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DESAFIOS PARA
A ECONOMIA
BRASILEIRA DIANTE
DA PANDEMIA
Marília Bassetti Marcato
Abril 2020

O Brasil tem motivos adicionais para se preocupar com


A noção de que uma cadeia de valor não reflete necessaria-
a potencial ruptura das cadeias globais de valor, uma
mente uma transformação física está evidente na escolha do
vez que não foi capaz de administrar a relação entre
termo “valor” e não meramente “produção”. Ou seja, as ca-
empresas líderes estrangeiras e empresas domésticas.
deias de valor não descrevem apenas atividades restritas à
produção em si, incluindo diversas atividades que agregam
A vida útil da célebre e já desgastada expressão “cadeia global valor — por exemplo, design, marketing, distribuição e recicla-
de valor” parece estar com seus dias contados. Mas por que gem. No entanto, tal noção de valor não contempla a variável
um país como o Brasil, usualmente retratado como pouco in- econômica que move ondas políticas — emprego — ou mes-
tegrado às cadeias globais de valor (ou CGVs), deveria se preo- mo outros aspectos relevantes, como os conflitos entre cria-
cupar com a potencial ruptura dessa forma de comércio em ção e extração de valor nas economias modernas, discutidos
meio à pandemia do novo coronavírus? Para responder a tal por Mariana Mazzucato em sua obra “The Value of Every-
questão e compreender a flagrante incapacidade da indústria thing: Making and Taking in the Global Economy”, com seus
brasileira em ofertar os equipamentos necessários para a área potenciais desdobramentos para a coesão social.
de saúde, é preciso ter em mente alguns desenvolvimentos
analíticos e normativos anteriores ao atual contexto. Desmisti- Mais recentemente, a inclusão do termo “global” trouxe uma
ficar o conceito de cadeias globais de valor e revelar seu cará- mudança de perspectiva que sinaliza a possibilidade de ca-
ter anacrônico anterior à pandemia, bem como apontar para deias de valor serem mais ou menos ampliadas, além de divi-
algumas das limitações da construção descritiva em torno do didas entre várias empresas e espaços geográficos. Isso se
conceito são etapas fundamentais para compreender os riscos deve fundamentalmente à capacidade das grandes corpora-
para a economia brasileira. Do ponto de vista político, a expe- ções de estabelecer decisões sequenciais de produção em es-
riência chinesa oferece algumas lições a respeito das questões cala global sem perder rentabilidade e estabelecer processos
estratégicas que deveriam orientar as formulações políticas do mais flexíveis de “customização em massa”. Condicionadas
Brasil diante da pandemia de covid-19. pela redução nos custos de coordenação e transmissão de in-
formações, as grandes corporações desenvolveram a habilida-
Ao longo das últimas décadas, a fragmentação da produção de de coordenar sua produção em tempo real independente-
em vários estágios internacionalmente dispersos alcançou pa- mente da localização geográfica dos produtores.
tamares inéditos. Muito antes da atual pandemia, os selos
“Made in” tornaram-se imprecisos e de pouca utilidade para Nesse sentido, é importante ter em mente que a decisão
aqueles que buscam saber algo sobre as competências tecno- entre estabelecer uma estrutura de produção verticalmente
lógicas e produtivas de um determinado país. Como resultado, integrada versus terceirizar etapas da cadeia de valor no âm-
os bens que consumimos hoje são considerados “pacotes” de bito doméstico ou internacional está sujeita à avaliação de
fatores produtivos de diferentes nações, conformando redes compensações complexas, indo muito além de minimizar
complexas em que diferentes atores econômicos (e não-eco- custos. Assim, as estruturas de poder em que as empresas
nômicos) atuam, e não simples interações sequenciais, como interagem e operam economicamente foram se transfor-
sugerido pelo termo “cadeia”. mando ao longo das últimas décadas orientadas também

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pela busca por maior flexibilidade e diversificação de locali- produção verticalmente fragmentada no âmbito internacional.
zação dos produtores e demandantes. Na esfera econômica, a pandemia constitui simultaneamente
um choque de oferta e de demanda, com ambas dimensões
A ideia geral é que não seria mais necessário montar uma es- impactando profundamente o comércio internacional. A Or-
trutura verticalmente integrada, mas sim incorporar novas re- ganização Mundial do Comércio avalia que o comércio mun-
giões ao processo produtivo. A indústria mundial foi então dial cairá entre 13% e 32% em 2020, configurando uma que-
deslocando suas atividades industriais em direção aos países da de magnitude superior àquela vista na crise financeira
em desenvolvimento como parte de sua estratégia de acumu- global de 2008-09.
lação. Mas esse movimento não ocorreu de forma simétrica.
Há ampla evidência indicando a preponderância da dinâmica Na ocasião, muitos economistas investigaram as causas da de-
regional na organização da produção mundial. Mais relevante, saceleração do comércio e se seria possível afirmar que haveria
a descentralização produtiva foi acompanhada pela concen- um “novo normal” para o padrão de crescimento do comércio
tração e centralização do valor gerado pela atividade industrial. mundial. Para aqueles que consideravam tratar-se de um fenô-
Tão logo o comércio transfronteiriço de bens e serviços, tecno- meno cíclico, o principal argumento era que a desaceleração
logias e fluxos de investimento, pessoas e informações foi to- do comércio internacional seria o resultado de forças macroe-
mando novas formas, ficou evidente que os benefícios asso- conômicas que refletiriam o enfraquecimento da demanda,
ciados à globalização não alcançariam igualmente diferentes especialmente na Zona do Euro e posteriormente na China.
territórios. Portanto, é preciso ter em mente que a (pouca) Outros economistas consideravam tratar-se de um fenômeno
participação de um país nas complexas redes de produção diz estrutural, orientado por mudanças regionais na atividade
quase nada sobre os benefícios associados ao seu padrão de econômica e no comércio, na composição do comércio (com
especialização. maior parcela das atividades de serviços), mudanças nas políti-
cas comerciais (com aumento de medidas protecionistas) e,
Se o conceito “cadeias globais de valor” não descreve o que por fim, mudanças no ritmo de fragmentação dos processos
de fato ocorre na economia internacional, o que dizer sobre o produtivos, i.e. uma desaceleração na forma de comércio típi-
usual retrato do envolvimento dos países nas redes complexas ca das CGVs.
de produção?
Era prematuro afirmar que o fenômeno da globalização asso-
No arcabouço das cadeias globais de valor, há diferentes for- ciado às CGVs havia parado ou até mesmo começado a rever-
mas de capturar o grau e a natureza das interações comerciais ter. Os rumores sobre os maiores fabricantes do mundo esta-
ao longo das cadeias globais de valor. No caso do Brasil, ao rem “voltando pra casa” eram até então controversos.
retratar o país como pouco integrado às CGVs, estamos na Anteriormente à atual pandemia, as tensões políticas em tor-
verdade afirmando que, conjuntamente, sua atuação é pouco no da guerra tecnológica entre Estados Unidos e China mina-
expressiva enquanto fornecedor de insumos intermediários vam o ritmo do comércio internacional. Em meio à implemen-
para as exportações de outros países e há fraca dependência tação de políticas protecionistas, as causas da lentidão do
da oferta de bens e serviços intermediários estrangeiros para a comércio internacional pareciam apontar majoritariamente
produção da indústria doméstica que será exportada. Como para a disputa geopolítica em curso. Agora, a pandemia adi-
as cadeias de valor orientadas para o mercado doméstico não ciona novos contornos à rivalidade sino-americana e revela
são consideradas parte do comércio típico das cadeias globais alguns paradoxos da ascensão da China à potência global, co-
de valor, parte considerável do comércio internacional é negli- mo a multiplicação dos casos de xenofobia no ocidente diante
genciada. Assim, é esperado que países com grandes merca- de um país que é capaz de construir hospitais em tempo recor-
dos domésticos, como é o caso do Brasil, apresentem menor de e enviar equipamentos e profissionais da saúde para socor-
participação nas CGVs se comparados aos países menores, rer países em situação dramática.
refletindo sua maior produção doméstica de insumos.
Com a covid-19, o distanciamento social necessário para retar-
No geral, os países que aumentaram sua participação nas CGVs dar a contaminação e as medidas restritivas impostas na maio-
desde os anos 1990 o fizeram principalmente com base na ex- ria dos países fizeram com que o fator humano se tornasse
pansão do valor adicionado estrangeiro de suas exportações, ausente das cadeias de suprimento. Da mão de obra necessá-
ou seja, reforçando seu papel como compradores de insumos ria nas linhas de montagem aos operadores de guindastes e
estrangeiros. Mas o caso da inserção brasileira às cadeias glo- navios cargueiros, passando pelo aprofundamento de garga-
bais de valor é ainda mais singular. Se considerarmos a interde- los de logística e menor volume de contêineres, a pandemia
pendência relativa entre mercados (“o quanto o meu mercado revelou a fragilidade da operacionalização das cadeias globais
doméstico é importante para as suas exportações”), pode-se de valor. As cadeias de valor mais complexas estarão mais su-
dizer que a integração comercial do Brasil é maior do que a re- jeitas à interrupção da cadeia de suprimentos, com destaque
tratada pelos indicadores tradicionais. O Brasil tornou-se mais para as indústrias automobilística e de eletroeletrônicos.
integrado a partir da externalização de sua demanda final, com
maior exposição de seu mercado doméstico, e não simples- Com a China como centro global de processamento de manu-
mente por meio de sua produção posteriormente exportada. fatura, a desaceleração da produção chinesa tem um efeito de
contágio na cadeia produtiva do setor manufatureiro de prati-
A atual pandemia do novo coronavírus traz novos desafios ao camente todos os países. Embora alguns fornecedores de pe-
paradigma da globalização ancorado em uma estrutura de ças chinesas tenham retomado parcialmente as operações,

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suas fábricas ainda não estão operando com capacidade total. às cadeias globais de valor pode melhorar a competitividade
Diante da impossibilidade de importar os volumes de insumos industrial por meio de transferências de tecnologia e outros
necessários para produção, diversos países assistiram à inter- tipos de aprendizado, mas há também uma causalidade rever-
rupção de suas atividades manufatureiras. Segundo a consul- sa. Ou seja, o desenvolvimento de uma indústria competitiva
toria McKinsey, a exposição mundial à China, considerando os pode ser um pré-requisito para uma integração bem-sucedida
fluxos de comércio, tecnologia e capital, aumentou entre às cadeias globais de valor.
2000 e 2017, enquanto a exposição da China ao mundo atin-
giu o pico em 2007 e diminuiu desde então. Na esteira da Não há uma única estratégia que funcione para todas as eco-
obsolescência do conceito de CGVs tal como o conhecemos, o nomias. Mas o Brasil tem motivos adicionais para se preocupar
mundo parece estar muito mais sujeito aos riscos de um colap- com a potencial ruptura das cadeias globais de valor, uma vez
so chinês do que a China diante da retração global. que não foi capaz de administrar a relação entre empresas lí-
deres estrangeiras e empresas domésticas, com o objetivo de
Em meio à pandemia do novo coronavírus, uma dimensão capturar mais valor nas cadeias produtivas e ampliar a partici-
central da transformação estrutural em curso na China é seu pação de atores locais. Diferentemente da China, o Brasil não
declínio como ponto final nas cadeias globais de valor. A Chi- estabeleceu suas próprias empresas líderes no mercado mun-
na confiou cada vez mais em insumos domésticos para sua dial nos setores mais dinâmicos, alienando-se da importância
produção e agregou mais valor doméstico às indústrias típicas de desenvolver as capacidades para que as empresas assu-
lideradas pelas CGVs, como a eletroeletrônica. Assim, o país mam diferentes funções ao longo das cadeias de valor. Assim,
expandiu sua capacidade de produção doméstica competitiva se as firmas líderes mundiais tendem a construir obstáculos
para atuar nos estágios iniciais das cadeias intensivas em tec- para a modernização industrial dos países em desenvolvimen-
nologia. A China deixou de ser um fabricante subordinado e to na medida em que não têm interesse em “criar” seus pró-
emergiu como um concorrente em vários segmentos indus- prios competidores, atuar nas cadeias globais de valor pode
triais, desenvolvendo inclusive suas próprias empresas líderes ser, muitas vezes, tão importante quanto deixá-las para formar
nos setores mais dinâmicos. suas próprias cadeias domésticas de valor.

Se as cadeias globais de valor estão passando por profundas Não ter aprendido essa lição faz com que o Brasil tenha dificul-
mudanças impulsionadas pela pandemia é certo que as impli- dades adicionais para enfrentar a atual pandemia, com a de-
cações vão para muito além dos modelos de negócios das sestruturação de sua produção industrial e maior dependência
grandes corporações. Esta não será uma história sobre livre- de insumos e bens finais produzidos no estrangeiro. Isso ficou
-comércio. No campo político, a reconfiguração da produção evidente na recente incapacidade de garantir de forma célere
industrial e do comércio internacional irá impor novos desafios a disponibilidade de respiradores e equipamentos de proteção
para a construção de argumentos econômicos. Na esteira da individual para a ampliação de leitos, apesar da imensa ansie-
desaceleração do comércio global, a recente experiência chi- dade para a volta à normalidade. A normalidade é uma ficção
nesa nos ensina que as formulações políticas não devem se dos manuais de economia, como disse Joan Robinson, e, infe-
alienar da missão de apoiar as empresas nacionais a aprimora- lizmente, muitos acabarão por desperdiçar, mais uma vez, as
rem suas capacidades produtivas e tecnológicas para enfrentar lições advindas de uma crise.
a pressão da concorrência global. Nesse sentido, a integração

Marília Bassetti Marcato é professora adjunta do Instituto


CONTATO de Economia da UFRJ e diretora da Associação Keynesiana
Brasileira.

Friedrich-Ebert-Stiftung (FES) Brasil

Av. Paulista, 2001 - 13° andar, conj. 1313


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