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08/03/2024, 09:53 O 8 de janeiro e a farsa no espelho | Passa Palavra

O 8 de janeiro e a farsa no espelho


Se o 8 de janeiro, como marco do início da reconstrução da extrema-
direita, soa como farsa, talvez seja o espelho o que se enxerga.

07/03/2024

Por Alan Fernandes

“Há muitos anos, quando instado dos porquês da eficácia das ideologias no
capitalismo, um militante da minha geração sacou da caderneta e disparou um
dos mais conhecidos axiomas do marxismo, “a ideologia dominante é a
ideologia da classe dominante”. […] No bom espírito da tradição marxista
ortodoxa é relativamente comum confundir os resultados com os processos
subjacentes de produção das ideologias, com as premissas. Pode-se avançar
com a formulação de que as ideologias combinam a inevitável produção de
significados, necessários e inevitáveis para a vida em sociedade, com as

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constelações de conflitos e relações entre as classes sociais e as instituições.


Mas este é, ainda, um nível muito genérico, apesar de adicionar um elemento
relevante: a produção simbólica. Este elemento é importante porque chama a
atenção para dois aspetos. Por um lado, confere alguma autonomia ao domínio
ideológico, permitindo perceber que a ideologia não se resume a um
epifenómeno da infraestrutura económica. Por outro lado, permite refutar as
teses identitaristas de que tudo seria político.”

– João Aguiar em “Tempo: tecido das ideologias”

Para qualquer pessoa prudente, o 8 de janeiro deixou marcas políticas


profundas. O período de quatro anos em que Bolsonaro governou o país não dá
conta, por si só, de explicar como o evento se tornou possível. Duas
perspectivas – não apenas duas, mas que destaco pela viabilidade deste
modesto artigo – parecem se confrontar no que diz respeito aos efeitos
práticos e simbólicos do evento em questão. A primeira aponta em um
verdadeiro fundo de verdade, onde Bolsonaro constituiu nos últimos anos
aparato eficaz para corroer as instituições por dentro e eventualmente ser
reeleito democraticamente. O círculo político que o rodeia e a multidão em
cólera das motociatas e das igrejas simultaneamente esperavam o resultado
contrário e se mostraram confiantes em um golpe de estado que mantivesse
Jair na cadeira de presidente sob o aval das Forças Armadas em uma eventual
Garantia da Lei e da Ordem. Estas foram as circunstâncias, mas a tese era a de
que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) seria capaz de frear o bolsonarismo fazendo
uma aposta reversa do vácuo aberto pelas Jornadas de Junho e a revolta dos
coxinhas. Para (re)costurar o consenso aberto na redemocratização, a
esperança de toda sorte de democratas, entre eles Youtubers, populistas de
esquerda, ex-anti-petistas, artistas e personalidades do meio jornalístico, era
de que seria preciso fazer as pazes com a história. Dizem os defensores da
outra tese que a máquina conciliatória petista faria uma simetria entre a

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própria sobrevivência política e a restauração da democracia, modo de governo


este que manteve-se intacto em sua estrutura, diga-se de passagem, ainda que
seus principais atores entre 2019 e 2022, no meu parecer, possam ser
fielmente identificados como fascistas.

A ascensão bolsonarista pariu quase de imediato um primogênito democrata.


Daí a popularização do “Ele não”, “fulanos antifascistas” e por aí vai. Os
defensores da segunda tese tornaram-se o filho do meio, que não é o caçula,
pois não é o favorito, e é menos solicitado, já que não é o primogênito. A tese
seguinte na verdade é a reciclagem de um debate comum, da ortodoxia
marxista segundo a qual a ideologia é contingente da infra-estrutura. No bom
português artigos como o 8 de Janeiro e as Faces do Capital de Hugo Alves
argumentam que o horizonte golpista no Brasil não poderia ser levado a sério
por respeitar a racionalidade própria do regime de acumulação capitalista.

O argumento é o seguinte: o intento golpista falhou, não pelo que se propunha


a fazer, não pelos seus limites intrínsecos, mas porque o grande capital não
queria. Já de cara confunde-se os capitalistas em abstrato com o poder
exercido pelos gestores na vida econômica. Decerto o autor está se referindo
aos detentores de grandes investimentos e ignora o agronegócio, mas mesmo
se argumentasse que os primeiros prevalecem sobre os segundos, teria de
explicar, à luz da sua argumentação sobre a “reprodução ampliada do capital”,
se existe de fato um consenso sobre o fracasso de Bolsonaro na economia, vide
o dissenso entre economistas sobre a condução da economia sob Paulo Guedes.

Também é curioso como os principais jornais e revistas internacionais, como o


Washington Post, o The Guardian (aqui, aqui e aqui) e The Economist,
alertaram sobre o bolsonarismo agora em 2022, alertaram antes, e pouco
puderam fazê-lo para reverter, apesar de serem conhecidos porta-vozes da
intelectualidade capitalista. mas ninguém prudente pode dizer que “O Capital”
queria e não queria ao mesmo tempo alguma coisa, a menos que acreditasse
em teorias conspiratórias sobre o resultado das eleições de 2018. Afinal,

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segundo a argumentação de alguns, se “O Capital” preferisse o impeachment


de Dilma Rousseaf e a prisão de Lula, o governo centro-direita de Michel
Temer não teria segurado o turbilhão político no pós-2013? Se o que fica
implícito é que Bolsonaro contorna o cenário político social, não seria o
fascismo de Bolsonaro a primazia da ideologia sobre a economia? E não teria
vencido não “por causa”, mas “apesar” da economia? Reformulando talvez
mais sinteticamente este ponto: qual a diferença do poder dos capitalistas em
abstrato e o poder dos capitalistas na realidade concreta?

Em editorial publicado em setembro de 2022 a Economist diz: “Se o tribunal


eleitoral brasileiro anunciar a vitória de Lula, os bolsonaristas armados
poderão atacar o tribunal. […] Se houver caos nas ruas, Bolsonaro poderá
invocar poderes de emergência para adiar a entrega do poder.” O editorial não
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poderia ser mais preciso. Já era previsto que Bolsonaro poderia criar
obstáculos à entrega do poder. Nada diferente do apelo popular pelo artigo 142
nas portas dos quartéis e que justificaram a invasão aos 3 poderes.

Como os capitalistas temem a perda do controle concreto, não o abstrato, a


hipótese golpista soa muito “material” para seus porta-vozes. Mas para o
autor de “O 8 de Janeiro e as Faces do Capital”, só existe a ideologia do capital
em abstrato, não a prática de sujeitos em circunstâncias materiais; por isso,
não admite que a escalada repressiva que se seguiu aos bolsonaristas seja
resultado direto da perda de controle discursivo sobre os rumos da conjuntura
brasileira, não uma situação inevitável. É a imprevisibilidade que inaugura um
campo de disputas. Onde resta a confirmação das próprias hipóteses, o espaço
que sobra são aquelas cartilhas e panfletos que ninguém lê.

Manchetes brasileiras com muita frequência apresentam o mercado como uma


entidade impessoal para representar um ponto de vista. Parte dessa armadilha
se encontra também na esquerda que vê o capital como ideologia singular e
eterna, principalmente ignorando que entre as empresas e o aparelho de
estado há interesses ideológicos conflitantes, assumidos na prática concreta
dos gestores.

Outra ilusão é, em sua recusa das eleições como marcador de disputa pelo
poder político e econômico, muito presente na esquerda radical brasileira,
ignorar o que dizem os dados eleitorais em termos de identificação política. De
parte do campo institucional, junto de Jair Bolsonaro, que inicia sua
presidência em 2018 sendo eleito por aproximadamente 58 milhões de votos,
somam-se dezenas de bolsonaristas e simpatizantes eleitos em estados
brasileiros. Só para citar alguns, João Dória (PSDB) em São Paulo, Wilson
Witzel (PSC) no Rio de Janeiro, Romeu Zema (NOVO) em Minas Gerais, Ibaneis
Rocha (MDB) pelo Distrito Federal, Wilson Lima (PSC) no Amazonas, Ronaldo
Caiado (DEM) em Goiás. Isso sem contar os representantes das Forças
Armadas em número recorde desde a ditadura. Já em 2022, com o “mito” fora

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do páreo, surge Tarcísio Gomes (Republicanos) em São Paulo, Cláudio Castro


(PL) assume no Rio de Janeiro, Caiado se reelege no berço do cerrado e do
agronegócio brasileiro, e não menos importante, Ibaneis também se reelege. A
insistência em lembrar deste último é fundamental para compreender os
eventos do 8 de janeiro. Suas tropas, direcionadas ou não a propósitos
golpistas, permitiram a marcha em direção à Praça dos Três Poderes sem
resistência. Só a anuência deles justifica, em termos estratégicos mas pouco
claros, a premissa de que a qualquer momento deveria ser decretada uma GLO,
com as Forças Armadas tomando não só as rédeas da situação, mas colocando
em xeque o resultado das eleições, que, sabe-se agora, Bolsonaro admitiu
abertamente que era inevitável para ele.

Já por fora do campo eleitoral, não só a polícia do DF protagonizou eventos


contundentes nos últimos anos. Em Salvador, durante o contexto de
pandemia, um surto psicótico de um policial inspirou um motim anti-
lockdown, “a favor da liberdade” contra as imposições sanitárias:

Quando um policial militar da Bahia abandonou o posto e dirigiu sozinho por mais de
250 quilômetros até o Farol da Barra, ponto turístico de Salvador, onde disparou tiros de
fuzil para o alto, em meio a gritos contra a violação da “dignidade” e da “honra do
trabalhador”, seu surto foi celebrado nas redes anti-lockdown como um gesto heroico
contra as “ordens ilegais” dos governadores. O fim trágico do soldado, morto em tiroteio
pelos próprios colegas, foi usado por deputados da extrema direita para incitar um
motim na tropa. (HTTPS://NEBLINA.XYZ/MASTERCLASS)

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A defesa das “liberdades”, seja de ir para a rua, tomar cloroquina, abrir seu
comércio, não foi defendida exclusivamente pelo bolsonarismo, mas teve nele
sua principal força motriz, construindo um verdadeiro ecossistema de
extrema-direita (Ver também aqui e aqui). A luta pelas coordenadas barreiras
sanitárias foi ofuscada pelas revoltas anti-lockdown nos centros urbanos e a
luta invisível pela retomada econômica: o pastor que migrava seu culto para
edifícios em que era permitido o “serviço essencial”, o vendedor que passou a
vender itens da cesta básica para não fechar seu comércio, os personal trainers
que levavam a atividade física para as praças e lares brasileiros, as casas de
shows que promoviam “serenidade” contra os temores da morte iminente.
Apesar de ser possível também afirmar que nem todos esses atores são

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bolsonaristas de carteirinha, é precisamente a confluência que permite a tal


ecossistema multiplicar sua base militante.

E hoje? Segundo o Datafolha, somente 7% dos eleitores que se identificavam


como bolsonaristas extremos mudaram de ideia. Percentual 1% superior ao
dos que se arrependem de terem teclado o “13”. Quem são estas pessoas?
Segundo a mesma pesquisa, pessoas de renda de 5 a 10 salários mínimos,
evangélicos, das regiões Sul, Norte e Centro-Oeste. É precisamente na região
da Amazônia Legal que está concentrado grande parte do agronegócio
brasileiro, setor este grato pelos 31 bilhões enviados em 2022 pelo BNDES e
fundos constitucionais. Parte do setor teria devolvido a gentileza no 8 de
janeiro, revela a ABIN. Ainda sobre o eixo endógeno do fascismo, é relevante
acrescentar que o número de CACs subiu pelo menos 6 vezes só durante a
gestão de Bolsonaro [1]. Ainda no início de sua gestão, o decreto nº 9.785, de 7
de maio de 2019, facilita a aquisição de armas para os “CACs, pessoas
residentes em área rural, profissionais de imprensa que atuem na cobertura
policial, motoristas de empresas e transportadores autônomos de cargas,
funcionários de empresas de segurança privada e de transporte de valores,
dirigentes de clubes de tiro, conselheiros tutelares e agentes de trânsito.
Agentes públicos, inclusive inativos de diversas áreas ligadas à segurança
pública, ao sistema penitenciário, socioeducativo e judicial também passam a
ter o porte de armas facilitado”. Parte deste material bélico não tardaria a
chegar às milícias urbanas, onde a expressão fidedigna de uma ditadura se
aplica igualmente à rotina econômica das regiões por elas ocupadas. Dentre os
presos no 8 de janeiro, pelo menos 11 são (ou pelo menos eram habilitados
como) CACs. Não deve passar despercebido também a intransigência de figuras
bolsonaristas ao recusarem-se a andar desarmadas em período eleitoral, além
dos casos de políticos que escondem armas irregulares, vide os casos de Carla
Zambelli e Valdemar da Costa Neto.

Por último, mas não menos importante, um componente central para o


bolsonarismo, pelo menos desde 2018, são os caminhoneiros. Após a eleição de

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Lula, e paralelamente aos acampamentos nos quartéis, a categoria paralisou


ao todo 421 rodovias. As consequências só não foram mais devastadoras do que
a greve durante o Governo Temer — quando “o capital” insistentemente
condenou o movimento e de onde nasce outra figura importante hoje, o
deputado Janones. Que dizer, também, dos flagrantes de amistosidade entre
agentes da Polícia Rodoviária Federal e os manifestantes obstruindo vias?

Entre as consequências da greve em 2018, um artigo do Passa Palavra, indicado


acima, aponta:

Os impactos econômicos fizeram-se sentir imediatamente. Os bloqueios levaram, por


exemplo, à paralisação das atividades em frigoríficos, sobretudo no estado de Mato
Grosso, responsável por 16% da produção nacional. Segundo um representante do setor,
todos os estabelecimentos no estado ficaram com 50% da produção comprometida, com
prejuízos variando entre R$ 20.000,00 e R$ 200.000,00 por dia de paralisação. Já se
fizeram sentir também na indústria de laticínios, que em 2018 teve um prejuízo
estimado em R$ 1 bilhão, com 300 milhões de litros de leite descartados. Outro setor já
atingido é o dos supermercados, com 70% dos estabelecimentos afetados em pelo menos
7 estados brasileiros. E tudo indica que o prosseguimento dos bloqueios atingirá outros
serviços e indústrias, impactando duramente na vida e saúde da população, como nos
serviços de saúde: a Associação Brasileira da Indústria Química (ABIQUIM) e a
Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (ABRAMED) têm alertado para o risco de
falta de oxigênio, reagentes e contrastes. Os bloqueios também afetaram a produção de
vacinas, viagens aéreas, postos de gasolina, levaram à paralisação de plantas de
montadoras de veículos, afetaram o escoamento de matérias-primas utilizadas na
construção civil e causaram diversos outros problemas.

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Que os capitalistas (reais, não abstratos) fiquem de cabelo em pé, e que os


bolsonaristas aceitem como efeito colateral tamanho prejuízo para a indústria,
só ajuda a confirmar o movimento como aquilo que é: “uma revolta dentro da
ordem”. Com todos estes elementos descritos, denunciados por uma carta
insossa pela “democracia”, contra a opinião pública internacional que
advertiu contra tal intento, será que começa a entrar o fundo de verdade da
tese da “farsa”? Como pode o bolsonarismo “fraquejar” precisamente quando
sua demonstração de força parece inevitável? Como a assimilação total do 7 de
Setembro, da Marcha para Jesus, e de todas as revoltas relevantes
protagonizadas pela direita se converteu em um ritual mórbido? Num suplício
por atenção ao seu líder então escondido nas terras do Mickey Mouse?

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É que, como diz um artigo brilhante, o silêncio de Bolsonaro é em verdade um


sussurro. Impede as peças do tabuleiro de se voltarem contra ele e sustenta
toda a sorte de militantes do campo institucional ou não que a ele são leais:

Para posicionar-se no cenário político ao fim de seu mandato e evitar o ostracismo,


Bolsonaro conta com duas armas principais. Tem um braço institucional, composto
pelos milhares de militares espalhados em cargos públicos por todo o Executivo, pela
Polícia Rodoviária Federal, por parte da Polícia Federal — que é mais “lavajatista” que
bolsonarista, distinção que não se deve esquecer — e pela bancada parlamentar recorde
recém-eleita na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Tem, também, um braço
militante, sem qualquer laço orgânico além dos grupos de WhatsApp e Telegram,
respondendo ao sabor do momento a certos chefes mais reconhecidos. O próprio
Bolsonaro tende a agir, agora que será sucedido por Lula, como uma espécie de
vertedouro: caso o próximo governo, e sobretudo os tribunais, ajam de maneira a isolar
ou eliminar do tabuleiro político o movimento radical por ele capitaneado, Bolsonaro
poderá orientar — desta vez sem ambiguidades — a massa enraivecida a tomar as ruas,
colocando contra a parede o governo, os tribunais e os militares, que se arrogam a
função de mantenedores da ordem. Caso isso não ocorra, Bolsonaro continuará agindo
dentro da institucionalidade, mas criando constrangimentos ou tentando obstruir o
governo sempre que possível, minando sua credibilidade e governabilidade e, é claro,
produzindo desinformação. Episódios de violência e intimidação aqui e ali
representariam, assim, uma tentativa de manter a chama do radicalismo acesa, mas sob
controle, como numa forja, Bolsonaro tendo as mãos sobre o fole.

Em suma, parece que o sacrifício pessoal e de grande parte de seus apoiadores


civis, para não sacrificar todo o espectro que o ronda, virou a tônica para dar
sobrevida ao bolsonarismo, difuso hoje pelos seus recentes fracassos — como
a CPI dos atos antidemocráticos, a CPI do MST e o inquérito das fake news,
sem sequer entrar no mérito da repercussão da minuta do golpe de Anderson
Torres e do depoimento do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid.
Mas chama atenção agora o discurso de 25 de fevereiro deste ano em que
Bolsonaro fala pela primeira vez em anistia aos presos do 8 de Janeiro, citando
que o Brasil outrora a concedeu para quem cometera “barbaridades”.
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O Judiciário brasileiro condenou, a pedido da PF, grande parte dos agitadores


do 8 de janeiro, financiadores e propagandistas diretos e indiretos. confirma
ainda meu ponto: o cerco fechado a Bolsonaro e seus aliados demonstra que a
intenção de um golpe nunca foi tão real quanto em outubro. Há muito que
ainda ficou fora do vídeo vazado pela PF. Não importa muito se intelectuais de
esquerda definem como fascistas ou não os bolsonaristas radicais. O fato de
verdade é que a única força “antifascista” que existe ainda neste país são as
próprias instituições do aparelho de estado. Exceptuando, é claro, um episódio
em que torcidas organizadas e militantes do MST tensionaram com
caminhoneiros que montavam barricadas contra a eleição de Lula. Mais
recentemente o número de condenados pelos antidemocráticos chegou ao
terceiro dígito. Lá encontram-se pessoa ligadas ao agro, cidadãos comuns de
classe média, pequenos empresários, mas os principais mentores,
exceptuando os novos convocados para prestar esclarecimentos à PF, seguem
em liberdade, muitos com seus mandatos intactos e atuantes (ver sobretudo
aqui). Alves crê estar endereçando seu artigo aos histéricos do campo
democrático-popular, mas ao não se sujeitar a análise mais atenciosa sobre o
significado ideológico do bolsonarismo, soa descuido para todos nós que
acompanhamos as últimas notícias com tanta apreensão. Quem não deduziu os
eventos do 8 de janeiro à luz d’O Capital de Marx adotou psicologismo,
subentende-se.

Se o bolsonarismo como movimento social declinou também é outra incógnita.


De fato ele ainda sobrevive nas redes de articulação descentralizadas e de
difícil identificação, pois remontam a pautas crescentes na sociedade, como
tratamento precoce, Igrejas, comunidades terapêuticas, milícias, justiceiros,
clubes de tiro, homeschooling, entre outros. A democracia parlamentar
coaduna sem contradição com a ditadura nas empresas, com o ritmo crescente
de trabalho, com a competição violenta entre os próprios trabalhadores, onde
estamos (esquerda) mais vulneráveis, exaustos, e em menor número,
distantes culturalmente dessa sanha irracional e incapazes de reatar os
almoços em família, limitados a celebrar e ovacionar a repressão antifascista,
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arruinando um bom feriado com quem pensa diferente de nós. Quando Safatle,
aliás, escreveu que a esquerda morreu, só esqueceu-se de que alguém
precisaria estar vivo para fazer o testamento. A mesma coerência que permite
enxergar o capital como sujeito ativo e encara o movimento social de extrema-
direita como contingente, passivo, pode ser perfeitamente aplicado à própria
identidade política da esquerda, quando esta mesma não se reinventa. Assim
ela padece, vira sujeito somente quando citada em artigos acadêmicos.

O artigo publicado no Crítica Desapiedada não questiona por que ou como


Bolsonaro e o bolsonarismo se deixaram abater tão fatalmente, sequer
acrescenta algo para o plano da reflexão e ação. Ao invés disso, limita-se a
insistir que nunca houve risco real de golpe. Se o 8 de janeiro, como marco do
início da reconstrução da extrema-direita, soa como farsa, talvez seja o
espelho o que se enxerga.

Nota:

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[1] Se considerarmos o período de 2017 para cá, com a flexibilização ocorrida


no Governo Temer, o número de CACs subiu 12 vezes.

As artes que ilustram o texto são da autoria de Thiago Boecan (1995-).

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