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Publicamos o artigo "Um momento histórico crítico", de François Chesnais, como homenagem
ao economista marxista francês que faleceu no último sábado.
Foi com muita tristeza que recebemos a notícia do falecimento de François Chesnais no último
sábado, 29 de outubro. Chesnais foi um reconhecido economista marxista francês, editor da
revista Carré Rouge, professor emérito da Universidade Paris XIII, membro do conselho
científico da Association pour la Taxation des Transactions pour l´Aide aux Citoyens (Attac) e
técnico da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Como forma de
homenagem, recuperamos abaixo o artigo “Um momento histórico crítico”, originalmente
publicado em 2009 na revista Margem Esquerda #13 como parte do dossiê “Hegemonia em
tempos de crise”. Naquele momento, a transformação da crise dos mercados imobiliário e
financeiro dos Estados Unidos em uma crise econômica global levou o discurso liberal à
desmoralização em todo o mundo. Em sua contribuição, Chesnais, formulador da tese da
financeirização do capitalismo, destaca a longevidade da recessão e as duras consequências
para os trabalhadores no Brasil. Mas lembra que a situação apresentava também uma
oportunidade ímpar para a construção de alternativas. Embora as crises já tenham se
transformado, as alternativas devem continuar a ser imaginadas.
Gostaria de contribuir com os seguintes pontos para a discussão que se travou na esquerda no
Brasil:
2º A falta de preparo para a crise por parte dos financistas, dos industriais e dos políticos tem
duas dimensões. Eles não a viram chegar. Quando ela começou, esperaram muito tempo antes
de mensurar sua gravidade. Para se convencer, basta ler o livro de Alan Greenspan.2 O outro
aspecto é mais grave ainda. Os “decididores” atuais também perderam completamente aquilo
que homens como Keynes possuíam ainda nos anos 1930, a saber, um grau elevado de
afastamento crítico em relação ao funcionamento do sistema para estarem conscientes da
necessidade de reestruturá-lo de maneira profunda. A existência da União Soviética e de um
movimento revolucionário internacional relativamente poderoso lhes servia claramente de
estímulo. É certo também que a Segunda Guerra Mundial impôs tanto uma grande negociação
sobre o sistema monetário internacional quanto a aceitação por numerosos capitalismos
nacionais do “compromisso fordista ou socialdemocrata”. Talvez fossem necessários eventos
de porte análogo para que uma fração das elites mundiais adquirisse essa capacidade de
afastamento crítico. Há mais de um ano e meio do início da crise (julho–agosto de 2007), o que
continua a prevalecer é um pensamento político dominado pela palavra de ordem tatcheriana,
isto é, “não há outro sistema, não há alternativas”. O setor do capital que se tornou força
dominante a partir dos anos 1978–1982, quer dizer, as instituições e os grupos constitutivos do
capital financeiro,3 os acionistas-proprietários, os gestores dos fundos de investimento, ou
ainda o novo tipo de dirigente de empresa pago em stock-options4 conservaram até o
momento sua dominação no quadro das burguesias norte-americanas e britânicas. Igualmente
possuem posições fortes em outros lugares. Tomados em conjunto, a falta de preparo dos
burgueses e o poder ainda intacto do capital financeiro explicam as tergiversações frente à
necessidade de renacionalização dos bancos e de espoliação dos financistas, ao menos de uma
parte de seus privilégios. Da mesma maneira que a fraqueza dos planos de aceleração de
crescimento e a falta total de coordenação entre eles, que são uma outra expressão do
protecionismo latente. Todos os planos repousam sobre um endividamento ainda maior dos
Estados. Esse lhes cria terríveis problemas – honrar as dívidas ou repudiá-las –, por um ato
político ou por uma forte inflação. Para os Estados Unidos, acentua problemas, já latentes, de
relações políticas mundiais.
3º Chega-se aqui a um outro aspecto absolutamente crucial, que trouxe modificações que
estão historicamente na ordem do dia nas relações econômicas e políticas interestatais, cujos
protagonistas principais são os Estados Unidos e a China. Esse é um ponto que é objeto de
fortes debates no Brasil, sendo que politólogos conhecidos negam a importância do
problema.5 Os Estados Unidos já foram sede do crash da bolsa em 2001. Desde julho-agosto
de 2007 são eles de novo o epicentro de uma gigantesca crise financeira “sistemática”
mundial, cujo elemento crítico foi e continua sendo seu sistema bancário. A brutalidade da
propagação mundial da crise em sua dupla dimensão financeira e de superprodução resulta
precisamente do fato de que sua sede são os Estados Unidos. A questão central é aquela das
taxas de câmbio e da necessidade “objetiva” que as forças adquiridas da propriedade privada
dos meios de produção negociam um novo sistema monetário internacional que põe, de fato,
fim ao sistema que utiliza o dólar enquanto unidade monetária padrão. A queda regular do
dólar desde 2003 traduz a erosão da hegemonia econômica e financeira dos Estados Unidos,
não em comparação com a Europa, muito fragilizada pelas políticas neoliberais e dividida
politicamente, mas em relação à Ásia. No momento em que a queda do dólar foi mais forte
(primeiro semestre de 2008), observou-se que ela atenuou a perda de competitividade das
empresas de forma muito limitada. A erosão é menor em relação ao Japão, cuja crise mostrou
sua extrema vulnerabilidade, quando comparada à China.
6º Em todos os países onde existem tradições de luta, é necessário que uma aliança das forças
sociais e políticas independentes dos governos, mas também dos sindicatos integrados ao
Estado, se constitua rapidamente. Guadalupe fornece o modelo.9 É preciso que tal aliança seja
capaz de elaborar respostas à crise que correspondam ao interesse do maior número de
assalariados e de oprimidos. A falência do pensamento burguês nos impõe essa tarefa. O vazio
deixado pode ser preenchido com a condição de que se criem os quadros organizacionais de
elaboração e de popularização adequados a uma aliança leal. O desafio que se coloca não é
simplesmente econômico. É aquele das apostas na civilização colocadas pela “tríplice crise”
social, econômica e ecológica, que é típica de nossa época. Aqui toco num ponto que, ao
menos até o presente, foi objeto de reflexão e debate mais na Europa do que no Brasil.
Considerando-se a situação de modo verdadeiramente global, os assalariados e a juventude,
os explorados e os dominados do mundo, além de qualquer pessoa para quem as palavras
“humanidade” e “civilização” guardam um sentido, são confrontados com a conjunção entre a
crise econômica e a progressão rápida da crise ecológica, da crise de mudança climática,10
mas também de destruição de recursos não-renováveis.11 O caráter diferenciado dos
impactos sociais dessas crises, e o fato de que os países mais vulneráveis econômica e
politicamente são atingidos primeiro, permite às classes dominantes e às suas mídias
confundirem ainda mais esse quadro. O combate pela emancipação encontra-se em um
momento histórico crítico.
Tradução de Ana Paula Hey. Revisão técnica de Afrânio Mendes Catani.
Notas
2 Alan Greenspan, The age of turbulence: adventures in a new world (USA, The Penguin Press,
2007).
3 Por capital financeiro é preciso entender o que Marx designa pelo termo “portador de
juro”[porteur d´interet]. Ver meu capítulo no livro coletivo a ser lançado em espanhol pela
Herramienta, em Buenos Aires, em abril, “A proeminência da finança no quadro do ‘capital em
geral’, o capital fictício e o movimento contemporâneo de mundialização do capital”, em
Seminário de Estudos Marxistas, A finança capitalista (Coleção Actuel Marx Confrontations,
Presses Universitaires de France, Paris, 2006).
5 Ver José Luís Fiori, Carlos Medeiros e Franklin Serrano. O mito do colapso do poder
americano (Rio de Janeiro, Editora Record, 2008).
7 Concordo com David Harvey quando explica que, sozinha, a China poderia fazer uma
“verdadeira” política de crescimento em moldes keynesianos. Ver seu artigo ‘Por qué está
condenado al fracaso el paquete de estímulos económicos’, disponível na internet em
http://www.sinpermiso.info/textos/index.php?id=2365.
8 Ver, por exemplo, Giovanni Arrighi, Adam Smith em Pequim, origens e fundamentos do
século XXI (Boitempo, 2008).
10 Essa questão foi o tema principal da conferência anual da American Association for the
Advancement of Science. Ver, AASS, Our planet and its life: origins and futures, 12-16 de
fevereiro de 2009, Chicago. O relatório apresentado por Christopher Field, da Carnegie
Institution for Sciences, indicou que as emissões aumentaram em média 3,5% por ano desde
2000, contra 0,9% na década de 1990, o que confirma as hipóteses retidas até o presente pela
Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC).
A finança mundializada
Coletânea de textos organizada por François Chesnais que contribui para o avanço do debate
sobre as finanças globais contemporâneas. Trata-se de uma colaboração importante para o
entendimento das alterações ocorridas ao longo das três últimas décadas na estrutura e
gestão de riqueza capitalista e na operação de mercados financeiros. No livro François
Chesnais e mais 11 autores de diversas áreas da economia dissecam as relações entre mercado
financeiro e a hegemonia militar política no mercado de câmbio norte-americano. Além disso
analisam os riscos presentes na combinação de uma grande dependência externa da
superpotência com uma doutrina de segurança agressiva de guerras ‘preventivas’.