“Cuidar dos interesses dos nossos vizinhos é essencialmente cuidar
do nosso próprio futuro.” Dalai Lama
O pensamento linear simplesmente não tem
mais espaço em uma sociedade exponen- Como principal opção de mobilidade, a cial. A pandemia de Covid-19 surpreendeu plataforma conecta milhões de usuários o mundo, acelerando o desenvolvimento a milhares de motoristas que usam a pla- de algumas novas tendências e enterrando taforma como geração de renda. Seus definitivamente outras práticas. As transfor- serviços estimularam também uma im- mações que vivenciaremos no cenário pós- portante reflexão sobre a necessidade de -pandemia virão ainda mais rápido. posse do veículo e sobre a direção segura. De acordo com o Uber, o dia e o período Nossa era será indiscutivelmente um divi- com mais registros de viagens no Brasil é sor de águas: o período anterior ao Covid-19 exatamente às sextas-feiras por volta de e o novo normal que emergirá no pós-vírus: 19 horas, horário habitual dos happy hou- o “novo normal”. Experimentaremos uma rs. enorme reestruturação da ordem social e Figura 1.1: Uber: mobilidade e segurança. econômica e, entre tantas variáveis envolvi- das, uma vem ganhando destaque: a econo- mia compartilhada (sharing economy).
Figura 1.0: Sharing economy.
Embora indiscutivelmente exitoso, o Uber
não é tão inovador assim. A economia com- partilhada – que permite a divisão de um Fonte: http://blog.bccresearch.com/the-future-of-the-sha- produto ou serviço sem que todos precisem ring-economy adquiri-lo de fato – é uma “reinvenção da roda” possibilitada pelos avanços tecnológi- Tratando-se de economia compartilha- cos das últimas décadas. Essas relações de da, o Uber certamente é referência como compartilhamento já existem há milhares caso de sucesso. Em janeiro de 2016, a de anos, porém de modo informal; hoje, as- companhia estava presente em somen- sistimos a um rápido ganho de escala. te cinco cidades brasileiras, contava com 10 mil motoristas parceiros e ainda nem Outro ponto positivo desse consumo cola- havia alcançado a marca de um milhão borativo é o empoderamento do consumi- de usuários. Hoje, o Uber atua em mais dor, cada vez mais intenso em um ambiente de 100 cidades brasileiras, já superou a no qual clientes e prestadores de serviço são marca de 600 mil motoristas parceiros e continuamente avaliados através de rankin- registra mais de 22 milhões de usuários gs e comentários. Esse “olho no olho” é um ativos. aspecto determinante no sistema de avalia- ções, responsável por revelar se aquele for- necedor ou cliente é uma boa pessoa para mo é a experiência, e isso permite, por exem- negociar, estabelecendo assim um novo pa- plo, dirigir uma Ferrari por alguns dias (sem tamar para a reputação no mundo virtual. precisar pagar IPVA), passar as férias em um barco (sem custos do píer) e usar uma bici- cleta diferente a cada fim de semana (sem Sharing economy: economia com- precisar guardá-la em casa). partilhada 2. Capital de alto impacto: “Mantenham a mente aberta, assim como a capacidade de se preocupar com a hu- A economia compartilhada favorece a ple- manidade e a consciência de fazer parte na utilização de todo tipo de recurso, desde dela.” Dalai Lama tempo e dinheiro até produtos e habilidades. O modelo faz com que os excessos, tradicio- Uma pesquisa sobre a geração dos Millenials nalmente considerados lixo, deem origem (nascidos entre 1980 e 2000) recentemente a um novo sistema de transação de valores. realizada pelo Goldman Sachs nos Estados Habitualmente, nós produzimos, vendemos Unidos revelou futuras tendências finan- e eventualmente descartamos algo. Agora, ceiras com base nos hábitos e lifestyle dos aquela primeira e única transação viabiliza entrevistados. O resultado é intrigante, após várias outras. séculos de desenvolvimento do sistema bancário: 33% dos jovens ouvidos acreditam 3. Redes de multidão em vez de institui- não necessitar dos serviços de um banco em ções ou hierarquias centralizadas: um período de cinco anos, justificando essa afirmação com uma forte crença de rompi- A gentileza entre pessoas que não se co- mento no atual sistema financeiro – ou seja, nhecem pode virar um negócio, e vice-ver- a juventude não confia nos bancos. Dentre sa. Através da economia compartilhada, a os empreendedores, 14% utilizam meios al- oferta de mão de obra e capital deixa de ser ternativos de financiamento sem o envolvi- exclusividade de agregados corporativos e mento de bancos, e 50% pensam que star- estatais e emerge de toda a sociedade para tups de tecnologia os substituirão em um servir à própria sociedade. As transações fu- futuro próximo (GOLDMAN SACHS, 2020). turas passam a ser mediadas por mercados diluídos de multidão, em substituição aos Arun Sundararajan, professor de tecnologia, terceiros centralizados. operações e estatística da Stern School of Business, na Universidade de Nova York, en- A TaskRabbit, por exemplo, é uma platafor- sina que a nova sharing economy apresenta ma na qual pessoas se oferecem para reali- cinco características-chave: zar tarefas – como passear com o cachorro, lavar roupas e pintar paredes - para outras 1. Amplamente voltada ao mercado: que estão sem tempo.
Figura 1.2: TaskRabbit.
A economia compartilhada forma rapida- mente mercados que estimulam a troca de bens e o surgimento de novos serviços, aquecendo a economia. Trata-se da concre- tização de uma vida on demand, como já ocorre no universo digital. O foco do consu- 4. Fronteiras tênues entre o profissional e o pessoal: dge, gig economy é um arranjo alterna- tivo de emprego, uma forma de trabalho O uso intensivo de tecnologias digitais e re- baseada em pessoas que desempenham des sociais é um aspecto fundamental da funções temporárias ou realizam ativida- economia compartilhada. As plataformas de des de modo autônomo, pagas separada- compartilhamento funcionam quase com- mente, em vez de trabalhar para um em- pletamente por meio de equipamentos de pregador fixo (CAMBRIDGE DICTIONARY, tecnologia digital, como celulares e compu- 2020). tadores. Dessa característica decorre outra, que é a criação de sistemas de reputação como forma de solucionar problemas rela- De acordo com Alex Stephany, fundador e cionados ao anonimato e à falta de confian- CEO da Beam, a primeira plataforma online ça social, especialmente presentes em gran- do mundo de crowdfunding em prol de trei- des centros urbanos. Assim, atividades antes namento profissional para pessoas sem-teto, consideradas pessoais, como oferecer carona a economia compartilhada apresenta cinco e emprestar dinheiro, são agora intermedia- grandes vantagens: das por plataformas que promovem nego- ciações peer-to-peer (entre indivíduos). 1. Facilidade e desburocratização das tro- cas e pagamento: 5. Mix de emprego pleno e casual: A transformação digital faz os processos flu- Muitos cargos de trabalho de tempo integral írem com mais eficiência, reduzindo custos estão sendo substituídos por contratos de operacionais e protegendo a privacidade e os prestação de serviço esporádicos. De modo dados dos consumidores. O excesso de obri- geral, a ideia é disponibilizar trabalho ou al- gações legais e a dificuldade para o cumpri- gum recurso físico para gerar renda – extra mento dessas exigências, por outro lado, ele- ou principal. Aqui, empregos formais são in- va os custos diretos para os empresários e tercalados ou mesmo substituídos por usuá- traz insegurança jurídica à economia. rios-trabalhadores envolvidos em serviços de economia compartilhada. 2. Mobilização de recursos parados ou su- butilizados: A chamada gig economy, também conheci- da como economia freelancer, é resultante Carros particulares, por exemplo, são utiliza- da flexibilização do mercado de trabalho na dos em média uma hora por dia, o que repre- era digital. Ela é constituída por milhões de senta apenas 4% do seu potencial de trans- trabalhadores que abandonaram o ambien- porte. Eles circulam com uma média de 1,3 te laboral convencional para conduzir suas passageiros, embora possam acomodar con- próprias vidas profissionais. Assim, o empre- fortavelmente cinco pessoas – nesse caso, es- go estável, com horários fixos e no escritório tamos utilizando somente 1% da capacidade de uma empresa, vem sendo substituído por deste capital imobilizado durante horas - seja relações de trabalho mais fluidas e sob de- estacionado ou imobilizado no trânsito. manda. Na Suécia, já existem edifícios residências onde alguns automóveis na garagem fazem De acordo com o Dicionário de Cambri- parte do condomínio e os moradores podem usar os que estiverem disponíveis. Em Paris, há anos opera uma rede de veículos elétricos reçam seus pertences ‘inativos’ em bom públicos, estacionados em diversos pontos uso a sua comunidade. Queremos mudar da cidade como inicialmente foi feito com bi- o comportamento em torno da proprieda- cicletas. Essas iniciativas possibilitam um uso de no planeta” (NASDAQ ENTREPRENEU- mais intensivo dos meios de transporte, re- RIAL CENTER, 2018). duzindo o trânsito e a poluição.
3. Acessibilidade online com o poder da
Criada em 2014, a Omni é uma startup que internet: permite que seus usuários aluguem suas coisas menos usadas em São Francisco e A conectividade aqui é vital. Na economia Portland, Califórnia. Financiada por apro- do conhecimento é possível, por exemplo, ximadamente 40 milhões de dólares em pesquisar na Wikipédia para converter em capital de risco, a Omni anuncia em seu enriquecimento social o capital parado de site que “acredita em experiências acima conhecimento de pessoas ao redor de todo de coisas, acesso acima de propriedade o mundo. Tratando-se de finanças, esta mes- e uma vida mais leve, em vez do peso de ma conectividade permite desintermediar nossas posses”. o crédito, criando uma ponte direta entre quem tem dinheiro parado e quem dele ne- Figura 1.3: Logo da OMNI. cessita.
A economia compartilhada existe há cente-
nas de anos, desde a época em que cidades eram pequenas e seus habitantes comparti- lhavam suas posses com os vizinhos. As rá- pidas inovações tecnológicas das últimas décadas, porém, geraram uma escala abso- lutamente inédita com as mídias digitais,
4. Aproximação comunitária pelos siste-
mas de trocas e iniciativas locais:
Nesse cenário de compartilhamento, ga-
nham as empresas capazes de estabelecer Nas áreas onde a empresa atua é possível laços de confiança e empatia entre seus usu- alugar diversos objetos: de livros a skates a ários. A RelayRides, por exemplo, disponibiliza partir de 1 dólar por dia. Esse valor não in- carros para aluguel nos Estados Unidos, ape- clui taxas de entrega e devolução para os sar de não ter automóveis próprios. Seu pa- caminhões da Omni, que rodam pelas ci- pel se resume, basicamente, a oferecer uma dades diariamente e cobram cerca de 1,99 plataforma segura para colocar proprietários dólar por trajeto. em contato com locatários. Parte do suces- so, que chega a US$ 52,5 milhões em investi- O executivo-chefe e co-fundador da Omni, mentos, foi alcançado quando a companhia Tom McLeod, afirma que “os empréstimos passou a estimular o contato pessoal entre os permitem que os membros da Omni ofe- usuários no momento do empréstimo. Essa interação favorece o comprometimento das partes envolvidas; ainda é um aluguel, mas definitivamente será compartilhado: com o com natureza muito mais amigável. aumento populacional em um planeta de recursos limitados, não há escolhas. Preci- Figura 1.4: RelayRides. samos implementar um sistema cada vez mais colaborativo e integrado para compar- tilhar recursos físicos e humanos.
A economia compartilhada deve movimen-
tar US$ 335 bilhões em 2025 (PWC, 2020). Estudos indicam ainda que o modelo pode contribuir com mais de 30% do PIB do setor de serviços no Brasil até este ano. De olho nessas cifras, algumas grandes corporações 5. Substituição da compulsão por “pos- vêm tentando se aventurar no novo terreno. suir” pela praticidade do “acesso”: A montadora alemã Mercedes-Benz já ofe- rece carros em um sistema similar ao utiliza- Até poucos anos atrás, não era possível ou do em sites de compartilhamento. O preço desejável usar bens dos quais não se possuía é inferior ao de aluguel e a empresa ainda a propriedade, exceto casos de aluguéis de tenta transmitir uma nova imagem para imóveis a longo prazo, roupas de festa e ou- seus consumidores. “Compartilhar é o novo tros poucos bens pontuais. Atualmente, por possuir”, afirma a marca alemã em seu site. outro lado, a propriedade de um ativo é cada vez menos necessária para fazer uso dele, No Brasil, a falta de conhecimento dos con- quanto mais se expandem os serviços e seto- sumidores sobre os serviços compartilhados res dominados pela economia compartilha- ainda é um dos maiores obstáculos para a da. expansão do modelo para além dos já con- sagrados setores de transporte e hospeda- Milhões de pessoas deixaram de comprar gem - o Rio de Janeiro, por exemplo, já figu- CDs com a chegada dos arquivos digitais de ra como a terceira cidade no ranking global música, e também pararam de alugar filmes do Airbnb. que pode ser assistidos online. A posse do ob- jeto ou do espaço não é mais um fim em si. Paralelamente, a chamada nova classe mé- dia ingressou recentemente na sociedade de consumo – e o carro, por exemplo, ainda “A economia criativa, as redes de colabo- é um símbolo de status por aqui. Demora ração, a economia solidária, o princípio do um pouco até as pessoas se convencerem compartilhar e outras iniciativas trazem, de que não precisam realmente comprar sem dúvida, vento fresco ao opressivo sis- um, afinal a transformação cultural é sem- tema corporativo que nos empurra em pre mais vagarosa do que as tecnologias. ■ correrias incessantes para ter mais dinhei- ro a fim de comprar mais coisas que tere- mos cada vez menos tempo ou paciência REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS para apreciar” (SUNDARARAJAN, 2019). • GOLDMAN SACHS, 2020. Millennials: Coming of Age. Disponível em: https://www. Além de todos esses benefícios, cabe des- goldmansachs.com/insights/archive/millen- tacar também a proeminente questão da nials/ Acesso em: 10/07/2020. sustentabilidade ambiental. Nosso futuro • SUNDARARAJAN, Arun. Economia com- partilhada: o fim do emprego e a ascensão do capitalismo de multidão. Senac São Pau- lo, 2019.
• HYDE, Lewis. The Gift: Creativity and the
Artist in the Modern World (English Edition) 25th Anniversary. Vintage, 2009.
• CAMBRIDGE DICTIONARY, 2020. Disponí-
vel em: https://dictionary.cambridge.org/us/ dictionary/english/gig-economy Acesso em: 10/07/2020.
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2018. Faces of Entrepreneurship: Thomas McLeod, Founder & CEO of Omni. Disponível em: https://thecenter.nasdaq.org/faces-of- -entrepreneurship-thomas-mcleod-omni/ Acesso em: 10/07/2020.