Sociologia do Direito | Artur Stamford Seminário n° 7 | Tema: Direito e Justiça Equipe: Lara de Souza Ferraz; Rafael Arruda Arraes de Alencar; Raquel Burgardt Castro; Vitória Caminada Sabrá e Guimarães
I. DESCRIÇÃO
O artigo “A Desigualdade e a Subversão do Estado de Direito”, da autoria de
Oscar Vilhena Vieira, trata principalmente da influência direta da desigualdade socioeconômica na integridade do Estado de Direito, ideal que supõe que as pessoas sejam tratadas de forma imparcial pela lei e por aqueles que a implementam. Neste sentido, o texto é dividido, primeiramente, nas possíveis definições deste ideal, assim como o motivo pelo qual o mesmo vem sendo amplamente defendido até mesmo por diferentes correntes políticas. Já na segunda parte, o autor aborda as razões pelas quais o Estado e as pessoas agem em conformidade com a lei. Em seguida, é discutido o impacto da desigualdade no ideal do Estado de Direito, abordando, principalmente, o sistema jurídico brasileiro. Por fim, o autor apresenta sua conclusão, elencando possíveis soluções para reduzir o efeito das desigualdades no funcionamento do Estado de Direito. Em linhas gerais, a tese do autor é de que a exclusão socioeconômica compromete a imparcialidade do direito, tornando invisíveis as camadas sociais mais vulneráveis, demonizando aqueles que desafiam o sistema e atribuindo imunidade aos detentores de privilégios.
II. COMENTÁRIOS
Chama a atenção a preocupação do autor em definir o conceito de Estado de
Direito. Isto se dá a partir das concepções substantiva e formal de Max Weber, as quais o autor exemplifica a partir das teorias de Friedrich Hayek e Joseph Raz. Hayek engloba uma visão substantiva, a qual determina que os objetivos finais fundamentam a formação do Estado de Direito, neste caso, sendo a proteção da propriedade privada o principal objetivo do teórico. Para Vieira, o problema desta teoria é que o Estado de Direito fica restrito a um ideal político único. Raz, por sua vez, adota uma perspectiva formalista, na qual o Estado de Direito serve para regular a conduta social e sujeitar os governantes às leis. A principal diferença entre os pensamentos de Hayek e Raz está na estrutura material do sistema jurídico, posto que o primeiro acredita que apenas leis gerais e abstratas devem reger a sociedade, enquanto o segundo propõe a coexistência de leis gerais e específicas, devendo estas estarem subordinadas àquelas. De tal forma, fica claro que a concepção de Raz é a que melhor se adequa ao atual sistema jurídico brasileiro, que é regido pela Constituição Federal e seus princípios, bem como leis específicas para diferentes disciplinas, as quais devem estar em conformidade com a Carta Magna. Em aditivo, Vieira argumenta que a ideia do Estado de Direito é defendida por diversas correntes de pensamento, abrangendo boa parte do espectro político, conforme previamente mencionado. Isto decorre do fato de que, devido às características favorecidas pelo Estado de Direito, tais quais a previsibilidade, a estabilidade, a generalidade, a imparcialidade, a igualdade de tratamento e a transparência, esta ideia tornou-se a antítese do poder arbitrário. Entretanto, o autor afirma que cada uma dessas características atendem diferentes ideologias políticas de alguma forma, a exemplo daqueles que defendem as reformas de mercado, os quais se beneficiam da previsibilidade e estabilidade, ao passo que os defensores de direitos humanos prezam pela igualdade de tratamento. Impende acentuar, ainda, as questões tocantes à conformidade com a lei, tanto por parte dos governantes, quanto das pessoas. Com relação aos governantes, fica claro que a razão principal para o cumprimento da lei é a busca por cooperação e apoio da população. Entretanto, tal cooperação não precisa ser plena para que um governo se mantenha no poder, isto é, o apoio de apenas uma parcela da população é suficiente para este fim. Dessa forma, aqueles que são responsáveis pela implementação da lei têm a liberdade de fazê-lo de forma distinta para diferentes grupos populacionais. Nesse sentido, percebe-se que o Presidente da República Jair Bolsonaro, desde suas campanhas eleitorais, tende a agradar somente uma parte seleta da população, com ênfase na comunidade evangélica, no agronegócio e nas famílias ditas tradicionais da classe média brasileira. A exemplo disso, o Presidente não oferece políticas públicas de combate à violência às minorias sociais, como a população negra e LGBT+, além de ser permissivo com relação às violações aos direitos de demarcação de terra dos povos indígenas, beneficiando os empresários do agronegócio. A respeito das razões pelas quais as pessoas cumprem a lei, o autor inicia abordando as razões cognitivas, que tratam do conhecimento e entendimento de conceitos jurídicos básicos, como regras e direitos. Este conjunto de razões é bastante prejudicado em sociedades com alto índice de pobreza e analfabetismo. Em seguida, têm-se as razões instrumentais, que se referem à capacidade de calcular riscos e benefícios relacionados ao cumprimento ou descumprimento da lei. Estas razões demonstram que as pessoas cumprem a lei quando sabem que obterão benefício individual ou escaparão da coerção estatal, hipótese na qual, muitas vezes, o Estado é provocado pelos próprios cidadãos, ao preencherem reclamações ou ingressarem com processos judiciais. Além disso, os próprios círculos sociais são capazes de coagir indivíduos a respeitarem a lei, mesmo na ausência de autoridade estatal, pois o descumprimento desta poderia gerar represália ou prejuízo à reputação. Por fim, o autor trata das razões morais, sob as quais o indivíduo respeita o Estado de Direito porque valoriza o próximo e reconhece sua dignidade e seus direitos; porque, baseado na reciprocidade moral, coopera, esperando cooperação do próximo; e porque anula o auto-interesse em benefício do interesse público. Portanto, percebe-se a importância da justiça na aplicação da lei, uma vez que, se mal aplicada, esta não será vista como diretriz para as ações dos indivíduos. Nesse sentido, Vieira aborda a incongruência as leis editadas e o comportamento dos indivíduos e dos agentes públicos no Brasil. De tal forma, o Relatório do Latinobarômetro de 2005 atesta que apenas 21% dos brasileiros afirma respeitar a legislação, bem como demonstra a desconfiança, por parte da população, na imparcialidade do Estado na implementação das leis. Na opinião do autor, a falha na distribuição de riquezas, visando a redução das desigualdades sociais, impede que o Direito sirva de razão para a ação das pessoas. Portanto, o Brasil, como um dos países mais desiguais da América Latina, pode ser caracterizado como um sistema de não-Estado de Direito, no qual não há domínio da lei. A partir disso, Oscar Vilhena Vieira apresenta sua principal tese, por meio da introdução de conceitos que classificam indivíduos dentro do Estado de Direito. Tal classificação determina a forma como a sociedade enxerga estes indivíduos e como a aplicação da lei os impacta. O primeiro conceito apresentado é o da invisibilidade, o qual transmite a ideia de que o sofrimento de uma parcela população não causa reação política ou moral pelos mais privilegiados, bem como não suscita o ímpeto de ação por parte dos agentes que representam o Estado. Tal instituto, se aceito pela sociedade, põe em risco o regime democrático, uma vez que, ao desafiar o sistema por meio da violência, os indivíduos invisibilizados passam a ser vistos como um perigo iminente, aos quais não cabe proteção legal. De forma notória, o caso do pernambucano Marcos Mariano da Silva, que passou 19 anos encarcerado mesmo sem ter cometido qualquer delito, ilustra o conceito de invisibilidade. Em 1976, Marcos Mariano foi preso indevidamente por um homicídio que não cometeu, pelo fato de ter nome semelhante ao do verdadeiro culpado, além da presença de uma mancha de sangue em seu táxi. Sua soltura só ocorreu seis anos depois, quando foi encontrado o verdadeiro culpado e verificado o erro no mandado de prisão. No entanto, em 1985, Marcos foi reconhecido por um policial e novamente encaminhado para o cárcere, sob acusação de estar violando sua liberdade condicional. Somente treze anos depois, um agente penitenciário, após revisão processual dos detentos da unidade, verificou a inexistência de condenação de Marcos Mariano da Silva, determinando sua soltura. A partir do exemplo, percebe-se que ocorreu negligência por parte do Estado, causada pela invisibilidade do indivíduo como parte da população pobre e negra, comumente considerada classe perigosa no Brasil por desafiar um sistema que não os enxerga. Outrossim, o segundo conceito da classificação de Vieira deriva desta reação violenta dos invisibilizados, que gera a demonização destes indivíduos. De acordo com o autor, a demonização [...] é o processo pelo qual a sociedade desconstrói a imagem humana de seus inimigos, que a partir desse momento não merecem ser incluídos sobre o domínio do Direito. Seguindo uma frase famosa de Grahan Greene, eles se tornam parte de uma “classe torturável”. Qualquer esforço para eliminar ou causar danos aos demonizados é socialmente legitimado e juridicamente imune. (VIEIRA, 2007, p. 44). Para ilustrar o conceito apresentado, cabe citar o caso do DJ Rennan da Penha, que foi preso no Rio de Janeiro, acusado de ser “olheiro” da atividade do tráfico de drogas, alegando-se que este fornecia informações sobre a circulação da polícia na comunidade. O mal-entendido ocorreu devido ao fato de que, de acordo com Rennan, todos os moradores da comunidade se comunicam quando ocorre uma operação policial, visando a proteção de todos dentro de suas casas. Dessa forma, é válido ressaltar que o uso arbitrário da força por agentes do Estado ou outros grupos armados, com apoio oficial contra pessoas demonizadas, é reafirmada constantemente por diversas organizações de direitos humanos nacionais e internacionais. O caso do DJ Rennan da Penha teve enorme repercussão nacional em virtude de sua fama. Tal repercussão foi responsável pela divergência de opiniões acerca de sua prisão, variando entre represália social e a defesa de sua inocência. A terceira consequência da desigualdade é a imunidade perante a lei, que pode ser relacionada com o conceito de invisibilidade previamente exposto, uma vez que se trata novamente da falta de resposta por parte dos agentes públicos, dessa vez se tratando de pessoas extremamente privilegiadas na sociedade, tornando-as imunes ao alcance da lei. Além disso, também é possível relacionar a imunidade com a demonização, uma vez que, conforme mencionado, o esforço para eliminar ou causar danos aos demonizados é visto como legítimo e imune de punição. Os indivíduos que se encaixam nessa classificação representam cidadãos de grande poderio econômico e político — brancos, na maior parte das vezes —, bem como aqueles que os representam. Como exemplo disso, pode-se citar o caso de Breno Fernando Solo Borges, filho da desembargadora do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul Tânia Garcia, que foi detido portando 130 kg de maconha, centenas de munições de fuzil e uma pistola de 9mm. A defesa de Breno alegou que este sofre de síndrome de borderline, uma doença psiquiátrica, e que por isso não é responsável pelos seus atos. Após a apresentação dos laudos médicos e aprovação de habeas corpus, Breno foi encaminhado para uma clínica psiquiátrica. Percebe-se que esse tratamento da questão das drogas como problema de saúde pública, na maior parte das vezes, não é dado quando se trata de pessoas de camadas sociais mais vulneráveis — especialmente negras e pobres —, que são detidas portando quantidades de drogas ilícitas muito inferiores. Geralmente, estes indivíduos são, de imediato, considerados parte do tráfico de drogas, não sendo levada em conta a possibilidade de dependência química ou quaisquer outras divergências psíquicas. Tendo como pressuposto a concatenação de conceitos e fundamentações, pode-se inferir que, como citado pelo autor, “o Estado brasileiro é comumente cortês com os poderosos, insensível com os excluídos e cruel com aqueles que desafiam a estabilidade social baseada na hierarquia e na desigualdade” (VIEIRA, 2007, p. 42).
III. REFLEXÕES
Em linhas gerais, consideramos importante a tese defendida pelo autor, assim
como os conceitos apresentados para desenvolver suas ideias, uma vez que representa um grande instrumento para a compreensão da aplicação da lei e das diversas desigualdades que a justificam. Ademais, o trabalho pode ser utilizado para chamar atenção ao tema, principalmente no que tange a apresentação de soluções voltadas para os problemas abordados, que é o que o autor busca em sua conclusão. A respeito disso, a partir da reflexão desenvolvida pelo grupo, ficou claro que o fechamento não atendeu às expectativas criadas durante o desenvolvimento dos demais tópicos, ao apresentar soluções que, em sua maioria, já estão em funcionamento no ordenamento jurídico pátrio, como as comissões de direitos humanos, organizações sem fins lucrativos, escritórios pro bono e defensorias públicas. Acredita-se que tais soluções, de fato, possuem efeitos no fortalecimento do Estado de Direito e no combate às desigualdades diante da aplicação da lei. Entretanto, entendemos que a desigualdade socioeconômica é um problema profundo relacionado à má distribuição de riquezas e falta de oportunidade para as camadas mais vulneráveis, que não pode ser resolvido por meio da atuação pontual de determinadas instituições. Pensamos que o problema em questão é de caráter estrutural, pautado, principalmente, no classismo e racismo presentes na sociedade, e que, somente com a ruptura dessa estrutura, a lei poderá ser implementada e aplicada de forma imparcial. Finalmente, é válido enfatizar que o próprio autor afirma que o ativismo social jurídico deve ser levado como apenas uma das ferramentas para a construção de uma sociedade na qual os interesses de todos possam ser considerados com igual respeito diante do Estado de Direito, em conformidade com o que dispõe a Constituição Federal, em seu art. 5º, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.
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