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François Chesnais (1934-2022) – Blog da Boitempo

François Chesnais (1934-2022)

Publicamos o artigo "Um momento histórico crítico", de François Chesnais, como homenagem
ao economista marxista francês que faleceu no último sábado.

Publicado em 31/10/2022 // 1 comentário

Foi com muita tristeza que recebemos a notícia do falecimento de François Chesnais no último
sábado, 29 de outubro. Chesnais foi um reconhecido economista marxista francês, editor da
revista Carré Rouge, professor emérito da Universidade Paris XIII, membro do conselho
científico da Association pour la Taxation des Transactions pour l´Aide aux Citoyens (Attac) e
técnico da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Como forma de
homenagem, recuperamos abaixo o artigo “Um momento histórico crítico”, originalmente
publicado em 2009 na revista Margem Esquerda #13 como parte do dossiê “Hegemonia em
tempos de crise”. Naquele momento, a transformação da crise dos mercados imobiliário e
financeiro dos Estados Unidos em uma crise econômica global levou o discurso liberal à
desmoralização em todo o mundo. Em sua contribuição, Chesnais, formulador da tese da
financeirização do capitalismo, destaca a longevidade da recessão e as duras consequências
para os trabalhadores no Brasil. Mas lembra que a situação apresentava também uma
oportunidade ímpar para a construção de alternativas. Embora as crises já tenham se
transformado, as alternativas devem continuar a ser imaginadas.

Um momento histórico crítico

Por François Chesnais

Gostaria de contribuir com os seguintes pontos para a discussão que se travou na esquerda no
Brasil:

1º Nos Estados Unidos e na Inglaterra, os comentaristas econômicos não escondem mais o


fato de pensarem que a crise vai ser longa, durar muitos anos. A força dos mecanismos
internos e externos de propagação de crise, o montante dos “ativos tóxicos” constantemente
reavaliados em alta e a ampliação das quedas de produção e do aumento de desemprego
pegaram os “decididores” do capitalismo mundializado totalmente de surpresa (remeto, por
exemplo, aos artigos do Financial Times por ocasião do encontro de Davos de fevereiro de
2009). Os dirigentes políticos proferem um discurso vazio sobre o “perigo protecionista”, logo
desmentido por manipulações das taxas de troca e de medidas em favor de suas próprias
empresas. O comportamento coletivo dos financistas, dos industriais e dos políticos, desde
julho–agosto de 2007, mostra que eles viram a mundialização capitalista contemporânea
unicamente como um campo de operação liberalizada e desregulamentada pelos capitais
fortemente centralizados. De fato, no decorrer das duas últimas décadas, a concorrência
determinante para a nivelação da taxa de lucro se desenvolveu sobre o mercado mundial. É
aos grupos capitalistas mundializados que se aplica a advertência de Marx: “Quando tudo vai
bem, a concorrência atua, por seu efeito sobre a nivelação da taxa de lucro geral, praticamente
como uma irmandade da classe capitalista. Esta reparte a pilhagem comum
proporcionalmente à quantia que cada qual aportou ao negócio. Porém, quando não se trata
mais de dividir o lucro, mas as perdas, cada um busca reduzir na medida do possível sua quota-
parte e a colocar sobre as costas de seu vizinho. É então negócio de força e de astúcia e a
concorrência se converte em um combate entre irmãos inimigos”.1 Esse combate vai ser tão
feroz que cada grande empresa se lembra imediatamente que tem uma “nacionalidade”. Ela
clama a seu governo. Em nome do “interesse nacional”, aquele empenha-se para socorrê-la.
Tal é o processo do qual a União Europeia transformou-se em alguns meses no terreno mais
evidente. Mas isso está se operando em toda a economia mundial.

2º A falta de preparo para a crise por parte dos financistas, dos industriais e dos políticos tem
duas dimensões. Eles não a viram chegar. Quando ela começou, esperaram muito tempo antes
de mensurar sua gravidade. Para se convencer, basta ler o livro de Alan Greenspan.2 O outro
aspecto é mais grave ainda. Os “decididores” atuais também perderam completamente aquilo
que homens como Keynes possuíam ainda nos anos 1930, a saber, um grau elevado de
afastamento crítico em relação ao funcionamento do sistema para estarem conscientes da
necessidade de reestruturá-lo de maneira profunda. A existência da União Soviética e de um
movimento revolucionário internacional relativamente poderoso lhes servia claramente de
estímulo. É certo também que a Segunda Guerra Mundial impôs tanto uma grande negociação
sobre o sistema monetário internacional quanto a aceitação por numerosos capitalismos
nacionais do “compromisso fordista ou socialdemocrata”. Talvez fossem necessários eventos
de porte análogo para que uma fração das elites mundiais adquirisse essa capacidade de
afastamento crítico. Há mais de um ano e meio do início da crise (julho–agosto de 2007), o que
continua a prevalecer é um pensamento político dominado pela palavra de ordem tatcheriana,
isto é, “não há outro sistema, não há alternativas”. O setor do capital que se tornou força
dominante a partir dos anos 1978–1982, quer dizer, as instituições e os grupos constitutivos do
capital financeiro,3 os acionistas-proprietários, os gestores dos fundos de investimento, ou
ainda o novo tipo de dirigente de empresa pago em stock-options4 conservaram até o
momento sua dominação no quadro das burguesias norte-americanas e britânicas. Igualmente
possuem posições fortes em outros lugares. Tomados em conjunto, a falta de preparo dos
burgueses e o poder ainda intacto do capital financeiro explicam as tergiversações frente à
necessidade de renacionalização dos bancos e de espoliação dos financistas, ao menos de uma
parte de seus privilégios. Da mesma maneira que a fraqueza dos planos de aceleração de
crescimento e a falta total de coordenação entre eles, que são uma outra expressão do
protecionismo latente. Todos os planos repousam sobre um endividamento ainda maior dos
Estados. Esse lhes cria terríveis problemas – honrar as dívidas ou repudiá-las –, por um ato
político ou por uma forte inflação. Para os Estados Unidos, acentua problemas, já latentes, de
relações políticas mundiais.

3º Chega-se aqui a um outro aspecto absolutamente crucial, que trouxe modificações que
estão historicamente na ordem do dia nas relações econômicas e políticas interestatais, cujos
protagonistas principais são os Estados Unidos e a China. Esse é um ponto que é objeto de
fortes debates no Brasil, sendo que politólogos conhecidos negam a importância do
problema.5 Os Estados Unidos já foram sede do crash da bolsa em 2001. Desde julho-agosto
de 2007 são eles de novo o epicentro de uma gigantesca crise financeira “sistemática”
mundial, cujo elemento crítico foi e continua sendo seu sistema bancário. A brutalidade da
propagação mundial da crise em sua dupla dimensão financeira e de superprodução resulta
precisamente do fato de que sua sede são os Estados Unidos. A questão central é aquela das
taxas de câmbio e da necessidade “objetiva” que as forças adquiridas da propriedade privada
dos meios de produção negociam um novo sistema monetário internacional que põe, de fato,
fim ao sistema que utiliza o dólar enquanto unidade monetária padrão. A queda regular do
dólar desde 2003 traduz a erosão da hegemonia econômica e financeira dos Estados Unidos,
não em comparação com a Europa, muito fragilizada pelas políticas neoliberais e dividida
politicamente, mas em relação à Ásia. No momento em que a queda do dólar foi mais forte
(primeiro semestre de 2008), observou-se que ela atenuou a perda de competitividade das
empresas de forma muito limitada. A erosão é menor em relação ao Japão, cuja crise mostrou
sua extrema vulnerabilidade, quando comparada à China.

4º Muitos comentaristas desconhecem as causas e subestimam o alcance do déficit exterior


norte-americano, feito do acúmulo entre um déficit comercial e um déficit da conta das
operações de capital. São subentendidos por dois processos: em primeiro lugar, a
transferência por grandes grupos norte-americanos do setor manufatureiro e da grande
distribuição em direção à Ásia e à China, em particular, de uma parte da base industrial dos
Estados Unidos. Em segundo, a concentração das despesas de pesquisa e desenvolvimento
(P&D) em um pequeno número de setores, com uma perda da proeminência tecnológica
frente à Alemanha e ao Japão. Além do setor militar, o avanço tecnológico dos Estados Unidos
somente conserva-se nas telecomunicações e em alguns domínios da química e da
biotecnologia.6 O lugar da China na acumulação mundial supõe que um papel central seja
dado a sua moeda. Um sistema monetário pondo fim ao sistema do dólar enquanto medida-
padrão deverá ser negociado. Duas coisas o tornam mais ou menos inevitável. Primeiramente,
a dependência do sistema mundial em relação à China como principal sustentáculo, senão
como único, para bloquear a transformação da recessão mundial em depressão como ocorrido
nos anos 1930.7 Em seguida, a dependência específica dos Estados Unidos em relação à China
a propósito do plano de financiamento contínuo de uma fração importante de sua dívida
pública. Os fatos são tantos que os Estados Unidos têm uma grande dificuldade em reconhecê-
los, sobretudo porque experimentaram os reversos dessa dimensão no Iraque e no
Afeganistão. Nenhuma potência que se habituou à hegemonia aceita a limitação. Os Estados
Unidos provavelmente menos que qualquer outra.
5º A duração e a profundidade da crise colocam a esquerda frente a responsabilidades
particulares. Toda crise econômica séria e longa agrava ainda mais as condições de existência
das classes trabalhadoras. Obscurece as perspectivas de futuro da juventude. Mas abre
também um período de desestabilização e de “deslegitimação” do capitalismo e até mesmo
uma “janela de oportunidade” no combate pela emancipação social. A emergência de um
processo de “deslegitimação” é ainda limitada a alguns países, sendo um deles talvez a França
(estendendo-se aos seus resquícios coloniais, inclusive às Caraíbas). Enquanto a crise se
prolongar, esses processos podem se consolidar e se estender. Pode-se apenas haver
surpresas com a inquietação de alguns governos diante da indignação popular, que se
desenvolve a partir do volume das somas elevadas para financiar a sabotagem das instituições
financeiras, aquelas mesmas que criaram as condições da crise financeira. A grande
interrogação e a aposta maior reportam-se à China, onde muitos trabalhadores suportaram a
marcha ao capitalismo e a corrupção dos quadros do Partido Comunista Chinês (PCC), em
razão da expansão bem-sucedida da acumulação e de suas consequências em termos de
salários para a “nova classe média” e de emprego para os proletários. Aceitando-se a
interpretação otimista de alguns pesquisadores, o sentido objetivo (a propriedade da terra
pelo campesinato, mas também o controle estatal do crédito) e subjetivo da revolução chinesa
não seria totalmente rompido.8 A aposta então seria aquela da centralização na China das
centenas de lutas dispersas que se travam continuamente e da criação de laços com as formas
e as estruturas de combate em outras partes do mundo.

6º Em todos os países onde existem tradições de luta, é necessário que uma aliança das forças
sociais e políticas independentes dos governos, mas também dos sindicatos integrados ao
Estado, se constitua rapidamente. Guadalupe fornece o modelo.9 É preciso que tal aliança seja
capaz de elaborar respostas à crise que correspondam ao interesse do maior número de
assalariados e de oprimidos. A falência do pensamento burguês nos impõe essa tarefa. O vazio
deixado pode ser preenchido com a condição de que se criem os quadros organizacionais de
elaboração e de popularização adequados a uma aliança leal. O desafio que se coloca não é
simplesmente econômico. É aquele das apostas na civilização colocadas pela “tríplice crise”
social, econômica e ecológica, que é típica de nossa época. Aqui toco num ponto que, ao
menos até o presente, foi objeto de reflexão e debate mais na Europa do que no Brasil.
Considerando-se a situação de modo verdadeiramente global, os assalariados e a juventude,
os explorados e os dominados do mundo, além de qualquer pessoa para quem as palavras
“humanidade” e “civilização” guardam um sentido, são confrontados com a conjunção entre a
crise econômica e a progressão rápida da crise ecológica, da crise de mudança climática,10
mas também de destruição de recursos não-renováveis.11 O caráter diferenciado dos
impactos sociais dessas crises, e o fato de que os países mais vulneráveis econômica e
politicamente são atingidos primeiro, permite às classes dominantes e às suas mídias
confundirem ainda mais esse quadro. O combate pela emancipação encontra-se em um
momento histórico crítico.
Tradução de Ana Paula Hey. Revisão técnica de Afrânio Mendes Catani.

István Mészáros e François Chesnais, em intervalo do Seminário III Seminário Internacional


Margem Esquerda: “István Mészáros e os desafios do tempo histórico”, ocorrido na
Universidade de São Paulo (USP), 2011. Ao fundo, Brett Clark e Jorge Beinstein.

Notas

1 Karl Marx, O Capital (Boitempo, 2011).

2 Alan Greenspan, The age of turbulence: adventures in a new world (USA, The Penguin Press,
2007).

3 Por capital financeiro é preciso entender o que Marx designa pelo termo “portador de
juro”[porteur d´interet]. Ver meu capítulo no livro coletivo a ser lançado em espanhol pela
Herramienta, em Buenos Aires, em abril, “A proeminência da finança no quadro do ‘capital em
geral’, o capital fictício e o movimento contemporâneo de mundialização do capital”, em
Seminário de Estudos Marxistas, A finança capitalista (Coleção Actuel Marx Confrontations,
Presses Universitaires de France, Paris, 2006).

4 Plano que permite ao empregado acesso às ações da companhia a preço pré-determinado.


(N. E.)

5 Ver José Luís Fiori, Carlos Medeiros e Franklin Serrano. O mito do colapso do poder
americano (Rio de Janeiro, Editora Record, 2008).

6 O deslocamento pelas multinacionais norte-americanas de atividades em direção à China


não se referiu somente à produção de bens pouco sofisticados. A partir de 2000, é na China
que a Microsoft abriu seus novos centros tecnológicos.

7 Concordo com David Harvey quando explica que, sozinha, a China poderia fazer uma
“verdadeira” política de crescimento em moldes keynesianos. Ver seu artigo ‘Por qué está
condenado al fracaso el paquete de estímulos económicos’, disponível na internet em
http://www.sinpermiso.info/textos/index.php?id=2365.

8 Ver, por exemplo, Giovanni Arrighi, Adam Smith em Pequim, origens e fundamentos do
século XXI (Boitempo, 2008).

9 Os trabalhadores urbanos e rurais, a juventude e todos os dominados e explorados de


Guadalupe criaram uma entidade original, a LKP(Aliança contra a exploração excessiva), que
reuniu cerca de cinquenta sindicatos, associações e grupos populares, para redigir, durante
reuniões que duraram semanas, um programa econômico, social e político longo e detalhado
e, posteriormente, para lançar a greve geral e manter até hoje (18 de fevereiro) a unidade,
apesar da repressão constante.

10 Essa questão foi o tema principal da conferência anual da American Association for the
Advancement of Science. Ver, AASS, Our planet and its life: origins and futures, 12-16 de
fevereiro de 2009, Chicago. O relatório apresentado por Christopher Field, da Carnegie
Institution for Sciences, indicou que as emissões aumentaram em média 3,5% por ano desde
2000, contra 0,9% na década de 1990, o que confirma as hipóteses retidas até o presente pela
Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC).

11 Alguns de meus textos sobre essas dimensões estão disponíveis na internet em


www.herramienta.org.ar.

A finança mundializada

Coletânea de textos organizada por François Chesnais que contribui para o avanço do debate
sobre as finanças globais contemporâneas. Trata-se de uma colaboração importante para o
entendimento das alterações ocorridas ao longo das três últimas décadas na estrutura e
gestão de riqueza capitalista e na operação de mercados financeiros. No livro François
Chesnais e mais 11 autores de diversas áreas da economia dissecam as relações entre mercado
financeiro e a hegemonia militar política no mercado de câmbio norte-americano. Além disso
analisam os riscos presentes na combinação de uma grande dependência externa da
superpotência com uma doutrina de segurança agressiva de guerras ‘preventivas’.

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