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Da res1stenc1a
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aos movimentos soc1a1s:
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a em ergenc1a das classes.
populares em São Paulo

Vinícius Caldeira Brant

Grande parte dos estudos sobre as classes populares urbanas


no Brasil dedica-se à explicação de sua ausência do cenário polí-
tico e dos grandes embates sociais. Este livro trata de sua presença.
Não há dúvida de que o período em que fo1 realizadaapesquisa
constitui um momento de transição - ou mesmo, sob certos aspec-
tos, de ruptuéa-= na expressão social e política das classes traba-
lhadoras, especialmente na região metropolitana de São Paulo. Po-
der-se-ia pensar que o registro das mudanças ocorridas já seria
objeto relevante de pesquisa. Ou que a explicação das condições
imediatas em que se dá a emergência de novos movimentos sociais
- uma "análise de conjuntura", segundo o jargão corrente - de-
vesse se destacar em relação ao "quadro histórico e estrutural"
tomado como pano de fundo. Os_ estudos aqui reunidos, conquanto
se refiram aos movimentos sociais em sua atualidade, não partem
da intenção de fotografar o momentâneo. Buscam ao contrário cap-
turar, na sua concreção, as condições de dêsenvolvimento da cons-
ciência, expressão e organização das classes trabalhadoras.
- -0 estudo de movimentos sociais concretos parte muitas vezes
de um paradigma, seja ele a definição abstrata de "classe social"

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ou a síntese da "experiência histórica" de movimentos registrados
tr movimentos de trabalhadores; exame do papel desorganizador dos
em outros tempos ou locais. Ainda que o propósito não seja a com-
paração, é comum que a pesquisa esteja voltada para a expectativa i
l
partidos populistas e das políticas de frente dos partidos de esquerda.
As informações já acumuladas pelas pesquisas, apesar de sua

l
de encontrar determinadas características previamente definidas. A relevância, referem-se mais às condições ou determinações prévias
frustração dessa expectativa passa a constituir novo objeto de pes- t.l dos movimentos sociais do que a eles próprios. Quer elas se refiram
quisa: que condições especiais estariam impedindo a realização do às características individuais dos trabalhadores, quer descrevam o
modelo? Ou ainda: sob a aparência de uma situação distinta, não J.
sistema político, trata-se de configurar os obstáculos à constituição
estaria encoberto, em toda sua pureza e pujança, o objeto que não de um verdadeiro movimento de classe. Esses obstáculos podem ser
podeda deixar de estar ali? de natureza diversa.
No caso das classes trabalhadoras brasileiras, abundam os es- Não são poucos os trabalhos que tentam explicar a passividade
tudos que têm por referência, implícita ou explícita, os movimentos '\ dos operários em relação aos movimentos de classe. Especialmente
políticos da classe operária européia, especialmente os da primeira na década de 50 e no início da de 60, multiplicaram-se os estudos r
metade do século presente. As perspectivas são, certamente, varia- das relações entre migração e participação social e política. A ori-
das. Alguns partem do pressuposto de que air.da não se cumpriram gem rural dos trabalhadores foi muitas vezes pesquisada em função
entre nós os requisitos para a constituição de uma classe operária das possíveis raízes culturais de um comportamento "tradicional"
''para si": a plena industrialização, o assalariamento generalizado, em meio urbano. A mobilidade social, com a mudança de condições
as sucessivas gerações de famílias operárias, os repetidos embates de vida e de papéis sociais, foi interpretada como revolução indivi-
entre trabalhadores e patrões, o caráter inequívoco do Estado como ci'tial, que dispensaria os trabalhadores da participação em movimen-
mero aparefüo repressor, a educação política (leia-se revolucionária)

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das massas, e assim por diante. Outros procuram ressaltar que,
precisamente, dadas as diferenças, nada que se assemelhe a um
movimento de classe poderia ser esperado. Também para estes,
classe operária é o que se viu na Europa, ou na " Sociedade Indus-
tos coletivos. A antecipação, no plano político, de regulamentações
que não chegaram a ser objeto de reivindicação social poderia, por
sua vez, ter tido o condão de amortecer seja a consciência seja a
insatisfação dos trabalhadores. A marginalidade de vastos setores das
populações urbanas seria, por outro lado, um fator impeditivo da )
trial". Quer os pressupostos fossem ''otimistas " ou ' ' pessimistas", canalização dos conflitos em condutos institucionais e organizativos s
muitas a;iálises concentravam a atenção nas semelhanças ou dife- formais. ·
renças entre a realidade e o modelo. Um enfoque diverso localiza nas classes dominantes e no quadro
Não obstante, deve-se a esses estudos, voluntária ou involun- institucional repressivo os principais obstáculos à organização e mo-
tariamente comparativos, boa parte do conhecimento das especi- bilização dos trabalhadores. Não por acaso, acentuou-se nos últimos
ficidades e características concretas dos trabalhadores· urbanos: sua quinze anos a preocupação com as barreiras impostas pelo Estado
origem social, seus níveis de renda e condições de vida, sua situa- aos movimentos autônomos de trabalhadores. O enquadramento legal
ção no trabalho, suas relações de emprego, seu preparo educacional dos sindicatos e sua subordinação ao Ministério do Traba lho passa-
e sua qualificação profissional, suas preferências políticas e expres- ram a receber maior atenção crítica. As políticas de desenvolvimento
sões ideológicas, sua participação em movimentos reivindicatórios foram examinadas em relação com as taxas de exploração da força
sindicais ou de bairro, sua sociabilidade primária e seu espírito de trabalho e com as desigualdades de distribuição de renda, verifi-
associativo, sua participação institucional ou seus .laços sociais "in- cando-se a relação entre o "arrocho" dos salários e a repressão aos
formais". movimentos reivindicatórios.
Afora o conhecimento da situação social dos trabalhadores, Ao lado da repressão direta e do enquadramento legal dos mo-
muitos estudos dedicaram-se a caracterizar os obstáculos políticos vimentos populares, vêm merecendo atenção as formas pelas quais
e institucionais à sua expressão e organização: exaustivas análises os trabalhadores são subordinados social e politicamente aos inte-
da legislação do trabalho e da regulamentação da ação sindical; resses das classes dominantes. O bloqueio à participação nos proces-
levantamentos do controle do Estado e da repressão direta sobre sos decisórios ilistitucionais, nümasociedade excludente e elitista,

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expressa-se num sistema partidário e eleitoral impermeável aos mo- base, a partir de condições de vida em meio urbano; o movimento
vim:ntos sociais,- I?e outro ângulo, são as próprias formas de partici- feminista e o movimento negro, a partir do estigma e das discrimi-
paçao que enseJanam a subordinação das classes populares à política nâções sexuais e raciais que atingem parcelas específicas da popula-
das classes dominantes. Estudos sobre o clientelismo, o ''coronelismo ção; os partidos políticos, a partir das relações de poder que envolvem
urbano" e o populismo, procuraram verificar por que a incorporação as classes populares e o conjunto da sociedade.
das massas populares urbanas à política não resultou em expressão
própria; análises de movimentos sociais de base, sindicais ou de
bairro, que foram "cooptados" ou subordinados, examinam tanto a Dos grupos de base aos movimentos sociais
ação de políticos tradicionais como a direção equívoca de partidos
ditos de esquerda. O tratamento individualizado de diversos movimentos que pro-
_ _Tant~. as informações acumuladas como os achados explicativos curam representar interesses das classes trabalhadoras não decorre
s~o insuficientes para caracterizar os movimentos sociais contempo- apenas de um método de pesquisa, que permite pormenorizar, de
raneos do ponto de vista das próprias classes populares que os cons- diversos ângulos, a especificidade dos planos de ação: o sindical, o
titue~. O objetiv~ da presente pesquisa foi o de examinar esse ponto local, o político etc. A _emergência dos movimentos populares em
de vista. Entrevistas com líderes e participantes dos movimentos, São Paulo, na década de 70, deu-se realmente de fÕrma fragmentária.
exame de ~ocumentos e publicações fornecidos por eles, participação Em -Zondições de repressão extremada contra a expressão política
dos pesquisadores em reuniões e manifestações, permitiram tomar dos interesses populares, torn~-se difícil a centralização dos confli-
com~ ponto de partida _a visão que os movimentos sociais têm de si tos e mesmo a intercomunicação permanente entre movimentos
pró~ios e dos problemas que enfrentam. A a nálise procurou também sociais de âmbito diverso.
levar em conta, de um ponto de vista "externo" aos movimentos A maior parte dos movimentos populares a tuais foi organizada
examinados, as situações em que se inserem: os setores da população de forma defensiva. Depois de destruídos ou subordinados os mo-
aos quais se dirige o seu trabalho, os problemas sociais que motivam vimentos existentes antes de 1964, houve uma extrema vigilância
a sua atividade, os adversários que enfrentam. Contudo, a ênfase do governo para evitar o surgimento de novas organizaçõe!> popula-
não foi colocada nos obstáculos externos, mas nas formas encon- res. Contra as lideranças, novas ou antigas, acionou-se inúmeras vezes
tradas pelos movimentos para assegurar o seu desenvolvimento, na a Lei de Segurança Nacional, além da brutal repressão extra-legal
presença de tais obstáculos. Tanto quanto possível deu-se " palavra dos órgãos de segurança que chegava facilmente às torturas e aos
aos participantes dos movimentos, registrando-se inclusive os discur- assassinatos. A ação repressiva tinha duplo papel: de um lado, disse-
sos divergentes nas questões polêmicas . Isso não desobrigou os pes- minava o terror, através de castigos exemplares aos opositores do
quisadores de opinar sobre os problemas examinados. Os diversos regime; de outro, dificultava a articulação entre pessoas e grupos
capítulos deste livro não apresentam portanto urna visão neutra, interessados nas lutas populares.
mas estão claramente motivados pelo propósito de contribuir para O bloqueio dos canais institucionais de representação popular
que o potencial de organização e expressão das classes traba lhadoras - como os partidos políticos, as câmaras legislativas, os sindicatos
torne-se conhecido e possa desenvolver-se. e associações de massas - estimulou o uso dos laços primários de
Examinaram-se os principais movimentos existentes a tua lmente solidariedade na sobrevivência diária da população. Relações de vizi-
em São ~aulo, do ponto de vista das classes populares. Na seleção nhança, parentesco, compadrio ou amizade, permitiam a proteção
dos movimentos estudados levou-se cm conta tanto sua importância imediata dos indivíduos diante de um clima social de medo. Foi
imediata, que é desigual, quanto o potencial que encerram, pela e!}l boa parte o desenvolvimento desses laços diretos entre pessoas,
natureza dos problemas enfrentados e pela perspectiva que adotam. que confiavam umas nas outras, que deu origem a vários movimentos
Todos e les agrupam ou procuram agrupar trabalhadores, a partir de base. Associações comunitárias, grupos políticos de crescimento
de situações específicas: o movimento sindical, a partir de relações molecular, comissões de fábrica, movimentos culturais, clubes de
de trabalho; as associações de bairro e as comunidades eclesiais de mães ou de jovens, grupos de oposição sind ical, tendências estudan-

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tis, enfim uma variada gama de movimentos localizados e dispersos
fundamentava-se na confiança direta entre os seus membros e na
consciência de seu desamparo diante das instituições mais vastas.
O crescimento de vários movimentos populares em São Paulo
vem-se dando através de tal conjunto de núcleos. Os principais mo-
vimentos representativos das populações da periferia, contra a cares-
tia, contra os loteamentos clandestinos, pela abertura de creches etc.,
congregam comunidades de base, clubes de mães e associações locais
que se criaram e desenvolveram a partir da reunião de vizinhos. As
oposições sindicais constituem uma soma de pequenos grupos, carac-
. terizados por articularem interesses específicos em determinadas
empresas ou compartilharem do pensamento de determinadas ten-
dências políticas, mas em todo caso constituídos a partir de relações
pessoais diretas. f: a participação nas campanhas salariais ou nas
frentes eleitorais que articula esses grupos como representação de
uma parte maior da categoria profissional. As comissões de fábricas
e comandos de greve formados nas empresas fundaram-se inicial-
mente na confiança direta entre colegas de trabalho. O movimento
negro é uma reunião de grupos baseados na convivência social ou na
fraternidade, cuja ação conjunta ocorre em momentos especiais de
revolta ou protesto. O movimento feminista é ainda um objetivo em
torno do qual se agrupam pequenos núcleos m ilitantes cm que as
relações pessoais jogam imp~rtante papel.
Não se podem no entanto comp reender a multiplicação e o cres-
cimento desses movimentos se não se leva em conta o papel de
instituições e de outros movimentos que abri ram espaço para a sua
atuação. No contexto político em que surgiram, os novos movimentos
sociais só poderiam atuar abertamente ao contar com a proteção de
al~instituição reconhecida ou com um apoio considerável e
ostensivo na opinião pública. A Igreja, as instituições civis atentas
aos direitos humanos, o M DB, o movimento estudantil, com sua
ação em favor das liberdades, criaram inicialmente o clima necessá-
rio para a articulação pública e para a manifestação aberta dos mo-
vimentos sociais surgidos da base. No que se refere porém aos
canais concretos de expressão e aos instrumentos de articulação
direta que estiveram na origem dos novos movimentos o papel das
entidades externas foi muito diferenciado.
No plano das organizações por local de moradia, o papel da
Igreja foi- centraledireto. As comunidades de base da periferia da
cidade estiveram sem dúvida entre as mais importantes matrizes
da organização popular. Como instituições propriamente eclesiais,

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elas puderam valer-se não apenas da defesa de sua liberdade de suas deliberações. A importância da eleição dos candidatos-populares
atuação por parte da hierarquia - de resto propiciada também a r
l
revelou-se principalmente quando alguns deles usaram de suas prer-
outros movimentos, inclusive não-confessionais - mas também da rogativas para proteger do arbítrio os operários em greve ou colo-
estrutura da Igreja, tanto em aspectos organizativos como materiais. caram seu prestígio a serviço de causas populares fora do parlamento.
Outros movimentos oficiais da Igreja, como as pastorais voltadas Ainda que vários parlamentares tenham procurado introduzir no
para os trabalhadores e para os marginalizãdôs, tiveram um papel parlamentõ os interesses populares, e mesmo diante de algumas
importante na animação de movimentos sociais, mas não poderiam vitóriâsalcançaâas;-a relação entre o sentido de suas ações e o poder
oferecer os mesmos condutos organizativos diretos, dada a estrutu- de decisão de seus representados é tênue.
ração de base geográfica que conforma as instituições eclesiásticas. De todos os demais movimentos que tiveram papel ativo nas
O_M.Q_B, como único partido legal de oposição no período estu- lutas democráticas da década, ~ndpalmente_o movimento estu-
dado, recebeu considerável apoio das classes populares por ocasião dantil que inscreve em sua temática a solidariedade_ expfü:ita com
das eleições. Entretanto seus vínculos com os movimentos sociais 9s trabalhadores. Apesarâi~ sua influência direta nas lutas popu-
concretos foram pequenos. O MDB não teve meios de transformar-se lares foi pequena. Muitos estudantes articip-ª-ram ou participam de
num verdadeiro partido e, ainda que tenha conseguido coesão em comunidades de base, a ssociações e bairro, ~diretórios _partidários,
certos momentos cruciais de enfrentamento com o governo, funci~- movimentos de minorias e, quando também trabalham, dos sindicatos 1
nou principalmente como legenda eleitoral. As reivindicaçõês pró- de suas categorias. Entretanto a presença de estudantes, organizados
prias dos movimentos sociais encontraram guarida em seu programa enquanto tais, nos movimentos populares encontrou forte resistência
mas não foram objeto de esforço coletivo permanente. Por outro or arte das lideranças desses movimentos. Em geral temia-se que 1
lado. o MDB não foi capaz de estabelecer vínculos de representação o discurso politicamente articulado dos estudantes tivesse um papel
real com suas bases. Seus diretórios, à exceção de uns poucos, tinham desorganizador de bases motivadas pelas questões mais imediatas.
existência puramente formal. Seus departamentos de trabalhadores, Em alguns casos, reclamava-se da inconstância da atividade "de fim
jovens e mulheres tinham papel meramente consultivo, sem poder de semana" dos estudantes. Freqüentemente ouve-se também a acusa-
de deliberação e sem expressão representativa. ção a grupos políticos estudantis que tentariam manipular os movi-
Servindo-se do caráter de frente eleitoral do MDB, alguns movi- mentos populares, com propósitos meramente agitativos. É difícil j'
mentos oci~is conseguiram indicar candidatos às eleiçõêsâe 1978. avaliar se essas preocupações são inteiramente procedentes. Pelo
Tratou-se, nesses casos, menos da integração em um partido do que menos em alguns casos, verifica-se que o veto à presença de estudan-
da utilização de sua legenda para efeito de registro legal. Os comitês tes em movimentos populares partia de lideranças políticas temerosas
eleitorais dos càndidatos populares baseavam-se no apoio dos mo- de perder o controle de "suas" bases se o debate das demais ten-
vimentos representados ou no trabalho de voluntários identificados dências chegasse até elas.
com seu pensamento polít,ico. Vários desses candidatos foram eleitos Por outro lado, a participação de estudantes nas grandes mani-
e a bancada do MDB em São Paulo modificou notavelmente sua festações públicas promovidas por movimentos populares, conquan-
composição. Entretanto isso não modificou os vínculos dos movi- to tenha contribuído para dar a elas maior amplitude, foi objeto de
mentos sociais com o sistema partidário. Os parlamentares mais freqüentes conflitos. As divergências nas palavras de ordem de
diretamente vinculados a movimentos ·de base puderam manter me- grupos estudantis concorrentes criavam certa confusão que trazia
canismos de consulta com seus representados a respeito de sua atua- o risco de descaracterizar as manifestações. O temor dessa descarac-
ção individual. Aqueles que, embora identificados com a causa popu- terização permitiu que se disseminasse o preconceito contra a pre-
lar, não eram participantes diretos dos movimentos de base, puderam sença massiva de estudantes e que se criassem dificuldades à expres-
estreitar contactos com as lideranças sindicais e locais para estabelecer são de representantes das entidades estudantis nas manifestações
critérios de atuação nas causas de interesse popular. Mas, num e populares.
noutro caso, faltavam as condições para que o MDB _enquanto tal Na maior parte dos casos, os grupos surgidos "das bases" culti-
pudesse estabelecer algum conduto de participação das bases em varam uma identidade construída ao desamparo de forças externas.

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A despeito das conseqüências da atuação_ de outras forças no c~ntex- amplos é a da reuni~o. ~e um grande número de pequenos grupos
to político global sobre suas lutas, o isolamento de suas origens, estruturados. A possibihdade de uma direção desses movimentos
que não escolheram mas a que foram obrigados, resultou em f~rte mais gerais só é admitida enquanto coordenação de decisões adota-
desconfiança q uanto a qualquer interferência vinda de fora. Obriga- das a ~ada passo pelos grupos de base. Uma tentativa prática de
dos por muito tempo a construir seu próprio caminho, _m~itos gr~pos execuçao ~esse modelo foi o Movimento do Custo de Vida: uma
de base passaram a acreditar nesse caminho ~~mo o um~o p~ss1~el, coordenaçao de dezenas de membros--i-euniu-se periodicamente me-
ou válido. Trabalhadores impedidos de participar da vida sindical ses a fio, para permitir que cada proposta ali apresentada fosse' leva-
e que se refugiaram no trabalho de bairro passaram a proclamar da -~s bases. E evidente que os delegados dos diversos setores e
que "sindicato não está com nada" e resistiram à idé~a de qualquer reg1oes na coordena?ã~ tinham liderança sobre as bases respectivas,
atividade nas campanhas ou eleições de sua categoria, mesmo cm co?1~~ovada ~or ele1çao, e a sua posição de meros porta-vozes sem
um novo contexto em que poderiam influir. Ex-militantes polí_tic~s opmtao própna era artificial. Entretanto o ritual da consulta direta
desencantados com sua própria experiência relutavam em atribuir e p~r~a?ente refor~a a convicção de que o movimento é sua soma
importância a qua querdebate que ultrapass~sse as con~içõcs ime- de md1v1duos conscientes e responsáveis e não uma massa de mano-
diatas das comunidades em que atuavam. Diversos movimentos de bra de uma direção externa.
base desenvolveram-se a partir de uma única temática, ditada pela ~ e~gência de democrag_a " de baixo para cima" não se coloca
especificidade de uma questão mome~tânea, tendo difi~uldadc em apenas. n~s ~ormas altern~tivas de organização surgidas do período
encontrar novos caminhos q uando o obJeto de sua luta foi alcançado ~e res1st~nc1a. Ela .con:lltui também um projeto de participação
ou superado. de base em o rgamzaçoes propriamente de massas, como os sindi-
Do ponto de vista organizativo, muitos movimentos de base catos e partidos políticos. A temática das comissões de fábrica pro-
surgiram da necessidade de substituir instrumentos bloqueados ou posta por a lgumas oposições sindicais é um exemplo. Tratar-se-ia
destruídos no período ditatorial. A atuação direta de algu_mas c~1~~- nesse ~aso de constituir núcleos repres~ntativos de base em cada
nidades de base nas reivindicações locais decorreu da 1mposs1b1lt- e~p~esa, que teriam conjuntamente poder de decisão na vida
dade de contar com a associação de bairro existente ou de apossar• smdical. Isso poderia propiciar uma participação mais intensa das
se de sua direção. O sindicalismo paralelo de algum as oposições bases nas discussões, · já que as assembléias por categoria não ofe-
revela sua descrença na possibilidade de atuação autônoma do pr6- recem a ocasião para que:; todos possam manifestar-se.
prio sindicato, persistentemente atrelado ao ~stado. Espcci~lmcntc . . É claro que essas formas de estruturação não podem substituir
no período ma is repressivo, a busca de caminhos :lterna_t1vos de mte,ramente as assembléias de massas, com amplos debates e deci-
o rganização, frente aos canais oficiais de representaçao, afigurou-se sões por voto di reto. Os mecanismos de consulta descentralizada às
como única possibilidade para a continuidade das lutas. bases de fato restringem as discussões em cada local às posições ali
Todos esses fatores convergiram para estimular a autonomia dos coloeadas e favorecem o monopólio da transmissão de informações
grupos de base. Na mesma proporção em que_ crescia a confionç11 por grupos e tendências mais fortemente estruturados.
desses grupos em sua própria atuação, decrescia su~ esperança cm . A inter~omunicação direta entre os trabalhadores comuns de
outros canais de organização e expressão. Isso determinou que multou diversos locais começa a tornar-se possível, com a conquista da liber-
deles crescessem de forma exclusivamente molecular, pela "ampll11 dade de reunião. Em muitos casos já se tornaram desnecessários os
ção" de indivíduo por indivíduo, de forma a manter a coesão e 11 complicados mecanismos de articulação criados para contornar a
identidade do grupo tão inalteradas quanto possível. Q uanto. aos_ nu:lu• repressão aos movimentos de massas. Por outro lado os trabalha-
de ação, é considerável a importância atribuída _à consc1ent11.uç 11, dores conseguiram a br ir consideráveis brechas na estr~tura sindical
ou à bu sca do convencimento individual, em detrimento das foi 11111, atrelada ao Estado. Vários dos mais importantes sindicatos da Grande
impessoais de mobilização e organização. São Paulo são hoje dirigidos por representantes legítimos dos traba-
Assim como muitos movimentos de base passaram a definir 1 lhadores. O c~ráter m:ssivo de algumas lutas chegou a se contrapor
como uma soma de indivíduos, sua concepção de movimentos 111111, ao poder de mtervençao do governo nos sindicatos. Abriram-se as-

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sim novas condições para a incorporação dos grupos de base de
diversas categorias profissionais na luta sindical. t provável que a
mesma tendência se revele em outros terrenos de atuação institu-
cional dos trabalhadores, como os movimentos de reivindicações de
consumo, os movimentos de libertação de grupos discriminados e os
partidos políticos.
A i~~ração dos grupos de base em movimentos mais am-
plos, quer tenham sido construídos de baixo para cima, quer cons-
tituam estruturas antigas transformadas por sua ação, está alterando
fundamentalmente a correlação de forças sociais e políticas na Gran-
de São Paulo. Os novos movimentos sociais apresentam-se como a
base possível de uma real democratização da sociedade, não só pelo
>,
conteúdo popular de suas reivindicações, mas também pelas formas
democráticas que conseguiram criar diretamente, a despeito de insti-
tuições ditatoriais e de uma repressão sem regras nem freios.

Do isolamento à solidariedade

Durante a maior parte do período ditatorial, especialmente nos


dez anos que sucederam o Ato Institucional n.º 5, os movimentos
populares foram impedidos de vir à tona, tanto pela repressão direta
como pela censura que bloqueava sua repercussão pública. Tantas
foram as tentativas frustradas ou massacradas de expressão publica
das reivindicações e protestos, que reforçou-se o isolamento dos
grupos de base. Passou a constituir medida de prudência elementar o
"não pôr a cabeça de fora". Até mesmo nos contactos pessoais, com
colegas de trabalho, vizinhos e -amigos, tornou-se de praxe "segurar
a língua". Não obstante, o repúdio popular à ordem autoritária
manteve-s,e vivo e persistente.
No plano político-eleitoral. apesar das regras do jogo definidas
unilateral e casuisticamente pelo governo, o repúdio popular ao regi-
me consubstanciou-se tanto na crescente votação ao partido oposi-
cionista como no persistente e considerável número de votos de
protesto. Mais intensa e decisivamente, a ilegitimidade do regime
tornou-se clara a partir de manifestações de desobediência civil e de
protestos contra os atos ditatoriais. --
Dadas as proporções dos meios coercitivos e a pronta disposi-
ção repressiva do governo, os atos de resistência constituíram por
muito tempo uma sucessão de fatos isolados, cuja repetição se dava
sob a forma da reiteração heróica e, por vezes, suicida. Assim foi, 1
'
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Foi, po r outro lado , a própria repressão extremada que criou inicialmente com as manifestaçõe5 estudantis de rua. com 11~ p u 111.. 11 n
vínculos de solidariedade entre movimentos de natureza diversa e greves e manifestações op erá rias , com os desafios u ccn:it1111 pu1
indivíduos com posições políticas e ideológicas diferentes. A luta parte de jorna listas e artistas, com o s discursos de d cn1'1nci11 011
pelos direitos humanos, ou mesmo pelas liberdades civis elemen- protesto de alguns parlamentares, com as homílins ou dcclu1uçOc•
ta res, foi capaz de unir setores a ntes divid idos da po pulação, seja pú blicas de clé rigos ou membros da hierarquia cc lesiústicu cm nw
pela natureza d iversa dos interesses que defend iam, seja pelas for- mentes d e especial importância . Assim foi também com os dis~ldC11
mas diferentes de pensamento. A im portância de instituições como cias surgidas entre os políticos e empresários que fai inm pnrtc du
a Igreja, a Ordem dos Advogados d o Brasil , a Associação Brasileira base de su stentação do governo, bem como as d ivcrg~ncin!> no intc
de Imprensa, que não a tuavam c m nome d e interesses, mas de prin- rior das forças armadas. Assim foi com as atitude!, de pro moto1c11,
cípios. foi então decisiva. Por outro lado, movimentos cujo conteúdo juízes e mesmo de policia is que, em nome da pró pria lei. 111!0
político se expressava acima da defesa de interesses particulares, q uiseram compactuar com a arbitrariedade. Assim foi com u rclJIII
como o movimento estu dantil e os comitês pe la anistia. tiveram tência armada de grupos revolucionários e com as ações de pro pu
a possib ilidade de unir tendências diversas em torno da oposição ganda dos pa rtidos c landestinos. Uma pesqu isa sistem6tica d cmo 11~-
L ao regime . tra~ia o q ue já se te nde a apagar das mem6rias 1 : ni10 houve semunu ,
A própria exacerbação da revolta con tra a repressão extremada mesmo nos períodos de mais dura repressão, em que o regime 11110
crio u as condições pa ra q ue várias instituições, associações e movi- fosse a lvo de algumas manifestações de repúdio cm São Pnulo.
mentos se unissem em atos de pro testo conjunto . dando origem a Repúd io individual em determinados casos, manifestações cole
uma aliança informal d as oposições democrá ticas. tivas porém circunscritas a certos grupos socia is ou comunidudctt
Um momento de inflexão na resistência ao regime d ita to rial locais em outros, resistência passiva em certos momentos, ativo cm
deu-se cm 1975, de po is do assassinato do jornalista Vlad mir Hcrzog. o utros, o fato é que não havia estuário aonde pudessem afluir ""
em dependências do Exército . O culto ecumênico celebrado na Ca- d iversas formas de oposição. Em outras palavras , o que o governo
tedral da Sé, de q ue pa rticiparam ma is de 8 mil pessoas, demons- conseguiu dificultar - seja pela repressão desenfreada, scjn pelo
trou que se estava ultrapassando o período das denú ncias isoladas camisa de força da organização partidária de c ima para ba ixo
e das reclamações du bitativas d iante dos c rimes dos órgãos de segu- foi o processo de acumulação de forças da oposição. J\ cOn!,t/l ncin
rança . A união d as principais comunidades religiosas e a presença da oposição estava na própria renovação dos gestos de pro tc~to
de representantes d as associações c ivis, dos sindicatos, do movimento disperso. T odos sabiam, e o governo não deixava que alguém csquc
estudantil, de personalidades conhecidas de todas as camadas sociais, cesse, que a cada protesto corresponderia uma rcprcs:'.ilia : C0!,SIIÇIIO
revelaram o repúdio d a maio ria da sociedade à ação repressiva do de mandato político ou sindical; perda do emprego, expulsiio d u
Estado. escola; intervenção em associações e órgãos de representação , rccru
Outros fatos ma rcantes iriam suceder-se, demonstrando a soli- descimento da censura, prisão, tort ura ou assassinato - rcprcsllli1111
dariedade entre setores diversos da população na oposição ao arbí- nem sempre graduadas segundo a importância do :110 o posicionibl11.
trio. Em 1977, q uando o governo tento u im pedir a reunião anual
mas, muitas vezes, segundo os humores dos perscguidorc~ e oi,
d a S o ~ Brasile ira para o Progresso da Ciência, organizou-se
azares dos perseguidos. Muitas das manifestações de o posiçao íi,c
rapidamente um movimento de solidariedade que permitiu mobilizar
ram-se em clima de incerteza , em que o medo tinha de se r vencido
t~dos os recursos necessários e assegurar a realização do evento.
pela indignação ou pelo desespero.
Pouco depois, diante das denúncias de que o governo tinha a inten-
ção de expulsar do país o bispo D. Pedro Casaldáliga. reuniram-se
quase duas dezenas de entidudes, com o apoio de centenas ele ou tras,
1. E que, muitas vezes, se afas tou do conhecimento público atruv~s dn lllll
para realizar conjuntamente um ato de protesto contra as persegui- sura. Todavia a própria leitura das listas de proibições de notícias, onvlucln•
ções a religiosos e de denúncia contra o q u adro geral de desrespeito aos órgãos de comunicação pela censura federal, mostra a continui<lndc du,
aos direitos humanos. protestos.

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Os atos de resistência conjunta, nessas ocas1oes, foram além do contrário do que se diz com freqüência, essa disposição não se ante•
protesto defensivo e episódico. Eles tiveram por conseqüência o cipa a uma crise iminente. Ela surge com atraso diante do reconhe-
tolhimento do poder até então sem freios do governo e a demons- cimento generalizado de que a sociedade reorganizou-se à margem
tração de que a sociedade poderia, em determinadas condições, utili- das pautas previstas para enquadrá-la. Não se trata de abrir as
zar seus próprios meios para assumir a iniciativa política. Eles reve• comportas antes que explodam pela pressão d~ águas. As represas
lara m a possibilidade da solidariedade ativa entre os movimentos tornaram-se vazias, enquanto riachos e enxurradas corre m fora dos
de oposição. Por muito tempo, o apoio mútuo entre movimentos di- leitos primitivos. De forma talvez inédita na história brasileira, a
versos fora um incômodo dever. Os ritmos diferenciados de atua- centralização extrema do poder tanto econômico como político
ção de uns e outros, o temor de envolver-se em iniciativas alheias de resultou num descontrole de tal monta que não se explicaria, nem
conseqüências não previstas, o medo, enfim, de expor-se a riscos pela incompetência, nem pela fragilidade de seus detentores.
não procurados, levavam a muitas reticências. Os pronunciamentos A possibilidade de manifestação aberta dos movimentos oposi-
formais de solidariedade não se traduziam necessariamente em apoio cionistas revela, por outro lado, a diversidade de interesses e a
efetivo. Iniciativas de apoio concreto, sob a forma de ajuda material especificidade das reivindicações até então sufocadas. Especialmente
ou de contactos protetores, eram cercadas de cuidados com a dis• a _mi_rtir _j_e 1978, ampliam-se as mobilizações _de cunho mais nitida-
crição. Os primeiros protestos bem sucedidos criaram as condições mente social: as greves ope rárias do ABC e da_capit_al, o_Movimento
para que instituições e movimentos se unissem à luz do dia, na de- dÕCustode Vida, as greves de pro(essores, dos motoristas de ônibus
monstração de que o governo não pode ria continuar a golpeá-los e de tª-XiS, dos lixeiros, dos médicos e funcionários de hospitais,
isoladamente. dos jornalistas, dos funcionários públicos e, até mesmo, as "greves
brancas" da polícia mostram a amplitude da insatisfação com os
;rrr-ios e as condições de vida; protestos públicos de moradores da
Da resistência democrática à oposição social periferia e de favelados exprimem os reclamos dos trabalhadores
noquere refere ao uso do solo urbano e à política discriminatória
A conquista da liberdade de manifestação pública resultou em dos serviços públicos; o movimento por creches congrega clubes
grande medida da decisão de desobediência às proibiçõei,;, legais ou d~ associações femininas e movimentos feministas, revelando
extra-legais mas em todo caso ilegítimas, por parte de movimentos um novo grau de articulação das mulheres em torno dos problemas
e instituições que expressavam a autonomia da sociedade diante do que as atingem. Ao lado das mobilizações organizadas, ~ em
Estado. Paradoxalmente essa autonomia construiu-se íorçosamen1e a [Qrmas_g_ç_ 12rotesto explosivo: as depredações e motins no centro
partir do fechamento dos canais institucionais de expressão oposi- 1 da cidade, por ocasião da frustrada greve dos bancários, e na peri-
cionista. A oposição extra-parlamentar foi fruto da castração do feria, em momentos de elevação dos preços dos transportes coletivos
parla mento; o novo sindicalismo resulta da desmoralização do anti• ou de colapso do seu já precário atendimento, revelam o potencial
go; as entidades livres dos estudantes são o desfecho da proibição 1· de revolta de- uma população reprimida anos a fio.
de sua representação legal; os movimentos polítiCQS extra-partidários - O~ ovimentos sociais que dão a tônica da oposição no período
são conseqüência da falta de liberdade dos partidos; os grupos comu- mais recente são principalmente os movimentos de trabalhadores até
nitiÍrios tornam-se sucedâneos de associações civis cuja ação foi então obrigados ao silêncio. A notável autonomia desses movimen-
bloqueada. tos, tanto em relação aos partidos políticos tradicionais como em
O contexto da chamada reabertura política não cons11tu1 mero relação aos grupos clandestinos de esquerda, impõe uma redefinição
esgota mento do período ditatorial, seja porque oregime tivesse cum• do quadro político da oposição. São muitas vezes movime ntos sur-
prido seus objetivos, seja porque tivesse renunciado ao arbítrio gidos da base, impedida de articulação política ou desencantada das
como meio de atingi-los. Ele revela certamente a disposição do gover• mediações políticas propostas no passado, que revelam ao mesmo
no de adaptar-se a uma realidade social que escapa ao poder de tempo as vantagens e os ônus de suus origens. Muito mais e nrai-
previsão dos estados-maiores e dos gabinetes tecnocráticos. Mas, ao zados do que os movimentos sociais do passado, muito menos sujei-

24 25
tos à manipulação, mais sensíveis aos problemas concretos que aos das lutas; e a incorporação consciente às formas de luta próprias
discursos ideológicos, efils movimentos recolocam na ordem_ do--dia de trabalhadores assalariados, de categorias profissionais que, embo-
a repJ:_esenta ã9 como fundamento da democracia. Ao mesmo tempo, ra há muito se proletarizassem, conservaram por :muito tempo o
são herdeiros do isolamento a que foram obrigados: cautelosos em status e o individualismo próprio dos profissionais liberais, dos
relação às alianças e articulações mais amplas, desconhecendo muitas burocratas e dos "colarinhos brancos".
vez~ os__rnecanismos mais gerais que determinam as condições de As manifestações úblicas de 1979 revestem-se assim de novas
exploração, ignorando o funcionamento dos centros de decisão polí- c a r a c ~O 1.0 ~ de maio e m São ~ernardo do C ampo, que
tica, tendem a concentrar seus esforços nas lutas imediatas e no reuniu mais de 100 mil pessoas, exibia, ao lado de uma composição
confronto direto com os adversários visíveis. massivamente operária, a presença de numerosos contingentes de
t impossível ignorar que o surgimento de forças sociais de tal funcionários públicos, de donas de casa, de médicos, de estudantes.
amplitude torna ultrapassado um movimento oposicionista de cunho de intelectuais e artistas, que não iam simplesmente expressar seu
exclusivamente liberal. A frente oposicionista que se expressava, no apoio externo, mas sua identidade de trabalhadores. As homenagens
plano eleitoral e parlamentar, através do MDB e, no plano extra-parti- póstumas ao operário Santo Dias da Silva, morto pela polícia durante
dário, através de protestos contra os atos ditatoriais tinha por objeto a greve dos metalúrgicos na Capital, reuniram dezenas de milhares
principal defender a sociedade contra os excessos do regime. A ur- de pessoas e representaram a primeira grande manifestação popular
gência da luta pelas liberdades civis mais elementares decorria tanto em que se juntavam a luta pelos direitos humanos e as reivindica-
da selvageria da repressão quanto da necessidade de franquias míni- ções sociais. A presença de representantes de entidades e de perso-
mas para que os interesses e aspirações presentes na sociedade pu- nalidades conhecidas expressou, em muitos casos, mais do que um
dessem expressar-se. Embora, no plano institucional, o país esteja protesto contra os excessos da repressão, um compromisso com o
longe de constituir uma democracia, o fato é que esses interesses próprio conteúdo social da nova luta oposicionista.
já começam a reorganizar-se e a encontrar formas de expressão. Não Essas ocasiões também levaram os movimentos de trabalhadores
se pode negar, por outro lado, que, não obstante a vigência de leis a um aprendizado em relação à solidariedade. O apoio de outros
ditatoriais, como a Lei de Segurança Nacional, a Lei Anti-greve e a se ores sociais a suas greves e manifestações teve um peso efetivo
Le i de Imprensa, e não obstante conservarem-se intactos os órgãos para possibilitar sua continuidade. A experiência de novas lutas
''
de segurança e suas câmaras de torturas, a ação repressiva foi refrea- permitiu que grupos cada vez mais numerosos de trabalhadores
da e o medo ultrapassado. A frente oposicionista redefine-se diante compreendessem a importância de romper o isolamento político para
desse novo quadro. Sem contar com aqueles que, diante da dimi- que pudessem obter sucesso em seus objetivos próprios. E, pelo menos
nuição dos excessos de arbitrariedade, deram-se por desobrigados para as lideranças e grupos mais conscientes, tornou-se claro que a
de exprimir sua revolta, os setores que continuam a fazer oposição defesa de seus interesses não se limita às reivindicações imediatas e
diferenciam-se segundo os interesses que os separam do regime ou específicas, mas que ela tem relação com o conjunto da sociedade.
do governo e, em determinados casos, manifestam oposições entre si. O caminho dos movimentos populares em São Paulo no fim da
Contudo é lícito afirmar que a oposição ao regime tende a écada de 70 percorreu os primeiros passos na ruptura de seu isola-
ampliar-se e a aprofundar-se. Ampliar-se pela incorporação de seto- ento e aponta, no futuro, para uma crescente articulação desses
res antes marginalizados da política. Aprofundar-se pelo cunho social , movimentos entre si. E a atualidade já demonstra a importância de
das reivindicações trazidas à ordem do dia. l_ sua presença para o conjunto da sociedade.
As greves, a partir de 1978, revelam dois aspectos novos na
situação social do país: a extensão da solidariedade aos movimentos
operários, nas contribuições aos fundos de greve, nas manifestações
públicas de apoio, na defesa da legitimidade dos movimentos, por
purtc de grupos sociais e instituições que não tinham interesse ma-
ltl1 l11I direto no resultado nem vínculos ideológicos com o desenrolar

26 27
~
Sindicatos de trabalhadores I

Vinícius Caldeira Brant

Cerca de três quartos da Força de Trabalho da Grande São


Paulo encontra-se em ocupações assalariadas. Para a imensa maioria
da população paulistana as condições de emprego e de remuneração
do trabalho definem as oportunidades de vida. As possibilidades
e limites da organização sindical assumem, nesse contexto, uma
importância decisiva.
Os sindicatos constituem a forma típica de organização dos
trabalhadores para a defesa de seus interesses específicos nas rela-
ções de trabalho. Numa sociedade em que, cada vez mais, a produ-
ção e os serviços se organizam em grandes unidades, os trabalhadores

1. Este texto foi elaborado com base em entrevistas com trabalhadores que
exercem liderança, tanto nas direções como nas oposições sindicais, e no exame
de documentos divulgados e da imprensa sindical na região metropolitana de
São Paulo. As citações textuais são colocadas entre aspas, mas não se identi•
ficam seus autores. conforme ficou estabelecido por ocasião das entrevistas.
Somente serão especificadas as fontes nos casos de pronunciamentos públicos
e de análises externas. Naturalmente o conteúdo do texto e sua forma não
são de responsabilidade dos entrevistados, mas do autor.

29
têm interesses coletivos a defende r e só podem defendê-los eficaz- rança e Desenvolvimento" expressa hoje o q ue outrora se q uis dizer
mente na medida em que se associem. com o lema "Ordem e Progresso". Para que a riqueza cresça é prec iso
~~ condições de trabalho e os salários apresentam situações opor obstáculos às reivindicações que afetem o lucro e o potencial
espec1f1cas em empresas e ramos determinados, embora se inscre- de acumulação das e mpresas, bem como impedir perturbações de
va!11?~ qua?r~ ma is geral da organização econômica da sociedade. natureza política que interfiram nos rumos mais gera is da sociedade.
Ha ~a~1os mve1s de associação dos trabalhadores, por empresa, por Ao lado dos instrumentos de defesa· do fatado que obstam a
P_rofis:ªº• por ramo de atividade, que expressam a especificidade das organização dos trabalhadores em função de seus interesses mais
slluaçoes. Po r outro la~o, há formas de o rganização que congregam gerais e de suas aspirações de natureza política, o quadro institucio-
os trabalhadores de dive rsas profissões e ramos de atividade em nal brasileiro estabelece limites extremame nte rígidos ü ação dos
uma determinada área geográfica, para a defesa de seus inter~sses sindicatos, mesmo na esfera de reivindicação estritamente econômi-
comuns. ca. As diversas leis trabalhistas promulgadas a partir da década de
Nas sociedades mais modernas do Ocidente contempo râ neo, os 30, em especial a Consolidação das Leis do Trabalho de 1943, pro-
tra?alhadores te nde m a congregar-se em entidades sindicais cada vez curavam enquadrar as organizações sindicais em uma estrutura que
mais amplas e a estabe lecer reivindicações de caráter mais geral. garantisse seu controle pelo governo e limitasse o confronto direto
Isso ocorre em parte porque, no mundo capitalista, é cada vez mais entre patrões e empregados. Ao mesmo tempo, a legislação trabalhis-
acentuada a articulação e ntre as empresas, sob a forma de cartéis, ta cumpria um papel supletivo no impedimento da a tuação política
trustes e conglomerados. Em certa medida, a articulação mais ampla autônoma dos trabalhadores, ao proibir que os sindicatos se imis-
~ntre o~ tr~balhadores torna-se também necessária para faze r frente cuíssem cm questões definidas vagamente como de natureza política.
a orgamzaçao dos empresários em associações patronais e à tendê ncia As limitações à auto no mia sindical no plano reivindicativo, estabe-
de acord~s entr~ ~s e mpresas na definição das relações de traba lho. lecidas pela CLT, eram de dupla natureza: de um lado, os sindic,tos
Em medida mais importante, porém, o caráter cada vez mais gera l ficaram diretamente subordinados ao Ministério do Trabalho, admi-
d~s reivindicações dos trabalhadores prende-se ao fa to da inlerven- nistrativa e eco nomicame nte; de outro, o campo de sua atuação foi
çao cres_ce_nte do Estado na organização econô mica: em boa parte, rigidamente regulamentado, não só nem princ ipalmente pela imposi-
as cond1çoes de tra balho e os níveis de salários, bem como dos ção de um estatuto padrão, mas pela minuciosa especificação, na
pre?º..5 em ge ra!,. estão condicionados por normas, regulamentos e própria CLT, de todos os aspectos da o rganização fabril e empre-
d~c1soe~ de . poht1ca econômica estabelecidos pelos organismos esta- saria l que pudessem ser objeto de conflito: salários, duração da jor-
tais; alem dJSSo a legislação e o poder repressivo do Estado estabele- nada de trabalho, higiene e segurança nas empresas, condições de
cem tanto os óbices como as brechas para a atuação dos trabalhado- admissão e demissão, identificação e registro profissional, fé rias e
res em defesa de seus direitos e aspirações. afastamentos, proporção de trabalhadores brasileiros ou estrangeiros,
No_ Brasil a tendência de controle crescente do Esta do sobre condições especiais de tra balho das mulheres e dos menores etc.2
as relaçoes de natureza econômica vem sendo particularmente exa- A legislação enfeixada na CLT era apresentada como proteção
cer?ada. ~eja a~ravés do c~n!role da moeda e do c rédito, seja po r aos trabalhadores, mas funcionava de fato para limitar as lutas
meio de incentivos e restnçoes de natureza tributária seja ainda sindicais. Aos sindicatos se atribuía a função de fiscalizar o cumpri-
por intervenç~o direta nos preços - tanto dos produt~s acabados, mento da legislação nas empresas, reclamando na Justiça do T ra-
como dos meios de produção - e salários, o Governo interfere em balho contra as infrações. Dada a minuciosa regulamentação e a
quase tod~s- os aspe<:_to~ das empresas privadas. Ao mesmo tempo em generalidade de seu descumprimento, a tendência era a de somente
que a ~ol1t1ca econom1ca delimita o campo do mercado e da con-
corrência, favorecendo a acumulação de capitais em determinados
2. Uma enumeração mais minuciosa dos dispositivos da legislação 1rabalhis1a
ramos e setores de atividade em de trimento de outros O Estado
que afetam as reivindicações encontra-se em C.P.F. de CAMARGO et alii
ª?resenta-se também com~ o guardião da ordem necessá;ia ao cres- São Paulo 1975: Crescimento e Pobreza. São Paulo, Loyolo, 1976, p. 127 e
cimento da produção e da acumulação de riqueza. O slogan "Segu- seguintes.

30 31
reconhecer como legitimas as reivindicações de direitos expressamen- as exigências mínimas da lei. E os sindicatos, em sua função fisca-
te c?nsagrados pela lei. O que deveria ser o patamar mínimo de ga- lizadora, são chamados de preferência a verificar as condições pre-
rantias dos trabalhadores passava assim a objetivo máximo. cárias das firmas menos sólidas, diante das quais seu poder de
_ . Por cert? o~ sindicatos nem sempre se conformaram ao papel pressão é também maior. Nas situações, aliás numerosas, em que
h_m1~ado de f1sca1s do cumprimento da CLT. Mas o terreno da nego- a política trabalhista comprimia o nível de ~alários de for~a a
c1açao entre patrões e empregados tornava-se tanto menor quanto garantir os lucros das empresas menos produtivas, mesmo ass_1m a
mais minuciosa fosse a regulamentação legal. O presidente de uma grande empresa se viu beneficiada por um "superlucro" que a distan-
das federações de trabalhadores de São Paulo chama a atenção para ciava ainda mais dos concorrentes menores.
esse aspecto: "Enquanto no Brasil a CLT é um enorme calhamaço, De certa forma, nos momentos de maior liberdade sindical, ~s
nos Estados Unidos a legislação do trabalho é minúscula, porque lá efeitos da política trabalhista na concorrência entre as empres_as sao
tudo é acertado entre o sindicato dos trabalhadores e a empresa, atenuados pelo maior poder de barganha de certas cat:gor~as de
no contrato coletivo de trabalho". trabalhadores. Seja por sua maior possibilidade de orgamzaçao, ou
O enquadramento minucioso das questões trabalhistas no marco por seus níveis de qualificação e instru?ão, seja ainda pela ~enor
legal tenderia a produzir efeitos mais gerais na organização econô- resistência encontrada nas empresas mais modernas, o fato e que
mica. A legislação do trabalho representa mais do que uma regula- os trabalhadores nos ramos "de ponta" conseguem mais faci lmente
mentação das relações entre patrões e empregados; ela regula a distanciar-se dos patamares mínimos de remuneração. Entretanto
concorrência entre os próprios empregadores. Ao limitar o livre certas análises do movimento sindical no período anteriol' a 1964
jogo do mercado de trabalho, a lei pode favorecer determinadas em- e mesmo algumas interpretações sobre as greves de metalúrgicos_ de
presas ou ramos em detrimento de outros. O nível do salário mínimo 1978 e 1979 na Grande São Paulo tendem a exagerar os efeitos
por exemplo, pode afetar consideravelmente os negócios das pequena~ das conquistas por categorias no estabelecimento de de~~ív_eis ent~e
e médias empresas, cuja folha de pagamento tem grande peso no total os trabalhadores, apresentado como surgimento de uma anstocrac1a
das despesas, mas dificilmente afetará a grande empresa moderna, operária". Tais análises, em geral associadas a uma visão _idílica d~
cujos maiores gastos são com equipamentos sofisticados, matérias-pri- pobreza como fonte de redenção, deixam _de lado o fato 1~retorqu1-
mas e produtos de consumo intermediário. Por outro lado, às indús- vel de que os períodos de maiores conquistas para o con1unto dos
trias que fabricam produtos de consumo popular e ao comércio de trabalhadores foram quase sempre inaugurados pela luta. de cate-
mercadorias tais como as roupas, calçados, móveis e utensílios domés- gorias mais qualificadas. Além disso, foi em tom? das maiores pos-
ticos, pode eventualmente interessar uma política salarial que ga- sibilidades de organização e luta de certas categorias, como os traba-
ranta a capacidade aquisitiva de seus compradores; enquanto os lhadores das indústrias básicas, dos transportes e dos _banco~, que
fabricantes e comerciantes de produtos de luxo ou de equipamentos se conseguiram articular no passado os movimentos m_a1s gerai~ ~os
de produção têm como mercado as classes patronais e as empresas trabalhadores. Por isso mesmo, a legislação trabalh1s~a bras1!e1r_a
e, portanto, têm seus interesses vinculados aos níveis de lucrativi- sempre proscreveu a articulação ~o~izontal entre as _e~t1dades smd'.-
dade e de acumulação no conjunto da economia. Ao regular igual- cais. A estrutura em forma de piram1de truncada no ap1ce, estabeleci-
mente as relações de trabalho e os patamares e tetos dos salários, da pela CLT, somaram-se outros dispositi_vos des!i~a~os a tolher os
a legislação provoca efeitos diversos segundo as empresas e rámos. movimentos de solidariedade, entre os quais a pro1b1çao de greves de
No que se refere à situação mais geral, embora certos aspectos da apoio, a interdição de empréstimos ou ~oações ~in_anc~iras de um
legislação tenham sido concebidos para proteger as empresas de sindicato a outro, a proscrição dos pactos mterprof1ss1ona1s para cam-
posição mais precária, são as maiores empresas que se beneficiam panhas conjuntas. _
da regulamentação. Além das vantagens comparativas que já têm O renascimento recente do movimento sindical em Sao Paulo,
em outros planos, inclusive a maior força econômica e a capacidade apesar de não se ter alterado uma vírgula sequer d~s ir:ipedim:n~os
de resistir quando necessário até diante do governo, a grande empre- legais à ação operária, pode em boa parte ser atrib~1do as _cond1çoes
sa conta com as dificuldades dos concorrentes menores em cumprir criadas pelo desenvolvimento da grande empresa. Ja se assinalou em

32 33
outra parte3 que a regulamentação minuciosa das condições de traba- que as empresas darão "o que foi dado pelo governo", nem menos
lho na CLT só poderia dar conta da situação típica das empresas nem mais.
no início da década de 40. Problemas atualmente corriqueiros na O esvaziamento da função dos sindicatos na negociação dos
grande empresa - como o estabelecimento da cadência do trabalho salários teve como conseqüência o descrédito em muitas áreas, quanto
segundo estudos de tempos e movimentos, quotas e prêmios de pro- à utilidade da participação nos sindicatos. Um militante de movi-
dutividade, carreira profissional e promoções, classificação de cargos mentos de bairro, com experiência anterior na vida sindical, declara
e funções e, até mesmo, a organização repressiva dentro das em- ter desistido de lutar dentro do sindicato porque "a grande massa
~ - .
presas - nao estavam previstos na regulamentação legal nem foram não acredita que pertencer ao sindicato resolva alguma coisa. A
objeto de tão minuciosa atenção nas revisões da legislação. expressão corrente é: sindicato não apita, quem manda é o governo".
Na verdade as sucessivas alterações na legislação trabalhista, Entretanto os fatos recentes vieram confirmar a esperança daqueles
empreendidas sobretudo depois de 1964, tiveram quase sempre por que consideravam que, apesar . do quadro institucional rígido, "há
objetivo único reforçar os já draconianos dispositivos da CLT que condições para que os trabalhadores que querem travar uma I_uta
reprimiam a ação dos sindicatos, especialmente no que se refere mais autêntica atuem nos sindicatos". e que, dependendo do mvel
ao direito de greve e à negociação de salários. A índole essencial- de organização dos trabalhadores, sejam obtidas conquistas mesmo
mente repressiva da política trabalhista deixou de lado um dos na situação atual.
instrumentos básicos de contenção da ação operária no período Quase todos os líderes sindicais, tanto os que exercem cargos
anterior, que consistia em determinar por lei o limite do que os de direção em sindicatos como os que fazem oposição às diretoria~
trabalhadores poderiam obter em qualquer reivindicação referente atuais, apontam para as dificuldades de atuação autônoma fr~nte a
às condições de trabalho. No que se refere aos salários, o estabeleci- rigidez da legislação e à vigilância do Estado, que se traduz fac1_l~en-
mento de um patamar mínimo também funcionava como instrumento te em repressão. Não obstante o empenho em contorn_a: a~ ~1ficu!-
de contenção, ao oferecer um ponto de referência, necessariamente dades é visível, seja através de lutas "dentro do permitido , isto e,
baixo, às negociações aparentemente flexíveis. Ao contrário, a legis- mobilizando-se a categoria em função de um rol de reivindicações
lação pós-64 passou a estab~lecer tetos de reajuste salarial que aceitas como legítimas, seja através das tentativas de enfrentar as
retiravam toda flexibilidade à negociação, melhor dizendo elimina- barreiras impostas pelo Estado, em momentos em que se torna
vam a negociação entre patrões e empregados. Numa inversão do possível "vencer o medo" com o resp~ldo da cat~go~ia. O _fa~o de
processo, o máximo passava a ser o mínimo e, nas poucas ocasiões que, em alguns casos, tenha sido posstvel obter vttónas esta hgado
em que havia campo para real negociação, buscavam-se vantagens tanto à "capacidade de luta da direção sindical" como aos moment~s
que "por debaixo do pano" compensassem a limitação legal dos especiais em que o governo "não pode ou não quer usar sua capaci-
reajustes, dando por indiscutível que os índices fixados pelo governo dade de repressão". O fato de que o saber reco~hecer tais_ m?ment~s .
não eram nem máximos nem mínimos mas um decreto a ser cumprido. expressa também a capacidade de direção da hdera_nça_ s10_d1cal n~o
O dirigente de um importante sindicato paulistano referiu-se à deve ser negligenciado. E o fato de que o quadro 10slltuc1onal se1a
negociação salarial anual como "um ritual que não sai do jogo de visto como obstáculo maior ou menor, por uns e outros, faz com que
cartas marcadas". Os representantes patronais limitavam-se a dizer a atenção se dirija para as condições que, ~entro do próp~io movi-
mento dos trabalhadores, ampliam ou restringem a capacidade de
resistência aos constrangimentos impostos pelo Estado.
O debate que se trava atualmente dentro do movimento sindi-
3: C.P.F. de CAMARGO et alii. São Paulo 1975: Crescimento e Pobreza. op.
CII.
cal refere-se, em primeiro lugar, à extensão dos limites imp~stos
4. "As fábricas hoje em dia mais parecem um campo de concentração, com
pela legislação trabalhista e ao tamanho das brechas que permitem
guardas armados nos quatro cantos de cada oficina, com a necessidade de a atuação dentro da estrutura oficial dos sindicatos. Em. segundo
cartões para a locomoção e de autorização para ir ao banheiro, com as revis- lugar, coloca-se em discussão a representatividade das hderanças
tas nu entrada e na saída ... " (Entrevista com operário metalúrgico). sindicais e as condições de maior participação dos trabalhadores,

34 35
não só nas lutas como nas instâncias de decisão dos sindicatos. Em fato de que, realmente, essas campanhas eram aplaudidas. estimula-
terceiro lugar, encontra.se em questão o relacionamento entre a das e até mesmo subvencionadas pelas classes patronais e pelos
atuação do movimento sindical, com sua identidade própria, e as políticos reacionários. Mesmo na atualidade. os reclamos de autono-
lutas mais gerais em torno da organização da sociedade: papel mia costumam traduzir-se em "soberania" na "aplicação da contri-
político do próprio movimento sindical, suas relações com outros buição sindical" e não cogitam de sua supressão.:. E não foram
movimentos sociais e políticos, interesses dos trabalhadores frente poucas as ocasiões em que correntes empenhadas na defesa da inde-
à organização da economia e da sociedade. Todas essas questões pendência dos trabalhadores recorreram a pedidos de fiscalização
referem.se ao modo de encarar os obstáculos ·atuais aos movimentos ou intervenção do Ministério do Trabalho contra seus adversários
dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, aos caminhos que permitem "pelegos".
contornar ou permitirão eliminar esses obstáculos. A arbitragem do Estado nas relações entre patrões e empre-
gados também pareceu por muito tempo representar mais a aspiração
dos trabalhadores do que uma conveniência das classes patronais. Em
A tutela do Estado sobre os sindicatos e a possibilidade todas as situações em que o poder de pressão política das classes
de atuação autônoma trabalhadoras era maior do que o seu poder de barganha no mer-
cado de trabalho, a intervenção do Estado parecia garantir conquistas
A liberdade e a autonomia dos sindicatos sempre foram recla• maiores do que seria de se esperar na livre negociação. A reivindi-
madas pelos trabalhadores brasileiros, mesmo nos momentos em cação dos sindicatos foi, muitas vezes, voltada para a regulamentação
que os governos populistas eram apoiados pelos sindicatos e o Mi• legal , procurando-se mais a proteção do Estado do que a pressão
nistério do Trabalho assumia condutas menos repressivas. A forma direta sobre os patrões. Só recentemente, dado que a regulamentação
de conceber essa autonomia variou, porém, sendo raros os movimen• rígida no período pós-64 foi utilizada constantemente de forma a
tos pela abolição total da tutela governamental. impedir que os patrões cedessem à pressão direta dos trabalhadores,
O reconhecimento dos sindicatos pelo Estado, sob a forma de é que a livre negociação transformou-se em objetivo das correntes
seu registro no Ministério do Trabalho, tem um significado ambíguo. mais combativas do movimento sindical. Ainda assim, está presente
De certa forma, o reconhecimento da legalidade da existência e da a preocupação de que a supressão de garantia~ mínimas do Estado
atuação das entidades sindicais correspondeu a uma conquista do poderia deixar ao desamparo as categorias de menor qualificação ou
movimento operário, antes considerado "um caso de polícia". Quan• maior dispersão. Reivindica-se portanto, além de negociações cole-
do, na década de 30, os sindicatos passam a ser reconhecidos, a lei tivas e da instituição de comissões paritárias de empregados e em-
se antecipa à consciência social e contraria concepções correntes entre pregadores para decidir dos litígios, a manutenção da Justiça do
as classes dominantes. A própria lei "fascista" encontrou resistência, Trabalho, reconhecida como "órgão imparcial, integrado no Poder
provocou indignação entre os empresários e serviu de base à con• Judiciário" que "possa ser reclamado sempre que as negociações ou
vieção de que o governo protegia os empregados contra os patrões. a intermediação das comissões paritárias não tenham êxito" .6
Dessa forma a defesa da legislação do trabalho foi durante muito Pouca atenção se tem dado ao fato de que a regulamentação
tempo encarada pelos trabalhadores como garantia de seus interesses legal das relações de trabalho e a intervenção do Estado nos con-
e as críticas ou ataques à proteção governamental dos sindicatos fli tos trabalhistas têm um efeito desmobilizador, mesmo nos casos
apresentavam.se como expressão de interesses patronais ou reacio-
em que a ação estatal tenha vindo em socorro dos trabalhadores. Em
nários. O fato de que o reconhecimento dos sindicatos implicava
seu enquadramento na estrutura legal e, portanto, limitava a liber-
dade de associação aparecia como secundário diante da dureza da 5. Veja-se por exemplo a Carta de Princípios das entidades sindicais de opo-
coerção privada até então sacramentada pelo Estado. As primeiras sição à direção da CNTI no 5.• Congresso Nacional dos Trabalhadores na In-
campanhas contra o Imposto Sindical foram vistas como tentativas dústria, Rio de Janeiro, julho de 1978.
de enfraquecer os sindicatos e essa interpretação encontrava apoio no 6. Idem, ibidem.

36 37
nome da existência de categorias de trabalhadores com diminuto dos casos, seja por incompreensão política, seja por moralismo, o
poder de barganha frente aos patrões, a manu_tenção de u~ _manto entendimento das autoridades depois de 1964 era de que os diri-
protetor estatal dispensa as lideranç~s de organizarem e mo~1h~arem gentes sindica is deveriam limitar-se a " ficar quietos e manter quie-
as bases de seus sindicatos e essa dispensa se estende aos sindicatos
em geral. O presidente de importante sindicato paulis_t~no lembra
t
r
tos seus liderados". O resultado foi a total inoperância, e portanto
a desmoralização de muitos sindicatos, salvo nos casos em que, gra-
>
que "em geral, as direções sindicais têm ~edo _de mob1ltz~r a cate- ças ao assistencialismo ou às "realizações administrativas", eles pu-
goria" e, com isso, perder o controle da s~tuaçao. ~m m~,itos casos deram dar alguma impressão de atividade.
os dirigentes de sindicatos preferem negociar na cupula em nome Se da simples desmobilização do movimento sindical depois de
da categoria" e só recorrem à massa dos trabalhadores nos ~omen- 1964 pôde resultar algum alívio para os empresários e para o go-
tos indispensáveis para reafirmar sua "deputação"_: por ocas1a~ das verno, sequiosos de " Paz Social", chegaria o momento em que a
eleições ou em assembléias convocadas para pedir a delegaçao. de falta de representatividade dos sindicatos oficiais produziria e feitos
poderes de negociação. Houve inclusiv_e momentos e,~, _q ue ª~,- lide- contrários aos desejados. O surto intermitente de movimentos "de
ranças sindicais representavam verdadeiramente a pos,çao de . ~nter- base", simplesmente espontâneos ou em todo caso à margem da es-
mediário" entre O governo e os trabalhadores . Sua re prcsentat1v1dade trutura sindical oficial, produzia inquietação pela falta de canais de
era reconhecida, na base, na medida em que demonstrassem acesso negociação e pela dificuldade da repressão em identificar os "cabe-
aos órgãos decisórios e capacidade de obter medidas em. favor da ças". Justamente porque a identificação das lideranças significava
categoria; e, junto ao governo, obtinham apoio e reconhcc11nento n_a risco de repressão individualizada, os trabalhadores negavam-se, fre-
medida em que ficasse comprovado seu poder de controle e de paci- qüentemente, a indicar delegados ou comissões representativas que
ficação das bases. pudessem dialogar com os patrões. Por outro lado, os acordos assi-
A definição dos sindicatos como "órgãos auxiliares do Poder nados entre os representantes patronais e os sindicatos em nada ga-
Público", tal como se inscreve na legislação, não expressa apen~s rantiam a conduta futura dos trabalhadores.
a intenção de domínio por parte das classes d_om~nantes. Su~ funça? O episódio da greve dos metalúrgicos da Capital, em que o
continuada de intermediários, não só na med1açao de conflttos epi- sindicato patronal exigiu a presença nas negociações, ao lado da di-
sódicos mas também na rotina do reconhecimento e registro pro- reção do sindicato dos trabalhado res, de um representante da opo-
fission;l, do encaminhamento individual de caráter assistencial,. de sição, é revelador do descrédito que cerca os pelegos. Uma série de
representação nas reclamações, transfor~rn:os ª?s . olhos d~ muitos eventos anteriores já o revelava. As tentativas de representantes mais
trabalhadores em uma espécie de reparhçoes publicas, ao invés de lúcidos das classes patronais, sobretudo industriais jovens e proprie-
órgãos de representação. E muitas direções conformaram-se a ess~ tários de empresas jornalísticas, de estabelecer canais de comunica-
papel, limitando-se quando muito a demonstrar eficácia no atendi- ção com as lideranças autênticas de trabalhadores incluíam, em al-
mento de rotina de seus associados. guns casos, o propósito mal disfarçado de domesticar os líderes mais
De forma aparentemente paradoxal, foi a atuação meramente combativos e o de atraí-los, de forma um pouco mais sutil que a
repressiva dos governos militares que começou a ,c~locar em _xeque da intimidação ou a do suborno, para o papel de conciliação outro-
a estrutura sindical subordinada ao Estado. A log1ca essenc1~! ~o ra reservado aos pelegos. Procurava-se demonstrar aos dirigentes sin-
peleguismo baseava-se, não apenas na cor_ru~ção ou subserv1enc1~ dicais autênticos, mediante homenagens ao equilíbrio, à honradez e
dos falsos lideres sindicais, mas, talvez pnnc1palmente, no fato de às boas maneiras, que o caminho do entendimento e ra mais eficaz
que os sindicatos pelegos mostravam-se capazes_ de carre~r vantage_n ~ do que o da luta. Se a manobra não deu certo, não foi por falta
palpáveis para aqueles que os apoiassem. Muitos dos 111ter;,ento1c_s de empenho de empresários e órgãos de imprensa, mas porque os
colocados na direção dos sindicatos em 1964 eram pelegos à ant_1• líderes mais visados souberam identificar o canto da sereia. Em
ga" e procuravam demonstrar seus serviços em favor da categona outros casos, o que os dirigentes de empresas queriam mesmo era
identificar interlocutores que falassem de fato em nome dos tra-
7
"representada", solicitando o auxílio do governo , m favor. dos tra-
balhadores para que estes "não precisassem lutar . Na maior parte balhadores. Nas greves do ABC e da Capital no primeiro semestre

38 39
de 1978, foi relativamente fácil o reconhecimento das comissões de cipa à reivindicação e ao conflito. Embora não tenham faltado pla-
fábrica em várias empresas que sentiam a urgência de um canal de nos grandiosos e medidas demagógicas de "benefícios indiretos" aos
negociação efetiva. T ambém nesse caso poderia estar implícita a in- trabalhadores (PIS, PASEP, BNH, reforma da Previdência Social
tenção de "apelegar" as lideranças então localizadas. Mas a poste- etc.),8 os problemas imédiatos e cotidianos que afetam o trabalha-
rior onda de demissões demonstrou, simultânea ou separadamente, dor em sua relação com a empresa foram tratados com descaso ou
a dificuldade de domesticar as novas lideranças de base e a falta agravaram-se em função das políticas governamentais: a estabilidade
de lucidez a longo prazo dos dirigentes das empresas. Paralelamen- no emprego foi eliminada; as condições de higiene e segurança do
te, houve esforços do governo em aglutinar lideranças sindicais em trabalho elevaram as ocorrências de acidentes e doenças profissio-
torno da política oficial e tentou-se reeditar a fórmula do populis-
f nais a níveis nunca vistos; a jornada de trabalho encompridou-se,
mo, sob a forma de um "pacto social". O saldo de todas essas ten- sob o disfarce das "horas extras" regulares; tornaram-se freqüentes

t
tativas de controle foi o reconhecimento de que nada vale "nomear" os salários desiguais para trabalho igual, mediante a instituição de
líderes sindicais, se o que se quer não é a mera fachada dos sindi- "carreiras" fictícias e da não observância do "salário de substitui-
catos em funcionamento, frágil como um cenário de papelão, mas ção", além da continuada discriminação contra as mulheres e os
um canal de comunicação real com os trabalhadores. menores. A ação meramente fiscalizadora dos sindicatos, mesmo
\
Há outro aspecto em que a política meramente repressiva dos quando efetiva,9 não poderia suprir as lacunas da lei e a carência
governos militares funcionou às avessas. Os índices oficiais de rea- das convenções coletivas. Em alguns casos, os sindicatos conseguem
juste salarial estiveram entre as pedras angulares da política anti- levar para a mesa de negociações, por ocasião de dissídios coletivos,
inflacionária e baseavam-se no temor de que os empresários cedes- um rol de reivindicações não salariais concernentes às relações e
sem muito facilmente às reivindicações dos trabalhadores. Esses ín- condições de trabalho. Entretanto " quando os patrões endurecem, é
dices, como depois ficou patentemente demonstrado, eram "contas difícil levar adiante a questão", já que depende da Justiça do Tra-
de chegar" para que os salários não crescessem acima do progra- balho a aceitação do dissídio e " em geral só se reconhecem como
mado pelas autoridades fazendárias. Eles ficaram freqüentemente
legítimas as reivindicações de cumprimento dos dispositivos mais
abaixo, não só das necessidades e aspirações dos trabalhadores, mas,
evidentes da legislação" . . . "outras reivindicações, ainda que justas,
inclusive, do que as empresas julgariam razoável conceder.7 Tal po-
dificilmente são acolhidas pelas juntas". Criou-se assim uma nova
lítica terminou por inscrever na ordem do dia a negociação direta
pauta ci • reivindicações, não previstas em lei e nem por isso menos
entre patrões e empregados e levou ao reconhecimento - tanto por
parte de sindicatos de trabalhadores como por parte de associações prement~s.
patronais - de que a intermediação governamental era em muitos
casos desnecessária e poderia mesmo ser nociva aos interesses das
partes. 8. Não se discutirão aqui os resultados de tais planos ou medidas. Não obs•
tante deve-se mencionar que esses resultados foram muito mais modestos do
Já se mencionou por outro lado o descuido dos governos pós-64
que os objetivos propostos.
em relação às potencialidades de uma regulamentação que se ante-
9. Um exame da imprensa sindical na Grande São Paulo revela a freqüên·
eia com que os sindicatos são chamados a intervir em situações abusivas em
', firmas determinadas. Em geral esses casos são noticiados em tópicos nume•
1
7. Em a lguns casos, as empresas já vinham tomando a iniciativa de contor- rosos que, não somente funcionam como denúncia, mas, também, como pu,
nar a política salarial oficial, através de aumentos "por mérito" depois do dis- blicidade do empenho da diretoria do sindicato em assistir a categoria. Uma
sídio. O resultado é que os salários médios em certos ramos cresceram acima leitura mais atenta revela que, na maior parte dos casos, trata-se de ocorrên•
dos índices oficiais. A distribuição dos aumentos era entretanto muito desi- cias em pequenas empresas, em que o sindicato procura persuadir a direção
gual. As empresas utilizaram muitas vezes os aumentos "por mérito" como da firma a agir de outro modo. Quando se trata de empresas maiores, é evi•
instrumento de divisão dos trabalhadores. Por outro lado a política salarial dente ser menor a capacidade de persuasão ou pressão e o tom de denúncia
era contornada também cm relação aos patamares mínimos de correção das costuma predominar sobre o de " providência adotada". São mais raros os
remunerações, através de demissões depois do dissídio. casos em que se noticia recurso ao governo ou à Justiça do Trabalho.

40 41
A forma como os sindicatos reagiram à nova situação nem sem-
pre se traduziu na busca de maior autonomia. Sem falar nos "su-
perpelegos" - que conseguiram redobrar sua subserviência ao go-
verno e para quem liberdade e autonomia sindical constituem mera
frase de discurso ritual - ainda assim há considerável ambigüida-
de das lideranças sindicais na definição do que deva ser a livre ne-
gociação e da margem de intervenção desejável do Estado nos con-
flitos trabalhistas.
A posição mais freqüente entre os dirigentes sindicais autênti-
cos é a de que os patamares mínimos de salários e condições de
trabalho devem ser fixados normativamente, mas que não deve ha-
ver limites máximos das conquistas que possam ser asseguradas por
negociação entre patrões e empregados. Para que essas negociações
possam ser realmente livres o direito de greve deverá ser assegura-
do de forma irrestrita. Quando se discutem as minúcias dessa pro-
posta com os líderes sindicais ou quando se examinam os pronun-
ciamentos públicos de suas entidades, verifica-se que os matizes são
muitos. Em primeiro lugar o mínimo a ser obtido por regulamenta-
ção legal não parece ter a mesma dimensão nas diversas propostas.
As posições vão de um clássico liberalismo, do laissez faire, 10 a um
programa de várias dezenas de itens que exigem alterações legais e
constitucionais para que entrem em vigência, além de constante
atuação do governo para que possam ser aplicados.11 Por outro lado,
também variam as concepções do próprio direito de greve. Algumas
proposições limitam-se ao pedido de não-intervenção do Estado, che-
gando-se a propor que a garantia constitucional do direito de greve
não possa ser regulamentada por lei, na suposição de que qualquer
interferência estatal será restritiva ou repressiva. Outras, ao contrário,
reclamam uma regulamentação minuciosa em que fiquem expressa-
mente enumerados os direitos dos trabalhadores em relação às greves
e em que se determine a proteção estatal desses direitos, bem como
sejam restringidos os poderes de represália dos empregadores.

10. Um dirigente sindical entrevistado, que realizou curso nos Estados Uni•
dos, mostrou-se plenamente convencido das vantagens do modelo americano:
uma regulamentação legal restrita a "duas páginas" e a especificação de todos
os aspectos das relações de trabalho nas convenções coletivas firmadas entr.!
sindicatos de trabalhadores e associações patronais.
11. Veja-se a Carta de Princípios da oposição à CNTI (citada na nota 5).
Das 34 entidades que assinam o documento, 14 localizam-se na Grande São
Paulo e 7 em outras localidades do Estado.

43
E necessário assinalar a diferença entre os projetos que traduzem buam para a repressão à categoria. O racioc1mo foi sintetizado por
~nseios quanto.ªº funcionamento desejável da sociedade e os pro- dirigente de importante sindicato paulistano: "Não se pode esperar
Jetos que constituem programas de atuação do movimento sindical muito dos sindicatos na luta pela liberdade sindical. Pode-se esperar
nas condições existentes. Na verdade, boa parte das questões formu- mais de movimentos de trabalhadores à margem dos sindicatos e de
ladas pelas correntes autênticas dos movimentos de trabalhadores sua articulação com outras forças empenhadas na democratização
referem-se a uma crítica da situação atual e à proposição de um da sociedade. Nos sindicatos, tudo depende do quadro institucio-
contra-modelo, deixando de lado a transição entre a situação criticada nal . . . Há sempre uma ameaça de intervenção pairando no ar. . . O
e a situação proposta. Tudo se passa como se o enunciado das pro- medo é a dominante do sindicalismo. . . As mudanças na sociedade
posições estivesse dirigido a "canais competentes" externos e não vão determinar também a mudança no sindicato". O raciocínio é o
aos próprios trabalhadores. Ou, na melhor das hipóteses, como se mesmo quando trabalhadores militantes preferem dedicar-se à " cons-
um modelo alternativo de sociedade passasse pela rejeição em bloco cientização" dispersa nos bairros do que à organização nas fábricas ou
da ordem atual. O próprio conteúdo da maior parte dos contra-mo- à participação na vida sindical: " A situação tem sido muito difícil .. .
delos aventados exclui no entanto a interpretação radicalizante. t praticamente impossível organizar alguma coisa dentro da fábrica
Trata-se de formular propostas que só têm cabimento na ordem atual e também difícil reunir os operários fora dela ... Houve casos em que
e que supõem a intervenção do poder estatal, mais do que o enfren- trabalhadores mais conscientes tentaram estimular a participação de
tamento entre forças sociais no âmbito da "sociedade civil". seus companheiros de fábrica, mas a própria direção do sindicato
Os reclamos de autonomia e liberdade dos sindicatos por certo atuava em sentido contrário. . . Os próprios sócios dos sindicatos
e~!gem medidas de caráter legal, em especial a revogação dos dispo- constituem uma 'aristocracia' ... Além disso a grande massa não
s1t1vos de natureza repressiva sobre os direitos de associação e atua- acredita que pertencer ao sindicato resolva alguma coisa." As possibi-
ção dos trabalhadores. Entretanto esses direitos não surgem do simples lidades de atuação autônoma dos trabalhadores são muitas vezes
enunciado da vontade popuJar. Mesmo cm conjunturas de maior apresentadas como algo impossível dentro da estrutura "oficial" dos
liberalização do regime político, não tem sido fácil fazer reconhecer sindicatos. Correntes de pensamento bastante distanciadas entre si
ll•1t11lmen1c as liberdades dos trabalhadores. A Constituinte de 1946 quanto a outros aspectos - e que se dirigem mutuamente os epítetos
dd,w u i111ocado a legislação trabalhista do Estado Novo e quase "reformistas" ou " ultra-esquerdistas" - parecem comungar no horror
1t 11 l11• 11• 1tltl 1111çõcs ou acréscimos posteriores :i essa legislação foram à contaminação pelo poder, a seus olhos inevitável em qualquer estru-
• 1111,111 d 1• 111·c 1111111r seus aspectos repressivos. Nas diversas oca- tura oficialmente reconhecida.
' 111 11111 11 111111111111,1110 11indicul pôde manifestar maior indepen- Essas visões "pessimistas" vêm sendo contrariadas pelos fatos.
lN 1 11 11111 111111111111. 1•lt· 111111 o fc1. Rroçns à proteção das leis, mas As greves de 1978 e 1979 demonstraram a capacidade de ação dos
t 1 111 trabalhadores de diversas categorias a despeito da persistência da
11 111 • ,lo 'I"' , ,1111190 1, 111 1P1 movimentos de traba- legislação repressiva. Por outro lado, a própria comparação entre
1111111 1 1 111h 111 11 , ,1111,111.-1111 11 11u11dro institucional, os diversos movimentos grevistas, cujo sucesso foi muito desigual.
1 f I li l 1 !1111111" 111 , , 1111111 111>111 l' XÓ,teno, que apenas revela a importância da direção sindical na articulação das lutas.
1111 11\111\ . ,, , 1111r 111111 pude :.cr objeto de sua O surgimento de uma liderança independente em vários sindicatos
l11h111111 \'111h11ll'lru um correntes de oposi- importantes da Grande São Paulo mostrou que as condições de
nU1111r 111 , 1111111 tJf'u.,içúo aos sindicatos e não desenvolvimento do sindicalismo autêntico não estão exclusivamente
l•1••· 11111· 1 pretendam apenas "conquistar a determinadas pela legislação, mas dependem sobretudo das formas
1 l11lllmu 11111 11~1lo. 1111 mesmo casos em que dirigen- encontradas pelos trabalhadores para contornar ou enfrentar os obs-
11 au1,11t1\l111, 11rtuntlos do oposição ao peleguismo, limitam- tá( :los opostos a seus movimentos. O relativo insucesso das tenta-
, t111htl r m , on•lrungimcntos institucionais à sua atuação tivas de sindicalismo paralelo parece mostrar outro lado da mesma
m ftt11l l111111r ,ru~ sindicatos simplesmente da forma prescrita moeda: na articulação de movimentos amplos, torna-se vital o espaço,
• 111111111 pndruo, uindn que não se deixem corromper nem contri- ainda que estreito, do sindicato institucionalmente reconhecido.

44 45
Entretanto não se pode igno rur que o sindicalismo autêntico intensa rotatividade do emprego, e não chegam a estabelecer os laços
representa ainda, do ponto de visto quontitativo, uma pequena pro- elementares de solida riedade com seus companheiros de ocupação;
porção das direções de cntidodcs. Os grupos de oposição, por sua o conhecimento que chegam a ter do sindicato é muito indireto e
vez, ainda são débeis na maior parle das categorias. A importância vago; o preço das taxas e mensalidades para a filiação voluntár ia
dos novos dirigentes sindicais e dos grupos de oposição está nas ao sindicato chega a pesar em seu orçamento; 12 e, segundo alguns
brechas que começaram a abrir numa estrutura cuja rigidez se pro- informantes, "trabalhadores que vêm da roça" teriam muito medo
clamava sempre. Um número pequeno de movimentos bem sucedidos de pe rde r o emprego e estariam prontos a acatar as restrições de
abriu caminho para uma série de novas tentativas, inclusive de cate- capatazes e chefes quanto à sindica lização. 13 Por outro lado as dire-
gorias sem experiência anterior de atuação sindical. Por mais canhes- ções sindicais são freqüentemente acusadas de não se empenhar no
tras que tenham sido as direções imprimidas a algumas greves,. o aliciamento de novos associados e a té mesmo de dificultar a sindica-
espaço de articulação dos movimentos reivindicatórios começou a lização de voluntários. Em alguns sindicatos menores as diretorias
amplúir-se . . tenderiam a se precaver contra a entrada de eventuais opositores
Não está definido o modo pelo qual o sindicalismo autêntico que poderiam modificar a correlação de forças nas assembléias e
poderá firmar-se e desenvolver-se no futuro. A fiagrante contradição eleições. Na maior parte dos casos, o desincentivo à sindicalização
entre as leis e os fatos terá de ser enfrentada a qualquer momento, estaria relacionado ao papel burocrático-assistencial assumido pelos
o que passa a exigir a articulação política dos trabalhadores. Con- sindicatos, como sucedâneo das atribuições re presentativas cerceadas:
tudo, a experiência recente demonstrou um potencial de mobiliza-
" Nos últimos treze anos, desenvolveu-se muito o assistencialismo nos
ção das bases sociais em níveis até então im,uspeitados. Na maior sindicatos. A assistência é dada como se fosse um favor, em troca
parte dos casos não foi somente a habilidade o u lucidez da liderança de apoio para q ue os dirigentes permaneçam. Alguns sindicatos têm
que abriu caminho aos movimentos bem sucedidos. Ao contrário, se
hospitais, c'ólônias de férias etc. Ao mesmo tempo fazem tudo para
os novos dirigentes sindicais ou grupos de oposição puderam, a pesar desincentivar a sindicalização. t mais fácil fazer as coisas com me-
de · sua inexperiência e falta de articulação, contribuir para o renas- nos sócios" já que a base fundamental da receita dos sindicatos
cimento da vida sindical foi porque tiveram de alguma forma "o res- vem da contribuição sindical o brigatória dos trabalhadores, ainda
. paldo da categoria" e porque exerceram uma ação que correspondia
que não sindicalizados.
aos anseios dos trabalhadores. O desenvolvimento ulterior dos movi-
Há uma explicação mais "politizada" dos baixos índices de
mentos de trabalhadores .estará intimamente ligado às formas de
sindicalização. Segundo muitos, a própria ineficácia dos sindicatos
articulação entre as direções sindicais e a participação das bases.
na mobilização dos trabalhadores, a inexistência de uma vida
associativa intensa e a falta de combatividade do sindicato em
Direções sindicais e participação das bases defesa dos associados constituiriam desestímulos à sindicalização.
O arg:imento é razoável mas leva a outras dúvidas. Se isso expli•
Embora haja diferenças notáveis entre os níveis de mobilização casse tudo, seria de se supor que o diferencial de filiações aos
e atuação dos diversos sindicatos da região metropolitana de São
Paulo, os índices de sindicalização são geralmente baixos entre os 12. A título meramente exemplificativo, um trabalhador metalúrgico "de Ji.
trabalhadores das várias categorias. Em geral a proporção de sindi- nha", na Capital em 1977, deveria dar mais de 54 horas anuais. ou 4,5 men-
calizados situa-se entre 10 e 15 % da categoria representada. Vários sais, de trabalho para arcar com a matrícula e as mensalidades de seu sin-
fatos costumam ser apo;tâdos para explicar o pequeno número de dicato./ • . . . .
associados. Para a grande ·massa de trabalhadores não qualificados 13. R gistramos a informação, apresentada por lideres smd1ca1s categoriza-
dos. Entretanto outras informações disponivcis não confirmam a presença na
os o bstáculos são muitos: trabalhadores que não têm uma profissão grande indústria de fortes proporções de migrantes rurais-urbanos de primei-
doíinida transitam entre as diversas categorias profissionais, dada a ra geração.
sindicatos espelhasse os graus diferenciados de combatividade. Ou, rando associados de um lado e diretores e funcionários de outro.14
formulando-se a mesma questão de outro modo, a generalidade dos A presença de tais instalações é hoje corriqueira mesmo em sindi-
pequenos índices de sindicalização indicaria uma falta de comba- catos pequenos e nem sempre expressa apenas a postura distanciada
tividade indiferenciada entre os sindicatos paulistanos. dos dirigentes. A relação entre representantes e representados tor-
Os diversos fatores apontados contêm cada qual seu grão de na-se impessoal pelas próprias dimensões dos sindicatos e das cate•
verdade. Mas é necessário discutir outros. O fato, por exemplo, gerias profissionais.
de que a base territorial de um sindicato determine notável disper- A necessidade de formas intermediárias de articulação dos
são entre os diversos núcleos da categoria torna impossível fazer trabalhadores, entre a direção sindical e a b11se, é sentida em âm-
da sede sindical um local de reunião constante dos trabalhadores bito generalizado. Outrora chegou-se a pensar em sindicatos por
representados. Um exemplo colhido ao acaso: num conflito locali- empresa, ou na pluralidade sindical de acordo com as diversas
zado em empresa da Zona Sul da cidade, a propósito de convênio orientações políticas, a exemplo do que ocorre em outros países.
de saúde, os trabalhadores sentiram a necessidade de ter a cober- Essas idéias jamais chegaram a ser levadas a sério pelas correntes
tura de seu sindicato. A sede deste situava-se no centro da cidade mais representativas do movimento sindical brasileiro, sendo antes
e centenas de trabalhadores tiveram que deslocar-se dezenas de propostas de " estudiosos do assunto" ou de tendências marginali-
quilômetros, pagando o custo de transporte e perdendo considerá- zadas entre os trabalhadores. Os argumentos contrários eram muito
vel tempo no tra~to, para que pudessem reunir-se "em sua casa". fortes: a dispersão dos trabalhadores assalariados em muitas em-
E evidente que a freqüência à sede do sindicato não pode ser uma presas exigia que eles se congregassem para que tivessem alguma
rotina para os trabalhadores e que é necessária uma situação de força; e a situação minoritária e frágil dos trabalhadores exigia que
especial interesse para assegurar quorum razoável nas reuniões. a "unidade de classe" fosse colocada acima das divergências de
Os próprios números de trabalhadores. que constituem as catego- opinião. Ainda hoje há muita relutância, nos sindicatos maiores,
rias representadas pelos sindicatos tornam difícil seu contacto dire- em admitir qualquer espécie de subdivisão. O que se propõe é
to. Em alguns casos são centenas de milhares. Torna-se difícil até antes uma ampliação da diretoria do sindicato ou a faculdade de
mesmo a participação da maioria da categoria nas assembléias. nomear delegados nas empresas, de forma a que as direções possam
Apenas em casos excepcionais, como o de São Bernardo do Campo ter contacto com as bases. Por outro lado, buscam-se canais de
cm 1979, em que mais de 80% dos metalúrgicos compareceram comunicação de massa, através sobretudo de dinamização da im-
às assembléias de greve, foi possível reunir fisicamente toda a cate- pi:ensa operária e da utilização de histórias em quadrinhos.
goria profissional. Ainda assim é evidente que uma assembléia de B compreensível que as direções sindicais não cheguem a aven-
100 mil pessoas pouco difere de um comício, sendo impossível tar a hipótese de uma subdivisão de suas entidades em organismos
garantir o direito de todos à participação nos debates. Essas difi- menores, o que significaria uma diminuição de poder, tanto do
culdades, por ocasião das campanhas, somam-se à situáção cotidiana ponto de vista da representatividade numérica como dos recursos
de dificuldade de coordenação, já reiteradamente explicitada por da contribuição sindical. O fato de que a unidade de classe poderia
dirigentes sindicais. "O sindicato tem 12 diretores e 12 suplentes. ser assegurada por outros meios, congregando-se entidades sindicais
E o mesmo número para sindicatos pequenos e grandes. Como menores, é apenas uma hipótese. E a situação atual das federações
manter um contacto direto e permanente com a base quando há e confederações não estimula a que se corra o risco. Entretanto,
centenas de empresas e, em algumas delas, há muitos milhares de a própria vida sindical das categorias mais atuantes está criando
trabalhadores?" as formas de articulação intermediárias. As comissões de fábrica
ou d •:mpresa, tornadas aparentes pelas últimas greves, correspon-
O acesso direto e individual dos trabalhadores . ao sindicato 1
só se torna possível porque é limitado o número de interessados.
Há alguns anos, um velho líder operário manifestava sua estranhe- 14. Declarações de Edgard Leuenroth in Aziz SIMÃO. Sindicato e Estado.
za pela presença de balcões e guichês na sede de sindicato, sepa- São Paulo, Dominus, 1966.

48 49
dem a uma necessidade de articulação de base que não poderia dados e uma chopada para a categoria . .. " Em sindicatos autênti-
ser suprida pela estrutura tradicional dos sindicatos. Elas corres- cos há também uma certa divisão entre bases e diretoria, às vezes
pondem em parte à própria especificidade das reivindicações ao deliberadamente explicitada. As direções sindicais sabem que são
nível da empresa, mas traduzem também a necessidade de articula- reputadas responsáveis pelas decisões do sindicato, ainda que tenham
ção direta e primária entre os trabalhadores, que os sindicatos sido derrotadas em assembléia. Em alguns casos temem que o quo-
não poderiam abarcar com suas dimensões e características atuais. rum das assembléias seja pouco representativo do conjunto da
Por outro lado, as oposições sindicais, que começam a ter uma categoria e que algum grupo interessado numa decisão possa conse-
participação continuada na vida sindical e não apenas nos momen- guir maioria ad hoc pela arregimentação de amigos ou correligioná-
tos de eleição da diretoria, expressam uma outra forma de arti- rios. Colocadas assim diante da dupla responsabilidade de ter de
culação intermediária, cujos recortes não se dão a partir das espe- responder às autoridades e à categoria por decisões que não corres-
cificidades locais mas em torno das orientações da ação das pondem a seu pensamento, é grande para essas direções a tentação
entidades. de controlar as assembléias de forma autoritária ou simplesmente
Uma questão da maior importância e ainda em debate é a sabotá-las.
que se refere à relação entre essas fo.rmas de articulação interme- A presença de oposições organizadas e sua influência na vida
diária e a direção dos sindicatos. Há uma evidente tensão entre dos sindicatos é uma das questões mais controversas. Não só os
os movimentos "de baixo para cima" e os propósitos dos dirigentes dirigentes sindicais tendem a encará-las de forma diferenciada, mas
sindicais em " atingir as bases". As comissões de empresa, por também revelam-se contradições no curso dos pronunciamentos do
exemplo, deveriam constituir-se de forma representativa, sendo eleitas mesmo sindicalista. O mesmo dirigente sindical que declara que
pelas bases, e, nesse caso, poderiam opinar no sindicato em nome as oposições "mais atrapalham do que ajudam" afirma mais adi-
de seus representados? Ou, ao contrário, caberia à direção dos ante que elas "valorizam as diretorias" e "animam as assem-
sindicatos nomear delegados de empres.a, que auscultariam os tra- bléias". Outro, depois de demorados elogios às oposições e reitera-
balhadores e transmitiriam de forma meramente consultiva a recep- das demonstrações de simpatia pelas dificuldades e perseguições que
tividade das bases às propostas da liderança? A alternativa se refere enfrentam, queixa-se de sua falta de iniciativa e afirma categorica-
à existência de instâncias intermediárias de comunicação e de deci- mente que elas teriam maior liberdade de movimento "por não
são entre os associados e a diretoria, fora dos momentos eleitorais estarem atadas à estrutura legal que cerceia o sindicato propriamente
e das grandes campanhas, uma vez que se conhece a impossibili- dito". As definições apresentadas pelos grupos de oposição são
dade de funcionamento da assembléia sindical em caráter perma- também diferenciadas. No entanto interessa menos enumerar os
nente. projetos e os qualificativos do que avaliar o papel real que vêm
Na maior parte dos sindicatos, a diretoria eleita atua em nome exercendo as oposições sindicais.
dos representados tendo extremo cuidado no ·evitar consultá-los: Na verdade, o surgimento das oposições foi útil, ainda que
"O medo que certos sindicatos têm é tão grande que eles se limi- de forma incômoda, . ao desempenho de muitas direções sindicais.
tam a convocar as assembléias através do Diário Oficial. Quando A oposição funcionou como aguilhão em muitos casos, levando as
a categoria força o comparecimento, tentam bloquear a participação. diretorias não só a atuar pensando na fiscalização e na possível
Há um medo pânico de que a assembléia tome decisões. Por outro denúncia, mas a mobilizar suas próprias bases, nas campanhas,
lado, há certas iniciativas que mesmo as diretcrias 'não-pelegas' têm assembléias e eleições. Mesmo notórios pelegos foram forçados a
dificuldade de assumir, porque temem a intervenção." ... "Nos sin- sair de seu conforto para lutar nas assembléia& e eleições, reinaugu-
dicatos pelegos há um isolamento deliberado entre diretoria e base. rando, ainda que de forma incipiente ou mesmo fraudulenta, o ritual
Um exemplo é o da posse de diretoria, reeleita pela quarta vez, da {,..:mocracia nos sindicatos. Nos sindicatos mais autênticos, a
de um sindicato da Capital. A cerimônia transcorreu na presença presença de correntes diversificadas de oposição levou não só à
de autoridades e de dirigentes de outros sindicatos, com discursos "animação" das assembléias, pela mobilização das bases de tendên-
de elogio à Paz Social, e encerrou-se com um coquetel para os convi- cias diversas, mas colocou de novo uma questão que parecia esque-

50 51
cida depois de tantos anos de ditadura: como devem conviver os diretorias de que haja em seu sindicato "uma oposição de Sua
trabalhadores de opinião diversa, e como podem preservar sua uni- Majestade" que respeitosamente divirja e acate as decisões. Existe
dade na ação a despeito de suas divergências de orientação? ainda o caso de direções sindicais que gostariam de transferir aos
A convivência entre situações e oposições, sem eliminar o deba- grupos de oposição, "que não estão amarrados pela CLT nem subor-
te acirrado e o empenho na disputa de posições de direção nos dinados ao Ministério", as iniciativas mais aniscadas, que "extra-
sindicatos, pode ser um primeiro passo na 'ampliação do movimento polam" a rotina e situam-se na zona de incerteza entre o permitido
sindical em seu conjunto. À merlida que essa convivência leve ao e o proibido. Em todos esses casos, é raro aventar-se, mesmo como
reconhecimento da representatividade de tendências diversas e torne hipótese, a participação das correntes não representadas na diretoria
necessárias regras de decisão aceitas por lodos, tornar-se-á viável no processo decisório do sindicato. Em geral os dirigentes sindicais
um movimento de massas de maior envergadura. são ciosos do mandato obtido nas eleições e julgam-se responsáveis
Uma questão aparentemente secundária constitui ainda um perante a massa que os elegeu, dificilmente compartilhando respon-
obstáculo para o funcionamento de uma democrac~a sindical, em sabilidades com os sindicalistas atuantes que não têm cargos.
que as diversas correntes convivam e possam somar-se no cumpri- Por seu lado, grande parte das correntes de oposição reluta
mento das decisões majoritárias e no respeito aos direitos da minoria. em atuar conjuntamente com as direções sindicais, salvo em mo-
Trata-se da desconfiança mútua entre as lideranças, mesmo das mentos especialíssimos da mobilização geral da categoria em alguns
correntes autênticas. Ainda que se neguem em toda parte a exis- dissídios e greves. Além das desconfianças já apontadas, é freqüente
tência de ambições pessoais próprias e a de restrições de natureza confundir-se o sindicato com a sua diretoria e, nesse caso, a única
pessoal aos membros de outras correntes, é praticamente inevitável forma possível de participação é "apossar-se da máquina". Para isso
ouvir-se, nas conversações com dirigentes sindicais e líderes de o momento realmente decisivo é a eleição e toda a ação fica voltada
oposição, insinuações sobre o comportamento " individualista" de para a preparação da campanha eleitoral: trata-se de demonstrar em
j ''certos companheiros" ou sobre as motivações pessoais da conduta todas as ocasiões possíveis a dedicação, combatividade e honestidade
alheia. t freqüente a interpretação de que "a divisão (da diretoria dos opositores e de simultaneamente desmoralizar a diretoria que
do sindicato) ocorreu por motivos pessoais", de que a conduta de é, no mínimo, inepta, no máximo, pelega. As propostas encaminhadas
determinado dirigente só se explica por seu "empenho em eternizar- em assembléia destinam-se muitas vezes a demonstrar radicalismo
se na direção", de que o surgimento de uma corrente de oposição e denunciar a conduta conciliatória do adversário: "Muitas vezes
deve-se "à vaidade" etc. Reproduz-se, no interior das próprias surgem, por exemplo, propostas de aumento de 100% nas assem-
correntes autênticas, a interpretação moralista já largamente difun- bléias preparatórias de dissídios. Os proponentes sabem que tal
dida a propósito dos sindicatos pelegos. A tônica de muitas campa- índice é inviável, mas grande parte da massa sempre vota no percen-
nhas de oposição é a denúncia da "corrupção", da "fraude", da tual mais alto e assim eles aparecem como representantes de um
"safadeza" dos pelegos, colocando-se em plano secundário a atuação grande número de trabalhadores. Em alguns casos as propostas
do sindicato propriamente dito. E é freqüente entre as direções inviáveis são aprovadas e a diretoria tem que fazer uma grande
sindicais autênticas a desconfiança de que todo movimento que ginástica para não aparecer como 'conciliadora' ou 'traidora' por
escape a seu controle possa ter motivações sllbalternas ou, mesmo, não ter obtido a reivindicação no dissídio".
possa estar a soldo de algum patrão ou do governo. Ainda não se chegou ao fim do debate sobre as diversas media-
Há, por outra parte, uma controvérsia a respeito do papel das ções entre os sindicatos e suas bases. Entretanto as experiências
oposições nos sindicatos não pelegos. Poucos são os dirigentes sindi- em curso nos sindicatos autênticos e grupos de oposição em São
cais autênticos que julgam inútil ou nociva a presença de oposições Paulo deram início a novas formas de articulação, criadas pelas
em seu sindicato. Entretanto é freqüente o desejo de "cooptar" os necessidades imediatas e que vêm sendo testadas no funcionamento
opositores e em vários casos afirma-se que "se eles querem trabalhar das entidades e nas campanhas por categoria. Trata-se ainda de
conosco as portas estão abertas" ou que "os bons elementos são experiências limitadas à minoria dos sindicatos e a uma pequena
sempre aproveitados". No extremo oposto está o anseio de algumas parte dos trabalhadores. Entretanto seus resultados na revitalização

52 53
do movimento sindical já se fazem sentir. Começa a notar-se igual- A vigilância sobre os sindicatos é constante e a ameaça de
mente uma ampliação dos contactos entre os sindicatos e uma troca intervenção é latente. O objetivo dessa vigilância é evitar tanto o
de experiências entre correntes e categorias diversas, que prenuncia possível apoio do sindicato a manifestações de caráter mais geral
uma extensão do sindicalismo realmente representativo. quanto a influência de correntes políticas no interior dos sindicatos.
Deve-se considerar entretanto que o desenvolvimento atual do E menos diretamente reprimida a participação de sindicalistas nos
sindicalismo na Grande São Paulo não pode pretender uma recupe- partidos políticos oficiais e nas campanhas eleitorais. Mas, mesmo
ração do passado ou uma "volta às tradições" anarquistas do início nesses casos, "o amordaçamento dos sindicatos levou muitas vezes
do século. Estamos muito longe do momento em que pequenas dirigentes sindicais que queriam participar da política a se filiarem ao
categorias profissionais estáveis, quase "ofícios", encontravam no partido do governo. Os que iam para a oposição corriam o risco de
sindicato uma articulação interpessoal. Não tem, por outro lado, ser cassados".
cabimento pretender uma " unidade de pensamento" em movimento Além dos óbices legais e da coerção de fato, há também uma
de m 9 ssas da amplitude do atual. t justamente na diversidade que certa resistência, no interior do próprio movimento sindical, à pos-
se assenta o crescimento atual dos movimentos de base. Se a sível utilização facciosa de entidades "que pertencem a toda a cate-
multiplicidade de iniciativas isoladas foi determinada pelas condições goria e não a este ou aquele grupo". Na verdade são freqüentes
adversas à articulação e às mobilizações amplas, ela constitui um as ligações partidárias dos dirigentes sindicais e há muitos que
trunfo na reconstrução de um movimento sindical livre, que pode utilizam o sindicato como um trampolim para algum mandato eletivo.
ter como bases grupos enraizados e valer-se, em sua orientação, de Evidentemente não se trata nesse caso de atividade política do
experiências e pontos de vista variados. sindicato enquanto tal e a categoria não é mobilizada em torno de
questões ou objetivos políticos determinados.
O processo de criação de novos partidos, atualmente em curso,
Sindicatos e política com a diferenciação das forças de oposição, apresenta possibilidades
novas para a organização propriamente política dos trabalhadores.
"As atividades políticas dos sindicatos sempre foram proibidas. Haverá certamente líderes sindicais em todos os partidos políticos,
A definição do que é política, para a legislação, é no entanto circuns- tanto do governo quanto da oposição. Entretanto é inegável que as
tancial". Durante muito tempo considerou-se que o que estava lideranças mais representativas do sindicalismo autêntico surgido na
proibido era fazer política partidária dentro do sindicato, o que década de 70 tendem a agrupar-se em torno da proposta de criação
não impedia sequer que os dirigentes sindicais participassem dos do Partido dos Trabalhadores. Ao invés de se contentarem com os
partidos e eleições a título individual. Apenas o sindicato enquanto "departamentos trabalhistas" que atestam a minoridade dos sindica-
tal não podia apoiar este ou aquele partido ou candidato de forma listas no sistema partidário tradicional. as novas lideranças querem
oficial. Os temas de interesse público podiam ser, e eram efetiva- um partido não somente voltado para as causas dos trabalhadores
mente, discutidos abertamente nos sindicatos. Hoje os limites são mas que, também em sua forma de organização, revele sua identi-
muito estreitos. A rigor as únicas atividades permitidas são as
reivindicações, mesmo assim dentro de limites estreitos, e o funcio- dade própria.
Uma questão nem sempre ressaltada nas análises sobre o sindica-
namento dos serviços assistenciais. t certo que alguns temas de
interesse geral que afetam a categoria podem motivar a atuação lismo contemporâneo em São Paulo é justamente a do surgimento
do sindicato, como por exemplo as reclamações contra os índices dessa afirmação de autonoy a dos trabalhadores. O fantasma do
I
oficiais do custo de vida . . Contudo o sindicato é sempre mal visto obrei rismo ou o medo de que se divida a frente das oposições
ao protestar. "O que poderia dar força ao sindicato, como as mani- construída duramente nos anos de resistência à opressão obscure-
festações coletivas, ou a convocação da categoria para a discussão cem a visão do que é essa identidade. Ela não corresponde apenas
de temas de interesse geral. é quase sempre considerado atividade ao reconhecimento, curial de resto, de que há interesses específicos
polftica e proi'bido". de classe que não se esgotam na oposição ditadura-democracia. Ela

54 55
é também o resultado das formas de resistência que tornaram pos- vimentos de trabalhadores vem ampliando e solidificando a oposição
sível a luta pela democracia diante de uma repressão sem freios. democrática ao regime, ao incorporar setores antes marginalizados
A dispersão a que foram forçados, contra a sua vontade, os oponen- da ação social e política. Ao mesmo tempo, a construção de movi-
tes do regime levou ao surgimento de inúmeras iniciativas, isoladas mentos autônomos de trabalhadores constitui a maior garantia de
em sua especificidade, em que pode hoje fundar-se o renascimento que o desenvolvimento político atual poderá prosseguir, fundado
do movimento democrático. É compreensível que movimentos surgi- em interesses e não apenas em opiniões.
dos da base, e que conseguiram articular-se a duras penas, não se
queiram entregar de mão beijada a qualquer direção que não tenha
surgido "de baixo para cima".
É verdade que o "democratismo" arraigado, oriundo da resis-
tência dispersa, pode muitas vezes ser manipulado de forma a
impedir um debate realmente democrático das bases sobre as alter-
nativas propostas. É visível em determinados casos o empenho em
desenvolver as atitudes mais preconceituosas e estreitas, ditas "de
base", contra correntes divergentes, por parte de grupos que chega-
ram primeiro, mas de forma tão "externa" como os demais. Entre-
tanto, é a partir do contacto entre os próprios movimentos reais, e
não simplesmente do confronto de opiniões, que se poderá ultra-
passar a situação de isolamento e desconfiança.
A articulação dos trabalhadores com outras correntes de oposi-
ção, mesmo com aquelas que se dispõem tão-somente a apoiar os
interesses das classes trabalhadoras, passa pela organização dos pró-
prios trabalhadores. As características do momento anterior, em que
os riscos da atuação política eram extremos, começam a ser ultra-
passadas. Naquela situação, como já foi assinalado há alguns anos;~
as igrejas e o partido de oposição significavam um abrigo e um
selo de legalidade, necessários a qualquer ação de resistência que
quisesse minimizar os riscos. Por outro lado, o movimento estudantil,
apesar d~ _duramente reprimido, buscou sempre solidarizar-se com os
trabalhadores e, nas circunstâncias mais adversas, contribuiu para
manter a resistência contra uma opressão que não visava especifica-
mente aos estudantes ou às classes de que provinham. Quando as
novas lideranças dos trabalhadores marcam suas distâncias em rela-
ção ao conjunto indiferenciado de oposições, não faltam vozes para ft
lembrar a importância da frente democrática no desenvolvimento '
político da última década. Entretanto o surgimento de novos mo-

15. C.P.F. de CAMARGO et a/ii. São Paulo 1975: Crescimento e Pobreza.


op. cit., p. 148 e seguintes.

56 57
Comunidades Eclesiais de Base
Candido Procopio Ferreira de Camargo
Beatriz Moniz de Souza
Antônio Flávio de Oliveira Pierucci

~
'l
A análise de modalidades recentes de organizações voluntárias,
como as Comunidades Eclesiais de Base, apoiadas por organismos
institucionais da Igreja, coloca o problema da atuação da Igreja
católica na sociedade civil paulistana. O tema transcende os limites
deste ensaio, pois é toda a complexa estrutura das classes sociais
paulistana e não somente a população pobre .que recebe formas
de atendimento, propostas ideológicas e estímulos para organização,
provenientes da Arquidiocese de São Paulo, de suas paróquias e dos
inúmeros movimentos filiados à Igreja. Neste sentido, não se pode
falar propriamente do catolicismo como instituição exclusiva das
classes populares, nem de seus bispos e padres como intelectuais
vinculados organicamente a essas camadas.
Em um estudo de associações voluntárias das classes populares,
é imprescindível mencionar a Igreja católica, por se tratar de um
importante organismo da sociedade civil. Tanto mais que a orienta-
ção pastoral arquidiocesana tendeu, nos últimos anos, a acentuar
sua preocupação com camadas desprivilegiadas da sociedade e com
formas de resistência civil à opressão dos aparatos policiais e mili-
tares do Estado.

59
Embora se descortine no panorama ideológico da Igreja cató- tufam núcleos de resistência à opressão do Estado autoritário. Reu-
lica em São Paulo toda uma gama de posturas ideológicas coerentes niões e debates realizaram-se nos prédios da Igreja. Nenhuma outra
com a pluralidade e antagonismo das classes sociais, parcela consi- Instituição teria recursos e independência para abrigar estas formas
derável do clero e dos leigos, com o incentivo da hierarquia, tem embrionárias de defesa civil. E a hospitalidade não foi apenas mate-
proporcionado condições e estímulos para a organi1J1ção de forças rial; procurou transferir para os movimentos cívicos a relativa
populares na sociedade civil. O controvertido problema da re-orienta- imunidade que o prestígio da instituição mantém no país. Imuni-
ção social da Igreja católica no Brasil parece encontrar suas raízes dade decrescente devido ao jogo de imagens contraditórias, refletindo
tanto em determinantes da sociedade inclusiva, como no criativo mudanças recentes que superpõem à sua. face tradicional o feitio
\ surto de renovação inspirado no patrimônio ideológico do catoli- rejuvenescido do catolicismo e de suas novas alianças.
cismo. Em sua fase atual, o Estado, no capitalismo dependente, Expressiva forma de participação é exercida pela Comissão de
tende a dispensar a ideologia religiosa, fundando sua legitimidade Justiça e Paz, através da qual a arquidiocese de São Paulo passou
no crescimento econômico e na doutrina da segurança nacional. a atuar de maneira direta e sistemática, em nome âa própria insti-
Igualmente, o antagonismo das classes, com a acentuada pauperi- tuição religiosa, na defesa de direitos -humanos. A intransigente luta
zação das camadas trabalhadoras, dificulta a difusão de uma ideolo- contra a tortura praticada por aparatos militares e policiais, a defesa
gia da conciliação- social de tipo organicista que atribuía a cada de presos políticos e de presos comuns, a ação junto aos menores
classe o valor de um órgão essencial ao funcionamento do todo. carenciados constituem exemplos de ação eclesial, enquanto formu-
Neste contexto, descrescem os interesses recíprocos de colaboração lação positiva de uma ética social.
entre Igreja e Estado e o catolicismo se defronta, em sua Ao definir as prioridades para a ação pastoral 1978-1979, con-
prática cotidiana, com a massa de explorados e excluídos. A opção firmava a Arquidiocese os objetivos considerados essenciais jl no
de parcela crescente da Igreja católica é ir buscar na vida do Cristo biênio anterior. As prioridades aceitas envolveram quatro ê~!ases
a inspiração que estabeleça seu privilegiado relacionamento com pastorais: Pastoral do Mundo do Trabalho, voltada para a classe
estas camadas mais pobres da população. Nesta direção, elaborou- operária e para outros trabalhadores; Pastoral dos Direitos Huma-
se na América Latina um novo pensamento teológico que procura nos e Marginalizados, preocupada com as violações de direitos hu•
se fundamentar na análise sociológica da realidade social e na re- manos fundamentais, quer os de natureza constitucional, quer os re•
leitura dos Evangelhos. Sobretudo neste pensamento articula-se a lativos às relações do trabalho e à próp~ia :;obrevivência de cama-
reorganização dos intelectuais católicos que buscam um relaciona- das sociais oprimidas; Pastoral da Periferia, voltada para as popu-
mento orgânico com classes populares. lações mais pobres, tangidas para as áreas periféricas da cidade;
A ação progressista da Igreja assumiu várias formas concretas, Pastoral das Comunidades Eclesiais de Base, objetivando renovar as
de acordo com a oportunidade política e a própria viabilidade de estruturas eclesiais por meio de novas formas de sociabilidade, in-
reorganização e de expressão das associações voluntárias. Principal- tencionalmente diversas de padrões de relacionamento humano na
mente a partir de 1964, com a instauração do regime político auto- metrópole.
ritário e a conseqüente repressão de várias organizações representa- Bastaria este elenco definindo prioridades na utilização dos re-
tivas de classes e grupos profissionais, a presença da Igreja católica cursos humanos e materiais da arquidiocese para se ter uma indi-
na sociedade civil paulistana se fez sentir de duas maneiras diferen- cação de como sua presença interpenetra amplos e variados movi-
tes: em primeiro lugar, apoiando movimentos e instituições não mentos da sociedade civil, especialmente os das classes populares.
confessionais, que se viam contidos e perseguidos pelos aparatos Na pesquisa empírica realizada para a elaboração do presente tra-
repressivos do Estado; em segundo lugar, atuando através de orga- balho, a Igreja católica foi freqüentemente reencontrada em movimen-
nismos propriamente religiosos, entre os quais destacam-se as Co- tos não-confessionais como os sindicatos e oposições sindicais, as rei-
munidades Eclesiais de Base. vindicações por melhorias urbanas e a luta para conter o custo de vida.
A Igreja passou a oferecer abrigo e espaço para movimentos Não obstante a colocação explícita destas prioridades e a dis-
estudantis e outros, desvinculados de filiação religiosa, que consti- posição de pô-las em prática, seria incorreto não reconhecer a pre-

60 61
sença de forças de reação, que interna e externamente contrariam eclesial" no II Encontro do Episcopado latino-americano em Me-
a ética social - compreendida como compromisso humanístico e dollín (1968), foram de início, ao que tudo indica, grupamentos vo-
político - que constitui o núcleo da pastoral arquidiocesana. As luntórios, com linhas e características ainda menos nítidas do que
imagens contraditórias sobre a Igreja, que se contrapõem em po- 11 que apresentam hoje. A enorme diversidade do fenômeno das
lêmicas e reinterpretações, refletem realidades objetivas, bem como EBs, bem como sua extrema fluidez e ausência de unidade e or-
colocam interrogações sobre a coerência e a persistência de seus snnicidade - traços até agora respeitados pela hierarquia - não
liames com as camadas pobres da população. _ permitem que se faça com exatidão a história de seus começos. O
Em um processo de democratização do país, a sociedade civil que se sabe ao certo é que surgiram no Brasil a partir de 1960. Al-
dherá refazer, de maneira independente das instituições religiosas, suns fatos, no entanto - de modo geral relacionados com a busca
os organismos próprios de classes e segmentos profissionais. Pro- de solução para a falta de clero que desde a Colônia acometeu en-
vavelmente esta ação da Igreja, como os estímulos ao movimento dcmicamente o catolicismo brasileiro (e latino-americano), tradicio-
sindical, a preocupação com o custo de vida, as lutas pelas melho- nal e,crucialmente travejado pelo sacerdócio clerical como sua viga
rias urbanas, que foi em sua própria terminologia cunhada de "su- mestra - podem ser apontados como confluindo para o suy,imen-
pletiva", terá esgotado seus objetivos e superado sua oportunidade 10 das CEBs. 't
histórica. O que importa indagar não é se a Igreja pode ou deve b somente a partir da segunda metade dos anos 60 que do-
continuar esta tarefa "supletiva", apoiando e, por vezes, substituin- cumentos do episcopado falam de "comunidades de base" no Brasil.
do instituições e movimentos de natureza não religiosa. Relevante Mas o reconhecimento da crise da paróquia e os subseqüentes es-
para a construção da democracia no país será a resposta do cato- forços por uma renovação paroquial, com ênfase na ação missioná-
1icismo ao desafio do antagonismo das classes sociais e sua dispo- ria de evangelização, sob a égide da CNBB como organismo centra-
sição em manter, de fato, expressa preferência pelas classes popu- lizador e dinamizador da atuação pastoral de bispos, padres, reli-
lares, por suas instituições representativas e por sua luta. giosas e leigos, datam de bem antes. Pode-se dizer que uma das
raízes das CEBs esteve no impasse de duas soluções pastorais não
raro concorrentes: as paróquias, de corte territorial e eixo clerical.
Origens e primeiros desenvolvimentos e a Ação Católica especializada, de corte ambiental e eixo laical.
A desativação quase repentina dos movimentos de Ação Católica es-
As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que nos últimos pecializada no Brasil pós-64 (quando parte considerável da hierar-
dez anos vêm proliferando Brasil afora (são hoje, seguramente, mais quia decidiu retirar-lhes o apoio institucional, que, aliás, desde o
de 50.000 em todo o país) como experiência nova de participação Início dos anos 60, vinha sendo rejeitado pelos militantes politica-
dos leigos na vida da Igreja católica, assumem sua real importân- mente mais engajados como inibidor de sua ação) aliada ao reco-
cia social e política por não se limitarem a ser grupos de exclusivo nhecido malogro das paróquias em seu papel de centros dinamiza-
caráter piedoso. Pelo contrário, sua importância está no fato de dores da atividade dos leigos, •bem como o agravamento da penúria
constituírem uma promissora trama de experimentação e de exercí- do clero (abandono do ministério, esvaziamento e fechamento de
cios sistemáticos de formas novas de associação popular para a muitos seminários etc.) reforçariam o processo de redefinição de
discussão e busca de soluções dos problemas vitais que, no campo procedimentos com vistas a alcançar as metas, embrionariamente
e nas periferias das grandes cidades, afligem as classes trabalha- definidas e planejadas, da instituição eclesiástica.
doras. Naturalmente as Comunidades Eclesiais de Base não podem ser
Difícil• situar com precisão o momento de aparição das CEBs explicadas exclusivamente por constrangimentos decorrentes de mu-
no Brasil, como é difícil desenhar os contornos do que vem a ser danças ocorridas na sociedade inclusiva e na própria instituição re-
uma Comunidade Eclesial de Base. Embora sejam hoje grupos sus- ligiosa. Potencialidades para uma renovação de estruturas imobili-
citados direta e indiretamente pelo clero, principalmente a partir zadas há séculos emergiram da própria Igreja, em textos teológicos
do reconhecimento de seu estatuto de "célula inicial de estrutura que reclamavam uma maior participação dos leigos na vida ecle-

62 63
sial e a ruptura com o esquema decisório vertical e rígido da tra- das comunidades de base foram, reconhecidamente, as tentativas de
dição católica. descentralizar as paróquias e alargar as responsabilidades dos loi-
Em 1965, o Plano de Pastoral de Conjunto, aprovado para um 10s, cujos exemplos principais eram as chamadas "experiências-pi-
perí~do de cinco anos, estimulava abertamente a renovação das pa- loto", em vários pontos do país, dentro do espírito de renovação da
róquias pela criação do que já então se denominava "comunidades liturgia e da catequese com ênfase no conhecimento da Bíblia.
de base", como lugares privilegiados da "renovação orgânica e glo- A pré-história das CEBs, vista como um movimento de baixo
bal da Igreja" no Brasil "à imagem da Igreja do Vaticano II". Dizia pora cima de demanda de participação dos leigos no interior da
o referido Plano: "Nossas paróquias atuais estão ou deveriam estar lsreja Católica no Brasil e, ao mesmo tempo, um movimento de
compostas de várias comunidades locais e comunidades de base, cima para baixo de uma Igreja no recorrente esforço de rearticula-
dada sua extensão, densidade demográfica e porcentagem de bati- çllo com suas próprias bases, termina em 1964. Este movimento
z~d~s a elas pertencentes de direito. Será, pois, de grande impor- duplo, que levaria a Igreja ora ao encontro das forças populares
tanc1a empreender a renovação paroquial pela criação ou dinami- que emergiam com fisionomia própria na arena política do país, ora
zação das comunidades de base" (PPC, 58). a se confrontar com elas, se realimenta ainda do clima conciliar de
Tratava-se de um eco da preocupação básica do concílio Va- um procurado aggiornr rento das estruturas eclesiásticas, intensifi-
ticano II por uma ação evangelizadora mais ampla e mais intensa cando no imediato p6s-concílio divergências quanto aos rumos do
através do alargamento das possibilidades de participação dos lei- 11postolado dos leigos.
gos_ no interior da Igreja e fora dela. Essa diretiva da CNBB provo- O concílio Vaticano II encerrou-se em 1965. No seu final, os
cana o reforço e a multiplicação, em todo o país, de uma série de bispos brasileiros reunidos em Roma aprovariam o Plano de Pas-
iniciativas, muitas delas já· em curso, no sentido de experimentar toral de Conjunto para o qüinqüênio 1966-1970, o qual expressava
novas modalidades de reunir cristãos - que o Vaticano II defi- o voto, a vontade e a esperança da CNBB de que uma nova Igreja
niria como " povo de Deus" - em torno do Evangelho e de cele- viesse a surgir. . . das comunidades de base. No momento mesmo
brações litúrgicas simplificadas. Em 1967, já era possível fazer um cm que se processava no Brasil a contra-revolução para barrar a
balanço das dezenas de experiências comunitárias, saudadas como emergência da hegemonia das classes populares que se havia esbo-
"felizmente numerosas" em muitas dioceses do Brasil, bem como çado no início dos anos 60, no momento mesmo em que as lideran-
extrair as linhas comuns para uma aproximação descritiva e uma ças leigas da Ação Católica eram presas e perseguidas pelo regime
primeira tentativa de sistematização e fundamentação teológica dos ditatorial e desativadas pela hi.erarquia, a Igreja Católica, em nível
rumos tomados, no intuito de "servir de pista para outras experiên- de cúpula, redefinia suas metas para, uma vez mais, tentar evitar
cias". O Padre Raimundo Caramuru de Barros, encarregado da im- que se aprofundasse a ruptura entre o clero e a massa dos simples
plementação do Plano de Pastoral de Conjunto, publica neste ano fiéis. O Plano de Pastoral de Conjunto, ao abrir o caminho para a
um opúsculo com os seguintes objetivos: "algumas pistas de refle- multiplicação das experiências de comunidades cristãs "de base",
xão e ação, a respeito do que se pensa e se realiza, lançando o de- mostrava um episcopado disposto a acolher com simpatia novas
bate, abrindo perspectivas, estimulando experiências". No título do formas de mobilização do laicato, desta feita de caráter menos van-
opúsculo, a comunidade de base aparece então batizada como co- suardista que as experiências da Ação Católica, e acolhê-las como
munidade eclesial de base: Comunidade eclesial de base, uma opção portadoras de sua própria renovação e anunciadoras de uma nova
pastoral decisiva (1967). unidade eclesial, de uma nova identidade católica, com b ase em
Um outro fator, que confluiu para o florescimento de peque- novas alianças.
nas comunidades no interior da Igreja católica no Brasil, foi a ex- Cabe lembrar que, em seguida ao trauma sofrido pela Igreja
pansão de outros credos religiosos de larga aceitação popular: o es- católica em 1964, com os católicos brasileiros experimentando de
piritismo Kardecista, a Umbanda, mas principalmente os grupos forma aguda a fratura de sua experiência de unidade pelo enfrenta-
pentecostais, estruturados em moldes mais comunitários e igualitá- mento político (enquanto setores ponderáveis do clero e do laicato
rios que o catolicismo. Neste sentido, um esboço muito longínquo haviam estimulado e depois apoiado o golpe militar direitista, pe-

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quenos grupos de estudantes, operarios, camponeses, freiras, padres
e bispos a ele se haviam oposto e depois experimentado a persegui-
ção), o grupo de bispos mais envolvidos e identificados com a Ação
Católica foi substituído na cúpula da CNBB. No entanto, já fora
, elaborado o Plano de Pastoral de Coniunto, que, votado por todo
o episcopado, permaneceu em vigência. Os bispos mais preocupados
com as conseqüências sociais do Evangelho mergulharam em suas
dioceses em um trabalho silencioso e persistente de construção de
uma Igreja pobre, ao lado e do lado dos pobres. Neste interregno
de 1964 a 1968, já se disse, é que começam a brotar as CEBs com
o rosto que hoje apresentam.
A reunião de Medellín, na Colômbia, canonizaria essas tendên-
cias. Os documentos do ll Encontro do Episcopado Latino-ameri-
11 cano (CELAM), reunido naquela cidade em 1968, documentos emi-
tidos em caráter oficial, definem duas linhas básicas de ação que
se transformariam no estandarte legitimador e referencial d~ novos
grupos de cristãos: a opção pelos pobres e as comunidades de base.

1) "Defender, segundo o mandato evangélico, os direitos dos


pobres e oprimidos ( ... ). Alentar e favorecer todos os esforços do
povo para criar e desenvolver suas próprias organizações de base,
pela reivindicação e consolidação de seus direitos e busca de uma
verdadeira justiça" (Conclusões de Medellín 2, 22 e 27).

2) "A comunidade cristã de base é o primeiro e fundamental


núcleo eclesial, que deve, em seu próprio nível, responsabilizar-se
pela riqueza e expansão da fé, como também pelo culto que é a sua
expressão. f: ela, portanto, célula inicial da estruturação eclesial e
foco de evangelização e atualmente fator primordial de promoção
humana e desenvolvimento" (Ibidem 15, 10).

O impulso que as decisões do episcopado latino-americano sig-


nificaram para o ulterior desenvolvimento das CEBs repercutiu tam-
bém em certos grupos de teólogos, que se lançaram à elaboração de
conceitos novos em teologia arrancando "de uma leitura dos fatos
tal como ocorrem na base", explicitando "o conteúdo teológico já
presente na práxis das comunidades". O crescimento e a expansão
das CEBs levaria também à necessidade de " trocar experiências" e
de esboçar uma certa organicidade. Expressão disto são os encon-
tros nacionais (o 1.0 e o 2.0 em Vitória (ES), em 1975 e 1976). O
3.º encontro nacional das Comunidades Eclesiais de Base (1978),

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que reuniu em João Pessoa (PB) cerca de 150 representantes de mente, cuida do seguimento da ação pastoral através de comtssoes
CEBs de 47 dioceses, teve como tema: "Igreja, p,ovo que se liberta". Integradas por religiosos e leigos das instâncias atrás enumeradas,
10b a liderança do Colégio Episcopal da Arquidiocese de São Paulo.
Todos os níveis da Igreja, segundo) ~'ostula o 1.0 Plano Bienal
CEBs em São Paulo de Pastoral, participam de modo concrlto para cumprir os objeti-
vos e metas ali propostos, programando os setores e regiões suas
Na cidade de São Paulo, o desenvolvimento das CEBs passou atividades específicas; mantém-se, no 2.0 Plano Bienal de Pastoral
por dois momentos decisivos, responsáveis por seu início e expan- (78/79), a mesma estrutura e organização. Essa possibilidade de de-
são: o dos- cursos de evangelização, que serviram de estímulo à for- senvolver programações próprias explica a diversidade de experiên-
mação de uma liderança leiga, e o da inclusão das CEBs entre as cias em cada opção de pastoral, conforme se pode verificar nas reu-
quatro prioridades que norteariam o 1.0 Plano Bienal de Pastoral niões periódicas que avaliam o desenvolvimento do Plano. Comis-
da Arquidiocese de São Paulo (1976/77) . sões arquidiocesanas, responsáveis pelo acompanhamento de cada
Os cursos de evangelização, iniciados em fins de 1969 e em prioridade de pastoral, convocam reuniões anuais, com represen-
pleno desenvolvimento entre 1971/72, procuravam divulgar para tantes de todas as regiões e setores, a fim de confrontar experiên-
as bases católicas novas perspectivas teológicas de evangelização cias locais e traçar vias preferenciais de estratégia.
coerentes com as grandes decisões do Concílio Vaticano II. Visan-
do à conscientização, segundo seus organizadores, pretendiam des-
pertar entre os participantes a idéia de uma consciência crítica, se- CEBs em processo
guida pela capacidade de associação para resolver problemas co-
muns. Essa forma de pedagogia, retransmitida de modo informal Já se disse que é extremamente difícil caracterizar com pre-
pelos próprios leigos integrantes dos cursos a uma ampla rede de cisão no que consiste a Comunidade Eclesial de Base. Suas origens,
grupos de base católica, trouxe fundamentos que serviram de apoio 1uas maneiras de atuação e sua dinâmica não seguem uma defini-
às experiências de união e capacidade reivindicatória característi- ção teológica dada de antemão, nem correspondem a qualquer or-
cas das CEBs. denamento canônico. Trata-se antes de um processo social em de-
Em fins de 1975, leigos e religiosos, representantes dos vários senvolvimento, à procura de sua própria forma de expressão reli-
níveis em que se subdivide a Igreja, após sucessivos meses de re- giosa, do que da implantação de um modelo preestabelecido. Assu-
flexão e consulta, votam em assembléia pelas quatro prioridades, mindo modalidades muito diversificadas, as CEBs estão em movi-
anteriormente referidas, que integrariam a ação pastoral para o biê- mento. São um, movimento. Muito embora subsistam marcantes di-
nio 76/ 77. Com exceção da Pastoral de Periferia, projetada espe- ferenças entre os vários tipos de CEBs em São Paulo, percebe-se,
cificamente em relação à vida metropolitana, as demais prioridades cm linhas gerais, que atravessam transformações que as levam a
coincidem com o Plano Regional Sul 1 (Estado de São Paulo), cons- constantemente reformular seus objetivos, suas prioridades de atua-
tituindo as CEBs opção prioritária também incluída em plano na- ção, seus métodos a partir de circunstâncias impostas pela socieda-
cional da CNBB. de abrangente.
Por ocasião da escolha das prioridades em São Paulo, a Ar- Diferentes sob vários aspectos, as Comunidades Eclesiais de
quidiocese já contava com amplo e burocratizado quadro de orga- Base guardam em comum o ideal de manter uma trama de relações
nização e com expressivo número de leigos engajados nos traba- humanas fraternas e solidárias. Como movimento religioso, propi-
lhos pastorais. A partir das bases (paróquias, comunidades, movi- ciam a participação e alargam o espaço de ação dos leigos no culto,
mentos religiosos), subdivide-se a cidade em níveis: setores (reúnem na pregação do Evangelho, nas tomadas de decisão. De algum modo,
as organizações de base, sob a direção de coordenadores), regiões são geradoras de nova dimensão eclesial pela mudança que preten-
(agregam, sob responsabilidade de um bispo, os setores correspon- dem trazer a inoperantes organizações paroqu iais e à própria estru-
dentes às diversas áreas da cidade); um nível arquidiocesano, final- tura de poder tradicional na Igreja católica.

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As Comunidades Eclesiais de Base agregam número de parti- cussões em grupos, os padres organizavam cursos, todos podiam
cipantes raramente superior a cinqüenta indivíduos de amb~s os falar de seus problemas, da vida do povo. Foi aí que eu abri os
sexos, em diferentes faixas etárias, que se organizam a partir de olhos e organizei, junto com outros jovens, a primeira compra em
grupos de vizinhança. comum: a compra direta, sem intermediário, de inseticida, indispen-
A presente análise das CEBs restringe-se, exclusivamente, às s~vel para as plantações. Foi um sucesso e as pessoas se uniram
originárias das camadas mais empobrecidas da população paulista- mais e passaram a entender como é a religião ligada à vida".
na. Nesse contexto, as CEBs constituem formas de organização po- Embora às vezes profundamente diversa da vida espiritual an-
pular para fazer frente a condições precárias de sobrevivência par- terior, quanto à organização eclesiástica, à relação com o clero e
tilhadas pela maioria pobre dos habitantes da c idade. ao próprio conteúdo ideológico, a vivência comunitária é percebida
Não se deve esquecer que há uma tradição de organização de como forma de persistência e preservação da memória religiosa pes-
Sociedades de Amigos de Bairro em São Paulo cuja experiência em soal e do grupo. Assim, o Catolicismo a um tempo se transforma e
articular reivindicações e protestos urbanos pode ter constituído se preserva de maneira renovada, elegendo uma ética social ideo-
uma pedagogia de que se valem as Comunidades de inspiração re- logicamente significativa para as camadas pobres da periferia como
ligiosa. o núcleo da prática religiosa.
Muitos participantes das Comunidades Eclesiais de Base falam Normalmente, os fiéis começam a se organizar em pequenos
delas como se elas representassem o desejado retorno a um estilo grupos pelo estímulo de agentes de pastoral - padres, irmãs, líde-
de relacionamento rural ou ao característico de pequenas cidades res de outras 'él. .unidades - como, por exemplo, nos cursos de
das quais provém parte considerável dos habitantes da periferia evangelização, círculos bíblicos, "grupos de Evangelho", "escolas
de São Paulo. Idealizando o passado, sob forma de reminiscência da fé"; ou então por imitação de um grupo anteriormente iniciado,
ao mesmo tempo real e imaginária, persiste entre os integrantes das ou ainda pelo desdobramento e ampliação de reuniões familiares e
CEBs a memória dos liames de solidariedade vividos por aqueles encontros de casais. Em Vila Flávia, o trabalho da CEB começou
que não têm recursos. Na realidade, porém, o espírito comunitário "reunindo a lguns casais para se conhecerem melhor e discutir as-
destes pequenos grupos, na metrópole paulista~a, ~iverge d~s laços 1,untos como problemas de família: por que o marido briga com
de união e auxílio mútuo prevalecentes em muitas areas rurais e pe- 11 mulher, o que falta aos filhos, a falta de dinheiro ... E foi a falta
quenas cidades do país, especialmente em passado_ recente. Trata_-s~, de dinheiro que levou à união do grupo". Na Baixada (bairro Ci-
na cidade de São Paulo, de um processo intencional e voluntano dade São Mateus), "o movimento começou fraquinho, devagari-
que, em termos de seus objetivos, proc~ra rearticul~r, ~ relacion~- nho", explica uma informante; "em 1970, os padres vinham rezar
mento social em moldes de uma fraternidade comumtana contradi- missa. Depois da missa, os padres organizavam reuniões, primeiro
tória com as determinações da sociedade urbana, essencialmente dis- na igreja, com o tempo nas casas. As primeiras discussões foram
sociativa para as camadas mais oprimidas da população. Assim se sobre o Evangelho, por meio de 'cochichos' (isto é, discute-se um
exprimem alguns líderes entrevistados: "O reviver a vida rural é lema proposto em voz baixa, em grupos bem pequenos). Depois os
consciente na cabeça dos que chegaram do interior" ... " Dizem que grupos se reuniam nas casas e discutiam sobre a participação do
lá era bom e que aqui é até melhor" ... "A gente do interior vi~ia Evangelho na vida: as relações entre marido e mulher, pais e filhos,
em comunidade sem saber. Agora é melhor porque a gente vive os problemas locais: o lixo que era jogado na Baixada, a falta de
e sabe". llgua encanada, as favelas, os transportes muito difíceis ... " É fre-
No testemunho de grande número de integrantes das Comuni- qüente também o surgimento de novas comunidades nos chamados
dades Eclesiais de Base, há entretanto um traço de continuidade "tempos dé missão", como a Quaresma, quando a Campanha da
biográfica que sempre aflora à consciência: a lembrança de ensi- Fraternidade é promovida em todo o Brasil pela CNBB, com um
name ntos religiosos anteriores e a convicção da fé renovada. Afir- roteiro para reflexões em torno de um tema, roteiro que é adaptá-
ma um depoimento: "A Igreja lá no interior já tinha me ensinado vel às diferentes regiões e situações. Um outro momento impor-
muitas coisas, antes de eu vir para São Paulo, em 1967: havia dis- tante para a expansão das CEBs é a Novena de Natal: "antes a

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Novena de Natal era rezar o terço e só; agora existem folhetos com determinar quais os primeiros projétos a serem executados. Via de
um roteiro preparado por um grupo de agentes de pastoral (o padre, regra, os projetos escolhidos pelo voto dos participantes obedecem
a freira, um ou dois leigos) . Formam-se grupos que durante oito tanto à prioridade das necessidades quanto ã facilidade de execução:
dias se reúnem em oito casas diferentes. Lê-se um fato da vida, mutirão, creches, compras comunitárias, etc. Conforme o depoimen-
reza-se uma dezena do terço, depois tem um canto, depois tem um to de um agente de pastoral, começa-se por projetos fáceis e rá-
espaço para o debate a partir do fato, e assim por diante. Depois pidos de serem executados, "que não dependam da ajuda de fora ,
tem o canto final, um cafezinho e aí todo mundo vai embora". As para criar confiança na auto-ajuda dos moradores e na mobiliza-
épocas da Quaresma e de preparação para o Natal são " um mo- ção dos recursos locais".
mento de missão: novas pessoas, novas famílias são convidadas e A compra comunitária, prática mais complexa de auxílio mú-
os grupos crescem". tuo, é descrita por um de seus coordenadores no bairro de São
Os primeiros encontros, realizados nas próprias casas ou nas Mateus: " O histórico da compra em comum é este: um grupo ope-
igrejas, são com freqüência voltados para a oração, forma de re- rário local discutia os problemas do custo de vida, procurando so-
produzir em comum as rezas aprendidas desde a infância, persis- luções que partissem do próprio grupo. Era importante que saíssem
tente memória na consciência brasileira. Mas é uma preocupação de do próprio grupq, porque de fora não vêm mesmo. Da experiência
toda CEB acompanhar estas orações com a leitura da Bíblia, espe- de dois moradore~ ' 'l localidade, na compra e venda direta de inse-
cialmente do Novo Testamento, e a reflexão sobre o conteúdo e a ticida, passamos para a compra em comum. No começo, eram doze
aplicação atual da mensagem cristã. Todos os componentes do grupo pessoas que compravam junto, só as coisas de primeira necessida-
são estimulados a participar, procurando associar os fatos da vida de - alimentos e artigos de limpeza. Atualmente, a compra em
com a palavra de Deus. comum reúne oitenta famílias das quatro comunidades de São Ma-
Em alguns casos, as Comunidades Eclesiais de Base se limitam teus. Há listas impressas, que são preenchidas em cada casa para
ao ritual das orações e da reflexão bíblica, orientando-se para uma a compra mensal. A vantagem da compra comunitária é que ela traz
atividade religiosa, a qual se expressa, igualmente, pelo comum re- unidade, fraternidade e aproximação entre as pessoas, ajuda a man-
conhecimento de fraternidade , fortalecida em liames de apoio e au- ter a união, a comunidade. Dá um sentido de comunhão entre as
xílio mútuo: trocas de serviços, caixas comuns para socorro em pessoas, porque todos sabem que comem a mesma comida. Através
casos de desemprego, doença ou outros imprevistos. " Se um ele- do relacionamento proporcionado pelas tarefas dos encarregados da
mento da comunidade fica doente ou perde o emprego, as outras compra, é possível ficar sabendo se uma família está com proble-
pessoas da CEB vão lá, dão apoio em dinheiro, dão banho, assis- mas de desemprego, doença ou pouco dinheiro. Além disso, é uma
tem. Nos casos de construção, ajudam a fazer um novo cômodo, boa ocasião para discutir os problemas do trabalhador da periferia,
a renovar o telhado ... " De uma comunidade do Jardim Macha- como o do custo de vida".
do, ouviu-se a explicação do que seja a caixa comum: "funcionan- Em qualquer tipo de atividade, as CEBs procuram exercitar a
do há três ou quatro anos, a caixa comum é fruto de bazares, rou- prática do voto (" a pessoa que vota deliberadamente aceita e se
pas usadas, etc: Pode ser usada por qualquer um dos integrantes da compromete a assumir responsabilidade na execução"); as tarefas
comunidade para condução, pagar contas de luz, de águ~ e de gás, são divididas segundo as capacidades e a disponibilidade (tempo
comprar remédios, etc." livre) de cada um, de forma a mobilizar todos os membros da co-
No mais das vezes, porém, a prática do auxílio mútuo se for- munidade e a conseguir também o engajamento de outros morado-
talece e se desdobra atravé~ de pequenos projetos de atividades co- res. Durante a execução dos trabalhos, realizam-se reuniões para
munais. A partir da reflexão sobre a situação específica do bairro avaliação do que foi feito, da repercussão produzida, das resistên-
e as carências mais prementes dos moradores, à luz do Evangelho cias e dificuldades ~ncontradas. As melhorias conseguidM pelo tra-
lido e discutido, estes projetos são elaborados com a participação balho comum, bem como o hábito de reuniões periódicas fortale-
dos membros de uma ou de várias comunidades eclesiais existentes cem laços de solidariedade local e tendem a ampliar o horizonte de
no local. Discutidos, estudados, refletidos, procede-se à votação para consciência e a capacidade de organização das populações periféri-
cas, a partir da identidade de seus interesses e seus direitos de usuá-
rios dos serviços urbanos, percebidos como necessidades básicas.
Os problemas mais agudos da periferia metropolitana, ou seja,
os de saneamento, iluminação, segurança, calçamento, etc. são per-
cebidos como privações que afetam a todos da Comunidade, fl a-
grantes injustiças inscritas no espaço urbano. Concretizam-se nestas
circunstâncias os temas de reflexão sobre as Escrituras, condenan-
do-se a desigual repartição dos recursos da cidade e suas conseqüên-
cias sobre a qualidade de vida dos habitantes desprivilegiados. "A
CEB é um lugar onde se c ria consciência de por que o ônibus é
assim, por que não tem esgoto, por que o salário é assim". E essa
reflexão é sistemática. As fundamentais exigências cristãs de igual-
dade sãe, -.vlocadas como critério para condenar a espoliação refle-
tida em toda a tecitura da organização do espaço metropolitano.
Surgem, nesse contexto, dos grupos organizados nas CEBs, reivin-
dicações dirigidas às autoridades. Sua natureza política é marcada
por traço característico: trata-se de uma exigê ncia de justiça e não
de um pedido de favor. Neste nível de micro-reclamações, alteram-
se padrões que durante muito tempo caracterizaram o relaciona-
mento entre classes no Brasil. A recorrente necessidade de os mais
pobres procurarem proteção em indivíduos de status ma is elevados,
que servem de intermediários em relação aos aparatos do Estado e
das classes d ominantes, aparece profundamente modificada. Nem o
socorro de intermediários, nem a súplica de favor: as CEBs reivin-
dicam em nome de valores cristãos. O eventual apoio eclesiástico
não tem, via de regra, o caráter de agente mediador, mas o de um
aliado que se coloca junto às bases.
A experiência desse processo, que se multiplica em pequenas
comunidades, leva a um aprendizado da tática de reivindicações e
ao envolvimento de setores mais amplos que sofrem as mesmas con-
dições de vida. Via de regra, descobre-se que a força dos fracos é
tanto a unidade na ação como o consenso democrático no processo
decisório. Na expressão de um membro de CEB, "o que se exige
primeiro para que os homens se tornem povo de Deus é que sejam
um povo de pobres. Pobres são aqueles que sabem que sozinhos
não são capazes de nada".
Algumas dentre as Comunidades Eclesiais de Base na Arqui-
diocese de São Paulo alcançam nível mais avançado de consciência
crítica. Descobrem, em meio às lutas reivindicatórias, que a recla-
mação por melhorias urbanas constitui apenas um passo para a for-
mação da Comunidade e simples expressão do que é espontanea-

75
mente sentido pelas populações da periferia. Praticamente não afe. definição cada vez mais consistente dos termos desta oposição como
tam as estruturas sociais que determinam as carências percebidas. ~rítica ao próprio suporte econômico do regime. Algumas CEBs,
Em um esforço de interpretação crítica, a Comunidade é levada a Juntamente com os bispos que as apóiam e suscitam, se inserem
projetar seu interesse além dos limites das reivindicações imediatas desse modo no quadro geral das . mudanças em curso na sociedade
e da solidariedade interna do grupo. A lógica das exigências cristãs civil brasileira. E, no conjunto das forças políticas que se entrecho-
.reclama a ação junto às forças decisivas que conduzem o processo cam, vêm se configurando como uma das formas de resistência e
histórico. Neste sentido, voltam-se então as Comunidades Eclesiais contrapressão popular, causa e efeito do crescimento emergente da
de Base para os problemas decorrentes do crescimento econômico força das organizações populares.
excludente, para as relações de trabalho, para as instituições sin- Entre os desafios em que se debate a Igreja católica no Brasil,
dicais e políticas. Esboça-se, desta maneira, um ideal democrático sobressaem aqueles que surgem deste processo de fortalecimento da
que não se limita ao protesto urbano ou a uma concepção liberal sociedade civil - , e, no interior desta, das organizações políticas
do Estado e da sociedade civil. Vislumbra-se a construção de uma das classes trabalhadoras - e que surgem como problema prático,
democracia igualitária e liberta das injustiças inerentes ao capita- aceito pela Arquidiocese de São Paulo, na condução de sua pasto-
lismo. Embora de forma incipiente, tornam-se as CEBs participan- ral junto às massas católicas, cujo g~osso se constitui das classes
tes das mais gerais - e mais determinantes - lutas e tensões que oprimidas e excluídas econômica e politicamente.
encaminham as mudanças econômicas e sociais do país. Neste sen- ~ verdade que, partindo muitas vezes de uma iniciativa toma-
tido, são significativas as orientações traçadas no 111 Encontro Na- da "de cima" pelos bispos e planejadores da pastoral, as CEBs cons-
cional das CEBs, reunido em João Pessoa (PB) em julho de 1978: tituem hoje uma forma de atuação organizada da Igreja junto às
" Em tudo a gente deve partir sempre de nossos interesses de classes populares; mas não se pode esquecer que as demandas por
povo pobre e não dos interesses .dos que hoje se encontram no poder. procedimentos democráticos partem constantemente das próprias
Toda essa opressão que chega sobre nós tem sua raiz no pecado: bases no processo de se associarem em pequenos grupos solidários
as terras nas mãos de quem não precisa delas; os operários sujeitos p_ara fazer frente às adversas condições de vida que lhe são impin-
a ganharem um minguado salário, gerando frutos como a fome, a gidas - e que não são queridas de modo algum pela Providência
mortandade de crianças, o analfabetismo. Esse grande . pecado é Divinal, como reza um refrão nas CEBs - e deste modo alarga-
agora social e se chama sistema capitalista" ( 1, c). rem as brechas para a construção de uma nova sociedade e um
" Procurar estar sempre unidos e organizados, fazendo nosso novo poder.
trabalho dentro de nossas comunidades, para provar a nossa fé no Se o esforço de recristianizar os cristãos para mobilizá-los tem
Senhor que muda as coisas ... " (1, d). sido uma constante na atuação dos segmentos mais dinâmicos da
" Participar de todas as ferramentas que vão nos ajudar em hierarquia eclesiástica no Brasil, o que parece novo é que isto se
nossa luta pela libertação, como sindicatos, associações, partidos po- venha fazendo, ao menos parcialmente, através e no interior das
líticos e outros que sejam nossos, e não para nós" (2, a). lutas das camadas mais desfavorecidas da população para a reivin-
"Assumir a nossa condição de classe oprimida, pois temos de dicação de seus direitos básicos e para a defesa de seus interesses.
fazer um trabalho acreditando uns nos outros, já que os nossos in- Aqueles setores eclesiásticos comprometidos com os pobres encon-
teresses são iguais" (4, c). tram na experiência das CEBs o lugar deste compromisso, que re-
No Brasil, diversamente do que ocorre em vários países euro- dunda no exercício e no aprendizado de práticas embrionárias de
peus, as novas Comunidades cristãs são estimuladas por bispos, que participação democrática. Essas práticas incluem a discussão em
lhes dão apoio e incentivo. Menos que uma crítica à hierarquia e grupo, o treino da fala, o domínio de auditórios maiores (por oca-
às formas tradicionais de autoridade eclesiástica, assiste-se antes ao sião dos encontros em nível arquidiocesano, por exemplo), o exer-
engajamento mais amplo das instituições católicas em um processo cício da escrita, o manuseio de mimeógrafos e outros modestos veí-
de revisão geral de seu estilo de ação. Este processo tem se tradu- culos de comunicação, a prática reiterada do voto para toda e qual-
zido em crescente oposição ao regime . político autoritário e em quer decisão. Exercita-se, ainda, a participação democrática nas

76 77
compras comunitárias, na administração e gestão das finanças, bem tadora. Tanto leigos como sacerdotes enfrentam o difícil problema
como na procura de soluções para as necessidades especificamente de redefinir seus papéis tradicionais, aprendendo novos padrões de
religiosas, como ocorre com a criação de ministérios ainda consi- relacionamento capazes de gerar uma dimensão nova de Igreja e
derados "extraordinários": os ministérios da Palavra, dos doentes, construir alicerces para a sociedade civil que se quer forjar no Brasil
do animador da comunidade, das celebrações paralitúrgicas, etc. contemporâneo.
Um processo tão fluido e movediço como o da constituição e Juntamente com a questão da autoridade eclesiástica, enfrentam
desenvolvimento das Comunidades Eclesiais de Base não poderia as Comunidades Eclesiais de Base os clássicos problemas de orga-
deixar de incluir tensões internas representadas por caminhos alter- nização e direção de grupos sociais que necessariamente envolvem
nativos e, por vezes, contraditórios que se delineiam na prática co- modelos divergentes de relacionamento entre a liderança e as bases.
tidiana e na formulação da estratégia destes pequenos grupos sociais. No modelo eclesiástico autoritário, os dirigentes enfeixavam não
Como forma associativa nova no interior da Igreja e na sociedade apenas o monopólio do poder, mas a exclusividade do saber. A ma-
urbana capitalista, o futuro e as perspectivas das Comunidades mos- nipulação do saber constituía fonte primordial do poder. As Comu-
tram-se incertos, dependendo essencialmente dos rumos que vierem nidades de Base procuram evitar os riscos do autoritarismo eclesiás-
a seguir. Enfrentam dificuldades radicais em relação à própria so- tico, bem como os ditames dos que pretendem saber o que elas
ciedade que pretendem alterar. Sofrem limitações oriundas da inér- devem querer e realizar. No processo de libertação dessa submis-
cia da tradição eclesiástica. E, como tantas associações da socieda- são à hierarquia, setores das classes mais pobres de São Paulo ex-
de civil, debatem-se entre projetos alternativos sem um modelo claro perimentam um aprendizado democrático e a oportunidade de ex-
de postura ética e ação política. pressar os próprios interesses e pontos de vista. Consultas perma-
A dinâmica das tensões externas e internas das Comunidades nentes entre os integrantes da organização comunitária em relação
Eclesiais de Base propiciará a seleção dos caminhos a serem segui- às diretrizes de sua práxis tornaram-se rotineiras. Representam,
dos e a sua possível articulação com o processo de transformação conscientemente, uma opção democrática zelm,amente vigiada pelos
global da sociedade. Algumas destas alternativas de organização e membros das Comunidades. Esse esforço inovador, invertendo o
formulação ideológica das Comunidades, implicitamente presentes verticalismo tradicional ao processo decisório das organ)?:ições na-
e, por vezes, vivamente debatidas entre seus integrantes, podem ser cionais, acarreta riscos e cria tensões. Surge uma certa glorificação
indicadas de modo sucinto. do espontaneísmo: a crença de que a consciência imediata, as ne-
Em princípio, as Comunidades Eclesiais de Base se constituem cessidades sentidas pelo povo sejam suficientes para encaminhar
como uma unidade eclesial essencialmente leiga, cuja inspiração suas lutas e traçar a estratégia das Comunidades Eclesiais de Base.
central é estabelecer o relacionamento solidário entre os homens, Em situações mais radicais, firma-se a convicção na sabedoria inata
conforme a um modelo democrático de autogestão. Objetivamente e exclusiva das classes desprotegidas, dificultando o diálogo com
não dispensam o estímulo inicial do clero e a proteção institucio- outras organizações, bem como inibindo a articulação de alianças
nal católica conveniente e necessária para legitimar a organização com outras categorias sociais progressistas. Seqüela desta opção cs-
de movimentos populares e suas reivindicações face aos aparatos pontaneísta é, por vezes, a fragilidade e a pouca consistência de ob-
de repressão do Estado. Entre o ideal de maior autonomia dos lei- jetivos para a ação comunitária, colocados a médio ou longo prnzo.
gos e a persistente autoridade clerical, surgem conflitos que se en- Perde-se, igualmente, uma concepção mais amplo dos oportunida-
caminham de diversos modos. Nem sempre é o próprio clero que
des políticas do país e de como as Comunidades poderinm partici-
pretende reencontrar nas Comunidades o antigo poder exercido
par de maneira consciente e eficaz na transformnçiio de nosso pro•
sobre as populações mais pobres do país. Freqüentemente, são os
próprios leigos que solicitam o apoio do clero. Por outro lado, lei- cesso histórico.
gos reclamam contra a excessiva proteção paternalista de natureza Naturalmente, não se desenvolvem novm, modnlidndc:, de or-
clerical, embora muitos integrantes das CEBs interpretem a influên- ganização social sem que surjnm obstliculo) constituídos pelo inér-
cia do clero em suas decisões como pedagogia crescentemente liber- cia das instituições 1radicion11is que resistem ubcrtumcnte às inova-

78 79
ções, ou que aceitam transformações meramente aparentes, manten- tido, convém lembrar que as estratégias artlculodos puro II i,oln uvl
do intactas as formas habituais de dominação. vência das organizações comunitárias e paro a expansüo de Ntus ob-
No esforço de seguir novos rumos e romper barreiras soc1a1s jetivos não decorrem somente dos ideais internos ao grupo, mas süo
e psicológicas, multiplicam-se, nas Comunidades Eclesiais de Base, igualmente condicionadas. pelas coerções que enfrentam. Compreen-
6s acenos para caminhos antagônicos, prefigurando formas diver- de-se, desta forma, por que muitas Comunidades procuram agir junto
gentes de organização e posição ideológica. A exultante experiência às instituições formalmente voltadas para a transformação da socie-
da sociabilidade fraterna, inerente ao ideal c.omunitário, pode cir- dade - como os sindicatos e os partidos políticos. A conquista de
cunscrever os objetivos das CEBs que passam a considerar a confi- sua própria realização comunitária reclama uma lúcida participação
guração de suas relações humanas e a liturgia interna ao grupo como na sociedade civil e na reestruturação partidária e política, condição
expressão definitiva de sua plena realização. Transformam-se em necessária para radical transformação social almejando a emergên-
pequenas igrejas dentro da Igreja. cia de relações sociais fraternas e solidárias. A lógica das exigên-
Entre os riscos que correm as Comunidades Eclesiais de Base in- cias, comunitárias leva à prática social cm âmbito societário sob
clui-se o antagonismo entre os padrões de vida comunitária, ajuda pena da experiência eclesial se estiolar em estéril conventículo, cons-
mútua e relacionamento fraterno (ideal deste módulo eclesial) e os tituído de verbalização sem substância e sem futuro.
determinantes da sociedade capitalista. Seria ilusório pretender que Se o alcance religioso e as conseqüências políticas do desen-
as Comunidades possam persistir como matriz da organização gru- volvimento das Comunidades Eclesiais de Base ainda dependem de
pal capaz de organizar a conduta interna e influenciar de modo ra- suas opções no contexto da sociedade brasileira, a realização peda-
dical a participação de seus membros na sociedade inclusiva - na gógica das Comunidades já constitui inovadora dimensão na socie-
fábrica, na escola, na família, no clube, no sindicato, no partido po- dade civil. Na realidade, as CEBs desburocratizam a dominação ecle-
lítico - permanecendo ilhadas em meio às determinações econô- siástica, enquanto, na prática, desmitificam, de modo mais ou me-
micas e sociais do capitalismo. · nos explícito, aspectos alienantes da ideologia religiosa, cúmplices
Em sua trajetória pedagógica, muitas Comunidades sentiram de da injustiça institucionalizada. Elas percorrem um caminho de
modo direto que o ideal da vida fraterna e igualitária encontra seu aprendizado que induz à consciência crítica coerente com a desco-
principal. obstáculo precisamente nos constrangimentos impostos pela berta do Evangelho como libertação e antecipam uma cxpertencia
sociedade capitalista na qual estão inseridas: a superexploração do utópica, prefiguração, inspiração e sustento de um projeto de trans•
trabalho, os atrativos da cultura de massa, a competição econômica, formação histórica.
o mito da ascensão social interferem brutalmente nos ideais de re-
novação da vida cristã propostos pelas CEHs. O Estado autoritário,
armado com a doutrina da segurança nacional e todo o aparato da
legislação repressiva, ainda exorbita no arbítrio e violência de órgãos
policiais e militares, coibindo, ameaçando e punindo as organiza-
ções que procuram expressar os anseios e interesses das classes des-
favorecidas. Por seu lado, as classes dominantes, no reiterado exer-
cício do poder econômico, induzem os comportamentos cotidianos
dos trabalhadores estendendo a penosa jornada de trabalho, barran-
do reivindicações salariais, dispensando os mais autênticos líderes
operários e forjando as ideologias que sustentam seus interesses e
cimentam a estrutura de dominação.
O sistema de exploração e dominação política e ideológica es-
tabelecido no país atinge os membros das Comunidades Eclesiais de
Base e afeta, necessariamente, as próprias Comunidades. Neste sen-

80 81
.,.

Movimentos de bairro
t
Paul Singer

Movimentos de bairro são, hoje, parte da dinâmica social do


mundo urbnno capitalista. Eles constituem ao mesmo tempo formas
de 1,oliduricdude e coesão comunal e de luta por melhores condições
de viclu do população pobre. Os que carecem de recursos econômi-
co11 e de poder dependem, muito mais do que as camadas mais pri-
vllcgiodos, do contato social com os seus iguais e da ajuda mútua
,1uc dele pode resultar. Um caso comum, em São Paulo, é a criação
tlc creches, por iniciariva das próprias mães, o que permite a parte
dclm, trabalhar fora do lar sem que aos filhos faltem os cuidados
in,fü pcnsáveis. Também é freqüente a organização de compras em ·
comum, o que permite suprir famílias, transitoriamente carentes de
recursos monetários, de meios vitais à sobrevivência. _9.Lm-o__yi~n-
tos de bairro têm por.. base formas de coesão social cuie viabilizam
suo expressão "para fora", no sentido de reivindicar junto aos pode-
res públicos a satisfação de demandas que decorrem d!1s próprias
exigências da vida urbana, tal . como ela se constitui atualmente.
Para melhor compreensão destas demandas, convém recordar
que nas primeiras cidades industriais não havia transporte mecani-
wdo, comunicação telefônica, coleta de lixo, redes de água, de es-

83-
goto, de iluminação pública, escolas públicas nem postos de aten- estarem su1e1tas a enchentes, por .se situarem em encostas de mor-
dimento médico e de policiamento. Exceto uma pequena minoria ros ou na proximidade de depósitos de lixo etc.
rica, a população andava a pé, colhia água em poços, atirava detri- _Na cidade capitalista, a_gesigualdade na..reparti,ção_ da renda se_
tos nas ruas e estava exposta aos ataques de doenças infecciosas e de reflete erIL.di eref!ças ôe consumo_não 6-.indLviduaLroas_também_
malfeitores. As condições de vida eram espantosamente más e se coletivo. A escassez relativa dos serviços urbanos básicos é inteira-
traduziam em mortalidade geral e infantil tão alta que a situação mente sofrida pelos que têm pouco dinheiro para dispender com
freqüentemente chegava às raias da calamidade pública. A introdu- a moradia, porque o que ganham tem que ser gasto com alimen-
ção de todos estes serviços públicos, que começou a se dar paula- tação, vestuário e condução. Quanto maior esta escassez, tanto
tinamente a partir da segunda metade do século passado nas cida- maior a privação dos mais pobres. Estes portanto têm todo inte-
des britânicas primeiro, nas demais depois, se deve ao reconheci- resse na expansão daqueles serviços, o que os leva, sempre que pos-
mento público de que não há outra maneira de tornar a cidade mo-
,, derna habitável e portanto um sistema sócio-econômico dotado de
sível, a se organizarem para pressionar o poder público no sentido
de aumentar a parcela dos investimentos e gastos públicos dedicada
um mínimo de viabilidade. Condução e iluminação públicas, água a este fim. Daí os movimentos de bairro, que surgem como resul-1
encanada e esgoto, posto de saúde e de policiamento long~ de serem tado da aglutinação dos moradores das áreas pobres da cidade para
privilégios são necessidades básicas à sobrevivência da população ur- fins de ajuda mútua e passam, em certas circunstâncias, a mobili-
bana do mesmo modo como são o alimento, o vestuário e a habitação. zar a população para reivindicar mai0r participação no usufruto do
Acontece que os serviços urbanos acima enumerados são pra- que se pode denominar de "bens coletivos" da comunidade urbanf!,)
ticamente todos providos pelo Estado, no nível federal, estadual e Movimentos desta espécie se verificam em todos os países de eco-
municipal, ou diretamente ou por concessionários por ele contrata- nomia capitalista, em que a propriedade privada do solo urbano dá
dos e sua expansão via de regra é insuficiente para atender a toda lugar a um mercado no qual a "acessibilidade" aos serviços passa
a população, sobretudo em cidades em rápido crescimento, como é a ter um preço, sob a forma de aluguel ou "valor" dos imóveis. Mas
o caso de São Paulo. Não se pode dizer que a falta absoluta de re- os movimentos urbanos são mais importantes nas cidades dos países
cursos é a causa desta carência, pois não deixam de ser realizadas não-desenvolvidos - como o Brasil - nas quais o rápido incremen-
numerosas obras urbanas menos básicas (aeroportos, edifícios pú- to da população urbana torna aguda a escassez destes serviços, tor-
blicos etc.). A utilização dos fundos do erário público está sujeita nando insuportáveis as condições de vida da maioria pobre de seus
a prioridades definidas por critérios políticos, de modo que a sa- habitantes.
tisfação das necessidades básicas da população compete com outras
demandas, provenientes de camadas sociais que dispõem de meios
econômicos suficientes para ter acesso a todos os serviços ur- Evolução dos movimentos de bairro em São Paulo
banos, por mais escassos que estes sejam face às necessidades de
todos os habitantes da cidade. Os movimentos de bairro de São Paulo apresentam duas fases
A utilização dos serviços tende a ser gratuita ou sujeita ao pa- em sua• história: uma primeira, com a formação das Sociedades de
gamento de taxas que geralmente estão ao alcance da bolsa da maio- Amigos do Bairro_(S}..B),. sobretudo na década dos cinqüenta, e uma
ria da população. Mas esta utilização depende da localização dos segunda, a partir da década dos setenta, quando surgem em bairros
servi os urbanos no território da cidade. Em geral e es se encon- periféricos as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que em mui-
tram no c~ntro e nos bairros mais antigos, o que faz com que o tos casos passam a ser a organização matriz ·ôos movimentos de
preço do solo nestas áreas privilegiadas atinja nível muito mais alto. bairro.
Na competição entre ricos e pobres pela ocupação das áreas bem A .2!:!W.Il das S~está ligada à Sociedade Amigos da Cidade
servidas por transporte público, água e esgoto, iluminação etc., os [' (SAC), formada em 193 , por iniciativa de profissionais liberais e
primeiros naturalmente ganham e expulsam os últimos para n peri- de figuras da chama a aristocracia paulistana", e que se preocupa-
feria, onde tais serviços inexistem ou para áreas desvalorizados por va em "orientar e fiscalizar o crescimento, já então intenso e pouco

84 85
controlado, de São Paulo" .1 No após-guerra, surgem, na periferia pequenos partidos, o Democrata Cristão e o Socialista, ao passo que
da cidade, organizações inspiradas no exemplo da SAC, como a So- todos os demais aderiram aos candidatos oficiais. A campanha do
ciedade de Amigos de Osasco e a de São Caetano. Estas sociedades " tostão contra o milhão" mobilizou uma tremenda quantidade de
também foram criadas por iniciativa de profissionais liberais e li- pessoas dos bairros operários, que formaram centenas de comitês
deraram as campanhas de emancipação daqueles municípios. Jânio-Porfírio e brindaram sua chapa com uma vitória eleitoral tão
A criação de organiza_ções, nos bairros eriféricos, para arti- esmagadora quanto inesperada: ela obteve cerca de dois terços do
cular demandas locáfs e apresentá-las as a utoridades municipais, pa- total de votos depositados nas urnas.
rece ter tido início nos anos quarenta, possivelmente como reflexo O 22 de Março de 19 arcou uma reviravolta na política
da ampla mobilização popular que acompanhou a redemocratização •~ão só de São Paulo mas do Brasil inteiro. Pe a primeira vez, a
do país, após a vitória aliada na 2." Guerra Mundial. Formas espon- ir~ão das massas, comandadas apenas pelo carisma de um polí-
tâneas de vida associativa da gente pobre sempre existiram em São tico sem qualquer tradição, derrotou as poderosas máquinas eleito-
Paulo. Como se vê no capítulo 6 (Organizações Negras), a Irman- ..--
rais do getulismo e do ademarismo. Ao mesmo tempo, uma greve
dade dos Pretos do Rosário de São_ Pa ulo sustentou longa luta pelo gigantesca de 400.000 tecelões, metalúrgicos, gráficos e vidreiros pa•
e2paço urbano com a municipalidade, na segunda metade do século ralisava a indústria de São Paulo por várias semanas, tornando ina•
eassado e nos inícios deste. Nada mais natural que, num períoao de plicáveis as severas medidas da legislação anti-greve então em vigor.
liberalização da vida política, associações de moradores da periferia A coincidência no tempo e no espaço da eleição e da greve mostra
da cidade passassem a reivindicar a instalação ou melhoria de ser-
qua houve realmente um despertar para a luta de grandes camadas
viços ur\.;anos. da população que, até então, tinham-se deixado manipular, até certo
O movimento de bairros possivelmente nasceu (ou talvez· renas-
ponto, por pelegos e políticos.
ceu) em São Paulo, nesta conjuntura, ampliando-se paulatinamente.
Em 1953, a população paulistana reconquistou o direito de escolher, A transformação de muitos comitês Jânio-Porfírio em S!-Bs da
mediante eleições diretas, o seu préfeito. Foram candidatos na mesma periferia pobre da cidade foi e m boa medida uma operação delibe-
chapa os então deputados estaduais Jânio Quadros e Porfírio da rada dos homens que empolgaram o poder municipal, no sentido de
Paz, em cuja campanha houve ampla mobilização popular, da qual consolidar sua base eleitoral, que logo mais seria utilizada para ele-
surgiram a maioria das SABs que, nos anos seguintes, have riam de ger Jânio Quadros para o governo do estado em 1954 e mais tarde,
polarizar as lutas de bairros em São Pa ulo. Convém recordar que em 1960, à presidência da República. As SABs funcionavam como-~<:.
Jâ nio Quadros baseou sua intensa atividade como vereador na de- elos de ligação entre a população carente de serviços básicos e o ~·
núncia das más condições de vida dos pequenos funcionários muni- poder público, que tinha possibilidades de atender, pelo menos em ,~
cipais e das populações da periferia. Dedicava seu tempo a entra r parte, às reivindicações assim apresentadas. Tratava-se, no fundo, •
em contato direto com a população mais humilde e a reproduzir de trocar as obras e os serviços, financiados pelo erário público, ~
depois, da tribuna da Câmara, as denúncias, as queixas e os pedidos pelo voto dos beneficiários. 6_
recebidos . Esta atividade já lhe valeu em 1950, para se tornar o Uma vez iniciado o processo por Jânio e pelas populações dos ~
deputado estadual mais votado. Em 1953, )ânio Quadros liderou bairros operários que decidiram apoiá-lo, ele teve prosseguimento
uma campanha eleitoral para a prefeitura apoiado por apenas dois com o patrocínio dos políticos que o sucederam na prefeitura da
cidade e no governo do estado. As SABs se multiplicaram não só
na capital mas em outros municípios da Grande São Paulo e do in-
1. Estes dados e os demais referentes ao histórico das SABs foram extrlll- terior. Em 1970, segundo o Conselho de Coordenação das Socieda-
do~ do~ excelentes relatórios de J. AIvaro Moisés, "Notas sob re as Sociedades des de Amigos de Bairros, Vilas e Cidades do Estado de São Paulo,
ck Amigos do Bairro (SABs} na Região do Grande São Paulo". 1975 (in<:di-
111) e " O rigens do Mo vimento de Reivindicações Urbanas: as SABs" ( inédito,
havia 1.100 SABs no estado, das quais 800 na região da Grande São
~•'"' tloto}. Paulo e 500 na capital. 12,2 % destas SABs foram formadas até

86 87
1955; as 87 ,8 % restantes surgiram entre 1955 e 1970.2 Elas passa- dn periferia no qual as reivindicações pela extensão da linha de
ram a ser os órgãos reconhecidos pelos moradores dos bairros mais ônibus, QQ.r luz elétrica, água encanada, escola etc., foram levan-
pobres para representá-los junto aos poderes públicos tendo em vista tndos, desde 1955 pelo menos, pela chamada "Comissão da Igreja",
reivindicar benefícios em troca de apoio político. Não só os ocupan- grupo de moradores que se constituiu p.rincipalmente· para obter
tes de cargos executivos mas também candidatos a vereador e a u.;,a igreja católica para o bairro. Esta foi finalmente construída
deputado passaram a se utilizar das SABs para obter votos. Deste' (num terreno cedido) pelo próprio povo, sob a forma de um galpão
modo surgiram, a partir das SABs, redes de apoio e lealdade polí- de madeira. O dinheiro foi arrecadado mediante abaixo-assinados e
tica que acabaram constituindo novas máquinas políticas em subs- quermesses. "A realização de tais quermesses só foi possível devido
tituição às que naufragaram no 22 de Março. a todo o trabalho conjunto dos moradores, que passaram a parti-
Uma tentativa mais ousada de~ 02J)tação do movimento de cipar de alguma forma do movimento de bairro".4
bairros foi a o refe1iõ-wfadimir_ Pizza, ue, em 1956, resolveu A julgar por esta experiência, os mÕ radores dos bairros operá-
cnar Conselhos Di~ ritais nos bairros da cidade, que deveriam con- rios novos tendem a desenvolver formas de solidariedade mútua
gregar as Sociedades Amigos de Bairros e substituí-las como órgãos para suprir, por iniciativa própria, certas carências básicas. A orga-
representativos da população junto ao podeTpúblico. A tentativa nização para reivindicar benfeitorias e serviços, que não podem
~ivid~ as SABs, das quais apenas uma parte aderiu ao projeto, en- ser alcançados pela ação própria dos moradores mas dependem da
quanto as demais resistiram a uma manobra que ameaçava tirar ação do Estado, deve ser vista como decorrência destas formas
sua autonomia "oficializando-as". Tentou-se então, em relação às elementares de auto-ajuda. f: da interação destes dois tipos de
SABs, uma operação de enquadramento, semelhante à imposta aos atividade - para dentro e para fora - que surgem as contradições
sindicatos operários na década dos 30. Mas, !!9_ caso~ s SABs, ela de classe no seio do próprio movimento de bairro, que levam à
falhou, devido à recusa da maioria delas em se deixar enquadrar crise da sua primeira forma de organização - a SAB - e a sua
e;-poss1velmente, porque os prefeitos seguintes não prestigiaram os superação, mediante a criação de novas modaÜdades de organiza-
Conselhos Distritais. Seja como for, tentativas de cooptar as SABs, ção, diretamente inspiradas pelas Comunidades Eclesiais de Base
de uma ou outra maneira, continuaram a ser empreendidas pelas di- (CEBs) da Igreja Católica, com participação eventual de outras
versas administrações municipais, com maior ou menor grau de igrejas ou grupos ideologicamente motivados.
sucesso. Para se entender o atual movimento de bairros em São Paulo,
J. A. Moisés sustenta que bem mais recentemente "as SABs a análise da natureza desta crise é essencial. f: preciso notar, inicial-
se permitem ampliar suas funções, que passam a ser não apenas mente, que a composição social da população dos bairros periféri-
reivindicativas mas também associativas" .3 Estas atividades associa- cos não é homogênea. Embora composta, em sua grande maioria,
tivas seriam principalmente recreativas (festas) e assistenciais (donati- por famílias operárias, esta população também contém elementos
vos de roupas, alimentos e medicamentos) além da manutenção de pequeno-burgueses (comerciantes, donos de bares, oficinas etc.)
cursos. O autor não apresenta dados que permitam comprovar a idéia além de um ou outro médio empresário.
de que se tratam de fases sucessivas na atuação das SABs. Há indica- Quando surgem os movimentos de bairro e sobretudo quando
ções, pelo contrário, de que elas são concomitantes ou, se há seqüên- se institucionalizam, sob a forma de Sociedades de Amigos de Bairro,
cia, a fase "associativa" deve prece~er logicamente a "reivindicativa", os elementos pequeno-burgueses tendem a assumir a liderança. f: de
pois esta última pressupõe um mínimo de organização dos morado- se presumir que isso se dá porque o~embros da classe média têm
res, que deve se originar das atividades de solidariedade mútua.
f: o que transparece de dados colhidos em Cidade Adernar bairro
------ '
4. Esta citação assim como os demais dados sobre a experiência de Cidode
Adernar provêm da interessantíssima pesquisa de Ana Luísa Sallcs Souto Fer-
2. Segundo J. A. Moisés (1975), p. 19 e nota de roda pé (32 ). reira "Movimentos Populares Urbanos e suas Formas de Organizaçiio Liga-
3. Ibidem, p. 24 (sublinhado no original). das à Igreja" (relatório à FAPESP).

88 89
mais recursos materiais e culturais - mais dinheiro, maior escolari- u c lasse dominante. Sua capacidade de aglutinar a população diminuiu
dade e mais contatos fora do bairro - que os to rnam mais aptos precisamente à medida que sua liberdade de reivindicar passou a
ao desempenho de funções de liderança nestes tipos de movimento. ~cr limitada ao que o governo, em todos os níveis, se dispõe a
Além disso, os pro ri•etários de terrenos, a começar pelo próprio conceder. No fim, a SAB acabou sendo boicotada pelo povo, mesmo
loteador, têm interesse em que os movimentos de bairro consigam po rque a presença popular deixou de lhe ser necessária, já que sua
1
~ ne f ~ área ..mediante a multiplicação de serviços urbanos, pois legitimidade não vem mais das bases porém da cúpula governamen-
i~so leva à valorização da propriedade imobiliária. No Jardim lcaraí, tnl. Segundo um depoimento recolhido por Ana Luísa S. S. Ferreira:
por exemplo, o loteador chegou até a oferecer um terreno para a "A Sociedade de Amigos do Bairro é uma sociedade de diretoria,
Comunidade construir sua sede. e o povo nunca participa dela; até agora nunca vi essa gente fazer
nada para o bairro. ~quilo- lá_só serve __para tempo de eleição : os
~est~ condições, o movimento de bairro adquire caráter inter-
políticos vêm lá e ficam pedindo votos e fazendo promessas que eles
~ taJ reunindo o conjunto dos moradores em seu confronto com
nunca cumprem".º
os poderes públicos. Além disso, a partir da perda da autonomia
municipal da capital, que passou a ter o prefeito nomeado pelo gover- Não se deve supor, no entanto, que o esvaziamento das SABs,
nador do estado, o atendimento das reivindicações locais passou ou sua transformação em e ntidades fundamentalmente recreativas,
a depender basicamente do executivo municipal e de políticos liga- tenha por si mesmo suscitado formas a lternativas de organização
dos ao partido governista. ~ Sé.B..Lp_~ssaram a ser paulatinamente popular nos bairros. Estas surgiram a partir do estabelecimento das
domin~as__por políticos da Arena, que muito naturalmente tendem Comunidades de Base, iniciado nos últimos anos da década anterior.
a'eríguadrar Õ mov imento nos limites do que o regime considera Sua origem, caráter e finalidades já foram objeto de análise em
'' legítimo". capítulo anterior. Basta, portanto, recordar aqui que as CEBs_Jll!ten-
cle m basicamente formas de vida comunitária que realizem certos va-
Na Cidade Ad~mar, por exemplo, a SAB foi constituída no lo res cristãos, de igualdade e solidariedade entre todas as pessoas.
tempo em que o executivo municipal era ocupado por Faria Lima
Conseqüentemente as CEBs tendem a assumir reivindicações locais e
(1965-1969), 2-último dos prefeitos eleitos da capital. Nesta fase, mesmo gerais. Seu objetivo primordial é criar uma sociabilidade
a SAB era o centro das reivindicações locais. Ma is tarde, no entanto,
nova entre os que delas participam e entre estes e os demais mem-
ela parece "ter-se desviado de seus interesses inicia is (luta por me-
bros da sociedade, ~ocia bilidade esta que, em última_ análise, nega
lhorias do bairro), para se tornai local de disputas político-partidá-
a que é estabelecida pelo caráter competitivo do capitalismo. As
rias desvinculadas dos inte resses ma is imediatos da população, pro-
CEBs não podem aceitar a persistência e o agravamento das desi-
vocando um esvaziamento da entidade, no sentido de que esta perdeu gualdades sociais e muito menos as explicações que estas desigual-
sua base de sustentação, ou melhor, o apoio da população. Ela asso- dades sejam o resultado de diferenças entre os indivíduos, sendo
ciou-se a po tticoi deixou-se cooptar e com isso perdeu sua capaci- portanto os pobres - devido à sua ignorância, sua baixa produtivi-
dade de representar os reais interesses do bairro . Atualmente, o dade, sua incapacidade de limitar a prole e sua propensão a migrar
presidente de honra da Sociedade é o pai de um ex-vereador q ue para as cidades, onde sua contribuição à produção é menos necessá-
junto com outros políticos do partido governista se constituem nos ria - os principais, se não os únicos, responsáveis pela sua pobreza.
"políticos do bairro". f interessante notar que a família deste verea- Desta maneira, ~ g@iza ão que as CEB~ oferecem aos movimentos
dor é a proprietária da empresa de ônibus Canaã, responsável pelo de bairro se _Jll'9põ_e a umC demarche'' ideológica completamente
transpo rte do bairro".5 dife~ te da_g__ue inspirou o mesmo movimento durante décadas
O caso da S~B de Cidade Adernar parece típico : ela foi cap- anteriores._ Em vez de supor que as carências dos bairros periféricos
turada por poüticos situacionistas que, não por acaso, pertencem e da população pobre se devem à negligência dos governos, que uma

5. A. Luísa S. S. Ferreira, op. cit., p. 13 e nota 9. b. Op. cit., p. 15.

90 91
adequada mobilização dos diretamente interessados pode eventual- nilo há uniformidade na política das CEBs em relação às SABs. Em
mente superar, estas carências são atribuídas à própria organização lodo caso, tudo ·1eva a crer que as SABs tendem a se defrontar com
social capitalista, a qual tende a encerrar os indivíduos no estreito um dilema: ou passam a ser expressão autêntica dos movimentos
círculo de seus interesses pessoai~ impedindo que a solidariedade populares de bairro, tal qual eles vêm se constituindo sob inspiração
1 mútua unifique os membros da sociedade, fazendo-os partilhar de dos CEBs ou correntes ideologicamente análogas), ou elas perdem
J modo mais justo os frutos do esforço comum. t1uas bases d.e apoio local, tornando-se representantes apenas dos in-
Este ponto de partida valoriza ao extremo a participação de teresses locais e gerais das classes dominantes. Não há conciliação
todos tanto na vida da própria Comunidade como nos movimentos poss1ve entre as SABs, que atuam como " delegados do poder junto
reivindicatórios, que ela vem a inspirar. A troca de concessões dos 11 população" ,9 e os novos movimentos de bairro, suscitados pelas
poderes públicos pelos votos da população, que constitui a essência CEBs. Como diz a mesma moradora da periferia citada atrás: "A
da chamada "política de clientela" é, à luz deste modo de pensar, Igreja e a SAB têm os mesmos objetivos; devia lutar junto, mas não
no mínimo imoral. O usufruto dos bens coletivos é um direito de luta. A linha, o modo de fazer (deles) não é igual a gente. A nossa
todos os moradores da cidade e pagar por este direito mediante a linha é ben: baseada nos d ireitos_humanos. Eles visam polítj ca para
alienação do voto só pode reforçar um sistema condenável pelas subir. Nós não estamos peni ando em ninguém su bir. É para o povo
injustiças que acarreta. Esta atitude é bem expressa por uma mora- ~ bir'~.
{dora da · periferia, que a firma: " T em um político lá (na SAB), eu A multiplicação das CEBs por toda a Grande São Paulo, prin-
agora ainda estava falando que a gente podia se unir a ele pa ra c ipalmente nos bairros operários, suscitou um novo movimento de
fortalecer o pedido. Agora, se ele quiser em troca alguma coisa, lutas locais que ao mesmo tempo em que retoma as reivindicações
daí não. Porque a gente não quer trocar nada; a gente quer o bem já clássicas das SABs, po r serviços urbanos básicos - transporte,
do povo. A -Igreja é política, mas é uma outra política: ela procura saneamento, assistência à saúde etc. - levanta novas bandeiras, que
melhorar a situação do povo. Política é a favor ou contra uma situa- tendem a extravasar o âmbito puramente local, unificando e mobili-
ção. Politicagem é diferente, é querer benefício próprio, com inte- zando a opulação da periferia em torno de objetivos maisamplos.
resse. A maioria deve participar, porque ela é que sente na carne".7 São estes aspectos novos do movimento de bairro, que se verificam
Não é difícil entender que, nestas condições, as relações entre em São Paulo, que serão examinados a seguir.
as SABs, tais como elas acabaram se tornando, e os movimentos de
bairro originados pelas CEBs tendam a ser conflituosas. Estes confli-
tos podem assumir diferentes formas. Em Vila Iolanda (Osasco) a O novo movimento de bairro em São Paulo
Comunidade criou a SAB e depois, quando a viu desvfrtuaâa, "ma-
tou-a". No Jardim Kagohara (Santo Amaro), uma chapa de oposição, Uma das novas lutas. do movimento de bairro é a dos loteamen-
provavelmente formada por membros da CEB, disputou a direção tos clandestinos. Ela surgiu a partir do fato de que deve haver
da SAB e ganhou a eleição com 111 votos contra 4 7 dados à chapa a lgo como d~ l loteamentos em situação irregular em São Paulo.10
da situação. O novo presidente da SAB é um homem do povo, que A situação destes loteamentos é muito variável. H á casos de grila em:
trabalha como garçon de um hospital e chofer de táxi.8 Em Cidade a imobiliária que loteou o terreno não era de fato proprietária dele
~ ~~ boicote pelos membros da CEB reduziu a SAB a um e vendeu o que não lhe pertencia. Em outros casos, o loteador não
mero apêndice do clube local de futebol, com reduzida efetividade · obedeceu às exigências legais, que requerem tamanho mínimo do

--
tanto reivindicatória q ua~to eleitoral. Estes exemplos mostram que lote (bastante· grande para o pequeno poder aquisitivo da população

7. Depoimento colhido por A. Luísa S. S. Ferreira, op. cit., Relatório n.º 1, 9. Cândido P. F. de Camargo e outros. São Paulo 1975: Crescimento e Po-
p. 12 (sublinhado por nós - P.S.). 1,rcza. Edições Loyola, São Paulo, 1976, p. 119.
8. O São Paulo, de 20 a 26/5/1978, p. 4. 10. O São Paulo, 14 a 20/01/1978, p. 4.

92 93
mais pobre), arruamento, áreas livres para uso coletivo etc. E há Naturalmente esta tática é combatida pelos que pretendem se
casos de fraude ainda mais escandalosos. Assim, por exemplo, em uproveitar - política e financeiramente - da luta dos moradores.
Vila Zatt "a fraude foi descoberta quando, em agosto do ano pas- No Jardim das Camélias (Zona Leste), os moradores de loteamento
sado, os paroquianos procuravam um terreno no local para a cons- clandestino foram convocados, juntamente com os estagiários do
trução de um centro comunitário. Observaram muita confusão em Centro Acadêmico 11 de Agosto que os assistem, para uma reunião
torno da propriedade de terras. . . Os advogados, examinando os na sede da SAB de Vila Guarani. Compareceram a esta reunião os
contratos dos moradores, perceberam que estes eram de locação e presidentes desta SAB e da do Jardim das Camélias, acompanhados
não de venda. A EMBRADOC alugava os terrenos por dois anos, por um elemento que se dizia da Casa Civil do Governo e por um
enganando os interessâdÕS, fazendo-os crer que estavam comprando ndvogado. Tentaram convencer os moradores a pagar Cr$ 2.000,00
- otes" .11 cada um ao advogado para, mediante a influência do governo esta-
Casos como estes são certamente antigos em São Paulo e as dual, resolver o problema. O "representante" do governador levan-
' vítimas são quase sempre os mais pobres, cuja ignorância e humil-
dade garantem a impunidade dos que os logram. A novidade está
tou a suspeita de que "os estagiários (do 11 de Agosto) poderiam
estar agindo juntamente com os grileiros". 12 Estabeleceu-se deste
modo uma clara di~tª-._pela confiança dos moradores, entre os
~o fato de que estes pobres e humildes estão conseguindo se unir
ara a defesa de seus direitos. A movimentação começou em fins
de 1976, ao redor de quatro loteamentos clandestinos. Ela foi pro-
movida pelas Comunidades de Base, com apoio da Comissão Pasto-
-
ag~e da Pastoral e os dirigentes das SABs, apoiados pelo situa-
cionismo estadual. Incidentes- desta natureza podem se repetir, indi-
cando o grande potencial político e os enormes interesses econômicos
ral da Periferia de Santo Amaro, que convocou advogados dos oíctados por um movimento desta natureza.
! Centros Acadêmicos 11 de Agosto (da Universidade de São Paulo) e A luta contra os loteamentos clandestinos tem se difundido
22 de Agosto (da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) rapidamente em São Paulo. Em começos de 1978, moradores de

l
/ para orientar os moradores. Q__ que distingue este movimento dos numerosos loteamentos já ~ am mobilizados, reunindo-se seus
procedimentos habituais nestes casos é que se decidiu não enveredar representantes uma vez por mês na Capela do Socorro, que centra-
pela via - jurídica. Uma ação na justiça leva no mínimo dois anos e liza o movimento na Zona Sul da Cidade. "As primeiras reuniões
7
müitas- vezes mais tempo e enquanto ela se arrasta nos canais do começaram com a presença de 20 ou 30 pessoas, representando
judiciário a ~pulação se desmobiliza. Além disso, a luta contra os 4 ou 5 loteamentos. Na última reunião, o número de representantes
loteamentos clandestinos não visa apenas a regularizar a propriedade era superior a 150 e o número de loteamentos havia subido a 50 .. .
dos moradores, mas obter- benefícios para o bairro. É que a prefei- o trabalho conjunto está envolvendo os interesses de 50.000 pes-
tu ra, embora cobre os impostos com multa dos moradores de lotea- soas".13 O movimento se estendeu depois à Zona Leste, onde come-
mentos clandestinos - 200% sobre o valor do terreno e 100% çou em 8 loteamentos, e tende a abarcar toda a cidade e outros
sobre o da edificação - se recusa a prover a área de qualquer municípios da Grande São Paulo, como Osasco, onde a movimenta-
serviço urbano. De modo que a tática adotada é pressionar tantº o ção começou em Parque Cocaia e Jardim Rafael.u
!ateador quanto a prefeitura mediante comparecimento em massa Na medida em que o movimento contra os loteamentos clandes-
dos mora õres à sede da Administração Regional e à firma imobiliá- tinos mobiliza uma parcela crescente da população que mora na
riã. A defesa contra este tipo de pressão é muito difícil e, depois periferia da metrópole, é óbvio que ele não poderá continuar se
que falham as habituais manobras dilatórias, os moradores em geral limitando à mobilização de massas locais, tendo em vista resolver
conseguem ser recebidos pelos responsáveis e negociações significa- separadamente o problema específico de cada comunidade. A partir
tivas são encetadas. Já se conseguiu, deste modo, a regularização do
oteamento em alguns casos.
12. O São Paulo, 8 a 14/04/78, p . 6.
13. O São Paulo, 14 a 20/01/78, p. 4.
11. O São Paulo, 20 a 26/05/1978, p. 4. 14. O São Paulo, 6 a 12/05/78, p. 5.

94 95
da generalização do problema, que é no fundo o da apropriação e
uso do solo urbano pela maioria pobre da população, colocar-se-á
que abrissem novas perspectivas. Elab_o rou-se uma peça de teatro,
e,
\
inspirada nest~ periência, que Jáfoi encenada em diversos bairrÕs.
a necessidade de procurar soluções globais, ou seja, de formular um Apesar do aparente fracasso desta primeira movimentação em
programa ue_ assegure àquela população condições dignas de m~- maior escala, as lutas pela melhoria do transporte de· massa conti-
racfiaJ Um programa desta espécie terá que propor formas alternatt- nuam em vários pontos da periferia, já que a precariedade do mes-
~as de urbanização do espaço, que não as atualmente praticadas mo em São Paulo não foi e nem tem perspectivas de ser remediada.
por especuladores, grileiros e intermediári~s. Uma solução glo~al Obviamente, um movimento desta espécie só poderá ter êxito se for
terá que prever que alguma entidade coletiva - uma. cooperativa capaz qe passar da fase de "pesquisa" e de ãbãixo~assinados a uma
ou talvez um órgão do município - se encarregue de incorporar à etapa de real mobilização de massas, visando ptessionar o poder
cidade o espaço necessário à sua expansão, fazendo-o de tal modo público no sentido de adotar soluções de base para o problema.
que as camadas mais pobres possam ocupá-lo de modo adequado Tais soluções tenderão a propor não somente a municipalização do
e sem serem esbulhadas. lransporte mas o efetivo controle popular da em resa que vier à -
O movimento contra os loteamentos clandestinos não é, no en- operá-lo. Do mesmo modo que o movimento contra os loteamentos
tanto, o primeiro nem o único a mobilizar em conjunto a população clandestinos, também o que visa ao transporte coletivo só poderá
da periferia. Em 1974, houve l!ma assembléia de 2.?00 pessoas ~~ª~ª utingir suas finalidades se conseguir ampliar a mobilização, formu-
(' tratar do problema de ônibus na Zona Sul. O m~v.1mento se dmgia lnndo um programa capaz de responder às necessidades de toda a
contra os concessionários de duas linhas de ombus que servem população pobre da metrópole.
_yários bairros daquela parte da cidade. As queixas eram ~rincipal- Outro movimento surgido recentemente a partir das CEBs é o
mente uanto à insuficiência de veículos, causando excessiva lota- do Custo de Vida. Em 1973, os Clubes de Mães da Paró uia de Vila
ção e atrasos, e- à sua má conservação. O movimento procurou Remo (Zona Sul) resolveram escrever uma carta às autoridades,
inicialmente pesquisar as condições do serviço, d~ ~- fl!nda- reclamando do aumento do custo ãe vida, que agrava os demais
mentar ·de modo irrefutável a validade das_ recJamações. Observa- problemas - transporte, saúde, alimentação - que afetam a popu-
dore;-se postaram nos pontos de ônibus 24 horas por dia, registran- luçüo pobre. Na época faltava feijão em São Paulo e a carta denun-
~
do o número de viagens, os intervalos entre elas, o número de usuá- tinva a elevação maior dos preços dos gêneros nos bairros mais
rios etc. Foram levantados também os salários pagos a motoristas e ufustados. Ela foi publicada na imprensa e aproveitada na campanha
e
cobradores os lucros das concessionárias, para provar que elas po- eleitoral de -1974. Em julho de 1975, os moradores resolveram fazer
1leriam cumprir as condições dos contratos de concessão, colo~an~o uma pesquisa para determinar as conseqüências da carestia sobre
1maior número de veículos nas linhas. Nos contatos com a direçao u seu padrão de vida. Membros de 70 clubes de mães distribuíram _
l das empresas ficou claro que a estas interessava utilizar menor núm~- de casa_em casa 2.000 formulários. Os dados foram tabulados e se7
ro de ônibus em serviço, de modo a maximizar o rendimento por vei- l'Oncluiu " que o trabalhador da periferia ganha, em média, ui
culo. O desconforto e demais inconveniências para os usuários são Nulário mínimo e meio. Com isso a mulher e o filho mais velho são
fatores de aumento de lucro para as companhias, o que demonstra 11hrigàõos"'aprocurar emprego, aumentando a renda familiar para
haver cont;:adiçãQ._insa11áv_el~ ntre_ as necessidades populares e a pouco mais de três salários. Dos Cr$ 1.668,00 mensais que f!!}travam
concessÍio de serviços públic~ a firmas capitalistas, cuja finalidade numa destas casas em 1975, Cr$ 992,00 eram gastos em alimentação.
básica é ol ucro. -- l 'om o resto deveria ser pago aluguel, prestações de casa ou terreno,
O movimento entrou em contato com as autoridades municipais, roupa, condução, remédios, material escolar, luz e água".15
a CMTC que subcontrata as linhas de ônibus e vereadores, mas não
alcançou seus objetivos. Em alguns bairros o transporte público
1, Este e outros pormenores da história do Movimento de Custo de Vida
melhorou, mas não em outros. Em 1976, o movimento se dissolveu, foram extraídos do excelente relato de Licínio Azevedo, publicado em Mo-
provavelmente por não ter sido capaz de encontrar formas de luta 11/111c,11l0, 06/02/1978. .

96 97
Em novembro de 1975 reuniram-se os representantes dos bairros por g__ue sobe o custo de vida e por que os salários não acompanham
que participaram da pesquisa e se marcou uma g!:_a~de a~sembléia esta elevação.- l'lão há pressa em alcançar as conclusões políticas
dos moradores que teve lugar em junho de 1976. Participaram dela óbvias, de que o descompasso entre preços e ganhos resulta da
cerca de 4.000 essoas, a maioria CQTI__stituída por mulheres. Leu-se política econômica posta em prática. Deliberadamente, o movimento
na ocasião uma carta dirigida às autoridades, assinada por 18.~00 aji_ se declara de oposição, continua apelando às autoridades, de
pessoas. Para esta assembléia foi convidado o governador do estado, mod-º-i!_ facilitar a incorporação de camadas q ue crêem que é possí-
que não compareceu, mas mandou um telegrama agradecendo o vel alcançar a adoção de medidas concretas por parte do governo.
r _convite. Mas estiveram presen_tes políticos e representa_n!es da Igreja Estas medidas seriam o congelamento dos preços dos gêneros de7
e 24 moradores fizeram depoimentos quanto a suas d1f1culdades em primeira necessidade, a concessão de um a bono a todos os trabalha-
enfrentar ô custo de vida. Houve várias propostas mas "a falta dores e o aumento dos salários acima da elevação do custo de vida . 1
1 de resultados objetivos logo a pós a assembléia levou à descrença. Ê este o teor do abaixo-assinado, aprovado em assembléia realizada
,, O rpovimento praticamente - dissolveu-se. Falta1am fórmulas de con- em março de 1978, com a presença de cerca de 5.000 pessoas e para
tinuidade, não foi organizada a cobrança das propostas".10 o qual fora~das ~a_g: l .3Q0.000 assinaturas. Por ocasião da
Em inícios de 1977, no entanto, 80 representantes de ~ bairros entrega &ste abaixo-assinado, as autoridades- governamentais convi-
se reunirám- na Paróquia de Vila Remo, recomeçando o movimento, dadas para recebê-lo na Praça da Sé se fizeram representar por
ligado a outras atividades da Igreja em São Paulo. Finalmente, em forte_ ap_arato de repressão policial, q ue acabou cometendo violências
agosto de 1977. setecentos delegados de comunidades se ~contra- contra parte do público que veio assistir ao ato. As autoridades
ram, elegendo urna coordenação geral para o movimento. Nesta fcdera ·s em Brasília tampouco foram mais acolhedoras, tendo sub-
ocasião se aprovaram propostas de se ampliar o movimento para metido _as assinaturas a exame grafológico e concluído que muitas
toda a G rande São Paulo, de se elaborar um abaixo-assinado a ser teriam sido forjadas, o que as levou a denunciar publicamente o
subsuito por centenas de milhares de pessoas, de se realizar reu- MCV como "desonesto".18
niões setoriais e regionais e uma grande assembléia do Movimento
Em janeiro de 1979 se realizou o 1.0 Encontro Nacional contra
do Custo de Vida (MCV). O movimento se estendeu a vários bair ros,
11 Carestia, com participação de mais de 200 representantes da capi-
iniciando-se mediante " reuniões por ruas, em pequenos grupos para
tnl e do interior de São Paulo, de Alagoas, Rio Grande do Sul, Pará,
faci litar o debate. Ampliaram os círculos aos poucos, convidando
os vizinhos. Com o crescimento foram organizando lançamentos de Minas Gerais, Paraná, Bahia e Ceará. Neste encontro se resolveu
abaixo-assinado em igrejas em ce.!!_tros comunitários. . . }'ambém mudar o nome do movimento para ~ ~~ -JJlento Contra a Carestia
começam a surgir núcleos em outras cidades: Campinas, Piracicaba, (MCC) e adotar o dia 27 de agosto (data da manifestação da Praça
Nova Iguaçu, Belo Horizonte, Vitória e Salvador, onde, ao contrário du Sé) _c_Q_mo.Dia Nacional de Luta. O movimento prossegue com a
de São Paulo, o movimento se iniciou do centro para a periferia".11 n:nlizaçâo de manifestações públicas, apoio às campanhas salariais
Esta última observação é muito importante : o MCV em São dos sindicatos, envio de delegações de todo o país a Brasília etc.
Paulo nasceu e se desenvolveu na periferia, çomo iniciativa das bases, Convém notar que a tática de meramente apelar às autoridades
organizadas em Comunidades. Ele reflete, em seus êxi_tos tanto quan- (l lll l~ e denunciá-las só foi adotada -após vencer resistências de
to em suas deficiências, este càrãter. Seu primeiro mérito está em ~l·tores que identificam a causa básica do empobrecimento das mas-
mobilizar amplas camadas da P<?P~lação cujo nível de consciência \ 11~ da periferia, compostas principalmente por trabalhadores pouco
é ainda relativamente baixo. Trata-se, no fundo, de um movimen!_o 11uulificados (a julgar pelos dados da pesquisa feita pelo próprio
de educação política, que se desenvolve ao redor de uma q uestão: MCV em 1975), na política vigente.

16. Movimento, 06/02/1978. IM Obviamente, as assinaturas " falsificadas" foram de analfabetos, cujos no-
17. Movimento, 06/02/1978. 11101 foram colocados nas listas por outras pessoas.

98 99
Estes setores estão convictos que esta política não é casual de jovens percorriam escolas e locais de encontro da juventude do
mas decorre de interesses representados na estrutura do poder e bairro, as comissões de fábricas passavam a lista nas seções, na
que, sem uma mudança nesta estrutura, tornand~-a. mais democrá: porta dos refeitórios e nas horas de descanso.'º Merecem destaque
tica e portanto mais sensível às aspirações da maioria, nada podera os &!!!E9S de música e de teatro, que animavam as assembléias. Um
ser conquistado. Para os que pensa~ assim, gastar o seu tempo destes grupos é de Vila Remo, composto por trabalhadores, que se
coletando assinaturas e discutíndo no nível rente aos fatos, s~m formou há 3 anos. Suas peças constituem, muitas vezes, a dramatiza-
diignOsticÕS mais gerais e tomadas de posição mais -~tuantes, é muito ção~sua própria experiência de vida. Abordam em geral assuntos
pouco atraente. O incidente ocorrido na assembleia de março _de alusivos a datas como as das eleições, 1.º de Maio, Natal. A sua
11 1978, quando estudantes foram impedidos de ~rg~~r . uma faixa peç_!_Ltvent~ras de jQãQ_ Feijão foi aQresentada meses a fio e discute
pedindo a restauração das " liberdades democráticas , ilustra bem os causas do aumen_to do custo de vida e "é baseada em estudos
' esta contradição. e pesquisas feitas em jornais".2 º
1 Em segundo lugar, ao se limitar a reivindicações puramente Embora seja difícil prever como o Movimento Contra a Carestia
econômicas, o MCC também limita o alcance de seu trabalho de irá se desenvolver, o despertar de consciências que por ele foi obti-
conscientização. Este trabalho consegue despertar a vontade . de do será de todos os modos importante para o movimento de bairro
"fazer algo", de se unir com seus iguais e não mais sofrer. passiva- cm São Paulo. Como disse uma dona-de-casa de Monte Alto, em
' mente as conseqüências da inflação e do "arrocho" salanal. Mas São Miguel___e_aulista~~~mo que a gente não consiga o que estamos
dificilmente pode ir além, no sentido de mostrar que estas conse- pecfutd.9_com o abaixo-assinado, ele serviu para a gente acordar, se
qüências não po em ser atribuídas meramente à má vontade das preocup~ tudo isso e ficar mais inteligente".21
autoridades ou à sua fgnõrância do que realmente se passa com Outra atividade que surge do movimento de bairro é a cnaçao
a população periférica de São Paulo. É claro ~~e aí o movimento de Centros de Defesa dos Direitos Humanos na periferia. O de São
se depara com um [dilema: l aprofundar a analtse pode acar~etar Miguel, inaugurado em junho de 1978, tem como o b 'etivos: "divul-
perigo de torná-la inacessível às amplas camadas_ pouco es_clarec1das; gor informações a respeito da situação do;-a;reitos humanos na
limitá-lo às causas imediatas do problema o expoe ao perigo de que região; denunciar violações aos Direitos Humanos; organizar um
ô desânimo cau-sado pela falta de resultados concretos o lev~ ao urquivo com notícias de jornais, revistas, boletins relacionados com
declínio, como já ocorreu em 1976. De qualquer modo, a atitude o problema; juntamente com a Comissão Regional, promover cursos
sumamente negativa das autoridades do governo quando da entrega de forma_ção para pessoas que e ntram em contato com o Centro;
do abaixo-assinado, em agosto de 1978, tende a levar o M~C _a dor orientaç_ão_ e_assistência jurídica nos casos de problemas coleti-
repensar sua tática e a procurar novas formas de ação. A sua d1fus_ao vos e individuais e estimular lutas e mobilizações em torno da defesa
por outras cidades do estado e por outros estados _d a_ federaçao, tios dire~ do povo".22 Na inauguração do Centro foram apresenta-
como vem ocorrendo, poderá conduzi-lo a uma amphaçao d~ seus dos resultados de "pesquisa feita na Região, no ano passado, em 24
objetivos, enriquecendo sua análise das causas de empobrecimento vilas de São Miguel, apresentando importantes dados da realidade
de amplas camadas da população. . A •
•ofrida de nossa população", além de " depoimento de um dos filhos
De qualquer maneira, o MCC já conta em seu ativo com ex1tos
do sapateiro Djalma Arruda da Silva, vitimado em outubro do ano
significativos, dos quais talvez o mais importante seja o de ter desen-
pussado pela violência policial".23 Em maio de 1978, ganhou noto-
volvido ~ ~ gia ~f!caz para_atingir a grande massa ~e ~ora:
dores dos bairros <>peranos de _Sao Paulo. Esta pedagogia _mcl~i
a cria_ção de jograis, peças de teatro e novas formas _de orgamzaç?o 11>. Movimento, 13/03/1978, p. 3.
como grupos de ruas, grupos de senhoras'. grup~s de Jovens e comis- 10. Movimento, 06/02/1978, p. 6.
sões de fábricas. Na divulgação do aba1xo-assmado, os gru~os de 11 Movimento, 13/03/1978, p. 3.
ruas batiam de porta em porta, os grupos de senhoras reahzavam U O São Paulo, 10 a 16/06/78, p. 1.
reuniões para as quais convidavam vizinhos e amigos; os grupos 21 O Sao Paulo, 24 a 30/06/78, p. 8.

100 101
riedade o caso de famílias inteiras que foram torturadas pela polícia Em maio de 1979, reuniram-se os representantes de 11 favelas e
para revelar o paradeiro dos suspeitos de haverem cometido um se abriu a perspectiva de se realizar um Congresso dos Favelados
assalto. Casos assim, tudo leva a crer, são quase rotineiros. O que da Grande São Paulo. Três meses mais tarde se constituiu o Movi-
houve de diferente desta vez é que as vítimas fazem parte de Comu- me~das Favelas de São Paulo, numa reunião da qual participa-
nidades de Base de Osasco (Helena Maria, Baronesa e Munhoz) e o ra~000 pessoas, representando 70 favelas da região de Santo
que lhes sucedeu foi comunicado à Comissão de Justiça e Paz, que Amaro. Suas reivindicações principais são moradia, água e luz.27
levou o caso ao Corregedor Geral da Justiça e, o que foi ainda mais No mês seguinte, cerca de 1.000 favelados foram à Prefeitura e
importante, ao conhecimento da opinião pública. exigiram se avistar com o alcaide para apresentar estas exigências.
Em agosto de 1979 teve lugar o 1 Enc'ontro dos Centros de Em "clima de guerra", o prefeito se recusou a recebê-los e um se-
Defesa dos Direitos Humanos, no qual participaram seis Centros cretário prometeu um plano para distribuição de água e Iuz.28 A
já consolidados, havendo mais seis em formação (um dos quais no mobilização dos favelados prossegue, atingindo a zona leste e outros
Acre). Aprovou-se então uma proposta no sentido de ser criado pontos da periferia da cidade.
um Centro de nível arquidiocesano, para coordenar as atividades Nas mobilizações em torno de reivindicações de saúde ou em
dos de âmbito local. Resolveu-se também que as áreas de atuação defesa dos favelados, o movimento dos direitos humanos se cons-
prioritárias dos Centros seriam: violência policial, saneamento bási- titui como prolongamento do movimento de bairro. Mas, na defesa
co, creches, orientação trabalhista e organização de grupos de do cidadão desprivilegiado contra a violência policial, ele é, no
saúde.2~ Como se vê, embora a luta contra as arbitrariedades da cenário brasileiro, uma novidade. Pela primeira vez está surgindo
polícia tenha a máxima prioridade, a atuação dos Centro5 corres- cm São Paulo um movimento de defesa política dos direitos huma-
ponde a uma visão mais ampla dos direitos humanos, entendidos nos da população pobre. t amplamente sabido que as pessoas sem
como sendo dos indivíduos e das coletividades e se manifestando no recursos são vítimas não só de violências mas de suspeitas gencrali-
plano jurídico, social e econômico. 1.ndas por parte da polícia. Em batidas policiais, feitas geralmente
A tática dos Centros consiste em mobilizar a população para nas áreas pobres da cidade, quem não estiver munido de documento
exigir seus direitos. Assim, no que tange à saúde, por exemplo, os "nceitável" acaba detido "para averiguações". A presença em certos
moradores do Jardim Ângela conseguiram uma reunião com os res- lug ~ a aparência da pessoa são critérios suficientes para torná-
ponsáveis pelo distrito sanitário de Santo Amaro para reclamar do lu suspeita. A detenção de mulheres por prática de prostituição -
atendimento precário, da escassez de médicos e da falta de higiene um 7.êrime" não previsto em lei - tem por base, em geral, tais
no Centro de Saúde.2~ Outra reunião, com finalidades análogas, na l ritérios. O desamparo do conjunto da população periférica é enor-
qual o Secretário de Saúde do Estado e da Higiene da Prefeitura se me, a ponto de muitas pessoas que poderiam e prefeririam trabalhar
defrontaram com cerca de 1.000 cidadãos em praça pública, foi rea- l'0mo autônomos acabarem por se empregar como assalariados
lizada em São Mateus.26 Mobilizações de massa constituem métodos unicamente para poderem contar com essa espécie de passaporte
relativamente eficazes para abalar a impassibilidade burocrática da ,lo pobre que é a carteira de trabalho "assinada". Contra esta rcite-
máquina do estado. rudo violação dos direitos civis das camadas mais pobres, a defesa
Um dos grupos sociais cujos direitos são mais freqüentemente jurídica é inefeliva. Os inquéritos, quando são abertos, cm geral
violados é o dos favelados, constantemente ameaçados de despejo de 11110 chegam a qualquer conclusão. As raras punições aplicadas não
suas precárias moradias. -Para defendê-los a Comissão de Direitos Hu- d1cgam a influir no sentido de mudar uma prática pela qual pes-
manos se uniu com a Associação dos Assistentes Sociãis (APASP). 1011s em geral de origem humilde - os ró_Qiios policiais - agem
1:orno_s_e__t9dos nestas condiç~es fossem delinqüentes cm potencial.

24. O São Paulo, 24 a 30/08/79.


25. O Seio Paulo, 21 a 27/10/78. n O São Paulo, 18 a 24/05/79 e 24 a 30/08/79.
26. O São Paulo, 1 a 7/06/79. JN, O São Paulo, 14 a 20/09/79.

102 103
A ação dos Centros de Defesa dos Direitos Humanos visa antes de ~áter de ex1gencia de direitos e não de dádivas a serem obtidas
mais nada a suscitar a mobilização e a união da própria população mediante barganha com os representantes do Estado.

--
para sua autodefesa. Segundo Dom Angélico Sândalo Bernardino,
-
a finalidade do Centro de Defe.sa é multiplicar__as _pequenas ações
que vão treinando a luta do povo. De uma forma geral os direitos
Há forte tendência no sentido de pre(eri, a auto-ajuda sempre
4!:le possível, só se apelando à intervenção do Poder Público quando
t> roblema ultrapassa aspossibilidades de solução pelos próprios
humanos são pisaâos "e assistimos também a quase que uma inca- moradores. Muitos destes casos ocorrem quando a comunidade é
pacidade geral de reação. Por isso pretendemos ajudar o povo a rea- agredida, seja por ordens de despejo, seja pela proximidade de
gir na defesa de seus direitos porque o Çe_{ltr~e Defesa dos Direitos lixões ou de córregos que, na época das chuvas, transbordam cau-
Humanou em a convicção de que-um povo organizado, lutando por sando prejuízos aos moradores. Em Andradina, numa reunião pre-
objetivos claros e possíveis, consegue aquilo que a lei lhe assegura, paratória para o Ili Encontro Nacional das CEBs, foi discutida a
ê muítomais".29 questão: deve a CEB realizar tarefas substitutivas, que na verdade
Como nas demais atividades suscitadas pelo ·novo movimento caberiam ao Estado? O relator contou U!!!!__e~12eriência de sua Co-
de bairro em São Paulo, os Centros de Defesa do~s Direitos Humanos munidade de São Mateus (Zona Leste): resolveu-se construir uma
procuram fugir ao máximo da_ rática do assistencialismo. Não se c r ~ em_~utirão: sendo que o cuidado das crianças ficariã ã cargo
trata de ajudar individualmente as vítimas - embora isso nem d~ árias. Enquanto se fazia a construção, as voluntárias se
sempre possa ser recusado - mas de fazer com que a reação coleti- reuniam para discutir o tipo de educação que seria dada. "Quando,
va impeça a continuação das arbitrariedades e violências. e preciso afinal, os muros da creche já se completavam, as mulheres chegaram
assinalar que a instalação dos Centros é ainda recente, não havendo s§inhas_à conclusão: não ergueriam um trab'ilho cuja responsabi-
experiência acumulada que permita delinear um programa de ação lidade não cabia a elas mas à sociedade . . . Elas não estavam dispos-
de maior alcance. Não obstante, a sua importância para o futuro ta~ 11erder_ o _pouco tempo que lhes restava após o trabalho
é difícil de exagerar. Trata-se de uma tentativa de superar a depen- na fábri a, mas preferiam utilizar o tempo que lhes restava para
d~ncia dos pobres da boa vontade de pessoas em posiç9es de mando estudar e conhecer os seus direitos, para que pudessem reivindicá-los
o.u influência para garantir sua segurança pessoal. Esta superação coletivamente". 30
só pode se dar no plano coletivo e político e sua realização tenderá A controvérsia a respeito da~ tarefas substitutivas revela bem o
a modificar, de modo cabal, as relações (hoje ainda muito paterna- espírito que anima o movimento de bairro suscitado pelas CEBs.
ljstas) entre as classes sociais. e provável que a preferência ela auto-a·uda leve as comunidades a
fazer tarefas substitutivas, mesmo orque elas tendem a i:eforçar
a sua autonomia frente ao Estado. No caso em apreço, as mulheres
Caracteristicas e perspectivas do novo
da CEB- d e ~ Mateu; criticaram a educação que elas mesmas
movimento de bairro
receberam, quando crianças, devido à falta de orientação sexual e
li submissão das mulheres à autoridade masculina da casa. " Elas
O que caracteriza o novo movimento de bairro, em São Paulo,
estavam decididas a não dar aos filhos ou às outras crianças a
em contraste com o antigo (das SABs), é que ele surge a partir de
educação que condenavam;'.31 Mas estãcíecisão dificilmente poderá
u~ p_topostª-..para dentro: criar uma nova consciência, uma menta-
lidade de união para a auto-ajuda na população. As principais
ser efetivadã se a creche for instalada e operada pela Prefeitura
atividades das CEBs - Clubes de Mães, grupos de reflexão, cursos. ou outro órg~ e~ l. De modo que a crítica às instituições - sejam
cl~ he, a escola, o centro de saúde ou a própria Igreja -

-
compras em comum - têm todas este objetivo. A ação µara fora
decorre desta atitude e as reivindicações levantadas assumemo
10. O São Paulo, 21 a 27/01/78, ·p . 5.
29. O São Paulo, 10 a 16/06/78, p. 1. li. O São Paulo, 21 a 27/01/78, p . 5.

104 105
Obviamente este tipo de "participação" ~ã? tem nada em
implica em que a própria comunidade tem que se propor a mudá-las, a participação que se t orna necessarta face à proble-
tornando parte cada vez mais ativa nelas. comum com d t ó l ao
mática enfrentada pela população trabalhadora a me r ~o.e, _
O mesmo raciocínio se aplica às emanações mais amplas do edor da qual se formaram os movimentos de bairro: A ~ rttc1paçao
novo movimento de bairro. A luta contra os loteamentos clandesti- ~ue se faz necessária é a que objetiva o controle dr~eto pela_pop~-
nos, contra o aumento do custo de vida ou contra a má qualidade lação da destinação dos recursos públi~os_ t~ndo em vista a satisfaça~
do transporte coletivo - nos termos em que é atualmente colocada de- suas necessidades coletivas. Isto s1gmftca, por exemplo, .ª c~ns
- só pode alcançar seus objetivos maiores se levar a uma participa- f
tituição de juntas ou conselhos locais que teriam por lar:!ª t~cal1zar
ção popular nas instituições que controlam c~tes aspectos da vida ô abastecimento alimentar, o desempenho dos c~n~~ss1onanos d~s
urbana. A proposta de congelamento de preços de primeira necessi- serviços de transporte, a atuação dos órgãos poltc1ais etc. e_ gerir
dade só tem alguma viabilidade se houver fiscalização dos preços escolas centros de saúde, creches e outros equipamentos_ desh~a~os
por parte dos próprios consumidores, o que significa, em última aná- a atender a população. A participação nestes ter~os sena autent1c_a
lise, formas de cont role popular do abastecimento alimentar. O mes- a mcdiâa em que tais órgãos tivessem real autoridade para cumprir
mo vale para a especulação imobiliária e para a operação do trans- :uas funções e estivessem de f~to subm~tidos ao controle dos repre-
porte coleti vo. Se o propósito das CEBs é criar formas de vida sentados, ou seja, da populaçao do bairro.
social cm que a população possa, o mais possível, decidir autonoma-
mente suas condições de existência, em seu nível de bairro, no plano
metropolitano isto só pode significar a participação do conjunto da
população nas instituições que decidem da vida em toda a metró-
pole.
E preciso, no entanto, não confundir a participação da popula-
ção nas instituições governamentais com formas de cooptação, que
tendem a integrar formalmente representantes de movimentos- de
bairro em órgãos cujo poder de decisão depende, em última análise,
do arbítrio dos que realmente têm as rédeas do Estado nas mãos.
/ á vimos que, desde a década dos 50, tentativas neste sentido foram
ensaiadas. Em 1979 a velha idéia dos Conselhos Distritais do pre-
feit0 Pizza foi ressuscitada pelo prefeito Reynaldo Barros, sob o
nome de Conselhos Comunitários. Estes conselhos seriam compostos
por representantes das "forças comunitárias" de cada · Região Ad-
ministrativa - associações de classe, entidades sociais, movimentos
sociais religiosos, SABs - e teriam como objetivos participar da
discussão do orçamento programa, discutir, em audiências públicas,
reivindicações relativas a problemas concretos de alçada da prefei-
tura etc.32 Fica claro que os Conselhos Comunitários não teriam
qualquer poder de decisão, não passando de canais de reivindicação,
função na qual cls:veriam substituir as entidades que a população
constituiu por sua própria iniciativa-.-

l2. Decreto n.• 16.100 de 12/9/1979 que dispõe sobre a crinção de Conse•
lhos Comunitários.
107
106
r

1
f O feminino e o feminismo
f
Paul Sioger

Nos movimentos que se têm verificado em São Paulo, nos


últimos a nos, a partir da atuação das Comunidades de Base, a parti•
cipação das mulhe res tem sido das mais destacadas. Nas reivindi-
cações locais por creches, posto!. de saúde, água ou melhoria no
serviço de ônibus, é freqüente que a liderança seja exercida por
mulheres. O mesmo se verifica também em movimentos mais gerais,
como o do Custo de Vida, que surgiu por iniciativa de donas-de-
casa da periferia sul . da cidade.
Esta participação de mulheres da classe trabalhadora em mo-
vimentos sociais e organizações voluntárias, em São Paulo, é no
mínimo pouco usual. Em geral, no passado, a mobilização feminina
t se restringia às donas-de-casa da classe média e ·alta, que tendiam
1) a se organizar em entidades como a Liga das· Senhoras Católicas,
(
União Cívica Feminina ou o Movimento de Arregimentação Femi-
f nina, para a prática assistencial, mobilizando-se ocasionalmente para
.t manifestações públicas em defesa da ordem vigente e da moral
tradicional. No que se refere à mulher da periferia, pode-se dizer
que seu comporta mento face à realidade política t: social " externa"
ao seu la r se caracterizava sobretudo por apatia e alienação. Pa ro

109
cio, a formação das Comunidades de Bâse representou uma oportu- Brasil, no fim do século passado e no começo deste, sob o impulso
nidade única de participação social. Enquanto os outros membros de tl'Onsformoções sociais que abriram possibilidades às mulheres
<la Comunidade, tanto homens como mulheres, que trabalham, estão de clt1sso m6dia trabalhar fora de casa. As mulheres pobres sempre
necessariamente ocupados o dia inteiro, voltando para a casa tarde, partlolpornm da produção de mercadorias, no Brasil, seja como
devido ao trabalho em horas extras e as deficiências do transporte camJJOncsos, operárias ou artesãs. Mas, na classe média e alta, a
cole tivo em São Paulo, os afazeres domésticos deixam, em geral, grande muiorio das mulheres e5tava restrita ao desempenho das
algum tempo livre à dona-de-casa durante o dia. Esta disponibilida- funçõc11 essencialmente femininas de esposa e mãe. Mas isso come-
de tende a ser aproveitada pela CES para reunir as mulheres que çou u mudur na virada do século, em conseqüência da expansão
não trabalham fora de casa nos chamados Clubes de Mães, 1 nos de otlvldudcs terciárias - serviços - que ofereciam numerosas
quais se realizam variadas atividades, como trabalhos de corte e oportunldodcs de emprego a pessoas de bom nível de instrução,
costura, cursos e discussões. Uma grande parte das iniciativas que inclusive II mulheres. Em 1907, por exemplo, mocinhas de "boa
se originam das CEBs da periferia surgem precisamente dos Clubes condlç o soclnl" foram admitidas como telefonistas, no Rio de Ja-
de Mães. ' neiro. Nos nnos seguintes, cresceu o número de mulheres que traba-
Esta mobilização que, a té o momento, é apenas casualmente lhavmn 110 comércio e em escritórios. Em 1917, e ntrou no serviço
feminina, começa agora a se encontrar com o movimento feminista, público n primeira mulher. Por esta época, abriram-se à mulher as
cuja origem e evolução passada é totalmente diferente. Trata-se essen- carrolros unive rsitárias, o trabalho na imprensa e a participação em
cialmente de um movimento de mulheres de classe média, em geral ativid11dcs ort ísticas e esportivas.
profissionalizadas e de nível universitário, que reviveu no Brasil, (l íomlnlsmo como movimento de reivindicação especificamente
assim como na maioria dos outros países capitalistas, na década volt o(lo poro os direitos e as necessidades da mulher surge, no
dos sessenta, face a uma série de eventos que serão resumidamente Bras il. por Iniciativa de mulheres '"emancipadas" de classe média.
mencionados a seguir. Este capítulo trata, portanto, deste encontro As 111ulhurcs da classe ope rária participam desde cedo de vários
entre o movimento de libertação feminina e as mulheres que parti- tipos do movimentos, mas sem levanta r outras reivindicações que
cipam dos Clubes de Mães e outros grupos organizados na periferia não uN l(l.l1'11ls. Assim, "por volta de 1907 as mulheres costureiras
de São Paulo, tendo em vista analisar sua dinâmica e suas perspec- de S iu l)11ulo chamavam suas companheiras a participarem dos pro-
tivas. blen'\UN e nfre ntados pelos trabalhadores em geral. Em 191 O, Ernes-
tin11 l.é11lnn publicava, também em São Paulo, o jornal "Anima Vita"
que, cll1 l1-1l11do-se às mulheres, conclamava-as a participarem na defe-
3
O feminismo no Brasil sa duN tr11bolhndores e pela regulamentação do trabalho feminino".
t) lllOVlmcnto feminista brasileiro recebe grande impulso a partir
As primeiras manifestações de feminismo, registradas no Brasil, de 11172, q uundo é fundada a Federação Brasileira pelo Progresso
parecem te r ocorrido em conexão com a campanha abolicionista, nos Pen 1111l110 (PIIPF) sob a liderança da biológa Berta Lutz. A FBPF se
a nos oitenta do século passado. Nesta época, um pequeno grupo pro pfü• 11 111101· pelos direitos políticos da mulher, sobretudo o direito
de feministas atuava em São Paulo, sob a liderança de Josefina do v, 1111, pulo educação feminina e por legislação de amparo à
Álvares de Azevedo.2 O movimento progrediu vagarosamente no muthl'I qt11.1 1robalha. Como acontece, neste período, em todo o

1, Conv;;m notar, no entanto, que os Clubes de Mães são .anteriores e inde- no, 1111i,v1111I H11fflo1i, A Mulher na Sociedade de Classes: Mito e Realidade,
punduntcs das CEBs. IIJJt •~• 111111 h1 1•111 1967 à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Arnru•
2. l!stos dodos e os que são expostos a seguir, sobre o histórico do femi- 11011 111. • 1111 111111l0 (3 volumes). Reeditado como livro pela Editora Vozes.
11111110 no Ornsil, foram colhidos em Rachum, 1., Feminism, Woman Su/frage I, ''I hu 1111111111,110 de Nossa História", Nós Mulheres, n.0 3, São Pnu lo, 110•
11111/ Nflt/0110/ Politics in Brazi/ 1922-1937 (inédito) e na tese de Heleieth Iara vnm 111,1 ,h 1111nh111 de 1976.

110 111
mundo, o movimento feminista também no Brasil acaba se concen- profissionais por parte da mulher. O feminismo atual questiona
trando na luta pelo sufrágio feminino, encarado como o grande prec~same1:_te a forma tradicional de desempenho do papel de esposa
meio pelo qual será possível conquistar os demais o~jetivos .. A. FBPF e mae. Nao se trata mais de conquistar direitos formais mas de
ingressa ativamente na política em 1926 e conquista o d1re1to de mudar a forma de relacionamento entre homens e mulheres em
voto para as mulheres no Rio Grande do Norte em 1927. No ytano prin:ie!ro lugar na família, mas também no trabalho e na polític;. As
federal, esta conquista é grandemente facilitada pela R~vo~uçao de ferrumstas, de um modo geral, não aceitam a divisão tradicional de
1930. Em 1932, Berta Lutz passou a fazer parte da ·com1ssao encar- trabalho entre sexos, pela qual cabem à mulher todas as tarefas
regada de redigir o anteprojeto da nova constituição na qual se .. domésticas, deixando ao homem o relacionamento com o mundo
externo ao lar. 4 O fato da mulher ser mãe não justifica que ela
consagrou o direito de voto para as mulheres. ,.
É interessante observar o caráter eminentemente pohhco do ª:su~a todos os encargos da procriação, o que acarreta sua depen-
feminismo brasileiro neste período. Para disputar as eleições de de nc1a do homem, que passa a ser o único a " trazer dinheiro para
1934 a FBPF reuniu-se em convenção em Salvador, na qual foi casa". É esta dependência que forma a base da subordinação da
apro~ada uma plataforma em que se destacava a ~uta po~ _direitos mulher , no plano econômico em primeiro lugar e nos demais planos
civis da mulher e da esposa, pela expansão dos serviços sociais e po r em conseqüê ncia.
pagame nto igual para as trabalhadoras que prestassem o mesmo ser- Quando a mulher também realiza trabalho remunerado, isso,
viço que os homens. Berta Lutz foi eleita deputada e apr_esentou em geral, não constitui motivo pa ra que ela deixe de desempenhar
um proje to de le i denominado " Estatuto da Mulher". que ~1spunha suas funções domésticas, acarretando-lhe o "duplo encargo" de cuidar
de diversas rriedidas de proteção à mulher e sobretudo à mae traba- da produção de mercadorias (na empresa) e da reprodução da força
lhadora, mais tarde incluídas na legislação do trabalho. Uma propos- ~e trab~lho (no domicílio). Da í a assalariada com encargos de famí-
ta original deste projeto é assegurar à mulher casada sem renda lia sentir-se duplamente explorada: pelo patrão e pelo marido. A
própria "10% da renda do casal para suas próprias despesas em discriminação salarial contra a mulher tem a mesma base: sendo
atenção aos serviços por ela prestados ao lar". conside rada uma trabalhadora "complementar" (ao seu pai ou
Na maior parte dos países, o feminismo começou a ~e~air ap~s marido), ela é socialmente coagida a aceitar pagamento inferior
a conquista do sufrágio. O Brasil não foi exceção. O femin ismo nao por um trabalho que, por isso mesmo, é rapidamente abandonado
logrou organizar o voto feminino em escala suficiente para s: tornar pelos homens, que almejam (e geralmente obtêm) ganhos mais altos.
um fator significativo no panorama político. É possível tambem que, Embora se proponha objetivos concre tos, o feminismo a tual
para tanto, a massa crítica de mulheres profissionaliz~das t:ria que . aprese~!~ menos um programa definido de reivindicações d o que
ser bem maior, o que parece ter se logrado uma geraçao mais tarde. uma v1sao renovada do que poderia e talvez deveria ser uma socie-
Seja como for, o feminismo só volta a tornar-se um mo~imento de dade na qual indivíduos de ambos os sexos pudessem conviver em
envergadura nos anos sessenta, primeiro nos Estados Unidos ~o~~e condições de igualdade. Assim, Betty Mindlin Lafer se pergunta: ''o
a denúncia de Betty Friedan da " mística feminina" marcou o 1mc10 que aconteceria se homens e mulheres dividissem igualmente todas
de sua ressurreição) e depois em outros países, inclusive o Brasil. as tarefas, ambos dedicando a inetade do dia a filhos e casa e a
O feminismo atual se distingue do do período de entreguerras, outra metade ao trabalho? É claro que toda a sociedade teria que se
particularmente no Brasil, em termos de objetivos prioritá rios e ~:
ênfases. Afinal, a igualdade política (ao menos no plano formal) lª
4. A posição feminista tradicional, hoje não aceita, é bem expressa por Berca
foi alcançada e, mesmo no que se refere à igualdade jurídica'. ~ouve
l.ut~, em parecer dado na Câmara, em 1937: "N ão encaramos a função fe-
certo progresso com as reformas introduzidas no C~digo Civil_ :m
mimna maternal apenas como fenômeno físico e clínico, mas na sua subli-
1962. Onde a diferença pode ser melhor notada e i:ias pos1çoes 1111,çiio social e espiritual . . . Enquanto ao homem interessam primordialmen-
adotadas face ao papel da mulher na sociedade. O feminismo dos lc ns ~uestões partidárias e os problemas técnicos e ec-0nômicos, as mulheres
anos vinte e trinta enfatiza a compatibilidade entre o desempenho ~r dedicam, de preferência. à harmonização das relações e ao bem-es1ar dos
das funções de mãe e esposa e o exercício de atividades políticas e •0res humanos". (Citado por Saffioti, H . 1. B., op. cit., Vol. II, p. 344).

112 113
r
reorganizar para que isso fosse possível; hoje, em muito poucos z_a anula toda e Aq~alquer reivindicação de liberdade; para que o
empregos as pessoas podem limitar o número de ho ras trabalhadas. liberdade, se voce_ nao tem o q~e comer? O a limento passa a encher
E para que os homens pudessem encurtar . o dia d.e ~rabalho fora t~talmente o ho rizonte da criatura, ela não pensa noutra coisa,
de casa, seria preciso que as mulheres estivessem mats pre~~radas nao se coloca o problema da libertação" .6
para os mesmos empregos, recebessem mais instruções e facthdades , A. exper iênc ia conc reta do que vem acontecendo cm São Paulo
para se cultivar. Então homem e mulher . t~riam a vaAnt~gem de ter nos ul~1mos anos tende a desmentir tal ceticismo. A mulher da classe
a visão do outro, de repartir a responsabilidade econom1ca e o ser- º ~:rá na s~ mostra sensível a uma mensagem que lhe reve la uma
viço doméstico, tendo os dois o prazer de estar com as cri~nças . .. v1sao de st mesma como ser humano completo e não meramente de
O que aconteceria se houvesse alternativas à vida em !amíha, e ~ue '.'mulh~r '_'· Da í a passagem da organização m e ramente ••feminina",
outras formas de viver se poderiam imaginar: comunidades, cuida- Já trad1c1onal em nosso meio operário, para unia movimentação cada
do coletivo de crianças, mais escolas ou creches, cooperativa~ para vez mais " feminista", como será visto a seguir.
0 trabalho doméstico .. . ? Qual a educação ideal para meninos e
meninas, já q ue a mulher é, de certa forma, quem transmite os
conceitos de masculino e feminino e sem querer pode perpetuar Do feminino ao feminismo
5
justamente o que deseja evitar?"
Estas indagações revelam uma faceta do feminismo atual, que . O feminismo não é, na verdade, a única alternativa de mobi-
ele compartilha com outros movimentos de libertação, como os de lizar mulheres. Tanto pa rtidos políticos, sobretudo os de esquerda,
negros e homossexuais. Trata-se. antes mesmo de t~ntar . mudar as qua?t~ a própria Igreja desde há muito organizam pessoas do sexo
relações sociais objetivas, de encontrar uma nova 1de11t1dade para fei_nmmo ten~o cm vista contribuir para determinados objetivos ge-
a mulher. Para que a mulher possa se libertar d a sujeição que. o rais: aos qua1~ se subo rdinam algumas reivindicações específicas. É
comportamento dos outros - os homens - l_he impõe, é pre~1so sa~t_do que leigas ~êm tido pa rticipação particularmente intensa nas
que ela mesma se liberte antes dos valores, at1tud~s e precom~e~tos a~IVldades da lgreJa, desenvolvendo atividades assistenciais e litúr-
que desde criança lhe foram introjetados. O movimento feminista gicas. Na Europa, surgiu também um movimento feminis ta católico
começa, portanto, sua ação junto às próprias mulheres,. propondo• q ue,ª? I_ado das demais organizações feministas, se engajou na luta
lhes uma outra visão de si mesmas, que supere os sentimentos de pel~ .d1re1to ? e voto, nas primeiras décadas do século x"X. Não há
autodepreciação, que uma eventual recusa aos papéis " femininos" md1c1os, porem, que este movimento tenha sido organizado também
não deixa de acarretar. no Brasil. A Igreja tem enfatizado fortemen te a necessidade de "dc-
Este aspecto de movimento de reeducação dá ao feminismo f~nd:r" a família como instituição, atribuindo à mulher papel essen-
atual uma certa potencialidade para romper suas limitações .de cl~sse, cial a sua manutenção. A mobilização feminina no âmbito da Igreja
que até há pouco o confinavam ao universo das ,n:1ulheres mstru1~as se deu, conseqüentemente até há alguns anos, tendo em vista pre-
e profissionalizadas. Aparentemente, a problemattc~ q ue o mot_1v_a para~ e a poiar a mulher no desempenho de suas funções de esposa
só pode emergir na consciência quando as necesstdad~s mater~a1~ ~ ~ae. t no quadro das mudanças que a Igreja tem operado, na
básicas estão razoavelmente satisfeitas. ~ o que leva Hele1eth Safftotl ~lt1ma década, que se abriu espaço para uma transformação de sen•
a afirmar: " A impressão que tenho é que o Movimen~o Feminist~ tido,. que começa a se esboçar em partes, do movimento feminino
é também uma importação, porque, se fosse alguma coisa que_ esll• ca tólico no Brasil e mais particularmente em São Paulo .
vesse brotando a partir das condições brasileiras mesmo, haveria na Quanto aos partidos_ ·de esquerda, a sua ideologia n o que se
mulher modesta um outro tipo de reação. Elas não reagem, a pobre· refere à mulher tem muitos pontos em comurn com O f eminismo.

5. " Em busca do feminino", Cadernos de Opinião, n.• 1, Rio de Janeiro, 6. " A O~estão Feminina em Deba te" (ent revista), Cadernos de> cEAS, 11.• 42,
1975, p. 59. mnrço-abral de 1976, Salvador, p. 48.

114 115
l•rlcdrich Engels e sobretudo August Bebei em seu famoso livro col?cam em. questão ~ mod~ como a mulher é inscridn no contexto
A Mulher e o Socialismo tomaram posição decidida a favor da eman- soc1_al.. Considerando 1mposs1vel mudar esta inserção nos marcos du
cipação da mulher, condenando sua subordinação e opressão e cap1tah~m~, .estes movimentos, por mais que alimentassem intcnçõc1i
apoiando explicitamente os movimentos em prol de sua libertação. re~oluc1onarias, acabavam por coonestá-la. No fundo, cabe 8 sus•
Mos, na prática política destes partidos, faz-se sentir quase sempre pe~ta d_e que sendo os partidos de esquerda dirigidos por homens
a tendência de mobilizar a mulher para a luta por objetivos gerais, CUJa at~tud_e. perante a situação da mulher é, em geral, muito pouco
identificando sua libertação com a conquista do socialismo. A aná- revolucionaria, eles tendem a imprimir aos movimentos femininos
lise mais corrente da pro blemática feminina atribui ao capitalismo ~ue. susc'.~am uma orientação que visa acima de tudo preservar a
a respo nsabilidade pela opressão da mulher, concluindo que sua umdade entre homens e mulheres, o que implica, na prática man-
completa emancipação é impossível nos quadros deste modo de pro- ter -~ posição subordinada da mulhe r dentro do próprio mov/mento
dução. Desde que qualquer conquista, nos limites do capitalismo, poht1co.
teria que ser necessariame nte parcial, optou-se por o rganizar as mu- A ~uestão da legitimidade do feminismo como parte integrante
lheres em movimentos " femininos" que funcionem como tropas au- do mov11?ento de transformação social é a mesma que afeta os ou-
xiliares do proletariado na luta de classes. tros mov11?entos que lutam contra a discriminação e subordinação
No período democrático-constitucional (1945- 1964), registrou- de determmados grupos, como o dos negros (ou outras minorias
se no Brasil a organização de diversos movimentos femininos ele âm- raciais) ou dos homossexuais (ou outros desviantes da chamada '' nor-
bito nacional, como a Federação das Mulheres do Brasil ou o Comi- malidade"). De um ponto de vista tático, parece fazer sentido per-
tê das Mulheres pela Anistia que, depois da conquista de seu ob- guntar se estes movimentos " parciais" devem ter prioridade face à
jetivo, transformo u-se no Comitê das Mulheres pela Democracia. lut~ de todos contra a exploração e a opressão inerentes a qualquer
Este tipo de movimento parece le r sido particul armente ativo no sociedade ~e c lasses. Mas a experiênc ia histórica tem mostrado que
Rio, onde atuaram ainda a Associação Feminina do Distrito Federal, a e_x p!oraçao e a opressão que atingem, em última análise, a grande
a qual foi fechada pelo governo no início do mandato de Juscelino maioria da população, se fazem sentir de modos diversos conforme
Kubitschek, tendo sido sucedida pela Liga Feminina do Estado da o s_exo, a ra?ª· ª. religião, o lugar de moradia, etc. das pessoas. Abs-
Guanabara. Todas estas organizações femininas eram eminentemen- trair estas d1vcrs1dades para alcançar uma unidade formal no plano
te políticas, tendo se engajado cm lutas pela anistia, pela paz, pelo político só pode ter por resultado provocar a divisão das inevitá-
monopólio estalai do petróleo e sobretudo contra a carestia . No fim veis rebeld!as em movimentos separados que, em lugar de encontrar
deste período, a Liga Feminina do Estado de Guanabara, q ue che- se~ _denommado r _comum na identificação das estruturas sociais que
gou a mo bilizar morado ras dos morros cariocas, conseguiu organizar ongma~ a opressao e a exploração, tendem a se fechar e a competir
uma campanha nacional contra a alta do custo de vida, que culmi- entre s1.
nou com a entrega ao Presidente da República de um memorial Embora se possa demonstrar que a transformação das relações
com cem mil assinaturas.7 de produção é condição geral para a construção de uma sociedade
Convém notar que estes movimentos femininos tratavam de de fato livre e igualitária, o modo concreto como esta transformação
levantar reivindicações de evidente interesse para as mulheres, en- se deva dar só pode ser determinado pela experiência concreta das
quanto cidadãs e mais especificamente e nquanto donas-de-casa. As múltiplas lutas de libertação. Isto é pa rticularmente evidente no caso
lutas contra a carestia ou por escolas, creches etc. assim como por da problemática das mulheres, que decorre menos de relações sociais
medidas específicas de proteção à mulher que trabalha interessam abstratas e fetichizadas - como é o caso do ope rário, que se de-
de perto às mulheres e é possível mesmo considerá-las reivindica- fronta com as imposições do mercado - do que de relações pessoais
ções femininas. Mas elas não são f eministas na medida em que não e de forte conteúdo emocional que as inferiorizam. As demandas do
movimento fem inista não compe tem com os objetivos da luto gera l
pe!a transformação social mas constituem uma contribuição origina l
7. Saffio ti, H. 1. B., op. cit., vol. II , p . 354 a 358. e irrecusável para um programa que vise mais do que a alteroçiío

11 6 117
formal das estruturas. Cabe aos demais engajados na_ ~esma_ lu_ta liares tornarem a mulher pouco "confiável" para a empresa, ao
aceitar estas demandas, incorporando-as não só aos obJct1vos finais, me~mo tempo que os ressentimentos (reais ou presumidos) dos de-
mas às atitudes tanto pessoais como políticas aqui e agora. mais membros da família devidos à ausência da dona-de-casa nem
A passagem do " feminino" ao "feminismo" decorre, analoga- por isso tornam dispensáveis os seus ganhos para compor o orça-
mente a outras radicalizações, de conquistas anteriormente alcança- mento doméstico.
das. O fato concreto é que, cm São Paulo, como em outras partes O_ feminismo ~oderno encontra na situação da mulher que se
do país , sobre tudo nas mais urbanizadas, já é grand_c o n~mero de emancipou, graças as conquistas feministas de gerações anteriores,
mulheres que possui grau relativamente elevado de mstruça~ ~ q~e a su~ ~ot!vação original. É óbvio, no entanto, que esta situação ainda
par ticipa da força de trabalho cm ocupações socialme~t: pnv1le~ia- é pnv1legiada em comparação com as das mulheres das classes tra-
das.s Estas mulheres . ao ocuparem novos espaços soc1a1s, anterior- balhadoras: a operária, sobretudo a casada e com filhos. a empre-
mente reservados a penas a homens, se de frontam com novas formas gada doméstica, a dona-de-casa pobre, sem fal ar das mulheres aban-
de discriminação sexual, no trabalho e na família. Eva Alterman donadas pelo marido, das viúvas, das prostitutas etc. O femin ismo
Blay, po r exemplo, ao investigar uma amostra de trab~lhado~as q~~- que se pretende crítico das estruturas opressoras que a tingem as
lificadas da indústria paulista. verificou que as de mvel umverstta- outras mulheres (assim como o conjunto dos trabalhadores) tem
rio se sentem muito mais discriminadas no trabalho do que as qu~ co_mo tarefa traduzir sua motivação original cm proposições que
são secretárias ou desempenham outros cargos. "Sugere-se, como hi- se1am re levantes para a grande massa de mulheres desprivilcgiadas ,
pótese explicativa, que o tipo de tarefa que . cad~ u_m~ destas cate- de modo a mo bilizá-las para uma mesma luta contra a opressão de
gorias profissionais desempenha é tanto mais d1scnmmada qu~nto sexo e de classe.
maior a proporção de trabalhadores masculinos na mesma area.
Assim sendo. as diferenças na discriminação decorrem do f~t~ de
haver raros ho mens com funções semelhantes às de secretan~ e O feminismo em São Paulo
possivelmente o mesmo se passe entre ~ut:os carg?s. Mas n~ 9 mvel
dos cargos das universitárias a concorrenc1a é multo grande , Em São Paulo, o movimento feminista atual data pra ticamente
Ao lado das dificuldades no trabalho, a trabalhadora de nível de 1975, proclamado "Ano Internacio nal da Mulher" pela ONU. Em
superio r também enfre nta contrad ições no domic ílio, na medida em março daquele ano as Sociedades Amigos de Bairros (SABs) reali-
que todos (inclusive e la mesma) alime nta m expectativas de_que qual- zaram o " l .º Encontro da Comunidade para Debater Problemas do
quer mulher que tenha marido e filho~ de_sempe nhc . f_unçoes de e~- P_ovo de São Paulo". Entre os problemas d iscutidos, muitos se rela-
poso e mãe, que freqüenteme nte siío d1fíce1s de conc1har comAa a ti- c ionavam à assistência materno-infantil. Aprovou-se então uma
vidade profissional. Mesmo dispondo de e mpregada, ela se v~ ator- ~~ção no sentido de se constituir uma comissão para' estuda; espe-
mentada pe ln so breenrgn ele atenções solicitadas e pcl? sentimento c1f1camcnte a problemática que afeta a mulhe r. Esta comissão co-
de culpa por não poder otc ndê-las satisfatoriamente. Dtlacerad~ por meçou a trabalhar, com a participação de 30 a 40 mulheres, reali-
demandas contraditó rias decorrentes de seu duplo papel soctal, a zando visitas aos bairros e participando de plenários por zona da
trabalhadora se vê envolvida num processo cumula tivo, em que ~ c idade, o rganizados pe las SABs. O grupo se compunha principa l-
discriminação no trabalho se justifica pelo fato dos encargos famt- mente d: ?rofiss(onais universitárias, tais como médicas , sociólogas
etc. Dcc1d1u-se fina lmente elaborar um roteiro para um encontro
sobre os problemas da mulher. Os temas escolhidos foram: saúcle
8. Entre 1970 e 1976, o número de mulheres cm ocupações técnicas, cien!i• educação e direitos da mulher (como os da mãe solteira po;
ficas, artísticas e afins passou de 179.919 para 310.363 no Estado de Suo exemplo).
Paulo. (Dados do Censo Demográfico de 1970 e da PNAD de 1976). O "Encontro para o Diagnóstico da Mulhe r Paulista" realizo u-
9. Eva Altcrman Blay, Trabalho Domesticado: A Mulher na Indústria Pau- se em o utubro de 1975. na Câmara Municipal, sob o patrocínio do
lista, Editora Atica, Siio Paulo, 1978, p. 256. Centro de Informações da ONU e da Cúria Metropolitana. com por-

11 8 1 19
1ldpm;no de representantes de en~ida_des sin?i~ais, dos dois parti- criação do Centro, elas encaravam os problemas da mulher como
ilo:1 políticos, da Igreja, de assoc1açoes femmmas etc. Aprovou-se idênticos aos da comunidade. Havia então considerável resistência
cntlio uma "Carta-Proposta da Mulher Paulista", subscrita por 38 ao feminismo, tanto entre as mulheres intelectualizadas como entre
cniidudes, e uma moção de que "é necessário criar entidade, . que a liderança estudantil. Como era e é ainda habitual, encarava-se a
reúno todos os interessados em melhor conhecer, debater e divul- luta em separado pela emancipação feminina como um fator de divi-
gar a situação da mulher brasile!ra, em especial a de São '.aulo ... " são das forças que se empenham a favor dos interesses gerais das
Esta entidade acabou sendo o Centro de Desenvolvimento da camadas oprimidas e exploradas. Posteriormente, a resistência a
Mulher Brasileira (CDMB), fundado em novembro de 1975 e que assumir o rótulo de "feministas" por parte de mulheres cuja ação
desde então vem desenvolvendo uma série de atividades. Destas, sem dúvida é feminista diminuiu, o que provavelmente se deve ao
provavelmente a mais importante é a realização de pesquisas so_bre debate mais amplo do tema, sobretudo nas páginas de duas publi-
a situação da mulher. Para a preparação do "En~ontro para Diag- ? cações surgidas mais ou menos na mesma época que o Centro: Nós
nóstico da Mulher Paulista" foi feita uma pesquisa sobre saude ma- Mulheres e Brasil Mulher.
terna em 49 maternidades da capital, com a participação de 400 es- Em 1976, o Centro de Desenvolvimento da Mulher Brasileira
tuda~tes de medicina, enfermagem e fisioterapia e de 10 ~édicos. organizou vários encontros n-> Sindicato dos Jornalistas, com a par-
Os resultados foram apresentados no "Encontro" e posteriormen- ticipação de membros dos Clubes de Mães da Zona Sul. Discutiu-se.
te em numerosas outras ocasiões. Destes resultados, pode-se desta- então, entre outros temas, a discriminação salarial de que são víti-
car a generalizada deficiência do serviço pré-natal: cerca _de_ u~ mas as trabalhadoras e a exploração ainda maior que atinge as nu-
quarto das parturientes não tinham acesso a qualquer ass1stenc1a merosas mulheres que trabalham no próprio domicílio para empre-
médica. sas. Formou-se nestas discussões um grupo de cerca de 40 mulheres
Outras pesquisas sobre saúde materna foram realizadas pelo interessadas em criar um periódico feminista, independente do Cen-
Centro em 1977 e em 1978. Também foram investigados temas como tro (possivelmente porque este não assumira o feminismo). Decidi-
educação (particularmente a carência de creches), tr~balho_ fem~ni- ram então publicar Nós Mulheres, cujo número 1 surge em junho
no e "Participação Política da Mulher". Estas pesqmsas sao feitas de 1976, com um editorial programático que sintetiza as reivindica-
muitas vezes nos bairros, com participação de numerosas estudan- ções do grupo nestes termos: "Achamos que Nós Mulheres devemos
tes estabelecendo uma ligação muito viva entre as mulheres profis- lutar para que possamos nos preparar, tanto quanto os homens, para
sio~alizadas em nível superior e as que vivem na periferia operária enfrentar a vida. Para que tenhamos o direito à realização. Para
da cidade. Os seus resultados são discutidos em Sociedades Amigos que ganhemos salários iguais quando fazemos trabalhoi; iguais. Para
de Bairros e Clubes de Mães, em reuniões que propiciam o alarga- que a sociedade como um todo reconheça que nossos filhos são a
mento da base social do Centro, mediante a mobilização de mulhe- geração de amanhã e que o cuidado deles é um dever de todos e
res ativas nestas entidades dos bairros populares. não só das mulheres ( ... ) Queremos portanto boas creches e esco-
Entre as finalidades estatutárias do Centro consta "contribuir... las para nossos filhos, lavanderias coletivas e restaurantes a preços
para q~e a mulher de São Paulo _se_ conscientiz_e do~ ~eus direitos, populares, para que possamos junto com os homens assumir as res-
ao lado das demais mulheres bras1le1ras, com vistas a igualdade de ponsabilidades da sociedade. Queremos também que nossos compa•
condições sócio-econômicas e jurídicas entre home~s. e mulheres''.· nheiros reconheçam que a casa cm que moramos e os filhos que
Esta formulação está a meio caminho entre o íemmmo e o femi- temos são deles e que eles devem assumir conosco as responsabili-
nismo: ela reconhece a necessidade de lutar pela igualdade en~re dades caseiras e nossa luta por torná-las sociais. Mas não é só. Nós
homens e mulhe res, mas a restringe aos níveis sócio-econõmico e JU· Mulheres queremos, junto com os homens, lutar por uma sociedade
rídico, sem questionar o relacionamento de mulheres e homens no mais justa onde todos possam comer, estudar, trabalhar em traba-
seio da família . lhos dignos, se divertir, te r onde morar, ter o que vestir e o que
As mulheres que formaram o Centro e nele atuam não se calçar. E por isto não separamos a luta da mulher da luta de todos
t inhom colocado a questão se eram· feminist as ou não. Quando da homens e mulheres, pela sua emancipação." '

120 121
l
)! de se notar que o jornal apresenta as reivindicações feminis- balhadoras, que retratavam as muitas formas de opressão que a
tas como parte integrante de um programa mais abrangente de mulher pobre sofre, além de matérias didáticas sobre direitos da
transformação social. Apela-se aos homens para que assumam a mulher ou tópicos políticos. Tornava-se evidente que o jornal e ra
plataforma feminista e se engajem na luta pela sua ·realização da fe ito para servir de instrumento para trabalho de base que, a julgar
mesma forma que as feministas se dispõem a participar da luta con- pelo próprio materia l divulgado, acabou frutificando.
tra as demais formas de opressão que vitimam homens e mulheres. Em 1978, o grupo dividiu-se. De um lado ficou a Associação
Não há aqui qualquer traço de "sexismo", de acordo com o qual a de Mulheres, do outro o Grupo Nós Mulheres. A Associação con-
luta femin ista seria contra a dominação masculina, da qual o "ho- centra suas atividades na edição de "cadernos", que visam o debate
mem" genericamente é considerado instrumento e beneficiário. teórico do feminismo, e de "boletins", ende reçados principalmente
A reivindicação central é a emancipação da mulher do traba- às mulheres trabalhadoras e no engajamento em lutas que "visam
lho doméstico. A sua divisão eq üitativa entre homens e mulheres é, criar as condições materiais para a emancipação da mulher",11 das
na verdade, apenas um primeiro passo. A solução definitiva só po~e quais as mais prementes seriam no momento a igualdade de salá-
ser sua transformação em atividades especializadas da divisão social rios entre mulhe res e homens, a criação de creches e a prática se-
do trabalho, o que lhe tiraria o seu caráter rotineiro e embrutec~- gura e livre da contracepção. No curso destas lutas, a Associação
dor. Como diz Olga, ex-tecelã e hoje dona-de-casa: "O trabalho mais tem estreitado seus contatos com lideranças comuni tárias femininas
desgraçado que existe. . . é ser dona-de-casa. É o pior serviço que e trabalhadoras sindicalizadas. Outra atividade que a Associação
tem. Você trabalha na enxada, você vai carpir um pedaço de terra; considera fundamental "é o trabalho realizado internamente. Nós,
quando você chegou no fim, você carpiu. Aquela terra está carpida. enquanto grupo femin ista , temos que desenvolver a consc'iência da
Durante um mês você não tem que fazer mais nada. Se você tá tra- opressão que sofremos, buscando juntas o caminho da libertação
balhando nos teares, quando terminou sua hora você deixa para e para isso precisamos refletir sobre a especi ficidade de nossa con-
outra continuar o serviço e terminou. Agora, em casa você não ter- dição".12 Para tanto, a Associação resolveu formar grupos de estudos
mina nunca ( ... ) Você acabou de lavar uma xícara, daí a cinco de problemas como trabalho e sexualidade e de reflexão sobre o
minutos ela está suja no mesmo lugar onde você tinha tirado ela cotidiano das mulheres.
antes. Então você não ganha nada, trabalha o dia inteiro, e, outra O Grupo Nós Mulheres pretende dar continuidade à experiên-
coisa, se já não bastasse você não receber um tostão por esse ser- cia iniciada com o jornal, cuja publicação foi interrompida . Esta
viço, ninguém reconhece".'º Eis um depoimento que demonst_r~ q~e experiência se distingue pela organização do trabalho adotada, que
a visão crítica do trabalho doméstico de modo nenhum é pnv1lég10 tinha por princípio a " igualdade de direitos e deveres de cada uma
de mulheres emancipadas da classe média. de· suas participantes. A nossa preocupação era a tingir uma flexi-
Nós Mulheres saía irregularmente com tiragens que variavam bilidade dos papéis de responsabilidade que despertasse as potencia-
entre 2 e 10 mil exemplares. A irregularidade se devia a dificulda- lidades criativas de cada uma de nós. ( .. . ) O grupo, portanto, lutou
des econômicas. O grupo que fazia o jornal formou a Associaç~o persistentemente contra estratificações no seu interior, buscando
de Mulheres, com 20 a 30 sócias fixas, todas mulheres. A Associa- uma rotatividade de funções. ( ... ) Este tipo de organização
ção, além de publicar o jornal, desenvolvia. outras ~tividades: . or- c riou dificuldades, a produtividade era, em certo sentido, baixa . ..
ganizava grupos de discussão, dava assessona, mantmha um cme- Às vezes, existia acúmulo de trabalho, outras vezes, excesso de pes-
clube. Nós Mulheres era vendido através dos Clubes de Mães, sobre- soas para uma mesma tarefa. E finalmente resultava que algumas
tudo na Zona Sul, embora houvessem contatos também com Clubes de nós acabavam sobrecarregadas. A não-hierarquia trazia velhos
de Mães protestantes de Osasco. O seu conteúdo era predominan-
temente de entrevistas e depoimentos de mulheres das camadas tra-
11. O Movimento de Mulheres 110 Brasil, Cadernos da Associação das Mu-
lheres 3, agosto de 1979, p. 17.
12. Ibidem, p . 18 e 19.
10. Nós Mulheres, n.º 1, junho de 1976.

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vícios de comportamento - produto de nossa vtvencia em uma so-
ciedade organizada em moldes autoritários. ( ... ) Neste momento,
o desafio se mantém: como nos organizar, com uma divisão de tra-
balho justa e igualitária, sem uma prática impositiva e autoritária,
coerente com nossa concepção de feminismo". 13
O programa de atividades do Grupo Nós Mulheres nãb é muito
diferente do da Associação de Mulheres: formação de grupos de
estudo do feminismo e da condição da mulher, prestação de asses-
soria a grupos de mulheres em comunidades de bairro e em organi-
zações profissionais e sindicais e divulgação de textos teóricos e di-
dáticos, que sirvam de material às atividades de estudos e assessoria.
O outro órgão feminista Brasil Mulher s urgiu, em 1975, em
Londrina, como órgão do Movimento Feminino pela Anistia (MFA) .
Este movimento não é feminista pois visa um objetivo de interesse
geral, qual seja a anistia a presos, banidos e perseguidos políticos.
Seu caráter feminino se explica por ser composto principalmente
por esposas, mães e outras parentes de vítimas da repressão. A atua-
ção do MFA utiliza a imagem maternal da mulher como " pacifica-
dora" para legitimar o seu apelo em prol da anistia. O movimento
femfoista também está engajado na luta pela anistia, mas se recusa
a lançar mão da imagem tradicional da mulher, a qual combate
como símbolo da posição subalterna imposta às pessoas do sexo
feminino.
O jornal transfere sua sede, pouco depois, para São Paulo, se
desliga do MFA e no número 6 se define como feminista, embora
já em números anteriores matérias e editoriais tenham assumido po-
sição a favor da libertação da mulher. Assim o editorial do núme-
ro 3 diz: " Para muitas mulheres, o grande emprego é o casamento.
Ser dona-de-casa ainda representa "subir na vida", não ter proble-
mas econômicos, enfim não precisar trabalhar na luta pelo ganha-
pão, onde a concorrência com o homem é bem grande. Esta atitu-
de se reflete em sua conduta no trabalho: a mulher não briga por
salários melhores, posições melhores, não reivind ica, não briga pelos
seus direitos. Mas, a partir do momento em que esta situação está
se aclarando para um número crescente de mulheres em todo o
mundo, elas estüo se reunindo para, em grupos, analisar sua situa-
çiio no sociedade ele classes e tomarem medidas que provoquem sua
partieipoçiio criativa".

ll. Ibidem, p. 70 e 71.

124
Mostra-se assim como a dependência da mulher em relação ao mulheres da classe trabalhadora. Após a discussão, a maioria optou
marido, no seio da família, molda uma atitude passiva também na pela segunda alternativa, o que fez com que as partidárias da pri-
empresa. Fica claro que, sem uma mudança profunda da persona- me ira deixassem o grupo. Desde então, Brasil Mulher se torna um
lidade feminina, formada pelo culto à fragilidade da mulher (con- instrumento de mobilização e conscientização das mulheres da peri-
trapartida do culto à força e à agressividade do homem), a assala- feria operária da cidade, sobretudo das participantes de Clubes de
riada tende sempre a ser o Calcanhar de Aquiles da classe operária Mães.
em suas lutas. Os depoimentos de operários mostram que o fato é Brasil Mulher é publicado pela Sociedade Brasil Mulher. O jor-
amplamente conhecido. Diz uma metalúrgica: "O homem não é tão nal sai cada dois meses com tiragem de 10.000 exemplares em âm-
resignado. f: mais estourado. Às vezes quando o encarregado chega bito nacional. A Sociedade Brasil Mulher desenvolve atividades na
e fala com ele que está errado, ele começa a discutir, o encarregado periferia, inclusive a distribuição direta de Brasil Mulher em Clubes
sai falando, ele vai atrás, vão até aos tapas. E nem sempre o homem de Mães da zona norte da cidade. Formou-se inicialmente um grupo
é despedido. Mas com a mulher, se a gente responder o encarregado de operárias e donas-de-casa em Vila Maria, que organizava dis-
diz que não quero papo e acabou, vira as costas, você vai atrás cussões. Paulatinamente os contatos com Clubes de Mães foram se
falando, mas e le ganha sempre. Ele grita mais alto, a gente grita e ampliando, de modo que o movimento se expandiu, com a partici-
tem carta de advertência ou 3 dias de suspensão".14 pação de mulheres que militam no movimento do Custo de Vida
Esta maior passividade da trabalhadora, calcada no medo e na e em outras atividades dos Clubes de Mães, tais como a manuten-
timidez. é aprov~itada pelos encarregados para pagar salários meno- ção de creches, lutas por reivindicações de bairro etc.
res e exigir maior disciplina no trabalho - chegando por exemplo Em documento programático de janeiro de 1979, a Sociedade
ao extremo de restringir às mulheres o uso do banheiro - além Brasil Mulher (SBM) sustenta que " a luta pela emancipação da mu-
de maior produção, mais horas extras e tc. O capital ardilosamente lher está diretamente associada à luta pela transformação da socie-
se utiliza da subordinação da mulher ao homem no seio da família dade. . . . que a emancipação da mulher não se fará antes da li-
para reproduzi-la na atividade produtiva. Não por acaso, quase sem- bertação dos setores mais explorados da sociedade; mas a mulher
pre as seções em que trabalham mulheres são chefiadas por homens. tem que começar desde já a sua luta. . . embora sejam todas a~ mu-
E ocorre que o chefe mescla a relação de autoridade para com as lheres que sofram algum tipo de discriminação, em função do seu
subordinadas com relações afetivas, estimulando a competição entre
sexo, isto não significa que todas sofram pressões idênticas, nem que
as operárias e fazendo-as assim mais receptivas às imposições da em-
possuam os mesmos interesses. Isso vai depender da classe social a
presa.15 Ao mesmo tempo, a exploração econômica da trabalhadora
que pertencem". Por isso, a SBM apóia a luta pelos interesses e di-
propicia também sua exploração sexual, pois não é raro que ela seja
seduzida pelo chefe, o que vem completar a reprodução das rela- reitos dos trabalhadores, por reivindicações específicas das mulhe-
ções assimétricas entre homens e mulheres no local de produção. res assim como pelas que são comuns a todos os trabalhadores; além
E mesmo quando a assalariada não cede, as freqüentes "cantadas" das que são consideradas prioritárias pela Associação das Mulheres,
tornam vexatória e opressiva sua situação no trabalho. merecem destaque as exigências de aprendizado profissional das mu-
O grupo que publica Brasil Mulher evoluiu, desta maneira, de lheres, de garantia de emprego pâra a mulher casada e para a ges-
uma posição "feminina" - participação de mulheres em movimen- tante e de proibição do horário noturno de trabalho tanto para as
tos de caráter geral - para uma posição "feminista". Posteriormen- mulheres como para os homens.16
te ele se colocou outro dilema: dirigir a publicação para um público A principal atividade da SBM é continuar editando o jornal,
feminino de classe média ou orientá-la preferencialmente para as além de organizar um arquivo sobre a questão feminina, elaborar

14. Brasil Mulher, n.• 7, junho de 1977. 16. O Movimento de Mulheres no Brasil, Cadernos da Associação de Mulhc•
15. Ver depoimento de Olga cm Nós Mulheres, n.• 1, junho de 1976. res 3, agosto de 1979, p. 99 a 101.

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áudio-visuais, filmes, peças etc. e oferecer assessoria jurídica a mu- mens por mulheres, porque elas deram mais produção e ganham
lheres, em defesa de seus direitos. menos".18
Esta discriminação da mulher no trabalhe se estende além do
salário: quando há promoções, os homens são preferidos; a disci-
O trabalho da mulher plina no trabalho é mais dura para as mulheres, não havendo res-
peito às suas necessidades fisiológicas (como é o caso da restrição
Não há dúvida que, com o desenvolvimento, as barreiras da ao uso do banheiro, já referido acima); as condições de trabalho são
divisão sexual do trabalho vão sendo derrubadas, crescendo o nú- piores que para os homens, com maior risco de doenças e de aci-
mero de mulheres que realizam o mesmo tipo de atividade que os dentes de trabalho; há discriminação contra a mulher casada e so-
homens. Mas este fato não revoga os preconceitos seculares quanto bretudo contra a gestante, sendo geral o desrespeito à legislação que
exige a instalação de creches por firmas que empregam mais de
à inferioridade da mulher, o que dá lugar a forte desigualdade entre
homens e mulheres no mercado de trabalho. Decorre daí que mui- 30 mulheres.
tas mulheres, sobretudo as que não possuem qualificação profissio- Esta discriminação contra a mulher que trabalha se explica em
nal, são obrigadas a ganhar a vida como empregadas domésticas ou ultima análise pela crença de que o seu verdadeiro lugar é "em casa,
cuidando da família", crença que é partilhada pela maioria dos
em outros tipos de atividades derivadas do trabalho doméstico como
homens e também por muitas mulheres. Assim, se a mulher traba-
faxineiras em escritórios e consultórios, serventes em hospitais etc.
lha, ela está "ajudando" algum homem (pai ou marido), que é o
Quando as mulheres conseguem penetrar em ocupações "masculi-
verdadeiro arrimo da família. E portanto, ela precisa de menos
nas", há uma tendência à baixa do salário, o que faz com que os
dinheiro. Ora, isso está longe de ser verdade para as mulheres (sol-
homens abandonem estas ocupações, tornando-as em pouco tempo
teiras, viúvas, separadas) que não só se sustentam com o seu trabalho
inteiramente "femininas". As mulheres substituíram os homens
como muitas vezes têm dependentes. Além disso, as mulheres casadas
como professoras primárias, datilógrafas e varredoras de ruas, es-
que trabalham em empresas são tão arrimo de família quanto os
tando no processo de fazê-lo como cobradoras de ônibus e ascenso-
maridos. Mas, como a maioria das mulheres que trabalham como
ristas. Desta maneira, a "diferença" entre homens e mulheres é
assalariadas são dependentes que "aceitam" menor remuneração, as
mantida.
demais têm que se sujeitar.19
A desvalorização do trabalho feminino é preservada na medida
Há também preconceitos por parte dos empregadores, de que
em que homens e mulheres não fazem trabalho igual. Mesmo quan-
do a diferença entre o trabalho de homens e mulheres é apenas no- a mulher, por ter responsabilidades de família, sobretudo quando
minal. Conforme declarou uma metalúrgica: "fazemos o mesmo tra- é mãe, tende a se ausentar do · trabalho e a abandonar o emprego
balho, mas não ganhamos igual; os homens são registrados como tão logo a situação financeira da família o permita. Assim se justifi-
prensistas e as mulheres como práticas de injetora".17 Há casos, na- ca "racionalmente" que se pague menos às mulheres e que elas
turalmente, em que homens e mulheres fazem o mesmo serviço e, sejam preteridas nas promoções. O fato da mulher ser a única ou
sem qualquer disfarce, as mulheres recebem salário inferior. Mas pelo menos a principal encarregada das atividades domésticas é assim
situações como estas não tendem a perdurar, pois não há vantagem
para a firma pagar mais para os trabalhadores de sexo masculino.
18. Brasil Mulher, n.º 13, julho de 1978, p. 13.
O lógico é substituí-los por mulheres. Como relatou uma trabalha-
19. Em 1976, das mulheres economicamente ativas em São Paulo, apenas 11 ,2%
dora da indústria química: "Na minha firma, até trocaram os ho- ornm chefes de família. Convém observar que vem aumentando a proporção
de mulheres casadas na força de trabalho feminina de São PaulQ: de 24,7%
em 1970 elas passaram a 30% em 1976. (PNAD de 1976 e Censo Demográ-
17. Brasil Mulher, n.º 11, março de 1978, p. 7. Clco de 1970).

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utilizado no emprego para colocá-la em situação inferior face ao de classe deve estar, a julgar pelo material divulgado, permea_d a
homem. pelo sentimento de que a participação da mulher nas lutas da classe
A luta contra a discriminação no trabalho está começando a implica na luta simultânea pelos seus direitos específicos.
mobilizar parcelas crescentes de assalariadas em São Paulo. Confor- As mulheres também participam ativamente nas lutas dos ban-
me já foi mencionado, as mulheres tendem a ser passivas e reagem cários (setor em que o emprego feminino está em aumento) e elas
menos que os homens à opressão. Isto se reflete numa menor parti- constituem a maioria da oposição sindical no Sindicato dos Traba-
cipação feminina nas atividades sindicais. Para elevá-la, vários sindi- lhadores na Indústria do Vestuário. A diretoria deste sindicato é
catos estão convocando congressos de trabalhadoras. O realizado pelo composta por homens, que desenvolvem uma atuação meramente
Sindicato de Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, em janeiro assistencialista. A categoria abrange 35.000 pessoas, das quais 80%
de 1978, teve ampla repercussão. Mesmo assim, as empresas procura- são mulheres. Embora realizem o mesmo trabalho que os alfaiates,
ram intimidar as trabalhadoras, para impedir que comparecessem. as costureiras ganham muito menos. O sindicato tem apenas 4 .000
Algumas das militantes mais ativas foram despedidas. Em conse- sócios, o que se explica pelo seu poder nulo de mobilização. Nas
qüência, de 800 inscritas apenas cerca de 300 participaram do encon- eleições havidas em 1977, a situação venceu com 1.000 votos contra
tro. E sua reivindicação principal - a constituição de um Departa- 452 dados à oposição. Esta, no entanto, continua ativa e sua campa-
mento Feminino no sindicato - não foi aceita pela diretoria, com nha é simultaneamente de classe, na medida em que tenta pôr o
a alegação de que isto viria dividir os trabalhadores. Esta posição sindicato a serviço dos assalariados, e de sexo, na medida em que
da diretoria, embora proclame igualdade formal entre os trabalha- tenta mobilizar as operárias para uma luta em defesa de seus direitos
dores de ambos os sexos, ignora que as mulheres têm problemas específicos enquanto mulheres. Cabe mencionar ainda a luta de
específicos, cuja solução não se confunde com as reivindicações de uma outra categoria de trabalhadoras: as empregadas domésticas.
toda a classe. Nestas condições, desconhecer a discriminação não Elas formaram uma Associação de Empregadas Domésticas em São
significa negá-la, mas, antes pelo contrário, evitar que as diretamente Paulo com 1.500 sócias (há também Associações no Rio, em Belo
interessadas em seu combate possam se organizar adequadamente. Horizonte, no Recife e em outras cidades) que luta pela extensão
Em abril de 1978, o Sindicato dos Trabalhadores em Indústrias dos direitos trabalhistas a esta categoria profissional, sem dúvida
Químicas também realizou um congresso de suas ass~ciadas. Mais uma das mais exploradas. Suas reivindicações específicas são: jorna-
uma vez, a intimidação se fez sentir e de 300 inscritas apenas 70 com- da máxima de 10 horas, pagamento de horas extras, salário mínimo,
pareceram. Mesmo assim, as discussões revelaram (da mesma forma folga semanal, Fundo de Garantia de Tempo de Serviço, 13.º salário
que na reunião de São Bernardo) as habituais discriminações contra e direito à sindicalização.
as trabalhadoras: pagamento desigual, falta de segurança no trabalho, A luta da trabalhadora paulista contra a discriminação e pelos
disciplina opressiva etc. seus direitos, embora já tenha feito progressos notáveis, ainda se
Nas greves ocorridas em maio de 1978, as trabalhadoras tive- encontra em seu início. A mobilização parece ter atingido, em certos
ram participação destacada em algumas empresas, sobretudo nas setores, um número restrito de mulheres. t provável que ela se am-
que empregam predominantemente mulheres. Em uma delas, no plie à medida que o conjunto da classe trabalhadora se ponha em
entanto, a greve foi começada pelos ferramenteiros (homens) e as movimento. T udo leva a crer que o movimento feminista no seio
operárias hesitaram inicialmente em acompanhá-los. Os dados divul- da classe depende, em boa medida, da dinâmica social geral. Nos
gados sobre o papel da mulher operária nas greves20 referem-se ape- últimos anos, o surgimento de lideranças autênticas em vários sindi-
nas a algumas empresas e não dá para se formar um quadro geral, catos e de oposições em outros suscitou uma mobilização das bases,
mas é fora de dúvida que já há considerável consciência de classe que deu lugar a um verdadeiro renascimento do movimento operário.
entre certos segmentos de operárias da indústria. Esta consciência O início de lutas feministas entre os trabalhadores é parte deste
renascimento. E isso leva a considerar o problema crucial das relações
entre homens e mulheres no movimento operário. A atitude mesmo
20. Reportagem cm Brasil Mulher, n.• 13, julho de 1978. das melhores lideranças face ao feminismo está longe de ser positi-

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vn. Embora haja indubitavelmente interesse em mobilizar as traba- maior parte de sua vida reprodutiva tendo filhos, como ocorria no
lhadoras e em integrá-las nas lutas sindicais, as suas re ivindicações passado e tende ainda a ocorrer nas famílias em que não se pratica o
específicas, como por exemplo pagamento igual por trabalho igual, controle da natalidade. Daí a necessidade de limitar o número de
o cumprimento da legislação que protege a mãe que trabalha filhos para a mulher que pretende ser, além de mãe, participante
(creches, estabilidade para a gestante) e a igualdade de oportuni- ativa da vida econômica, política e cultural.
d ades de promoção ainda não foram assumidas por aquelas lide- Nunca é demais recordar que, antes do controle das enfermi-
ranças. Da mesma forma, nota-se resistênci.a dos próprios compa- dades infecto-contagiosas, a mortalidade era tão alta, sobretudo na
nhe iros das operárias a que elas participem [Plenamente de reuniões, infância, que uma mulher fértil precisava ter mais de uma dezena
assembléias, encontros. Embora pareça incrível, há muito de patri- de gestações para ter a segurança de que um número mínimo de
arcalismo nas atitudes de militantes do movimento operário, face filhos chegaria à idade adulta. Nestas condições, o encargo de ser
às suas esposas e filhas. A necessidade de se criar departamentos mãe realmente preenchia quase toda a vida da mulher. A "revolução
femininos em sind icatos decorre, em parte , desta resistência. Ao vital" dos últimos 100 anos reduziu drasticamente a mortalidade,
que parece, os maridos e pais se opõem menos a que suas mulheres de modo que a função reprodutiva pode, hoje em dia, ser realizada
e filhas participem de atividade~ puramente femininas do que em com d uas a três gestações apenas. Foi esta modificação que tornou
atividades de homens e mulheres em conjunto. Para que a mobili- viável o sonho de emancipação da mulher das peias que lhe eram
zação da mulher que trabalha possa se dar em ampla medida é impostas pela dedicação exclusiva a atividades domésticas, derivadas
preciso que os militantes do sexo masculino ao menos não lhe opo- do seu papel na reprod ução.
nham obstáculos e, se possível, lhe dêem pleno apoio. É preciso 1:. necessário relembrar ainda que o alvorecer do movimento
que compreendam que a unidade da classe só poderá ser alcançada feminista, no século passado, coincidiu com a difusão do controle
se os setores geralmente mais avançados e que soem ser também da natalidade, a partir das classes alta e média para setores cada
os mais privilegiados - homens, brancos, d e bom nível de qualifi- vez mais amplos do proletariado. Neste período, os anticoncepcionais
cação e instrução - assumam as lutas dos setores mais oprimidos e utilizados eram primordialmente de responsabilidade do homem: o
discriminados. coito interrompido e mais tarde, com a descoberta da vulcanização
da borracha, o cóndom. A limitação da natalidade foi e ntão, como o
é ainda hoje para os que usam estes métodos (a maioria nas camadas
Reprodução e sexualidade populares), o resultado de uma resolução do casal, e não apenas
uma exigência da mulher. Foi o desenvolvimento muito mais recente
A opressão da mulher na sociedade capitalista industria l, como dos anticoncepcionais " modernos" - a pílula e o Dispositivo Intra-
a que se desenvolve em São Paulo, decorre, em última análise , da Uter ino (DIU) - que passou o encargo do controle da procriação
contradição entre o desempenho de suas funções reprodutivas tra- à mulher. Se isto representa um aumento no grau de liberdade
dicionais e a aspiração de se realizar plenamente como ser humano. da mulher de decidir o seu destino, tal ganho está sendo pago po r
Biologicamente condicionada a gestar o feto e a nutrir a criança nos ela em termos tanto de restrições morais (da Igreja por exemplo)
seus primeiros meses de vida, a mulher foi socialmente condicionada como de riscos à saúde, dos quais o uso da pílula e do DIU não
a cumprir funções reprodutivas muito mais amplas que seriam, por estão isentos.
assim dizer, "complementares" ao papel de mãe, que a natureza Tradicionalmente, o movime nto femini sta sempre foi favo rável
lhe predestinou. Se a mulher, como gestante e nutriz, tem que à limitação da natalidade, chegando inclusive a lutar pela legaliza-
renunc iar à atividade éxterna ao domicílio, nada mais "natural" ção do aborto, no que vem obtendo êx ito na maioria dos países
que ela se dedique também ao serviço pessoal dos outros membros industrializados, nos últimos anos. Mas, nos países não-desen volvi-
da família, que não sofrem o mesmo impedimento. Esta limitação dos, como o Brasil, a limitação da natalidade é também bandeira do
da mulher às "tarefas do lar" se justifica tanto mais se ela passa a movimento neomalthusiano, que vê no rápido crescimento da popu-

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lação a origem de todos os males que aíligem as camadas desprivile- mulher está fecunda) .21 Este método, no entanto, tende a falhar
giadas. Contando com a aprovação e o apoio dos governos dos países dada a pouca regularidade do ritmo da ovulação na maioria das
capitalistas adiantados e de autoridades brasileiras em nível local mulheres. Para tornar aceitável sua eficiência anticoncepcional, o
e regional, organizações neomalthusianas - notadamente a Benfam método do ritmo teria que ser praticado mediante a ampliação dos
- têm se lançado ao trabalho de difundir práticas anticoncepcionais períodos de abstinência, o que acaba restringindo seriamente a
modernas nos setores mais pobres da população. satisfação sexual dos cônjuges.
O movimento feminista, em São Paulo, de modo algum compar- Obviamente o pro blema da satisfação sexual vai muito além
tilha da ideologia neomalthusiana, embora coincida na proposição do tipo de anticoncepcional empreg<JdO. No que se refere à mulher,
prática de tornar acessíveis métodos anticoncepcionais seguros a toda verifica-se que a incapacidade de sentir prazer no ato sexual é muito
a po pulação. A questão se complica ainda mais na medida em que freqüente, mesmo na classe trabalhadora. f: o que revelam, por exem-
há divergências irreconciliáveis entre os médicos quanto ao perigo plo, depoimentos colhidos entre dirigentes da Associação das Donas-
para a saúde da usuária tanto da pílula quanto do DIU. A tendê ncia de-Casa do Burgo Paulista: "No começo foi difícil, o pessoal tinha
do movimento feminista é criticar o neomalthusianismo e muitas vergonha de falar', explicaram. Conversando, elas descobriram que
vezes especificamente a Benfam por "impor" às mulheres pobres o a maioria das mulheres não sente prazer numa relação sexual. Desco-
controle na natalidade e po r recomendar métodos prejudiciais à saúde briram também que a falta de prazer é decorrência da 'educação de
da mulher. As duas reivindicações básicas do movimento feminista ser inferior ao homem' : 'Porque casou, tem obrigação de dar', disse
neste terreno são: possibilitar a livre opção do casal quanto ao uma. E arrematou: ' Mas não pode ser assim. Tem que ter prazer' ".22
número de filhos que deseja e quanto ao espaçamento entre as gesta- Que a frigidez feminina seja resultado da educação recebida
ções; e desenvolver anticoncepcionais que sejam seguros e não cau- pelas mulheres é mais do que provável. f: tradicional, no Brasil,
sem danos à saúde de quem os utiliza. como em outros países, a chamada " d upla moral", que estimula a
A primeira reivindicação implica não só que não se imponha atividade sexual do homem e inibe a da mulher. O macho potente
o controle da natalidade às camadas pobres, no pressuposto de que de ubíquo relac ionamento sexual é o sí.mbolo da virilidade, ao
a culpa de sere m pobres cabe a elas mesmas, devido à sua inconti- mesmo tempo que o recato (e no fundo o ascetismo sexual) é visto
nência procriativa, mas também à exigência de uma repa rtição mais como a principal qualidade da mulher virtuosa. Não é surpreendente
justa da renda, que dê reais possibil idades de realização das suas que a persistente negação da sexualidade feminina, em nome da
aspirações reprodutivas às famílias de menos recursos. O salário- moral, tenha to rnado a maio r parte das mulheres frígidas.
família que atualmente se paga - 5 % do salário mínimo por depen- A reivindicação do direito ao prazer sexual é inseparável da
dente - é extremamente baixo e os serviços de amparo à materni- demanda pela emancipação da mulher. Isto significa não só o direito
dade e à infância, sobretudo creches gratuitas, são insuficientes, o de livre escolha do companheiro como o direito de dissolver a união,
que priva os casais de baixa renda de condições materiais para ter se esta deixa de proporcionar satisfação mútua, e o direito de reali-
e criar o número de filhos que desejam. zar outra, com novo companheiro. O divórcio sempre foi encarado
Quanto à segunda reivindicação, ela implica não só uma de- pelo feminismo como necessário para garantir a auto-realização de
manda à ciência mas também um repto às concepções da moral homens e mulheres. Sendo a mulher a parte mais fraca no casamen-
tradicional, que legitimam a atividade sexual unicamente como meio to, vítima freqüente de brutalidade e de negligência por parte do
para a procriação. f: importante registrar que a Igreja alterou sua marido, o divórcio é particularmente importante para ela, como
posição a este respeito, passando a considerar o relacionamento meio de defesa . Infelizmente não são incomuns manifestações de
sexual entre esposos como manifestação do amor conjugal e portan-
to como finalidade do casamento, independentemente de ter obje-
tivos de procriação ou não. Não obstante, a Igreja veda. aos fiéis o 21. Prandi, J. R., Catolicismo e Família: Transformação de uma Ideologia.
uso de qualquer anticoncepcional o utro que não seja o chamado Caderno 21 , CEBRAP, São Paulo, s/d.
"método do ritmo" (abstinência sexual nos períodos em q ue a 22. Brasil Mulher, n.º 12, maio de 1978, p . 3.

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machismo nas camadas mais pobres como o espancamento da espo- enquanto, não lhes é mostrado, o que faz com que os homens assu-
sa pelo marido e a violentação de mulheres. A violência sexual ou mam atitudes que vão da indiferença à hostilidade para com as
não do homem contra a mulher resulta da imagem de inferioridade tentativas de libertação da mulher. Perguntadas o que pensam os
feminina que a moral repressiva alimenta. Para eliminar este tipo maridos do seu movimento, as donas-de-casa de Burgo Paulista rela-
de conduta masculina é indispensável que a dicotomia entre a mu- taram: "Uns acham que está certo elas se reunirem e discutirem os
lher "virtuosa", que é assexuada, e a mulher "perdida", contra a problemas do bairro. Eles dizem que não podem fazer nada, são
qual tudo é permitido, seja superada. operários e 'são mais observados'. Outros não ligam que a mulher
A dupla moral é imposição masculina ainda duramente sentida participe 'mas não dão valor'. E tem alguns que acham que é coisa
pela mulher da classe trabalhadora. Em pesquisa feita com cerca de quem não tem o que fazer: 'O meu marido fala que é tudo
de 30 participantes do Congresso da Mulher Metalúrgica, em São putaria', reclama uma das associadas. E arremata: 'Eles não gostam
Bernardo, verificou-se que: "O tabu da virgindade ainda aparece disso porque sentem que cada vez mais perdem as rédeas. . . Mu-
como obrigatório para a mulher ou então condicionado à imposição lher participante quer ser dona de seu nariz, tem opinião e eles não
do homem. 'Para mim não é problema, mas acho que se deve falar estão acostumados com isso" .24
com o homem. Aí vai depender da ignorância dele'. ( ... ) Só uma A dicotomia entre a emancipação unilateral da mulher e mais
das entrevistadas colocou a questão de que deveria haver maior com- especificamente da jovem, no campo da sexualidade, e a manutenção
preensão por parte dos homens: 'Dependendo do relacionamento por parte dos homens de atitudes inspiradas na moral repressiva dá
que se tem, a virgindade pode ou não ser mantida' ".23 lugar a conflitos e muito sofrimento, que vitima sobretudo a mulher.
A luta por uma moral compatível com a emancipação feminina O desconhecimento da prática anticoncepcional faz com que muitas
tem como ponto de partida a tomada de consciência, por parte das adolescentes engravidem. O companheiro, muito jovem, em geral,
mulheres, de que sua idealização como mãl! e (contraditoriamente) se apavora e desaparece. Dada a rigidez moralista dos pais, a jovem
como ser acima das "tentações da carne" tem como contrapartida não se sente em condições de pedir ajuda. O mais das vezes acaba
seu confinamento a uma posição subordinada de dependente do tentando o aborto com uma "curiosa", com sérios riscos para a
homem. Neste sentido, o mérito do movimento feminista é grande: sua saúde. t freqüente o uso de " métodos abortivos rudimentares
ao mobilizar mulheres em torno de seus problemas específicos, ele e prejudiciais, como as sondas abortivas, agulhas de crochê e tricô,
possibilita esta conscientização, que implica, a mais longo prazo, chá das mais variadas ervas e até chá de pregos enferrujados". Esses
uma mudança de conduta da mulher tanto no plano econômico e "métodos provocam sérios danos à saúde da mulher, além de muitas
político como no plano das relações interpessoais, sobretudo com vezes levar à esterilidade e até mesmo à morte. ( ... ) A mortalidade
os homens da sua família. t óbvio que uma mulher que começa provocada pelo aborto é quatro vezes superior à provocada pelo par-
a formar uma outra imagem de si mesma não está mais disposta a to, fato causado principalmente pela falta de recursos econômicos das
se submeter às imposições e restrições que habitualmente os homens mulheres, que são obrigadas a se submeterem às "curiosas". 25%
de mentalidade tradicional fazem às "suas" mulheres. dos leitos de toda rede hospitalar são ocupados com casos de aborto
Tudo isso leva a concluir que a emancipação da mulher, parti- cm que houve complicações" .25
cularmente no campo da reprodução e da sexualidade, depende tam- Quando não recorre ao aborto, a jovem grávida freqüentemente
bém de uma mudança de conduta por parte do homem. Este precisa deixa a casa dos pais. Após ter a criança, a possibilidade de se man-
ser tão reeducado quanto a mulher, tarefa que o movimento femi- ter trabalhando diminui muito, exatamente porque não tem com
nista ainda não se colocou. Afinal de contas, a emancipação da quem deixar o filho e até mesmo no serviço doméstico há resistência
mulher implica num relacionamento mais livre, mais digno e mais
humano, que também é do interesse dos homens. Mas isso, por
24. Brasil Mulher, n.º 12, maio de 1978.
25. "No Brasil o aborto é proibido. Mas acontece", Brasil Mulher, n.º 13, ju-
23. Brasil Mulher, n.• 11, março de 1978. lho de 1978.

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a empregar mulheres com bebê. Nestas condições, é comum que ela Contra esta tendência centrífuga, que ameaça esterilizar o movi-
acabe se prostituindo. A prostituição é continuamente alimentada mento, tomou-se uma iniciativa unitária por ocasião das comemo--
pela combinação de misér ia econômica e miséria sexual. rações do Dia da Mulher (8 de ma rço) em 1978. Q CDMB e Nós
No campo da reprodução e da sexualidade, a tarefa do femi- Mulheres convocaram outras organizações fem inistas e femin inas
nismo (além de outros movimentos de libertação) é primo rdialmente de São Paulo para comemorar a efeméride conjuntamente. Sete ou-
a de m~dar o rela~i~na_mento e ntre os sexos, através de uma ação tros grupos aceitaram, entre os quais Brasil Mulher, o Movimento
reeducat1_va. As re1vmd1cações em relação ao Estado _ serviços Feminino pela Anistia, Clubes de Mães, A,<;sociações de Donas-de-
de pla neJamento familiar, assistência à mãe solteira, educação sexual Casa e de Operárias. Estas organizações se reuniram e elaboraram
nas escolas e tc. - são importantes, mas têm caráter a pe nas comple- um docume nto intitulado significativamente " Por Liberdades Demo-
mentar à pro moção de uma transformação verdadeiramente revo- cráticas", embora se trate uma plataforma de re ivindicações que
lucionár_i~ da mor~)- sexua l. Sem uma transformação desta espécie, insere a luta fem inista no quadro da luta mais geral por democracia
que leg1t1me a at1v1dade sexual da mulher, sem condicioná-la ao e igualdade no país.
casa~~nto e à procriação, fazendo com que os indivíduos possam O documento é expressão de " mulheres organizadas" que se
pratica-la d~ forma responsável e sem sentimento de culpa, a unem aos que lutam pelas liberdades democráticas. Mas, ao fazerem
mulher contl,[l~ará sendo submetida e explorada sexualmente pelo isso, não deixam de levantar suas reivindicações específicas, que
homem, o que impede que ela possa se emancipar como ser humano. vão desde o amparo "aos filhos de qualquer natureza" e "à mulher
sozinha com filhos" e a "socialização do trabalho doméstico" até o
pagamento igua l a trabalho igual, fim da discriminação que impede
Perspectivas do movimento feminista a ascensão profissional da mulher e da que atinge a mulher casada,
gestante e lactante no emprego. t inte ressante notar que a platafor-
Uma das dificuldades com que se defronta o feminismo em ma inclui no capítulo "mulher e trabalho" a reivindicação que "o
S~o Paulo, assim co~o em outras partes, é o preconceito contra ele, trabalho doméstico e a educação das crianças sejam reconhecidos
alimentado por um tipo de crítica que se dirige não contra os fins não como uma função exclusiva de mulher, mas do homem também
do ~ov~mento_ o_u contra os métodos de luta que emprega, mas à e de toda a sociedade, devendo portanto ser assumido pelo Estado".
moflvaçao sub1et1va de quem participa. Usando la rgamente o ridículo Neste ponto, as mulheres organizadas de São Paulo se dirigem não
esta c rítica retrata a feminista como um tipo de mulher "mal amada',' só ao Estado mas aos homens, particularmente aos seus maridos
despida de encantos femininos, cuja frustração se exprime sob ~ e companheiros, pedi ndo que adotem uma atitude em face dos pro-
forma de inveja dos ho mens, aos quais procura, no fundo, imitar. blemas de sua economia doméstica que seja consistente com os
A esta crítica se juntam os temores de que o feminismo separe as ideais de igualdade e justiça que eles sustentam em face da sociedade
mulheres dos homens, afetando a harmonia conjugal e a unidade global.
de ambos os sexos no empenho por objetivos comuns. Uma etapa importante na penetração do feminismo nos movi-
mentos de mulheres em São Paulo foi vencida em março de 1979,
A força deste preconceito é tão grande que militantes do CDMB
quando se realizou o 1•0 • Congresso da Mulher Paulista, no qual
ainda não se recon hecem como feministas e a pa lavra "feminismo"
participaram cerca de 700 pessoas, represenumtes de organizações
não é usada no trabalho dos Clubes de Mães. Conseqüentemente, tanto femininas (como a Associação das Donas-de-Casa) como femi-
os grupos que assumem plenamente o feminismo e levam a análise nistas e ainda de caráter mais geral, como q Serviço de Orientação
~as causas da opressão feminina às suas raízes sócio-culturais são Familiar, a Frente acional do Trabalho etc. Predominavam, entre
~solados da massa de mulheres potencia lmente mobi lizáveis. Este as participantes, mulheres da peri feria, cujos depoime ntos deram
isola mento tende a sectarizar os grupos feminis tas, sujeitando-os a à reunião um marcante cará ter de autoconscientização. Apesar de
freqüentes cisões e querelas (gera lmente de natureza política), o que não ser nem se pretender feminista, este congresso acabou tomando
na turalmente os enfraquece muito. posições que coincidem com as propostas de emancipação femi-

138 139
nina. Como, por exemplo, no referente à questão do trabalho país . Ainda em ma rço de 1979 realizou-se no Rio o Encontro Nacio-
d_on~éstico: a introdução do tema, feita pela representante da Asso- nal de Mulhe res, co m 400 participantes, que aprovou por unanimi-
c,açao das Donas-de-Casa, concluiu nos seguintes termos: "quere-
mos _condições justas porque já está na hora de se estudar soluções
1 dade a resolução do Congresso da Mulher Paulista. A partir deste
se fo rmou unrn coordenação dos grupos de mulheres, na qual · se
cole tivas para o trabalho doméstico : em casa, com a participação integra m as o rganizações femin inas e fem inistas que participaram
total do homem nas tarefas e na rua através da socialiazção do tra- do Congresso.
balho doméstico. Ou seja, que os órgãos competentes instalem cre- Pode-se dizer q ue, a partir destes eventos, as feministas conse-
c hes, lavanderias e restaurantes públicos" (Folha de S. Paulo, guiram sair do seu co nfinamento em termos tanto de sua situação
6/3/1979, pg. 21). de " classe méd ia'' co mo de sua ideologia intelectualmente rebuscada,
" O documento que •resumiu as conclusões do Congresso reza: para se transfo rmar num movimento que - ao menos potencial-
Em todos os grupos de discussão do Congresso percebemos. mais mente - pode se to rnar de massas, cujo componente principal serão
uma vez, que os nossos problemas não se resolverão enquanto não mulhe res da classe , tra balhadora. E se isso se der, o seu impacto
mudar esta sociedade em que vivemos. Por isso decidimos fortale- sobre o movimento geral será valioso, na medida em que a compla-
cer os movimentos mais conseqüentes da sociedade, não mais para cência com o que se poderia considerar opressões " secundárias"
a umentar o número de pessoas q ue eles agregam ou para desem- pode trazer consigo a tolerância de desvios autoritários que levam
penhar as tarefas de interesse geral que " os outros" não têm tempo o perigo de seu desvirtuamento. Em · outras palavras, a contribuição
de fazer: propomo-nos, daqui para a frente, a atuar ainda mais nos dos movimentos específicos de libertação, como o da mulher, é
grupos fem ininos, nos bairros, nos sindicatos e associações levando impedir que a permanência de condutas autoritárias dentro do pró-
também para dentro deles nossas re ivindicações específicas e fazendo prio movimento geral de libertação faça com que este, uma vez
com que os seus compo nentes assumam e lutem também por creche~ . no poder, proceda apenas a mudanças formais, substituindo deter-
equiparação salarial, iguais oportunidades de trabalho e de forma- m inadas formas de opressão por outras. A única garantia e fetiva
ção, socialização do trabalho doméstico. Apoiaremos estes movimen- de que isso não se dê é a mobilização de todos os setores oprimi-
tos ~ão ma is como "companheiros", mas como mulhe res orgulhosas dos, sem que as reivindicações de nenhum deles sejam subordinadas
de sê-lo, como companheiras que têm suas lutas específicas que a a determinados objetivos supostamente gerais. Ê do interesse de
todos devem interessar" (Folha de S. Paulo, 10/3/ [979, pg. 34). todos os setores do movimento geral, portanto, assumir as demandas
O fato do movimento feminista se enfileirar explicitamente no do fem inismo e traduzi-las em proposições q ue contribuam para o
m?v!me n_to mais geral se justifica pelo reconhecimento de que a surgimento de uma sociedade mais livre e igua litária no Brasil.
e limmaçao do a utoritarismo e da exploração é condição vital para
todas as lutas de libertação e, portanto, també m para a da mulher.
Mas esta inserção na luta geral faz com que as numerosas fraturas
ideológ icas que dividem os movimentos pela transformação revolu-
c ionária da sociedade venham a se refletir no movimento feminista.
Aquilo que no plano mais amplo pode ser considerado uma sadia
dive~sificação teór!ca, que nem sempre impede a unidade na ação
prá r1ca, num movimento, como o feminista, que, além de recente
é limita_do em suas forças por p.1;~conceitos de toda ordem, pode pô;
em pen go sua sobrevivência.
. Este _Congresso veio mostrar que as principais propostas femi-
nistas estao sendo assumidas por um largo espectro de mulheres
organizadas, em São Paulo, q ue se mostram capazes de unificar
suas lutas, multiplicando seu potencial de irradiação por todo o

140 141
rn
Organizações negras

Clóvis Moura

O negro brasileiro foi sempre um organizador. Durante o período


no quul perclurou o regimeescravista, e, posteriormente, quando se
Iniciou - após a Abolição - o seu processo de marginalização, ele
1,c mnnteve organizado, com organizações frágeis e um tanto desar-
tlculndns, mas semgre constantes : quilombos, confrarias religiosas,
lrmnnclndes, ca11tos na Bahia. grupos religiosos como o candomblé,
te, rciros ele xangô e mesmo de umhanda, mais recentemente.
Com isto ele procurava obter alforria, minorar a sua situação
d11r11n1c o regime escravista e, posteriormente, fugir à situação de
mnrgin11lizoção que lhe foi imposta após o 13 de Maio. Em toda a
nosso história social vemos o negro se organizando, procurando um
rc~•11co111ro com us suas origens émkas oulutanclo,através dessas
urw111l111çocs, pnro não ser destruído social, cu tural ê biologicamente.
111 houve , por isto mesmo. quem se referisse a um ~ o_associat/.!!.Õ_
tio ncH11,1 brn:.ilci ro.'

1. lt1111101. Arlut "O Espírico Associacivo do Negro Brasileiro", Revista


tlu Ar11ulvo M1111lvl1rnl, Sno llnulo. Ano IV, vol. XLVII, maio de 1938.

143

......._•

t
l'11Nl'I c111111I• o r~onl111clo n11ls posslblllrnrnm oo negro sobreviver o rganizações de resistên~a social. O ex-escravo e ro excluído C(lllll!l'
fucc dn 11hl111ç o 111lomllntc lnfcriorizndu cm que se encontrava que tot_almente da sociedade branca. Além desses grupos, o im ,,cnhu
r
,,111
1111tt1 eh: 1888 e 1,c encontra otua lmentc. Trata-se de o rganizações 1
negra mde endente representava um papel muito importante como
v~1l11n1~rln!l que surgirnm ontes do 13 de Maio e surgem a!ualmente fato r_ de aglu~inação_ e pólo q~ elabora~ uma ideologia grupa l; po r
níto npcnns entre os negros de classe média (não chegam a ..500 seu intermédio se ficava sal:ienao aquilo que acontecia na comuni-
f11míll1111 c m Süo Paulo) mas nas áreas proletarizadas e marginali- dade negra: festas religiosas, competições espo rtivas bailes aniver-
111dos. A essos organizações, voluntárias ou espontâneas, nós denomi- sários, casamentos e outros eventos. ' '
nnmos grupos especí/icos negros. ~pesar de não haver um clima de conflito agudo e violento com
Essa tendênc ia do negro a se organizar não ~urge por acaso. Os a soc1ed_ade abrangente - salvo em casos como os quilombos e
grupos que se identificam na sociedade de classes por um estigma ~utros tipos de organizações radicais - essas associações sempre
que essa sociedade lhes impôs podem, ao invés de procurarem fugir tiveram de enfrentar a reação das instituições brancas. Em toda a sua
:i essa marca, transformá-la em herança positiva e organizar-se atra- trajetória, há uma fricção permanente da parte de instituições domi•
v~s de um ethos criado a partir ~a tomada de consciência da dife- nantes no sentido de querer asfixiar socialmente os grupos específicos
rença que as camadas privileiiadas em uma sociedade etnicamente negro~. D~sde a repressãq__violent~ passado, n~ ca~ dos quilom-
diferenciada estabeleceram. / bos, as sim les reclama ões or ue estão perturbando o sossego
t a revalorização da própria etnia do grupo que o faz ver-se público, o atrito é permanente, variando de grau. -Certos bairros não
como um componente específico dentro da sociedade que o discri- aceitam organizações negras, especialmente escolas de samba, a legan-
mina. Esses valores podem ser a reelaboração de um passado cultural do que _sã_o muito barulhentas. No entanto, no fundamental, o que
ou reivindicações mais atualizadas. A formação desses grupos espe- essa pos1çao representa é o dese ·o de " limpa r" o bairro do elemento
cíf1cos, numa sÕciedade competitiva, surge e adquire sua feição, fun- negro ali organizado. - --
damentalmente, do antagonismo entre as classes sociais. Acontece que Vamos tentar, no transcorre r deste trabalho, dar algumas indi-
muitos grupos na nossa sociedade - como é o caso dos negros - cações de como o segmento negro conseguiu manter-se organizado.
situam-se inferiorizados cumulativamente: por uma determinada Um levantamento sistemático seria quase impossível pela dificuldade
marca inferiorizadora de acordo com os padrões das classes domi- de fontes. -
nantes e_pelasituaç_ão de inferioridade sócio-econômica que os dife-
rencia r,erante a so_çieda.9e de classes.
Na área profissional, na empresa, na escola, no âmbito social As organizações negras na época da escravidão
mais abrangente, o negro sofre um processo de peneiramento e dis-
criminação intenso e constante. A continuidade organizacional - que O mais remoto tipo de grupo específico neg ro, em São Paulo.
vem d os quilombos e passa pelas favelas e alagados atuais - cria como no Brasil todo, foi incontestavelmente o quilombo. Nasceu no
patamares amortecedores à sua destruição. Temos, assim, na socie- bojo do sistema escravista e expressava uma das suas contradições
dade brasileira vários tipos de organizações específicas que o ele- mais agudas e violentas. Do ponto de vista organizacional, a não
mento negro criou para se autodefender da sociedade discrimina• se~ naqueles grandes como o e Pa lmares e o de Campo Grande, em
tório. Essas organizações percorrem toda a extensão do período escra- Minas Gerais, era muito simples. A liderança era exercida pelo ele-
vista, continuam após a escravidão e persistem até hoje.
mento que~ d ~ tacava q_urant~ a fuga e sua orgãnização. Quase
O preconceito de cor, por seu turno, impedindo que os negros
ln~rcsscm c m uma série de ocupações e instituições, determina a
nunca havia uma complexidade maior nasuaestrutura. Todos se
defendia'? e atacavam quando necessário. Algumas vezes plantavam
c rlnçilo de entidades negras independentes - grupos específicos - uma agricultura de subsistência. Mas, nas proximidades das c i~a-
como clubes de lazer , cooperativas, escolas de samba, órgãos cultu- des, isto não acontecia. Perto da capital paulista não e nconiramos
, 11111 etc. Esses grupos, constituídos basicamente nas cidades, são vestígios de agricultura nessesgru.E9s. Viviam consta ntemente cm

144 145
otrlto com os forços de rc prcssno cscrovlsto e isto caracterizava pra- Pretos do Rosário de São Paulo".3 Essa irmandade nasceu da difi-
ticamente o seu comportamento. A contrudiçiío entre esse grupo es- culdade de os negros poderem viver livremente as suas crcnços afri-
pecífico negro e a sociedade obrongcntc é umo constante. O quilombo canas devendo-se organizar sob a forma religiosa dominante.
era, basicamente, um grupo armado. A sua história é típica quanto ao comportamento desses gru-
Por isto, em 1776, a rquitetou-se um pla no para destruir os qui- p~s específicos ~egros e aos níveis de desajuste e fricção que sur-
lombos que atuavam na área que hoje chamamos o Grande São Paulo. giam com a sociedade escravista. Fundada em 1711 , a irmandade
O Governador Cunha Menezes enviou ofício aos capitães-mores dos desempenhou papel relevante na vida soc ial dos negros em São
bai~ da Penha, Cotia, Santo Amaro, Co nceição de Guarulhos, Can- ~auto. Além das prá ticas religiosas, disciplinadamente católicas, pra-
gussu e São Bernardo. No documento dava instruções pa~a que fosse ticavam o culto das almas, mantinham o seu cemitério que ficava
executado um plano de vasta envergadura para destrui-los. Ponde- contí~o à igreja onde os irmãos eram ente rrados.~ O sepultamento
rava aquela autoridade não ser mais possível tolerar as "desordens, e ra fei to quase sempre à noite com acompanhamento dos irmãos.~
latrocínios e insultos" praticados pelos quilo mbolas. Po r isto mesmo Importa salientar, também, a existência de uma comunidade
achava que esses capitães deviam "ajustar todos os soldados de_ ~uas que circundava a igreja e que a eli\ estava ligada, composta de
ordenanças, por elles mandará bater todo o matto e pa rtes exq~1:1ta_s, casas nas quais habitava m africanos livres. Essa comunidade irá
aonde se possa considerar esconderigio; continuando esta del'.ge~c1a desempenhar uma função signifi cativa nas contradições que surgi-
em direitura a esta cidade, não só ao que pertence ao seu d1stncto ram entre os irmãos e a sociedade escravista. Composta de quartos,
mas naqueles lugares que ficaram cômodos para esta averiguação que como er~~ chamadas as suas unidades habitacionais, ocupava um
deve ser feita em cerco, procurando não só a todos os negros e espaço f1s1co - e também social - que deveria ser re to mado pelas
pessoas desconhecidas que escondida":1ente ~orem achadas, ~ as todas estruturas de poder da sociedade abrangente. Segundo um dos seus
e quaisquer que ainda sendo conhecidas ttverem con_tra s1 _algumas historiadores, a "existência da Irmandade do Rosário dos Home ns
das referidas suspeitas; remetendo-os bem seguros a cadeia desta Pre tos de São Paulo se desenvolveu, sempre, num clima de ameaças
cidade".2 e_ intranqüilidades" .0 Ainda segundo o mesmo autor, "essas ameaças
Também os negros se organizaram em quilombos na Aldeia vinham externamente e as intranqi.iilidades decorriam dos seus de-
Pinheiros e Sítio da Ponte, motivo pelo qual medidas idênticas foram sent_endimentos internos. Parecia pairar sobre a Igreja e a sua con-
to madas para destruí-los. Essas medidas foram uma constante du_rante fraria uma espada invisível e fatal".7 As forças externas começam a
o cscravismo em São Paulo também contra os grupos móveis de pressionar a instituição. As casas pertencentes à J rmandade nas quais
escravos que se evadiam das fazendas de café na última e tapa da moravam a~ricanos livres tinham de ser desapropriadas para que
escravidão. fosse cumprido o plano de expansão urbana de São Paulo. Finalmen-
-As organizações religiosas, algumas vezes, também se constituíam te, em 187 1/ 72 foram desapropriadas essas casas e os terrenos per-
cm ó rgãos de luta contra a espoliação do negro, em~ora nem sem~re tencentes à Irmandade, que ficavam ent re a rua do Rosário e a rua
de forma consciente. As irmandades, como as do Senhor do Bonfim, São Bento . A indenização foi de 6:000$000 (seis contos de rfo). As
São Benedito, Santa lfigênia, São Jorge, Santo Elesbão, Santo An- famílias de africanos que moravam nessas casas, depois que conse-
tonio de Catagerona, São Gonçalo e Nossa Senhora do Rosário, etc. guiam a liberdade, estabeleciam-se no mesmo prédio em que mo ro-
desempenharam essa função.
O culto de Nossa Senho ra do Rosário, por exemplo, era desen-
volvido pelos negros em diversas regiões do país. Em São Paulo, os 3. Joviano do Amaral, Raul - "Os Pretos do Rosário de São Paulo'', Ed.
Alarico, São Paulo, 1954.
negros, sob a proteção dessa santa, organizaram a irmandade "os 4. Op. cit., p. 57.
5. Op. cit., p. 57.
6. Op. cit., p. 59.
2. Documentos Interessantes para a História de São Paulo, vol. 84, p. 70/71. 7. Op. cit., p. 59.

146 147
vam com quitandas para a venda de doces, geléias, legumes, horta- A imprens11 ncKr"
liças, mandioca, pinhão, milho verde cozido. Os terrenos serviam
de cemitério. Não apenas através de entidades religiosas o negro se orgnnizn,
Tanto as casas como o cemitério foram desapropriados. Ainda l'ouco de ois da desapropriaç!Q__da lgr:_ejLdo Rosário começa o surto
:1egundo Raul Joviano do Amaral, a '~ilidade municipal" (razão d11 im rensa negra independente, feita por homens de baixas posses
alegada para a desapropriação) era um euf~~mo que escondia as como osé Correia Leite, auxiliar_de farmácia, Jayme Aguiar, peque-
verdade~enções_das_ autoridJtd~s:_!!rar a _J[reja dos negros do no funciQ.n ário- e - ou1r_q_s. O que caracterizou esses jornais foi o fato
privilegiado local_ylJl_Q_Ue_se encontrava, na área mais valorizada da de viverem apenas dos escassos recursos da comunidade negra. A
cjdade. A iniciativa da edilidade criou uma crise na Irmandade e situação desses órgãos era de semi-penúria: não tinham anuncia ntes
houve necessidade de medidas conciliatórias para não desunir os e a venda avulsa não compensava. José Correia Leite, ao descrever
irmãos. Depois dos casebres de africanos evidentemente seria a vez o nascimento dessa imprensa, assim depõe: "A comunidade negra
da velha igreja. cm São Paulo vivia - como uma minoria que era - com as suas
A igreja tinha uma longa história. Os negros reuniam-se no entidades e seus clubes. Por isto tinha necessidade de ter um veí-
a ntigo tabuleiro do alto da ladeira Acu (Alto do Apico) entre as culo de informação dos acontecimentos sociais q ue _tinham na comu-
ruas 15 de Novembro e a ladeira S. J.oij.9 a fim de praticarem a sua nidade, porque o negro tinha a sua comunidade: uma sériede so-
religião. Com o decorrer do tempo erigiram uma rústica e paupér- cieda _es recreativas e sociedades culturais. Como é natural, a im-
rimo capelinha em terras devolutas e para a qual já haviam solici- prensa branca não ia cuidar de dar informações sobre as atividades
tndo oo Rei sino e ornamento para serem colocados. Devido à pobre- q ue essa comunidade tinha. Daí surgiu a imprensa negra. H avia
1 11 do Irmondade e a situação de penúria da capela o seu ermitão, também nossos literatos, nossos poetas que queriam publicar os seus
l)e,,111lns os de Mcllo Tavares, se embrenhou pelos sertões por quase
10 lo 1111011 11 fim de tira r esmolas . Após conseguir arrecadar 10.000
1 1111111111•1, pediu provisiío de Administração Perpétua da Igreja como
trabalhos e essa imprensa fazia essa função: de servir de meio de
comunicação. São Paulo e ra pequeno e as comunicações muito mais
fáceis. Então, na nossa imprensa fazíamos notícias de aniversários ,
!
11 11 111111h11lt11• l' purn ser teso ure iro da Irmandade, em 1725.
de casamentos, de falecimentos. Tudo isto era feito pela nossa im-
1111 1111•, 111111111, p1111N11tl11 11 pro visõo em 5 de dezembro do mesmo
prensa. As festas também eram feitas pela nossa imprensa. Ainda
11111 •. p1 l11 111111111 .tu ( '11pl111I, A construção da velha matriz do Ro-
não tinha surgido um movimento ideológico, um movimento de luta
1111,,, 11111h 11 -.111 hw11ll111<111 u 11111111 praça Prof. Antonio Prado, foi
11111 ,1 1111 , " 11111ll111w111", h,111 (, , <lo compunheiros no trabalho coletivo, de classes".8
,li, 11111th lh1 /1. 1•u11• 1111h11lho t't.llll\lllltfi rlo, contrapunha-se o interesse Jayme Aguiar, outro dos seus fundadores, depõe mais porme-
1111 111 h tlud, 11lt11111p1•11h\ 1w,11lt1111do disto , como já vimos, a derrota norizadamente: "Os negros tinham jornais, mas eram jornais das
,1,.- 111 1t111~ 11 1h•~11111 11111lrn:lw d11N cnsos do irmandade e do seu s ~des dançantes e esses jornais das sociedades dançantes só tra-
1 111111 1' 1 h,
tavam dos seus bailes, dos seus associados, os disse-que-disse, as crí-
ticas adequadas, como faziam os jo rnais dos brancos que existiam
l '111111111111 11 111111 cntn: o irmnndndc dos negros e a sociedade
naquela época: jornal das costureiras, jornais das moças que traba-
,,,,,,,..,, l l1111li11t·11tc II vclhu igreja é desapropriada, em 1903, me-
lhavam nas fábricas, etc. O negro ficava de lado porque ele não tinha
d l11111t< l11dc11i.:11çõo de 250 :000$000 (duzentos e cinqüenta contos)
meios de comunicação. Então esse meio de comunicação foi efetua-
l' 1111111 pequena área no largo do Paiçandu para a edificação de
do através dos jornais negros _d a época. São esses jornais que nós
outro . conhecemos e que tratavam do movimento associativo das socieda-
Em 1905 é lançada a pedra fundamental da nova igreja, e ini- des dançantes. O "Schort", o " Bandeirante" , o "Menelik", o " Alfi-
ciada a sua construção. Em 1906, f~i inaugur~90 o novo templo da
Irmandade Nossa Senh_9ra dos Homens Pretos, onde permanece até
hoje. 8. Depoimento gravado em 15 de junho de 1975.

148 149
11c1c" o "Tamoio" e outros mais. O "Menelik" foi um dos primei- 11hclro chamava-se Antônio dos Santos e tinha um pseudônimo quo
ros j~rnais associativos que surgiu ~ ã o Paulo, criado pelo poeta 11~ senhores vão rir: Tio Urutu . Era um preto gordo, cabelos gron-

negro Deoclcciano Nascimento.º Esse "Menelik", por causa da épo- ilt•s, um boné de lado, morava na mesma rua em que eu morava,
ca da guerra da Abissínia com a Itália, leve uma repercussão muito , uu Rui Barbosa, uns dois quarteirões após a minha casa. Todas as
grande dentro de São Paulo. Todo negro fazia questão de le r o 11111nhãs ele passava com a sua cesta, fazia as compras que ia levar
"Menclik". E tinha também o 'Alfinete". Pelo título do jornal os fW~a o Instituto Disciplinar. Um dia ele me disse: o senhor já leu
s ~ s já estão vendo: cutucava os negrinhos e as negrinhas .. . o Jornal?_ E me mostrou o " Princesa do Norte". Eu gostei do jornal-
Depois, então é que surgiram os negros que queriam dar alguma 1.inho. V1 aquelas críticas e vi uns versos. E como todos nós brasi-
coisa de mais elevação, de cultura, de instrução e compreensão para leiros não há quem não goste de música, não goste _de _poesia,-come-
o negro. Então surgiram os primeiros jornais dos negros dentro ~e çamos a pu licar _alguma coisa no jornaCdo Tio Urutu. Depois, com
um espírito de atividade profunda. Modéstia à parte, cu e Correia o aparecimento do nosso jornal, Tio Urutu continuou com o seu
Leite, a 6 de janeiro de 1·924, fundamos "O Clarim". "A Princesa do Norte" e depois acabou o seu bairro e acabou o seu
"O Clarim", em primeiro lugar, chamava-se simplesmente " O jo'2:aJ, ~~rgiu o "Clarirnda Alvoraâa" que, no início, era um jornal
Clarim". Mas existia, como existe ainda hoje em Matão, " O Cla- só ele cultura, instrutivo, etc., e apareceram os primeiros literatos
rim", o grande jornal espírita. ~~da~ão_ do "Clarim" era na minh_a negros dentro do nosso meio. E o "Clarim" foi subindo; depois
casa, na rua Rui Barbosa. Nós publicávamos o jornal com pseudo- pusemos "Clarim di! Alvorada" por causa do "Clarim" de Matão.
nimo: Gin de Araguari e Leite. Foi uma espécie de hieroglifo que O "Clarim da Alvorada", graças a Deus, projetou-se e nós devemos
fÔrmamos para não aparecermos como jornalistas. Depois, esse jo r- isto. em grande parte, ao grande negro que veio a São Paulo: Vicen-
nal foi tomando projeção. Eu devo - fazendo um parêntesis - de te Ferreira. Parece que estou vendo o velho professor Vicente Fer-
minha parte uma grande influência na fundação do jornal a um r~ quando surgiu em São Paulo. Foi precisamente no dia do sepul-
amigo meu falecido e que na época era estudante de Direito: José tamento do grande governador de São Paulo, Carlos de Campos.
de Molina Quartin Filho. que tinha por pseudônimo Joaquim Três. ( . . . ) São Paulo ficou de luto. Via-se gente até em cima das casas,
Ele trabalha va no " Correio Paulistano" e fazia crônica carnavales- para a passagem do corpo de Carlos de Campos. Todas as socieda-
ca na época, juntamente com Menotti dei Pichia que fazia crônicas des se apresentaram com os seus estandartes em demanda ao cemitério
da Consolação. E entre todos esses estandartes que desfilaram para
com o pseudônimo de Helius.
Eu e o Quartin trabalhávamos juntos numa mesma repartição, prestar homenagem ao grande Carlos de Campos, vinha atrás um
preto modesto, Salvador de Paula, com o seu estandarte, com o seu
então ele disse: - fayme, os negros precisam ter outro meio de
filho ao lado segurando o estandarte. Do outro lado o seu secretá-
viver. Eu disse: - Compreendo. E porque você não faz um jornal?
E foi assim que eu procurei o meu amigo José Correia Leite e nós rio que era um branco e que o acompanhou até os fins da sua vida.
começamos a fazer ·•o Clarim da Alvorada". Mas, antes de eu for- Com a morte de Salvador de Paula findou a sociedade ".Qs_Amigos
~ Pátria". Mas, quando o corpo de Carlos de Campos chegou à
mar o "Clarim da Alvorada" nós íamos aos Bailes. Como todo
sepultura, as orações foram grandiosas. Falaram deputados. Fa la-
negro va i a baile, todo negro gosta de samba, todo negro é associa-
tivÔ nós não tínhamos outra diversão a não ser o baile. Então co- ram representantes de todas as sociedades. Mas quando Vicente
meç~mos a freqüentar os bailes:- Havia, também, o "Princ~sa do Ferreira pediu a palavra muitos não queriam que ele falasse . Por
Norte". "Princesa do Norte" era um jornal feito com111Uito cari- quê? Porque e le chegou daquele je ito que nós já conhecíamos, com
n ho. com muitas dificuldades por um preto que era cozinheiro do o seu paletó amassado, com um jornal debaixo do braço, pediu a
a ntigo Instituto Disciplinar, onde hoje é o Pró Menor. E esse cozi- palavra. Foi uma emoção grandiosa. Desde aí, Vicente Ferreira ficou
em São Paulo dando ao negro lições de sabedoria, lições de cultura
para o bem da raça negra em São Paulo. E o "Clarim" continuo u
9. O depoimento foi tomado em 1975. com a sua luta, desprovido de ação política, desprovido de outros

150 151
recursos. Mas o 13 de Maio o "Clarim da Alvorada" sempre levou para que o jornal saísse. O jornal "Clarim da Alvorada", por isto
avante. Não era esse 13 de Maio que n~s contemplamos nos nossos mesmo nunca teve "Caixa" e como o objetivo da il_!!l)rensa negra
dias. Os festejadores do 13 de Maio dos nossos dias esqueceram de era dif~ndir na comunidade negra as suas idéias,os seus organizado-
Patrocínio, esqueceram de Luís Gama, esqueceram de Antônio Ben- resnunca procuraram organizações financeiras para ajudá-la. Tam-
to, esqueceram de Ruy Barbosa, esqueceram da Princesa Isabel. Es- bém nao procuravapolíticos da época. Sem terp raticamente anún-
queceram de tudo. Esperamos que a juventude continue essa luta c ~ a vivia da solidariedade da comunidade. Foi dentro deste espí-
11
para engrandecer o negro, porque o negro merece, o negro precisa rito 'que a imprensa negra em São Paulo viveu por quase vinte anos" .
e o negro não pode deixar de ser negro" .10 Os jornais negros veiculavam basicamente informações de acon-
- Do ponto de vista organizacional e financeiro, esses jornais eram tecimentos sociais e literãtura ara de ois irem tomando conotações
muito fracos . A sua força estava na difusão das suas idéias no meio de reivindicações raciais. Isto aconteceu em face do aguçamento do
negro. Não é outro o depoimento de Raul Joviano do Amaral, tam- preco"nceito de cor e oa luta de classes em São Paulo, o que levou
bém participante do movimento. Para ele "os jornais surgiram com os negros a transformarem o conteúdo dos seus jornais que passa-
a finalidade de integrar associativamente o negro. Os iniciadores da ram a se manifestar sobre o problema. Posteriormente, s~g_undo Aris-
imprensa negra, por pertencerem à base da sociedade, colocados no tid Barbosa, "o preconceito que até 1936, quando~ screvia nos
seu grau mais baixo, não tinham condições econômicas para manter P.Orões do Bexiga: uga-se um quarto, nao seaceita pessoa de cor'
a imprensa. ~ de se adivinhar as dificuldades que se tinha para editar e~os jornaissaíamanúricios peclindo empregada~brancas, foi se acal-
esses jornais. Como mantê-los, se a coletividade, o grupo não tinha mandoj ~gro assoJ:!..J!._pensar ~ o seu motivo de luta também ,
nenhum poderio econômico? Apenas o sacrifício, a boa vontade de se acamou. As contradições raciais ficaram diluídas. Desta forma,
abnegados permitiam a existência desses jornais. Muitos deles dis- o negro pensa que não há mais necessidade de uma imprensa de pro-
pendiam o que ganhavam modestamente para manterem e publica- testo. Com o jornal " Novo Horizonte", fundado em 1948, um dos
rem esses jornais. . . Não havia, 1mr isto, uma periodicidade regular últimos da imprensa negra, a situação se repete: são os velhos que
de publicação: quando havia dinhei.ro o jornal saía com regularidade; haviam fundado "O Clarim da Alvorada" que irão ajudar a nova
quando não havia dinheiro o jornal saía com atraso. Uma das manei- geração. Por outro lado, do ponto de vista organizativo nada r:nudou:
ras de se sustentar esses jornais era freqüentar as socieaaâes negras os •seus fundadores têm de sair com os jornais embaixo do braço
ex1~tes na época, distribuí-los e pedir uma contribuição para o pró- para vendê-los ou distribuí-los entre os negros. Por isto, em 1955 o
ajmo número . Os próprios diretores, os próprios redatores · iam levá- "Novo Horizonte" desaparece" .12
los à sedes dessas associações. Com o tempo f~ ram_giadas_ coopera- Dois outros grandes jornais negros de São Paulo - ainda se-
tivas. Mas, mesmo assim, foi muito difícil mantê-los à base da coope- gundo o depoimento de Jayme Aguiar - foram "Q__ Getulino~ e
ração porqüe o negro não tinha condições econômicas." O sacrifício Campinas, fundado pelos irmãos Andrade, Lino Gue es e outros e
do negro, para aul Jovianodo Amaral, "foi imenso e o seu êxito "Õ Patrocínio";- de Piracibaca, fundado_por Alberto de Almeida.
se deve a homens humildes como Tio Urutu, que era um cozinheiro "Esses ois Jornais f~ sucesso. A vinda, logo após a revolução,
do Instituto Disciplinar, como José Correia Leite que era auxiliar de de jornalistas campineiros negros para São Paulo, como §ervásio
uma drogaria o qual, além de escrever e orientar o jornal, tirava dos de Oliveira, Benedito Florêncio, Lino Guedes e outros, possibilitou
seus parcos vencimentos uma parcela para mantê-lo, para que ele a sua participação t3mbém n~grande batalha em prol da grandeza
13
pudesse sair com alguma regularidade. Outros abnegados da impren- do negro. Todos eles irão participar da imprensa negra paulistana".
sa negra foram ainda o Jayme Aguiar, o argentino Celso Wanderley,
com "O Progresso", Lino Guedes e Salatiel de Campos. Todos con-
tribuíam cÕm uzentos réis ou um tostão, o máximo um cruzeiro,
11. Depoimento gravado em 15 de junho de 1975.
12. Depoimento gravado em 15 de junho de 1975.
10. Depoimento gravado em 15 de junho de 1975. 13. Depoimento gravado em 15 de junho de 1975.

152 153
José Correia Leite ainda fez nova tentativa em 1946 - "Alvo-
rada" - que também não sobrevive por muito tempo. Geraldo Cam-
~Oliveira edita a revista "Senzala". Surgem ainda, em 1 60,
"l!bano"-e ''Nígêf'':""ltnãlisandõesteperíÔdo da vida do negro pãul~
tano, escreve Oswaldo de Camargo: "Os jornais que representam o
pensamento do coletividade negra variam segundo a múltipla expe-
riência do negro na vida paulistana. Alguns ficaram apenas no nivel
de contar notícios sobre um pequeno gfüpo e amtgos; outros afcan-
caram um oito nível de exposição de idéia~ outros ainda se propu-
\
6'
s.eram a ilustrar e preparar o negro para o livre debate e procurar •
soluções dos problemas comuns senti os -den o a coletividade ne-

-
gra".14

A Frente Negra

No início da década de 1930, em conseqüência da deflagração


de umao ensiva ideológica dos negros em São Paulo através dos seus
órgãos de divulgação, se articula a formação da Frente Negra, a orga-
nização que maior influência teve no comportamento do grupo étni-
co. Ela foi o centro convergente de uma série de entidades e grupos
negros os quais, por i;eu turno, gravitavam em tomo da sua imprensa
ou por ela crnm influenciados. Foi o grande momento do negro em
Siío Pnulo, o l'lpicc de um processo que depois entrou em declínio e
nunco mois olcnnçou o níve que e a conseguiu.
Como vimos. no sentido organizacíõnar:- os grupos que elabora-
vam os jornais eram muito frágeis, entre outros motivos pelo baixo
nível econômico dos seus membros. Esse sentido organizacional que
era até então precário terá impulso e alcançará novo e mais elevado
nível com a formação da Frente Negra e a fundação do seu jornal
"A Voz da Raça" (1933-1937).
A F.rente Negra foi fundada em 16 de setembro de 1931. Sua
sede central situava-se na ruãoãlJherda e, 196. Sua estrutura orga-
nizacional já era mais comp exa o que a os jornais que a precede-
ram e possibilitaram o seu aparecimento. Era diri 'da or um Grande
Conselho r.QJlstituído de 20 membros, selecionando-se, dentre eles, o
- =--- ------

14. Cemergo, Oswaldo de "A Descoberta do Frio", Edições Populares,


SIio PouJo, 1979, p. 30, noto.

154
Chefe e o Secretário. Havia, ainda, um Conselho Auxiliar formado Raul Joviano do Amaral tentou, ainda, conservar a organiza-
pelos Cabos Distritais da Capital. ção com o nome de União Ne ra Brasileira. Mas, diante da repres-
Criou-se, ainda, 1;!!!.!l milí_cia frentenegrina, organização _parª-mi- são, o movimento se desarticulo; eÕseü jornal "A Voz da Raça"
litar. Os seus component_es usavam camisas brancas e recebiam rígi- deixou de circular. A União morreu, melancolicamente, em 1938,
do treinamento militar. Segundo depoimento de um dos seus funda- ,exatamente quando se comemoravam o;so anos da Abolição~
dores, Francisco ucrécio,10 a Frente Negra foi fundada por ele e A ditadura estadonovista atingiu profundamente não apenas a
outros companheiros em aixo de um poste de iluminação. Inicial- Frente Negra mas todas as organizações negras populares. Daí o f~to
mente, ainda segundo ele, houve muita incompreensão. Diziam que e vermos na Gran~e São Paulo funcionando para os negros apenas
estavam fazendo uma discriminação ao contrário. No entanto, com clubes de lazer de uma pequena c asse média, como o "Aristocrata",
~ -;os membros âa Frente Negra foram conseguindo confiança , pois tudo o que tinha caráter popular foi reprimido. Com isto, as
não somente da população, mas também das autoridades. Os seus organizações negras se retraíram taticamente. Há um interregno no
membro_L_p_os~uíam carteira que os identificava, com retratos de
qual esses grupos específicos recuam para somar forças depois. Os
rente e de perfil. Quan o as autoridãdes policiais encontravam um
seus líderes também desaparecem ou se retiram para posições de-
..!]egro com esse documento, respeitavam-no porque sabiam que "na
fensivas.
_Frente Negra só entravam pessoas de bem". Ainda segundo o depoi-
mento de Francisco Lucrécio, conseguiram acabar com a discrimi-
nação racial que existia na então Força Pública de São Paulo que
A Associação Cultural do Negro
não aceitava negros nas suas fileiras. A Frente Negra inscreveu mais
de quatrocentos negros, tendo muitos deles feito carreira. ~lguns ne-
Somente em 1954, .surgiria uma organização significativa: a As-
ros não aceitavam a Frente porque o seu presidente era monar-
quista.16 sociação Cultural do Negro, fundada em 28 de dezembro, localizava-
- Em face dos êxitos alcançados, a Frente Negra resolveu trans- se, inicialmente, numa sala da rua São Bento e o seu eresidente era
formar-s~yartido p_olítico em 1936. Houve, mesmo, discussões Geraldo Cam os de _Qliveira. Vice-presidente: Américo Orlando da
entre membros do Tribunal quandodo seu pedido de registro. Mas, Costa. Sua direção era composta de uma Diretoria Executiva, com
apesar de tudo, ela foi registrada. oito membros e um Conselho Superior, presidido por José Correia
Estruturada em São Paulo, a Frente Negra teve ainda núcleos Leite, tendo como secretário Américo dos Santos. O Conselho tinha
fundados em outros Estados como o Rio de Janeiro, Pernambuco, vírít~ e nove membros. A ACN possuía departamentos de Cultura,
Bahia, etc. Sua ideologia. mais articulada do que a dos grupos ne- Esporte, Estudantil, Feminino e uma Comissão de ecreaçao. Geraldo
gros que a precederam, era un9amentalmente calcada nos valores Camposd-; Oliveira imprimiu à entidade um ritmo de atividades muito
vigentes de ascensão social, acreditando que o negro venceria à me- intenso e dinâmico. Editou um Caderno de Cultura Negra. Em 1958
. cfidaque conseguisse firmar-se nos diversos níveis das ciências, das a entidade centralizou as atividades comemorativas dõs 70 anos da
artes e da literatura. Cabia, também, à Frente Negra orientar os seus Abolição. A ela juntaram-se o "Teatro Ex rimental Negro" de São
mem~~ is o negro, segundo os seus dirigentes, desde a Abolição Paulo, " Teatro Popular Brasileiro" de Solano Trindade, "Associação
vinha se ressentindo de "melhores noções de instrução e edvcação". Paulista os migos do Homem do Norte e do Nordeste", "Grêmio
Essa ideologia era praticamente a plataforma do partido político. Com Estudantil Castro Alves", "Sociedade Recreativa José do Patrocínio"
o Estado Novo, foi fechado o partido e a Frente Negra s__e desagregou. de São Miguel e " Fidalgo Clube".
Foi uma etapa na qual os negros paulistanos se prcocupovom
15. Depoimento de Francisco Lucrécio no Clube Coimbra em 26 de junho muito com o problema de uma ideologia para o negro e de vulori•
de 1976. ..zação da cultura negra. As comemorações do ano primaram pelo ex-
16. Idem, idem. tenso programa cultural, esportivo, artístico e pelo balanço dn lonsa

156 157
caminhada empreendida pelo negro desde a sua libertação.17 Vários Mas, mesmo tentando verticalizar as suas atividades, a entidade
intelectuais não negros participaram de uma série de conferências, não teve mais preocupação étnica; parece que os negros somente iam
entre eles Sérgio Milliet, Florestan Fernandes, Carlos Burlamarqui lá para os bailes. Segundo a sua última presidente, os negros que
Kopke, ao lado de negros como Abdias do Nascimento, Solano Trin- podiam lecionar na escola da entidade "não se interessavam pelo as-
dade e Fernando de Góis. sunto", motivo pelo qual as escolas morreram. A entidade foi se
A história da Associação Cultural do Negro tem duas fases bem esvaziando, terminando por cerrar as suas portas.
distintas e que demarcam outras tantas filosofias s obre a solução do
r problema do negro. A primeira caracteriza-se por intensa atividade As escolas de samba
cultural e artística. Â preocupação maior é- criar uma ideologia para
Enquanto essas entidades se organizavam e morriam n'um reve-
o negro paulista. Isto levou a que houvesse uma série de divergências,
zamento contínuo, emerge outro tipo de grupo específico negro: a es-
no meio do grupo. Na elaboração desse pensamento, surgiram as
( contradições ideológicas decorrentes da situação do negro na socieda- cola de samba. A escola de samba paulista somente é vista favora-
velmente pela sociedade branca durante o çarnaval. Durante o ano, ,
ae brasileira. Erã um grupo vertical que congregava em seu seio ele-
há sempre reclamações contra o seu mau comportamento, barulheira,
mentos de status os mais diversos. Isto se refletirá no comportamen-
deboche, comportamento agressivo e alcoolismo. Durante o carnaval
to dos seus membros e na postura da entidade. A ACN perde aquele
as coisas mudam e elas são aplaudidas no asfalto.
caráter inicial de unidade e começam as dissensões. Em conseqüência,
No entanto, essas escolas não se esgotam na preparação para o
desarticula-se o seu esquema financeiro que já não era bem organiza-
desfile carnavalesco. Durante todo o ano elas são__pontos de reuniões
do. A entidade é despejada do imóvel que ocupava.
d~g!:Qs_que, além de bail~s, vão ativar o ~ u espírito associativo
Depois de algum tempo inativa muda-se, em 13 de mai~e 1977, e avivar a sua consciência_ ét~.
para o bairro da Casa Verde, com objetivos mais assistenciais e filan- A escola de samba _!:._ava~ foi fundada em 1930, em São Pau-
trópicos do que ideológicos. A composição social da ACN também lo. Outras se sucederam, cresceram e se impuseram na cotidianeida-
muda: passa a ser compostn quase que exclusivamentuor_ l)egE_?s de de do negro paulista. Escola Nenê de Vila Matilde, Unidos do Peru-
bnixns posses - embora na primeira fase isto já acontecesse, mas de che, Morro da Casa Verde, Unidos da Vila Maria, Estrela Brilhante,
formo monos ncontuodn - e de um componente marginalizado. Du- Acadêmicos do Peruche, Escola Príncipe Negro (Vila Prudente), Aca-
rnntc o gostílo do nova presidente Gilséria Oliveir~ a entidade liga- dêmicos do Ipiranga, Vai Vai, Camisa Verde e Branca, Fio de Ouro,
se h populnçílo negra e pobre do bairro. Abre-se uma escola que Mocidade Alegre e outras, umas grandes, outras pequenas. Durante
11bl'ig11 30 nlunos (somente 2 são brancos). Tinha cursos de alfabeti- todo o ano funcionam como respiradouros culturais e sociais do ne-
z11çiio e mudureza funcionando regularmente. A Diretoria passa a di- gro paulista. Por outro lado, a sociedade abrangente procura, tam-
nomlzor o porte recreativa e de lazer, realizando bailes na sua sede. bém, através das suas estrutur~ de poder, aproveitar-se dessas enti-
A porte assistencial também se dinamiza e são encaminhadas pessoas dades. No financi__!!_mento que O_§ órgãos oficiais oferecem, a título
que necessitavam de empregos a empresas comerciais e industriais. deprestação de serviços.., à_s escolas de samba, esconcle"=se todo um
A Associação Cultural do Negro mudou de feição. Foi criada uma rnecãnismo neutralizador da forma voluntária como elas se organi-
estrutura assistencial que fornecia fundos necessários à sua manuten- ;;;;:; Poi:__outro.Jado, os ~us dirigentes manobram. Precisam de
ção. Por este motivo nunca atrasaram os aluguéis, um dos problemas dinheiro para o carnaval, pois a competição é muito grande entre elas.
mais sérios das entidades negras para continuarem atuando. Ao mes- José Jambo Filho (Chiclete) presidente da Vai Vai declarou que o
mo tempo a ACN ligou-se à população pobre do b~rr~ da Casa Ver- auxílio é pouco, havia necessidade de ser maior. Porém, para ele, é
um "mal necessário".18
de, procuranjo atrai- a ara as sl!_as atividades e o seu quadro social.

18. Depoimento de José Jambo Filho (Chiclete) no Clube Coimbra cm 18


17. Cndcrnos de Cultura Negra da ACN, n.º 1, p. 4. de junho de 1976.

158 159
1?11111 cnfrcnlllm_problemas financeiros muito sérios. Têm de manter R0vernamentais e, de outro, a pressão dos grupos chamado~ _brancos
u qundrn, quase sempre um espaço grande, para os e nsaios e outras •ompre com uma carga de preconceito de cor sub-repltcta, mas
ntlvidodcs. 111uante.
Mas, se as entidades q ue dirigem o Carnaval oficial procuram A trajetória das escolas de samba, de um modo geral, é portan~o
co rrompé:-las, nos outros níveis a pressão é manifesta. No depoimen- esta: resistir, o quanto podem, à pressão corruptora - as verbas sao
10 de José Jambo Filho, ele fala do problema da q uadra da escola e " um ma necessário" - e, ao mesmõ tempo, procurar conservar
dn possibiliâade óe perdê-la pois, segundo e le, a Prefeitura cedeu
nqueles espaços físicos, sociais e culturais que lhes querem tirar. €
o terreno "a título precário". A munic ipalidade havia requerido o
nessa trajetória contraditória e ziguezagueante que elas conseguem
terreno de volta. O presidente do Vai Vai àquela a ltura estava em
wobreviver. Muitas aderem completamente à influência de pessoas,
en1endimentos com o prefeito para ver se não tinha de parar os en~ l(rupos ou instituições dominantes "protetoras", outras continuam
saios por falta de quadra.19
num jogo cheio de ambigüidades para não desaparecer.
/ Nesses casos. o~irigentes das escolas de samb_a, como não po-
Por outro lado, o carnaval "oficial" aguça a competição entre
dia deixar de ser, adquirem um comportamento a mb1guo como meca-
ns escolas de samba. Cria uma emulação toda voltada para estimular
nismo de defesa. De um lado vão falar com as autoridâdcs com uma
u colossalismo quantitativo que as está desfigurando e, ao mesmo
certa humildade, mas na comunidade descarregam_é!.2~~ revolta co n-
tempo, criando para elas problemas financeiros cada vez ~~iores. B
tra essa ameaça permanente que há contraas escolas de s-ªmbª.
um círculo vicioso no qual estão colocadas. 9 ~stímulo of1c1al - as
A mesma escolá Vai Va i presentemente está, segundo notícias
verbas dos departamentos de turismo - faz com que algumas dessas
da imprensa, enfrentando morado res da Bela Vista, onde e la funcio-
escolas escolham para os seus sambas-enredos temas bem pouco re-
na. Querem a sua remoção para outro local. 20 As alegações são as
presentati:w.s....doS-valores @g~ como "bandeirantes", "Sa~tos Du-
de sempre: "os moradores das proximidades alegam que o barulho
mont" " Almirante Tamandaré" e inúmeros outros. A quantidade de
causado pelos ensaios e festejos da escola é insuportável, e, a lém

----
flgura~tes exagerada - de quinhentos a seiscentos e mais - _leva a
disto, a quadra da escola serve de ponto de encontro de maus e lemen-
que essas escolas estejam passando por um mom_ento ~e crise em
tos e baderneiros das mais variadas espécies"." 1 A esses argumentos
todos os sentidos: econômico, cultural e de memóna étmca.
retruca o presidente da escola: "A escola já tem quase 50 a nos de
existênc ia e já está totalmente integrada na tradição do Bexiga e um
-
movimento desses nas vésperas do Carnaval poderá representar o fim A macumba
da escola campeã do Carnaval paulista do a no passado"?" A isto os
moradores respondem com um abaixo assinado com mais de mil as-
Outro tipo de grupo específico negro que se manifestou em São
sina turas para serentregue ao prefeito solicitando o despejo puro e
simples d aVai Vai. Paulo foi a macumba. A macumba paulista data, pelo menos, do sé-
Como p-odemos ver, a fricção entre os grupos específicos negros culo XVIII, quando é possível encontrar alusões a so revivências
e a sociedade abrangente é uma constante. Daí este comportamento religiosas africanas.23 Esses grupos tinham uma função s~c!al de resi~-
a mbíguo que os dirigentes dessas entidades negras têm nos seus con- tência que não escapava aos brancos das classes senhona1s, as quais
tactos com autoridades e instituições reguladoras do sistema para po- vislumbravam o perigo que e les representavam como veículo organi-
derem sobrevive r. De um lado, há a pressão corruptora de entidades zacional dos negros contra a situação de oprimidos. Em 1748, por
éx"emplo, o procurador denuncia à Câmara "que era contra o bem
comum os negros que se ajuntam em maloca a jogar pelos arredores
19. Idem, idem. da cidade e com batuques, e- juntamente as regras dos tabuleiros o
20. "Diário Popular", São Paulo, 3 de janeiro de 1979.
21. Idem. idem.
'J'I. Idem, Idem. 23. Bastide, Roger: "Estudos Afro-brasileiros", São Paulo, p. 194.

160 161

- ~ ~ - -, - - - - - - - - - - - -

~
saírem fora dos rios da cidade, porque costumam avisar aos calham- A Umbanda
bolas, e fazer outros malefícios contra a lei de Deus". 24 • 25
Se, de um lado, os negros não continuaram engrossando as ir- I! na convergência desses fatores que surge, como um fenômeno
mandades católicas, de outro, foram também se afastando dos grupos dos mais importantes, a Umbanda. Quando a macumba se desagre-
mais próximos da sua herança ãfricana, como a macumba. A macum- 1a, a Umbanda absorve grande parte dos contingentes negros que dela
ba não pro iTera como era de se esperar, se levarmos em considera- IC afastam. Roger Bastide afirma que "o espiritismo de Umbanda não
ção que, a artir d 1850, aumenta ponderavelmente o contingente 10mente retém os elementos essenciais da macumba ou do candom-
_populacional negro em São Paulo. Afirma Bastide por isto mesmo: blé, mas ainda conserva, da religião africana, o sistema de corres-
"Vemos que o negro paulista trouxe suas crenças religiosas para a pondências místicas entre as cores, os dias, as forças da natureza, as
nova terra e que houve aqui também germes de um culto organizado. plantas e os animais ( .. . ) A Umbanda se torna a forma africana da
Mas esse culto abortou"?º magia branca".211
Por isto mesmo, quando em 1938 Dalmo Belfort de Mattos em- O negro urbano paulista, desarticulado, com uma carga de ansie-
preende uma pesquisa sobre as macumbas - paulistas~- não encontra dnde muito intensa, adere a ela e passa a ser um oos seus organiza-
nenhum grupo religioso estruturado como tal , mas feiticeiros indivi- dores. O negro se reencontra, assume status de prestígio nas tendas e
auais e curandeiros. Diz ele: " Dissemos queem São Paulo predomi- consegue restabelecer em parte os seus padrões religiosos. N...ª-,primei-
nam os curandeiros. E que os feiticeiros, crentes na eficácia do ritual ra fase da Umbanda, os grandes babalaôs eram negros. As tendas de
que praticam, só se encontram em raros núcleos pela zona velha do Um6anda passam a funcionar como pólos de reencontro religioso e
Estado - candomblés de 'To Pinto', na estrada de Arujá - varejados cultural do negro paulista.
pela políciaem f9
Irajá". 27
- cacifros de macumbeiros da região de

A macumba paulista se desagrega, perde o seu sentido de orga-


nização coletiva e passa a ser exercida individualmente por curan-
-
A esse otencial de organização religiosa do negro urbano pau-
lista liga-se a ansiedade de uma população marginalizada, vinda em
arande parte do campo para a metrópole, sem -
- -pólos
- - de apoio capazes
de ajustá-la aos padrões dessa sociedade. A partir daí podemos ver
deiros e feiticeiros, em bairros de predominância negra. Concomi- por que a Umbanda cresceu nas proporções em que cresceu.
tantemente, no rastilho desse processo de desagregação da macumba E as lendas de Umbanda foram surgindo, cresceu o seu núme-
paulista, su_rne um movimento de- congregaçãodos n~ J movimento ro. Surge, em contrapartida, toda uma política oficial no sentido de
~e adquirirá importância surpreendente: a Umbanda. controlá-las. A Igreja Católica tradicional agride os seus adeptos, mas,
Bastide dá como causa do desaparecimento dos centros de ma- npesar de tudo, o número de umbandistas aumenta, inicialmente na
cumba em São Paulo u e ~uição policial. Mas, segundo ele, a periferia, depois em bairros residenciais do centro. Mas é preferen-
macumba não desapareceu completamente: apenas passou da forma cialmente na periferia ue os terreiros de Umbanda proliferam.
coletiva para a forma individuaí,"ao mesmo tempo se transformando O negro procurou inicialmentt:se reencontrar étnica e cultural-
de religião em ·magia. "O macumbeiro. isolado, sinistro, temido como mente, mas, ao mesmo tempo, por estar engastado em uma sociedade
um formidável feiticeiro substitui, hoje, a macumba organizada".u de classes opressora usou suas unidades religiosas para se preservar
e se recompor socialmente. Esta função dos centros de Umbanda, co-
mo grupos específicos negros, deve ser enfatizada para que se com-
24. Moura, Clóvis: "O Negro: de Bom Escravo a Mau Cidadão?" Ed. Con- preenda como e por que essa religião se expandiu no ritmo em que se
quista, Rio de Janeiro, 1977, passim. OKpandiu. O ne ro enco_ntrava nesses grupos um status <!_e prestígio
p.
25. Bastide, Roger, ob. cit., 194. que o recompensava dos_bloqueios e_frustrações causadores da ansie-
26. 811s1ide, Rogcr, ob. cit., p. 198.
dade de que é vítima em uma sociedade discriminatória. Por exem-
27. Matos, Dalmo Belfor1 de - "As Macumbas de São Paulo", Rcv. do Ar•
quivo Municipal, São Paulo, Ano V. Vol. X LIX, agos10 de 1938, p. 156.
28. Oastide, Rogcr - "As Religiões Africanas no Brasil", São Paulo, 1971.
p . 41 2. 19. Bastidc, Rogcr, ob. cit., p. 447.

162 163
pio: em uma gira descrita por Margarida Izar'°, o babalaô é Euclides rentes e precisavam da caridade e da pactencia dos dirigentes, mé-
Barbosa, conhecido, no tempo em que jogava futebol, como Jaú. Za- clluns, assistentes e 'guias' pera darem seus primeiros passos no árduo
gueiro do Coríntians, chegou a defender a seleção brasileira de 1938. rnminho da ascensão espiritual" .31
Depois veio a decadência. Mas, ali, não era mais apenas um jogador Essa compensação simbólica que o negro tem inicialmente nas
de futebol em fim de carreira, mas o babalaô, o chefe de terreiro. Da ltndas de Umbanda está desaparecendo progressivamente. E com
[ mesma forma os demais componentes dg__ teneir~ não são mais ape- 1110 os negros proletarizados e marginalizados, através de uma luta
nas os trabalhadores bra~ais, op.!rários, desempregados, biscateiros, lnlragrupal, dentro da Umbanda, dinamizam o seu lado negro: a
1 { m~ rginais, pequenos funcion~rios, mas pesSO?S hierarquizadas em u~1 Uuimbanda. A Q uimbanda não é um grupo específico, mas uma ten-
universo de prestígio que redistribui o status de cada um, revalon- J ~ncia que se manifesta nos grupos umbandistas, como a cont rapar-
zando-os em relação ao que eles são fora do terreiro. lldo dos que viam na Umbanda uma forma simbólica de vencer a
A trajetória da Umbanda - especialmente em São Paulo - 1oclcdade discriminatória. Daí a sua força crescente e o combate,
\ segue um processo de branqueamento e ela vai perdendo os padrões po r parte das tendas branqueadas, à sua proliferação. O que está sen-
e as normas de comportamento que a c_olocavam como uma unidade do inútil.
( afro-brasileira. Com isto_o negro vai, também, perd~ndo a sua p_osi- A proliferação dos Exus, a sua aceitação por parte daqueles seg-
~ nesses terreiros que são ocupados por uma equipe que se s1tu11 mentos marginalizados, em outras palavras, a aceitação da Q uim-
1entre o espiritismo Kardecista e a Umbanda. Além dissõ;-são pessoas handa dentro da Umbanda parece-nos uma reação contra o seu bran-
declas~médta que não _precisam de status de prestígio (compensa- q11eamento e uma tentativa de o negro reassumir a liderança religio-
tório) da Umbanda, porque não são diretamente atingidos pela socie- H que lhe foi parcialmente tomada.
cfade discriminatória pela marca étnica que não possuem. Com isto Como não é aqui o lugar de se fazer uma análise mais profunda
mudou, de certo modo, a composição das tendas de Umbanda. Houve cl1u1 concentrações intragrupais no movimento umbandista e a emer-
um processo de diferenciação: de um lado, elas se institucionalizaram •&ncia da Quimbanda com uma dinâmica própria, o que-devemos
e se branquearam, aproximando-se mais do espiritismo Kardecistu , eallcntar é ue o negro consegue - através da Quimbanda - agre-
afastando-se das religiõe~ afro-brasilciras7'.>e outro lado, as tendas dn dir simbolicamente a sociedade discriminatória.
~ riferia assimilaram as populações marginalizaaas, ansiosas, doentes
e desesperadas. Sentiram, ao mesmo tempo, que não havia mais pos
sibilidades de manipular o sagrado com a função antiga, aceitando o A favela e a congada
bra11q11eamento progressivo das tendas de Umbanda institucionalizo
das. Essa luta por status entre os grupos específicos mais l igados 11 A favela Vila Pelé, no bairro Riacho G rande em São Bernardo
suas origens africanas e as camadas branqueadas ideologicamcntu do Campo, constitui exemplo de um agrupamento que se organiza
dentro das tendas de Umbanda continua em curso. A sua origem afn, t m tom o da liderança de um negro.
brasileira inicial, porém, é inconteste. Cândido Procópio Fer reira clr O favelamento de São Bernardo começou com a indús_trul auto-
Camargo escreve que "muitas vezes presenciamos, em reuniões frc mobilística. " As áreas mais propícias e próximas deSão Paulo loca-
qüentadas por pessoas de cor, o aparecimento de espíritos de escravo, lIr.um-se em São Bernardo do Campo e Diadema, e os sonhos de pos-
e de senhores, cuja atual vida no Além era vista em função das situo 1lbllidades de futuro nas indóstrias da região atraíram esses favelados
ções que ocuparam na Terra. Os primeiros, mansos, suaves, galgu 101 milhares, que por sua vez trouxeram seus amigos e parentes, de-
ram com facilidade os degraus da sabedoria e do amor; os último•, H nvolvendo ainda mais os núcleos, ( ... ) formando-se as grandes fa.
atormentados, julgando-se aind:1 'encarnados', portavam pesadas co1 ~olos do Jardim do Lago e Jardim l pê, a do Planalto, também chama-

O. l zar, Margarida - "Saravá, Meu Pai Xangõ, Saravá, Mamãe Ogunl'', li Ferreira de Camargo, Cândido Procópio - "Kardccismo e Umbanda",
Diário da Noite, São Paulo, 20 de novembro, 1961. l lu Paulo, 1961, p. 125.

164 165
do de Jardim Calux, e a da Vila Clarice, junto ao Parque Neidc, nas
imediações da F.E.I., a lém da favela do Lixo junto a um depósito
de detritos, próximo ao Volkswagen Clube e a inda outras de meno r
importância".:!!!
t neste contexto de· desenvolvimento do favelamcnto cm São
Paulo que cm 1961 chega ao município, vindo de Ilhéus. na Bahia.
o negro Geraldo josé de Souza. Inicialmente fo i trabalhar em uma
ola ria, no loca onde atualmente se e ncontra a fave la. O local e r;,
inteiramente deserto. Como não tinha onde morar, depois de desba~-
tar o mato, construiu o seu barraco. Mas outras pessoas necessitada~.
ao verem o barraco de Gera ldo, apelidado Pe lé, começaram a afluir.
Ele cedeu o seu barraco ao primeiro q ue chegou e construiu o utro
par.r si. A mesma coisa fez quando outro necessitado chegou . Deu o
seu e construiu outro. Assim foi nascendo a favela .
"A figura de Pelé, um preto retinto, com idade aproximada de
40 anos, vai ganha ndo maio r realce, à medida que vai se tendo co-
nhecimento do seu trabalho, junto aos demais morado res, desde
::iquela época até os nossos dias. De maneira geral deve-se a ele H
divisão da área , o socorro a uma infinidade de famíli as que chega-
vam sem a menor condição de se estabelecer o nde quer que fosse. A
solução dos problemas dos poços furados , das fossas, etc . Graças il
sua liderança, a vila não é um simples amontoado de barracos, ma~
nela observa-se um certo planejamento e a lguma preocupação estética .
"Seu crescimento foi mais acentuado na década de 60. Ultima-
I
mente está estacionado. Aliás. o congelamento, decretado pela Pre-
fe itura d e São Bernardo do Campo, apanhou a população em estado
de insegurança. decorrente de fatos e boatos que o a ntecederam .
Ignorando os limites do sítio público, algumas famílias haviam-se fi xa-
do cm áreas p::irticulares. Houve então o confisco do material, o dc~-
mantelamcnto de barracos e algumas famílias desabrigadas"_:i.,
/ Atualmente a Vila Pelé constitui-se de 30 barracos, onde habi•
tam cerca de 160 pessoas, entre adultos e crianças, d as quais mai11
de 50% são mulatos e negros.34

32. "Subsídios Estatísticos li - Prefeitura do Município de São Bernardo


do Campo" - Serviço de Pesquisas e Estatísticas, 1973. p. 71.
33. Segundo Sucly Fcncrich, que nos franqueou a sua pesquisa permitindo
que a usasse para o presente trabalho. Queremos. aqui. agradecer a sun RC
ncrosidade.
34. Segundo estimativas de campo da pesquisadora Maria Alice Nossf.

166
Todos os barracos da favela foram numerados e não há mais ensaios são realizados no terreiro do seu barraco e é lá que ficam
permissão para a construção de novos. Se alguma família se muda, guardadas as roupas e instrumentos. Ele faz as faixas, os chapéus.
desmancha-se o barraco e não se pode construir outro no mesmo O grupo se apresenta com 28 a 40 elementos. Dentre estes, existem
lugar ou em local diferente. ~ ~ f~itura agora- está interferindo no os que são intimamente ligados ao grupo, presentes em todas as
~ o ~g~ª-1:_/!__favela. Nesta conjuntura dá-se a morte de Pelé. apresentações e aqueles de participação esporádica. De modo que
Morte trágica. Ele bebia demasiadamente. Um dia começou a gritar o grupo é composto de cerca de 50 elementos".
dentro do seu barraco, mas os moradores acharam que ele devi'1 · 9 elemento mágico-religioso 4!!e dá coesão ao grupo é a devo-
estar bêbedo. Ninguém o socorreu. Encontraram-no depois, estendi- ~a Nossa Senhora do Rosário, sua padroeira e madrinha, a qual,
do no chão, com o · pescoço entalado em uma lata de 20 litros. Ao segundo "depoimentos dos integrantes, tem realizado muitos mila-
que tudo indica, Pelé devia estar deitado num divã e daí deve ter gres".36
caído sobre a lata. Os moradores para fazerem o seu enterro tiveram Em primeiro lugar, a_songada serve para avivar a memória afn-
de apelar para a influência política que ele já tinha. ~ apesar dos elementos do catolicismo. Embora tênue, a volta da
memória africana serve para que esses negros se reencontrem como
O seu sucessor tem se esforçado por resolver alguns problemas
negros. se rearticulem e procurem manter-se unidos em torno desses
dos moradores da favela, mas não tem os elementos de liderança de
símbolos invocados. Por outro lado, estimula o desenvolvimento de
Pelé. Este era "líder nato-humano, inconsciente, não visava ser reco-
lideranças, o que motiva a conservação de sua dinâmica interna.
nhecido; se fosse necessário ceder s eu barraco oufurar um poço,d e-
Além da reminiscência africana, a congada serve ara estimular a
(ender a Vilã. ele estava à_ d~osição. l_Qrge luta ~ la liderança;- não
memória histórica. Ali, por exemplo, eles cantam:
p_odemos afirmar se no nível consciente, através de idéias criativas,
bom pa o, música, etc".35 "Treze de maio
Além disso, no interior da favela surgiram outras formas orga- ~ um dia muito bonito
nizacionais precárias num contexto de carência absoluta. Há comér- A congada se reúne
cio (três botecos que vendem bebidas), mas inexiste água encanada, Pra festejar São Benedito"
esgoto e luz elétrica. Não há escolas na favela, nem posto policial. Em outra parte:
Mas, mesmo nessas condições de miséria e isolamento - não há trans- lmperadó, Imperadô
portes que liguem os favelados diretamente ao centro - surge um Treze de Maio
grupo específico negro para dar coesão à comunidade favelada: A O seu dia já chegou."
Congada Nossa Senhora do Rosário. - - À função organizacional da congada &crescente-se a catártica. f
uma manifestação cultural afro-brasileira, embora com ele- através da con ada que os elementos da favela aliviam tensões e se
mentos de sincretismo católico acentuados. Na con ada o líder não CEfilp_ensaIIL.simbolicíimen~e. através _ o status <ll!._e ad uitenLdürante
é o da favela mas outro: org~de Oliveira. Mas a função da con- essas funções. Mesmo nas mais adversas situações o negro procura
gaifa na comunidade dos favelados, de participação e coesão gru- se reencontrar, associando-se a fim de não ser destruído por um sis-
pal, levou a que os elementos afro-brasileiros ficassem visíveis. tema que o relegou às últimas franjas da sociedade.
"Jorge de Oliveira é chamado pelos companheiros de respon-
sável (pelo grupo), dono, chefe, tratamentos condizentes com- a sua
Grupos de reivindicação e de prote~to
função. Para formar o grupo aproveitou seus conhecimentos e vivên-
cia de Campanha (Minas Gerais), onde nasceu. Ele arca com as Atingido pelo preconceito de cor, o negro urbano, especial-
despesas decorrentes das roupas, instrumentos do grupo, etc. Os mente da cidade de São Paulo, procura se organizar também em

35. Fenerich, Suely, -pesquisa citada. 36. Idem, idem.

168 169
grupos de reivindicação e de protesto. Se, depois do término da As-
sociação Cultural do Negro, houve um momento de retrocesso na
organização do negro paulistano, em que somente os clubes tradicio-
nais de lazer continuavam funcionando normalmente, em um mo-
'
do negro -
Outras entidades negras surgem ainda, algumas se renovam,
como o "Coimbra", que passa a organizar debates sobre o problema
.
ffa sua sede social.
Funda-se a Federação das Entid.fill_es__Afro-Brasileiras do Estado
mento posterior o negro urbano paulista começou a se reorganizar. de S~ 9 e aparece o jornal 'J_.o.megro'..'.. 1: a volta daimprensa
negra cuja ausência se fazia sentir profundamente. Posteriormente,

-
Vários fatores levam-no a procurar reagrupar-se e questionar a
situação em que se encontra. Os movimentos negros nos Estado~ surge o "Abertura", jornal negro não ligado a nenhuma entidade.
Unidos, como Black E!_<Jw_er, Panlerãs Negras, MuçuJmaQos_Negros
e muitos outros repercutem no Brasil. As grandes lutas e as lideran-
ças de um Malcom X, Luther King Jr., e outros, levam o negro pau- O Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial
lista, especialmente das grandes cidades (São Paulo São Cã rtos, Cam-
pinas, Juncliaí, etc.), a parar para refletir sobre a sua situação. A Essas organizações se articulam em uma série de atividades cul-
violência que se abateu sobre os seus líderes, quase todos eliminados turais, sociais e recreativas, tomando, de vez em quando, posições
fisicamente, e, em contrapartida, a violência negra em cidades como ' contra 'o preconceito de cor. A unificação desses movimentos_ e e~ti-
Chicago, Washington, Nova Iorque, e outras, repercutiu, também, dades deu-se a partir do dia 18 de junho de 1978, unificação essa
no painel de-análises desse2_ negros paulistas. consolidãclaquando da realização de um Ato Pú ico, em São Paulo,
Há a considerar, também, como elemento importante da defla- r~unindo mais de três mil negros nas escadarias âõ Teatro Munici-
gração desse processo de rearticulação do negro no Brasil, especial- pal. Os atos que contri u,ram para asua - convocação foram os
mente em São Paulo, o surto de liberta ão das antigas colônias afri- s eguintes: a morte do trabalhador negro Robson Silveira da Luz, no
canas. Profissionais li erais, estudantes, funcionários públicos- e, mês de maio, devido a torturas por policiais em uma delegacia de
também,- negros pobres começaram a assimi ar os movimentos de Guaianazes, em São Paulo; expulsão, no mês de maio, de quatro
libertação da Africa e se conscientizaram da necessidàde de se auto- atletas negros do time juvenil do Clube Regata Tietê; e o assassinato,
afirmar.em como ne ros. Várias entidades nasceram voltadas para a por um policial, no bairro da Lapa, de Nilton Lourenço, negro e
- África como uma nova pátria, em termos de diáspora negra. O CA- operário.
CUPRO, em São Paulo, que teve vida efêmera porém muitÓ ativa Para este ato público foram enviadas moções de apoio dos Es-
enquanto existiu, foi, talvez, o mais significativo grupo negro neste tados de Minas Gerais, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, Sergipe,
sentido. Outros surgiram como o CECAN - Centro de Estudos da Alagoas e de negros presidiários da Casa de Detenção de São Paulo.
Cultura e Arte Negra - o qual congrega não apenas intelectuais mas Esses acontecimentos calaram fundamente na comunidade negra.
muitos negros de baiKa renda. A Associação Cristã Beneficente, orga- Finalmente, as entidades J~ al_t\Jro-Latino-América,_ Grupo de Ar-
nização mais tradicional, se incorporou a esta onda renovadora. tistas Negros, Associação_ Iirasil ovemJ_ Q.rue_o de Atletãs "'Negros,
Outros grupos mais recentes: o Gru o Latinoamérica, Grupo de jornal "Abertura" e " Afro-latinoamirica", do Rio de Janeiro, lança-
Atletas Negros, Associa ão___,Çultural e Recreativa Brasil Jovem, ram uma carta convocatória para o ato público de protesto. O seu
Grupo de Artistas Negros e, finaimente, o IBEA - Insti~ to J!rasi- texto era muito claro: "Não podemos mais calar. A discriminação
Iéiro de ~Estudos Africanistas. Esta últiinaentidade tem um programa racial é um fato na sociedade brasileira, que barra o desenvolvimento
mai;-abrangente e político e propõe-se "organizar ou participar de do negro, destrói a sua alma e a sua capacidade de realização como
campanhas de valorização do Homem Negro. Lutar contra o pre- ser humano". Durante o ato foi criado o Movime11to Negro Unificado
conceito de cor, a perseguição racial em todas as suas manifestações, Contra a Discriminação Racial.
especialmente no mercado de trabalho. Apoiar todas as campanhas O documento convocatório concluía dizendo: "Não podemos
contra a discriminação de cor, nacionalidade, credo político e reli- mais aceitar as condições em que vive o homem negro, sendo discri-
gioso". minado da vida social do país. vivendo no desemprego, subemprego

170 17 1
e ~os fovelos. Não podemos mais consentir que o negro sofra perse- "além de solidarizar-se com todas as decisões tomadas pela maioria,
guições constantes da polícia sem dar uma resposta".
Na data marcada realizou-se o ato público. Mais de três mil
pessoas estavam em frente ao Teatro Municipal para ouvir os orado-
res. O aparato policial postou-se à distância. Todos protestaram contra
conhecer profundamente esses documentos".
A unidade básica organizativa do MNUCDR é o Centro de
Luta. Para se formar um Centro de Luta basta a presença
~úmero mínimo de três pessoas. Essas pessoas poderão 1tomar a
.__ --
de um

7
a dis riminação racial, as preterições dos negros nos empregos, mas,
especialmente, ccmtra ~epressão policial que _se abate brutalmente
iniciativa de se reunir e discutir o problema do negro brasileiro, ,
incluindo as experiências e problemas do ambiente em que vivem.
contra o negro.__ Esses centros de luta oderão ser_cri_ados nas es_colas de todos os
No dia 23 de julho, em conseqüência desse ato realizou-se em níveis fábricas candomblés escolas de samba, blocos carnavalescos,
Sã~ _Paulo, - ~ primeira Assembléia Nacional do M~vimento Negro aíÕxê?,75arrros'. favelas , a a~ados, in~sõ~s ~ ambiente_s de tra~lho.
U!!1f1~ado Contra a Discri_!!linação Racial, na qual foram dados os Devem reunir-se em locais escolhidos independe ntemente, "sem
1
primeiros passos para a confecção dos seus documentos básicos: Carta deixar no entanto de se comunicar com os demais e com as Coorde-
d~ J.>r!ncípiosJ_frogram~ de Ação e Estatutos. Esses projetos foram nadorias do seu Município e Estado."
discutidos e aprovados durante a segunda Assembléia Nacional reali- Todos os Centros de Luta deverão ajudar os demais na medida
z~da _no Rio de Janeiro, entre os dias ~ e tÕ de setembro, -nas depen- das suas possibilidades e os problemas financeiros de cada um deverão
denc1as do _!nstituto_de ~J>guisa das Culturas Negras (IPCN). Com- ser resolvidos independe ntemente, através de campanhas diversas.
p~re~er~m à Assembléia aproximadamente 300 pessoas que foram N$!D-1odas as entidades negras de São_ ~auto_ aderiram ao
d1stribu1das entre as unidades denominadas de Centros de Luta. Na MNUCDR. Muitas delas ficaram mesmo em pos1çao reticente, q uando
oportunidade estabeleceu-se o posicionamento do movimento frente não de reprovação, achando-o muito radical. Estes grupos têm uma
ao problema eleitoral, em vista das eleições que se aproximavam. Foi filosofia diferente e recon1zam a inte ração do negro através do
adotado aquilo que ficou qualificatJo como "voto racial", definido exemplo e da persuasão. Uma das entida es que não aderiu ao
como sendo o apoio, por parte dos negros, não s aos candidatos de movimento foi a AssÕciação dos Profissionais Liberais Negros de
~ le_e _traços negros, mas a todos aqueles q ue assumissem o com- São Paulo. Outras, mesmo integrando a Federação das Entidades
promisso de defender o programa do Movimento Unificado. Afro-brasileiras do Estado de São Paulo, não concordam com a filo-
Foi criada, também nessa Assembléia, a primeira Executiva Na- sofia de luta do Movimento Unificado.
cional do movimento, composta por membros dos Estados presentes, Por outro lado, a comunidade negra de baixa renda vai acei-
aventando-se que, para o futuro, ela seria composta de representan- tando a sua _filosoiia-:=~om_ ~ idade. E o Movimento procura se
tes de todos os Estados do país, por indicação dos Centros de Luta. organizar no sentido de auxiliar os negros pobres. Exemplo dessa
Em conseqüência dessa reunião, houve em Salvador, no dia 4 de atitude foi a organização de uma comissão de auxílio aos negros
novembro de 1978, a terceira Assembléia Nacional. que compõem a comuni~ do Cafundó. O Movimento Unificado
O MNUCDR, segundo os seus fundadores, é um movimento resolveu tomar a si a pr~ão clessa ~ uena comunidade ~gra.
reivindicativo, constituído por pessoas sem d istinção de sexo ou cãfundó, comunidade que surgiu em 1865 através da doação das
instrução, e que assumam voluntariamente o seu programa de luta. terras a duas escravas, vinha sendo assediada constantemente por
Tem como finalidades principais: "O combate ao racismo onde se grupos interessados em suas terras. Localizada a ~proximadamente
faça presente; a luta constante contra a discriminação e o precon- J 30 quilômetros de São Paulo, e 12 de Salto de P1rapora, Cafundó
1
ceito racial e· toda forma de opressão existente na sociedade brasi- está reduzido, agora, a apenas 72 pessoas que foram sendo despo-
leira, bem como a mobilização e organização da comunidade negra jadas das melhores terras e atualmente estão numa situação de misé-
no luta de emanei a ão olítica econômica_ e cultural." Qualquer ria absoluta. Conservando ainda o_ ~imbundo como língua usada em
pessoa que estiver de acordo com este Programa de Ação e com os determinados momentÕs, os moradores de Cafundó estão impossi-
l!statutos poderá ser membro do movimento, tendo a obrigação de, bilitados de trabalhar, po is há um clima de conflito com os grileiros :

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de lutar também pela sua sobrevivência econômica de formo indc
os mo radores da comunidade já mataram um deles, fato que aguçou
pendente, pois seus habitantes já não conseguem empregos nem como
1unsõcs e conflitos.
bóias-frias nas fazendas vizinhas".
Em vista disto, o Movimento Unificado resolveu criar uma Cafundó passou a ser, desse modo, um símbolo étnico que a
com~ <ie_ªp_oio à comunidaJe: ~~io material, jurídico e cultural. comunidade negra d SãoJaulo quer nreservar_ a qu-ª1.g~ preço,
Organizou, para isto, uma série de mutirões que consistem em mo6tltzand.oJ-ºPjnião_p_ú blica não a11~as negr<1, mas de tod~s aqu_e-
comandos de arrecadação de víveres e medicamentos para a popu- lcs que desej~ ajudar. Isto vem demonstrar uma nova arltculaçao
lação de Cafundó. Um desses mutirões que saiu . de São Paulo em 7 ideÕiógieádo negro em São Paulo ou, pelo menos, d~qu:la parce:a
de outubro de 1978 levou grande quantidade de roupas, calçados, mais conscientizada, articulação que cria drenas de solidariedade nao
utensílios, mantimentos e medicamentos. A comunidade do Cafundó apenas intragrupais, mas mesmo inter-regionais.
atualmente vive em miséria porque todas as terras férteis lhes foram
tomadas progressivamente, restando, para os seus atuais moradores,
a parte infestada de saúva.
Convém ressaltar que os negros de São Paulo, através do Mo-
vimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, estão vendo
nessa atitude não apenas a sua parte filantrópica, mas especialmente
a de afirmação étnica. Em um dos documentos no qual afirma sua
f posição de apoio aos negros do Cafundó, declara o Movimento: "t) I
Torna-se urgente a denúncia pública da ação de grileiros em grande
atividade na área, inclusive dentro da localidade, tendo provocado
' diversos atritos, com mortes já constatadas; 2) a presença urgente
de assistência médica em toda a área é inadiável; 3) o contato com
técnicos agrícolas, que os esclareça no que se refere ao uso de inse-
ticidas e pesticidas, deve ser breve; 4) a colaboração de toda a popu-
lação no sentido do auxílio mútuo em todos os sentidos (mantimentos,
sementes, medicamentos, materiais de construção, mutirões de auxílio
de mão-de-obra, etc.) é fato concreto".
E uma ponte entre os negros da Grande São Paulo, já organi-
zados, e uma comunidade negra marginalizada por um processo secular
de exploração.
Em outro documento no qual lançava a campanha de solidarie-
dade à comunidade negra de Cafundó, o Movimento Negro Unificado
Contra a Discriminação Racial dizia: " É necessário defender a sobre-
vivência da comunidade negra de Cafundó, pois ao defendê-la esta-
remos iniciando o trabalho prático de defesa do elemento_negro, pois
a experiencta e uma campanha em defesaae cãf~ dó deve ser
esten ida ~ todo o país, para todos. O MNUCDR assumiu esta
luta, e está lançando a campanha para levantamento de fundos, de
alimentos, instrumentos agrícolas, roupas ou calçados, assistência
médica, assistência agrícola, etc. para manter a sobrevivência de Ca-
fundó, e que tem como objetivo dire't o manter a posse da terra. Temos
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Partidos políticos

Fernando Henrique Cardoso

Uma das cantilenas mais antigas que se o uve a respeito dos


pa rtidos políticos no Brasil é a de que eles devem abrir-se à partici-
pação popular. Sem bases populares atuantes, diz-se, não há partidos
autênticos. Sem que os partidos existam regularmente fora dos períodos
e leitora is, dando margem à militância de base, existem apenas orga-
nizações de cúpula. São capazes de reunir nos Parlamentos um grupo
de pessoas que atuam em nome das massas, por procuração não
passada, mas não co nstituem verdadeiros partidos. Entretanto, apesar
das reiteradas manifestações neste sentido, nem hoje, nem no passado,
os partidos políticos abriram espa~os efetivos para a militância
popular.
Seria inadequado afirmar que todos os partidos, desde sempre,
constituíra m-se apenas em função de pequenos grupos que os con-
trolaram oligarquicamente. Houve, no passado, como ainda há hoje,
movimentos e partidos que, pelo menos parcialmente, buscaram orga-
nizar-se adotando modelos mais abertos de participação. Não obstante,
e por razões diferentes, nem mesmo os partidos populares ou os ideo-
lógicos foram capazes de cumprir razoavelmente um programa de
efetiva abertura dos órgãos internos de decisão a seus membros e,

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na maioria dos casos, nem sequer contaram com filiações numerosas
e atuantes na base. do_ P~P. mas, bem ou mal, ela existia fora dos períodos eleitorais e
resistiu a~ t~stc de sobreviver quando seus líderes foram expulsos
do solo fer11I em íavore~ e negócios que é o Estado. Mais ainda:
A mobilização político-partidária no passado q~ando o PSP foi constituído seu líder eslava fora do governo de
Sao Paulo e o partido fez-se à margem do grande partido nacional
e conservador, o PSD.
De fato, no passado - pelo menos em São Paulo - a mobili-
zação popular de apoio aos partidos fazia-se quase exclusivamente Entretanto, o PSP não foi propriamente um partido de massas
durante os períodos eleitorais. Não que os partidos deixassem de populares. O controle interno da máquina partidária sempre esteve
existir no período intereleitoral. Mas eles modificavam sua forma (como ~e rcst? era usual) nas mãos de um reduzido número de pes-
de funcionamento. Alguns, é certo, funcionaram no passado como soas cuia proieção partid:íria dependia de um jogo de lealdades ao
meras legendas, cujos proprietários faziam acordos de cessão transi- chefe, Adl_1cm_a~ de Barros. A própria militância era exercida por
tória de direitos a algum outro partido para que este dispusesse de quasc-func~ona_nos que se recrutavam pelo mesmo princípio de leal-
maior número de vagas nas listas de candidatos a deputados ou a 7
da~e, s nao ~1ret~mente ao chefe, aos chefetes locais ou às lideranças
reg1ona1s. Mais aJnda: a articulação política do PSP, no intervalo
vereadores. Tal foi o caso de alguns dos " partidos trabalhistas" que,
por motivos vários1 se foram constituindo para preencher o vazio do intercleitoral, incluía muito mais pessoas da baixa classe média (os
PTO qunndo este não conseguia organizar-se eficientemente ou para "compadres" d~s chefes), da nova burguesia (arábes, imigrantes
M.•1vir lhe de ormodilha, coletando votos que a ele se destinariam recentes, comerciantes e pequenos industriais que expandiram gran-
"" 11uo \'XINIIN11cm ci.scs rivais de ocasião. Mas, em geral, os grandes demente seus negócios durante a guerra, especuladores imobiliários)
p111t hlu11 pc1 ttlstlom mctomorfoscondo-sc cm organizações incrustadas e do lumpe11 urbano (bicheiros, policiais, proxenetas) do que da
110 11p111clho do Estudo para fazcr o intercâmbio típico do sistema ma:s_a trabalhadora. O partido, quando seus chefes ocupavam cargos
cllcntclftlliCO: tornavam-se gazuas para arrombar as portas do funcio- poht1c~s poder~sos. transformava-se em lobby, minguando as funções
nalismo público ou para favorecer soluções de política administrativa agrega11vas m~1ores. ~antinha em fogo brando as funções ideológi-
que pudessem contemplar o interesse de algum grupo privado que ~as ~u~ cump~ra, especialmente quanto a ser anticomunista e portador
dera apoio eleitoral (ou financeiro) ao partido. 1mplrc110 da ideologia dcsenvolvimcntista típica do capitalismo em
Foi através dessa mescla entre eleitoralismo - às vezes popu- sua fase selvagem de implantação, o "rouba mas faz" . Quando os
lista - e clientelismo estatal que os partidos políticos sem cunho chefes estavam no ostracismo, prometia-se a volta ao poder. Essa
ideológico sobreviveram. No caso paulista o mais forte deles foi o apenas num momento dependia da massa: nas eleições. Aí sim, de
Partido Social Progressista (PSP). Embora esse partido tivesse fun- velas _pandas.ª . nau _partidária derramava cornucópias de promessas
cionado depois de 1946 de forma tipicamente populista - um líder popul1sta-part1c1pa1ónas. As " bases" eram mobilizadas através dos
que controlava um setor do aparelho de Estado e que fazia a ligação comitês distritais, os quais haviam hibernado mas não desaparecido
clientelística entre a massa e o governo pelo intercâmbio de favores a_ntes das eleições. Despejado o voto, se a sorte tivesse bafejado a
- sua vida azarosa, seguindo os altos e baixos de seu discutido líder, f1g~ra de p~oa que dava os rumos partidários, parte das promessas
levou-o a organizar-se para sobreviver aos períodos de jejum do ser'.ª cumprida, com nomeações, contratos, honrarias. Os palácios,
governo. Não é esse o lugar adequado para descrever a organização ma1s do que as sedes partidárias, engordariam com os corredores
povoados por "cabos eleitornis", .compadres - enfim, o que se jul-
gav~ serem os "populares" - todos ansiosos por não perder a opor-
1. A esse respeito, bem como para algumas indicações sobre a história dos tunidade de plantar seus pés no solo firme da repartição pública, do
partidos em São Paulo, ver F. H. CARDOSO, " Partidos e deputados em Süo banco ou da agência econômica estatal.
Paulo (o voto e a representação política)", in LAMOUNIER, B. e CARDO-
O outro grande partido popular a nível nacional, o PTB, não
SO, F. H., Os partidos e as eleições no Brasil, CEBRAP/Pm: o Torro, 1975.
chegou a ser forte no Estado de São Paulo. Niio obstant~ controlava
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parte significativa das agências públicas federais (os Institutos de de 1954, quando o getulismo e a esquerda passaram a atuar em
Previdência, a Delegacia Regional do Trabalho, às vezes partes dos conjunto no plano sindical.
Correios e Telégrafos ou da Caixa Econômica Federal etc.) e fun- Fora desses partidos2 que recebiam adesões populares nas elei-
cionava em moldes semelhantes aos do PSP, mas empobrecidos. Em- ções, atuavam no mesmo campo algumas lideranças populistas e os
pobrecidos num duplo sentido: porque sua cúpula estadual era menos partidos ideológicos. No caso das primeiras, à parte Adhemar de
poderosa (compunha-se de de putados federais e em poucos momen- Barros que exerceu seu poder manipulando, ao mesmo tempo, a má-
tos de algum ministro) e porque sua organização como partido-/obby quina partidária e o contato direto com as massas (as quais, como
era menos difere nciada e menos persistente. A relação entre massa vimos, no caso do PSP, não eram propriamente proletárias), a grande
e partido, fora das eleições, no caso do PTB, e ncolhia-se até ao limite liderança popular de São Paulo foi exercida por Jâ nio da Silva Qua-
do clientelismo pessoal de meia dúzia de deputados. Primus inter dros. Este, entretanto, quando precisou dos partidos para sua ascen-
pares, reinava D. !vete Vargas, portadora de nome prestigioso, de são ao governo do Estado e, depois, à Presidência, ao invés de criar
capacidade elevada de envolvimento pessoal e, acima de tudo, de força um núcleo próprio e organizado, utilizou-se das legendas (e máqui-
para influir nas nomeações decisivas para o controle dos Institutos nas) disponíveis. Vereador eleito pelo PDC, chegou à Prefeitura em
de Previdência (dos bancários, dos transportadores de carga, dos : 953 inscrito por essa mesma legenda mas apoiado por uma ampla
marítimos, dos industriários, dos comerciários, e tc.) e da Delegacia coligação de pequenos e aparentemente inexpressivos grupos de
Regional do Trabalho. Ou seja, a ligação fundamental para o con- esquerda, ressaltando entre estes o Partido Socialista.
trole da "máquina" era com o Ministé rio do· Trabalho e com a Pre- Seria ilusório, entretanto, pensar que Jânio se apoiou nestes
sidência da República. Mas neste caso a máquina era quase só o a pa- partidos e grupos para obter sustentação de massa. O fenômeno
relho estatal; nem sequer os comi tês partidários esquálidos, a la PSP, <leu-se ao revés : as pequenas organizações correram ávidas para o
persistiam fora das eleições. Havia a sede regional do pa rtido e havia seio das massas na esteira do prestígio janista. Mesmo assim, os
a Delegacia Regional do Trabalho que se ente ndia com a cúpula quadros de mobilização popular foram recrutados entre militantes
sindical. Esta, sim, desenvolvia contatos com a massa operária, não de postura ideológica. E é inegável que, comparada à base popular
tanto na qualidade de petebista, mas de elo importante entre o Estado de apoio de Adhemar de Barros, composta mais pela plebe urbana,
e o interesse popular, principalmente nas épocas de reajuste sala rial. Jânio Quadros penetrava na classe operária. Mas o terreno fértil para
De toda maneira, embora menos estável como partido· que o que o povo sentisse que Jânio, se não o representava pelo menos
PSP, o PTB "cheirava mais a povo", graças às funções de elo (e de expressava um anseio da base, foi a descoberta da temática urbana
dique muitas vezes) e ntre o Estado e o interesse operário e popular pelo candidato. Jânio, na época, simbolizou o reconhecimento, por
que o partido exercia na época dos dissídios coletivos e das greves. parte dos que jogavam a grande cena política, de que além da reivin-
Se a isso somarmos que a legenda abrigou, em 1946, a candidatura
dicação operária (que bem ou mal o PC e o PTB expressavam) exis-
vitoriosa de Yargas ao Senado por São Paulo e sua também vito-
tia uma ampla reivindicação da periferia urba na. Eram as vilas, sem
riosa candidatura à Presidência em 1950, torna-se difícil negar o
água, sem esgoto, sem calçamentos, sem transportes >adequados que
qualificativo de popular ao PTB. Mas é preciso qualificar melhor:
irrompiam na política. Duas décadas de desenvolvimento urbano-
o partido recebia apoio popular durante as eleições; não era, contudo,
industrial, acelerado na época da guerra, com fortes correntes de
controlado popularmente. Antes pelo contrário, a máquina peteb_ista,
migração interna, trouxeram para São Paulo centenas de milhares
como se viu acima, superpunha-se à do Estado; eram políticos pro-
de nordestinos, mineiros. paulistas do interior que, mesmo antes de
fissionais, funcionários da Previdência Social e do Ministério· do
reivindicarem no sindicato (ou melhor, de ve rem suas demandas
Trabalho, sindicalistas mais ou menos amestrados que compunham
os quadros do PTB. Alguns deles se tornaram menos dóceis a partir
de t 953 - período de grandes greves - depois que o Partido Co- 2. Deixo de referir-me aqui à UDN, ao PSD e aos demais partidos con-
munista e o janismo desafiavam o peleguismo e especialmente depois servadores nos quais a militância operária e popular era insignificante.

180 181
clientelisticamente atendidas pelos médicos, dentistas e advogados dos os conhecidos líderes nacionais de extração dita "pequeno-burgue-
sindicatos), necessitavam como moradores de alguma atenção. Em 110", especialmente militar, contavam com operários e, de fato, pelo
reivindicações aquém mesmo da luta pela cidadania (pelos direitos menos até 1964, o PC exerceu influência sobre importantes sindi-
políticos e pela deliberação na coisa pública) exprimiam uma enorme catos, como os têxteis, os de alimentação, os gráficos e os metalúr-
ansiedade por melhores condições de sobrevivência. gicos, embora fosse minoritário na cúpula destes últ imos. Mas não
O janismo foi a resposta política a essa reivindicação elemen- se pode dizer que o partido fosse aberto às massas, mesmo porque
tar. Não precisou para tanto articular ideológica e politicamente sua ilegalização em 1947 tornara impossível este processo. O Par-
recursos muito mais do que também elementares: a palavra candente tido Socialista exercia em muito menor escala influência sobre o ope-
do líder que fundia com sua sintaxe rebuscada e seu sotaque não rariado e as massas. Seus quadros quiçá fossem ainda mais "peque-
paulista uma visão moralista (a vassoura como símbolo para varrer no-burgueses" do que seriam os do PC, embora pudesse exibir maior
os ratos da corrupção) com uma prática clientelística. A presença democratização interna nos processos decisórios. Os demais grupa-
física do líder na periferia, sua figura bizarra, entre austera, próxima mentos de esquerda não exerciam influência efetiva na sociedade.
e, ao mesmo tempo, ríspida e mandona, bem como o recrutamento Importante corte histórico ocorreu no país durante o governo Jus-
de figuras de prestígio local nas vilas periféricas para o séquito de celino Kubitschek. Mudou o caráter e o ritmo da industrialização:
seguidores, fizeram o "milagre" da explosão eleitoral. o investimento externo maciço no setor industrial e a internacionali-
Eleito prefeito em 1953, fânio Quadros cumpriu: asfaltou pre- zação da economia proporcionaram uma transformação de monta na
cariamente (o "asfalto J.Q." que apenas recobria a própria terra das vida urbano-industrial. A partir daí deu-se um fenômeno até hoje
vias principais de acesso à periferia), mas asfaltou. Colocou bicas de pouco analisado: deslocou-se o eixo político de comportamento das
água e, graças ao calçamento, permitiu que a malha urbana dos trans- massas; se antes o palco das lutas fora, por um lado, a velha fábrica
portes alcançasse as vilas. de propriedade da "burguesia nacional" (da Lapa, da Mooca, do
Daí para frente, Jânio seria o candidato da "Vila Maria", região Tatuapé e do Brás, as mesmas nas quais havia implantação tradicional
periférica símbolo de todo esse processo. de esquerda e do PTB) e por outro as vilas da periferia onde o janis•
Mas a escalada política do personagem fez-se sem que a orga- mo imperava/ a partir dos fins de 50 e especialmente no início dos
nização partidária se tornasse mais complexa em seu relacionamento anos 60, foi nas empresas estatais que se jogou o peso da reivindica-
com a massa. Governador com apoio do PTN e do PSB e presidente ção política que afetava as massas. Às grandes greves de 1953 e de
com apoio da UDN e do PDC, depois de breve mandato como depu- 1957 antecederam as campanhas eleitorais e deram-se no terreno da
tado federal pelo PTB do Paraná, povo e partidos conviviam sob a contradição imediata entre os trabalhadores e o patronato: o salário,
liderança de Jânio mas não se juntavam. Só na cúspide do sistema, os movimentos urbanos de protesto, como por exemplo o que ocorreu
o líder populista unia o que a vida política separava. O PTB e o PC em 1954 por ocasião do suicídio de Vargas, e os que se deram no
com seus sindicatos e com votação na :.írea velha do operariado pau- quadro das lutas anti-imperialistas (anti-americanas) também se desen-
lista (a Lapa, o Brás, o Tatuapé, a Mooca etc.) mantinham o controle rolaram no palco urbano tradicional da cidadania: no centro de São
de alguns canais de participação eleitoral e popular. As sociedades Paulo. Jânio Quadros, como vimos, expressou outra realidade, mais
de amigos de bairro, enroscadas na chama do janismo, crepitavam recente. Pois bem, as grandes greves dos anos sessenta, as da aliança
em reivindicações de fáci l atendimento e de pouca estrutura~ão. "pelego-comunista", que produziram _calafrios na classe média e
Até o período de Juscelino Kubitschek (1956- 1960) era esse, no empresariado, deixaram para segundo plano a indústria têxtil, as
grosso modo, o panorama da relação entre partidos e massas popu-
lares cm São Paulo. Dentre os partidos ideológicos, apenas o PC,
nos setores já mencionados, exercia alguma influência de massa. Esta 3. Sem que nos esqueçamos do getulismo. que era um fenômeno abrangcn•
te e. à moda da convivência das várias religiões populares, inclusive a um•
se estendia para incorporar profissionais li berais, jornalistas, profes- banda com o ca tolicismo tradicional, também convivia com os demais ismos,
sores e intelectuais. Seus quadros dirigentes em São Paulo, à parte inclusive com o comunismo.

182 183
7 metalurgias, a velha industrialização. Foram as docas , as refinarias
e.la Petrobrás, as empresas de transpo rtes marítimos e ferroviários
que c repitaram cm reivindicações. Simultaneamente ao grande cres-
cimento industrial do capi tal estrangeiro (no ABCD, em Osasco, nos
eixos da estrada Rio-São Paulo e da Siio Paulo-Santos) crescera tam-
bém, por mo tivos que não cabe discutir neste capítulo, um forte
setor estatal na economia No entretcmpo, 1ânio Quadros renunciara
à Presidência e sentira o quanto custa uma saudade: suas vilas não
foram capazes de responder ao gesto estudadamentc dramático e
seu ministro do Trabalho, Castro Neves, que mal controlava os seto-
res sindicais janistas (de alguma expressão, mas ainda assim incapa-
zes de, se con trapor neste te rreno ao PTB e ao PC) soube de segunda
mão que o Presidente renunciara . Não mobilizou nada e talvez não
tivesse mesmo condições para tanto. Na nova o rdem política o PTB
subiu,.com João Goulart, à Presidência. Daí para frente, as reivindi-
cações operárias - embora legítimas e com apoio popular - não
se confrontava m , como o fize ra m nos anos 50, com a política e a
re pressão patrona l direta. Da vam-se primeiro no círculo privilegiado
do setor público da economia. contando em geral com a passividade,
senão com a conivência politicamente atemorizada dos d irigentes do
seto r produtivo estata l e com a agressividade protegida dos pelegos
e do sind icalismo político a ninhadc no Estado.
Nas novas condições, o PT B crescia politicamente (não só e m
termos eleitorais) . o PC parasitava esse crescimento e o janismo,
de rrotado nas eleições para o governo d e São Paulo e m 1962, pro-
curava fazer o caminho de volta ao poder, indo a Canossa. Mas. no
reencontro com as vilas, a astúcia de Jâ nio deve ter percebido q ue
elas começavam a mudar. A urbanização alcançava as vilas; as expec-
tativas começavam a tornar-se mais exigentes; a "massa informe"
prenunciava em seu comportamento mais diferenc iado a futura pre-
sença de "comunidades d e base" e de formas associativas mais autô-
nomas e reivindicantes. O mesmo fenômeno que engolfara a base
de sustentação popular do PC e, em menor escala. do PTB qua ndo
os bairros tradicionais da industrialização p ré-guerra tornaram-se
pequeno-burgueses e o proletariado que nele sobreviveu mingou p ro-
porcionalmente no oceano do novo proletariado, ocorria agora com
as vila-maria do mundão periférico de São Paulo. Eram o ABCD, o
fundão d a zona Leste, a zona Sul, de O sasco a Santo Amaro, que
engoliam crescentemente a nova camada de tra balhadores. E essa, nem
o PTB, nem Adhemar, nem o janismo tocaram a fundo. As eleições

184
governamentais de 1962 mostram isso: encurralado, o janismo per- bista e, em maior escala, a comunista, deu-se pelo controle do movi-
deu para o PSP, embora por pouca diferença. Espremido entre os mento de massas no setor estatal da economia, o qual recrutava, em
dois movimentos, o petebismo que continuava fraco eleitoralmente geral, um operariado menos marginalizado quanto às oportunidades
(embora crescesse e ntre 1958 e 1962) se robustece politicamente no de vida urbana e mesmo q'uanto aos salários. Por fim, como a indus-
manejo dos sindica tos e das greves, só que dessa vez, como disse trialização não estancou nem o crescimento da Grande São Paulo
acima, operando com preferência no setor estatal da economia, do declinou, a grande massa da " industrialização das multinacionais"
qual se irradiavam os movimentos para alcançar, às vezes, o setor continuou em expansão e não foi praticamente tocada (senão super-
privado. As vantagens alcançadas para os trabalhadores estatais atin- ficialmente em 1968) até que as novas formas de mobilização popular,
giam, contudo, o conjunto dos trabalhadores e indignavam o conjunto das comunidades eclesiais de base até às greves de abril de 1978
do empresariado, embora os operários do setor privado estivessem dos metalúrgicos e outras categorias, colocaram-na, de novo, na cena
relativamente à margem da mobilização popular. política. Nunca, entretanto, nem no a uge dos momentos anteriores de
Em suma, os setores de massa que foram mobilizados pelos mobilização, pode-se dizer que os partidos se tenham aberto à parti-
partidos criados no regime da Constituição de 1946 variaram pro- cipação e ao controle das massas. Mais tarde, nem sequer a partici-
fundamente e mudaram no decurso do tempo. O PTB e o PC, bem pação simbólica através das lideranças carismáticas ou a momen-
como ma_is. o_casionalmente o PTN, o PST e demais siglas populares, tânea, nas greves e eleições, foi encorajada.
atuaram inicialmente sobre um núcleo mais ou menos estável de tra- Com efeito, depois da queda do governo Goulart em 1964, os
balhadores da velha industrialização que preexistiu à Segunda Gran- novos donos do poder exerceram a fundo a pressão desmobilizadora.
de Guerra; o PSP ligou na reivindicação pela ascensão social, pelo Para tanto, começaram por intervir nos sindicatos e por obrigar ao
avanço econômico e pelo prestígio político, tanto os novos empre- exílio ou à perda de direitos políticos a maior parte dos deputados
sários quanto, em sentido estrito, a pequena burguesia mercantil e e líderes que exerciam influência sobre as massas. Se o PSP se man-
artesanal-fabril que prosperara a partir da época da guerra; somou teve, com a adesão de Adhemar de Barros ao golpe militar, isso
também a reivindicação de camadas de tipo lumpen e amealhou votos reforça apenas o que a ntes dissemos: que esse partido não mobilizava
da plebe não necessariamente operária, desde os setores da baixa classe propriamente as camadas populares, as quais não apoiaram o golpe
média de ocupações mais instáveis ou que se infiltram nas fímbrias e cujos partidos foram dizimados de imediato. Contudo, nem essa
do aparelho do Estado, até mesmo os trabalhadores. 4 O janismo liderança altamente comprometida com a restauração reacionária do
penetrou mais do que qualquer outro movimento nas massas urba nas militarismo triunfante escapou: se Adhemar não caiu junto com
que hoje se diriam ma rginalizadas em termos de condições de vida, Coulart e Jânio, apenas postergou seu declínio político; os pruridos
embora compostas esmagadoramente por operários, mas já de uma de autonomia de um líder com força própria, mesmo dentro dos qua-
nova industrialização. Depois do declínio janista a recuperação pete- d ros do regime, terminaram por ser incômodos e a guilhotina da
1111spensão de direitos cortou álgida a cabeça do último populista que
,mbrevive ra à virada da página da história. ·
4. Refiro-me aqui ao PSP na cid ade de São Pau lo. No interior (e o par-
tido foi forte eleitoralmente no inter ior) o processo é mais complexo. Adhe-
mar de Barros, como governador eleito, voltou a exercer o poder estadual Os partidos no regime autoritário
cm 1946, quando as prefeituras ainda estavam sob controle de prefeitos de-
signados. Ato contínuo, nomeou prefeitos seus, os quais presidiram as elei-
ções prescritas pela Constituição. Dessa forma o PSP conseguiu controlar, Com o AI 2 nas mãos, depois da crise provocada pela vitória do
desde seus primórdios, parle significativa do sistema tradicional de domina- 1111111(0 regime da aliança PSD-PTB no Rio e em Minas, em outubro
ção política, que noutros estados foi controlada pelo PSD e, em proporção lh 1%5, o governo Castello Branco dissolveu os partidos e permitiu
bem menor, pela UDN. Neste caso, o caciquismo local e o clientelismo, mais
• 11111stituição de apenas dois novos agrupamentos que nem sequer
do que a presença de massas reivindicantes, asseguravam o prestígio político
do ademarismo no interior de São Paulo. 11111lr1lum chamar-se partidos, a Aliança Renovadora Nacional e o Mo-

186 187
vimento Democrático Brasileiro. Os testemunhos dos deputados e póblica, com seu mais recente segmento, o de um setor tecnocrático
senadores que se dispuseram a assinar os documentos instituidores Insolente e pedante, substituía a legitimidade das eleições por sondo-
do MDB dizem que não foi fácil encontrar, num Congresso castrado l(cns de opinião e planos que, à guisa de salvar o país e a rrancar o
por cassações de mandatos populares e no contexto da falta de garan- po vo do subdesenvolvimento, criavam as condições para uma expa n-
tias legais, número suficiente de parlamentares para cumprir as exi- Nfio sem precedentes da acumulação capitalista e davam às empresas
gências regulamentares para a formação do partido de oposição. E mullinacionais e às estatais posição preeminente neste processo.
outra via não foi aberta para a criação dos partidos. O regime auto- No MDB acotovelavam-se lidera nças que se salvaram dos nau-
ritário abominava a fragmentação partidária anterior e mais ainda frágios sucessivos causados pelas degolas, que se acentuaram depois
tinha horror à mobilização popular, mesmo que reduzida às formas do AI 5 (dez. de 1968). Ex-pessedistas, ex-pedecistas, ex-petenistas,
precaríssimas que o sistema tradicional de partidos permitia. ex-socialistas e quase nada do ex-PTB (pois os deputados foram cas-
Nas novas condições seria difícil imaginar que o MDB (para ijUdos) para não falar do PC, arrumaram-se como puderam no MDB.
não falar na ARENA, que seguiu o curso macio do recrutamento A situação de desinteresse popular pelo MDB durou a té 1974.
entre funcionários do Estado e nos grupos de sustentação imediata No período do governo Médici, quando a importância do Parlamen-
do poder a nível local , regional e federal) pudesse constituir-se em to e dos partidos baixou ao máximo (e as cassações cessaram), foi-
São Paulo como um partido mobilizador. As e leições de 1966, ganhas se reconstituindo um sentimento oposicionista que terminou por tan-
pela ARENA, deram ao MDB, para a Câmara Federal, cerca de genciar o sistema partidário. A resistência cie alguns líderes (dois
1.200.000 votos e ao partido do governo 200.000 votos de vantagem. deles, de influência nacional, mas paulistas: Pedroso 1101tu e Ulysses
Nas eleições de 1970 a queda da votação foi ainda maior: o governo Guimarães) e a presença de uma nova geração de polrt lcos começa-
recebeu 2.600.000 votos e a oposição 900.000. Os votos nulos e ra m a argamassar, de novo, um canal partidário. Nu~ eleições de
brancos, somados, passaram de 1.500.000 para 1.800.000.5 Como ima- 1974 o eleitorado encontrou um símbolo para expres~111 i. u repúdio
ginar, neste contexto, que o MDB fosse popular, em qualquer sentido? 110 governo: a votação do MDB no Estado de São Paulo wubiu verti•
Descabido se torna. por isso mesmo, averiguar mais a fundo como ginosamente para 3.400.000 sufrágios enquanto a ARENA decrescia
se dava a relação e ntre massa e partido no intervalo intereleitoral: dos 2.600.000 para 2.000.000 de votos. Os votos nulot1 e brancos
ela tendia a ser inexistente. Mas impopular não era o partido; era decresciam de 300.000 sufrágios. Nesta onda da oposlçílo vitoriosa,
o regime que criara o bipartidarismo, pois tampouco a ARENA, vito- dos 24 deputados federais eleitos, 14 não tiveram expcrí~ncia parti-
riosa, tivera condições de existir como partido. A sustentação do dária anterior; dos 32 deputados estaduais, 21 nunca forom de o utro
poder era feita diretamente pelas Forças Armadas. A burocracia partido.
A esse revigoramento de um partido que nasceu nos laborató-
rios do autoritarismo correspondeu também uma forte sacudida na
5. Tomando-se em conta os votos para deputados fc.derais apenas na Capital, estrutura partidária. Essa, no caso paul ista, sofreu o impacto de uma
têm-se os seguintes resultados: disputa interna que foi ganha pelo ex-prefeito emedebista de Campi-
CÂMARA FEDERAL - S. PAULO (CAPITAL)
nas, e ex-deputado estadual, Orestes Quercia. Este, dispondo-se a
ser candidato ao Senado por São Paulo e não contando com apoio
do cúpula partidária, criou ou reestruturou centenas de diretórios em
ARENA MDB BRANCOS NULOS TOTAL cidades do interior e, em menor escala, em distritos da capital.
Apesar do impacto causado pela luta dentro do MDB entre cor-
re ntes que para se afirmarem tiveram que buscar fora da cúpula par-
1970 862.072 360.076 444.694 330.596 1.997.438
1974 603.549 1.452.745 408.717 195.285 2.660.296 tidária os recursos de poder, seria enganoso imaginar que tivessem
1978 616.995 2.023.929 418.100 300.143 3.359.167 sido setores das camadas populares que interferiram no jogo interno
do partido. A mobilização anterior à Convenção se deu a partir do

188 189
uso int:nsivo_da má~uin~ admi?ist~ativa da Prefeitura de Campinas
matismo do interesse das oligarquias internas prevaleça sempre como
e ª. articulaçao, no mter1or, foi feita em moldes próximos aos do
c ritério final de decisão.
ant~go _P_SP: um misto de aliciamento pessoal, sem grandes atrativos
De fato, para que a última hipótese ocorresse, seria preciso que
car1smahcos mas com boa dose de envolvimento emocional, e de re-
cursos de infra-estrutura obtidos através da máquina administrativa os diretórios todos fossem uma espécie de núcleos fantasmas que
e de recursos financeiros pessoais. O trabalho de criação de uma votassem nas convenções só para sancionar e, portanto, que houvesse
"comissão pro~isória" que ~~tecede à eleição do diretório municipal um Chefe indiscutível do partido ou um acordo persistente entre
requer conhecimento espec1f1co das lideranças locais, tato político chefes. A maioria dos diretórios, pelo menos na Capital, funciona,
~ alguma profissionalização, isto é, pessoas trabalhando em tempo de fato, como núcleos fantasmas. Alguns cabos eleitorais controlam
1~~e~ral, dispondo de recursos mínimos de mobilidade (automóvel, vários diretórios cujos cargos são preenchidos por amigos e familia-
d1anas para pagar hotéis) e - fator decisivo - lealdade aos chefes res e não têm sequer um local fixo de funcionamento. Entretanto, há
partidários que estiverem reorganizando a "máquina". Constituído • alguns diretórios que funcionam regularmente, mesmo no período
o diretório, a mesma assembléia que o elege indica os delegados à inter-eleições. Existem mecanismos fluidos de associação inter-
Convenção Regional do partido, os quais elegem o Diretório Regional, diretórios, um Conselho dos Diretórios da Capital, que, embora
que escolhe dentre seus membros a Executiva Regional. Esta exerce sem existência legal, é capaz de fazer pressões sobre a Executiva
função decisiva tanto na indicação das listas de candidatos do partido Regional. Dele participaram, em ocasiões várias, não apenas repre-
(às Câmaras, ao Senado e, na eventualidade, ao Governo) quanto na sentantes dos diretórios de maior conotação política, como também
indicação de futuras comissões provisórias e no reconhecimento dos alguns representantes do setor mais ligado à mecânica dos cabos
diretórios. Numa palavra : controla a máquina do partido. eleitorais. É a isso que, na linguagem interna do partido, os interes-
Apesar dos múltiplos controles que o mecanismo acima descrito sado~ chamam de "base partidária". Como, por outro lado, tanto os
~ferece aos líderes partidários, convém esclarecer que o MDB pau- diretórios-fantasmas como os diretórios mais politizados obedecem a
lista, neste aspecto, é mais aberto do que jamais foram os partidos deputados e líderes com orientações não coincidentes, sempre existe
populares do passado. O recrutamento dos quadros que militam nos ulguma luta interna e há necessidade da produção de acordos, mui-
diretórios fez-se incorporando três tipos diversos de pessoas: políticos tos dos quais não satisfazem a todas as partes, o que tem levado a
locais de inspiração ou de ascendência popular que se ligaram aos disputas nas convenções. Em geral a disputa se dá entre um "cha-
senadores ou aos poucos deputados que, regionalmente, controlaram pão", que acomodou os interesses, distribuindo o bolo segundo as
os diretórios; cabos eleitorais mais ou menos profissionalizados (às áreas de influência, e o setor minoritário rebelde que não se confor-
vezes por intermédio do sistema tradicional de troca de favores ou mou com a parte que lhe corresponderia ou não foi aquinhoado. Nos
de empregos nas Prefeituras controladas pelo M DB) que, especia l- quadros da casuística legislação eleitoral vigente as maiorias levam
mente na Grande São Paulo, controlam diretórios; militantes com vantagens definitivas sobre as minorias partidárias, salvo para as in-
orientação ideológica definida que, tendo aceito o MDB como o es- dicações às eleições majoritárias, caso em que existem as sublegen-
tuário necessário para as oposições, militam em um contado núme- das e para a e leição dos delegados, quando cada 20% de votos obti-
ro de diretórios, quase sempre escudados no prestígio de _algum par- dos por uma chapa co11corrente assegura-lhe a representação pro-
lamentar. Essa variedade de forças atuando internamente, somada porcional.6
ao fato de que o MDB abrigou lideranças prestigiosas mas desgarra-
das tanto das bases partidá rias quanto dos partidos de origem, obri- 6. Este capítulo foi escrito antes do processo de designação de delegados e
gou o partido a funcionar num sistema de pressões internas e exter- dos diretórios distritais que ocorreu em agosto de 1979. Neste último, o peso
nas que deu à vida partidária certa dinâmica que, se não é, como dos setores ideológicos do MDB cresceu enormemente na Capital, em detri-
não é, verdadeiramente democrática, impede, pelo menos, que o auto- mento dos cabos eleitorais fisiológicos. Somando-se as várias correntes com
orientação política oposicionista e popular ideológica mais definida, elas ui-
Nas decisões relativas ao preenchimento de listas de candida- ndrroda para a inclusão de candidatos de expressão regional na
tos a disputa interna chega a ser acirrada, especialmente no que 1 hnpa (pois eles interferiam nas chances eleitorais de alguns dos
diz respeito às vagas para candidatos de áreas do interior. Dificil- llllcres do partido) e para abrir a possibilidade de mais de um can-
mente, nestes casos, pode-se imaginar que o mecanismo de seleção didato ao Senado, mas houve aceitação ampla dos candidatos de
obedeça a critérios democráticos. Ao contrário, a força relativa dos posição político-ideológica mais definida, que não afetavam as bases
candidatos sobre a Executiva Regional é decisiva para estabelecer os locais dos chefes do partido. O candidato alternativo ao Senado, que
cortes e as admissões. Como eleitoralmente o sistema de apoio polí- não dispunha da máquina partidária, conseguiu 28 % dos votos dos
tico se dá pelas "dobradinhas" (ou seja, o deputado federal faz prose- delegados à Convenção. Note-se que essa Convenção se reuniu sob o
litismo e imprime propaganda em conjunto com vários estaduais e constrangimento do Pacote de Abril de 1977, que prorrogou os
vice-versa, por área do estado) a aceitação de candidatos é feita em mandatos dos diretórios distritais e municipais, de modo que difi-
grande parte em função do interesse de composição eleitoral dos cultou a renovação partidária que, presumivelmente, jogaria em fa-
que têm influência na direção partidária. vor de maior democratização interna.
e bom lembrar, entretanto, que essa situação apresentou-se as- As indicações acima não são de molde a encorajar a interpre-
sim somente depois de 1974, posto que anteriormente havia mais toção de que exista uma relação direta entre partido e eleitores e do
vagas do que candidatos, dado o desinteresse já referido pelas elei- controle desses sobre aquele. Quando se analisa o número de elei-
ções e as poucas chances do MDB. A partir dessa data passou a haver tores por distrito eleitoral filiados ao MDB e se computa o número
maior disputa interna por postos eletivos; também houve tanto um de militantes que votou nas ele ições internas do partido ou quando
acirramento na luta entre correntes partidárias (pois as eleições de se faz a compa ração deles com o total de votantes no MDB, verifi-
1974 reforçaram os setores politizados dos partidos e aumentaram ca-se que, se o MDB recebe o apoio eleitoral das massas, ele não
o número dos que, independentemente de sua posição de controle chega a ser um "partido de massa" (Ver tabela da pág. 204).
interno, possuem força eleitoral própria ou prestígio político a nível Ao contrário, o MDB continua sendo um partido de quadros (de
estadual e nacional) quanto partes importantes das oposições que até poucos quadros) e de lide ranças populares. Mais ainda, os resulta-
então não participavam da vida partidária passaram a influir sobre dos eleitorais de 1978 criaram uma situação peculiar: com contadas
o MDB. exceções, os líderes partidários influentes a nível de votos e de pres-
Por ocasião da seleção dos candidatos em 1978, viu-se uma mo- 1fgio político não dispõem de controle da máquina. Os votos parti-
bilização de delegados para apoiar pessoas que, embora sem enrai- d6rios se distribuem e ntre prefeitos, cabos eleitorais relativamente
zamento no MDB, possuíam capacidade de sensibilizar setores signi- Independentes, deputados vários, diretórios de vocação política defi-
ficativos das oposições (estudantes, sindicalistas, jornalistas, classe nido e variável etc.7
média liberal). Houve uma abertura considerável para esse tipo de Noutros termos, a falta de relação e ntre o partido e seu eleito-
candidatos por parte de setores dirigentes do partido. A disputa foi rndo e entre aqueles que dispõem de votos e de prestígio político e
n• buses partidárias leva o MDB a um sistema complexo de compo-
• li,:ocs internas que, se é suficientemente forte para impedir que se
trapassam os 50% dos delegados. Entretanto, não se alinham nas disputas in- wnsolidem " donos do partido", como o foram alguns líderes do
ternas num mesmo bloco. Quanto à formação da nova comissão executiva do
partido houve acordo do qual resultou um "Chapão", contem'p lando os dois
p1m11do mencionados no início deste capítulo, não chega a assegu-
grupos que disputavam o diretório em partes iguais (cada um indicou 22 r11r uma relação interna estavelmente democrática.
membros do Diretório Regional) e dandl, ao grupo que perdeu a Presidên- Nestas circunstâneias a mobilização de massas (que se tem dado
cia vantagem numérica na Executiva. Houve, por outro lado, a apresentação 1111n•r que exclusivamente nos períodos eleitorais e sujeita ao cons-
de chapas dissidentes: uma, dita "das bases", que incorporou os setores con•
siderados "adesistas" e fisiológicos; outra que juntou a oposição "à csqucr•
da", composta por setores autodesignados como favoráveis à "unidade po-
pular".
'f Ve1j11,sc a nota anterior sobre a situação posterior a 1978.

192 193
trangimento do regime autoritário) repousa em mecanismos
da máquina partidária. Com efeito, assim como o MDB em seu pro•
cesso decisório se "abre" a correntes de opinião externas e à influên-
cia de líderes emedebistas que não controlam partes importantes da
máquina (e por isso mesmo é mais democrático do que os partidos
de quadros baseados estritamente nos mecanismos internos de deci-
são burocrática), no seu relacionamento com o eleitor ele também
"se abre", através dos comitês eleitorais.
Por intermédio dos comitês eleitorais, são os candidatos e não
o partido em si mesmo que se tornam as molas propulsoras para
aliciar adeptos e perrnadir os eleitores a votarem neles. Daí a impor-
tância de que se reveste para a sobrevivência do próprio partido (sen-
do, como é, um partido basicamente eleitoral e cuja persistência no
intervalo depende da ação dos parlamentares a nível das câmaras e
assembléias) o jogo de composições antes descrito que, tendo como
peça básica a Executiva Regional, desemboca nas convenções que
sancionam as listas de candidatos. Nos períodos eleitorais torna-se
decisivo para o MDB dispor de candidatos com real penetração po-
pular. São eles que juntam os recursos políticos e financeiros para
alcançar o eleitorado: alugam comitês, pagam funcionários, confec-
cionam a propaganda, organizam comícios, obtêm veículos para a
campanha etc. Por certo, legalmente tudo isso depende dos diretórios
e, em especial, do Diretório Regional. Mas na prática o partido dele-
ga a maior parte dessas funções aos candidatos, com plenitude de
poderes.8

Partido e movimentos sociais

Questão mais difícil para ser entendida é a do relacionamento


entre o MDB - partido eminentemente eleitoral - e os movimentos
sociais. A presença destes na política do regime autoritário é recen-
te: é mesmo um sintoma de debilidade da ordem autocrática. Desde
1977 o movimento estudantil voltou a ter presença na vida política
brasileira, os setores ditos "autênticos" do sindicalismo oficial e as

8. O montante de recursos a serem dispendidos pelos candidatos é fixado


pelo Diretório Regional c as contas são prestadas à Justiça Eleitoral por in-
termédio da Executiva. Os comícios mais importantes podem ser coordena-
dos pelo coordenador designado pela Executiva para orientar a campanha.

194
chamadas "oposições sindicais" passaram a atuar com maio r desem- to; os estudantes têm demonstrado grande mobilidade no plano uni-
baraço e movimentos reivindicatórios amplos, como o "movimento versitário e a luta pela anistia desempenhou importante papel na
do custo de vida" e, mais recentemente, o movimento pela anistia dinamização política. Entretanto. há que distinguir entre os movi-
aos presos e perseguidos políticos, também marcaram presença. mentos que assentam numa estrutura institucional (como os sindi-
Nas últimas eleições, dado que o MDB incluiu entre seus can- catos) e que portanto podem ter maior durabilidade e os movimen-
didatos pessoas ligadas a alguns dos chamados "movimentos de ba- tos que se motivam para obter um resultado específico (a anistia, um
se", houve uma simbiose maior entre estes movimentos populares e protesto significativo etc.). Estes últimos tendem a minguar, uma
a campanha eleitoral. Assim , houve candidatos apoiados por seto- vez colimado o objetivo ou provada sua impossibilidade na prática.
res do movimento estudantil, candidatos apoiados por lideranças sin- Quando persistem, é porque existe por trás deles alguma organiza-
dicais, pelos movimentos femini stas, por movimentos em defesa de ção política não explicitada que trata de usá-los como frente arre-
habitantes de loteamentos clandes1inos, pelo movimento contra a gimentadora de massas.
elevação do custo da vida, pelo movimento negro etc. Alguns dos O MDB, enquanto partido, ficou em geral à margem destes mo-
candidatos desse tipo (quase todos eleitos) eram eles próprios líderes vimentos. Quase sempre, entretanto, deputados, senadores e candi-
dos referidos movimentos. A relação entre os movimentos e os can- datos do MDB participaram intensamente das mobilizações, enquan-
didatos (ou melhor, entre os movimentos e a participação partidária to indivíduos. No caso específico do movimento sindical, os líderes
no período eleitoral) foi muitas vezes tensa. Como se viu nos capí- "autênticos" e da oposição sindical , por sua vez, apoiaram candida-
tulos correspondentes, quase todos esses movimentos são recentes , tos e fizeram campanha eleitoral, reservando-se o direito de criticar
alguns renasceram há pouco (como o sindical) e alguns deles não só o partido e defender pessoas consideradas por eles como mais afins
não possuem experiência de política partidária como a vêem com com seus objetivos. Alguns líde res do movimento do custo de vida
desconfiança. Tal atitude foi freqüente no caso da participação de e do movimento estudantil foram candidatos nas últimas eleições e
pessoas das comunidades eclesiais de base na política. Houve mesmo apoiaram candidatos do MDB a postos majoritários. Como a Igreja
uma tendência, embora não majoritária, ao voto nulo entre os parti- Católica serviu de apoio institucional a alguns destes movimentos, e
cipantes deste movimento. a relação entre ela e a política partidária há que se pautar por ressal-
As razões da reserva em face do MDB são óbvias: o partido é vas óbvias, , nem sempre foi fáci l conciliar o apelo "suprapartidário"
visto, por alguns segmentos, como parte da ordem autoritária e como dos movimentos sociais com os interesses de facções partidárias.
p9uco aberto ao povo. No momento das eleições, dizem os críticos, Do ponto de vista estritamente partidário, a liderança do MDB ~
vêm os políticos e pedem o voto. Depois manipulam o poder sem aproximou-se timidamente de a lguns destes movimentos, em geral por
prestar contas ao eleitorado e, no limite, em proveito próprio. Ape- intermédio' de candidatos a postos eletivos que estavam a eles asso-
sar do lado procedente da crítica, como se depreende da análise an- cia dos. Exceção de monta foi o apoio aberto que a bancada à Assem-
terior que ressalta a fragilidade dos laços entre os eleitores e o par- bléia Legislativa deu às greves dos metalúrgicos de 1Q79 e, de lá
tido, existe freqüentemente nesta atitude uma supereslimação dos para cá, o apoio prestado por deputados federais e estaduais a mo-
;'movimentos de base" e uma subestimação da função política dos vimentos reivindicatórios. Como partido, entretanto, nem sequer o
partidos. Os críticos pressupõem que eles sim representam verdadei- "Setor Trabalhista" do MDB ou o "Setor Jovem", ambos ligados à
ramente o interesse popular, embora em muitos casos os movimentos Executiva Regional, conseguiram um relacionamento permanente e
não sejam capazes de mobilizar efetivamente a massa nein para seus direto com os movimentos sociais que se dão no âmbito de suas atri-
propósitos, nem muito menos eleitoralmente. Essa ressalva é válida buições.
diferenciadamente: o sindicalismo mais combativo e as oposições sin- Não é questão simples essa do entrosamento entre os partidos
dicais têm sido capazes de mobilizar para os fins específicos da luta e os movimentos sociais. As modernas sociedades de massa parecem
salarial e para as eleições sindicais; o movimento do custo de vida privilegiar as reivindicações que partem da "sociedade civil" (direi-
foi capaz de ampla mobilização para um abaixo-assinado de protes- tos humanos, ecologia, feminismo, movimentos de grupos minoritá-

196 197
rios de jovens etc.), sem que sua ligação com os condutos polític~s propósitos limitados: a obtenção do voto. Para isso, no caso de São
ue• desembocam no Estado (como os partidos) en~ontre solu?ª.º Paulo, existem mecanismos básicos, não excludentes.
;azoável. No caso brasileiro, a inexperiência dos movimentos s~1a;s O primeiro mecanismo é o contato direto, através das socieda-
a rigidez de uma estrutura partidária criada fora do amb1en e des de amigos de bairro, dos ce~tros religiosos, dos clubes de bocha,
:eivindicatório atual dificultam ainda mais o refertdo entros~~~~~~ dos clubes esportivos e carnavalescos etc. Fazem-se pequenas reu-
Em geral ele se limita a declarações de boa vontade por parte e, ~ niões com os diretores e pessoas influentes, vez ou outra oferece-se
, . , · · d' - da massa e a cnttcas um churrasco a todos (no interior o churrasco é indispensável) e
res partidários mais sens1ve1s a re1vm 1caça0
acerbas de dirigent~s dos movimento~ ~~ m:ssa quanto ao compor• neste processo o eleitorado fica conhecendo o candidato pessoalmen-
tamento "elitista" dos dirigentes parttdanos. te e este se compromete tácita ou explicitamente a lutar por objeti-
vos do grupo que o apóia. Às vezes se antecipa e fornece jogos de
camisas de futebol, presta algum favor a membro influente do grupo
A mobilização eleitoral etc. Enfim, a relação clientel ística clássica. Para obter o voto popu·
lar não basta, entretanto, seguir a trajetória do favor: tudo isso vem
Apesar das contingências do regime, da pouca disp_?sição inter no contexto de um discurso agressivamente oposicionista, de crítica
a ara democratizar o partido e da esclerose nas relaçoes entre e e ao governo e, freqüentemente, de formulações tão ou mais radicais
: o~ movimentos sociais, o MDB é identificado popularmente c~mo quanto as utilizadas pelos candidatos ideológicos. (A esse respeito
"o partido dos pobres". "a oposição ao governo"• e, nes_sa med1d~. convém observar que durante a campanha o discurso político se uni-
recebe de fato apoio popular. É certo que o povo desconfia ~?~ -~oh- fica e as formulações centrais, em geral feitas pelos que têm uma
ticos em geral; mas não é menos ~erto que nas portas das_, a 11~ª~: orientação político-ideológica mais consistente, passam a ser repeti-
nos trens de subúrbio, nas [eiras-livres, pelo men~s no pe1 iod~, t:~e das por quase todos os candidatos, independentemente de suas cren•
'datos do MDB costumam ser recebidos com a expies- ças e interesses pessoais extra-eleitorais) .
tora1, os cand 1 • d'
- de po1egar 1evantado·. "MOB , tudo bem":_ E é em funçao isso
sao, O segundo mecanismo básico é a penetração através dos meios
que os candidatos são ouvidos em sua pregaçao. . . de comunicação de massa. Dispor de "boa imprensa" ajuda. Mas
Existe portanto, uma relação genuína entre o partido e o elei- dispor de uma audiência de rádio ou de TV é decisivo. Não por
tor popu\a;, que se materializa por intermédio da presença ~o ca;- acaso alguns dos deputados mais votados na periferia (Sarnir Achôa,
didato (no pequeno comício, na passeata, no aperto de mao), a Jorge Paulo, Nodeci Nogueira, entre os mais expressivos) participam
leitura de algum material de propaganda e do voto. . . de programas de rádio de cunho crítico, reivindicativo e/ou assis-
~ para essa busca febril de contacto que se orgamzam os comi- tencial.
tês eleitorais, especialmente os dos deputados que faz~m éa~~ª:~: Por fim, no caso dos candidatos sem grandes recursos pessoais
popular. Seria um equívoco pensar que apenas os c_~nd1datos ,1.~ovi- de popularidade, mas que dispõem de recursos financeiros para su·
gicamente orientados, especialmente os que se apoiam nos prir a falta daqueles, a votação é alcançada através de cabos eleito-
mentos de base", mobilizam o eleitorado. Na verda_de, ~mbora a rais que .substituem os candidatos no contato com a massa, ou através
mobilização feita por esse tipo de candidato se!a mais ru1dosaA, e_m de boas relações com a máquina das prefeituras do MDB. Neste
termos de imprensa. e mais articulada, os candidatos que _ob~~1:°. 0 último caso, o fator decisivo não é tanto o recurso financeiro para
voto popular, especialmente na periferia, mesmo quand~ _sao_ f1s1: azeitar a máquina eleitoral, como o atendimento dos interesses dos
lógicos", mobilizam bastante. T rata-se, contudo, de mob1hzaçao co prefeitos no exercício anterior do mandato de deputado. Embora
alguns deputados estaduais hajam operado dessa maneira, é mais
comu~ ver-se deputados federais que, apesar de distantes do muni-
9 Nos capítulos correspondentes à análise destes movime~tos encontram-se
discussões mais espec!Íficas sobre sua relação com os partidos. cípio, alcançam grande votação popular apoiando-se nos prefeitos.

198 199
O esforço de mobilização (que no caso da campanha de 1978 foi em vigência - a mobiliz.a ção reduz-se ao humanamente possível em
muito grande especialmente porque os comitês d~~ candida_to~ dit_os termos de contatos pessoais ou por intermédio de terceiros. Bem ou
populares compuseram-se basicamente de não poht1_cos pr?ftss1ona1~: mal, nesse processo existe a reação do eleitorado: as críticas são fre-
estudantes, profissionais liberais, sindicalistas, artistas, intelectuais qüentes, o l~vantamento de questões novas ocorre_ e, de alguma
etc.), desemboca, no d ia da eleição, no que se chama de trabalho forma, o parttdo, através dos candidatos, sente o pulso e a pressão
de "boca de urna". Este consiste no esforço desesperado para con- das massas.
vencer o eleitor, enquanto este se encaminha para o local de votaçã~, Terminada a eleição, a imensa maioria dos comitês se dissolve
de que deve escolher determinado candidato. Espe_cialmente na per~- deixan_do muitas vezes um travo amargo, de esforço não continuado:
feria devido às dificuldades que a massa pouco informada e semt· nas milhares de pessoas que os comitês mobilizaram (numa candida-
letrada encontra para fazer corretamente a seleção na cabi?a eleito; tura majoritária, às vezes, são milhares de pessoas que se mobilizam ;
ral (marcar os Xs e os números correspondentes aos ~andtdato_s), e os ~eputados mais ativos mobilizam centenas e, alguns, ultrapassam
importante fazer chegar às mãos do eleitor uma r~phca da ce~ula o milhar). A falta de recursos e de mecanismos para aglutinar pessoas
oficial de votação com os candidatos preferidos devidamente assina- e encaminhar energias termina por corroer o sistema de comitês. E o
lados. É neste processo que as máquinas eleitorais se esmeram, recru- partido, pelas características já assinaladas, não absorve nos diretó-
tando e pagando (em geral Cr$ 100,00 por pessoa, mais o lanche) rios e na vida rotineira a teia de pessoas que havia sido mobilizada.
centenas de pessoas para empurrar os candidatos nos eleitores. Nas Vê-se, a ssim, que embora neste aspecto o MDB possa sair-se me-
eleições de 1978 muitos candidatos do MDB às Câmaras e ao Sena- lhor na comparação com os partidos populares do passado, e le não
do recrutaram gratuitamente estudantes, operários, professores, pro- é capaz de estabelecer vínculos estáveis entre a massa dos eleito res
fissionais liberais, ativistas políticos e puderam contrapor-se, dessa ou mesmo entre a massa dos militantes e os órgãos decisórios inter-
forma, à máquina da ARENA ou às máquinas dos candidatos do nos.. Se não se pode falar no controle o ligárquico da máquina do
próprio MDB que utilizam cabos eleitorais pagos. O impac!o causa- partido (por causa dos fatores de instabilidade já apontados e da
do pela presença desse tipo de ativista (não profissional) fot grand:, necessidade que o partido tem de recrutar líde res e candidatos com
embora seja difícil medir a eficácia relativa em termos da obtençao penetração popular embora com pouca expressão no controle das
de votos. Houve candidatos que chegaram a mobilizar na cidade de "bases partidárias"), tampouco se pode caracterizar o modo de fun-
São Paulo centenas e mesmo milhares de pessoas para o trabalho de cionamento do MDB como realmente democrático, dado o baixo ní-
"boca de urna". Muitos deles se lançaram não só à busca de voto, v~l de participação de militantes de base, e muito menos se pode
mas à discussão politizadora com o eleitorado. dizer que se trata de um partido10 controlado popularmente.
A descrição acima talvez dê uma imagem um tanto negativa, no Não obstante, nos intervalos eleitorais, continua a existir um
sentido de que a relação que se estabelece entre candidatos e eleito- relacionamento entre os parlamentares e os eleitores. Este se faz
res é menos de "participação" ou "mobilização", do que de impo- através da _a_presentação de projetos de interesse de categorias popu-
sição. Mas isso seria parcial e apressado. Na duração da campanha lares espec1f1cas. O MBD apresentou milhares de projetos de interes-
(de 3 a 4 meses) há um esforço real por parte de candidatos e comi-
tês para "chegar ao povo". O êxito do empreendimento é natural- 10. Na verdade a caracterização do MDB como partido é discutível. Entre-
mente variável , conforme o cand idato. Mas através de reuniões, dis- tanto, aplicados critérios rigorosos, as organizações Políticas do passado (salvo
cussões, comícios em recintos abertos ou fechados, publicação de as ideológicas) também não eram partidos. Talvez essa distinção polêmica seja
jornais de campanha etc., um candidato a post? majoritário atinge f~lsa: nas_ s°':~cdades ..capita~istas contemporâneas as grandes organizações par-
11dár1as sao frentes relativamente frouxas quanto às orientações ideológi-
dezenas de milhares, senão centenas de milhares de pessoas e os
cas e de estruturação interna precária. Nalguns dos "grandes partidos", como
deputados mais agressivos na campanha atingem dezenas de milha- o Partido Democrático dos Estados Unidos, a tolerância ideológica vai da
res de pessoas também. Tudo isso é insuficiente no mundo atual: sem esquerda à direita, e mesmo o Labour Party da Inglaterra contém trotskistas
o acesso à TV e ao rádio - vedados pela arbitrária Lei Falcão ainda reformistas de todo o tipo, democratas conservadores etc. •

200 201
se econonuco ou social das camadas populares e propôs todo tipo
de reforma institucional democratizante que se queira imaginar. Os de sistemas partidários que ·só contam, efetivamente, no momento do
mecanismos autoritários do regime bloqueiam no Congresso estas pro- voto e nas lutas no interior do sistema institucional. A ordem social
postas, mas os parlamentares procuram informar o eleitorado sobre e a ordem política coexistem, sem se interpenetrarem, salvo nos mo.
suas iniciativas, através da correspondência e dos contatos pessoais. mentas de crise. A desproporcional capacidade de controle das elas.
Por outro lado, o sistema de favores e de empréstimo de prestígio é ses dominantes sobre os meios técnicos de reprodução da sociedade
amplamente usado pelos setores mais tradicionais do MDB, garan- (e muito especialmente os meios de comunicação de massas) torna
tindo uma ponte entre o eleitor popular e o Estado, apesar das con- extremamente difícil a mobilização política dos setores dominados
tingências do regime autoritário. N.:ste último aspecto, é preciso não para que possam exercer pressão nos níveis decisórios que realmen.
esquecer que o MDB detém o controle das mais importantes prefei- te contam. A isto, os setores populares reagem criando áreas de atua.
turas do Estado de São Paulo (com exceção de Santos e da Capital ção própria. Desenvolvem ampla capacidade de mobilização e res.
onde não há eleições para prefeito). Nelas existe campo fértil para posta rápida, mas em pontos circunscritos da sociedade: nas lutas
que os deputados e líderes partidários exerçam o clientelismo. da periferia, em reivindicações operárias de ordem econômica ou
Não cabe, para os fins desse capítulo, especulação maior sobre sindical, em movimentos urbanos de protesto etc. Os partidos, que
o desdobramento do sistema partidário brasileiro ou sobre as mar- bem ou mal se orientam para o solo do Estado, posto que é nele
gens de democratização interna que existem nos partidos. De qual- que as questões do poder desembocam, ficam freqüentemente à mar.
quer modo, seguindo o fio da meada largado páginas atrás, da mesma gem dos movimentos sociais e, no setor político que lhes é próprio
forma que os antigos partidos ficaram muitas vezes bloqueados e ressentem-se da falta de apoio ativo da base social. '
perderam força política quando a sociedade mudou e jogou na cena Falta criar entre nós modelos de organização partidária que per-
histórica novos contingentes humanos, parece claro que o "fundo do mitam a fusão do social com o econômico. E falta repensar os parti.
tacho da sociedade" - que vota no MDB mas dele não participa - dos para que neles caiba a participação das massas. Os velhos ideais
assim como o novo operariado e o novo terciário criados pela expan- de um partido de quadros que fusionaria aspirações coletivas fica
são do capitalismo internacionalizado, estão aí a desafiar os partidos curto diante da diversidade social e do distanciamento entre as reivin.
a incorporá-los. Se eles forem incapazes disso, serão flanqueados pelos dicações tópicas da base e os problemas institucionais do poder. O
" movimentos sociais de base" e por novas propostas de prganização modelo do "partido revolucionário", anti-institucional quando não
partidária. ilegal por definição, está demasiado distante da prática cotidiana das
Note-se que não se trata apenas de "captar o voto". Dessa massas. O modelo de partido populista ou caudilhesco não oferece
proeza o MDB foi capaz (apesar de que nas últimas eleições o núme- os recursos organizatórios de controle democrático. Entre estes dois
ro de votos brancos e nulos foi significativo). Trata-se de compati- tipos de partido abre-se, mais como esperança do que como caminho
bilizar o modelo organizatório e decisório dos partidos populares já entrevisto, a alternativa de um partido internamente democrático
com a presença das massas e dos movimentos sociais. Este é o desa- popular quanto à sua base, transformador no sentido genuíno de se;
fio maior que a conjuntura atual apresenta. Não está claro se será capaz de ir à raiz dos problemas estruturais, igualitário quanto à
possível substituir, no futuro próximo, o modelo atual de um partido sua aspiração e moderno quanto à sua eficácia, quanto aos meios de
que capta o voto mas não dispõe de mecanismos efetivos de parti- atuação e quanto ao nível nc- qual propõe as questões políticas. Ta).
cipação popular nos seus órgãos internos nem dispõe de capacidade vez num partido desse tipo seja possível reconciliar os movimentos
de ligar-se estavelmente aos movimentos sociais, por um modelo ba- sociais com a luta político-institucional. Caso contrário, o atual bi-
partidarismo11 será substituído por outra fórmula que institucionalize
seado na existência de partidos modernos e populares.
o regime de "democracia restrita" que deverá substituir o puro ar-
Creio mesmo que as sociedades contemporâneas industriais e
de massas propiciam, no sistema capitalista-oligopólico, a formação
de fortes e fragmentados movimentos sociais, ao lado da persistência 11. Este capítulo foi escrito antes da extinção do bipartidarismo. Prcíctj
não alterar a redação na presente edição.
202
203
bítrio: mas com este expediente não se conseguirá superar as antigas
lamúrias sobre as distâncias entre partido e massa.
Votos obtidos N.0 de delegados
Zona Unidade administrativa Câmara Federal à Convenção Re- Filiados
NÚMERO DE FILIADOS AO MOB E NÚMERO DE VOTOS MDB ( 1978) gional de 1979(•)
OBTIDOS POR D I STRITOS ELEI TORA IS NA CIDADE DE
SAO PAULO 252.ª Penha de Fra nça 68 835
Vila Matilde 28 1 270
37 203 15 624
Votos obtidos N.0 de delegados 253.ª Tatuapé 91266
à Convenção Re- Filiados 30 1 720
Zona Unidade administrativa Câmara Federal
MDB (1978) gional de 1979(*) 254.ª Vila Guilherme 15 491
Vila Maria 7 385
57 797 24 1 411
Casa Verde 37 401
Bela Vista 29 634 12 697 Brasilãndia IS 956
1.ª Consolação 22 197 9 624 16 510 7 482
255." Limão 16 137
Liberdade 22 933 10 494 7 471
Nossa Senhora do ô so 244 21
Sé S 74 1 3 175 Vila Nova Cachoeirinhr 914
19 043 8 386
Perdizes 44 561 18 1 166 256. 3 Tucuruvi
2.ª Barra Funda 8 238 4 221 115 707 30 2 158
Santa Cecília 28 167 12 757 257.8 Vila Prudente 126 380 30 2 930
3.ª Brás 25272 11 623 Tndianópolis
Pari 14 675 6 317 225 536 10 S2S
258.ª lbir:ipucra 31 003 13 662
Jabaquara 43 973 18
4.ª Alto da Mooca 31 190 13 651< 959
Mooca 32 250 13 914 259.ª Saúde 43 973 30 1 552
J ardim Paulista 32 002 13 882 260. 3
lpiranga
s.• Cerqueira César 12 696 6 340 86062 30 1 171
Jardim América 15 568 7 454 280. 3 Capela do Socorro 95 094 30 1 550
Parelhciros 12 216 s
Vila Mariana 34 120 14 736 398
6.ª Aclimação 17 715 8 409
Cambuci 21 518 9 601
TOTAL 2 027 507 693
246.ª Santo Amaro 85 731 30 3 083 40 691

247.ª São Miguel Paulista 110 118 30 1 646


• O número de delegados é proporcional ao n.º de votos p..ira deputados fe.
248.ª Guaianazes 17 417 7 486 derais obtido pelo partido em cada unidade administrativa.
249.ª Santana 70 169 29 1 025

Lapa 50 179 21 1 086


250.ª Jaguará 16 746 7 401
Jaraguá S 163 3 192
Perus 6 549 3 234

Pinheiros IS 000 7 403


251.- Butantã 48 486 24 1 166
Vila Madalena 13 601 6 377

204 20 5
r

rn
Movimentos
• •
soc1a1s em São Paulo:

traços comuns e perspectivas
Paul Singer

Origem dos movimentos sociais

Pode-se dizer que os movimentos S'Ociais analisados neste livro


tê_!lla poE.-ot:igem contradições sociais ílUe afetam a população traba-
lha ora de São Paulo. ais contradições não são efêmeras, pois de-
correm do modo como a vida social da cidade está organizada. As
~ontradiçêes-sociais podem ser agrupadas, conforme a parcela da
população que afetam, cada conj}lnto _g~las dando origem a um
_movimento social específico. -
No mundo do trabalho, avulta a contradição entre o montante
de salários, constantemente erodido pelo aumento do custo de vida,
e o montante de lucros, constantemente reposto e expandido pelo
aumento dos preços das mercadorias. Manifesta-se assim a contra-
_gjç.ão de io resses entre os assalariados, empenhados na luta pelo
reajustamento dos salários nominais, tendo em vista recompor seus
salários reais e fazê-los corresponder às suas crescentes necessidades
de consumo, e os em regadores, interessados em conter o nível dos
custos de produção e circulação, tendo em vista maximizar sua mar-

---
gem de lucro. Esta contradi ão se manifesta também no seio mesmo

207
da rodu ão, dada a resistência dos trabalhadores à pressão multi- vez mais insuficientes, provocando verdadeira deterioração do seu
forme dos patrões no senfido de elevar a produtividade, mediante a padrão de vida. Nas últimas décádas, a industrialização revolucionou
intensificação do ritmo de trabalho, a redução do absenteísmo e dos os padrões de consumo de uma parte da população paulistana (ob-
intervalos de interrupção do trabalho, o prolongamento das horas viamente a que dispõe de rendas mais elevadas), pondo à sua dispo-
extras etc. - resistência que se explica pelo fato de que todas estas sição numerosos hovos produtos, tais como aparelhos de televisão
tentativas de elevação da produtividade se fazem inevitavelmente às (primeiro em preto e branco e depois coloridos), automóveis de pas-
custas da saúde e do bem-estar do trabalhador. Uma outra faceta sageiros, aparelhos de som, serviços sofisticados de saúde, novas opor-
desta mesma contradição, ainda no interior das unidades de produ- tunidades educacionais, novas modalidades de recreação etc. Estes
ção, é a recusa dos trabalhadores a se limitar à execução de traba- padrões renovados de consumo passaram com o tempo - aliás em
lhos repetitivos e rotineiros, enquanto teclas as decisões, inclusive as pouco tempo - a se impor ao conjunto da população, mediante a
que afetam suascondições de trabalho e o seu nível de remuneração, pressão avassaladora da publicidade, o desaparecimento dos meios de
são tomadas unilateralmente pela cúpula administrativa da empresa, consumo "tradicionais" (diminuição do número de cinemas e mu-
que as impõe mediante uma disciplina que é tornada tanto mais rígi- dança na programação das rádios, por efeito da difusão da televisão,
da pelos que mandam, quanto menos aceitável ela fica para os que por exemplo) e a competição entre os próprios consumidores. Parti-
obedecem. cularmente sentida pela população pobre, que precisa dos "novos
Tudo isso suscitou, em São Paulo, um movimento de resistên- produtos" sem ter acesso a eles, é a carência dos serviços urbanos,
.Si-ª-.e de protesto que, dadas as condições de repressão reinantes nas tais como transporte de massa, serviços de água e de esgoto, cana-
empresas, se manifestou de modo mais explícito n.o aJ>arelho sindi- lização de rios e córregos, escolas, postos de assistência à saúde e
cal. Este movimento de renovação da prática sindical, tendo em assim por diante. Estes serviços não somente tornam atraente a vida
v ista romper o círculo de ferro que a limitava à prestação de servi- na cidade· como constituem condições indispensáveis à sobrevivên-
ços assistenciais e pessoais aos associados, tomou duas formas: a re- cia e à reprodução da força de trabalho de moradores em metrópoles
belião de direções sindicais "autênticas" às injunções do Ministério como São Paulo. Assim, sem transporte de massa o acesso aos locais
do Trabalho e demais órgãos controladores das organizações de clas- de trabalho e de abastecimento torna-se impossível, sem serviços de
se e o surgimento de "oposições sindicais", que disputam a direção saneamenro as doenças infecto-contagiosas tornam-se incontroláveis,
dos sindicatos, mobilizando as bases por ocasião não só de eleições sem escolas as novas gerações não podem ser adequadas às exigên-
mas também de campanhas salariais, visando ambos (autênticos e cias do mercado de trabalho. Particularmente durante os últimos
oposicionistas) em última análise a uma prática de luta sindical que anos, as condições de vida dos trabalhadores paulistanos se agrava-
reflita plenamente as contradições acima sumariadas. Este duplo mo- ram devido a duas circunstâncias: a aceleração da inflação, que au-
vimento de renovação sindical lançou raízes, em São Paulo, graças men,tou a desvalorização dos salários reais, sobretudo das camadas
a anos de esforço's heróicos e, na maior parte das vezes, anônimos. menos qualificadas dos assalariados e o descompasso crescente entre
Ele alcançou a partir de maio de 1978 uma primeira vitória de im- procura e oferta de serviços urbanos, que tornou o acesso a estes
portância histórica, quando os trabalhadores da indústria automobi- serviços ainda mais caro (devido à grande valorização dos terrenos

ll
lística de São Bernardo (logo mais acompanhados por trabalhadores urbanos), privando do seu usufruto uma parcela cada vez maior dos
das mais diferentes categorias) conseguiram recuperar o direito de trabalhadores da cidade.
greve, que há mais de 14 anos lhes estava sendo negado mediante
Tudo isso suscitou um novo movimento nos bairros pobres da
repetidos atos de repressão e, no limite, de terror psicológico, econô-
cidade, que se polariza ao redor de reivindicações locais por serviços
mico e físico.
urbanos, mas tende rapidamente a ultrapassar o nível local para
Na área do consumo, a contradição principal é a que contrapõe reunir massas consideráveis de consumidores da periferia em cam-
necessidades, que se multiplicam em função do próprio progresso panhas que abarcam setores inteiros da metrópole e, num caso pelo
técnico, e recursos que, para a maioria pobre da população, são cada menos, chegou a alcançar nível nacional. Foi o que se deu com a

208 209
si rrcontcs movimentos de bairros da periferia de São Paulo foram ini-
di campanha do custo de vida ou movimento contra a carestia, que se 1 ludos por CEBs. Tanto o movimento contra a carestia como o mo-
m originou na periferia sul de São Paulo e agora se faz presente em vimento contra os loteamentos clandestinos são resultados de inicia-
cio outros centros urbanos do país. Outras campanhas foram a do trans- tlvos de Comunidades de Base.
col porte de massa, que contou com a participação de gi:upos de vários Seria um exagero creditar os movimentos sociais de maior -
pai bairros, também da zona sul da cidade, e a da luta contra os lotea- expressão, que estão mobilizando a população trabalhadora de São
mentos clandestinos, que hoje se difunde por toda a Grande São Poulo, unicamente a iniciativas de militantes das CEBs ou das várias
pie Paulo. postorais da Igreja Católica. Participam destes movimentos também
til
Um outro movimento, que já atingiu grande expressão entre a grupos de outras denominações religiosas e grupos inspirados em
fu população trabalhadora de São Paulo, é o das Comunidades Ecle- ideologias não-religiosas. Porém, num país católico como o Brasil, é
de siais de Base (CEB). Este movimento é o resultado da retomada, por grande a importância da participação dos católicos e particularmente
ba parte da Igreja latino-americana, de valores cristãos que estão obvia- dos membros das CEBs. Isso constitui uma peculiaridade dos movi-
co mente ausentes da realidade social de países cuja população no mento~ sociais atuais em contraste com os que se verificaram no
de entanto é predominantemente católica. A pobreza, a alienação e a passado, em São Paulo (assim como em outros lugares) e que, em
tui opressão da maioria face ao luxo e ao desperdício praticados por mi- geral, tiveram muito menor participação e apoio de membros da
norias privilegiadas, que monopolizam o conhecimento e o p0der de Igreja e não poucas vezes sofreram a oposição da hierarquia da
decisão em todos os níveis, contradizem flagrantemente valores como mesma.
a solidariedade e a fraternidade entre todos os homens, que parcelas Além dos movimentos gerais, originados por contradições que
crescentes da Igreja Católica estão incorporando à sua mensagem. atingem toda a população trabalhadora, é preciso considerar os que
Esta contra~ição é antiga e deu lugar, em determinados momentos, respondem a contradições que afetam determinadas parcelas da mes-
a tendências que propunham à Igreja se posicionar a favor dos ma. São contradições que não contrapõem simplesmente dominados
pobres e oprimidos, contra as estruturas sociais de dominação e de e dominadores, explorados e exploradores, mas se verificam no seio
exploração vigentes. Não é este o lugar para historiar estas tendên- do povo mesmo, dividindo-o em discriminados e discriminadores.
cias do passado e as causas de seu fracasso e subseqüente desapareci- Estas contradições, ao fracionar os trabalhadores em grupos mutua-
mento. I nteressa apenas recordar que a mais recente delas, conhe- mente hostis, além da injustiça que acarretam, privilegiando certas
cida como "teologia da libertação", tomou pé na Igreja latino-ame- pessoas em detrimento de outras, enfraquecem as lutas de todos os
ricana e suscitou ampla renovação da prática pastoral em numerosas oprimidos contra as estruturas de dominação que os submetem.
col áreas do continente, inclusive em São Paulo, e o movimento das As mulheres são tradicionalmente submetidas a uma divisão
a 1 CEBs é um dos seus resultados concretos. sexual do trabalho, que limita suas atividades às tareías domésticas.
ma
/ cada CEB constitui um pequeno grupo de cristãos que pro- O baixo nível salarial obriga, no entanto, grande parte das esposas
cura realizar em comum os valores de sua religião. Esta realização e filhas dos operários a se empregar também . Há um número con-
uni
implica prática litúrgica, prática de ajuda mútua e de solidariedade siderável de mulheres que, além disso, são arrimos . de farru1ias que
me
aos mais necessitados e de movimentação, ao lado de outros indiví- não contam com qualquer membro masculino que- possa sustentá-las.
duos e grupos, de diferente inspiração ideológica, em prol de obje- Não obstante, as mulheres que trabalham são genericamente consi-
tivos gerais de libertação. Graças ao empenho de sacerdotes e leigos, deradas coroo trabalhadoras "secundárias", isto é, supõe-se que seus
o número de CEBs tem se multiplicado rapidamente em todo o país e ganhos apenas suplementam a receita doméstica, cuja parte principal
também em São Paulo. As CEBs têm sido importantes como inspi- é proporcionada pelo pai ou marido. Segue daí que se paga às mu-
çiio radoras diretas ou como suportes de vários movimentos sociais da lheres salários bem menores que aos homens, mesmo quando o tra-
mui população trabalhadora de São Paulo. A vitalidade de parte das balho feito pelas mulheres não é inferior, nem em quantidade,
sob opos1çoes sindicais se deve, em certa medida, ao apoio de Comuni- nem em qualidade, ao realizado pelos homens. Nas oportunidades
dades de Base de composição social operária. A maior parte dos
211
210
si
de promoção, os homens são quase sempre favorecidos, em detri- o movimento femjnista se une aos movimentos gerais dos pobres,
di
mi mento das mulheres. Na seleção de candidatos a empregos melhor unqua nto trabalhadores e enquanto consumidores, sem deixar de
lcvontar, em seu seio, as reivindicações específicas das mulheres.
pagos, é comum a discriminação contra as mulheres, sobretudo as
ci J casadas. É assim que, atualmente, as feministas participam ativamente
co
Além de tudo isso, a mulher que trabalha é obrigada a fornecer de oposições sindicais e movimentos grevistas, agitando ao mesmo
pa[ 1
uma dupla jornada de trabalho, já que a maior parte dos encargos tempo a necessidade da luta contra a discriminação da mulhe r no
domésticos - desde o prepa ro da comida para a família até o cui- trabalho. Da mesma forma, é da iniciativa de feministas a campanha
pie 1
dado dos filhos - continua sobre os seus ombros. A responsabili- pela instalação de creches nos bairros proletários, que está mobili-
til
dade familiar dificulta à mulher manter a mesma assiduidade no zando numerosas associações de moradores da periferia.
fu
de emprego que o homem - o que permite dar uma base "racional" à Outro movimento de reivindicações específicas é o dos negros,
discriminação contra a mulher no trabalho. vítimas de discriminação racial desde os tempos da escravidão no
ba
co A mulher pobre, sujeita a dupla jornada de trabalho, aspira, Brasil. A luta do negro, em São Paulo, que tem uma longa história,
de com razão, a se livrar de uma destas jornadas e a única de que apa- está ressurgindo agora sob nova forma, inais política, inspirada nas
tui rentemente pode ria prescindir é a do trabalho fora de casa, desde vitórias dos povos africanos contra o colonialismo e o neocolonialis-
que o salário do marido (ou pai) fosse suficiente para os gastos da mo e nos movimentos dos negros americanos pelos direitos civis.
família. Mas, de todos os trabalhos rotineiros e alienantes, hoje em Assim, ao lado das organizações negras tradicionais, de caráter cul-
dia, o que mais aliena é o trabalho doméstico porque ele, além de tural, recreativo e religioso, forma-se agora um movimento explícito
tudo, é feito, em · geral, isoladamente. A mulher, limitada durante contra a discriminação racial e que toma posição, ao lado dos de mais
toda a vida ao desempenho apenas das funções de esposa e mãe, está movimentos da população trabalhadora, pelas reivindicações comuns
sujeita a um subdesenvolvimento psicológico e cultural extremo, que econômicas, sociais e políticas.
a torna to talmente dependente em relação ao "seu" homem. A liber- O surgimento de todos estes movimentos mostra que parcelas
' tação da mulher, atualmente, não consiste em livrá-la da necessidade crescentes da classe trabalhadora de São Paulo estão tomando cons-
de se empenhar no trabalho remunerado mas antes em libertá-la da ~ ci das contradições entre suas necessidades, como seres humanos
necessidade de carregar, sozinha ou apenas com o auxílio de outras e como grupos sociais, eas possibilida_des _ll: satis..(i_,ÇãO gue as_e_Stru-
mulheres da família, todo o fardo do trabalho doméstico, fardo parti- turas sociais vigentes lhes abrem. As lutas destes movimentos têm
cularmente pesado quando a casa não dispõe de certas facilidades, em comum o objetivo de alterar essas estruturas que travam suas pos-
col como água encanada, aparelhos eletrodomésticos ou fácil acesso às sibilidades de auto-realização, sejam elas a subordinação dos sindi-
a 1 fontes de abastecimento. catos ao aparelho de Estado. o funcionamento do mercado imobiliário
ma r Isto significa que a libertação feminina exige não só a elimina- (que impede o acesl-o dos mais pobres aos serviços urbanos) ou o
ção da carência de recursos, que afeta as famílias dos trabalhadores, funcionamento do mercado de trabalho (que permite a discriminação
uni as a abolição da divisão sexual do trabalho no seio das mesmas, de sexual e racial no mundo do trabalho, sem que sua prática sequer
me odo que homens e mulheres possam assumir por igual tanto a tarefa possa ser comprovada de modo a poder ser denunciada e combatida) .
cio [.e ganhar dinheiro como a tarefa de cuidar do lar e das crianças. À medida que estes movimentos se ampliam e obtêm vitórias
pro O movimento feminista, que está agora ressurgindo em São Paulo e parciais, começa a se tornar claro que em seu terreno próprio de
tor começa a alcançar trabalhadoras e mãe~ de famílias de operários, se luta - nos sindicatos, nas empresas, nos bairros - não é possível
pro dirige, portanto, contra todas as formas de opressão· que rebaixam alcançar as transformações estruturais almejadas. Estas transforma-
a mulher, tanto as que decorrem da estrutura capitalista de toda a ções só poderão ser alcançadas no plano político, na luta direta pela
çuo sociedade, quanto as que decorrem de atitudes e valores "machistas" influência sobre o aparelho de Estado e pela conquista e mudança
mui que são com freqüência assumidos também pelos homens da classe do próprio poder político. Em suma, os movimentos sociais da gente
•ob
---
t rabalhadora. l! um a dura luta em duas frentes, na medida em que

212
pobre de São Paulo (assim como os de outros lugares) implicom

21 3
,; r
d'
m
1
basicamente na luta por maior participação. Esta maior participação,
almejada no plano econômico e soc1al,requer, no entanto, como
condição prévia, maior participação no plano político porque é neste
já realizada (apesar da eleição, em 1978, de um pequeno número de
militantes destes movimentos para a Câmara dos Deputados e para
ci nível que as transformações de maior alcance têm que ser decididas. o Assembléia Legislativa de São Paulo), nem o MDB chegou a unificar
co estes movimentos em seu seio. Seria ilusório supor que este problema
Daí se colocar com nitidez cada vez maior o problema da repre-
p~ sentação política. t sabido que o sistema bipartidário, imposto a será superado pela simples transformação do bipartidarismo atual
partir do Ato Institucional n.º 2, de 1965, restringia fortemente num pluripartidarismo restrito e sob controle, como o poder o
pl1 o direito da representação das camadas populares. Esta restrição era pretende.
tit A "reforma partidária", imposta por via legislativa, levou ao
parte de todo um sistema de centralização do poder e de repressão
ÍUI fracionamento do partido oposicionista e às várias propostas parti-
contra tentativas de se opor a ele, que está sendo desmontado e
dej 1
reformulado de cima para baixo, a partir da própria cúspide do dárias, que se empenham na disputa do apoio da classe trabalhadora
ba poder. Ora, esta auto-reforma do poder, no Brasil, está sendo promo- e naturalmente procuram atrair os movimentos sociais que dela ema-
COI nam. Não deixa de ser, apesar das restrições ao exercício da sobe-
vida sob pressão dos movimentos sociais que, de várias formas,
del começam agora a procurar sua manifestação apropriada no plano rania popular ainda vigentes no Brasil, uma oportunidade histórica
tuil político. para que a luta cotidiana das camadas mais pobres e desprivilegia-
1

Por imposição do regime autoritário que proibia qualquer ativi- das possa alcançar um nível mais elevado, em que as suas necessi-
dade política fora dos dois únicos partidos legalmente constituídos, dades imediatas sejam o ponto de partida para a formulação de um
Do l os movimentos sociais dos trabalhadores foram obrigados a se expri- 1?!9grama de reivindicações fundamentais. O aproveitamento desta
mir politicamente através do partido de oposição, o MDB. Este fato oportunidade parece depender de duas condições básicas. De um
1 contribuiu, sem dúvida, para o fortalecimento eleitoral deste partido. lado, do caráter que estas propostas, ou ao menos uma delas, venham
de~ r a adquirir, mostrando-se capazes de integrar e unificar movimentos
Mas o voto do trabalhador, dado em proporção cada vez maior aos
po~ candidatos e inclusive à legenda do MDB, não significava que os mo- sociais que surgiram separadamente e que têm que manter sua auto-
cotj nomia para continuar a levar adiante as lutas específicas que lhes
vimentos sociais das camadas mais pobres e exploradas tivessem ganho
forj um espaço correspondente no aparelho partidário. Como todo apare- dão razão de ser. Do outro lado, da evolução dos próprios movi-
das J lho político, ele tendia a ser dominado por lideranças que resistiam mentos sociais, que eventualmente os levará a compreender que a
gru1 ,ua participação no jogo político, longe de ser um "desvio" de suas
em abrir mão do seu poder que, neste caso, monopolizava um dos
~I~ dois únicos canais de expressão política legalmente admitidos.
Mas a relativa ausência dos movimentos sociais da classe tra-
finalidades próprias, pode ser o único caminho para concretizá-las. É
claro que esta é uma proposição sujeita a muita controvérsia, cuja
~ª~ 1
balhadora nos quadros partidários e nos órgãos de direção do partido
oposicionista não pode ser explicada unicamente pela resistência das
resolução dependerá da própria dinâmica dos movimentos sociais

unij lideranças emedebistas mais antigas. Ela resulta também do fato de


que, até muito recentemente, estes movimentos sociais ainda não A dinâmica dos movimentos sociais
me
tinham..sen :do a_ necessidade_de aJ_uar n--2_.plano político, inclusive
cioq A história de cada um dos movimentos sociais, analisados neste
prol porque a atuação oposicionista neste plano estava excessivamente
restrita e sujeita à "tolerância" do poder, o que lhe parecia tirar livro, revela que eles se iniciam geralmente com a tomada de cons-
torri J
ciência das contradições existentes por parle de um pequeno grupo
prol qualquer autenticidade. Não poucos se recusavam à participação no
jogo político, nos termos impostos pelo regime, porque tal partici- de pessoas. Por iniciativa deste pequeno grupo se inicia um processo
ção l 11 pação poderia ser tomada como uma legitimação do mesmo. de mobilização, que vai paulatinamente se ampliando, seja entre os
Houve assim um !racasso duplo: nem os movimentos sociais membros de um sindicato, os moradores de um bairro, os fiéis de
:~ili i conseguiram uma participação política consentânea com a mobilização uma paróquia ou pessoas ideologicamente motivadas para se engajar
em determinados tipos de luta.
214
11 215

1:
i n
s
d A partir de um certo momento, quando a mobilização conse-
m guiu reunir um número suficiente de interessados, o movimento for-
c, mula suas reivindicações. Estas reivindicações emanam, sem dúvida,
CC das necessidades sentidas pela cntegoria social em movimento, mas
p) são formuladas em termÕs de um discurso ideoló ico., que é o patri-
móniocomum do grupo que tomoua iniciativa e, geralmente, retém
pi · a liderança do movimento. Assim, por exemplo, não há dúvida de
tit q ueÕs assalariados têm necessidade de salários maiores e maior con-
fu 1 trole sobre suas condições de trabalho, inclusive de acesso e de per-
d9 manência no emprego, pelas razões já expostas. Mas o fato de suas
ba reivindicações se dirigirem, no momento, diretamente ao patronato,

~~
do qual exigem negociações livres e diretas, sem interferência do
Estado, corresponde a toda uma experiência histórica do movimento
1
operário brasileiro e particularmente paulista, que se reflete numa .
certa ideologia. Esta ideologia, que contradiz a tradição populista,
predominante até 1964 pelo menos, é o que distingue a liderança
D sindical ' 'autêntica", particularmente dos metalúrgicos de São Ber-
nardo, e ajuda a entender sua estratégia de luta.
1,1 Do mesmo modo, a ideologia da ajuda mútua e da recusa da
de barganha política de concessões materiais em troca do voto, que hoje
po domina o novo movimento dos bairros, emana das CEBs, cuja con-
111 cepção do mundo tende a se opor a compromissos com as estruturas
políticas vigentes. Esta Ideologia confere aos movimentos personali-
dade própria e facilita seu engajamento em ações comuns, ao mesmo
tempo que mantém a sua liderança nas mãos dos que partilham desta
1 ;
ideologia, aplicam-na a situações concretas e a difundem.
col Uma vez formuladas as reivindicações, as lutas se desdobram,
a 1 o número de pessoas que nelas participam cresce, até que vitórias
ma - em geral parciais - são conquistadas. Foi significativa, por exem-
plo, a vitória do movimento sindical, em 1978, ao conseguir que
11
uni fosse consideravelmente reduzida a repressão ao direito de greve. Foi
me significativo também que o movimento contra os loteamentos clan-
cio destinos tenha conseguido regularizar a situação quanto à propriedade
pro li do solo de algumas comunidades, como resultado de pressões de
tora massa, confirmando assim a efetividade de sua tática. Os demais
pro
movimentos, em sua fase atual, têm como principais vitórias a con-
signar, por enquanto, a continuidade de suas existências, apesar da
',' o repressão desencadeada contra eles.
111111
Sendo a abertura política, no Brasil, muito recente, é natural
•oh
que os movimentos sociais da população trabalhadora de São Paulo

2 16
O que interessa aqui é mostrar que, à medida que o movimento ope-
estejam ainda em seus estágios iniciais. _Mas qua~e t~dos eles ti~er~m rltrlo ampliava sua mobilização, sua liderança era levada a se entrosar
histórias pretéritas de ascensão, conquist~ de v,tónas e decad~nc1a, com os forças da situação, em troca de concessões, em sua maioria
seja através de sua institucionalização, seJa ~or obra da repressao. A verbais - apoio às "reformas de base" - sem que ~ política econô-
análise destas histórias, feita em outros cap1tulos deste volume, per- mico posta em prática viesse de fato beneficiar a grande maior ia dos
mite delinear ~ destes movimentos em sua fase n11soloriados. ~ sabido que, de 1961 em diante, os salários reais se
deterioraram devido à aceleração do processo inflacionário e a renda
atual.
A ~ectii.\la_de instituciGnalização se coloca à medida q~~ a •e concentrou mais, em detrimento dos trabalhadores menos quali-
mobilização realizada por cada moviment~ lhe confere peso poh~1co ficados .
eleitoral , o que leva os ~ :..ºº~~
idos, no poder a tent~r sua ltd~- ~ óbvio que a decadência do movimento operário, a partir de
rança, mediante concessões mínimas no plano s~c10-econorruco e ~olt- 1964, foi devida à brutal repressão desencadeada contra ele pel9
tico. Neste sentido, é instrutivo recordar o ocorrido ?ur~nte o penodo K0verno militar. Mas não se pode deixar de reconhecer que, mesmÕ'
democrático, entre 1945 e 1964, com o movimento s~nd1cal, por exe~- notes do golpe, o movimento operário se encontrava num impasse:
plo. Em 1946, o governo desencadeou forte repressao, contra o ~ov~- pois apesar de sua influência política ele se mostrou incapaz de for-
mento operário, promovendo intervenção em vasto ~umero ?e. sindi- mular um projeto para o país que contivesse soluções consistentes
catos e anulando, na prática, o então recém-conquistado _d1re1to d~ pnro as contradições que afetavam os trabalhadores. -
greve. Esta repressão foi mantida até 1951,_ quando assumiu a presi-
D dência Getúlio Vargas, eleito no ano anterior pelo voto de prot_esto O atual movimento operário é, de certa forma, herdeiro tanto
das massas trabalhadoras das cidades. O novo governo manteve_ amda dos acertos como dos erros da fase anterior. O mesmo se dá com o
por algum tempo as intervenções nos sindicatos, ~as o ~ov1~~nto ntual movimento dos bairros, que encontrou a maioria das antigas
d das oposições sindicais cresceu e chegou a conquistar. a d1reçao ~e Soc~dades de Amigos de Bairros (SABs) inteiramente dominadas por
p vários sindicatos importantes; greves voltaram a ser feitas, as quais, po líticos ligados ao partidO" governamêi'.ttal, embora estas entidades
co graças à menor repressão, tenderam a ser vitoriosas. , . tnmbém tivessem em sua origem uma história de militância que tinlui
fo Tudo isso culminou, em 1953, na grande greve de metalurg,cos. suscitado amplas lutas QQPulares. O mesmo ainda pode ser dito em
da tecelões, gráfic.os e vidreiros, que paralisou o parq_ue _fabril de. S~o rclnção ao movimento feminista, que, em sua fase anterior, alcançou
gr Paulo durante quase um mês. Depois desta greve vitoriosa ª. ma1ona uma vitória decisiva, qual seja a conquista do direito da mulher de
"n dos sindicatos passou a ser dirigida por lideranças democrat,came~te votar e ser votada.
co eleitas e muitos órgãos de classe passaram a desenvolver todo tipo
a Em muitos desses casos, o êxito imediato dos movimentos, ou
de lutas em defesa dos interesses dos seus filiados, sendo a gre~e a 11cjo, a ampla mobilização das bases, acarretou o seu "reconheci-
m
principal arma empregada nestas lutas. ?. movi?1e~to alcançou ?1ve~- mento" pelo Estado, o que permitiu algumas vitórias concretas, mas
sas vitórias, desde reajustamentos salariais penód1cos, ~r?por~ionais
no mesmo tempo ocasionou o atrelamento destes movimentos ou de
ao aumento do custo de vida, até o 13.º salário e a part1c1paçao ope-
me
un~ portes de suas lideranças ao governo ou a partidos em que predo-
ráriã na direção dos órgãos de previdência social.
cio minava a representação dos interess!:!S das classes dominantes. f im-
Na medida em que os governos passaram a depender do vot?
pr portante considerar que mesmo uma vitória tão importante quanto
popular, sobretudo do voto das massa_s urbanas, :ár!os_ partidos polt-
tor 11 conquista dos direitos políticos pelas mulheres não impediu que
ticos passaram a cortejar as novas lideranças smd1ca1s e u?1 c~rto
pr cios continuassem sendo discriminadas no trabalho e oprimidas no
número de seus membros chegou a ser eleito para os leg1slat1vos
federal e dos estados. As lideranças sindicais passaram a se coordenar 1eio de suas famílias. Do mesmo modo, a aprovação da Lei Afonso
çii Arinos contra a discriminação racial muito pouco contribuiu para
nos planos estaduais e finalmente nacional, empenhando-se na luta
mu que a sua prática entre nós fosse coibida.
pela posse de João Goulart na presidência da Repúbl!c~, em 1961,
sob
e prestando certo apoio ao seu governo, até sua depos1çao em 1964.
219
218
s O fundamental é que os movimentos sociais da população tra- roda a teoria do que de aproximar a prática dos princípios teóricos.
balhadora não conseguiram aproveitar as oportunidades oferecidas J Se o sentido dos movimentos sociais da classe trabalhadora é au-
pelo regime democrático-eleitoral, que prevaleceu, com altos e baixos, mentar a participação da mesma na renda e no poder de decisão
e
entre 1945 e 1964, para· estabelecer uma representação própria e fiel tanto econômico (nas empresas, repartições etc.) como social (nas
e
aos interesses de classe de suas bases, no plano político. Agora que escolas, nas igrejas etc.) e político, é fundamental que esta partici-
Pj a perspectiva de redemocratização mais uma vez se reabre no país, a pação se dê, em primeiro lugar, nos próprios movimentos. A exclusão
pj mesma problemática ressurge. Traia-se, em última análise, de~ - dos trabalhadores dos centros de decisão não decorre apenas de obstá-
ru:i;..en.der_gue, numa econom_ia capitalista, há possibilidades de co_n- culos estruturais externos; ela se dá também e primordialmente devi-
}~ quistar direitos formais e melhorias materiais para os pobres e dts-
críiiiinados, mas estes direitos e melhorias se mostram efêmeros face
do à falta de preparação do trabalhador, devido ao fato de, desde a
escola, ele ser treinado a obedecer ordens, cujo sentido não lhe é dado

i\ 1
às tendências à concentração do -poder e ela riqueza inerentes a esse
tipo de economia. Há hoje um vasto acervo, tanto. no Brasil como
entender, e a não participar das decisões que afetam sua vida. A
hegemonia burguesa é garantida no capitalismo não só pela violência
~ 1 em outros países, de tentativas fracassadas no sentido de t?r~ar o
capitalismo economicamente mais igualitário e socialmente _m~1s Justo.
organizada do Estado, mas pelo contínuo condicionamento da grande
maioria do povo a permanecer passiva e _a esperar que "os de cima"
tu 1 Conclui-se, pojs, que movimentos que lutam por estes ob1et1~~s _pre- resolvam seus problemas. Quebrar esta hegemonia requer, antes de
cisam examinar sua própria história e, a partir desta ex~ene_n~1a e mais nada, desfazer este condicionamento, capacitando os trabalhado-
D da experiência histórica geral. procurar verificar se seus f ms ult1mos res a intervir ativamente nas decisões que os afetam. Isso pressupõe
são alcançáveis nos limites do capitalismo. um processo de sistemática reeducação dos trabalhadores, que só
Mais ainda, é preciso reconhecer ue uma retórica anticapitalista pode ser levado a efeito nos movimentos sociais, que se originam das
de pouco res l.Ye, não for express~o d~ um~ tática cons; ~ü:_n~- contradições entre as necessidades da classe operária e a ordem social
po ao é incomum que a ideo ogia que inspira movimentos soc1a1s con- vigente. '
co enha anseios de igualdade e libertlade somente realizáveis numa Cada vez que trabalhadores fazem greve, cada vez que mães de
{o ~ociedade socialista. Mas tais anseios, em geral, não se traduzem em famílias operárias ocupam um escritório da prefeitura, cada vez que
da demandas imediatas. Cria-se assim a comum clivagem entre obje- uma demonstração de massas interrompe o trânsito, a hegemonia da
gr tivos próximos e fins últimos. Supõe-se, em geral, que os fins últi~os classe dominante é posta em questão e membros da classe dominada
"n só são realizáveis a partir de uma "tomada do poder" que permita tentam tomar seu próprio destino nas mãos. ~ este o sentido mais
col a eliminação rápida e total de todas as estruturas de exploração e de profundo dos movimentos sociais das chamadãs " clãsses subordina:
a dominação. Como esta tomada do poder é um objetivo a longo_praz~, das": a recusa à subordina_ção. Mas.q uando a distância entre cúpula
ma ela é utilizada para justificar uma prática de barganha de apoio poh- mgente e bases se alonga, quando as decisões quanto à linha de
tico por concessões imediatas e que tendem, como foi visto, a ter ação são tomadas pelos dirigentes e depois "baixadas" às bases, quan-
uni quase só valo·r simbólico. yiquantoJ_lutuelo ~oder.se coloca nu~ do estas são educadas .a alimentar fé cega nas direções, ao mesmo
me futuro ainda distante, a política praticada no dia-a-dia acaba refor- tempo que as inevitáveis divergências entre dirigentes são resolvidas
cio
çando a estrutura de poder existente, ao incluir nela membros das 1' "entre quatro paredes", sem que as bases tomem conhecimento e
pro
lideranças de movimentos sociais das classes subalternas, sem q~e ~ tenham a palavra final sobre elas, esta mesma subordinação, que
tor1
situação dos que constituem a base destes movimentos melhore s1gmi é recusada no !ano s cial mais amp o, é- reproduzida no próprio
pro 1

ficativamente. _J movimento de insubordinação.. -


\'110 Não tem sentido supor fatalisticamente que a história sempre Esse tipo de prática é tradicional nos movimentos sociais da
111111 se repete, mas para que ela não se repita é preciso um esforço deli- população trabalhadora e encontra sua justificação na necessidade
11,h berado para mudar o desfecho. Trata-se, no caso, menos de ·reformular de _poupar tempo "perdido" em debates e de preservar a unidade do

220 221
,rir 1
movimento, tendo em vista fortalecê-lo sempre mais, até a "tomada
do poder". São ~ s _ a s s ~ s . que dão aos dirigentes o mente a aliviar situações prementes de penúria. Se esta discussão

L
Pi li
poder de falar e negociar em nome das bases, facilitando a sua coop-
tação pelos que se encontram na cúpula do poder estatal. O impasse
dos movimentos sociais de antes de-1964 se explica, em bmi-parte,
·õesi a maneira. redominava então uma concepção militar da luta
política, segundo a qual às tropas das classes dominantes se opunha
fosse levada às bases, ela permitiria sua conscientização a respeito do
caráter inevitavelmente limitado das concessões obtidas em compa-
ração com o seu eventual preço político. Sem esta conscientização
das bases, há sempre a possibilidade de que elas venham a se desin-
teressar da luta tão logo algumas vitórias parciais sejam conquistadas.
Pi o exército do povo, cuja vitória final dependia de sua unidade, de
A título de exemplo, o movimento operário sindical enfrenta, no
ti sua disciplina ,e da sua coesão ao' redor da direção. Enquanto a vitó-
f momento, dura luta pelos direitos básicos de greve, de autonomia
ria final não estava à vista, esta unidade, esta disciplina e esta coesão
d sindical, de livre e direta negociação coletiva de salários .e condições
serviam às direções para negociar com o "inimigo", em geral con-
b de trabalho com os patrões, de representação dos trabalhadores a
cluindo alianças com setores das classes dominantes e assim se inte-
e nível de empresa. 'É, na maior parte dos casos, uma agenda ampla
grando, aos poucos, na estrutura de poder. /
d e aparentemente difícil de realizar, mas. no fundo, não se trata de
Não há, obviamente, receitas que "vacinem" os movimentos
mais do que de recuperar direitos já usufruídos pelo movimento ope-
sociais contra esses perigos. t encorajador verificar que em sua prá-
tica atual em São Paulo há um nítido esforço para se evitar as múl- rário brasileiro, entre 1953 e 1964. Na marcha de uma eventual rede-
tiplas formas de autoritarismo. Neste sentido, as CEBs sustentam pro- mocratização, a recuperação destes direitos poderia reproduzir o im-
postas mais avançadas: que os "ministérios" sejam exercidos em passe em que se encontrava o movimento operário às vésperas do
rodízio pelos participantes e que se procure evitar a distinção entre golpe militar, a menos que ele esteja munido de um programa de
cúpula e base. Também nos movimentos de bairros, diretamente ins- mais longo alcance - que poderia incluir desde a constituição de uma
d
p pirados pelas CEBs, pode-se notar a preocupação de abrir o processo ou mais centrais sindicais até a instituição de um efetivo controle
e decisório às bases, insistindo-se numa prática que eduque os membros operário da produção. Com um programa desses, será mais difícil
f a assumir diretamente as decisões. No que se refere ao movimento enquadrar politicamente as novas lideranças sindicais, com poucas e
d sindical, a polêmica que hoje se trava ao redor da representação restritas concessões à massa operária.
g dos trabalhadores nas empresas - mediante "comissão de fábrica" O mesmo, naturalmente, é válido para os demais movimentos
" ou "delegado sindical" - toca de perto no problema. Trata-se de sociais, cuja finalidade básica é, na verdade, eliminar as contradições
dar ao trabalhador uma participação direta nas decisões sobre o que que lhes dão origem. A adesão desses movimentos a algum agrupa-
reivindicar e negociar com o patrão - participação esta que poderá
mento político, que ocupa o poder ou o almeja, só tem sentido se
ser transforma.da em seu oposto se o delegado sindical for nomeado
desenvolver uma prática que, de fato, leva à eliminação dessas con-
pela direção do sindicato para, no fundo, controlar as bases na fábrica
tradições, o que implica a luta conseqüente por uma sociedade sem
e levá-las a respeitar os acordos celebrados entre os sindicatos de
empregados e de empregadores. classes.
Seria importante, por outro lado, que os movimentos sociais, Não se trata, portanto, apenas de encontrar um "espaço político~
além de formular reivindicações imediatas, se preocupassem em ~fi~ em que os movimentos sociais da população trabalhadora possam se 1
nir t!!.,mbém "programas máximos", ou seja, o elenco de medidas representar. Para que estes movimentos possam cumprir sua finali• ' ~
econômicas, sociais e políticas que teriam que ser adotadas para que dade, eles terão que, mais cedo ou mais tarde, suscitar a formação d ~ \
houvesse plena satisfação de suas demandas. Esse tipo de preocupação partidos, que tenham como programa e como prática tanto a prepa- )~)v
é importante para alargar as perspectivas desses movimentos, de modo ração dos trabalhadores e grupos oprimidos para efetivamente parti- .
a ultrapassar o imediatismo das reivindicações que visam primordial- ciparem do poder quanto a destruição de todas as barreiras que se
opõem a esta participação. '
222
223
A economia interna dos movimentos sociais Ylmento social e os que tomam a iniciativa de sua organização. Esta
vinculação é, o mais das vezes, circunstancial: o lugar de residência,
Os movjmentos sociais da população trabalhadora são iniciados, n relação de emprego ou o exercício profissional pode criá-la. Isso
em geral, por grupos limitados de pessoas, ideologicamente motivadas nllo quer dizer que estas circunstâncias sejam fortuitas. Quem se em-
a se empenhar ·na defesa ativa dos interesses desta população. A este penha em organizar uma oposição sindical o fará, naturalmente, no
respeito, há que distinguir entre "movimentos" institucionalizados 1lndicato ao qual está filiado, em fu nção do emprego que tenha.
Quem participa da organização de um movimento de bairro em geral
p: pelo Estado (como partidos e sindicatos) e movimentos espontâneos
mora no mesmo. O mesmo vale para Comunidades de Base. São mu-
li (como os movimentos de bairro ou de grupos discriminados). Como
se viu, na análise de partidos e sindicatos, a participação dos traba- lheres que organizam movimentos feministas e negros os que organi-
f
lhadores nestas entidades é sumamente restrita. Na realidade, estes 1.am movimentos contra a discriminação racial. O que interessa, no
d
organismos não constituem movimentos sociais em si mesmos, poden- entanto, é que as pessoas ideologicamente motivadas tanto podem
b
c do, porém, ser terrenos de atuação de movimentos que visem preci- estar num tipo de movimento como em outro. E não é raro que as
d samente ampliar neles a participação da classe trabalhadora. Cons- mesmas pessoas sejam organizadoras de mais de um. Membros de
tituem portanto movimentos voluntários da população trabalhadora CEBs organizam movimentos de periferia e oposições sindicais. Orga-
11 - que são objetos deste estudo - as oposições sindicais, as lideran- nizadoras feministas comumente militam em sindicatos, empenhan-
ças sindicais "autênticas" e os diversos grupos geralmente ligados aos do-se na realização de Congressos de Mulheres Metalúrgicas, Quí-

ºl movimentos de periferia, que procuraram conquistar espaço no seio micas etc. E sindicalistas atualmente estão empenhados na organização
de um partido político. -

~
do partido oficial de oposição.
Constitui um traço comum de muitos destes movimentos a dis- Esta disponibilidade geral dos organizadores os distingue niti-
d tinção entre os "organizadores" e os que formam as suas bases. Estas damente da base, que é motivada pela contradição específica. Os
p bases provêm do grupo social cujos interesses são defendidos pelo participantes de base, em geral, não têm uma concepção de vida bem
c movimento. Tais interesses não são atendidos pela estrutura sócio- orticulada. Suas condições de vida são difíceis e eles têm urgente
Co 1 econômica vigente, o que dá lugar à contr:adição que motiva o movi- necessidade de melhorá-las. Sua participação é, neste sentido, con-
d mento. A contradição preexiste ao movimento, muitas vezes por longo dicionada ao êxito ou ao fracasso do movimento. t comum que tanto
gr
.. \
tempo. O movimento não surge espontaneamente, tão logo a con-
tradição se manifesta. Nem surge quando, eventualmente, a contra-
um quanto o outro ocasione um afastamento das bases. O êxito na/
conquista de reivindicações materiais reduz a motivação dos mem-
co dição se agudiza, embora este fato torne mais favoráveis as condições bros da base, alguns dos quais, a seguir, tendem a se recolher, satis-
li objetivas para sua aparição e desenvolvimento. U1J1.-m ·mento s~ íeitos, às suas vidas privadas. O fracasso, acompanhado muitas vezes
rn \ das c asses_e_xplo1:.a das é sempre i:e.sultado_ de um esforço deliberado, por repressão, tende a desanimar as bases, levando-as à convicção de
de uma "iniciativa", que é tomada or essoas, pertencentes ou n_ão qu~ nad~ pode ser feito, a partir do seu próprio esforço, para muda~
un1 a estas classes, gera mente motivadas não apenas pêla contradição a s1tuaçao em que se encontram.
IIIU espe_gjç_a mas __por ideologias. Sao pessoas que tem uma concepção
1'111 Uma característica que distingue organizadores e bases é a mo-
de vida, religiosa ou laica, que as leva a rejeitar uma ordem social
f'H tivação. Além de terem ideol~gia, os organizadores tendem a se r; a.
que se caracteriza por fortes desigualdades tanto no exercício do
h111 lizar, como indivíduos e como grupo, mediante sua participação nos
poder quanto no usufruto dos resultados da produção social.
1111 movimentos, que se tornam para eles, ao menos psicologicamente, fins
Não importa aqui discutir de que modo estas pessoas adquirem
em si mesmos. Como diz Janice Perlman, "para os organizadores de
concepções de vida que as motivam a se empenhar em lutas sociais.
t,lh grupos cl~ ção direta, o próprio processo de organização é quase
O fato é que o fazem e são elas que "organizam" os movimentos
11111 uma forma de vício". E mais adiante: " P.Lgratificação do e o o sen-
~ s da P-º ula ão trabalhadoU!.,_Convém notar que quase nunca
11111
há um vínculo orgânico entre os propósitos específicos de cada mo- rimenlo de poder e a sensação de 'mover as massas' e de realização

224 225
1
~são recompensas em si". Estas são observações dos movimentos
- --~
soc1a1s americanos que, sem dúvida, se aplicam também em grande das empresas e da maioria das instituições (escolas, igrejas, associa-
medida aos movimentos sociais que têm lugar entre nós. ções etc.). A esta divisão também não escapam os movimentos sociais
da classe trabalhadora. Os que desempenham trabalho intelectual
e inegável que, idealmente, se pretende, em todos os movimentos
, "fora" dos movimentos, estando treinados e motivados para esse tipo
sociais, que a motivação dos organizadores se transmita às bases. Há,
de tarefas - professores, padres, jornalistas, estudantes etc. - ten-
às vezes, esforços educacionaif. específicos com este objetivo. Mas,
dem a ser organizadores de movimentos e continuar, dentro deles,
na maior parte dos casos, a distinção se mantém. A transmissão ideo-
monopolizando sua direção. Os que " lá fora " fazem trabalho manual
lógica ating~ m l~ o número_je membros qúe--;-em conseqüência,
tendem naturalmente a se dedicar às tarefas práticas: colar cartazes,
ascendem âa base para posições de liderança secundária ou (menos
distribuir panfletos. colher assinaturas, recolher contribuições etc.
freqüentemente) principal do movimento, passando a integrar o grupo
Desta maneira, os movimentos sociais importam uma divisão do tra-
dos organizadores. Mas o restante das bases tende a ficar como estava:
balho da sociedade inclusiva, que tende a reproduzir em seu próprio
motivada apenas é fundamentalmente pelas suas necessidades ime-
seio as desigualdades que eles teriam como propósito último eliminar.
_-dfatas, guardando somente vestígios das noções ideológicas apreendi-
das e que aparecem ocasionalmente em seu linguajar, participando .. Pode-se observar -~ reação a _esta dist_g_rção, que se manifesta
de fato de forma essencialmente passiva das decisões etc. sob a forma de_'..'. basism_?"· A todo momento e sob qualquer pretexto,
se proclama a necessidade de se "ouvir" as bases, às quais caberia
A manutenção de barreiras entre organizadores e bases nem
sempre tomar as decisões. Também é forte o preconceito contra os
sempre é intencional e se deve a fatores tanto objetivos como subje- que pretendem participar dõmovimento sendo•~ foc.a...'.',~e pode
tivos. Entre os fatores objetivos é preciso ressaltar as condições ma- significar ser de outra classe social, de outro grupo social, de outro
teriais de vida que impedem os trabalhadores de se dedicar a ativi- sexo etc. InfeÜzmente, estas reações são sobretudo negativas e pouco
dades de estudo e debate, indispensáveis à aquisição de conhecimentos servem para superar a distância entre cúpulas e bases. Na maioria
~ t básicos para formar uma concepção de vida. A baixa escolaridade, das vezes, o "basismo" e a rejeição dos que são "de fora" são apenas
c ~ as longas horas gastas no trabalho e na condução e que não deixam nrmas nas lutas de facções entre os próprios organizadores. Mas o
f ~ 'l
~ tempo nem energia para outras atividades são óbices materiais de foto de este tipo de argumento ser freqüentemente efetivo mostra
d ~ .:; difícil superação. A estes é preciso acrescentar atitudes, tanto de que existe o temor, por parte dos membros de base, de serem mani-
g
"
L l • 'r organizadores como das bases, de aceitação do fato de que "alguns" pulados, o que comprova, em última análise, a sua extrema depen-
e ,
. . -"\, ,. se interessam mais pelos aspectos teóricos gerais e por isso " natural- dência de organizadores que mereçam sua confiança.
e:.,,,· Q..1 mente" são chamados a desempenhar tarefas intelectuais, ao passo ~ barreira entre organizadores e bases é reforçada à medida que
li l
1
t
. ~.~,O que os demais são práticos e por isso lhes cabem as numerosas e os movimentos sociais crescem, diversificando seus objetivos, o que
n
. "'-- ~ · extenuantes tan~f~s materiais. Esse tipo de atitude leva muitos a torna a tomada de decisões mais complexa e mais difícil. Um movi-
~ e ,, desdenhar as atividades de estudo e debate, que se propõem levar mento pequeno com objetivo único - ganhar a eleição num sindi-
u
. , às bases a compreensão dos objetivos mais gerais do movimento, e a cato, canalizar um córrego, regularizar um loteamento etc. - requer
111
cl ~ ,. valorizar as ações "concretas" como sendo as únicas· capazes de pro- um esforço intelectual limitado , dirigido geralmente à tomada de
duzir resultados. decisões táticas. Movimentos de objetivos múltiplos, quais sejam, en-
pi
frentar as contradições do mundo do trabalho (lutas salariais, estru,.
111 Na sociedade atual, a divisão entre trabalho manual e trabalho
,,. intelectual e a conseqüente divisão hierárquica entre os que tomam
lura sindical, representação dos trabalhadores nas empresas, condi-
ções de "trabalho) ou lutar para modificar as relações sociais entre
decisões e os que se limitam a executá-las está na base da organização
mulheres e homens cu entre pretos e brancos, por exemplo, precisam
._ 4
definir objetivos estratégicos e táticos, realizar alianças, tomar posi-
Ili
1. Pe rlman, J., "Grassrooting the System", Social Policy, New York, 1976. ção diante de problemas gerais, o que requer discussões freqüentes
111
e cansativas e a elaboração de numerosos documentos: propostas,
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12rogromas, resoluções etc. Em suma, à medida que os movimentos positam em seus dirigentes. Por outro lado, a lig~ção. entre organiza-
sociais avançam, passando a abarcar o conjunto de contradições que dores e bases se toma mais remota quando os primeiros fazem parte
lhes dão origem, cresce o montante de trabalho intelectual a ser rea- de organismos· ideológicos aos quais os segunpos não tê"2 acesso. O
lizado, o qual recai. no entanto, sobre os ombros de um número perigo se concretiza quando as decisõe.s -~ais gerai~ :ªº
fora dos movimentos - em órgãos parttdanos ou . religiosos - . e_a
tomadas
limitado de organizadores, número esse que, pelas razões já aludidas,
cresce muito menos que as suas tarefas. Em virtude disso, os orga- liderança secundária passa a servir de mera cadeia de transm1ssao
nizadores tendem a ficar sobrecarregados, inclusive porque muitos de tais decisões para as bases. _
deles se dedicam a mais de um movimento, o que faz com que sejam
liberados de toda e qualquer tarefa prática. Como conseqüência,
l
J:. evidente que o avanço dos movimentos - . o. crescimento de
suas bases, a ampliação e diversificação de seus ob1et1vos, a sua con-
aprofunda-se a divisão de tarefas e responsabilidade entre organiza- íluência em tennos de lutas em comum e a constituição de "apare- 1
dores e base. lhos ideológicos" voltados para os interesses e os movimentos da clas-
Na medida em que os movimentos sociais avançam na defini- se trabalhadora - é desejável em si mesmo. O que se está tentando
ção dos seus objetivos, suas proposições programáticas tendem a to- apontar é o fato de que, neste avanço, os movimentos tendem a 1
car os próprios fundamentos da sociedade capitalista, como já foi sofrer transformações que encerram possibilidades crescentes de de-
tisto. Esta evolução não somente multiplica o trabalho intelectual turpação dos mesmos. Para minimizar estas pos:ib~li~ades e assegu-
em cada um dos movimentos, mas tende a fazer com que confluam rar a fidelidade dos movimentos não só a seus pnnc1p1os mas também
na formulação de suas demandas mais gerais. Assim, por exemplo, oos interesses de suas bases, não basta a observância da: regras _dej
há um evidente paralelismo entre a luta por autonomia e liberdade mocráticas formais de escolha das direções e de aprovaçao das dire-
sindical e a luta pela liberdade de organização partidária, sobretudo trizes. J: preciso que haja um esforço sistemático de form~ção i~eo-
quando esta última objetiva a legalização de partidos da classe tra- lógica das bases, de modo que a sua participação nas dehberaçoe_s,
balhadora. Da mesma forma, as lutas contra a discriminação racial cm vez de ser (como é comum, infelizmente) apenas formal, seia
e sexual tendem naturalmente a se unificar em numerosas instâncias. efetiva e real.
A esta confluência natural se soma a pressão "econômica" da J:. preciso constRtar que, no passado, estas distorções eram mui-
1exigüidade de quadros intelectuais para produzir uma crescente uni- to mais gerais e profundas nos movimentos sociais das clas_ses sub~l-
ficação dos movimentos sociais no que se refere especificamente à tcrnas de São Paulo e do Brasil do que se pode observar hoJe em dia.
~boração ideológica, à difusão de idéias e à coleta, ~sarnento Pode-se verificar atualmente que, em numerosas o_casiões, as bases
'-) e análise dej!ados e informações. Estas atividades são realizadas cada resistem a se deixar manobrar pelos seus organizadores, revelando um
,o
1 vez mais por ~rgãos externos aos movimentos - jornais e periódi- forte sentimento de autonomia que se manifesta, por exemplo, n~s
cos, centros de pesquisa, entidades religiosas e acadêmicas - que propostas de que a questão p~rtidária_ seja d~cidida mediante ."dis-
passam a constituir seus "a arelhos ideológicos". Na medida em que cussão nas bases". Atitudes analogas sao manifestadas no Movimen-
esta evolução tem lugar - e é ácil observá-la, em termos concretos, to do Custo de Vida e outros inspirados pelas CEBs, assim como no
no Brasil de hoje - ~e__n1Lo pe_rigo de que__a_distância entre orga- movimento feminista. Esta predisposição pode ser atribuída às pró-
n ·zado.res e bases ainda se torne maior. Este perigo decorre, de um prias condições de luta, enfrentadas. pelos .movime~to~ sociais no
lado, do fato de que as proposições dos movimentos se tornam· para passado recente, em que a repressão 1deológ1ca const'.tu~a forte _bar-
os seus membros cada vez mais abstratas, cada vez mais afastadas de reira ao seu avanço. Por isso mesmo, a presente ampl.1açao das h~e~-
sua experiência imediat-a e das necessidades diretamente sentidas dades democráticas está permitindo que os movimento~ s~1a1~ J
p~r eles. À falta de uma real compreensão de como aquelas proposi- acelerem seu avanço. o que coloca os dile~as ~p~ntados: fidelidade - ~ ..
çoes (por exemplo, mudança de estrutura sindical, alteração da polí- aos seus objetivos iniciais, em geral muito ltm1tados e r~ntes ao ;_;• . /
tica econômica) se ligam a estas necessidades, os membros da base sentir da base ou ampliação dos mesmos até chegar às ra1zes das/ ~
são levados a aceitá-las como resultado da fé e da confiança que de- contradições sociais que a afetam; desenvolvimento da divisão em (.,'

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j
ftOU próprio seio entre trabalho manual e trabalho intelectual, com
u tronsferência (explícita ou não) de partes deste último a aparelhos
1
Ideológicos externos ou esforço concentrado na elevação do nível
ideológico das bases tendo em vista habilitá-las a participar também
do trabalho intelectual; e, finalmente, ligar estes movimentos a algu-
ma corrente política policlassista capaz de atender suas reivindicações
imediatas ou procurar constituir formas próprias de representação no
plano político. Da forma como esses dilemas forem resolvidos de pen-
derá o futuro dos movimentos sociais da classe trabalhadora de São
Paulo e de todo o país.

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