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O capitalismo de colapso
Fonte: PxHere
03 Mai 2022

“As elites capitalistas estão conscientes de que o colapso do atual sistema capitalista
global é inevitável, devido à convergência da crise energética, ecológica, econômica e
social. Mas as elites capitalistas não estão dispostas a perder sua condição de minoria
privilegiada dotada de um poder global”, escreve Gil-Manuel Hernández Martí,
professor titular do Departamento de Sociologia e Antropologia Social da Universidade
de Valência.

O artigo é publicado por El Salto, 30-04-2022. A tradução é do Cepat.

O capitalismo de colapso
Gil-Manuel Hernández Martí

“Falar sobre o colapso, imaginá-lo, buscar compreender suas possíveis causas,


especular sobre seus eventuais efeitos, tudo isso tem uma função importante que
passa mais pela capacidade de sugerir, de abrir horizontes culturais, de
descolonizar a imaginação, do que pela exatidão ou pelo necessário poder
preditivo” (Ernest García, Ecología e Igualdad, 2021).

O colapso do capitalismo

Estamos entrando em um mundo cada vez mais frágil, volátil e sujeito a cadeias
de crises entrelaçadas. Um cenário caótico e disruptivo que muitos cientistas
classificam como colapso ecossocial, de alcance mundial e de caráter quase
irreversível. Isso significa que a civilização industrial capitalista que conhecemos
está se rompendo como sistema estável, com um alto risco de arrasar economias,
ecossistemas e culturas. A complexidade do mundo que conhecemos parece
diminuir, ao passo em que cresce a entropia, talvez para dar lugar a uma nova
complexidade pós-colapsista, ainda de incerta concreção.

O colapso, iniciado com a crise energética dos anos 1970, teria se acelerado com a
crise de 2008, mas sobretudo nos últimos anos, devido aos brutais efeitos
das mudanças climáticas, induzidas por um enlouquecido sistema baseado em
um crescimento contínuo e consumista, à custa de esgotar recursos
energéticos, destruir a biosfera, gerar patologias de todos os tipos e agravar
a precarização, a pobreza e a desigualdade. A tal ponto que hoje, diante da quase
certeza do colapso, a dúvida é se ainda temos tempo para que seja
um colapso controlado ou, então, um colapso caótico e destrutivo.

A pandemia de covid-19, que tanto abalou nosso mundo em apenas dois anos, ou a
guerra recentemente iniciada na Ucrânia seriam apenas mais alguns episódios
desse colapso sistêmico, ou dito de outro modo, do colapso do capitalismo. Não por
acaso, Antonio Turiel e Juan Bordera interpretam o conflito bélico na Ucrânia como a
primeira guerra do que consideram a Era do Descenso Energético.

A comunidade científica que estuda o colapso sob várias perspectivas, entre as quais
surgiu a nova disciplina de colapsologia, não tem clareza se seu ritmo, induzido pela
própria radicalização da lógica capitalista, seja em suas versões de mercado ou
de Estado, pode aumentar ou variar segundo lugares, fatores e contextos sociais.
Parece haver mais consenso de que o processo de colapso operará em ondas, entre
as quais renascerá a ilusão de um retorno ao velho mundo de bem-estar segundo o
modelo ocidental, embora irá se impondo um longo declínio, um progressivo
descenso salpicado de crises, conflitos, revoltas e dramas.

O tempo que tal processo pode levar também não é muito previsível, dada a
probabilidade de que desencadeiem ciclos incontroláveis de acontecimentos e as
conhecidas acelerações da mudança histórica. Em todo caso, o colapso pode se dar
como um processo biofísico, que não necessariamente deve ser negativo, se gerido
adequadamente, definindo-se a escolha transcendental como aquela que deve optar
entre um colapso caótico e altamente destrutivo e outro mais dirigido, mais
regulado, e talvez reorientado, apesar dos traumas inevitáveis para a construção, a
partir de baixo, de modos de vida muito mais democráticos, ecológicos e saudáveis.

O certo é que o colapso em curso é um processo derivado do fato crucial da


“dinâmica autoexpansiva da acumulação de capital”, nas palavras de Jorge
Riechmann, dado que o atual sistema capitalista industrial, tecnocrático, oligárquico
e irracionalmente expansionista desafia todos os limites importantes do planeta,
razão pela qual está inevitavelmente condenado a tentar sobreviver a qualquer
custo, mesmo que os métodos empregados o afundem mais rapidamente ou o forcem
a se transformar em outro tipo de formação histórica.

Conforme apontado por muitos trabalhos e estudos rigorosos, parece que estamos
entrando em um horizonte potencialmente crítico de caráter multidimensional,
definido pela crise de crescimento, escassez progressiva, intensificação das
emergências climáticas, fechamento em massa de empresas, ampliação do
desemprego, crises humanitárias, desintegração dos Estados de bem-estar social e
das classes médias, aumento dos preços dos produtos básicos, potencial
desestruturação do sistema financeiro, ruína das aposentadorias e um panorama
visível de retrocessos na saúde, educação, alimentação, comércio internacional e
turismo, entre outros setores.

A todos esses processos, temos que acrescentar o descenso energético,


o rompimento das cadeias de abastecimento, a insegurança alimentar, o aumento
da desigualdade social, o conflito e a polarização em todos os níveis, e as pandemias
recorrentes, fruto da depredação agroindustrial da natureza. Sem falar
na precariedade trabalhista, na incerteza vital para os mais jovens, no abandono dos
mais pobres e frágeis, na expansão das doenças mentais ligadas a estados
depressivos ou na dependência de drogas, bem como na proliferação de refugiados
climáticos, econômicos e políticos.

Tudo isso alinhado a um maior poder das grandes corporações transnacionais e ao


avanço combinado do neoliberalismo selvagem, do ecofascismo e de uma nova
extrema direita nacional-populista. Mas as coisas não param por aí, uma vez que
devemos acrescentar a guerra em grande escala, o auge da biopolítica e
a psicopolítica de cunho totalitário (vigilância total), a volatilidade e instabilidade
sociais, o desaparecimento progressivo da democracia, a proliferação de violências
diversas e, como a cereja do bolo, os incêndios de sexta geração, a extinção das
espécies e a degradação ambiental irreversível, produto das já referidas mudanças
climáticas.

Nesse contexto, a ‘globulização’ surge como uma nova dimensão da globalização sob
as condições estruturais do capitalismo radicalizado e cada vez mais
desmaterializado, fadado a colidir inevitavelmente com os limites produzidos por
seu próprio desenvolvimento, voraz e insaciável. A ‘globulização’, que experimenta
uma constante capacidade de mutação, é consequência direta da contradição que
ocorre entre a enorme velocidade com qual a globalização capitalista se desenvolve
nas esferas econômica, tecnológica, informacional e ecológica, que conduz
necessariamente à catástrofe do extravasamento, e a globalização muito mais
lenta nas esferas social, cultural e psíquica, que dificilmente podem processar com o
devido tempo e resiliência as consequências da catástrofe em curso.

Nesse contexto de colapso do capitalismo, a ‘globulização’, a verdadeira face oculta


da globalização, ilumina-se com maior nitidez, mostrando a crescente centralidade
do glóbulo, que é a formação social que ganha cada vez mais relevância frente
à globalização expansiva, na qual o fluxo era o traço dominante. A ‘globulização’,
enquanto processo que permite a multiplicação e o crescente protagonismo social
dos glóbulos, concretiza-se na proliferação de mundos autocontidos,
autorreferenciais, herméticos e desconfiados uns dos outros, propiciando ambientes
múltiplos ou ambientes estanques, potencialmente fechados e hostis. Em outras
palavras, a ‘globulização’ evidencia o esquartejamento e afundamento do
ecossistema da globalização capitalista neoliberal, os fragmentos desgarrados do
edifício em ruínas, os espaços sociais desprendidos da sociedade global que se
torna globular, caótica e distópica.

O resultado final é que os fluxos de abertura, diálogo e inclusão tendem a ceder


diante da formação de glóbulos com vida própria, que atuam como obstáculos, que
ativam conflitos enrijecidos e novos, que predispõem ao fechamento, rigidez, falta de
comunicação, autismo social, guerra e violência. Glóbulos que propiciam seus
próprios fluxos, que se propagam, paradoxalmente, utilizando as próprias redes da
globalização, mas para reconfigurá-la, reduzindo sua complexidade.

O combustível que impulsiona o inquietante crescimento dos glóbulos é um enorme


mal-estar, produto do desastre ecocida e social de mais de quatro décadas
de neoliberalismo autoritário e da percepção que as próprias elites possuem de que
o atual modelo não suportará muito mais. A proliferação da lógica globular possui
um efeito desintegrador, fragmentador, dissolvente e atomizador, e lança a
mensagem do “salve-se quem puder”, em primeiro lugar entre as elites, que parecem
ter decidido que o colapso do capitalismo deve ser implacavelmente comandado por
elas. O colapso, então, consubstancia-se seguindo as redes da globalização, mas sob
a pressão disruptiva e desestabilizadora da lógica da ‘globulização’.

O capitalismo de colapso

As elites capitalistas estão conscientes de que o colapso do atual sistema


capitalista global é inevitável, devido à convergência da crise energética, ecológica,
econômica e social. Mas as elites capitalistas não estão dispostas a perder sua
condição de minoria privilegiada dotada de um poder global. Portanto, sua opção
estratégica é o capitalismo de colapso, ou seja, a de poder gerenciar, administrar e
conduzir o processo de colapso a partir de seus enfoques hegemônicos para
reorientar o capitalismo terminal, por meio de uma transição autoritariamente
controlada, rumo a uma espécie de neofeudalismo corporativo de cunho
tecnocrático, de alcance global, possivelmente ecofascista e
potencialmente exterminacionista, que salvaguarde o imperativo extrativo por
desapropriação, que é a razão de ser de tais elites.

Tal movimento está diretamente ligado ao referido processo de ‘globulização’, na


medida em que uma de suas consequências é a radicalização da secessão das elites,
que formam glóbulos entendidos como fortalezas inacessíveis (intramuros de um
ambiente de bem-estar para privilegiados), dos quais se exerce despoticamente o
poder e se administra as migalhas aos outros, cujos direitos serão proporcionados
em função dos benefícios que podem oferecer às elites. Resumindo: haveria uma
transição do Estado de direito ao Estado de resíduos. Conforma-se, assim, um
panorama complexo de glóbulos hierarquicamente estruturados, diversamente
configurados, com diferentes graus de proteção, que determinam uma paisagem em
forma de pele de leopardo, na qual manchas dominantes controlam um espaço onde
abundam os vazios e desertos, como sinônimo da exploração sistêmica do
capitalismo de colapso. Alguns vazios onde outros glóbulos, frágeis e precários,
lutam pela sobrevivência ou, caso se deseje manter a esperança, trabalham para
abrir passagem como alternativas comunitárias e democráticas de futuro, fazendo da
necessidade uma virtude e construindo a esperança ativa a partir do abandono.

O modo de gestão dessa transição define o capitalismo de colapso, que inclui a


possibilidade de guerras tíbias, híbridas ou regionais para garantir certa
legitimidade popular que reforce o poder das elites em nível nacional ou regional,
fazendo com que compitam (ou competindo selvagemente) para salvaguardar seus
povos, embora na realidade representem através da guerra a afirmação de seu poder
e interesses, ao mesmo tempo em que, através de mecanismos opacos de todos os
tipos, salvaguardam suas estruturas elitistas transnacionais de classe.

Ao final, mesmo que compitam violentamente, as elites sempre lançam seus


dominados para a batalha na lama e na hora da verdade se livram das consequências,
como de fato aconteceu nas guerras mundiais do século XX. A diferença é que,
naquele momento, as elites e os impérios capitalistas que governavam competiam
por recursos energéticos e minerais então considerados inesgotáveis, ao passo que
atualmente as elites se veem obrigadas a lutar por recursos cada vez mais escassos,
em um mundo finito, altamente poluído e climaticamente caótico. Isso configura uma
luta impiedosa na qual as oligarquias sempre vão se salvar, o que significa que farão
de tudo pela monopolização de recursos decrescentes, com a consequente expulsão
da maior parte da população humana a um vasto extramuros de pobreza, abandono e
decadência.

No fundo, a coalizão formada por administradores de Estados profundos, altos


funcionários civis e militares, administradores e grandes acionistas de grandes
fundos de investimento e fundos soberanos, centros elitistas de pesquisa,
investidores de empresas tecnológicas do capitalismo de vigilância, grupos de
pensamento e pressão (lobbies), centros de prescrição cultural em massa,
corporações transnacionais, bolsas de valores e organizações financeiras, junto com
as oligarquias mafiosas e elites subsidiárias terceiro-mundistas, pretende
essencialmente sobreviver, manter-se e reproduzir-se ao custo que for necessário. E
essa coalizão de interesses sabe que só pode fazer isso supervisionando e
controlando com mão dura o inevitável colapso do capitalismo por meio do
capitalismo de colapso, oscilando taticamente entre o “salve-se quem puder” e “os
ricos primeiro”.

De fato, as várias camadas e frações dessas elites globais lutam entre si para liderar
e controlar o processo, ao mesmo tempo em que convergem na necessidade de que
as massas populares de cidadãos cada vez mais frágeis vejam seus direitos,
liberdades e iniciativas progressivamente limitados. Ou, como destaca Pablo Font em
seu recente livro “La batalla por el colapso. Crisis ecosocial y élites contra el Pueblo”,
tanto o projeto nacional-populista como o projeto globalista, ambos dirigidos pelas
oligarquias, “ocultam o real motivo da luta (luta pelo poder e contra a democracia), e
dela se aproveitam para distrair os cidadãos do possível colapso, bem como da
corrida que já empreendem para estarem melhor situados nesse provável futuro”.
Em suma, assiste-se a uma espécie de detonação controlada do capitalismo por
implosão mediante o desenvolvimento de um capitalismo necessariamente
implosivo.

O capitalismo de colapso em escala global, com suas diversas concreções e


modulações locais, também implica uma gradação estratégica da lógica
exterminacionista, que vai das deliberadas e planejadas políticas neoliberais de
destruição do Estado de bem-estar social, passando pela precariedade induzida,
a deterioração programada das redes de solidariedade, a guerra recorrente, as
sociedades do abandono, a lógica das expulsões, produção e gestão de resíduos
humanos, até a diminuição cínica, cruel e sistemática de uma humanidade sobrante.
Tudo isso encorajado por alguns postulados cada vez mais
abertamente ecofascistas, vinculados à justificação e proteção de uma humanidade
reduzida e funcional ao sistema em transição, e que contemplam
o exterminismo estrito como último recurso.

Nessa perspectiva, uma eficiente gestão capitalista do colapso (o capitalismo de


colapso como um programa ambicioso de destruição criativa) pode facilitar a
transição ao novo modelo pós-capitalista e neofeudal que assegure a conservação
do poder das elites globais (e de suas subsidiárias locais), minimizando, na medida
do possível, os efeitos catastróficos do colapso sistêmico, mesmo à custa do
desaparecimento de extensas áreas, espécies e grupos humanos do novo sistema
pós-capitalista em construção, além de qualquer indício de democracia. Uma espécie
de roteiro implacável (outra coisa é como se efetiva), de itinerário político psicopata
para “salvar os móveis” em um planeta cada vez mais degradado, para assim
reconstruir a casa conforme o gosto das elites, sob seus renovados parâmetros
organizacionais em termos de autoridade inquestionável, exclusividade e exclusão.

Trata-se, então, de garantir o planeta para “os que não sobrarem” (as elites e as
populações que lhes são úteis e funcionais). Em suma, trata-se de construir um
projeto de fortaleza global neofeudal formada por uma rede de espaços-fortaleza
comunicados entre si através de um oceano de devastação, pobreza e degradação,
um cenário em que se ativa a sustentabilidade ecocida, ao mesmo tempo em que se
dá o planejamento de um decrescimento genocida das estruturas que obstaculizam a
manutenção dos privilégios, recursos e poder das elites. Ou dito de outro modo:
redução cirúrgica da complexidade como forma de assegurar poder e preservar
o novo sistema pós-colapsista. E para gerir tal processo, um regime totalitário de
emergência, que mesmo conservando certas formas simbólicas de democracia, ative
e ao mesmo tempo controle o caos induzido para maior benefício de elites globais
definitivamente ‘globulizadas’.

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