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Confins

18 (2013)
Número 18

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Daniel de Mello Sanfelici


A financeirização do circuito
imobiliário como rearranjo escalar do
processo de urbanização
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Referência eletrônica
Daniel de Mello Sanfelici, « A financeirização do circuito imobiliário como rearranjo escalar do processo de
urbanização », Confins [En ligne], 18 | 2013, mis en ligne le 22 juillet 2013, consulté le 22 juillet 2013. URL : http://
confins.revues.org/8494 ; DOI : 10.4000/confins.8494

Editor: Théry, Hervé


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Documento gerado automaticamente no dia 22 juillet 2013.
© Confins
A financeirização do circuito imobiliário como rearranjo escalar do processo de urbanizaç (...) 2

Daniel de Mello Sanfelici

A financeirização do circuito imobiliário


como rearranjo escalar do processo de
urbanização
1 No último decênio testemunhou-se, no Brasil, uma reestruturação sem precedentes no setor
imobiliário e construtivo. Entrelaçados de forma mais estreita com o sistema financeiro,
os negócios imobiliários experimentaram um boom que transformou rapidamente as
metrópoles brasileiras em gigantescos canteiros de construção. Os agentes mais visíveis
desse processo são as grandes incorporadoras e construtoras, que agora possuem raios de
operação muito mais estendidos do que aqueles ao quais costumavam se restringir nas
décadas precedentes. Algumas delas hoje atuam em mais de quinze estados da federação,
de norte a sul, tanto em metrópoles quanto em aglomerações de menor porte. Por trás
da visibilidade cotidiana dessas empresas, porém, está o poder financeiro de grandes
investidores institucionais, fundos de investimento, bancos e outros agentes financeiros
que despejam montantes exorbitantes de capital para financiar a expansão do setor e,
evidentemente, obter uma fatia de seus ganhos também crescentes. Com ramificações que
extravasam as fronteiras do país, a presença e o poder desses agentes nos rumos tomados
pelos negócios com o solo urbano permitem fazer a leitura desse processo como uma
expressão nítida da tendência à financeirização da economia capitalista.
2 Esse artigo pretende corroborar com a discussão, em voga na Geografia e outras
áreas dos estudos urbanos, acerca das repercussões socioespaciais da financeirização do
investimento imobiliário. Considerando, em concordância com uma bibliografia crescente,
a escala geográfica como uma dimensão fundamental da prática socioespacial e da
espacialidade do capitalismo (SMITH, 1992a; 1992b; BRENNER, 2001; 2009a; 2009b;
SWYNGEDOUW, 1997; 2004; VAINER, 2006), sugerimos que a financeirização do
circuito imobiliário no Brasil produziu, no último decênio, um rearranjo dos vínculos
escalares como consequência do adensamento e intensificação das relações econômicas
travadas entre agentes que privilegiam diferentes escalas geográficas de operação. Assim,
se até há pouco os negócios imobiliários urbanos eram conduzidos prioritariamente por
pequenas empresas de abrangência local ou regional, a abertura de capital das grandes
incorporadoras e a entrada de investidores estrangeiros no controle dessas empresas
sinalizam uma articulação diferenciada entre as escalas local, nacional e global na produção
dos espaços metropolitanos. Esse (re)arranjo escalar não pode, porém, ser entendido
como estável ou imutável, mas como uma configuração que encerra uma série de tensões
e contradições que decorrem, como procuraremos demonstrar, das divergências entre
as práticas, as prioridades e os horizontes espaciais e temporais dos diferentes agentes
envolvidos.
3 A primeira parte do artigo tem como objetivo elucidar, com apoio em dados secundários e
em outros estudos, as repercussões da penetração das finanças globalizadas nos negócios
imobiliários no Brasil. Procuramos demonstrar, interpretando os dados divulgados por
um grupo de empresas selecionadas, que a necessidade de proporcionar resultados aos
acionistas impeliu as incorporadoras a uma expansão acelerada do investimento e a uma
diversificação geográfica de sua atividade. Na segunda seção do artigo, examinamos
como esse cenário econômico renovado forjou novos laços entre as escalas geográficas e
colocamos em destaque, com base em entrevistas realizadas com dirigentes de empresas
e em publicações especializadas e/ou jornais, as instabilidades que afloram na construção
desses vínculos interescalares.

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A financeirização do circuito imobiliário como rearranjo escalar do processo de urbanizaç (...) 3

Expansão vertiginosa conduzida pelas finanças: os


negócios imobiliários no Brasil
4 As reverberações do processo de expansão imobiliária recente sobre as metrópoles
brasileiras já são evidentes por toda parte. Não há mais áreas nas grandes cidades brasileiras
que não estejam sendo palco de projetos imobiliários de grandes impactos sobre a dinâmica
da vida nos bairros e na cidade como um todo. Além disso, há uma evidente apreensão,
tanto na imprensa quanto entre as famílias, com a trajetória de preços ascendentes que vem
sendo exibida pelo mercado imobiliário das grandes cidades. A ideia de que uma bolha
imobiliária – ou, de forma menos drástica, um arrefecimento do setor – poderia ser iminente
vêm à tona com relativa frequência nos meios de comunicação.
5 Essa ideia não é descabida. As bolhas imobiliárias possuem um potencial tanto mais
evidente e destrutivo quanto maior for a implicação do sistema financeiro com o
investimento imobiliário. Na verdade, o que tem ocorrido no país nos últimos dez a quinze
anos tem sido justamente isso: uma penetração sem precedentes das finanças na produção
e consumo do espaço urbano intermediada pelas empresas do setor imobiliário. É claro
que essa situação indica mais a possibilidade de uma bolha do que sua inevitabilidade,
mas entender as circunstâncias dessa aproximação entre o financeiro e o imobiliário é um
passo importante para entender os sentidos da financeirização no que concerne a produção
do espaço urbano. Procederemos, então, com uma breve descrição e análise das mudanças
recentes no setor imobiliário para prosseguir, em seguida, para o cerne do argumento do
artigo.
6 O ponto central para compreender as mudanças que vêm se processando nos negócios
imobiliários no Brasil reside em um conjunto de transformações institucionais e
regulatórias que permitiram não apenas impulsionar o crédito habitacional, mas também
tornar o circuito imobiliário (compreendido de forma ampla, incluindo aqui o crédito ao
comprador final dos imóveis) mais atrativo aos investidores financeiros. Esse é um ponto
importante de ser realçado porque, como David Harvey demonstrou em Limits to capital
(HARVEY, 1999), a produção e o consumo do ambiente construído urbano têm como
requisito para sua efetiva realização – dadas as especificidades dos imóveis enquanto
mercadorias de longa duração e alto valor – a constituição de um sofisticado aparato
institucional e creditício.
7 A peça-chave desse novo arranjo institucional foi a aprovação do Sistema Financeiro
Imobiliário (SFI) em 1997. Sintonizado com a atmosfera de reforma neoliberal do Estado
sob o governo Fernando Henrique Cardoso, o SFI tinha como instrumento central a figura
da alienação fiduciária, que permitia a execução não-judicial da garantia do empréstimo
habitacional, agilizando, de tal forma, a recuperação, pelo credor, do montante emprestado.
Somaram-se, posteriormente, outras medidas que, juntas, incentivaram enormemente a
concessão de empréstimo habitacional no país. Merece destaque, por exemplo, a medida
comumente denominada “valor do incontroverso”, aprovada em 2004, que determina que o
mutuário que contestar judicialmente a regularidade de um contrato de empréstimo precisa
determinar a parcela do empréstimo que não está sendo questionada e continuar pagando
esse montante (anteriormente, um mutuário que questionasse judicialmente um contrato
poderia interromper os pagamentos das prestações até que o litígio encontrasse resolução).
Sem essas medidas seria difícil compreender o surto de crédito habitacional que iniciou
em meados dos anos 20001.
8 Mas a ampliação do crédito também deve tributo às condições econômicas diferenciadas
de que o Brasil usufruiu nos últimos anos. Com taxas de crescimento moderadas e
taxas de inflação baixas, esse cenário se mostrou propício à ampliação das linhas de
crédito, não apenas no setor imobiliário. Além disso, é importante notar um crescimento
substancial na emissão de papéis lastreados em fluxos de rendimento imobiliários.
Referimo-nos, por exemplo, aos Certificados de Recebíveis Imobiliários, instrumentos
também regulamentados pela lei do SFI e que resultam do processo de securitização de
dívidas imobiliárias2; e às cotas de Fundos de Investimento Imobiliário, mecanismos de

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investimento coletivo que investem em ativos de renda (por exemplo, shopping centers e
escritórios) e em que cada cotista recebe, mensalmente, dividendos que refletem a parte
alíquota da qual o cotista é proprietário. Por importante que sejam esses instrumentos para
entender a financeirização em sua relação com a transformação das cidades, pretendemos
focalizar aqui em outro ponto de integração entre o financeiro e o imobiliário: as grandes
incorporadoras que passaram a financiar o investimento mediante recurso ao mercado de
capitais.
9 Historicamente geridas como pequenas empresas familiares, as principais incorporadoras
brasileiras – a maior parte sediada em São Paulo – enxergaram na expansão do crédito
habitacional uma oportunidade única de expandir o investimento e ampliar suas receitas
e lucros em um curto intervalo de tempo. Mas um aumento rápido do investimento não
poderia ser financiado nem com recursos próprios, visto que poucas tinham volume de
capital significativo, nem com acesso ao financiamento bancário, uma vez que os bancos
possuem limites de concessão de crédito a um mesmo devedor. O acesso ao mercado
de capitais mediante a emissão de papéis como ações e debêntures apareceu como uma
alternativa para as empresas que precisavam, afinal, de um volume significativo de capital
para despender com a compra de terrenos.
10 O volume de capital levantado por incorporadoras e construtoras no biênio 2006/7
mediante a emissão de ações e debêntures foi surpreendente: mais de R$ 15 bilhões
em ações e quase R$ 2 bilhões em debêntures, a maior parte (em torno de 70%
segundo entrevistas e matérias de jornais) adquirida por grandes investidores institucionais
estrangeiros3. O uso desses recursos se materializou nos dados de unidades lançadas
e valor geral de vendas (VGV)4 lançado entre 2005 e 2010, período que corresponde
às transformações de maior profundidade no setor. A Tabela 1, abaixo, sintetiza
esses resultados com base no desempenho operacional e financeiro de sete grandes
incorporadoras de capital aberto.
Tabela 1- Número de unidades lançadas e VGV lançado por sete incorporadoras brasileiras
– 2005-2010.

Número de unidades lançadas


2005 2006 2007 2008 2009 2010
Cyrela 2733 5822 16924 18270 26417 27589
Gafisa 2446 3755 14236 34893 13426 26398
MRV N/A 2987 12334 25968 28948 50136
PDG Realty 2089 3994 12860 18200 35598 42616
Rossi 1999 4409 9648 10542 16456 23239
Even N/A 1485 4345 4233 3459 6515
Brookfield 554 256 2113 5698 14284 11508
Lançamentos em Valor Geral de Vendas (VGV) (R$ x 1000)
2005 2006 2007 2008 2009 2010
Cyrela 1.211.302 3.619.970 5.393.057 4.827.437 5.678.927 7.609.882
Gafisa 682.196 1.233.916 2.919.355 5.322.156 2.789.224 6.041.703
MRV N/A 337.337 1.199.948 2.532.985 2.586.080 4.604.000
PDG Realty 592.207 761.715 2.259.550 3.776.750 5.454.300 9.151.250
Rossi 395 1.158.000 2.470.000 2.723.000 2.758.000 4.798.000
Even N/A 744.436 1.757.753 1.435.128 926.735 1.528.026
Brookfield 176.600 378.000 1.922.200 2.662.500 2.674.900 2.981.300

Fonte: Relatórios trimestrais das empresas selecionadas.


11 O ímpeto da expansão é notável: em termos de unidades, algumas empresas que lançavam
aproximadamente 2000 unidades por ano (uma média que prevaleceu nos anos anteriores
aos abrangidos pela tabela) passaram a lançar mais de 20 mil unidades. Em alguns casos,
como a MRV, o salto foi maior: de menos de 3 mil unidades ainda em 2006 para 50 mil

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unidades em 2010. Quando mensurado em termos de preço, o volume de lançamentos


não é menos surpreendente: apenas a Cyrela lançou mais de R$ 1 bilhão em 2005. Cinco
anos depois, não apenas a marca do R$ 1 bilhão em lançamentos foi ultrapassada pelas
sete empresas selecionadas, como também algumas superam a marca de R$ 5 bilhões em
lançamento – a PDG, maior de todas, atingindo mais de R$ 9 bilhões lançados.
12 Dispondo, subitamente, de um volume descomunal de recursos, essas empresas precisavam
encontrar oportunidades seguras e lucrativas de investimento que oferecessem o retorno
desejado aos investidores. Evidentemente, parte da resposta estava em continuar fazendo
o que haviam feito até então, apenas em escala maior. No entanto, ficou logo evidente que
o mercado ao qual haviam se dedicado até então seria insuficiente diante da pressão dos
investidores por uma expansão vigorosa expressada em termos de volume de lançamentos.
Era preciso encontrar novos mercados.
13 Uma das soluções residiu em tirar proveito da abundância de crédito habitacional para
direcionar investimentos para estratos de renda que outrora careciam de acesso à casa
própria. A expansão das linhas de financiamento – seja com recursos de poupança, seja
devido à implementação do programa Minha Casa Minha Vida – ao comprador da casa
própria permitiram que famílias com renda mais baixa (de 3 a 5 salários mínimos, por
exemplo) acessassem o mercado imobiliário, e muitas empresas passaram a atuar nesse
segmento (SHIMBO, 2010; CASTRO; SHIMBO, 2010; FIX, 2011).
14 Outra direção de diversificação foi a dispersão territorial. A maior parte das empresas
em questão restringia seu raio de operação a uma ou a poucas cidades do país – e, com
exceção da MRV, todas elas atuavam prioritariamente na região metropolitana de São
Paulo. A necessidade de encontrar novas oportunidades de investimento para cumprir as
metas prometidas aos novos acionistas forçou essas empresas a iniciarem operações em
outros mercados regionais. Resultou disso um ganho de participação relativa importante de
outros estados, combinado com uma perda de participação relativa da região metropolitana
de São Paulo na composição do investimento das empresas, um processo ilustrado abaixo
pela discriminação, por região, dos lançamentos de duas incorporadoras (ver Tabelas 2 e
3)5. Além disso, algumas das empresas – notadamente MRV, PDG, Cyrela (ver Mapa 1)
e Gafisa, as maiores – atingiram um grau de pulverização pronunciado, atuando muitas
vezes em mais de quinze estados da federação.
Tabela 2 – PDG Realty – VGV lançado em 2007 e 2010 por região.

Região 2007 2010


São Paulo (capital) 49.0% 22.1%
São Paulo (interior) 33.0% 21.7%
Rio de Janeiro 15.0% 10.1%
Nordeste 0.0% 8.1%
Sul 0.0% 10.9%
Sudeste (outros) 3.0% 2.3%
Norte 0.0% 11.6%
Centro-Oeste 0.0% 12.0%

Fonte: Relatórios trimestrais da PDG.

Tabela 3 – Rossi – VGV lançado em 2007 e 2010 por região.

Região 2007 2010


São Paulo (Capital) 32.2% 16.0%
São Paulo (interior) 21.1% 22.0%
Rio de Janeiro 14.5% 6.0%
Rio Grande do Sul 12.5% 16.0%
Minas Gerais 0.0% 16.0%

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Ceará 0.0% 4.0%


Amazonas 0.0% 7.0%
Distrito Federal 0.0% 3.0%
Bahia 0.0% 2.0%
Outros 19.7% 8.0%

Fonte: Relatórios trimestrais da Rossi.


6
Mapa 1 – Distribuição geográfica das unidades lançadas pela Cyrela em 2009 .

Fonte: Relatório anual da Cyrela.


15 Em resumo, a abertura de capital, impulsionada pelo desejo das incorporadoras de
aproveitarem o incremento na demanda por imóveis causado pelo surto de crédito habitacional,
desencadeou uma metamorfose das formas de atuação e das estruturas administrativas das
principais empresas do setor imobiliário. De um setor predominantemente constituído de
pequenas e médias empresas familiares, o imobiliário tornou-se foco de decisiva presença
de investidores financeiros internacionais que passaram a exigir do setor uma postura bem
mais agressiva em termos de volume de lançamentos e dispersão do investimento – ou
seja, condizente com as expectativas de rentabilidade de fundos de aplicação coletiva.
Em apenas cinco anos, tanto os dados de lançamentos (seja em unidades, ou VGV)
quanto os de distribuição regional sofreram importante transformação, denotando a rapidez
das transformações em foco. Nas páginas que seguem, procuramos argumentar que a
financeirização, em sua relação com a produção do espaço urbano, pressupõe e engendra

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uma articulação renovada entre as escalas geográficas constitutivas do processo urbano. As


incorporadoras e construtoras aparecem, aqui, como elos mediadores entre os movimentos
voláteis das finanças globalizadas e a captura de rendas do solo urbano na escala local. As
tensões que decorrem da construção desses vínculos escalares servem de testemunho ao fato de
que os nexos entre as escalas são um produto social e podem ser constantemente contestados
e redefinidos em decorrência de circunstâncias historicamente determinadas.

Produzindo vínculos escalares: tensões e contradições


16 A expansão vertiginosa dos negócios imobiliários no Brasil atual baseou-se, como diversos
pesquisadores vêm insistindo nos últimos anos, em uma metamorfose da propriedade
urbana que aponta para graus mais ou menos elevados de “flexibilização” (PEREIRA,
2006; BOTELHO, 2007; FIX, 2007; 2011; VOLOCHKO, 2008; MIELE, 2008)7. Essa
flexibilização tem como fundamento o aumento da liquidez dos ativos de origem
imobiliária. A criação de condições de maior liquidez é pedra angular do processo
de financeirização no que toca aos negócios urbanos, porque permite que o investidor
financeiro, notoriamente avesso a compromissos de longo prazo (BRAGA, 1997;
CHESNAIS, 2005), contorne alguns dos obstáculos que se atrelam inextricavelmente
ao modus operandi do setor imobiliário e do mercado de terras urbano, tais como seu
enraizamento estrutural em condições locais muitos específicas e o longo período de
rotação. Uma vez tornado um ativo líquido, os papéis com lastro nos ganhos produzidos
pelo mercado imobiliário podem ser agregados ao portfólio – e às práticas muito peculiares
de gestão desses portfólios – de investidores institucionais (tais como seguradoras e fundos
de pensão) e outros fundos coletivos de aplicação financeira (fundos de hedge, fundos
mútuos, etc). Em termos bastante gerais, poderia se afirmar, tendo em vista o que já foi
discutido até aqui, que a financeirização, em conexão com os negócios com a propriedade
urbana, ampara-se na criação de uma arquitetura institucional e financeira por intermédio
da qual investidores financeiros tornam-se aptos a capturar rendas do solo urbano geradas
reiteradamente no movimento de produção e reprodução dos espaços urbanos.
17 O que tem sido menos explorado e/ou problematizado na literatura recente refere-se ao
fato de que a financeirização exige e promove a construção ou redefinição dos vínculos
entre as escalas do processo social. Em outras palavras, o êxito maior ou menor das
finanças em extrair rendimentos do processo de produção do espaço urbano depende da
eficácia na construção de vínculos mais duradouros entre agentes, processos e estruturas
que predominam e/ou privilegiam diferentes escalas geográficas. A proposição implícita
nessa hipótese é de que não apenas as escalas e os arranjos escalares são socialmente
produzidos, mas também de que esses arranjos podem ser reelaborados e redefinidos
no contexto de embates políticos, conflitos sociais ou reestruturações econômicas, como
reconhece uma crescente bibliografia (SMITH, 1992a; 1992b; BRENNER, 2000; 2001;
2009; SWYNGEDOUW, 1997; 2004; VAINER, 2006). Mais do que isso, a produção
de novos arranjos entre as escalas geográficas constitui um componente fundamental
das transformações sociais, políticas e econômicas que, historicamente, repuseram
as condições de reprodução econômica do capitalismo, gerando uma configuração
relativamente estável e duradoura para a continuidade da acumulação de capital e para a
ação dos distintos grupos e classes sociais (BRENNER, 2001). Com isso em vista, pode-se
reler a financeirização do circuito imobiliário examinando a natureza dos elos e relações
escalares construídos e as tensões e contradições que florescem nesse processo.
18 Para fins analíticos, é possível discernir três escalas predominantes no âmbito do processo
de financeirização dos negócios imobiliários urbanos. Esses três níveis escalares, e os
agentes e processos a eles correlatos, estão sintetizados na Tabela 4. Algumas advertências
metodológicas mostram-se, contudo, necessárias a fim de prosseguir a discussão. A
primeira refere-se aos limites desse tipo de representação: uma importante e crescente
literatura vem atentando para a necessidade de se pensar as escalas de forma processual
e dinâmica, priorizando o discernimento dos vínculos sempre provisórios e contraditórios
entre os níveis escalares em vez de entender as escalas como níveis estáticos e quase

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ontológicos da ação social. Nesse sentido, é preciso ter consciência desses limites de
representação, porque uma tabela nunca dá conta de representar de modo satisfatório
a complexidade dos elos, articulações e tensões entre as escalas discernidas. Ela serve
apenas como ponto de referência analítico. A segunda advertência remete ao fato de que
nem sempre certos agentes e processos podem ser nitidamente circunscritos em termos
de um determinado nível escalar. Para citar um exemplo, alguns dos bancos nacionais
que desempenham um papel primordial em financiar a aquisição da casa própria no
cenário atual extravasam as fronteiras nacionais, de modo que poderiam, possivelmente,
ser entendidos como agentes globais. O mesmo vale, por exemplo, para proprietários
de terrenos na escala local: alguns deles podem ser, na verdade, empresas que possuem
interesses que vão muito além da escala local. Feitas essas ressalvas, contudo, parece
interessante identificar esses agentes e seus níveis escalares como um passo inicial para
entender a complexa articulação de escalas produzida pela financeirização.
19 No que segue, identificaremos e discutiremos algumas articulações entre esses níveis e as
tensões que emergiram tendo como base em pesquisa de campo realizada em São Paulo e
em Porto Alegre entre 2011 e 2012. Os levantamentos de campo consistiram em entrevistas
realizadas com analistas de mercado, empresários do setor imobiliário e dirigentes de
entidades de classe entre Setembro de 2011 e Abril de 2012, bem como em levantamentos
de dados coligidos por institutos de pesquisa e entidades do setor imobiliário e publicações
setoriais8.
Tabela 4 – Dimensões escalares da financeirização do espaço urbano

Fonte: Elaboração do autor.


20 As articulações entre as escalas global e a nacional, por exemplo, colocam-se de inúmeras
formas em relação ao fenômeno em discussão e seria impossível discutir todas essas
formas. Tendo como foco as incorporadoras e construtoras, parece pertinente iluminar,
para pensar a articulação entre esses dois níveis, quais são as circunstâncias econômicas,

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políticas e institucionais que possibilitam que grandes investidores financeiros – fundos


de pensão, fundos de hegde, private equity, etc, a maioria com sede nos países avançados
– agreguem papéis emitidos pelas incorporadoras nacionais (fundamentalmente ações e
debêntures) ao seu portfólio de aplicações de abrangência global, forjando, assim, conexões
entre agentes e processos posicionados em níveis escalares diferentes.
21 Em um plano mais abrangente, o requisito primordial para esse desdobramento repousa
sobre a construção, pelo Estado, de um ambiente mais receptivo aos fluxos financeiros
internacionais. A elaboração dessa atmosfera favorável aos fluxos financeiros exigiu um
firme compromisso do Estado brasileiro em implementar uma gama de reformas que
alinhassem o país de forma inequívoca a um receituário político neoliberal, em voga
nos principais países hegemônicos desde a década de 1980. Nesse sentido, era preciso,
aos olhos dos grandes investidores financeiros, não apenas remover todas as restrições
e entraves aplicados à entrada e saída de capitais de curto prazo, como também era
necessário que o Estado brasileiro demonstrasse um decisivo comprometimento com a
redução das taxas de inflação mediante a utilização dos instrumentos de política monetária
e fiscal. O marco simbólico dessa virada foi representado pelo governo de Fernando
Henrique Cardoso, que logrou implementar um amplo programa de reformas do Estado
(privatizações, cortes de gastos públicos, abertura comercial, liberalização financeira,
etc) que apontam, de inúmeras formas, para formas de gestão política mais sensíveis
aos interesses de investidores financeiros. Mas esse processo, na verdade, possui um
horizonte mais largo, e nesse sentido o governo petista precisa ser visto, em inúmeros
aspectos, como uma continuidade em relação ao modelo instituído anteriormente. O que
importa é sublinhar o protagonismo do Estado brasileiro em transformar o país no que
Leda Paulani (2008) designou criticamente por “plataforma de valorização” do capital
financeiro internacional, criando as estruturas institucionais que geram confiança nos
grandes investidores financeiros para investir em um mercado periférico – ou “emergente”,
no jargão ideológico do mercado de capitais.
22 No que se refere particularmente à articulação dos investidores com as incorporadoras, o
cerne do problema consiste em saber que parâmetros e critérios os investidores utilizam
para tomar decisões acerca de adquirir, reter ou se desfazer dos papéis do setor imobiliário.
Aqui a articulação passa pela necessidade de produzir padronizações que permitam que o
investidor avalie da forma mais objetiva possível a pertinência de se investir na empresa
em questão, comparando-a com outras do mesmo setor ou de outros setores e países.
Uma dessas padronizações diz respeito aos parâmetros de “governança corporativa” que
instituições multilaterais como o Banco Mundial têm procurado disseminar nos países
periféricos. A “governança corporativa” refere-se, no meio empresarial, a um conjunto de
diretrizes que norteiam as práticas administrativas e contábeis das empresas com o fito de
aumentar a “transparência” dessas empresas aos olhos dos investidores. Como diversos
autores ressaltam, a definição e o conteúdo desses parâmetros refletem o poder que os
investidores institucionais adquiriram sobre as prioridades e estratégias das empresas no
capitalismo atual, fazendo prevalecer condutas administrativas que dão primazia à criação
de “valor para o acionista” (shareholder value) em detrimento de um planejamento de mais
longo prazo (LAZONICK; O’SULLIVAN, 2000; FARNETTI, 1998; SOEDERBERG,
2003). Os procedimentos administrativos e de divulgação de resultados exigidos das
empresas para serem listadas no Novo Mercado Bovespa – um padrão de listagem
criado em meados da década de 2000 que constitui, segundo a bolsa, o nível “mais
elevado de governança corporativa”9 – incorporam decisivamente esses parâmetros.
Além disso, uma vez que abrem seu capital na bolsa, as decisões administrativas das
empresas são cuidadosamente examinadas por agências internacionais de avaliação de
risco, como Standard & Poor’s e Moody, que concedem um score que expressa o grau de
comprometimento das empresas com a governança corporativa (ver Tabela 4).
23 Contudo, mesmo após a adesão das incorporadoras a essas diretrizes internacionais,
persistiram desencontros entre as expectativas e critérios adotados pelos investidores e as
práticas de negócios que caracterizam o setor imobiliário no Brasil, e é aqui que se pode

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visualizar algumas tensões que podem ser lidas em termos de relações interescalares10.
Como Kevin Gotham (2006; 2009) ressalta, o setor imobiliário é particularmente propenso
a toda sorte de opacidades que dificultam sobremaneira sua conversão em um “ativo
financeiro” dotado de liquidez. Particularmente relevante é seu enraizamento profundo
em condições regionais e locais muito específicas, referentes à dinâmica de localização
particular que cada mercado regional possui e à inserção que determinada empresa possui
em uma teia densa de relações composta por diferentes agentes atuando nesses mercados
locais. Diferentemente de um produto industrial homogêneo como um automóvel, no caso
da moradia um indicador como volume de produção não fornece uma informação confiável
sobre as receitas e a lucratividade de uma empresa. Duas empresas com o mesmo volume de
produção e mesmos custos de construção podem ter resultados completamente diferentes
dependendo da qualidade dos negócios que se envolveram nas diferentes regiões em que
atuam. Essas circunstâncias geram uma incerteza, da parte do investidor financeiro, quanto
aos critérios corretos a serem adotados para avaliar uma empresa e seu desempenho. Essa
incerteza se exprimiu, no Brasil, em uma volatilidade dos critérios dos investidores para
avaliar o setor, induzindo as empresas a erros de avaliação, decisões precipitadas e posturas
especulativas. Em uma entrevista com uma analista do mercado imobiliário do Secovi/SP,
Ana Maria Castelo, a entrevistada observa esse desencontro:
uma parte aí do impacto dos mercados [nas] grandes cidades [veio com] essa necessidade de
gerar resultados. Os investidores não sabiam muito para onde olhar. Existia já um histórico de
acompanhar a empresa, empresas da indústria, empresas de serviços, mas o setor da construção
[...] era um setor novo dentro do mercado de capitais. Então, que parâmetro usar? E aí nessa
incerteza, um dos parâmetros que eles começaram a usar foi o banco de terrenos. Ah, você tem um
banco de terrenos bom significa que vai lançar, e aí as empresas começaram a correr pra formar
esse banco de terrenos, já com o início aí da subida do preço dos terrenos11.
24 De forma semelhante, um dos diretores de incorporação da Brookfield S.A., José de
Albuquerque, afirma que:
as empresas do setor imobiliário eram empresas mais familiares e quando teve a moda dos IPOs
[Initial Public Offering, a abertura de capital em bolsa] aí nos anos 2006, 2008, vinte empresas
correram para abrir capital, viraram capital aberto, Novo Mercado [Bovespa]. Só que aí Novo
Mercado é aquela história, tem regras que o setor imobiliário não estava acostumado e [que] o
mercado não estava acostumado. Então a primeira história pra situação subir, o resultado trimestral
era quanto de VGV [Valor Geral de Vendas] você vai lançar, “guidance12 do ano”, “guidance do
ano”. [...] Depois começaram: “o que você tem de landbank [banco de terrenos]”, “o que você
tem de landbank”, “quem tem o melhor landbank é o melhor do mundo” e tal. Quer dizer, nem
os mercados financeiros entendiam as companhias e muito menos as companhias entendiam o
mercado financeiro13.
25 A necessidade de satisfazer as demandas dos investidores respondendo às suas expectativas
levou muitas empresas a se precipitarem em uma compra desenfreada de terrenos quando
os investidores olhavam com especial apreço para o volume do banco de terrenos de
cada empresa como indicador de rentabilidade futura. Isso ocorreu principalmente nos dois
primeiros anos após a abertura de capital na bolsa (entre 2007 e 2009). Algumas empresas
foram particularmente prejudicadas por essa postura: quando a crise financeira de 2008 se
traduziu em uma escassez temporária de financiamento externo via mercado de capitais, essas
empresas tinham muito capital imobilizado na forma de terrenos, o que tornou particularmente
difícil continuar financiando as atividades. Daí que muitas delas foram forçadas a diminuir
drasticamente o volume de lançamentos e mesmo liquidar parte de seu banco de terrenos, a
fim obter recursos líquidos para honrar seus pagamentos – é o que explica a queda rápida
dos lançamentos da Gafisa em 2009 (Ver Tabela 1). Outras ainda foram adquiridas por
empresas maiores em situação financeira melhor. A diretora de relações com investidor da
Even, Ana Paula Barizon, demonstra, também, uma percepção de que o mercado financeiro
dita parâmetros que muitas vezes são inadequados à realidade do setor, mas faz questão de
colocar a sua empresa como uma das que não se dobraram ao poder acionista:
a gente até brinca que tem as modas do mercado financeiro, então lá na época do IPOs [abertura de
capital], o mercado financeiro queria que todo mundo fosse pra tudo quanto é lugar, diversificasse

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a atuação em mil estados, lançasse pra caramba, e a Even sempre teve um perfil mais conservador.
A gente até acredita que a ação da Even sempre teve um leve desconto aí, por conta da postura
mais conservadora do nosso management e da nossa estratégia. […] O mercado financeiro […] é
mais de modismo, então lá em 2007 [...] a moda era lançar, lançar, lançar. Então quanto maior o
guidance que as empresas davam, mais o mercado gostava e acabava achando que aquela empresa
ia dar grande retorno […] E agora o que a gente vê do mercado é que a grande menina dos olhos é
geração de caixa. [...] Quanto mais cedo uma empresa puder se tornar caixa positivo, é o que eles
estão olhando agora. [...] [A] Even é muito focada na sua estratégia interna e o mercado financeiro
tem os modismos14.
26 A vinculação entre a escala global, representada aqui pelos grandes fundos de aplicação
empenhados em compor uma carteira diversificada de ativos, e a escala nacional,
onde predominantemente atuam, desde a abertura de capital em 2006/7, as grandes
incorporadoras brasileiras, depende, portanto, de condições políticas, econômicas e
institucionais que fazem dos papéis emitidos pelo setor imobiliário ativos atraentes (ou
seja, líquidos, seguros e rentáveis) para os grandes fundos globais. O que está em jogo é
a necessidade de uma sintonização entre as expectativas e temporalidades que definem a
gestão financeira dos grandes fundos de aplicação e a natureza particular do setor no qual
investem – no caso do imobiliário, um setor com uma lógica espaço-temporal bastante
particular. Mas esse empenho por sintonização, por exprimir na maior parte vezes o poder
assimétrico existente entre os investidores e as empresas, resulta em contradições que
podem emergir de inúmeras formas e que podem colocar em xeque as relações forjadas
entre esses agentes e processos predominantes em escalas diferentes. Como ilustramos
aqui brevemente, no caso brasileiro houve desacertos e desencontros entre as expectativas
e prioridades dos investidores e aquelas das incorporadoras/construtoras, acarretando em
problemas para algumas empresas em particular, decorrentes de saltos especulativos, e/ou
desvalorizações dos papéis das incorporadoras que não seguiram à risca as injunções dos
novos acionistas.
27 Um segundo aspecto do processo de financeirização do imobiliário no Brasil refere-se
à criação de relações econômicas entre as empresas nacionais e empresas associadas/
parceiras, a maioria das quais atuam na escala urbana/local15. O que se colocou após
a abertura de capital para as grandes incorporadoras foi, como vimos, uma pressão
por expandir rapidamente o volume de lançamentos a fim de satisfazer as expectativas
de crescimento dos novos acionistas. Essa necessidade logo revelou a insuficiência do
mercado de São Paulo – mercado de origem para a maior parte das incorporadoras – para
contemplar as metas visadas, o que impeliu as empresas a se dispersarem regionalmente,
seja por meio da aquisição de empresas menores, seja por meio de parcerias com
incorporadoras locais ou, finalmente, mediante a abertura de escritórios regionais. Essa
expansão, contudo, trouxe à tona o fato de que existe uma série de riscos atrelados à
tentativa de coordenação de investimentos pulverizados por todo o território nacional.
28 Uma dessas dificuldades refere-se à práticas administrativas e capacidades técnico-
operacionais dos parceiros com os quais as grandes incorporadoras contaram para se
irradiar pelo território nacional. Muitos desses parceiros, convencionalmente pequenas
empresas familiares, simplesmente careciam das condições técnicas e econômicas exigidas
para construir empreendimentos na quantidade e qualidade requerida pelas grandes
empresas. Também faltavam a essas empresas o rigor das práticas de contabilidade e
administração que eram exigidas, pelos investidores financeiros, das empresas de capital
aberto. Isso resultou, em inúmeros casos, em extravasamento dos custos previstos e queda
na rentabilidade dos empreendimentos nas regiões distantes. O analista de investimentos
do Banco do Brasil, Wesley Pereira, observa, no contexto da expansão regional, que
[…] as incorporadoras [são] baseadas em três grandes segmentos: incorporação, construção e
vendas. A incorporação entra na parte do projeto, na parte do terreno e tal. A construção é a
engenharia, propriamente dita e vendas é a parte de corretagem. Então [as construtoras] viram que
na parte de incorporação elas tinham estrutura suficiente para prospectar um terreno e fazer um
projeto. Só que para construir, elas optaram por construir via parcerias. Então em um ambiente
aquecido de mão de obra, essas parcerias foram se encarecendo, mais do que o previsto nos
contratos.

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29 Logo em seguida, o entrevistado complementa:


30 As empresas começaram a incorrer em custos de obra mais altos do que aqueles previstos
no projeto, [...] por conta do fluxo mesmo, do risco imobiliário, do risco da carência de
mão de obra, da carência de engenheiros, então aquele custo que era 100, virou 150.
Se a rentabilidade do projeto foi apertada, antes do lançamento, e este custo estourou
em 50%, existe uma forte probabilidade daquele empreendimento não ser rentável ou da
rentabilidade dele estar comprometida. Por que estourou [o custo]? Porque os contratos
foram feitos por meio de parcerias e as empreiteiras locais, [...] que são dessas regiões
aonde a empresa não tinha atuação. Elas começaram a chamar de volta a empresa dizendo
que não têm condições de absorver este custo de contrato. [Então] os contratos foram tendo
aditivos, as cláusulas de reajuste podem não ter sido acordadas. [...] Então as empresas
começaram a enfrentar problemas de custo16.
31 A diretora de relações com investidores da Even, Ana Paula Barizon, coloca o problema
de forma análoga, embora com algumas nuances diferentes. Falando sobre a postura que a
empresa tomou em relação à dispersão regional, a entrevistada assevera que:
[…] em 2008, quando veio a crise, a gente contratou uma consultoria externa pra definir um plano
estratégico mais focado [...] E essa consultoria desenhou um planejamento estratégico junto com
o management aqui da Even, [...] aonde eles definiram que eles não iam atuar em outros estados
senão Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo. Por quê? Porque [a] gente
acredita [...] que o Brasil é um país continental, então, pra você ter eficiência na sua atuação no
lugar, você tem que ter relevância naquele lugar. Então, a gente não acredita que você fincar uma
bandeirinha em cada estado, levantar um empreendimento em cada estado, vai ser eficiente. O que
a gente acredita é que se você tiver relevância num mercado os melhores terrenos acabam vindo
pra você, os melhores talentos acabam vindo pra você, você tem conhecimento do mercado local,
você consegue se antecipar a demandas, algumas mudanças de comportamento da demanda17.
32 Um ponto adicional colocado nesse último excerto refere-se ao fato de que os riscos
decorrem não apenas das insuficiências técnicas e operacionais das empresas parceiras,
mas também do desconhecimento de certas peculiaridades dos mercados regionais. Como
explica Michael Ball (1983), para que uma incorporadora tenha êxito em determinado
mercado, é preciso que ela consiga se inserir capilarmente em uma trama densa de
relações sociais que envolve inúmeros agentes locais (proprietários de terra, planejadores,
pequenas construtoras, políticos, etc) ligados ao circuito imobiliário. Essa inserção, que
só é concebível quando uma empresa se dispõe a operar de forma mais sistemática e
contínua em uma região (daí a ideia de “relevância”), é o que permite construir as bases
econômicas para uma atuação mais rentável – adquirindo os melhores terrenos em contato
cotidiano com potenciais vendedores, atraindo talentos ao participar mais ativamente do
mercado de trabalho local, identificando demanda potencial ao aperfeiçoar o conhecimento
da dinâmica local de usos do solo, etc.
33 Os problemas enfrentados por algumas empresas nesse processo de acelerada dispersão
territorial terminaram por forçá-las a recuar e reconcentrar novamente investimentos no
Sudeste, o pólo nacional da acumulação de capital – são os casos, notadamente, da
Cyrela e Gafisa. Isso não deve ser interpretado como um movimento inexorável, que
sinalizaria uma reversão absoluta da tendência à dispersão territorial – afinal, empresas
como PDG e MRV não modificaram tanto suas políticas de dispersão justamente por
não terem enfrentado os mesmos problemas. Antes, é preciso interpretar os percalços de
algumas incorporadoras como expressão de contradições que emergem da tentativa de
articular as escalas nacional e local dos negócios com a propriedade, um desdobramento
do movimento de financeirização do imobiliário na medida em que decorrem da demanda
por expansão dos novos acionistas. Deve-se insistir, portanto, no fato de que esses arranjos
escalares, que constituem uma dimensão central do processo de financeirização dos
negócios imobiliários, comportam formas de tensão e instabilidade que exprimem, em
última análise, as dificuldades de compatibilizar processos e agentes cujos horizontes e
lógicas espaço-temporais de ação são marcadamente dissonantes.

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Considerações finais
34 A financeirização do circuito imobiliário teve como requerimento básico a construção e/
ou aprimoramento de canais por intermédio dos quais os grandes investidores financeiros
internacionais puderam, de forma cada vez mais eficaz e sistemática, se apoderar dos
rendimentos produzidos pela reestruturação do espaço urbano e regional no Brasil.
A criação desses canais pressupõe uma complexa arquitetura econômica e político-
institucional, sugerindo que a presença do Estado é aqui indispensável. Além disso,
para que os grandes investidores financeiros – notadamente, os grandes fundos coletivos
de aplicação e os assim chamados investidores institucionais – pudessem se interessar
pelo mercado imobiliário urbano, foi necessário criar mecanismos para flexibilizar a
propriedade imobiliária urbana, metamorfoseando essa última em papéis (recebíveis
imobiliários, cotas de fundos de investimento imobiliário, ações de incorporadoras etc)
negociáveis em mercados secundários regulados e supervisionados pelo Estado.
35 O que pretendemos demonstrar nesse artigo é que a financeirização dos negócios
imobiliários dependeu, também, para seu êxito, de um rearranjo escalar do processo de
urbanização. Em outras palavras, a financeirização envolveu a criação e/ou redefinição
das relações travadas entre as escalas global, nacional e local, um processo que
é necessariamente contraditório. Procuramos colocar em foco, aqui, algumas das
contradições que permeiam essa articulação entre as escalas no processo de financeirização
do circuito imobiliário, centrando a análise em dois momentos: no nível dos vínculos entre
o global e o nacional, em que destacamos as tensões que decorreram da inconstância e
incongruência dos critérios mediante os quais os investidores financeiros internacionais
têm avaliado o desempenho das grandes incorporadoras brasileiras; e no nível dos vínculos
entre o nacional e o local, em que observamos os obstáculos enfrentados pelas grandes
incorporadoras, no âmbito de sua política dispersão territorial, que decorreram de sua
associação com empresas familiares locais com pouca experiência ou capacitação para
conduzir negócios no volume e na qualidade requerida pelas parceiras maiores. Trata-se,
portanto, de uma configuração escalar que é altamente instável porque contém diversas
fissuras, embora essa instabilidade não tenha atingido um ponto de ruptura.
36 Convém lembrar, finalmente, que os processos sociais de produção e rearranjo de vínculos
escalares medeiam, e ao mesmo tempo são mediados, por relações de poder, de tal
forma que a reconfiguração de hierarquias escalares produz “geografias e coreografias
de inclusão/exclusão e dominação/subordinação que conferem poder a certos atores,
alianças e organizações em detrimento de outras” (BRENNER, 2009, p. 73). Além disso,
as “hierarquias escalares podem operar não apenas como arenas para lutas por poder
social, mas também como objetivos [dessas lutas] na medida em que essas hierarquias
escalares são desafiadas e perturbadas no curso das lutas e conflitos sociopolíticos por
posicionalidade” (BRENNER, 2009, p. 73). Logo, é preciso ver o arranjo escalar aqui
discutido como uma configuração que exprime, em última análise, o poder adquirido pelos
grandes investidores institucionais e fundos de aplicação financeira de ditar os rumos do
desenvolvimento da economia capitalista e, cada vez mais, também da urbanização nas
últimas décadas. Uma vez que se deseje confrontar as condições econômicas e sociais que
reduzem as metrópoles brasileiras a extensos campos para valorização de capitais na esfera
financeira, acentuando processos de segregação e fragmentação socioespacial, é necessário
colocar em pauta a construção de arranjos escalares fundamentalmente diferentes, mais
afinados com o que Henri Lefebvre (2001) entendia por direito à cidade.

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A financeirização do circuito imobiliário como rearranjo escalar do processo de urbanizaç (...) 14

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Notes
1 Para um estudo mais pormenorizado dessas mudanças, ver Royer (2009). Botelho (2007) e Fix (2011)
também oferecem uma descrição e análise dessas transformações.
2 A securitização diz respeito à transformação de um contrato de dívida em um papel negociável
em mercados secundários. Os CRIs são títulos que possuem rendimento derivado do pagamento das
prestações (principal mais juros) das famílias que contraem empréstimos habitacionais.
3 ESTRANGEIRO leva 72,5% das ações vendidas pela Rossi. O Globo, Rio de Janeiro, 15/10/2009.
4 VGV é uma forma utilizada pelas incorporadoras para contabilizar seu produto. Refere-se a soma do
valor potencial de todos os empreendimentos lançados.
5 Vale frisar que em alguns casos não houve perda de participação relativa da região metropolitana de
São Paulo, e sim uma dispersão do restante dos lançamentos da empresa por um número maior de
estados da federação.
6 O estado de São Paulo é o único que se encontra segmentado em dois: a região metropolitana e o
interior.
7 Esse termo, vale frisar, não é empregado por todos esses autores, mas os sentidos das mudanças em
curso estão, de uma forma ou de outra, ilustrados nessas diferentes pesquisas.
8 O trabalho de campo beneficiou-se de uma parceria com dois colegas de Doutorado do Laboratório de
Geografia Urbana da USP: César Simoni dos Santos e Sávio Augusto Miele. A cooperação envolveu
a realização de entrevistas, coleta de dados e, principalmente, um debate contínuo sobre a natureza
do processo de produção do espaço das metrópoles atuais, que contribuiu muito para algumas das
reflexões desse artigo.
9 Cf. http://www.bmfbovespa.com.br/empresas/pages/empresas_novo-mercado.asp.
10 Utilizaremos, aqui, as entrevistas mencionadas apenas como fonte de informação. Evidentemente
que as percepções dos entrevistados estão imbuídas de representações que são a tradução subjetiva
do domínio prático que esses agentes possuem da estrutura social na qual se encontram imersos. Por
isso, sua visão de mundo tende, inevitavelmente, a naturalizar as relações sociais que conformam sua
prática cotidiana e a ignorar manifestações que expressam as contradições que essas relações encerram.
Depreende-se, daí, que deve ser mantido um distanciamento crítico dessas representações, que não
podem, absolutamente, nortear a argumentação. Vale lembrar, além disso, que a discussão levada a
cabo, aqui, também dependeu de extensa pesquisa em fontes como publicações setoriais e periódicos
econômicos.
11 Entrevista realizada em 24/10/2011 em São Paulo.
12 Guidance é uma espécie de planejamento anual no qual as empresas indicam sua intenção em termos
de lançamentos, vendas, etc.
13 Entrevista realizada em 06/10/2011, em São Paulo.
14 Entrevista realizada em 27/10/2011, em São Paulo.
15 Aqui convém uma ressalva: nem todas as empresas que dispersaram seus investimentos pelo país
o fizeram mediante o estabelecimento de parcerias com empresas locais, algumas optando, ao invés
disso, por abrir sucursais ou escritórios regionais responsáveis por gerir os negócios em diferentes
mercados. Isso não significa, contudo, que não esteja em questão aqui um processo de articulação
entre níveis escalares distintos: toda incorporadora que deseje expandir territorialmente seus negócios
acabará por defrontar-se com a necessidade de lidar com uma miríade de circunstâncias econômicas
e sociais que diferenciam enormemente os mercados onde atua. Seu êxito ou fracasso no processo de
expansão regional repousa, fundamentalmente, sobre sua capacidade de ser suficientemente flexível
para enfrentar essas circunstâncias diferenciadas encontradas na escala local.
16 Entrevista realizada em 21/10/2011, em São Paulo.
17 Entrevista realizada em 27/10/2011, em São Paulo.

Pour citer cet article

Référence électronique

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Daniel de Mello Sanfelici, « A financeirização do circuito imobiliário como rearranjo escalar do


processo de urbanização », Confins [En ligne], 18 | 2013, mis en ligne le 22 juillet 2013, consulté le 22
juillet 2013. URL : http://confins.revues.org/8494 ; DOI : 10.4000/confins.8494

@apropos
Daniel de Mello Sanfelici
Doutorando em Geografia Humana, Universidade de São Paulo (USP), danielsanfelici@gmail.com

Droits d'auteur
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Résumés

Nos últimos cinco a dez anos, o setor imobiliário residencial no Brasil registrou uma expansão
extraordinária em termos de lançamentos e vendas. Essa expansão, que vem transformando
rapidamente as metrópoles brasileiras, foi impelida por um entrelaçamento sem precedentes do
sistema financeiro com o circuito de produção e consumo do ambiente construído urbano no
país. Na esteira desse fenômeno, muitos autores vêm tentando interpretar essas transformações
à luz do movimento de financeirização da economia, como uma expressão do poder redobrado
dos investidores financeiros em obter rendimentos com a transformação do espaço urbano.
Esse trabalho pretende contribuir para esse debate em curso argumentando que o processo
de financeirização, que nos últimos anos atingiu os negócios imobiliários no Brasil, produziu
um reordenamento dos vínculos entre as escalas geográficas. A primeira parte do trabalho
dedica-se, assim, a proporcionar uma visão panorâmica das transformações ocorridas nos
negócios imobiliários como fruto da articulação com o sistema financeiro. Na segunda parte,
apoiando-nos em uma gama de entrevistas realizadas entre 2011 e 2012 e em levantamentos
de dados sobre o setor em questão, procuramos colocar em destaque as formas de articulação
entre agentes situados em diferentes escalas socioespaciais. Nesse movimento, a articulação
entre a escala global e a escala nacional é ilustrada pela necessidade das incorporadoras de
tornarem suas atividades mais “transparentes” a fim de que seus papéis possam ser agregados
ao portfólio de grandes investidores institucionais estrangeiros. Os vínculos entre a escala
nacional e a local, por sua vez, são examinados como fruto do estabelecimento de parcerias
entre as grandes incorporadoras financeirizadas e construtoras/incorporadoras pequenas e
médias regionais. Em ambos os casos, procuramos colocar em evidência os desencontros e
as tensões que resultam da aproximação de agentes expressivos de lógicas espaço-temporais
díspares, demonstrando que a escala geográfica, longe de ser uma dimensão estanque do
processo social, é produzida e transformada socialmente e, enquanto tal, internaliza tensões
e contradições sociais. O trabalho realça, em sua conclusão, a importância da construção de
nexos escalares para a reprodução do poder das finanças na atualidade.

La financiarisation de l’immobilier en tant que réaménagement


scalaire du processus d’urbanisation
Durant les cinq à dix dernières années, les offres et les ventes du marché immobilier résidentiel
ont connu une croissance exceptionnelle et, par voie de conséquence, commencé à modifier
le paysage des métropoles brésiliennes. Cette croissance a été stimulée par un entrelacement
sans précédent du système financier avec le circuit de production et de consommation du cadre
bâti urbain dans le pays. Les auteurs qui se penchent sur ce phénomène sont nombreux à
tenter de l’interpréter à la lumière du mouvement de financiarisation de l’économie, envisagé
comme une expression du pouvoir accru des investisseurs financiers soucieux de valoriser leur
capital avec la transformation de l’espace urbain. Ce travail vise à contribuer au débat en cours
en montrant que le processus de financiarisation, qui touche le marché immobilier brésilien
depuis quelques années, a produit un réaménagement des relations entre les échelles socio-

Confins, 18 | 2013
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spatiales. La première partie de l’étude propose une vision panoramique des transformations
des transactions immobilières issues de l’articulation avec le système financier. La deuxième
partie se base sur une série d’entretiens réalisés entre 2011 et 2012 et sur des relevés de données
relatives au secteur en question, pour distinguer les types de rapports entre agents de différentes
échelles socio-spatiales. Dans ce mouvement, l’articulation entre échelle mondiale et échelle
nationale est illustrée par le besoin des promoteurs à faire preuve de plus de « transparence »
au niveau de leurs activités afin de pouvoir intégrer le portefeuille des grands investisseurs
institutionnels étrangers. Quant aux liens entre échelle nationale et échelle locale, ils sont
envisagés comme le fruit de partenariats établis entre les grands promoteurs immobiliers
financiarisés et les petits et moyens constructeurs/promoteurs régionaux. Dans les deux cas,
l’objectif est de souligner les mises à distance et les tensions résultant du rapprochement
d’agents expressifs de logiques spatio-temporelles dissemblables. Partant de là, l’échelle
géographique n’est pas vue comme une dimension étanche du processus social ; au contraire,
elle est produite et transformée socialement et, en tant que telle, intériorise des tensions et des
contradictions sociales. Finalement, l’accent est mis sur l’importance de la construction de
liens scalaires pour la reproduction du pouvoir des finances dans l’actualité.

Financialization of real estate as a rescaling of the urbanization


process
Over the past five to ten years, Brazil’s residential real estate market has experienced a
marked expansion both in terms of housing starts and sales. This expansion, which has rapidly
transformed Brazilian cities, was spurred by an unprecedented intertwining of the financial
markets and the production/consumption of the urban built environment in the country. In
the wake of this process, many scholars have interpreted these changes as representative of
the financialization of the economy, since it expresses financial investors’ growing ability
to derive income from changes in the urban space. This paper attempts to contribute to this
ongoing debate by arguing that the process of financialization, which in the past few years
has taken hold of the property sector in Brazil, has caused a restructuring of the links between
socio-spatial scales. In the first part, we have provided an overview of the changes that have
taken place in the real estate business as an outcome of its connections with the financial
system. In the second part, based on a set of interviews conducted between 2011 and 2012
and on data collected about the sector, we have brought attention to the types of articulation
between agents operating at different socio-spatial scales. In this analysis, the articulation
between the global and the national scales is illustrated by developers’ need to make their
businesses more “transparent” in order that the papers they issue in financial markets can be
aggregated to the portfolio of large foreign institutional investors. The linkages between the
national and the local scales, in terms, are examined here as resulting from the partnerships
established between large, financialized developers and regional small and medium-sized
builders. In both cases, we have attempted to shed light on the disagreements and tensions
that have resulted from the convergence of agents that embody distinct socio-spatial logics,
thus demonstrating that the geographical scale, far from being a fixed dimension of social
relations, is itself socially produced and changed and, because of that, it internalizes tensions
and contradictions. The paper concludes by highlighting the importance of the construction of
scalar linkages for the reproduction of financial power.

Entrées d'index

Index de mots-clés : Financiarisation ; marché immobilier ; réaménagement scalaire ;


production de l’échelle.
Index by keywords : Financialization; Real estate market; Rescaling; Production of
scale
Index géographique : Brasil / Brésil
Índice de palavras-chaves : Financeirização; Mercado imobiliário; Reordenamento
escalar; Produção da escala.

Confins, 18 | 2013

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