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#44

“Cuidar dos interesses dos nossos vizinhos é essencialmente cuidar


do nosso próprio futuro.” Dalai Lama

O pensamento linear simplesmente não tem


mais espaço em uma sociedade exponen- Como principal opção de mobilidade, a
cial. A pandemia de Covid-19 surpreendeu plataforma conecta milhões de usuários
o mundo, acelerando o desenvolvimento a milhares de motoristas que usam a pla-
de algumas novas tendências e enterrando taforma como geração de renda. Seus
definitivamente outras práticas. As transfor- serviços estimularam também uma im-
mações que vivenciaremos no cenário pós- portante reflexão sobre a necessidade de
-pandemia virão ainda mais rápido. posse do veículo e sobre a direção segura.
De acordo com o Uber, o dia e o período
Nossa era será indiscutivelmente um divi- com mais registros de viagens no Brasil é
sor de águas: o período anterior ao Covid-19 exatamente às sextas-feiras por volta de
e o novo normal que emergirá no pós-vírus: 19 horas, horário habitual dos happy hou-
o “novo normal”. Experimentaremos uma rs.
enorme reestruturação da ordem social e Figura 1.1: Uber: mobilidade e segurança.
econômica e, entre tantas variáveis envolvi-
das, uma vem ganhando destaque: a econo-
mia compartilhada (sharing economy).

Figura 1.0: Sharing economy.

Embora indiscutivelmente exitoso, o Uber


não é tão inovador assim. A economia com-
partilhada – que permite a divisão de um
Fonte: http://blog.bccresearch.com/the-future-of-the-sha- produto ou serviço sem que todos precisem
ring-economy
adquiri-lo de fato – é uma “reinvenção da
roda” possibilitada pelos avanços tecnológi-
Tratando-se de economia compartilha- cos das últimas décadas. Essas relações de
da, o Uber certamente é referência como compartilhamento já existem há milhares
caso de sucesso. Em janeiro de 2016, a de anos, porém de modo informal; hoje, as-
companhia estava presente em somen- sistimos a um rápido ganho de escala.
te cinco cidades brasileiras, contava com
10 mil motoristas parceiros e ainda nem Outro ponto positivo desse consumo cola-
havia alcançado a marca de um milhão borativo é o empoderamento do consumi-
de usuários. Hoje, o Uber atua em mais dor, cada vez mais intenso em um ambiente
de 100 cidades brasileiras, já superou a no qual clientes e prestadores de serviço são
marca de 600 mil motoristas parceiros e continuamente avaliados através de rankin-
registra mais de 22 milhões de usuários gs e comentários. Esse “olho no olho” é um
ativos. aspecto determinante no sistema de avalia-
ções, responsável por revelar se aquele for-
necedor ou cliente é uma boa pessoa para mo é a experiência, e isso permite, por exem-
negociar, estabelecendo assim um novo pa- plo, dirigir uma Ferrari por alguns dias (sem
tamar para a reputação no mundo virtual. precisar pagar IPVA), passar as férias em um
barco (sem custos do píer) e usar uma bici-
cleta diferente a cada fim de semana (sem
Sharing economy: economia com- precisar guardá-la em casa).
partilhada
2. Capital de alto impacto:
“Mantenham a mente aberta, assim como
a capacidade de se preocupar com a hu- A economia compartilhada favorece a ple-
manidade e a consciência de fazer parte na utilização de todo tipo de recurso, desde
dela.” Dalai Lama tempo e dinheiro até produtos e habilidades.
O modelo faz com que os excessos, tradicio-
Uma pesquisa sobre a geração dos Millenials nalmente considerados lixo, deem origem
(nascidos entre 1980 e 2000) recentemente a um novo sistema de transação de valores.
realizada pelo Goldman Sachs nos Estados Habitualmente, nós produzimos, vendemos
Unidos revelou futuras tendências finan- e eventualmente descartamos algo. Agora,
ceiras com base nos hábitos e lifestyle dos aquela primeira e única transação viabiliza
entrevistados. O resultado é intrigante, após várias outras.
séculos de desenvolvimento do sistema
bancário: 33% dos jovens ouvidos acreditam 3. Redes de multidão em vez de institui-
não necessitar dos serviços de um banco em ções ou hierarquias centralizadas:
um período de cinco anos, justificando essa
afirmação com uma forte crença de rompi- A gentileza entre pessoas que não se co-
mento no atual sistema financeiro – ou seja, nhecem pode virar um negócio, e vice-ver-
a juventude não confia nos bancos. Dentre sa. Através da economia compartilhada, a
os empreendedores, 14% utilizam meios al- oferta de mão de obra e capital deixa de ser
ternativos de financiamento sem o envolvi- exclusividade de agregados corporativos e
mento de bancos, e 50% pensam que star- estatais e emerge de toda a sociedade para
tups de tecnologia os substituirão em um servir à própria sociedade. As transações fu-
futuro próximo (GOLDMAN SACHS, 2020). turas passam a ser mediadas por mercados
diluídos de multidão, em substituição aos
Arun Sundararajan, professor de tecnologia, terceiros centralizados.
operações e estatística da Stern School of
Business, na Universidade de Nova York, en- A TaskRabbit, por exemplo, é uma platafor-
sina que a nova sharing economy apresenta ma na qual pessoas se oferecem para reali-
cinco características-chave: zar tarefas – como passear com o cachorro,
lavar roupas e pintar paredes - para outras
1. Amplamente voltada ao mercado: que estão sem tempo.

Figura 1.2: TaskRabbit.


A economia compartilhada forma rapida-
mente mercados que estimulam a troca
de bens e o surgimento de novos serviços,
aquecendo a economia. Trata-se da concre-
tização de uma vida on demand, como já
ocorre no universo digital. O foco do consu-
4. Fronteiras tênues entre o profissional
e o pessoal: dge, gig economy é um arranjo alterna-
tivo de emprego, uma forma de trabalho
O uso intensivo de tecnologias digitais e re- baseada em pessoas que desempenham
des sociais é um aspecto fundamental da funções temporárias ou realizam ativida-
economia compartilhada. As plataformas de des de modo autônomo, pagas separada-
compartilhamento funcionam quase com- mente, em vez de trabalhar para um em-
pletamente por meio de equipamentos de pregador fixo (CAMBRIDGE DICTIONARY,
tecnologia digital, como celulares e compu- 2020).
tadores. Dessa característica decorre outra,
que é a criação de sistemas de reputação
como forma de solucionar problemas rela- De acordo com Alex Stephany, fundador e
cionados ao anonimato e à falta de confian- CEO da Beam, a primeira plataforma online
ça social, especialmente presentes em gran- do mundo de crowdfunding em prol de trei-
des centros urbanos. Assim, atividades antes namento profissional para pessoas sem-teto,
consideradas pessoais, como oferecer carona a economia compartilhada apresenta cinco
e emprestar dinheiro, são agora intermedia- grandes vantagens:
das por plataformas que promovem nego-
ciações peer-to-peer (entre indivíduos). 1. Facilidade e desburocratização das tro-
cas e pagamento:
5. Mix de emprego pleno e casual:
A transformação digital faz os processos flu-
Muitos cargos de trabalho de tempo integral írem com mais eficiência, reduzindo custos
estão sendo substituídos por contratos de operacionais e protegendo a privacidade e os
prestação de serviço esporádicos. De modo dados dos consumidores. O excesso de obri-
geral, a ideia é disponibilizar trabalho ou al- gações legais e a dificuldade para o cumpri-
gum recurso físico para gerar renda – extra mento dessas exigências, por outro lado, ele-
ou principal. Aqui, empregos formais são in- va os custos diretos para os empresários e
tercalados ou mesmo substituídos por usuá- traz insegurança jurídica à economia.
rios-trabalhadores envolvidos em serviços de
economia compartilhada. 2. Mobilização de recursos parados ou su-
butilizados:
A chamada gig economy, também conheci-
da como economia freelancer, é resultante Carros particulares, por exemplo, são utiliza-
da flexibilização do mercado de trabalho na dos em média uma hora por dia, o que repre-
era digital. Ela é constituída por milhões de senta apenas 4% do seu potencial de trans-
trabalhadores que abandonaram o ambien- porte. Eles circulam com uma média de 1,3
te laboral convencional para conduzir suas passageiros, embora possam acomodar con-
próprias vidas profissionais. Assim, o empre- fortavelmente cinco pessoas – nesse caso, es-
go estável, com horários fixos e no escritório tamos utilizando somente 1% da capacidade
de uma empresa, vem sendo substituído por deste capital imobilizado durante horas - seja
relações de trabalho mais fluidas e sob de- estacionado ou imobilizado no trânsito.
manda.
Na Suécia, já existem edifícios residências
onde alguns automóveis na garagem fazem
De acordo com o Dicionário de Cambri- parte do condomínio e os moradores podem
usar os que estiverem disponíveis. Em Paris,
há anos opera uma rede de veículos elétricos reçam seus pertences ‘inativos’ em bom
públicos, estacionados em diversos pontos uso a sua comunidade. Queremos mudar
da cidade como inicialmente foi feito com bi- o comportamento em torno da proprieda-
cicletas. Essas iniciativas possibilitam um uso de no planeta” (NASDAQ ENTREPRENEU-
mais intensivo dos meios de transporte, re- RIAL CENTER, 2018).
duzindo o trânsito e a poluição.

3. Acessibilidade online com o poder da


Criada em 2014, a Omni é uma startup que internet:
permite que seus usuários aluguem suas
coisas menos usadas em São Francisco e A conectividade aqui é vital. Na economia
Portland, Califórnia. Financiada por apro- do conhecimento é possível, por exemplo,
ximadamente 40 milhões de dólares em pesquisar na Wikipédia para converter em
capital de risco, a Omni anuncia em seu enriquecimento social o capital parado de
site que “acredita em experiências acima conhecimento de pessoas ao redor de todo
de coisas, acesso acima de propriedade o mundo. Tratando-se de finanças, esta mes-
e uma vida mais leve, em vez do peso de ma conectividade permite desintermediar
nossas posses”. o crédito, criando uma ponte direta entre
quem tem dinheiro parado e quem dele ne-
Figura 1.3: Logo da OMNI.
cessita.

A economia compartilhada existe há cente-


nas de anos, desde a época em que cidades
eram pequenas e seus habitantes comparti-
lhavam suas posses com os vizinhos. As rá-
pidas inovações tecnológicas das últimas
décadas, porém, geraram uma escala abso-
lutamente inédita com as mídias digitais,

4. Aproximação comunitária pelos siste-


mas de trocas e iniciativas locais:

Nesse cenário de compartilhamento, ga-


nham as empresas capazes de estabelecer
Nas áreas onde a empresa atua é possível laços de confiança e empatia entre seus usu-
alugar diversos objetos: de livros a skates a ários. A RelayRides, por exemplo, disponibiliza
partir de 1 dólar por dia. Esse valor não in- carros para aluguel nos Estados Unidos, ape-
clui taxas de entrega e devolução para os sar de não ter automóveis próprios. Seu pa-
caminhões da Omni, que rodam pelas ci- pel se resume, basicamente, a oferecer uma
dades diariamente e cobram cerca de 1,99 plataforma segura para colocar proprietários
dólar por trajeto. em contato com locatários. Parte do suces-
so, que chega a US$ 52,5 milhões em investi-
O executivo-chefe e co-fundador da Omni, mentos, foi alcançado quando a companhia
Tom McLeod, afirma que “os empréstimos passou a estimular o contato pessoal entre os
permitem que os membros da Omni ofe- usuários no momento do empréstimo. Essa
interação favorece o comprometimento das
partes envolvidas; ainda é um aluguel, mas definitivamente será compartilhado: com o
com natureza muito mais amigável. aumento populacional em um planeta de
recursos limitados, não há escolhas. Preci-
Figura 1.4: RelayRides.
samos implementar um sistema cada vez
mais colaborativo e integrado para compar-
tilhar recursos físicos e humanos.

A economia compartilhada deve movimen-


tar US$ 335 bilhões em 2025 (PWC, 2020).
Estudos indicam ainda que o modelo pode
contribuir com mais de 30% do PIB do setor
de serviços no Brasil até este ano. De olho
nessas cifras, algumas grandes corporações
5. Substituição da compulsão por “pos-
vêm tentando se aventurar no novo terreno.
suir” pela praticidade do “acesso”:
A montadora alemã Mercedes-Benz já ofe-
rece carros em um sistema similar ao utiliza-
Até poucos anos atrás, não era possível ou
do em sites de compartilhamento. O preço
desejável usar bens dos quais não se possuía
é inferior ao de aluguel e a empresa ainda
a propriedade, exceto casos de aluguéis de
tenta transmitir uma nova imagem para
imóveis a longo prazo, roupas de festa e ou-
seus consumidores. “Compartilhar é o novo
tros poucos bens pontuais. Atualmente, por
possuir”, afirma a marca alemã em seu site.
outro lado, a propriedade de um ativo é cada
vez menos necessária para fazer uso dele,
No Brasil, a falta de conhecimento dos con-
quanto mais se expandem os serviços e seto-
sumidores sobre os serviços compartilhados
res dominados pela economia compartilha-
ainda é um dos maiores obstáculos para a
da.
expansão do modelo para além dos já con-
sagrados setores de transporte e hospeda-
Milhões de pessoas deixaram de comprar
gem - o Rio de Janeiro, por exemplo, já figu-
CDs com a chegada dos arquivos digitais de
ra como a terceira cidade no ranking global
música, e também pararam de alugar filmes
do Airbnb.
que pode ser assistidos online. A posse do ob-
jeto ou do espaço não é mais um fim em si.
Paralelamente, a chamada nova classe mé-
dia ingressou recentemente na sociedade
de consumo – e o carro, por exemplo, ainda
“A economia criativa, as redes de colabo-
é um símbolo de status por aqui. Demora
ração, a economia solidária, o princípio do
um pouco até as pessoas se convencerem
compartilhar e outras iniciativas trazem,
de que não precisam realmente comprar
sem dúvida, vento fresco ao opressivo sis-
um, afinal a transformação cultural é sem-
tema corporativo que nos empurra em
pre mais vagarosa do que as tecnologias. ■
correrias incessantes para ter mais dinhei-
ro a fim de comprar mais coisas que tere-
mos cada vez menos tempo ou paciência REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
para apreciar” (SUNDARARAJAN, 2019).
• GOLDMAN SACHS, 2020. Millennials:
Coming of Age. Disponível em: https://www.
Além de todos esses benefícios, cabe des-
goldmansachs.com/insights/archive/millen-
tacar também a proeminente questão da
nials/ Acesso em: 10/07/2020.
sustentabilidade ambiental. Nosso futuro
• SUNDARARAJAN, Arun. Economia com-
partilhada: o fim do emprego e a ascensão
do capitalismo de multidão. Senac São Pau-
lo, 2019.

• HYDE, Lewis. The Gift: Creativity and the


Artist in the Modern World (English Edition)
25th Anniversary. Vintage, 2009.

• CAMBRIDGE DICTIONARY, 2020. Disponí-


vel em: https://dictionary.cambridge.org/us/
dictionary/english/gig-economy Acesso em:
10/07/2020.

• NASDAQ ENTREPRENEURIAL CENTER,


2018. Faces of Entrepreneurship: Thomas
McLeod, Founder & CEO of Omni. Disponível
em: https://thecenter.nasdaq.org/faces-of-
-entrepreneurship-thomas-mcleod-omni/
Acesso em: 10/07/2020.

• PWC, 2020. Sharing or paring? Growth of


the sharing economy. Disponível em: https://
www.pwc.com/hu/en/kiadvanyok/assets/
pdf/sharing-economy-en.pdf Acesso em:
10/07/2020.

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