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Beatriz Castro Miranda

Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Goiás

Judiciário e Política

O Judiciário foi alvo de diversas transformações ao longo do séculos até


chegar as principais configurações atuais. No Antigo Regime, a partir do
desenvolvimento econômico e das produções comerciais, o Judiciário ganhou uma
maior importância como meio de racionalizar a administração estatal e o social. No
entanto, foi com a criação dos Estados Liberais nos Estados Unidos e na França que a
Justiça sofreu uma ressignificação, passando a ter autonomia para exercer uma função
estatal. Os modelos de magistrado apresentados por esses dois países, que diferem
muito entre si, foram as principais fontes de inspiração para o padrão judiciário
moderno de outros países.

O modelo francês apresentava características mais republicanas que liberais e


não propiciou poder político para o Judiciário. Foi criado como uma forma de reação
ao período monárquico absolutista e, por isso, o poder executivo teve sua influência
reduzida e limitada, enquanto o poder legislativo adquiriu a característica de principal
representante do povo. Na França, o Parlamento tinha soberania e nenhuma instituição
poderia se colocar entre a relação do Estado e a Nação e entre o Legislativo e o povo.
Portanto, o Judiciário não seria capaz de exercer nenhuma função de regular os outros
poderes. Nos Estados Unidos, devido às suas próprias experiências com a
independência, acreditou-se que os governos populares também estariam propícios à
parcialidade, autoritarismo e corrupção. Por isso, a separação dos poderes foi visto
como a melhor escolha para evitar a tirania.. Assim, diferente da França, o legislativo
estadunidense não se sobressai ao demais e o Judiciário passa a representar a defesa
dos direitos individuais do cidadão.

Dessa forma, a França e os Estados Unidos deram origem à dois modelos bem
distintos. Para os países que decidiram adotar o modelo estadunidense, o Judiciário
terá a função de controlar os poderes políticos. Sua principal dificuldade está
relacionada com as diversas tentativas de minar sua independência. Arantes, em
Judiciário: entre a Justiça e a Política (2015), explica que esse tipo de intervenção é
visto por muitos como um impedimento à vontade da maioria e uma ameaça à visão
democrática da legitimidade das decisões políticas tomadas pelos políticos eleitos pelo
povo. Para aqueles que adotaram o modelo francês, o Judiciário não será visto como
poder e se resignará a cuidar da justiça de conflitos particulares. As críticas dessa
visão afirmam que a falta de existência de um órgão independente da constituição é
problemática e que permite que a sociedade esteja sujeita às decisões da maioria que
governa.

Apesar de terem sido o molde inicial, a maioria dos países fizeram


modificações, combinações ou adaptações no modelo tradicional francês e americano.
Atualmente, o poder do Judiciário se baseia no controle de constitucionalidade das
leis, ou seja, sua capacidade em controlar os atos normativos. Através dessa função,
ele é capaz de estabelecer leis, atos executivos, autorizar ações e gerar políticas
públicas e, assim, se igualar, em termos de importância e relevância, com os outros
poderes. Em alguns países, o Judiciário pode ser chamado para mediação e verificação
das leis, ganhando características de um novo poder, ao lado do Executivo e
Legislativo. Nos países que isso não acontece, o Judiciário funciona como uma
espécie de órgão público, responsável somente pela justiça particular.

No caso do Judiciário brasileiro, a primeira Constituição em 1891 copiou o


modelo americano. No entanto, a partir das seguintes, foram feitas várias mudanças
que nos transformaram em um sistema híbrido. Arantes (2015) explica que o Supremo
Tribunal Federal (STF) funciona quase com uma “corte constitucional”, tendo a
capacidade de anular e validar leis e não tem o “monopólio da declaração de
constitucionalidade e inconstitucionalidade”, dividindo esse poder com tribunais
menores e outros juízes. Portanto, se o STF receber algum caso de instâncias menores,
ele passa a funcionar como um órgão do Judiciário e suas decisões são válidas
somente para esses casos particulares e não como absolutas.
A Constituição brasileira espelha a americana no sentindo das nomeações dos
Ministros da Suprema Corte serem feitas pelo presidente e aprovadas pelo Senado. No
entanto, Llanos & Lemos (2018) afirmam que na prática as nomeações funcionam de
maneira limita, uma vez que só podem ser feitas com a renúncia, morte, ou
aposentadoria de um dos Ministros. Ou seja, é possível que se passem vários
mandatos sem que o presidente escolha um sucessor para o Supremo. Além disso,
para que haja um consenso entre o Senado e o Executivo na escolha do candidato, é
necessário que ele seja um meio termo entre as vontades do presidente e os próprios
interesses das outras partes políticas envolvidas. Ou seja, Llanos & Lemos (2018)
chegam a conclusão de que a escolha de um candidato para o STF está relacionada
com a força de coalisão do presidente, disponibilidade de assentos e com importância
da alinhamento com o centro, de forma que o apoio do Judiciário e do Senado seja
mais facilmente alcançado do que com um concorrente de algum extremo.

Em comparação com outros países, principalmente aqueles da América Latina,


o Judiciário brasileiro se sobressai bastante por sua força e importância. Llanos &
Lemos (2018) citam Taylor (2008) para explicar os motivos dessa autoridade:
tamanho e autonomia de orçamento; qualificação dos membros; decisões acatadas
tanto pelo Legislativo quanto o Executivo; opera com base em normas e regras etc. O
STF é capaz de exercer outras funções além da sua majoritária. Arantes (2015, p.30)
explica que o tribunal é capaz de negar ou confirmar a validade de leis, declarar
omissão, preencher lacunas e fazer correção de atos passados. Através de um
fenômeno chamado judicialização da política, na qual o poder Judiciário passa a
exercer mais funções para o qual foi inicialmente designado e passa a interferir
diretamente nas ações dos outros poderes e na política. Arantes (2015) cita Tate e
Vallinder (1997) para explicar os motivos que facilitam a judicialização da política: a
existência de democracia, divisão de poderes, um sistema que permite interesse de
grupos políticos, partidos fracos ou coalizões de governo fracas em instituições
majoritárias etc. No entanto, para que realmente aconteça, é necessário do ativismo
judicial, ou seja, que a instituição tome iniciativa para assumir essas
responsabilidades. Arantes (2015), afirma que no Brasil, todas essas causas já
estiveram presentes em algum ponto as história e, por isso, a judicialização da política
é tão presente.

A judicialização da política é um ponto de polarização: muito criticada por


alguns e vista como algo benéfico para outros. Para alguns pesquisadores, ela é vista
como uma garantia de democracia, uma vez que permite que a Constituição seja
interpretada por outras pessoas de forma que permite o fortalecimento da cidadania.
Outros autores acreditam que a judicialização não é tão necessária como se assume, já
que suas pesquisas demonstraram que o Legislativo cumpre mais do que o esperado
com a agenda pública do país, e que essa intervenção do judiciário não pode ser
justificada. Outros afirmam que o sistema judicial é formado pela grande quantidade
de processos, mas poucos que foram resolvidos de forma realmente constitucional.

Atualmente, o Brasil enfrenta uma grande crise judiciária. Fatores como a


judicialização das políticas públicas; número grande de processos e casos que são
passados para o STF sem necessidade; a visão negativa do controle constitucional de
leis pelo STF, que é tido como antidemocrática, uma vez que interfere nas ações de
políticos eleitos pelo povo; a desconfiança em relação ao Supremo por ser formado
por indicações. Por conta disso, a necessidade de uma Reforma Judiciária tem sido
discutida por muito tempo e algumas medidas já foram tomadas para mudar a situação
vigente.

Arantes afirma que a partir do século XX o Judiciário sofreu uma expansão e


passou a efetivar direitos sociais e coletivos. Existem dos enfoques em relação a essa
tese. O primeiro relaciona o Judiciário com a criação do Estado de Bem-Social após a
Segunda Guerra Mundial. Criou-se uma preocupação muito maior com a intervenção
econômica e com a qualidade de vida da população e assim passaram a ser cridas leis
voltadas à direitos como educação, trabalho, saúde, segurança, lazer, etc. O Estado
deixou de ser responsável somente pela ordem e passou a garantir a redução das
desigualdades, criando medidas públicas para que isso ocorra. O Judiciário, então, ao
invés de se resguardar a aplicar leis e resolver conflitos menores, passa a ter o papel
de efetuar esses direitos sociais.
No entanto, esse tipo de modelo passa por dificuldades. A crise do Estado de
Bem Social, em que os estados passaram a reduzir essas benfeitorias como estratégia
para diminuir gastos, afetou diretamente ao Judiciário, que ao invés de tentar diminuir
suas funções sociais, se viu cada vez mais sobrecarregado. Dessa forma, direitos que
deveriam ser assegurados pelo Estado, acabam sendo transferidos para o Judiciário,
que não é a capaz de atender essa grande demanda. A segunda perspectiva analisa a
expansão do Judiciário com base na ampliação do acesso à justiça. O direito deixou de
concentrar apenas ao individual e passou a abranger o direitos difusos e coletivos.
Além disso, também foram cridas iniciativas na estrutura judiciária para torná-la mais
acessível, como a criação de tribunais para resolver casos menores, em uma tentativa
de permitir o acesso de pessoas mais pobres à Justiça.

Devido a judicialização das políticas públicas, juízes e tribunais são


constantemente chamados para assegurar direitos como educação, saúde, segurança e
outros. O grande problema é que a grande maioria desses pedidos são concedidos e, na
maioria das vezes, o Estado não é capaz de atender essas decisões. Segundo Arantes
(2015, p.56), esses tribunais afirmam que “a efetividade do direito é superior às
questões orçamentárias, de organização do Estado e de desenho das políticas
públicas.” Assim, a escassez de recursos ou o custo para assegurar esses pedidos não
são levados em conta. Ou seja, o Judiciário brasileiro assumiu diversas tarefas, o que
acarreta diretamente na efetividade e qualidade destas. O Judiciário foi capaz de tomar
decisões de grande importância através da judicialização da política, o grande desafio
é saber limitar o ativismo judicial, de forma que não seja um risco para a democracia.

REFERÊNCIAS

ARANTES, Rogério Bastos. Judiciário: entre a Justiça e a Política. In: Lucia Avelar; Antonio Octavio
Cintra. (Org.). Sistema Político Brasileiro: uma introdução. 2 ed. Rio de Janeiro; São Paulo: F
Konrad Adenauer; Editora UNESP, 2015.
LLANOS, Mariana; LEMOS, Leany Barreiro. Preferências presidenciais? As indicações para o
Supremo Tribunal Federal no Brasil democrático. In: MARONA, Marjorie Corrêa; DEL RÍO, Andrés.
Justiça no Brasil: às margens da democracia. Belo Horizonte: Arraes, 2018. cap. 11, p. 275-308.

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