Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
DESAFIOS PARA
A ECONOMIA
BRASILEIRA DIANTE
DA PANDEMIA
Marília Bassetti Marcato
Abril 2020
1
FES BR I EFI N G
pela busca por maior flexibilidade e diversificação de locali- produção verticalmente fragmentada no âmbito internacional.
zação dos produtores e demandantes. Na esfera econômica, a pandemia constitui simultaneamente
um choque de oferta e de demanda, com ambas dimensões
A ideia geral é que não seria mais necessário montar uma es- impactando profundamente o comércio internacional. A Or-
trutura verticalmente integrada, mas sim incorporar novas re- ganização Mundial do Comércio avalia que o comércio mun-
giões ao processo produtivo. A indústria mundial foi então dial cairá entre 13% e 32% em 2020, configurando uma que-
deslocando suas atividades industriais em direção aos países da de magnitude superior àquela vista na crise financeira
em desenvolvimento como parte de sua estratégia de acumu- global de 2008-09.
lação. Mas esse movimento não ocorreu de forma simétrica.
Há ampla evidência indicando a preponderância da dinâmica Na ocasião, muitos economistas investigaram as causas da de-
regional na organização da produção mundial. Mais relevante, saceleração do comércio e se seria possível afirmar que haveria
a descentralização produtiva foi acompanhada pela concen- um “novo normal” para o padrão de crescimento do comércio
tração e centralização do valor gerado pela atividade industrial. mundial. Para aqueles que consideravam tratar-se de um fenô-
Tão logo o comércio transfronteiriço de bens e serviços, tecno- meno cíclico, o principal argumento era que a desaceleração
logias e fluxos de investimento, pessoas e informações foi to- do comércio internacional seria o resultado de forças macroe-
mando novas formas, ficou evidente que os benefícios asso- conômicas que refletiriam o enfraquecimento da demanda,
ciados à globalização não alcançariam igualmente diferentes especialmente na Zona do Euro e posteriormente na China.
territórios. Portanto, é preciso ter em mente que a (pouca) Outros economistas consideravam tratar-se de um fenômeno
participação de um país nas complexas redes de produção diz estrutural, orientado por mudanças regionais na atividade
quase nada sobre os benefícios associados ao seu padrão de econômica e no comércio, na composição do comércio (com
especialização. maior parcela das atividades de serviços), mudanças nas políti-
cas comerciais (com aumento de medidas protecionistas) e,
Se o conceito “cadeias globais de valor” não descreve o que por fim, mudanças no ritmo de fragmentação dos processos
de fato ocorre na economia internacional, o que dizer sobre o produtivos, i.e. uma desaceleração na forma de comércio típi-
usual retrato do envolvimento dos países nas redes complexas ca das CGVs.
de produção?
Era prematuro afirmar que o fenômeno da globalização asso-
No arcabouço das cadeias globais de valor, há diferentes for- ciado às CGVs havia parado ou até mesmo começado a rever-
mas de capturar o grau e a natureza das interações comerciais ter. Os rumores sobre os maiores fabricantes do mundo esta-
ao longo das cadeias globais de valor. No caso do Brasil, ao rem “voltando pra casa” eram até então controversos.
retratar o país como pouco integrado às CGVs, estamos na Anteriormente à atual pandemia, as tensões políticas em tor-
verdade afirmando que, conjuntamente, sua atuação é pouco no da guerra tecnológica entre Estados Unidos e China mina-
expressiva enquanto fornecedor de insumos intermediários vam o ritmo do comércio internacional. Em meio à implemen-
para as exportações de outros países e há fraca dependência tação de políticas protecionistas, as causas da lentidão do
da oferta de bens e serviços intermediários estrangeiros para a comércio internacional pareciam apontar majoritariamente
produção da indústria doméstica que será exportada. Como para a disputa geopolítica em curso. Agora, a pandemia adi-
as cadeias de valor orientadas para o mercado doméstico não ciona novos contornos à rivalidade sino-americana e revela
são consideradas parte do comércio típico das cadeias globais alguns paradoxos da ascensão da China à potência global, co-
de valor, parte considerável do comércio internacional é negli- mo a multiplicação dos casos de xenofobia no ocidente diante
genciada. Assim, é esperado que países com grandes merca- de um país que é capaz de construir hospitais em tempo recor-
dos domésticos, como é o caso do Brasil, apresentem menor de e enviar equipamentos e profissionais da saúde para socor-
participação nas CGVs se comparados aos países menores, rer países em situação dramática.
refletindo sua maior produção doméstica de insumos.
Com a covid-19, o distanciamento social necessário para retar-
No geral, os países que aumentaram sua participação nas CGVs dar a contaminação e as medidas restritivas impostas na maio-
desde os anos 1990 o fizeram principalmente com base na ex- ria dos países fizeram com que o fator humano se tornasse
pansão do valor adicionado estrangeiro de suas exportações, ausente das cadeias de suprimento. Da mão de obra necessá-
ou seja, reforçando seu papel como compradores de insumos ria nas linhas de montagem aos operadores de guindastes e
estrangeiros. Mas o caso da inserção brasileira às cadeias glo- navios cargueiros, passando pelo aprofundamento de garga-
bais de valor é ainda mais singular. Se considerarmos a interde- los de logística e menor volume de contêineres, a pandemia
pendência relativa entre mercados (“o quanto o meu mercado revelou a fragilidade da operacionalização das cadeias globais
doméstico é importante para as suas exportações”), pode-se de valor. As cadeias de valor mais complexas estarão mais su-
dizer que a integração comercial do Brasil é maior do que a re- jeitas à interrupção da cadeia de suprimentos, com destaque
tratada pelos indicadores tradicionais. O Brasil tornou-se mais para as indústrias automobilística e de eletroeletrônicos.
integrado a partir da externalização de sua demanda final, com
maior exposição de seu mercado doméstico, e não simples- Com a China como centro global de processamento de manu-
mente por meio de sua produção posteriormente exportada. fatura, a desaceleração da produção chinesa tem um efeito de
contágio na cadeia produtiva do setor manufatureiro de prati-
A atual pandemia do novo coronavírus traz novos desafios ao camente todos os países. Embora alguns fornecedores de pe-
paradigma da globalização ancorado em uma estrutura de ças chinesas tenham retomado parcialmente as operações,
2
FES BR I EFI N G
suas fábricas ainda não estão operando com capacidade total. às cadeias globais de valor pode melhorar a competitividade
Diante da impossibilidade de importar os volumes de insumos industrial por meio de transferências de tecnologia e outros
necessários para produção, diversos países assistiram à inter- tipos de aprendizado, mas há também uma causalidade rever-
rupção de suas atividades manufatureiras. Segundo a consul- sa. Ou seja, o desenvolvimento de uma indústria competitiva
toria McKinsey, a exposição mundial à China, considerando os pode ser um pré-requisito para uma integração bem-sucedida
fluxos de comércio, tecnologia e capital, aumentou entre às cadeias globais de valor.
2000 e 2017, enquanto a exposição da China ao mundo atin-
giu o pico em 2007 e diminuiu desde então. Na esteira da Não há uma única estratégia que funcione para todas as eco-
obsolescência do conceito de CGVs tal como o conhecemos, o nomias. Mas o Brasil tem motivos adicionais para se preocupar
mundo parece estar muito mais sujeito aos riscos de um colap- com a potencial ruptura das cadeias globais de valor, uma vez
so chinês do que a China diante da retração global. que não foi capaz de administrar a relação entre empresas lí-
deres estrangeiras e empresas domésticas, com o objetivo de
Em meio à pandemia do novo coronavírus, uma dimensão capturar mais valor nas cadeias produtivas e ampliar a partici-
central da transformação estrutural em curso na China é seu pação de atores locais. Diferentemente da China, o Brasil não
declínio como ponto final nas cadeias globais de valor. A Chi- estabeleceu suas próprias empresas líderes no mercado mun-
na confiou cada vez mais em insumos domésticos para sua dial nos setores mais dinâmicos, alienando-se da importância
produção e agregou mais valor doméstico às indústrias típicas de desenvolver as capacidades para que as empresas assu-
lideradas pelas CGVs, como a eletroeletrônica. Assim, o país mam diferentes funções ao longo das cadeias de valor. Assim,
expandiu sua capacidade de produção doméstica competitiva se as firmas líderes mundiais tendem a construir obstáculos
para atuar nos estágios iniciais das cadeias intensivas em tec- para a modernização industrial dos países em desenvolvimen-
nologia. A China deixou de ser um fabricante subordinado e to na medida em que não têm interesse em “criar” seus pró-
emergiu como um concorrente em vários segmentos indus- prios competidores, atuar nas cadeias globais de valor pode
triais, desenvolvendo inclusive suas próprias empresas líderes ser, muitas vezes, tão importante quanto deixá-las para formar
nos setores mais dinâmicos. suas próprias cadeias domésticas de valor.
Se as cadeias globais de valor estão passando por profundas Não ter aprendido essa lição faz com que o Brasil tenha dificul-
mudanças impulsionadas pela pandemia é certo que as impli- dades adicionais para enfrentar a atual pandemia, com a de-
cações vão para muito além dos modelos de negócios das sestruturação de sua produção industrial e maior dependência
grandes corporações. Esta não será uma história sobre livre- de insumos e bens finais produzidos no estrangeiro. Isso ficou
-comércio. No campo político, a reconfiguração da produção evidente na recente incapacidade de garantir de forma célere
industrial e do comércio internacional irá impor novos desafios a disponibilidade de respiradores e equipamentos de proteção
para a construção de argumentos econômicos. Na esteira da individual para a ampliação de leitos, apesar da imensa ansie-
desaceleração do comércio global, a recente experiência chi- dade para a volta à normalidade. A normalidade é uma ficção
nesa nos ensina que as formulações políticas não devem se dos manuais de economia, como disse Joan Robinson, e, infe-
alienar da missão de apoiar as empresas nacionais a aprimora- lizmente, muitos acabarão por desperdiçar, mais uma vez, as
rem suas capacidades produtivas e tecnológicas para enfrentar lições advindas de uma crise.
a pressão da concorrência global. Nesse sentido, a integração