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Umberto Martins* e
José Reinaldo Carvalho**
A atual crise é a mais global e a mais grave da história do capitalismo no período posterior à Segunda
Grande Guerra, provavelmente a mais grave desde a grande depressão da década de 30. Uma crise
que, tendo como epicentro os Estados Unidos, irradia-se para todo o mundo. São evidentes os sinais
de recessão econômica nos Estados Unidos e em países europeus, com tendência a aprofundar-se e
estender-se por longo tempo. Já se fazem sentir as duras conseqüências para os trabalhadores e os
povos, com as demissões em massa e o anúncio de medidas anti-operárias pelos governos que em
momentos como este atuam como verdadeiros comitês de salvação do grande capital.
A eclosão da crise do capitalismo a partir do estouro das bolhas financeira e imobiliária em 2007
e 2008 fez soar também o dobre de finados das ilusões que por muito tempo foram semeadas
pelo dogmatismo oficialista, com sede em governos, academias e meios de comunicação, quanto
às virtudes e à durabilidade do “ciclo de expansão” do capitalismo e sua vocação a regenerar-se e
abrir uma nova era desenvolvimentista. Ilusões que conviveram com críticas de supostos renovadores
que tiveram a veleidade de desqualificar o Partido Comunista. Este, segundo os “renovadores”, numa
recidiva de “dogmatismo” marxista-leninista, teria sido acometido também de catastrofismo e leitura
terminalista sobre o sistema capitalista, quando o que fizeram na verdade os comunistas em seu
11º Congresso de 2005 e num Seminário político-teórico em 2007 foi chamar a atenção para as
tendências profundas do desenvolvimento econômico e político da sociedade burguesa-imperialista,
denunciar as suas iniqüidades e chamar os trabalhadores e os povos à luta pelo socialismo, única
alternativa para resolver os impasses da época.
Definir os fenômenos econômicos atuais apenas como uma crise da “financeirização” é incorrer em
unilateralismo, pois a crise não é só financeira, apesar da relevância dos problemas nesta esfera. É
uma crise do processo global de produção capitalista, caracterizada por uma solução de continuidade
na circulação de capitais nas esferas produtiva (D-M-D´) e financeira (D-D´). No primeiro caso, a
interrupção do processo de circulação do capital ocorre com a paralisação da venda de mercadorias
e, consequentemente, a não conversão do capital-mercadoria (M) em dinheiro acrescido de mais-valia
(D´). Na esfera financeira a circulação do capital é bloqueada com a interrupção do crédito. Ambos os
fenômenos – superprodução e crise do crédito – que o pensamento econômico burguês enxerga como
uma crise psicológica, uma “crise de confiança”, podem ser observados na crise atual. Os problemas
começam a surgir depois que a produção no ramo imobiliário (construção civil) atingiu o pico, em 2005,
e as vendas começaram a cair em 2006, revelando a crescente dificuldade de transformar o capital-
mercadoria (M), expresso nos imóveis, em D´ como capital-dinheiro acrescido de lucro.
Assim, a crise tem todas as características de uma crise clássica do capitalismo, uma crise cíclica
decorrente da superprodução de mercadorias, que sucede num ciclo de curta e frágil expansão da
economia americana, entre 2001 e 2007, se comparado com os dois ciclos anteriores (1982-1990 e
1991-2000), mais longos e com maiores taxas de expansão do PIB.
A crise tem a ver com a “Superprodução fomentada pelo crédito e pela concomitante inflação geral
dos preços”, de que já falava Marx em O Capital, livro 3, volume 5.
É preciso enxergar a crise no contexto histórico e em sua interligação com a crise da hegemonia
dos EUA. O processo de reprodução do capitalismo nos EUA e em âmbito internacional é fortemente
marcado pelo parasitismo. A dívida e o déficit comercial norte-americanos cumprem papel destacado
no processo de reprodução ampliada do capital em todo o mundo, daí a irradiação da crise, que
transpõe as fronteiras estadunidenses e se propaga pelos cinco continentes.
Uma das características mais relevantes do atual contexto geopolítico mundial é o progressivo
deslocamento do eixo dinâmico da industrialização e do poder econômico mundial dos Estados Unidos
e da Europa para a Ásia, cabendo destacar, no interior desta, a extraordinária ascensão da China.
Este movimento da história foi realçado pela crise econômica internacional, irradiada dos EUA, e tende
a ser acelerado por ela na medida em que desperta a consciência da necessidade de uma nova ordem
mundial.
Ao longo dos anos, o crescimento desigual das economias nacionais (indicado pela evolução dos
PIBs, comércio exterior e exportação de capitais) promove uma subversão silenciosa da correlação
de forças entre as nações, primariamente na esfera econômica, resultando na ascensão e queda das
potências e erodindo as bases objetivas em que se assenta a ordem imperialista.
A decadência relativa do poderio econômico dos Estados Unidos é um processo histórico que não foi
desencadeado pela atual crise econômica. Tampouco estará resolvido quando o ciclo da reprodução
capitalista se inverter e a economia americana se recuperar da severa recessão que a perturba neste
momento. O declínio transcorre há mais tempo. Ganhou impulso a partir dos anos 1970, após o fim do
lastro do dólar em ouro.
O clima mudou a partir dos anos 1970 – o desenvolvimento desigual (recuperação do Japão, da
Alemanha e França, principalmente, refletida na exportação e no acúmulo de superávits comerciais
em dólares cuja troca por ouro passou a ser exigida) e os gastos da guerra no Vietnã inviabilizaram
o padrão monetário estabelecido em Bretton Woods e levaram o presidente Richard Nixon a decretar
unilateralmente o fim do lastro do dólar em ouro para preservar as reservas de Fort Knox (consumidas
pela guerra do Vietnã e o déficit comercial).
Com o fim do padrão dólar-ouro (1971) e a substituição do câmbio fixo pelo câmbio flexível ou flutuante
(a partir de 1973) os países capitalistas mais desenvolvidos (e o sistema capitalista internacional)
ingressaram numa fase crítica de desenvolvimento, caracterizada pelo progressivo declínio das taxas
de crescimento dos PIBs, configurando uma tendência à estagnação (que não foi superada), bem
como por um aumento substancial das taxas de desemprego, especialmente na Europa. A crescente
desregulamentação financeira, a liberalização dos fluxos de capitais e das taxas de câmbio sepultaram
o período de estabilidade financeira. A partir daí o sistema ingressou numa zona de forte instabilidade
monetária, que não só atravessou a década de 1970 (exigindo em 1979 uma forte alta das taxas
de juros nos EUA para salvar o chamado padrão dólar-flexível), mas vem evoluindo e se agravando
desde então, desembocando na crise atual.
As crises cíclicas de superprodução tornaram-se mais agudas e radicais a partir da crise de 1974-75
(que não se resumiu à crise do petróleo). A eficácia das intervenções anticíclicas do Estado capitalista
foi significativamente reduzida ou mesmo anulada. No final da década, as políticas keynesianas,
desmoralizadas pelos fatos, foram abandonadas e substituídas pelo neoliberalismo nos governos da
dama de ferro Margareth Tatcher na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos EUA, que também não se
mostrou eficiente e acrescentou novos problemas ao sistema.
A força motriz desta decadência foi o acúmulo de déficits comerciais, refletindo uma crescente
perda de competitividade e mercado por parte da indústria norte-americana, que se desdobrou num
endividamento excessivo e numa crescente necessidade de financiamento externo, estimada em
quase 1 trilhão de dólares por ano. Se aprofundarmos a análise, perceberemos que o déficit comercial,
assim como o déficit em conta corrente que resulta daquele, reflete uma carência de poupança interna
que traduz uma baixa taxa de acumulação doméstica de capital.
A nova condição dos EUA, de maior devedor do mundo, arvorada pelo imperialismo como um sinal
de força e por economistas de pouca imaginação como um privilégio originado da supremacia do
dólar, na realidade transformou o país num importador líquido de capitais, traduzindo sua relativa
decadência como investidor global. Conforme assinalou o historiador marxista inglês Eric Hobsbawn,
o “declínio relativo” da economia estadunidense, um processo histórico que em sua opinião começou
logo após a 2o Grande Guerra, “continua”. Não é mais o gigante industrial global. “O centro do mundo
industrializado está rapidamente mudando para a parte mais oriental da Ásia”. Há vários indicadores
desta decadência, que se expressa no plano industrial, comercial e mesmo monetário. O sintoma
mais agudo e significativo, destacado por Hobsbawn consiste no fato de que os EUA deixaram de
ser um exportador líquido de capitais e dependem a cada dia mais da boa vontade dos investidores
estrangeiros para rolar suas dívidas.
“Diferentemente dos antigos países imperialistas e da maioria dos países industriais desenvolvidos”,
observa, “os EUA deixaram de ser um exportador líquido de capital ou o maior ator no jogo
internacional de aquisição ou criação de empresas em outros países e a força financeira do Estado
repousa na constante disposição de outros, na maioria asiáticos, a sustentar um déficit fiscal que de
outro modo seria intolerável” (“A sombra que nos protege”, texto de Eric Hobsbawn publicado pelo
jornal “Folha de São Paulo” (caderno “Mais”, 6-11-2005))
Aqui convém observar que a exportação de capitais é a forma, por excelência, da expansão do capital
no exterior e, portanto, do domínio e influência econômica das potências imperialistas. Fornece, por
isto, o critério fundamental para medir a ascensão ou queda relativa das potências capitalistas.
Outro sinal que podemos classificar entre os mais relevantes do processo de decadência é a queda
dos EUA no ranking mundial da exportação de mercadorias, tendo sido ultrapassado pela Alemanha
em 2005 e pela China a partir de 2007, deslocando-se para a terceira posição.
Por outro lado, a ascensão da China é indicada pelo PIB, o segundo maior do mundo no critério
de paridade de poder de compra, pela crescente participação no comércio exterior e as reservas
de quase 2 trilhões de dólares, que conferem ao país a condição de credor e grande investidor
internacional. As reservas e o comércio exterior ancoram e impulsionam a expansão da influência
econômica da China na Ásia, na África, na Europa, América Latina e nos próprios EUA.
A partir do final dos anos 1990, com o esgotamento das políticas ditadas pelo chamado Consenso
de Washington, presenciamos a ascensão de governos progressistas com diferentes matizes em
importantes países da América Latina e a mudança do cenário político, cada vez mais caracterizado
pela contestação da hegemonia dos EUA na região. A rejeição da ALCA foi certamente um marco
neste movimento, no qual cabe também ressaltar a criação da Unasul, da Alba, as iniciativas por
um Conselho de Defesa da América do Sul e pela ampliação do MERCOSUL. A expressão mais
significativa desse movimento foi a realização em dezembro passado na Costa do Sauípe, Bahia, da
primeira cúpula da verdadeira América, a nossa América, sem a presença de forças imperialistas, seja
o imperialismo estadunidense ou as antigas potências coloniais. Uma cúpula que consagrou Cuba
como integrante de fato e de direito do sistema interamericano, ao arrepio dos interesses dos Estados
Unidos e dos seus aliados.
A guerra contra o Iraque, desencadeada de forma unilateral pelos EUA, com apoio da Inglaterra,
também contribuiu para o desgaste político do império e ensejou protestos na Europa (Alemanha e
França), China e Rússia, estimulando um movimento de realinhamento político, que em meio aos
vaivéns próprios das alterações de conjuntura, permanece em curso.
A correlação de forças entre as nações na atualidade difere radicalmente da que sobreveio do pós-
Segunda Guerra e mesmo da que sucedeu o fim da guerra fria. O declínio relativo dos Estados Unidos
inviabiliza a manutenção da ordem internacional fundada no pós-guerra, sustentada na diplomacia do
dólar, e lança o mundo num período de transição.
Generaliza-se a constatação de que tais instituições estão em vias de esgotamento, o que dá lugar
a uma viva polêmica sobre as alternativas de configuração de uma nova ordem mundial. Fala-se em
reforma do FMI, do BIRD e da própria OMC e aposta-se no G-20 financeiro, com a expectativa de
abrir espaço aos “emergentes”. Mas, serão tais instituições reformáveis? Tal reforma mereceria o
apoio dos comunistas e demais forças antiimperialistas?
De outro lado, os EUA e outras potências estão dispostos a abrir mão pacificamente de suas
posições, resignando-se a uma posição secundária em relação ao papel que desempenham hoje ou
à redistribuição do poder?
Os fatos apontam noutra direção. Em primeiro lugar, sobram sinais e evidências de que os Estados
Unidos reagem à sua própria decadência fortalecendo a supremacia militar, aumentando a
agressividade contra os povos e fomentando a miliitarização e a corrida armamentista.
As guerras contra o Iraque e o Afeganistão, cujo custo – de acordo com estudos do economista J.
Stiglitz, sobe a mais de 3 trilhões de dólares – prosseguem. Os planos para a retirada do Iraque são
vagos. Depois de empossado Obama, o Pentágono anunciou que necessita de 23 meses. Quanto
ao Afeganistão, elevado à categoria de palco principal da “guerra ao terrorismo”, segundo o novo
ocupante da Casa Branca, continuará recebendo tropas norte-americanas e da OTAN.
As iniciativas concretas do imperialismo vão noutra direção e aqui cabe lembrar o pensamento de
Lênin que, a nosso ver, não perdeu atualidade: o imperialismo tende em política à reação e à guerra,
que, sob este prisma, ainda segundo Lênin, é inevitável. O que está sendo preparado não é um
cenário de transição pacífica para a multipolaridade e o multilateralismo, o que seria desejável, mas o
ambiente e as condições para novos conflitos bélicos visando à redivisão de áreas de influência em
todo o mundo. A paz não é uma vocação do imperialismo.
* Jornalista, membro da equipe de análise da CTB – Central dos Trabalhadores do Brasil, diretor do
Cebrapaz e colaborador do Departamento de Relações Internacionais do Partido Comunista do Brasil.