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Caderno - Ditadura e Repressão.

Embora os regimes que criaram esses complexos institucionais fossem, de modo


geral, semelhantes, às estratégias jurídicas empregadas por eles, diante dos opositores e
dissidentes, apresentavam diferenças marcantes.
A importância dos processos por crimes políticos e as diferenças entre os tipos de
legalidade autoritária:

- Primeiro, a decisão de usar os tribunais, e não apenas a força bruta no trato com os
oponentes do regime, pode, em determinadas circunstâncias, fazer diferença em
termos do padrão geral da repressão praticada por um regime. Mesmo assim,
exigem aderência a procedimentos formais que, por vezes, podem vir a mitigar os
piores efeitos da repressão.

- Outra razão para estudarmos a legalidade autoritária e seus processos por crimes
políticos é que eles nos permitem construir um quadro mais detalhado da maneira
como a lei era manipulada, distorcida e usada de forma abusiva ou mantida
inalterada, sob o autoritarismo.

Entretanto, da mesma forma que houve grande continuidade jurídica na passagem


da democracia para o autoritarismo, as transições ocorridas na década de 1980 não
desmontaram por completo o aparato judicial repressivo construído sob o regime militar. Por
exemplo, os veredictos de julgamentos políticos brasileiros e chilenos nunca foram
repudiados pelo Estado.
Mesmo após a transição para a democracia, algumas das leis nas quais esses
julgamentos se baseavam — bem como as instituições que processaram e julgaram os
acusados — ainda existem. O exame desses julgamentos nos ajuda a entender exatamente
o que mudou e o que não mudou na esfera jurídica em consequência da democratização, no
Brasil e no Cone Sul, e a identificar os vestígios de legalidade autoritária ainda existentes
nesses países.

É possível pensar que as várias estratégias jurídicas empregadas por esses regimes
possam ser explicadas, simplesmente, pela força da oposição enfrentada por eles. O golpe
brasileiro foi preventivo, e a oposição aos militares era muito fraca. O golpe chileno foi um
“golpe ofensivo", mas a oposição armada ao regime militar foi relativamente insignificante. O
regime argentino, por sua vez, enfrentou uma esquerda armada que, provavelmente, era a
mais forte de toda a América Latina naquela época. No entanto, a extensão e a intensidade
da repressão praticada pelo regime não devem ser confundidas com sua forma. A força da
oposição não explica as diferentes matrizes institucionais adotadas por cada regime, nem os
diferentes esquemas organizacionais para lidar com a subversão.

Além disso, nos regimes autoritários, esses grupos poderosos influenciam fortemente
a formulação e a aplicação da lei. Consenso é definido aqui como um sólido acordo firmado
entre as elites quanto às linhas gerais, aos objetivos e às táticas das políticas adotadas. Meu
ponto de vista é que esse tipo de integração e de consenso era mais alto no Brasil e mais
baixo na Argentina, com o Chile ocupando uma posição intermediária. Meu argumento é
histórico, uma vez que afirmo que as condições políticas e sociais vigentes, antes da
formação de cada um desses regimes políticos, foram cruciais na configuração das decisões
tomadas posteriormente pelos dirigentes do regime.
Pode-se objetar que é difícil medir a integração e o consenso entre o Judiciário e os
militares, não importa a variável que essa medida tenta explicar — a estratégia legal
adotada pelo regime militar. Difícil, mas não impossível. Neste livro, usei dois indicadores
para avaliar o grau de consenso e integração entre o oficialato das forças armadas e as
elites judiciárias. Primeiro, a organização do sistema de justiça militar é uma variável-chave
do grau de conexão formal entre as elites militares e judiciárias na aplicação das leis de
segurança nacional é primordial. Nos casos em que os tribunais militares são parte do
sistema Judiciário civil e contam com a participação de juízes e promotores civis, como
ocorreu no Brasil, as elites militares Judiciárias são compelidas, por sua participação comum
nesse mesmo processo híbrido, a construir e manter um entendimento interorganizacional
sobre o significado concreto e a aplicabilidade da lei de segurança nacional.
Quando os tribunais militares de primeira instância são totalmente separados da
justiça civil, como ocorreu no Chile, os militares têm mais facilidade em recorrer a própria
visão de justiça política como base para seus atos, sem levar em conta as ideias dos juízes
e advogados civis. Essa variável pode ser discernida na arquitetura formal do sistema de
justiça militar, mas sua importância vai além da arquitetura em si, afetando as atitudes, as
disposições e o entendimento mútuo entre as elites militares e judiciárias. Logo, codifiquei as
fontes brasileiras como refletindo um alto grau de consenso, as fontes chilenas como
indicando um consenso médio, e as argentinas, um consenso baixo. .

Padrões de repressão e legalidade.


Minha argumentação, portanto, estabelece distinção entre os regimes autoritários
com base na maneira de abordarem a lei. Afirmo que, sob um governo autoritário, o
consenso e a integração entre as forças armadas e o judiciário moderam a repressão
política, permitindo sua judicialização.
Sob a repressão judicializada, os advogados de defesa e os grupos oposicionistas da
sociedade civil conseguem, até certo ponto, defender os princípios democráticos, mesmo
que essa oportunidade seja altamente cerceada. Nos casos em que os militares encaram
com hostilidade aberta o judiciário, por outro lado, tendem a usurpar as funções judiciais e a
adotar, nos tribunais procedimentos puramente militares, como ocorreu no Chile, ou a
ignorar por completo a lei e tratar como inimigos as advogados de defesa, às vezes até
mesmo os juízes, como ocorreu na Argentina. O espaço para a defesa dos princípios
democráticos é mais limitado no primeiro caso, é praticamente nulo no último. O perigo, nos
regimes autoritários, é de os militares virem a passar por cima ou até mesmo solapar o
Judiciário, lançando-se numa guerra aberta contra os supostos oponentes. Nesses casos,
os advogados de defesa e os grupos da sociedade civil têm que esperar pelo fim do regime
autoritário para exigir justiça com algum grau de esperança de sucesso.
Apesar de suas semelhanças gerais, portanto, os regimes militares do Brasil, do
Chile e da Argentina exibe uma nítida variação em seus padrões repressivos, com sua
observância da lei, na relação entre os tribunais e as forças de segurança e no emprego dos
processos por crimes políticos, Os três casos representam um espectro indo de um alto grau
de judicialismo e gradualismo (com respeito a legalidade antes vigente) até um grau de
ruptura muito radical com a legalidade do período anterior, e de repressivo quase que
totalmente extrajudicial.
A abordagem brasileira à questão da legalidade foi marcada por uma maior
cooperação entre as forças armadas e o judiciário e por uma maior preocupação com a
legalidade formal no trato com os adversários políticos, pelo menos com os que faziam parte
da elite política, do que ocorreu nos dois outros casos. No Chile, os militares tendiam a
usurpar o poder ou a assumir a autoridade judicial, mais do que a tentar se integrar no
Judiciário civil, como ocorreu no Brasil. E, na Argentina, era comum os militares
desrespeitarem frontalmente o poder judiciário, com a subsequente ratificação judicial das
consequências concretas do arbítrio militar.

Processos por crimes políticos e regimes autoritários

Os processos por crimes políticos são ações judiciais onde os réus são acusados de
crimes de natureza política. Eles são montados pelo regime a fim de intimidar, deslegitimar e
desmobilizar seus opositores. Os tribunais são convocados a agir de modo a influir sobre a
distribuição do poder político.

As razões de institucionalizar a repressão são:

- Elevar o preço da oposição, intimidando-a, tachando-a de criminosa, envolvendo-a


em batalhas legais onerosas e prolongadas e impedindo de desempenhar um papel
político efetivo.

- Usar os tribunais para justificar a repressão praticada por eles e conquistar


legitimidade ou, pelo menos, aquisição passiva a seu poder.

- Criar um efeito psicológico em meio a opinião pública ou criar imagens políticas.

A justiça transicional e a herança da legalidade autoritária.

Em todo o mundo, a justiça transicional, instaurada após o fim de regimes


autoritários, quase sempre tendeu a adotar duas instituições de grande importância: uma
comissão oficial criada pelo governo para investigar relatar sobre as violações dos direitos
humanos ocorridas no passado e a iniciativa de levar os responsáveis a julgamento.
Se usarmos a adoção dessas instituições como parâmetro, nossos três casos
exibem resultados surpreendentemente díspares. Na Argentina, o primeiro governo
pós-autoritário criou uma comissão da verdade e levou a julgamento os dirigentes do regime
militar, bem como outros responsáveis por violações dos direitos humanos. No Chile, o
governo civil empossado após o fim da ditadura criou uma comissão da verdade, mas não
levou a julgamento os dirigentes do regime militar, embora alguns dos responsáveis por
violações de direitos humanos tenham, mais adiante, sido processados. No Brasil, o
resultado foi fortemente minimalista: nem comissão da verdade, nem julgamentos. Esses
resultados foram influenciados tanto pela natureza da legalidade autoritária em si quanto
pelas limitações colocadas pelas diferentes transferências democráticas.
As forças armadas e o judiciário são também um tópico importante. Ainda quanto a
esse ponto, nossos casos mostram grandes variações. Na Argentina houve expurgos e
foram adotadas novas maneiras de impor restrições tanto ao Judiciário quanto às forças
armadas. No Chile, as forças armadas, isoladas e em grande medida intocáveis,
mantiveram-se imunes, enquanto o poder Judiciário passou por transformações graduais,
contínuas e significativas. E, no Brasil, as organizações conservadoras do Judiciário e das
forças armadas mantiveram-se praticamente incólumes, apesar da transição para a
democracia.

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