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Capitalismo de Plataformas

OPINIÃO

Capitalismo de plataforma: o conceito que melhor


explica as relações de trabalho digitais
Entender o que está por trás de cada termo que pretende analisar esse fenômeno nos ajuda
identificar seus limites

POR RENAN KALIL | 26.10.2021

Dar nome não é uma atividade trivial. A forma pela qual nos referimos às pessoas,
relações, fenômenos e coisas revelam a nossa visão sobre o que (ou quem) está sendo
nomeado.
Nas relações de trabalho, por exemplo, “colaborador” pretende transmitir a imagem de
que existe uma relação horizontal entre empregado e empregador, sem hierarquias. Mas
sabemos que a realidade é outra: as relações de trabalho são caracterizadas pela
subordinação. E, quando a empresa passa por dificuldades, a corda invariavelmente
arrebenta do lado mais fraco.
A disseminação do uso de plataformas digitais em diversos setores da economia, como o
de transporte de pessoas e o de entrega, estimulou a produção de diversas análises.
Conforme a perspectiva, variam os termos utilizados. Vamos tratar de quatro, que são os
mais populares:
- Economia de bico
- Economia de compartilhamento
- Uberização
- Capitalismo de Plataforma

A Economia de bico (gig economy) trata de um mercado de trabalho marcado por


atividades de curto prazo, no qual os trabalhadores são considerados autônomos, em
oposição dos trabalhos com base em contratos por tempo indeterminado. Daí a
centralidade que a noção de “bico” assume.
O termo economia de bico, porém, não explica de forma satisfatória a realidade
brasileira. Em nosso País, a incerteza, a instabilidade, a transitoriedade, a insegurança, a
intermitência e a rotatividade são marcas da economia informal. Além disso, parcela
expressiva dos entregadores e motoristas de aplicativos atuam de forma permanente – e
não pontual ou esporádica – para essas empresas.
A Economia de Compartilhamento possui como características principal a criação de
espaços para a troca de bens (como o aluguel de quartos ou imóveis que não estão
sendo ocupados). O uso desse termo para denominar a atividade econômica via
aplicativos, contudo, é objeto de várias críticas.
Compartilhar é uma transação motivada pela generosidade e altruísmo, sem a intenção
primária de lucro. Dividir bens ou serviços cria uma relação baseada na identidade
comunitária entre as pessoas. Quando o compartilhamento ocorre no mercado, porém,
há uma relação de consumo e uma transação econômica, ou seja: o interesse na troca de
bens e serviços por dinheiro. Os bens envolvidos em trocas por meio das plataformas
digitais, como na locação de imóveis (AirBnB), nas corridas de carro (Uber) ou na
realização de uma entrega (Rappi) ocorrem expressamente com a intenção de lucro.
Já a Uberização é inspirada o modelo de negócios da Uber. Em linhas gerais, a empresa
entende ser uma intermediadora entre oferta (motoristas e entregadores) e demanda
(clientes), que atua no setor de tecnologia, contratando os trabalhadores como se
fossem autônomos. Apesar disso, há diversos entendimentos jurídicos e políticos, em
diversas partes do mundo, que veem a Uber como uma empresa de transporte de
passageiros e de entregas. E seus ‘parceiros’, como empregados.
O principal problema em usar o termo uberização para descrever a dinâmica do trabalho
via plataformas digitais é ignorar outras realidades. É verdade que o modelo de negócios
desenvolvido pela Uber se disseminou amplamente e é adotado por diversas empresas.
Entretanto, há outras formas de trabalho via plataformas digitais, como o crowdwork
(“trabalho de multidão”), que não são explicadas pela perspectiva da uberização.

Por fim há o Capitalismo de Plataforma, termo inicialmente cunhado como forma de se


contrapor à narrativa baseada na economia de compartilhamento. Sua força explicativa
está em quatro aspectos: primeiro, coloca as plataformas digitais no centro do debate.
Segundo, trata esse fenômeno como uma das expressões do capitalismo — e não como
algo isolado. Terceiro: coloca o capitalismo em evidência como forma organizadora
dominante da sociedade e com grande capacidade de adaptação. E quarto: dá
visibilidade aos efeitos concretos das novas tecnologias sobre o trabalho, como a
fragmentação e a precarização.
Entender o que está por trás de cada conceito que pretende analisar o uso das
plataformas digitais em diversos setores da economia nos ajuda a identificar os seus
limites, suas possibilidades e as visões de mundo que os conformam. Não há
neutralidade na forma pela qual nomeamos algo. Esse é um primeiro – e relevante –
passo para compreender o trabalho via plataformas digitais e para garantir direitos aos
trabalhadores.

Crowdwork, a terceirização online


Conhecer o crowdwork é essencial para ampliar o debate sobre as condições de trabalho
via plataformas digitais

POR RENAN KALIL | 06.04.2021

O debate sobre o trabalho via plataformas digitais no Brasil geralmente fala dos setores
de transporte de passageiros e de entregas. Isso ocorre por dois motivos. O primeiro é a
existência de uma quantidade expressiva de trabalhadores nesses setores: um milhão de
motoristas e entregadores trabalham para somente uma empresa, a Uber. O segundo é
a visibilidade dessas atividades: esses trabalhadores estão nas ruas e, durante a
pandemia, as más condições de trabalho a que estão submetidos foram colocadas no
centro das discussões, especialmente a partir de manifestações como o Breque dos
Apps.

O trabalho via plataformas digitais, entretanto, também existe em outros setores e sob
outras formas. Uma de suas expressões, ainda pouco conhecida no Brasil é o crowdwork
(ou trabalho-de-multidão, em uma tradução literal). No crowdwork, pessoas contratadas
via plataforma digital executam tarefas online para empresas ou outros indivíduos. Por
isso também é chamado de terceirização online.

Empregadores transferem uma atividade anteriormente executada por funcionários para


uma grande e indefinida rede de trabalhadores. Essa fragmentação nega aos
trabalhadores a chance de enxergar o processo produtivo do qual são parte, de
perceberam sua a contribuição dada a um produto ou serviço e de estabelecerem valor
ao que fazem.

Os três principais atores das relações no crowdwork são os solicitantes, as empresas


donas da plataforma digital e os trabalhadores. Como regra geral, o conteúdo do
trabalho é determinado pelos dois primeiros. Os trabalhadores são contratados como
autônomos.

Os tipos de trabalho mais comuns no crowdwork tem a ver com projetos ou


microtarefas. Os primeiros abrangem atividades de alta ou média complexidade, cuja
duração pode chegar a meses. Nesses casos, os solicitantes escolhem um trabalhador
para realizar uma determinada atividade em um certo período, negociando o valor da
remuneração. Os segundos executam tarefas simples, que duram segundos ou minutos.
A seleção dos trabalhadores é feita por ordem de chegada.

A maior demanda é pelas microtarefas. Suas principais categorias são busca por
informações (procurar dados na internet, como o endereço de um estabelecimento),
verificação e validação (conferir a veracidade de um perfil em uma rede social),
interpretação e análise (classificar de produtos vendidos por uma empresa) e criar
conteúdo (resumir um documento ou transcrever uma gravação de áudio).

Parcela expressiva das microtarefas se relacionam com o chamado trabalho cultural. Os


trabalhadores geram informações “treinadas” e customizadas, que ensinam algoritmos a
combinar e compreender padrões produzidos por seres humanos. As empresas de
tecnologia precisam desses trabalhadores, pois os computadores não têm as referências
culturais necessárias para interpretar linguagem, imagem e sons.

Conforme os seres humanos vão realizando essas atividades e “treinam” as tecnologias,


as capacidades de inteligência artificial avançam. É um ciclo virtuoso para as empresas
de tecnologia. Diversos autores chamam essas tarefas feitas por seres humanos de
“trabalho fantasma”, “trabalho escondido” e “atrás das cortinas” (“shadow work” –
trabalho-sombra), o que evidencia a sua invisibilidade.

A plataforma de crowdwork é a Amazon Mechanical Turk (MTurk). Segundo a empresa,


há 500 mil trabalhadores registrados, a grande maioria é de origem norte-americana e
indiana.

Em pesquisa desenvolvida no meu doutorado com brasileiros que atuam para a MTurk, a
maioria contou receber baixos valores pelas atividades executadas, a ausência de
instruções suficientes para realizar as tarefas, trabalhar sem a correspondente
remuneração e o desejo de ser pago em espécie (o pagamento dos brasileiros é feito
com créditos para serem usados na loja virtual da Amazon). Ou seja, seus problemas são
diferentes dos vivenciados por motoristas e entregadores.

Há, ainda, plataformas de crowdwork que operam com projetos e estão ganhando
popularidade no Brasil, como a Appen e a Lionbridge, cujas condições de trabalho são
diferentes da MTurk.
Conhecer o crowdwork é essencial para ampliar o debate sobre as condições de trabalho
via plataformas digitais, de forma que as tentativas de regulação levem em consideração
a realidade desses trabalhadores.

Somente assim seremos capazes de pensar a aplicação do direito do trabalho de forma


abrangente e oferecer respostas à desigualdade econômica que existe entre os
solicitantes e as empresas proprietárias de plataformas digitais, de um lado, e os
trabalhadores, do outro.

Renan Kalil. Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo e Procurador do Trabalho.

Fontes:

https://www.cartacapital.com.br/opiniao/capitalismo-de-plataforma-o-conceito-que-melhor-explica-
as-relacoes-de-trabalho-digitais

https://www.cartacapital.com.br/opiniao/crowdwork-a-terceirizacao-online/

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