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(https://boitempoeditorial.files.wordpress.com/2015/03/15-03-08-ludmila-abc3adlio-dia-da-viradora-
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emergente.jpg)
Em outubro de 2016, o governo de Michel Temer sancionou uma lei que passou desapercebida nos
embates sobre as terceirizações. A lei “Salão parceiro – profissional parceiro” desobriga proprietários
de salões de beleza a reconhecerem o vínculo empregatício de manicures, depiladora(e)s,
cabelereira(o)s, barbeiros, maquiadora(e)s e esteticistas. O estabelecimento torna-se responsável por
prover a infraestrutura necessária – os demais trabalhadores seguem sendo reconhecidos como
funcionários – para que suas “parceiras” e “parceiros”, agora legalmente autônomos, realizem seu
trabalho. Assim, aquela manicure que trabalha oito horas por dia ou mais, seis vezes por semana,
para o mesmo salão, poderá ser uma prestadora de serviços.
A uberização, portanto, não surge com o universo da economia digital: suas bases estão em formação
há décadas no mundo do trabalho, mas hoje se materializam nesse campo. As atuais empresas
promotoras da uberização – aqui serão tratadas como empresas-aplicativo – desenvolvem mecanismos
de transferência de riscos e custos não mais para outras empresas a elas subordinadas, mas para uma
multidão de trabalhadores autônomos engajados e disponíveis para o trabalho. Na prática, tal
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O fato é que as empresas-aplicativo têm pouca materialidade, mas altíssima visibilidade. A empresa
Uber tem tamanha atuação pelo mundo que torna hoje cabível utilizarmos o termo em questão. A
fonte da fetichizada “força da marca” neste caso se refere à multidão de trabalhadores e
consumidores que a empresa consegue mobilizar pelo mundo (apenas na cidade de São Paulo, sabe-
se que os motoristas já são mais numerosos que os taxistas. Ultrapassam os 50 mil; entretanto, a
empresa não divulga seus dados (http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,total-de-carros-da-
uber-e-outros-aplicativos-supera-numero-de-taxistas-em-sp-diz-doria,70001653256)). A atuação do
Uber tocou em questões centrais do desenvolvimento capitalista, como a mobilidade urbana e as
legislações em torno da economia digital. Tornou-se tema de campanhas e debates eleitorais, no
terreno arenoso da permeabilidade entre empresas e Estado, que envolve interesses dos
consumidores-eleitores, conflitos dos trabalhadores e embates de titãs sobre o tal “livre” mercado.
Porém, mais do que isso, o Uber tornou evidente tendências mundiais do mercado de trabalho, que
envolvem não só a transformação do trabalhador em microempreendedor, mas também do
trabalhador em trabalhador amador3 produtivo, questão que desenvolvo ao longo da análise.
Já estão em ato novas formas de organização política, que envolvem a criação de sindicatos de
aplicativos, greves e manifestações de trabalhadores uberizados. Em 2016 ocorreu uma série de
manifestações, greves, processos judiciais, formação de sindicatos de trabalhadores de aplicativos
pelo mundo. Motoristas Uber americanos (atualmente mais de 400 mil) juntaram-se a enfermeiras,
trabalhadores do setor hoteleiro, entre outros (https://www.tecmundo.com.br/uber/112162-
motoristas-uber-entram-greve-eua-em-luta-remuneracao-melhor.htm), na campanha “Fight for
US$15”, que demandava o pagamento mínimo de quinze dólares por hora de trabalho. Na Califórnia,
a empresa Uber optou por pagar US$100 milhões em acordo com dezenas de milhares de
trabalhadores (não há dados claros sobre esse número) que acionaram coletivamente a justiça,
requerendo reconhecimento legal do vínculo empregatício com a empresa. O acordo evitou que o
processo fosse a julgamento (ver aqui (http://money.cnn.com/2016/04/22/technology/uber-drivers-labor-
settlement/) e aqui (http://exame.abril.com.br/negocios/uber-paga-ate-us-100-mi-para-encerrar-processo-de-
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motoristas/)). No final do ano, a justiça inglesa determinou que a Uber reconhecesse o vínculo
empregatício com seus motoristas (http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2016/10/justica-do-reino-
unido-decide-que-motoristas-sao-empregados-do-uber.html); o processo ainda está em andamento.
Os motoboys que trabalham para o aplicativo Loggi também organizaram, sob coordenação do
SindimotoSP, manifestação que interrompeu faixas da Marginal Pinheiros e da Av. Rebouças
(http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/11/motofretistas-protestam-em-vias-de-sp-contra-cortes-
em-servico-de-entrega.html), contra a nova forma de remuneração por entrega implementada pela
empresa, que em realidade aumenta sua porcentagem de ganhos sobre o trabalho dos
motofretistas. Os ciclistas-entregadores da empresa Foodora organizaram as primeiras greves de
trabalhadores por aplicativos na Itália (http://passapalavra.info/2016/12/110141), as quais
evidenciaram novas formas de punição (como o desligamento do aplicativo de lideranças), assim
como de apoio (as manifestações começaram a contar com a adesão de usuários
consumidores). Motociclistas do aplicativo Deliveroo, após sete dias de greve, conseguiram impedir
mudanças que rebaixariam o valor de sua hora de trabalho
(https://www.theguardian.com/business/2016/aug/11/deliveroo-drivers-protest-london-changes-pay-
structure). Também foram criados em 2016 o Sindicato dos Motoristas de Aplicativo de São Paulo, a
Associação dos Motoristas Autônomos por Aplicativos e Sindicato dos Motoristas de Transporte
Privado Individual de Passageiros do Estado do Pernambuco. No início de 2017, a Uber acionou a
justiça da Califórnia, tentando impedir a formação de sindicatos
(http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/por-que-a-uber-quer-impedir-motoristas-de-criar-sindicatos-
nos-eua.ghtml).
2. O trabalhador-perfil e o consumidor-vigilante
Basicamente, a empresa Uber promove a conexão entre uma multidão de motoristas amadores pagos
e uma multidão de usuários em busca de tarifas reduzidas em relação aos táxis; em algumas cidades
se estabelece como uma opção economicamente acessível, menos degradante e mais veloz que o
transporte público. Entrando de forma totalmente predatória e com poucas regulamentações,
rapidamente a empresa reconfigura o mercado privado da mobilidade urbana. Tem uma estratégia
agressiva de entrada nos mercados locais; em muitas cidades o Uber é ilegal, mas segue operando
normalmente. Para tanto, conta com uma multidão de usuários e recruta – na passiva (melhor seria,
conta com a adesão permanente de) – uma multidão de motoristas amadores, que encontram nessa
atividade uma forma de geração de renda.
O Uber, assim como outras empresas que operam com a mesma lógica, estabelece regras, critérios de
avaliação, métodos de vigilância sobre o trabalhador e seu trabalho, ao mesmo tempo que se exime
de responsabilidades e de exigências que poderiam configurar um vínculo empregatício. Consumo,
avaliação, coleta de dados e vigilância são elementos inseparáveis. Em realidade, o controle sobre o
trabalho é transferido para a multidão de consumidores, que avaliam os profissionais a cada serviço
demandado. Essa avaliação fica visível para cada usuário que for acessar o serviço com aquele
trabalhador. A certificação sobre o trabalho vem agora da esfera do consumo, por meio dessa espécie
de gerente coletivo que fiscaliza permanentemente o trabalhador. A multidão vigilante, na forma
multidão, é então quem garante de forma dispersa a certificação sobre o trabalho. A confiança,
elemento chave para que o consumidor entregue seus bens e documentos nas mãos do motoboy, para
que adentre o carro de um desconhecido que será seu motorista (e que, diferentemente do taxista, não
passou por um processo de certificação publicamente regulamentada), é então garantida pela
atividade dessa multidão vigilante, que se engaja e também confia no seu papel certificador. Assim o
trabalhador uberizado se sabe permanentemente vigiado e avaliado. Essa nova forma de controle tem
se mostrado eficaz na manutenção de sua produtividade, na sua adequação aos procedimentos –
informalmente estabelecidos – que envolvem sua ocupação. Ao adequar-se o trabalhador trabalha
para si e para a empresa, para si e para o cultivo da marca, que em realidade depende inteiramente
da atuação dispersa desse exército de motoristas.
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A realização do trabalho conta com a disposição do trabalhador em aceitar a tarefa oferecida – o que
quer dizer um permanente gerenciamento de sua própria produtividade –, mas essa aceitação requer
vencer a concorrência entre os motoristas disponíveis. A avaliação da multidão de consumidores
fornece os elementos para o ranqueamento dos trabalhadores. Este opera como um critério na
determinação – programada, automatizada – de quais trabalhadores terão mais acesso a quais
corridas.
Nas últimas décadas ficou claro que também era possível transferir o gerenciamento do trabalho para
o próprio trabalhador – é óbvio que um gerenciamento subordinado, costurado pelas ameaças da
concorrência e do desemprego. O fato é que a passagem do relógio de ponto para o relógio de pulso
mostrou-se extremamente eficaz na intensificação do trabalho e na extensão do tempo de trabalho.
Hoje a jornada de oito horas parece uma lembrança distante para trabalhadores das mais diversas
qualificações e remunerações5.
O cerne da flexibilização em realidade está nesse movimento que transfere para o trabalhador a
administração de seu trabalho, dos custos e dos riscos, sem com isso perder o controle sobre sua
produção. David Harvey ao tratar da organização na dispersão, João Bernardo6 ao demonstrar que
terceirizar a produção não significa perder o controle sobre a mesma são autores que deixam evidente
que a dispersão do trabalho não significou perda de controle do capital ou qualquer tipo de
democratização no processo de trabalho. Pelo contrário, o que vimos nestas décadas é a enorme
centralização do capital acompanhada por novas formas de intensificação do trabalho, extensão do
tempo de trabalho e transferência de riscos e custos para os trabalhadores, em formas cada vez mais
difíceis de mapear.
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A uberização complementa-se com as terceirizações ao mesmo tempo que concorre com elas.
Complementa-se na medida em que é mais um passo na transferência de custos e responsabilidades
sobre a produção. Mas é também uma forma de eliminação de empresas terceirizadas que não
conseguirão bancar a concorrência com as empresas-aplicativo. É o que vemos no segmento dos
motoboys, hoje legalmente reconhecidos como motofretistas. Nos anos 1980, o motoboy era
diretamente contratado pela empresa, até mesmo a moto era de propriedade da contratante e não do
trabalhador. A partir dos anos 1990 empresas terceirizadas de entregas espraiam-se pelo mercado.
Hoje são mais de 900 mil motoboys no Brasil, na cidade de São Paulo provavelmente mais de 200 mil.
Esse imenso exército de motoqueiros – que dão suas vidas e pernas cotidianamente para garantir a
circulação de bens de consumo e de documentos – foi se expandindo juntamente com a terceirização
de seu trabalho. A extensão do crédito para os mais pobres permite a aquisição financiada da moto;
os celulares tornam-se instrumento de trabalho popular, o que reconfigura toda a logística e o ritmo
de trabalho desses profissionais; a baixa qualificação exigida e a remuneração mais alta que outras
ocupações de mesmo nível são elementos que contribuem para a consolidação e o espraiamento das
empresas terceirizadas e de uma ampla oferta de vagas para motoboys. Ao mesmo tempo, o
crescimento do contingente de trabalhadores e das empresas contratantes também está relacionado
ao desenvolvimento de São Paulo como metrópole colapsada na questão da mobilidade urbana e
simultaneamente centro da valorização financeira e fundiária.
Nesse universo bem consolidado de empresas terceirizadas e seu enorme exército de trabalhadores,
adentram os aplicativos de motofrete. Estão há menos de cinco anos no mercado, não há dados
precisos, mas já contam com a adesão de dezenas de milhares de motofretistas em São Paulo. Para ser
um entregador da Loggi o motoboy torna-se um microempreendor MEI7 e tem de estar
regulamentado como motofretista8. Os fundadores da Loggi entraram no mercado criando um nicho
que não existia até então. Assim como o Uber, o aplicativo Loggi conecta consumidores e motoristas
(neste caso, motofretistas); define o valor da entrega, retendo uma comissão de 20% por essa
mediação; automatizou a logística, desenvolvendo um software que geolocaliza os motofretistas
disponíveis e os consumidores. O consumidor faz um pedido, a plataforma online torna o pedido
visível para os motofretistas mais próximos do ponto de partida, quem aceitar primeiro leva.
Motofretistas são mapeados antes e também ao longo da entrega. O consumidor tem acesso aos
dados do motofretista – nome, foto, avaliação de outros consumidores – e pode acompanhar online
seu deslocamento: a vigilância opera como um mecanismo central para a confiança do consumidor.
Para o motoboy, os aplicativos podem ser o meio de livrar-se da exploração da empresa terceirizada
(que em geral abocanha 40% do valor da entrega realizada) e tornar-se um trabalhador por conta
própria, o que, por enquanto, pode proporcionar-lhe rendimentos maiores. Trabalhar por conta
própria requer abrir mão de direitos (caso o motoqueiro seja formalizado) e enfrentar a relação
permanente entre concorrência e rendimentos: quanto mais trabalhadores aderirem aos aplicativos,
menor será a possibilidade de ganho e provavelmente maior será o tempo de trabalho9.
Ainda, é possível a articulação e uma retroalimentação entre uberização e terceirização clássica. Para
muitos, hoje o aplicativo e as terceirizadas se combinam: o motofretista preenche com entregas
ofertadas no aplicativo os poros de não-trabalho na sua jornada para as terceirizadas – uma estratégia
que requer o saber-fazer de sua própria logística.
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A multidão como um bom negócio. Em 2008, o jornalista Jeff Howe cunhou o termo crowdsourcing10.
O outsourcing teria chegado ao seu novo estágio, a crowd constituía-se como a nova fonte das
terceirizações. Navegando na celebração da economia compartilhada, o autor em realidade
desvendava a enorme transferência de trabalho das empresas para os usuários navegantes do
ciberespaço. O debate é longo e complexo. O que somos nós, usuários do Facebook? A cada post,
um cent, não para nós, é claro. O que torna a empresa uma das de maior valor de mercado no mundo
senão a participação de seus usuários? O que faz do Youtube o Youtube senão a produção e uploads e
visualizações permanente de seus usuários? Seria essa atividade trabalho? Mas não é preciso
enveredar por esse caminho complexo das atividades criativas de consumidores que se traduzem
magicamente em lucro para empresas. Atualmente, a transferência de trabalho na forma trabalho está
explícita em diversos sites que contam com a adesão da multidão de usuários-trabalhadores. No
início dos anos 2000, a NASA criou o projeto Clickworkers e com ele descobriu que não precisava ter
trabalhadores contratados para identificar elementos como crateras nas fotos de Marte: após testar a
multidão, comprovou que esta era tão eficiente e muito mais rápida no cumprimento da tarefa,
realizada gratuitamente como forma de “colaboração para o futuro”. O site Innocentive hoje congrega
cientistas uberizados com corporações como Procter & Gamble, Johnson’s & Johnson’s. Estas
https://blogdaboitempo.com.br/2017/02/22/uberizacao-do-trabalho-subsuncao-real-da-viracao/ 7/14
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O crowdsourcing só é possível se o trabalhador for o trabalhador amador. O que vamos nos deparando é
com uma perda – apropriada de forma lucrativa – do lastro do trabalho. A multidão de trabalhadores
realiza trabalho sem a forma socialmente estabelecida do trabalho, em atividades que podem
transitar entre o lazer, a criatividade, o consumo e também o complemento de renda. Trata-se de uma
ausência da forma concreta do trabalho, o que significa a plena flexibilidade e maleabilidade de uma
atividade que, entretanto, se realiza como trabalho (estaríamos vendo o que Francisco de Oliveira, há
14 anos, denominou de a plenitude do trabalho abstrato?11). O motorista Uber não é um motorista
profissional, como o taxista. O resolutor de enigmas do Innocentive pode até ser um empregado de
algum departamento de Pesquisa e Desenvolvimento, mas enquanto usuário, é um cientista amador.
Não há local de trabalho definido, não há vínculos, não há dedicação requerida, não há seleção,
contrato ou demissão (ainda que, como vimos, a concorrência opera permanentemente, de forma
difusa e ilocalizável). Digamos que, na contemporaneidade, todo trabalhador é um potencial
trabalhador amador. Assim como o motofretista combina seu trabalho na terceirizada com o do
aplicativo, assim como o engenheiro pejotizado passa seus dias entre o computador e a direção do
carro Uber, trabalhadores dos mais diversos perfis socioeconômicos engajam-se em atividades que
não têm um estatuto profissional definível, mas que podem ser fonte de rendimento, de redução de
custos, ou mesmo do exercício de sua criatividade.
A empresa transfere para a multidão de trabalhadoras uma série de riscos e custos, e conta com uma
dimensão não contabilizável e não paga do trabalho dessas mulheres. O espaço da casa, o ambiente
de trabalho, o investimento em produtos para uso próprio como meio de venda, as relações pessoais
funcionam como vetores para venda e também para a promoção da marca. Mas o que mais nos
interessa aqui é perceber a atual adesão de 1,4 milhão de mulheres, somente no Brasil, somente para
uma empresa, ao trabalho amador. O trabalho sem forma trabalho, sem estatuto de trabalho, que
opera como um meio de complemento de renda, como um exercício de uma identidade profissional
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indefinida, como facilitador para o consumo. Do lado da empresa, o trabalho amador informal está
muito bem amarrado, traduz-se em informação, em uma fábrica que tem sua produção pautada pelo
ritmo das vendas desse exército gigantesco.
O motorista Uber tem com seu trabalho uma relação muito parecida com a da revendedora Natura:
um complemento de renda advindo de uma atividade que não confere um estatuto profissional, um
bico, um trabalho amador, que utiliza o próprio carro, a destreza do motorista, suas estratégias
pessoais e sua disponibilidade para o trabalho.
Olhando para esses trabalhadores, vemos em ato a viração, tema atual e ao mesmo tempo constitutivo
do mercado de trabalho brasileiro desde sua formação. A viração – e remeto-me ao uso que Vera
Telles fazia do termo já no início dos anos 200013 – é pouco tratada nos estudos do trabalho
brasileiros, inclusive na produção e análise de dados sobre emprego/desemprego; entretanto é
constitutiva da vida e da sobrevivência dos trabalhadores de baixa qualificação e rendimento. O
“viver por um fio”14 das periferias brasileiras significa um constante agarrar-se às oportunidades,
que em termos técnicos se traduz na alta rotatividade do mercado de trabalho brasileiro, no trânsito
permanente entre trabalho formal e informal (como demonstra Adalberto Cardoso15), na combinação
de bicos, programas sociais, atividades ilícitas e empregos (ver pesquisas do viver na periferia, em
especial os coordenados por Gabriel Feltran, Vera Telles e Cibele Rizek16). A trajetória profissional
dos motoboys entrevistados deixa isso evidente. Hoje motoboy-celetista e entregador de pizza,
amanhã motofretista-MEI, ontem montador em fábrica de sapatos, manobrista, pizzaiolo, feirante,
funileiro, funcionário de lava-rápido. Motogirl hoje, antes diarista, copeira, coordenadora de clínica
para viciados em drogas. Motofretista, serralheiro, repositor de mercadorias; confeiteiro e também
ajudante de pedreiro. Proprietário de loja de bebidas, trabalhador na roça, funcionário do Banco do
Brasil e hoje motofretista autônomo. Motoboy hoje, antes faxineiro, porteiro e cobrador de ônibus.
Este é o movimento com que grande parte dos brasileiros tecem o mundo do trabalho.
Mas a viração agora já tem nome internacional e globalizado, seguimos na vanguarda do atraso: a gig
economy17 nomeia hoje o mercado movido por essa imensidão de trabalhadores que aderem ao
trabalho instável, sem identidade definida, que transitam entre ser bicos ou atividades para as quais
nem sabemos bem nomear. A plataforma online da empresa Airbnb, por exemplo, hoje conta com a
adesão de milhares de usuários que disponibilizam seus domicílios para aluguel instantâneo e
passageiro; atuando como microempreendedores amadores, tornam-se uma espécie de
administradores de suas próprias casas. A gig economy é feita de serviços remunerados, que mal têm a
forma trabalho, que contam com o engajamento do trabalhador-usuário, com seu próprio
gerenciamento e definição de suas estratégias pessoais. A gig economy dá nome a uma multidão de
trabalhadores just-in-time (como já vislumbrava Francisco de Oliveira no início dos anos 2000 ou
Naomi Klein ao mapear o caminho das marcas até os trabalhadores)18, que aderem de forma instável
e sempre transitória, como meio de sobrevivência e por outras motivações subjetivas que precisam ser
mais bem compreendidas, às mais diversas ocupações e atividades. Entretanto, essas atividades estão
subsumidas, sob formas de controle e expropriação ao mesmo tempo evidentes e pouco localizáveis.
A chamada descartabilidade social também é produtiva. Ao menos por enquanto.
NOTAS
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11
Oliveira, F. Crítica à razão dualista/ O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
12
Ver seções “O flex é feminino” e “O sistema de vendas diretas e a exploração do trabalho tipicamente
feminino” em Abílio, L.C. Sem maquiagem.., cit.
13
Telles, V. Mutações do trabalho e experiência urbana. Tempo social, n.18, v.1, 2006, p. 173-95.
14
Castel, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998.
15
Cardoso, A. Ensaios de sociologia do mercado de trabalho brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2013.
16
CABANES, R.; GEORGES, I.; RIZEK, C. & TELLES, V (orgs.). Saídas de emergência: Ganhar/perder
a vida na periferia de São Paulo (http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/saidas-de-
emergencia). São Paulo: Boitempo, 2011; FELTRAN, G. O valor dos pobres. Cadernos CRH, Salvador,
v.27, n.72, p. 495-512, Dez. 2014; TELLES, V. S.; CABANES, R. (Orgs.). Nas Tramas da Cidade –
trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006.
17
Gig economy é o termo que hoje nomeia a sobrevivência por meio de bicos, contratos de trabalho
temporário, atividades como a do Uber. O termo dá a dimensão da globalização da viração (ver aqui
(https://www.wired.com/insights/2013/09/the-gig-economy-the-force-that-could-save-the-american-
worker/) e aqui (https://www.theguardian.com/commentisfree/2015/jul/26/will-we-get-by-gig-economy)).
18
Oliveira, F. Passagem na neblina. In: Stédile, J., Genoíno, J. (orgs.) Classes sociais em mudança e luta
pelo socialismo. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. Klein, N. Sem logo: a tirania das marcas em um
planeta vendido. São Paulo: Record, 2002.
***
***
Ludmilla Costhek Abílio é Doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP. Possui graduação em
Ciências Sociais pela FFLCH-USP (2001) e mestrado em Sociologia pela mesma instituição (2005).
Atualmente atua como pesquisadora visitante no CESIT Unicamp. É autora do premiado Sem
maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos
(http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/Titulos/visualizar/sem-maquiagem) (Boitempo, 2014).
fexibilização
precarização
Trabalho
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9. PAULO CESAR SILVA // 13/10/2017 às 9:08 pm // Responder
Excelente analise. Parabens!!! A saída ao meu ver é que os sindicatos e associação de trabalhadores
se organizem. Novos tempos, velhas explorações.
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