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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Faculdade de Direito

Tema para Ensaio - Linha “Sociedade, Conflito e Movimentos Sociais”

O debate jurídico e politico contemporâneo sobre as dificuldades de acesso à


justiça de setores marginalizados e sobre a criminalização dos movimentos sociais tem
diversas dimensões e possibilidades de abordagens teóricas. Discorra sobre estes temas
articulando-os e referenciando-os ao desenvolvimento de pesquisas empíricas no
contexto nacional, regional ou global.

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O enfoque do acesso à Justiça requer muito mais que a criação de tribunais ou
mudanças na legislação. As pesquisas contemporâneas acerca do tema reconhecem que
o direito posto e as instituições existentes são necessários, mas precisam ser melhorados
e modernizados, tanto quanto seus procedimentos, para que a justiça se torne simples,
rápida, barata e acessível aos pobres, viabilizando resultados mais justos, que não refli-
tam as desigualdades entre as partes. O problema fundamental em relação aos direito do
homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los.
A Constituição da República de 1988, ao introduzir os direitos territoriais, cultu-
rais e coletivos, impôs um novo desafio no que tange às políticas públicas (também de
acesso à justiça) e à estrutura do Estado para garantir a efetivação da democracia inter-
cultural e superar definitivamente a concepção monolítica e centralizadora do poder do
Estado, diante das distintas ordens constitucionais historicamente constituídas.
Não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça como instituição estatal, e
sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa, sendo, inclusive, finalidades básicas
do sistema jurídico que ele seja igualmente acessível a todos e que produza resultados
individualmente e socialmente justos. Nesse diapasão, Boaventura de Sousa Santos
(1996), ao discorrer sobre o assunto, assim inicia seus escritos: “O tema do acesso à jus-
tiça é aquele que mais directamente equaciona as relações entre o processo civil e a jus-
tiça social, entre igualdade jurídico-formal e desigualdade sócioeconómica.”
Loïc Wacquant realizou um profundo estudo num gueto negro em Chicago, o
qual contribuiu para enxergar essa problemática nas periferias dos grandes centros. No
caso norte-americano, a política securitária dita “da lei e da ordem” seria uma réplica
aos movimentos sociais dos anos sessenta, notadamente, aos avanços do movimento
negro. Para Wacquant, haveria uma passagem do "Estado mínimo" social e econômico
para o "Estado máximo" policial e penal, tornado caudatário da matéria "justiça". O e-
xemplo emblemático seria o de Nova Iorque com a teoria da "vidraça quebrada", a qual
legitimou a política de “tolerância zero”. Esta política permitiu efetuar uma "limpeza de
classe" no espaço público, afastando os pobres ameaçadores à ordem das ruas, dos par-
ques, dos trens, etc. (WACQUANT, 2008)
Assim como no Brasil, quase todos os países da Europa experimentam um forte
crescimento da população carcerária, dominantemente, formada por desempregados e
carentes (estrangeiros, no caso dos países europeus), simultaneamente acompanhado de

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um claro endurecimento das políticas penais, mais abertamente voltadas para a "defesa
social" em detrimento das de reinserção social.
A teoria da defesa social oculta a verdadeira prática desigual do sistema penal, a
qual, contudo, foi desconstruída pela criminologia crítica (BARATTA, 2002). Os acha-
dos da criminologia crítica demonstram que a seletividade orientada pela classe do indi-
víduo opera em todas as fases do processo de criminalização. Isso, com base numa vi-
são de que a intervenção penal não teria o objetivo de proteger, de forma equânime, os
bens jurídicos que são igualmente relevantes para toda a sociedade. Existiria uma puni-
ção seletiva a fim de proteger os interesses da classe dominante, com isso, a suposta i-
gualdade jurídica no âmbito penal teria apenas a função ideológica de ocultação da sua
verdadeira função.
Cabe ressaltar que a distribuição desigual da criminalização é concretizada em
três planos: o da produção das normas (criminalização primária), o da aplicação das
normas (criminalização secundária) e o da execução das penas ou medidas de segurança
(criminalização terciária). Observa-se que essa modernidade seletiva cria um grupo
massificado de subcidadãos, devido à falta de qualificação necessária para se inserir no
Mercado. Tais indivíduos são cada vez mais marginalizados, ocupando postos de des-
prestígio social.
Os setores vulneráveis (massas marginalizadas urbanas) são o alvo preferencial
no processo de controle social e de intimidação dos órgãos opressores, cuja estrutura
legal e física do sistema penal na república brasileira é fortalecida para dar conta dos
excluídos sociais, sob o olhar lombrosiano, positivista e patriarcal.
No que tange aos movimentos sociais, imperioso ressaltar que o Estado relacio-
na-se com eles de, pelo menos, duas formas: a uma, criando estratégias de criminaliza-
ção; a duas, aceitando a participação como parte do contexto democrático, ou seja, acei-
tando as estratégias de politização do processo social para a garantia e efetivação de di-
reitos.
De certo, quando os movimentos sociais tendem a ser criminalizados, eles utili-
zam-se do fortalecimento dos direitos humanos para se protegerem, principalmente, nas
suas dimensões de direitos civis e políticos. Entretanto, o que se observa no caso brasi-
leiro é que há uma forte influência do Poder Executivo no Poder Judiciário para que e-
xerça um controle e repressão desses movimentos sociais.

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Noutro giro, quando se enxerga os movimentos sociais como parte integrante da
construção social democrática, o Direito surge qualificando estratégias de politização
das lutas sociais. Percebe-se que o Direito não é um instrumento de Estado, uma vez
que foram conquistados pelos movimentos, ou seja, há um claro incremento da dignida-
de política do direito.
Na sociedade brasileira, estratificada socialmente, as dificuldades de acesso à
justiça oficial, bem como a impossibilidade de arcar com as despesas judiciais (incluin-
do-se os honorários advocatícios), fazem com que crescentes movimentos sociais insur-
gentes e grande parte das camadas populares marginalizadas tendam a utilizar meca-
nismos ― não-oficiais de negociação normativa e a recorrer aos serviços legais alterna-
tivos. Para Wolkmer (2001), a expansão dessas práticas e manifestações normativas in-
formais tem levado alguns pesquisadores empíricos do Direito a reconhecer, nesse fe-
nômeno, uma resposta natural à incapacidade da Justiça oficial do Estado de absorver as
crescentes demandas sociais geradoras de conflitos coletivos e de decisões judiciais.
Não há dúvidas que o caráter custoso e moroso do Poder Judiciário, que acaba
segregando as camadas populares marginalizadas, reforça a opressão e serve como ins-
trumento de manutenção de um status quo dominante. É nítido o aspecto obsoleto, está-
tico e excludente das instituições normativas oficiais (tanto no âmbito da legislação po-
sitiva quanto do Poder Judiciário), o qual tem como consequência a ineficiência da lega-
lidade dominante e a profunda crise de legitimidade, abrindo espaço para os movimen-
tos sociais de marginalizados e despossuídos (v.g. “sem-teto” e “sem-terra”), que – sem
acesso à Justiça oficial – utilizam-se de práticas jurídicas paralelas e alternativas.
Quando se observa uma insatisfação da sociedade com a aplicação do direito es-
tatal e a fim de proporcionar meios para a satisfação dos conflitos é que surgem os direi-
tos paralelos, de aplicação social, eficácia imediata, restritiva, criados pela própria soci-
edade, configurando-se assim o pluralismo jurídico. Boaventura Sousa Santos (1988)
explica que: “o pluralismo jurídico surge para preencher a lacuna promovida pela au-
sência do Estado em determinadas localidades”
Solucionar conflitos, por conseguinte, requer a atuação num contexto de alteri-
dade sem hierarquias, a qual opõem as práticas do social às prescrições da autoridade
localizada no Estado. É imperioso que o Direito seja operacionalizado por um especia-
lista (o magistrado), a partir de uma pauta restrita (o ordenamento jurídico), em relação

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a sujeitos que não são reconhecidos em suas identidades (ainda não constituídos plena-
mente como seres humanos e cidadãos) e que buscam construir a sua cidadania por
meio de um protagonismo que busca o direito social. Esse processo – segundo Jose Ge-
raldo da Silva Junior (2008) – que antecede e sucede o procedimento legislativo, o Di-
reito, que não se contém apenas no espaço estatal e dos códigos é, efetivamente, achado
na rua.
A tarefa do julgador não é meramente técnica. Ao contrário, é social e politica-
mente determinada. Trazendo à realidade pátria, não se trata mais da retrógada capaci-
dade de os grupos econômicos minoritários verem seus interesses acolhidos em lei ou
eficazmente defendidos na Justiça. Vive-se numa sociedade em que setores, antes de-
sorganizados e pouco sensíveis à utilização do Direito enquanto ferramenta de conquista
e ampliação da cidadania política – ou seja, a grande maioria da população brasileira –
passa a enxergar o Judiciário como uma saída relevante de luta política. Campilongo
(1994) afirma que essas situações, protagonizadas por grupos há pouco tempo alijados
do acesso à Justiça, e – muitas vezes – orientados por uma racionalidade dificilmente
amoldável às rotinas judiciais, vêm, lenta, mas progressivamente, desafiando a rigidez
lógico-formal dos sistemas legais.
O acesso à justiça tem que transpor as condicionantes econômicas, mas também
as condicionantes sociais e culturais, resultantes de processos de socialização e de inte-
riorização de valores dominantes muito mais complexos de transformar (SANTOS,
1993).
No contexto atual, Boaventura de Sousa Santos (1993) diz que “o judiciário faz
da lei uma promessa vazia”. É preciso abrir o Poder Judiciário, não só para a moderni-
zação tecnológica e eficiente de forma matemática, mas também para as riquezas subje-
tivas, sociais e culturais interpelantes.
Assim, o acesso à justiça deve ser encarado como o mais básico dos direitos em
um sistema jurídico igualitário que tenha por finalidade realmente garantir, e não apenas
proclamar os direitos de todos. Portanto, a democratização da justiça deve se dar com a
efetiva aproximação do cidadão em relação ao Judiciário.

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