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O Serviço Social crítico no

atual contexto de
redemocratização da
América Latina
Critical Social Work in the current context of
Latin American redemocratization

R esumo A bstract
O artigo busca analisar as parti- This article analyses the particularities
cularidades do processo de redemo- of the redemocratization process of Latin
cratização dos regimes políticos latino- American political regimes, in an attempt
americanos, tentando contribuir para o to contribute to the understanding of
esclarecimento de fenômenos hoje centrais phenomenon central to our societies today.
na compreensão destas sociedades e, Since the 1980’s, the attempt by Latin
conseqüentemente, do solo onde se America to reorganize its public life in
desenvolvem as práticas do Serviço Social. conformity with liberal democratic precepts
Desde os anos 1980, a tentativa da América demonstrated an inequality of political
Latina em reorganizar sua vida pública em forces in the negotiation of this transition,
conformidade com os preceitos demo- where political advances were accom-
cráticos liberais demonstrou uma desi- panied by the deterioration of living
gualdade de forças políticas na negociação conditions among national majorities.
desta transição, onde avanços políticos Since critical Social Work historically arose
foram acompanhados pelo agravamento das in the framework of democratic regulations,
condições de vida das maiorias nacionais. the formation of the profession was
Como o Serviço Social crítico surge - intrinsically related to the weaknesses of
historicamente - no marco de ordenamentos this process, from which emerge new
democráticos, a conformação da profissão challenges to the construction of the Douglas Ribeiro Barboza
relaciona-se intrinsecamente com as identity of social workers, principally in the
debilidades deste processo, onde emergem debate over the meaning of the practice, Assistente Social.
novos desafios para construção da of the process of critical knowledge and of
Mestrando em Serviço Social, Univer-
identidade dos assistentes sociais, the redimensioning of the relevant
sidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
principalmente no debate do sentido da sua proposals in the defense of a socially
prática, do processo de conhecimento crítico necessary project in the current Latin
e no redimensionamento de propostas American context. Silene de Moraes Freire
relevantes na defesa de um projeto so-
cialmente necessário no contexto latino- Mestre em Serviço Social pela Univer-
americano atual. sidade Federal do Rio de Janeiro –UFRJ.
Palavras-chave: América Latina, pro- Key words: Latin America, political Doutora em Sociologia pela Universidade
cessos políticos, democracia, Serviço processes, democracy, critical Social do Estado de São Paulo – USP.
Social crítico. Work.
Professora da Faculdade de Serviço Social
da UERJ.

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228 Douglas Ribeiro Barboza e Silene de Moraes Freire

Introdução sava-se se haviam acabado por colapso, como


na Argentina; por uma transição pelo alto, como
no Brasil; e de que forma essas diferentes mo-

C
omo se sabe, o Serviço Social crítico surge, dalidades de transição afetariam a democracia
em termos históricos, no marco de que se erguia. Pode-se, contudo, pensar a tran-
ordenamentos democráticos, e a capacidade sição como movimento, como momento provisó-
transformadora dessa prática profissional acaba por se re- rio, não planejado. Por isso não haveria mode-
lacionar intrinsecamente com as debilidades do incompleto los comparativos daquilo que efetivamente não
e precário processo de democratização dos regimes políti- existe conceitualmente como fenômeno político
cos latino-americanos. Seguindo as análises de Palma acabado (D’ARAÚJO; CASTRO, 2000, p. 217-218).
(1986), a instituição da democracia -tal como concebida e
impulsionada pela burguesia de formação liberal– é o “cam- A onda de democratização dos sistemas políticos, ma-
po” onde se move o exercício das profissões, onde se defi- nifestada no Sul da Europa em meados da década de 70 e
ne a situação e as necessidades dos grupos populares e estendida posteriormente à América Latina, esteve inti-
onde se organiza e se dinamiza o movimento da classe tra- mamente vinculada tanto “às profundas mudanças estru-
balhadora. Sendo assim, o conhecimento desta democracia turais políticas, econômicas e estratégicas desencadeadas
(suas contradições e alternativas) permite a tentativa de no mundo”, quanto “às pressões exercidas por poderosos
determinar ações possíveis e reais, superando tanto o oti- atores internacionais” (governos dos Estados centrais,
mismo quanto o fatalismo ingênuo, onde o Serviço Social, forças econômicas transnacionais, organizações
tal como se apresenta, pode estar mais articulado com a pro- intergovernamentais, organizações não governamentais e
blemática desses processos democráticos do que se pode movimentos sociais), “em função das mais diversas moti-
perceber em sua aparência. Apesar dos assistentes sociais, vações” (VACS, 1994 apud GÓMEZ, 2000). As novas de-
no exercício da sua profissão, não possuírem a capacidade mocracias que se constituiriam se afastariam de um mo-
de alterar qualitativamente as “regras do jogo” democráti- delo clássico e desejado e tenderiam muito mais a uma
cas, “influem sobre certas realidades que condicionam as chamada “democracia não consolidada”; democracias que
iniciativas que, contrárias ou favoráveis às mudanças, con- permanecem sempre em estado inacabado, e que sempre
duzem a outros níveis”, e que a orientação impostas àquelas são, por definição, aperfeiçoáveis (GÓMEZ, 2000, p. 93).
realidades poderia, indiretamente, “facilitar ou dificultar as Para melhor entendermos esse processo, podemos dis-
decisões pelas mudanças” (PALMA, 1986). tinguir duas visões claramente diferenciáveis no resgate
Considerando essas premissas, faz-se mister compre- das diversas abordagens do conceito de democracia. A
ender as peculiaridades da redemocratização da América primeira, assume a democracia como uma forma de rela-
Latina e suas influências na construção do atual cenário ção política que permite a uma maior parte da sociedade
sociopolítico da região, por entender-se que essa compre- decidir (e não só participar) sobre seu presente e futuro,
ensão é crucial para o fortalecimento da perspectiva críti- tendendo a um desenvolvimento da autonomia dos perso-
ca do Serviço Social latino-americano. nagens num processo crescente de emancipação huma-
na. Esta, naturalmente, associada a níveis também cres-
centes de igualdade social, como meio e como fim do pro-
1 As particularidades do “ressurgimento” das cesso de democratização. A democracia implica e gera
democracias na América Latina processos de transformações e rupturas com uma ordem
social de profunda desigualdade, e injustiça, como é, par-
Ao analisarmos as discussões acerca da incompleta e ticularmente, o caso latino-americano. Sua estabilidade
precária democratização dos regimes políticos latino-ame- como regime político e como relação social não se funda-
ricanos, podemos perceber uma propensão muito grande, menta na ausência de conflitos, mas sim se representa
dentro das ciências sociais, em debater e examinar por que legitimamente nas diferenças e contradições sociais para
certos países são democráticos e outros não. Esta ênfase processar a transformação da sociedade que aspira a
em analisar se a saída de regimes autoritários afetava ou maioria da população. A segunda visão de democracia é a
não os novos regimes que nasciam gerou uma grave ten- que a entende somente como um método para adminis-
dência de se supor que a transição levaria necessariamen- trar politicamente as relações existentes de poder para
te à instauração da democracia, mas a história – principal- conservá-las; de um modo que a maior parte da socieda-
mente a latino-americana – provou o inverso. de eleja um reduzido grupo de líderes, que, com base em
um acordo sobre a ordem social a conservar, tomará as
Algumas pessoas diziam que o modo pela qual decisões por essa maioria. Esta segunda concepção de
as ditaduras caíam exercia impacto muito gran- democracia surge nas primeiras décadas do século XX,
de sobre a democracia que se constituía. Anali- como um antídoto capitalista à crescente participação po-

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lítica das massas exploradas e a sua maior presença mocracia. A teoria destas transições se fundamenta numa
institucional através da consagração do sufrágio universal autonomia absoluta do político frente ao econômico; o pri-
no primeiro pós-guerra. meiro como um campo de negociação possível, com re-
Esta síntese conservadora de democracia de elites gras precisas, mas que pode se transformar à margem do
implica num sistema representativo e de partidos como o segundo, que é inegociável. Ou seja, quanto menos se afe-
núcleo central do método de administração política das tarem as questões estruturais fundamentais, mais segura
relações de poder, que deve funcionar como um mercado seria a transição política. Poderia se negociar os espaços
de equilíbrio entre a oferta do sistema e as demandas da de acesso ao sistema político, poderia se modificar as si-
sociedade. O equilíbrio se traduzirá em políticas públicas tuações econômicas e se ampliar as participações para
que não afetem a lógica e a capacidade crescente de acu- eleger as elites, mantendo as desigualdades sociais2 .
mulação. Transpondo esses pontos para uma abordagem A crença prevalecente nas ciências sociais e nas nas-
das democracias na América Latina, é importante ressal- centes democracias era a de que havia chegado o mo-
tarmos que esta região mento de despreocupar-se das questões mais ligadas ao
funcionamento de nossos capitalismos e da estrutura de
[...] em seus quase dois séculos de vida inde- classe (como a marginalidade social, a extrema pobreza,
pendente não conheceu uma única revolução a decadência urbana e regional), pois eram problemas dis-
burguesa que tivesse culminado na instauração tantes da real preocupação dos novos tempos: eleições,
de um regime democrático estável. Houve algu- partidos e regimes políticos. Sendo assim, os avanços po-
mas revoluções burguesas, é certo: no México líticos experimentados pela região nos anos 1980 foram
em 1910-1917, na Guatemala em 1844, na Bo- acompanhados por um agravamento marcante das condi-
lívia em 1952, e até no Brasil a partir de 1964. ções de vida das grandes maiorias nacionais. Este modelo
Mas nenhuma delas conclui suas ‘tarefas pen- de democracia acabou se tornando efetivamente num me-
dentes’, estabelecendo um regime democrático: canismo de governabilidade, na medida em que filtra e
sua preocupação, ao contrário, foi consolidar controla as demandas sociais até níveis tolerados pelo sis-
o funcionamento do modo de produção capita- tema, e com isso preserva os conflitos, numa concepção
lista, não introduzir a democracia burguesa. Sua de que somente com este referencial é que se pode assi-
meta e seu objetivo era o capitalismo, não a de- milar a democracia com a governabilidade nos tempos
mocracia. O molde autoritário do capitalismo atuais. Esses aspectos nos mostram a impossibilidade de
latino-americano tem raízes muito profundas, reflexão das democracias da América Latina sobre a con-
que derivam de nosso passado colonial e da cepção de democracia em geral – que é inconcebível à
modalidade reacionária e dependente com a margem de uma análise sobre a estrutura e dinâmica do
qual nossas sociedades se integraram ao capi- capitalismo latino-americano e, mais detalhadamente, so-
talismo (BORÓN, 1995, p. 64). bre a natureza dos processos de ajuste estrutural e
refundação capitalista em curso na região. Ao invés de se
Podemos dizer que, desde os anos 1980, apesar de a tratar a democracia em sua abstração, o mais viável é
América Latina mergulhar – novamente – numa tentativa examinar a forma, as condições e os limites da democra-
de organização da sua vida pública em acordo com os tização em sociedades como a capitalista, que se fundam
preceitos democráticos, nenhuma ditadura latino-ameri- em princípios constitutivos antagônicos.
cana, exceto a da Nicarágua, terminou por uma derrota Apesar de valorizarmos a transcendência da demo-
clara, o que significou ter que negociar as condições da cracia como forma de governo e como modo de vida –
transição com uma evidente desigualdade de forças polí- principalmente pelas lutas latino-americanas para
ticas. Depois de anos de terror do Estado, um certo “de- conquistá-la – é importante não esquecermos que, em sua
sespero” pela recuperação das liberdades individuais e concretização histórica, ela sempre se encontra interliga-
públicas permitiu às forças dominantes impor suas regras da a uma estrutura de dominação classista, que impõe
de jogo político – mediante uma permanente chantagem à rígidos limites às suas potencialidades representativas e,
população sobre os riscos de um regresso autoritário caso em maior medida, às possibilidades de autogoverno da
a conflitividade e as demandas sociais se desenvolves- sociedade civil (BORÓN, 1995). Tão incorreto é conside-
sem1 – e empregar uma ofensiva ideológica para con- rar também que o desenvolvimento da democracia na
vencer da inevitabilidade das transições distintas e sepa- América Latina se fecha apenas na influência dos pro-
radas no tempo: uma, em curso, para recompor o sistema cessos de transição de cada país – pois seria o mesmo
representativo e os espaços de negociação política, com que concluir que a Argentina vive na maior das democra-
tempos e passos determinados com clareza; e outra, de cias possíveis, já que foi o único país onde os militares
início indeterminado, que encararia as demandas sociais abandonaram o poder sob uma brutal derrota (Guerra das
que a população esperava satisfazer com a volta da de- Malvinas), pois a história mais uma vez provou o inverso.

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É importante observar que o condicionamento externo é vres e competitivas, razoável garantia de liberdade de
substantivo para o colapso dessas democracias, para o expressão e associação, etc.) que permitiram a inclusão
seu restabelecimento e para efetivação ou não da formal de milhões de cidadãos no processo de escolha
governabilidade democrática. Desta forma, poderemos das elites políticas encarregadas das decisões coletivas,
desvelar como o impacto da ideologia neoliberal, que acom- ela foi acompanhada, principalmente nas “novas demo-
panha o processo de globalização, tende a afetar o desen- cracias”, por eminentes paradoxos e por relevantes pro-
volvimento destas democracias, principalmente nos paí- blemas, que os discursos triunfais de sua implantação e
ses periféricos. consolidação não conseguem ocultar.
A segunda metade dos anos 1990 foi marcada pelo
início do esgotamento deste potencial hegemônico e pelo
2 Os impactos dos “ajustes neoliberais” no
aprofundamento da crise na região latino-americana (a
desenvolvimento das democracias latino- mais profunda desde 1930), sendo precedidos pela crise
americanas mexicana, em 1994, e refletidos na crise argentina, na
dolarização no Equador e em El Salvador. As políticas de
A crise da dívida dos países latino-americanos, no início ajuste fiscal, que pretendiam retomar o desenvolvimento
da década de 1980, gerou déficits de balança de pagamen- econômico, a criação de empregos e os privilégios das
tos que tornaram inviáveis os projetos de desenvolvimento políticas sociais, deixaram de ser solução e tornaram-se a
para a região, onde seus governos se dedicaram funda- causa da crise, desequilibrando econômica e financeira-
mentalmente a buscar saldos comerciais que pudessem di- mente o continente, deixando os Estados cada vez mais
minuir esses dados (SADER, 2003). Tendo como referênci- enfraquecidos externa e internamente e fragmentando cada
as fundamentais as hiperinflações embutidas nesse proces- vez mais as sociedades, com altos índices de desigualda-
so, os objetivos de desenvolvimento foram substituídos pe- de e de exclusão. Ou seja, o funcionamento da democra-
los de estabilidade monetária, tornando-se a mola mestra cia política na América Latina durante a década de 1990
no processo de semeadura das políticas neoliberais na não superou as próprias fragilidades inaugurais nem mes-
América Latina. A diminuição dos gastos do Estado tor- mo promoveu ou aprofundou a democracia participativa e
nou-se a principal meta dos governos que desejassem su- a democracia econômico-social3 . O que ocorreu realmente
perar a inflação, tendo como algumas medidas recomenda- foi uma acentuação dos processos contrários, como bai-
das a privatização de empresas e a contenção nos gastos xos níveis de participação e mobilização da cidadania,
com o funcionalismo e com serviços sociais do Estado (edu- ampliação da desigualdade econômico-social, instabilida-
cação, habitação, saúde e saneamento básico). Esses ar- de e crise de legitimidade política.
gumentos demonstraram, na sua fase inicial de aplicação, A tendência mundial de generalização da pobreza e de
uma eficácia imediata, cujos efeitos foram rapidamente di- um alarmante aumento da desigualdade econômica e so-
fundidos e reproduzidos pelos órgãos de divulgação inter- cial, não só nos países da periferia do sistema capitalista,
nacionais e retomados localmente pela mídia e pelos qua- mas também entre estes e os países centrais, ficou mais
dros econômico-democráticos do grande capital. perceptível na América Latina, sendo comprovada atra-
O elevado custo social das estratégias “maximalistas” vés de dados compilados por distintas agências nacionais
que orientaram a implementação das reformas econômi- e internacionais, que mostravam como esse fenômeno
cas neoliberais, junto com a conseqüente redução da atingiu países como o Chile, onde, supostamente, o mode-
sindicalização e do poder de barganha dos sindicatos, cor- lo neoliberal teria alcançado o seu êxito mais gritante.
roeram as bases econômicas, organizacionais e ideológi-
cas das classes subalternas e incidiram negativamente na Entre 1980 e 1990 a pobreza piorou como resul-
sua capacidade de mobilização e participação e no apoio tado da crise e das políticas de ajuste, eliminando
aos partidos políticos comprometidos com políticas soci- a maior parte das conquistas alcançadas durante
ais redistributivas. os anos de 1960 e 1970 na redução da pobreza.
Contudo, essa vitória foi mais ideológica e cultural do Estimativas recentes situam o número dos pobres
que econômica. De acordo com Borón (1999), esse triun- no começo da década, dependendo da definição
fo se assenta sobre uma derrota “epocal” das forças po- de pobreza, entre 130 e 196 milhões de pessoas
pulares e das tendências mais profundas da reestruturação [...]. A recessão e o ajuste dos anos oitenta tam-
capitalista se manifestando em várias dimensões. bém aumentaram a desigualdade de renda em
Desta forma, apesar da democratização ter represen- grande parte da região (CEPAL, 1994, p.1).
tado um avanço político significativo na América Latina,
onde países e regiões com pouca ou nenhuma tradição Considerando que um dos requisitos mais relevantes
democrática prévia passaram a reconhecer instituições e da democracia é a existência de um grau bastante avan-
procedimentos (sufrágio universal, eleições regulares, li- çado de igualdade social – e que esta democracia não

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consegue sustentar-se popular em força políti-


sobre sociedades mar- ... a América Latina entra no século co-institucional neste novo
cadas pela desigualdade período. Os triunfos elei-
e pela exclusão – é pos- XXI atravessando a sua pior crise torais de blocos/forças que
sível compreendermos nasceram e se desenvol-
como o processo de nos últimos setenta anos, marcada veram no confronto ao
reconcentração de renda modelo neoliberal mostra-
e de geração de pobre- pela fragilidade de suas economias, ram o crescente descon-
za, tão acentuado como tentamento social frente a
o que caracteriza a rees- pela debilidade de seus Estados e por este modelo, abrindo a
truturação neoliberal la- possibilidade de uma nova
tino-americana, acarre- uma grande diminuição do seu peso tentativa de solução da es-
tou numa extrema debi- querda (após o fracasso
lidade no funcionamento econômico e político no mundo. de 1973) para a crise
dos regimes democráti- hegemônica no continen-
cos na região. Gómez te, nos termos evidencia-
(2000) acredita que esta dos por Sader (2003).
extrema debilidade dos componentes liberais, republica- Porém, entre o fracasso de um modelo e sua efetiva
nos e até mesmo democráticos das “novas democracias” substituição por outro pode existir um espaço de tempo
latino-americanas resulta, também, tanto de processos his- muito grande e demorado, onde se exige um estado de
tóricos complexos e de longa duração, quanto da natureza consciência que ainda não foi verificado na maioria das
e do alcance das experiências ditatoriais ou autoritárias sociedades capitalistas, e que requer a existência de uma
anteriores, sem contar a influência das principais vias per- proposta política que seja socialmente percebida como uma
corridas pelos processos de democratização política na alternativa ao status quo. Como observou Borón, (1999,
região nas duas últimas décadas. p.58) o grave problema que caracteriza a nossa época é
Desta forma, a América Latina entra no século XXI atra- que, “[...] enquanto o neoliberalismo exibe evidentes sin-
vessando a sua pior crise nos últimos setenta anos, marcada tomas de esgotamento, o modelo de substituição ainda não
pela fragilidade de suas economias, pela debilidade de seus aparece no horizonte das sociedades contemporâneas.”
Estados e por uma grande diminuição do seu peso econômi- Esta debilidade da esquerda e das forças de resistênci-
co e político no mundo. Sader (2003) considera que a crise as latino-americanas para enfrentar a tarefa de construção
consiste em aproximadamente duas décadas de programas de um período pós-neoliberal, não conseguindo preencher
de estabilização monetária, de hegemonia liberal, de predo- o vazio entre o esgotamento do modelo hegemônico vigen-
mínio da acumulação financeira, que não levaram país algum te e a capacidade de construção de alternativas ao mesmo,
da região a recuperar o seu atraso na corrida tecnológica, a evidencia-se como um desafio na América Latina5 .
estabilizar e estender regimes democráticos e a diminuir os Sendo assim, o surgimento de novas forças sociais e po-
problemas sociais. Os impactos sociais, políticos e econômi- líticas, bem como o fortalecimento de forças construídas an-
cos desta crise marcaram o futuro da região, enfraquecendo teriormente, tornam o atual contexto um momento histórico
a legitimidade política e ideológica usufruída pelo neoliberalismo particular em que os projetos tanto de continuidade como de
na última década. A incapacidade das políticas neoliberais ruptura com o neoliberalismo se evidenciam de forma mais
postas em prática nas últimas duas décadas aprofundou a concreta. As particularidades entre o desempenho eleitoral
crise social existente, sem conseguir nem retomar o desen- da esquerda e a perda de influência sobre diferentes setores
volvimento nem conquistar estabilidade política, gerando uma populares podem abrir um processo de debate interno sobre
série de crises institucionais4 . suas concepções políticas, mostrando que apesar da resis-
Paralelamente a este processo, a esquerda, que antes apre- tência e dissidência não estarem mortas falta-lhes ainda uma
sentava um quadro de derrota tanto pela impotência quanto articulação sistemática e intransigente, para que não acabem
pela mudança ideológica ao neoliberalismo (e que tinha como colocando em risco toda a acumulação de forças geradas
forças sobreviventes o PRD no México, o PT no Brasil e a nas últimas décadas na oposição a este modelo.
Frente Ampla no Uruguai), passou a ganhar força com o
surgimento de novas formas de resistência, principalmente após
o levante zapatista de Chiapas, no México, em 1994. As vitóri-
3 A nova caracterização da estrutura do
as eleitorais de Hugo Chávez na Venezuela e de Lúcio Gutierrez Estado e das relações Estado-sociedade
no Equador, além da alta votação de Evo Morales na Bolívia e
da Frente Ampla para as Eleições de 2004 no Uruguai, revela- É certo que a debilidade congênita da democracia política
ram a capacidade de transformação da força do movimento nos países latino-americanos assumiu novos traços em de-

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corrência das reformas econômicas neoliberais implementadas Soares (1998), ao elucidar as causas e conseqüênci-
nas últimas décadas pelos governos democraticamente elei- as da redução considerável do gasto social e a respectiva
tos, e que estas reformas, analisadas sob o ângulo da corre- deterioração dos serviços sociais públicos e dos subsídios
lação de forças entre capital e trabalho, implicaram em um ao consumo popular básico, aponta que a adoção de uma
incremento notável do poder econômico, social e político dos política social de cunho neoliberal provoca e acentua a
setores e grupos mais transnacionalizados do capital que são estratificação social, cujos elementos básicos são as desi-
beneficiários diretos de processos de concentração e centra- gualdades – nas condições e na qualidade de trabalho, no
lização. Para Gómez (2000), a estrutura do Estado e as rela- consumo e na proteção social. Ainda, segundo autor, na
ções Estado-sociedade têm se configurado numa direção realidade latino-americana, apesar de não haver uma to-
contrária ao desenvolvimento mais completo da democracia tal ausência de políticas públicas sociais, houve um verda-
política e ao avanço de uma maior democracia participativa deiro desmantelamento – em nome da “necessidade de
e econômico-social, onde as reformas neoliberais debilitam reformas” de programas sociais, muitos dos quais em ple-
exponencialmente as capacidades das instituições estatais no funcionamento e com coberturas razoáveis.
em termos de ação e coordenação geral das políticas públi- Ao tentarmos esclarecer os postulados neoliberais na
cas, minando a ação do Estado enquanto agente de desen- área social, podemos sintetizá-los, basicamente, no
volvimento e integração social, de valorização e eficácia dos pertencimento do bem-estar social ao âmbito privado (suas
serviços públicos e do funcionalismo público, desmontando fontes “naturais” são a família, a comunidade e os serviços
assim as bases da constituição dos atores sociais e da repre- privados), onde o Estado só passa a intervir quando surge a
sentação simbólica coletiva da comunidade política. necessidade de aliviar a pobreza absoluta e de produzir aque-
Com a profunda reestruturação econômica e social e les serviços que o setor privado não pode ou não quer fa-
com o apogeu dos ideais neoliberais, assistiu-se a uma zer. Surge a proposta da substituição de um Estado de Bem-
expansão da mercantilização da vida social que resultou Estar Social por um Estado de Beneficência Pública ou
num perceptível desequilíbrio na relação entre mercado, Assistencialista, onde o ideário neoliberal abole tanto os di-
Estado e sociedade, onde a opressora presença dos mer- reitos sociais e a obrigação da sociedade de garanti-los por
cados e sua hegemonia em setores crescentes da vida meio da ação estatal, como também a universalidade, a igual-
pública contemporânea trouxe à tona a discutível relação dade e a gratuidade dos serviços sociais. As estratégias
de incompatibilidade entre essa hegemonia e a preserva- para essa redução da ação estatal configuram-se em: corte
ção da democracia (BORÓN, 1999). do gasto social (eliminação de programas e redução de
Um dos pontos principais dessa incompatibilidade con- benefícios); focalização do gasto (canalização para os cha-
siste no fato de que a lógica expansiva dos direitos de mados grupos indigentes, que devem “comprovar” a sua
cidadania própria de um modelo democrático se contra- pobreza); privatização da produção de serviços e
põe ao movimento inverso que se origina nos mercados. descentralização dos serviços públicos no nível local.
Seguindo as análises de Borón (1999, p. 36-40), a relativa Gómez (2000) analisa que essas reformas acabaram
capacidade dos sindicatos, dos partidos e das organiza- por materializar a ruptura do padrão histórico
ções representativas de camadas populares em traduzir a “estadocêntrico” de relação entre Estado e sociedade na
sua presença política em benefícios sociais concretos para América Latina (responsável por profundas desigualda-
os trabalhadores foram a base para a progressiva con- des, discriminações e formas de dominação), que vigorou
quista de direitos sociais e econômicos durante a história durante décadas sob o signo da inclusão social, em nome
dos capitalismos democráticos no século XX, cujo resul- do desenvolvimento e da Nação, bem como da incorpora-
tado foi um crescente processo de “socialização de de- ção ao mercado, à cultura e a uma certa idéia de cidada-
mandas” pelo qual um grande número de exigências e nia política e social. Dessa forma, o Estado tornou-se mais
necessidades antes consideradas “privadas” (educação, incapaz de estabelecer e garantir determinadas condições
saúde, seguridade social, etc.) tornaram-se bens coleti- mínimas de exercício efetivo da cidadania democrática
vos, e sua provisão dependeu de uma extrema redefinição consagrada normativamente. Paralelo a este processo, e
do papel exercido pelos Estados nacionais. Porém, na fase como conseqüência das mudanças operadas na correla-
constituída a partir da contra-ofensiva burguesa – a par- ção de forças entre as classes sociais, a pretensa autono-
tir da década de 1970, verifica-se um processo oposto de mia desse Estado se desenvolveu sob signos contrários:
“privatização” ou “mercantilização” dos velhos direitos de ao mesmo tempo em que desaparece em face dos seto-
cidadania, onde os direitos, as demandas e as necessida- res e grupos mais transnacionalizados e financeirizados
des, anteriormente consideradas como assuntos públicos, do capital, transforma-se em ostensiva independência com
transformaram-se em questões individuais diante das quais relação às classes subalternas6 .
os governos de inspiração neoliberal julgam que seu único Refletidas essas questões, segue necessária a apreen-
papel consiste em “criar condições favoráveis para que são quanto aos novos desafios que o atual estágio do pro-
seja o mercado o encarregado a lhes dar uma resposta”. cesso de desenvolvimento capitalista – que tem reforçado

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a fragmentação social, ampliando a diferenciação de clas- Acrescenta-se outros pontos importantes neste con-
ses e as desigualdades sociais e modificando radicalmente texto, como a influência dessas transformações na for-
o mercado de trabalho – traz para os assistentes sociais. mação acadêmica (onde a relação estreita com o merca-
do de trabalho e a idéia da formação técnico-instrumental
é muito forte atualmente em várias Escolas da América
4 A conformação da perspectiva crítica do Latina) e na relação salarial. Emerge a idéia de os assis-
Serviço Social na contemporaneidade tentes sociais serem possuidores de uma prática liberal,
que possam fazer parte de escritórios, vendendo serviços
O projeto neoliberal e o processo de reestruturação privados, via ONG ou outras formas de terceirização do
produtiva nos marcos da mundialização do capital vêm emprego. Há também de se destacar a leitura muito
implicando numa radicalização da questão social, na re- fragmentada da realidade, perdendo-se a visão de totali-
dução das responsabilidades públicas governamentais ante dade, com o ressurgimento de propostas de busca da
as necessidades da maioria da população e na especificidade dentro de uma perspectiva endógena da
potencialização da estratégia de privatização da coisa pú- profissão, incluído o caráter liberal-corporativista9 .
blica (privatizações da saúde, da educação, e das políticas Nesse cenário, o Serviço Social brasileiro tem uma posi-
públicas); cenário esse comum na realidade latino-ameri- ção muito explícita, que vem sendo consolidada no denomi-
cana atual e que exerce influência condicionante na ação nado projeto ético-político, na defesa da responsabilidade do
profissional. O desmonte do Estado nas suas funções so- Estado no âmbito das políticas universais, dos parâmetros da
ciais, nas suas respostas à questão social, implica profun- Constituição de 1988 – que representa um tipo de resposta à
das mudanças nos processos de trabalho, nas formas questão social muito distinta da prática governamental, apli-
organizativas das classes trabalhadoras, nos movimentos cada a partir da década de 9010 . Uma posição de defesa das
sociais. Durante a construção da pesquisa o “Serviço So- políticas sociais, da assistência, da saúde pública, do Sistema
cial na América Latina Contemporânea”7 , pudemos per- Único de Saúde (SUS), da Lei Orgânica da Assistência Soci-
ceber que, estando a profissão inserida num projeto al (LOAS), dos benefícios derivados e previstos nos direitos
hegemônico do capital - o Estado de Bem-Estar Social constitucionais, na preocupação com a descentralização re-
ou suas versões precárias e tardias latino-americanas, as lacionada às decisões e recursos.
mudanças societárias, a mudança de projeto e de estraté- Ampliando as reflexões para o exemplo argentino, é
gia do capital afetam diretamente a mesma, gerando dife- impossível analisar essa questão sem pensar o papel da
rentes respostas que perpassam tanto o enfrentamento às ditadura, não só na fragmentação da sociedade, mas tam-
políticas neoliberais quanto a aceitação complacente das bém no esvaziamento do potencial crítico acadêmico (com
mesmas, em muitos casos vinculados às condições laborais o fechamento de muitas universidades, interrupções de
dos trabalhadores8 . carreiras, muitos exilados), a perda de praticamente uma
Por ser uma profissão que lida com as manifestações geração inteira, o que deixou marcas muito graves na so-
da questão social, essas mudanças societárias têm trans- ciedade argentina. Destaca-se, também, a questão do gran-
formado as características dessas manifestações. Não a de avanço da direita dentro das universidades (o que tam-
questão social, a sua centralidade, pois a contradição capi- bém implicou numa regressão em termos de conteúdo),
tal-trabalho continua presente; mas os seus desdobramen- somada à incapacidade – por razões societárias e da pró-
tos. As suas manifestações têm mudado as características, pria categoria – de se fazer esse “ajuste de contas” com
a sua abrangência é maior, e a sua heterogeneidade. Então, o legado da Reconceituação11 .
nesse sentido, muda também o que alguns autores chamam Dessa forma, aprofunda-se o ecletismo na profissão, a
da matéria da intervenção profissional. superposição de teorias sociais incompatíveis (em termos
de concepções teórico-metodológicas), tem-se um arranjo
Eu diria que essas transformações vêm influen- de técnicas e teorias muito pouco rigorosas. Não existe um
ciando o Serviço Social na medida que elas vêm processo unificado de debate em torno do currículo, sendo
fazendo uma contra-reforma do Estado latino- este diferente em cada unidade acadêmica, não existindo
americano, reduzindo os direitos sociais, redu- um processo de síntese – como tem a categoria brasileira –
zindo a qualidade da prestação dos serviços sobre o código de ética, sobre o currículo12 .
sociais. E como o assistente social é um profis- Analisados todos esses aspectos, torna-se indubitável
sional que trabalha a partir da questão social, o emergir – nesse cenário de intensos processos de mu-
com os direitos sociais e os meios de acessá-los, danças – de alguns desafios que influem diretamente, e
viabilizando à população meios de acesso e de incondicionalmente, à conformação de uma identidade
exercício dos seus direitos, à medida em que esses crítica do Serviço Social na América Latina.
direitos são desmontados isso afeta diretamente A fragmentação imposta pelas derrotas políticas dos
a ação profissional (IAMAMOTO, 2001, p.3). anos 60 e 70 impediu a continuação do intento à articula-

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234 Douglas Ribeiro Barboza e Silene de Moraes Freire

ção e ao aprofundamento do vínculo latino-americano no heterogeneidade que isso possa ter, mantendo vivo o pen-
Serviço Social. Esse novo atual contexto, de maior visibi- samento progressista e o pensamento crítico13 .
lidade das urgências sociais e de expansão de lutas soci- No refletir de todas essas questões, fica clara a impor-
ais diversas na região, possibilita uma retomada deste pen- tância de compreender o atual momento como de neces-
samento, onde o conhecimento – por parte da categoria – sidade de intercâmbio, de tentativa de articulação das for-
das particularidades da realidade dos países da América ças sociais progressistas em busca de uma alternativa ao
Latina é situação primordial para o avanço da condição projeto neoliberal. Reconhecendo que essa luta, além de
de mero discurso. ser uma luta nacional, é, acima de tudo, uma luta latino-
O fortalecimento da dimensão teórico-metodológica e americana, pois as questões com a qual se defrontam os
da dimensão ético-política, que permitam reposicionar a diferentes países da região ultrapassam o ângulo da ques-
profissão com fortes competências e permitam superar a tão particular nacional, e acabam por adotar uma certa
mera instrumentalização das políticas sociais é um outro universalidade que precisa ser reconhecida.
desafio exposto à categoria. A questão da transformação
do Estado, do desmonte dos direitos e das políticas soci-
ais, incide diretamente sobre o espaço socioocupacional
Considerações finais
da profissão. Isto implica para os assistentes sociais em
uma necessidade de se reconhecer como um profissional A crise atual na América Latina está cada vez mais
na atuação das políticas sociais, na luta por uma maior marcada pelas tendências políticas e econômicas deriva-
democratização e pela garantia dos direitos sociais con- das de uma inserção comum no mercado mundial, que in-
quistados (as políticas sociais universais, constitutivas dos duzem à homogeneização básica desses processos no con-
direitos de cidadania como dever do Estado, políticas or- tinente. Porém, as decisões políticas – mediante as quais se
ganizadas a partir do financiamento compulsório da soci- assumem e se enfrentam as contradições engendradas a
edade e não apenas da ação voluntária, a luta pelo modelo partir desta estrutura de produção comum – determinam
de seguridade social inscrito na Constituição de 1988). variantes e processos nacionais que exigem uma maior
Sequer estamos falando na ampliação de direitos, e sim compreensão das similitudes e diferenças de cada país ao
da mera defesa de direitos conquistados, o que é um de- se propor um exercício de análise. Percebe-se, também,
safio que não admite a menor demora nem a menor con- que esse novo estágio do processo de desenvolvimento
cessão, na medida das possibilidades. capitalista tem influenciado a conformação do Serviço So-
Isto recorre à problemática da conciliação da teoria à cial na região. Conforme observou Netto (1996), ninguém
prática, da defasagem entre as bases de fundamentação pode duvidar que o período histórico em que estamos situ-
teórica da profissão e o trabalho de campo. A transição ados é marcado por transformações societárias que afe-
da bagagem teórica acumulada ao enraizamento da pro- tam diretamente o conjunto da vida social e incidem forte-
fissão na realidade se correlaciona – não unicamente, mas mente sobre as profissões, suas áreas de intervenção, seus
de forma relevante– à necessidade de conhecimento das suportes de conhecimento e de implementação, suas funci-
diversas tendências teórico-metodológicas e à capacida- onalidades, etc. São as conjunturas, de rápidas e intensas
de de se aprofundar e defender alguma delas para uma transformações societárias, que constituem o lócus privile-
possível superação do ecletismo existente na formação giado para o processamento de alterações profissionais. O
acadêmica. Com a clara ofensiva neoconservadora do desafio consiste em determinar as mediações que conectam
pensamento único hegemônico, durante a década de 90 e as profissões àquelas transformações.
o início do século XXI, a disputa – não só no Serviço So- Assim sendo, é fundamental fornecer uma contribuição
cial, mas em toda a sociedade – entre as tendências con- para a compreensão dos processos políticos da América
servadoras e as tendências progressistas adota um novo Latina, partindo do reconhecimento de que nossa região nun-
perfil onde o pensamento conservador (que ainda não se ca esteve tão povoada por regimes políticos democráticos –
constitui como hegemônico na profissão) assume um ca- conforme os cânones liberais – como na contemporaneidade.
ráter renovado, forte. Ele vem encoberto, não se mani- Entretanto, é nesse cenário que observamos nitidamente em
festando como conservador, mas, ao contrário, incorpo- toda a região os custos sociais que as reformas estruturais
rando e apropriando-se de discursos progressistas (a so- de cunho neoliberal promoveram.
ciedade civil, a participação, a parceria, a harmonia, o Desse modo, faz-se mister evidenciar a importância
combate à miséria, o combate à fome, a descentralização), do Serviço Social analisar esse cenário como elemento
renovando e recolocando nesses discursos o seu conteú- crucial para a compreensão das demandas que hoje cir-
do conservador. Nesse cenário se conforma o desafio da cunscrevem a profissão na América Latina. Apesar de já
profissão, o de explicitar os pressupostos inseridos nas ter quatro décadas, o Movimento de Reconceituação até
diversas tendências e defini-los claramente com esse es- hoje traz alguns desafios para a prática profissional. Tais
quema conservador progressista ou com toda a desafios partem do reconhecimento de que é preciso fa-

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O Serviço Social crítico no atual contexto de redemocratização da América Latina 235

zer avançar o processo de luta pelos direitos e democrati- ______. O Serviço Social na América Latina. Boletim Proealc,
zação da política, da cultura e da economia. Centro de Ciências Sociais –UERJ, Rio de Janeiro, n. 9 , nov./
Enraizar um projeto defendido pelos assistentes sociais, dez., 2001, p. 3-4. Entrevista.
sustentado nesses compromissos, não depende apenas do MARRO, K. Apuntes para pensar la formación y el ejercicio
profissional, mas da evolução política das sociedades onde professional del Trabajo Social argentino. In: SEMINÁRIO
se inserem. Na América Latina, o assistente social precisa LATINO-AMERICANO DE SERVIÇO SOCIAL – Articulação
lutar na contramão do projeto neoliberal. Assim, é de suma Latino-Americana e Formação Profissional e Oficina Nacional
importância reconhecer as debilidades do atual cenário lati- da ABEPSS, 2003, Porto Alegre. Anais... Porto alegre, 2003. 1 CD
no-americano, onde emergem novos desafios para cons- ROM.
trução da identidade dos assistentes sociais, principalmente NETTO, J. P. Transformações societárias e Serviço Social. Notas
no debate do sentido da sua prática, do processo de conhe- para uma análise prospectiva da profissão no Brasil. Revista
cimento crítico e no redimensionamento de propostas rele- Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 50, p. 87-132,
vantes na defesa de um projeto socialmente necessário para abril 1996.
as sociedades latino-americanas. PALMA, D. A prática política dos profissionais: o caso do
Serviço Social. Tradução José Paulo Netto. São Paulo: Cortez,
Recebido em 02.05.2006. 1986.
Aprovado em 19.06.2006. RETANA JIMÉNEZ, J. As dimensões da ética e da política no
Serviço Social: a particularidade da Costa Rica. 2002. Dissertação
Referências (Mestrado em Serviço Social)– Escola de Serviço Social,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.
BORGIANNI, E.; GUERRA, Y.; MONTAÑO, C. (Orgs.). Servicio SADER, E. A vingança da história. São Paulo: Boitempo, 2003.
Social crítico. Hacia la construcción del nuevo proyecto ético- SOARES, L. T. R. Ajuste neoliberal e desajuste social na
político profesional. São Paulo: Cortez, 2003. América Latina. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.
BORÓN, A. Asociedade civil depois do dilúvio neoliberal. In: SADER,
E.; GENTILI, P. (Orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o
Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 63-118. Notas
_______. Os novos leviatãs e a polis democrática: neoliberalis-
mo, decomposição estatal e decadência da democracia na 1 Segundo Borón (1995, p. 64-65), esse processo teve como
América Latina. In: SADER, E.; GENTILI, P. (Orgs.). Pós- produto a adesão de um importante segmento da esquerda
neoliberalismo II: que Estado para que democracia? Rio de latino-americana a uma concepção ingenuamente otimista e
Janeiro: Vozes, 1999, p. 7-67. “facilista” da democracia, que se concentra em dois supostos:
a) o caráter supostamente linear e irreversível dos progressos
CEPAL. Panorama social de América Latina. Santiago: CEPAL,
democráticos; b) a crença, teoricamente errônea e
1994.
historicamente falsa, de que a democracia é um projeto que se
D’ARAÚJO, M.C.; CASTRO, C. Democracia e Forças Armadas esgota apenas na “normalização” das instituições políticas.
no Cone Sul. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. 2 A autonomia do “político transformável” frente ao
DULCICH, R. Conflito social e respostas do Estado na Argentina “econômico inegociável” – onde o direito à alternância de
contemporânea: algumas notas. In: VIII ENCONTRO partidos e nos governos se garantiria sempre quando não
NACIONAL DE PESQUISADORES EM SERVIÇO SOCIAL significasse a alternância de projetos econômico-sociais –
ABEPSS/UFJF, 2002. Anais... Juiz de Fora, 2002. 1 CD-ROM. era considerada condição única e essencial para manter a
salvo a democracia
FREIRE, S. de M. As armadilhas da recente notoriedade da
sociedade civil no Brasil. In: FREIRE, L. M.B.; FREIRE, S. de M.; 3 Segue-se a distinção, nos critérios de definição e na inter-relação
CASTRO, A. M. B.(Orgs.). Serviço Social, política social e dessas três dimensões de democracia, encontrada em Gómez
trabalho. São Paulo: Cortez, 2006. (2000), onde o autor, com base no desenvolvimento histórico
das “antigas” democracias parte do pressuposto de que a
GÓMEZ, J. M. Política e democracia em tempos de
democracia formal ou política não é apenas uma possibilidade,
globalização. Rio de Janeiro: Vozes; Buenos Aires: CLACSO;
mas também uma condição necessária para incorporar e alcançar
Rio de Janeiro: LPP, 2000.
as dimensões participativa e econômico-social.
GUERRA, Y. Novas perspectivas de atuação profissional: o
4 Enquanto que nos seus anos de apogeu todos os governos
perfil do profissional hoje. Revista Construindo o Serviço
que se dispunham a assumir os preceitos neoliberais
Social. Instituto de Pesquisas e Estudos da Divisão do Serviço
conseguiam se eleger e se reeleger, como aconteceu nos
Social, Instituição Toledo de Ensino, Bauru, 2002.
casos argentino (Carlos Menem) e brasileiro (Fernando
IAMAMOTO, M. V. O Serviço Social na América Latina. Boletim Henrique Cardoso), no cenário atual a situação se inverteu,
Proealc, Centro de Ciências Sociais –UERJ, Rio de Janeiro, n. 8, pois com o seu “esgotamento”, aqueles que assumiam e
set./out. 2001, p. 3-4. Entrevista. mantinham este modelo perderam rapidamente a sua

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legitimidade ou se esgotaram. São os casos de Fernando de Paulo), e o Uruguai (através de um convênio entre a
la Rúa, na Argentina, de Vicente Fox, no México, e de Sanchez Universidad de la República e a UFRJ), levam o mestrado
de Losada, na Bolívia (SADER, 2003). para essas universidades, produzindo um intercâmbio que
permitiu dar um salto de qualidade no debate teórico do
5 O caso de Hugo Chávez é um exemplo, pois mesmo apoiado
Serviço Social. Assim passou a incorporar, no debate
pelo descontentamento popular com as alternativas das
uruguaio e argentino, o debate crítico do Brasil, em relação:
elites, não conseguiu ainda constituir um projeto alternativo
à análise crítica das políticas sociais, à percepção da função
para compor o novo bloco de poder.
social da profissão na sociedade capitalista, às
6 Leva-se em consideração que essa tentativa de recuperação transformações societárias, ao neoliberalismo, à reforma do
da noção de sociedade civil também é adotada – com Estado, à reestruturação produtiva, à centralidade do trabalho
bastante empenho – pelos ideais neoliberais, onde se desloca nas relações sociais, etc. Em relação, também, às obras
o originário sentido antiditatorial desta noção para uma clássicas como a de Marilda Iamamoto e de José Paulo Netto,
concepção de redução da sociedade civil a mero braço entre outros.
“terceirizado” do Estado e do mercado, responsável pela
13 Pensamento crítico este já visto como obsoleto, onde a
prestação de serviços e pela consecução despolitizada do
categoria exploração é substituída pela categoria ou pelo
interesse geral, ao mesmo tempo em que é negada como
conceito de exclusão social, a contradição capital versus
espaço por excelência de práticas e lutas hegemônicas
trabalho passa a ser substituída pela parceria, os direitos
(FREIRE, 2006).
sociais garantidos no Estado passam a ser transformados
7 A pesquisa vem sendo desenvolvida desde 2004 no como liberdade de mercado, os direitos do trabalhador são
Programa de Estudos de América Latina e Caribe (Proealc), cada vez mais sucateados e passam a ser substituídos pelo
do Centro de Ciências Sociais da Universidade do Estado direito do consumidor – como se algo viesse para ocupar o
do Rio de Janeiro (UERJ). Neste artigo mencionamos algumas lugar, e um pouco a justificar. A esse respeito recomenda-se
reflexões de diversas entrevistas realizadas com assistentes Borgianni, Guerra e Montaño (2003).
sociais latino-americanos, que abordam preocupações com
a temática aqui focalizada.
Douglas Ribeiro Barboza
8 Neste contexto, a profissão acaba enfrentando um movimento
onde, por um lado, surgem tendências que re-atualizam o douglasbarboza@yahoo.com.br
conservadorismo, ocasionando um novo irracionalismo via
intervenções cada vez mais microscópicas e pontuais; por Silene de Moraes Freire
outro, há a formação de uma massa crítica que tem se nutrido silene-freire@ig.com.br
da bibliografia brasileira e vem avançando na sua análise
ontológica do cotidiano (GUERRA, 2002).
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
9 Destaca-se, também, uma forte tendência a “terapeutizar” o Faculdade de Serviço Social
projeto profissional, via influência norte-americana do social Rua São Francisco Xavier, 524, 8º andar, Bl. E, Sala 8018
work sistêmico, que mantém em Palo Alto, Califórnia, um Maracanã - Rio de Janeiro/RJ
centro de formação de pós-graduação muito conhecido entre
CEP: 20550-013
os seguidores da corrente sistêmica na América Latina
(RETANA JIMÉNEZ, 2002).
10 Ao contrário do projeto da Carta de 88 (de um atendimento
que respeite o controle social da população ao nível das
políticas públicas, as políticas públicas universais, o pacto
federativo, a descentralização como descentralização de
decisões de recursos), o que se percebe a partir da década
de 1990 é a identificação do atendimento às necessidades
da população quase a partir da questão orçamentária. Um
livro caixa de entrada e saída de dinheiro que no fundo
invertem as decisões: ao invés do orçamento respeitar a
constituição, o que se tem é uma inversão e uma subversão
(IAMAMOTO, 2001).
11 A esse respeito ver Marro (2003) e Dulcich (2002).
12 Soma-se a isto toda a tendência de retorno ao passado, com
bibliografia obsoleta, sem produção, caracterizando o
contexto argentino, uruguaio, e de alguns outros países da
região, com uma substantiva diferença do contexto brasileiro,
que já possuía uma pós-graduação, novos textos, novos
pesquisadores. Na década de 90, a Argentina (através de um
convênio entre a Universidad de la Plata e a PUC de São

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