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A crise no alvorecer do século XXI

Nelson Carvalheiro

A crise que se espalha pelo mundo há alguns meses vem sendo alvo de inúmeras preocupações e
leva a diversas interpretações e perguntas. Todos opinam sobre suas origens, seu tamanho, sua
duração e suas conseqüências. Todos palpitam sobre as lições que serão aprendidas e os
mecanismos de defesa que prevenirão futuras crises.

Esses pontos de vista, contudo, nem sempre são convergentes, traduzindo o que é conhecido como
característica marcante dos economistas. Os mais catastrofistas entendem que o mundo está
derretendo, prenunciando o fim do capitalismo e do neoliberalismo. Alguns chegam ao limite de
afirmar que a quebra de Wall Street terá para o capitalismo o mesmo significado que a queda do
muro de Berlim teve para o comunismo ou que a situação será comparável à grande depressão dos
anos 1930. Os mais serenos lembram que as crises existem de forma recorrente e são sempre
combatidas por intervenções governamentais, por meio de mecanismos que impedem sua
propagação em ritmo exponencial. Seja como for, nenhum deles nega que os efeitos da crise
financeira têm repercussões sobre o lado real da economia. Nesse sentido, todos reconhecem que,
cedo ou tarde, a produção, o consumo e o investimento (e talvez as trocas internacionais) serão
afetados, assim como o serão o emprego, os rendimentos e a poupança.

Quanto às origens da crise, a história é bem conhecida. Quando os preços dos imóveis deixaram de
subir nos Estados Unidos, em paralelo com o aumento das taxas de juros, a inadimplência em
empréstimos do tipo subprime – hipotecas de alto risco para famílias com histórico ruim de crédito
– atingiu níveis expressivos. Os devedores começaram a devolver aos bancos casas que valiam bem
menos do que a hipoteca correspondente. O problema se alastrou e descambou para uma crise de
desconfiança que atingiu grandes bancos e companhias seguradoras. De fato, bancos de
investimentos, em obediência à regulação de Basiléia, tiveram que se desfazer de ativos para repor
as perdas que os ativos tóxicos, garantidos pelas hipotecas, levaram às garantias financeiras. E esse
processo passou a se repetir continuamente, disseminando-se por todo o sistema financeiro norte-
americano e exigindo intervenção maciça das autoridades governamentais. O que poucos sabiam até
aquele momento é que a crise financeira e a crise na produção e no emprego andavam juntas.

Nesse sentido, é interessante lembrar que, há alguns anos, todo trabalho de pesquisa sobre o sistema
financeiro passava obrigatoriamente por um artigo que se tornou clássico: “Financial aspects of
economic development”, de J. Gurley e E. Shaw, publicado no jornal American Economic Review,
em 1955. Enquanto alguns argumentavam que o desenvolvimento econômico levava ao
desenvolvimento do sistema financeiro e outros diziam que a causalidade ocorria no sentido
contrário, Gurley e Shaw explicaram que os dois eventos ocorriam mais ou menos
simultaneamente. Essa lembrança rápida serve como base para uma reflexão sobre o que vem
ocorrendo na atualidade, principalmente na economia norte-americana. Afinal, se o
desenvolvimento econômico e o desenvolvimento do sistema financeiro ocorrem
contemporaneamente, é razoável pensar que uma recessão econômica ocorreria mais ou menos em
concomitância com uma crise financeira.

Tal questão é suscitada em virtude do diagnóstico recente do NBER (National Bureau of Economic
Research), segundo o qual a economia norte-americana vem apresentando um quadro recessivo
desde dezembro de 2007. Essa situação é contemporânea da crise financeira que se iniciou com a
crise dos empréstimos subprime e se alastrou nos Estados Unidos em 2007 e 2008. Assim sendo,
tem sentido a afirmação de que a crise financeira tem ressonância na economia real? As duas crises
já não estariam repercutindo entre si desde o final de 2007?

Dadas essas indagações, é interessante fazer uma breve resenha das idéias e opiniões de alguns
renomados economistas que contribuíram, de algum modo, para a oitava edição do livro Economia,
de Michael Parkin, publicado recentemente pela Pearson Education. Em linhas gerais, percebe-se
facilmente que o pensamento da maior parte desses economistas é bastante ponderado,
manifestando uma confiança na superação dos problemas que já são suficientemente conhecidos e
afligem os menos familiarizados com a teoria econômica.

Assim, para Xavier Sala-i-Martin


(http://www.columbia.edu/~xs23/catala/articles/2008/Crisis_Financiera), que parece ter a visão
mais abrangente sobre o problema, as causas da crise devem ser buscadas na política monetária de
redução das taxas de juros a partir de 2001, na intromissão do congresso norte-americano (que
induziu entidades semipúblicas, como Freddie Mac e Fannie Mae, a assegurar créditos a famílias
subprime) e em uma regulação baseada na convenção de Basiléia, que permitia aos bancos a criação
de entidades paralelas, com balanços separados (possibilitando a multiplicação dos créditos
concedidos de maneira ilimitada), e, ao mesmo tempo, os obrigava a se desvencilhar de créditos
quando suas garantias baixavam, provocando a espiral negativa de vendas e quedas na bolsa de
valores. Portanto, a crise não foi causada por falta de regulação. A regulação é que contribuiu para
gerar e agravar a crise.

É verdade que a situação atual é, em alguns aspectos, parecida com a vivida em 1929 – naquela
época, também as bolsas de valores despencaram, os investidores entraram em pânico, os governos
em princípio ficaram perdidos, sem saber o que fazer. Entretanto, há grandes diferenças entre esses
dois momentos. Em linhas gerais, hoje:

1. os depósitos bancários estão garantidos, evitando corridas bancárias;

2. os bancos centrais podem emitir dinheiro, pois o sistema monetário não se baseia mais no padrão
ouro;

3. os preços e os salários não estão baixando continuamente, de modo que muitas famílias poderão
honrar suas dívidas e minorar os problemas financeiros dos bancos;

4. a renda per capita é relativamente grande, de modo que uma queda percentual, mesmo que
elevada, não trará necessariamente grandes problemas;

5. não há propostas de protecionismo como saída para a crise;

6. a taxa de retorno das inversões em ativos não financeiros é superior à média dos últimos 50 anos.

Para Jagdish Bhagwati (http://www.columbia.edu/~jb38), também é possível fazer comparações


entre a situação atual e a vivida em 1929. Em seu entendimento, contudo, algumas questões devem
ser levadas em conta, entre elas:

1. a crise atual é complexa, mas está sendo contida. A crise de 1929 resultou em conseqüências
terríveis para o emprego e para a atividade econômica em geral;

2. em 1929, a situação agravou-se muito em razão da política monetária contracionista, que


acentuou a depressão, e da falta de uma política fiscal expansionista;

3. em 1929, a política comercial protecionista agravou os problemas, contribuindo para disseminar


mundialmente os efeitos da crise;

4. hoje, os responsáveis pelo Fed (Federal Reserve System) e pelo Tesouro dos Estados Unidos são
pragmáticos e estão determinados a fazer o possível para conter a crise.

Steven Levitt (http://freakonomics.blogs.nytimes.com/) confessou publicamente suas restrições em


relação à interpretação da crise e solicitou auxílio a dois especialistas – Doug Diamond e Anil
Kashyap – para publicar em seu blog as opiniões deles. Ambos responderam a diversas questões
sobre as atitudes do governo norte-americano e as perspectivas de uma evolução da crise para a
depressão econômica, mas, em geral, suas considerações recaíram apenas na crise financeira.

No Brasil, as considerações sobre o problema foram bastante divulgadas pela imprensa. Antônio
Delfim Netto expressou suas opiniões no jornal Valor Econômico. Para ele, quebrada a confiança
no setor financeiro, o colapso do setor real é questão de tempo. Quanto mais demorar a intervenção
do Estado, na forma de fornecimento de capital temporário e do suprimento de liquidez, maior e
mais duradoura será a crise financeira e a redução da produção física, com o aumento do
desemprego correspondente. Já para José Alexandre Scheinkman, os mercados estavam muito
desregulados, pois havia uma atitude ideológica por parte do governo e do Fed contra a regulação.
Para Eduardo Giannetti, o sistema financeiro se baseia em crenças, promessas e expectativas.
Houve um período muito longo de juros baixos, expansão da liquidez, crescimento econômico sem
pressão inflacionária e inovações financeiras. Mas uma coisa é a crise financeira e outra são as
seqüelas no mundo real: desemprego, fome, pobreza. O tamanho das seqüelas dessa crise ainda está
aberto. Por fim, para Gustavo Franco, que mantém suas opiniões em um portal
(http://www.econ.puc-rio.br/gfranco/), as crises financeiras existem desde sempre e,
invariavelmente, são combatidas por operações salvadoras de governos, que terminam fazendo o
sistema mais robusto. Embora muita gente esteja celebrando o fim do capitalismo, ou do
neoliberalismo, parece razoável supor que o capitalismo não vai acabar.

Em suma, dos economistas considerados, apenas Xavier Sala-i-Martin e Jagdish Bhagwati parecem
considerar a crise uma questão mais ampla, contemplando problemas reais e financeiros
contemporaneamente. Os demais parecem preferir considerar a crise somente financeira, prevendo
repercussões sobre o lado real da economia apenas em um futuro próximo. Agora, é esperar para
ver!

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