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3.

Sociologia dos tribunais e democratização da Justiça

Ainda que a Sociologia jurídica tenha sido constituída como ramo


especializado) apenas a partir de meados do século XX, Boaventura da
Souza Santos (1999) recorda que o Direito é um fenômeno social objeto de
séculos de produção intelectual e teórica associadas a disciplinas afins,
como a Filosofia e a História do Direito.

Este fato, associado à consolidação da Ciência Política como disciplina e


ao interesse desta nos tribunais como instância de decisão e poder políticos,
e ao desenvolvimento da orientação, dentro da antropologia do direito, à
análise dos processos e das instituições jurídicas e ao poder destes de
estruturarem os comportamentos dos atores destes sistemas, formaram as
condições teóricas e concretas para o desenvolvimento da sociologia dos
tribunais (SANTOS, 1999).

3.1 Acesso à Justiça


A expressão “acesso à justiça” pode assumir uma variedade de definições,
mas Mauro Cappelletti (1988), afirma que a mesma pode assumir dois
significados: inicialmente, refere-se à possibilidade dos indivíduos de
reivindicarem direitos e buscarem a resolução de conflitos no âmbito do
Judiciário; ao mesmo tempo, se associa à possibilidade das pessoas terem
efetivo acesso a resultados justos para si e para o meio social. Trata,
portanto, não somente da garantia concreta do Direito de recorrer aos
tribunais, mas do atendimento à justiça social dentro e por meio deste
espaço (FULLIN, 2013).
Como indicado na seção anterior, o surgimento e a consolidação do acesso
à justiça com o conteúdo amplo apontado acima dependeram de
modificações e transformações históricas a respeito do entendimento
inicial, no sentido de que os cidadãos tinham a liberdade e o direito para
litigar em defesa de seus interesses (concepção liberal). A assunção de que
o acesso à justiça implica na promoção da igualdade social e, portanto, na
disposição de condições econômicas, culturais e institucionais concretas
para a judicialização de demandas veio no bojo da adoção de políticas dos
Estados de bem-estar social nos países ocidentais – normalmente revestidas
de proteção legal (FULLIN, 2013).
Esta positivação de direitos sociais e a regulamentação crescente das
esferas da vida social por meio do Direito contribuiu para a intensificação
do recurso aos tribunais para a obtenção de direitos conquistados, processo
definido por autores como Vianna et. al (1997) como “a judicialização das
relações sociais”.
O processo de judicialização se intensificou e adquiriu contornos mais
conflituosos a partir das crises econômicas e do desmonte de políticas de
bem-estar social nos países centrais a partir do final dos anos 1970. As
expectativas da cidadania em pleitear direitos e políticas públicas
sucateadas pelos próprios Estados (FULLIN, 2013), associadas ao
crescente protagonismo do Judiciário como espaço para resolução de tais
questões provocou o fenômeno denominado por Boaventura de Sousa
Santos (1999) como “explosão de litigiosidade”.
Entretanto, de forma concomitante a este processo, os próprios serviços
judiciários destes países tiveram suas capacidades limitadas pela falta de
investimento e recursos. A disparidade entre a estrutura existente do
sistema e a grande demanda social de garantia de direitos por meio dos
tribunais fomentou a “crise da administração da justiça” (FULLIN, 2013).
Estes fenômenos estimularam as reflexões de governos em torno de
medidas para mitigá-los, bem como fomentaram a investigação e a
pesquisa social – onde se insere a Sociologia jurídica e, mais
especificamente, a Sociologia dos tribunais –, para identificar e fazer
prognósticos sobre gargalos e impedimentos, de ordem institucional,
econômica, social ou cultural, ao acesso à justiça pelos cidadãos.
Como resposta a estes desafios, intensificaram-se movimentos por reformas
com o objetivo de enfrentar e mitigar as diversas barreiras e desigualdades
de acesso à justiça. Mauro Cappelletti, processualista italiano, teve
destaque neste processo e identificou a existência de três conjuntos de
reforma empreendidos sequencialmente no Ocidente com o objetivo de
ampliar e qualificar o acesso à justiça, os quais ficaram usualmente
conhecidos como “as ondas do movimento de acesso à justiça”.
A primeira onda de aprimoramento do acesso à justiça teria sido
representada pelas políticas de investimento público em assistência
judiciária gratuita ao público necessitado, visando minimizar as barreiras
de caráter econômico no sistema. Este tema foi introduzido no direito
brasileiro a partir da Lei nº 1.060, de 1950.
Para Cappelletti (1988), a segunda onda buscou enfrentar a questão da
representação dos interesses difusos e coletivos, atribuindo legitimidade
ativa para coletividades, grupos representativos e atores governamentais -
no Brasil, especialmente o Ministério Público e em seguida a Defensoria
Pública -, para ingressar em juízo em defesa dos direitos de uma
multiplicidade de sujeitos.
Por fim, a terceira onda do movimento estaria associada a um complexo de
reformas visando modificar as formas de resolução de conflitos, tendo,
como alguns de seus objetivos, a agilização, simplificação e a busca de
soluções mais mediadas entre as partes (FULLIN, 2013). Nesta
perspectiva, insere-se a ampliação da aplicação dos chamados meios
alternativos de resolução de conflitos, como a justiça restaurativa, a
mediação, a conciliação e a arbitragem.
Ainda que tenham sido observados avanços sensíveis no acesso à justiça às
minorias sociais, o tema do acesso à justiça permanece um desafio para o
Judiciário e para o campo da Sociologia do direito. A flexibilização e
simplificação de procedimentos também podem promover e perpetuar
assimetrias e desigualdades, o que exige contínua análise e reflexão sobre
novos meios para promover a garantia de direitos e a resolução adequada
de conflitos sociais.

3.2 Tribunais e movimentos sociais

A organização do Judiciário brasileiro, definida por Boaventura de Sousa


Santos (2011), se estrutura de forma análoga à de uma pirâmide, onde a
posição hierárquica define o prestígio e a influência dos indivíduos no
sistema e na qual um pequeno número de juízes no alto desta hierarquia
define quase integralmente a linha dos tribunais como um todo.

O autor observa que, assim como em Portugal, a transição pós-ditadura


destes países pouco modificou a estrutura organizacional dos tribunais,
mantendo um cenário de insulamento burocrático, foco dos magistrados no
“sucesso” individual de suas carreiras – medido aqui pela escalada
hierárquica, não qualidade ou influência do conteúdo e da correção das
decisões proferidas. Este cenário de isolamento social do Judiciário
implicou, também, na falta de discussão de mecanismos de controle
democrático da magistratura (SANTOS, 2011).

Esta postura passou a ser cada vez mais alvo de críticas de movimentos
sociais – como os movimentos negro, indígena e sem-terra –, em relação às
insuficientes, atrasadas ou desiguais respostas jurisdicionais às suas
demandas. Dentre os questionamentos realizados por estes movimentos,
estão a falta de reflexão teórica e social a respeito de inovações e
refinamentos nos debates políticos e jurídicos acerca de políticas e
conceitos como as cotas raciais, a função social da propriedade e aos
direitos dos povos originários. Isso leva à morosidade ou ao desinteresse
em proferir decisões liminares ou definitivas em tempo hábil; ou o tácito ou
explícito favorecimento ao lado econômica e socialmente favorecido das
demandas pela reprodução, no processo, de assimetrias e desigualdades
entre as partes.

Lidar com este problema implica numa profunda reflexão acerca da


estrutura do sistema de justiça não apenas nos métodos de seleção dos
profissionais que operam no mesmo, tampouco exclusivamente na
atualização do processo formativo dos magistrados, mas também nos
métodos de avaliação de desempenho e de definição da promoção na
carreira (SANTOS, 2011).

Nesse sentido, o cumprimento do potencial dos tribunais em prover


materialmente a garantia dos direitos sociais e de mitigar desigualdades
históricas que nossa Carta Constitucional se comprometeu a combater
implica numa autorreflexão desta instituição acerca de suas funções e de
sua responsabilidade sistêmica – mas realizada por meio de demandas
individuais ou setoriais – de enfrentar conflitos estruturais existentes no
tecido social. Isto implica também em acolher uma concepção atual e
ampla de direitos humanos, concebida aqui para além de sua dimensão
estritamente individualista, civil e política, incluindo também direitos
sociais e econômicos coletivos e difusos.

Na apreciação de conflitos relacionados à demandas étnico-raciais


históricas, isto demanda a compreensão do papel estruturante da escravidão
e do colonialismo na formação da sociedade brasileira, bem como da
permanência de desigualdades sociais e econômicas entre brancos e negros
no Brasil. Isto se associa inclusive à escassa presença da população negra
no corpo burocrático do Judiciário, especialmente em cargos de maior
prestígio.
Por outro lado, no que diz respeito aos conflitos associados à terra e à
propriedade nos meios rural e urbano, observa-se aqui uma atuação
contínua de pelo menos quatro grupos numerosos de movimentos sociais,
articulados de forma relativamente autônoma entre si. Além dos
movimentos sem-terra, dos quilombolas e de povos indígenas, indicados
por Boaventura de Sousa Santos (2011), emergiu com maior força na
última década o movimento dos sem-teto e das ocupações urbanas. As
demandas históricas destes grupos exigem dos membros do Judiciário
sensibilidade e compreensão sistêmica do arcabouço jurídico erigido pós-
Constituição de 1988 para uma avaliação parcimoniosa dos direitos de tais
atores nas diversas demandas em que a posição dos tribunais será a palavra
final.

3.3 Cultura jurídica e independência judicial

Nesse sentido, Santos (2011) relaciona a necessidade de se buscar uma


equalização entre a necessária garantia da independência do Judiciário e de
seus atores – vista como importante conquista democrática –; e,
concomitantemente, o desenvolvimento de mecanismos democráticos de
controle externo da atividade judicial.

Isto se justifica pelo fato de que, na maioria das democracias modernas, o


Judiciário é o único dos três poderes no qual seus agentes não obtêm seus
cargos direta ou indiretamente relacionados à soberania popular, sendo
membros não-eleitos.

Este fato, associado a uma estrutura organizacional obsoleta e, no caso


brasileiro, do direcionamento de vultuosos recursos financeiros para a
administração da justiça (em porcentagem maior do PIB que todos os
países desenvolvidos, bem como de outras nações latinoamericanas) – em
especial voltada aos altos salários e “penduricalhos”, ou verbas e auxílios
adicionais ao salário – contribui para o insulamento excessivo deste Poder
e, em consequência, a exacerbação do corporativismo na instituição.
Ao mesmo tempo, diversos estudos demonstraram a predominância, dentro
do corpo de funcionários do Judiciário, de pessoas de origem social
abastada e cujo ambiente familiar e social é, historicamente, afim ao da
elite econômica e cultural brasileira. Esta condição pode produzir diversas
implicações, como a falta de empatia com a condição de partes
desfavorecidas em processos, bem como, numa perspectiva sistêmica, de
um ethos conservador e tendente à manutenção do status quo, visto que os
próprios juízes, desembargadores e promotores compõem a elite, com
interesses materiais e posturas ideológicas conformes.

Exemplos da influência de uma cultura jurídica particular, e geralmente


conservadora, na prestação jurisdicional concreta não faltam. Um
desdobramento marcante deste fenômeno foi observado a partir da
ampliação das hipóteses legais de alternativas à prisão no processo penal
pátrio, com a inserção de novas possibilidades de medidas cautelares.
Embora se esperasse um possível impacto da mudança legislativa na
redução da população carcerária brasileira, pesquisas como a do Instituto
Sou da Paz (2011) mostraram a permanência da preferência dos
magistrados em designar a privação da liberdade de acusados na maioria
dos casos, bem como de hipóteses antigas e restritas de medidas cautelares,
como a fiança.

Este resultado se relaciona diretamente com as os conceitos e preconceitos


acerca da figura do acusado, de seu papel no sistema de justiça criminal e
das funções do mesmo. Ao invés de julgador imparcial e desinteressado,
muitos magistrados passaram a se considerar verdadeiros agentes de
segurança orientados pela “luta contra o crime” (INSTITUTO SOU DA
PAZ, 2011).

Situação parecida foi observada por Santos (2011) após reforma similar
ocorrida em Portugal. Nesse país, os pesquisadores captaram outro aspecto
relevante que influía na baixa aplicação da medida de cumprimento de
serviços à comunidade: o escasso diálogo e articulação do Judiciário luso
com os programas de assistência social e organizações da sociedade civil.

Desse modo, Santos (2011) e outros autores perceberam a relevância de se


atentar à cultura jurídica para que mudanças sociais e reformas legislativas
tenham os resultados concretos almejados: “(...) sem uma outra cultura
jurídica não se faz nenhuma reforma” (SANTOS, 2011, p. 84).

Nesse sentido, o sociólogo português conclui: “(...) A nossa meta deve ser a
criação de uma cultura jurídica que leve os cidadãos a sentirem-se mais
próximos da justiça. Não haverá justiça mais próxima dos cidadãos, se os
cidadãos não se sentirem mais próximos da justiça. ” (SANTOS, 2011, p.
84).

É ISSO AÍ!

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