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O capitalismo de colapso
Fonte: PxHere
03 Mai 2022
“As elites capitalistas estão conscientes de que o colapso do atual sistema capitalista
global é inevitável, devido à convergência da crise energética, ecológica, econômica e
social. Mas as elites capitalistas não estão dispostas a perder sua condição de minoria
privilegiada dotada de um poder global”, escreve Gil-Manuel Hernández Martí,
professor titular do Departamento de Sociologia e Antropologia Social da Universidade
de Valência.
O capitalismo de colapso
Gil-Manuel Hernández Martí
O colapso do capitalismo
Estamos entrando em um mundo cada vez mais frágil, volátil e sujeito a cadeias
de crises entrelaçadas. Um cenário caótico e disruptivo que muitos cientistas
classificam como colapso ecossocial, de alcance mundial e de caráter quase
irreversível. Isso significa que a civilização industrial capitalista que conhecemos
está se rompendo como sistema estável, com um alto risco de arrasar economias,
ecossistemas e culturas. A complexidade do mundo que conhecemos parece
diminuir, ao passo em que cresce a entropia, talvez para dar lugar a uma nova
complexidade pós-colapsista, ainda de incerta concreção.
O colapso, iniciado com a crise energética dos anos 1970, teria se acelerado com a
crise de 2008, mas sobretudo nos últimos anos, devido aos brutais efeitos
das mudanças climáticas, induzidas por um enlouquecido sistema baseado em
um crescimento contínuo e consumista, à custa de esgotar recursos
energéticos, destruir a biosfera, gerar patologias de todos os tipos e agravar
a precarização, a pobreza e a desigualdade. A tal ponto que hoje, diante da quase
certeza do colapso, a dúvida é se ainda temos tempo para que seja
um colapso controlado ou, então, um colapso caótico e destrutivo.
A pandemia de covid-19, que tanto abalou nosso mundo em apenas dois anos, ou a
guerra recentemente iniciada na Ucrânia seriam apenas mais alguns episódios
desse colapso sistêmico, ou dito de outro modo, do colapso do capitalismo. Não por
acaso, Antonio Turiel e Juan Bordera interpretam o conflito bélico na Ucrânia como a
primeira guerra do que consideram a Era do Descenso Energético.
A comunidade científica que estuda o colapso sob várias perspectivas, entre as quais
surgiu a nova disciplina de colapsologia, não tem clareza se seu ritmo, induzido pela
própria radicalização da lógica capitalista, seja em suas versões de mercado ou
de Estado, pode aumentar ou variar segundo lugares, fatores e contextos sociais.
Parece haver mais consenso de que o processo de colapso operará em ondas, entre
as quais renascerá a ilusão de um retorno ao velho mundo de bem-estar segundo o
modelo ocidental, embora irá se impondo um longo declínio, um progressivo
descenso salpicado de crises, conflitos, revoltas e dramas.
O tempo que tal processo pode levar também não é muito previsível, dada a
probabilidade de que desencadeiem ciclos incontroláveis de acontecimentos e as
conhecidas acelerações da mudança histórica. Em todo caso, o colapso pode se dar
como um processo biofísico, que não necessariamente deve ser negativo, se gerido
adequadamente, definindo-se a escolha transcendental como aquela que deve optar
entre um colapso caótico e altamente destrutivo e outro mais dirigido, mais
regulado, e talvez reorientado, apesar dos traumas inevitáveis para a construção, a
partir de baixo, de modos de vida muito mais democráticos, ecológicos e saudáveis.
Conforme apontado por muitos trabalhos e estudos rigorosos, parece que estamos
entrando em um horizonte potencialmente crítico de caráter multidimensional,
definido pela crise de crescimento, escassez progressiva, intensificação das
emergências climáticas, fechamento em massa de empresas, ampliação do
desemprego, crises humanitárias, desintegração dos Estados de bem-estar social e
das classes médias, aumento dos preços dos produtos básicos, potencial
desestruturação do sistema financeiro, ruína das aposentadorias e um panorama
visível de retrocessos na saúde, educação, alimentação, comércio internacional e
turismo, entre outros setores.
Nesse contexto, a ‘globulização’ surge como uma nova dimensão da globalização sob
as condições estruturais do capitalismo radicalizado e cada vez mais
desmaterializado, fadado a colidir inevitavelmente com os limites produzidos por
seu próprio desenvolvimento, voraz e insaciável. A ‘globulização’, que experimenta
uma constante capacidade de mutação, é consequência direta da contradição que
ocorre entre a enorme velocidade com qual a globalização capitalista se desenvolve
nas esferas econômica, tecnológica, informacional e ecológica, que conduz
necessariamente à catástrofe do extravasamento, e a globalização muito mais
lenta nas esferas social, cultural e psíquica, que dificilmente podem processar com o
devido tempo e resiliência as consequências da catástrofe em curso.
O capitalismo de colapso
De fato, as várias camadas e frações dessas elites globais lutam entre si para liderar
e controlar o processo, ao mesmo tempo em que convergem na necessidade de que
as massas populares de cidadãos cada vez mais frágeis vejam seus direitos,
liberdades e iniciativas progressivamente limitados. Ou, como destaca Pablo Font em
seu recente livro “La batalla por el colapso. Crisis ecosocial y élites contra el Pueblo”,
tanto o projeto nacional-populista como o projeto globalista, ambos dirigidos pelas
oligarquias, “ocultam o real motivo da luta (luta pelo poder e contra a democracia), e
dela se aproveitam para distrair os cidadãos do possível colapso, bem como da
corrida que já empreendem para estarem melhor situados nesse provável futuro”.
Em suma, assiste-se a uma espécie de detonação controlada do capitalismo por
implosão mediante o desenvolvimento de um capitalismo necessariamente
implosivo.
Trata-se, então, de garantir o planeta para “os que não sobrarem” (as elites e as
populações que lhes são úteis e funcionais). Em suma, trata-se de construir um
projeto de fortaleza global neofeudal formada por uma rede de espaços-fortaleza
comunicados entre si através de um oceano de devastação, pobreza e degradação,
um cenário em que se ativa a sustentabilidade ecocida, ao mesmo tempo em que se
dá o planejamento de um decrescimento genocida das estruturas que obstaculizam a
manutenção dos privilégios, recursos e poder das elites. Ou dito de outro modo:
redução cirúrgica da complexidade como forma de assegurar poder e preservar
o novo sistema pós-colapsista. E para gerir tal processo, um regime totalitário de
emergência, que mesmo conservando certas formas simbólicas de democracia, ative
e ao mesmo tempo controle o caos induzido para maior benefício de elites globais
definitivamente ‘globulizadas’.