria da proporcionalidade, assim
como aquelas primeiras, não merece prosperar,
sobretudo quando se tem em conta o paradigma
democrático do Estado de Direito. Devemos refletir
sobre a sua adoção pelo Supremo Tribunal Federal e
pela grande maioria da doutrina especializada
brasileira.

A ponderação de valores, da forma como foi


arquitetada por Alexy, leva à hierarquização dos
princípios constitucionais e falar em hierarquização de
princípios num contexto de Estado Democrático de
Direito é, no mínimo, contraditório.

Destarte, num contexto em que o Direito assume uma


característica pluralista, a atividade do juiz não mais se
restringe à mera literalidade da lei e muito menos deve
resultar em uma atividade tendente a hierarquizar o
que nem o legislador se prestou a fazê-lo; ao contrário,
é exigido do julgador um posicionamento que, a um só
tempo, reflita certeza jurídica e aceitabilidade racional,
de modo que sejam levados em conta os elementos
fáticos do caso concreto e as expectativas dos
personagens envolvidos na situação de maneira que
estes se reconheçam na decisão que os irá afetar, ainda
que esta lhes seja contrária24.

Como bem pontuou Galuppo, numa sociedade em


que existe um Estado Democrático de Direito “não é
possível hierarquizar os princípios constitucionais 24
OLIVEIRA, Marcelo A.
Cattoni de Direito Consti-
porque são, todos eles, igualmente valiosos para a tucional. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2002, p.110.
autodeterminação de uma sociedade pluralista”25 .
25
GALLUPO, Marcelo
Campos. Os princípios
No HC 80.949-9, Sepúlveda Pertence levantou essa jurídicos no Estado
Democrático de Direito:
questão e ressaltou também, com muita ênfase, seu ensaio sobre o modo de sua
ceticismo em relação à importação de institutos e aplicação. Revista de
Informação Legislativa,
Brasília, n. 143, p. 191-209,
jul./set. 1999.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 63-86, maio. 2006


84
teorias estrangeiras para solucionar problemas de
aplicação das normas no contexto do ordenamento
jurídico brasileiro. Para ele: “a recepção desavisada de
teorias jurídicas estrangeiras é extremamente perigosa,
pela diversidade dos dados dogmáticos de que partem
em relação ao nosso ordenamento”. E ainda, fazendo
referência a Luiz Roberto Barroso, Pertence conclui:

até onde vá a definição constitucional da supremacia dos direitos


fundamentais, violados pela obtenção da prova ilícita, sobre o
interesse da busca da verdade real no processo, não há que apelar
para o princípio da proporcionalidade, que, ao contrário,
pressupõe a necessidade de ponderação de garantias
constitucionais em aparente conflito, precisamente quando,
entre elas, a Constituição não haja feito um juízo explícito de
prevalência. (HC 80.949-9) (grifos nossos)

Assim, a irrestrita adoção do princípio da


proporcionalidade como panacéia para a resolução de
conflitos entre direitos fundamentais pode levar, como
bem pontuou Alexandre G. M. F. Bahia, a “uma ordem
suprapositiva de valores, confundindo direitos, normas
morais, política, argumentos de custo/benefício etc”26.

A questão da admissibilidade ou não das provas


ilicitamente obtidas no processo (penal) deve ser
tratada à luz do caso concreto com base na noção de
adequabilidade da pretensão invocada.
Sendo assim, será o caso concreto a ditar se a
pretensão do acusado em invocar a garantia da
proibição das provas ilícitas é ou não abusiva, do
mesmo modo que será a partir dessa constatação que
se poderá dizer da aceitação ou não da sua introdução
no processo, a fim de fundamentar a condenação do
26
In: Ingeborg Maus e o
Judiciário como Superego
acusado.
da Sociedade. Revista CEJ,
Brasília, n. 30, p. 10-12,
set/2005.

BH, v. 2, n.7, p. 63-86, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


85
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Superego da Sociedade.
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Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 63-86, maio. 2006


0
O Turismo Mundial, Evolução e
Estratégias: o caso de Portugal
89
O Turismo Mundial, Evolução e
Estratégias: o caso de Portugal

António Jorge Fernandes 1

Resumo: O turismo é hoje uma das atividades mais importantes


da economia mundial. O crescimento que o setor enfrenta, tem
coincidido com inúmeros desafios, entre os quais a globalização, a
competitividade e a crescente instabilidade do cenário político e
social mundial. O turismo encontra-se assim numa fase de forte
crescimento em termos mundiais, e várias projecções da
Organização Mundial do Turismo (OMT) indicam elevadas taxas
de crescimento para os próximos anos.
São várias as razões que fomentam esse crescimento espetacular
do turismo e que apontam para os próximos anos mais de 1 bilhão
e 500 milhões de turistas, gerando receitas na ordem de mais de 1
trilhão de euros em 2020. Também em Portugal o turismo
representa para a economia um importante setor, responsável por
mais de 8% do PIB e por mais de 6% de empregos diretos na
economia portuguesa.
Apesar do optimismo que reina no setor, os próximos anos serão
absolutamente decisivos para o turismo português. Isso porque se
evidencia, de forma sustentada, o crescimento e a concorrência
acrescida de mercados turísticos em franca expansão,
nomeadamente os países do leste europeu, concorrentes directos
de Portugal na captação de turistas, e os destinos asiáticos, com a
China à cabeça.

Palavras-chave: turismo, evolução, crescimento, globalização,


competitividade, economia, internacionalização, lazer e
entretenimento.

Abstract: The tourism is today one of the activities most important


of the worldwide economy. The growth that the sector faces, has
coincided with innumerable challenges, between which the
globalization, the competitiveness and the increasing instability of
the scene worldwide social politician and. The tourism meets thus 1
António Jorge Fernandes -
in a phase of strong growth in worldwide terms, and some Doutor em Ciências
Econômicas e Empresariais
projections of the Worldwide Organization of Turism (OMT) pela Universidade de
indicate high taxes of growth for the next years. Barcelona - Espanha.
The reasons are several that foment this growth spectacular of the Professor da Universidade
de Aveiro-Portugal e
tourism and that they point a growth with respect to the next years Professor Visitante do
Departamento de Turismo
da UFMA - Universidade
Federal do Maranhão-Brasil

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.6, p. 83-104, nov. 2005


90
that will more than put into motion 1 billion and 500 million tourist,
generating prescriptions in the order of more than 1 trillion of euros
in 2020. Also in Portugal the tourism represents for the economy an
important sector, responsible for more than 8% of the GIP and for
more than 6% of jobs right-handers in the Portuguese economy.
Despite the optimism that born in the kingdom in the sector, the
next years will be absolutely decisive for the Portuguese tourism.
This why it is proven of supported form, the growth and the
increased competition of tourist in frank expansion, nominated the
countries of the European east, competing markets direct of
Portugal in the capitation of tourist and the Asian destinations, with
China to the head.

Keywords: tourism, evolution, growth, globalization,


competitiveness, economy, internationalization, leisure and
entertainment

O Turismo tem vindo a assumir, ao longo dos últimos


anos, um peso crescente e decisivo nas atividades
econômicas a nível mundial. Não apenas no impacto
que tem sobre o PIB de numerosos países, mas nas
oportunidades de emprego que gera e nos importantes
efeitos multiplicadores que lhe são reconhecidos.

Esse setor encontra-se numa fase de forte crescimento


em termos mundiais, e várias projeções da
Organização Mundial do Turismo (OMT) indicam
elevadas taxas de crescimento para os próximos anos.

Várias são as razões para esse incremento do setor a


nível mundial, entre as quais o aumento do poder de
compra das famílias (fruto de um maior rendimento
disponível), o desenvolvimento dos meios e
tecnologias de comunicação, os níveis educacionais
mais elevados da população mundial, as crescentes
relações de negócios e interacção social à escala
planetária (globalização), o aumento da esperança
média de vida (que impulsionou o rápido crescimento

BH, v. 2, n.7, p. 87-106, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


91
do turismo sénior), a evolução dos meios de
transporte, o aumento da dimensão das empresas
através da sua integração vertical e concentração
horizontal, a entrada de novos países emergentes no
mercado, a contínua internacionalização da oferta e da
procura, as formas de relacionamento com os clientes
e a constante evolução da tecnologia (sobretudo com
o incremento dos meios audiovisuais por parte dos
meios de comunicação de massas, da Internet e de
sofisticados meios de gestão) e um aumento lento mas
gradual das horas destinadas ao lazer.

A esse crescimento podemos ainda associar o forte


crescimento das indústrias de entretenimento (parques,
desportos de lazer, jogos electrónicos, cinema, media),
o surgimento de várias empresas e empreendimentos
não tradicionais no mercado, a acentuada evolução dos
sistemas de distribuição, vendas e reservas e a
concentração da oferta, através de fusões e aquisições.

Mas valerá a pena insistir que esse crescimento se verá


ainda mais acentuado no futuro se se confirmarem
algumas tendências que afloram de maneira
contundente:

a. O envelhecimento da população e o crescimento


médio do rendimento, que propiciará um maior
volume de recursos disponíveis no futuro, para
incrementar o desejo de viajar.

b. Uma maior procura que se tornou já evidente, por


mercados novos, como a América do Sul e a
Ásia/Pacífico. O crescimento da procura por destinos
asiáticos cresceu nos últimos cinco anos mais de 35 %
e as previsões apontam a China como principal destino
turístico no ano 2020, com mais de 130 milhões de
turistas, num incremento anual que se situará nos 7,8 %.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 87-106, maio. 2006


92
Se a estes valores acrescentarmos os mais de 56
milhões de turistas que chegarão no mesmo período a
Hong Kong, cujo crescimento médio anual se situará
nos 7,1%, e ainda os turistas que demandarão Macau e
Taiwan, teremos um formidável mercado receptor.

c. O impacto que a Internet virá a ter de forma


crescente, ao longo da cadeia de valor do sector
turístico.

d. O forte crescimento do turismo de “saúde”, não


apenas como forma de combater o stress crescente das
sociedades modernas, cujo expoente máximo até há
pouco era o turismo termal, mas agora intimamente
associado à procura turística direccionada a países que
se especializaram em determinadas ofertas nas áreas de
saúde, com excepcional qualidade de atendimento
médico e a preços extremamente competitivos, o que
tem levado a um fluxo cada vez mais significativo do
chamado turismo de saúde em direcção a estes países
receptores.

e. As evidências apontam também para um


crescimento acentuado das estadas, não apenas para o
turismo de lazer, mas também para o turismo de
negócios.

f. Existe um forte estímulo relativamente a férias que


proporcionam aquilo que os turistas designam como
“experiência única”. Tal fato tem feito crescer o
turismo para destinos longínquos muito mais do que
para destinos próximos dos locais receptores e tem
feito surgir no mercado destinos emergentes cada vez
mais atrativos.

g. O turismo de fim de semana encontra-se também


em franco crescimento, acelerando as perspectivas de
crescimento do turismo regional e do turismo interno.

BH, v. 2, n.7, p. 87-106, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


93
h. O crescimento do turismo estará ainda associado a
um fenómeno recente que assenta suas bases no
impressionante crescimento das chamadas indústrias
do entretenimento, associadas a actividades como
cinema, jogos electrónicos, parques temáticos,
desportos de lazer e aventura, e nos chamados Centros
Urbanos de Entretenimento em franco crescimento,
sobretudo na Europa e Estados Unidos. Este
fenómeno fez crescer o turismo urbano de forma
acelerada, e, associado ao fenómeno dos Resorts e do
Timeshare, criou uma forma de turismo em franco
crescimento.

i. Finalmente é necessário associar os notáveis avanços


da tecnologia e da inovação aos novos conceitos de
gestão integrados, flexíveis e cada vez mais orientados
ao consumidor, que de uma forma notável
aprimoraram os processos de qualidade da oferta.

O TURISMO A NÍVEL MUNDIAL

A evolução que se registrou no movimento de turistas


a nível mundial nos últimos cinqüenta anos foi
extraordinariamente significativa. Nesse meio século,
assistiu-se a uma espantosa expansão do número de
chegadas de turistas internacionais, que evoluíram de
25,3 milhões em 1950, para 762,5 milhões em 2004, o
que corresponde a um crescimento médio anual de
mais de 7% ao longo desse período. A acrescentar a
esse cenário as expectativas de crescimento do turismo
para as próximas décadas, prevêm-se taxas superiores
a 4,1% ao ano, podendo colocar o turismo, em termos
de volume de negócios no mundo, acima inclusive dos
sectores mais poderosos da economia contemporânea,
as indústrias do petróleo e da produção
automobilística.

Só nos últimos dez anos, o acréscimo global do


turismo mundial situou-se nos 45%, um valor de

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 87-106, maio. 2006


94
crescimento em muito superior a qualquer outro sector
da economia mundial. As previsões de chegadas de
turistas internacionais a nível mundial apontam, para
2020, um número extraordinário de 1,561 bilhão de
turistas, o que significará um aumento percentual total
de mais de 100% nos próximos quinze anos (quadro
1).

Na verdade vimos assistindo, ao longo dos últimos


anos, a um progressivo alargamento dos destinos
turísticos importantes no contexto mundial, como
conseqüência de um esforço considerável de uma série
de países e regiões que apostaram fortemente na
atração de turistas, ao se aperceberem que o turismo
representa um setor de fundamental importância
económica.

Esta importância acentua-se pelo fato de que o


turismo gera a criação de emprego, sobretudo em
regiões menos desenvolvidas, tem um forte impacto na
balança de pagamentos pela entrada de divisas no país,

BH, v. 2, n.7, p. 87-106, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


95
contribui de maneira determinante para a riqueza do
país, ao ser um fator de cada vez mais peso no PIB,
leva à criação de uma série de infra-estruturas pelo
poder público e também privado e gera uma elevada
contribuição de impostos para os cofres do Estado.

Assim, enquanto em 1950 cerca de quinze países


recebiam a quase totalidade das chegadas de turistas
internacionais, essas chegadas dispersaram-se por mais
de oitenta países e regiões, que recebem, segundo a
OMT, mais de um milhão de visitantes por ano. Destes
oitenta países, seis estão em África (África do Sul,
Zimbábue, Quênia, Argélia, Marrocos e Tunísia), sete
no Médio Oriente (Bahrein, Egito, Jordânia, Líbano,
Arábia Saudita, Síria e Emirados Árabes), quinze nas
Américas (Uruguai, Peru, Chile, Brasil, Argentina,
Guatemala, Costa Rica, Porto Rico, Jamaica, República
Dominicana, Cuba, Bahamas, EUA, México e Canadá),
dezesseis na Ásia/Pacífico (China, Hong-Kong, Japão,
Coréia do Sul, Macau, Taiwan, Camboja, Indonésia,
Malásia, Filipinas, Tailândia, Singapura, Austrália,
Nova Zelândia, Índia e Irão) e trinta e seis na Europa
(Dinamarca, Finlândia, Irlanda, Noruega, Suécia,
Reino Unido, Áustria, Bélgica, França, Alemanha,
Holanda, Suíça, Azerbaijão, Bulgária, República
Tcheca, Estônia, Hungria, Kazaquistão, Letônia,
Lituânia, Polônia, Romênia, Federação Russa,
Eslováquia, Ucrânia, Andorra, Croácia, Chipre, Israel,
Itália, Malta, Portugal, Eslovênia, Espanha, Grécia e
Turquia).

A Europa aparecer com especial preponderância nesse


cenário mundial deve-se ao fato de ser o maior destino
emissor e receptor do turismo mundial e de ter

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 87-106, maio. 2006


96
elevados índices de turismo intra-regional. Na verdade,
em 2004, a Europa recebeu 54,5% do turismo
internacional e, como destino emissor, foi responsável
por cerca de 56,5% do total mundial de turistas. O
turismo entre países europeus intensificou-se após a
queda do muro de Berlim e o fim da guerra fria e com
o término do conflito nos Balcãs, que devolveu ao
turismo mundial uma das mais belas e potenciais
regiões do mundo. As previsões da OMT apontam,
porém, para um crescimento mais lento da procura
internacional de turismo na Europa, cuja quota total
deverá cair para 46% do total em 2020.

Estas previsões para 2020 apontam ainda para


expectativas que colocam os dez principais destinos
turísticos mundiais com uma quota de 45,7% do total
(quadro 2) e os dez principais países emissores de
turistas responsáveis por quase 52% da emissão total
de turistas a nível mundial (quadro 3).

BH, v. 2, n.7, p. 87-106, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


97

São as receitas do turismo um dos indicadores mais


impressionantes da economia mundial. Em 2004, essas
receitas ultrapassaram os 500 bilhões de euros (quadro
4).

Na pressuposição de que as receitas crescerão na


mesma ordem do número de turistas, o que é uma
previsão pessimista, pois o crescimento da economia
mundial deve propiciar uma melhoria da renda das
famílias a nível mundial, poderia o setor do turismo

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 87-106, maio. 2006


98
gerar receitas da ordem de 1 trilhão de euros em 2020!
Na verdade nos últimos quinze anos a receita total
gerada pelo turismo cresceu de 211,6 bilhões de euros
para 500,6, um crescimento percentual de 136%, o
que significa que as receitas poderiam chegar ao 1,18
trilhão de euros no ano de 2020, se se mantiver o atual
ritmo de crescimento do turismo.

Finalizando, um dos maiores desafios que se colocam


ao turismo nos próximos tempos tem a ver não com
os fatores limitativos do próprio turismo em si, mas
sim com o principal problema global que a
humanidade enfrenta nos dias atuais: as guerras e a
intolerância do ser humano com aspectos sociais,
culturais, étnicos e religiosos. Alguns destinos
turísticos de excelência correm o risco de se tornarem
autênticos cemitérios turísticos, a manterem-se as
condições de conflitos reais e latentes com que as
sociedades contemporâneas se defrontam. Isto poderá
provocar um fenómeno que em tudo será semelhante
às condições económicas que prevalecem em
diferentes regiões do mundo, excluindo dos benefícios
do turismo vários países e povos do globo, com
elevadas potencialidades de exploração no setor.

1. O TURISMO EM PORTUGAL

A atividade turística representa, em Portugal, algo em


torno de 8 % do PIB nacional e emprega diretamente
6% da população economicamente ativa
(aproximadamente 300.000 pessoas). Os últimos
dados estatísticos disponíveis (Instituto Nacional de
Estatística) apontam para valores próximos aos 10%
da população ativa, quando englobamos na análise não
apenas os empregos diretos, mas também os indiretos.

BH, v. 2, n.7, p. 87-106, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


99
As tendências de evolução e modernização das
sociedades e o crescimento global da economia
mundial beneficiaram, de forma decisiva, o
crescimento do setor turístico. Portugal recebeu, em
2004, 11 milhões e 600 mil turistas e cerca de 27
milhões de visitantes, uma dimensão que se aproxima
de um valor três vezes superior à população
portuguesa (quadros 5 e 6).

Fonte: Direção Geral do Turismo

Nos últimos dez anos, assistiu-se ainda a um


fenómeno crescente de aumento considerável do
número de portugueses que fazem férias no País.
Enquanto em 1996 não ultrapassavam os 3,8 milhões,
em apenas oito anos, esse número pulou para
aproximadamente 8 milhões, apenas 2 milhões a
menos que a população total do país.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 87-106, maio. 2006


100
Quadro 6

Fonte: Direção Geral do Turismo

Portugal está assim a nível mundial na 19ª posição


entre os países receptores de turistas, e em 21º no que
concerne às receitas, que atingiram os 6,3 bilhões de
euros em 2004. Os últimos dez anos desmistificaram a
idéia de que o turismo em Portugal se tinha
massificado e perdido qualidade, com os gastos
médios por turista em decréscimo.

Na verdade, verifica-se que, desde 1990, os gastos


médios por turista têm aumentado como pode ser
observado no quadro 7.

Fonte: Direção Geral do Turismo

Embora os gastos médios dos turistas tenham


aumentado, verifica-se, no entanto, que a permanência
média dos turistas se reduziu ligeiramente, o que
denota que, apesar da diminuição das permanências
médias, os turistas gastam mais, num período menor
de permanência no País (quadro 8).

BH, v. 2, n.7, p. 87-106, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


101

Fonte: Direção Geral do Turismo

2. DIAGNÓSTICO DAS CARACTERÍSTICAS


DO TURISMO EM PORTUGAL

Uma análise Swot do sector do Turismo Português,


feita a finais dos anos 90, pela Deloitte Consulting
(Oliveira, Fernando F., 2000), mostrava dados
extremamente relevantes que praticamente não se
alteraram nestes últimos cinco anos. Entre os pontos
fortes estavam: bom clima, praias limpas e bonitas,
paisagens atractivas, património histórico e cultural,
reconhecido como destino internacional seguro,
reconhecido como importante destino internacional
seguro (sobretudo o Algarve) e uma boa relação
preço/qualidade.

Entre os pontos fracos ressaltavam-se: infra-estruturas


insuficientes em várias regiões-chave do país; grande
dependência de quatro grandes mercados emissores
(Espanha, Inglaterra, Alemanha e França); poucos
esforços de manutenção e melhoria da oferta nacional;
pequena utilização de novas tecnologias; alojamento
fortemente dependente de um pequeno número de
operadores turísticos europeus; vários operadores
independentes, de reduzida dimensão e não
organizados; proliferação de alojamento extra-oficial;
inexistência de um evento, monumento, especificidade
cultural ou marca - âncora, para a imagem do País;
insuficientes vôos regulares para o Porto e o Algarve;
sistema de classificação da oferta turística não baseada
na qualidade; iniciativas de promoção limitadas; falta
de recursos humanos qualificados - sobretudo na

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 87-106, maio. 2006


102
época alta - e reduzido profissionalismo; forte
sazonalidade; maior nível de desenvolvimento nos
grandes centros e falta de actividades de
entretenimento cultural, sobretudo na época baixa.

O estudo apontava ainda as ameaças ao turismo


português, que citava como sendo: a contínua
percepção do País enquanto mero destino de sol e
praia; a sobrepromoção do Algarve reduzindo a
atenção sobre outras regiões que oferecem uma boa
relação preço/qualidade; poucos projectos novos
adaptados às tendências mundiais da procura;
crescente concorrência ao nível global e regional;
insuficiente acompanhamento daquilo que se passa a
nível mundial em termos de gestão e qualidade
hoteleira, sobretudo no que respeita a competências
financeiras e tecnológicas.

Entre as oportunidades que se apresentavam ao


cenário do turismo português estavam: atracção de
segmentos de procura de forte crescimento -
geográficos, socioeconômicos e demográficos-, maior
cooperação entre as entidades privadas e públicas, a
conclusão da barragem do Alqueva, no Alentejo, que
será o maior lago artificial da Europa e poderá
oferecer boas oportunidades de desenvolvimento, o
uso de novos instrumentos financeiros para apoiar o
investimento, desenvolvimento de uma nova oferta de
produtos turísticos de vanguarda, atracção de
operadores internacionais que possam contribuir para
melhorar a qualidade da oferta, introdução de
políticas/iniciativas com vista a aumentar a repetição
de visitas e a diversificação de produtos turísticos e a
introdução de tecnologias de ponta.

A esta radiografia do turismo português, podem ainda


ser acrescentadas algumas evidências actuais do sector:

BH, v. 2, n.7, p. 87-106, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


103
forte expansão do turismo interno, forte fragmentação
das estruturas empresariais, uma excessiva
concentração da oferta no litoral, sobretudo no
Algarve, região de Lisboa e Ilha da Madeira, uma forte
dependência do produto sol e praia, um vigoroso
aumento da concorrência com outros países e regiões
que apresentam características similares, e uma baixa
produtividade acentuada por uma altíssima
rotatividade da mão de obra.

Os próximos anos serão absolutamente decisivos para


o turismo português. Isso porque se evidencia de
forma sustentada o crescimento e a concorrência
acrescida de mercados turísticos em franca expansão,
nomeadamente os países do leste europeu,
concorrentes directos de Portugal na captação de
turistas, e os destinos asiáticos, com a China à cabeça.

4. CONCLUSÕES

Levando em consideração as principais deficiências


com que se debate o turismo em Portugal, as
principais preocupações do sector são a diminuição da
sazonalidade da procura, a efectiva diversificação dos
mercados emissores (Espanha, França, Alemanha e
Reino Unido representavam em 2004
aproximadamente 80% da procura turística), a
tentativa de transformar o turismo de massas num
turismo com níveis melhores de qualidade, capaz de
gerar um volume maior de receitas por turista e
medidas capazes de impulsionar um desenvolvimento
mais harmonioso do país, na tentativa de alargar a
oferta turística a mais regiões do país.

A criação de uma cultura de mercado, capaz de focar a


atenção no binómio acompanhamento/antecipação
das necessidades e expectativas dos clientes, apoiada

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 87-106, maio. 2006


104
em políticas que fomentem a qualidade, a formação, a
inovação e uma melhor capacitação empresarial, é o
principal objectivo de uma nova estratégia para o
turismo em Portugal.

Os novos desafios que se colocarão ao setor do


turismo a nível mundial, virão de significativas
alterações do perfil da procura e da oferta, sobretudo
da globalização do fenómeno turístico, que será o
principal fator a incrementá-lo nos próximos anos.

Também as novas tecnologias da informação e a


internet contribuirão de forma decisiva, para tornar
disponível ao conhecimento dos turistas um maior
leque de opções na hora de decidirem os destinos a
procurar. Isso motivará a necessidade premente de se
aumentar a qualidade e a diversidade da oferta
turística, uma vez que a competitividade que se verifica
em outros setores da economia mundial será estendida
também ao turismo.

Ainda que a procura pela opção sol e mar possa vir a


continuar a ser privilegiada, muitas outras vertentes do
turismo têm vindo a apresentar um crescimento
elevado, sobretudo as que se relacionam com as
questões de natureza ambiental, cultural e patrimonial.

Algumas condições essenciais ao sucesso dos destinos


turísticos estarão ainda associados a questões
relacionadas com a comodidade da viagem, as
acessibilidades, a flexibilidade da informação
disponível, a disponibilidade de cuidados médicos e
sobretudo os aspectos ligados à segurança.

A nível mundial e se forem resolvidos os latentes


conflitos e interesses antagónicos de diversas regiões
do cenário mundial, o turismo apresenta-se como um
dos setores de maior crescimento na economia

BH, v. 2, n.7, p. 87-106, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


105
mundial e capaz de gerar mais valias significativas para
as diferentes regiões e países. As taxas de crescimento
do número de turistas e de receitas a nível mundial, as
características actuais que acompanham as sociedades
modernas e a crescente redução das horas de trabalho
em benefício de mais horas de lazer formam a
simbiose perfeita para levar à descoberta do mundo
um número cada vez maior de consumidores
desejosos de engrossarem as estatísticas do turismo
internacional.

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Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 87-106, maio. 2006


Um Universo Musical bem Bachiano: Diversidade
Cultural e Diálogos Musicais nas Bachianas
Brasileiras de Heitor Villa-Lobos (1930-1945)
109
Um Universo Musical bem Bachiano:
Diversidade Cultural e Diálogos
musicais nas Bachianas Brasileiras de
Heitor Villa-Lobos (1930-1945)

Loque Arcanjo Jr.*

Resumo: Este artigo tem como objetivo demonstrar como a


música se tornou um objeto de pesquisa em História, por meio de
uma discussão acerca do universo musical no qual foram escritas As
Bachianas Brasileiras, de Heitor Villa-Lobos, analisando seus diversos
diálogos musicais, bem como sua relação com a obra de J.S Bach no
momento de criação das peças.

Palavras-chave: Música, História Cultural, Bachianas, Heitor Villa-


Lobos.

Abstract: This article intends to demonstrate how the music has


become a historical researching subject matter through a discussion
concerning the musical universe in which the musician Heitor Villa-
Lobos' Bachianas Brasileiras had been composed, analysing its various
musical dialogues, as well its relations with the work of J. S. Bach just
right the moment Villa-Lobos had created his pieces.

Keywords: Music, Cultural History, Bachianas, Heitor Villa-Lobos.

É que, sob a influência da sócio-música de Villa-Lobos e


sob a influência dessas excursões noturnas por tascas e
bares e casas de mulheres do Rio é que, em grande parte, *
Professor de História do
nasceu, como sócio-linguística, um livro que pode ser departamento de Turismo
considerado uma rude tentativa de equivalência de da PUC/MG e do UNIBH.
Bachianas Brasileiras. Essa tentativa de equivalência: Casa Mestrando em História
Social da Cultura com
Grande & Senzala.1 (FREYRE, 1982) especialização em História
da Cultura e da Arte pela
A atual incorporação da música como objeto de FAFICH/UFMG.

pesquisa histórica não se deu da noite para o dia. 1


FREYRE, G. . Villa-
Remonta, na verdade, a uma renovação teórico- Lobos Revisitado. Trans-
crição de palestra proferida
metodológica resultante de trabalhos de gerações de na abertura do Festival
Villa-Lobos em 01-11-
1982. Datilografado. MVL
/Rio de Janeiro

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.6, p. 107-117, nov. 2005


110
historiadores. Estes, ao longo de pesquisas sobre as
relações entre história e cultura, refinaram seus
discursos na busca de diálogos cada vez mais fecundos
com outras disciplinas, como a antropologia, a
psicologia e, também, com a musicologia.

Os trabalhos no campo musical são de difícil produção


para os historiadores. Segundo Marcos Napolitano, as
fontes musicais, sob o ponto de vista metodológico,
são vistas como primárias, novas e de estatuto
paradoxal. “O documento musical sugere uma dose de
especulação, por parte do historiador, na medida em
que a obra teria um conjunto de significados quase
insondáveis e relativos, variáveis de acordo com a
fruição do ouvinte” (NAPOLITANO, 2003, p. 263). E
sem falar na variedade de interpretações, uma vez que
as partituras suportam uma infinidade de
possibilidades interpretativas.

Seguindo pressupostos metodológicos rigorosos para


análise e demonstrando que a música e a literatura não
são meros “espelhos” de realidade, o historiador
passou a perceber que estes registros podem ser
instrumentos reveladores. Novos questionamentos
requerem novas fontes. O interesse do historiador
sobre estes novos documentos se explica segundo o
interesse que o pesquisador tem em inquirir sobre o
que estas fontes podem revelar sobre as sociedades do
passado. Esse interesse está conectado, também, a
nosso presente cada vez mais “sonoro” e “imagético”.
Apesar de reveladora, esta documentação não fala por
si só e, de forma inversa, deve ser questionada,
levando-se em conta seu contexto de produção. As
partituras e as gravações, por exemplo, não podem ser
confundidas com “a música em sua essência”; partem
de escolhas e de um conjunto de códigos culturais que
fazem delas objetos cognoscíveis com natureza

BH, v. 2, n.7, p. 107-126, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


111
específica, em temporalidades também diversas e
específicas.

Em outras palavras, as diferentes produções musicais


de um dado tempo podem fazer referências a formas
que remontam a outros tempos históricos. Os
elementos destas formas encontrados num passado
estão ali “representados” nestas produções, e não mais
presentes como em sua concepção original. Assim, as
apropriações e (re)significações da música bachiana,
por exemplo, demonstram como símbolos e
sonoridades são “atualizados” em outro tempo dentro
de um outro processo de criação.

As fontes musicais devem ser colocadas em diálogo


com outros documentos, como a literatura, para que
tenham legitimidade na pesquisa histórica.
Correspondências, diários, documentos oficiais,
programas de concerto, memórias, periódicos, dentre
outros, dialogam com as fontes musicais e trazem, em
seus respectivos cruzamentos, indícios mais
complexos das concepções de mundo do compositor
e/ou de sua produção musical.

Portanto, a música não pode ser vista somente como


fonte. Ela se torna objeto a ser pesquisado, revelando
apropriações e (re)significações de formas, gêneros e
sonoridades que dizem respeito a identidades, práticas
culturais e valores presentes no contexto em questão.
Para além da questão formal, o processo de recepção
é um dado fundamental para a pesquisa histórica. Em
outros termos, é necessário ir mais além de uma
análise que enfoque compassos, ritmos, gêneros,
tonalidades, intensidades, grafia musical, dentre outros
aspectos formais. Torna-se importante, no caso do
tema em questão, levantar outra tipologia de
problemas. Como estaria representada a música de J. S.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 107-126, maio. 2006


112
Bach (1685-1750) nas Bachianas Brasileiras, de Villa-
Lobos? Como funcionou o processo de seleção
daquilo que Villa-Lobos chamou de bachiano em sua
série de composições escrita em homenagem ao
compositor alemão? Como estas peças se tornaram
símbolos do nacionalismo musical brasileiro entre os
anos 30 e 40?

AS BACHIANAS: UM DISCURSO MUSICAL


ANTROPOFÁGICO?

Ao se tornar objeto de pesquisa histórica, a música não


apenas revela o que se ouvia ou executava no passado.
Ela se transforma em elemento construtivo,
modelador, criador de mundos e realidades
culturalmente compartilhados. As Bachianas Brasileiras
dizem não apenas sobre o mundo no qual foram
produzidas, mas também conformam uma certa idéia
de nacionalidade, de brasilidade, e ao mesmo tempo
nos diz sobre o processo de “tornar real” uma
composição bachiana no século XX. Sem falar que
pensar as Bachianas é também tentar compreender
como Villa-Lobos e seu tempo pensavam a música de
Bach. Outro fator importante se refere à identificação
do lugar social ocupado pelo compositor e como essa
posição interferiu na difusão e no “estatuto de
autoridade” que sua música adquiriu, como “versão”
do Brasil.

Em 1930, Heitor Villa-Lobos chegara a São Paulo


após sua segunda viagem a Paris. Estava com quarenta
e três anos, e com uma fama já conquistada desde sua
primeira viagem à capital francesa, em 1923. Após sua
chegada, começa a tecer as partituras do que seria mais
tarde, após 15 anos de trabalho, as nove Bachianas
Brasileiras, conjunto considerado sua obra-prima,
juntamente com os Choros, escritos na década anterior.

BH, v. 2, n.7, p. 107-126, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


113
Dentre estas nove peças escritas entre 1930 e 1945,
destaca-se a de número cinco. “Em grande parte
responsável pela penetração de Villa-Lobos nas mais
diversificadas faixas do público” (NOBREGA, 1971,
p.83). As obras, segundo o compositor, seriam em
homenagem a J. S. Bach (1685-1750). Para alguns
biógrafos, musicólogos e estudiosos de sua obra
“constituem o grande momento da música de nossa
terra” (PALMA, 1971, p. 11).

Diversas são as explicações biográficas para o interesse


de Villa-Lobos por Bach. Essas se apóiam em um
argumento presente em quase todos os textos sobre a
vida e a obra do compositor carioca.
Data de seus oito anos a adoração por Bach. A explicação é dupla
e não implica necessariamente em qualquer genialidade: o garoto
estava farto daquela música banal que o assaltava por todos os
lados e queria agarrar-se a algo diferente. Duas coisas pareciam-lhe
incomuns: Bach e a música caipira. Uma força irresistível impeliu-
o para Bach. Sua idade impedia-o de compreendê-lo
imediatamente, mas isso, no momento pouco se lhe dava – aquela
música era diferente. Responsável por esta nova predileção foi a tia
Zizinha, boa pianista, grande entusiasta do Cravo bem Temperado.
E o pequeno Heitor extasiava-se diante dos prelúdios e fugas que
a tia lhe tocava. Como vemos, desde criança Heitor Villa-Lobos
recusava-se instintivamente a aceitar a rotina: tinha uma moldura,
preferentemente polifônica. O acorde perfeito para Villa-Lobos
tinha, e ainda tem, o efeito dos acordes dissonantes para uma
pessoa normal. Dissemos um pouco acima que Bach e a música
caipira pareciam-lhe incomuns. Na verdade, o menino pressentiu
até uma certa relação entre estes gêneros de música tão pouco
afins, pelo menos aparentemente. (MARIZ, 1949, p. 26)

A biografia escrita por Vasco Mariz é resultado de uma


entrevista concedida por Villa-Lobos ao musicólogo.
Torna-se necessário, portanto, como demonstra
Guérios (2001), destacar o possível caráter
autobiográfico do texto. A “adoração por Bach” desde
os oito anos de idade apontaria para a necessidade por
parte do biografado de construir sobre si a imagem de

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 107-126, maio. 2006


114
um compositor prodígio como Mozart ou Beethoven,
por exemplo? O garoto, “farto daquela música banal”,
ouvia Bach. Isso não soaria ... genial? Sobre esse
ponto, Mariz faz questão de frisar: a adoração por
Bach “não implica necessariamente em qualquer
genialidade”. Mas, ao contrário, parece que o biógrafo
induz o leitor a pensar de forma diferente. Estabelecer
um vínculo entre a música alemã e os acordes e
melodias “caipiras” da música brasileira não soaria
muito bem? Como poderia não parecer genial um
“menino” que “pressentiu” uma relação entre a
“música caipira” e as composições de Bach?

Outros musicólogos seguem a mesma argumentação


para explicar a composição das Bachianas. Alguns
trechos parecem diretamente influenciados pela
biografia pioneira de Vasco Mariz, escrita ainda na
década de 1940: “Alimentado desde infância nestas
duas fontes generosas – Bach e o populário musical
brasileiro – era o compositor predestinado a realizar
esta milagrosa fusão” (NOBREGA, 1971, p. 12).
Nota-se a permanência da mesma idéia concebida, três
décadas anteriores, na primeira biografia: a questão da
genialidade e da predestinação como fundamento para
justificar a composição das Bachianas Brasileiras.
Referindo-se à obra, Bruno Kiefer questiona: ao
prestar uma homenagem a Bach, Villa-Lobos não teria
ido longe demais e forçado assim uma síntese inviável?
(KIEFER, 1981, p. 114)

Mário de Andrade, ao comentar a transformação


operada por Villa-Lobos em sua maneira de compor
dos anos 20 aos 30, parte para um caminho mais
complexo e crítico. Mário faz uma comparação entre
os Choros e as Bachianas. Segundo o musicólogo, a
revolução de 1930 teria afetado não só a vida, mas
também a obra do compositor, marcando o início de

BH, v. 2, n.7, p. 107-126, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


115
um período distinto da fase “brasileira” representada
pelos Choros. O autor de Macunaíma aponta a opção
por Bach como uma “solução desesperada” por parte
do compositor:
Mas enfim Villa-Lobos se fixa em Bach como uma solução talvez
um pouco desesperada, e volta a produzir livremente. É o novo
ponto culminante, das “Bachianas” em principal, sem mais aquela
plenitude e mestria irretorquível da fase brasileira, mas sempre
apresentando obras de muito interesse e algumas de grande valor.
Villa-Lobos é o grande compositor brasileiro. (ANDRADE apud
COLI, 1998 [1945], p. 173)

O trecho escrito por Mário de Andrade em 1945


demonstra uma explicação diversa para adoção de
Bach por parte de Villa-Lobos. O que Mário teria
chamado de “solução desesperada”? Com que
parâmetros distingue “nacional” de “brasileiro”
quando diz, mais à frente no texto, que “Villa Lobos
se torna um artista condutício, anexado aos poderes
públicos, bem pago, não mais necessariamente
brasileiro, mas nacionalista” (ANDRADE apud
COLI, 1998 [1945], p. 173)?

Na década de 20, é notória a adoção do programa de


Mário de Andrade por parte de Villa-Lobos na busca
da criação de uma “música brasileira autêntica”. A
estratégia de apropriação “espertalhona” da música
estrangeira, destacada no Ensaio Sobre a Música
Brasileira, escrito em 1928, parece ter sido seguida de
forma mais eficiente por Villa-Lobos, segundo o
próprio Mário, nos Choros do que nas Bachianas,
escritas duas décadas depois. Quando, no seu Ensaio
Sobre a Música Brasileira, Mário de Andrade diz que
“a reação contra o que é estrangeiro deve ser feita
espertalhonamente pela deformação e adaptação dele”
(ANDRADE apud NAVES, 2001, p.189-191), ele está
percebendo, segundo (NAVES, 2001, p. 190), “os

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 107-126, maio. 2006


116
riscos de um procedimento unilateral, capaz de tomar
um único elemento étnico como configurador da
identidade brasileira, criticando uma certa tendência
de pensar o ‘nacional’ a partir do ‘exótico’”. O próprio
Villa-Lobos se torna alvo desta crítica, segundo Naves,
ao criar uma “pseudo-música indígena” (ANDRADE
apud NAVES, 2001, p.190).

O que teria levado Villa-Lobos a escrever, a partir de


1930, a série em homenagem a Bach? Certamente, ele
deve ter ouvido este questionamento diversas vezes
após as publicações das famosas partituras e das
diversas execuções públicas feitas pelo maestro
regendo as peças.

Diversos trabalhos apontam e continuam a apontar os


Choros como uma fase mais experimental de Villa-
lobos, seguindo um caráter mais brasileiro da obra do
compositor; e as Bachianas, menos modernistas no
sentido de uma volta aos modelos românticos e
neoclássicos2 em voga na Europa, naquele momento.
Até que ponto a historiografia não reforça a visão de
Mário sobre a obra e aceita, assim, a idéia de maior ou
menor autenticidade “brasileira”? O caráter
antropofágico presente no Choros n°2 não estaria
presente nas Bachianas, que também remontam a
gêneros musicais brasileiros e os adaptam em
contraponto a ritmos caracteristicamente bachianos?
O mesmo não teria sido realizado com os ritmos e
2
Assim como Pepper-corn
formas musicais herdados de Bach quando
(1989), acredito que não e transformados ao “estilo” brasileiro? Ou Villa-Lobos
possível estabelecer uma
fase "neoclássica" de Villa-
apelara para o “exótico”, provocando, assim, uma
Lobos, pois o compositor crítica ácida por parte de Mário de Andrade?
compunha ao mesmo
tempo peças que apresen-
tavam estilos completa- As Bachianas não representariam também um universo
mente diversificados. Clas-
sificar as Bachianas como cultural híbrido, mestiço e multifacetado? O discurso
peças musicais represen- antropofágico não estaria presente nas décadas de 30
tantes de um estilo espe-
cífico não traria benefício e 40 lado a lado a um projeto político pedagógico
algum para os objetivos
propostos neste trabalho.

BH, v. 2, n.7, p. 107-126, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


117
“homogeneizador”, levado a cabo pelo governo do
qual fez parte o compositor? O discurso político
unificador eliminaria a diversidade da obra de arte em
função destes elementos “homogeneizadores”?

O nacional não pode ser aceito como um ponto de


partida, como categoria. Nesse sentido, antes de
“nacionalistas”, as Bachianas trazem elementos
representantes de tradições musicais que remontam ao
século XIX, tal como a modinha. Ao mesmo tempo,
gêneros musicais apropriados da obra de Bach. Como
opera o mecanismo sócio-cultural que permite estas
obras serem reconhecidas ao mesmo tempo, como
“Bachianas” e “Brasileiras”?

Acredita-se aqui que a música nacionalista,


representada pelas Bachianas, espelha um lugar de
interseção entre diversas temporalidades e
representações da música brasileira. A aparência
homogênea destas peças não pode esconder a
característica híbrida e mestiça destes trabalhos. Em
outros termos, estas peças explicitam, à luz de uma
análise cultural, a confluência de temporalidades
diversas: modinhas, emboladas, cantilenas e martelos
associam-se à música européia representada por árias,
fugas e outras formas musicais provindas da Europa.
Essa conclusão comprovaria a adoção do programa de
Mário exposto no seu Ensaio. A música, assim, se
tornaria um dos canais através dos quais a cultura é
transmitida e transportada de um tempo a outro.

Deixando de lado a lente da separação e da dicotomia


com a qual as ciências sociais sempre enxergaram as
relações culturais, este artigo pretende apontar a
“transmissão”, “transformação” e os percursos de
gêneros musicais, ritmos, formas, sonoridades,
temáticas, grafias, etc, (“fragmentos e estilhaços” 3)

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 107-126, maio. 2006


118
que representariam uma diversidade cultural e uma
mistura características de uma produção musical que se
desenvolveu “entre mundos” que se cruzam. Nesse
mesmo sentido, pensando em termos de diversidade e
de mistura, Gruzinski alerta que o uso de expressões
como “cultura brasileira” ou “cultura nacional”
devem-se mais “à tradição das ciências sociais que às
obscuras tradições afro-indígenas do Brasil”. Estes
enfoques dualistas e maniqueístas seduzem pela
simplicidade. “As mestiçagens quebram esta
linearidade” (GRUZINSKI, 2002, p. 26).

Pode-se perceber essa mesma preocupação em


Chartier (2002) quando afirma que “o que se torna
muito caro à abordagem cultural do passado é analisar
como se cruzam e se imbricam diferentes figuras
culturais” (CHARTIER, 2002, p. 49). Como Villa-
Lobos se apropria das “figuras culturais” ao longo da
produção das Bachianas? Nesse ponto, o conceito de
apropriação cultural pretende “realçar a maneira
contrastante através da qual os indivíduos fazem uso
dos motivos ou das formas que partilham com os
outros” (CHARTIER, 2002, p. 50). Essas “figuras
culturais” são aqui entendidas como formas, ritmos,
referências e gêneros musicais, com os quais o
compositor manteve algum contato e que estão
representados em suas composições.

Fabris (1994) afirma que o conceito de modernidade e


suas convergências possíveis com o modernismo e a
imbricação entre nacionalismo e engajamento estão
dentre os principais enfoques sobre o modernismo.
Ainda segundo a autora, os recentes trabalhos sobre o
modernismo brasileiro chamam a atenção para a
necessidade de um estudo aprofundado do século
3
Os termos estão em XIX, o que ela chama de “as raízes oitocentistas da
GRUZINSKI, Serge. O
Pensamento Mestiço. SP:
modernidade brasileira”. No caso da manutenção de
Companhia das Letras.
2002, p 87.

BH, v. 2, n.7, p. 107-126, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


119
ideais românticos na concepção das Bachianas, entre os
anos 30 e 40, este ponto se torna muito importante.
No Ensaio, Mário explica como a tradição musical
brasileira deve ser revisitada pelo músico nacionalista.
As Bachianas representariam de certa maneira a
concretização deste “programa” ao buscar elementos
musicais fragmentados, modificados, (re)significados
ao longo do tempo. De qualquer maneira, é necessária
uma pesquisa mais detalhada que tenha como hipótese
a utilização e o apelo ao “exótico” por parte do
maestro carioca.

O processo de criação musical das Bachianas, em certa


medida, é fiel à posição de Mário de Andrade com
relação à memória. Memória e esquecimento fazem
parte, segundo Souza (1999), da estratégia discursiva
de Macunaíma, obra publicada pela primeira vez em
1928. O esquecimento não se apresenta como
destruição do passado, mas como selecionador de
fragmentos que comporiam a narrativa.

Esses “fragmentos e estilhaços”, presentes na música


brasileira, fazem parte da mistura proporcionada pelos
encontros entre América, África e Europa no início do
processo de mundialização, segundo ele, no século
XVI, e não pode ser reduzido à formulação de uma
nova ideologia nascida da globalização. “O esforço que
fazemos para juntar os fragmentos que nos chegam
ininterruptamente de todos os campos do globo,
tornou-se um exercício planetário que na verdade
intensifica as práticas inauguradas no México do
Renascimento” (GRUZINSKI, 2002, p.87).

A constante referência utilizada por Gruzinski aos


processos contemporâneos (como exemplo, a própria
obra de Mário de Andrade) permite o
redimensionamento do processo de mundialização,

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 107-126, maio. 2006


120
sob o ponto de vista histórico, a partir da articulação
sincrônica e diacrônica dos tempos cruzados nos cinco
séculos de sua construção. Essa ponte temporal
construída pelo exercício experimentado por
Gruzinski fornece novos paradigmas para o
enfrentamento da questão da mestiçagem e para as
indagações que norteiam nossos interesses pelas
representações construídas acerca da mestiçagem.
Investigando a obra de Villa-lobos, visualizam-se os
encontros entre referências de mundos que não
comportam mais apenas uma definição objetiva como,
por exemplo, música nacionalista ou nacional.

Torna-se legítima, portanto, a necessidade de se


investigar as transcrições, os arranjos, os estudos de
obras de Bach, feitas por Villa-Lobos durante o
período de composição das Bachianas e que
possivelmente estão representadas nas peças. Mostra-
se necessário, também, para responder historicamente
os problemas que se colocam, investigar o universo
musical no qual as obras foram compostas. O que
Villa-Lobos ouvia? Quais obras eram executadas
naquele contexto? Qual o contato que o compositor
mantinha com as obras de Bach, além destas
transcrições? Quais os mecanismos de difusão das
obras de Bach e das peças do próprio Villa-Lobos? O
que se perde e o que se mantém de tradições musicais
apropriadas pelo compositor?

UM UNIVERSO MUSICAL BACHIANO:


VILLA-LOBOS “LEITOR” DE J. S BACH

Em 26 de agosto de 1930, Heitor Villa-Lobos rege seu


primeiro concerto no Brasil após quase três anos na
Europa. Concerto promovido pela Sociedade
Sinfônica de São Paulo. No repertório, dentre outras
peças, o primeiro Concerto de Brandemburgo, de Bach
(ANDRADE, 1963 [1930], p. 146). Villa-Lobos,

BH, v. 2, n.7, p. 107-126, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


121
obviamente, estudara o concerto. Por que não o de n°
2 ou de n° 6? A escolha do Concerto de Brandemburgo, n° 1
pode se justificar pela maior facilidade de adaptação da
sonoridade desta peça àquele universo musical. A
escrita do concerto permite maior mobilidade por
parte do regente em promover alguma alteração, seja
na orquestração ou na própria interpretação. E foi o
que aconteceu. Villa-Lobos substituiu o violino
pequeno por um violinofone, deixando provavelmente
o concerto com uma sonoridade mais “romântica” em
termos de intensidade sonora. A apresentação desta
peça foi um dentre vários outros contatos diretos de
Villa-Lobos com a obra de Bach. Durante toda a
década de 30, esses contatos se intensificam.
Transcrições, arranjos e composições ao estilo
bachiano começam a fazer parte da rotina do
compositor até a década seguinte. Datam desse
período as transcrições da Fantasia e Fuga n° 6 , do
Prelúdio e Fuga n° 4 e 6 e da Toccata e Fuga n° 3, todas de
19384.

As Bachianas n° 5 e 6 foram compostas exatamente


neste ano. A de n° 5, escrita originalmente para
soprano e orquestra de violoncelos, e a de n° 6, para
fagote e flauta. É muito interessante notar que alguns
elementos musicais presentes nas obras de Bach se
encontram quase que inalterados nas partituras de 4
MVL/Rio de Janeiro -
Bb/P207- A forma
Villa-Lobos. Quando as melodias são modificadas, as abreviada MVL (Museu
estratégias encontradas pelo compositor para manter a Villa-Lobos) será utilizada
daqui em diante para
aproximação rítmica, por exemplo, são facilitar a referência
documental.
interessantíssimas. Nas árias das Bachianas Brasileiras n° 5
e n° 6 5, nos primeiros compassos de ambas as peças, 5
VILLA-LOBOS, H.
Bachianas Brasileiras n° 5:
Villa-Lobos apropria-se de um famoso trecho da para canto e orquestra de
Toccata e Fuga n° 2 6 para órgão. A escala inicial utilizada cellos (manuscrito) RJ,
1938. MVL/ Rio de Janeiro
pelo compositor brasileiro na introdução da Bachiana - P.5.1.4 e VILLA-LOBOS,
H. Bachianas Brasileiras n° 6:
n° 6, executada pela flauta, está localizada nos para flauta e fagote
(manuscrito) RJ, 1938.
MVL/ Rio de Janeiro -
P.5.1.4

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 107-126, maio. 2006


122
compassos 12 e 13 da peça escrita na Alemanha entre
os anos de 1703 e 1707. Os intervalos, mesmo que em
tonalidades diferentes, nesse caso, são reproduzidos de
forma idêntica. Mesmo que não existam, no Museu
Villa-Lobos, registros de um possível arranjo ou
transcrição dessa Toccata em especial, certamente,
Villa-Lobos a estudara. No movimento da Bachiana
Brasileira n° 5, denominado “Martelo”, escrito em
1945, Villa-Lobos apropria-se do mesmo recurso
citado acima. Em intervalos de terça, o piano7 que
acompanha o canto executa uma seqüência
descendente no momento em que acompanha o
seguinte texto do canto: “Ai, triste sorte do violeiro
cantadô! Ah! Sem a viola que cantava o seu amo, Ah!
Seu assobio é tua flauta de irerê...”8. O trecho mais
uma vez é semelhante àquele apresentado na Toccata e
Fuga n° 2, de Bach, e mais uma vez utilizado por Villa-
Lobos.

Seguindo as indicações de Mônica Duarte (2002), é


importante destacar, para fins metodológicos, que
existe um processo de seleção e descontextualização
por parte do compositor no momento de concepção
da obra. Essa seleção se dá por critérios culturais. Os
elementos figurativos, classificados aqui como
bachianos, são culturalmente naturalizados como
6
Bach, J. S: Tocata n° II in:
elementos da realidade e não mais de pensamento.
Johann Sebastian Bach's Werke, Relativos ao processo de objetivação, a seleção e
Orgelwerke Erster Band.
Leipzig: Bach-Gesllschaft,
descontextualização são inerentes ao processo de
1857. criação e recepção – e, portanto, re-criação – dos
7
Ver a versão para canto e
objetos musicais. Não podem, assim, ser encarados
piano arranjada pelo como “provas” diretas e objetivas do passado e sim
próprio compositor:
VILLA-LOBOS, Heitor. reveladoras de subjetividades intrínsecas em seus
Bachianas Brasileiras n° 5 for respectivos discursos. O que está nas partituras não é
soprano e orchestra of violoncelli
(voice and piano) New York: exatamente a música de Bach, mas sim um conjunto
Associated
Publishers, Inc. s/d -
Music de símbolos que permitem um conjunto de receptores
MVL/Rio de Janeiro - reconhecerem aqueles elementos como bachianos.
P.5.2.3

8
Idem

BH, v. 2, n.7, p. 107-126, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


123
O ano de 1941 fora de um intenso contato com Bach
por parte do compositor brasileiro. Diversos prelúdios
e fugas transcritos para várias formações orquestrais
datam deste período. Nesse mesmo ano, realizou-se
no Rio de Janeiro o “Festival Bach Villa-Lobos”. Às 17
horas do dia 27 de outubro, o Conjunto de
Violoncelos, sob a regência de Edoardo de Guarnieri,
teria iniciado, de acordo com o programa, uma série de
obras compostas por Bach e arranjadas por Villa-
Lobos. No repertório, prelúdios e fugas. O impresso
de divulgação do concerto dizia: “A arte multiforme
de Heitor Villa-Lobos achou como farol e guia, no seu
último desenvolvimento, a obra genial do Cantor de
Leipzig, João Sebastião Bach” 9. Naquela segunda
feira, além das 4 fugas e 4 prelúdios do Cravo Bem
Temperado, estava no repertório a obra As Bachianas
Brasileiras n° 110.

A música de Bach, desde a sua redescoberta feita por


Félix Mendelssohn, regendo a Paixão Segundo São
Mateus, em fins do século XIX, não parara de se
popularizar. Naquele contexto “romântico”,
Mendelssohn estabeleceu uma série de
transformações na interpretação (RUEB, 2001). O
modelo de Kultur se fixara no modelo germânico, em
ascendência. Para a música brasileira, não poderia ser
diferente: “Ora, toda e qualquer imaginação criadora,
sejam mesmo as incomparáveis de Bach ou de Mozart,
tem seus altos e baixos” (ANDRADE, 1963 [1930], p.
154).

Para Mário de Andrade, a figura de Bach soava como


algo insuperável na música ocidental. É muito pouco
estudado o papel desempenhado por Mário na
formação e na carreira de Villa-Lobos. O compositor
aderira ao movimento musical de momentos 9
Biblioteca MVL/Rio de
anteriores e o mesmo acontecera nas décadas de 30 e Janeiro - 76.147

10
Biblioteca MVL/Rio de
Janeiro - 76.147

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 107-126, maio. 2006


124
40. Mais que uma atitude desesperada, como afirmara
Mário em 1945, no trecho citado anteriormente, o
universo musical demonstra que Bach transitava com
uma certa regularidade, como se pode notar no
Festival realizado em 1941. E este trânsito certamente
aproximou Villa-Lobos da obra do compositor
alemão.

É de 1940 a série de seis prelúdios para violão11. Como


anota o próprio compositor na partitura, o Prelúdio n° 3
fora escrito em homenagem a Bach e, como trazia um
periódico daquele ano, era “preparatório para um
concerto para violão e orquestra de câmara” 12. Os
trabalhos que se propuseram a desenvolver uma
11
VILLA-LOBOS, Heitor. análise da obra para violão solo do compositor se
Predude n°3. Editions Max
Eschig, 48 rue de Rome,
limitaram a apontar o “caráter” bachiano do prelúdio,
Paris. 1955 [1940]. estabelecendo um debate técnico e harmônico da
12
MUSICA VIVA. Prelúdios
partitura13. No período, Villa-Lobos fazia a transcrição
para violão de Villa-Lobos. de algumas das mais difundidas das peças de Bach
[1941] MVL/Rio de Janeiro
para órgão: a Toccata e Fuga n° 3.14 A peça fora
13
Ver os trabalhos de executada em 4 de março de 1944 sob a regência do
PEREIRA, Marco. Heitor
Villa-Lobos: sua obra para maestro15. A utilização da nota pedal, recurso técnico
violão. Brasília: Musi Méd, aplicado ao órgão, é apropriada e utilizada por Villa-
1984; SANTOS, Turíbio,
Heitor Villa-Lobos e o violão. Lobos na segunda parte do prelúdio para violão,
Rio de Janeiro: MVL, 1975. escrito em 1940.
14
Villa-Lobos transcreveu
em 1938 a Toccata e Fuga n° 3
do original para órgão.A
O caráter romântico é um dos dados importantes nas
peça fora transcrita pra uma transcrições das obras de Bach feitas por Villa-Lobos
orquestra composta de 2fl.,
2ob, c. inlg, cl. baixo, 2fg,
entre 1938 e 194116. A transcrição de uma peça para
cfg, 4cor, 2trop, 2trb, Tim e instrumento solo em uma execução que requer uma
cordas. Desta trancrição
existe localizada no Acervo grande orquestração sinfônica, como se pode
do MVL apenas a cópia observar na transcrição da Toccata e Fuga n° 3, supra
manuscrita da parte da
trompa. Biblioteca MVL/ citada, estava de acordo com os pressupostos
Rio de Janeiro - p..207.1.1 românticos herdados de uma tradição presente no
15
VILLA-LOBOS. Sua Obra. século XIX, cultivada por compositores como Liszt,
3ª ed., Rio de Janeiro: MV-L,
1989, p. 151-155.
Wagner e Mahler e resgatada por Villa-Lobos nas
décadas de 30 e 40.
16
VILLA-LOBOS. Sua Obra.
3ª ed., Rio de Janeiro: MV-L,
1989, p. 151-155.

BH, v. 2, n.7, p. 107-126, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


125
CONCLUSÃO

Há muito que se estudar sobre a música de Heitor


Villa-Lobos. Os documentos citados neste artigo
estão disponíveis há um bom tempo para
pesquisadores. O momento é fecundo, em parte,
devidas às novas possibilidades apontadas pela
História Cultural. Num trabalho recente, Paulo Renato
Guérios fez uma pesquisa exaustiva sobre o
compositor e sua obra. Acredito que permaneceram,
na maioria dos trabalhos sobre a música de Villa-
Lobos, ora uma análise mais estética das composições,
ora uma abordagem mais biográfica. Guérios tentou
buscar um equilíbrio e o resultado final foi um
trabalho que contemplou tanto a música quanto a vida
do compositor. Um outro grupo de pesquisas, estas
em maior número, a partir da última década,
privilegiou a relação da obra e da vida do compositor
com a construção da nação.

Toda essa tradição de pesquisa em torno do tema


passa, atualmente, por uma renovação teórico-
metodológica que aproxima o historiador das fontes
musicais e exige dele um conhecimento cada vez mais
específico. O caminho está indicado por essa nova
historiografia. O que se pretende neste momento é a
busca de um diálogo entre diferentes documentos e a
música, a fim de se escrever uma história cada vez
mais musicológica e uma musicologia cada vez mais
histórica.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 107-126, maio. 2006


126
REFERÊNCIAS

ANDRADE, M. Música, doce música. SP: Livraria Martins Editores, 1963.


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Leipzig: Bach-Gesllschaft, 1857.
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inquietude. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002.
COLI, Jorge. Música Final. SP: UNICAMP, 1998.
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social: produtos e processos da construção do significado em música. In:
Em Pauta. v. 13-nº 20, jun. 2002, p. 123-144.
FABRIS, Annateresa (org.). Modernidade e modernismo no Brasil. Campinas,
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Antropológico da Trajetória de Heitor Villa-Lobos. Dissertação de
Mestrado, PPGAS/Museu Nacional/UFRJ, 2001.
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In: PINSKI, Carla Bassanezi. Fontes históricas. SP: Contexto, 2004.
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PEREIRA, Marco. Heitor Villa-Lobos: sua obra para violão. Brasília: Musi
Méd, 1984.
RUEB, Franz. 48 variações sobre Bach. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.
SANTOS, Turíbio. Heitor Villa-Lobos e o violão. Rio de Janeiro: MVL, 1975.
SOUZA, Eneida Maria de. Limites da propriedade literária. In: A pedra
mágica do discurso. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999, p. 32-50.
VILLA-LOBOS, Heitor. Prelude n°3. Paris: Editions Max Eschig, 1955.
VILLA-LOBOS. Sua obra. 3ª ed., Rio de Janeiro: MV-L, 1989, p. 151-155.

BH, v. 2, n.7, p. 107-126, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


O Homem e o Meio Natural nas Minas
Gerais durante o Período Colonial
129
O Homem e o Meio Natural nas Minas
Gerais durante o Período Colonial

Leandro Pena Catão*

Resumo: O presente estudo analisa o período colonial mineiro à


luz das relações entre História e meio ambiente. Apresenta-se uma
série de fontes relativas à temática História e Natureza referentes às
Minas Gerais para os séculos XVIII e XIX. Trata-se de um
levantamento das técnicas de mineração empregadas naquele
contexto e as conseqüências da aplicação de tais técnicas sobre o
meio ambiente. O estudo pretende ainda analisar a leitura que os
homens do século XVIII tinham da natureza que os cercava,
assinalando as sensíveis alterações que tal leitura sofreu ao longo da
segunda metade do século XVIII sob a influência do Reformismo
Ilustrado em Portugal.

Palavras-chave: História e Natureza; Mineração; Minas Gerais;


Reformismo Ilustrado

Abstract: This study analyzes the colonial period of Minas Gerais,


keeping in mind the relation between History and Environment.
Here we have several fonts concerning the theme History and
Nature in Minas Gerais in the XVIII e XIX centuries. Actually, it is
an overview about mining techniques used in that context and the
consequences of its applications in the environment. This study also
intends to analyze the point of view of XVIII century's men about
the nature around them, emphasizing the sensible alterations that
this point of view had suffered in the second half of XVII century,
under the influence of the Illustrated Reformism in Portugal.

Keywords: History and Nature; Mining; Minas Gerais, Illustrated


Reformism

Há bastante tempo historiadores e estudiosos de


outras áreas do conhecimento vêm se debruçando
sobre os mais variados aspectos da História das Minas
Gerais durante o período colonial. Entretanto, são
escassos e superficiais os trabalhos que abordam *
Doutor em História Social
da Cultura pela UFMG
Professor da Faculdade
Estácio de Sá e da
FUNEDI/UEMG 1

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 127-146, maio. 2006


130
especificamente a interação entre homem e meio
ambiente na Capitania Mineira Colonial. Uma das
intenções deste trabalho é suscitar a curiosidade de
pesquisadores e estudiosos do referido tema para esta
nova e interessante perspectiva de trabalho
historiográfico, que lida exatamente com a correlação
entre homem e meio ambiente. Este trabalho não se
propõe a nenhum aprofundamento teórico no que diz
respeito à metodologia da História Ambiental1,
pretendendo apenas contribuir modestamente com a
apresentação de aspectos referentes à forma com que
a Coroa Portuguesa e os habitantes das Minas Gerais
lidaram com a natureza, então exuberante, que os
cercava.

Os primeiros veios auríferos foram encontrados na


região das Minas Gerais no final do século XVII,
perpetradas por várias Bandeiras paulistas. As
descobertas se deram concomitantemente entre os
anos de 1693-1695 na região do Rio das Velhas e nas
proximidades onde se estabeleceria Vila Rica2. É difícil
estimar o estado em que se encontrava a natureza, nos
tempos em que os aventureiros paulistas fizeram os
primeiros achados do metal precioso. O que sabemos
é que boa parte do território que hoje corresponde ao
território do Estado de Minas Gerais era recoberto
pela mata atlântica, uma esplendorosa floresta, que
1
Termo cunhado pela guardava em seu interior uma igualmente fabulosa
historiografia norte-ameri-
cana em meados do século diversidade de seres vivos de todos os gêneros.
XX. No entanto, muitos
trabalhos dedicados à esta
Naquele ambiente florescia uma das mais
temática foram produzidos extraordinárias biodiversidades existentes no nosso
fora dos Estados Unidos,
sem necessariamente reivin- planeta3. A outra parcela do território mineiro era
dicar o "rótulo" de História
Ambiental, sobretudo na
recoberto pelo cerrado, paisagem não tão exuberante
França. nem tão rica quanto à biodiversidade em comparação
2
BOXER, Charles R. A
com a mata atlântica, mas nem por isso menos bela4.
Idade de Ouro do Brasil. p. 61- Um fato que ilustra bem o quanto era difícil o acesso
63. ANTONIL, André João.
p. 164-165. e locomoção naqueles tempos em que as Minas Gerais
3
DEAN, Warren. A Ferro e
Fogo. p. 19-37

BH, v. 2, n.7, p. 127-146, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


131
eram recobertas pela mata atlântica era o fato de que
se gastava quatro dias para ir do acampamento de
mineração de Vila Rica às vizinhanças de ribeirão do
Carmo, apesar de a distância entre as duas localidades
ser de apenas duas léguas. O que dificultava o acesso
eram “os grandes matos que impediam a certeza e brevidade do
caminho” 5.

A descoberta do ouro na região das Minas Gerais


desencadeou um fabuloso contingente populacional
em direção àquelas matas e cerrados. Foi a maior
corrida do ouro da História da humanidade6. Num
curtíssimo período, a região das Minas já estava
povoada por dezenas de milhares de homens, todos
em busca do enriquecimento a partir da exploração do
ouro. A origem dos aventureiros era a mais variada:
reinóis, paulistas e outros colonos vindos de outras
partes da América portuguesa, acompanhados de seus
cativos negros ou índios. Os primeiros habitantes das
Minas não tinham por hábito fixar residência, devido
ao caráter itinerante que caracterizava a exploração
naquele contexto. Havia apenas dois caminhos de
acesso àquelas terras, um com origem em São Paulo,
denominado caminho velho, outro que partia da Bahia
e acompanhava o rio São Francisco. Devido à falta
quase absoluta de infra-estrutura, a vida dos primeiros
mineiros foi bastante dura, marcada pela fome e
carestia de uma série de itens. Não foi raro naquele
contexto homens morrerem de fome com verdadeiras
fortunas em ouro presas à cintura, ou terem que
abandonar regiões riquíssimas em ouro para não 4
Isso do ponto de vista de
um amante da natureza
morrerem de fome 7. contemporâneo.

5
BOXER, Charles R. A
Era um expediente do homem colonial e das Idade de Ouro do Brasil. p. 63.
populações indígenas antes da chegada dos europeus a 6
Idem. p. 107.
estas terras, o hábito de procurar na natureza selvagem
7
BOXER, Charles R. p. 71-
72. ANTONIL, André João.
p. 164-168 e 181-186.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 127-146, maio. 2006


132
parcela importante do seu sustento diário. A natureza
era uma fonte de alimentos e outros recursos
indispensáveis à vida8. Saber como extrair do meio
ambiente os meios básicos para a subsistência foi uma
vantagem vital para aqueles que tiravam proveito de tal
situação. Nesse ínterim, os paulistas levavam uma
ligeira vantagem com relação a seus concorrentes
reinóis, uma vez que seus laços com as culturas
indígenas legavam àqueles conhecimentos
extraordinários de como viver num meio tão hostil aos
que desconheciam os segredos das matas e sertões.
Em determinadas circunstâncias de extrema penúria
vivida pelos mineiros durante os primeiros anos de
mineração nas Gerais, tais conhecimentos foram
crucias para determinar aqueles que teriam sucesso na
dura empreitada da mineração. Para sobreviver, muitos
homens “se aproveitarão até dos mais imundos animais” para
se alimentarem9. O alimento era coletado na natureza
das mais diversas formas. Raízes, animais de pequeno
e médio porte, frutos e legumes de todo o tipo, ovos,
mel, e até mesmo insetos eram utilizados como fonte
de alimento por aqueles homens que se aventuravam
por meses e, não raro, anos no coração do continente
ainda “selvagem”.

Naquele contexto, as florestas e sertões eram


encarados como verdadeiros mananciais de alimentos
e outros gêneros de extrema necessidade pelas
populações luso-brasileiras que habitavam a América
portuguesa. Entretanto, Minas Gerais não era uma
região pródiga quanto à disponibilidade desses gêneros
encontrados na natureza. Certamente o grande afluxo
de homens que para ali se dirigiram nos primeiros anos
de sua colonização foi uma das causas de tais
8
Para maiores informações a dificuldades, mas certamente não foi a única. Vejamos
esse respeito ver: algumas fontes a esse respeito: “Com esta notícia de
HOLANDA, Sergio
Buarque de. Caminhos e grandezas, quis logo vir às Minas, mas não o fiz por falta
Fronteiras.

9
Idem. p. 56.

BH, v. 2, n.7, p. 127-146, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


133
de mantimentos nos caminhos e cama, de que morria
muita gente”10. O autor destas palavras foi um
“forasteiro” anônimo que partiu do Rio de Janeiro
para as Minas Gerais em 1698. Ele relata nesse mesmo
documento que fora grande a mortandade de homens
nas Minas ocasionada pela carência de alimentos. A
falta de comida levou muitos mineiros “a comerem
bichos de taquara, que para os comer é necessário estar
um tacho no fogo bem quente, e ali os vão botando; os
que estão vivos logo bolem com a quentura e são os
bons, e se se come algum que esteja morto é veneno
refinado”11. Em outro relato relativo a esse mesmo
contexto, o autor também acentua a falta de víveres
silvestres na região das Minas:
por serem tudo matos e asperíssimas brenhas, e falto do mais
favorável gênero de caças, como veados, antas, emas, porcos
monteses e mais gêneros de animais, e mel silvestre, que pelos
campos gerais eram mais abundantes do que pelos sertões de
matos incultos montanhosos e penhascosos 12.

Como vimos, a topografia acidentada das Minas


também foi um obstáculo à obtenção de alimentos na 10
"Notícias
descobrimento das minas de
do

natureza. Em praticamente todas aquelas pioneiras ouro e dos governos


políticos nelas havidos." In:
incursões até as Gerais, os sertanejos, mamelucos e Códice Costa Matoso. Vol. 1 p.
principalmente os indígenas cativos tiveram um papel 245.
fundamental, uma vez que dominavam as técnicas 11
Idem. p. 245.
necessárias à sobrevivência naquelas matas ainda 12
Notícias dos primeiros
pouco conhecidas e exploradas 13. descobridores das primeiras
minas do ouro e estas Minas
Gerais, pessoas mais
Paulatinamente, a questão do abastecimento de assinaladas nestes empregos
gêneros alimentares na região mineradora foi e dos mais memoráveis
casos acontecidos desde os
equacionada, através da introdução da agricultura em seus princípios. In: Códice
Costa Matoso. Vol.I p. 170-
mais larga escala nos arredores das principais vilas e 171.
localidades da Capitania das Minas Gerais e com o
13
Acerca das habilidades e
afluxo cada vez maior de gado a essa região, técnicas de indígenas e
proveniente principalmente dos arredores do rio São mamelucos com relação à
obtenção de alimentos e
Francisco e demais terras ao longo do caminho que outros do meio ambiente
ver: HOLANDA, Sergio
Buarque de. Caminhos e
Fronteiras.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 127-146, maio. 2006


134
ligava Salvador às Minas Gerais. Com o tempo,
também se estabeleceram nas Gerais redes de
comerciantes que garantiram o abastecimento de todo
gênero de mercadorias à região, desde os de primeira
necessidade, até utensílios do mais alto luxo que
alcançavam ali preços muito maiores do que os
observados no litoral14. A estabilidade referente ao
abastecimento e o estabelecimento administrativo da
Coroa portuguesa consolidariam de vez a colonização
da região mineradora. Em meados do século XVIII, a
população da Capitania de Minas Gerais já oscilava em
torno de 450.000 pessoas. Isso significou uma pressão
tremenda exercida sobre a natureza, em dois aspectos.
De um lado, a extração do ouro propriamente dita e,
de outro, o desmatamento de áreas cada vez maiores
destinadas ao plantio de gêneros alimentícios
destinados ao abastecimento das vilas e arraiais 15.

As técnicas empregadas na exploração aurífera na


América portuguesa e nas Minas Gerais, em particular,
estavam entre as mais rudimentares de sua época. O
processo para retirar o ouro da natureza era bastante
simples. No princípio o ouro era facilmente
encontrado no leito dos rios, ribeirões e riachos.
Utilizando uma bateia, os mineradores revolviam o
leito e as encostas dos cursos d’água, ricos em ouro. A
areia, o cascalho e a argila eram colocados na bateia
juntamente com um pouco de água, então os
garimpeiros giravam a bateia, eliminando
paulatinamente seu conteúdo. Ao final do processo, o
ouro estaria depositado no fundo da bateia16. As
escavações originadas em decorrência da mineração
davam origem a poços, que por sua vez eram
14
BOXER, Charles R. A denominados catas. Em 1715, todos os principais
Idade de Ouro do Brasil. p. 70-
80.
achados auríferos da região das Gerais já estavam
produzindo. Com o passar dos anos, à proporção que
15
DEAN, Warren. Op. cit. p.
108-109. os depósitos se foram fazendo em menor número e
16
BOXER, Charles R. Op.
cit. p. 63.

BH, v. 2, n.7, p. 127-146, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


135
mais profundos, os métodos de extração tornaram-se
mais complexos e mais nocivos à natureza, mas nem
por isso menos antiquados. Os cursos naturais dos rios
e riachos eram alterados e jogados contra as suas
margens. Os rios e riachos onde eram realizadas estas
práticas logo se tornaram sujos e lamacentos. Em
outros casos, os riachos eram represados e tinham suas
águas bombeadas às encostas dos morros próximos,
onde também era alta a concentração de ouro. Os
aquedutos por onde a água era conduzida até as
encostas eram construídos com os troncos ocos das
árvores. Na metade do setecentos, já havia grande
carência de madeira nas proximidades de Vila Rica em
decorrência do uso desordenado desse recurso. Em
1754, os mineiros de Vila Rica enviavam um recurso a
D. José I solicitando que ordenasse aos proprietários
das roças que não proibissem a extração de madeiras
para uso nas minas17. No século XVIII, dizia-se que
uma montanha de ouro nada vale sem água18. O
impacto e os danos provocados à natureza por estas
práticas atingiram proporções alarmantes: “O efeito
desse tipo de mineração foi o de substituir a floresta
por charnecas esburacadas”19. Quase tudo o que se via
nas vizinhanças das catas eram montes de cascalho e
terras ao redor de grandes fendas e crateras abertas
por toda a parte. O desnudamento das encostas, fruto
destas práticas de extração, provocou erosão de
grandes quantidades de terra, produzindo gigantescos
sulcos denominados voçorocas, além de assorear os
leitos dos cursos d’água em seu caminho20. Outro
efeito danoso à natureza oriundo da corrida do ouro se
refere às grandes quantidades de mercúrio (na época
chamado solimão) despejadas no meio ambiente. O 17
ARQUIVO Histórico
mercúrio era utilizado para amalgamar o minério, e Ultramarino. Doravante
depois disso era “descartado”. A degradação do AHU. Cx. 64 doc. 65.

ambiente não era provocada apenas pela mineração 18


DEAN, Warren. Op. cit. p.
112-113.
em si. Não foi menor o estrago oriundo das roças.
19
Idem. p. 114.

20
Idem. p. 115.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 127-146, maio. 2006


136
A técnica empregada no cultivo das roças era, tal qual
a empregada na mineração, simples e rudimentar. Não
apenas mineiros, mas também todos os colonos da
América portuguesa queimavam uma determinada
extensão da mata e com pouco trabalho plantavam os
gêneros alimentícios. As cinzas provenientes das
queimadas garantiam boas colheitas por alguns anos
(quatro ou cinco no máximo), ao fim dos quais a terra,
já exaurida e infestada de formigas, era abandonada, e
o processo, repetido em outro lugar. Essa técnica já era
empregada pelos indígenas antes da chegada dos
europeus, foi rapidamente absorvida pelos sertanejos e
colonos e continua sendo empregada ainda hoje em
algumas regiões do Brasil. Naturalmente o tamanho
das áreas incendiadas e a freqüência com que ocorriam
com esse intuito foram aumentando progressivamente
desde a chegada dos europeus à América portuguesa21.
No caso das Minas Gerais setecentistas, essa prática
significou a destruição de imensas áreas antes
ocupadas por matas e cerrados.

A demanda por alimentos era grande naquela região,


uma das mais densamente povoadas do período
colonial. Muitos negociantes e até mesmo antigos
mineradores passaram a atuar no abastecimento
alimentar, devido aos altos ganhos auferidos com
aquele tipo de comércio. Qual era a postura da Coroa
portuguesa ante a questão da depredação ambiental?
Havia algum tipo de movimento que visasse à
preservação daquele espaço? Qual era a posição dos
colonos e sertanejos ante essas questões?
Tanto a Coroa lusa quanto as populações residentes
nas possessões portuguesas na América tinham uma
visão utilitarista da natureza e seus recursos. Não
existiu naquele contexto qualquer movimento
21
Para mais informações
acerca deste processo ver: ambientalista. Em alguns momentos (muito raros), os
DEAN, Warren. Op. cit.,
HOLANDA, Sergio Buarque
de. Op. cit.

BH, v. 2, n.7, p. 127-146, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


137
colonos na América portuguesa tomaram algumas
medidas com o intuito de conter a devastação
desenfreada de determinados recursos naturais. A
maior parte dos colonos simplesmente imaginavam
não ter fim tais recursos. Em 1591, por exemplo, o
Senado da Câmara da Vila de São Paulo tentou
impedir a matança indiscriminada de peixes22. A
intenção era preservá-los para que o recurso estivesse
sempre disponível. As florestas, sertões, rios, enfim, a
natureza era encarada pelos colonizadores da América
portuguesa como uma espécie de “despensa”, que
disponibilizava a eles uma gama de recursos
indispensáveis à vida. Manifestações como essa do
senado da Câmara de São Paulo foram incomuns até
1750. Acreditava-se que os recursos que a natureza
provia eram “inesgotáveis” ou simplesmente não se
pensava na possibilidade de que eles um dia pudessem
faltar.

Segundo José Augusto Pádua, são quatro as variáveis


centrais para se compreender o caráter
ambientalmente devastador da ocupação colonial da
América portuguesa: 1) a terra farta; 2) as técnicas
rudimentares; 3) o braço escravo; 4) a mentalidade de
que terra era para se gastar e arruinar, não para
proteger ciosamente 23. Tal mentalidade era patente nas
ações dos colonos em geral e dos mineiros, em
particular, já que nem mesmo com os elevados
montantes financeiros angariados com a extração do 22
Era costume dos paulistas a
ouro e do diamante fizeram algum tipo de pratica de pesca através do
represamento e envenena-
investimento técnico que proporcionasse uma mento da água, o que matava
extração menos danosa e mais racional dos minérios, todos os peixes de uma só
vez. A técnica foi aprendida
que ocasionaria maiores rendimentos e menos com os indígenas.
desperdício de recursos24. A postura usufrutuária e HOLANDA, Sergio Buarque
de. p. 71.
destruidora dos mineradores era resultado também em
23
PÁDUA, José Augusto. Um
parte do próprio caráter itinerante das catas e do sopro de destruição. p. 73. Na
obra o autor aprofunda cada
um dos quatro itens
levantados.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.6, p. 121-146, nov. 2005


138
sonho que muitos tinham de enriquecer e voltar para o
reino. Apenas a partir da segunda metade do século
XVIII, é que a Capitania das Minas Gerais adquire
maior infra-estrutura e passa a contar com um
contingente mais expressivo de pessoas com
residência fixa em seu território25.

A Coroa também entendia que a floresta era mais um


recurso colonial a ser explorado. Contudo, a metrópole
esboçou medidas preservacionistas já no século XVI.
Resta discutirmos as motivações que estavam por traz
desse comportamento. Em 1605, a administração
portuguesa cria o “Regulamento do Pau-Brasil”, que
instituía permissões especiais para o corte da árvore
tão valiosa do ponto de vista comercial26. Àquela
altura, já era uma proeza difícil encontrar árvores de
pau-brasil nas matas. Medidas como essa visavam
garantir a exploração desse recurso tão valioso, já que
estava na iminência de simplesmente desaparecer, o
que provavelmente ocorreu com alguns espécimes de
fungos, insetos, animais e vegetais, a questão é que o
pau-brasil possuía alto valor comercial, daí o interesse
da Corte. O fato é que a metrópole não se interessava
ou não tomou qualquer medida para conhecer todos
os recursos e dividendos que a exuberante natureza
brasileira poderia lhe proporcionar, exuberância aliás
24
Idem. p. 78. Existiam
naquele época técnicas de cantada desde o início da colonização. Mas esse
mineração amplamente mais
avançadas e algumas panorama iria alterar-se.
inclusive difundidas na
América espanhola.
OS REFORMISTAS ILUSTRADOS DESCOBREM
25
Idem. p. 83.
A NATUREZA.
26
DRUMMOND, José
Augusto. A legislação ambiental
brasileira de 1934 a 1988: O século XVIII, conhecido como o século das Luzes,
comentários de um cientista
ambiental simpático ao
conservacionismo. p. 170.

BH, v. 2, n.7, p. 127-146, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


139
foi um período ímpar da História Ocidental, palco de
eventos que iriam marcar de maneira incomum os
rumos das sociedades européias. O Iluminismo não foi
um movimento homogêneo, muito pelo contrário.
Podemos afirmar que as Luzes eram muitas, variando
sensivelmente de acordo com a região e o credo.
Assim, cada Estado europeu vivenciou esse período
em consonância com as suas especificidades27. Talvez,
seja possível identificar elementos que caracterizassem
de forma tênue uma unidade entre os diversos
movimentos ilustrados da Europa, como a defesa da
idéia de progresso, da eficiência da estrutura
administrativa, da observação científica da natureza e
da valorização do saber aplicado à busca da felicidade
terrena e do bem-estar social28. Vamos nos ater neste
trabalho a este penúltimo item.

As primeiras manifestações do pensamento Ilustrado


penetraram em Portugal por meio dos denominados
“estrangeirados”, homens que, ao passar para o Além-
Pirineus devido às mais variadas razões, circularam
pela Europa, entraram em contato com as “novas
idéias” que então proliferavam nos meios eruditos e,
então, retornavam a Portugal (ou não, como foi o caso
de alguns estrangeirados) divulgando as ditas “novas
idéias”, e isso desde o reinado de D. João V29. Mas a
ilustração em Portugal ganha impulso definitivo no
governo de D. José I, que tinha como primeiro
ministro o proeminente Marquês de Pombal. Durante 27
VILLALTA, Luiz Carlos.
Op. cit. p. 97. Reformismo
seu governo, foi empreendida uma série de reformas Ilustrado, censura e práticas
no campo educacional que abarcou todos os níveis do de leitura. TEIXEIRA, Ivan.
Mecenato Pombalino e
ensino. Os jesuítas, que praticamente monopolizavam Poesia neoclássica, p. 25.
todos os níveis da esfera educacional, foram afastados 28
TEIXEIRA, Ivan. Op. cit.
dessa função, que, a partir de então, passava a contar
com uma orientação ilustrada no campo das ciências 29
NOVAIS, Fernando
Antônio. Portugal e Brasil na
naturais aplicadas. É nesse contexto que nasce a crise do antigo sistema colonial
discussão política acerca do uso predatório que se fazia 1777-180, p. 220-221;
MAXWELL, Kenneth.
Marquês de Pombal:
paradoxo do Iluminismo, p.
8-11.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 127-146, maio. 2006


140
da natureza por um lado, e por outro as reflexões no
sentido de conhecer mais profundamente o meio
natural da América portuguesa. No último quartel do
século XVIII, ainda era incipiente o movimento
preservacionista ambiental no mundo luso-brasileiro
(se é que existia), mas já se ouviam vozes na defesa de
uma exploração “racional” dos recursos naturais.
Nessa época, as ciências naturais em Portugal já
haviam alcançado uma estabilidade razoável em
grande medida devido à importância econômica que
possuíam30. Foi nesse período que finalmente a mata
atlântica tornar-se-ia objeto de curiosidade do governo
português31.

É nesse contexto que se encaminham para as mais


diversas partes da América portuguesa jovens
estudantes luso-brasileiros com a missão de tecer
estudos embasados nas mais recentes descobertas no
campo científico. Esses estudos abarcaram desde as
minas de ouro e diamante à pesca de baleias na costa
baiana, passando também pelas questões mais diversas
acerca de tudo que dizia respeito à agricultura. Todos
esses estudos foram patrocinados pela Real Academia
de Ciências de Lisboa, que tinha por diretriz as
disposições da “ilustrada” Corte portuguesa, que
contou naqueles anos com os serviços de homens que
deram prosseguimento às reformas pombalinas, com
destaque para Rodrigo de Souza Coutinho32.

Ocorreram nas Minas Gerais movimentos que de um


certo prisma preconizaram o interesse pelo
conhecimento de vários aspectos do mundo natural,
que se deu na virada do século XVIII para o XIX.
Aproximadamente em 1750, o então ouvidor da
30
PÁDUA, José Augusto. Comarca de Vila Rica, Caetano da Costa Matoso,
Op. cit. p. 38-40. encomenda dois inquéritos muito interessantes sobre
DEAN, Warren. Op. cit. p.
31 aspectos da natureza, dentre outras coisas. No
134.

32
Idem, p. 39-41.

BH, v. 2, n.7, p. 127-146, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


141
primeiro deles, intitulado Noticias das taquaras, dos cipós e
das muitas comidas que se fazem de milho nas Minas, tem-se
o relato da existência de uma infinidade de espécimes
de árvores, cipós, etc, com a indicação da incidência,
da localização bem como da utilidade de todo o
material arrolado. Devido à etimologia dos espécimes,
observamos a grande influência dos conhecimentos
provenientes da cultura indígena33. O segundo
inquérito tem o mesmo teor e características do
primeiro e é intitulado: Lembranças das ervas medicinais,
dos cipós e das arvores e paus mais usuais no país das Minas.

Com a criação da Real Academia de Lisboa em 1779,


o interesse pelo meio natural brasileiro intensificou-se
acentuadamente. A Real Academia de Lisboa manteve
contato com outros centros de pesquisa de seu tempo,
bem como estimulou a coleta e observação do meio
natural das colônias, publicando os trabalhos que
considerava mais relevantes34. Não demoraria a se
sentir o reflexo destas iniciativas nas Minas do ouro.
Em 1786, Luis da Cunha Meneses, o Governador da
Capitania das Minas Gerais, remetia para o museu da
Real Academia “três caixas com tigres de espécies
diferentes”, conforme ordenara Martinho de Melo e
Castro, sucessor e primo de Pombal na condução da
política do Império luso35. Concomitantemente, o
naturalista Joaquim Veloso de Miranda percorria as
Minas Gerais à procura de espécimes vegetais, animais
e minerais que pudessem de alguma forma interessar
economicamente à Coroa. Um ano depois, o
Governador das Minas do ouro remetia para Martinho
de Melo e Castro outros três caixotes com os frutos
das pesquisas até então realizadas36. Em 1790, o novo
governador da Capitania das Minas Gerais, Conde de 33
CÓDICE Costa Matoso.
Vol. 1. p. 782-786.
Barbacena, remetia para o Reino outras quatro caixas
contendo o mesmo gênero daquelas enviadas nos anos 34
DEAN, Warren. Op. cit. p.
135.

35
AHU. Cx. 124 doc. 19.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 127-146, maio. 2006


142
anteriores37. Mas o ápice do interesse da Coroa pelo
meio natural brasileiro bem como das pesquisas a esse
respeito ainda estava por vir.

Em 1796, D. Rodrigo de Souza Coutinho assume o


ministério da Marinha e Ultramar, como um dos mais
importantes políticos de seu tempo. Em relação a seus
predecessores, o novo ministro deu maior amplitude e
demonstrou maior interesse pelas questões relativas à
natureza e ao meio natural. Discípulo do Marquês de
Pombal, procurou colocar Portugal em pé de
igualdade com relação às mais desenvolvidas potências
européias de seu tempo. Nesse contexto, vários
Estados europeus buscavam garantir os seus
suprimentos de recursos naturais, e isso incluía as
colônias. No caso português, como se sabe, o interesse
em conhecer a América portuguesa era vital, uma vez
que era ela responsável pela maior parte das receitas do
Império. Visando ampliar e aperfeiçoar a utilização
dos amplos recursos naturais e riquezas do Brasil,
Souza Coutinho procurou cooptar as elites coloniais,
patrocinando seus estudos nas mais diversas áreas do
conhecimento no velho continente 38. Dentre as áreas
de interesse, a mineração e a agricultura tiveram
espaço de relevo nos estudos empreendidos, o que
colocou a Capitania de Minas Grais no roteiro das
pesquisas de campo. Vários naturalistas lusitanos
percorreram o território mineiro num tempo
relativamente curto visando levantar propostas para
otimizar as tecnologias aplicadas nos referidos
campos, entre os quais José Vieira Couto, José
36
AHU. Cx. 126 doc. 48. Gregório de Morais Navarro e Joaquim Veloso de
37
AHU. Cx. 134 doc. 56.
Miranda39.
38
Para maiores detalhes
acerca das políticas
Com relação à mineração, havia um consenso entre os
envolvendo o meio letrados quanto à necessidade de se revitalizar esse
ambiente luso-brasileiro ver:
PÁDUA, José Augusto. Op. setor da economia através da introdução de novas
cit. p. 51-67.

39
Idem. p. 55.

BH, v. 2, n.7, p. 127-146, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


143
técnicas para a exploração dos recursos minerais,
análises mineralógicas mais refinadas, que
viabilizassem a exploração de novas áreas40.

Quanto à agricultura, Souza Coutinho propunha a


introdução de novos gêneros na capitania das Minas,
além da introdução de novos métodos de cultivo. O
ministro dizia que se deveria introduzir o uso de bois
e arados, “com os quais se poupam muitos braços que
se podem empregar em outras coisas interessantes”.41
Além da agricultura e da mineração, estava entre as
principais preocupações de D. Rodrigo de Souza
Coutinho o conhecimento e a exploração de novos
recursos em potencial da exuberante natureza do
Novo Mundo, cujo uso ainda não era conhecido.
Devido a tais preocupações de natureza política e
econômica, as investigações do meio natural na
Capitania das Minas ganharam contornos até então
desconhecidos naquele território42.

Nos últimos anos do século XVIII, portanto no fim


do período colonial, Souza Coutinho ordena a criação
de um Jardim Botânico na capital das Minas, Vila Rica.
Rodrigo de Souza Coutinho orientou aos naturalistas
enviados às Minas que estudassem com afinco as
potencialidades naturais desse território ampliando as
expedições às “áreas incultas”, enviando os novos
espécimes para serem examinados em Portugal. 40
O naturalista José Vieira
Orientações do mesmo teor foram igualmente Couto produziu um estudo
encaminhadas à administração da Capitania das Minas fruto de suas observações
acerca de aspectos da
Gerais, bem como a outras partes do império luso, mineralogia das Minas
Gerais, que se encontra
contendo instruções para a coleta e a remessa do publicado pela Fundação
produto das pesquisas. Em carta datada de 1798, João Pinheiro. Memória sobre
a Capitania das Minas Gerais;
enviada pelo então governador das Minas, Gerais seu território, clima e produções
Bernardo José de Lorena, a D. Rodrigo de Souza metálicas.

Coutinho, aquele informava quanto ao cumprimento 41


PÁDUA, José Augusto.
Op. cit. p. 57.

42
Idem. p. 55.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 127-146, maio. 2006


144
das ordens superiores, enviando um estudo geral da flora
e da fauna do território43. Um ano depois, Bernardo José
de Lorena remetia 48 caixas para Portugal, contendo
gêneros animais e vegetais44.

Remessas dessa natureza já ocorriam antes da ascensão


de Rodrigo de Souza Coutinho ao cargo de Ministro
de Estado, mas não no volume e intensidade
alcançados no início do século XIX. Esse dado
corrobora a idéia de que, desde 1750, ampliava-se o
interesse da Coroa portuguesa pelas riquezas do meio
natural de sua mais importante possessão ultramarina.
Ainda em 1799, o naturalista Joaquim Veloso de
Miranda se encontrava entretido com a pesquisa em
território mineiro de espécimes de árvores que
poderiam ser úteis para o fabrico de papel45. Nesse
mesmo ano, o governador Bernardo José de Lorena
dava conta a Souza Coutinho do estabelecimento do
Jardim Botânico nas terras de Tenente Coronel José
Pereira Marquês, devedor da Coroa46. Em 1800, o
governador enviava a planta do Jardim Botânico para
o Ministro, assim como espécies de plantas e árvores
próprias para a fabricação de papel, acompanhadas de
notas escritas pelo naturalista Joaquim Veloso47.
Dentre as funções de um Jardim Botânico, destacava-
se, principalmente no caso das Minas Gerais, a de
preservar as plantas nativas que “são raras, ou cuja
destruição será inevitável, apesar de todas as
proibições”48. Os jardins botânicos tinham também
43
AHU Cx. 145. doc. 24.
como função a aclimatação de espécimes animais e
44
AHU Cx. 148. doc. 12.
vegetais oriundas de outras partes do império
45
AHU cx. 151. doc. 16. português ou mesmo de outras partes do planeta, com
46
AHU cx. 148. doc. 36. o intuito de promover a exploração futura de tais
47
AHU cx. 153 doc. 36. recursos naturais49. Ao que parece, a instalação do
48
PÁDUA, José Augusto.
Op. cit. p. 91.

BH, v. 2, n.7, p. 127-146, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


145
Jardim Botânico de Vila Rica não foi bem sucedida e
teve vida efêmera. As razões do fracasso não são
conhecidas, mas sabemos que, alguns anos após a
virada do século, D. Rodrigo caíra de seu cargo.

Concluindo nosso trabalho, percebemos que a


devastação e o consumo intensos dos vastos recursos
naturais inerente à colonização das Minas Gerais,
impulsionaram em Portugal, após 1750, uma mudança
de paradigma quanto aos usos e consumo dos recursos
ambientais. Afinados aos mais recentes estudos e
orientações das Ciências Naturais então em voga na
Europa no século das Luzes, ganha força em todo
Império português uma visão “racional” quanto à
exploração e lida dos recursos da natureza. A partir
desse prisma, nascem as primeiras iniciativas no
sentido de melhor se conhecer a floresta e a natureza,
bem como preservar esses recursos. Porém, as
motivações preservacionistas daqueles tempos eram
embasadas numa lógica utilitarista, ou seja, preservar
para sempre poder explorar. Preservava-se por
interesses inteiramente políticos e econômicos50. As
pesquisas e expedições promovidas com o intuito de
melhor conhecer o meio natural colonial pelas razões
que já expomos, abriram o caminho para um
movimento que teve continuidade durante o século
XIX, período em que as Minas Gerais receberam
vários estudiosos oriundos de países europeus que
aqui chegaram para conhecer e estudar a já não tão
exuberante natureza, após um século de colonização
portuguesa.
49
DEAN, Warren. Op. cit.,
p. 140-141; PÁDUA, José
Augusto, Op. cit., p. 91.

50
DEAN, Warren. Op. cit.,
p. 140-141; PÁDUA, José
Augusto, Op. cit., p. 91.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 127-146, maio. 2006


146
REFERÊNCIAS

Arquivo Histórico Ultramarino


AHU cx 64 doc 65
AHU cx 124 doc 19
AHU cx 124 doc 27
AHU cx 126 doc 48
AHU cx 134 doc 56
AHU cx 145 doc 24
AHU cx 148 doc 12
AHU cx 151 doc 16
AHU cx 148 doc 36
AHU cx 153 doc 36
AHU cx 153 doc 44
AHU cx 154 doc 44

ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. Belo Horizonte:


Itatiaia, 1997.
BOXER, Charles R. A Idade de Ouro do Brasil. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2000.
CÓDICE Costa Matoso. 2 vol. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro,
2000.
DEAN, Warren. A ferro e fogo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
DRUMMOND, José Augusto. A legislação ambiental brasileira de 1934 a
1988: comentários de um cientista ambiental simpático ao
conservadorismo. p. 127-151. In: Ambiente e Sociedade. Ano II. Vol. 34.
98/99.
HOLANDA, Sergio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica. São Paulo:
EDUSP, 1999.
VILLALTA, Luiz Carlos. 1789-1808 O Império luso-brasileiro e os Brasis. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000.
VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, censura e práticas de leitura: usos
do livro na América portuguesa. São Paulo, Tese de Doutorado USP, 1999.

BH, v. 2, n.7, p. 127-146, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


A Imagem do Profissional de RH no
Interior da Empresa
149
A Imagem do Profissional de RH no
Interior da Empresa

Ivan Moreira*

Resumo: A conjuntura econômica global nos obriga a pensar o


papel do profissional de RH no ambiente organizacional na
atualidade. Essa questão, fundamental para o destino das empresas,
nos levou a pesquisar "A IMAGEM DO PROFISSIONAL DE RH
NO INTERIOR DA EMPRESA". Buscamos saber como os
funcionários estão vendo os profissionais de RH, no exercício dos
seus papéis, que lhes foram atribuídos pela economia globalizada de
acirrada competição e que paradoxalmente está convergindo os
objetivos do capital e do trabalho.

Palavras-chave: estratégico, especialista, recursos humanos e


mudanças.

Abstract: The global economic conjecture obliges us to think about


the role of the human resource professional in the organizational
environment nowadays, this fundamental issue to the enterprise
destiny, has lead us to do a research " THE IMAGE OF THE
HUMAN RESOURCE PROFESSIONAL INSIDE THE
ENTERPRISE ". We have come to analyse how the employees see
the human resource professionals in the exercise of their roles, roles
in which they have been given through the globalized economy of
the great competition and that paradoxically is changing the
objectives of the capital and of the work to the same direction.

Keywords: strategic, specialist, human resources and changes.

Esta monografia foi apresentada ao curso de Gestão


de Recursos Humanos, como um trabalho
interdisciplinar e requisito parcial para aprovação no 1º
período em 2005. O objetivo proposto é o de conhecer
como está se desenvolvendo o trabalho do RH dentro
das organizações, sendo o foco da pesquisa elucidar
qual a percepção e imagem que os funcionários têm do
trabalho desenvolvido atualmente pelos profissionais *
Graduando em Gestão de
Recursos Humanos pela
Faculdade Estácio de Sáde
Belo Horizonte.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 147-162, maio. 2006


150
de Recursos Humanos. A metodologia utilizada foi
uma pesquisa quantitativa e de campo, em três
empresas dos segmentos de prestação de serviços em
Transporte Urbano e prestação de serviços de Call
Centers, cujo universo de pesquisa somou
aproximadamente 6.570 funcionários. Foi
desenvolvida utilizando-se o sistema de amostragem,
com amplitude definida em 136 pesquisados, visando
obter-se uma margem de erro de 10%. A coleta de
dados deu-se através de um questionário impresso e
anônimo, auto-explicativo, aplicado no próprio local
de trabalho dos pesquisados, através de um
pesquisador passivo. A pesquisa justifica-se pela
conjuntura vivida pelas organizações e
consequentemente pelos profissionais de RH, uma vez
que, para enfrentar a atual realidade do mercado, os
RH estão sendo obrigados a mudanças que exigem a
implementação de novos modelos de gestão de
pessoas, novas políticas, procedimentos e processos,
que obviamente estão interferindo diretamente na
realidade profissional dos funcionários. Pesquisa
realizada em São Paulo mostrou que essa dinâmica
ainda não é completamente percebida e/ou aplicada
na realidade da maioria das empresas brasileiras, o que
fundamentou a escolha da linha de pesquisa: “A
imagem do profissional de RH no interior da
empresa”. Visa-se saber como os funcionários estão
percebendo as evidências de que as relações entre
pessoas e organizações tendem a tornar-se cada vez
mais convergentes, qual seja o de realização de seus
respectivos objetivos, e que neste contexto o setor de
Recursos Humanos cumpre um importante papel, o
de mediar esta relação, ajudando tanto as empresas
como as pessoas. Essa análise justifica e explica o
porquê de querer saber como essas pessoas dentro das
empresas percebem a atuação dos profissionais de RH,
para que estes possam, se for o caso, definir, corrigir

BH, v. 2, n.7, p. 147-162, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


151
e/ou aperfeiçoar seus desempenhos individuais, assim
como o modelo de gestão adotado ou a adotar na
empresa, como forma de viabilizar a missão e os
objetivos da empresa, assim como os objetivos
individuais de cada funcionário, incluído, aí, o do
profissional de Recursos Humanos.

REVISÃO LITERÁRIA

Para enfrentar a atual realidade do mercado, os setores


de Recursos Humanos estão sendo obrigados a
mudanças que exigem a implementação de novos
modelos de gestão de pessoas, novas políticas,
procedimentos e processos, que obviamente estão
interferindo diretamente na realidade profissional dos
funcionários. Essas mudanças, iniciadas nos anos 90
como conseqüência da exaustão das políticas
econômicas fundamentadas no neoliberalismo e
alimentadas pela evolução tecnológica, a globalização e
algumas questões sociais, como expõe TONELLI
(2002, p. 80), ainda não são completamente percebidas
e/ou aplicadas na realidade da maioria das empresas
brasileiras, conforme pesquisa do SESC de São Paulo,
citada pela mesma autora. Esta constatação nos remete
ao raciocínio de que seria razoável supor que o mesmo
fenômeno está acontecendo com as pessoas
empregadas nas organizações. A maioria delas ainda
não percebeu as evidências de que as relações entre
pessoas e organizações tendem a tornar-se cada vez
mais convergentes, qual seja o de realização de seus
respectivos objetivos, e que nesse contexto o setor de
Recursos Humanos cumpre um importante papel, o
de mediar esta relação, ajudando tanto as empresas
como os pessoas. Esse raciocínio fundamentou a
escolha da linha de pesquisa: “A imagem do
profissional de RH no interior da empresa”, essa

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 147-162, maio. 2006


152
escolha, no entanto, suscitou dúvidas de como
pesquisar essa imagem do profissional, sem que a
avaliação dos funcionários tomasse uma conotação
mais pessoal, em detrimento dos aspectos puramente
profissionais focalizados pelo trabalho. Essa questão
levou o direcionamento do trabalho ao encontro de
um viés concebido a partir do proposto por ULRICH
(2003, p. 39): “Para criar valor e obter resultados, os
profissionais de RH precisam começar não pelo foco
nas atividades ou no trabalho, mas pela definição das
metas, as quais garantem os resultados de seu
trabalho”. Segundo o autor, a definição das metas
pressupõe a definição de novos papéis do RH no
contexto organizacional, os quais, segundo o autor,
seriam os de “Parceiro Estratégico, Especialista
Administrativo, Defensor dos Funcionários e Agente
de Mudanças”. Ainda segundo ULRICH, através dos
processos desenvolvidos em cada um desses papéis, o
RH ajudaria a empresa alcançar seus objetivos, como
ele afirma:
O papel do RH se concentra no ajuste de suas estratégias e práticas
à estratégia empresarial como um todo. Ao desempenhar este
papel, o profissional de RH pouco a pouco se torna um parceiro
estratégico, ajudando a garantir o sucesso e a aumentar a
capacidade de sua empresa a atingir seus objetivos. (ULRICH,
2003, p. 42).

Essa conceituação teórica embasou a arquitetura e a


elaboração do questionário para a coleta de dados, de
forma a levantar a percepção dos funcionários das
empresas pesquisadas a cerca da imagem do
profissional de RH, a partir do desempenho dos
quatro papéis acima definidos. É de suma importância
para os profissionais de Recursos Humanos que
entrarão em breve no mercado de trabalho,
exatamente em um momento em que as organizações
passam por grandes transformações estratégicas,

BH, v. 2, n.7, p. 147-162, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


153
estruturais, operacionais e consequentemente nas
atividades que eles exercerão dentro dessas
organizações, saber como estão sendo vistos neste
momento do ponto de vista dos funcionários, hoje
mais do que nunca, considerados essenciais para a
consecução dos objetivos organizacionais e
consequentemente para o sucesso da empresa, como
afirma FLEURY (2002, p.11): “Toda e qualquer
organização depende, em maior ou menor grau, do
desempenho humano para seu sucesso”.

Dentro dessa visão e a associando-a com a de


ULRICH (2003, p. 39), em que ele afirma que um dos
atuais papéis dos Gestores de Recursos Humanos é o
de contribuir estrategicamente com a organização,
pode-se entender que uma das formas de contribuição
seria a elaboração de um modelo de gestão de pessoas,
que possibilite o “gerenciamento e a orientação do
comportamento humano no trabalho” (FLEURY,
2002, p.12). Seguindo-se esse direcionamento,
justifica-se plenamente saber como essas pessoas
dentro das empresas percebem a atuação dos
profissionais de RH, para que estes possam, se for o
caso, definir, corrigir e/ou aperfeiçoar seus
desempenhos individuais, assim como o modelo de
gestão adotado ou a adotar na empresa.

Com esse conhecimento, o profissional de RH poderá


privilegiar a implementação de políticas e
procedimentos adequados ao cumprimento e
manutenção do equilíbrio das relações da organização
com os funcionários, de forma que ambos possam
alcançar suas respectivas metas e objetivos, criando
ainda um sentido para o trabalho realizado, como uma
das fontes de motivação que contribui para a
otimização do desempenho (SILVA, 2000, p. 35),

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 147-162, maio. 2006


154
como forma de viabilizar a missão e os objetivos da
empresa, assim como os objetivos individuais de cada
funcionário, incluídos aí, os do profissional de
Recursos Humanos.

Como Gestores de RH, teremos que enfrentar os


desafios como os descritos por ULRICH (2003, p. 40):
“O redirecionamento do foco das práticas de RH,
mais sobre a cadeia de valor (fornecedores e
consumidores) e menos sobre as atividades no interior
da empresa”. Ou ainda por CHIAVENATO (2002, p.
4): “Fala-se hoje em estratégia de recursos humanos
como a utilização deliberada das pessoas para ajudar a
ganhar ou manter uma vantagem auto-sustentada da
organização em relação aos concorrentes que
disputam o mercado”, reforçado por outra afirmação
como: Toda e qualquer organização depende, em
maior ou menor grau, do desempenho humano para
seu sucesso. Por esse motivo, desenvolve e organiza
uma forma de atuação sobre o comportamento que se
convencionou chamar de modelo de gestão de
pessoas” (FISCHER, 2002, p.11).

METODOLOGIA

Para a consecução dos objetivos propostos na


concepção deste trabalho, foi desenvolvida uma
pesquisa quantitativa, de campo, com pesquisador
passivo, em três empresas dos segmentos de prestação
de serviços em Transporte Urbano e prestação de
serviços de Call Centers.

Identificação das empresas pesquisadas: a


empresa de Transporte Coletivo Urbano foi fundada
em 1963, possui cerca de 475 funcionários, 101 ônibus
que transportam, aproximadamente, dois milhões de

BH, v. 2, n.7, p. 147-162, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


155
usuários/mês na Região Metropolitana de Belo
Horizonte. Possui uma estrutura de Recursos
Humanos que desenvolve suas atividades dentro de
um modelo que preconiza a valorização dos
funcionários, a administração participativa, visando
atingir a “qualidade total” como um de seus objetivos.
Foi a primeira empresa do Brasil, neste segmento, a
conquistar o selo de Qualidade em Transporte,
conferido pelo IDAQ ( Instituto de Desenvolvimento,
Assistência Técnica e Qualidade em Transporte).

A primeira empresa de prestação de serviços no


segmento de Call Centers foi fundada em 1994,
especializada na terceirização de operações de
telemarketing para outras organizações, operando hoje
cerca de 170 PA’s (posições de atendimento). Tem
definido entre seus princípios “promover o
desenvolvimento humano, a qualificação técnica e a
postura ética em todas as nossas relações”.

A segunda empresa do segmento de Call Centers, cuja


sede fica na cidade do Rio de Janeiro, é de grande
porte e desenvolve sua atuação no mercado nacional,
através de operações de telemarketing. Possui
aproximadamente 35 mil funcionários, dos quais cerca
de 6.000 estão sediados em Belo Horizonte. A
empresa possui uma grande estrutura de Recursos
Humanos, que trabalha, entre outros, com o princípio
da “meritocracia”, ou seja, valoriza seus funcionários a
partir de seus próprios méritos individuais.

População e amostragem: as três empresas somam


aproximadamente 6.570 funcionários. A pesquisa foi

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 147-162, maio. 2006


156
desenvolvida utilizando-se o sistema de amostragem
aleatória, com amplitude definida em 136
pesquisados, visando obter-se uma margem de erro de
10%, conforme tabela estatística para a determinação
de amplitudes de amostras de pesquisas, proposta por
(DE FELIPPE JÚNIOR, 1994, p. 24). Vejamos a
tabela 1:

Tabela 1 – Dados complementares da amostragem


Coleta de dados: a coleta de dados desenvolveu-se
através de um questionário impresso e anônimo, auto-
explicativo, aplicado no próprio local de trabalho dos
pesquisados, através de um pesquisador passivo, cuja
atuação restringiu-se a ministrar as explicações

BH, v. 2, n.7, p. 147-162, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


157
referentes aos objetivos da pesquisa em seus sentidos
amplo e estrito, não interferindo nas respostas,
somente atuando se solicitado pelos pesquisados para
dirimir alguma dúvida, quanto ao enunciado de uma
ou outra questão.

As análises apresentadas foram desenvolvidas com


base nos resultados tabulados em planilha do
aplicativo Microsoft Excel, desenvolvida
especialmente para essa finalidade, o que possibilitou a
utilização de tabelas e gráficos que deram mais
visibilidade e facilitaram sobremaneira a análise e a
interpretação dos dados e informações obtidas.

ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS


RESULTADOS

Como resultado da pesquisa realizada, verificou-se que


os profissionais de RH das três empresas obtiveram
uma significativa pontuação apontando o resultado de
seus trabalhos, às vistas dos funcionários, como
proficiente (tabelas 2 e 3), o que pode indicar que esses
profissionais estão desenvolvendo seus trabalhos em
consonância com as tendências apontadas na pesquisa
bibliográfica, no que diz respeito a um modelo de
gestão de pessoas que privilegie estratégias, políticas e
procedimentos que propiciem a convergência das
relações entre empresa e pessoas, para que ambos
possam realizar com sucesso seus objetivos.
Tabela 2 - TABULAÇÃO DO RESULTADO POR

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 147-162, maio. 2006


158
PAPÉIS E GLOBAL
Tabela 3 – LEGENDA PARA A TABELA 2

Fica evidente que o nível de satisfação com o modelo


de gestão, sob o qual os profissionais de RH das

empresas pesquisadas estão desenvolvendo seus


trabalhos, no aspecto geral é bom, embora existam
pontos cujas avaliações não chegaram a tanto, como
nas questões:

4) O RH tem ajudado a empresa a desenvolver programas de


melhorias que atendam às expectativas dos empregados?. Nessa
questão percebe-se que os funcionários reivindicam
maior participação do RH, na busca por um modelo
de gestão que também priorize os interesses e
expectativa dos empregados.

6) O RH participa da criação de programas que aumentam a


dedicação dos empregados? Parece-nos que essa questão é
uma extensão da anterior (4), entendemos que os
empregados estão associando o nível de sua dedicação

BH, v. 2, n.7, p. 147-162, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


159
ao quanto a empresa prioriza os interesses deles na
elaboração e execução de suas políticas e estratégias.

8) O RH mantém procedimentos de captação e manutenção dos


talentos da empresa? Entendemos essa questão como um
alerta de que está faltando empenho no sentido de
manter os “talentos” nas empresas, provavelmente a
visão dos empregados sobre esta questão esteja
diretamente ligada às visões das duas anteriores.

9) O RH apóia novos movimentos e comportamentos, visando


manter a empresa competitiva? Parece-nos que os
empregados estão dando um aviso ao RH, de que ele
necessita estar em constante atualização, quanto a sua
visão e atitudes relacionadas com a evolução do
contexto organizacional.

12) O RH é visto apenas como uma área especializada em


assuntos de RH?A mais baixa (3,20 - Tab. 4) das notas
atribuídas às questões da pesquisa nos remete aos
motivos que nos fizeram decidir por essa linha de
pesquisa, ou seja, que os empregados em sua maioria,
assim como a maioria das empresas, ainda não
perceberam que o relacionamento capital & trabalho
está mudando por força das circunstâncias da acirrada
concorrência resultante do atual cenário econômico e
que os objetivos de ambos estão convergindo. Embora
com sentidos diferentes, a nota atribuída a essa
questão demonstra que os funcionários ainda
percebem o RH com uma atuação limitada apenas a
suas funções tradicionais (selecionar, treinar avaliar).

18) RH desenvolve programas e políticas éticas e socialmente


responsáveis? Essa, assim como as demais questões
citadas anteriormente, que receberam as notas mais
baixas, deixam claras as aspirações dos empregados

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 147-162, maio. 2006


160
quanto a uma postura ética e socialmente responsável
por parte das empresas no que diz respeito aos
empregados.

Faz-se necessário ainda registrar o quão relevante foi a


pontuação das questões 11 (O RH é visto como um órgão
que contribui para o sucesso da empresa?) - a mais alta ( 4,25
- Tab. 4) - e 15 (O RH trabalha para adicionar valor à
empresa?), com nota (4,13 – Tab. 4), que nos revelam a
consciência dos funcionários pesquisados, quanto ao
papel mais amplo que o trabalho do RH deve assumir
dentro do contexto organizacional.

Tabela 4 - TOTALIZAÇÃO DAS RESPOSTAS

CONCLUSÃO
Os resultados obtidos indicam que, embora as
empresas pesquisadas possuam modelos de Gestão de
RH atualizados com o cenário econômico atual, os
profissionais de RH dessas empresas ainda necessitam
de ajustes “finos” na forma como desenvolvem seus
trabalhos.

BH, v. 2, n.7, p. 147-162, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


161
Poderiam propor e implementar em suas empresas
políticas e objetivos em RH, para que estes coincidam
ao máximo possível com os objetivos dos empregados,
propiciando assim condições de envolvimento,
motivação e uma maior produtividade que garantam e
sustentem os resultados almejados tanto pelas
empresas, assim como por seus funcionários. Embora
isso pareça utópico, o que se conclui nas pesquisas
bibliográficas realizadas com autores da área é que essa
é a única saída possível para as empresas
contemporâneas e conseqüentemente para os
profissionais de RH.

Fica bastante claro que a imagem dos profissionais de


RH é positiva e de significativa importância para os
funcionários das organizações pesquisadas.
Entendemos que isso aconteça como conseqüência
das atribuições inerentes aos profissionais de RH nas
organizações onde desenvolvem a interface entre o
empregador e o empregado.

É óbvio que o resultado obtido neste trabalho é


parcial, tendo em vista as limitações impostas pela
situação em que este foi desenvolvido no que diz
respeito a tempo e recursos para o desenvolvimento
mais amplo e tecnicamente perfeito em seus aspectos
metodológicos. Temos o desejo e a esperança de
podermos em breve dar continuidade às pesquisas
para obtermos uma visão completa e o mais próxima
possível da verdadeira imagem do profissional de RH
no interior da empresa.

AGRADECIMENTOS

Pela valiosa e imprescindível colaboração para a


elaboração desse artigo: às professoras Rita de Cássia

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 147-162, maio. 2006


162
Prates Guimarães, Maria Lúcia Ferreira, Luciana
Gelape e Mônica Serafim, aos colegas e pesquisadores
de campo Daniele David, Marcelo Lima, Gabriel
Xavier, Leidyane Fernandes e Luis Campos.

REFERÊNCIAS
BOOG, Gustavo e Magdalena. Manual de gestão de pessoas e equipes. S.
Paulo: Editora Gente, 2002
CHIAVENATO, Idalberto. Gestão de Pessoas: o novo papel dos recursos
humanos nas organizações. São Paulo: Atlas, 2002.
DE FELIPPE JÚNIOR, Bernardo. Pesquisa: o que é e para que serve.
Brasília: Sebrae, 1994.
FISCHER, André Luiz. Um resgate conceitual e histórico dos modelos de gestão de
pessoas – FLEURY, Maria Tereza. As pessoas na organização. São Paulo:
Editora Gente, 2002.
GIL, A. de L. Administração de recursos humanos: um enfoque profissional. São
Paulo: Atlas, 1996.
SILVA, A. T. Administração e controle. São Paulo: Atlas, 1997
TONELLI, Maria José. Desenvolvimento histórico do RH no Brasil e no mundo;
URICH, David. Os campeões de recursos humanos – São Paulo – Futura -
2003

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As Raízes do Futebol na
Capital Mineira
165
As Raízes do Futebol na
Capital Mineira1

Marilita Aparecida Arantes Rodrigues2

Resumo: O artigo aborda as raízes do futebol na cidade de Belo


Horizonte. Com o objetivo de analisar o seu processo de
implantação na capital mineira, procura resgatar os responsáveis por
esse processo, os interesses despertados, seus primeiros jogadores,
os primeiros clubes e campeonatos e sua aceitação na sociedade
belo-horizontina.

Palavras-chave: História, Esporte, Futebol, Belo Horizonte.

Abstract: The article approaches the roots of the football in the city
of Belo Horizonte. With the objective of analyzing the sport's
implantation process in the capital of the state, it tries to rescue those
responsible for that process, the awakened interests, its first players,
the first clubs and championships and its acceptance in the city's
society.

Keywords: History, Sport, Football, Belo Horizonte.

O enraizamento do futebol em Belo Horizonte foi


resultado de um longo processo, que passou por fases
diferenciadas, marcadas por interesses inconstantes.
Esse fato também foi vivenciado por outras práticas
esportivas consideradas modernas e civilizadas, como
o turfe e o ciclismo, que foram sonhadas pelos
idealizadores da capital moderna de Minas Gerais, mas
que não foram efetivamente apropriadas, inicialmente, 1
Artigo construído com
pelos habitantes da cidade. Mesmo passando por dados extraídos da pesquisa
que venho realizando para
momentos de inconstâncias, foi o futebol a subsidiar minha tese de
modalidade esportiva que despertou o maior interesse doutorado em História, na
UFMG, que foi apoiada pelo
dos belo-horizontinos e se transformou numa grande CEPE da Faculdade Estácio
paixão de toda a sua população. Mas como se iniciou de Sá.

esse processo? Quem foi responsável pela sua 2


Professora de História da
Educação Física na Faculdade
Estácio de Sá de Belo
Horizonte.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 163-191, maio. 2006


166
implantação na cidade? Que interesses foram
despertados? Quais foram os seus primeiros clubes?
Seus praticantes foram quem? Teve o futebol
inicialmente uma boa aceitação por parte dos belo-
horizontinos?

Nesse artigo, procuro responder a essas questões,


com o propósito de analisar a sua semeadura, os seus
momentos iniciais na cidade.

A introdução do futebol em Belo Horizonte se


assemelha à de outros estados brasileiros. A história
do futebol no Brasil tem destacado nomes de
estudantes brasileiros, filhos da elite, educados na
Europa, que, ao retornarem de seus estudos, foram
responsáveis pela introdução desse esporte no país.
Como a Europa proporcionava uma base educacional
que aqui ainda não existia, no final do século XIX, os
filhos das famílias abastadas, ao buscarem essa
educação, aprendiam novas práticas culturais e
também suas tradições. Ao retornarem para o Brasil,
contribuíram para o enraizamento de uma nova
cultura e uma nova civilização, necessárias à
modernidade proclamada pela recém-inaugurada
República.

O paulista Charles Miller é considerado, por alguns


estudiosos do futebol, como o introdutor do futebol
no Brasil. Em 1883, ainda criança, mudou-se para
Southampton, na Inglaterra, onde estudou em
diferentes escolas, tomando aí contato com diferentes
práticas esportivas como o tênis, o rugby e o cricket,
mas o seu maior entusiasmo foi pelo foot-ball. Ao
retornar ao Brasil, em 1894, trazendo na sua bagagem
duas bolas e bombas para enchê-las, uniformes e
chuteiras, foi o responsável por divulgar as regras e
organizar os primeiros jogos entre os sócios do São

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167
Paulo Athletic Club. O historiador Joel Rufino dos
Santos caracteriza assim a contribuição de Miller: “O
que Charles Miller nos trouxe, em 1894, foi um
esporte universitário e burguês. Elegante e obediente
a um código. Esporte de gentlemem, exatamente como
são o tênis e o golfe de hoje” (SANTOS, 1981, p.12-
13).

Foi também um gentleman, Oscar Cox, outro nome


destacado na disseminação desse esporte no Rio de
Janeiro. Em 1897, ao retornar de uma temporada de
estudos na Suíça, começou a agitar a juventude
estudantil carioca, promovendo jogos e incentivando
os amigos para a prática do foot-ball. Foi o grande
incentivador do futebol carioca. Junto com
compatriotas ingleses, no Payssandu Cricket Club,
participou de algumas partidas, mas somente em
1891, no intuito de dar ao jogo o estatuto de uma
atividade independente do clube e da colônia inglesa,
organizou com um grupo de amigos uma partida
entre os jovens brasileiros e os sócios do Rio Criquet,
dos ingleses de Niterói. Esse jogo, para alguns
estudiosos, marcaria o início do futebol na Capital
Federal (MELO, 2000; JAL e GUAL, 2004;
PEREIRA, 2000).

Mas, mesmo antes da chegada de Miller ao Brasil, já


se praticava futebol em algumas escolas como o
Colégio São Luís, em Itu, desde 1880, o Colégio
Anchieta, em Nova Friburgo-RJ, desde 1886 e o
Colégio Pedro II, no Rio, desde 1892. Além dos
colégios, uma outra via de entrada do futebol no
Brasil foi por meio de funcionários ingleses que aqui
trabalhavam em empresas de seu país de origem
(MELO, 2000). Mas foi com Miller que foi dado o
impulso fundamental para sua completa organização.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 163-191, maio. 2006


168
Em Belo Horizonte o futebol chegou com Victor
Serpa, carioca, estudou na Suíça e veio cursar Direito
na capital mineira. As notas cronológicas de Octávio
Penna referem-se ao dia três de maio de 1904, como
o marco dessa introdução, quando foi feito “o
primeiro ensaio no Parque, em uma de suas alamedas,
à direita do portão da avenida Afonso Pena”
(PENNA, 1997, p.83). Abílio Barreto esclarece que o
local dos primeiros exercícios foi nas proximidades de
onde se construiu o teatro Francisco Nunes
(BARRETO, 1944).
Mas teria sido realmente Victor Serpa o introdutor do
futebol em Belo Horizonte? Como na história do
futebol no Brasil, os nomes de Charles Miller e Oscar
Cox é que são representativos no processo de difusão
do futebol como um campo esportivo, isto é, como
um sistema de agentes e instituições que funcionam
como um “campo de concorrência” onde se
defrontam agentes com interesses específicos como
nos sugere Pierre Bourdieu1, que são os clubes, as
entidades que o dirigem, as competições, dentre
outros. Em Belo Horizonte, Victor Serpa foi também
o responsável por todo esse processo.

No entanto, o jornal O Operário de 19 de agosto de


1900, portanto três anos antes da chegada de Victor
Serpa à cidade, traz uma reportagem que sugere a
existência, naquela época, de um jogo de bola
praticado pelos operários italianos. A nota dizia que
“no dia 15 do corrente mês, em uma venda da
Lagoinha, alguns italianos jogavam pacificamente
umas garrafas de cerveja marca barbante ao inocente
jogo da bola que mais que um jogo é um verdadeiro
1
Maiores explicações sobre exercício ginástico” (O OPERÁRIO, 1900a, p.3). E o
o conceito de campo
esportivo de Pierre jornal do dia 2 de setembro fazia referências também
Bourdieu podem ser obtidas
em BOURDIEU, Pierre.
a esses “jogadores de bolas” (O OPERÁRIO, 1900b,
Como é possível ser p.2).
esportivo? In: Questões de
sociologia. Rio de Janeiro:
Marco Zero, 1983, p.137.

BH, v. 2, n.7, p. 163-191, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


169
Apesar da narrativa do jornal não deixar claro que
jogo de bolas era esse e como não foi encontrada
nenhuma outra evidência sobre esse jogo em Belo
Horizonte, somente podemos fazer alguma relação
com situações semelhantes encontradas na Capital
Federal. Segundo Leonardo Pereira, no final do século
XIX surgem e se fortalecem novos esportes na cidade.
O “jogo da bola” - esporte originário da Espanha - era
jogado por dois competidores que arremessavam, com
raquetes em forma de arco, uma bola contra um
paredão, saindo perdedor aquele que não conseguisse
rebater a jogada do adversário. Existiam significados
ambíguos em relação a esse jogo naquela época, pois
podia ser visto como uma simples diversão ou
considerado como uma atividade poderosa para o
desenvolvimento das forças físicas, segundo valores
higienistas da época, qualidades apontadas para
justificar interesses de empresários que promoviam
essa atividade na cidade (PEREIRA, 2000).

Mas, no Rio de Janeiro havia também uma relação da


cerveja barbante com o futebol. Segundo Victor Melo,
nas primeiras décadas do século XX, o futebol já era
praticado por muita gente, e de todas as classes sociais.
Foram criadas ali as primeiras ligas populares,
denominadas “ligas barbante”, assim chamadas em
referência às tampas de cervejas2 de baixa qualidade, 2
A cerveja começa a ser
produzidas nos fundos de quintais de residências produzida no Brasil por
cariocas (MELO, 2000). volta de 1830. Nessa época,
tinha um grau de
Assim a ligação com a “cerveja barbante” pode fermentação tão alto que,
mesmo depois de
significar alguma relação com futebol popular. Por ser engarrafada, produzia uma
um jogo realizado para divertimento de operários na enorme quantidade de gás
carbônico, criando grande
cidade, era visto como “caso de polícia” como todos pressão. Daí a denominação
os jogos populares, como cita a crítica da liga operária de cerveja barbante (ou da
"marca barbante"), pois,
no referido jornal. Por isso, acredito que esse jogo não devido à fabricação
ganhou representatividade na cidade, diferentemente rudimentar, precisavam de
um barbante para impedir
que a rolha saltasse da
garrafa. COUTO (2005).

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 163-191, maio. 2006


170
do jogo trazido por um filho de uma distinta família da
capital federal, acadêmico de Direito, que havia
estudado na Europa e aqui chegou trazendo a
novidade lá praticada.

Na visão de Raphael Ribeiro, a figura de Victor Serpa


foi emblemática, pois representava os valores da época,
tanto da modernidade e civilidade vindas da Europa e
da Capital Federal, como do estudante de direito que
atuava em diversas áreas como na imprensa, eventos
literários e teatrais (RIBEIRO, 2002).3 Sua relação
como o Rio de Janeiro era constantemente
representada pelas idas e vindas da Capital Federal
noticiadas nos jornais tais como: “Regressou do Rio o
acadêmico Victor Serpa, nosso apreciado colaborador”
(FOLHA PEQUENA, 1904a, p.1).

E Victor Serpa era a representação do que havia de


mais distinto, e suas qualidades “ornamentavam seu
caráter multiforme, de perfeito gentleman” (A
EPOCHA, 1905b, p.1). Era destacada a sua “cultura de
espírito, distinção de maneiras, amenidade de trato,
finura em tudo, aprazia-nos vê-lo generoso, belo de
alma e coração, interessando-se por todos os
3
Victor Serpa colaborou
movimentos de nossa mocidade, e com o seu destaque
com diversos órgãos de próprio” (A EPOCHA, 1905a, p.2).
imprensa. A Epocha
anunciou a fundação de um
jornal que se chamaria A
Semana, um periódico
Como acadêmico, teve uma participação ativa na
monarquista, que seria Faculdade de Direito, assumindo a presidência do
dirigido pelo "talentoso
acadêmico, escritor e
Instituto Acadêmico, em novembro de 1904. O jornal
laureado poeta Victor A Epocha assim o descrevia: “Si na academia foi o
Serpa" (A EPOCHA, 1904a,
p.2). Victor realizou também colega dignificador pelo trabalho simples e fecundo,
a tradução do francês de um pelo brilho natural de um cérebro equilibrado, gozando
texto de comédia - Juliano não
é ingrato, que foi apresentado do apreço de todos, foi o conversador apurado, o
no festival Augusto Campos,
um "delicadíssimo sarau
espirituoso animador das boas rodas, malicioso sem
literário, uma soirré chic", espinhos, narrando sempre o caso com graça. Deu
como referenciou o jornal
Folha Pequena. (FOLHA
PEQUENA, 1904b, p.2.)

BH, v. 2, n.7, p. 163-191, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


171
bases sólidas, entre nós, ao foot-ball” (Ibidem, p. 2.).

E essa base foi marcada pela implantação definitiva do


futebol na cidade, com a fundação do seu primeiro
clube, o Sport Club Foot Ball, iniciativa de Victor Serpa.
Segundo Abílio Barreto, coube ao acadêmico,
que já havia fundado em Ouro Preto, em novembro de 1903, o
“grupo Unionista”, decano do futebol em Minas, a glória da
iniciativa de se fundar em Belo Horizonte o “Sport Club”. Grande
entusiasta e exímio jogador do esporte bretão, tendo [vindo] cursar
a nossa Academia de Direto, apenas se relacionou no meio
horizontino, tratou logo de congregar em torno do pensamento que
havia tido – o lançamento do futebol na capital – um grupo de
moços que, se haviam tido igual pensamento, não se tinham
abalançado a dar-lhe corpo e organização (BARRETO, s/d).

Foto: Victor Serpa


Fonte: Museu Histórico Abílio Barreto

Um poema publicado numa coluna humorística do


jornal A Epocha retrata Victor Serpa como um
personagem importante, responsável pela divulgação
do futebol na cidade.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 163-191, maio. 2006


172
Traços

XVIII

Vive a ensinar o jogo estúpido das bolas


Nas praças, nos cafés, nas ruas, nas escolas.

E quando alguém se espanta ao ver os seus calções


Esquisitos demais, sem ligas, sem botões,

Ele fica sem graça e diz muito apressado:


‘É preciso educar este povo atrasado!’

‘Na Europa _ norte a sul _ não se encontra um lugar


Onde o povo não saiba as bolas atirar;’

‘Eu vou contar um caso esplêndido a respeito...’


E logo vem um caso intermino e sem jeito!

Já jogou com Loubet as bolas, de manhã,


E de tarde fez verso ao lado de Rostand.

Afirmam que ele é todo um monte de borracha,


Pois sempre cai no chão e nunca se esborracha!

Quando joga no Parque a péla, exposto ao Sol,


Parece resumir o medonho foot-ball!

(TIMOUR, 1904, p.2)

Percebe-se nos traços do poeta, inicialmente, uma


crítica ao “medonho” futebol, mas o que se destaca no
poema é o papel representado pelo Victor Serpa como
um educador, que traria para a cidade, como uma
forma de superar o atraso – o futebol –, essa prática
criada na Europa e que aqui representaria uma
modernidade para a cidade. O antropólogo Roberto

BH, v. 2, n.7, p. 163-191, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


173
DaMatta analisa o momento da introdução do futebol
na sociedade brasileira, destacando o seu caráter
inovador:
o futebol foi introduzido sob o signo do novo, pois, mais do que um
simples “jogo” estava na lista das coisas moderníssimas; era um
“esporte”. Ou seja, uma atividade destinada a redimir e modernizar
o corpo pelo exercício físico e pela competição, dando-lhe a rigidez
necessária a sua sobrevivência num admirável mundo novo – esse
universo governado pelo mercado, pelo individualismo e pela
industrialização (DAMATTA, 1994, p.11).

E as atividades físicas esportivas simbolizavam, tanto


aqui como na Europa, um lazer civilizado. Mesmo
sendo considerada uma prática moderna, apropriada
por pessoas da elite na cidade, ela não teve uma
aceitação unânime pela população, principalmente
pelas camadas letradas. Os jornais, a partir daquele
momento, passaram a relatar os valores e prazeres da
atividade física em crônicas e pequenas notas, mas
assumiam, freqüentemente nessas crônicas e em notas
humorísticas, uma postura crítica em relação à
verdadeira “mania” que vai surgindo na cidade. O
jornal A Epocha, na sua coluna “Fagulhas”, em
diferentes momentos apresenta entre as Cousas que
implicam, a “mania de futebol” (A EPOCHA, 1904c,
p.2) e o “foot-ball do Victor Serpa” (A EPOCHA,
1904b, p.2). Percebe-se que Victor Serpa personalizou
o futebol na cidade.

Chamam atenção algumas crônicas em que era frisada


a alienação provocada pela mania do futebol que
tomava conta da cidade:
Enquanto a gente se enerva a escrever a prosa insossa para os
jornais, fala da vida alheia, discute a política, flagela a fraqueza dos
governos, namora e bebe cerveja, ha por aí quem se apaixone pelos
exercícios físicos, ao ar livre, correndo, transpirando, bradando com
a valentia dos pulmões, soltando a gargalhada sonora, em toda a
beleza da agilidade, da força e da saúde!

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 163-191, maio. 2006


174
E quando, no meio artificial e não raro doente, cheio de
sobressaltos e dúvidas, corrupção e ódios, até a pena nos pesa qual
comprida alavanca de ferro, que movemos com anseios e tortura,
como eles, ágeis e fortes, cantam o grande poema da vida á luz clara
do firmamento! Abrem os braços, esticam o corpo, firmam as
pernas, retesam os músculos, correm, saltam, atacam, fogem com
graça, tornam a atacar, e vencem! É após a luta, que alegria, que
orgulho!

Perguntai ao apaixonado jogador de bola, aos atiradores, ao


vencedor de corridas, a qualquer lutador atleta, que pensa das
sensacionais intrigas d[o] dia, da vaidade dos superficiais ou do
sucesso dos políticos, – que ele vos responderá com um meneio de
ombros e um sorriso malicioso, enquanto dispara a queima-roupa
uma sonora praga e escapole para o comentário de algum novo
acontecimento do sportismo.

São esses os que vivem. Esplende-lhes o gozo nas faces, acompanha


a alegria da natureza; e quando refulge a luz, vibra a canção dos dias
harmoniosos, arrebentam as flores, ondula a relva dos campos, são
felizes porque amam a verdadeira beleza, que é a da saúde e da força
(OS SARAOS do..., 1904, p.1).

E a crítica vai aparecendo de forma mais direta:

Belo Horizonte é uma moçoila maníaca. [...] Agora, porém, vai


alcançando vantagens sobre a invencível inconstância de nosso
povo, numa firmeza lastimável de mania, um presente grego, digo,
inglês – o foot-ball. O magnífico sport que, em outras cidades, o povo
joga, aqui joga o povo. [...] o mal invadiu todos os bairros,
transformando a cidade num vasto campo de exercício, em que até
as pernas ocupadas dos transeuntes servem de goal (PAN d’EGA,
1905, p.1).

Alguns cronistas, como o que assinava Pan d’Ega, da


crônica acima, criticava o interesse pelo “fazer”
corporal que aliena, em detrimento aos interesses
políticos, artísticos e culturais que eram valorizados na
época. Outros chegavam a falar numa verdadeira “crise
de falência intelectual” (SPIRIDIAM, 1904, p.2). No
seu ímpeto de fugir da cidade, “invadida pelo futebol”,
Pan dÉga comentou:

BH, v. 2, n.7, p. 163-191, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


175
Quem me aplacou os nervos foi o Lúcio que o via aproximar-se,
calmo e pensabundo, como no dia em que o apresentei ao leitor.
Abracei-o numa irrefreável expansão de alívio, certo de que, como
eu, também ele malsinaria o morbus invasor. Interroguei-o sobre a
política e internacional de que ele dava tão detalhadas notícias; mas,
com grande espanto meu, retrucou:

_ Não leio mais jornais. Tenho agora melhores ocupações.

_ Que dizes? Perguntei desconfiado.

Lucio recuou um passo, arregaçou até o ombro direito a manga do


casaco, e, enrijando o bíceps, com o braço em ângulo, falou:

_ Olha esse muque. Entrei para o “José de Alencar Foot-ball Club.”

Estendi-lhe a mão aflita que ele apertou, achando-a fria, e


fugi!(Ibidem)

E o foot-ball passou a figurar ao lado de outros


“problemas” daquele período como relata a cronista
Marialva, numa nota intitulada Incipientes: “Ó era de
crise, de tombos políticos, de foot-ball e polêmica!”
(MARIALVA, 1904, p.1).

Apesar das críticas, o papel de Victor Serpa na difusão


do futebol na cidade não pode ser questionado.
Conquistando boas relações na cidade, congregou
acadêmicos, funcionários e comerciantes para a criação
do Sport-Club. Nessa iniciativa participaram os srs.:

Fritz de Jaegher, professor de alemão do ginásio mineiro; Major


Augusto Serpa, chefe das oficinas da Imprensa Oficial; Dr. Oscar
Americano, cirurgião dentista; major Arthur Haas, José Gonçalves,
Avelino Reis, J. Almeida, Claudiano Martins Junior, Miguel
Liebmann e J. Jordão, do alto comercio; Celso Werneck e Jefferson
Mourão, funcionários do Estado; Antônio Mascarenhas, Joaquim
Brasil, Olavo e Abel Drummond, Thomé Pereira, Joaquim Baptista
de Mello, J. Roque Teixeira, Francisco e Viriato Mascarenhas,
estudantes; e muitos outros (REMEMORANDO, 1927, p. 2).

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 163-191, maio. 2006


176
Assim, em 10 de julho de 1904, foi fundado o clube e
eleita sua primeira diretoria, cuja presidência ficou com
Oscar Americano; a vice-presidência com Augusto
Pereira Serpa; a tesouraria com José Gonçalves e a
secretaria com Avelino de Souza Reis. Victor Serpa
assumiu a função de capitão. O Minas Gerais de 13 de
julho, em nota na seção “Festas e Diversões”,
acrescentava que a diretoria dessa “útil diversão”
informava que nos dias 14 e 17 já haveria exercícios
práticos no campo (MINAS GERAIS, 1904a, p.6).

Os estatutos do clube, compostos de seis capítulos,


foram aprovados no dia 23 de agosto do mesmo ano,
sendo visados pelo então chefe de polícia Cristiano
Brasil. Podiam participar desse clube “pessoas dignas”,
nas categorias de sócios efetivos, moradores da capital;
correspondentes, residentes fora da capital e
beneméritos (ESTATUTOS do..., 1904, p.15). O valor
estipulado para o pagamento adiantado da jóia para o
ingresso no clube de 10$000 e a mensalidade de 5$000
eram altos o bastante para selecionar criteriosamente
seus participantes, valores iguais aos cobrado pelo
Fluminense do Rio de Janeiro, clube que se afirmava
como da elite, formado por “rapazes da melhor
sociedade, quase todos educados em colégios da
Inglaterra”4. Os clubes do Rio, que passaram a aceitar
como sócios operários de todas as categorias, como o
Bangu, cobravam 2$000 como jóia para o ingresso e
1$000 mensais, permitindo assim que trabalhadores
menos especializados também pudessem participar.

A associação do Sport-Club tinha como fim especial


“fazer propaganda de todos os jogos e exercícios
atléticos tais como: foot-ball (principalmente),
pedestrianismo, cricket, lawns(sic)-tennis, esgrima, etc,
4
Referência do jornal Auto-
sport, de 1912, citado por
PEREIRA, 2000, p.28-29.

BH, v. 2, n.7, p. 163-191, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


177
etc”. Estas eram algumas das práticas esportivas em
voga no momento, com destaque principalmente para
as de origem inglesa, que, aliadas aos valores do
exercício físico, passaram a ser valorizadas como uma
forma de completar a higiene do corpo. Mas somente
o futebol foi efetivamente implantado no clube.

Os estatutos do clube foram assinados por Oscar


Americano, José Gonçalves, Avelino de Souza Reis,
Victor Serpa, Charles B. Norris, Augusto Pereira
Serpa, Antônio Baptista Vieira Junior, Jordão de Carris
Figueiredo, Miguel Liebman, Joaquim Roque Teixeira
e Antônio Nunes de Almeida.

O clube organizou-se inicialmente com dois times de


futebol seniores, o “team do Victor Serpa” e o “team
do Oscar Americano” assim constituídos: Mr. Victor
Serpa’s XI – De Jaegher (goal-keeper), Liebmann e
Almeida (backs), Sales, Abel e Chagas (half-backs), Fr.
Mascarenhas, Tomé, Norris, Viserpa e Viriato
(forwards) e o reserva Baptista. Dr. Americano’s XI:
Gonçalves (goal-keeper), Jepherson e Roque (backs),
major Serpa, Avelino e Fabiano (half-backs), Brazil,
Jordão, Dr. Americano, Antonino e Claudionor
(forwards) e os reservas Raul e Saturnino.

Mas possuía também teams juniores que eram


capitaneados por Rômulo Joviano e Nuno Santos.
Faziam parte desse grupo, Paulo Cunha, Octavio
Penna, Américo Martins Penna, Ricardo Martins
Penna, Hildebrando Castelar, Alfredo Martins Penna,
Gy Santos, Vivico Costa, Evaristo S[alomon], Carlos
Toledo Filho, Mário Toledo, José Severiano Machado
Coelho Amaro Drumond, João de Mello Franco e
Waldemar Ribeiro (FOLHA PEQUENA, 1904c, p.1).

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 163-191, maio. 2006


178
O time do Sport Club reproduzia o modelo seguido
pelos jogadores cariocas, um padrão europeu de jogo,
que era utilizado por todos os times do período. Além
do goal-keeper, os times possuíam dois backs – jogadores
de defesa –; três halfs – que jogavam na intermediária
do campo – e cinco fowards – jogadores de ataque. Esse
modelo, segundo Leonardo Pereira, foi apresentado
em 1905, na obra Sports atléticos, de E. Weber, um autor
francês que ensinava os princípios e as técnicas de
diferentes esportes de origem inglesa, como o hockey, o
lawn-tennis e o foot-ball. Essa obra passou a ser uma
“espécie de bíblia” para os cariocas. Com o intuito de
esclarecer aos seus esportistas as regras e técnicas do
jogo, era citado, com freqüência, nos grandes jornais
da cidade (PEREIRA, 2000).5

A fotografia do Sport Club, encontrada nos arquivos do


Abílio Barreto, retrata um grupo de pessoas de peles
claras, elegantemente vestidas, algumas uniformizadas
e outras de terno e gravata, cabelos penteados e
bigodes “respeitáveis”.

Foto: O Sport Club em 1904. A partir da esquerda estão: 1. Jordão Caíres; 2. [


]; 3. Augusto Pereira Serpa; 4. Virgílio Fabiano Alves; 5. Dr. Oscar Americano,
6. José Gonçalves; 7. Avelino Rodrigues; 8. Antônio Nunes de Almeida; 9.
5
Segundo Pereira (2000), Francisco de Assis das C. Rezende; 10. Abel Horta Drumond; 11.Victor Serpa
essa obra foi publicada está assentado com a bola aos pés; 12. Viriato Mascarenhas; 13.Tomé Andrade;
originalmente na França em
1905 e, em 1907, foi editada
no Brasil pela Editora
Garnier.

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179
14. Joaquim Brasil; 15. Joaquim Roque Teixeira; 16. Miguel Liebman; José
Mariano de Sales; 18 [ ]; 19. Antônio Mascarenhas.
Fonte: Museu Histórico Abílio Barreto

Assim, os sportmen, reunidos em torno do clube para


criarem as primeiras raízes do futebol na cidade, eram
pessoas da elite da cidade, dentre elas profissionais
liberais, funcionários públicos, comerciantes e
estudantes, tanto universitários como também
ginasiais.

Para estes últimos, as crônicas também dedicavam


espaço. Um cronista identificado como Sportman assim
escreveu:
É para vocês, meus gárrulos sportsmen pequeninos, que hoje
escrevo. Quisera, em verdade, dizer duas palavras de animação à
brava mocidade do Ginásio, que anteontem tão promissoramente
estreou nas lides do sport. [...] É bem possível que vocês não dêem
polemistas tão mordazes e vãos, como os nossos de hoje, mas
certo hão de dar, para bem de Minas e da Pátria, moços sadios
d’alma e de corpo, como os inolvidáveis guerreiros e sábios de
Roma, que decantavam outrora a ‘mens sana in corpore sano’
(SPORTSMAN, 1904, p.1-2).

Após alguns treinos preliminares, realizados num


campo improvisado, localizado entre a rua Sapucaí e a
antiga estação da Central, realizaram-se jogos,
marcados inicialmente para as 7 horas da manhã, nos
domingos, entre os times do Sport Club. Esses jogos
eram noticiados, com antecedência, nos jornais da
cidade, como o Folha Pequena e A Epocha.
Posteriormente, o próprio clube, em seção paga,
divulgava seus jogos, no horário da tarde, para
conquistar o interesse de jogadores e espectadores:
Sport Club
Secção paga

Todos os domingos às 4 horas da tarde há matck(sic) de foot-ball


entre dois valentes teams do club (A FOLHA, 1905, p. 4).

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 163-191, maio. 2006


180
Um desses jogos, realizado em 2 de outubro de 1904,
foi assim noticiado pelo Minas Gerais:
Anteontem foi disputado mais um match de football no campo
dessa novel sociedade, perante tão numerosa quão fina roda de
distintos sportmen e gentis sportwomen. Prestou-se graciosamente
a servir de referee o sr. capitão Haas, que se conservou durante
toda a partida perfeitamente imparcial e atento, o que grandemente
contribuiu para o bom resultado dela. Venceu ainda desta vez o
team do Sr. Victor Serpa por 2 gols a 1, apesar do denodo e do
brilho com que se bateu o do dr. Oscar Americano. Os pontos
foram marcados para os vencedores, pelos srs. José Mariano de
Sales e Victor Serpa e para os vencidos pelo sr. Joaquim Brasil. A
luta esteve sempre animadíssima, o que demonstra que o popular
sport está finalmente para sempre implantado em nosso áureo
Estado (SPORT CLUB, 1904a, p. 6).

Esse jogo entre os dois grupos do Sport Club despertou


um grande interesse na cidade. Na opinião de Abílio
Barreto, “não temos lembrança de nenhuma outra
iniciativa lançada em Belo Horizonte e cuja aceitação e
imediato e rápido desenvolvimento se possa comparar
a do futebol” (BARRETO, s/d). E esse interesse era o
do “fina roda”, cujos espectadores tratados como
Sportmen e Sportwomem já começavam a ser destacados.

As impressões dos espectadores eram as mais variadas


sobre a novidade na cidade. O cronista Spiridiam, em
diálogo com seu amigo literato Bicudo, que o havia
convidado para assistir a uma partida de football, uma
coisa nunca vista, assim respondeu:
Nem eu, acrescentei. Quando chegamos ao chamado campo, fiquei
surpreso. Senhoras e cavalheiros lá estavam embevecidos,
arriscando comentários, interessados pelo jogo. Bicudo franziu os
supercílios e eu pus-me a observar. Marmanjos e crianças, todos de
bonets e calções, as pernas nuas dos joelhos para baixo, calçados
com sapatões de turco, atiravam ponta-pés numa bola que andava
de Herodes para Pilatos. Momentos depois passou perto de mim
um foot-baller e eu pude ver-lhe as truculentas barrigas das pernas
com cada mancha assim de sinapismo... Não me contive e chamei

BH, v. 2, n.7, p. 163-191, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


181
a atenção do Bicudo. O insigne mestre ria perdidamente, achando
tudo aquilo trágico e cômico ao mesmo tempo, e sem perceber,
instintivamente repetiu [...] Neste mundo há cada uma
(SPIRIDIAM, 1904, p.2).

E os termos em inglês usados no jogo e divulgados na


imprensa eram uma forma de reproduzir na cidade o
jogo praticado na Inglaterra. Assim crônicas e notícias
sobre os jogos eram permeadas por referee, goal, team,
penalty, off-side, kick-off, entre outros. Esses termos do
esporte passaram a figurar, também, em todos os bate-
papos da cidade. Inclusive estabelecimentos
comerciais ganharam nomes ligados ao esporte, como
o Salão Sportman a Rotisserie Sportsman, que aparecem
nos anúncios dos jornais Estado de Minas e A Rua.

Quanto ao nível técnico dos jogadores, o jornal Vida


Sportiva, de 1927, destacava:
Desses jogadores, só três ou quatro – Victor Serpa, Avelino Reis,
Thomé Norris – já haviam praticado o ‘football’ em outras cidades.
Os restantes começaram a aprendê-lo, com mais ou menos
habilidade. O capitão Jefferson Mourão era um centro-avante
impetuoso e bravio, famoso em ‘charges’no adversário. José
Mariano de Sales, atual delegado de investigações e capturas da
Capital, magro e veloz como era, gostava dos “rushes” de efeito,
escapando rapidamente com a bola, para ir perdê-la perto do ‘goal’,
aos pés do Roque, o sólido ‘full-back’. O major Serpa, muito
míope, raramente conseguia manter o pé na pelota; mais chutava
sempre com grande vigor nas canelas do inimigo. O sr. José
Gonçalves (proprietário hoje da Casa Titan), tornou-se logo um
esplendido ‘goal-keeper’. Deixou fama.Outro bom arqueiro foi o
dr. José Martins Prates, atualmente deputado do Congresso
Mineiro. Havia outros jogadores bons, Victor Serpa, porém,
sobrepujava-os a todos, por seu jogo impecável, do melhor estilo
(REMEMORANDO..., 1927, p.2).

Os jogos iniciais foram realizados com os times do


clube que levavam o nome do Capitão.6 Mas logo após
a criação do Sport Club e depois da realização do seu
primeiro jogo público, outros clubes começaram a se

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 163-191, maio. 2006


182
organizar “numa proliferação espantosa, não obstante
a crença de que tal ramo desportivo era impróprio para
nosso clima e estafante para a nossa mocidade”
(BARRETO, s/d).

O segundo clube a ser criado também foi destacado


6
A partida realizada em 9 de
outubro de 1904 com os
pelo Minas Gerais: “Denomina-se Plínio Foot-ball Club a
times capitaneados por sociedade recentemente fundada nesta Capital para
Avelino Reis e Tomé Pereira
foram assim constituídos:
exercícios físicos. É divisa da novel associação o
AVELINO's XI: Gonçalves preceito de Plínio: Mens sana in corpore sano7. A primeira
(goal-keeper), Jordão e
Roque (backs), major Serpa,
partida efetuar-se-á hoje” (MINAS GERAIS, 1904b, p.
Avelino e Fabiano (half- 6). Abílio Barreto esclarece que a fundação desse clube
backs), Jefferson, Antonino,
dr. Americano, Brasil e foi realizada numa reunião efetuada no Externato do
Claudionor (forwards). Ginásio Mineiro, localizado na Rua da Bahia, no dia 2
Reservas: Saturnino, Velloso
e Guilherme. O THOMÉ's de outubro de 1904, o mesmo dia em que foi realizado
XI: Mascarenhas (goal-
keeper), Libermann e
o primeiro jogo de destaque do Sport Club. O clube era
Almeida (backs), Celso, composto de 30 sócios, com 22 titulares e 8 reservas.
Thomé e Abel (half-backs),
Mellinho, Sales, Norris,
Sua finalidade específica era o “exercício do foot-ball”.
Viserpa e Virialho O uniforme do time, definido nos estatutos, era camisa
(forwards). Reservas:
Baptista, Chagas e De Jaeger
de meia decotada, com listas pretas e brancas; calção
(SPORT CLUB, 1904b, p.3) branco apertado por um cinturão preto; meias pretas e
7
É importante destacar que
compridas e mais um acessório usado na época, um
essa frase não é de Plínio e “bonnet de gomas pretas e brancas” (ESTATUTOS,
sim de Juvenal (Decimus
Junius Juvenalis), poeta 1904, p. 3.).8
satírico romano.

8
Sua primeira diretoria foi O Minas Gerais de 19 de outubro noticiou a criação de
formada por Francisco
Tiburcio de Oliveira, presi-
um outro clube, o Mineiro Foot-Ball Club (MINAS
dente; Otávio Viana Martins, GERAIS, 1904c, p.7).9 Nesse período, foi criado
secretário; Álvaro Magalhães
Mascarenhas, tesoureiro;
também o Athletico Mineiro Foot-ball Club, que não é o
Francisco Mascarenhas, atual. Victor Serpa, no seu papel de grande educador e
Francisco Rebelo de Paula
Horta e Raul Cruz, comissão
divulgador do futebol na cidade, era também
de sindicância. Os estatutos presidente do Athletico, que posteriormente viria a se
foram organizados por
Francisco Mascarenhas,
chamar Viserpa-foot-ball-club (A EPOCHA, 1905a, p.2).
Pedro Queiroga e Antônio A primeira partida entre esses novos clubes foi
José da Cunha.
realizada entre as equipes do Plínio e do Athletico, no dia
9
Sua diretoria foi assim
constituída: Nicanor
17 de outubro, “resultando o magnífico match num
Noronha; 1o secretário, empate de 0 a 0, o que demonstra o mérito das duas
Mario Linhares; 2o Ricardo
Martins Penna e tesoureiro,
Américo M. Costa.

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183
defesas inimigas”, como apresentava o crítico
esportivo do Minas Gerais (MINAS GERAIS, 1904c,
p.7).

Com quatro clubes na cidade, os esportistas


procuraram organizar competições promovidas por
uma associação desses clubes, criando assim, em Belo
Horizonte, a sua primeira Liga de Futebol. Dessa
forma, o primeiro passo para uma organização mais
efetiva do futebol na cidade foi relatado pelo jornal A
Folha Pequena, de 10 de outubro de 1904:
Reuniram-se ontem à noite, no Grande Hotel, os representantes
das sociedades locais de ‘football’, ‘Sport-Club’, ‘Plínio Foot-ball-
Club, e ‘Athletico Mineiro’ a fim de organizarem nesta capital uma
liga de grêmios sportivos, idêntica às existentes no Rio e em São
Paulo Foram votadas as leis básicas da nova associação e
convocada outra assembléia, em que deverá ser eleita a diretoria,
para o dia 12 do corrente, às 7 horas da noite, no mesmo local
(FOLHA PEQUENA, 1904d, p. 2).

Essa associação, ao seguir os passos do que acontecia


nas duas maiores cidades brasileiras, seguia também o
que havia na Europa e também em alguns países da
América do Sul, como a Argentina, o Uruguai e o
Chile que a haviam inspirado. A forma de organizar
competições amadoras, promovidas por uma
associação de clubes, já acontecia em São Paulo, desde
1901, fundada pelos clubes São Paulo Athletic, Sport Club
Germânia, Club Athletic Paulistano e Sport Club
Internacional, cujo primeiro torneio oficial foi realizado
em 1902 (PRONI, 2000). Já no Rio de Janeiro, houve
um ensaio em 1904, para a formação de uma liga, mas
a iniciativa parece não ter prosperado a princípio,
tendo conseguido seu intento somente em 1905, com
a Liga Metropolitana de Foot-ball, “quando o
crescimento do jogo ameaçava a fidalguia que as
associações de clubes tentavam atribuir a ele”. Essa
Liga, formada pelos clubes Fluminense, Botafogo, Atletic e

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184
Bangu, que tomava para si a tarefa de “zelar pela
imagem refinada do jogo”, adotava em seus estatutos,
os regulamentos da Foot-ball Association da Inglaterra,
afirmando assim o aspecto distintivo do futebol
(PEREIRA, 2000, p.63-64).

Em Belo Horizonte, o Sport Club, que possuía dois


grupos de atletas, oficializou, para participar da Liga, o
nome de seus dois times que passaram a ser o Colombo
e o Vespúcio.10 Assim, o primeiro Campeonato
organizado pela Liga contou com a participação de
cinco times: os dois do Sport Football Club, Colombo e
Vespúcio; Plínio Football Club; Mineiro Football Club e
Athletico Mineiro Foot-ball Club.

O Minas Gerais de 19 de outubro divulgou, como


primeira partida do campeonato da Liga, a disputa
entre os dois times do Sport-Club, o Colombo e o
Vespucio, que seria realizada no dia 23 de outubro, mas
a edição de 26 de outubro, ao noticiar os jogos do
campeonato da liga, na sua seção “Festas e Diversões”,
descreve com detalhes duas partidas. Inicialmente o
jogo do Plinio versus Mineiro, que foi uma partida
“renhida”, e depois o Colombo versus Vespucio. No
segundo jogo foi destacada a ausência de Gonçalves,
dr. Oscar e o capitão Serpa, do lado do Colombo, e de
Fritz de Jaegher, Norris e Liebmann, do Vespucio, o que
foi a causa do grande desapontamento dos
espectadores, pois foi uma partida “fria”, “glacial”,
sem o “fogo” e o “interesse” que despertavam os
10
O Grupo Colombo usava “mestres” ( MINAS GERAIS, 1904d, p.7).
"bonnet encarnado e preto
em listas, camisa preta, Os jogos da liga passaram a atrair para os campos os
calções brancos, meias belo-horizontinos amadores do foot-ball, que podiam
pretas e botas de football".
O Grupo Vespúcio usava apreciar um “bem organizado match entre os clubs”
"bonnet encarnado e preto
em listas, camisa crême,
(MINAS GERAIS, 1904e, p. 3). O Minas Gerais
calções pretos de sarja, noticiava, com a chamada “O campeonato de 1904”,
meias pretas e botas de
football". (MINAS
GERAIS,1904c, p.7)

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185
as partidas entre os clubes, exaltando as qualidades dos
jogadores, publicando as posições dos times no
campeonato e divulgando os horários dos jogos, que
aparecem às sete da manhã e às quatro e quinze da
tarde. Adjetivados de valentes, disciplinados e
arrojados, dentre outros, os foot-ballers da cidade
jogavam de forma admirável o “cavalheiresco foot-
ball” (MINAS GERAIS, 1904f, p. 2).

Apesar do cronista dizer que “cresceu enormemente o


entusiasmo pelo omni-importante torneio nos arraiais
sportivos”, o Minas Gerais publicou notícias sobre o
campeonato somente até sua edição de 6 de
novembro, que apresentou o seguinte quadro das
posições dos clubes:

Segundo o Vida Sportiva de 1927, o campeonato não


terminou devido às fortíssimas chuvas de novembro,
que impediam a realização dos jogos. Mas Abílio
Barreto, em seus manuscritos, afirma que o Vespucio
venceu o campeonato, portanto o campeão pertencia
ao Sport Club.

Naquele mês de novembro, ainda aparecem notícias


sobre jogos realizados nos clubes Athletico e Sport. O
cronista destacava os valores do esporte:
Este gênero de diversão esportiva, que ultimamente tanto
incremento tem tomado no nosso meio, alia em si o útil ao

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 163-191, maio. 2006


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agradável, pois ao mesmo tempo em que dá força ao corpo,
concorrendo assim para a perfeição da espécie, é um elemento de
distração para o nosso público. É de presumir que haverá hoje
grande concorrência ao Athletico Mineiro Foot-ball (MINAS
GERAIS, 1904g, p.6).

Mas o futebol belo-horizontino, em janeiro de 1905,


sofre uma perda lastimável com a morte prematura de
seu mais importante incentivador, o Victor Serpa,
vítima de gripe, no Rio de Janeiro. A imprensa, colegas
de faculdade, os times de futebol da cidade e de Ouro
Preto e famílias amigas expressaram diferentes
manifestações de pesar pela perda do grande amigo.
O jornal A Epocha, que, em 18 de dezembro de 1904,
havia publicado o recebimento de um cartão de
despedida do “simpático amigo” Victor Serpa, que saía
de férias para o Rio, publicou nas edições de 22 e 29
de janeiro de 1905, notícias sobre o seu falecimento e
relatou o grande número de manifestações e
homenagens. Destaca-se o tributo do Athletico-foot-ball-
club, do qual Victor Serpa era presidente, que, além de
decretar oito dias de luto, mudou o seu nome para
Viserpa-foot-ball club. Outros Clubes como o Sport, o
Juvenil e o Plínio e também o Club Unionista de Foot-Ball,
dos alunos da Escola de Minas de Ouro Preto,
também fundado por Viserpa, enviaram mensagens a
família e realizaram cerimônias em homenagem à
memória do amigo. Famílias e amigos acadêmicos
também expressaram seu pesar celebrando missas em
diferentes cidades. Todas essas manifestações
revelaram o importante papel assumido por Victor
Serpa na sociedade. Suas qualidades, cultura de espírito
e distinção eram destaque e chegaram a ser
relembradas posteriormente por um cronista que dizia:
“tempo houve em que Bello Horizonte vibrou,
aninhando em seu seio moços de espírito, cultos e
fortes para a luta”. O nome de Victor Serpa é
destacado em meio a outros que foram evocados pelo

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187
cronista por terem proporcionado “inesquecíveis dias”
na cidade (ESTADO DE MINAS, 1906b, p.1.).

Mesmo após o falecimento do seu grande líder, o


futebol continuou a se enraizar na cidade. O Viserpa
Foot-ball Club, no dia 29 de janeiro, já realizava uma
partida, tendo sido eleito para seu presidente mais um
acadêmico, o foot-baller Júlio Lemos (A EPOCHA,
1905b, p.2.). E outros times passaram a figurar nos
jornais como Brasil Foot-ball Club, com seus dois times
– Russo e Japonês – (MINAS GERAIS, 1904h, p. 8),
Juvenil Foot-ball Club (A EPOCHA, 1905a, p. 2), José de
Alencar Foot-ball Club, Esperança Foot-ball Club e Estrada
Foot-ball Club (PAN d’ EGA, 1905, p.1).

Em agosto de 1905, ganha as manchetes do jornal A


Epocha o anúncio do primeiro jogo a ser realizado fora
da cidade, entre o time do Viserpa Foot-ball Club e o
Hugo Braga Foot-ball Club, da cidade de Barbacena. O
cronista destacava que seria a “primeira vez que se
[empenhariam] em luta, no Estado de Minas, clubs de
cidades diferentes” e a iniciativa seria uma boa forma
de despertar o entusiasmo nos clubes de outras
cidades (FOOT BALL, 1905a, p.2). Mas esse
entusiasmo não seria só para os clubes de outras
cidades, mas também os de Belo Horizonte. As
notícias sobre o foot-ball passaram a ser raras. Depois
de fevereiro de 1905, em que A Epocha noticiou que
“entre as ruas Parahyba e Pernambuco, em excelente
situação, foi aberto o campo em que o Viserpa Foot-ball
Club fará d’agora em diante os seus exercícios” (A
EPOCHA, 1905c, p. 3.), somente em junho aparece
uma nota esclarecendo que por aqueles dias o Brasil
Foot-ball Club recomeçaria seus exercícios, suspensos há
pouco tempo por motivo de força maior (FOLHA
PEQUENA, 1905, p.1.). A partida intermunicipal
traria novo interesse ao foot-ball. Marcada inicialmente

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para o dia 6 setembro, ficou definitivamente acertada
para o dia 1º de outubro. Nessa nota foi noticiada a
fusão entre o clubes: Viserpa e Sport. As diretorias,
reunidas, decidiram que a nova associação iria chamar
Viserpa Sport Club e que as mensalidades seriam
reduzidas para 3$000, não pagando jóia os jogadores
que já tivessem pertencido a outros clubes. Achava-se
na Casa Colombo uma lista para ser assinada pelos que
concordassem com a fusão e também para aqueles que
se interessarem por fazer parte da associação. Essa era
uma iniciativa para abrir possibilidades de que mais
pessoas pudessem participar do seleto clube, que, ao
diminuir o valor da mensalidade para 3$000, um valor
ainda alto o bastante para selecionar seus
participantes, motivaria a entrada de novos adeptos. A
medida era, para o cronista do A Epocha, uma
esperança de que o “foot-ball tome vigoroso impulso”
(FOOT-BALL, 1905b, p. 1). Mas também um
indicativo de que o interesse não era o mesmo dos
tempos iniciais. É importante ressaltar que fazia parte
da comissão redatora desse jornal, que tanto apoio
dava às notícias do futebol, Júlio Lemos, o Capitain do
Viserpa (A EPOCHA, 1905d, p.1).

O resultado e empenho dos diretores do clube


parecem não ter dado o resultado esperado. Depois da
nota “hoje, às 4 horas, haverá jogo no ground do
Viserpa Sport-club”, de 15 de outubro de 1905, mesmo
o presidente do Viserpa fazendo parte da comissão
redatora do jornal A Epocha, as notícias sobre futebol
desapareceram dos jornais da cidade. Assim como o
ciclismo e o turfe, que despertaram inicialmente um
grande interesse por parte dos belo-horizontinos, o
futebol, apesar da efervescência vivida nos primeiros
anos, também entrou numa fase de declínio e
desinteresse do povo mineiro. Os anos de 1906 e 1907
foram marcados pela ausência de notícias sobre ele,

BH, v. 2, n.7, p. 163-191, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


189
momento em que as atenções da população se
voltaram para o Prado Mineiro, com a implantação do
turfe na cidade.

O que marca esses anos iniciais foi o papel


desempenhado por Victor Serpa na difusão do futebol
em Belo Horizonte, como um esporte de elite,
envolvendo pessoas representativas na cidade,
comerciantes, universitários e ginasianos na criação de
times que tiveram vida efêmera na cidade.

Somente a partir de 1908 é que o futebol vai ressurgir,


com a criação de times que até hoje vêm construindo
a história desse esporte na cidade, como o Clube
Atlético Mineiro. Mas essa já é uma outra história...

REFERÊNCIAS
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Sistematização da Constituição do Estado de
Minas Gerais: Pesquisa realizada com apoio do
Centro de Ensino, Pesquisa e Extensão - CEPE
da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte
195
Sistematização da Constituição do Estado
de Minas Gerais: Pesquisa realizada com
apoio do Centro de Ensino, Pesquisa e
Extensão - CEPE da Faculdade Estácio
de Sá de Belo Horizonte*

Professores pesquisadores
Fátima Aurélia Baracho Macaroun**
Denise de Carvalho Falcão***
Leonardo Goulart Pimenta****

Alunos
Alan Silva Faria
José Eustáquio Pimenta dos Santos
Jussara de Freitas Leite Baron
Luciana das Graças dos Santos

Resumo: O objetivo do projeto de pesquisa, desenvolvido em torno


da sistematização da Constituição do Estado de Minas Gerais, era
verificar a interpretação e aplicação da Constituição Estadual pelos
Poderes Judiciário e Legislativo desde a sua promulgação, em 1989,
através do levantamento de decisões e jurisprudências dos Tribunais,
bem como de projetos de lei aprovados pela Assembléia Estadual,
principalmente visando à efetiva realização do modelo de estado
federal brasileiro. A pesquisa se baseou na coleta de dados
específicos sobre a interpretação e aplicação da Constituição
Estadual de 1989, incluindo decisões e jurisprudências do Supremo
Tribunal Federal e do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, além da
Pequisa realizada com apoio
*
análise de livros e artigos especializados, razões de veto por
do Centro de Extensão e
inconstitucionalidade e pareceres das Comissões da Assembléia Pesquisa - CEPE da
Legislativa do Estado. Após um período de um ano e meio de coleta Faculdade Estácio de Sá de
e análise de dados, chegou-se a relevantes conclusões. A mais Belo Horizonte.
significativa foi no sentido de que ambos os tribunais pesquisados, **
Mestre em Direito-Profes-
Tribunal de Justiça de Minas Gerais e Supremo Tribunal Federal, sora da Faculdade Estácio de
sistematicamente não reconhecem a autonomia do Estado de Minas Sá de BH.
Gerais. Ou seja, mais de 75% das decisões proferidas em ações
diretas de inconstitucionalidade, seja contra a Constituição Estadual
***
Mestre em Direito-Profes-
sora da Faculdade Estácio de
ou a Constituição Federal, expedidas pelo Tribunal de Justiça de Sá de BH.

Mestre em Teoria do
****

Direito-Professor da Facul-
dade Estácio de Sá de BH

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 193-210, maio. 2006


196
Minas Gerais ou pelo Supremo Tribunal Federal, são contrárias aos
fundamentos da forma federativa, gerando um grave desvio na
efetivação do federalismo no Brasil.

Palavras-chave: autonomia, estados-membros, constituição


federal, constituição estadual de Minas Gerais, assembléia
legislativa, federalismo.

Abstract: SUPREME COURT OF BRAZIL - STATE COURT OF


MINAS GERAIS
The objectives of the study were to verify the interpretation and
application of the Constitution of Minas Gerais State made by the
Judiciary and Legislative Powers, since its promulgation. Decisions
and jurisprudence of the Courts were collected in addition to law
projects approved or rejected by Legislative Assembly of Minas
Gerais State. The research was based on specific data about
interpretation and application of the Constitution of Minas Gerais
State, including decisions made by the Supreme Court of Brazil,
Supremo Tribunal Federal, and also by the State Court of Minas
Gerais, Tribunal de Justiça de Minas Gerais. After eighteen months
of data collection and analysis, the most important conclusion was
that more than 75% of the decisions made by the Supreme Court
and State Court decided against the autonomy of Minas Gerais state,
denying the federalist model adopted by Brazil in his Constitution.

Keywords: federalism, constitution, legislative assembly, autonomy

O presente trabalho refere-se ao resultado de pesquisa


científica desenvolvida com o apoio do Centro de
Ensino, Pesquisa e Extensão - CEPE da Faculdade
Estácio de Sá de Belo Horizonte. O objetivo geral do
Projeto de Pesquisa desenvolvido em torno da
sistematização da Constituição do Estado de Minas
Gerais era verificar a interpretação e aplicação da
Constituição Estadual pelos Poderes Judiciário e
Legislativo desde a sua promulgação, em 1989, através
do levantamento de decisões e jurisprudências dos
Tribunais, bem como de projetos de lei aprovados pela
Assembléia Estadual.

BH, v. 2, n.7, p. 193-210, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


197
São diversas as pesquisas, publicações e consolidações
em torno da interpretação e aplicação da Constituição
Federal de 1988. Entretanto, o mesmo não se pode
dizer das Constituições Estaduais de maneira geral.
Para se ter uma idéia, quanto à Constituição mineira
não há qualquer registro de trabalhos ou pesquisas que
envolvam uma análise mais profunda sobre os debates
que ocorrem no âmbito do Poder Judiciário (Supremo
Tribunal Federal e Tribunal de Justiça de Minas Gerais)
e do Poder Legislativo (Assembléia Legislativa de
Minas Gerais), pois vários pontos que seriam
essenciais à compreensão da sistemática constitucional
estadual são colocados à margem diante dos processos
de sistematização e consolidação.

Tal constatação leva-nos a afirmar que faltam


elementos que sirvam de subsídio para analisar não só
a Constituição, mas toda a legislação estadual, fato esse
que ressalta a necessidade de um trabalho que
verifique as diretrizes adotadas quando da
interpretação e aplicação dos dispositivos
constitucionais e infraconstitucionais vigentes. O
trabalho de pesquisa realizado teve, portanto, como
marco inicial, a Constituição do Estado de Minas
Gerais, e a pretensão era sistematizar suas normas,
principalmente em comparação com a Constituição da
República de 1988, a partir do modelo de Estado
Federal adotado pela Constituição brasileira.

Trata-se, portanto, de uma pesquisa inédita e de grande


valor prático para os aplicadores do Direito.
A pesquisa se baseou, inicialmente, na coleta de dados
específicos sobre a interpretação e aplicação da
Constituição Estadual de 1989, incluindo decisões e
jurisprudências do Supremo Tribunal Federal e do

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 193-210, maio. 2006


198
Tribunal de Justiça de Minas Gerais, além da análise de
livros e artigos especializados, razões de veto por
inconstitucionalidade e pareceres das Comissões da
Assembléia Legislativa do Estado.

As informações foram coletadas através de buscas em


arquivos relacionados à natureza e origem dos dados
disponíveis. As decisões e jurisprudências foram
levantadas por meio de compilações realizadas pelos
Tribunais selecionados para a pesquisa, e as razões de
veto por inconstitucionalidade e pareceres das
Comissões da Assembléia Legislativa de Minas Gerais
foram pesquisados nos arquivos e publicações deste
órgão.

Complementando a pesquisa, foram utilizados livros e


artigos publicados em periódicos e revistas
especializadas, com o intuito de dar aos trabalhos o
amparo doutrinário necessário a todo projeto dessa
natureza.

Sob esse aspecto, é de fundamental importância uma


abordagem teórica sobre o surgimento do Estado
federativo, sobretudo no que se refere à autonomia
outorgada pela Constituição Federal aos Estados-
membros.

O modelo de Estado Federal é de criação norte-


americana e pressupõe algumas características
peculiares. Como se sabe, o modelo de Estado Federal
derivou da ineficácia do modelo confederativo,
adotado pelos Estados norte-americanos após a
independência da Inglaterra. Isso porque, no modelo
de Confederação, cada Estado preservava sua
soberania, e por tal razão sempre poderia haver alguma
decisão discordante e que ocasionasse o rompimento
do vínculo entre os Estados.

BH, v. 2, n.7, p. 193-210, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


199
Assim, surge, em razão de longos debates, que depois
foram sintetizados na obra “O Federalista”, o modelo
de Estado Federal, nova forma de Estado, em que se
destacam características próprias. ALMEIDA (2000)
ressalta como características fundamentais do Estado
Federal a autonomia dos Estados-membros, que
abdicam da anterior soberania e passam a fazer parte
da Federação como entes autônomos; a Constituição
como fundamento jurídico do Estado Federal; a
inexistência do direito de secessão; a repartição
constitucional de competências e a repartição de
rendas entre os entes federativos.

Dentre tais características, e talvez a mais importante


para a realização da pesquisa, destaca-se a autonomia
dos entes federativos que compõem essa forma de
Estado. Nesse sentido, cada ente federativo tem sua
própria ordem constitucional, e sua competência,
legislativa e material, determinadas pela Constituição
Federal. A autonomia dos entes federativos baseia-se
principalmente na capacidade de autolegislação,
autogoverno e auto-administração daquele ente. Cada
ente federativo, portanto, tem, respeitada a repartição
constitucional de competências, capacidade de
autolegislação no que concerne aos assuntos de seu
interesse. Com essa forma de Estado, busca-se a
descentralização de competências, ou seja, cada ente
fica mais próximo e com capacidade real de se
organizar e resolver seus próprios problemas e
peculiaridades. Há, portanto, em um Estado Federal, a
convivência de diversas ordens constitucionais
regionais, dentro de cada ente federativo. O modelo
idealizado pelos criadores prevê uma considerável
autonomia de seus entes; ou, com efeito, não seria
efetivado o modelo proposto.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 193-210, maio. 2006


200
Entretanto, como afirma BARACHO (1986), nem
sempre o modelo original é seguido na prática pelos
Estados que adotaram tal forma:
Na análise do federalismo, chega-se a dizer que a descentralização
política que ele implica, em muitos casos não passa de uma ficção
legal. A tendência à centralização leva à afirmativa de que ocorre
um verdadeiro processo de desfederalização em muitos dos
modelos atuais, com altos índices para uma predominância do
Estado unitário. A forma de Estado federal implica, normalmente,
a distribuição territorial do poder político, com a coexistência de
esferas de governo, com competências definidas, possibilitando
coordenação e independência. Dentro desse entendimento, no
Estado Federal não deve ocorrer um poder para regular todos os
aspectos da atividade estatal, desde que o governo central surge
legalmente limitado no exercício de algumas funções, ao passo que
importantes esferas da atividade governamental são dirigidas às
unidades locais.

O Brasil adota a forma de Estado Federal desde a


proclamação da República, em 1889, seguindo o
modelo de Estado adotado nos Estados Unidos da
América, em que há a convivência de centros de
competência, com tais competências previstas e
definidas na Constituição Federal. A partir da
Constituição de 1988, o Município foi também
reconhecido como ente federativo, passando a possuir
autonomia administrativa e legislativa. Assim, dentro
do modelo brasileiro atual, cada Estado e cada
Município têm capacidade de constituir sua própria
ordem normativa, dentro das limitações previstas na
Constituição Federal. Como realização de sua
autonomia, o Estado de Minas Gerais dispõe de uma
Constituição, promulgada em 1989, e de uma
legislação específica.

Ocorre, no entanto, que apesar de várias pesquisas,


publicações e consolidações sobre a aplicação e
interpretação da Constituição Federal, não há qualquer
trabalho de pesquisa sobre a Constituição Mineira. Há

BH, v. 2, n.7, p. 193-210, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


201
uma série de discussões ocorridas, em especial no
Poder Judiciário (Tribunal de Justiça de Minas Gerais e
Supremo Tribunal Federal) e no Poder Legislativo
(Assembléia Legislativa de Minas Gerais), que passam
despercebidos aos processos de sistematização e
consolidação. Resta, dessa forma, uma lacuna em
termos de subsídio para análise da própria
Constituição, assim como de toda a legislação mineira.
Não há qualquer indicação criteriosa e organizada
sobre os sentidos e interpretações já discutidos e
aplicados no Estado. Os cientistas do direito, em
especial os cientistas mineiros, não dispõem de uma
pesquisa que lhes ofereça elementos para avaliar a
sistemática de interpretação que é realizada sobre a
Constituição de Minas e de sua legislação especifica.

Nestes termos, o projeto desta pesquisa teve como


principal objetivo, em razão da grande escassez de
trabalhos nessa área, analisar as normas constantes da
Constituição do Estado de Minas Gerais, ente
federativo dotado de autonomia constitucional. A
previsão inicial era traçar parâmetros para que
pudéssemos avaliar qual o verdadeiro grau de
autonomia do Estado de Minas Gerais como ente da
Federação. Isto é, dentro da estrutura federalista
brasileira, verificar se a Constituição do Estado de
Minas Gerais poderia ser considerada como marco de
autonomia estadual para que o Estado atingisse suas
próprias metas e resultados, dentro de suas
peculiaridades regionais.

Para tanto, adotou-se a pesquisa das decisões do


Supremo Tribunal Federal, do Tribunal de Justiça de
Minas Gerias e de pareceres proferidos pela

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 193-210, maio. 2006


202
Assembléia Legislativa de Minas Gerais, para que
fossem levantados dados e realizadas análises
concretas acerca da Constituição Mineira de 1989.
Essa metodologia objetivou, em primeiro plano, a
avaliação dos resultados do controle de
constitucionalidade realizado por via de ação perante o
Tribunal de Justiça de Minas Gerais e o Supremo
Tribunal Federal, ações cujo objeto foram normas
presentes na Constituição de Minas Gerais e na
legislação estadual. Tal levantamento teve como marco
inicial a Constituição Federal de 1988, como forma de
se concluir como a estrutura vigente a partir de 1988
vem se realizando concretamente dentro dos
Tribunais.

Baseando-se nos sistemas austríaco e norte-americano,


o Brasil adota dois sistemas de controle de
constitucionalidade, que se completam por atingir
objetivos diferenciados. FERRARI (2004) assim
resume os modos de argüição da inconstitucionalidade
frente ao órgão jurisdicional:
Quanto aos modos de argüição da inconstitucionalidade frente ao
órgão jurisdicional, estes se dividem em: a) via de defesa, quando a
argüição é feita incidentalmente no curso de um processo comum
e discutida a inconstitucionalidade na medida em que seja relevante
para a solução do caso. Havendo a declaração de
inconstitucionalidade, esta atinge apenas às partes litigantes,
continuando válida e produtora de efeitos em relação aos demais;
b) via de ação, que, tendo objeto mais amplo, visa retirar do
ordenamento a norma tida por inconstitucional pelo órgão
competente, quando seus efeitos se estendem erga omnes.

Portanto, no sistema por via de defesa ou exceção, de


origem norte-americana, realizado de modo difuso,
qualquer das partes pode argüir a
inconstitucionalidade de um preceito e o juiz
competente pode declarar uma norma

BH, v. 2, n.7, p. 193-210, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


203
inconstitucional, restringindo-se ao julgamento do
caso concreto. Quando há essa declaração de
inconstitucionalidade, seu efeito restringe-se às partes
envolvidas na demanda, autor e réu. A norma
permanece no sistema, e continua produzindo efeitos
para todos que não fizeram parte da demanda. Esse
modo de controle de constitucionalidade, de
interpretação judiciária da Constituição, não foi objeto
de investigação, tendo em vista que seria necessário
analisar detalhadamente milhares de decisões que são
expedidas todos os meses pelas centenas de juízes de
primeiro grau que compõem o Judiciário mineiro.
Ainda que tal pesquisa fosse de alguma forma viável, a
grande abstração analítica impossibilitaria qualquer
reflexão ou conclusão teórica.

Outro modo de controle de constitucionalidade


perante os órgãos judiciários, que interessa ao presente
trabalho, é o controle por via de ação ou principal, de
origem austríaca, realizado de forma concentrada,
diretamente nos Tribunais Superiores. A Constituição
da República de 1988 prevê competência privativa do
Supremo Tribunal Federal para processar e julgar
ações diretas de inconstitucionalidade e ações
declaratórias de constitucionalidade de leis ou atos
normativos federais e estaduais (art. 102, I, “a”). E
prevê ainda, em razão da forma federativa, que cada
Estado-membro disponha sobre semelhante modo de
controle de constitucionalidade, de normas municipais
e estaduais, em relação à Constituição Estadual, a ser
realizado pelo respectivo Tribunal de Justiça Estadual
(art. 125, §2º).
Nesta forma de controle, para se questionar a
constitucionalidade de leis ou atos normativos federais
ou estaduais, podem ser propostas ações próprias
(Ação Direta de Inconstitucionalidade e Ação

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 193-210, maio. 2006


204
Declaratória de Constitucionalidade), com legitimação
ativa restrita prevista na Constituição da República e
nas Constituições Estaduais. A legitimação ativa está
prevista no artigo 103 da Constituição Federal e no
artigo 118 da Constituição Estadual.

A Constituição Federal prevê esta forma de controle


de constitucionalidade em face da Constituição
Federal, a ser realizado diretamente perante o Supremo
Tribunal Federal, através da propositura destas ações
próprias, no artigo 102, inciso I, alínea a.

A Constituição Federal também prevê a hipótese de


controle de constitucionalidade em âmbito estadual,
quando prevê em seu artigo 125 que cada Estado
implantará seu sistema de controle de
constitucionalidade a ser realizado perante o Tribunal
de Justiça Estadual. A Constituição do Estado de
Minas Gerais prevê essa competência para julgamento
em seu artigo 106, inciso I, alínea h.

Em ambos os casos, o julgamento é realizado em


caráter abstrato, ou seja, não se discute o direito das
partes, sendo o objeto da ação a análise da
constitucionalidade ou inconstitucionalidade da norma
questionada. Uma vez declarada a
inconstitucionalidade nesta espécie de controle, os
efeitos são totalmente diversos dos efeitos da
declaração de inconstitucionalidade pela via de defesa,
já descritos acima. Aqui a declaração de
inconstitucionalidade retira a norma considerada
inconstitucional do ordenamento jurídico, o que faz
com que o efeito dessa declaração atinja a todos (efeito
erga omnes).
Tendo em vista tais características, este foi o enfoque
do presente trabalho de pesquisa: procurou-se
verificar, com a análise de decisões proferidas em
controle concentrado pelo Supremo Tribunal Federal

BH, v. 2, n.7, p. 193-210, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


205
e pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, quais
normas estaduais, quando contestadas em sua
constitucionalidade, foram mantidas ou não, como
forma de determinar se a forma federativa é
reconhecida pelos órgãos judiciários.

Para concretizar esses objetivos, as primeiras


atividades foram no sentido de se delimitar quais as
informações relevantes a serem retiradas das decisões
judiciais sobre a Constituição de Minas Gerais e qual a
formatação a ser utilizada nessa coleta. A conclusão
dessa primeira etapa foi concretizada no modelo
utilizado pelos alunos participantes (Fichário), o qual
definiu as seguintes informações como pertinentes:
ano, natureza da ação, órgão, assunto, artigos citados e
resumo da decisão. Ainda nesse primeiro momento
ocorreu a especificação do cronograma, divisão e
distribuição das atividades de pesquisa entre os
professores e os alunos bolsistas e voluntários que
também participaram do projeto. Observe-se também
que o trabalho de coleta a ser realizado pelos alunos
participantes foi especificado em função do
cronograma apresentado no Projeto, através do qual
cada aluno recebeu determinados objetivos e uma
amostra temporal a ser pesquisada.

Em 30 de setembro de 2004, a pesquisa iniciou-se no


Tribunal de Justiça de Minas Gerais, sendo que, nos 67
volumes da Revista Trimestral de Jurisprudência, nos
260 livros da Revista Forense e nos 62 volumes dos
Arquivos da Jurisprudência do Tribunal de Justiça de
Minas Gerais, foram pesquisadas todas suas decisões
em Ações Diretas de Inconstitucionalidade no período
de janeiro de 1989 a dezembro de 2004. Dessa análise
foram destacadas 92 decisões, sendo que 76,09%
foram acordadas no sentido de, no todo ou em parte,

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 211-225, maio. 2006


206
por maioria ou unanimidade dos votos, declarar a
inconstitucionalidade de Leis e atos normativos
Estaduais e Municipais, em face da Constituição do
Estado de Minas Gerais.

Ao final desta primeira etapa da pesquisa já foi possível


concluir que sistematicamente o Tribunal de Justiça de
Minas Gerais não reconhece a autonomia garantida na
Constituição Federal, isto é, o Tribunal de Justiça de
Minas Gerais reiteradamente decide contra a
autonomia dos entes, em desacordo com o princípio
fundamental da forma federativa. Isso significa que, ao
se contestar uma lei ou um ato normativo estadual ou
municipal diante da Constituição Estadual de 1989, a
tendência no Tribunal de Justiça de Minas Gerais é de
que a autonomia do Estado seja desconsiderada em
afronta à forma federativa determinada
constitucionalmente.

Finalizado esse primeiro objetivo específico do


trabalho, em janeiro de 2005, iniciou-se a coleta de
dados no Supremo Tribunal Federal, isto é, o
levantamento das Ações Diretas de
Inconstitucionalidade propostas no Supremo
Tribunal Federal, originadas do Estado de Minas
Gerais no período de janeiro de 1989 a julho de 2005.

Tal atividade teve por base a mesma metodologia de


trabalho utilizada no recolhimento das decisões do
Tribunal de Justiça de Minas Gerais, tendo novamente
como fonte os 67 volumes da Revista Trimestral de
Jurisprudência, os 260 livros da Revista Forense e os
62 volumes dos Arquivos da Jurisprudência do
Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

Concluído o levantamento, em julho de 2005,

BH, v. 2, n.7, p. 193-210, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


207
destacados e analisados todos os 89 acórdãos sobre o
tema, verificou-se que 78,66% das decisões do
Supremo Tribunal Federal julgou, no todo ou em
parte, por maioria ou por unanimidade de votos, pela
inconstitucionalidade de dispositivos da Constituição
Estadual de Minas Gerais de 1989, Leis e Decretos
estaduais, Regimentos Internos e outros dispositivos
estaduais em face da Constituição Federal de 1988.

Novamente, ao final dessa etapa da pesquisa, foi


possível concluir que, assim como o Tribunal de
Justiça de Minas Gerais, o Supremo Tribunal Federal
sistematicamente não reconhece a autonomia do
Estado de Minas Gerais. A tendência das decisões do
órgão judiciário máximo no Brasil, responsável por
garantir os princípios basilares da ordem jurídica
nacional, é a de não reconhecer a autonomia do
Estado de Minas Gerais em suas decisões concretas
sobre controle de constitucionalidade.

Por fim, a partir de fevereiro de 2005, os pesquisadores


selecionaram 37 pareceres da Comissão de
Constituição e Justiça, 30 Razões de Veto no tocante
às inconstitucionalidades, 27 propostas de emendas à
Constituição Estadual, 117 emendas de projetos de lei
pendentes de análise sobre a constitucionalidade.
Também investigaram a tramitação das leis dentro da
Assembléia Legislativa de Minas Gerais, buscando
levantar os pareceres das Comissões relacionados à
interpretação da Constituição do Estado de Minas
Gerais de 1989. Assim, investigou-se especialmente os
pareceres das Comissões de Constituição de Justiça,
órgão responsável pela análise preliminar da
constitucionalidade das leis em tramitação na
Assembléia Legislativa de Minas Gerais. Isso significa
que, em princípio, a Comissão conclui sobre a

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 193-210, maio. 2006


208
constitucionalidade de um projeto de lei, servindo-se
dessa forma para evitar que leis consideradas
inconstitucionais sejam aprovadas e promulgadas. Ao
término da análise dos levantamentos, observou-se
que 35 projetos considerados inconstitucionais pela
Comissão de Constituição e Justiça foram aprovados e
se transformaram em lei. Com efeito, tal lei
formalmente aprovada apresenta uma probabilidade
substancial de sofrer um questionamento judicial por
via direta ou indireta. Tal constatação demonstra a
falta de comprometimento do Legislativo com seu
próprio regimento, colocando em risco a integridade e
coerência do ordenamento estadual.

Assim sendo, sugere-se, como outro objeto de


pesquisa, a contraposição entre as leis que, apesar de
parecer desfavorável sobre sua inconstitucionalidade
por parte de um órgão do próprio Legislativo, restam
aprovadas, e as leis declaradas inconstitucionais pelo
Tribunal de Justiça de Minas Gerais como forma de se
investigar a consciência do órgão Legislativo mineiro
em editar e aprovar leis originalmente
inconstitucionais.

Após todos os trabalhos realizados, a conclusão mais


significativa sobre a interpretação da Constituição de
Minas Gerais de 1989 é que a maioria absoluta das
decisões em ações diretas de inconstitucionalidade,
seja contra a Constituição Estadual ou contra a
Constituição Federal, expedidas pelo Tribunal de
Justiça de Minas Gerais ou pelo Supremo Tribunal
Federal, são contrárias aos fundamentos da forma
federativa. Vê-se, portanto, que um grave desvio na
jurisprudência vem passando impunemente à
consideração dos juristas, tendo em vista a ausência de
sistematização sobre a interpretação das constituições
estaduais.

BH, v. 2, n.7, p. 193-210, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


209
A pesquisa apresentou um resultado significativo
sobre o tema: mais de 75% das decisões sobre a
inconstitucionalidade das normas do Estado de Minas
Gerais foram indeferidas pelo Supremo Tribunal
Federal, ou também, o órgão máximo do Poder
Judiciário brasileiro reiteradamente rejeita a afirmação
da autonomia do Estado de Minas Gerais em suas
decisões, daí que toda pretensão de autonomia
estadual, garantida na Constituição Federal de 1988,
não vem obtendo o devido reflexo na atuação concreta
do Tribunal responsável pela guarda dos princípios
constitucionais.

A partir dessa constatação circunscrita a um ente


federativo, restaria saber se tal perspectiva é adotada
pelo Supremo Tribunal Federal em relação aos demais
Estados-membros brasileiros, ou seja, é necessário
investigar se a postura adotada pelo Supremo Tribunal
Federal em relação à autonomia do Estado de Minas
Gerais afirma-se como regra dentro de suas decisões.
Se os Estados brasileiros, ao serem questionados
judicialmente sobre a constitucionalidade de sua
legislação, têm sua autonomia negada, isso significa
que a forma federativa não vem obtendo o devido
reconhecimento por parte do Judiciário. Portanto,
sugere-se uma pesquisa complementar que tenha
como objetivo saber se o Supremo Tribunal Federal
reconhece a autonomia dos Estados federados
brasileiros instituída na Constituição de 1988, como
forma de se generalizar as constatações apresentadas
sobre o Estado de Minas Gerais.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 193-210, maio. 2006


210
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BH, v. 2, n.7, p. 193-210, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


Prevalência de Verminoses
Gastrintestinais em Crianças do
Município de Catuji - MG
213
Prevalência de Verminoses
Gastrintestinais em Crianças do
Município de Catuji - MG*

Zenon Rodríguez-Batista**
Bráulio R.G. M. Couto***

Resumo: Nas áreas rural e urbana do município de Catuji, Minas


Gerais, foram coletadas 327 amostras de fezes de crianças em idade
escolar, com realização posterior de exames parasitológicos,
utilizando-se as seguintes técnicas: exame direto, HPJ, Kato-Katz e
Baermann. A prevalência de verminoses foi de 33% na zona rural e
32% na zona urbana. As verminoses diagnosticadas como positivas
na zona rural foram: Ascaris lumbricoides (77%), Ancilostomídeos
(11%), Schistosoma mansoni (7%) e Trichuris trichiura (5%). Na zona
urbana, as amostras positivas indicaram: A. lumbricoides (80%), S.
mansoni (14%) e T. trichiura (6%). Esses resultados coincidem com
aqueles obtidos em pesquisas realizadas em comunidades urbanas
e/ou rurais ou comunidades faveladas, indicando que a relação
entre saneamento e saúde pública influencia drasticamente as altas
prevalências parasitárias.

Palavras-chave: Helmintoses intestinais. Geo-helmintose.


Epidemiologia

Abstract: A survey including 327 fecal specimens from


schoolchildren in rural and urban areas was collected in Catují,
Minas Gerais, Brazil. Samples were examined using formalin-ether
sedimentation technique, HPJ, Kato-Katz and Baerman methods.
The overall prevalence of intestinal parasites was 33% in rural area
and 32% in the City. The intestinal helminthes observed at rural
area: Ascaris lumbricoides 77%), Ancilostomídeos (11%),
Schistosoma mansoni (7%) e Trichuris trichiura (5%). In the urban *
Pesquisa realizada com apoio
area: A. lumbricoides (80%), S.mansoni (14%) e T. trichiura (6%). do Centro de Extensão e
These results are similar with others obtained from studies Pesquisa-CEPE da Faculdade
implemented in rural or urban communities or poor ghettos, Estácio de Sá de Belo
Horizonte.
indicating that the public health status affects the prevalence of
parasitic helminths. **
Doutor em ciência: Parasito-
logia-Professor da Faculdade
Keywords: Helmintoses intestinais. Geo-helmintose. Estácio de Sá de BH.
Epidemiologia ***
Mestre em ciência da
Computação-Professor da
Faculdade Estácio de Sá de
BH.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 211-225, maio. 2006


214
Os parasitas intestinais apresentam uma distribuição
mundial com altos níveis de prevalência em regiões
com precárias condições socioeconômicas e higiênicas
(WHO, 2005). Estima-se que as infecções causadas por
protozoários e helmintos intestinais afetam mais de 3,5
bilhões de pessoas no mundo e causam doença em
mais de 450 milhões de pessoas, a maioria crianças
(SCHUSTER & CHIODINI, 2001). Novas
estimativas indicam que 230 milhões de crianças
infectadas estão com idade entre 0 e 4 anos (WHO,
2004).

Na América Latina, em países como o México,


QUIHUI-COSTA et al. (2004) observaram
prevalência de helmintos intestinais de 33% em
Sinaloa e de 53% em Oaxaca, estados separados por
1741 km e localizados no nordeste e sudeste
mexicanos, com diferenças socioeconômicas, culturais
e ecológicas. Na América Central, na Republica do
Panamá, em um estudo realizado na província de
Coclé com crianças do ensino fundamental,
ROBERTSON et al. (1989) detectaram uma
prevalência de 12% para ancilostomídeos, de 18% para
A. lumbricoides e de 27% para T. trichiura. Na América
do Sul, na Venezuela, RIVERO-RODRÍGUEZ et al.
(2000) verificaram as prevalências de enteroparasitas
no município de Maracaibo, sendo que os valores para
T. trichiura foram de 41% e para A. lumbricoides de 35%.

No Brasil, as verminoses gastrintestinais constituem


um importante problema de saúde pública devido,
principalmente, aos baixos níveis educacionais ou às
baixas condições socioeconômicas da população,
refletindo-se essa situação na falta de educação
sanitária do cidadão e de saneamento básico nas
comunidades (NEVES, 2003). Na região norte do país,
no Estado do Amazonas, COURA et al. (1994)

BH, v. 2, n.7, p. 211-225, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


215
citaram 51% de parasitismo pelo A. lumbricoides nos
moradores da localidade de Barcelos, na área de Rio
Negro. Posteriormente, MIRANDA et al.(1998),
pesquisando comunidades indígenas, como no caso de
Parakana, no Estado do Pará, observaram que o
Ascaris lumbricoides infectou 42% dos examinados; os
ancilostomídeos, 33% e Strongyloides stercoralis , 5,6%
dos mesmos.

Entretanto, em se tratando da região nordeste, no


Estado do Piauí, ALVES et al. (2003) encontraram, no
município de São Raimundo Nonato, na região do
Parque Nacional Serra da Capivara, padrões diferentes
dos encontrados em outras regiões próximas, com
nenhuma das amostras de fezes processadas positivas
para A. lumbricoides e T. trichiura. Contrariamente, na
mesma região do país, na comunidade de Jequié, no
estado da Bahia, BRITO et al. (2003) observaram altas
prevalências de helmintos intestinais tais como T.
trichiura, 74%, A. lumbricoides, 63% e ancilostomídeos,
15%.

No Estado de Minas Gerais, na mesorregião


Sul/Sudeste, no município de Alterosa, MACHADO
et al. (1998) apontam que 23% da população se
apresentavam parasitadas com A. lumbricoides num
estudo realizado no subdistrito de Covacos. Na
mesorregião Oeste, no município de Bambuí,
ROCHA et al. (2000) observaram baixo grau de
parasitismo em crianças do ensino fundamental, como,
por exemplo, 4,8% para o A. lumbricoides e 1,4% para
os ancilostomídeos. Na mesorregião do Triângulo
Mineiro, MACHADO e COSTA-CRUZ (1998), na
cidade de Uberlândia, pesquisando em creches, citam o
caráter hiperendêmico de S. stercolaris, além de
infecções de 15% para o A. lumbricoides, 6% para
ancilostomídeos e 4% para Enterobius vermicularis. Na

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 211-225, maio. 2006


216
Zona da Mata, nos municípios de Caparaó e Alto
Caparaó, estudos sobre a A. lumbricoides em 1171
crianças indicaram uma prevalência de 12%
(CARNEIRO et al. 2002).

Esse contexto indica a necessidade de se fazer mais


estudos, para que ações resolutivas sejam levadas a
cabo e a situação de saúde das crianças mineiras tenha
melhor prognóstico. Assim, o objetivo do presente
trabalho foi o de identificar os principais helmintos
gastrintestinais em alunos de 1ª a 4ª séries do
município de Catuji, MG.

2. MATERIAL E MÉTODOS

O município de Catuji está localizado a 17° 30’ de


latitude sul e 41° 30’ de longitude ao meridiano de
Greenwich, nas divisas dos Vales de Mucuri e
Jequitinhonha. Entre 17 e 20 de junho de 2004, foram
coletadas 327 amostras de fezes de crianças de 1a a 4a
séries do ensino fundamental, das redes municipal e
estadual de ensino do município de Catuji. Dessas, 223
amostras foram da zona rural e 104, da zona urbana. A
prevalência foi calculada como o número de crianças
positivas para qualquer verminose gastrintestinal,
dividido pelo total de indivíduos testados. Já a
intensidade da infecção foi obtida pela média
aritmética do número de ovos por grama de fezes das
crianças (total de ovos por grama de fezes das crianças
positivas para cada verminose, dividido pelo total de
indivíduos testados - ABRAMSON e ABRAMSON,
1999; GOULART, 2000). Foram realizados exames
parasitológicos de fezes das amostras, utilizando os
seguintes métodos: direto, HPJ, Kato-Katz e Baermann
(DE CARLI, 2001). As crianças positivas foram
classificadas em três categorias, conforme a
intensidade da infecção: leve, moderada e grave. A

BH, v. 2, n.7, p. 211-225, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


217
comunidade também foi classificada em uma das três
categorias definidas pela Organização Mundial da
Saúde (OMS): tipo I, com alta prevalência e alta
intensidade de verminose (mais de 10% das crianças
com nível grave de infecção); tipo II, alta prevalência e
baixa intensidade de infecção (prevalência de 50% ou
mais de verminose) e tipo III, baixa prevalência e baixa
intensidade (prevalência abaixo de 50% e menos de
10% das crianças com nível grave de infecção -
MONTRESOR et al. - WHO/CTD/SIP, 1998).

3. RESULTADOS

De um total de 327 amostras de fezes coletadas e


processadas pelas diferentes técnicas
coproparasitoscópicas, 223 (68%) foram coletadas na
zona rural e 104 (32%) na zona urbana. A prevalência
de parasitose conforme a zona foi de 33% para a rural
e de 32% para a urbana (fig. 1). A tabela 1 mostra os
principais parasitas diagnosticados no município,
sendo que os ancilostomídeos só foram registrados na
zona rural e o A. lumbricoides foi o parasita de maior
prevalência em ambas as regiões. Dos 32% de crianças
que resultaram positivas na pesquisa, 46% tinham nível
leve e moderado de infecção e 8% nível grave (fig. 2).
A prevalência e a carga parasitária de verminoses
gastrintestinais observadas nas crianças do município
de Catuji permitiram classificar a comunidade na
categoria de risco III da OMS (baixa prevalência e
baixa intensidade de infecção). Nessa situação,
somente os casos positivos devem ser encaminhados
para tratamento (WHO/CTD/SIP, 1998). No que se
refere à intensidade de infecção, a zona rural
apresentou uma média de 4.250 ovos por crianças e
não houve diferença (valor-p=0,26) entre esta zona e a
urbana (fig. 3). Com relação ao sexo, os meninos
apresentaram uma maior prevalência, com 37%,

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 211-225, maio. 2006


218
enquanto nas meninas foi observada uma prevalência
de 28%. A análise estatística sugere uma diferença na
prevalência de parasitose entre meninos e meninas
(valor-p = 0,08; fig. 4 e 5).

4. DISCUSSÃO

A Organização Mundial da Saúde no seu relatório da


terceira reunião global para o controle de parasitas
(WHO, 2005) continua caracterizando no mundo,
como áreas de maior prevalência de helmintos
intestinais, aquelas onde a pobreza é o denominador
comum, reafirmando ainda que as altas prevalências
nestas regiões são as marcas do subdesenvolvimento
nos paises identificados como tropicais ou
subtropicais. Na América latina, ainda hoje, já no
século XXI, essa situação é mantida nas regiões pobres
ou de extrema pobreza, seja na área urbana ou rural.
No México, por exemplo, pesquisas apontam para a
desnutrição, resultante primária da pobreza, como
principal fator de risco associado às altas prevalências
de helmintos intestinais. Quando comparados dois
estados como Sinaloa e Oxaca, com perfis ecológicos
e socioeconômicos diferentes e distantes a mais de
1500 Km, as altas cargas parasitárias manifestam-se
nas áreas de pobreza. Na República do Panamá foram
registradas prevalências de 18.2% para A. lumbricoides,
12.0% para ancilostomídeos e de 27.5% para T. trihiura
com uma intensidade de infecção para A. lumbricoide de
20-126.180 OPG. Estes resultados foram obtidos em
áreas predominantemente indígenas de extrema
pobreza com marcante desnutrição, analfabetismo e
baixa renda per capita. Esses resultados de QUIHUI-
COSTA et al. (2004); de RIVERO-RODRÍGUEZ et
al. (2000) e de ROBERTSON et al. (1989) reafirmam
a seguinte hipótese: quanto maior for o grau de
pobreza, também será maior o grau de parasitismo em
condições tropicais ou subtropicais.

BH, v. 2, n.7, p. 211-225, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


219
A estratégia da OMS (WHO, 2004) de implementar
concomitantemente nos diferentes países o programa
de prescrição de fármacos anti-helmínticos e o
programa de distribuição de vitamina A para crianças
pré-escolares, residentes em áreas com altas
prevalências, se tornaria um paliativo,
independentemente de a vitamina A ser uma droga
utilizada na prevenção da cegueira ou como
revigorante do sistema imunológico ou que ainda sua
prescrição regular possa reduzir a mortalidade infantil
em até 34%. Acreditamos, sim, na luta para se
conseguir, no menor tempo possível, as oito metas de
desenvolvimento do milênio propostas pela OMS, e
que, no Brasil, os programas sociais de governo, tais
como Programa Saúde da Família, Fome Zero e Bolsa-
escola, possibilitarão atingir tais objetivos.

Nas diferentes regiões do estado de Minas Gerais


assim como nas diferentes regiões do país, as causas
que definem as maiores prevalências das principais
geo-helmintoses são as mesmas discutidas
anteriormente, ou seja, a pobreza com suas diferentes
sintomatologias tais como: no homem, desnutrição,
anemia, avitaminoses, - no meio ambiente, falta de
educação sanitária, falta de saneamento básico, água
tratada, sistema de esgoto; no agente - helmintos com
alta capacidade biótica, alta patogenicidade e alta
resistência às condições adversas do clima. Dessa
forma, a persistência de alguns ou do conjunto de
fatores fazem com que as regiões brasileiras do Norte,
Nordeste e as regiões mineiras do norte do estado
sejam as que apresentam maiores prevalências
(COURA et al. 1994; MIRANDA et al. 1998; ALVES
et al. 2003; BRITO et al.).
O município de Catuji faz divisa com os vales do
Jequitinhonha e do Mucuri, região localizada ao norte
do estado de Minas Gerais. Essa região dos vales é
caracterizada por uma área de pobreza endêmica.
Catuji possui uma população total de 7.332 habitantes,

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 211-225, maio. 2006


220
uma taxa de analfabetismo de 35.4%, um PIB per capita
de R$1.362, além de ser classificado como um
município de baixa renda estagnada (MINSA, 2004).
Esta região reúne, portanto, os elementos que
determinam as condições favoráveis de altas
prevalências de geo-helmintos como verificado nesta
pesquisa e em pesquisas semelhantes executadas em
outras regiões do estado (MACHADO & COSTA-
CRUZ 1998; e CARNEIRO et al. 2002).

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Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 211-225, maio. 2006


222
Figura 1. Prevalência de parasitoses conforme a
região do município de Catuji:

Tabela 1. Principais parasitoses diagnosticadas na


zona rural e urbana no município de Catuji:

Figura 2. Do total de 106 crianças positivas, 49


tinham nível leve de infecção (15%), 49 tinham nível
moderado (15%) e 8 tinham nível grave de infecção
(2%):

BH, v. 2, n.7, p. 211-225, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


223

Figura 3. Não houve diferença na intensidade de


infecção entre a zona rural (média de 4.250 ovos por
criança, desvio padrão – DP = 11.627) e a zona urbana
(média de 3.497 ovos por criança, DP = 13.886; valor-
p=0,26):

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 211-225, maio. 2006


224

Figura 4. Os meninos apresentaram prevalência de


parasitoses maior que as meninas (valor-p = 0,08):

Figura 5. Não houve diferença significativa na


prevalência de parasitose conforme a faixa etária das
crianças (valor-p = 0,34).

BH, v. 2, n.7, p. 211-225, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


225

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 211-225, maio. 2006


Diagnóstico da Oferta de Serviços de Lazer
nos Hotéis da Região Central de Belo
Horizonte - MG
229
Diagnóstico da Oferta de Serviços de
Lazer nos Hotéis da Região Central de
Belo Horizonte - MG

Hilton Fabiano Boaventura Serejo1


Daniel Braga Hübner2
José Otávio Aguiar3

Resumo: Este documento apresenta os resultados da pesquisa


intitulada "DIAGNÓSTICO DA OFERTA DE SERVIÇOS DE
LAZER NOS HOTÉIS DA REGIÃO CENTRAL DE BELO
HORIZONTE, MG". Foi financiada pela Faculdade Estácio de Sá
de Belo Horizonte, por meio de seu Centro de Pesquisa e Extensão
- CEPE. Envolveu três professores dos cursos de Administração
Hoteleira e Turismo, e contou com o apoio dos alunos do 8º
período do curso de Administração Hoteleira, turma do primeiro
semestre de 2005, durante a etapa de coleta de dados. O relatório
busca analisar e compreender como é desenvolvida a oferta de
vivências de lazer nos hotéis da região central de Belo Horizonte,
uma cidade que muitos acreditam ser vocacionada ao turismo de
negócios e eventos, em especial os dirigentes públicos. Teve como
objetivos específicos: identificar quais conteúdos culturais do lazer
são desenvolvidos por esses hotéis de Belo Horizonte (interesses:
manuais, físico-esportivos, artísticos, turísticos, sociais, intelectuais),
recuperar a trajetória histórica e cotidiana das relações sociais de
lazer nos hotéis pesquisados e buscar a verificação da demanda
pelos serviços de lazer nos hotéis da região central da cidade: seu
público, equipamentos e opções oferecidas. Percebemos que o lazer
é um fenômeno pouco compreendido, divulgado, e, até mesmo,
valorizado por vários gestores dos hotéis pesquisados. Isso ocorreu 1
Mestre em Educação pela
devido à influência pragmática, regida por uma razão instrumental, PUC-Minas e Especialista
que predomina em nossa sociedade. em Lazer pela UFMG;
Coordenador do
Palavras-chave: lazer, serviços, hotéis de Belo Horizonte Laboratório de Estudos do
Lazer e da Recreação do
Curso de Turismo da
Abstract: This document reports all steps to a research named
Faculdade Estácio de Sá de
"DIAGNÓSTICO DA OFERTA DE SERVIÇOS DE LAZER Belo Horizonte -
NOS HOTÉIS DA REGIÃO CENTRAL DE BELO Brinquedoteca.
HORIZONTE, MG" (Diagnosis of leisure service offering in
hotels of Belo Horizonte downtown area, MG). It was financed by 2
Mestrando em Turismo e
Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte (Estácio de Sá College Meio Ambiente pela UNA e
Especialista em Lazer pela
of Belo Horizonte) through its Centro de Pesquisa e Extensão - UFMG.

3
Doutor em História pela
UFMG.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 227-247, maio. 2006


230
CEPE (Research and Extension Center) It involved three professors
of Hostelry Management and Tourism courses, and it was supported
by students from the 8th level of Hostelry Management course, class
from the first semester of 2005, during data collecting. Such a report
seeks to analyse and understand how leisure experiences offering in
hotels of Belo Horizonte downtown area is developed, since the city
is believed to be business and events tourism-bound, mainly the
government. Specific goals: identifying leisure cultural contents
developed by these hotels in Belo Horizonte (manual labour,
physical-sporting, artistic, touristic, social and intellectual activities),
tracing back the historical and everyday path of leisure social
relations in hotels focused and verifying the call for leisure services
in downtown hotels: their clients, equipment and options offered. It
is noticed that leisure is misunderstood, badly publicized and valued
by the hotel managers researched. That occurred due to pragmatic
influence, ruled by an instrumental ratio that prevails in our society.

Keywords: leisure, services, hotels of Belo Horizonte

A pesquisa “Diagnóstico da oferta de serviços de


Lazer nos Hotéis da região central de Belo Horizonte
– MG” foi fruto do interesse e vontade de três
professores da Faculdade Estácio de Sá de Belo
Horizonte – FESBH, que apoiou e financiou o
desenvolvimento das atividades de pesquisa que
compõem esse projeto acadêmico. Em conversas
preliminares na FESBH, os professores Daniel Braga
Hübner, Hilton Fabiano Boaventura Serejo e José
Otávio Aguiar argumentavam sobre a necessidade de
4
Coordenado, inicialmente,
pelo Prof. Daniel Hübner,
pesquisar essa temática, buscando identificar e
do curso de Administração compreender melhor as características dos serviços de
Hoteleira, a pesquisa contou
com a participação dos Lazer nos Hotéis da região central de Belo Horizonte.
professores Hilton Serejo e Decidiram então elaborar um projeto de pesquisa e
José Otávio Aguiar, do curso
de Turismo, e o apoio de um submetê-lo à aprovação da instituição4.
grupo de estudos sobre a
"História do Lazer e da
Hospedagem" que se reunia
em encontros programados
A pesquisa teve como objetivo geral diagnosticar quais
na Brinquedoteca. Esse
grupo teve a participação de
são os principais serviços oferecidos na área do Lazer
alunos dos cursos de pelos hotéis da região central de Belo Horizonte. E
Administração Hoteleira e
Turismo. No desenvolver como objetivos específicos: pesquisar junto aos hotéis
dos trabalhos, o professor
Hilton Serejo assumiu a
coordenação da pesquisa.

BH, v. 2, n.7, p. 227-247, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


231
citados quais os serviços oferecidos na área do lazer e
identificar quais os conteúdos culturais do lazer são
desenvolvidos por esses hotéis de Belo Horizonte
(interesses: manuais, físico-esportivos, artísticos,
turísticos, sociais, intelectuais)5. No relatório entregue
ao CEPE, recuperamos a trajetória histórica e
cotidiana das relações sociais de lazer nos hotéis
pesquisados.

O projeto justificou-se pela necessidade de


diagnosticar como na sociedade contemporânea, em
uma capital brasileira importante como Belo
Horizonte, a temática do lazer foi e é desenvolvida nos
hotéis pesquisados, uma cidade administrativa e
sabidamente com uma demanda hoteleira que tem
ênfase no turismo de negócios.

Dessa forma, a pesquisa procura apresentar a


relevância do lazer nesses empreendimentos, bem
como fornecer subsídios para outros projetos,
pesquisas e ações nas áreas do lazer, do turismo e da
administração hoteleira, podendo, inclusive, abrir
portas para a realização de estágios de alunos da
Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte e projetos
de extensão envolvendo a Faculdade e os Hotéis
pesquisados.

Esse trabalho teve caráter multi e interdisciplinar, pois


envolveu dois cursos de graduação (Administração
Hoteleira e Turismo) que se interessam diretamente
pela pesquisa, contemplando diversas disciplinas
dessas áreas. 5
Segundo Marcellino (1996)
essa é a classificação mais
aceita pelos estudiosos da
área.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 227-247, maio. 2006


232
ASPECTOS METODOLÓGICOS NO
DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

A pesquisa se desenvolveu a partir da aplicação de


questionários, por meio de visitas agendadas com os
meios de hospedagem da Região Central de Belo
Horizonte. Ao todo, foram listados 69 meios entre
hotéis e apart-hotéis. Definiu-se como região central
de Belo Horizonte aquela interna ao perímetro da
Avenida do Contorno, delimitando o espaço
geográfico pesquisado. Desse total, 60 meios de
hospedagem (mh’s) foram relacionados para o
desenvolvimento da pesquisa, através de critérios de
classificação como: categoria, estar em funcionamento
(dos 69 meios de hospedagens iniciais, alguns estavam
interditados). Dos 60 mh´s escolhidos, um teve suas
atividades encerradas durante o período de realização
da pesquisa, o Merit, que era um tradicional hotel
próximo à Praça Sete e outro se recusou a responder a
entrevista. Dessa forma, 58 mh’s participaram
efetivamente da pesquisa.

A coleta de dados foi realizada pelos alunos da


disciplina de Recreação e Animação Turística do 8º
período do curso de Administração Hoteleira, durante
o primeiro semestre de 2005. A turma foi dividida em
5 grupos. Cada grupo ficou responsável por 12 hotéis,
sorteados aleatoriamente durante as aulas. As
informações dos hotéis pesquisados foram coletadas
através de questionários semi-estruturados e
entrevistas com os responsáveis pelo desenvolvimento
de serviços de lazer nos hotéis da Região Central de
Belo Horizonte.

Paralelamente à coleta de dados, foi desenvolvido um


grupo de estudos sobre lazer, recreação, hotelaria e

BH, v. 2, n.7, p. 227-247, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


233
turismo na Brinquedoteca, que é um laboratório do
Curso de Turismo da FESBH. As discussões e
reuniões desenvolvidas pelo grupo de estudos,
composto pelos professores envolvidos na pesquisa e
alunos dos cursos de Administração Hoteleira e
Turismo, ajudaram a fundamentar as ações de pesquisa
bibliográfica, compondo a sustentação teórica do
projeto.

A tabulação dos dados foi realizada por estagiários do


curso de Turismo da FESBH. A análise dos dados foi
desenvolvida pelos professores, e o relatório final com
os dados da pesquisa e seus resultados, apresentados à
comunidade científica.

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A HOTELARIA:


APONTAMENTOS HISTÓRICOS

Segundo Marc Bloch6, eminente historiador da


primeira metade do século XX, a história pode ser
compreendida como um “estudo dos homens no
tempo”. Essa definição amplia, consideravelmente, o
âmbito dos vestígios e informações que podem
integrar o que definimos sob a pecha de documento
histórico. Isso também se aplica a uma ampliação do
escopo de objetos a serem pesquisados.

Assim, os hábitos de hospedagem e hospitalidade


guardam uma história particularizada no âmbito dos
estudos históricos e antropológicos, dentre outras
razões por se situarem no centro das relações de troca
e partilha que entremeiam os contatos entre
alteridades. O hábito de abrigar viajantes no trajeto
desértico, já milenar entre os povos do Saara; a
particular tradição de hospitalidade entre os esquimós;
o quarto contíguo às casas coloniais da América
6
BLOCH, March. Métier
d'Historiem. Paris: Gallinard,
1923.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 227-247, maio. 2006


234
Portuguesa, que tinha a função de receber viajantes
para o pernoite – citado por cronistas como Auguste
de Saint-Hilaire7 - esses são alguns exemplos de
hospitalidade que poderíamos elencar.

Nosso estudo buscou apresentar o cotidiano da


construção de uma tradição hoteleira em Belo
Horizonte e se situou dentro da linha de interesse por
recuperar memórias e estabelecer genealogias e
arqueologias dentro de práticas de homens no tempo.
Dentro desses estudos, optamos por diagnosticar os
principais serviços de lazer oferecidos pelos hotéis da
região central de Belo Horizonte.

Retomando as questões históricas, já citadas nesse


trabalho, os hotéis e estalagens remontam às
civilizações antigas, e já podiam ser observados na
Roma clássica de uma forma muito semelhante àquela
que concebemos hoje. Entretanto, não deve ser
insensível à nossa percepção que o significado
atribuído ao conceito de hospedagem variou
significativamente com o advento da cultura burguesa
e individualista. A idéia do quarto de hotel que podia
ser reservado por um indivíduo que desejava
privacidade e podia pagar para tanto se generalizou,
em alguns países da Europa Central, somente a partir
do século XVII. Os séculos XIX e XX disseminaram
e consolidaram tal cultura de hospedagem, hoje já
naturalizada como hábito internacional nas modernas
relações que se inserem no amplo conceito de turismo.

7
SAINT-HILAIRE,
Daí a utilidade da pesquisa realizada, cujos dados e
Auguste de. Viagem às análises apresentamos a seguir.
Províncias do Rio de janeiro e de
Minas Gerais. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1989.

BH, v. 2, n.7, p. 227-247, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


235
DISCUSSÕES SOBRE OS DADOS COLETADOS

Conforme repetidamente observado por Cornélius


Castoriadis (1989)8, a forma pela qual nos
acostumamos a perceber a realidade no mundo
ocidental é conjuntista e identitária. Assim,
estabelecemos um conjunto de organismos
unicelulares que devem, por sua vez, se diferenciar dos
pluricelulares; um conjunto de regimes totalitários que
devem contrastar com seus congêneres autoritários;
um conjunto de homens selvagens frente aos quais
pretendemos definir, por contraste, nossa identidade
civilizada.

Ao estudarmos as práticas de hotelaria e hospedagem


no passado, buscamos estabelecer a particularidade da
forma pela qual essas práticas se delineiam no
presente. Dessa forma, procuramos identificar o
tempo de atuação dos hotéis pesquisados, pois
recuperar a história do surgimento desses meios de
hospedagem em Belo Horizonte nos ajudará a
entender a forma pela qual hoje avaliamos a prática
hoteleira na capital mineira.

Assim, a primeira questão que procuramos


compreender foi o tempo de existência dos hotéis em
Belo Horizonte. Cremos que a TAB. 1 deixa claro a
resposta a esse ponto.

TABELA 1
Tempo de existência do Hotel.

8
CASTORIADIS, Corné-
lius. A criação e o social
histórico. In:
CASTORIADIS, Cornélius.
As encruzilhadas do labirinto: os
domínios do homem. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1989.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 227-247, maio. 2006


236
Percebe-se que a maioria dos hotéis pesquisados (60%)
estão estabelecidos em Belo Horizonte há mais de 10
anos. Pode-se compreender que isso ocorre
principalmente pelo fato de o centro de Belo
Horizonte estar consolidado como uma área favorável
à hotelaria com ênfase no turismo de negócios.

Hoje se observa a inauguração de novos


empreendimentos hoteleiros em outras regiões de
Belo Horizonte, assim como em seus municípios
limítrofes. Como exemplo podemos citar o caso de
Contagem, Betim e Nova Lima, que inauguraram
vários novos meios de hospedagem. Por exemplo, a
rede Accor Hotels lançou o IBIS Betim, Parthenon
Vila da Serra, na região de Nova Lima. Em Contagem
também estão sendo inaugurados outros meios de
hospedagem, como a unidade de hospedagem do
SESC-MG.

O principal meio de hospedagem de Belo Horizonte


da atualidade, o Ouro Minas Palace Hotel, o único
hotel da cidade classificado como cinco estrelas9, não
foi pesquisado porque esta pesquisa se restringiu à
região central do município de BH, delimitada pela
Avenida do Contorno. Além deste hotel, outros
9
A classificação em estrelas é empreendimentos de destacada atuação na cidade
realizada pela Embratur.
Outras classificações de
também não foram pesquisados por se encontrarem
meios de hospedagem fora do escopo da pesquisa.
também existem e são bem
aceitas, como a da ABIH,
que utiliza asteriscos e o
Guia 4 Rodas, que utiliza Procuramos perceber, também, se houve mudança de
desenhos de casas. Algumas
redes também possuem suas
proprietários com relação aos estabelecimentos
próprias classificações, com pesquisados. A TAB. 2 nos ajudará a compreender essa
nomes específicos para cada
categoria de hotel. Por fim, questão.
existem os certificados de
qualidade e padronização de
serviços, como a ISO 9000.

BH, v. 2, n.6, p. 228-230, nov. 2005 Ciência&Conhecimento


237
TABELA 2

A administração de um hotel guarda, necessariamente,


a marca da formação e da compreensão de mundo de
quem administra o empreendimento. Percebê-lo e
identificá-lo justifica nosso esforço no sentido de
recuperar a trajetória individual desses
estabelecimentos de hospedagem. Dessa forma, uma
mudança de proprietário pode refletir
redirecionamentos na política administrativa do hotel.

Nos dados coletados ficou evidente que a maioria dos


empreendimentos não teve mudança societária. Desse
modo, pode-se perceber que a região central de Belo
Horizonte é consolidada quanto aos 10
O Hotel Merit encerrou
empreendimentos hoteleiros, pois a maioria dessas suas operações em
31/dez/2004. Localizado
empresas está estabelecida há mais de 10 anos e sem próximo à Praça Sete, a
mudança societária. Com isso, inferimos que a região principal referência do
centro de Belo Horizonte,
central de Belo Horizonte é propícia a esse ramo de foi um empreendimento
negócios. estável por muitos anos, e
decidiu encerrar suas
atividades antes de ter
Contudo, não há razões que justifiquem o problemas financeiros.
Previu dificuldades devido
investimento em novos hotéis nessa área, pois a ao número de hotéis
concorrentes e outros
concorrência é muito grande e há casos de fatores, como localização e
empreendimentos hoteleiros que encerraram suas necessidade de novos
investimentos. Avisou ao
atividades por previsão de prejuízo, como o Hotel mercado, seus fornecedores,
Merit10. Além disso, há uma tendência na clientes e parceiros,
diferentemente de outras
descentralização da prestação de serviços nas regiões empresas de turismo, como a
Soletur Operadora, que faliu
com maior aglomeração de pessoas. e trouxe muitos problemas a
outras empresas e clientes,
que ficaram com o prejuízo
de sua má gestão.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 227-247, maio. 2006


238
Outro aspecto pesquisado se relacionou de forma mais
direta ao campo do lazer. Tentamos identificar quais os
equipamentos de lazer são predominantes nos hotéis
da região central de Belo Horizonte.

TABELA 3

Equipamentos e/ou espaços específicos para o Lazer


encontrados e/ou oferecidos nos Hotéis.

Segundo Marcellino (1996), podemos dizer que há os


equipamentos específicos e não específicos para o
lazer. Os equipamentos não específicos se referem a
espaços não construídos para essa função, como
exemplo podemos citar as ruas, as escolas etc. Já os
equipamentos específicos são concebidos para a
prática de várias atividades e procuram atender a um
ou mais dos conteúdos culturais do lazer.

BH, v. 2, n.6, p. 228-230, nov. 2005 Ciência&Conhecimento


239
Nos hotéis pesquisados, optamos por compreender se
havia espaços e equipamentos específicos destinados
ao lazer e com qual dos conteúdos culturais haveria
uma aproximação maior. Percebemos que a maioria
dos hotéis oferece equipamentos na área do lazer que
se relacionam com os chamados conteúdos físico-
esportivos. Essa afirmação pode ser validada ao
verificarmos a oferta de piscinas e salas de ginástica
como um dos principais equipamentos de lazer
oferecidos.

Concluímos, também, que outro conteúdo cultural da


área do lazer oferecido de forma muito constante é o
social. Consideramos isso ao analisarmos que o
número de bares presentes nos hotéis é grande e esse
espaço favorece o relacionamento e os contatos face a
face, características primordiais nos conteúdos sociais
da área do lazer.

Em contraponto, entendemos que os conteúdos


intelectuais são pouco difundidos nos
estabelecimentos pesquisados. Apenas um hotel
possui biblioteca e sete hotéis possuem salas de leitura,
o que consideramos ser pouquíssimo dentro do
universo pesquisado.
11
Acreditamos que, por aqui,
Um hábito comum entre os ingleses que estão em a leitura de jornais e revistas
é maior que a de obras
viagem, a leitura, não tem a mesma adesão entre os literárias como romances,
contos, poesias, entre outros.
viajantes brasileiros. É característica marcante daquele Isso pode facilmente ser
povo a leitura a bordo, seja em trens, ônibus ou aviões, comprovado pelas
estatísticas do nosso
bem como nas salas de leitura e bibliotecas dos hotéis. mercado editorial, pela
Aqui no Brasil, raros são os empreendimentos que oferta de bibliotecas públicas
e até mesmo privadas nas
possuem esse serviço e estrutura11. cidades brasileiras e outros
indicadores, muitos dos
quais fornecidos pelo IBGE.
Essa falta de diversidade no campo do lazer, por parte A população alfabetizada no
Brasil não é total, o que
dos hotéis da região central de Belo Horizonte, também dificulta uma
promoção ao hábito de
leitura, conforme dados
obtidos no IBGE (2001).

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 227-247, maio. 2006


240
também pode ser compreendida quando se verifica
que somente três hotéis utilizam parcerias para suprir
a falta de espaços e vivências para o lazer. Será que esse
pouco interesse em propiciar equipamentos e espaços
para o lazer influenciaria na contratação de um
profissional especializado para atuar nessa área?

A próxima tabela nos ajudará a responder essa


questão:

TABELA 4

Ao analisarmos a TAB. 4, em que 88% dos hotéis


pesquisados demonstraram não possuir um
profissional especializado para atuar nessa área, torna-
se evidente a ausência de preocupação com a área do
lazer e com o profissional que atua nesse campo.
Percebemos, inclusive, uma visão estereotipada em
relação à atuação e formação dos profissionais do lazer
por parte da gerência desses empreendimentos, uma
vez que, muitas vezes, eles são vistos apenas como
reprodutores de atividades.
Essa visão também é comum e disseminada entre os
estudantes da área, pois, em vários cursos de
graduação em Turismo e Administração Hoteleira, é
comum a associação do lazer com a recreação. Muitas
disciplinas, que têm a recreação como um componente
de seu programa, ainda a restringem ao seu aspecto
operacional, à mera reprodução técnica de jogos e
brincadeiras sem uma sistematização teórico-prática
de conhecimentos.

BH, v. 2, n.7, p. 227-247, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


241
Atualmente, percebe-se que uma parcela significativa
da população vem-se adequando de forma acrítica ao
contexto em que vive, no qual tudo é comercializável
e pode se tornar um produto, inclusive o lazer. Em um
mundo caracterizado pelo desemprego, pela má
distribuição da riqueza e do conhecimento, o lazer
pode ser apenas uma simples diversão ou
entretenimento, servindo como fuga dos problemas e
como forma de compensar a alienação em outras
esferas da vida, mantendo viva a velha fórmula do
“pão e circo”.

Werneck (2000) argumenta que o lazer está ganhando


importância em nossa sociedade, principalmente por
estar sendo considerado um fecundo e promissor
mercado, gerando lucros significativos para aqueles
que detêm o poder e as regras desse jogo. O Turismo
e a Hotelaria representam, atualmente, ramos que se
destacam na chamada indústria do lazer.

Dessa forma, fica evidente que o lazer e o turismo


estão atrelados a uma vertente economicista e aos
valores neoliberais de sociedade.

Mesmo atrelado a uma vertente mercantilista,


concluímos que o fenômeno lazer não tem despertado
o interesse da administração na maioria dos hotéis
pesquisados, principalmente, por ser considerado
como um aspecto de menor valor, já que a maioria dos
hóspedes diz estar a trabalho, o chamado turismo de
negócios.

Isso se torna claro ao visualizarmos a TAB. 5, que


complementa as análises da TAB. 4.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 227-247, maio. 2006


242
TABELA 5

Observa-se que os empreendimentos hoteleiros não se


preocupam com o lazer dos seus hóspedes e investem
pouco em opções de lazer que favoreçam o bem-estar
de seus clientes.

Ao analisarmos os dados presentes na TAB. 6,


percebemos que o baixo número de eventos ou
atividades relacionados ao campo do lazer são reflexos
dessa pouca valorização da área por parte da gerência
dos hotéis pesquisados.

TABELA 6

A realização de eventos ou práticas de lazer e


entretenimento para os hóspedes desses
empreendimentos da região central de Belo Horizonte
não é muito freqüente. Apenas 12 hotéis declararam

BH, v. 2, n.7, p. 227-247, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


243
desenvolver algum tipo de realização nessa área.
Mesmo assim, um terço dos hotéis que oferecem essa
opção aos seus clientes declararam as alternativas
‘brindes’ e ‘premiações’ como um evento, o que
podemos entender como estratégias de marketing para
promover o hotel, uma vez que esses brindes e
premiações são produtos e serviços do próprio
empreendimento, como diárias, canetas, chaveiros,
roupões e outros acessórios. O videokê, que já é um
equipamento com muita rejeição entre hóspedes e
clientes de empreendimentos diversos, como bares e
restaurantes, foi citado por apenas um hotel. E o
bingo, que faz muito sucesso entre o público da
terceira idade, por dois hotéis.

Esses números confirmam a pouca preocupação dos


hotéis da região central da cidade de Belo Horizonte
em entreter seus hóspedes e clientes. Seria muito
interessante se pudéssemos ter com freqüência o
oferecimento de shows e espetáculos artísticos, feiras
de gastronomia, jogos de tabuleiros e jogos de azar
(desde que permitidos pela legislação), nas
dependências desses empreendimentos. Até mesmo a
realização de bailes, noites dançantes e muitas outras
idéias poderiam contribuir para o oferecimento de um
maior número de opções de lazer e entretenimento
dos hóspedes e dos moradores da cidade, promovendo
uma interação entre os participantes, uma
característica do turismo.

Por que não desenvolver, nesses empreendimentos,


alternativas de socialização entre os hóspedes como
acontece nos hotéis de lazer, seja no campo ou no
litoral? Por que não promover a realização de inúmeras
atrações como jogos, brincadeiras, gincanas,
campeonatos, oficinas e tantas outras opções?

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 227-247, maio. 2006


244
A demanda pode ser incrementada. Basta criatividade
e inovação. É preciso desenvolver esses hábitos entre
os hóspedes e os empreendedores. Perceber que o
hóspede não é somente um cliente que busca conforto
e satisfação. Antes disso, ele é um ser humano e pode
encontrar bem-estar em muitas outras realizações
durante o seu período de hospedagem se tiver acesso
a opções diferentes, criativas e em conformidade com
aquilo que o ser humano sempre busca: o prazer de
viver.

Contudo percebemos que a maioria das gerências dos


hotéis pesquisados é regida pelos interesses do
mercado e possuem uma ação muito pragmática e
utilitarista. Pois, se não há demandas pela área do lazer
ou pelo menos essa demanda é mínima, conforme fica
evidente na TAB. 7, por que deveriam se preocupar em
ofertar serviços nessa área?

TABELA 7

As demandas por lazer, de acordo com os


entrevistados, são baixas: apenas 19%. Embora tenha
sido um número pequeno, acreditamos que essa
demanda pode aumentar significativamente a partir do
incremento de novas opções quando estas começarem
a ser oferecidas. Muitas vezes uma demanda é gerada e
incentivada pelo empreendimento, como na própria
hotelaria a oferta do serviço de quarto (room-service),
sendo um elemento diferencial em alguns hotéis e um
simples serviço em outros.

BH, v. 2, n.7, p. 227-247, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


245
Uma demanda por um serviço ou produto não existe
para um público que não está acostumado a usufruí-
los. Mas, a partir do momento em que é oferecida uma
inovação, o público torna-se fiel e até mesmo
dependente da nova opção oferecida. Isso ocorreu
com muitos produtos e serviços no mercado de
tecnologia, como os celulares, computadores, internet,
câmeras digitais, etc. Nos dias atuais, muitos de nós
não passamos um dia sequer sem utilizá-los. Não é
mais desejo, e sim uma necessidade para cada um de
nós.

Investir em opções de lazer para os hóspedes pode ser


uma excelente forma de cativar os clientes, aumentar,
conseqüentemente, o tempo de estada no hotel e
fidelizá-los. Com isso, teríamos mais emprego e renda
para os habitantes de Belo Horizonte. Afinal, há muito
espaço para a implantação de opções de lazer na região
central de BH.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As ações das instituições de ensino e pesquisa que


analisam as práticas sociais e mercadológicas têm
ganhado mais espaço e reconhecimento devido aos
eficientes resultados que são gerados a partir do seu
desenvolvimento.

Essa pesquisa não pretende encerrar as discussões


acerca das práticas de lazer que são oferecidas nos
hotéis da região central de Belo Horizonte, mas
contribuir para o entendimento e o aprofundamento
das questões que envolvem o lazer, os serviços
prestados pela hotelaria e suas conseqüências e
benefícios para hóspedes e também empreendimentos
hoteleiros e turísticos, como parques, clubes,

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 227-247, maio. 2006


246
shoppings, navios de cruzeiro e outros, que têm como
foco principal ou indireto o desenvolvimento de
vivências de lazer.

Trata-se de uma pesquisa inicial, e devido à sua estreita


relação com uma instituição de ensino, pode propiciar
um rico aprendizado aos seus alunos, oportunidade de
desenvolvimento de trabalhos práticos e pesquisas na
área do lazer, bem como a realização de estágios nessa
área, devido à capacitação técnica específica e contatos
feitos com diversos empreendimentos hoteleiros na
região central de Belo Horizonte.

A partir desse estudo inicial, que é um diagnóstico


específico sobre os serviços de lazer oferecidos,
podemos criar novas propostas junto aos
empreendimentos envolvidos na pesquisa, viabilizar
parcerias e convênios, ampliar a inserção dos alunos da
Faculdade Estácio de Sá de BH nessa área tão
fascinante e interessante, do ponto de vista não
somente mercadológico, mas também social,
profissional e pessoal. Trata-se de uma área
reconhecida internacionalmente por seus benefícios
gerados às pessoas, garantida constitucionalmente
como um direito social no Brasil e de valorização
permanente, devido às demandas que são colocadas à
sociedade a cada dia.

Por fim, acreditamos que este relatório é a base inicial


para o desenvolvimento de novas pesquisas, estudos e
propostas na área do lazer, não somente para a
hotelaria e o turismo, mas também para a sociedade, a
comunidade acadêmica e institucional, bem como para
o indivíduo responsável e consciente dos benefícios do
lazer para a humanidade.

BH, v. 2, n.7, p. 227-247, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


247
REFERÊNCIAS
BLOCH, March. Métier d’Historiem. Paris: Gallinard, 1923.
CASTORIADIS, Cornélius. As encruzilhadas do labirinto: os domínios do homem.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
IBGE. Censo Demográfico 1970/2000. 2001. <http://www.ibge.gov.br>
Acesso em: 26 ago. 2005.
MARCELLINO, Nelson Carvalho. Estudos do Lazer: uma introdução.
Campinas, SP: autores associados, 1996.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às Províncias do Rio de janeiro e de
Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989.
WERNECK, Christianne Luce Gomes. Lazer, trabalho e educação: relações
históricas, questões contemporâneas. Belo Horizonte: Ed. UFMG;
CELAR-DEF/UFMG, 2000.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 227-247, maio. 2006


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REGRAS PARA PUBLICAÇÃO
NA REVISTA CIÊNCIA&CONHECIMENTO
Ciência & Conhecimento publicará trabalhos inéditos sob a
forma de ensaios, artigos, resenhas de livros e entrevistas.

Os artigos podem ser de origem diversa, tais como: trabalhos


acadêmicos de alunos orientados por seus professores;
resultado de pesquisas individuais dos professores da
instituição para a obtenção do seu título de Mestre e/ou de
Doutor; reflexões teóricas e/ou reflexões sobre experiências e
pesquisas profissionais de professores em torno de temas
relevantes para os cursos ofertados pela Faculdade Estácio de
Sá de Belo Horizonte; resultados de pesquisas científicas
desenvolvidas com o apoio do Centro de Pesquisa e Extensão
– CEPE; relato de experiência profissional (estudo de caso
com análise de implicações conceituais, descrição de
procedimentos ou estratégias de intervenção, contendo
evidência metodologicamente apropriada de avaliação, de
eficácia e de interesse para o profissional de um dos cursos da
Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte); resultado de
pesquisa ou estudo acadêmico relevante desenvolvido por
profissional qualificado, independente da Instituição a que
pertença; revisão crítica de literatura; comunicação breve
(relato sucinto, mas completo, de investigação científica);
carta ao editor (avaliação crítica de artigo publicado pela
revista ou resposta de autores a crítica formulada a artigo de
sua autoria); nota técnica (descrição de instrumentos e
técnicas originais de pesquisa).

Os ensaios são trabalhos de natureza filosófica ou técnico-


científica.
As resenhas deverão ser de livros recentes.
As entrevistas deverão ser conduzidas em torno de idéias,
pesquisas ou temas relevantes para as ciências sociais
aplicadas, cuidando-se de preservar a natureza acadêmica e
científica da Revista. A entrevista será realizada pelo
Conselho Editorial ou por professor ou grupo de professores
da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte.

Os artigos encaminhados são submetidos à análise do


Conselho Editorial para aceitação ou recusa e devem seguir as
seguintes normas:

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 249-251, maio. 2006


250
— Os textos devem ser digitados no programa Word for
Windows, em espaço 1,5 e margens de 2,5 cm, com no
máximo 15 (quinze) laudas. A fonte deve ser Times New
Roman 12, e os textos devem ser entregues ao Centro de
Pesquisa e Extensão da Faculdade Estácio de Sá de Belo
Horizonte da seguinte forma: 1) em um envelope: uma cópia
impressa e um disquete, ambos com identificação do autor,
uma breve autorização de publicação e seus dados completos
de endereço, para que receba 3 exemplares da Revista; 2) em
um segundo envelope: duas cópias impressas, sem
identificação de autor;
— Os artigos deverão ser acompanhados de um resumo em
português, com até 300 palavras, incluindo palavras-chave;
um resumo em inglês (Abstract), incluindo palavras-chave
(Keywords);
— As notas explicativas e informações complementares
devem ser numeradas em notas de rodapé, com fonte tamanho
9;
— As citações de textos originais com mais de 5 (cinco)
linhas devem vir destacadas do texto, sem aspas, em fonte do
tamanho 10. As que vierem no texto devem estar entre aspas,
seguidas do sobrenome do(s) autor(es), data e número de
página, escritos entre parênteses;
— Gráficos, tabelas, mapas e ilustrações devem ser
apresentados no original, em arquivo separado, com
indicações ao longo do texto, dos locais em que devem ser
inseridos.
— As referências devem aparecer após o texto, obedecendo
às seguintes normas da ABNT:

• Sobrenome do autor em caixa alta seguido de vírgula e


inicial do nome seguida de ponto. No caso de mais de um
autor, deve ser usado o ponto-e-vírgula para separá-los.
Quando existirem mais de três autores, indica-se apenas o
primeiro, acrescentando-se “et al.”

• Logo a seguir, o título da obra deve vir em itálico, sendo só


a primeira letra em maiúscula (exceto nome próprio), seguido
de ponto. Caso haja subtítulo, deve estar separado do título por
dois pontos e escrito normalmente sem grifo. Depois do título,
tem-se o local escrito por dois pontos, o nome da editora
seguido por vírgula e a data da publicação, pontuada.

BH, v. 2, n.7, p. 249-251, maio. 2006 Ciência&Conhecimento


251
• Se houver número de edição, este deve vir imediatamente
após o título da obra, escrito conforme o exemplo:
CERVO, A. L.; BERVIAN, P. A. Metodologia científica: para
uso dos estudantes universitários. 2.ed. São Paulo: McGraw-
Hill, 1978.

• Para revista ou periódico, temos primeiro o sobrenome do


autor do artigo em caixa alta, seguido da inicial do nome e
ponto, o título do artigo, também pontuado, sem estar
destacado em itálico. Depois, o título da revista em itálico,
seguido por vírgula, o local acompanhado de vírgula, o
volume abreviado em sua primeira letra seguido por vírgula e
o número da revista também abreviado e seguido por vírgula.
As páginas inicial e final que compreendem o artigo devem
estar separadas por hífen e precedidas de p., depois vírgula, o
mês abreviado, o ano e ponto final. Exemplo:

CHIN, Elizabeth. Ethnically correct dolls: toying with


the race industry. American Anthropologist, New York,
v. 101, n. 2, p. 305-321, Jan. 1999.

Consultas on-line:
Se a fonte for INTERNET, é obrigatório escrever:
Disponível em:<http//www....>. Acesso em: número do dia,
mês abreviado e ano com quatro dígitos. Se a fonte for e-mail,
tem de constar: mensagem recebida por biblioteca@estacio.br
em 14 nov. 2002.

— Não serão aceitos artigos que estejam em desacordo


com as normas estabelecidas.

Para outras informações, os interessados podem contatar o


coordenador do Centro de Pesquisa e Extensão da Faculdade
Estácio de Sá de Belo Horizonte, prof. Paulo Vítor de Lara
Resende, no local de trabalho ou no endereço eletrônico
<pvlresende@hotmail.com>.

Ciência&Conhecimento BH, v. 2, n.7, p. 249-251, maio. 2006

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