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JANUS 2013

3.1.1 • As incertezas da Europa • Os contornos da crise económica

A crise no espaço europeu Luís Amado

A reabertura do debate sobre o futuro da nos confrontam hoje com novos e preocupantes zona euro, e no papel do Banco Central Europeu
Europa, no mundo global e interdependente desequilíbrios e problemas. (BCE), nos EUA, o debate questiona a persistência
em que vivemos, e sobre o futuro de Portugal Desde logo, o problema da redistribuição da rique- de fraco crescimento económico e elevado desem-
na Europa, é uma das consequências da crise, za. Assistimos por um lado, nos últimos 20 anos, prego, apesar da agressividade da política monetá-
pelo seu impacto na vida dos portugueses, mas a uma impressionante redução da pobreza à escala ria adoptada pelo FED. Mas esse debate não pode
acima de tudo, pela natureza das decisões que mundial, mas, simultaneamente, verificou-se um ignorar nas situações das duas economias, euro-
nos continuarão a ser exigidas. aumento significativo das desigualdades sociais, peia e americana, as disfunções dos sistemas polí-
A crise europeia foi precipitada pela “crise da glo- da diferença entre os recursos dos mais ricos e os ticos respectivos e os problemas estruturais que
balização”, entendida como a crise de um processo recursos dos mais pobres, em particular nas so- dificultam o seu ajustamento às condições da glo-
que modelou a economia e o sistema internacio- ciedades mais desenvolvidas. Por outro lado uma balização, factores de crise de per si relevantes.
nal nas últimas duas décadas e que, por sua vez, nova pobreza aparece inesperadamente, como Um outro problema, estrutural, que sentimos
teve início na crise financeira que se espalhou resultado das dificuldades extraordinárias com hoje mais do que nunca, é o problema da desin-
pelo mundo a partir de 2007-2008, como uma epi- que esta crise confronta alguns sectores sociais, dustrialização, provocado pela rápida deslocaliza-
demia, a partir do coração do sistema financeiro em particular as classes médias, até agora com ção da produção industrial, da Europa e dos EUA,
ocidental, lançando o pânico na economia mun- acesso a crédito fácil e com o futuro “garantido” para as novas economias emergentes. Não parece
dial e provocando a “grande recessão” de 2009, e “seguro” por um Estado Social, que também possível recuperar os níveis de crescimento e em-
cujas ondas de choque ainda se fazem sentir. por esta via, do crédito fácil, pelo acesso a pou- prego necessários nessas economias, sem mais
panças mundiais, se ia financiando. A “dívida” desenvolvimento industrial, o que dependerá si-
Da “crise da globalização” é outro dos problemas que adquiriu com a crise, multaneamente, de um novo ciclo de inovação
à “crise do Ocidente” uma inesperada relevância no ocidente, nos Esta- tecnológica por um lado, e da renegociação das
No início do mais recente processo de “globaliza- dos Unidos (EUA) e na Europa, e em particular condições de troca que resultaram dos generosos
ção” estiveram as políticas de Reagan e de Thatcher na periferia europeia. Por um lado, pelo impacto acordos económicos e comerciais, do período
no Ocidente, e as reformas introduzidas por que tem nas expectativas de crescimento para es- que se seguiu ao fim da GF, por outro. Nem as
Deng Xiaoping na economia chinesa, no início da sas economias, fortemente castigadas pela auste- “guerras” cambiais em curso, nem a tentação
década de oitenta. O debate sobre o Estado e o ridade, imposta por programas de ajustamento proteccionista, são solução para o problema do
seu papel no funcionamento da economia esteve dolorosos e prolongados. Por outro lado, pelos desemprego galopante nas economias ocidentais.
no centro destas duas revoluções que evoluíram efeitos políticos dessa austeridade, agravando as Só a necessária revisão dos contratos sociais que,
durante toda a década de oitenta, em estranha tensões e a conflitualidade social e política, pon- no ocidente, garantiram o modelo de bem-estar
cumplicidade mas em sentido diferente. No pri- do em causa, aqui e ali, os valores de estabilidade em que vivemos ao longo das últimas décadas,
meiro caso, reduzindo consideravelmente a fun- e de governabilidade, que garantiram a consolida- processo que está em curso, na Europa e nos EUA,
ção estratégica e reguladora do Estado, mas no ção da democracia de “bem-estar” nas sociedades e a inevitável renegociação das condições de troca
caso da China, ao contrário das expectativas ocidentais, ao longo das últimas décadas. e regras de relacionamento entre as principais
do Ocidente, preservando até hoje, o seu papel economias do mundo, podem em conjunto relan-
central e o... do partido comunista chinês. çar o crescimento e o emprego nas economias
Tanto a revolução neoliberal de Reagan e Thatcher, do ocidente. Precisamos urgentemente de novos
[O] equilíbrio fundamental
como o “capitalismo leninista” de Deng Xiaoping, acordos comerciais inter-regionais, perante a impo-
contribuíram para a implosão da União Soviética entre a liberdade individual tência crescente das políticas monetárias e fiscais,
(US), para o fim da guerra fria (GF) e para a pro- e a responsabilidade social, por si só, poderem gerar criação de riqueza.
funda transformação que a economia mundial entre os interesses privados Neste processo negocial não podemos ignorar
conheceu nas últimas décadas. e os valores comunitários a importância da questao ecológica, e das garantias
Sem as ideias liberais, sem a abertura das econo- para a sustentabilidade do desenvolvimento da
e sociais, perdeu-se economia global. Sabemos que a entrada muito
mias mais desenvolvidas, sem a inovação finan-
ceira e a liberdade de circulação de capitais quase bruscamente na volúpia rápida na “economia de consumo”, de centenas
ilimitada, associadas ao desenvolvimento da in- predadora dos mercados [...] de milhões de novos consumidores, representou
ternet e do telemóvel, não teria sido possível a uma brutal pressão sobre os recursos naturais,
integração, em menos de 20 anos, de mais de me- em particular sobre os recursos energéticos, as
tade da população mundial, nos circuitos da eco- Se se evitou uma depressão na economia mundial, matérias-primas e os bens alimentares.
nomia global. Deste modo, não deixa de consti- depois da grande recessão de 2009, através de uma Por fim, temos os problemas suscitados pela crise
tuir uma ironia da história, que depois da vitória intervenção massiva e coordenada dos Estados, do próprio sistema económico dominante, do
na GF e do triunfo liberal, o ocidente assista im- pelo recurso à dívida pública, é de esperar que a capitalismo, a crise dentro da crise. A expansão
potente e em sobressalto ao seu próprio declínio, austeridade correctiva, imposta de forma simultâ- rápida das forças de mercado e a afirmação uni-
ao fim da sua hegemonia, na economia e no siste- nea e coordenada às mesmas economias, tenha o versal do modelo de economia liberal, perante
ma financeiro mundial, e se afirme a influência efeito contrario, não sendo pois de estranhar, nem a falência das experiências do “socialismo real”,
cada vez maior da China, arrastando consigo, o a recessão europeia nem a revisão em baixa do interrompeu um período de contenção, de equi-
desenvolvimento de vastas regiões da Ásia, da crescimento da economia mundial. Se na Europa líbrio e moderação que o capitalismo exibiu ao
África e da América Latina. o debate se centra na necessidade de equilíbrio longo do período da GF, apesar das crises cíclicas.
A crise que estamos a viver hoje é, de certo modo, entre austeridade e estímulo ao crescimento econó- Esse equilíbrio fundamental entre a liberdade
a crise deste processo e das suas dinâmicas, que mico, no processo de ajustamento em curso na individual e a responsabilidade social, entre os

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interesses privados e os valores comunitários e “impôs”. São essas condições que, de alguma forma, o Reino Unido exerceu, está definitivamente posto
sociais, perdeu-se bruscamente na volúpia preda- estão hoje em causa, e é por isso, que a Alemanha em causa com o processo de refundação do Euro.
dora dos mercados, sem regulação e sem contro- não pode deixar de ter uma palavra decisiva na Também por isso, as bases de um novo compromisso,
le adequados. Foi no fundo, a sua “exuberância” solução da crise, assumindo as suas responsabili- entre o “núcleo federador” e o “círculo de integra-
irracional, que acabou por provocar o colapso do dades de liderança. É evidente que o faz, exigindo ção”, serão de enorme delicadeza e complexidade
sistema financeiro americano, arrastando todo o mais garantias, face às novas responsabilidades que política, institucional e técnica, e a sua negociação
sistema financeiro e a economia mundial para também lhe são exigidas. Outro problema, porven- e ratificação um difícil e conturbado processo,
uma crise sem paralelo de que ainda não saímos. tura mais complexo, é o da aceitação da liderança perante grandes tensões internas e sob a guilhotina
alemã pelos seus aliados, designadamente a França. permanente dos “mercados”.
Da crise do euro à crise Mas não nos iludamos, ou o euro acaba, pelo Sem um novo impulso voluntarista, desta vez
do projecto europeu menos na sua configuração actual, ou a zona necessariamente apoiado por um amplo debate
A estabilização do sistema financeiro continua a ser euro se transforma num “núcleo federador”, público sobre o futuro da Europa e sobre o futuro
a principal preocupação dos dirigentes mundiais (digo deliberadamente, federador e não federal), da Europa no mundo, a última utopia do século XX ,
na resposta à crise, o que está ainda longe de estar em torno do qual se deverá organizar um “círculo a “utopia europeia”, no dizer de Eduardo Lourenço,
garantido, e as reformas necessárias para o conse- de integração” da UE, hoje a 27, e um “círculo de acabaria como todas as outras utopias do século,
guir, incompletas. alargamento” que poderá ser pensado e gerido numa tragédia para a Europa e para o Mundo. n
No centro dessa instabilidade está a situação da de forma mais flexível e ambiciosa.
zona euro, a crise de confiança que a domina, Nesta perspectiva, o projecto europeu tal como
a incerteza quanto ao seu futuro e as tensões ge- o vivemos até hoje, segundo um conceito de inte-
A Europa e o futuro de Portugal
opolíticas que despertou na Europa. gração em que todos os elementos se inseriam
Aconteça o que acontecer ao euro, entramos defi- num mesmo conjunto, à mesma “velocidade” e As opções com que Portugal se confronta são ex-
nitivamente numa nova fase do projecto europeu, ao mesmo ritmo, dentro das mesmas instituições, tremamente delicadas, na situação em que nos
que passará, mais cedo ou mais tarde, pela revisão acabou. O que coloca novas e difíceis questões encontramos, sem acesso aos mercados que nos
dos Tratados, ou por um novo Tratado, com todo com que vamos ter de lidar nos próximos tempos. permitam financiar normalmente a economia e o
o imponderável desse processo. Desde logo, os problemas difíceis da interacção Estado. Dependentes da assistência internacional,
vinculados a um exigente programa de assistência
O cenário de implosão do euro teria consequên- entre os diferentes círculos, com toda a engenha-
até 2014, que se pode prolongar, a margem de
cias terríveis para todo o sistema financeiro e ria institucional e política, que acentuarão ainda manobra do país é muito limitada. Por outro lado,
para a economia mundial. Por isso, é difícil con- mais a complexidade do sistema político euro- a grande instabilidade de toda a zona euro dificul-
ceber uma nova ordem e um novo equilíbrio ge- peu, já hoje extremamente sofisticado e pesado. ta ainda mais a nossa situação e condiciona forte-
opolítico sem um polo ocidental de referência, Em segundo lugar o problema da legitimidade mente a execução do nosso próprio programa.
e este não existirá sem a estabilidade da Europa democrática das instituições e dos órgãos de deci- Nesta perspectiva é essencial dar atenção a algu-
que passa necessariamente pela União Europeia são europeus. Para lá da desconfiança latente na mas questões essenciais ao longo de 2013, se
(UE), um “projecto de civilização”, nas palavras relação entre os mercados e os governos, ou da quisermos voltar com sucesso à situação de um
de Habermas, que mobilizou gerações sucessivas tensão crescente entre tecnocratas e políticos, o que país “normal”, sem intervenção e condiciona-
de europeus ao longo de várias décadas. será difícil de gerir nos próximos tempos, temos mento externo como aquele que se verifica hoje.
Em primeiro lugar vamos ter que garantir a estabi-
Como foi reconhecido por alguns dos principais a natural desconfiança dos cidadãos em relação às
lidade política e governativa sem as quais será
dirigentes europeus, salvar o euro tornou-se um elites partidárias que nos conduziram à situação
mais difícil, senão impossível, retomar o regular
imperativo para a própria sobrevivência do pro- inesperada em que nos encontramos. Se é certo financiamento do país, em condições de merca-
jecto europeu, sobretudo a partir do resgate da que o “elitismo” que animou o projecto europeu do, e evitar a insolvência. Esta é uma responsabili-
Grécia, em Maio de 2010, quando a perspectiva até hoje, não deixará de ser posto em causa, a dade de todos os actores e instituições políticas,
redutora de identificar a crise, com os problemas questão é saber se haverá outro modus faciendi, desde logo dos partidos da coligação que tem a
fiscais e orçamentais da periferia, iludindo a sua nesta caótica situação em que estamos, que nos tarefa de assegurar a acção governativa nos termos
dimensão sistémica e estrutural, abalou forte- possa salvar do abismo. O instituto referendário, do mandato eleitoral que receberam em 2011.
mente a confiança no euro. a que por instinto democrático, um ou outro go- Em segundo lugar é preciso uma política que
Mas só a partir do Conselho de Junho de 2012 e vernante queira recorrer, resistirá à “pressão dos reponha os equilíbrios macroeconómicos funda-
mercados”, em sociedades fortemente endivida- mentais, o que exige ao mesmo tempo, medidas
depois da controversa decisão do BCE, em Setembro,
de austeridade e rigor, medidas de estímulo ao
assumindo-se como “credor de último recurso”, das como as nossas? O que se passou em Atenas,
crescimento económico e reformas estruturais.
na fronteira das suas competências, e com a ratifi- por exemplo, com Papendreous, é um sinal preo- Uma difícil e complexa mistura de políticas de
cação pela França e pela Alemanha, do Tratado cupante de como as categorias da representação curto e longo prazo, que actuem do lado da pro-
que aprova o chamado “pacto fiscal e orçamental”, e da legitimação políticas são tão facilmente postas cura e da oferta.
se começaram a criar as condições, políticas e ins- em causa, pelo “estado de emergência” que domi- Em terceiro lugar, impõe-se uma gestão muito
titucionais, que permitiram restabelecer, de for- na hoje a democracia na Europa. E, no entanto, atenta politicamente da questão social, com o país
ma mais definitiva, a confiança na moeda comum. não será aceitável, que as importantes decisões em estado de emergência, com níveis de desem-
A partir de então a UE entrou num período de políticas que nos próximos tempos teremos todos prego extremos, com padrões de desigualdade
grandes e importantes decisões, tendo por objec- que tomar, possam ser assumidas sem uma clara social muito elevados numa sociedade em crise,
tivo a refundação do euro, e a consequente rede- manifestação dos povos e dos cidadãos europeus. por isso muito mais sensível aos problemas da
justiça e da distribuição dos sacrifícios.
finição do projecto europeu. Por fim, a questão britânica não será menos rele-
O aumento da conflitualidade social e política
Maastricht procurou responder à desintegração vante. A presente dinâmica de aceleração do pro- poderá alimentar as correntes antieuropeias. A
da US cumprindo dois objectivos essenciais: aco- cesso de integração que a crise impõe, coloca o saída da zona Euro é uma opção que poderá
modar a Alemanha reunificada na realidade do Reino Unido numa posição desconfortável, sobre- atrair cada vez mais apoios, face a dureza do pro-
projecto europeu e criar condições, para o alar- tudo tendo em consideração o papel essencial que cesso de ajustamento e que teria consequências
gamento da UE a Leste, contribuindo para a esta- jogou na liderança do projecto europeu nos últimos dramáticas, económicas, sociais e estratégicas.
bilização da Europa central e oriental. vinte anos, quer nas várias etapas do alargamento, Mas é bom que não nos enganemos, sobre as
O euro foi a moeda de troca da reunificação. Foi quer nas formas de aprofundamento e no relaciona- enormes dificuldades que nos esperam se qui-
uma “condição” que lhe foi “imposta” e que a Ale- mento externo da União, nos planos estratégico, sermos resistir e manter a nossa posição na zona
manha aceitou nas condições que por sua vez político e, acima de tudo, comercial. Este papel que euro e no “núcleo federador” da UE.

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