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FELIPE DALENOGARE ALVES

FABIANO DE OLIVEIRA BECKER


SILOMAR GARCIA SILVEIRA
Organizadores

NOVOS PARADIGMAS NA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA MUNICIPAL
CONTEMPORÂNEA
Autores/Colaboradores:

Alberto Barreto Goerch Luiza Ferreira Odorissi


Carlos Alexandre Michaello Marques Maíra Cristina Machado Morais
Felipe Dalenogare Alves Mônia Clarissa Hennig Leal
João Aparecido Bazolli Sandro Ari Andrade de Miranda
Lucilene Wolfarth Wesley Corrêa Carvalho

1ª edição – 2013 – São Paulo-SP


COMO CITAR:
LEAL, Mônia Clarissa Hennig; ALVES, Felipe Dalenogare. DIREITOS SOCIAIS E
CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS NA ORDEM
CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEA: a reserva do possível e o mínimo
existencial como fundamentos para a atuação do Judiciário. In: ALVES, Felipe
Dalenogare; BECKER, Fabiano de Oliveira; SILVEIRA, Silomar Garcia (Orgs).
Novos Paradigmas na Administração Pública Municipal Contemporânea. São
Paulo: Letras Jurídicas, 2013.

DIREITOS SOCIAIS E CONTROLE


JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS
NA ORDEM CONSTITUCIONAL
CONTEMPORÂNEA: a reserva do possível
e o mínimo existencial como fundamentos
para a atuação do Judiciário1
Mônia Clarissa Hennig Leal(*)
Felipe Dalenogare Alves(**)

(*)
Pós-Doutora em Direito pela Ruprecht-Karls Universität Heidelberg, Ale-
manha. Doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos
– Unisinos. Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mes-
trado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul, onde ministra
as disciplinas de Jurisdição Constitucional e de Controle Jurisdicional de
Políticas Públicas, respectivamente. Bolsista de produtividade em pesquisa
do CNPq.
(**)
Pós-graduando lato sensu (Especialização) em Direito Público pela Universida-
de Cândido Mendes – UCAM e em Gestão Pública Municipal pela Universi-
dade Federal de Santa Maria – UFSM. Pós-graduando stricto sensu (Mestrado)
em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul.
1
Este artigo é resultante das atividades do projeto de pesquisa “Controle
jurisdicional de políticas públicas: o papel e os limites do Supremo Tribunal
Federal na fiscalização e na implementação de políticas públicas de inclusão
social – análise crítica e busca de novos mecanismos/instrumentos para
uma atuação democrática e cooperativa entre os Poderes”, onde os auto-
res atuam na condição de coordenadora e de participante, respectivamente,
vinculado ao Grupo de Pesquisa “Jurisdição Constitucional aberta” (CNPq)
e desenvolvido junto ao Centro Integrado de Estudos e Pesquisas em Polí-
ticas Públicas – CIEPPP (financiado pelo FINEP), ligado ao Programa de
Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da Universidade de
Santa Cruz do Sul – UNISC.
14 Felipe Dalenogare Alves, Fabiano de Oliveira Becker e Silomar Garcia Silveira

1. Introdução

O presente artigo é resultado de uma pesquisa que teve por


objeto a investigação acerca dos principais argumentos utilizados
para a efetivação dos direitos sociais pelo Poder Judiciário. A bus-
ca da tutela jurisdicional dos direitos fundamentais diante da or-
dem constitucional contemporânea tem se tornado cada vez mais
frequente. O cidadão, com uma Constituição Cidadã, dotada de
direitos fundamentais e, aqui, em especial os sociais, dispõe de fer-
ramentas para procurar o Judiciário em busca da satisfação do seu
direito, principalmente diante da séria desordem institucional do
Estado Brasileiro.
Por outro lado, compreende-se que levar os direitos elenca-
dos na Constituição a todos os cidadãos brasileiros se constitui em
tarefa complexa, não podendo, entretanto, essa dificuldade servir
como argumento para que estes não cheguem ao destinatário, qual
seja o povo brasileiro. Afinal, já dizia Pontes de Miranda que “nada
mais perigoso do que fazer-se Constituição sem o propósito de
cumpri-la”2.
Assim, surge a problematização à Administração Pública Con-
temporânea, em especial ao Município, dotado de responsabilida-
des e competências atribuídas pela Constituição, como ente fede-
rativo que é, de efetivar os direitos sociais diante da escassez de
recursos. Esta não efetivação encontra-se respaldada pela denomi-
nada reserva do possível? Ou deve-se garantir o mínimo existencial
à vida e à dignidade humana? E como se portará o Poder Judiciário
quando exercer o controle jurisdicional de políticas públicas frente
ao mínimo existencial e a reforma do possível?
A fim de que ocorresse a consecução dos objetivos propostos,
a pesquisa bibliográfica desenvolveu-se com a utilização dos mé-
todos dedutivos, para fins de abordagem, e monográfico, a título

2
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1, de
1969. 2. ed. 1. v. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970. p. 15.
Novos Paradigmas na Administração Pública Municipal Contemporânea 15

procedimental, analisando-se a Constituição, a doutrina e a juris-


prudência pertinentes ao tema.
Desta forma, buscou-se, em um primeiro momento, uma
breve contextualização dos direitos fundamentais sociais na so-
ciedade contemporânea, apresentando-se sua evolução histórica
e seu caráter de direito fundamental, passando-se a estudar a re-
serva do possível, desde sua importação do direito alemão e (in)
adequação ao direito brasileiro, sob o viés tridimensional apresen-
tando por Sarlet e, por fim, abordando-se a sua incompatibilidade
com o mínimo existencial, verificando, por derradeiro, os atuais
contornos da atuação do Judiciário no exercício do Controle Ju-
risdicional das Políticas Públicas, a fim de garantir o direito cons-
titucionalmente previsto.

2. Breve contextualização dos direitos


fundamentais sociais na sociedade
brasileira

Os direitos sociais, tidos como direitos fundamentais de 2ª ge-


ração (ou dimensão), relativos à igualdade, são, em grande parte,
denominados de direitos prestacionais ou direitos positivos, pois
exigem uma prestação positiva por parte do Estado para que se
atinja sua consecução. Nesse sentido, Cara destaca que “El derecho
de prestación en sentido amplio es sinónimo de pretensión de pres-
tación estatal, implicando acciones de los poderes públicos para dar
respuesta a dicha pretensión”.3 Há de se ressaltar, entretanto, que
alguns pressupõem prestações fáticas, outros normativas, enquanto
há aqueles que não as exigem (férias, 13º salário, etc).
Embora seja um debate considerado já pacificado no ordena-
mento jurídico brasileiro, sempre convém lembrar que os direitos

3
CARA, Juan Carlos Gavara de. La dimensión objetiva de los derechos sociales. Barce-
lona: Bosch Editor, 2010. p. 18.
16 Felipe Dalenogare Alves, Fabiano de Oliveira Becker e Silomar Garcia Silveira

sociais fazem parte dos petrificados direitos fundamentais, como


bem destaca Sarlet:

Embora aparentemente estejamos diante de uma obviedade, o fato


de existirem segmentos da doutrina, ainda que bem intencionados e
mesmo amparados em argumentos de relevo, que estejam negando
a condição de autênticos direitos fundamentais dos direitos sociais
(existe até quem negue a própria existência dos direitos sociais!)
torna oportuna a lembrança de que ao se tratar de direitos funda-
mentais na Constituição não há como abrir mão de uma perspecti-
va dogmático-jurídica (mas não necessariamente formal-positivista)
da abordagem, reafirmando-se, de tal sorte, a necessidade de uma
leitura constitucionalmente adequada da própria fundamentação
(inclusive filosófica) tanto da assim designada fundamentalidade
quanto do próprio conteúdo dos direitos sociais.4

Barretto afirma que os direitos sociais “não são meios de repa-


rar situações injustas, nem são subsidiários de outros direitos. Não
se encontram, portanto, em situação hierarquicamente inferior aos
direitos civis e políticos”.5 Prossegue, ainda, expondo que “os di-
reitos sociais – entendidos como igualdade material e exercício da
liberdade real – exercem no novo paradigma, aqui proposto, posi-
ção e função, que incorpora aos direitos humanos uma dimensão
necessariamente social”.6
O denominado Estado Social surge como resultado da con-
quista dos direitos sociais, qual seja um Estado que reconhece a
existência de direitos voltados ao bem estar da sociedade. Neste

4
SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos sociais como direitos fundamentais: contributo
para um balanço aos vinte anos da Constituição Federal de 1988. In SOUZA NETO,
Cláudio Pereira de, SARMENTO, Daniel, BINENBOJM, Gustavo (coords.).
Vinte Anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Editora Lumen
Juris, 2009. p. 482-483.
5
BARRETTO, Vicente de Paulo. Reflexões sobre os direitos sociais. In: Revista Quaes-
tio Iuris. v. 1. n. 6-9. Rio de Janeiro: UERJ, 2012. p. 3.
6
Idem.
Novos Paradigmas na Administração Pública Municipal Contemporânea 17

modelo, o Estado atua como uma espécie de mediador das rela-


ções, garantindo direitos como saúde, habitação, saneamento, edu-
cação, lazer, trabalho, repouso, greve, direito de associação, bem
como o direito de sindicalização.
Este modelo de Estado, indubitavelmente, por ter que desem-
penhar ações positivas, ocasiona reflexos vultosos na Administra-
ção Pública, principalmente pela necessidade de o Estado realizar
políticas públicas que venham a garantir a efetivação dos direitos
sociais insculpidos na Constituição.
Há de se ressaltar que o Estado brasileiro, até a Constituição de
1988, nunca deu a atenção merecida aos direitos sociais. Em nível
de direitos fundamentais, ou seja, positivados como tal, incluídos
neste rol, logo após os princípios fundamentais da República, é
nesta Carta Fundamental que surgem pela primeira vez.7 Com exce-
ção da Era Vargas, onde afloraram os primeiros passos em matéria
de previdência, legislação trabalhista, saúde, educação, saneamento
básico e transporte, desde o período colonial, não obstante a pre-
sença maciça ainda hoje, a concretização destes direitos se deu, em
grande parte, à sociedade civil, conforme destaca Meksenas:

Nos momentos de ausência das políticas públicas com fins sociais,


algumas instituições preencheram, ainda que de forma débil, o vazio
deixado pelo Estado. No Brasil foi o caso do catolicismo, que dos
tempos coloniais até à atualidade ofereceu forma de educação, ideias
e valores manifestos nos rituais de solidariedade em várias comuni-
dades no país [...]. Muitos desses rituais de solidariedade foram ree-
laborados pelas religiões afro-brasileiras como forma de resistência
cultural dos trabalhadores e também produziram laços de partilha.
Da Colônia à República, as ações institucionais da Igreja católica
apareceram no cuidado com os órfãos, viúvas, ou na atenção medica
das Santas Casas, das coletas e da distribuição de esmolas.8

7
KELBERT, Fabiana Okchstein. Reserva do Possível e a efetividade dos direitos sociais
no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 75.
8
MEKSENAS, Paulo. Cidadania, poder e comunicação. 4. ed. São Paulo: Cortez,
2002. p.108-109.
18 Felipe Dalenogare Alves, Fabiano de Oliveira Becker e Silomar Garcia Silveira

Como visto, cabe ao Estado efetivar, por meio de diferentes for-


mas, os direitos sociais. Um dos instrumentos para que esta efetivação
ocorra, são as denominadas políticas públicas. Para tanto, a Consti-
tuição Federal de 1988 estabelece competências aos entes federativos
e, aqui, cresce em importância o papel do Município na organização
político-administrativa do Estado brasileiro, principalmente em ra-
zão da autonomia que lhe é conferida. Exemplo dessa competência é
a incumbência das políticas públicas destinadas a assegurar o direito
fundamental à educação infantil (art. 211, § 2º da CF/1988).
Diante destas responsabilidades constitucionalmente atribuí-
das, o que se deve ter em mente é que os direitos sociais “consti-
tuem-se, assim, em direitos impostergáveis na concretização dos
objetivos últimos pretendidos pelo texto constitucional”.9 Como
já se sabe, “o reconhecimento histórico – e jurídico – dos direitos
fundamentais se presta para aclarar a razão de por que eles podem
ser vistos [...] como direitos que não podem ser entregues à boa
vontade da maioria, configurando direitos subjetivos a serem plei-
teados, mormente, em face do Estado”.10
Desta forma, o Município deve ter em mente que as políti-
cas públicas, diante da ordem constitucional contemporânea de-
vem ser implantadas e eficientemente implementadas, sob pena
de caminharmos rumo ao retrocesso social, pelo não atendimento
dos direitos fundamentais conquistados. Assim, em não o fazendo,
ensejará razões, de fato e de direito, para que o Poder Judiciário,
guardião e intérprete final da Constituição, intervenha e exerça o
controle jurisdicional das Políticas Públicas.
Ao exercer esse controle, contudo, o Poder Judiciário, den-
tre os mais diversos argumentos, depara-se, não raramente, com a
“Reserva do Possível” e o “Mínimo Existencial”. Para que se tenha

9
BARRETO, Op Cit. p. 3.
10
LEAL, Mônia Clarissa Hennig Leal; BOLESINA, Iuri. Três “porquês” a jurisdição cons-
titucional brasileira diante do (aparente) conflito entre o mínimo existencial e a reserva do possível
na garantia dos direitos fundamentais sociais e no controle de políticas públicas: há mesmo escolhas
trágicas? In: Revista do Direito. n. 38. Santa Cruz do Sul: UNISC, 2012. p. 16-17.
Novos Paradigmas na Administração Pública Municipal Contemporânea 19

uma noção adequada de ambos os institutos e sua necessária ade-


quação à realidade é que se faz necessário o seu estudo mais deta-
lhado, tentando-se demonstrar que ambos têm sua contribuição à
efetivação dos Direitos Sociais, desempenhando papel importante
no controle jurisdicional de políticas públicas.

3. A reserva do possível e o contexto brasileiro

A reserva do possível é oriunda da Alemanha, onde foi utilizada


pelo Tribunal Constitucional federal, para solucionar a restrição do
número de vagas – numerus clausus – em algumas Universidades da-
quele país (B VerfGE 33, 303).11 Nesta decisão, analisou-se o art. 12,
§ 1º, da Lei Fundamental, o qual prevê que todos os alemães têm o
direito de eleger livremente a sua profissão, o lugar de trabalho e o
local de sua formação, frente aos princípios de igualdade e do Estado
Social. Buscando solucionar questões como os critérios de admissão
ao ensino superior, a situação dos candidatos que se inscreveram em
mais de um curso de graduação ou mais de uma universidade, aquela
Corte decidiu que algumas prestações estatais sujeitam-se àquilo que
o indivíduo pode exigir da sociedade dentro dos limites da razoabili-
dade, ficando adstritas à reserva do possível.12
Antes da decisão, porém, Häberle já havia traçado os primei-
ros passos em direção ao que viria ser a reserva do possível. Para o
autor, a pressão normativa à efetivação dos direitos fundamentais
subsistiria, não podendo, entretanto, se exigir do Estado o impos-
sível. Segundo ele, o direito de acesso à universidade é um “direito
na medida de”, ou seja, condicionado à reserva do Estado presta-
cional, dentro das suas possibilidades de efetivação.13

11
O julgado pode ser consultado em língua alemã no site: <http://www.servat.
unibe.ch/dfr/bv033303.html>. Acesso em: 1º mai 13.
12
KELBERT. Op Cit. p. 69-70.
13
HÄBERLE, Peter. Grundrechte im Leistungsstaat. In: VVDStRL n. 30. Berlin:
Walter de Gruyter, 1972, p. 114.
20 Felipe Dalenogare Alves, Fabiano de Oliveira Becker e Silomar Garcia Silveira

Assim, assentou-se, naquela decisão, que o Estado deve prover


os meios à concretização do direito à educação superior, mas den-
tro dos limites do razoável. No sistema brasileiro, diante das diver-
gências interpretativas, a “Reserva do Possível” tem se constituído
em um verdadeiro óbice à concretização dos direitos fundamentais,
recebendo inúmeras críticas da doutrina, principalmente diante de
suas distorções conceituais e de inadequação ao sistema pátrio. Em
suma, hoje, observa-se invocação à reserva do possível em casos de
uma simples extração dentária até os casos mais complexos, como
tratamentos de saúde experimentais.
Olsen, em busca da investigação acerca da reserva do possí-
vel, questiona se “Seria a reserva do possível um princípio, ou seja,
teria natureza normativa? Ou seria uma condição de realidade, um
elemento lógico extrajurídico, mas que exerce sua influência na
aplicação das normas jurídicas?”.14 Na doutrina e jurisprudência
brasileira não há pacificação referente à natureza jurídica do insti-
tuto. Em momentos, é chamado de princípio15, doutrina16, teoria17
e cláusula18.
Independente da natureza jurídica, o que deve se ter em mente
é que a reserva do possível não pode ser invocada para fraudar,
frustrar e inviabilizar a implementação de políticas públicas defini-
das na Constituição.19

14
OLSEN, Ana Carolina. A eficácia dos direitos fundamentais sociais frente à reserva do
possível. (Dissertação). Curitiba: UFPR, 2006. p. 209.
15
BRASIL. STF. ADI 3768-4/DF. Rel: Min. Carmem Lúcia. Tribunal Pleno. Jul-
gamento em 19 set 07. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
paginador.jsp?docTP=AC&docID=491812>. Acesso em: 1º mai 13.
16
ROCHA, Manoel Ilson Cordeiro. A doutrina da reserva do possível e a garantia
dos direitos fundamentais sociais. In: Revista Ciência et Praxis, v. 4. n. 7. Passos:
FESP, 2011.
17
LEAL; BOLESINA. Op Cit. p. 14.
18
BRASIL. STF. ARE 639.337 AgR/SP. Rel: Min. Celso de Melo. 2ª Turma. Jul-
gamento em 23 ago 11. Disponível em: <http://www.stf.jus. br/arquivo/cms/
noticiaNoticiaStf/anexo/ARE639337ementa.pdf>. Acesso em: 1º mai 13.
19
Idem.
Novos Paradigmas na Administração Pública Municipal Contemporânea 21

Nesse sentido, a reserva do possível deve ser vista e interpre-


tada com reservas, sob pena de se tornar banalizada, ou seja, “uma
alegação vazia de defesa processual, invocada por um Estado que
busca, por meio de discursos ligados a escolhas e limites econômi-
cos e financeiros, fugir de suas obrigações constitucionais”20. Dito
em outras palavras, a reserva do possível não pode ser invocada de
forma falaciosa, identificada com “a forma pela qual muitas vezes
a reserva do possível tem sido utilizada entre nós como argumen-
to impeditivo da intervenção judicial e desculpa genérica para a
omissão estatal no campo da efetivação dos direitos fundamentais,
especialmente de cunho social”.21
Acredita-se que a distorção, beirando a falácia, da reserva do
possível deu-se na transposição do sistema alemão para o brasileiro.
Esta distorção chegou a caracterizar o que Leal e Bolesina expõem
como “teoria da reserva do possível à brasileira”22. Ao se fazer a
transposição de conceitos oriundos de diferentes sistemas jurídi-
cos, esta “não pode, porém, ser míope e desvirtuar características e
limites próprios da teoria”. Como já exposto, a reserva do possível
não tratou, originalmente, da disponibilidade ou não de recursos
materiais, mas sim da efetivação dos direitos fundamentais dentro
dos parâmetros da razoabilidade.
Vale destacar que, na Lei Fundamental da Alemanha, apenas
alguns direitos sociais encontram-se explicitamente positivados, di-
ferentemente do que ocorre com a Constituição Pátria, a qual apre-
senta um rol – não exaustivo – de direitos sociais. Assim, os “direi-
tos a prestações positivas (Teilhaberechte) estão sujeitos à reserva do
possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional,
pode esperar da sociedade”23, do que se conclui que a problemática

20
LEAL; BOLESINA. Op Cit. p. 15.
21
SARLET. Op Cit. 2009. p. 502.
22
LEAL; BOLESINA. Op Cit. p. 13.
23
KRELL, Andreas Joachim. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alema-
nha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Fabris
Editor, 2002. p. 52.
22 Felipe Dalenogare Alves, Fabiano de Oliveira Becker e Silomar Garcia Silveira

da reserva do possível, no Brasil, é “fruto de um direito constitu-


cional comparado equivocado”.24
Quanto às dimensões da reserva do possível, diferentemen-
te da classificação abordada por Freire Júnior25 (fática e jurídica),
reservada a possibilidade de juízo posterior, coaduna-se com a
classificação tridimensional ensinada por Sarlet26 e Kelbert27 (fá-
tica, jurídica e negativa), pois a dimensão negativa torna-se muito
importante, a fim de se dar adequação interpretativa à reserva do
possível, conformando-a com o mínimo existencial. Desta forma,
torna-se necessária uma abordagem, mesmo que sumária, desses
principais aspectos dimensionais.
A dimensão fática, na concepção de Kelbert, “vem sendo
entendida como a ausência total de recursos para a realização dos
direitos prestacionais”28. Imperioso destacar que esta ausência de
recursos não se refere apenas aos recursos econômicos, mas tam-
bém aos recursos materiais e humanos, como meio de conseguir a
consecução do fim. Esta ausência de recursos, como destaca Gri-
nover, deve ser provada e não apenas alegada, como se constata
na maioria das vezes:

Observe-se, em primeiro lugar, que não será suficiente a alegação


de falta de recursos pelo Poder Público. Esta deverá ser provada,
pela própria Administração, vigorando nesse campo quer a regra
da inversão do ônus da prova (art. 6°, VIII, do Código de Defesa
do Consumidor), aplicável por analogia, quer a regra da distribui-
ção dinâmica do ônus da prova, que flexibiliza o art. 333 CPC, para

24
O autor chega a indagar, expressamente: “como importar limites de uma so-
ciedade tão diferente, especialmente quanto à garantia mínima de direitos?
KRELL. Op Cit. p. 51.
25
FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. São Pau-
lo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 73.
26
SARLET. Op Cit. 2009. p. 498-499.
27
KELBERT. Op Cit. p. 78.
28
Idem.
Novos Paradigmas na Administração Pública Municipal Contemporânea 23

atribuir a carga da prova à parte que estiver mais próxima dos fatos
e tiver mais facilidade de prová-los. 29

Essa necessidade de comprovação é acertada e vem sendo


construída gradativamente pela doutrina e aplicada pelo Judiciá-
rio.30 Tamanho o descrédito na dimensão fática da reserva do possí-
vel, devido, principalmente, às suas distorções e alegações infunda-
das, que, sob o ponto de vista econômico, Leal e Bolesina chegam
a afirmar que “a jurisdição deve conhecer a análise econômica do
direito, considerá-la, mas não necessariamente deve priorizá-la
diante dos objetivos e princípios constitucionais. Ela serve como
útil ferramenta e como boa instância de reflexão para o Poder Ju-
diciário; e ponto”.31
No aspecto aqui considerado, diante do ente municipal, em
relação às suas políticas públicas, seria um extremismo generalizar a
desconsideração aos aspectos econômicos. Conhecendo-se a reali-
dade da maioria dos Municípios pequenos do interior do Rio Gran-
de do Sul, por exemplo, esta análise, necessariamente, deve ater-se
ao caso concreto. E aqui, ponto importante a ser considerado, é se
o Município cumpre os objetivos constitucionais de suas políticas
públicas essenciais.
Como exemplo, pode-se destacar que, antes de qualquer prio-
ridade com publicidade, para não ensejar controle jurisdicional,
deve o Município cumprir plenamente sua obrigação constitucio-
nal com a educação (infantil e fundamental) nos percentuais pre-
vistos na Constituição. Não cumprido isso, estará legitimado o juiz
a desconsiderar a dimensão fática.

29
GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário. Revista
do Curso de Direito da Faculdade de Humanidades e Direito. 7. v. 7. n. 2010. p. 24.
30
Nesse sentido: ADPF nº 45; Reexame Necessário nº 70053046934-TJ/RS;
AI nº 70054140157-TJ/RS; Apel n° 978.439.5/9-00-TJ/SP; AI nº 0008975-
60.2010.8.19.0000-TJ/RJ; AI nº 1.0342.12.010192-4/001 -TJ/MG; e AI nº
2008.035.137-2-TJ/SC.
31
LEAL; BOLESINA. Op Cit. p. 10.
24 Felipe Dalenogare Alves, Fabiano de Oliveira Becker e Silomar Garcia Silveira

A dimensão fática, a nosso ver, surge, na maioria das vezes, de


um mau planejamento e irresponsabilidade do poder público na
alocação orçamentária dos recursos públicos. Esta falta de planeja-
mento desencadeia, por sua vez, a segunda dimensão da reserva do
possível, a dimensão jurídica.
Seguindo os ensinamentos de Kelbert, “a disponibilidade jurí-
dica da reserva do possível diz respeito à disponibilidade de meios
e recursos para a efetivação dos direitos sociais”32. Ou seja, os re-
cursos existem, mas por alguma objeção – legal, por exemplo – não
podem ser aplicados. Como exemplo, a impossibilidade jurídica
poderia residir em um orçamento público já aprovado, não poden-
do ser alterado pelo Executivo. É claro que, quando há vontade po-
lítica, surge a possibilidade de abertura de créditos extraordinários
ou suplementares.
Deve-se ter em vista que, não ocorrendo esta realocação or-
çamentária pela via política, poderá o Judiciário ser acionado para
assim determinar, como destaca Grinover:

[...] o Judiciário, em face da insuficiência de recursos e de falta de


previsão orçamentária, devidamente comprovadas, determinará ao
Poder Público que faça constar da próxima proposta orçamen-
tária a verba necessária à implementação da política pública. E,
como a lei orçamentária não é vinculante, permitindo transposi-
ção de verbas, o Judiciário ainda deverá determinar, em caso de
descumprimento do orçamento, a obrigação de fazer consistente
na implementação de determinada política pública (a construção
de uma escola ou de um hospital, por exemplo). Para tanto, o par.
5° do art. 461 CPC servirá perfeitamente para atingir o objetivo
final almejado.

Assim, Kelbert destaca que a vinculação ao orçamento é des-


tinada ao Executivo, podendo o Poder Judiciário, quando houver
comprovação de inadequada alocação de recursos, determinar a

32
KELBERT. Op Cit. p. 82-83.
Novos Paradigmas na Administração Pública Municipal Contemporânea 25

consecução de um direito social. Salienta-se que, cada vez mais, há


a conscientização por parte do Judiciário33 de que esta intervenção
é um poder-dever.34
A dimensão negativa, por sua vez, está diretamente relaciona-
da à impossibilidade de “recursos suficientes para satisfazer todos
os direitos fundamentais, especialmente os sociais”35. Dessa forma,
“a dimensão negativa da reserva do possível atuaria como impedi-
mento à satisfação de uma prestação que pudesse comprometer a
satisfação de outra prestação”36, estando intrinsecamente ligada às
noções de isonomia e razoabilidade.
Como exemplo da dimensão negativa da reserva do possível,
pode-se vislumbrar a negativa estatal de um tratamento de saúde
ou o fornecimento de um medicamento importado, ambos sem
comprovação científica de resultado, extremamente oneroso aos
cofres públicos. Neste caso, há de se considerar que a consecução
de um direito social (saúde) demandado individualmente poderia
comprometer a coletividade (saúde) com o esvaziamento de recur-
sos que poderiam ser destinados ao atendimento de prioridades
comprovadamente indispensáveis à coletividade. Dessa forma, ha-
vendo comprovação do exemplo dado, seria realmente ilegítima a
aplicação da reserva do possível? Este direito a saúde, conforme
explanado, estaria abrigado pelo mínimo existencial?
Realizado este breve estudo acerca da reserva do possível, tor-
na-se indispensável apontar que ela não deve ser desprezada como
um todo. Devem-se analisar as suas dimensões, em cada caso con-
creto. Mesmo que se coadune com a afirmação majoritária de que
a reserva do possível se constitui em um limite à concretização
dos direitos fundamentais, por outro lado ela pode constituir-se
em argumento favorável, como no exemplo supra descrito de sua

33
Nesse sentido: ADPF nº 45; Apel nº 9001228-08.2011.8.26.0506-TJ/SP; Apel
nº 70052857802-TJ/RS; Apel nº 70052857802/MG.
34
KELBERT. Op Cit. p. 86.
35
Ibidem.
36
Idem.
26 Felipe Dalenogare Alves, Fabiano de Oliveira Becker e Silomar Garcia Silveira

dimensão negativa. Uma das formas buscadas de superação deste


limite é o estabelecimento de um mínimo existencial à pessoa hu-
mana, o qual se passará a ser estudado.

4. O Mínimo existencial como conquista


da pessoa humana

O mínimo existencial iniciou a ser lapidado originalmen-


te na jurisprudência do Tribunal Constitucional da Alemanha,
reconhecendo-se a existência de um direito subjetivo implícito
aos recursos materiais mínimos à garantia de uma existência hu-
mana digna.37
Naquele país, o debate acerca da garantia do mínimo existen-
cial destacou-se não apenas nos trabalhos preliminares do processo
constituinte, mas também após a entrada em vigor da Lei Fun-
damental de 1949. No período pós-guerra, o primeiro jurista de
destaque a defender o reconhecimento das garantias mínimas à
existência digna foi Otto Bachof, o qual sustentou que tão somente
a garantia de liberdade não é suficiente à dignidade humana, mas
também seria necessário um mínimo de segurança social. Cerca de
um ano depois, o Tribunal Federal Administrativo da Alemanha
tornou-se adepto das concepções do autor.38
O mínimo existencial, em suas primeiras definições no sistema
jurídico brasileiro, com pioneira contribuição de Torres, pode ser
visto como “um direito às condições mínimas de existência hu-
mana digna que não pode ser objeto da Intervenção do Estado e

37
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 339-340.
38
SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do pos-
sível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In: SARLET, Ingo
Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (orgs). Direitos Fundamentais: orçamen-
to e “reserva do possível”. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
p. 20-21.
Novos Paradigmas na Administração Pública Municipal Contemporânea 27

que ainda exige prestações estatais positivas”39. Segundo o autor,


“o mínimo existencial não tem dicção constitucional própria nem
conteúdo específico”40; ele encontra-se implícito nos próprios pre-
ceitos constitucionais, em especial no atendimento da própria exis-
tência e dignidade da pessoa humana.
Para Torres, “o fundamento do direito ao mínimo existencial,
por conseguinte, está nas condições para o exercício da liberdade,
que, por seu turno, se expressam no princípio da igualdade, na pro-
clamação do respeito à dignidade humana, na cláusula do Estado
Social de Direito e em inúmeras outras classificações constitucio-
nais ligadas aos direitos fundamentais”41.
O autor ainda ensina que há uma dupla dimensão do mínimo
existencial, estando presente tanto a dimensão negativa quanto a
positiva. A primeira, Status Negativus – “significa o poder de au-
todeterminação do indivíduo, a liberdade de ação ou de omissão
sem qualquer constrangimento por parte do Estado”42. A segun-
da, Status Positivus Libertatis – “compreende as prestações estatais
necessárias à garantia do mínimo existencial”43, pois os direitos
fundamentais exigem, como condição da liberdade, prestações po-
sitivas do Estado à garantia da assistência social, como definida
originariamente na doutrina alemã, por intermédio da teoria dos
status de Georg Jellinek.44
O mínimo existencial, em uma visão mais rigorosa de prote-
ção aos direitos fundamentais, não encontra compatibilidade com a
reserva do possível. Primeiro, porque, em nossa concepção, não se

39
TORRES, Ricardo Lobo. O Mínimo Existencial e os Direitos Fundamentais. In: Re-
vista de Direito Processual Geral. n. 42. Rio de Janeiro, 1990. p. 69.
40
Idem.
41
Ibidem.
42
TORRES, 1990. p. 70.
43
TORRES, 1990. Ibidem.
44
Sobre a teoria dos status, ver LEAL, Mônia Clarissa Hennig; BRUGGER, Win-
fried. Os Direitos Fundamentais nas Modernas Constituições: análise comparativa entre as
Constituições Alemã, Norteamericana e Brasileira. In: Revista do Direito. n. 28. Santa
Cruz do Sul: UNISC, 2007. p.123-142.
28 Felipe Dalenogare Alves, Fabiano de Oliveira Becker e Silomar Garcia Silveira

encontra entre as demandas abarcadas pela terceira dimensão45 da


reserva do possível, a mais plausível em termos de argumentação
por parte do Estado, quando devidamente comprovada. Segundo,
porque o mínimo existencial não depende de previsão orçamentá-
ria, tampouco de políticas públicas, pois é inerente à própria exis-
tência humana com padrões mínimos de dignidade.46 Esta tem sido
a posição do STF47, pois quando o que está sendo discutido é o
mínimo existencial, não há que se falar em reserva do possível.
Torres chega a afirmar que há fundamental diferença entre o
mínimo existencial (insuscetível à reserva do possível) e os direi-
tos sociais e econômicos. Enquanto estes dependem de conces-
são do legislador – que pode ser a orçamentária – uma vez que
decorrem de normas programáticas, aquele prescinde de norma
infraconstitucional, por estar diretamente relacionado aos direi-
tos de liberdade.48
É possível coadunar com parte do pensamento do autor, no
tocante de que o mínimo existencial – relacionado à vida e à dig-
nidade – não depende de previsão orçamentária (e só), pois isso
nos remete à possibilidade de que “seu conteúdo não se encontra
na esfera da discricionariedade do legislador e do administrador,
podendo, por conta disso, ser passível de controle judicial diante
da omissão dos demais poderes em garantir a todos os cidadãos
tal bem-estar mínimo”49, havendo de se reconhecer, entretanto, a
problemática no tocante a delimitação deste mínimo.

45
Exemplo: medicamentos ou tratamentos extremamente onerosos sem com-
provação científica de resultado, quando comprovadamente incompatível com
a razoabilidade.
46
TORRES, Ricardo Lobo. O direito à saúde, o mínimo existencial e a Defensoria Pú-
blica. In: Revista da Defensoria Pública. v. 1. n. 1. São Paulo: EDEPE, 2008.
p. 273.
47
Nesse sentido: AgR no RE nº 642536/AP; AgR no RE nº 639337/SP.
48
TORRES, 2008. Ibidem.
49
FENSTERSEIFER, Tiago. Defensoria Pública, direito fundamental à saúde, mínimo
existencial, ação civil pública e controle judicial de políticas públicas. In: Revista da De-
fensoria Pública. v. 1. n. 1. São Paulo: EDEPE, 2008. p. 274-275.
Novos Paradigmas na Administração Pública Municipal Contemporânea 29

Nesse sentido, Gesta Leal entende que há “políticas públicas


constitucionais vinculantes50, independentes da vontade ou discricio-
nariedade estatal para que venham a acontecer, eis que condizentes a
direitos indisponíveis e da mais alta importância e emergência comuni-
tárias, perquirindo imediata materialização, sob pena de comprometer
a dignidade humana e o mínimo existencial dos seus carecedores” 51.
Há de se ter em mente, então, principalmente pelos que tratam
da coisa pública no âmbito municipal, que “o mínimo existencial
corresponderia, pois, à última parte existente do direito funda-
mental, que nem sempre se confunde com o seu núcleo essencial.
Abaixo deste nível não há mais deferência ao direito fundamental,
notadamente porque não haverá prestação ou gozo do direito com
dignidade humana”52, pois, nem todos os direitos fundamentais
tornam-se essenciais ao mínimo existencial.

50
Dentre as Políticas Públicas Constitucionais Vinculantes, o autor destaca o
disposto nos seguintes dispositivos constitucionais: (art.5º, XXXIV – política
pública que viabilize a obtenção de certidões em repartições públicas, para
defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal; art.5º,
XLVIII, XLIX e L – políticas públicas prisionais, a fim de garantir que a res-
trição da liberdade se dê de maneira a dar guarida às prerrogativas de que a
pena seja cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza
do delito, a idade e o sexo do apenado, assegurando-lhe o respeito à integri-
dade física e moral, e que, às presidiárias, sejam asseguradas condições para
que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação;
art.5º, LV – políticas públicas jurisdicionais, por exemplo, a fim de dar efeti-
vidade ao comando constitucional que determina aos litigantes, em processo
judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, que sejam assegurados o
contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; art.23 e
incisos, quando determina as competências comum da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios). Gesta Leal ainda destaca que tais exemplos
poderiam se prolongar por outros temas constitucionais, passando pela ordem
social e econômica dos arts.170, 194, 196 e 197, 201, e tantos outros, haja vista
o alcance que possuem em face das demandas sociais e interesses da cidadania.
51
LEAL, Rogério Gesta. O Controle Jurisdicional de Políticas Públicas no Brasil: Possibi-
lidades Materiais. In: Revista de Derecho de la Universidad de Montevideo. v. 5.
n. 9. Montevidéu, 2006. p. 59.
52
LEAL; BOLESINA. Op Cit. p. 17.
30 Felipe Dalenogare Alves, Fabiano de Oliveira Becker e Silomar Garcia Silveira

Dito tudo isso, seria ousadia afirmar, categoricamente, que o


mínimo existencial atingiu sua consolidação no sistema brasileiro.
Pelo contrário, percebe-se que ainda se encontra em lapidação, tan-
to referente à sua conceituação – se é que se lhe pode atribuir um
conceito específico e universal – quanto às prestações incondicio-
nais à dignidade humana.
No cenário brasileiro, o mínimo relativo à saúde e à educação
já encontrou assento nas discussões doutrinárias e jurisprudenciais.
Mas e o direito à moradia e ao lazer, por exemplo, integram este
mínimo existencial? São questões que, frequentemente, vêm sendo
discutidas, como se observa nas palavras de Guerra e Emerique:
“Enfim, a questão do mínimo existencial suscita inúmeras contro-
vérsias como, por exemplo, a conceituação, a identificação de quais
prestações são indispensáveis para a manutenção de uma vida dig-
na, a função do Estado na promoção e proteção do mínimo exis-
tencial, dentre outros”53.
Há de se reconhecer que “o mínimo existencial dentro de uma
modalidade prestacional convive com a complexidade de defini-
ção de quais direitos e em que amplitude podem ser caracterizados
como fundamentais dentre os direitos sociais estipulados na Cons-
tituição”54, o que deixa a jurisdição indefinida, diante do “problema
da subjetividade do estabelecimento do padrão de referência ideal
para consecução de condições mínimas indispensáveis para a ma-
nutenção digna da vida”55.
Buscando colaborar com esta construção, Leal e Bolesina
ensinam que é necessário distinguir ao menos três níveis de satis-
fação destas necessidades básicas à dignidade humana. Um nível
vital – neste haverá vida, porém com nenhuma dignidade; um
nível essencial – existencial ou básico – no qual a pessoa humana

53
GUERRA, Sidney; EMERIQUE, Lilian Márcia Balmant. O Princípio da digni-
dade da pessoa humana e o mínimo existencial. Revista da Faculdade de Direito de
Campos. v. 7 n. 9. Campos, 2006. p. 388.
54
GUERRA; EMERIQUE. Op Cit. p. 390.
55
Idem.
Novos Paradigmas na Administração Pública Municipal Contemporânea 31

conduzirá sua vida com certa dignidade, ainda não plena, sofren-
do algumas limitações; e um nível ideal – no qual há integral sa-
tisfação das necessidades e inteira dignidade humana. Concluem
que somente os dois primeiros níveis poderão ser objeto de sin-
dicalização jurisdicional.56
Importante destacar, pois, que o mínimo existencial é lapidado
e constitui-se um desafio sempre relacionado ao momento histó-
rico e sociocultural levado em análise. A exemplo disso, pode-se
destacar o progresso social adquirido pela sociedade brasileira, que
levou o constituinte ordinário a garantir o direito subjetivo à edu-
cação básica como obrigatória e gratuita, passando-se a ampliar
o mínimo existencial (até então garantidas constitucionalmente a
gratuidade e obrigatoriedade do ensino fundamental). Atualmente,
o mínimo existencial deve ser sempre analisado sob a perspectiva
da dignidade da pessoa humana, farol de toda a perspectiva orien-
tadora do Constitucionalismo Contemporâneo.

Conclusão

Como visto, os direitos sociais, na ordem constitucional con-


temporânea, são indiscutivelmente fundamentais, possuindo a mes-
ma majestade que os individuais. Diferem, contudo, no sentido de
que, enquanto estes exigem do Estado uma abstenção (negativa),
aqueles exigem uma prestação (positiva), razão pela qual emerge a
dificuldade de sua consecução prática.
Embora se reconheça que a realidade do Estado brasileiro
carece dos recursos indispensáveis à consecução dos direitos so-
ciais, principalmente no caso dos Municípios, a simples alegação
desta carência, sob um manto distorcido e falacioso da reserva do
possível, sem comprovação prática no caso concreto, não pode
prosperar.

56
LEAL; BOLESINA. Op Cit. p. 18-19.
32 Felipe Dalenogare Alves, Fabiano de Oliveira Becker e Silomar Garcia Silveira

A reserva do possível deve ser analisada sob diferentes dimen-


sões, possuindo a dimensão negativa grande valor, principalmente,
por tornar-se garantidora, diante da escassez de recursos – e estes
não podem ser desconsiderados completamente – da efetivação
dos direitos sociais, dentro dos parâmetros da razoabilidade daqui-
lo que a coletividade pode suportar.
Fora isso, não pode ser a reserva do possível utilizada como
argumento impeditivo da garantia de um mínimo existencial à vida
e à dignidade humana. Há de se reconhecer, entretanto, a dificul-
dade de balizar os direitos sociais interligados à satisfação de um
mínimo existencial.
Destarte, algo há de se afirmar: o cidadão, destinatário dos
direitos fundamentais, não pode aguardar à própria sorte a satis-
fação de seus direitos. Diante da ineficácia dos Poder Legislativo e
do Poder Executivo em garanti-los, por meio de políticas públicas
eficazes, irá recorrer ao Poder Judiciário e este, enquanto guardião
e intérprete final da Constituição, terá o dever de garantir o direito
fundamental, através do controle jurisdicional.

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